100 Orpheu PDF
100 Orpheu PDF
100 Orpheu PDF
www.edicoesesgotadas.com
[email protected]
Título
100 ORPHEU
Organizadores
Dionísio Vila Maior
Annabela Rita
Imagem da Capa
??
ISBN
978-989-8801-37-1
Depósito Legal
XXXXXX/16
Impressão
xxx
Execução Gráfica
Hugo Carvalho | Edições Esgotadas, Lda
© 2016
Dionísio Vila Maior
Annabela Rita
Todos os direitos reservados.
Esta publicação foi financiada por Fundos Nacionais através da FCT — Fundação para a Ciência e a Tecnologia
no âmbito do Projeto UID/ELT/00077/2013
100
ORPHEU
Palavra prévia
[…] “Orpheu” não acabou. “Orpheu” não pode acabar. Na mitologia dos antigos, que
o meu espírito radicalmente pagão se não cansa nunca de recordar […] há a história
de um rio, de cujo nome apenas me entrelembro, que, a certa altura do seu curso, se
sumia na areia. Aparentemente morto, ele, porém, mais adiante […] surgia outra vez à
superfície, e continuava, com aquático escrúpulo, o seu leve caminho para o mar. Assim
quero crer que seja […] a revista […] “Orpheu”.
Em 2015, um grupo de trabalho reavivou (mais uma vez) esse “rio”, delineando
cuidadosamente, laborando intensamente, organizando diversos seminários,
colóquios, exposições e congressos internacionais, dezenas de iniciativas que
comemorassem o centenário do Orpheu. E consideramos ter sido com um elevado
sentido de responsabilidade que, 100 anos depois do lançamento da revista
Orpheu, este grupo de trabalho acabou por despertar esse outro “rio” — não de
“noturna consistência”, não lidiamente sossegado, antes multicolor, polifónico e
pluridiscursivo — como, aliás, convém.
Assim se publicam diversos contributos que refletem sobre uma plêiade de escritores
e artistas cuja produção foi marcada profundamente por uma experimentação
estética e literária: Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros,
António Ferro, Amadeo de Sousa-Cardoso, Santa-Rita Pintor, Luís de Montalvor,
Ronald de Carvalho, Alfredo Pedro Guisado, Armando César Cortes-Rodrigues,
Ângelo de Lima, Raul Leal, e outros que, balizados pelo timbre das obras que estes
legaram à posteridade, aprofundaram a descontinuidade moderna, numa cadeia de
acontecimentos que ainda hoje persistem na memória coletiva luso-brasileira.
Referindo-se ao grupo do Orpheu, disse Eduardo Lourenço: “Tudo o que eles
tocam, levanta voo à nossa frente”. Descreveu, desse modo, o impacto que o grupo
modernista português vem exercendo sobre a produção artística e literária da
contemporaneidade com a publicação da revista Orpheu. Defini-lo perentoriamente
como “autêntica revolução poética, sem paralelo na história literária portuguesa” foi
um acerto visionário, de modo que estamos ainda a colher os frutos dessa viragem,
disseminados muito para além da lusofonia.
Procurando celebrar esse centenário (com as honras que também à [re]leitura
convidam), o CLEPUL, o LEPEM e o Instituto Europeu de Ciências da Cultura Padre
Manuel Antunes responderam de pronto — com a intensidade consentida pela paixão
e amor profundos pela Literatura, pelas Artes, pelas Humanidades (reservando-nos,
todos nós, o direito de homenagear, diversamente, aqueles que questionaram,
clarificando, uma memória coletiva).
Aos que nos apoiaram e acompanharam, deixamos aqui exarados a saudação, o
agradecimento e a promessa de reencontro em 2017, no 100/Futurismo, continuando
a aventura da revisitação e da reinvenção da nossa memória coletiva, percurso iniciado
em Lisboa e em São Paulo (com a nossa colega Lilian Jacoto). À Fundação Millennium
BCP, na pessoa do seu Presidente, Dr. Fernando Nogueira, estamos profundamente
penhorados pelo apoio cúmplice que viabilizou esta edição. À Fundação Calouste
Gulbenkian e ao Centro Cultural de Belém, agradecemos, penhorados, o acolhimento
do encontro científico central no calendário comemorativo. Menção saudosa e grata
deixamos lavrada a Vasco Graça Moura, que presidia ao Centro Cultural de Belém no
início do projeto celebratório. Louvamos todos os membros da organização do vasto
programa comemorativo, destacando na pessoa do Dr. Luís Pinheiro, o nosso sempre
disponível e eficaz executivo, a constância da ação. A todos, pois, o nosso bem-haja!
Perguntar-se-á: Quanto de coletivo terá essa memória coletiva? Quanto de amena
perversidade (ou não) terão a mitificação da História e a comemoração de uma
revista que definitivamente balizou? Se dúvidas houvesse acerca da representatividade
e do benefício estruturante da consciência histórica para a sobrevivência de uma
coletividade, bastaria recordar que o próprio conceito de coletividade linguística integra
em si uma imagem dinâmica — imagem esta que só se concretiza enquanto consciência
transformada em discurso, ato e obra realizada. E é, no fundo, essa consciência que (de
acordo com Pessoa) permitirá ao homem atingir aquela «vitalidade» que, em 1912, ele
emprestava à «exuberância de alma» de uma comunidade, à sua «capacidade de criar
[…] novos moldes, novas ideias gerais».
É, afinal, essa “exuberância”, essa “capacidade criativa” com que os órficos
sinalizaram a literatura portuguesa que, com este livro, relembramos — procurando,
por um lado, contribuir para a (re)avaliação da geração de Orpheu (preenchendo
novos “lugares” de leituras) e, por outro, dar razão às palavras de Pessoa publicadas
em 1935, no nº 3 da revista Sudoeste, quando dizia: “[…] Orpheu acabou. Orpheu
continua”.
Guilherme Pobre
França, José-Augusto 245
Índice 11
Os Caminhos da Heteronímia
Guimarães, Fernando 355
O Sensacionismo é um Não-Existencialismo
Hipólito, Nuno 367
Orpheu… e depois?...
Leão, Isabel Ponce de 389
12 100 Orpheu
Conferência
Lourenço, Eduardo 443
Orpheu e a Guerra
Martins, Patrícia Soares 489
O Mito do Orpheu
Saraiva, Arnaldo 619
Amadeo e Orpheu
Soares, Marta 643
Campos Triunfal
Zenith, Richard 741
«Meus olhos ungidos de Novo»: Manucure de Mário de Sá-Carneiro,
poema órfico de Vanguarda, «apesar de blague?»
Orietta Abbati
Universidade de Turim
1 Basta pensar na colaboração neste número do poeta Ângelo Lima, ou na “novela vertígica” Atelier, de Raul Leal.
16 100 Orpheu Orietta Abbati
Qual é então a posição que, na Tábua, Pessoa atribui à poesia Manucure? Citando-a
entre as colaborações do amigo em jornais e revistas, com referências pontuais
a Orpheu 2, inclui-a entre os poucos «aproveitáveis», rotulando-a logo de seguida
como «poema semi-futurista (feito com intenção de blague)». Insere-a também na
projetada publicação final, «apesar de blague», não sem deixar de enfatizar, mais uma
vez e sem parênteses, a confiabilidade duvidosa.
A impressão imediata é de uma, mesmo se involuntária ou talvez não,
desvalorização daquela que foi sucessivamente considerada entre os poucos
exemplos de poesia futurista, aliás, citando F. Cabral Martins, «Manucure talvez
seja, se exceptuarmos K4 O Quadrado azul, Saltimbancos e o Manifesto Anti-Dantas,
de Almada, o texto português mais próximo do cânone do Futurismo» (1994: 279).
Sem pretensões de entrar na questão da sua assimilação, ou da sua órbita, mais ou
menos rigorosa, à volta da vanguarda marinettiana6, deve-se notar que Manucure,
talvez levando consigo esses epítetos, constituidores de um peritexto, que, de alguma
forma se tornou uma parte integrante do título, com um aviso ao leitor, de fato aparece
numa posição excêntrica ou marginal em toda a obra poética de Sá-Carneiro, quase
um corpo estranhado e ao mesmo tempo estranho, que mereceu da crítica a seriedade
circunscrita da citação «apesar de blague».
Neste contexto, torna-se necessário apresentar algumas considerações adicionais.
É sabido que o autor de Mensagem nunca foi um entusiástico estimador de
Marinetti e do futurismo e, embora reconhecendo que a ligação entre a sua poética
e Sensacionismo e «(…) a atitude enérgica, vibrante, cheia de admiração pela Vida,
pela Matéria e pela Força que tem lá fora representantes com Verhaeren, Marinetti»
(PESSOA, F., 1966: 126) existe, defende, especialmente por meio da prosa desinibida
e provocadora de Álvaro de Campos, na carta ao pai do Futurismo que deveria
acompanhar o envio de uma cópia de Orpheu, a superioridade do -ismo sensacionista
encarnado pelo engenheiro, como se pode ler:
Para mim as vossas palavras em liberdade não fazem sentido. Apenas admito as
minhas sensações e, utilizando a Vossa expressão, na arte apenas admito as sensações
em liberdade. (...) Não há senão a arte das sensações (...) É a essa escola sensacionista
que eu adiro. Essa escola sou eu. (PESSOA, F., 2012: 253).
7 Na mesma carta explica Pessoa: «porque a ideia patriótica, sempre mais ou menos presente nos meus
propósitos, avulta agora em mim; (...) é uma consequência de encarar à sério a arte e a vida» (Ibidem).
«Meus olhos ungidos de Novo»: Manucure de Mário de Sá-Carneiro, poema órfico de Vanguarda, «apesar de blague?» 19
8 Logo nos primeiros dias em Paris escreve ao amigo da alma, Fernando Pessoa: «Tenho andado muito com o
Guilherme de Santa-Rita. É um tipo fantástico, não deixando no entanto de ser interessante» (SÁ-CARNEIRO,
M. de, 2001: 13). Em outra carta de 31 de janeiro de 1912 afirma: «Respeitantemente ao Santa-Rita, a minha
opinião difere muito da sua e da do Veiga Simões: Não me parece um caso de Hospital mas – vai talvez pasmar
um caso de Limoeiro. [...] É na verdade uma personagem interessante, mas lamentável e desprezível».(id.: 26)
20 100 Orpheu Orietta Abbati
porque não sei o endereço. Para centralizar, mande você. Não lhe parece melhor?»
(SÁ-CARNEIRO, M. de, 2001: 188). Respira, sem dúvida, um ar diferente do lisboeta,
apesar da sua condição marginal, como, de resto, uma outra carta a Pessoa testemunha,
quando escreve «Na galeria Sagod, o templo cubista futurista de que lhe falei já numa
das minhas cartas comprei ontem um volume: I poeti futuristi. (…) vou-lho mandar
em presente. Já lá descobri uns Fu fu… cri-cri (…) muito recomendáveis. Vamos a
ver...» (id.: 190). Na mesma missiva, surge todo o interesse de Sá-Carneiro pela revista
internacional de literatura Poesia, de que não tem mais notícias por causa da guerra,
sugerindo ao amigo «Se a revista existisse – nós poderíamos muito possivelmente ser
colaboradores» (ibid.).
Estas rápidas referências revelam, então, um real, sério e interessado envolvimento
de Sá-Carneiro que não poderia não se reverberar na sua poesia, da qual Manucure
se apresenta como a melhor realização. Isto para dizer que a Europa tão sonhada,
mesmo envolvendo a vida pessoal do poeta, se estabelece plenamente nesta
longa poesia, fundindo-se numa hibridação fecunda, e pregnante de toda a arte
sacarneiriana.
Os elementos peritextuais, acima de tudo, a partir do título Poemas sem
suporte que anuncia a poesia publicada em Orpheu 2 juntamente com a Elegia e
pela dedicação a Santa-Rita Pintor; longe de tirar a seriedade ao texto, este, pelo
contrário, circunscreve o âmbito que surge como uma síntese justa e eficaz, com
referência à liberdade dinâmica das palavras na poesia modernista, de evocação
futurista, e integração naquela ineludível expressão da vanguarda artística do início do
século XX, do pintor Português, cujo papel é reconhecido oficialmente e redimido
pelo autor Dispersão.
A adição posterior da frase pessoana «feito com intenção de blague», por sua vez,
possui a intenção de estabelecer os limites dentro dos quais este poema se move,
condicionando, portanto, uma abordagem séria também à leitura do mesmo. No
entanto, nas palavras de Eduardo Lourenço, «uma “blague” pode pôr – ou traduzir – os
mesmos problemas de um ato ‘sério’» (2003: 54), efetivamente é necessário ter esse
aspeto em conta, juntamente com as reflecções supracitadas, para devolver ao texto
de Sá-Carneiro o adequado espaço estético literário reservado às grandes Odes de
Álvaro de Campos, em particular, em relação à grande Ode Marítima, a que se junta
em Orpheu 2.
Em primeiro lugar, no projeto modernista da revista, a blague funciona como
imediato ato visível de rutura. O facto de ter sido premeditado ou fruto de sensações
inquietas que a poesia sempre traduz, é um tema que merece outras reflexões.
Certamente a própria escolha do título, implica também a assunção do que
efetivamente o mito de Orpheu significa, ou seja, citando ainda Eduardo Lourenço,
«Meus olhos ungidos de Novo»: Manucure de Mário de Sá-Carneiro, poema órfico de Vanguarda, «apesar de blague?» 21
9 Continua ainda E. Lourenço: «A importância única da geração de Orpheu reside nessa aceitação sem limites
da seriedade da poesia, ou, se se prefere, da poesia como realidade absoluta» (ibid.).
22 100 Orpheu Orietta Abbati
Assim prossegue o primeiro segmento do texto até ao verso 20, num movimento
centrípeto que tudo reconduz ao eu, delineando, em verso livre, uma síntese perfeita
da vida parisiense de Sá-Carneiro, repetidamente contada ou encenada, quer em
outros poemas, quer na correspondência. Contudo, na estrutura desta longa poesia
encontramos traços da sua função bivalente, uma vez que ela aparece como um
prelúdio para os versos seguintes, quando, como o volano de Álvaro de Campos, põe
em movimento a capacidade imaginativa sensorial, mudando-lhe, porém, a direção
com a qual inicia um vórtice centrífugo, onde o mesmo sujeito entrará a fazer parte
num processo de dispersão e anulação total.
Em poucas palavras, com Manucure, Sá-Carneiro constrói o espaço ideal para
realizar, em nome da radicalidade absoluta, a totalidade da sua poética. Doseia de
forma gradual, mas crescente, o vocabulário e os topoi sempre presentes na estética
decadentista e simbolista, declinados numa atmosfera não mais estagnante, mas
previamente carregada de uma força cinética que anuncia a «arte fluida», também
tematizada no conto Asas, como os seguintes versos o demonstram:
Todo este conjunto leva a uma evolução gradual mas rápida para uma maior
inclusão da estética futurista e cubista, com que o eu poético parece finalmente
encontrar-se em perfeita comunhão, como depois de uma verdadeira unção divina, o
que faz com que ele declare:
(...)
Toda essa Beleza-sem-Suporte,
Desconjuntada, emersa, variável sempre
E livre – em mutações contínuas
Em insodáveis divergências...
brilhar com luz própria, lado a lado, com o mesmo valor das outras grandes Odes de
Álvaro de Campos, como, aliás, o autor de Dispersão auspiciava, sugerindo a Pessoa a
divulgação de, pelo menos, aquele junto a Chuva oblíqua.
Mesmo estruturalmente, a Ode Marítima e Manucure possuem elementos que
destacam um certo paralelismo, e as diferenças, na verdade reforçam ainda mais
o valor de cada texto, mostrando em contraluz a individualidade e procedimentos
diferentes que os dois poetas portugueses encenam para chegar a um epílogo, orientado
em ambos, para o negativismo, para a queda e a derrota, de ordem metafísica, na
consciência comum do vácuo do sentido de tudo.
Atlântica e lisboeta é a postura do sujeito poético em Ode Marítima, cujo percurso
se desenvolve num ciclo solar onde a poderosa e imaginativa máquina colocada
em movimento pelo volano, enlaça, em pleno sensacionismo, o inteiro e imenso
espaço-tempo marítimo, entre as horas do amanhecer e as do anoitecer no porto da
cidade portuguesa, para depois encontrarmos o poeta ainda imóvel no cais, imerso
num sentimento de angústia, de tristeza, e «no silêncio comovido da minha alma»,
como recita Álvaro de Campos; parisiense e circunscrita pelo espaço fechado de um
café protegido da luz solar, também Manucure, encena a própria ideia de dinamismo,
num espaço esse também fluído e móvel. No entanto, mais do que uma simples
viagem, trata-se de uma explosão multidirecional de sensações, na plena assunção
do lema futurista de palavras em liberdade, não gratuitas, mas com uma intenção
metafísica, traduzida em expressão estética, da pesquisa, da experiência totalizante,
num verdadeiro «sentir tudo de todas as maneiras» da Beleza pura, daquela «[…]
Arte com força centrífuga» sonhada pelo artista russo Zagoriansky no conto Asas
(SÁ-CARNEIRO, M. de, 1999: 118).
No entanto, enquanto que Álvaro de Campos deixa parar o volano e, lucidamente
desiludido, conforma-se com a impossibilidade do seu esforço titânico, Sá-Carneiro,
corre em direção ao seu fim, acabando por ficar disperso entre as palavras explodidas
e fragmentadas, já não sendo úteis para dizer a beleza, para dizer a poesia, para
criar então a realidade, condenando ao definitivo silêncio o dândi anacrónico e
incongruente, do qual a última mise en scène, Manucure, como extremo gesto poético,
se desenvolve no palco de um obscuro café de Paris.
Somando ainda estas reflexões a outras feitas até aqui, podemos afirmar que um
olhar mais distante permite ver nesta poesia «sem suporte», quanto a sua «intenção de
blague» seja aparente ou pelo menos redutora, embora também exista nos termos em
que «[...] o desejo de provocação do público [...] estava desde logo inscrito no código
genético do fazer vanguardista» (VASCONCELOS, R., 2015: 164). De facto, Sá-Carneiro
nela desenha literalmente, quase em timelapse fotográfico, o percurso seriíssimo,
da própria experiência estética. Na arte e poesia futurista e de vanguarda europeia,
«Meus olhos ungidos de Novo»: Manucure de Mário de Sá-Carneiro, poema órfico de Vanguarda, «apesar de blague?» 25
Bibliografia Final
Bibliografia Ativa
PESSOA, Fernando (1966). Páginas Íntimas e de Auto – Interpretação. Eds.
COELHO, Jacinto do Prado e LIND, Jorge Rudolf. Lisboa: Ed Ática.
PESSOA, Fernando (1999). Correspondência 1905-1922. Ed.. SILVA, Manuela
Parreira da. Lisboa: Assírio & Alvim.
PESSOA, Fernando (2000). Crítica, Ensaios, Artigos e entrevistas. Ed. MARTINS,
Fernando Cabral. Lisboa: Assírio & Alvim.
PESSOA, Fernando (2012). Prosa de Álvaro de Campos. Ed. PIZARRO, Jeronimo,
CARDIELLO, António. Lisboa: Babel-Ática.
SÁ-CARNEIRO, Mário de (1999). Céu em Fogo. Ed. MARTINS, Fernando Cabral.
Lisboa: Assírio & Alvim.
SÁ-CARNEIRO, Mário de (2001). Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando
Pessoa. Ed. SILVA, Manuela Parreira da. Lisboa: Assírio & Alvim.
Bibliografia Passiva
DE MARCHIS, Giorgio (2007). O silêncio do Dândi e a morte da Esfinge. Lisboa: IN/
CM.
GUIMARÃES, Fernando (1999). O Modernismo português e a sua poética. Porto:
Lello Editores.
JÚDICE, Nuno (1986). A era do Orpheu. Lisboa: Editorial Teorema.
LOPES, Óscar (1994). A busca de sentido. Lisboa: Editorial Caminho.
26 100 Orpheu Orietta Abbati
1 Em texto que pode ser datado de 1915 e tem no espólio pessoano da Biblioteca Nacional de Lisboa a cota
87A-19, Fernando Pessoa denuncia o equívoco: “O termo ‘modernista’ que por vezes também se aplicou aos
artistas de Orpheu, não lhes pode também ser aplicado, por isso que não tem significação nenhuma, a não ser
para designar – porque assim se designou – a nova escola pragmatista e exegética dos Evangelhos, nascida
adentro da Igreja Católica, e condenada pelo Papa, por excessivamente tendente a procurar a verdade.” Apud
Teresa Rita Lopes, Pessoa Inédito. Lisboa, Livros Horizonte, 1993, p. 263.
28 100 Orpheu Luís Machado de Abreu
2 Ver a sua exposição em Marc Angenot, Les Grands Récits Militants des XIXe et XXe Siècles Religions de
l’humanité et sciences de l’histoire. Paris, L’Harmattan, 2000.
A desabar catedrais..., ou o outro modernismo 29
todo o século XIX andou à procura de uma nova religião, para responder a uma
civilização que tinha entrado no domínio material do mundo e para responder
também ao pensamento filosófico, expresso por Schopenhauer, segundo o qual o
mundo não tem sentido, é uma vontade cega (LOURENÇO, E., 2015: 9).
nem uma sequer das divindades criadas sucessivamente pelo espírito humano
lhes poder bastar hoje; precisam de todas ao mesmo tempo, e ainda de algo mais,
porque o seu pensamento vai para além dos deuses. […] a verdadeira ‘palavra
sagrada’ não é uma palavra solitária, mas a sinfonia de todas as vozes que, juntas,
ressoam sob a abóbada celeste (GUYAU, M., 1890: 320-321).
3 Sobre o tema ver o erudito estudo de Vítor Aguiar e Silva, “A construção da categoria periodológica de
Modernismo na literatura portuguesa”, in: Luís Machado de Abreu (Coord.), Diagonais das Letras Portuguesas
Contemporâneas. Aveiro, Fundação João Jacinto de Magalhães, 1996, pp. 17-35.
4 Da vastíssima literatura sobre esta corrente modernista sublinho a obra já clássica de Émile Poulat, Histoire,
dogme et critique dans la Crise Moderniste. Paris, Casterman, 1962 (Obra reeditada em 1995 pela Albin
Michel) e de Pierre Colin, L’audace et le soupçon La crise du modernisme dans le catholicisme français
(1893-1914). Paris, Desclée de Brouwer, 1997.
A desabar catedrais..., ou o outro modernismo 31
BIBLIOGRAFIA
1- Introdução
Esta comunicação tem três objetivos simples. Por um lado, mostrar a importância
que a obra teórica, gráfica e pictórica de Kandinsky teve para Amadeo; por outro,
como as experiências dos movimentos de vanguarda foram absorvidas pela sua
pintura. Especificamente, como a sonoridade da cor e das formas é um processo de
libertação do exterior, de ida para o interior, para as profundezas1.
A procura da musicalidade, dos sons, do ritmo das formas, da vibração das cores
está presente desde os tempos de absorção e de aprendizagem que Amadeo passou
em Paris. A aceleração, a estilização e o alongamento das figuras, a sua suavidade
e delicadeza, associadas a movimentos e ritmos harmónicos e a um brilho intenso,
produzem pinturas dominadas pelos jogos de cores e cadências. Sem romper com
1 Agradeço reconhecida ao Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão/Fundação Calouste Gulbenkian
a autorização graciosa da reprodução das pinturas de Amadeo de Souza-Cardoso, e, de uma maneira especial,
à Senhora Dra. Ana Vasconcelos e Melo pelas facilidades concedidas.
36 100 Orpheu Maria Teresa Amado
2- Mil cordas
Como Bartok, Stravinsky e outros artistas da sua geração, Amadeo faz recolha de
canções. O pintor recria nas suas telas o espírito da arte popular e dos seus artistas.
São eles os detentores desta arte que os exprime. O que Amadeo tenta ainda captar é
a transmissão simultânea de uma vivência e de uma memória cultural que ultrapassa
a própria música. Surgem assim, entre 1915 e 1916, óleos, aguarelas, desenhos que se
concentram no instrumento musical: mostram guitarras, violinos, cavaquinhos. As
cordas têm valor simbólico para o pintor: a sua vibração desperta diretamente a alma,
«o instrumento das mil cordas»:
A cor é um meio para exercer uma influência direta sobre a alma. A cor é a tecla; o olho o
martelo. A alma, o instrumento das mil cordas. O artista é a mão que, ao tocar nesta e naquela
tecla, obtém da alma a vibração justa. A harmonia das cores baseia-se exclusivamente no
2 Os poemas, os desenhos e as gravuras da obra gráfica Klänge foram criados por Kandinsky entre os anos de
1908 e 1912, ano da publicação do álbum em Munique.
A Vida dos Instrumentos – pureza e ressonância da cor em Amadeo de Souza-Cardoso 37
princípio do contacto eficaz. A alma humana tocada no seu ponto mais sensível responde.
A este fundamento chamaremos o princípio da Necessidade Interior. (KANDINSKY, V.,
2013: 21).
3 Pintura (Vida dos Instrumentos), 1915. Óleo sobre tela. 100 x 60cm. Museu Municipal Amadeo de
Souza-Cardoso.
38 100 Orpheu Maria Teresa Amado
aqui que Amadeo ensaia diversos níveis de profundidade. A parte inferior tem formas
mais indefinidas.
Cordas, molas, configurações metálicas, tubos, sinos são formas que ganham um
estatuto especial, de vida e autonomia nas composições de Amadeo.
No mesmo ano, Amadeo pinta dois óleos que intitula também Vida dos
Instrumentos. As Mil cordas marcam a presença nas telas, tal como vão marcar nos
outros quadros aqui apresentados. Observa-se uma grande semelhança nas formas e
no alinhamento espacial entre o óleo da figura 2 e a aguarela anteriormente analisada.
Mas a composição é mais complexa.
A partir de um eixo de simetria, Amadeo desloca o centro de gravidade do quadro
para direita e para cima. As guitarras têm uma base mais estreita e, por isso, embora
as cores contribuam para uma sensação de expansão, inspiram instabilidade. O
contraponto está no círculo azul e violeta, que absorve luz, som ou talvez tempo.
Também, do lado esquerdo e destacado, está o elemento dinâmico da pintura,
elemento que é, aliás, um leitmotiv dos seus quadros: o zig-zag, ou o braço mecânico
que comanda os instrumentos.
A sua verticalidade metálica é reforçada pela cor branca envolvente, estática. A
extremidade do braço, uma mão mecânica ou um espelho, é direcionada para fora,
absorve do exterior e comanda o núcleo de direita; interceta vários planos, criando
extensão e profundidade.
espaço do quadro com tons vai ser usada posteriormente, em 1917, como processo
de criação típico de Amadeo quanto à sucessão de inúmeros planos e sentido de
profundidade, por outras palavras, quanto ao fundo dos seus quadros.
4- Trou de la serrure
Trou de la Serrure PARTO DA VIOLA Bon ménage Fraise avant garde é o nome dado
por Amadeo a este óleo no catálogo da exposição realizada no Porto e em Lisboa, em 1916.
Trou de la Serrure insere-se num conjunto de 5 telas não figurativas, todas de
1916, de intensas e humorísticas sugestões, sinestesias; são pinturas aparentemente
leves, brincalhonas, alegres e otimistas. Viola e Morango7, Violino e Cereja8 podem
ser considerados dois pequenos estudos do óleo Luxúria do Violino, IMAN, Oscilação
Vermelha Cá dentro e ao ar livre9. São obras que transmitem a sugestão de sensações
– som, cor, paladar, sensualidade – atraídas para o interior, pelo IMAN. Esta última
pintura aproxima-se, plástica e iconologicamente, de Trou de la Serrure. Quanto à tela
Pato Violino Insecto, ela «grita» sons dissonantes e vibrações em contraponto com a
musicalidade do violino10.
Aparentemente Trou de la serrure PARTO DA VIOLA Bon ménage Fraise avant
garde é uma obra que comunica alegria e despreocupação no seu movimento: através
de simples sinestesias sonoras e cromáticas, a boa convivência chega-nos de dentro
para fora, e talvez também em via contrária. A profusão do título e a tendência para
o vanguardismo do autor prepara-nos para a abundância de sequências e de planos,
que é uma característica desta grande composição. Pela força da palavra, “trou de la
serrure”, obriga à orientação – O Buraco da Fechadura. Numa composição tão vasta
e variada, focaliza-se o olhar e descobre-se o círculo de cor clara, quase branca, com
um ponto escuro no centro, um olho no coração de um violino amarelo, instrumento
que quer expandir-se, mas está limitado: pela grande espessura das linhas curvas
vermelhas e pela abertura da caixa da viola, que permite ver o frio azul interior.
Neste contexto, o orifício central destaca-se. Num plano bem mais profundo, mais
indefinido, mas em ressonância, ele espreita e encontra o olho interior, uma metáfora
do buraco da fechadura. Há movimento, indicado pelas três linhas horizontais, cordas
que intercetam este plano mais profundo.
11 Dentro do conjunto Canção Popular são conhecidas quatro telas, a primeira, Sem título, datada de 1915-16,
é uma composição muito simples: a figura da boneca ocupa quase todo o espaço pictórico. As outras são
de 1916, Canção popular, Canção popular e o Pássaro do Brazil, e Canção popular a Russa e o Fígaro. Estas
três pinturas já integram nas suas composições as características “janelas/olhos” de Amadeu, revelando uma
melhoria progressiva quanto à sua elaboração plástica.
42 100 Orpheu Maria Teresa Amado
12 «A composição grande pode ser formada por composições menores, completas em si mesmas, ainda que
exteriormente possam parecer opostas, mas, mesmo através desta sua oposição, concorrem para o conjunto
da grande composição, de que fazem parte integrante. Deste modo, os vários objetos de um quadro (reais,
parcial ou totalmente abstratos) encontram-se dependentes de uma grande forma única. A transformação
profunda que recebem submete-os a esta forma; eles serão esta forma. A ressonância de uma forma isolada
enfraquece. Ela é apenas um dos elementos constitutivos da grande composição formal».
A Vida dos Instrumentos – pureza e ressonância da cor em Amadeo de Souza-Cardoso 43
13 «No caso de um indivíduo altamente evoluído, o acesso à alma é de tal modo direto, a alma é tão aberta a
todas as sensações, que qualquer excitação faz reagir instantaneamente o olho – reação que lembra o eco ou
a ressonância de um instrumento de música cujas cordas estimuladas pelo som de um outro instrumento
vibrem em uníssono. Homens com uma sensibilidade assim apurada são como bons violinos com muito uso,
que ao mais pequeno toque vibra intensamente».
44 100 Orpheu Maria Teresa Amado
6- Conclusão
14 Há fósforos colados no canto inferior direito, sobre um pequeno pedaço de madeira e pintados de branco
sujo, quase impercetíveis – aliás, na mesma posição dos incendiários fósforos do quadro Entrada.
A Vida dos Instrumentos – pureza e ressonância da cor em Amadeo de Souza-Cardoso 45
Bibliografia
3. Webgrafia
Nuno Amado
FLUL
estado anárquico, anárquico pelo próprio excesso de «forças vivas» em acção, conflito
e evolução interconexa e divergente» (PESSOA, F., 1999: 120-121). A ser assim, é
razoável afirmar que se tratam de duas crises diferentes, ainda que uma esteja na
origem da outra: a crise de indisciplina interior motivada por não saber o que fazer
com a heteronímia transformou-se, com a disciplina que a veio corrigir, numa crise
de incompatibilidade com os outros.
Essa correcção parece alcançada, ou perto disso, a 4 de Dezembro, pois Pessoa
fala a Côrtes-Rodrigues no seu «curioso estado de espírito actual» e anuncia «uma,
não menos curiosa, evolução que se tem dado em mim ultimamente» (PESSOA, F.,
1999: 134). É, aliás, possível precisar o dia em que essa evolução teve início. Num
manuscrito datado de 21 de Novembro de 19141, Pessoa diz que tomou «de vez a
decisão de ser Eu, de viver á altura do meu mister», e que reentrou de vez «na posse
plena do meu Genio e na divina consciência da minha Missão» (PESSOA, F., 2009:
117), exactamente algumas das coisas que diria a Côrtes-Rodrigues apenas dois meses
mais tarde. Pouco depois, acrescenta: «um raio hoje deslumbrou-me de lucidez.
Nasci» (PESSOA, F., 2009: 118). No final do manuscrito, de resto, Pessoa lembra-se
de registar a importância de notificar Côrtes-Rodrigues a respeito desta resolução, o
que torna inequívoca a relação entre a mudança que ocorreu naquele dia e o estado de
espírito resoluto que transparece na carta de 19 de Janeiro: «é o C[ôrtes] R[odrigues]
quem, de todos, melhor e mais dentro me comprehende. Diser-lhe isto» (PESSOA, F.,
2009: 119).
A 19 de Janeiro, a crise de que Pessoa fala já «não é de incompatibilidade [consigo]
próprio», como fora antes. Como faz questão de explicar a Côrtes-Rodrigues, «a
minha, gradualmente adquirida, auto-disciplina, tem conseguido unificar dentro
de mim quantos divergentes elementos do meu carácter eram susceptíveis de
harmonização» (PESSOA, F., 1999: 139). A explicação anterior é de tal forma
categórica quanto à evolução de que Pessoa falara anteriormente que é difícil ignorar
a diferença. No início de 1915, o problema de orientação artística que o aparecimento
dos heterónimos tinha criado fora vencido, e Pessoa sabia agora exactamente o que a
esse respeito se lhe impunha.
Em certa medida, a carta de 19 de Janeiro é norteada pela distinção entre actividades
artísticas sinceras e actividades artísticas insinceras: por actividades sinceras entende
1 Este manuscrito tem sido publicado ora como entrada de diário, opção tomada por Richard Zenith em
Escritos Autobiográficos, Automáticos e de Reflexão Pessoal (2003), ora como parte de um conjunto mais amplo
de textos sobre teoria estética, que é como o publica Jerónimo Pizarro em Sensacionismo e outros Ismos (2009).
Creio, no entanto, que a proximidade àquilo que Pessoa haveria de dizer a Côrtes-Rodrigues na carta de 19 de
Janeiro é flagrante e que tanto o tom, como os termos que Pessoa usa para descrever a sua evolução interior
permite pensar no texto como o ponto de partida, se não mesmo o rascunho, dessa carta.
Palhaçadas e Coisas Sérias 51
todas aquelas que resultam da «consciência cada vez maior da terrível e religiosa
missão que todo o homem de génio recebe de Deus com o seu génio» (PESSOA,
F., 1999: 140); actividades insinceras, inversamente, são todas aquelas que associa
à «ambição grosseira de brilhar por brilhar, e essa outra, grosseiríssima, e de um
plebeísmo artístico insuportável, de querer épater», ou seja, «tudo quanto é futilidade
literária, mera-arte», coisas que gradualmente lhe iam soando «cada vez mais a oco e
repugnante» (PESSOA, F., 1999: 140). Tudo isto aponta para o facto de, alguns meses
antes do lançamento de Orpheu, Pessoa estar inclinado a seguir um rumo diferente
daquele que viria de facto a seguir, com esse lançamento e com tudo o que lhe sucedeu.
A atitude plebeia que associava agora ao grupo de poetas do qual acabaria por
ser o máximo representante leva-o, por exemplo, a perder o entusiasmo inerente «à
ideia do lançamento do Interseccionismo», a enjeitar a publicação do «Manifesto
‘escandaloso’», a perceber o grau de insinceridade que havia em «coisas feitas para
fazer pasmar», em coisas «que não contêm uma fundamental ideia metafísica, isto é,
por onde não passa, ainda que como um vento, uma noção da gravidade e do mistério
da Vida», em tudo aquilo que, em suma, não é «escrito dramaticamente» (PESSOA, F.,
1999: 142), como o é a obra de cada um dos heterónimos. À excepção do que escrevera
nos últimos nove meses em nome de Caeiro, Reis e Campos, Pessoa parece renunciar
a tudo aquilo que de mais importante criara até à altura: «não são sérios os Paúis,
nem seria o Manifesto interseccionista de que uma vez lhe li trechos desconexos»
(PESSOA, F., 1999: 142-143), diz Pessoa a Côrtes-Rodrigues. O paulismo e o seu
sucedâneo, o interseccionismo, duas das vertentes da sua obra sobre as quais fundara
mais expectativas e que, não muito tempo antes, muito animavam a correspondência
com Sá-Carneiro, inserem-se assim na categoria de coisas insinceras de que Pessoa
tenta aqui desculpar-se. Em coisas como essas - remata Pessoa - «a minha atitude
para com o público é a de um palhaço» (PESSOA, F., 1999: 143).
Compare-se novamente o que é dito nesta carta com o que Pessoa escreveu no texto
de 21 de Novembro de 1914 em que descreve o seu renascimento deslumbrante. Tal
como na carta, o que Pessoa considera desprezível, neste texto, é «a idéa do reclame,
e plebêa sociabilização de mim, do Interseccionismo» (PESSOA, F., 2009: 117); tal
como na carta, também no texto a mudança de atitude decorre de estar «de volta da
minha viagem de impressões pelos outros» e de reentrar de vez «na posse plena do
meu Genio e na divina consciência da minha Missão» (PESSOA, F., 2009: 117); tal
como na carta, também no texto é descrita a libertação da influência dos outros e,
por conseguinte, uma recuperação da posse de si: «o ultimo rasto de influencia dos
outros no meu caracter cessou com isto. Recobrei – ao sentir que podia e ia dominar
o desejo intenso e infantil de ‘lançar o interseccionismo’ – a tranquila posse de mim»
(PESSOA, F., 2009: 117).
52 100 Orpheu Nuno Amado
O que é preciso ter é, além de cultura, uma noção do meio internacional, de não ter a alma
(ainda que obscuramente) limitada pela nacionalidade. Cultura não basta. É preciso ter a
alma na Europa. Escrever ao Sá-Carneiro expondo a nova orientação que é preciso tomar.
(PESSOA, F., 2009: 29)
Palhaçadas e Coisas Sérias 53
Ter ou não ter Europa na alma, eis então o que faz Pessoa balançar. A ideia é
retomada no rascunho de uma carta a Sá-Carneiro que Manuela Parreira da Silva,
com boas razões, situa algures em 19132. Aí, Pessoa apresenta um contraste exemplar
entre a mediocridade de alguns dos mais aclamados escritores portugueses da época
e a escrita do seu interlocutor: «v. escreve europeiamente! V. escreve sem ver a pátria,
e a sua obra, que eu creio genial, esbarra com o provincianismo constante da nossa
atitude. Para nós o universo está entre Mesão e Vila Real de Santo António.» (PESSOA,
F., 1999: 102). Ter Europa na alma, aquilo que faz com que Pessoa, pelo menos a
partir de Maio de 1913, manifestamente se afaste da Renascença e se aproxime de
Sá-Carneiro, parece ser então, em certa medida, fugir a ser provinciano.
A história desta fuga compreende, entre outras coisas, a adesão ao paulismo que
tanta histeria haveria de provocar em Sá-Carneiro, pelo que a mudança de opinião de
Pessoa a respeito da estética paúlica tem de ser um momento-chave de tal história.
Numa carta de dia 20 de Julho de 1914, Sá-Carneiro acusa a recepção de uma carta
na qual Pessoa terá associado o estado de alma do amigo a uma certa artificialidade.
Seja o que for que Pessoa lhe tenha dito, Sá-Carneiro concorda que já não tem estados
de alma, revela que nada sabe quanto à sua «vida artística», mas defende-se dizendo
que «esta mesma artificialização, este mesmo embalsamamento a salva, porque a fixa»
(SÁ-CARNEIRO, M., 2001: 131). É talvez possível especular, interpretando as palavras
com que se defende, que Pessoa se tenha queixado da artificialidade de Sá-Carneiro, e
que este tenha sentido necessidade de explicar a utilidade artística dessa artificialidade.
Mais ainda, é talvez possível especular, principalmente porque Sá-Carneiro emprega
o termo, que Pessoa tenha associado essa artificialidade precisamente ao paulismo:
«era desnecessário repetir-me a sua sinceridade dentro dela [a carta recebida], por
causa da literatura com que a ungiu. Eu nunca duvido dela em você – e foi-me mesmo
deveras grato esse paulismo intermediário...» (SÁ-CARNEIRO, M., 2001: 131). O que
estou, de algum modo, a insinuar é que Pessoa terá sugerido que a atitude paúlica, a
que atribuiria agora uma artificialidade indesejada, deveria ser encarada como uma
atitude meramente intermediária. Assim se explica também, parece-me, o termo que
Sá-Carneiro emprega, algumas linhas depois, ao recomendar que Pessoa enviasse
uma colaboração para a revista Labareda, que surgira no Porto no início de Junho:
«Você é claro que faz muito bem em mandar para lá ultrapaulismo, mas bem ultra!»
(SÁ-CARNEIRO, M., 2001: 132).
2 Percebe-se, por aquilo que Pessoa diz no rascunho da carta, que Sá-Carneiro fizera publicar um artigo que
poderia valer-lhe algumas represálias. Segundo Manuela Parreira da Silva, é possível que Pessoa se estivesse
a referir ao artigo «O Teatro-Arte», publicado no jornal O Rebate, a 28 de Novembro de 1913, no qual
Sá-Carneiro «critica fortemente alguns dos visados» (PESSOA, F., 1999: 423) por Pessoa neste rascunho,
nomeadamente João de Barros, Joaquim Manso e Júlio Dantas.
54 100 Orpheu Nuno Amado
Desdobre-se você como se desdobrar, sinta-de-fora a como quiser, o certo é que quem pode
escrever essas páginas, se não sente, sabe genialmente sentir, aquilo de que me confessa mais
e mais cada dia se exilar. Saber sentir e sentir, meu Amigo, afigura-se-me qualquer coisa de
muito próximo. (SÁ-CARNEIRO, M., 2001: 123)
em você, meu Amigo, é isso só: não sente já ânsia de conhecer cidades, Europa, progresso,
porque tudo isso você viajou, hiperviajou, hiperconhece, hiperpossui ao escrever a sua
admirável obra. (SÁ-CARNEIRO, M., 2001: 123-124)
apenas alguns meses mais tarde, de Orpheu? Por outras palavras, para que servem
palhaçadas a que se deixou de achar graça? A carta de 19 de Janeiro de 1915 a
Côrtes-Rodrigues é, a esse respeito, mais uma vez esclarecedora:
Será talvez útil – penso – lançar essa corrente como corrente, mas não com fins meramente
artísticos, mas, pensando esse acto a fundo, como uma série de ideias que urge atirar para
a publicidade para que possam agir sobre o psiquismo nacional, que precisa trabalhado
e percorrido em todas as direcções por novas correntes de ideias e emoções que nos
arranquem à nossa estagnação. (PESSOA, F., 1999: 141)
Bibliografia Final
Porque a tradição é um movimento. Em princípio, não existe nenhum trabalho criativo que
não seja experimental, nesse sentido de que ele supõe vigilância sobre o desgaste dos meios
que utiliza e que procura constantemente recarregar de capacidade de exercício. A linguagem
encontra-se sempre ameaçada pelos perigos da inadequação e da invalidez. É algo que, no seu
uso, se gasta e refaz, se perde e ajusta, se organiza, desorganiza e reorganiza – se experimenta.
Como diria um poeta, essa é a própria lição das coisas (HELDER, H., 1964: 6).
12/9/70
Estou em casa de Fernando Pessoa com A. Digo: Fernando Pessoa já morreu. A. diz: não,
vais ver. Fernando Pessoa aparece: magro, com óculos, vestindo um fato cinzento. A.
apresenta-me: não sei se conhece… Conheço sim, diz Fernando Pessoa, já ouvi falar muito.
Fita-me com uma intensidade quase insuportável. Fala comigo um pouco e depois diz: Sim,
disseram-me que você era muito intelectual – e rindo – imagine o que isso pode significar
para mim… Ajoelho junto dele e beijo-lhe as mãos. Então ele projecta-se sobre mim como
se fosse uma sombra ou uma nuvem (HATHERLY, A., 1982: 28).
Ora, Fernando Pessoa é, por assim dizer, a ponta brilhante do enorme icebergue que é a poesia
portuguesa do século XX – icebergue por ser uma espécie de montanha semi-submersa de
poetas ilustres que, salvo raríssimas excepções, permanece ignorada e por isso urge divulgar.
Com efeito, nenhum poeta (ou artista) nasce no vácuo […]. Isto é: há sempre uma herança,
um suporte, seja ele conscientemente assumido ou não (HATHERLY, A., 1995: 175).
Assim, ora como sombra, numa atitude persecutória infinita, ora deslocada para
a esfera celestial; ora assumida ora denegada, a presença de Pessoa e seus colegas
d’Orpheu exerce evidente fascínio sobre Hatherly e seus colegas do Experimentalismo,
basta ver o depoimento dela na edição especial da revista Colóquio/Letras, por ocasião
do aniversário de Orpheu, em 1975:
Na literatura portuguesa moderna quase tudo o que não foi de vanguarda foi esse
sentimentalismo. Basta compararmos o Orpheu com a Presença ou o Surrealismo com
a Poesia Experimental com outras tendências suas contemporâneas para o verificarmos.
A sessenta anos de distância, o significado histórico do Orpheu é maximamente o de
ter sido um movimento de vanguarda. É assim que ele faz parte de nossa experiência
contemporânea. A sua sobrevivência é a sua permanência na nossa memória antológica
onde tudo se torna contemporâneo. Mas, se fosse necessário falar da influência directa
das obras que escreveram os poetas dominantes do Orpheu, eu diria que quando, numa
determinada zona da criatividade, se atinge com uma obra ou um grupo de obras uma
realização inultrapassável dentro do seu próprio espaço, a partir daí todas as verdadeiras
tentativas criadoras se voltam sempre para novos objectivos, novos sentidos. Essa é a sua
máxima competência criadora (HATHERLY, A., 1975: 8).
Orpheu na PO.EX: A tradição em movimento 65
Aqueles a quem ela se refere como os “poetas dominantes do Orpheu” são os que
mais encontram lugar na sua obra: Fernando Pessoa, Álvaro de Campos, Sá-Carneiro
e Almada Negreiros. São eles, aliás, que aparecem fundidos em “Algarismos Alfinete”,
de Saltette Tavares, no segundo caderno da PO.EX:
Fragmento
Bibliografia
Bibliografia Ativa
ARAGÃO, António; HELDER, Herberto (org.) (1964). Poesia Experimental: 1º
caderno antológico. Lisboa: A. Aragão. http://www.po-ex.net/evaluation/
index.html [05.03.2015].
ARAGÃO, António; HELDER, Herberto; MELO E CASTRO, E. M. de (org.)
(1966). Poesia Experimental: 2º caderno antológico. Lisboa: A. Aragão. http://
www.po-ex.net/evaluation/index.html [05.03.2015].
HATHERLY, Ana (1975). “O significado histórico do Orpheu (1915-1975)” In:
Revista Colóquio/Letras. Inquérito, n.º 26, jul., p. 7-8.
HATHERLY, Ana (1979). O espaço crítico: do simbolismo à vanguarda. Lisboa:
Caminho.
HATHERLY, Ana (1982). Anacrusa: 68 sonhos. Lisboa: & etc e tal.
HATHERLY, Ana (1995). A casa das musas. Lisboa: Estampa.
HATHERLY, Ana (2001). Um calculador de improbabilidades. 1ª ed. Lisboa:
Quimera.
MARTINS, Fernando Cabral (org.) (1989). Orpheu: edição facsimilada. Lisboa:
Contexto.
PESSOA, Fernando (1980). Textos de crítica e de intervenção. Lisboa: Ática.
TAVARAES, Salette (1979). “Maquinin” In: MENÉRES, M. Alberta; MELO E
CASTRO, E. M. de. Antologia da poesia portuguesa: 1940-1977. 2º volume.
Lisboa: Moraes, p. 74.
VISOPOEMAS - catálogo da exposição (1965). Lisboa: [s.n.]. Galeria Divulgação,
Lisboa. http://www.po-ex.net/evaluation/index.html [05.03.2015].
Bibliografia passiva
CAMPOS, Haroldo de (1997). O arco-íris branco. Ensaios de Literatura e Cultura.
Rio de Janeiro: Imago.
GAGLIARDI, Caio (2010). “Chuva oblíqua” In: MARTINS, Fernando Cabral
(coord). Dicionário de Fernando Pessoa e do modernismo português. São
Paulo: Leya, p. 157-160.
68 100 Orpheu André Luiz do Amaral
GOMES, Maria dos Prazeres (1993). Outrora Agora: relações dialógicas na poesia
portuguesa de invenção. São Paulo: Educ.
MARTINHO, Fernando J. B. (1983). Pessoa e a moderna poesia portuguesa – do
“Orpheu” a 1960. 1ª ed. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa.
MELO E CASTRO, E. M. (1973). O próprio poético: ensaio de revisão da poesia
portuguesa atual. São Paulo: Quíron.
ROCHA, Clara (2010). “LIMA, Ângelo de” In: MARTINS, Fernando Cabral
(coord). Dicionário de Fernando Pessoa e do modernismo português. São
Paulo: Leya, p. 400-403.
TORRES, Rui (2006). “Camões transformado e remontado: o caso de Herberto
Helder” In: Callema, nº 1, novembro, p. 58-63.
Acerca de gênio e loucura:
especificidades da visada de Fernando Pessoa, em contato com as de
outros autores
1. A associação entre gênio e loucura, ainda que não exatamente nestes termos,
pode ser vista em diversos autores, não apenas modernos, mas também antigos.
Em que pese a diferenças, por exemplo, entre o conceito de gênio na Antiguidade
Clássica e o conceito de gênio após o Iluminismo, tomando-se estes dois momentos
como balizas importantes, certas conexões autorizam a pensar em uma tradição de
longa duração, aproximando as ideias em questão. Apenas para ficar com algumas
passagens de relevo, falarei um pouco sobre traços da relação entre gênio e loucura
em autores anteriores a Fernando Pessoa e Artaud, representantes de posições
modernistas a respeito do problema, os quais, sobretudo, o primeiro, merecerão uma
atenção especial. Entre os outros autores estarão, de um lado, Platão e o enciclopedista
70 100 Orpheu Bernardo Nascimento de Amorim
2. Começo com um breve comentário sobre o Íon, de Platão. Neste diálogo, cuja
redação pode ser situada no século IV a. C., Sócrates, interrogando o rapsodo que
dá nome ao texto, discute o caráter divino do poeta, afirmando ser ele, na tradução
portuguesa de Victor Jabouille, «uma coisa leve, alada, sagrada» (PLATÃO, 1988: 51),
que «não pode criar antes de sentir a inspiração, de estar fora de si e de perder o uso da
razão» (ibid.). A formulação é bastante atraente, sobretudo para os próprios poetas,
além de ser de remota tradição, associada a antigos mitos, a crenças sobre quem seriam
os portadores das palavras essenciais de uma comunidade, intermediários entre os
homens e os deuses. Segundo ela, o poeta, para alçar o voo que o faz ser mais do que
os homens comuns, aproximando-se das divindades, precisa perder a razão. Tomado
por um poder alheio a si mesmo, um sopro que o habita, sem que saiba como, tem ele
a função de dar a conhecer à sua comunidade mistérios de ordem sobrenatural.
Embora desprovido de arte, de ciência, o poeta se apresentaria, em mais de um texto
de Platão, efetivamente, como um ser especial, dotado de uma origem divina. Ainda que
esta não tenha sido suficiente para defender a presença do poeta na República, na obra
mais expressiva do filósofo grego, a ideia permaneceria. Acompanhando o raciocínio
de Ernst Robert Curtius sobre o Fedro, ter-se-ia, em Platão, com efeito, a exposição
pioneira da «teoria da loucura divina do poeta» (CURTIUS, E., 1979: 505), a qual, com
«outros atributos da mitologia antiga» (ibid.), chegaria à Idade Média e a atravessaria.
Saltando algumas porções de centenas de anos, mas não esquecendo a recuperação
humanista ou renascentista de muitas das obras mais conhecidas dos autores gregos
e latinos, bastante influentes nos séculos XVI e XVII, uma sorte de teoria do gênio
se encontra já relativamente sistematizada entre os iluministas franceses, com o
verbete da Enciclopédia dedicado ao assunto. Nele, hoje atribuído a Jean-François de
Saint-Lambert, relaciona-se o termo a uma forma de talento singular, mais ligado à
criação do que à compreensão e não reduzível às normas do bom gosto, que regem
ou deveriam reger a conduta dos demais indivíduos. Sublinha-se, então, uma clara
tendência de cisão entre a pessoa que se julga ter um talento superior e a ordem
estabelecida, destacando-se um necessário desconcerto, assim como a incompreensão
dos contemporâneos. Sugere-se a existência de singularidades irredutíveis, não
integráveis pacificamente ao conjunto da sociedade, marcadas pela recusa ou pela
dissonância em relação às instituições e práticas representativas da ordem, pilares
da normalidade. Fala-se, ainda, significativamente, no poder do excesso, associado à
Acerca de gênio e loucura: especificidades da visada de Fernando Pessoa, em contato com as de outros autores 71
1 A tradução, desta e de outras passagens, seja em francês, seja em inglês, corre por minha conta. No rodapé,
apresento os originais: Eis o texto da Enciclopédia: «Les hommes de génie forcés de sentir, [...] portant à l’excès
leurs desirs, leurs esperances, [...] me paraissent plus fait pour renverser ou pour fonder les états que pour les
maintenir».
72 100 Orpheu Bernardo Nascimento de Amorim
2 É em um trecho do poema «Adieu», fechando Une saison en enfer, que se diz: «Il faut être absolument
moderne».
Acerca de gênio e loucura: especificidades da visada de Fernando Pessoa, em contato com as de outros autores 73
autor)3, defendendo o desvio em relação ao «bom caminho» (id.: 83)4, assim como
a execração dos ancestrais5, julgados versificadores, mas não verdadeiros artistas.
Fazendo jus ao epíteto de poeta maldito, sem recuar diante da extravagância, com
postura provocativa, afim ao desejo de chocar, o autor se propõe a transformar a
própria alma em algo monstruoso6, a se tornar um crápula, avesso às leis de seu tempo
e de sua civilização. Somente forçando os limites de si mesmo, tornando-se «o grande
doente, o grande criminoso, o grande maldito» (id.: 89)7, o poeta acredita poder
chegar ao contato com «as coisas inauditas e inomináveis» (ibid.)8, meta última para
todos aqueles que se queiram, em sua perspectiva, «poetas do novo» (RIMBAUD, A.,
1999: 92)9 (grifos do autor), suficientemente fortes para «descobrir uma linguagem»
(id.: 91)10.
3 Tal desregramento se apresenta como condição para se chegar ao desconhecido: «Il s’agit d’arriver à l’inconnu
par le dérèglement de tous les sens».
4 No idioma de Rimbaud: «la bonne ornière».
5 Reivindica-se a liberdade, para os novos poetas, de execrar os ancestrais: «[...] libre aux nouveaux! d’execrer
les ancêtres [...]» (RIMBAUD, A., 1999: 87) (grifo do autor).
6 É o que afirma o poeta, na segunda das cartas ditas do vidente, em maio de 1871: «Il s’agit de faire l’âme
monstruese» (id.: 88).
7 Em francês, no original: «le grand malade, le grand criminel, le grand maudit».
8 Em francês: «les choses inouïes et innommables».
9 No texto original: «poètes du nouveau».
10 Na língua de Rimbaud: «Trouver une langue».
74 100 Orpheu Bernardo Nascimento de Amorim
11 O texto original é escrito em inglês: «thinks more accurately, feels more deeply, wills more
instantly».
12 Em inglês: «imaginative».
13 No original: «strongly creative».
14 No inglês de Pessoa: «profoundly original».
15 No texto de Pessoa: «simply incapable of adaptation».
16 Veja-se o original: «Men of genius both see more clear and dream more than common men».
17 No inglês de Pessoa: «a greater desire to comprehend».
Acerca de gênio e loucura: especificidades da visada de Fernando Pessoa, em contato com as de outros autores 75
Em alguns textos, exploram-se sintomas como uma certa «mania de dúvida» (id.: 48)18,
da qual se observariam vários traços presentes na constituição do gênio. Dá-se
realce, neste ponto, a características como a hesitação e a indecisão, consequências
de um constante interrogar a si mesmo, um «colocar a si mesmo muitas questões»
(id.: 51)19, as quais se acompanham da «ansiedade para achar [...] resposta» (ibid.)20.
Na perspectiva do autor, são comuns, entre os homens de gênio, assim como entre
indivíduos que apenas sofrem da mania de dúvida, mas sem a contrapartida criativa
que caracteriza os primeiros, elementos como a insanidade e o nervosismo, os quais
resultam, entretanto, não da falta de um intelecto privilegiado, mas de um «abuso
dos poderes de raciocínio» (ibid.)21, do «exaggero de uma faculdade» (PESSOA, F.,
2006: 137).
Com estas colocações, volta-se à natureza da ligação, no homem de gênio, entre
a consciência e a imaginação, a primeira sendo responsável pela clareza de visão,
conquistada, não raro, a duras penas, com a insistência do pensamento, a segunda
mais relacionada à parte criadora do fenômeno, à «invenção»22 (id.: 153) (grifo do
autor). O gênio, nesta perspectiva, que inclui a importância da ideia de originalidade,
não poderia existir sem a atividade que torna manifesta a criação23, a qual, por sua
vez, remete, novamente, à loucura24. Pessoa, mencionando Carlyle e Blake, afirma que
a «parte creadora do genio é a parte de loucura» (id.: 65) (grifo do autor). Em outro
fragmento, este já apontando para a ação dos homens de gênio sobre a sociedade
de seu tempo, implicando uma abertura ao futuro, afirma-se que «os creadores de
impulsos sociaes são os creadores da sem-razão» (id.: 64).
Aos homens de gênio, com efeito, é atribuída a ligação com o futuro, sendo eles vistos
mesmo como homens «do futuro» (id.: 61). Segundo Pessoa, estas figuras sentiriam
«antes dos outros homens a direcção de uma sociedade» (id.: 71) (grifo do autor),
5. Resta-me, pois, agora, amarrar alguns fios de contato entre Fernando Pessoa e
os autores de quem falei alguma coisa, ao longo do texto. As afinidades com Artaud,
para começar, são bastante evidentes, confirmando a ideia de que fazem os dois
parte de um mesmo universo de valores e posições, próprios dos modernistas da
primeira metade do século XX, os quais prolongam ainda formas de pensar advindas
da centúria anterior. Não apenas ambos os autores, efetivamente, discorrem sobre os
perigos que o gênio representaria para a sociedade de seu tempo, como concebem
a positividade deste perigo, a importância de uma ação convulsionante, sem a qual
o mundo, necessitando de transformação, não deixaria de ser o que é. Em ambos,
de modo significativo, ressalta a ideia de uma lucidez própria do homem de gênio,
superior, em muitos sentidos, à inteligência do homem comum, menosprezado tanto
em um quanto no outro autor, os quais, não raro, identificam-no com o burguês,
senhor dos negócios do mundo moderno, marcado, segundo Artaud, pela «inércia
burguesa» (id.: 9), pelo «conformismo larvar da burguesia» (id.: 10).
Pessoa, entretanto, repare-se, mostra-se mais meticuloso do que Artaud, no
conjunto dos seus raciocínios, fazendo distinções que este último não explora, seja
a que respeita à diferença entre o gênio e a simples loucura, seja aquela atinente à
separação entre o gênio e o criminoso, próximos, em sua conduta antissocial,
mas distintos no que tange ao poder de criação e à sua manifestação, de caráter
positivamente social, presente em um, e ausente no outro. Neste caso, as afinidades de
Artaud parecem ser mais evidentes com Rimbaud, e não, propriamente, com Pessoa,
cuja análise da constituição do homem de gênio, informada mesmo por referências
médicas e filosóficas, vai mais além.
Sob outro aspecto, se Pessoa explora a ligação com o futuro que seria própria
do gênio, Artaud fala em suas «faculdades de adivinhação» (id.: 9), os dois, neste
sentido, aproximando-se também de figuras tão díspares quanto são Kant e Rimbaud.
Naturalmente, o filósofo alemão não aprovaria o desregramento ou a monstruosidade
de que fala o poeta francês, indícios de um necessário afastamento em relação ao
gosto, bem como de uma postura mais radical, excessiva, do que equilibrada.
Relembre-se, todavia, que já em Kant se destaca a importância assumida pela ideia
de originalidade, articulada à recusa das «regras ou [...] formas prontas da tradição»
(SÜSSEKIND, P., 2009: não paginado), conectada à oposição «ao espírito de imitação»
(KANT, I. apud SÜSSEKIND, P., 2009: não paginado), da mesma forma que se realça
o caráter de exemplaridade daquilo que cria o homem de gênio, fornecendo modelos
para os que vêm depois, no futuro. Se, para Rimbaud, novos poetas, desde que se
disponham a enfrentar o tortuoso caminho da busca pelo desconhecido, começam
Acerca de gênio e loucura: especificidades da visada de Fernando Pessoa, em contato com as de outros autores 79
«pelos horizontes onde outro foi abatido» (RIMBAUD, A., 1999: 89)26, para Kant, os
produtos do gênio, embora «inimitáveis», constituem «os únicos meios de orientação
para a posteridade» (SÜSSEKIND, P., 2009: não paginado).
Quanto a outros autores de que falei, é evidente a relação que existe entre Hegel e
Baudelaire, em particular, no que tange à posição que a fantasia assume, no processo
criativo, em ambos, como faculdade essencial. Para além disso, embora mais aberto à
articulação entre a produção poética e o mistério ou a magia, alijados de um mundo
controlado pela racionalidade, Baudelaire, como Hegel, não concebe a existência de
verdadeira poesia sem que o poeta tenha domínio do seu fazer, sem que se experimente
uma funda concentração do intelecto, voltado para o «trabalho» (FRIEDRICH, H.,
1991: 39), a «construção sistemática» (ibid.), a «construção formal» (ibid.) do poema.
Neste sentido, a afirmação de Hegel, de que seria «disparate acreditar que o autêntico
artista não sabe o que faz» (HEGEL, G., 1999: 283), refutando Platão, encontraria
ressonância na estética do poeta francês. Em particular, neste ponto, ambos também
se aproximariam de Pessoa, o qual não nega a importância do intelecto no processo de
composição poética, como quando, elogiando aquele que afirma ser o «maior homem
de génio» (PESSOA, F., 2006: 439) (grifos do autor) da Península Ibérica do século
XIX, Antero de Quental, claramente com ele se identificando, afirma se tratar de «um
dos mais conscientes, talvez o mais consciente poeta que jamais existiu» (id.: 438).
No que diz respeito ao iluminista Saint-Lambert, por sua vez, a oposição entre o
que se vê em seu verbete, na Enciclopédia, de um lado, e os alemães Kant e Hegel,
de outro, faz com que se possa dar relevo à posição intermediária de Pessoa.
Aproximando-se do francês, o poeta não pretende aderir às restrições da noção de
gosto, ainda associadas ao belo e à perfeição, adotando, ao mesmo tempo, a perspectiva
da cisão marcante entre o homem de gênio, em sua firme singularidade, e o vulgo,
incapaz de compreender aquele que estaria destinado a alterar o estado de coisas de
seu mundo, abrindo as portas para o futuro. As menções de Saint-Lambert a elementos
como a irregularidade ou o caráter «selvagem» (SAINT-LAMBERT, J.-F., 2013: não
paginado)27 dos produtos do gênio, a referência aos «edifícios atrevidos que a razão
não arriscaria habitar» (ibid.)28, de fato, parecem mais próximas de Pessoa, e mesmo
de Rimbaud, do que de Kant e Hegel, com os quais, entretanto, o enciclopedista, assim
como o poeta de Orpheu, não deixa de compartilhar algumas posições. Dentre estas,
vale destacar, por exemplo, a percepção da importância da imaginação, ou da fantasia,
Bibliografia
Bibliografia Ativa
ARTAUD, Antonin (2004). Van Gogh o suicidado da sociedade. Tradução e notas
de Aníbal Fernandes. Lisboa: Assírio & Alvim.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich (1999). Cursos de Estética I. Tradução de Marco
Aurélio Werle. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo.
PESSOA, Fernando (2006). Escritos sobre gênio e loucura. Edição de Jerónimo
Pizarro. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda. 2 v.
PLATÃO (1988). Íon. Introdução, tradução e notas de Victor Jabouille. Lisboa:
Editorial Inquérito.
RIMBAUD, Arthur (1995). Poésies. Une saison en enfer. Illuminations. Edition de
Louis Forestier. Paris: Gallimard.
SAINT-LAMBERT, Jean-François de (2013). «Génie». In: DIDEROT, Denis;
D’ALEMBERT, Jean le Rond (Eds.). ENCYCLOPÉDIE, ou Dictionnaire
Raisonné des Sciences, des Arts et des Métiers, par une Societé de Gens de Lettres.
Bibliografia Passiva
CURTIUS, Ernst Robert (1979). Literatura europeia e idade média latina. Tradução
de Teodoro Cabral, com a colaboração de Paulo Ronai. Brasília: INL.
FRIEDRICH, Hugo (1991). Estrutura da lírica moderna: da metade do século XIX
a meados do século XX. São Paulo: Duas Cidades.
SÜSSEKIND, Pedro (2009). «Considerações sobre a teoria filosófica do gênio».
In: VISO – Cadernos de estética aplicada, n. 7, jul.-dez. 2009. Não paginado.
“Orpheu” Regabofe Tiroliro
José Blanco
Resumo: A leitura das notícias e dos artigos publicados nos jornais da época (de que Mário de
Sá-Carneiro fez um caderno de recortes), revela que, ao lado da maioria de reacções negativas,
mais ou menos violentas e insultuosas, houve opiniões favoráveis aos colaboradores do Orpheu,
não apenas em Lisboa mas também em localidades da periferia, bem como na Galiza.
Orfeu, revista trimestral de literatura. Um grupo de novos escritores acaba de lançar uma
revista trimestral, Orfeu, que é uma espécie de resumo das várias correntes modernas na nossa
literatura. Mesmo que se não concorde com a orientação geral dos colaboradores da nova
revista, tem de se lhes reconhecer talento e iniciativa, coisas infelizmente raras entre nós,
sobretudo em assuntos destes. O primeiro numero de Orfeu, que temos sobre a nossa mesa,
“Orpheu” Regabofe Tiroliro 85
contém variada colaboração das mais caracteristicas figuras de entre os novos. Inclui versos
de Mario de Sá-Carneiro, Ronald de Carvalho, Alfredo Pedro Guisado, e Côrtes Rodrigues, e
insere duas poesias futuristas (as primeiras, cremos, que aparecem entre nós) do malogrado
[sic] Alvaro de Campos. Em prosa, além da exquisita introdução de Luis de Montalvôr,
director da revista, ha um drama num acto de Fernando Pessoa. A capa de Orfeu, do lápis
de José Pacheco, é curiosissima.
Estes elogios foram sol de pouca dura. Logo três dias depois, em 30 de Março,
o jornal A Capital publicava, com grande destaque, um artigo verdadeiramente
assassino, dando o mote para a longuíssima série de diatribes que iriam ser lançadas
pela Imprensa sobre o Orpheu. Os títulos fizeram história:
“Orpheu”. Com este título acaba de ser posta à venda uma revista trimestral de literatura, que
em Portugal é dirigida pelo sr. Luiz de Montalvor e no Brazil pelo sr. Ronald de Carvalho.
Todos os colaboradores do seu primeiro número são aquelles que se convencionou chamar
novos, e aos novos a quem anima uma seiva ardente e um desejo intenso de crear procuram
dar a ultima e derradeira nota do pensamento, a mais moderna e a mais “rafinée”. Entre
esses novos encontram-se Sá Carneiro, Fernando Pessoa, Alfredo Pedro Guisado, Alvaro de
Campos e outros. Na capa vê-se um curioso desenho de José Pacheco. Longa vida.
É uma empreza bastante arriscada esta que um grupo de moços poetas tentou ao publicar
o “Orpheu”. Não é uma literatura banal a que encontrámos dispersa pelas 83 páginas do
volume, mas uma literatura “para raros apenas”, como diria Eugénio de Castro.
E tanto assim, que logo toparam os seus fundadores com uma decidida má vontade da parte
dos litteratelhos, que em cenaculos baratos dizem a ultima palavra d’Arte, arranchando a má
língua às mezas dos cafés ou às portas das livrarias.
Sentiram esses litteratos gá-gás arrripiarem-se os nervos ao deffrontarem a audacia deste
grupo de cultores do Bello. Certo jornal [A Capital] (…) não viu nas paginas da revista uma
sombra de talento, ou uma nesga de Belleza; fingiu não conhecer os nomes, já affirmados em
anteriores trabalhos, de Mario de Sá-Carneiro, o altissimo poeta da “Dispersão”, o estylista
incomparável da “Confissão de Lucio”; de Fernando Pessoa, que nas páginas d’“A Aguia”
escreveu um profundo estudo sobre a “Poesia Portugueza”; de Luiz de Montalvor, ainda
ha pouco regressado do Brazil, onde escriptores de mór nome e os novos principiantes o
consagraram e lhe deram as maiores provas d’estima e de admiração; de Almada Negreiros,
o caricaturista da nova geração e que ora se affirma um artista da penna.
Fingem ignorar tudo isto os escribas que querem uma Litteratura só para elles. Continuem
os jovens poetas a sua obra e deixem fallar quem falla. Acaso se confundiu alguma vez o
grito da águia com o grasnar da gralha?
“Orpheu” Regabofe Tiroliro 87
Na capital do Algarve, a revista Alma Nova, criada um ano antes pelo jornalista
Mateus Martins Moreno e que se intitulava “revista mensal ilustrada de arte, sciencias
e literatura”, publicou no seu número de Abril, na rubrica “Por Lisboa. Crónicas
de Arte”, um extenso artigo sobre o Orpheu. Com inteligência, sensibilidade e
objectividade, o seu autor, A. Bustorff, elogiava a revista e os textos nela publicados,
embora levantasse dúvidas sobre os poemas de Mário de Sá-Carneiro, que “por
excesso de Interseccionismo, descambam em Charadismo”. O Autor guardava os mais
francos elogios para Fernando Pessoa e para o seu O Marinheiro, sobre o qual fazia
um pertinente comentário:
Fernando Pessôa [sic], no Marinheiro parece querêr traduzir-nos o mais completo estado de
abstracção em que as almas podem cair. As interrogações seguem-se e acumulam-se num
alheamento de Vida e de Realidade, cavalga-se o Sonho, vai-se além do Real, penetra-se o
Além-Vida… Essa historia encantada do marinheiro perdido em longinqua ilha e levado
pelas saudades da pátria a criar em sônho uma pátria nunca possuída, é, na verdade,
sentidissima. Como o marinheiro integrando-se no seu sonho até fazer da Irrealidade
Realidade, tambem nós, seguindo a historia, fomos por ela possuidos, caindo numa
abstracção doentia e aniquiladora. Era este o fim do senhor Fernando Pessôa? Se o era,
realisou-o por completo.
Porque é blague com certeza, essa “Ode Triunfal”. Blague que colocada na boca dum
nevrótico, dum neurasténico e espírito desordenado como esse hipotético engenheiro
Alvaro de Campos, toma o carácter e merece os louvores inerentes a uma página de
psiquiatria completissima. Por ela felicitamos o seu autor-editor, senhor Fernando Pessoa.
Merece-o.
O autor deste ainda hoje notável texto era um jovem que acabara de fazer vinte
anos e se chamava, de seu nome completo, António Júdice Bustorff Silva. Viria a
ser, anos mais tarde, um dos dois mais famosos advogados portugueses do século
XX, juntamente com o seu rival José de Azeredo Perdigão, que foi o primeiro e o
grande Presidente da Fundação Calouste Gubenkian. Azeredo Perdigão, se não fez
propriamente parte do grupo do Orpheu – era um jurista, não era um escritor – estava
ligado por íntima amizade a alguns dos seus membros, nomeadamente a Alfredo
Pedro Guisado e a António Ferro, que vemos nesta fotografia.
A foto faz-nos pensar em como era jovem a gente do Orpheu. Em 1915, António
Ferro tinha 20 anos de idade; Ronald de Carvalho e Almada Negreiros, 22; Alfredo
“Orpheu” Regabofe Tiroliro 89
Uma grande obra, com efeito, se propõe erguer esse grupo gentil de inteligencias, que
não pretende Forma mas pretende Essencia, que não anseia Altura mas que busca
Motivo e Côr.
Adivinha-se em toda aquela Realisação o Verbo ignorado e obscuro duma Sinceridade!
Não ha linhas de Colorido nem perfumes de Violeta a engrinaldar em Destaque esse Mundo
90 100 Orpheu José Blanco
Nesse “Orpheu” tão discutível e tão perturbador não encontro só joio. De momento a
momento encontro vislumbres de Arte e pensamentos apreciáveis. É possivel que esses
que têm uma teoria para a escola que pretendem estabelecer, a introduzam em Portugal,
depois de facetada e de purificada dos sem valor que nada mais fazem do que ocupar
espaço.
Apareceu ha dias nas montras das livrarias uma revista literaria, Orpheu de nome, orgão de
meia duzia de preopinantes, que resolveram lançar neste país o futurismo das letras, dar nas
vistas e irritar os indigenas. Mais ainda que os disparates poeticos que a obra contém me
irrita a campanha indecente que as gentes do meu país fizeram aos homens que ali lançam
as suas produções literarias.
A “Capital” de Lisboa tratou os escreventes de imbecis e mais coisas feias e o Sr. Camacho
da “Lucta” mandou a Rilhafoles perguntar ao dr. Julio de Mattos se tinham o juizo todo.
Que diabo, não compreendo porque tamanho reboliço com estes homens de letras quando,
p’la província qualquer sapateiro se julga com o direito de dedilhar a lira d’Orfeu no
intervalo de duas tombas.
De resto, vá de dizer que Orpheu, ao pé de muita coisa disparatada mas que o autor pôde
julgar excelente, tem produções de gente ajuizada, melhores algumas do que muitas
assinadas por criaturas que criticam a revista.
Aquilo é bonito e, palavra d’honra, eu gosto de muitas coisas que lá vêm. Vi lá mesmo
um bocado de prosa do sr. Fernando Pessoa – O Marinheiro – que é um primor de arte e
literatura.
Mas ha quem não goste porque a revista prospera e este país é um coio de invejosos onde
ninguém pode medrar nas letras sem o perigo de levar um coice do primeiro fazedor de
prosa que aparece a um canto…
E o que é verdade é que este grupo de rapazes audaciosos, se algo mais não conseguiu para
o bem próprio e das letras pátrias, pelo menos deu nas vistas e irritou o indigena, coisa que
não pode deixar de merecer o meu aplauso e a minha simpatia profunda.
Pois venha de lá o 2º. Orpheu, para ver outra vez no ar as ferraduras dos críticos literários
do meu país.
Filho de emigrantes galegos em Lisboa, Alfredo Pedro Guisado teve desde cedo
uma ligação muito estreita com a Galiza, mantendo uma rede de relações e contactos
com escritores e intelectuais galegos. Colaborador habitual do semanário El Tea, já
antes de 1915 numerosas produções literárias suas tinham sido publicadas na Galiza.
Não é de estranhar, portanto, que o primeiro número do Orpheu tenha sido desde
logo conhecido na Galiza e merecido referências críticas nos jornais galegos.
Uma das primeiras apareceu no jornal El Eco de Santiago, assinada por Juan Barcía
Caballero, médico de profissão e homem de letras, de 63 anos de idade, respeitado
autor de poesias e prosas de gosto bastante conservador
Finalmente, num outro jornal de Vigo não identificado por Mário de Sá-Carneiro,
um crítico que assina apenas com as iniciais R.R., contesta a opinião generalizada na
Imprensa portuguesa de que o Orpheu era uma “rapaziada”:
E exclama no final:
Y hemos de terminar este brevísimo trabajo, dando un fuerte y sincero hurrah! a esos rebeldes
artistas que com tanta valentia y arrogancia vuelven los ojos hacia lo porvenir, despreciando
com una sarcástica sonrisa bajezas, odios y desplantes de cuatro miserables sapos.
Aqui chegados, pergunta-se: mas que tem tudo isto a ver com o título deste texto
– “Orpheu – Regabofe Tiroliro”? Eis a explicação: esta insólita expressão está ligada à
consagração popular definitiva do Orpheu, através da sua subida ao palco do teatro
de revista.
“Orpheu” Regabofe Tiroliro 95
É pena que não seja possível ouvir a música que Thomás Del-Negro e Bernardo
Ferreira compuseram para esta divertida letra de Ernesto Rodrigues, Felix Bermudes
e João Bastos, talvez a melhor das muitas paródias a que o Orpheu deu origem. Mas
é possível imaginar que os jovens autores do grupo do Orpheu tenham ido ver a
revista – e tenham achado graça à brincadeira…
Orpheu da Arábia
A temática arábico-islâmica no Modernismo português
Fabrizio Boscaglia
Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa
1 Pessoa e outros autores citados neste artigo utilizam, na maior parte dos casos, o substantivo e adjetivo ‘árabes’
conforme um costume das Letras portuguesas, num sentido abrangente e cientificamente pouco rigoroso,
para falar dos muçulmanos e da Civilização Islâmica em geral, e não apenas dos naturais da Arábia ou dos
arabófonos (cf. BOSCAGLIA, F., 2015: 44). Sobre a «designação cómoda e genérica» de «Árabes» nas Letras
e na historiografia portuguesas, veja-se a voz «Árabes na Península» no Dicionário de História de Portugal de
Joel Serrão (1984-2000, vol. 1: 166).
100 100 Orpheu Fabrizio Boscaglia
Segundo Mora, este «elemento arabe» (ou «spirito arabe» ou «arabismo») tinha ficado
latente durante as Cruzadas e a Inquisição católicas («eterno ponto morto do christismo
peninsular») e estava a reemergir na cultura nacional através do Sensacionismo
(PESSOA, F., 2009: 222-223), graças ao renovado contexto político e cultural
determinado pela implantação da República Portuguesa (1910), nomeadamente pelo
intrínseco anticatolicismo desta: «Os sucessivos sucessos revolucionários portuguezes
acabaram por destruir o catholicismo como fé real. [...] Com isso ficou preparada a
emergencia do outro elemento da nossa psyche, até ahi latente: o elemento arabe.»
(PESSOA, F., 2002: 223).
A convicção de a República ser essencialmente «anti-catholica» deve-se a uma série
de medidas («leis anti-catholicas») tomadas logo após a implantação da mesma, que
culminaram na promulgação da Lei da Separação entre Estado e Igreja (1911). Este é o
âmbito político e cultural em que Mora situa a ação dos sensacionistas: «Nascidos com a
geração que estabeleceu a Republica, são, no fundo, anti-catholicos» (PESSOA, F., 2009:
223-226).
Para melhor contextualizar estes elementos, considero necessário referir previamente
alguns elementos da presença arábico-islâmica na história e na história cultural
portuguesas2. Antes e durante o nascimento e o estabelecimento do Reino no contexto
das Cruzadas e da chamada Reconquista (1139), os muçulmanos administraram uma
grande parte das terras lusas (711-1249), deixando um relevante legado literário,
cultural e civilizacional no nascente Reino de Portugal. A partir do século XVI,
logo após a expulsão de muçulmanos e judeus (1496) e com o início da Inquisição
(1536), consolida-se nas Letras portuguesas um processo de parcial ocultação e
menosprezamento deste legado, também condicionado pelo clima religioso e cultural
das novas Cruzadas contra os Otomanos (conquistadores de Constantinopla em 1453).
Com efeito, a literatura e o discurso cultural nacionais irão incorporar durante muito
tempo uma representação estereotipada do muçulmano enquanto o outro, infiel e
inimigo, que consubstanciará aspetos do mito e da narração identitária da portugalidade
ainda no século XX (cf. VAKIL, A., 2003: 257-260). Exemplo paradigmático disto são as
menções aos «Mouros enganosos» e ao «malvado Mouro» n’ Os Lusíadas de Camões (I,
101, 1; II, 7, 6). Apesar disto, durante os séculos das Cruzadas e da Inquisição existem
também alguns casos de arabofilia e de reconhecimento do legado arábico-islâmico em
Portugal, nomeadamente nos romances e nas lendas populares e ainda na dramaturgia
do século XVI (ALVES, A., 2009: 75).
4 Tradução de Pedro Serra. No original: «dominating, restructuring, and having authority over the Orient»;
«a style of thought based upon an ontological and epistemological distinction made between “the Orient”
and (most of the time) “the Occident.”»; «aberrant, undeveloped, inferior»; «rational, developed, humane,
superior»; «dogmas»; «exist in their purest form today in studies of the Arabs and Islam» «despite or beyond
any correspondence, or lack thereof, with a “real” Orient» (SAID, E., 1979: 2-6, 300-301).
Orpheu da Arábia - a temática arábico-islâmica no Modernismo português 103
6 Algumas referências textuais inerentes a este debate são fornecidas por Kamila Koncová (2011: 28-31).
Orpheu da Arábia - a temática arábico-islâmica no Modernismo português 105
Fado e Saudade foram reconduzidas pela Arabística portuguesa7 aos vestígios árabes
da língua portuguesa: ‘saudade’, vindo da palavra árabe sawdā’, ‘melancolia’; e ‘fado’,
de hadū, ‘cantilena de caravana’.
Estas vertentes etimológicas e conceptuais poderão ser utilizadas numa abordagem
comparativa e hermenêutica dos textos de Teixeira de Pascoaes (1987 [1919]: 51-52)
sobre a Saudade enquanto essência psíquico-espiritual da raça portuguesa: «[a]
melancolia árabe e o Panteísmo do norte, definiram, num meio concordante, a alma
dos lusíadas, que se contém no seu primordial e original sentimento da Saudade.». A
oportunidade de se citar Pascoaes neste contexto é justificada pelo facto de Orpheu
se situar, também e em concreto no percurso biobibliográfico de Pessoa, como aquela
revista que, ao distanciar-se do Saudosismo, também se colocava num diálogo crítico
e ativo com ele, como é evidente nesta passagem de Pessoa, escrita por volta de 1917,
possivelmente como comentário a Arte de Ser Português8 de Pascoaes (1915):
Tal como Pascoaes, outro artista natural de Amarante foi Amadeo de Souza-Cardoso,
pintor cuja participação no Orpheu era planeada para o número 3 da revista, que
não chegou a ser publicado na altura. Numa carta enviada à sua futura esposa
Lucie Meynardi Pecetto, em 1910, Amadeo escrevia: «Ha tormentos dentro de mim,
alegrias momentaneas, estados de uma alma complicada. É o sangue arabe que me
gira cá dentro, o sangue visionario, fervendo sem cessar, supersticioso, profundamente
tragico.». Noutra carta dirigida à sua amada, lê-se: «Ontem em Aveiro tinha grandes
desejos de te ter commigo. Aveiro é todo penetrado de canaes do mar, a paysagem é de
um horizonte infinito, a cidade branca como uma mesquita arabe.» (SOUZA-CARDOSO,
A., [1890-1988]: ASC 12/09, 12/04).
Uma veia arábico-islâmica na auto-observação psicológica do próprio Amadeo
bem como na caraterização da paisagem portuguesa é reconhecida pelo artista neste
momento de intimidade e privacidade transposto para carta. Elementos da temática
arábico-islâmica na obra Amadeo são evidentes no caderno de desenhos XX Dessins
9 A palavra árabe qaṣīdah indica um tipo de poema árabe, que pode chegar a ter mais de cem versos.
10 Os referidos poemas foram publicados por Franz Toussaint sob o título «Kacidas mauresques du X.e siècle».
11 Espaço deixado em branco pelo autor, por razões gráficas e estéticas.
12 O manifesto intitula-se Exposição Amadeo de Souza-Cardoso.
Orpheu da Arábia - a temática arábico-islâmica no Modernismo português 107
Em minarête
mâte
bate
leve
verde neve
minuette
de luar.
14 A temática arábico-islâmica em Almada Negreiros foi objeto de uma minha comunicação no Colóquio
Internacional “Almada Negreiros: un trait d’union tra arti e culture” (Universidade de Pisa, junho de 2015).
Orpheu da Arábia - a temática arábico-islâmica no Modernismo português 109
15 Nos textos sensacionistas, Pessoa (2009: 189) utiliza a «palavra internacionalismo, ou sua synonyma
cosmopolitismo».
16 Pessoa (1980: 223) afirma que o «cosmopolitismo europeu» é uma das «bases da nossa civilização».
110 100 Orpheu Fabrizio Boscaglia
[Os sensacionistas têm] a vantagem typica do spirito arabe: a universal curiosidade activa,
com que acceitam as influencias de todas as bandas, lhes aprofundam o sentido, lhes reunem
os resultados e finalmente as transformam na substancia do seu proprio spirito. (PESSOA,
F., 2009: 223)
17 Repare-se que a 1 de julho de 1917 o sensacionista Fernando Pessoa publicou – enquanto «Director de
Orpheu» – o poema «A casa branca nau preta» (escrito a 11 de outubro de 1916) no jornal O Heraldo de Faro
(n.º 388).
18 Leia-se: «Não há compulsão na religião.» (II, 256).
Orpheu da Arábia - a temática arábico-islâmica no Modernismo português 111
Bibliografia
Bibliografia Ativa
COELHO, Ruy (193-). 6 Kacides Mauresques. Lisboa: Casa de Músicas Oliveira.
LIMA, Ângelo de (2003). Poesias Completas. Ed. Fernando Guimarães. Lisboa:
Assírio & Alvim (1991).
MENEZES, Pedro de [pseudónimo de Alfredo Pedro Guisado] (1916). As treze
baladas das mãos frias: canções. Lisboa: Brazileira.
NEGREIROS, Almada (1915). Manifesto anti-Dantas e por extenso por José de
Almada Negreiros poeta d’Orpheu futurista e tudo. Lisboa: Ed. do autor.
NEGREIROS, Almada (1921). A invenção do Dia Claro. Lisboa: Olisipo.
NEGREIROS, Almada (1960). «Assim fala Geometria». Diário de Notícias.
Suplemento Artes e Letras [Entrevista de António Valdemar a Almada
Negreiros, 16 de junho de 1960]: 13, 17.
NEGREIROS, Almada (1997). Obra completa. Ed. Alexei Bueno. Introd. José-
Augusto França. Rio de Janeiro: Nova Aguilar.
NEGREIROS, Almada (2001). Poemas. Ed. Fernando Cabral Martins, Luís Manuel
Gaspar, Mariana Pinto dos Santos. Lisboa: Assírio & Alvim.
PESSOA, Fernando (1915). «Opiário e Ode triunfal: duas composições de Álvaro
de Campos publicadas por Fernando Pessoa». Orpheu: Revista trimestral de
Literatura 1: 69-83.
PESSOA, Fernando (1916). «Passos da Cruz: catorze sonetos de Fernando Pessoa».
Centauro: Revista trimestral de literatura 1: 63-76.
PESSOA, Fernando (1917). «A casa branca nau preta». O Heraldo 388: 2.
PESSOA, Fernando (1980). Ultimatum e Páginas de Sociologia Política. Ed. Joel
Serrão. Lisboa: Ática.
PESSOA, Fernando (2002). Obras de António Mora. Ed. Luís Filipe B. Teixeira.
Lisboa: INCM.
PESSOA, Fernando (2006). Álvaro de Campos: Poesia. Ed. Teresa Rita Lopes. Ed.
original Assírio & Alvim. 2 vols. Lisboa: Planeta DeAgostini (2002).
PESSOA, Fernando (2009). Sensacionismo e outros ismos. Ed. Jerónimo Pizarro.
Lisboa: INCM.
PESSOA, Fernando (2012). Ibéria: Introdução a um Imperialismo Futuro. Ed.
Jerónimo Pizarro, Pablo Javier Pérez López. Posf. Humberto Brito, Antonio
Sáez Delgado. Lisboa: Ática.
SÁ-CARNEIRO, Mário de (1915a). «Distante melodia». Orpheu: Revista trimestral
de Literatura 1: 13.
112 100 Orpheu Fabrizio Boscaglia
Bibliografia Passiva
ABREU, Edward Valeriano de Luiz Gonçalves Ayres de (2014). Ruy Coelho
(1889-1986): o compositor da geração d’Orpheu. Lisboa: Universidade Nova
de Lisboa.
ALVES, Adalberto (2013). Dicionário de Arabismos da Língua Portuguesa. Lisboa:
INCM.
ALVES, Adalberto (2009). Portugal e o Islão: Novos escritos do crescente. Lisboa:
Teorema.
BOSCAGLIA, Fabrizio (2015). «A presença árabe-islâmica em Fernando Pessoa».
Tese de Doutoramento. Universidade de Lisboa.
BOSCAGLIA, Fabrizio (2016). «Nietzsche, Pessoa e o Islão: Notas sobre a
receção de Der Antichrist por Fernando Pessoa». In: RYAN, Bartholomew,
FAUSTINO, Marta, CARDIELLO, Antonio (org.). Nietzsche e Pessoa: Ensaios.
Lisboa: Tinta-da-China: 143-158.
BRAGA, Duarte Drumond (2014). «Ao oriente do Oriente: transformações do
orientalismo em poesia portuguesa do século XX. Camilo Pessanha, Alberto
Osório de Castro e Álvaro de Campos». Tese de Doutoramento. Universidade
de Lisboa.
CAMÕES, Luís de (2000). Os Lusíadas. Ed. Álvaro Júlio da Costa Pimpão. Apresent.
Aníbal Pinto de Castro. Lisboa: Ministério dos Negócios Estrangeiros-Instituto
Camões (1572).
[CHALLITA, Mansour (tr.)] (2011). Alcorão: Livro Sagrado do Islã. Rio de Janeiro:
BestBolso.
KONCOVÁ, Kamila (2011). «A canção do fado – uma música e várias raízes».
Tese de Mestrado. Masarykova Univerzita.
NIETZSCHE, Friedrich [1895], Der Antichrist. Digitale Kritische Gesamtausgabe
Werke und Briefe. Ed. Paolo D’Iorio [baseada em: F. Nietzsche, Werke.
Kritische Gesamtausgabe. Ed. Giorgio Colli, Mazzino Montinari. Berlin/
New York: de Gruyter (1967–); idem, Nietzsche Briefwechsel. Kritische
Gesamtausgabe. Ed. Giorgio Colli, Mazzino Montinari. Berlin/New York: de
Gruyter (1975–). http://www.nietzschesource.org/ (30/07/2015).
Orpheu da Arábia - a temática arábico-islâmica no Modernismo português 113
Resumo: A revista Orpheu é uma publicação ímpar na história cultural Portuguesa, a sua
brevidade é sintomática do nosso modo de estar. É contudo sobre Fernando Pessoa que este
texto incide. Defendemos que não é possível uma compreensão ampla de Pessoa sem analisar a
importância da Filosofia na sua obra. Para sustentar esta afirmação: «Numa curta comunicação
e numa dezena de páginas, não ousarei mais que utilizar uma pequena comparação e apontar
alguns fragmentos e apenas de uma das suas obras, O Livro do Desassossego. Convoquei dois
filósofos para estabelecer esse diálogo, Cioran e John Gray.»
Fernando Pessoa, este nome ultrapassa há muito qualquer radicação num texto,
numa ação, num livro ou mesmo na obra, com todas as vantagens e riscos de tal
metamorfose. Podemos falar de Pessoa, ter sobre ele uma opinião e nada conhecer ao
certo da sua obra. Algo transcendeu em muito o autor e o seu trabalho.
Corremos o risco de quando dele falamos ou o analisamos, referir, não já Pessoa
e a sua obra, mas o meu Pessoa, o teu Pessoa, o Pessoa do grupo y ou do grupo x, o
116 100 Orpheu João Maurício Brás
Numa curta comunicação e numa dezena de páginas, não ousarei mais que utilizar
uma pequena comparação e apontar alguns fragmentos e apenas de uma das suas
obras, O Livro do Desassossego. Convoquei dois filósofos para estabelecer esse diálogo,
Cioran, John Gray.
As citações de Pessoa que utilizo referem-se, portanto, unicamente a esse livro. A
minha conceção tem pouca ou nenhuma relevância, mas como amador considero o
Livro do Desassossego o seu registo autobiográfico por excelência e que só poderia ser
literário. Refira-se que a autobiografia de Pessoa teria que ser algo de essencialmente
mental, «sendo a vida essencialmente um estado mental». O Livro do Desassossego é
uma autobiografia mental de um escritor.
«A vida só se tornará suportável no seio de uma humanidade a que não reste nenhuma
ilusão, uma humanidade completamente desenganada e feliz por o estar.»
«Onde estão as minhas sensações? Desvaneceram-se…em mim, e o que é isso senão a soma
dessas sensações?».
à sua morte em 1995. Ambos escritores e pensadores geniais, marginais no seu tempo,
mas depressa canónicos e eternamente condenados ao mal-entendido da apropriação
pelos pares, às emoções dos leitores e aos dogmas à peça dos académicos.
Pensadores subjetivos e fragmentários. Escreveram primeiro que tudo para
expressar um tremendo desacordo com a vida e tiveram em comum a capacidade
de expressar esse desacordo, que adquire corpo, principalmente nas suas existências,
através das palavras, se bem que ambos desconfiassem das palavras.
Lucidez, desengano, tédio, um pensar orgânico e visceral, a impotência de agir, a
sabedoria mais que o conhecimento, a importância e problematização da clarividência,
o horror e fascínio de ser humano, a inanidade do sentido e da vida, são lugares
primordiais que ambos percorrem de modo muito idêntico. A consciência dolorosa das
nossas alienações, as limitações da nossa condição, o Shakesperiano asco perante a nossa
fragilidade, a dor da diferença e a necessidade de um saber como suportar a vida, em
que cada um encontra o seu conjunto de estratégias vitais, são programáticos em ambos.
São autores demasiado singulares, Pessoa será sempre e unicamente Pessoa, e o
mesmo sucede com Cioran, mas o estado mental, o modo de estar e ver têm muito
em comum. Sendo a respetiva singularidade um traço fundamental assim como o seu
pensar subjetivo, como alcançaram o respetivo reconhecimento?
O pensador subjetivo parte do que sente, do que vive, dos seus caprichos e
transtornos, mas alcança, pela intensidade da experiência particular, aspetos universais
do estar humano. O particular eleva-se ao universal, porque toca o fundo da vida2.
Também Fernando Pessoa, como Cioran, se insere numa longínqua tradição3.
Aquela que de Theognis a Beckett revela muitas dúvidas sobre a legitimidade do ser
humano e sobre as visões predominantes do mundo, ordenado, quotidiano, arrumado
e vigente, o tal mundo tributável. «É outra vez o horror de sempre, – o dia, a vida, a
utilidade fictícia, a atividade sem remédio (…). Sou eu outra vez, tal qual não sou»
(PESSOA, F., VOL II, 1982: 325).
Como viver quando se alcança essa “pavorosa ciência do ver”? Que já não é apenas
sobre um pessoa, lugar ou situação concreta, mas que adquire a ressonância da
própria condição humana? Como viver ainda? E viver, é principalmente na nossa
mundividência, ação.
O Ocidente moderno tem um dos seus pilares fundamentais no culto da ação. É
o agir que realiza e transforma. Sem a ação não há progresso. O êxito, o sucesso, o
mérito advêm principalmente da ação.
2 Fundo da vida primordial, originário, deveriam constituir as características do que se chama verdade.
3 Por exemplo, para Homero, o homem é o ser mais desgraçado de todos aqueles que respiram e existe, para
Platão a vida é desventura, e melhor teria sido para o homem não existir.
Fernando Pessoa e a filosofia. Um dialógo com Emil Cioran e John Gray 119
4 Pessoa quis agir, mas algo se impõe à vontade de agir. Veja-se o exemplo da Mensagem, e a tese original de
Onésimo Almeida, em Pessoa, Portugal e o Futuro (Gradiva, 2014), a estratégia de criar e utilizar mitos como
guia para ação, no que é um projeto político baseada numa teoria pragmática da verdade.
120 100 Orpheu João Maurício Brás
5 A entrevista referida foi publicada originalmente no jornal espanhol El País de 25 de outubro de 1990.
6 O tédio é um problema de saúde pública, não interessa aos poderes instituídos, nunca foi bom para a ação.
Parece algo muito literário, mas seria devastador, uma maré de tédio, populações abúlicas, meditativas,
críticas, questionadoras e distanciadas e separadas da vida que vivem sem porquê. Uma multidão lúcida
da sua condição, abúlica por opção, crítica e cética sobre as grandes ilusões humanas, seria o fim quer da
civilização frenética, quer da ideia de homem moderna e ocidental.
7 Se, em Pessoa e Cioran a impotência para agir e o tédio não estão explícitos nos muitos milhares de páginas
escritos, surgem contudo de modo implícito em todas elas. Constituem um fundo criativo e estruturador.
Fernando Pessoa e a filosofia. Um dialógo com Emil Cioran e John Gray 121
*
Fernando Pessoa e a filosofia. Um dialógo com Emil Cioran e John Gray 123
qualquer excesso biologista, antes coloca razoabilidade face aos delírios egocêntricos
da nossa espécie, e aos consequentes devaneios que vivemos como se de verdades se
tratassem. Não somos o princípio e o fim de tudo, nem o sentido do mundo se esgota
em nós, nem tão pouco somos o centro do universo.
O que acabei de expressar, são lugares comuns, mas na verdade vivemos encerrados
na nossa espécie, no nosso universo verbal, nas nossas logomaquias e mitologias, ou
seja vivemos baseados em falsas crenças.
John Gray cita Pessoa no Sobre os Humanos e Outros animais: «Se considero com
atenção a vida que os homens vivem, nada encontro nela que a diferencie da vida que
vivem os animais. Uns e outros são lançados inconscientemente através das coisas e do
mundo; uns e outros se entretêm com intervalos; uns e outros percorrem diariamente
o mesmo percurso orgânico; uns e outros não pensam para além do que pensam, nem
vivem para além do que vivem. O gato espoja-se ao Sol e dorme ali. O homem espoja-se
à vida, com todas as suas complexidades, e dorme ali. Nem um nem outro se liberta
da lei fatal de ser como é.» (GRAY, J., 2007: 117).
Somos animais como quaisquer outros, a nossa superioridade assenta numa
auto-ilusão, somos os melhores no nosso mundo, como as espécies animais são
melhores no mundo delas. Claro que podemos tentar libertar-nos dos nossos
constrangimentos naturais, não só já no plano da crença, seja nas ideologias religiosas
ou laicas, pois temos a tecnologia, mas sabemos como são funestas essas aventuras e
têm principalmente um carácter não essencial, mas instrumental e reversível. Como
podemos discutir a “superioridade” de uma espécie a partir exclusivamente da visão
dessa própria espécie?
Uma das principais teses de John Gray diz-nos que a modernidade e os ideais
iluministas, as crenças laicas, não passam de reapropriações do cristianismo. A
modernidade e mesmo os seus movimentos mais revolucionários são a continuação
da religião por outros meios. O homem é principalmente um criador de mitos. Lemos
em Pessoa: «Este culto da Humanidade, com seus ritos de Liberdade e Igualdade,
pareceu-me sempre uma revivescência dos cultos antigos, em que animais eram como
deuses, ou os deuses tinham cabeças de animais.» (PESSOA, F., VOL I, 1982: 38)
Este é apenas um exemplo das possibilidades filosóficas que decorrem dos textos de
Pessoa, autor que permite continuar a dialogar com outros deste século e certamente
dos próximos, marca da profundidade de um pensamento fundamental.
Fernando Pessoa e a filosofia. Um dialógo com Emil Cioran e John Gray 125
Bibliografia
Marco Bucaioni
Università della Tuscia, Viterbo
Não é novidade alguma que Fernando Pessoa obteve fortuna editorial, crítica e
de público na Europa e no mundo. A Itália, não constituindo excepção nisto, é aliás
um dos países em que o maior poeta português do século XX atraiu mais atenção
por parte dos tradutores, das editoras e dos académicos. É quase redundante,
neste contexto, citar a incontornável figura do professor e escritor Antonio
Tabucchi, notabilíssima figura de intelectual quer em Portugal, quer em Itália, e
com certeza a pessoa que mais contribuiu para a “exportação” da figura e da obra
de Fernando Pessoa para Itália. Com igual certeza podemos e temos que afirmar
que Tabucchi, especialmente nos últimos anos, não esteve sozinho nesta tarefa de
tradução pessoana para italiano: muitos outros académicos, tradutores e editores
trabalharam e trabalham para continuar a desvendar os mil e um recônditos cantos
do fragmentário legado pessoano em Itália.
Aliás, hoje em dia já temos grandes contingentes de “pessoanos” italianos,
talvez mais numerosos do que outros contingentes estrangeiros, muitos dos quais
radicados e a trabalhar em Lisboa em directo contacto com o espólio e com o
“espírito” pessoano, para contribuir para esta eterna e inesgotável “leitura” de
Fernando Pessoa.
Se também é verdade que a obra de Fernando Pessoa foi recebida de forma irregular
e nem sempre paralela aos avanços da crítica pessoana portuguesa (assimetrias estas
objecto do trabalho de muitos dos acima referidos pessoanos), nem por isso podemos
128 100 Orpheu Marco Bucaioni
dizer que Pessoa seja um autor pouco conhecido na península mediterrânica, sendo
talvez o único autor português, a par do Prémio Nobel Saramago, conhecido pelo
vasto público italiano.
Em consequência disto, a parte da obra em verso de Fernando Pessoa que
podemos chamar poesia modernista, quase toda contida na obra do heterónimo
engenheiro Álvaro de Campos, já tem uma história de traduções e de edições
diferentes em Itália.
As duas mais importantes, contudo, são a tradução do próprio Antonio Tabucchi,
contida parcialmente dentro da célebre antologia pessoana Una sola moltitudine
(TABUCCHI, A., 1978), e depois publicada em separado, na sua totalidade (até à data),
no volume Poesie di Álvaro de Campos (TABUCCHI, A., 1993) e a mais recente de Piero
Ceccucci e Orietta Abbati, incluída na antologia de bolso em dois volumes da poesia
pessoana, debaixo do título Il mondo che non vedo, e publicada pela BUR (que contém
poesia ortónima) (CECCUCCI, P., 2009) e Un’affollata solitudine (que contém poesia
heterónima), também publicada pela BUR (CECCUCCI, P., 2012). Existem outras
publicações que contêm parcialmente ou inteiramente (até à data) a obra de Campos1.
A razão pela qual, contudo, as primeiras duas edições citadas são consideradas mais
importantes é simples: são as únicas duas edições publicadas por chancelas prestigiadas
de projecção nacional, e que efectivamente se encontram a todo o momento no
mercado, tendo-se encarregado a Adelphi de reimprimir e distribuir quer a antologia
quer a publicação independente com a poesia de Campos continuamente desde a sua
primeira publicação. Nesta comunicação vão ser analisadas as duas traduções da Ode
Marítima de Tabucchi e de Ceccucci/Abbati, tomando este poema como simbólico de
toda a produção de Campos, sendo o maior do ponto de vista material e um dos mais
significativos e marcantes do período modernista português.
A mesma sorte não tiveram, misteriosamente (ou não), os autores que, na segunda
década do século XX, integraram o cenáculo literário a que Pessoa pertencia: José de
Almada Negreiros e Mário de Sá-Carneiro. Certo é que o principal e mais conceituado
promotor da fama de Pessoa em Itália, o acima referido Antonio Tabucchi, não fez
muito para que o público italiano ganhasse conhecimento destas duas figuras (o
que aconteceu, em geral, com o resto da literatura portuguesa tout-court). Em geral,
parece que, mesmo os que dedicaram uma parte consistente da sua actividade ao
estudo e/ou à tradução de Fernando Pessoa, concentraram-se muito nele, ignorando
o resto, o que, considerando a vastidão, a heterogeneidade e a profundidade do legado
pessoano, talvez seja mais do que justificável.
1 A primeira foi a de Luigi Panarese, Poesia di Fernando Pessoa, Milano, Lerici Editori, 1967.
As traduções italianas da Ode Marítima de Álvaro de Campos e uma tentativa de tradução d’A Cena do Ódio ... 129
Pelo que diz respeito a Almada Negreiros, um possível obstáculo à sua tradução e
publicação no estrangeiro pode ter sido o facto de ainda não terem passado os setenta
anos desde o falecimento do autor, necessários para que, segundo a lei portuguesa, os
direitos de autor, e os conseguintes direitos de tradução, revertessem para o domínio
público, desincentivando desta forma as eventuais iniciativas editoriais. Seja como for,
tivemos que esperar até ao ano passado (2014) para ver em volume duas publicações
com o nome de Almada Negreiros em Itália: o romance Nome de Guerra, traduzido
com o título Nome di battaglia por Andrea Ragusa e a recolha Prosa d’avanguardia,
que contém uma selecção da prosa polémica e vanguardista de Almada Negreiros,
juntamente com alguns textos de ficção (A Engomadeira) (organizado por Valeria
Tocco, com tradução de Valeria Tocco, Andrea Ragusa, Mauro La Mancusa) (ambas
publicadas pelas Edizioni dell’Urogallo de Perúgia). No plano editorial da mesma,
consta para este ano a publicação do volume da poesia, contendo toda a obra poética
de Almada, com tradução de Manuel Masini, de Andrea Ragusa e de quem escreve.
Antes destas publicações, as únicas obras de Almada disponíveis em Itália eram uma
publicação separada d’A Invenção do Dia Claro (ALMADA NEGREIROS, J., 2000)
e uma recolha de manifestos do modernismo português, organizada e traduzida
por Valeria Tocco (TOCCO, V., 2002), de que constavam os seguintes manifestos
almadianos: Manifesto Anti-Dantas e per esteso, Ultimatum futurista alle generazioni
portoghesi del XX secolo.
Ambas as traduções da Ode Marítima (no caso da de Antonio Tabucchi, quer a
contida em Una sola moltitudine, quer a outra) são publicadas em edição bilingue.
Pelo que diz respeito à tradução de Antonio Tabucchi, aqui referir-nos-emos à edição
de 1993.
Ambas as traduções são, como era de esperar, muito cuidadosas e competentes.
Numa primeira leitura, temos que sublinhar como, de modo geral, as duas traduções
são muito parecidas uma com a outra, não apresentando superficialmente grandes
diferenças. Olhando mais de perto, surgem algumas soluções diferenciadas aos
problemas cuja solução menos simples se apresenta ao tradutor italiano.
Sendo o português e o italiano duas línguas que pertencem à mesma subfamília
do ramo kentum das línguas indo-europeias, isto é, a das línguas românicas, muito
frequente é o caso de haver palavras ou frases inteiras numa das duas línguas que
têm um correspondente quase literal na outra, isto é, em que se usam palavras ou
fragmentos que têm claramente uma origem comum. Regra geral, os dois tradutores
têm a tendência para acompanhar este andamento, usando sempre que possível
palavras cujo material morfemático remonta claramente à origem comum. Nestes
casos todos, que porventura são a maioria estatística do português para o italiano, os
dois tradutores têm tendência para comportar-se da mesma forma.
130 100 Orpheu Marco Bucaioni
A maioria das divergências entre as duas traduções encontra-se, por outro lado,
nos restantes casos: os que obrigam o tradutor italiano a buscar uma palavra ou uma
frase que não têm correspondência directa etimológica em português.
Um dos casos mais interessantes é certamente o da tradução do português cio. Esta
palavra, usada quer no seu sentido literal, quer no figurativo, é uma das palavras-chave
da Ode Marítima e, num certo sentido, da poesia de Campos e da Geração de Orpheu
tout-court. Pela primeira vez, de facto, canta-se explicitamente a sexualidade, nas suas
vertentes até promíscuas e ferais, em clara oposição à estética que ainda prevalecia na
altura2. Mais em particular, se a Ode Marítima toda pode ser vista como uma grande
vaga poético-narrativa que anuncia, prepara e alcança o seu clímax para só depois
nas últimas páginas voltar ao “sentado” (desas-)sossego inicial, o conceito de cio («do
mundo, ebriedade do diverso!») talvez seja o verdadeiro motor que inicia a acção toda
e a alimente até ao pretendido clímax.
A escolha de Tabucchi para a sua tradução recai no italiano fregola, que
correctamente traduz o estado de excitação e de disponibilidade para o acasalamento
de certos mamíferos; e, tal como o português, pode ser usado também em sentido não
literal3. Mantendo esta escolha feliz na esmagadora maioria dos casos em que aparece
a palavra cio, contudo, Tabucchi decidiu por três vezes optar por uma tradução
diferente: temos duas vezes foia (TABUCCHI, A., 1993: 83/95) e uma vez calore
(idem: 93), dentro da expressão «gata com cio», que assim fica «gatta in calore». De
facto, é mais comum, em italiano, usar esta palavra, quando, no dia a dia, queremos
referir-nos ao estado dos mamíferos supracitados. É evidente que a palavra calore não
podia ser utilizada no resto dos casos, especialmente se sem referência explícita a um
animal, pois ela também traduz a palavra portuguesa calor, e acabaria portanto por
engendrar ambiguidade na versão italiana. O que é menos evidente são as razões que
devem estar por trás da escolha de foia, por duas vezes, sem que haja nada que force a
abandonar a escolha maioritária.
2 Na medida em que o Campos da Ode Marítima chega a desejar ser chicoteado, violado e até rasgado pelas
mãos e pelos corpos dos seus piratas de sonho, ousando cantar a violação das mulheres, Almada responde
cantando sodomia e lesbianismo, entre outras práticas sexuais, em Mima Fataxa e referindo-se várias vezes
a sensações explicitamente sexuais n'A Cena do Ódio. Além da superfície, porém, estes poemas e as demais
odes maiores de Campos são percorridos por um “cio” não necessariamente material, enquanto “histérico
entusiasmo” para com os vários aspectos da vida e da actividade modernas, como a navegação moderna, o
comércio, as grandes cidades e o cosmopolitismo em geral.
3 «Fregola, [fré-go-la], s.f., 1 Stato di eccitazione degli animali che si ripete con regolarità periodica in
concomitanza con la fase della riproduzione: essere, andare, entrare in f.; avere la f., ‖ SIN. calore, estro, 2
fig. Bramosia, voglia ardente e ostinata: ora gli è venuta la f. dell'automobile, ‖ Mania: la f. della pulizia».
(Dicionário Hoepli).
«fregola[fré-go-la] s.f., 1 Eccitazione sessuale degli animali durante il periodo della riproduzione SIN foia:
andare in f.; estens. volg., stato di sovreccitazione sessuale, 2 fig. Desiderio eccessivo, smania di qlco. SIN
frenesia: avere la f. di fare qlco.» (Dicionário Sabatini Coletti).
As traduções italianas da Ode Marítima de Álvaro de Campos e uma tentativa de tradução d’A Cena do Ódio ... 131
4 «Estro […], 4 BIOL Nelle femmine dei Mammiferi, il periodo dell'ovulazione che le rende predisposte
all'accoppiamento e alla riproduzione: e. venereo» (Dicionário Hoepli).
«Estro 1 Esaltazione creativa dell'artista, del poeta, sinonimo: ispirazione: e. musicale, 2 Bizza, capriccio: gli è
venuto l'e. di scrivere, 3 biol. e. sessuale, nelle femmine dei mammiferi, attivazione del desiderio» (Dicionário
Sabatini Coletti).
132 100 Orpheu Marco Bucaioni
navios. Certo é que nenhum dos tradutores escolhe traduzir à letra pois existiria uma
palavra que se refere exactamente a uma nau em italiano: caracca5. Por outro lado,
certo é, também, que a esmagadora maioria dos italianos não conhece esta palavra, ao
contrário do que se pode dizer do seu correspondente português e dos portugueses.
De qualquer forma, admira um pouco que, no contexto deste longo poema dedicado à
vida marítima, cheio de nomes específicos de vários tipos de embarcações e de vários
objectos de bordo, todos traduzidos com o máximo cuidado por todos os tradutores,
sem necessariamente recorrer a palavras de uso e compreensão comuns noutros
sítios, agora de repente se faça uma escolha em tal sentido6. A escolha de caravelle por
naus tem o mérito claro de ligar desde logo à época dos Descobrimentos, usando uma
palavra de uso comum em italiano. Navi, pelo contrário, sendo mais parecido com
o original por causa do som, não tem qualquer conotação histórica, sendo o que os
linguistas chamam de versão não marcada do substantivo.
Outra coisa interessante a assinalar é a diferente tradução da palavra negro, referida
a ser humano. Enquanto Tabucchi tem «negri» e «negre» (TABUCCHI, A., 1993: 85),
Abbati/Ceccucci têm «neri» e «nere» (CECCUCCI, P., 2012: 403), mais em linha com
o politicamente correcto da altura.
Depois desta rápida revista, é claro que, para qualquer italiano, a palavra fregola
é mais prontamente e menos ambiguamente identificada como cio do animal, com
valor sexual, e portanto da forma pretendida por Álvaro de Campos. Sendo a tradução
de Tabucchi anterior à de Ceccucci, não percebemos a exigência desta mudança.
No caso de Almada Negreiros, esta análise concentrar-se-á em dois poemas: Mima
Fataxa – Sinfonia Cosmopolita e Apologia do Triângulo Feminino e A Cena do Ódio, sendo
os dois poemas longos mais iconoclastas e vulcânicos dentro da obra poética deste autor.
O texto de Almada é muito diferente da poesia de Campos. De alguma forma,
Almada usa palavras mais “difíceis” do que Campos, ao menos do ponto de vista
do tradutor. É evidente o gosto pelo exótico, pelo marginal, pelo pouco usual, que leva
Almada a fazer escolhas lexicais que nos levam continuamente a uma pesquisa incessante.
5 «caracca, [ca-ràc-ca], s.f. (pl. -che), ST Grossa nave a vela, da guerra o da carico, munita di due o tre alberi,
con un castello a prua e uno a poppa e armata di cannoni, usata dai Portoghesi e dai Genovesi dal XIV al XVII
sec». (Dicionário Hoepli).
«caracca [ca-ràc-ca] s.f. (pl. -che), Grande nave a vela con due o tre alberi, due castelli, armata di cannoni,
usata da genovesi e portoghesi nei secc. XIII-XVI». (Dicionário Sabatini Coletti).
6 O mesmo problema teve que ser encarado e resolvido pela tradutora do célebre romance As Naus de António
Lobo Antunes, Vittoria Martinetto, que acabou por fazer a mesma escolha de Abbati/Ceccucci, embora num
contexto muito diferente, como é o de um título, em que há em jogo outras forças (interesse do editor, questões
comerciais, etc...), mas mesmo assim em contra-tendência com os tradutores para alemão e para inglês, que
fizeram a mesma escolha de Tabucchi, chamando ao romance (por exemplo, em alemão): Die Rückkehr der
Karawellen (O Retorno das Caravelas).
As traduções italianas da Ode Marítima de Álvaro de Campos e uma tentativa de tradução d’A Cena do Ódio ... 133
Nos dois casos em questão, embatemos com um Almada mais experimental, mais
exigente do que o Campos da Ode Marítima. Se, por um lado, Ceccucci assinala na sua
introdução (CECCUCCI, P., 2012: LXXXIV) que Fernando Pessoa muitas vezes joga
com a língua, torcendo a gramática para os seus fins, e assim dificultando a tarefa do
tradutor; Almada parece querer pegar na língua e renová-la, negando as mais elementares
regras gramaticais, na fúria iconoclasta que lhe é própria, e que talvez represente a melhor
realização da quintessência modernista, no seio da Geração de Orpheu.
Sendo esta a premissa geral, deverá o tradutor aceitar o compromisso fundamental
de desconstrução linguística, não hesitando em repropor na língua-alvo soluções que
na língua-fonte são interpretáveis como “erros gramaticais”, de ordem sintáctica ou
fraseológica, ou neologismos.
Muito poderia ainda ser dito sobre as escolhas dos vários tradutores de Álvaro de
Campos e sobre as possibilidades para uma tradução da poesia de Almada Negreiros.
No entanto, da análise já efectuada das traduções publicadas, o que ressalta é, em ambos
os casos, uma preocupação de rigor e a tentativa de, sempre que possível, seguir de
muito perto o texto. Da tradução mais recente transparece, a certos passos, uma certa
preocupação em actualizar o registo, particularmente no que diz respeito a termos
mais eruditos, o que nem sempre acontece, havendo por exemplo recurso a um tipo de
vocabulário que caíra em desuso já aquando da publicação desta tradução.
Bibliografia
ALMADA NEGREIROS, José de (2000). L’invenzione del giorno chiaro. Pisa: ETS.
ALMADA NEGREIROS, José de (2001). Poemas. Lisboa: Assírio & Alvim.
ALMADA NEGREIROS, José de (2014). Prosa d’avanguardia. Perugia: Edizioni
dell’Urogallo.
ALMADA NEGREIROS, José de (2014). Nome di battaglia. Perugia: Edizioni
dell’Urogallo.
PESSOA, Fernando (1979). Una sola moltitudine. Milano: Adelphi. (volume
primo)
PESSOA, Fernando (1984). Una sola moltitudine. Milano: Adelphi. (volume
secondo)
PESSOA, Fernando (1993). Poesie di Álvaro de Campos. Milano: Adelphi.
PESSOA, Fernando (2009). Il mondo che non vedo. Poesie ortonime. Milano: BUR.
PESSOA, Fernando (2012). Un’affollata solitudine. Poesie eteronime. Milano: BUR.
TOCCO, Valeria (org.) (2001). I manifesti dell’avanguardia portoghese. Lucca:
Baroni.
134 100 Orpheu Marco Bucaioni
Le langage lui est apparu l’instrument de la fiction : il suivra la méthode du langage […]
Enfin, la fiction lui semble être le procédé même de l’esprit humain – c’est elle qui met en jeu
toute méthode, et l’homme est réduit à la volonté (MALLARMÉ, S., 1998 : 504)
Modernismo. Basta lembrar a peça A Alma, composta com António de Ponce Leão
em 1913, ilustração do teatro de «arquitectura interior» teorizado no mesmo ano por
Sá-Carneiro no artigo «O Teatro-Arte (Apontamentos para uma crónica)» publicado
em 1913 no jornal republicano Rebate.
Não sendo pela sua originalidade absoluta que O Marinheiro se alinhou ao lado
dos outros meteoritos do número inaugural de Orpheu – sendo que Fernando Pessoa
cogitara publicá-la na Renascença, conforme o evidencia uma carta a Álvaro Pinto
de Maio de 1914 (Pessoa, 1986: 144) – afigura-se especialmente relevante dar todo
o peso às palavras do autor quando justifica a sua escolha por uma «tragedia que
se passa apenas nos sonhos [ser] contida dentro de uma sobriedade externa difícil
de encontrar fora da Grécia antiga» (PESSOA, F., 2009: 47), sintetizável na equação
perspectiva mental/rarefacção formal. É na verdade o princípio duma «teatralidade
sem teatro», na justíssima expressão de Eduardo Lourenço, enquanto princípio basilar
da criação heteronímica que está aqui patente e que nos leva a pensar que temos em
Orpheu o grande momento de afirmação da originalidade de um processo criativo
onde a alteridade e a pluralidade são fenómenos da linguagem em exercício radical.
É a linguagem que assume a função essencial de pôr os heterónimos em relação
dialógica de linguagem e de pensamento como o têm mostrado os trabalhos de Dionísio
Vila Maior (VILA MAIOR, D., 1994, 2012). É no fundo o que podem alegorizar as
veladoras, cujos discursos se constituem naquilo que se pode designar com Dominique
Maingueneau de cenografias de enunciação (MAINGUENEAU, D., 2004: 190-202), na
confluência das quais surge a figura do marinheiro, toda de ficção, out of the world, mas
com poderosa força de realidade e de concretude, à imagem dos heterónimos.
Derrogando dicotomias seculares (vida/morte, realidade/sonho, visível/invisível,
Pessoa opera através da heteronímia uma união íntima entre os dois sentidos da
experiência humana – racional e existencial, o que lhe permite outrossim experimentar
diferentes modos de sentir e de pensar. O palco mental também é experimental e torna-se
assim experiência vital, fonte e meio de conhecimento que permite corporizações
numerosas e contrárias e, em última análise, justifica o gesto do poema enquanto
fazer – poiein –, enquanto «cálculo» e enquanto «acaso», enquanto invenção de novas
formas.
Não se trata, na perspectiva de Diaz, de justificar a obra pela vida, mas antes de
acrescentar ao estudo da literatura como jogo ou invenção a possibilidade de
identificação da personalidade literária que a concebeu, que não se confunde com
o perfil social e psicológico do autor, mas entretece com este uma «liaison intime»
(Idem: 104), tanto mais a partir do século XIX em que a literatura se tornou uma
«aventura existencial», conforme explica o autor a partir de vários exemplos da
Literatura francesa, com destaque para Proust. Afinal, é o homem quem cede a
palavra ao artista, e nesse desdobramento em suma bastante teatral, o que escreve
permanece em ressonância com aquele num encontro híbrido de singularidade e
de distanciamento, de ficção e de dicção, como propôs Gérard Genette (GENETTE,
G., 1994) que transcende o homem e in fine a própria obra. Este processo dinâmico
prossegue na leitura, num devir contínuo que permite aquela «coalescência de vários
tempos numa dada unidade de tempo», como disse Manuel Gusmão (GUSMÃO, M.,
2011: 546), e que faz do poema, no sentido lato, aquela «construção antropológica
aberta» (Idem: 182) que dá ao leitor a «possibilidade […] se transformar [e] de ser
transformado por aquilo que lê» (Idem: 186). Do ponto de vista hermenêutico,
esta abertura, já preconizada por Umberto Eco e as teorias da recepção de Jauss e
Iser nos anos oitenta, contracena com o Barthes do Plaisir du texte (BARTHES, R.,
1973), que mais explicitamente manifesta a viragem da famigerada «mort de l’auteur»
(Barthes, R., 1968) para o novo paradigma da leitura e do leitor, na crítica do
último quartel do século XX. Desta sorte, a leitura literária rompeu com as pretensões
objectivistas do formalismo, aspecto já apontado pelo Barthes de Critique et Vérité
aludindo à «eternidade» da obra de arte literária, realizada no movimento dinâmico
da leitura, assente na linguagem e por isso num processo de inovação semântica que
ultrapassa e de certo modo contradiz as interpretações literais, porquanto releva do
«segundo grau» e até do «sonho»:
[U]ne œuvre est «éternelle», non parce qu’elle impose un sens unique à des hommes
différents, mais parce qu’elle suggère des sens différents à un homme unique, qui parle
toujours la même langue symbolique à travers des temps multiples : l’œuvre propose,
l’homme dispose.
Tout le lecteur sait cela, s’il veut bien ne pas se laisser intimider par les censures de la lettre :
ne sent-il pas qu’il reprend contact avec un certain au-delà du texte, comme si le langage
premier de l’œuvre développait en lui d’autres mots et lui apprenait à parler une seconde
langue ? C’est ce qu’on appelle rêver. Mais le rêve a ses avenues, selon le mot de Bachelard,
et ce sont ces avenues qui sont tracées devant le mot par la seconde langue de l’œuvre. La
littérature est exploration du mot. (BARTHES, R., 1966: 51-52)
A doença em Fernando Pessoa: cenografias discursivas e consciencialização ficcional 141
em não se reflectir que na literatura – visto que a sua matéria, a linguagem, é o veículo de
todas as emoções, sobretudo das mais profundas, das que não podem caber na acção, das
que excedem a capacidade da vontade – se reflectem os temperamentos, isto é as somas das
emoções mais profundas, dos que por ela se exprimem (LOPES, T. R., 1990: 55)
1 Como é o caso da medicina narrativa, movimento nascido nos Estados Unidos na tripla dimensão de
investigação, formação e prática médica por acção de Rita Charon (ver Charon, R., 2006. Narrative Medicine:
Honoring the Stories of Illness. Oxford, Oxford University Press). Em Portugal, desenvolve-se actualmente
A doença em Fernando Pessoa: cenografias discursivas e consciencialização ficcional 143
Bibliografia
Bibliografia activa:
PESSOA, Fernando (2012). Histórias de um raciocinador. Lisboa: Assírio &Alvim.
PESSOA, Fernando (2010). O Marinheiro [Introdução, estabelecimento de texto e
notas de Claúdia F. Souza]. Lisboa: Edições Ática.
PESSOA, Fernando (2009). Sensacionismo e Outros ismos. Edição de Jerónimo
Pizarro. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda.
PESSOA, Fernando (2006). Escritos sobre Génio e Loucura, edição crítica de
Fernando Pessoa, vol. VII, Tomos I e II. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da
Moeda.
PESSOA, Fernando (1980) Textos de Crítica e de Intervenção. Lisboa: Edições
Ática.
PESSOA, Fernando (1982). Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Lisboa:
Edições Ática.
no âmbito do Projecto interdisciplinar «Narrativa & Medicina» sediado no Centro de Estudos Anglísticos
da FLUL, tendo dado origem a vários trabalhos. Entre os mais recentes, ver FERNANDES, Isabel (2015).
«Leituras holísticas: de Tchékhov à Medicina Narrativa» Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu,
vol.19 no. 52 (Jan./Fev.), pp. 71-82 e CABRAL, Maria de Jesus (2015). «O que me diz este corpo? Contributos
do modelo teatral para a Medicina Narrativa», in Barbosa, António (ed.). Narrativa e Bioética. Lisboa, Centro
de Bioética da Faculdade de Medicina, da Universidade de Lisboa, pp. 105-116.
144 100 Orpheu Maria de Jesus Cabral
Bibliografia passiva:
Barthes, Roland (1978) Leçon. Paris: Editions du Seuil.
Barthes, Roland (1973). Le Plaisir du texte. Paris: Éditions du Seuil.
Barthes, Roland (1966). Critique et vérité. Paris: Éditions du Seuil.
Cabral, Maria de Jesus (2012). «Théâtre(s) sous un crâne: Mallarmé et
Pessoa (d’Igitur au Faust, tragédie subjective)», in CABRAL, Maria de Jesus,
DOMINGUES, João da Costa, (Res) sources de l’Extravagance, Carnets IV, pp.
191-210. URL http://carnets.web.ua.pt.
Cabral, Maria de Jesus (2010). «‘Uma grande sombra que sente e se não vê’:
Belkiss nos trilhos da Literatura dramática simbolista», Máthesis, nº 19, Viseu,
pp. 77-95.
Cabral, Maria de Jesus (2007). «Mallarmé, Maeterlinck, un théâtre d’entre-deux»,
Les Cahiers Stéphane Mallarmé, vol. 4. Oxford, Berlin: Peter Lang, pp. 5-46.
Damasio, António (1994). O Erro de Descartes. Lisboa: Europa América.
Diaz, José-Luis (2011). L’Homme et l’œuvre. Paris: PUF.
Genette, Gérard (1991). Fiction et diction. Paris: Editions du Seuil.
Gladieu, Marie-Madeleine, Pottier, Jean-Michel, TrouvÉ, Alain (2013).
L’Arrière-texte : pour repenser le littéraire. Peter Lang, ThéoCrit, vol. 8.
Gusmão, Manuel (2011).Tatuagem e Palimpsesto. Lisboa: Assírio & Alvim.
Krabbenhoft, Kenneth (2011). Fernando Pessoa e as doenças do fim de século.
Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda.
Lopes, Maria Teresa Rita (1977). Fernando Pessoa et le drame symboliste héritage
et création. Paris: Fundação Calouste Gulbenkian / Centro Cultural Português.
Lopes, Teresa Rita (1990). Pessoa por Conhecer – Textos para um Novo Mapa.
Lisboa: Estampa
LOURENÇO, Eduardo (1987). «Pessoa: une théatralité sans thêatre», Arquivos
do Centro Cultural Português, vol. XXIII, Lisboa-Paris: Fundação Calouste
Gulbenkian, pp. 753-758
A doença em Fernando Pessoa: cenografias discursivas e consciencialização ficcional 145
Piero Ceccucci
Universidade de Florença
O verdadeiro rosto de Orpheu não pertence nem aos que o inventaram nem aos que,
fascinada ou distraidamente, experimentaram a necessidade de o contemplar. Pertence
à forma mesma do presente sempre outro e sempre futuro, à sua específica maneira
de exorcisar o seu próprio enigma ou de o ignorar ignorando-se. Desse presente ou
presente-futuro poderá até descer sobre Orpheu aquele “esquecimento” que é o tributo de
tudo o que existe ao que não existe. Todavia, nem nesse esquecimento (para outros que
não nós) Orpheu perderá a sua imperdível figura. Ela mesma emprestou voz humana, tanto
quanto nela cabe, à visão da existência como “esquecimento”. E quem o esquecer nela se
lembrará (LOURENÇO, E., 1975: 9).
2 Foi publicado em 1984, primeiro numa edição fac-similada das Edições Nova Renascença, depois, numa
cuidada crítica textual pela mão de Arnaldo Saraiva, pelas Edições Ática, em julho do mesmo ano. Para
informações mais detalhadas sobre as primeiras edições de Orpheu 3, vd. a «Avant-propos», ainda de Arnaldo
Saraiva, colocado no espaço paratextual das edições em questão, nas pp. III-XLIV.
Colorar o sonho, reaver a inocência. Pós-Simbolismo e Modernismo nos textos poéticos almadianos no Orpheu 149
uma prosa breve, compacta, que é por sua vez uma estampa de cigana. A cena é ainda
romântica: um muro branco de cemitério, em que se apoia esbeltamente a figura exótica:
Mulher-objeto, mulher-animal, mulher-desejo, a sua descrição obedece de perto ao
cânone romântico. E até usa aqui o poeta-pintor, na descrição do seu corpo – corpo de
beleza estranha, corpo escuro e ferino de mulher-natureza – estilemas que são do mais
óbvio cariz romântico (Id.: 50-51).
3 Na elaboração destas breves notas, utilizarei para os dois textos e para todas as citações, que irei efetuando, a
ortografia em vigor no tempo de Orpheu.
150 100 Orpheu Piero Ceccucci
Não só em ‘Mima-Fataxa’, mas em outros textos ainda aflora, por toda a parte, de
modo muito nítido, todo um conjunto de estilemas românticos, como, por exemplo,
para citar um entre muitos outros, em Sèvres Partido, no qual – não obstante
eloquentes referências simbolistas, já encerradas no título, evocadas pelo narrado
inscrito no desenho de uma fina porcelana despedaçada – transitam nítidos elementos
românticos de entoação fabulosa, como, por exemplo, no texto seguinte:
A amazona negra era bela como o sol e triste como o luar, e ninguém acredita mas era
pastora de galgas. Figura negra muito esguia, cipreste procurando vagas na margem do
caminho.[...] Sobre a relva, na sombra arrendilhada das folhas amarelecidas dos plátanos
onde os repuxos do tanque cuspiam lágrimas de vidro, a Amazona negra sonhava o seu
Príncipe encantado e a galga do dia dormia quieta, estendido o focinho no ventre d’Ela.
(NEGREIROS, J. de A., 1993: 69)
4 O poeta não inseriu o texto “Silêncios”, que se publica na edição Obras Completas – Vol. I, cit., p. 67; e que,
como recorda Ellen W. Sapega, talvez composto em 1913, tinha sido publicado em Portugal Artístico, n° 1,
Março de 1914.
Colorar o sonho, reaver a inocência. Pós-Simbolismo e Modernismo nos textos poéticos almadianos no Orpheu 151
para além do título, pelo nome do autor, precedido pela indicação da própria
qualificação profissional de desenhador, a que faz eco iterativamente à de pintor posta
ao lado da assinatura: «José de Almada Negreiros – Pintor» (NEGREIROS, J. de A.,
1990: 39)5 do texto, que segue a «Introdução» no l° volume da INCM, de Jorge de Sena
(SENA, J. 1982)6 – mas também a presença em muitas figuras encenadas (os Pierrots,
os Arlequins), imbuídas dos sucos, no estilo linear, claro e exacto, do Cubismo de
Picasso, quase a querer sublinhar com orgulho a sua escolha de vida profissional para
as artes plásticas.
De resto, o mesmo título de Frizos, que acolhe e apresenta o conjunto dos rápidos
contos, como segmentos constitutivos de um único quadro pictórico, convoca um dos
elementos mais caros à gramática do imaginário iconográfico do Simbolismo plástico,
remetendo para um signo ornamental da antiga arte arquitetónica grega7.
O lema, assumido pelo autor, não se limita, porém, a uma simples referência de
intenção decorativa, embora importante na estratégia comunicativa simbolista, tanto
em literatura como nas artes figurativas, mas apresenta-se, tout de abord, para uma
maior e mais pontual significação e descodificação do discurso poético veiculado,
como vontade de dissociar o signo, inscrito na imagem, do seu sentido codificado
para o transformar em visão alegórica, enunciativa de uma vasta e polivalente gama
de significados alusivos ou evocativos, como o sentido do belo, inscrito no lema
frizo, que emoldura a cena envolta em símbolos ambíguos e inesgotáveis, como os
do ornamento em si, do luxo, dos ouros, das pedras preciosas, das joias, dos tecidos
requintados, das sedas, que em Itália – para dar um exemplo – tinham encontrado
um inimitável cantor em Gabriele D’Annunzio, portador de um hedonismo sensual
e caprichoso (D’ANNUNZIO, G., 1982: 55-56)8, enquanto, para dar um outro rápido
9 Embora a crítica mais recente tenda a circuncrever a influência do futurismo italiano sobre a Scena do
Ódio, não podemos não reconhecer que estudos autorizados, muitas vezes nos anos em que o texto apareceu
154 100 Orpheu Piero Ceccucci
Zutt! Bruto-parvo-nada
Que Me roubaste tudo:
‘té Me roubaste a Vida
E não Me deixaste nada!
Nem Me deixaste a Morte!
Zutt! Poeira-pingo-microbio
Que gemes pequenissimo gemidos gigantes,
Gravido de uma dor propheta colossal!
Zutt! Elefante-berloque parasita do não presta!
Zutt! Buguganga-cellulode-bagatella!
Zutt! bêsta!
Zutt! bacaro!!
Zutt! merda!!! (NEGREIROS, J. A. de, 1984: 62-63)
em edição completa, tenham sido realizados por reconhecidos estudiosos do Modernismo português, que
enquadraram o poema em questão, mesmo não ignorando a presença de outras correntes de vanguarda, no
ventre da poética futurista. Alguns nomes entre outros: José-Augusto França, Fernando Cabral Martins, Rui
Mário Gonçalves.
Colorar o sonho, reaver a inocência. Pós-Simbolismo e Modernismo nos textos poéticos almadianos no Orpheu 155
(exemplar, dizia eu, esta estrofe), pois, nela o sujeito, tanto na vincada anáfora Zutt
que, no som onomatopeico evocado pelo silvo de um chicote, acentua a função
reiterada da linguagem ultrajante e particularmente depreciativa, codificada pelo
Futurismo europeu, gritando o seu raivoso ódio, carregado de insultos, contra o
«bruto-parvo-nada» burguês, encenando a técnica enunciativa das palavras em
liberdade e da desestruturação da sintaxe.
Além, no entanto, da arrogância do impropério, o estilo breve no seu discurso
poético, como na própria vanguarda europeia, incluindo obviamente o Futurismo,
exterioriza-se em linguagem inovadora e alegórica, transformando-se em ato
performativo de militância, não privo de uma sua poesia própria ou expectativa
plástica. Projetado para tingir, marcar o evento literário, representado por Orpheu, a
Scena do Ódio, como poema de vanguarda destinado à comunicação e ao envolvimento
de um destinatário, tudo a classificar e definir como alvo, privilegia a palavra e os
sintagmas, que se tornam cifra escritural autónoma, paroxística, que se irradia, nos
clarões de um istantâneo de um ápice, de uma figura, em todas as suas possibilidades
evocativas.
Paradigma disto é o próprio incipit do poema:
10 «The first step the poet must take is to create himself, and the anti-social individual. It may be characterized
as a swaggering, chest-thumping posture os egocentric self-inflation.» Vd. MCNAB, G., 1979: 41-42.
156 100 Orpheu Piero Ceccucci
11 «[…] será convergente e divergente da de Fernando Pessoa, entre Mito regressivo e utopia messiânica, alfa e
omega da modernidade portuguesa. […] Nasce daqui a fuga para uma teleologia trans-histórica, a afirmação
do primado da Poética sobre a Política, do Mito sobre a História» [tradução minha].
Colorar o sonho, reaver a inocência. Pós-Simbolismo e Modernismo nos textos poéticos almadianos no Orpheu 159
Coisa esta, que Almada tinha demonstrado ter compreendido bem, quando precisou:
Bibliografia
Bibliografia Ativa
NEGREIROS, José Almada de (1935). «Portugal no mapa da Europa», in:
Sudoeste, n° 1, Lisboa, Junho de 1935. Reproduzido in: NEGREIROS, Almada
de (1992). Obras Completas (Ensaios, Vol. V). Lisboa: INCM, pp. 65-67.
NEGREIROS, José Almada de (1965). «Orpheu 1915-1965». In: NEGREIROS,
José Almada de (1993). Obras Completas, Vol. VI – Textos de Intervenção.
Lisboa: INCM, p. 174.
NEGREIROS, José Almada de (1984). A Cena do Ódio (Edição Crítica de Arnaldo
Saraiva). Lisboa: Edições Ática.
NEGREIROS, José Almada de (1990). «Frizos – Sevres Partido». In: Obras
Completas – Vol. I – Poesia. Lisboa: INCM, p. 69.
PESSOA, Fernando (2000). Crítica – Ensaios, Artigos e entrevistas (org Fernando
Cabral Martins). Lisboa: Assírio e Alvim.
160 100 Orpheu Piero Ceccucci
Bibliografia Passiva
D’ANNUNZIO, Gabriele (1982). «Lettera a Maffeo Barberini Sciarra Colonna».
apud M.M. Lamberti, 1870-1915: i mutamenti del mercato e le ricerche degli
artisti, in Stora dell’Arte italiana, Parte seconda. Dal Medioevo al Novecento.
Volume terzo. Il Novecento, Torino: Einaudi, pp. 55-56.
FRANÇA, José-Augusto (1989). «Préface a ‘La scène de la haine’: Un poème-exorcisme».
In: La scène de la haine, Paris: Librairie José Corti, pp. 7-14.
HATHERLY, Ana (1975). «60 anos do Orpheu». In: Colóquio/Letras, n° 26, Lisboa:
Ed. Fundação C. Gulbenkian, pp. 5-22.
LOURENÇO, Eduardo (1975). «60 anos do Orpheu». In: Colóquio/Letras, n° 26,
Lisboa: Ed. Fundação C. Gulbenkian, pp. 5-22.
LOURENÇO, Eduardo (1985). «Almada ensaísta?». In: Almada, Actas do Colóquio
sobre Almada Negreiros, Lisboa Outubro de 1984. Lisboa: Edições Fundação
Calouste Gulbenkian, pp. 79-85.
MACNAB, Gregory (1975). «Sobre duas “intervenções” de Almada Negreiros». In:
Colóquio/Letras, n°35, Lisboa, Edição Fundação C. Gulbenkian, pp. 32-40.
MACNAB, Gregory (1979). «The Poet Strikes Back: Almada-Negreiros in the Cena
do Ódio». In: Luso-Brazilian Review, Vol. 16, n 1, University of Wisconsin Press,
pp. 41-52.
MAGALHÃES, Isabel Allegro de (1987). «Almada. ‘Mima-Fataxa’ em dois tempos».
In: Colóquio/ Letras, n° 95, Lisboa: INCM, pp. 49-59.
MARINHO, Maria de Fátima (1998).«Frisos ou o Desgosto de Colombina».
In: Almada Negreiros: A Descoberta como Necessidade, Actas do Colóquio
Internacional, Porto 12-14 de Dezembro de 1996, Porto: Edição Eng. António
de Almeida, pp. 391-400. (Artigo reproposto em Colóquio/Letras, n° 149/150,
Lisboa: Edições Fundação Gulbenkian, 1998, pp. 63-71).
RIVAS, Pierre (1989). «L’écho du silence», Postface a NEGREIROS, J. Almada de. La
Scène de la haine. Paris: Librairie José Corti, pp. 84-85.
SAPEGA, Ellen W. (1992). «Os Limites da Narrativa Almadiana: da Influência
simbolista em ‘Frisos’ à Experiência Futurista de ‘Saltimbancos’». In: Ficções
Modernistas: Um Estudo da Obra em Prosa de José de Almada Negreiros
1915-1925. Lisboa: ICALP, pp. 21-29.
SENA, Jorge (1982). «Almada Negreiros Poeta». In: Nova Renascença, n° 7, Vol.
2. apud: NEGREIROS Almada de (1990). Obras Completas – Vol. I – Poesia.
Lisboa: INCM, pp. 9-33.
SILVA, Celina (1994). «Nos Labirintos – Frisos». In: Almada Negreiros. A Busca de
uma Poética da Ingenuidade. Porto: Edição Fundação Eng. António de Almeida,
pp. 102-103.
Elementar, meu caro Lúcio!
A leitura que proponho hoje para A Confissão de Lúcio nasceu de um ensaio que
escrevi há alguns anos1 e que tinha por centro de interesse o conceito de voluptuosidade.
Ainda hoje este me parece ser esse o sintagma gerador das mais variadas relações
semânticas dessa primorosa novela de Mário de Sá-Carneiro, ela mesma tão exemplar
do contexto decadentista finissecular que deixou marcas indeléveis nos artistas do
entrante século XX. A hipótese inicial permitiria ler a obra como um «ensaio sobre
a voluptuosidade» que se desdobrasse em três tempos: a teorização, a encenação e a
experimentação.
No que tange aos personagens da novela, composta de não mais de seis actantes
de maior ou menor importância em termos consequentes para a trama, uma figura
feminina, na mais pura tradição orgíaca das bacantes, emerge da cena intelectual de
uma Paris fin-de-siècle para desencadear, contra todas as convenções, o conceito de
arte da volúpia ou da volúpia como arte, muito antes que do simples exercício da
voluptuosidade na arte.
Do lado oposto da luxúria, dos amplexos brutais, dos beijos úmidos, das carícias
repugnantes e viscosas, essa voluptuosidade é a experiência da con-fusão radical dos
sentidos que escapam, aliás, a qualquer configuração referencial, por se constituírem
antes como intangibilidades que ligam, num mesmo excesso, a sensorialidade e a
espiritualidade, o desejo e a morte, Eros e Thanatos, como opostos que coabitam.
A «americana», como fica conhecida, é, portanto, a Diotima de Sá-Carneiro, para
quem a espiritualização da volúpia seria o estágio mais sublime da beleza ideal, ou em
palavras suas, dos «desejos espiritualizados em beleza». Numa fascinante pedagogia,
dela se ouve a lição da volúpia das correspondências sinestésicas em que se cruzam
impressões de planos diversos: o físico e o moral, o concreto e o abstrato, o sedutor
e o terrificante, identificados pela voluptuosidade do fogo, pela perversidade esguia da
água, pelos requintes viciosos da luz.
O segundo passo dessa inusitada personagem feminina seria o de transformar
o conceito que veiculara verbalmente em grande festa. Mas festa aurática, nunca
grotesca, festa de apagamento dos limites, em que o mundo masculino do dandysmo
mergulha como simples espectador de uma incorpórea fisicalidade de refinadíssimos
sentidos. A festa é uma cena de teatro de fulguração homoerótica, com mulheres
a funcionarem como actantes secundárias dos excessos experimentados pela
«americana», aquela afinal sobre quem todos os olhares convergem e cujo orgasmo
final metaforiza-se como desaparecimento e morte. Diz o texto: «... Até que por fim,
num mistério, o fogo se apagou em ouro e, morto, o seu corpo flutuou heráldico sobre
as águas douradas – tranquilas, mortas também»2 (CL: 45).
Enfim, como a demonstração de uma tese que se preparara em conceito e
mise-en-scène, os factos que se seguem à cena dessa festa triunfal constituiriam a fase
da experimentação, na escala individual, dos êxtases e dos mistérios que compõem
o enredo da narrativa confessional de Lúcio. Passar do inefável para a linguagem é
possivelmente o seu modo de tentar perceber com outras categorias – que não as da
racionalidade – o exercício dessa erótica transgressora.
A experiência homoerótica feminina – maravilha / mirabilia para espectadores eleitos
– é o que dará suporte à experiência de afeto dos dois protagonistas masculinos – Lúcio e
Ricardo de Loureiro – cuja atração mútua, travestida de amizade, só logrará completar-se
com o advento algo surpreendente de um terceiro elemento – já agora feminino – que
será o modo de normalizar, ou de normatizar, uma transgressão sexual através de uma
outra transgressão de base psicótica que consiste na produção de um suplemento de
personalidade, de um desdobramento da psique na imagem de um duplo de si.
2 SÁ-CARNEIRO, Mário. A Confissão de Lúcio. Lisboa, Assirio & Alvim, 1998. Todas as citações serão a partir
de agora indicadas com as letras CL seguidas do número da página.
Elementar, meu caro Lúcio! 163
3 FREUD, S., 2010: 352 («O inquietante»). Em algumas traduções o título aparece como «O estranho».
4 Cf Otto Rank. Don Juan et le Double. http://classiques.uqac.ca/classiques/rank_otto/don_juan/rank_
donjuan_double.pdf
164 100 Orpheu Teresa Cristina Cerdeira
«Ah! meu querido Lúcio [...] como eu sinto a vitória duma mulher admirável, estiraçada
sobre um leito de rendas, olhando a sua carne toda nua...esplêndida...loira d’álcool! A carne
feminina – que apoteose! [...] E lembra-me então um desejo perdido de ser mulher – ao
menos para isto: para que num encantamento pudesse olhar as minhas pernas nuas, muito
brancas, a escoarem-se, frias, sob um lençol de linho».
5 Cf. Hoffman, «L'histoire du reflet perdu», tomo II, cap. III, dos Contos fantásticos. Mas seria um excelente
desenvolvimento da pesquisa revisitar autores brasileiros como Machado de Assis ou Guimarães Rosa. Em
ambos os casos, «O espelho», de Papéis avulsos, e o conto medial das Primeiras estórias, com o mesmo título
do anterior, podem bem fundamentar em metáfora a perquirição sobre a identidade do sujeito.
Elementar, meu caro Lúcio! 165
Porém, refletindo melhor, descobri que em realidade o meu amigo não me dissera nada
disto. Apenas eu – numa reminiscência muito complicada e muito estranha – me lembrava,
não de que verdadeiramente ele mo tivesse dito, mas de que, entretanto, mo devera ter dito
(CL: 77).
6 Sobre esse epifenômeno, Otto Rank (1932) refere, entre outros tantos exemplos mais ou menos contemporâneos
da novela de Sá-Carneiro, o filme «O Estudante de Praga» de Hans Heinz Ewers, em que Balduin, depois de
um pacto fáustico, aceita que lhe roubem a sua sombra até que ela reiteradamente reaparece diante dele como
seu duplo macabro, destituindo-o dos seus afetos. Ao perceber que já não é capaz de ver a sua imagem no
espelho, atira no fantasma e morre do mesmo tiro. Já no conto «Le Horla» de Maupassant, o personagem sem
causa aparente (o que redobra a angústia e o sentimento de absurdo) se expõe a alucinações sucessivas ao se
sentir perseguido por uma espécie de fantasma de si próprio, vê sua própria imagem desaparecer no espelho
do quarto, e, ao tentar eliminar a figura incorpórea pelo fogo, destrói inutilmente a casa, torna-se o assassino
dos criados que ali ficaram aprisionados, até concluir que, contrariamente a si mesmo, exposto humanamente
à morte a cada instante, Le Horla, «corpo feito só de Espírito, não precisava temer nem os males, nem os
ferimentos, nem as enfermidades, nem a destruição prematura».
Elementar, meu caro Lúcio! 167
«Uma noite, porém, finalmente, uma noite fantástica de branca, triunfei! Achei-A... sim, criei-A!...
criei-A... Ela é só minha – entendes? – é só minha!... Compreendemo-nos tanto, que Marta é
como se fora a minha própria alma. Pensamos da mesma maneira; igualmente sentimos.
Somos nós-dois... Ah! e desde essa noite eu soube, em glória soube, vibrar dentro de mim
o teu afeto – retribuir-to: mandei-A ser tua! Mas, estreitando-te ela, era eu próprio quem te
estreitava... Satisfiz a minha ternura: Venci! E ao possuí-la, eu sentia, tinha nela, a amizade
que te devera dedicar – como os outros sentem na alma as suas afeições. Na hora em que a
achei – tu ouves? – foi como se a minha alma, sendo sexualizada, se tivesse materializado. E
só com o espírito te possuí materialmente! Eis o meu triunfo... Triunfo inigualável! Grandioso
segredo!...»
Esses dez anos esvoaram-se-me como dez meses. É que, em realidade, as horas não podem
mais ter ação sobre aqueles que viveram um instante que focou toda a sua vida. Atingido
o sofrimento máximo, nada já nos faz sofrer. Vibradas as sensações máximas, nada já nos
fará oscilar. Simplesmente, este momento culminante raras são as criaturas que o vivem.
As que o viveram ou são, como eu, os mortos-vivos, ou – apenas – os desencantados que,
muita vez, acabam no suicídio. (CL: 12)
Se se crê nele como narrador, é esta a história. Acontece que essa sua experiência
de rememoração vem comprometida pela referência confessada a uma supressão
momentânea de sua própria lucidez no momento do crime e, nesse sentido, por uma
incapacidade de julgamento imparcial e objetivo. Acumulam-se no seu discurso
significantes dignos de nota, tais como assombro e mistério; outros ainda em que ele
próprio se define como aterrado, possesso de medo, olhos fora das órbitas, cabelos erguidos;
ou que revelam que, diante da cena climática, a sua opção fora a de precipitar-se para
fora, numa carreira louca. (CL: 122-3). A tudo isso acrescente-se, no que tange à técnica
narrativa, um hiato composto visualmente por duas linhas de pontos de suspensão,
evidente momento de espera a que se segue, como num ato falho, a confissão de sua
alucinação: «– Quando pude raciocinar, juntar duas idéias, em suma quando despertei
deste pesadelo alucinante que fora só a realidade, a realidade inverossímil – achei-me
preso num calabouço do Governo Civil [...]» (CL: 123 grifos meus). Leve-se portanto
em conta a dúvida sobre a sua incapacidade de julgamento.
Há ainda um outro detalhe singular – uma pista para um thriller policial – que
ajuda a comprometê-lo imageticamente com a morte de Marta/Ricardo, e que vem
à tona, malgré lui, através de um gesto passível de leitura psicanalítica e revelado por
seu próprio discurso. Detalhe não desprezível, Lúcio, escritor impotente, escrevera
uma peça de teatro, que ele tinha ainda por inacabada mas cuja encenação teria sido
prometida para os palcos de Lisboa, o que apontaria assim para um seu possível triunfo.
Às vésperas da primeira representação, imbuído de uma fúria de inspiração
aparentemente inexplicada, Lúcio anuncia ao metteur en scène uma nova proposta
de desenlace para a peça. O que essa peça é, o que essa alteração representa não
ficamos a sabê-lo com clareza para além do fato de, na primeira versão, morrer
o personagem do escultor, e de a segunda versão – que Lúcio julgava «uma ideia
belíssima, grande, que [o] entusiasm[ava]» (CL: 115) – ter sido julgada pelo
empresário «um disparate».
O facto é que Lúcio recusa a montagem já feita e, como não consegue persuadir
o metteur en scène da superioridade da sua nova versão, lança o manuscrito da sua
obra – cujo título é A Chama – para dentro de uma fogueira, destruindo-a: a Chama
na chama, como uma espécie de fatalidade tautológica. Falha o artista incompleto por
170 100 Orpheu Teresa Cristina Cerdeira
mesma Marta uma fulguração de que ele fora incapaz de se apropriar. Ricardo a
triunfar em Marta. Marta a escoar pelos dedos de Lúcio, como mera «reminiscência
longínqua», logrando tão somente com ela uma aventura passageira, o que é, aliás,
uma reverência intertextual à «passante»9 de Baudelaire, a ponto de o poema das
Flores do mal – demasiado conhecido para exigir que o leiamos para evocá-lo – poder
servir, quase verso a verso, como uma interpretação da fugacidade de sua experiência
afetiva: fugitiva beleza, majestade, fausto, nobreza, agilidade, relâmpago e noite, olhar
lívido onde nasce o furacão, dor que fascina e prazer que mata. Diante dela, Lúcio – tal
como o poeta das «Correspondências» – de repente renasce, ao mesmo tempo que dela
tudo ignora, ela que ele teria amado, ela que o sabia.
Ouçamos o texto:
Com efeito, ainda hoje, às tardes maceradas, eu não sei evitar uma reminiscência longínqua,
a saudade violeta de certa criaturinha indecisa que mal roçou a minha vida. Por isso só:
porque ela me beijou os dedos; e um dia, a sorrir, defronte dos nossos amigos, me colocou
em segredo o braço nu, mordorado, sobre a mão... E depois logo fugiu da minha vida,
esguiamente, embora eu, por piedade – doido que fui! – ainda a quisesse dourar de mim
num enternecimento azul pelas suas carícias (CL: 108)
9 «La rue assourdissante autour de moi hurlait. / Longue, mince, en grand deuil, douleur majestueuse, / Une
femme passa, d’une main fastueuse / Soulevant, balançant de feston et l’ourlet. // Agile et noble, avec sa jambe
de statue. / Moi je buvais, crispé comme un extravagant, / Dans son œil, ciel livide où germe l’ouragan, / La
douleur qui fascine et le plaisir qui tue. // Un éclair… puis la nuit ! – Fugitive beauté / Dont le regard m’a fait
soudainement renaître, / ne te verrai-je plus que dans l’éternité ? // Ailleurs, bien loin d’ici ! trop tard peut-être !
/ Car j’ignore où tu fuis, tu ne sais où je vais, / o toi que j’eusse aimée, ô toi qui le savais !»
O fascínio do poema de Baudelaire «A une passante» (Les Fleurs du Mal) gerou outras cenas poéticas nele
inspiradas como «A débil» de Cesário Verde, aquela com quem o poeta se compraz, não pela suavidade
que fascina e pelo prazer que mata, mas por intuir nela o poder nascido de uma inteireza moral, de uma
força natural e de uma pureza rural, elementos capazes de contaminar positivamente a doença de uma
metrópole ameaçadora. Tão diversas e tão similares, são ambas passantes, fugazes, alumbramentos, como em
reminiscência Marta aparecera para Lúcio.
Acentue-se aqui, como um parêntesis, que Baudelaire e Cesário Verde eram dois poetas que estavam
evidentemente no horizonte das expectativas literárias de Sá-Carneiro, de tal modo que não parece aleatória a
evocação da «passante» e da «débil» na composição «criaturinha indecisa que mal [lhe] roçou a vida».
172 100 Orpheu Teresa Cristina Cerdeira
10 «C’est un autre amour qui ébranle Don Juan, et celui-là est libérateur. Il apporte avec lui tous les visages du
monde et son frémissement vient de ce qu’il se connaît périssable» (CAMUS, A., 1966: 102).
174 100 Orpheu Teresa Cristina Cerdeira
Bibliografia
Como introdução ao tema, pretende-se aqui traçar uma síntese da situação portuguesa
no contexto da Primeira Grande Guerra, em planos diversos mas complementares:
contexto geral da política interna; conflitos militares em Moçambique e em Angola;
relações diplomáticas até ao corte com o Império Alemão; reflexos da guerra antes e
depois da intervenção militar de Portugal na guerra europeia; negociações diplomáticas,
no contexto do conflito europeu e africano, sendo que, no que respeita a África, a situação
portuguesa assumiu desde logo, no caso do conflito de Maziua em Moçambique (24 de
agosto de 1914) e de Naulila em Angola (17 de novembro de 1915), uma intervenção
direta, mesmo antes da declaração de guerra e do rompimento das relações diplomáticas
com a Alemanha e da participação na guerra europeia.
Recorde-se que, em 1915, no plano interno, assistimos ao final do mandato
presidencial de Manuel de Arriaga, mandato iniciado em setembro de 1911 e que é
interrompido, por renúncia de Arriaga, em maio de 1915, dando lugar a um espécie de
presidência interina, chamemos-lhe assim, de Teófilo Braga, de junho a novembro de
1915, data em que Bernardino Machado toma posse como Presidente da República.
E em 1915 tivemos entretanto 5 ministérios: Vítor Hugo de Azevedo Coutinho,
(governo a quem os inimigos políticos chamavam “Os Miseráveis de Vítor Hugo”),
Pimenta de Castro (que os inimigos qualificavam como ditadura militar), José de
Castro e em 29 de novembro de 1915, o início do governo de Afonso Costa, já no
mandato de Bernardino Machado. Mas, como vimos, o ano político foi entretanto
marcado e dominado, ainda antes da formalização do estado de guerra com a
Alemanha, pelo início das hostilidades com o Império Alemão em Moçambique e
em Angola. As relações diplomáticas não se rompem imediatamente porque não
176 100 Orpheu Duarte Ivo Cruz
Os heterónimos de Pessoa, conhecemos todos muito bem. Mas vale a pena lembrar
que Violante de Cisneiros era o escritor Armando Cortes Rodrigues.
Este número do Orpheu contém a seguinte informação:
Mauro Dunder
USP /CAPES 1
No texto que abre sua narrativa, Lúcio Vaz é categórico: “A minha confissão é um
mero documento” (SÁ-CARNEIRO, M. de, 1988: 6). Em que pese a relação entre a
afirmação e a trajetória da revelação ontológica (como a compreende Heidegger) do
protagonista, bem como a noção de narrativa como representação que envolve o texto
ficcional e as especificidades que envolvem a questão da identidade portuguesa no
projeto de Orpheu, a leitura de A Confissão de Lúcio, de Mário de Sá-Carneiro traz
à baila algumas reflexões sobre como se constroem, ao longo da trama do romance,
um conjunto de imagens reveladoras sobre o pensamento português, não apenas a
1 Doutor em Letras (Literatura Portuguesa) pela Universidade de São Paulo. Investigador aceito pela Faculdade
de Letras da Universidade de Coimbra para Pós-Doutoramento, sob supervisão do Prof. Dr. Carlos Reis.
Membro do Grupo de Pesquisa “Literatura Portuguesa de Autoria Feminina” (USP/CNPq). Professor Assistente
do curso de Letras das Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU). A participação no congresso 100 Orpheu
terá sido totalmente custeada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
180 100 Orpheu Mauro Dunder
Por 1895, não sei bem como, achei-me estudando Direito na Faculdade de Paris, ou melhor,
não estudando. Vagabundo de minha mocidade, após ter tentado vários fins para a minha
vida e de todos igualmente desistido – sedento de Europa, resolvera transportar-me à grande
capital. Logo me embrenhei por meios mais ou menos artísticos, e Gervásio Vila-Nova,
que eu mal conhecia de Lisboa, volveu-se-me o grande companheiro de todas as horas
(SÁ-CARNEIRO, M., 1988: 7).
de uma vida dentro do pensamento europeu, como se Portugal não fosse, de facto, parte
desse continente. Dono de um exotismo calcado em uma postura superficial, pretenso
“cidadão do mundo”, Gervásio Vila-Nova renega, por oposição, o “cidadão português”,
quando se nos dá a conhecer como um artista moderno, cuja identidade é marcada pelo
contraditório, pela valorização do “erro”, pela intensidade com que se nega o tradicional.
Ao dizer que “Gervásio Vila-Nova era aquele que nós olhamos na rua, dizendo:
ali, deve ir alguém” (Id.: 7), o narrador institui o conceito moderno de sujeito: aquele
que se destaca, que confronta, que não se enquadra nas acepções sociais, culturais
e políticas tradicionais. Logo, na linha de pensamento que ora se propõe, Gervásio
Vila-Nova, por ser “alguém”, não cabe em um país cujo orgulho da história é norte
para o pensamento e o comportamento, individual e coletivamente.
Outra afirmação que o narrador faz acerca da trajetória de Gervásio Vila-Nova
relaciona-se com uma questão fulcral na história de Portugal. Segundo Lúcio Vaz,
Gervásio “não foi um falhado porque teve a coragem de se despedaçar” (Id.: 8). A
noção cubista de fragmentação, metaforizada pela imagem de “se despedaçar”, ao
mesmo tempo em que remete à crise do sujeito, confrontado com um mundo em
transformação ao qual é necessário adaptar-se, por meio da quebra de certezas que
sustentavam a relação desse sujeito com o universo em que se insere, sugere também,
no plano nacional, a imagem invertida do que se passa com o império colonial
português – em movimento que se prolongará, a rigor, até depois da Revolução dos
Cravos (1974). O sistema colonial falhou exatamente porque não teve a coragem de
se despedaçar, ou, por outro lado, foi um falhado porque não reconheceu quando – e
como – se despedaçou.
Nesse sentido, torna-se relevante notar que, por um lado, a narrativa de A confissão
de Lúcio transcorre nos últimos cinco anos do século XIX e, por outro, foi escrito em
1913. Esses parâmetros aproximam a narrativa de dois relevantes eventos históricos,
os quais também estão ligados à ideia de esfacelamento, de “se despedaçar”.
A trama se passa na sequência do período marcado pelo ultimatum inglês de 1890,
evento que pode ser interpretado como um dos maiores sinais da crise pela qual passa
– e seguirá passando até depois de 1974 – o sistema colonial português, baseado em
conceitos de posse e poder herdados do período das grandes navegações. Como já
se disse, os efeitos do ultimatum foram bastante devastadores para a concepção de
nação que Portugal carrega, no mínimo, desde o século XV – a de grande império,
de povo predestinado a constituir o “Quinto Império”, sonhado por Dom Manuel,
encampado por Dom Sebastião e pelo povo português ao longo de sua história –,
a ponto de ser considerado pelo filósofo Eduardo Lourenço um trauma fundador, ao
lado da própria criação do Reino, no século XII, e da perda da soberania, após a morte
de Dom Sebastião, em 1580.
Confissões da sociedade portuguesa: o projeto de Orpheu e o início do século XX em A confissão de Lúcio, ... 183
mística, uma vez que foram eventos em torno dos quais pairam questões cuja solução
teria vindo, ao olhar português, da interferência de uma esfera do maravilhoso,
categoria literária ligada à ação de forças externas, de caráter metafísico. Com
o ultimatum, Portugal vê-se diante de uma situação em que tal ação externa não
se apresenta, o que provoca, quando pouco, uma fratura na visão do país sobre si
mesmo.
Quanto ao ano de escrita de A confissão de Lúcio, está há apenas cinco anos do
“Regicídio”, ponto crucial para o desaparecimento do sistema monárquico português,
e a três da instauração da República, em um dos momentos mais críticos da
história recente do país. Desse modo, a própria vinculação do texto do romance às
tendências de vanguarda, especialmente aos princípios fragmentários do Cubismo
e ao viés onírico e inconsciente do Surrealismo, constituiria uma manifestação da
proposta ideológica da geração de Orpheu, qual seja a de desconstrução de toda uma
história, na qual, recorrentemente, a concepção de “vanguarda” esteve relacionada a
um elemento místico, pautada por uma atitude de eterna retomada de um passado
supostamente glorioso, o qual encapsula os valores que, em tese, deveriam sempre
orientar o progresso nacional.
Na esteira desse pensamento, ainda que revestida da ideia de fragmentação do
sujeito, multiplicidade de pontos de vistas e, consequentemente, de possibilidades de
verdade, típica das tendências de vanguarda que permearam a arte da Modernidade,
a constante menção de Lúcio Vaz à nebulosidade e ao mistério que envolviam seu
sentimento por Ricardo e Marta não deixa de apontar para uma das características
do pensamento português que a geração de Orpheu, especialmente Fernando Pessoa,
resgatou mais rigorosamente: a ideia de que a verdade dos eventos esconde-se atrás
de uma bruma de encantamento pode também ser atribuída à maneira como o
povo português interpreta sua história e a formação de sua identidade. A noção de
que o inexplicável, o maravilhoso, como categoria filosófica, permeia os fatos mais
relevantes da história de Portugal, ecoa também em A confissão de Lúcio, como um
dos elementos mais significativos na construção do ponto de vista que o narrador
revela a respeito da realidade em que se insere.
Outro aspecto de A confissão de Lúcio que chama atenção e se relaciona
diretamente com a questão da visão portuguesa sobre o próprio país – e com as
bases do que Miguel Real chamou de complexo pombalino – está em uma espécie de
xenofobia às avessas, uma xenofilia que o romance deslinda, por meio da trajetória
de suas personagens. É em Paris, por exemplo, que Lúcio Vaz vai buscar livrar-se do
brumoso ambiente que lhe provocava o sonho, o inexplicável que lhe encampava a
realidade:
Confissões da sociedade portuguesa: o projeto de Orpheu e o início do século XX em A confissão de Lúcio, ... 185
Entanto, agora já não podia duvidar: vencera. Atravessara a Praça da Concórdia, monumental
e aristocrática, tilitante de luzes...
De novo, ungindo-me de Europa, alastrando-me de sua vibração, se encapelava dentro
de mim Paris, o meu Paris, o Paris dos meus vinte e três anos... (SÁ-CARNEIRO, M. de,
1988: 65)
A sala enchera-se entretanto de uma multidão bizarrada e esquisita. Eram estranhas mulheres
quase nuas nos seus trajos audaciosos de baile, e rostos suspeitos sobre as uníssonas e negras
vestes masculinas de cerimónia. Havia russos hirsutos e fulvos, escandinavos suavemente
louros, meridionais densos, crespos – e um chinês, um índio. Enfim, condensava-se ali bem
o Paris cosmopolita – rastaquouère e genial (Id.: 15)
superioridade, como a “americana fulva” (sob esse ponto de vista, uma voz autorizada),
que assim se manifesta a esse respeito: “Meus amigos, creiam-me, não passam de
uns bárbaros, por mais requintados, por mais complicados e artistas que presumam
aparentar” (Id.: 11).
Ainda com relação a essa espécie de “complexo de inferioridade”, Gervásio Vila-Nova,
personagem representativa de uma arte pautada pela ruptura de tradições, ainda que
ela implique a existência de uma manifestação artística vazia de sentido, na óptica da
lógica formal, apresenta uma crítica ferina à maneira como Portugal enxerga a arte
que produz. Ao citar a declaração de Fonseca, um “pobre pintorzinho da Madeira”,
Vila-Nova define claramente a oposição sobre que se centra sua visão de sua terra: “o
Fonseca diz que é um ofício acompanhar-me. E uma arte difícil, fatigante. (...) Sim,
concordo que a minha companhia seja fatigante. Vocês têm razão” (Id.: 10). Ao que
segue o comentário do narrador, em discurso indireto livre:
Em que pese a ironia da descrição feita por Vila-Nova, tornam-se evidentes traços
do discurso que despreza Portugal, em certa medida: o “pintorzinho da Madeira”,
“pensionista do Estado”, “olhando nostalgicamente o espaço”, remete à imagem de
um artista desconectado das tendências renovadoras por que passa a arte europeia,
vivendo em uma espécie de ranço do passado, ideia que se reforça pela caracterização
final: um “santo rapaz”.
Nota-se, sobretudo, nessa passagem, a ideia de uma arte incapaz de aderir às
tendências do pensamento europeu, civilizado, superior, em que o artista é, ao mesmo
tempo, sujeito e objeto de uma ruptura a qual Portugal, país “não-europeu”, é incapaz
de perceber e promover.
Nesse sentido, é fundamental refletir acerca da divergência, manifestada por sutil
ironia, entre a visão do narrador e a de Gervásio Vila-Nova, no tocante à noção de escola
literária, conceito esse que aponta para uma tradição consolidada na leitura que se faz
dos movimentos artísticos. Logo no início do romance, Gervásio declara-se admirador
e seguidor do Selvagismo, cujos traços característicos consistiam na destruição da
forma física, em uma estética baseada no uso de “diversos papeis e tintas de várias
cores” (Id.: 9), assim definida por Lúcio Vaz, conforme descrição de Gervásio
Vila-Nova:
Confissões da sociedade portuguesa: o projeto de Orpheu e o início do século XX em A confissão de Lúcio, ... 187
Também – e eis o que mais entusiasmava o meu amigo – os poetas e prosadores selvagens,
abolindo a ideia, “esse escarro”, traduziam as suas emoções, unicamente em jogo silábico,
por onomatopeias rasgadas, bizarras: criando mesmo novas palavras que coisa alguma
significavam e cuja beleza, segundo eles, residia justamente em não significarem coisa
alguma... (Ibid.)
Sinto tantas afinidades com essas criaturas... como também as sinto com os pederastas...
com as prostitutas... Oh! é terrível, meu amigo, terrível...
Eu sorria apenas. Estava já acostumado. Sabia bem o que significava tudo aquilo. Isto só:
arte. (Id.: 11-12)
De Paris, amo tudo com igual amor: os seus monumentos, os seus teatros, os seus bulevares,
os seus jardins, as suas árvores... Tudo nele me é heráldico, me é litúrgico.
[...]
As ruas tristonhas da Lisboa do sul, descia-as às tardes magoadas rezando o seu nome: O
meu Paris... o meu Paris...
E à noite, num grande leito deserto, antes de adormecer, eu recordava-o – sim, recordava-o
– como se recorda a carne nua de uma amante doirada!
[...]
Só posso viver nos grandes meios. Quero tanto ao progresso, à civilização, ao movimento
citadino, à actividade febril contemporânea!... Porque, no fundo, eu amo muito a vida. Sou
todo de incoerências. Vivo desolado, abatido, parado de energia, e admiro a vida, entanto,
como nunca ninguém a admirou!
Europa! Europa! Encapela-te dentro de mim, alastra-me da tua vibração, unge-me da
minha época!...
Lançar pontes! lançar pontes! silvar estradas férreas! erguer torres de aço!... (Id.: 26-27).
Confissões da sociedade portuguesa: o projeto de Orpheu e o início do século XX em A confissão de Lúcio, ... 189
Bibliografia
Bibliografia Activa
MARQUES, Oliveira A. H. O. (2009). Breve História de Portugal. Lisboa: Presença,
7ª edição.
SÁ-CARNEIRO, Mário de (1988). A confissão de Lúcio. Porto: Justiça e Paz.
Bibliografia Passiva
BAKHTIN, Mikhail (2003). Estética da criação verbal. Trad.: Paulo Bezerra. São
Paulo: Martins Fontes, 4ª edição.
BAKHTIN, Mikhail (1988). Questões de literatura e de estética: a teoria do romance.
Trad.: Aurora Fornoni Bernardini et al. São Paulo: HUCITEC/Editora da
UNESP.
HEIDDEGER, Martin (2006). Ser e tempo. Rio de Janeiro: Vozes, 5ª edição.
LOURENÇO, Eduardo (2009). O labirinto da saudade. Lisboa: Gradiva, 6ª edição.
REAL, Miguel (2008). A morte de Portugal. Coleção Campo da Actualidade. Porto:
Campo das Letras, 2ª edição.
Entre o “Orpheu” e a “A Águia”, entre Fernando Pessoa
e Teixeira de Pascoaes
Renato Epifânio
Movimento Internacional Lusófono
1. Comecemos por dizer o óbvio: o Orpheu foi, de facto, uma revista marcante.
Foi uma espécie de cometa que atravessou e revolveu o panorama cultural da
época – em apenas dois números, publicados nos dois primeiros trimestres de
1915. O terceiro já não viria a ser publicado, por razões financeiras, pandemia que,
década após década, tem vitimado dezenas, senão centenas, de projectos culturais
meritórios num país com um público culto tão escasso (cada vez mais escasso?)
como o nosso.
Tendo sido uma espécie de cometa, não foi, longe disso, um «fogo fátuo», tal a
influência que exerceu nas décadas seguintes. Foi a primeira grande expressão, em
Portugal, de uma vanguarda modernista que, agregou, entre outros, nomes como
Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Almada-Negreiros ou Santa-Rita Pintor,
nomes que ficaram para sempre associados à chamada «geração d’Orpheu».
Foi, para além disso, o que para nós é particularmente significativo, uma revista
de escala luso-brasileira. Pelo menos do ponto de vista institucional, já que veio à luz
com dois directores: Luiz de Montalvôr, em Portugal, e Ronald de Carvalho, no Brasil.
Saliente-se também a presença do então jovem António Ferro como editor da revista,
o mesmo António Ferro que virá depois a ter o papel proeminente que se conhece
durante o Estado Novo, desde logo no plano cultural, onde continuou a contar com
a participação e o apoio dessa geração. Também por isso, 100 anos depois, o Orpheu
continua a confundir os espíritos mais obtusos…
192 100 Orpheu Renato Epifânio
Para estes, como é sabido, o mundo é sempre simples e deve continuar a ser visto a
preto e branco. À luz dessa grelha, o Estado Novo foi a negação da cultura em geral e
da modernidade em particular. Decerto que sim, em alguns aspectos. Noutros, porém,
e não menores, foi com o Estado Novo que essa modernidade anunciada pelo Orpheu
se veio a afirmar – refira-se apenas, como exemplo maior, a obra de Almada Negreiros
apoiada pelo regime. O que concluir daqui? Desde logo, que o mundo, felizmente, é
sempre mais complexo do que julgam aqueles para quem o mundo deve continuar a
ser visto a preto e branco.
uma literatura, como a deles [da “Renascença”], que se faz panteista, que préga naturalmente
o regresso á vida simples, á vida patriarcal, ao campo, que nos aconselha a voltar para traz,
quando as outras nações teem toda a sua atenção posta no futuro, encarando-o altivamente,
não na atitude do Desterrado, mas em atitude de marcha, essa literatura é uma excrescência
do passado, não póde viver2.
É certo que, no âmbito desse mesmo Inquérito, houve quem tivesse rebatido essa
perspectiva «passadista» da “Renascença”, como alegadamente aparecia expressa na
revista A Águia, órgão por excelência do movimento. Eis, nomeadamente, o caso de
Jaime Cortesão, que, de resto, não apenas rebate Júlio de Matos3, como apresenta,
alimentar um estado mórbido, ajudar a definhar mais a raça”, é antes elevar a Raça á consciencia activa
das suas mais altas virtudes, é levantá-la ás suas mais sublimes culminancias, arrebatá-la no impeto da
sua antiga audacia, erguendo‑lhe a vontade pelos seus mais genuinos sentimentos para as realisações do
Futuro».
4 Cf. Ibid.: 165: «um dos fins que se propõe a “Renascença Portuguesa” é precisamente combater o estrangeirismo,
revelar ao nosso Povo o Espirito Lusitano, e quando igualmente ninguem de boa fé pôde afirmar que o grupo
de escritores da “Renascença Portuguesa” sofra de qualquer influência estrangeira».
5 Cf. Ibid.: 187.
6 Cf. Ibid.: 177-178: «A “Renascença Portuguesa” tem, portanto, um fim e um alto critério filosófico e religioso
que a dirige e anima. E ao mesmo fim e ao mesmo critério obedece a nova Poesia portuguesa, que representa a
primeira afloração do espírito da Raça. Sim: há um renascimento literário iniciado pelos poetas que mencionei
na minha resposta ao inquérito da República. E o numero e o valor dêstes poetas são o bastante para se poder
afirmar que existe, no momento actual, uma nova alma pátria que é a antiga alma renovada e plenamente
revelada, ainda no seu aspecto transcendente e poético, mas que amanhã será perfeito pensamento definido
e fecunda actividade. Há uma nova alma lusitana revelada pela nova Poesia. E só não reconhecem esta
consoladora verdade os velhos espíritos empedernidos em velhos preconceitos e alguns novos espíritos (aliás
de valor) afastados da sua Raça, porque não sabem ou não querem reagir contra o meio português adulterado
por alguns séculos de subordinação a Roma e a Paris».
7 Cf. Ibid.: 180.
8 Cf. Ibid.: 198. Não escamoteando as já referidas divergências internas – ainda nas palavras de Proença: «no
fim de alguns numeros — muito poucos — o que veio a predominar na Aguia não foi o lado intelectual da
Renascença, mas a sua falange emotiva, mística, amorosa de sonho e de misterio. Por culpa dos elementos
do sul, a Poesia tinha tomado posse da Aguia, da primeira pagina até á ultima; por culpa dos elementos do
sul, a Renascença Portuguesa falhara completamente na sua missão./ O “saudosismo” a que se refere o snr.
dr. Julio de Matos foi assim um elemento sur-ajouté e de modo algum orgânico e primitivo da Renascença
Portuguesa./ Manda porém a inteira justiça que se diga que nêsse “desvio” da orientação de uma sociedade
não cabem só graves responsabilidades á inércia culposa dos meridionais; o snr. dr. Teixeira de Pascoais,
logo no 1.º numero, por um evidente equivoco (que do mais é incapaz a sua belissima alma, cheia de tão
profunda emoção e de tão humana simpatia) acentuava já êsse desvio nestas palavras do editorial: “É
na Saudade revelada que existe a razão da nossa Renascença; nela ressurgiremos, porque ela é a própria
194 100 Orpheu Renato Epifânio
Sou um dos directores da revista trimestral de literatura Orpheu. Não sei se V. Ex.ª
a conhece; é provável que não a conheça. Terá talvez lido, casualmente, alguma das
referências desagradáveis que a imprensa portuguesa nos tem feito. Se assim é, é possível
que essa notícia o tenha impressionado mal a nosso respeito, se bem que eu faça a V. Ex.ª
a justiça de acreditar que pouco deve orientar-se, salvo em sentido contrário, pela opinião
dos meros jornalistas. Resta explicar o que é Orpheu. É uma revista, da qual saíram já
dois números; é a única revista literária a valer que tem aparecido em Portugal, desde
a Revista de Portugal, que foi dirigida por Eça de Queirós. A nossa revista acolhe tudo
quanto representa a arte avançada; assim é que temos publicado poemas e prosas que vão
do ultra-simbolismo ao futurismo. Falar do nível que ela tem mantido será talvez inábil, e
possivelmente desgracioso. Mas o facto é que ela tem sabido irritar e enfurecer, o que, como
V. Ex.ª muito bem sabe, a mera banalidade nunca consegue que aconteça. Os dois números
não só se têm vendido, como se esgotaram, o primeiro deles no espaço inacreditável de
três semanas. Isto alguma coisa prova – atentas as condições artisticamente negativas
do nosso meio – a favor do interesse que conseguimos despertar. E serve ao mesmo
tempo de explicação para o facto de não remeter a V. Ex.ª os dois números dessa revista.
Caso seja possível arranjá-los, enviá-los-emos sem demora.9
Tanto por aquilo que diz, esta carta é igualmente significativa por aquilo que
omite: falamos ainda, claro está, da revista A Águia, onde Fernando Pessoa publicou
os seus primeiros textos, em 1912: “A Nova Poesia Portuguesa Sociologicamente
Considerada”, “Reincidindo…” e “A Nova Poesia Portuguesa no Seu Aspecto
Psicológico”. Saliente-se que, na citada carta, Fernando Pessoa refere-se ao Orpheu
como «a única revista literária a valer que tem aparecido em Portugal, desde a Revista
de Portugal, que foi dirigida por Eça de Queirós» – ou seja, Fernando Pessoa dá aqui
Raça original e criadora”./ Isto era a antítese do espirito que animava os elementos do sul; poderiam êstes
ter feito entrar o movimento na trajectória que lhe competia; a sua inércia porém era absoluta; por isso,
dentro em pouco, a Renascença ficou limitada aos seus elementos “saudosistas” e o tom predominante na
revista foi o tom “saudosista”./ O autor destas linhas, e alguns outros do sul, muito poucos, que tinham
querido actuar, desligaram-se então completamente da Renascença, ainda que continuando a auxiliar a
sustentação da Revista, que tem publicado, dentro do seu espirito, coisas realmente interessantes» [ibid.:
123-124].
9 PESSOA, F., 1998.
Entre o “Orpheu” e a “A Águia”, entre Fernando Pessoa e Teixeira de Pascoaes 195
Veja a Tabacaria: não passa duma brincadeira. Que poesia há ali? Não há nenhuma, como
não há nada… nem sequer cigarros!… Fernando Pessoa tentou intelectualizar a poesia e
isso é a morte dela. É roubar o espontâneo à Alma Humana, isto é, o que ela tem de Alma
Universal ou de poder representativo da realidade. Veja o poema (o poema?!) que começa
‘o que nós vemos das coisas são as coisas’… Isto não é poesia, nem filosofia, nem nada.”. E,
por isso, chegou a considerar Pessoa como um “não poeta” – nas suas palavras: “Repare:
não digo que foi mau poeta. Digo que não foi poeta, isto é, nem bom nem mau poeta. E se
foi poeta, foi-o só com exclusão de todos os outros, desde Homero até aos nossos dias…” –,
inclusive, como um mero “ironista” que, enquanto tal, não se deve tomar a sério11.
4. Como já defendemos num outro texto12, não entendemos estas palavras como
um sintoma de despeito ou de ressentimento. De modo algum. Pelo contrário,
consideramos que, vindas de Pascoaes, estas são palavras inteiramente justas, por
mais injustas que, em absoluto, as possamos considerar. E isto porque, atendendo ao
Poeta que Pascoaes foi, Pessoa só poderia aparecer-lhe como um «não poeta», nem
sequer como um «meio poeta». Para o Poeta que Pascoaes foi, poeta integralmente
poeta, não poderia haver, de resto, «meios poetas». Ou se era integralmente poeta,
como, de facto, Pascoaes foi, ou, muito simplesmente, não se era…
E porque foi Pascoaes integralmente poeta? A nosso ver, por uma simples mas
ainda assim suficiente razão: porque acreditava, integralmente, naquilo que escreveu,
naquilo que dizia. Quando falava, por exemplo, dos deuses ou dos anjos, Pascoaes,
com efeito, acreditava neles, no seu discurso, acreditava tanto no seu discurso que
acreditava que, através dele, essas entidades passavam realmente a existir. Realmente.
Como se, de facto, o discurso poético fosse um discurso realmente divino, realmente
criador. Como se, de facto, ao serem nomeados poeticamente, mesmo as entidades
mais fantasmáticas passassem realmente a existir. Ao lermos as suas obras, ao
lermo-las em voz alta, sobretudo, também nós acreditamos, ainda que apenas por uns
momentos, nisso, nesse poder criador.
Ora, em Pessoa, isso não acontece. Pessoa era demasiado “filosófico” – diremos
mesmo, demasiado “inteligente” – para acreditar integralmente no seu discurso.
Entre ele e o seu discurso havia sempre uma “cisão”, uma “distância”, uma “distância
crítica”, que impossibilitava essa crença. Mesmo nos seus poemas mais arrebatados,
como a Mensagem, essa distância paira, como uma ubíqua sombra. Não conseguimos,
de resto, imaginar Pessoa a ler em voz alta a sua Mensagem. No princípio, no meio
ou no fim, haveria sempre, fatalmente, um sorriso de ironia, que, por mais leve que
fosse, destruiria, por completo, o poema. Em Pascoaes, ao invés, mesmo quando ele
é irónico, não há ironia, essa ironia. E, por isso, muito justamente, Pessoa era, para
Pascoaes, um “não poeta”.
Bibliografia
1 – INTRODUÇÃO
autor). Essa observação nos interessa na medida em que nos remete diretamente ao
poema de Campos.
Ao longo de todos os versos da “Ode marítima”, o eu-lírico dirige seu olhar para
o “elemento” mar e por ele se deixa envolver. Mais adiante, transfere o olhar de fora
para dentro de si e assume a vida marítima com a invenção do mar imaginário, rico
em fantasias e movimento, a configurar a unidade da natureza universal. Sozinho, a
avistar do cais deserto um paquete que se aproxima do porto, sua imaginação cria asas
e abre um leque de possibilidades que ganha dinamismo à proporção que o volante
interior deixa de ser racional e começa a girar lentamente.
“Tela anímica onde tudo acontece”, eis o que se configura a alma do eu-lírico neste
momento. José Ney Costa Gomes avança neste pensamento ao afirmar que “aqui o ser
que olha e vê o faz com a alma, inventa-se, cria-se como sujeito (independente, apesar
de fundido à paisagem)” (GOMES, J., 2009: 96). Acompanhemos, portanto, como
procede tal invenção ou criação em pormenor.
Quando o volante ganha vida, o olhar, antes voltado para o paquete e outras
embarcações, mergulha na memória de tempos passados e, curiosamente, entre o cais
e o navio que parte, irrompe sobre o eu-lírico uma saudade de um cais de outrora, o
Cais Absoluto, de onde partiu para o mundo exterior, “fora do Espaço e do Tempo”.
Esse momento único, situado entre o cais e o navio, constitui o cerne da ideia de
intervalo, tão cara à poesia pessoana. Nesta cena intervalar, caracterizada como
uma espécie de redução fenomenológica, tudo acontece: o ruído dos guindastes, as
chegadas de comboios de mercadorias, o bulício a bordo dos navios até a fuga para
as águas eternas das Grandes Navegações, onde se pôde viver intensamente o espírito
das descobertas e do “mistério de cada ida e cada chegada”.
O não-lugar, inerente à concepção de intervalo, é que dá ensejo a que o eu-lírico
anseie por viver a experiência que o espaço proporciona, com todos os seus desafios e
aventuras, medos e angústias. Assim, como ressalta Yi-Fu Tuan, “para experienciar no
sentido ativo, é necessário aventurar-se no desconhecido e experimentar o ilusório e o
incerto. Para se tornar um experto, cumpre arriscar-se a enfrentar os perigos do novo”
(TUAN, Y., 2013: 18). Porém, ainda o momento não é chegado e o eu-lírico retoma
o seu posto a observar o paquete que entra no cais, ao mesmo tempo em que novo
impulso é dado ao volante interior, agora de forma mais acelerada.
A comoção toma conta do poeta que vislumbra não mais o paquete a entrar,
mas os navios abstratos e os navios vistos de perto, com suas especificidades e
características. Por meio das sensações múltiplas, vividas pelos órgãos dos
sentidos, o eu-lírico se imiscui na vida marítima que invade o seu sangue com
sedução. Seguindo, assim, a linha do pensamento de Tuan, o eu-lírico se estende
para o mundo: “Toda a vida marítima! Tudo na vida marítima!/ Insinua-se no
200 100 Orpheu Márcia Manir Miguel Feitosa
Embora seja o engenheiro naval que é, o que “beija com a alma as máquinas”,
Álvaro de Campos, a esta altura do poema, revela um desejo passadista da antiga vida
dos mares. A aparente contradição o poeta tenta justificar pela Distância Absoluta
em que se encontra em relação à história das grandes navegações. Qual Alberto
Caeiro, seu companheiro do “drama em gente”, anseia pela autenticidade, pela origem
primeira da Natureza, isto é, pelos mares ainda desconhecidos e pouco explorados
pela humanidade. O que era distante, por conseguinte, se torna próximo. O eu-lírico
passa então a alimentar o que Dardel aponta como a “Geografia Heroica”, a que
“manifesta um interesse pela Terra como realidade geográfica, uma inquietude sobre
o espaço a percorrer e a explorar, uma primeira geografia da aventura, da viagem
como exploração e proeza” (DARDEL, E., 2011: 73). Oniricamente, vivencia o apelo
do “delírio das coisas marítimas” e se transporta, graças ao balanço incansável do
volante, para dentro do universo das águas, a penetrar na própria essência geográfica
do ser-estar-no-mundo, sua geograficidade portanto, na esteira do pensamento de
Dardel.
“O mergulhar nas águas deste mar significa”, nas palavras de Marion Ehrhardt,
“um volver ao estado informe da pré-existência, um suspender de todas as tensões
e contrastes” (EHRHARDT, M., 1964: 180). Esse mergulho, ou melhor, essa
“viagem” constitui o cerne da “Ode marítima” e sobre ela teceremos nossas reflexões
subsequentes.
“A imensidade imensa do mar imenso”: uma abordagem fenomenológica-existencial da espacialidade na “Ode marítima” ... 201
Segue-se, embalada pela interjeição “eh”, uma série de estrofes de invocação das
gentes do mar, experientes homens que se aventuraram para o “Mar Absoluto”, a
fim de “realizar o impossível”. O desbravar o espaço, “a imensidade imensa do
mar imenso”, na verdade, significa a busca pelo lugar experienciado, o “centro de
significados construído pela experiência” (TUAN, Y., 1975: 152). O que o poeta
almeja é a vivência de todos os homens dos mares, dos mais simples homens dos
mastros aos mais violentos e sagazes negociantes e exploradores. Da saudação
entusiasta a todos eles assoma a vontade vulcânica do eu-lírico de a eles se unir, num
afã desenfreado de realizar ações múltiplas, de modo a adquirir o que foi impossível
em terra firme. Verbos como “querer”, “encontrar”, “cuspir”, “sentir”, “despir”, “salgar”,
“fustigar”, “flagelar”, etc. povoam o imaginário do poeta e impelem uma grande
velocidade ao poema, tal como o volante imprimiu à sua alma desde a “partida” do
cais deserto.
O ápice de semelhante ebulição se dá com a tentativa de experienciar intensamente
a “febre da pirataria antiga”: desde as canções de marinheiros, inspiradas ainda em
Stevenson, até a guerra em alto mar, eivada de sangue e selvageria. Aliás, a cor vermelha
e seus matizes predominam por várias estrofes, tingindo o mar de fogo e de morte.
Curioso destacar que Álvaro de Campos objetiva compor uma orquestra sinfônica
quando adentra de corpo e alma na vida que gira em torno da pirataria, de tal modo
que ora é a vítima, ora o algoz, ora ainda – e de forma mais contundente – Deus, não
o magnânimo e onipotente, mas o “monstruoso e satânico”.
202 100 Orpheu Márcia Manir Miguel Feitosa
O que podemos evidenciar, neste conjunto de estrofes em que o poeta faz apologia
da pilhagem e da carnificina, é o que Tuan denomina de “topofilia”, não no sentido
primeiro que implica os laços afetivos dos seres humanos com o meio ambiente
material, antes a emoção humana mais forte com o lugar, isto é, quando o lugar ou
o meio ambiente se torna “o veículo de acontecimentos emocionalmente fortes ou é
percebido como um símbolo” (TUAN, Y., 2012: 136). A partir do momento em que o
eu-lírico elege o mar de domínio da pirataria como sendo o seu locus, institui a marca
simbólica de tudo o que isto pode significar no contexto do poema: um sentimento
de afeto muito grande pelos piratas e corsários portugueses que, como é sabido,
viveram sua Época de Ouro no século XV, quando exerceram a supremacia dos
ataques no Atlântico e no Mediterrâneo. Para Campos, tal experiência se sobrepõe
à vivenciada pelos descobridores, na medida em que instaura a anarquia e a aversão
aos atos civilizatórios, os quais coíbem o espírito do homem e o afastam do ritmo da
modernidade, afeita à velocidade e ao estilo esfuziante e torrencial, à maneira de Walt
Whitman.
O que incomoda sobremaneira o poeta de Tavira é a sua condição de engenheiro
ao mesmo tempo prático e sensível, estático e débil diante da “grande dinâmica
estridente, quente e sangrenta”. O que o incomoda é o modo de ser de sua geração,
nomeadamente moralista e conservadora:
José Augusto Seabra reforça o papel desempenhado pelo volante neste momento
exato da ode, argumentando que, “se o volante funciona ainda, é agora ao contrário,
numa cadência cada vez mais lenta e doce, como a das velhas canções de embalar”
(SEABRA, J., 1982: 134); canções estas que ganham corpo e voz no poema, a comporem
a memória do passado distante e feliz. “Nas coisas menores mais familiares”, pontua
Freya Stark, citada por Tuan,
a memória tece as alegrias mais intensas e nos mantém à sua mercê por intermédio de
ninharias, algum som, o tom de uma voz, o odor de piche e de algas marinhas no cais. […]
Este certamente é o significado de lar – um lugar em que cada dia é multiplicado por todos
os dias anteriores (STARK, F. apud TUAN, Y., 2013: 176-177).
3 - CONSIDERAÇÕES FINAIS
Bibliografia
Bibliografia Ativa
PESSOA, Fernando (1966). Páginas íntimas e de auto-interpretação. Lisboa: Ática.
PESSOA, Fernando (2014). Poesias heterónimos. Introdução e organização de
Auxilia Ramos e Zaida Braga. Porto: Porto Editora.
“A imensidade imensa do mar imenso”: uma abordagem fenomenológica-existencial da espacialidade na “Ode marítima” ... 205
Bibliografia Passiva
DARDEL, Eric (2011). O Homem e a Terra: natureza da realidade geográfica. Trad.
Wetther Holzer. São Paulo: Perspectiva.
EHRHARDT, Marion (1964). O mar na “Ode marítima” de Fernando Pessoa.
Munster Westfalen: Aschendorffsche Verlagsbuchhandlung.
GOMES, José Ney Costa (2009). Alma à janela: perfil intensivo de Álvaro de
Campos. Tese de Doutorado, FFLCH- USP.
MOURÃO-FERREIRA, David (1983). Larbaud, Pessoa, Antero: o recurso à ode
como forma de modernidade. Paris: Fondation Calouste Gulbenkian/ Centre
Culturel Portugais.
PACHECO, Duarte (1905). Esmeraldo de situ orbis. Lisboa: Sociedade de Geografia
de Lisboa, Typografia Universal.
SEABRA, José Augusto (1982). Fernando Pessoa ou o poetodrama. São Paulo:
Perspectiva.
TUAN, Yi-Fu (1975). “Place: an experiential perspective”. The Geographical
Review. New York, vol. 65, nº 2, pp. 151-165.
TUAN, Yi-Fu (2012). Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio
ambiente. Trad. Lívia de Oliveira. Londrina: Eduel.
TUAN, Yi-Fu (2013). Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. Trad. Lívia de
Oliveira. Londrina: Eduel.
Orfeu
O mito, a arte, a religião e o mistério
ORFEU, é um nome grego que chegou aos nossos dias, envolto num verdadeiro
mistério, mesmo que a figura que o corporiza, figure em poemas de autores reais, e
se apresente como a inspiradora de textos místicos, que temos a maior dificuldade
em decifrar no seu significado e alcance. Perguntamo-nos sempre: será que o orfismo
foi mesmo objecto de crença e praticado por devotos. E é nesta interrogação, a que
não se pode responder com qualquer certeza, que reside o encantador mistério que
tem vindo a seduzir artistas e poetas, figurando Orfeu em inúmeros poemas da
Antiguidade e mesmo no Portugal do século XX.
A mitologia órfica lembra-nos a textura de uma perfeita teia de aranha, que ora
se alonga, ora se encolhe, sem jamais nos permitir compreender a realidade da sua
estranha imagem que aparece em textos que vão desde a épica homérica aos tempos
de Bizâncio, sem jamais nos dar a chave que abra os esconsos da sua misteriosa
existência tão importante para a inteligência e sensibilidade do ser humano.
Os mitógrafos variam de opinião quanto à sua genealogia. Consultámos a Biblioteca
de Apolodoro, dos séculos I-II a.C., e o mitógrafo grego diz-nos que ele nascera
de Calíope, a Musa, e de Oiagro, contra a opinião de outros que o dizem filho de
Polímnia, a Musa da Música, talvez pelo simples motivo de Orfeu ser um encantador
da Natureza e dos seres que a ela pertencem, por fazer sair harmónicos sons pela
forma arrebatadora como tocava a sua lira.
Ao longo das descrições que dele se ocupam através da vida helénica e até romana,
é pela força irresistível da música que ele consegue as maiores proezas. A arte musical
era a força invencível que ele dominava como arma, facto que chama a atenção
das gerações antigas e das modernas. Por isso além de figurar em epopeias, que
celebram os seus feitos, os Argonautas, escritas nas línguas grega (Apolónio de Rodes
e Pseudo-Orfeu) e latina (Valério Flaco), também em seu nome, inventado ou não,
chegaram até nós fragmentos e Hinos, dedicados aos deuses, como senhor que era
dos mistérios ligados à vida e à morte. Tratar-se-á do Orfismo que apresenta íntimas
semelhanças com o Pitagorismo, sem que o seu deus seja necessáriamente Apolo,
mas sim Diónisos, de preferência, ao qual o Pseudo-Orfeu dedica na ed. de Quandt
(Berlim, 1955) o hino 30 (pp. 24-25) sem que insista como a teologia sua rival, na
208 100 Orpheu Raul Miguel Rosado Fernandes
transmigração das almas, mas sim no ascetismo (ou seja exercícios espirituais) que
proporcionem a entrada dos crentes nas Ilhas dos Bem-Aventurados, ou seja no céu,
ou no paraíso (jardim=parádeisos) divino.
Os princípios catequéticos que nos resume M. H. Rocha Pereira (p. 237) pregam
“– a abstenção de derramamento de sangue; – o vegetarianismo; – a doutrina de que
o corpo é a prisão da alma (que Sócrates, na sua Apologia, invocará, sem que se saiba,
pelo que penso, que haja qualquer ligação com as doutrinas de Orfeu); – a crença na
purificação do pecado, por meio de certos ritos, neste mundo e no outro, etc.) o que
não nos força a pensar na transmigração, segundo pessoalmente penso, contrariando
assim as dúvidas de Rocha Pereira que a este propósito cita, no volume dedicado à
Cultura Grega (p. 236 s.v. Orfismo), a sentença erudita de Willamowitz Moellenforf
que acusa os Modernos de falarem excessivamente dos Órficos. Lança contudo a
acusação ao interrogar o leitor perguntando-lhe: “Quem é que procedeu assim na
antiguidade?” Por muito erudito que o sábio alemão seja, também não lhe podemos
responder que ninguém o fez, visto que a sua música até as feras, as rochas e as Sereias
domava.
Entre os Gregos referem-se à sua existência, natureza e poderio, vários poetas,
entre os quais, Íbico que o intitula “o glorioso Orfeu” (frg. da p. 141, Hélade, ed.
2003, Rocha Pereira), e Simónides, que nos comunica a sensação dos que a sua
música e canto ouviam: “Inúmeras, as aves voavam / sobre a sua cabeça / e os peixes,
em pé, saltavam das águas de anil do mar, / ao som do seu belo canto.” E acrescenta
noutro passo: “Não se ergueu então o sopro do vento que abala as folhas, / para
impedir que a voz doce como o mel / aderisse aos ouvidos humanos” (frgs, da p. 179,
ed. 2003, Rocha Pereira).
O hino 30 a Diónisos, a quem dedica incenso resinoso, começa por invocá-lo
dedicando-lhe vários epítetos que sugerem o tom ribombante da sua presença divina,
a sua profícua presença astral, o ter sido trazido à existência antes de todos, as suas
duas existências, engendrado três vezes, e, como sempre acontece em preces deste
tipo, intitulando-o religiosamente por “senhor Báquico”. É uma espécie de ladainha
que temos diante dos olhos, em que se enumeram todas as qualidades do deus.
Ovídio nas Metamorfoses, já no séc. II (trad. de Paulo Farmhouse Alberto) da nossa
era, refere-se insistentemente a Orfeu, esse mágico vate e músico da Trácia, nos cantos
X e XI, em que vai em busca, para depois a perder, de Eurídice, a sua amada, que só
poderia fazer sair do Tártaro, se olhando para trás, a não procurasse com o seu olhar
apaixonado. Na versão de Ovídio, Eurídice tinha sido mordida no calcanhar por uma
serpente, e estava para sempre e para ele perdida. O canto do vate é romanticamente
manejado por Ovídio, cuja prece se dirige a todos os deuses: “Ó deuses deste mundo
situado sob as terras / no qual voltamos a cair todos quantos nascemos mortais, / se é
Orfeu - O mito, a arte, a religião e o mistério 209
lícito e permitis falar a verdade ….. não desci aqui para ver as trevas do Tártaro, / nem
para acorrentar as três goelas desse vosso monstro, / o rebento de Medusa…. / A razão
da vinda é a minha esposa, a quem uma serpente / ao ser pisada, injectou veneno / Por
estas paragens repletas de pavor / ….rogo: / tornai a tecer o destino apressadamente
cortado de Euridíce…. / Mas se os destinos me negam este favor pela minha esposa, /
estou decidido a não voltar: rejubilai com a morte dos dois.” Eis o estilo plangente do
igualmente libertino autor da Arte de Amar.
Mais plangente e completo é o episódio criado por Virgílio no canto IV das Geórgicas
que concebe Eurídice como Ninfa Dríade (dos bosques) que Aristeu perseguia e mata,
e ao descer aos infernos será Orfeu que a irá buscar, com a condição quase infantil
de se não voltar para a ver. Tudo acontece ao contrário e a ninfa morre e as forças
infernais não lhe permitirão levá-la para a vida.
A morte de Orfeu também será conhecida em várias versões, uma vez que os poetas
antigos, que eram teólogos também, introduziam nas histórias dos entes mágicos e
sagrados as versões que porventura lhes chegavam ou mesmo que inventavam.
Uma das versões mais correntes é a de que teriam sido as mulheres trácias, suas
conterrâneas, que o teriam despedaçado, não conseguindo evitar que a cabeça da
vítima chegasse a Lesbos, onde os habitantes lhe ergueram um túmulo, que deu à ilha
a potencialidade de vir a ser o centro da poesia lírica.
Outras versões religiosas, ligam os seus despojos à Trácia ficando sempre a eles
ligada a arte da poesia e do canto mágicos. Dentro desta visão, constava que a sua
lira fora transportada para o céu, e a sua alma para os Campos Elíseos, onde, vestido
de túnica branca, ele cantava para os Bem-aventurados, era versão dionisíaca do céu.
Daí o terem-no os antigos ligado aos mistérios de Elêusis, localidade que ainda hoje
encontramos a uns quilómetros de Atenas.
A sua fama e mito chegaram até nós, integrados em cantos épicos, um deles até
com o seu nome como autor, Os Argonautas, ou em hinos de origem religiosa, dos
quais já antes escolhi o dedicado a Diónisos.
As aventuras da Argo (Argus em Latim e velho bacalhoeiro português, que ainda vi),
vão passar-se sob o comando de Jasão na Cólquida, que convida Orfeu a acompanhar
a sua tripulação (Pseudo-Orfeu, Argonáuticas, v. 60, segs.) uma vez que sabia que os
poderes mágicos da sua música e do seu canto podiam fazer frente a todos os perigos
que lhe surgissem pelos caminhos marítimo ou terrestre. É o caso das SEREIAS que já
tinham aparecido nas aventuras homéricas de Ulisses, e que Orfeu enfrenta na viagem
à Cólquida, em busca do VELO DE OURO, descrevendo o encontro da primeira
pessoa (v. 1276 e segs.): “Eu cantava, gritando a alta voz, um hino maravilhoso……e
então, quando eu tocava, dos altos nevados, as Sereias ficaram chocadas pelo encanto
e deixaram de cantar. Uma deixou cair das mãos a flauta e a outra a lira, e lançaram
210 100 Orpheu Raul Miguel Rosado Fernandes
gemidos terríveis, uma vez que a morte, o seu horrível destino tinha chegado. Do alto
da rocha onde estavam, lançaram-se no abismo do mar agitado, e os seus corpos e a
sua figura orgulhosa transformaram-se em rochedos.”
Eis um rápido episódio que demonstra a força mágica de Orfeu, sem entrar
imediatamente na lenda espantosa e cruel da paixão de Jasão e Medeia, que Eurípides
consagrou de maneira inesquecível, e que até acabou no cinema num filme em que era
a Diva Calas, a grega, que interpretava o papel da cruel e imortal Medeia.
O mito dos Argonautas vai ser igualmente tratado na Grécia e em Roma, mas nem
todos os poemas se encontraram.
O mais conhecido é o de Apolónio de Rodes, nascido em Alexandria e depois
forçado a exilar-se em Rodes, no séc. III a.C., no reinado dos Ptolomeus e na presença
de Calímaco, cujo princípio “Um livro grande é um grande mal”, ele não seguiu,
consagrando o seu poema épico, a Jasão, a Orfeu e às suas mágicas proezas pela música
e canto, e igualmente aos amores de Jasão e de Medeia. Cria um mundo mítico, que
nunca sabemos onde acaba, mas que prendia e encantava o seu público decadente da
Grécia ptolomaica.
Roma, não tem para nos apresentar um poema de alta qualidade, embora já tivesse
conhecido Vergílio e o perseguido Ovídio, cujas poesias até hoje são respeitadas e
apreciadas, pelo ritmo conseguido e pela criatividade.
Nem por isso a fama da lenda de Orfeu foi esquecida e o seu nome aparece longo
à entrada do Inferno na Divina Commedia de Dante, canto IV, v. 139 e segs.: “e vidi
il buono acoglitor del quale, / Dioscoride dico; e vidi Orfeo, / Tulio e Lino e Seneca
morale…”. E se consultarmos a longa série de obras que celebraram a memória do
mítico vate, em Gilbert Highet, The Classical Tradition, Greek and Roman Influences
on Western Literature, Nova Iorque, 1957, veremos que o mito não foi esquecido: a
sua versão mais antiga, em pleno renascimento, vai ser em Mântua para a corte dos
nobres, na peça teatral, Orfeo, levada à cena em 1471, por Ângelo Policiano, que não
descura a acção dramática e apaixonada de Orfeu e Eurídice o que fará perdurar a
sua influência nos anos posteriores, como na época das “Luzes” a que se seguiu a
Revolução Francesa, quando Macaulay afirma com desdém num escrito dirigido a
Frederico da Prússia: “Prometeu e Orfeu, Elísio e Aqueronte … e todos os outros
arrebiques, que, tal qual um vestido atirado por uma bela orgulhosa à sua criada de
quarto, foi com desprezo abandonado pelo génio para as mãos da mediocridade.” De
facto os temas clássicos estavam a sofrer um tremendo abanão. Havia quem chamasse
a Homero, um ordinário, e a Ésquilo, um louco (p. 357).
Passada a revolução vemos André Chénier, um ex-revolucionário, a escrever elegias
em que o nome e a figura de Orfeu aparecem, uma vez que o poeta traduziu poemas
do Grego e do Latim (p. 403).
Orfeu - O mito, a arte, a religião e o mistério 211
Apesar da força dos antigos clássicos vir a reviver na nobre Inglaterra, onde
podemos ler o Ulisses de Joyce e a sua descida aos infernos, quando do enterro do Sr.
Dignam em Dublin, de Orfeu não há nenhuma obra que a ele se dedique inteiramente,
ele que também desceu aos infernos devido à força da sua arte.
Foi a França que devido à extrema sensibilidade de Anouilh faz reanimar o mito
de Eurídice, em vestes da época, uma vez que a heroína morre, e Orfeu seu marido
desce pela força da música aos infernos e é lhe concedida a graça de trazer a mulher
para o mundo dos vivos, desde que para ela não olhe. Mas olha e como castigo vai
ser dilacerado e devorado pelas Ménades da Trácia. Na peça de Anouilh, Orfeu, é um
violinista de café, e Eurídice é trazida pelo Senhor Henri, que lhe transmite a única
condição para que ela fique em seu poder: que não pergunte quais foram os seus
amantes (tipicamente francês), o que ele não consegue, e, por isso, a perde de novo.
Muito mais haveria a dizer, mas como diz o velho Horácio “tempus fugit” e foge
mesmo, mas permite-nos chegar ao ORPHEU de Lisboa, como estação final deste
combóio, de linha não férrea incansável. E o que é o ORPHEU lisboeta?
Data de 1915, e na lembrança do mistério órfico, artistas portugueses lançaram-se
com enorme sucesso, na criação artística do MODERNISMO, tal como em 1922
poetas e pintores se lançarão em São Paulo, lá tão longe no Brasil, na semana da arte
moderna.
Os nossos modernistas ainda hoje vivem, não só nas estantes das bibliotecas, mas
nas paredes onde penduramos os seus quadros. E quem não gostaria de ter ou mesmo
só ler um livro dos seus, ou um quadro dessa extraordinária geração?
Ainda me lembro que num dos anos da década de 1950 a minha professora
Marina Pestana, me comunicava que um poeta português de nome Fernando Pessoa,
começava a ser considerado muito perto de Camões, e que em breve iria gozar de
estatuto de celebridade igual.
Prestei-lhe a atenção que a Dra. Marina merecia, e comecei a interessar-me,
encantado pelo canto órfico, que eu nem sabia o que era, pois só anos depois e já a
estudar na universidade, vim a conhecer Pessoa e Sá-Carneiro, e fui ensinado por
docentes que dominavam o modernismo português. Não desci aos infernos em busca
de Eurídice, mas li os poetas e fiquei como que encantado pela música de Orfeu que
eles tocavam. Gostando dos clássicos e românticos, deixei-me levar pelas paisagens
que eles atravessavam e pelos sortilégios e mistérios que eles me faziam ouvir e
imaginar, pois mesmo quando ensinei em Nova Iorque, transmiti o seu encanto aos
meus alunos de todas nacionalidades.
É dessa altura que encomendei os sete livros de uma edição em sete volumes, hoje
segundo me consta esgotada e quase preciosa, dos Textos Universais, Centro Editorial
Português, Porto, s.d., OS MODERNISTAS PORTUGUESES, Escritos Públicos,
212 100 Orpheu Raul Miguel Rosado Fernandes
Ao longo dos sete volumes, em que até acaba por aparece o nome de Prado Coelho,
que a muitos de nós ensinou, percorre-se o caminho da metamorfose que se operou
na letras portuguesas, que entraram por uma via mais europeia e mais “sensacionista”
daquela época, que em breve chegará ao surrealismo, influenciada sem dúvida
essencialmente pela literatura francesa.
Joel Serrão cita Alfredo Guisado, um dos muitos que estiveram activos naquele
milagre sensacionalista, o qual diz: “Orfeu foi a porta de pesado bronze que se fechou
para sempre e para lá da qual ficou definitivamente o passado literário da nossa terra,
os seus continuadores e os seus admiradores.” (p. 27)
De qualquer forma, como em todos os grandes movimentos inovadores, não houve
só admiradores, mas também detractores, que ficaram indignados com tanta ousadia.
Ainda conheci pessoalmente alguns, mais conservadores ou totalmente conservadores,
que andaram pelas livrarias a rasgar os livros modernistas e a lançar-lhes fogo,
quando podiam, mas tinha já sido em vão o seu esforço, e os modernistas venceram
nesta batalha, e ainda hoje são eles que lemos, muito naturalmente acompanhados
pelos nossos livros de culturas antigas e bem portuguesas, que nem por isso deixaram
perder o valor estético que sempre as impuseram ao nosso gosto literário. Nada
fica igual nestes movimentos, mas o HOMEM esse permanece igual a si próprio e
Orfeu - O mito, a arte, a religião e o mistério 213
entregando-se em épocas ao longo da sua já velha história, ao que mais lhe agrada,
na época em que viveu, e nas outras, em que não viveu, mas que do ponto de vista
mais antigo obedecem a ritmos e imagens que são trascendentais. E a isso nem o
tal HOMEM consegue fugir, fica sempre cativo do que o impressiona e agrada. Pois
não era e é ele, segundo a versão platónica de PROTÁGORAS: “a medida de todas as
coisas”? Das que foram e das que estão para existir, pensamento, já na Grécia antiga,
considerado demasiado ateu e materialista, porque lá faltam os deuses.
O negativo da escrita: o marinheiro e o pobre tolo,
entre sonho e real
Roberta A. P. de F. Ferraz
Universidade de São Paulo / FAPESP
1 Embora consideremos o aleatório do nome da revista, já que não há indícios textuais suficientes que nos
autorize a afirmar a sua extrema pertinência e adequação, esta nossa leitura d’O Marinheiro, como exercício
poético do negativo da escrita, abre-nos uma inevitável compreensão de que, sim, o nome não poderia ser
outro...
218 100 Orpheu Roberta A. P. de F. Ferraz
Nesta ‘ética da inação sonhadora’ nos deparamos com uma das figuras mais
recorrentes da obra pessoana: a figura antiga (grega e medieval) do Destino enquanto
‘roda da Fortuna’, imageticamente representada por uma roda inexorável a girar,
independente da vontade e da ação humanas. Assim como, fatalmente, a noite sucede
ao dia, fatalmente nossa morte nos assiste. Existir consciente da vanidade da vida
pede, no exercício poético de Pessoa, que se consiga (pelo esforço ou pela resignação)
inverter esta lei natural, desconsiderando o apego às instâncias daquilo que se pode
ler como real (matéria, ação, vida desperta) e “desmanchando o Universo”, como
ensina Soares, fazer-se senhor do/no sonho.
Voltando ao artigo pessoano, se “a arte moderna é a arte do sonho”, podemos,
partindo desta premissa, investigar muitas coisas acerca da elasticidade e utilização
do próprio conceito de ‘moderno’. Por exemplo: na reação moderna ao moderno, que
o poeta propõe via sonho, haveria – diz-nos ele – três caminhos possíveis ao artista,
no que concerne à relação, na arte, entre SONHO E REAL: o primeiro seria, como ele
diz, “entregar-se ao mundo exterior, deixar-se absorver por ele, tomando dele a vida
oca e ruidosa (...)” (PESSOA, F., 1966: 156) – esta seria a via seguida por Nietzsche
e Whitman, entre outros; o segundo caminho deu-se com “pôr-se ao lado, (...), num
O negativo da escrita: o marinheiro e o pobre tolo, entre sonho e real 219
Tudo é o sonho dum pobre tolo. E o pobre tolo é também um sonho, um sonho de Deus que
não encarnou inteiramente. Por isso, ele anda envolto numa auréola, e tem a leveza duma
nuvem...
2 E continua: “Fumo das fábricas, gritos de sirenes, velocidades – sois atitudes da Matéria, impostas pelo espírito
imitativo e simiesco (...). // Eu fui dado à luz elétrica deste século; o denso fumo industrial satura-me os
pulmões; o ruído mecânico faz sangrar os meus ouvidos – e eu não compreendo, não assimilo esta Vertigem,
que é de ferro! // Fumos das fábricas, gritos das sirenes, velocidades, qual a vossa entoação espiritual, o vosso
significado? Qual o sentido das palavras – Força, Vitória, Actividade, que modernos vates apregoam? Sois
ocas palavras de metal... a bruta matéria a tornar-se nublosa, a incompreender-se. / Hulha negra feita nuvem
de fumo. // Poetas, deixai cantar o vosso coração. A inteligência conhece a Liturgia, mas ignora a Divindade. //
Cantai os Fantasmas e os Anjos; cantai os obreiros da nova Redenção – os que trabalham, em névoa de alma,
o Relâmpago futuro. / Cantai o que não existe... O resto é cinza. (idem: 44)
O negativo da escrita: o marinheiro e o pobre tolo, entre sonho e real 221
Somos o sonho divino que não se condensou, por completo, dentro dos nossos limites
materiais. Existe, em nós, um limbo interior; um vago sentimental e original que nos dá a
faculdade mitológica de idealizar todas as cousas.
(...)
A vida é uma luta entre os seus aspectos revelados e o limbo em que eles se perdem e
ampliam até à suprema distância imaginável; uma luta entre a realidade e o sonho, a Carne
e o Verbo.
(...)
E aí tendes um pobre tolo sentimental, uma caricatura elegíaca. (PASCOAES, T., 2000: 19-20)
Preso numa cruz formada pelo elo tragicômico de carne e verbo – substância e
ausência – o poeta-cantor elabora a sua musa que, com o passar das obras, vai
tornando-se mais e mais complexa: a SAUDADE. Musa-metáfora – arte poética – de um
amor lúgubre, a Saudade será o cais buscado por meio de um canto órfico-alquímico,
que se esboça com todo o fôlego, na sutileza do negativo, sutileza que complexifica,
refina e adensa:
A incerteza, a hesitação, o querer e não querer, o partir e ficar, o vaivém da sorte, como diz o
poeta, é a própria atividade universal cindida em duas forças contrárias que se neutralizam
mutuamente e se condensam, originando um ponto definido na imensidade indefinida, uma
luz acesa nas trevas, um grito no silêncio – a Criação! Tudo é lembrança e esperança: duas
forças contraditórias e hesitantes no seu ímpeto criador. Hesitam, equilibram-se, casam-se e
originam o Existente – uma autoescultura da Saudade. (PASCOAES, T., 2000: 21-22)
é e não é; desperta e devaneia; foge não sabe para onde e, afinal, está sempre no mesmo sítio;
está ali, sentado numa pedra, mas o sonho não se desfaz absolutamente. Há horas em que
se torna mais intenso; pretende resistir, viver, e envolve a cabeça do tolo que se perturba e
magica além dos astros. (...) O tolo é desmaio, silêncio e um medo enorme ao seu fantasma,
tão destacado e vivo, diante dele! Sempre diante dele!
222 100 Orpheu Roberta A. P. de F. Ferraz
É um fantasma, só memória. Anda descalço e em cabelo; e por isso é tolo e meio poeta.
Põe-se a evocar o Passado; e esta evocação é uma névoa que lhe transtorna o juízo e escurece
as cousas que se ilimitam e aumentam de tamanho, como aparições prodigiosas. (...) Vive no
meio de vozes que lhe falam, mas não as compreende. São confusas, distantes: – uma nuvem
musical que se condensa em lágrimas espectrais; uma nuvem que o absorve por completo e
onde ele boia, abstrato e doloroso – tão abstrato que não é ninguém! tão doloroso e sensível
que é todas as almas deste mundo e do Outro Mundo!
O negativo da escrita: o marinheiro e o pobre tolo, entre sonho e real 223
(...) Os monstros não largam o pobre tolo, a debater-se, aflito, entre um rochedo e uma
nuvem, o que existe e não vive e o que vive mas não existe.
(...) O pobre triste não dorme; sonha. Sonha de dia e tem a ilusão da realidade; e tem, de
noite, sonhando, a realidade da ilusão. Possui, em alto grau, estes dois sentidos da Realidade,
como todos os malucos que avistam as duas faces da medalha. É que ele existe e vive. E existe
de tal modo, que penetra na própria substância dos rochedos. (PASCOAES, T., 2000: 50-52)
Para além da insistência do vazio e sua inquietude, para qual ambas as obras nos
levam, cumpre ressaltar que, apesar do sim da saudade, o resultado final não é de
todo afirmativo, já que, como o dissemos, o corpo deste sim, desta afirmatividade
que a Saudade encarna, é a própria ausência. Não se trata, reiteramos, da conclusão
satisfeita numa identidade ou unidade salvífica localizada numa origem ou num
além-morte. Pascoaes o sabe: a saudade pode mostrar-se um inteligentíssimo
xeque-mate às intrínsecas ameaças de finitude, mas de maneira alguma conclui o
jogo. Ele o sabe porque a saudade só é enquanto se canta, na ponte do poema, no
corpo desse doloroso verbo escuro, voz em gangorra que, assim como conquista e
celebra, perde e põe a perder, novamente, o já sempre perdido. Em São Paulo, por
exemplo, biografia escrita em 1934, Pascoaes escreve: “Ninguém atinge a meta na
corrida. Não há destinos concluídos. O acabado é quimera. Há esboços” (PASCOAES,
T., 2002: 236). Experiência poético-ontológica que o crítico M. Blanchot, em seu texto
“O pensamento trágico”, assim apresenta:
Onde tudo é indeciso só se pode viver num desvio perpétuo, pois ater-se a uma coisa suporia
que há algo de determinado a que se ater, suporia portanto uma separação nítida de sombra
e de claridade, de sentido e de não-sentido e, por fim, de felicidade e de infelicidade, mas
como um é sempre o outro e o sabemos, mas numa espécie de ignorância que nos dissuade
sem nos esclarecer, não buscamos senão preservar a incerteza e obedecer-lhe, inconstantes
por uma falta de constância inerente às próprias coisas, não nos apoiando em nada porque
não há apoio em nada, e essa ligeireza responde à verdade de nossa existência ambígua que
é rica apenas de sua ambiguidade, a qual cessaria tão logo quisesse realizar-se: ela nunca é
mais do que possível (BLANCHOT, M., 2007: 28)
física do pobre tolo sobre a ponte, olhando a natureza em toda sua diversidade, plasmado
ali como um ‘túmulo de pé’, não seria melhor compreendida se abarcando esse reverso do
vazio que vê a personagem, absorta nessa inelutável cisão do ver... Como se ele, parado,
olhando a paisagem movente, olhasse para um imenso volume do vazio, vazio que lhe
devolve o olhar, movendo-o assim (o sujeito) ao ‘trabalho’ do sentido inelutável da perda:
o poema. Este arfar-entre, este jogo do visível/invisível, é o ritmo que Pascoaes labora
para impregnar, em texto, o sentido pleno da ausência que ele chamou de Saudade. A
saudade acaba por ser (ou querer ser) esta forma hesitante, em que não apenas se evita o
vazio, a dominação do vazio, a negação; como que, muito habilmente, fá-lo evitando o
pleno, a verdade do sentido, o apaziguamento. Nas palavras de Didi-Huberman:
(...) diante de um túmulo, a experiência torna-se mais monolítica, e nossas imagens são mais
diretamente coagidas ao que o túmulo quer dizer, isto é, ao que o túmulo encerra. Eis por que
o túmulo, quando o vejo, me olha até o âmago – e nesse ponto, aliás, ele vem perturbar minha
capacidade de vê-lo simplesmente, serenamente – na medida mesma em que me mostra que
perdi esse corpo que ele recolhe em seu fundo. Ele me olha também, é claro, porque impõe
em mim a imagem impossível de ver daquilo que me fará o igual e semelhante desse corpo
em meu próprio destino futuro de corpo que em breve se esvaziará, jazerá e desaparecerá
num volume mais ou menos parecido. Assim, diante da tumba, eu mesmo tombo, caio na
angústia – a saber, esse ‘modo fundamental do sentimento de toda situação’, essa ‘revelação
privilegiada do ser-aí’, de que falava Heidegger... É a angústia de olhar o fundo – o lugar – do
que me olha, angústia de ser lançado à questão de saber (na verdade, de não saber) o que
vem a ser meu próprio corpo, entre sua capacidade de fazer o volume e sua capacidade de se
oferecer ao vazio, de se abrir. (DIDI-HUBERMAN, G., 1998: 38)
Se, como vaticinou Pessoa, “o maior poeta da época moderna será o que tiver mais
capacidade de sonho”, além de uma galáxia toda de exímios sonhadores de nossa frugal
fragilidade e hesitação, podemos, sem dúvidas, saber ler que o par Pascoaes-Pessoa nos
revela um dueto cuja força nos legou uma das mais excitantes constelações literárias
do negativo. O negativo como poder sonhador, a voz que move, não montanhas, mas
fantasmas de montanhas, vastidões de vácuos, uma plenitude que, para sorte nossa,
não nos deixa ceder ao tédio, à movimentação anestesiante e histérica de um mundo
que, como o deles, segue demandando que saibamos responder a ele, cantando com
nossa voz a centelha de Orfeu cuja cabeça, depois de morto, rolando por um rio, seguiu
chamando na morte a sua amada morta, resistindo ao esquecimento.
A Saudade não será, portanto, cais nenhum que receber qualquer marinheiro
desejado ou seus despojos. Pascoaes o dirá: “O tolo é um mar e boia em pleno mar”
(PASCOAES, T., 2000: 58). É apenas, durante a viagem, enquanto se boia, aquela
paisagem abstrata e infinita, entranhada e comovente, que se faz poema, num esforço
da voz em sustentá-la, esforço, lembramos, trágico e cômico, tragicômico, cuja figura
por excelência é a do pobre tolo. Pascoaes o sabia e o disse ao longo de todo o seu
romance da saudade: o canto é poderoso porque é frágil.
Pascoaes e Pessoa, em diferentes graus, são ambos viajantes de um mundo cuja
representação libertou-se de suas margens, sonhadores de um devir em deriva,
escrevendo o negativo de qualquer conquista, em intimidade ardente com o que
hoje se faz legado nosso: o desejo de seguir resistindo, pela poesia, na poesia, a toda
ameaça de menos sonho, menos loucura, menos intensidade. A poesia como frágil
desejo de antídoto da banalidade. Tudo para que, seguindo o mote pascoaesiano, “a
raça dos tolos não se extinga, nesse mundo do Bom Senso e da Razão” (PASCOAES,
T., 2000: 22), para que, ardentes, sigamos, resistentes e resilientes, bailando contra toda
força normativa e banalizadora, resistindo ao cadáver nosso, convidando o perder e
226 100 Orpheu Roberta A. P. de F. Ferraz
o morrer à nossa boca de leitores insaciáveis num mundo muitas vezes entristecido
pela saciedade banal de todos os dias. E fechamos, convocando os pobres tolos, com
Pascoaes:
O tolo arde, embriaga-se de fumo e canta como os pássaros noturnos. Põe-se a cantar, e
aparece-lhe a morte. Dança e vê, junto dos pés, a boca aberta dum sepulcro. E canta e dança
em volta dum sepulcro: uma dança de velhos ritos funerários. O pobre tolo já morreu. Esta
figura em que ele se mostra, à luz do sol, é feita duma substância espectral e fabulosa: uma
sombra, orelhuda e lanzuda, que ergue as mãos e põe os ouvidos em íntima comunicação
com as estrelas. Ergue as mãos, canta e dança embriagado, e deita fumo pela boca. E fuma, e
fumega, e torna a fumegar. Esconde-se num eclipse total (...) E o pobre tolo dança, em volta
do seu túmulo, com a sombra da sua infância (PASCOAES, T., 2000: 122)
Bibliografia
Bibliografia Ativa
PASCOAES, Teixeira de (2000). O pobre tolo. Lisboa: Assírio & Alvim.
PASCOAES, Teixeira de (1993). O Homem Universal. Lisboa: Assírio & Alvim.
PASCOAES, Teixeira de (2002). São Paulo. Lisboa: Assírio & Alvim.
PESSOA, Fernando (1992). Livro do Desassossego (Recolha e transcrição dos
textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização
de Jacinto do Prado Coelho). Lisboa: Ática.
PESSOA, Fernando (1998). Obra Poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar.
PESSOA, Fernando (1966). Páginas de Estética e Teoria Literária. Org. Jacinto do
Prado Coelho. Lisboa: Ática.
PESSOA, Fernando (1968). Textos Filosóficos – Vol. I (Estabelecidos e prefaciados
por António de Pina Coelho). Lisboa: Ática.
PESSOA, Fernando. http://arquivopessoa.net/textos/4518 (09/02/2011)
Bibliografia Passiva
BLANCHOT, Maurice (2007). A conversa infinita – a experiência limite. São Paulo:
Escuta.
DELEUZE, Gilles (1996). O mistério de Ariana. Lisboa: Vega.
DIDI-HUBERMAN, G. (1998). O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed. 34.
LOPES, Silvina Rodrigues (2012). A estranheza-em-comum. São Paulo: Lumme
Editor.
Antecedentes do microconto em Portugal:
Almada Negreiros e os seus Frizos1 2
1 Respeitar-se-á, sempre e quando se proceda à citação direta da obra de Almada Negreiros em questão, a grafia
usada na 2ª edição publicada pelas Edições Ática (Lisboa, 1971).
2 Os resultados deste trabalho são fruto do financiamento do Programa de FPU do Ministerio de Educación,
Cultura y Deporte do Governo de Espanha.
228 100 Orpheu Ana Sofia Marques Viana Ferreira
The short-short is clearly a subgenre of the short story, but there are notable distinctions,
mostly of degree.
[…] Because of its miniaturist commitment, the short-short form is not notable for bold
actions, even though something always happens; the short-short fiction tends to be a story
of manners, of key moments in the relationship of two protagonists, the vehicle for modern
myth, fable, or excursions into horror. (HALL, J. B., 1986: 234)
Lo que aquí llamo cuento ultracorto, como ya señalé, tiene una extensión que no rebasa las
doscientas palabras. […]
En el estudio de estos minicuentos es necesario considerar, además de la brevedad extrema,
los siguientes elementos característicos:
a) Diversas estrategias de intertextualidad (hibridación genérica, silepsis, alusión, citación
y parodia)
b) Diversas clases de metaficción (en el plano narrativo: construcción en abismo, metalepsis,
diálogo con el lector) (en el plano lingüístico: juegos de lenguaje como lipogramas,
tautogramas o repeticiones lúdicas)
c) Diversas clases de ambigüedad semántica (final sorpresivo o enigmático)
d) Diversas formas de humor (intertextual) y de ironía (necesariamente inestable).
(ZAVALA, L., 2004: 98-99)
Antecedentes do microconto em Portugal: Almada Negreiros e os seus Frizos 229
Miniconto é um tipo de conto muito pequeno, digamos que com no máximo uma página,
ou um parágrafo. Alguns dizem que ele é o primo mais novo do poema em prosa, outros
apontam as fábulas chinesas como origem, de certo é que desde meados do século XX o
conto tem experimentado – com sucesso – formas extremamente breves a partir de textos
de gente como Cortázar, Borges, Kafka, Arreola, Monterroso e Trevisan. (SPALDING, M.,
2007: 1)
Aliado a este novo conceito que detém uma vasta terminologia a ele associada e
que, insistimos, não é um fenómeno totalmente estranho e desgarrado da poética
da brevidade na História da Literatura, há uma série de características e tendências
que se reiteram em ser-lhe atribuídas: falamos da presença dos elementos que
conformam uma narração (tempo, espaço, personagens, narrador e ação), da
extensão hiperbreve – que não deve ultrapassar uma página impressa3 (no caso
da publicação em papel) –, do recurso à elipse, à unidade de efeito e à velocidade
no desenlace narrativo, da presença de ambiguidade semântica e de uma alta
capacidade de sugestão, do encadeamento de processos de hibridação e incorporação
de elementos pertencentes a outros domínios literários e extraliterários, da fácil
propensão a jogos intertextuais, da incorporação de estratégias que cabem dentro de
uma estética da provocação como é a ironia, a paródia e a ruptura das expectativas
leitoras.
A questão da classificação quanto ao género literário a que pertence a obra Frizos
tem sido levantada várias vezes, pelo seu carácter heterogéneo:
Quando apareceu nas páginas de Orpheu, Frisos não trazia qualquer subtítulo que indicasse
o género do texto e, do subtítulo que o acompanha, só podemos colher o facto de o autor
se considerar um «desenhador», antes de um escritor. Na mesma época, porém, Fernando
Pessoa refere-se a Frisos como uma série de «contos» e, nos anos seguintes, a crítica tem
empregado várias classificações para descrever este conjunto de pequenos textos em prosa.
Em 1970 e em 1985, vemo-los incluídos no volume de «Poesia» das Obras Completas de
Almada Negreiros e, em outros lugares, são considerados como poemetos, poemas em
prosa, parábolas, prosas poéticas ou prosas.
(SAPEGA, E. W., 1992: 18)
3 Não é casualidade o facto de, entre a vastíssima terminologia aplicada a este conceito no âmbito anglo-saxónico e
hispânico, existirem termos como sudden fiction, flash fiction, ficción súbita ou cuento instantáneo: constituem,
eles mesmos, chamadas de atenção para o carácter extremamente sucinto destes textos, cujo conteúdo total,
em termos idílicos, deve ser captado de modo instantâneo.
230 100 Orpheu Ana Sofia Marques Viana Ferreira
4 Não sendo nosso objetivo expor e desenvolver as atuais discussões sobre a catalogação do microconto no sistema
literário, queremos apenas fazer menção a teóricos do microconto, como David Roas, que consideram este
discurso literário uma variante do conto, o que faz com que as suas diferenças com respeito a este último sejam
medidos pela magnitude das propriedades que se costumam outorgar ao conto literário (ROAS, D., 2010: 9-42).
Antecedentes do microconto em Portugal: Almada Negreiros e os seus Frizos 231
O Echo
Tão tarde. Adão não vem? Aonde iria Adão?!
Talvez que fosse á caça; quer fazer surprezas com alguma côrça branca lá da floresta.
Era p’lo entardecer, e Eva já sentia cuidados por tantas demoras.
Foi chamar ao cimo dos rochedos, e uma voz de mulher tambem, tambem chamou Adão.
Teve mêdo: mas julgando fantazia chamou de nôvo: Adão? E uma voz de mulher tambem,
tambem chamou Adão.
Foi-se triste para a tenda.
Adão já tinha vindo e trouxera as settas todas, e a cáça era nenhuma!
E elle a saudá-la ameaçou-lhe um beijo e ella fugiu-lhe.
– Outra que não Ella chamára também por Elle. (NEGREIROS, A., 1971: 72)
Como é percetível, este texto começa com a apropriação da voz de uma das
personagens, Eva, fazendo com que o aparente vazio de omnisciência com respeito à
ação narrada produza um efeito de inquietação no leitor. O laconismo, expresso em
frases muito curtas e na enunciação concisa das ações das personagens intensificam
a aura de mistério. Do mesmo modo, a utilização de personagens do imaginário
coletivo, como Adão e Eva (e nos textos “Ciúmes” e “A Sésta”, das personagens
Colombina e Pierrot da Commedia dell’Arte italiana), permite ao narrador poupar
descrições e contextualizações, confiando nos conhecimentos prévios do leitor e
propiciando o foco na ação. Em nenhum momento, o corpo da narrativa faz menção
explícita ao eco, mas sim à voz de uma outra mulher, jogando, através do discurso
indireto livre, com a ingenuidade da personagem feminina. Se não fosse pelo título,
o leitor poderia inferir que estaríamos perante um texto de reescrita subversiva de
uma obra canónica, procedimento recorrente no microconto contemporâneo.
Este é apenas um exemplo de que a escolha tanto do título de cada texto
hiperbreve como da própria obra não é gratuita. Por um lado, Frizos, remete-nos
para a natureza transferível e total que uma obra literária pode adquirir, o que já
de si mostra como Almada Negreiros foi na sua época um visionário, sabendo
aproveitar as propriedades pictóricas de artes visuais e traduzi-las para o âmbito
5 Para um aprofundamento do tema, sugere-se a consulta de ZAVALA, Lauro (ed.) (1996). «Ernest Hemingway.
El principio del iceberg». Teorías del cuento III. Poéticas de la Brevedad. México D.F.: Universidad Nacional
Autónoma de México, pp. 19-26.
232 100 Orpheu Ana Sofia Marques Viana Ferreira
literário, conferindo-lhe à sua obra uma essência ainda mais híbrida. Tal como
Graça Videira Lopes expõe:
O que Almada faz, pois, nas pequenas narrativas experimentais de “Frisos” é uma inversão
dos termos: ao contrário da prática tradicional, onde a pintura (nomeadamente a histórica
e figurativa) parte de uma narrativa e lhe serve de ilustração, nesta sequência de “Frisos” são
as narrativas literárias que glosam poeticamente imagens visuais, ou que as “ilustram” (se
tal verbo pudesse ter algum sentido aqui). (LOPES, G. V., 2005: 4-5)
Esse efeito é visível através da perceção de que a ação de cada texto se move
maioritariamente de uma forma unidirecional e sequencial, dando a sensação de
observação contemplativa por parte do narrador. Por outra parte, a maior parte dos
títulos que compõem Frizos, “Ciúmes” (1971: 71-72), “O Echo” (1971: 72), “Sèvres
Partido” (1971: 72-73), “Mima Fataxa” (1971: 73-75), “A Sombra” (1971: 75-76), “A
Sésta” (1971: 75-76), “Ruínas” (1971: 77-78), “Primavera” (1971: 78-79), “Trevas”
(1971: 79-80), “Canção” (1971: 81), “A Taça de Chá” (1971: 82) não só funcionam
nalguns dos casos como a chave para decifrar o significado e a mensagem primordiais,
como também poderiam muito bem, pela eleição de sintagmas nominais breves,
ser títulos de pinturas ou esboços, ideia que o próprio autor faz questão de recalcar
quando assina e faz corresponder a sua obra ao “desenhador José Almada Negreiros”.
Ora, também os microcontos tendem a delegar protagonismo e relevância ao título,
tal e como o afirma Irene Andres-Suárez:
[...] la importancia del título – elemento clave que guarda una relación dialéctica con el
texto, orienta la lectura y subraya los elementos significativos que conviene tener en
cuenta –, y también del inicio y del cierre (abundan los finales sorpresivos y/o enigmáticos).
(ANDRES-SUÁREZ, I., 2012: 24)
A carga simbólica em textos como “Trevas” (1971: 79-80) assume dimensões muito
significativas, quando conceitos e imagens como “punhaes”, “pinheiros esgalgados”,
“lençoes de linho”, “azas brancas de garças caídas por faunos caçadores” e “Noite”
concorrem na obtenção e sugestão de uma atmosfera tenebrosa e de sobressalto. Este texto,
embora reconheçamos que o valor descritivo constranja a força e velocidades narrativas,
é pertinente para entender como uma unidade de efeito consistente pode fazer alterar
as expectativas leitoras, processo também ele muito frequente nos microcontos. A ideia
principal que é veiculada em “Trevas” é a de que o narrador se encontra num espaço que
se assemelha a um cenário de história de terror: “De dia não se via nada, mas p’la tardinha
já se apercebia gente que vinha de punhaes na mão, devagar, silenciosamente, nascendo
Antecedentes do microconto em Portugal: Almada Negreiros e os seus Frizos 233
A lua é uma laranja d’oiro num prato azul do Egypto com pérolas desirmanadas. E as
silhuetas negras dos pinheiros embaloiçados na briza eram um bailado de estatuas de sonho
em vitraes azues. Mãos ladras de sombra leváram a laranja, e o prato enlutou-se. (1971: 80)
Bibliografia
Bibliografia Activa
ÁLVARES, Cristina e Maria Eduarda KEATING (org.) (2012). Microcontos e
outras microformas. Alguns ensaios. Centro de Estudos Humanísticos da
Universidade do Minho: Edições Húmus.
ANDRES-SUÁREZ, Irene (2012). Antología del microrrelato español (1906-2011).
El cuarto género narrativo. Madrid: Ediciones Cátedra.
COSTA, Rui e André SEBASTIÃO (selecc. e org.) (2008). Primeira Antologia de
Micro-ficção Portuguesa. Vila Nova de Gaia: Exodus.
GALHOZ, Maria Aliete Dores (1971). «O momento poético do Orpheu». In
Orpheu. Vol. 1. Lisboa: Edições Ática (2ª reedição do vol. 1).
HALL, James B. (1986). «Afterwords The Tradition». In SHAPARD, Robert e
James THOMAS. Sudden Fiction: American Short-Short Stories. Utah: Gibbs
Smith.
NEGREIROS, Almada (1971). «Frizos». In Orpheu. Vol. 1. Lisboa: Edições Ática
(2ª reedição do vol. 1).
LOPES, Graça Videira (2005). «O olhar do pintor na obra narrativa de Almada
Negreiros (A invenção do dia claro)». 6º Congresso da Associação Alemã de
Lusitanistas, Leipzig. http://www.fcsh.unl.pt/docentes/gvideiralopes/index_
ficheiros/olhar_do_pintor.pdf (18 de fevereiro de 2015).
ROAS, David (2010). «Introducción». In ROAS, David (comp.). Poéticas del
microrrelato. Madrid: Arco Libros.
SAPEGA, Ellen W. (1992). Ficções modernistas: Um estudo da obra em prosa de
José de Almada Negreiros 1915-1925. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua
Portuguesa.
SPALDING, Marcelo (2007). «Pequena poética do miniconto». In Minicontos.com.
br. http://www.minicontos.com.br/?apid=2989&tipo=12&dt=0&wd=&titulo
=Pequena%20po%E9tica%20do%20miniconto (15 de fevereiro de 2015).
Antecedentes do microconto em Portugal: Almada Negreiros e os seus Frizos 235
Bibliografia Passiva
NOGUEROL JIMÉNEZ, Francisca (coord.) (2004). Escritos Disconformes: Nuevos
modelos de lectura. Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca.
ANDRES-SUÁREZ, Irene (2010). El microrrelato español. Una estética de la elipsis.
Palencia: Menoscuarto.
ANDRES-SUÁREZ, Irene (2012). Antología del microrrelato español (1906-2011).
El cuarto género narrativo. Madrid: Ediciones Cátedra.
ANDRES-SUÁREZ, Irene e Antonio RIVAS (2008). La era de la brevedad. El
microrrelato hispánico. Palencia: Menoscuarto.
MONTESA, Salvador (ed.) (2009). Narrativas de la Posmodernidad. Del cuento al
microrrelato. Actas del XIX Congreso de Literatura Española Contemporánea.
Málaga: AEDILE.
BARRERA LINARES, Luis (2002). «¿Son literarios los textos ultracortos?».
Quimera. Revista de Literatura. Nº 211-212. Barcelona: Ediciones de
Intervención Cultural, S. L., pp. 25-29.
BORRÁS, Laura (2008). «Lit[art]ure. La literatura en tiempos de Internet».
Quimera. Revista de Literatura. Nº. 290. Barcelona: Ediciones de Intervención
Cultural, s. l., pp. 26-31.
CALVINO, Italo (2000). Seis propuestas para el próximo milenio. Barcelona:
Círculo de lectores.
RODRÍGUEZ PÉREZ, Osvaldo (2010). Los mundos de la minificción. Valencia:
Aduana Vieja.
VILLANUEVA, Darío (1994). Curso de Teoría de la Literatura. Madrid: Taurus.
LAGMANOVICH, David (2005a). La otra mirada. Antología del microrrelato
hispánico. Palencia: Menoscuarto.
LAGMANOVICH, David (2005b). El microrrelato. Teoría e historia. Palencia:
Menoscuarto.
LAGMANOVICH, David (2007). El microrrelato hispanoamericano. Bogotá:
Universidad Pedagógica Nacional.
NOGUEROL JIMÉNEZ, Francisca (1996). «Micro-relato y posmodernidad: textos
nuevos para un final de milenio». Revista Interamericana de Bibliografía,
XLVI/1-4, pp. 49-66.
REIS, Carlos & Ana Cristina M. LOPES (1996). Diccionario de Narratología.
Salamanca: Ediciones Colegio de España.
SPANG, Kurt (1993). Géneros literarios. Madrid: Editorial Síntesis.
TOMASSINI, Gabriela e Stella MARIS COLOMBO (1996). «La minificción como
clase textual transgenérica». Revista Interamericana de Bibliografía, LVI/ 1-4,
pp. 79-94.
236 100 Orpheu Ana Sofia Marques Viana Ferreira
Ettore Finazzi-Agrò
Sapienza Universidade de Roma
Vamos começar onde tudo acaba; vamos começar pelo estabelecimento duma
identidade plural: “Nós, os de Orpheu”. Uma afirmação peremptória da qual
descende uma pergunta que poderíamos formular assim: de que modo e seguindo
quais caminhos é que um conjunto bastante heterogéneo de artistas chegou a
identificar-se numa comunidade, num sujeito coletivo? A assunção de um “nós”,
mais do que um cimento estético efetivo ou uma reivindicação geracional, parece,
com efeito, a suposição de uma identidade compartilhada que sobrevive no tempo
e ao tempo, apesar do desaparecimento súbito de alguns, do afastamento de outros,
da dispersão que corroeu as relações pessoais, da deriva anti-moderna que arrastou
vários membros do grupo originário para fora do projeto de renovação estética e
ideológica que estava na base do programa inicial.
O programa inicial, justamente. Mas como circunscrever e compreender o que
se encontrava e, ao mesmo tempo, se escondia na fundação do grupo de Orpheu e
que, cruzando práticas artísticas diversas e escolhas poéticas às vezes incompatíveis,
desembocou numa identidade coletiva? A resposta talvez possa ser procurada
no breve texto assinado por Luís de Montalvor que funciona como introdução ao
primeiro número duma revista que se furta ao padrão das revistas ou de qualquer tipo
de publicação periódica. Lemos, de facto, no incipit:
238 100 Orpheu Ettore Finazzi-Agrò
Temos, desde logo, uma opção que não consiste apenas numa recusa dos modelos
anteriores, mas que se manifesta através duma escolha estilística peculiar. De facto, o
andamento aparentemente anómico, irregular e antigramatical do discurso procura
manifestar, de imediato, uma diferença irredutível sobre a qual construir um novo e
extravagante modelo discursivo.
E esse vagar fora das normas consolidadas é, com efeito, imediatamente confirmado
no período seguinte:
Como se vê, a disposição sintagmática da frase tenta romper com qualquer modelo
lógico-discursivo ao mesmo tempo que reafirma a coerência incoerente do projeto
estético, vinculado a um “volume de Beleza” logo “nosso”, característico e coeso, do
qual “se engalanar”.
A questão à qual a apresentação duma nova revista deveria responder parece, até
aqui, iludida, levando o leitor a interrogar-se sobre a razão que empurrou os jovens
artistas a escolher uma figura da mitologia clássica para intitular uma publicação, que
deveria ser periódica e, sobretudo, inovadora e anti-tradicional. Se compararmos, de
facto, o texto de Montalvor com aqueles de outros manifestos das vanguardas europeias,
a escolha do título ficaria fora de foco: nenhuma apresentação dum novo ismo, nenhuma
projeção para um futuro de subversão dos cânones estéticos clássicos (por exemplo, para
Marinetti: “um automóvel rugidor, que parece correr sobre a metralha, é mais belo que
a Vitória de Samotrácia”3), e sim o esconder-se desse discurso, que fica todavia irregular
e anti-normativo, atrás duma simbologia bastante corriqueira, tirada dum modo de
pensar a arte certamente passadista, atrás dum nome mítico, o de Orfeu, que desde
sempre é uma marca e uma metáfora do poético. Mas a apresentação continua assim:
1 Luís de Montalvor, “Introdução”. Orpheu, ano 1 (1915), n. 1, pp. 11-12. Na reprodução desse texto “inaugural”
decidi manter a grafia original.
2 Ibidem.
3 Tirei a tradução do Manifesto futurista do livro de Gilberto Mendonça Teles (1983: 91).
A palavra em exílio Orpheu e o desejo de comunidade 239
Puras e raras suas intenções como seu destino de Beleza é o do: — Exilio!
Bem propriamente, ORPHEU, é um exilio de temperamentos de arte que a querem como a um
segrêdo ou tormento…4
Nestas frases encontramos, talvez, tanto a razão de ser do título escolhido, quanto
finalmente a base que fundamenta a atribuição do discurso a uma identidade coletiva.
Porque, em primeiro lugar, o Orfeu a quem é intitulada a revista – apesar da influência
aparente do quadro Orfeu nos infernos, composto por Santa Rita Pintor por volta de
1909 ou mesmo antes, mas reproduzido apenas em 1917 no interior de Portugal
Futurista 5 – não é o emblema mitológico da poesia e do caráter apolíneo da arte,
mas é o nome que, no orfismo, encobre e significa uma série de crenças místicas e de
práticas dionisíacas – como, aliás, o próprio Luís de Montalvor esclarece logo a seguir:
7 Veja-se, a respeito do tema do exílio em Pessanha, o importante livro de Paulo Franchetti (2001).
8 TELES, G. M., 1983: 92.
9 Veja-se, a esse respeito, o estudo de Salvatore Natoli (1999: 195-199).
A palavra em exílio Orpheu e o desejo de comunidade 241
Orpheu, aberta por uma “justificação” de autoria, desta vez, de Augusto Santa-Rita na
qual se retoma a ideia, que já encontrámos em Luís de Montalvor: a dum desterro em
direção à Beleza e contra a “massa amorpha de um povo de inconscientes emotivos”
que se apoderou do espaço pátrio.10
Falei em “comunidade de exilados” e, mais em particular, numa comunidade de
artistas que não têm comunidade ou que compartilham apenas aquele “nada em
comum” de que falou magistralmente Georges Bataille. A questão que fica todavia em
aberto é como conciliar tudo isto com a reivindicação de um sujeito coletivo, de um
“nós” a abrigar vozes e personalidades diferentes. Acho que o problema não poderá
ser resolvido atribuindo àquela identidade plural apenas um valor emblemático
ou um estatuto conjetural, mas analisando em concreto como essa comunidade de
desterrados consiga constituir-se num grupo coeso. Porque há, no exílio, pelo menos
uma oportunidade: a de se livrar do peso da herança cultural, a de inventar uma
tradição a partir do desenraizamento, a de se encontrar, enfim, e de se reconhecer no
alheamento. Entenda-se bem: a condição do exilado é sempre ligada a uma situação
de solidão existencial, de angústia dependente da perda de todas as referências
espácio-temporais e socioculturais (como bem mostrou um ilustre exilado como
Edward Said nos seus livros11), mas a esta condição trágica e aparentemente sem
remédio corresponde, todavia, uma liberdade de inventar o seu próprio discurso e o
seu próprio percurso, dentro de uma realidade alheia na qual viver, embora de modo
sofrido e apartado, uma vida eventual – como aconteceu, por exemplo, com Joseph
Conrad, que habitou a sua expatriação como apropriação, como hipótese duma nova
pátria dentro de uma língua nova e estrangeira, tentando preencher o vazio da sua
identidade originária, irremediavelmente perdida.
Seria preciso, na perspetiva de uma reinvenção de si mesmos no alhures, considerar as
duas figuras mais destacadas do grupo de Orpheu: Mário de Sá-Carneiro e, naturalmente,
Fernando Pessoa. O primeiro, desterrado numa Paris que o não reconhece e que lhe é,
no fundo, estranha, apesar da sua condição de capital da cultura ocidental, onde ele, a
contragosto e sempre mais ciente do seu anonimato, tenta levar adiante os seus estudos
de Direito; o segundo, retornado do seu “exílio” sul-africano com uma bagagem de
conhecimentos ligados à cultura de língua inglesa e que não consegue se reconhecer
na sua verdadeira pátria, estudante falhado e falido, também ele, dum curso superior de
Letras. Para ambos, então, o desterro é algo de real – embora de duração mais limitada
em relação, por exemplo, a Camilo Pessanha –: uma experiência dolorosa e concreta
10 Cf. Exílio. Revista Mensal de Arte, Lettras e Sciencias, n. 1 (1916), Lisboa: Contexto (Ed. fac-similar: 1982).
11 Veja-se, em particular, o conjunto de ensaios que Edward W. Said (2000). Um dos autores mais lembrados e
estudados nesse livro do grande crítico palestino é, não por acaso, Joseph Conrad.
242 100 Orpheu Ettore Finazzi-Agrò
à qual eles procuram dar respostas diferentes, não compartilhando, todavia, a mesma
sensação de isolamento e saudade presente nos poemas de Clepsidra.
O “nós” funciona, nesse sentido, como identificação no afastamento, como
lugar indeterminado de encontro e, ao mesmo tempo, como instância imaginária
de dissolução e salvação do eu dentro dum “grupo ou ideia”, nas palavras de Luís
de Montalvor. Para Sá-Carneiro e Pessoa, de facto, o poder agregador da prática
artística passa por um aparente “ausentar-se” de si mesmos, para fugir à Norma
e ao Poder dum discurso imposto, para tentar dizer aquilo que deveria ficar fora do
alcance das palavras usuais e consumidas pelo uso. O exílio real confunde-se, assim,
com o imaginário, levando os dois – junto com outros membros de Orpheu – a criar
uma espécie de dimensão poética própria, ligada à capacidade de deslocar-se e de
desdizer-se12. Poder-se-ia afirmar que eles adotam, no fundo, uma atitude que os
leva a contrastar e a resistir com teimosia a qualquer forma de integração ou de
normalização, jogando os signos contra si mesmos e instituindo, como escreveu
Roland Barthes, “no próprio coração da língua servil, uma verdadeira heteronímia
das coisas”13.
A obrigação ao exílio torna-se, portanto, uma opção pelo auto-exílio, primeiro
dentro de um “nós” constituindo uma comunidade artística e depois – diante do
fracasso e da dispersão dessa comunidade, diante da impossibilidade de levar adiante
a experiência de Orpheu, para além do segundo número – no interior de um “nós”
inventado. E se Mário de Sá-Carneiro, por um lado, “Rei exilado” e “vagabundo”, vai
enfrentar a trágica incapacidade de ser eu e outro ao mesmo tempo, de sustentar a sua
pessoal “ponte de tédio”, optando pela definitiva supressão de si mesmo; Pessoa, por
seu lado, vai continuar acreditando na possibilidade de existir na pluralidade, de viver
como um e muitos, de ser um “nós” heteronímico, de criar, enfim, sozinho “toda uma
literatura”, fugindo ao servilismo da língua, inventando uma comunidade poética na
qual, novamente, experimentar um exílio que seja, ao mesmo tempo, afastamento e
aproximação de um ideal de Beleza e Completude. Uma comunidade, aliás, que ele vai
fazer coincidir com aquela que se tinha constituído num tempo pretérito e perdido,
numa revista que ele tentou ressuscitar quase até ao fim da vida, quando já aquela
hipótese de grupo naufragara no silêncio e na inviabilidade, ao ponto de fechar um
breve artigo seu, publicado numa outra revista (Sudoeste) e à véspera da morte, com a
frase: “Orpheu acabou. Orpheu continua”.
12 Como se sabe, são estas, fundamentalmente, as “forças” da grande literatura, na visão magistral de Roland
Barthes: “s’entêter”, “se déplacer” (até chegar à abjuração) e “jouer les signes” (Leçon. Paris: Seuil, 1978, pp.
25-28).
13 Ibidem, p. 28.
A palavra em exílio Orpheu e o desejo de comunidade 243
14 Como se sabe, na obra de Michel Foucault o termo “dispositivo” é várias vezes evocado mas nunca definido
com clareza. À tarefa de circunscrever o(s) significado(s) dessa palavra utilizada pelo filósofo francês, se
deram primeiro Gilles Deleuze (1989) (Qu’est-ce qu’un dispositif?) e mais recentemente Giorgio Agamben
(2006), (Che cos’è un dispositivo?), com dois ensaios que têm, por acaso, o mesmo título.
244 100 Orpheu Ettore Finazzi-Agrò
enfim, diante duma história realmente trágica e duma ideologia fracassada. Em vez
do “nosso volume de Beleza” atingido graças a um exílio compartilhado, temos, com
efeito, a procura individual e impossível duma via de fuga, tanto existencial quanto
estética, em relação a um desterro que já não é a condição para a constituição de um
grupo aristocrático de artistas que se reconhecem na sua originalidade, mas a situação
desoladora em que se encontra o eu poético – “homem da mansarda” que, no seu
isolamento, longe e fora de qualquer “nós”, na consciência do seu não ser nem querer
ser nada, olha para um mundo que lhe é definitivamente estranho e irreversivelmente
estrangeiro.
Bibliografia
José-Augusto França1
O colaborador mais evidente do fatídico n.º 2 do Orpheu foi Santa-Rita Pintor. Não
só a ele Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro dedicaram a sua própria colaboração
no número, como é ele quem tem os quatro grandes extratextos que revelam uma
nova personalidade na criação artística portuguesa. Também se deve a um dos
grandes colaboradores desse segundo n.º do Orpheu, Raúl Leal, o primeiro texto de
interpretação de Santa-Rita Pintor, daí a ano e meio na revista Portugal Futurista.
Pouco se sabe da vida breve de Guilherme Santa-Rita, nascido em Lisboa, em 1889,
e aqui falecido em 1918, em abril. Fora bolseiro para Paris, em abril de 1910, como
escolar das Belas-Artes de Lisboa, mas não ingressou na Escola parisiense, tendo
falhado provas de admissão. Perdeu a bolsa nacional em 1912, por conflito com o
embaixador da recente República Portuguesa, o jornalista militante João Chagas; ele,
Santa-Rita, que se gabava de monárquico, admirador do D. Carlos artista, pronto a
escrever sobre a obra dele e havia de investir no desejo da restauração do regime
que lhe daria “poder” e deveria ser acompanhado pelo regresso dos jesuítas que
a República expulsara e pela reinstauração da Inquisição… Sabemo-lo por cartas
de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, de 1915, já Santa-Rita regressara a Lisboa, em
setembro do ano anterior, por causa da guerra e aqui se movia no âmbito da Orpheu,
sempre em referência a Sá-Carneiro, que lhe dedicara os seus “Poemas sem Suporte”,
no n.º 2 da revista. Já vamos ver o que ela representou para Santa-Rita.
Outra via de informação sobre estes anos da vida do pintor vem de uma biografia
que, desde 1922, o pintor Henrique Vilhena consagrou a seu primo, o pintor Manuel
Jardim, que cruzou amistosamente Santa-Rita em Paris e depois em Portugal, mas à
distância de Coimbra para Lisboa, e aí não sem um mal-entendido que ficou registado
em correspondência trocada e que tem a ver com as respetivas carreiras ou desejo
delas, como veremos. Ainda de Vilhena, há um artigo tardio que ficou a meio, na
revista Átomo, de 1950. Mais informação vem de outros contemporâneos, de Paris e
da Lisboa dos anos ditos “futuristas”, que também em Paris foram ou desejaram ser os
de Santa-Rita, ali espetador da primeira exposição que, em 1912, os pintores italianos
apresentaram e que Aquilino Ribeiro reportara para a Illustração Portugueza, de
1 Gravação por Rui Sousa (CLEPUL-FLL) e transcrição por Sofia Santos (CLEPUL-FLL), a quem os
organizadores muito agradecem.
246 100 Orpheu José Augusto França
descrever saborosamente, em 1930, nas suas memórias 14, Cité Falguière. Como já
em 1921, no Diário de Lisboa, ele ali falaria de vários companheiros (Manuel Bentes,
Francis Smith, Armando de Basto, o seu caro Amadeo – ainda “impressionista” e
caricaturista, mas que “se a morte o não vence seria hoje o maior pintor português”). E
de Modigliani também ele fala, porque foi Modigliani que o levou a ouvir a conferência
de Marinetti: e foi ali, na conferência de Marinetti, que ele, Diogo de Macedo, pela
única vez fala em Santa-Rita. Em 1942, Macedo voltaria a falar no pintor, visto em
1917, numa panorâmica ordenada (a primeira de todas) dos primórdios do nosso
Modernismo na revista Aventura.
Em Lisboa, o caso Orpheu levantou escândalo jornalístico, politicamente assanhado
por Pessoa, como sabemos – é verdade que logo arrependido, como os seus amigos
– menos Santa-Rita, que açulou Raúl Leal, o mais sincero de todos eles… Mas foi
o pintor o alvo preferido nas colunas do Século Cómico, de 8 de julho (1915), num
desenho de Stuart de Carvalhais e numa poesia trocista de Belmiro Acácio de Paiva,
pseudónimo de Acácio de Paiva, um gazetista apreciado, que o punha “em foco”
imitando versos de Sá-Carneiro, de invenção tipográfica: “Santa-Rita, Rita Santa, pó,
pó! (…) / (…) le nez dan le cou”, caricaturado por isso mesmo. Oitenta e nove artigos
ou alusões a Orpheu ficavam registados nas colagens de um caderno recolhido no
espólio de Fernando Pessoa, na Biblioteca Nacional. Mas Orpheu chegou também ao
Teatro de Revista, ainda em 1915, no então Éden, dos Restauradores, em A Parceria
O Diabo a Quatro, com Satanás a endoidecer por ter lido a revista. Orpheu n.º 3 não
houve, só provas tipográficas, de algumas páginas, recuperadas em edição em 1983.
Santa-Rita não levou avante o seu projeto, que afligia Sá-Carneiro e Pessoa protelava
evasivamente em suas correspondências, ele que também lhe dedicara em Orpheu a
sua “Ode Marítima”. Mas o pintor continuara a agir no minúsculo meio que era o do
Chiado – que a exposição de Amadeo, anunciada como futurista (embora de modo
algum o fosse em suas obras), a dois passos, no Calhariz da Liga Naval, que então
agitara em dezembro de 1916, com a bênção batismal de Almada Negreiros. Amadeo
deveria ter sido o artista destacado em hors-textes correspondentes no n.º 3 da revista
de Sá-Carneiro, mas não, certamente, no Orpheu que fosse ou que tivesse podido ser
de Santa-Rita... E uma grave altercação entre os dois pintores se registou então na
Brasileira, a vias de facto, de que o frágil Santa-Rita saiu agredido por um Amadeo
robusto e exasperado pelas suas provocações, provocações; habituais, ao que consta no
anedotário desta brevíssima época. Se em vão Santa-Rita, em 1915, projetou realizar
três conferências futuristas na cola da sua participação no Orpheu, uma delas sobre a
“Torre Eiffel e o Génio do Futurismo”, outra teria sido combinada com Sá-Carneiro que
falaria sobre “As Esfinges e os Guindastes. Estudo sobre o Bimetalismo Psicológico”,
Raúl Leal dissertaria sobre “Teatro Futurista no Espaço”, sem mais nota sobre qualquer
248 100 Orpheu José Augusto França
delas ou sobre a organização, nem de um festival teatral a ela mais ou menos ligado,
com a colaboração do casal Delaunay, que a guerra trouxera também em 1915, no seu
caso ao Norte de Portugal, e que havia, ela, a russa Sónia Delaunay, de ter convívio e
projetos com Amadeo. Ainda uma hipótese conferência sobre “A Arte e a Heráldica”
foi anunciada, da autoria de Manuel Jardim, então regressado de Paris a Coimbra e
que protestou veementemente contra a notícia divulgada em fins de junho, que não
convinha a carreira mais pacata que pretendia conduzir na sua cidade natal, e não sem
opinar contra a gente de Orpheu. Também Francisco Franco e ainda então Amadeo se
encontravam previstos no improvável conjunto.
Mas em abril de 1916, a revista monárquica extremista, A Ideia Nacional, dirigida
por Homem Cristo Filho – um polemista que viria a pretender ter carreira no fascismo
italiano depois de começar a tê-la com o Sidonismo, em 1918 –, apesar da colaboração
que recebia de Almada, como de Soares, Jorge Barradas e Stuart Carvalhais e da direção
artística de Pacheko, atacava os futuristas, “fautores da desordem e da revolução”,
“novos arautos da anarquia”, “sem fé, nem pátria”, que mereciam ser “corridos à
gargalhada, quando inofensivos”, senão “a chicote quando insolentes e perigosos”; o
que lhe valeu uma resposta prudente de Santa-Rita, a garantir “o caráter absolutamente
nacionalista da sua doutrina, o seu carácter absolutamente antianárquico”, tal como
o de Marinetti, cujo trabalho caracteriza nestas expressões. Ele que na sua “vida de
trabalho artístico, de esforço constante e consciente”, “todos de anos para cá, adentro
do futurismo”, afirmava: “Futurista declarado em Portugal há um, que sou eu!”.
Mas logo depois, Almada Negreiros havia de publicar o texto mais escandaloso
de todo o processo do Futurismo nacional, pela personalidade oficiosa que punha
em cena o dramaturgo, poeta e cronista Júlio Dantas, que estreou em outubro,
no Teatro D. Maria, uma peça intitulada “Soror Mariana”, no seu jeito e talento
tardo-românticos (“talento de coisinhas”, escreveu Fialho de Almeida sobre o autor),
devidamente aplaudida, mas pateada por Almada na sala, o que o fez ir prestar contas
à esquadra vizinha (Almada que já criticara Dantas na revista Teatro, dois anos antes).
Depois dessa consequência policial, chegado a casa, na mesma noite, Almada redigiu
o famigerado “Manifesto Anti-Dantas e por extenso”, opúsculo que, por informação
numa carta sua a Sónia Delaunay, só terá sido publicado em maio de 1916, numa
edição logo comprada, em atacado, pelo visado, circulando reduzidamente, ficou
espécie bibliográfica raríssima, mas com largo eco mitológico: “Morra o Dantas!
PUM!” [sic], ficou na memória literária pelos anos fora e até hoje, como se comemora
o seu centenário – não do Dantas mas do Orpheu.
Menos a peça troçada no texto, era o seu autor que interessava a Almada e a todos
os de Orpheu, porquanto Dantas, que produzira teses de formatura em Medicina,
como um estudo sobre os “Pintores e Poetas [internados do hospital psiquiátrico] de
Guilherme Pobre 249
cort[ou] de um gesto”... Uma fotografia no-lo mostra vestido com um fato de macaco
de corte clownesco, que passou à posteridade.
As coisas passaram-se mais ou menos assim, numa sala meio cheia de curiosos
dos cafés Chiado e da Baixa, alguns estudantes, com uma popular e vistosa mundana
(negra, ao que parece) contratada para o efeito. O diário A Capital, que já perseguira
Orpheu nas suas colunas, dedicou uma crónica anónima facciosa à sessão, mas atenta
a todas as anedotas que se produziram no seu decurso – tal como os organizadores
desejavam, para marcar o evento. E, nesse sentido, Almada agradeceu à redação,
felicitando também, e “de uma só vez, o público de Lisboa pela brilhante apoteose de
que [foi] alvo”, bem como pelas “extraordinárias aptidões futuristas” que esse povo
português revelara ao ter entendido a intervenção. E Almada anunciava já uma nova
sessão: “espectáculo prático e positivo de Futurismo, em que se resolvam à vista do
público as energias mais assombrosamente cerebrais e as mais fisicamente record” e
que contaria numa segunda parte com “uma comédia futurista” em que participariam,
“interseccionistamente”, os melhores números de variedades atualmente em Lisboa e
ainda outros elementos “espontaneamente civis”. A tal anúncio, a imprensa trocista
acrescentou uma tourada e um filme, ao mesmo tempo que a Illustração Portugueza
chamava “doidos varridos” e “desequilibrados cerebrais” pela pena do tal Acácio de
Paiva, que já troçara de Santa Rita dois anos antes. Chamava isso a Almada e a todo o
grupo, com um destaque muito especial, e anónimo, de uma paródia da conferência
de Almada no Século Cómico. Isso mesmo pretendia Almada Negreiros e, sobretudo,
no caso, Santa-Rita, que preparava o seu futuro de guru do Futurismo em Portugal
que a sua revista Portugal Futurista havia de consagrar meses depois.
Tudo isto está por escrito e repetido por mim e por outros no quadro do Modernismo
português, em letras e artes. Célebres de um lado, as Letras, mais tarde as de outro, as
Artes, no ciclo mais estrito da sua polémica, deu a Amadeo de Souza-Cardozo (mas só
em meados dos anos de 1950, por descuido da geração que o sucedeu e António Ferro
protegeu) o lugar cimeiro que lhe é historicamente devido, mas deixou na penumbra
mais ou menos lendária Santa-Rita Pintor, o herói do Portugal Futurista. A revista
vinha a seu tempo, ano e meio após a falência de Orpheu e seguindo-se a outras duas
também efémeras em Lisboa, a Exílio e a Centauro, de abril a outubro de 1916, ficando
ambas no n.º1. Só um dos colaboradores do Orpheu apareceu em ambas as revistas,
Fernando Pessoa, e os outros eram variados no Exílio – aliás dirigido por um irmão
de Santa-Rita, em mais relações fraternas, o poeta mais ou menos decadentista e
mundano Augusto Santa-Rita, considerado aliás modernista por António Ferro, em
1929, e que viria a ter nome conhecido na Literatura Infantil – e na Centauro, dirigida
por Luís de Montalvor, do grupo do Orpheu, que lhe deu também Camilo Pessanha e
Raúl Leal. Em Faro, um jovem pintor de 20 anos, com bens de fortuna, Carlos Filipe
Guilherme Pobre 251
Porfírio, fez publicar, desde 1917, nos seus princípios, num jornal Heraldo, poesias
de intenção futurista, algo provincianas, mas também transcrever o grande poema
“Litoral”, de Almada Negreiros, ao mesmo tempo que hesitava na pintura que ele
próprio queria fazer. Subindo a Lisboa, a ele se ligou Santa-Rita para ter a sua revista
editada, pondo-o nominalmente na direção. Porfírio seria pintor expressionista
em 1922 numa pequena exposição, depois pintor decorador em Paris até 1939 e
ainda em 1945 e 1949, regressado a Portugal, pôde realizar duas longas-metragens,
pretensiosas, inteiramente nulas, “Sonho de Amor” e “Um Grito na Noite”, que só
em Cinemateca se podem ver (felizmente). No Portugal Futurista de Santa-Rita,
ele terá sido apenas uma vítima inocente, como entenderia Sá-Carneiro, entretanto
suicidado em Paris, vítima de si próprio. Santa-Rita, no seu meio familiar de boa
burguesia – pai funcionário e poeta amador, bem como o irmão, como vimos, e avó
materno e padrinho, conselheiro e Par do Reino, chamado Cau da Costa –, fizera
bem classificada pintura nas Belas-Artes de Lisboa, fora e deixara de ser bolseiro em
Paris, mas lá, logo em janeiro de 1911, mandou como prova de trabalho uma cópia
da Olympia, de Manet, que não deixou boa impressão no júri, ele que se formara na
sua tese em Lisboa com “Édipo e Antígona”, de boa aprovação académica. E foi José
de Figueiredo, que ia a seguir ser diretor do Museu de Arte Antiga, quem diretamente
lhe censurou a má ideia que tivera em copiar tal quadro (no qual há quem entenda
ter começado a pintura moderna no Ocidente). Essa pintura pode ver-se numa sala
na Academia Nacional de Belas-Artes, de que José de Figueiredo seria, em 1935,
presidente inaugural, na sua restauração, mas só muito depois do falecimento do
pintor.
Acamaradando em Paris, nesta altura, com Manuel Jardim, como sabemos, ambos
haviam sido influenciados pela criação manetiana que Jardim havia de assumir
como melhor destino da sua própria malograda pintura, é um ponto para avaliar o
entendimento de Santa-Rita, logo em fim de 1910, após Édipos e Antigonas escolares,
de uma nova situação da pintura, antes de ele próprio mergulhar no labirinto parisiense,
que em 1912 seria almejadamente futurista. A cópia de Santa-Rita, realizada com
suficiência técnica e entendimento do problema pictural posto, no “acordo tonal
usado dos àplats do nu banal”, para além do escândalo da imagem clássica, colocada
em tempos de vivência moderna, baudelairiana, como se diria (que não em Lisboa). É,
como se sabe, das raras obras que Santa-Rita que existe, pois, ao morrer em 1918, ele
pediu à família que tudo destruísse, e mesmo antes, ao seu amigo Saavedra Machado,
que o contou publicamente. Antes de “Olympia”, porém, existe “Orfeu nos Infernos”,
de cerca de 1907, espécie de brincadeira escolar, largamente brochada, com caricaturas
dos professores de Lisboa que, cerca de 1917, ele ainda vendeu ao seu amigo Alberto
Monsaraz, que durante muito tempo o conservou e é hoje curiosidade por demais
252 100 Orpheu José Augusto França
valorizada. Mas de 1912 resta outro quadro, no Museu do Chiado, que tem especial
importância na história da pintura moderna portuguesa. Não assinado e datado, no
verso, de 1910 por mão que não será a do pintor, esta cabeça “cubo-futurista”, tem
sofrido justa discussão crítica por alguma similitude com pinturas de Severini, com
quem Santa-Rita terá tido proximidade em Paris. Oferecido pelo pintor a Manuel
Jardim e pelos seus herdeiros cedido à Secretaria de Estado que sucedeu ao SNI, no
fim do Estado Novo, o quadro passou atualmente para o Museu do Chiado, assim se
salvando como “ícone polémico da Modernidade num país que não podia tê-la...”.
Pintura primeira da sua espécie, assim o escrevi e repito, contando bem os passos
cronológicos de Amadeo de Souza-Cardoso, que, em 1912, data mais provável da tela
de Santa-Rita, ainda não assumira a posição criativa original: cubista sim, e órfica,
nunca definidamente “futurista”), que admiravelmente explodira na sede das últimas
pinturas de 1916/17, na Fundação Gulbenkian. “Esta agressiva cabeça de ave, máscara
africana nos seus bicos, olhos encovados no movimento elíptico do desenho, uma
espécie de vórtice que só dois planos, por similitude cubistas, interrompem e um sinal
de ouvido em caixa de violino pontua, fora de propósito formal ou antropomórfico”;
esta pintura, “no seu jogo de volumes e grafismos”, é uma peça notável dos anos 1910
europeus e uma peça única na pintura portuguesa. Peça milagrosa, considerado o
quadro moroso em que ela poderá ter-se desenrolado, que, em 1918, se acabaram com
a morte de Santa-Rita e de Amadeo, a poucos meses de distância.
No Portugal Futurista foram reproduzidas quatro obras de Santa-Rita, mas não
esta. E perguntar-se-á porquê, tendo em conta a sua estratégia de carreira. Vemos
lá o “Orpheu nos Infernos”, com um comentário laudatório inconsequente, em
que se fala de “fisiognomia mefistofélica”, em que o pintor aprovou ou fez redigir;
“Perspectiva Dinâmica de um Quarto ao Acordar”, de 1912; “Cabeça = Linha –
Força. Complementarismo Orgânico”, de 1913; e “Abstração Congénita e Intuitiva
(Matéria Força)”, de 1915. Se a primeira “obedece a um sistema futurista ortodoxo na
dinamização espacial, em que as ondas de vibração dos objetos têm um tratamento
de ordem cubista” (escrevi-o em 1974), a outras duas peças inscrevem-se no tempo,
entre ou depois, das obras que tinham sido reproduzidas no Orpheu e que no Portugal
Futurista tinha sido definitivamente assumida. Para Santa-Rita era o extremo limite
das suas forças criativas e físicas também, que pouco mais ele duraria, até abril do
ano seguinte, já em “estado gravíssimo de saúde”, como Manuel Jardim escreveu,
informado pelo Professor Vilhena.
Mas a via de colaboração de Santa-Rita no Portugal Futurista foi outra e
indireta, quer pelo seu retrato fotográfico de página inteira, quase a abrir a revista,
convenientemente encenado, quer por dois textos que se lhe referiam de Bettencourt-
Rabelo e de Raúl Leal, que no Orpheu publicara o alucinado texto “Atelier (novela
Guilherme Pobre 253
vertígica)”, como que predisposto para o que da arte de Santa-Rita havia de entender.
E fora no n.º 2 da revista de Sá-Carneiro que o pintor tivera a primeira entrada em
cena, como anunciada “colaboração especial do futurista Santa-Rita Pintor”, com
fotogravuras de “quatro hors-textes duplos”, na medida em que se dobravam a sua
dimensão, de papel couché, nos cadernos do volume. São datados de Paris, “annos”
de 1912 e 1913, dois deles, e 1914, realizados a carvão ou traço de guache branco e
com técnica cubista dos papiers collés. Os originais desapareceram, em incalculável
a perda do património artístico português, porque se trata de quatro peças senão
fundamentais – porque nada fundamentaram ou teriam podido fundamentar em
Portugal – de extrema originalidade no quadro europeu do Futurismo, que delas não
tomou conhecimento historiográfico ou estético, nas mais autorizadas e mesmo mais
recentes pesquisas sobre o grande movimento italiano. Ignorado para sempre (?):
terei sido o único historiador deste período dos anos 1910 a assinalar a presença de
Santa-Rita Pintor, em 1987, numa História da Arte Ocidental – tentada para além das
grandes vias esculturais em que ela tem sido estabelecida na lei dos centros maiores de
produção e da sua pesquisa universitária ou da sua indústria editorial.
Evoquemos primeiramente (como Santa-Rita evidentemente desejava, em
atitude provocatória) os títulos destes trabalhos, que ultrapassam em proposição
ou reformulação teórica (embora inspirados em teses de Boccioni) o quadro
estético do Futurismo italiano: “Decomposição Dinâmica”, “Síntese Geometral”,
“Compenetração Estática”, designam atuações ou reflexões plásticas, em situações
alegadas, respetivamente, de “interseccionismo plástico”, “sensibilidade radiográfica”
ou “litográfica”, ou “mecânica”, que dificilmente poderemos distinguir no exame
das próprias obras. Devendo, porém, entender-se (como escrevi) que se trata de
uma “atitude conceptual”, que ainda assim se não nomeava. A “Decomposição
Dinâmica” (declarada na peça de 1912) é o de uma mesa, adicionado (com o sinal
“+”) a “estilo de movimento” e a obra deixa perceber, em planos geometricamente
opostos, a mesa modelo desfeita. Por que a fez Santa-Rita reproduzir após as
outras três obras, quanto a sua leitura formal e a sua datação a situam à cabeça
do discurso histórico proposto? Trata-se, na sua realidade, de uma proposta
demonstrativa de “interseccionismo plástico”, enquanto as outras três peças, dadas
como demonstrações de “sensibilidades”, provocadas gráfica ou mecanicamente, se
referem a cabeças-modelo. “Estojo científico de uma cabeça”, marcada com insistência
no fator “luz”, pelo “aparelho ocular” + “sobreposição dinâmica visual + reflexo de
ambiente” que se multiplicam (“X”) pela “luz” (é a primeira reprodução de 1914); ou o
seu “interior” “compenetrado”, identificado com o seu “complementarismo congénito
absoluto” (e tem sido a obra mais reproduzida por facilidade de identificação formal);
ou a sua “Síntese geometral [de uma cabeça], multiplicada [“X”] por “infinito plástico
254 100 Orpheu José Augusto França
que viera à Capital, apresentado por Carlos Porfírio no Café Martinho (ao lado do
Teatro Nacional) a Santa-Rita e logo por ele foi convidado para “redacteur-en-chef ”
da sua revista, que “nos ia pôr em contacto com a Europa!”. Não o foi, nem editor
responsável, posto atribuído a um anónimo (se existente) C. Ferreira. Mais tarde,
em 1928, ele recordaria num livro de crónicas e memórias, O Mundo das Imagens,
o fascínio sofrido, tal como e principalmente, conta ele, o sofreu Almada Negreiros.
Depois ainda, em 1929, Bettencourt lançaria um magazine medíocre que ficou no
primeiro número, chamado Lisboa Galante, sem mais notícia até morrer, em 1969.
O autor de outro texto consagrado da revista era Raúl Leal: “L’Abstraccionisme
Futuriste. Divagation outrephilosophique – Vertige à propos de l’oeuvre géniale de
Santa Rita Pintor, “Abstraction Congénitale Intuitive (Matière-Force)”, la suprème
réalisation du Futurisme” refere-se à obra que vimos mal reproduzida na revista.
Era “L’Abstraction Futuriste” que o autor declarava alcançada nesta obra: Santa-Rita
“concebeu em síntese a irrealização integral de toda a teoria futurista sobre a vida!”.
Raúl Leal teria correspondência com o próprio Marinetti, a quem ele queria converter
às suas teorias, mais teosofistas, a certa altura. Trinta e nove vezes a palavra ‘Vertige’
é avançada neste breve texto de duas páginas, redigido em excelente francês, que o
“Vertiginisme” está mais para além do “mais o Futurismo pode dar”, “concebendo
então perfeitamente o “concrét-en-abstrait” – Vértige, “où il n’ya a rien de physique”. E
nisso “Santa-Rita Pintor “est un futuriste outré, son génie est la quintessence du GÉNIE
FUTURISTE!”. Raúl Leal (que, em 1924, se ocuparia também d’“a luxuriosa loucura de
Deus”, em Mário Eloy, falando do seu “ultra-Futurismo” – que já está historiada – e ainda
nos anos 1950 ele se debruçaria sobre o Realismo em convívio com Mário Cesariny) foi
o único dos grandes de Orpheu a ter, na altura, voz significativa a favor de Santa-Rita,
numa admiração sincera e fascinada, que ainda quarenta anos mais tarde se manifestará
em artigos da revista Tempo Presente, no n.º 3, em 1959, a insistir na “ética pessoal e
dignificadora” do seu “grande Amigo e admirável Artista”. Pouco depois, na mesma
publicação, Raúl Leal revelará uma magna obra com que Santa-Rita então sonhava: “O
Papão”. Tratar-se-ia de grandes pinturas a fresco, no Mosteiro dos Jerónimos, “desenhos
coloridos informes (…), que dessem imediatamente a forte impressão alucinatória
desse mundo astral, apavorante, expresso em abstrato, que evocassem (…) o mundo
abismicamente espectral que perturbava exaltadamente as imaginações delirantes dos
nossos antigos navegadores…”. Estamos em 1917, durante a congeminação desta grande
obra, de que Raúl Leal teria guardado a lembrança. “Soberbo sonho pictural”, Santa-Rita
levou-o consigo ao morrer logo três meses depois da publicação de Portugal Futurista.
“– Serão febres de África, senhor Doutor?” – “Ah, o Senhor Santa-Rita está em África”,
acudiu o médico desesperado com o complexo quadro clínico do moribundo. “– Não,
nunca lá fui…”. Foi a última anedota que sobre Santa-Rita correu em Lisboa…
256 100 Orpheu José Augusto França
mesmas histórias estropiadas ainda existia”. Porque tinha sido com ele, Santa-Rita, e
com Amadeo que Almada fizera juramento de estudar os painéis de Nuno Gonçalves,
rapando então, à navalha, os cabelos como “selo do nosso pacto!”. Assim se esboçou
– não pode saber-se com que grau de consciência dos outros dois comparsas – o que
viria a ser o leit-motiv da criação almadina.
Não foi diretamente Santa-Rita que Almada teve que falar, ele que lhe dedicará,
e a Amadeo, a conferência sobre o “Modernismo”, realizada em 1926, mas em seu
nome o fez quando, em 1932, à vinda de Marinetti (“académico do Fascismo italiano”)
a Lisboa, trazido por António Ferro (então a preparar-se para o Secretariado da
Propaganda Nacional, com a sua proposta de “Política do Espirito”), “em habilidades
do seu programa pessoalíssimo” – palavras do Almada –, veementemente protestou
nas colunas do Diário de Lisboa contra o “ameno sarau mundano para deleite dos
pompiers nossos amigos”, realizado ante os três mais categorizados inimigos do
Futurismo em Portugal e que eram, além do António Ferro– editor menor do Orpheu
–, que trouxera o Marinetti, e de Adães Bermudes, presidente da Sociedade Nacional
de Belas-Artes, onde a sessão teve lugar, também, academicamente, Júlio Dantas,
o fantasma de 1915, “em memória dos nomes heroicos do Futurismo português”,
Almada Negreiros falou em palco.
Estamos em 1932. Vinte anos depois do centenário do Orpheu e cinquenta anos
depois do episódio Marinetti, alguém, um jovem José António Sampaio (que não
conheço), nas páginas da revista portuense Nova Renascença, em 3 de março de
1983 (n.º7), chamou à atenção para Santa-Rita, num artigo bem informado no seu
entusiasmo e que provocou reação imediata de João Gaspar Simões, no Comércio
do Porto (3 março 1983). Gaspar Simões que, achando ser “pecha dos portugueses
exaltar o valor dos que pouco ou nada fazem para, assim, pôr em cheque o valor dos
que muito realizam”, recusou a “reabilitação” dessa “espécie de símbolo clownesco do
modernismo órphico, que representa um dos maiores vícios da mentalidade nacional:
a inércia”, deste Santa-Rita; que “nada nos legou, além de um fabulário anedótico” e
cuja obra “nada representa, nada é”. Não será, com certeza, a última manifestação de
um desentendimento crítico fundamental que, na pena de quem se assumia como
a revista presença, “Nós, a presença”, 1935) – na altura a publicação de referência do
Modernismo da geração anterior – tem particular gravidade, no mesmo momento
em que Fernando Pessoa, nas páginas do lado da revista Sudoeste SW, de Almada
Negreiros, assinava como “Nós, os de Orpheu”, entre os quais Santa-Rita (não é
mencionado), para ele a “alta sensibilidade moderna”, “inteligentíssimo e muito
pitoresco”, do convívio havido em Lisboa, em 1915. Quanto a Santa-Rita, escreveu,
em setembro de 1915, “Orpheu não acabou, Orpheu não pode acabar”. Tratava-se de
surgir outra vez, à superfície, mais adiante.
Um poeta madeirense herdeiro do círculo do Orpheu?
Vasco da Gama Rodrigues e a sua ideografia do Portugal futuro
(com publicação de carta inédita a António Quadros)
1 CIDH – Cátedra Infante Dom Henrique para os Estudos Insulares Atlântico e a Globalização/Universidade
Aberta/CLEPUL – Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
2 Sobre este campo de pesquisa e análise, têm já vindo a lume diversos estudos e propostas de sistematização.
Recordamos aqui a nossa recente obra coletiva, onde apresentamos um elenco bibliográfico para dar a
conhecer este vasto território de investigação (FRANCO, J. E. e CALAFATE, P., 2012).
260 100 Orpheu José Eduardo Franco
Açores numa futura e profetizada regeneração de Portugal, num tempo em que o país
se reabilitaria da hiper-diagnosticada decadência dos últimos séculos e da perda do
lugar cimeiro no xadrez das nações, ou da posição de liderança mitificada e situada na
Idade de Ouro proto-moderna que teria ocorrido há cinco séculos.
É bem conhecida a contribuição de uma desconcertante autora açoriana na
segunda metade do século XX para a literatura portugalófila, reivindicando uma
recentração do Portugal futuro, que se redimirá da Idade de Ferro em que persiste,
no eixo insular representado em ilhas açorianas (São Miguel e Santa Maria). A
irreverente escritora Natália Correia metamorfoseia assim a utopia do Quinto
Império de Vieira numa perspetiva feminina. É, na verdade, mais no Quinto Império,
na versão mística e esotérica de Pessoa e de Agostinho da Silva, que Natália Correia
assenta a sua ideia, acentuando a sua inscrição no profetismo joaquimita – que
anunciava a Idade do Espírito Santo identificada com essa anunciada plenificação
da História – sob égide portuguesa, tendo como eixo de partida as ilhas açorianas:
“Consideremos que os homens que acham os Açores, e dão nomes às suas ilhas
são da confiança do Infante, por conseguinte impregnados da mística pentecostal
adoptada pela Ordem de Cristo que recebe dos Templários e dos Franciscanos. É
caso, pois, para perguntarmos se logo nos nomes que deram às duas primeiras ilhas
achadas – Santa Maria e São Miguel – não teremos um pórtico para a formação
de uma comunidade que testemunharia os primeiros passos expansionistas para a
fundação do Reino do Espírito Santo na história, projeto que seria o motor místico
dos rasgos descobridores do Infante”3.
Além desta inscrição insular do ponto de partida para a regeneração da humanidade,
Natália Correia oferece como novidade a perspetiva feminista do Quinto Império, ou
seja, esta será uma idade feliz na terra porquanto orientada por valores característicos
do universo feminino. O fundamento é dado através de uma afirmação ontoteológica
axiomática que considera a terceira pessoa da Trindade Divina como o lado feminino
de Deus, que inspirará a consumação da História4.
O outro aspeto peculiar que nos interessa aqui sobremaneira é o papel refundador
do Portugal futuro e do mundo novo que o nosso país protagonizará, realizado a partir
do arquipélago açoriano e do seu eixo místico-profético, constituído por Natália como
ponto de partida para que se opere uma renovatio temporum da história da humanidade.
Se é mais conhecida na cultura açoriana a afirmação de uma literatura e de uma
identidade própria, assim como a sua contribuição distinta e distintiva para a identidade
nacional, quer diferenciando-se desta quer complementando-a com vantagem,
água”, do regresso à “tellus mater”8, com quem se tem uma relação filial, de devoção,
de imitação e de desejo de regresso à ilha-mãe-natal, como uma espécie de fatalidade9.
Gilbert Durand, noutro ângulo, considera que “todas as imagens da terra e da água
contribuem para constituir uma ambiência de volúpia e de felicidade que constitui
uma reabilitação da feminidade”. Por isso, “o eterno feminino e sentimento de natureza
caminham lado a lado na literatura”10. Como já escrevemos noutro estudo, “a ilha detém
um capital simbólico de que decorrem potencialidades utópicas poderosas. A ilha é ao
mesmo tempo o lugar do paraíso, mas também a possibilidade da sua recuperação, isto
é, a possibilidade de uma nova criação”11. A ilha é também associada à noção de lar, de
aconchego materno, de casa íntima, do descanso, da regeneração da alma e do corpo,
a morada do amor, da harmonia, da liberdade e até da libertação dos sentidos, espaço
protegido da história turbulenta e fraturante dos continentes”12.
O campo simbólico da ilha representa uma realidade unificante e unificada, um
símbolo de agregação. De acordo com os dados da psicologia arquetípica de C. G. Jung,
o território insular insere-se no conjunto de símbolos de unidade13. A ilha é o lugar
recatado, separado, sagrado, onde, longe da confusão, se realiza a unificação do disperso.
É o lugar privilegiado de intermediação entre o humano e o divino14. Em suma, o
potencial simbólico do genus locii insular faz desta geografia simbólica o lugar de paz, de
fraternidade, no fundo, “um lugar capaz de Deus”. Talvez por isso mesmo o conceito de
Utopia ideado por Thomas More situe numa ilha a construção de uma sociedade ideal15.
Um desses autores madeirenses que pensou Portugal, tendo como pano de fundo
a sua origem insular, foi o hoje desconhecido Vasco da Gama Rodrigues. Funcionário
público, mas apaixonado pelo mundo das Letras e da História, conviveu com poetas
que vinham do Círculo do Orpheu, nomeadamente Fernando Pessoa, e partilhou das
suas preocupações relativamente ao Portugal em estado de nevoeiro de então. Nascido
a 27 de janeiro de 1909 no Paul do Mar, fez a formação liceal na capital madeirense
e viveu em Moçambique, mas acabou por se radicar em Lisboa, onde se tornou
funcionário do Secretariado Nacional de Informação. Como funcionário público
16 O etnónimo “Atlantes” designa na acepção de Vasco da Gama Rodrigues os habitantes da Atlântida, ou os que
descenderão deste ilha-continente que emergirá do Atlântico, que serão os cidadãos construtores do Portugal
e do novo mundo futuro. Todavia, o nome próprio “Atlante” tem uma ressonância mítica que remete para
o gigante assim denominado na mitologia grega como um dos Titãs, filho de Jápeto e Climanes. Era quem
tinha sido encarregado por Zeus para segurar as colunas celestes onde assenta a Terra. Por seu lado, existe
outra tradição em versão feminina, que faz das Atlantes as filhas de Atlante, as quais alvo de um rapto pelo
rei do Egito, Bursiris, e depois devolvidas a seu pai por Hércules que as resgatou. Outra tradição ainda chama
Atlantes aos habitantes da Mauritânia no território ocidental de África, que teria sido governado por Atlas.
264 100 Orpheu José Eduardo Franco
“A Lusitânia é o lugar do fogo sagrado da Terra, o Lar eterno do Povo da Luz. Éden do Mundo,
original e criador, tornou-se o alvo da cobiça, ambição e inveja de todos os contrários, ou
seja, de quem é natural ou pertence ao paralelo oposto e, portanto, ausente de Luz.”18
que debruçado na sua Ponte-Cais olhando fixo o cristalino do Mar avista ali, diante de si,
num só ponto, os quatro pontos cardeais, a par da vitória daqueles Argonautas contra todos
os Titães e contra o próprio Mestre da Morte e dos Infernos e, por fim, como prémio, o
mundo-terra a seus pés.
Portanto, os Portugueses – os homens dos portos – vencedores do Mar Tenebroso e
descobridores dos quatro caminhos do Mundo, foram os construtores, os instituidores, os
fundadores do império.”21
21 Ibidem: 25.
22 Ibidem: 27-28.
Um poeta madeirense herdeiro do círculo do Orpheu? Vasco da Gama Rodrigues e a sua ideografia do Portugal futuro 267
“Reino de Mar, abrange todo o oceano desvendado pelo Argonauta, por aquele que,
ardendo em fé, deixou certa vez o porto de Portugal em busca do sagrado vaso do amor
imortal João – o Prestes. Ilha encoberta, diluída sobre todo o espaço da Terra, é a Pátria do
Ar – o Terceiro grau o Ar –, a Essência Quinta mergulhada em sonhos isentos de manchas,
sombras e terra, o centro autêntico da inteligência da redenção universal, o núcleo do
Coração generoso do Homem sem limite nem lugar. [...] Ora os Lusitanos, os homens dos
portos, os descobridores do mar vivo e da Ilha Encoberta – a Pátria da Essência Quinta –
como todos os discípulos da última pessoa da Trindade, chamam-se ATLANTES”23.
23 Ibidem: 35.
24 Podemos estabelecer alguma aproximação a um outro autor madeirense, Abel Tiago Vasconcelos e Sousa,
que tinha escrito em 1924 uma obra teleológica com o nome Sinais dos Tempos, onde preconiza, eufórico com
as pioneiras viagens áreas de cruzamentos dos ares entre continentes de Gago Coutinho, que Portugal e o seu
Quinto Império passará pelo domínio dos ares, através do desenvolvimento da tecnologia aeronáutica sob a
liderança portuguesa. Ver SOUSA, A. T. V., 1924.
268 100 Orpheu José Eduardo Franco
A teologia da história de Joaquim de Flora e a sua teologia das três idades ou três
estados da história da humanidade está bem patente no esquema hermenêutico de
Vasco da Gama Rodrigues, o qual estrutura a obra publicada em 1972, As Três Taças. A
deriva histórica do Ocidente é apresentada como uma evolução em tensão dramática de
afirmação espiritual em ordem a uma consumação numa Idade do Espírito vencedor.
Figuras-símbolo são usadas para representar as idades da história que preparam a
terceira e última idade. As pessoas da Trindade Divina são as primeiras configuradoras
divinas das três idades humanas, marcadas pelo ritmo do ciclo triádico da Idade de
Vasco da Gama Rodrigues completa na obra póstuma Cristo das Nações a sua
hermenêutica, fazendo da história portuguesa uma história crística. Portugal e a
sua teologia da história seria uma metonímia da vida e do destino de Cristo, uma
espécie de encarnação da missão e sentido da vida de Cristo. Se Cristo e os seus gestos
aconteceram para a redenção do género humano, Portugal encarnaria como povo
essa missão, para a consumação da transfiguração da humanidade numa idade final
da história, desocultando o mundo que vivia nas trevas e dando-lhe o sentido e a
realização final.
À semelhança de conteúdos de outras tradições profético-nacionalistas, como o
caso conhecido da tradição moderna da Polónia28, país que também se via “como
Cristo das Nações”, Vasco da Gama Rodrigues identifica a missão de Portugal com a
missão de Cristo, ou mais ainda, Portugal seria o instrumento para consumar à escala
universal a missão do Salvador. Portugal, qual povo eleito da Nova Aliança, de que o
povo de Israel era prefiguração, seria o instrumento para universalizar a redenção de
Cristo agora proporcionada a todo o género humano. Esse processo teria começado
com as viagens de descobrimento e missionação planetária no século XV e aguardava
agora a plenificação na Terceira Idade do Mundo29.
Vasco da Gama Rodrigues, através do recurso a elementos de várias tradições
e correntes, mas acentuando a sua óptica insular, resultante da sua marcada
proveniência insular, propõe um futuro glorioso para Portugal, que o liberte da
sombra em que vive, e cumpra de forma plena a missão que a sua origem e a sua
história determinam.
Este poeta insular recusa, apesar da abordagem do seu pensamento poder numa
determinada óptica indicar isso mesmo, que o apodem de sebastianista ou o inscrevam
em correntes ideográficas de Portugal nas quais não se revê. Numa carta inédita a
António Quadros, que aqui reproduzimos em anexo, Vasco da Gama Rodrigues
reivindica para si o estatuto de poeta que canta o Amor e anuncia o Reino do Amor,
que não é outra coisa do que o Reino do Espírito Santo, a Idade do Espírito, a idade
final da História. Com efeito, o Amor é o cerne da sua ideia de Portugal, o motor
íntimo da história de Portugal, e não qualquer sebastianismo ou astrologismo. António
Quadros, na sua emblemática obra sobre a poesia e filosofia sebastianista portuguesa,
tentou colocar-lhe rótulos que desagradaram a Rodrigues. Definiu a sua obra poética
como “inteiramente uma filosofia mítico-profética da história”, “excessivamente
dominada pela linguagem cifrada”, apresentando-o como “astrólogo”, que “tende mais
a uma conceituosa geometria esotérica do que a uma poética”30. Gama Rodrigues não
concordou com esta análise e escreveu-lhe a manifesta o seu desagrado, pedindo que
revisse a sua proposta de avaliação e classificação da sua poesia patriótica (Ver carta
anexa).
O “Agora” deste poeta insular é, segundo entendemos, o mesmo grito do “É hora” de
Fernando Pessoa e participa neste escopo bem português de reforçar a sua identidade
histórica através do apelo do futuro para superar a ideia de insuficiência do presente.
Atualiza a utopia portuguesa do Quinto Império, mas inscrevendo-a plenamente
na tradição teleológica joaquimita, projetando a Terceira Idade da História, sob
égide portuguesa e assente no influxo recriador do Paráclito como o dispensador da
plenitude do amor.
Anexo
Carta Inédita de Vasco da Gama Rodrigues a António Quadros
Informado como fui por um amigo de que você tinha dedicado alguma atenção no
seu recente livro acerca do sebastianismo à obra de poesia por mim publicada, tive a
curiosidade e o interesse de verificar o que a experiência de homem de 74 anos poderia
causar no pensamento reflexivo de um homem de 60. Creio que é esta a sua idade.
Além disso, convivemos há cerca de um vinténio. Perdoe-me você a discordância que
manifesto perante o seu modo de interpretar o sebastianismo como denominador
comum dos portugueses ilustres que publicaram obras sobre este tema ou sobre temas
convergentes. Com efeito, parece-me que o seu ponto de vista se situa tão alto, é tão
geral, que engloba no mesmo mundo teorias, pessoas e obras completamente díspares e
que, por mais que pense, julgo não terem como eixo o mito sebástico. Estão neste caso,
por exemplo, Teixeira de Pascoais, José Régio e Fernando Pessoa, para só me referir a
alguns que você cita na sua obra. Com efeito, mostram tão radicais diferenças que não é
possível determinar o seu denominador como o sebastianismo em que comungariam. As
afinidades entre estes poetas são realidade, mas Teixeira de Pascoais aspira à saudade –
que é uma deusa feminina e mergulha por entre as sombras; José Régio oscila indeciso
entre um Cristianismo não Católico e uma ideia de Deus que se lhe afigura longínqua
relativamente a este mundo; quanto a Fernando Pessoa, você estudou-o longamente
para poder concluir, como concluiu, das suas radicais diferenças em relação àqueles dois
poetas.
31 Carta patente no Espólio de António Quadros, obtida por gentileza de Rosa Canarim Fina. Transcrição feita
por Joana Balsa de Pinho e José Eduardo Franco.
272 100 Orpheu José Eduardo Franco
Outro exemplo. A obra por mim publicada nada tem que ver com o sebastianismo e o
António Quadros sabe bem que nela se anuncia o Reino do Amor, o Reino do Paracleto.
Assim, não consigo entender como pode envolver esta obra na comparação com a obra
publicada por Fernando Pessoa. De resto, como você sabe a comparação é usada como
processo mágico de que resulta o mais ou menos, processo este muito utilizado pelo
jornalismo vulgar, dado que representa a forma inferior da imaginação. O António
Quadros certamente há de aceitar que um poeta preferira à comparação a analogia.
Muito estranhei também o ter-me apodado do astrólogo quando você tratava de uma
obra poética. Como sabe, a astrologia é atualmente uma profissão remunerada que,
se não é reconhecida pela Universidade, é publicitada, porém, pelos jornais. Requer,
portanto, que quem a pratique receba remuneração e é frequentemente associada ao
charlatanismo.
Se alguma vez a minha amizade me fez dar-lhe indicações das relações dos astros
com a vida humana e particularmente com a sua não há entre as pessoas que comigo
convivem o reconhecimento de tal profissão. De facto, nunca foi essa a minha intenção e
prática. Por isso, peço-lhe que se tiver outra oportunidade para se referir à obra por mim
publicada, se lhe refira como a obra publicada por um poeta. Na sua opinião boa ou má.
Assim, só peço o mesmo que você concedeu a quem comigo comparou: Fernando Pessoa
fazia horóscopos e ninguém disse que ele era astrólogo.
Um abraço do amigo que o lê com muita atenção,
Bibliografia
Nas palavras de Fernando Pessoa, «Só duas nações – a Grécia passada e Portugal
futuro – receberam dos deuses a concessão de serem não só elas mas também todas as
outras. Chamo a atenção para o facto, mais importante que geográfico, de que Lisboa
e Atenas estão quase na mesma latitude» (PESSOA, F., 2000: 197). A influência do
helenismo é perceptível em diversos momentos da produção literária pessoana. Aqui
selecionamos Ulysses1, poema integrante da primeira parte de Mensagem. Parece-nos
merecedor de especial atenção o texto de Roman Jakobson sobre poema pessoano
referido, que ressalta a presença mítica do rei de Ítaca em Lisboa e lembra-nos que:
“O herói da estrofe central, Ulisses, – cujo desembarque lendário na embocadura do
Tejo se deve apenas a um vínculo paronomástico entre seu nome e Lisboa, e cuja
existência tem, ela mesma, um caráter mítico” (JAKOBSON, R. 1970: 100-101).
1 Utilizaremos a grafia Ulysses para registrar o título do poema pessoano e Ulisses para o nome do herói grego,
a fim de distingui-los.
276 100 Orpheu Zilda de Oliveira Freitas
Importa-nos destacar que a mítica passagem do herói grego2, por terras lusitanas
é, ao mesmo tempo, rememoração do passado e comemoração do devir português.
Em Ulisses está concentrada a reminiscência do mito referido na fundação da pátria
e, concomitantemente, a expectativa sebastianista pelo vindouro Quinto Império
português, pois, assegura António Apolinário Lourenço nas palavras seguintes:
O mito garante ao homem que o que ele se prepara para fazer já foi feito, e ajuda-o a
eliminar as dúvidas que poderia conceber quanto ao resultado do seu empreendimento. Por
que hesitar ante uma expedição marítima, quando o Herói mítico já a efetuou num tempo
fabuloso? Basta seguir o exemplo (ELIADE, M., 2007: 125).
2 A este nível, atente-se na possibilidade de “ir assim reatar o fio da tradição grega perdida”, mencionada por
Dionísio Vila Maior n’As lições de Fernando Pessoa (VILA MAIOR, D., 2012: 273).
A Mensagem de Fernando Pessoa ao povo português 277
3 Mircea Eliade afirma que “A definição que a mim, pessoalmente, me parece a menos imperfeita, por ser a
mais lata, é a seguinte: o mito conta uma história sagrada, relata um acontecimento que teve lugar no tempo
primordial, o tempo fabuloso dos ‘começos’” (ELIADE, M., 2007: 11).
278 100 Orpheu Zilda de Oliveira Freitas
4 Afirma o mitólogo que “A mitologia tem muito a ver com os estágios da vida, as cerimônias de iniciação,
quando você passa da infância para as responsabilidades do adulto, da condição de solteiro para a de casado.
Todos esses rituais são ritos mitológicos. Todos têm a ver com o novo papel que você passa a desempenhar,
com o processo de atirar fora o que é velho para voltar com o novo, assumindo uma função responsável.
Quando um juiz adentra o recinto do tribunal e todos se levantam, você não está se levantando para o
indivíduo, mas para a toga que ele veste e para o papel que ele vai desempenhar” (CAMPBELL, J., 2008: 12).
A Mensagem de Fernando Pessoa ao povo português 279
7 Cf. o percurso do herói nos comentários do pesquisador Junito Brandão (BRANDÃO, J. S., 2000).
A Mensagem de Fernando Pessoa ao povo português 281
Ulisses constitui aquilo que alguns críticos contemporâneos definiriam como um “discurso”
da civilização ocidental; para os historiadores, um ‘imaginário’ ‘de longa duração’ - em
outros termos, um arquétipo mítico que se desenvolve na história e na literatura como um
constante logos cultural. Parafraseando Bernard Andrae, Ulisses representa a ‘arqueologia’
da imagem europeia do homem (BOITANI, P., 2005: XIV).
Incluída, pois, na obra pessoana como um livro sui generis, Mensagem, a mais portuguesa
das obras de Pessoa, é válida por seu alto nível poético por sua primorosa estrutura
e pela captação total da alma portuguesa, heroica e mítica, saudosista e messiânica
(BERARDINELLI, C., 2004: 132).
8 Assim é descrito o herói na epopeia homérica que narra sua jornada: “Mas nunca com os olhos eu vi nada
que se comparasse/ Com o amável coração do sofredor Ulisses. /Que feitos praticou e aguentou aquele
homem forte (…) Nós os dois estávamos desejosos de nos levantarmos/ e de sairmos; ou então de responder
lá de dentro. /Mas Ulisses impediu-nos e reteve-nos, à nossa revelia (…) E assim salvou todos os Aqueus”
(HOMERO, 2006: 264-268).
282 100 Orpheu Zilda de Oliveira Freitas
a sonhar uma pátria que nunca tivesse tido’. Revivendo a fé no Quinto Império, Pessoa
inventou uma razão de ser, um destino, fugindo à angústia dum quotidiano absurdo,
genialmente expresso por ele e Álvaro de Campos (COELHO, J. P., 1983: 106-107).
9 A respeito da invenção de uma razão ou destino para fingir e fugir do quotidiano absurdo, mencionado no
fragmento do texto de Jacinto Prado Coelho, escreve Fernando Pessoa: “Sendo assim, não evoluo: VIAJO (por
um lapso na tecla das maiúsculas, saiu-me, sem que eu quisesse, essa palavra em letra grande. Está certo, e
assim deixo ficar). Vou mudando de personalidade, vou (aqui é que pode haver evolução) enriquecendo-me
na capacidade de criar personalidades novas, novos tipos de fingir que compreendo o mundo, ou, antes, de
fingir que se pode compreendê-lo” (PESSOA, F., 2006: 22).
10 Cf. a afirmação de Eduardo Lourenço: “É da realidade que o mito se alimenta, é no mito que a realidade se
torna significante” (LOURENÇO, E., 2000: 21).
A Mensagem de Fernando Pessoa ao povo português 283
ULISSES
Com recurso ao oximoro, fica aqui perfeitamente insinuada a natureza utópica do grande
sonho veiculado pelo poeta neste livro: o Quinto Império. Como referimos na ‘Introdução’,
ele próprio afirma no inquérito promovido por Augusto da Costa e recolhido no seu livro
Portugal, Vasto Império que o principal meio para levantar moralmente uma nação é a
exploração insistente de um grande mito nacional (LOURENÇO, A. A. In: PESSOA, F.,
2008: 82).
11 Ao analisar Mensagem, Agostinho da Silva ressalta que “a missão de Portugal não poderá ser outra senão a de
resgatar o que a Europa fez e de salvar a seus próprios olhos” (SILVA, A. da, 1958:18).
284 100 Orpheu Zilda de Oliveira Freitas
pelos desejos do povo e de seu representante, o poeta, que recria e reconta o mito12,
adaptando-o às suas necessidades e à sua época, como fizeram Homero e Fernando
Pessoa.
A estrofe seguinte possui igualmente grande interesse para o entendimento da
aludida concepção mítica no texto de Fernando Pessoa. Se anteriormente identificamos
no poema uma devoção familiar aos conceitos e dogmas helénicos e cristãos no que
se refere à divindade, a segunda estrofe apresenta-nos o herói navegador Ulisses que,
– durante sua itinerância e aventuras na viagem de retorno à Ítaca – teria miticamente
fundado a cidade de Lisboa. Iniciar a segunda estrofe do poema com Este é anunciar
e, simultaneamente, ocultar o mito a respeito do qual escreve. Deve o leitor terminar
a leitura da estrofe e ter conhecimento prévio da mítica presença de Ulisses na costa
lusitana para associar Este ao herói grego. Deve ainda o leitor ter acesso aos elementos
míticos que denotam as reminiscências da narrativa mítica que afirma ser Ulisses o
fundador da cidade.
Enfim, Fernando Pessoa escreve sobre o herói grego para aqueles que saberiam
entender seus versos e – como ele – desejassem restaurar a memória da fundação da
capital portuguesa. Acreditamos que seja esta a mensagem de Mensagem, ou seja, a
sua proposta de restauração nacional, a partir do resgate e revalorização das tradições,
valores, costumes, mitos e crenças do imaginário pátrio. Recuperamos aqui o excerto
anteriormente referido, no qual António Apolinário Lourenço cita Fernando Pessoa:
“ele próprio afirma que (...) o principal meio para levantar moralmente uma nação é a
exploração insistente de um grande mito nacional” (LOURENÇO, A. A. in PESSOA,
F., 2008: 82). Portanto, associando a memória mítica do herói grego que retorna
à sua pátria com o desejado regresso de D. Sebastião, Fernando Pessoa enfatiza a
importância da reconstrução nacional, no caso dos dois mitos.
Realce-se o facto de ambos serem reis que frequentaram – e frequentam – o
imaginário coletivo de seus povos e igualmente de outros povos: Ulisses em Portugal,
D. Sebastião nas visões do sebastianista Antônio Conselheiro, líder da revolta
popular em Canudos, que criou um reino mítico para D. Sebastião em terras
brasileiras. São mitos messiânicos – ulisseano e sebastianista – transformados em
profecias pela necessidade popular de acreditar em um salvador que reinstaurará
uma era de glórias. “Esta multiplicidade de formas, o mesmo é dizer, de linguagem,
permite que a profecia tenha vários graus de significação, em que o que a um nível
é ‘verdade’ a outro é ‘erro’” (SEABRA, J. A., 1988: 83). É verdade para o povo que
12 Cf. Agostinho da Silva: “Portugal porá, como seu alicerce, o que de mais fundamental a Europa poderá ter
dado ao mundo: com Ulisses, a ideia de que o mito é mais importante do que a realidade, de que o poder vir
a ser é o substracto do que é, de que as coisas morrem à medida que são” (Ibid.: 19).
A Mensagem de Fernando Pessoa ao povo português 285
aguarda a volta do seu rei – tanto Ulisses era aguardado pelo povo de Ítaca, quando
D. Sebastião pelos lusitanos. É erro, para os cépticos. Assim sendo, os graus de
significação são distintos como são distintas as relações que os indivíduos mantêm
com as profecias e narrativas míticas.
Neste contexto, justifica-se refletir sobre as palavras de José Clécio Basílio Quesado
a respeito da produção literária pessoana e a inserção nela destes elementos míticos
e oníricos:
Sonho, mito ou loucura são, pois, elaborações discursivas do inconsciente que o poeta toma
como formas de promover a ausência da realidade, procurando trabalhar não sobre o dado
concreto mas sobre a formulação imaginária que se produz como descontinuidade do real.
Daí a retomada do passado da infância como fuga do presente, ou a busca do nada como
negação da própria existência, ou, enfim, Qualquer coisa que não a vida (QUESADO, J. C.
B., 1976: 80).
Mito, vida que não passa na vida que passa - e toda passa -, lenda a escorrer da realidade.
Foi para Ulisses, incarnação da primeira viagem iniciática da nossa alma futuramente grega,
como ele a sonhava, que o autor de Mensagem compôs os versos famosos (LOURENÇO,
E., 1986: 9-10).
13 Cf. o comentário de Jacinto Prado Coelho: “Pois na Mensagem é a redução a um pensamento que descarna,
espectraliza as personagens da História nacional” (COELHO, J. P., 1983: 108).
14 Leia-se o que Marcel Detienne escreve sobre o herói Fundador: “As cidadezinhas, recém-implantadas, vão
dar a si mesmas, na geração seguinte, um culto de tipo político: o de seu Fundador, heroizado após sua morte”
(DETIENNE, M., 2013:47).
15 Cf. Agostinho da Silva (SILVA, A. da, 1958:27-28) e Jean-Pierre Vernant (VERNANT, J.-P., 2002:200).
A Mensagem de Fernando Pessoa ao povo português 287
Bibliografia
Bibliografia ativa
PESSOA, Fernando (1998). Cartas entre Fernando Pessoa e os directores da
Presença. Edição e Estudo de Enrico Martines. Edição Crítica de Fernando
Pessoa. Estudos. Lisboa, Ed. Imprensa Nacional-Casa da Moeda.
PESSOA, Fernando (2000). Crítica. Ensaios, artigos e entrevistas. Ed. Fernando
Cabral Martins. Lisboa, Assírio &Alvim.
PESSOA, Fernando (2006). Escritos autobiográficos, automáticos e de reflexão
pessoal. Edição e posfácio de Richard Zenith com a colaboração de Manuela
Pereira da Silva. São Paulo, A Girafa.
PESSOA, Fernando (2008). Mensagem. Edição de António Apolinário Lourenço.
2.ª edição, corrigida e aumentada. Coimbra, Angelus Novus.
Bibliografia Passiva
BERARDINELLI, Cleonice (2004). Fernando Pessoa: outra vez te revejo... Rio de
Janeiro, Lacerda Editores.
BOITANI, Piero (2005). A sombra de Ulisses. Trad. Sara Margelli. São Paulo,
Perspectiva.
BRANDÃO, Junito de Souza (2000). Dicionário Mítico-Etimológico. Petrópolis,
Vozes.
CAMPBELL, Joseph (1994). A Imagem Mítica. 2ª ed. Campinas, SP., Papirus.
CAMPBELL, Joseph (2008). Mito e transformação. Organização e Prefácio de
David Kudler. Trad. Frederico N. Ramos. São Paulo, Ágora.
288 100 Orpheu Zilda de Oliveira Freitas
CAMPBELL, Joseph (1997). O herói de mil faces. Trad. Adail Ubirajara Sobral. São
Paulo, Cultrix/Pensamento.
CASTRO, Gabriel Pereira (2000). Ulisseia ou Lisboa Edificada. Texto estabelecido
e comentado por J.A. Segurado e Campos. Vol. I. Lisboa, Fundação Calouste
Gulbenkian.
COELHO, Jacinto do Prado (1983). Camões e Pessoa. Poetas da utopia. Mem
Martins, Europa América.
DETIENNE, Marcel (2013). A identidade nacional, um enigma. Trad.
Fernando Schelbe. Belo Horizonte, Autêntica Editora. (Coleção História e
Historiografia).
ELIADE, Mircea (2007). Mito e realidade. São Paulo, Perspectiva.
ELIADE, Mircea (1992). O mito do eterno retorno - arquétipos e repetição. Lisboa,
Edições 70.
GARCEZ, Maria Helena Nery (1989). Trilhas em Fernando Pessoa e Mário de
Sá-Carneiro. São Paulo, Moraes/EDUSP.
GÜNTERT, Georges (1982). Fernando Pessoa, o eu estranho. Lisboa, Publicações
Dom Quixote.
HOMERO (2006). Odisseia. Trad. Jaime Bruna. Texto integral. São Paulo, Cultrix.
HORKHEIMER, Max & ADORNO, Theodor Ludwig Wiesengrund (1986).
Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro, Zahar.
JAKOBSON, Roman (1970). “Os oximoros dialéticos de Fernando Pessoa” [em
colaboração com Luciana Stegagno Picchio] In: Linguística. Poética. Cinema.
Trad. de Haroldo de Campos et all. São Paulo, Perspectiva.
KUJAWSKI, Gilberto de Melo (1979). Fernando Pessoa, o outro. São Paulo, Centro
de Cultura.
LÉVI-STRAUSS, Claude (2008). Antropologia estrutural. São Paulo, Cosac-Naify.
LEVI-STRAUSS, Claude (1987). Mito e significado. Tradução de António Marques
Bessa Lisboa, Edições 70.
LOURENÇO, António Apolinário (2009). Fernando Pessoa. Lisboa, Edições 70.
LOURENÇO, António Apolinário In: PESSOA, Fernando (2008). Mensagem.
Edição de António Apolinário Lourenço. 2.ª edição, corrigida e aumentada.
Coimbra, Angelus Novus.
LOURENÇO, Eduardo (2000). «As Descobertas como Mito e o Mito das
Descobertas», in J.L.- Jornal de Letras, Artes e Ideias, nº 768, Ano XX, 8 a 21
de Março de 2000.
LOURENÇO, Eduardo (1986). Fernando, Rei da Nossa Baviera. Lisboa, Imprensa
Nacional Casa da Moeda.
A Mensagem de Fernando Pessoa ao povo português 289
Stélio Furlan
Universidade Federal de Santa Catarina
Especular, refletir: toda a atividade do pensamento me remete aos espelhos. Segundo Plotino,
a alma é um espelho que cria as coisas materiais refletindo as idéias de uma razão superior.
Talvez seja por isso que eu preciso de espelhos para pensar: só consigo concentrar-me
quando em presença de imagens refletidas, como se minha alma tivesse necessidade de um
modelo para imitar toda vez que exercita a sua virtude especulativa. (O adjetivo assume
aqui todos os seus significados: sou ao mesmo tempo um homem que pensa e um homem
que tem negócios, além de ser colecionador de aparelhos ópticos.)
Tão logo levo um caleidoscópio ao olho, sinto que minha mente, ao ver os fragmentos
de cores e linhas heterogêneas agruparem-se e comporem figuras regulares, encontra
imediatamente o procedimento a ser seguido — mesmo que seja apenas a revelação
peremptória e lábil de uma construção rigorosa que se desfaz a menor batida de unha nas
paredes do tubo, para ser substituída por outra em que os mesmos elementos convergem
num conjunto diferente (CALVINO, I., 2002: 165).
292 100 Orpheu Stélio Furlan
3 Todas as citações do cosmopoema Ode Marítima [1915] foram colhidas em GALHOZ, Maria Aliete. Orpheu
2. Edição fac-similada, Edições Ática, Lisboa, s/d. pp. 69-106. Doravante, nas citações faremos indicação
apenas do número da página(s).
294 100 Orpheu Stélio Furlan
Na página seguinte:
Pessoa está em toda a parte e em nenhuma. Nós só podemos interinar o mito criado pela
sua obra ou recusá-lo. Seja como for, esse mito tornou-se uma das referências chaves do
século XX, fazendo, por assim dizer, corpo, com o seu próprio mito de século explodido
(Idem: 12).
Heteronímia como ficção de autognose 297
como Pessoa esta absoluta perdição do sentido do nosso destino, enquanto mundo moderno,
e isto bastaria para que o autor da Tabacaria se tivesse convertido não apenas no mito que é
para nós, mas numa das referências-chaves da Cultura contemporânea. De uma maneira ou
de outra, o homem moderno comparticipa desse sentimento de radical solidão e de absurdo
que pouco a pouco emergiu com o processo de isolamento e de inumanidade da civilização
actual (Idem: 19).
Campos prefere ficar no cais, vendo os paquetes que entram e saem do Tejo, meditando no
“mistério alegre e triste de quem chega e parte” [...] transpondo o cais em que está para a
esfera dos símbolos, visionando um “Cais absoluto”, fora do espaço e do tempo, donde viemos
porventura quando nascemos, onde também haverá gente anónima que sofre o mistério de
partir e de chegar [...] De novo o tédio envolve o poeta, crucificado na monotonia dum
existir ocioso. O espectáculo da própria inércia, os sonhos malbaratados, a inconsequência
298 100 Orpheu Stélio Furlan
de tudo fazem-no odiar-se a si próprio, ser grotesco, rei de opereta, “palhaço sem riso, o
bobo com o grande fato de outro [...]” (COELHO, J. P., 1973: 125-126).
E eu, que amo a civilização moderna, eu que beijo com a alma as máquinas,
Eu o engenheiro, eu o civilizado, eu o educado no estrangeiro,
Gostaria de ter outra vez ao pé da minha vista só veleiros e barcos de madeira,
De não saber doutra vida marítima que a antiga vida dos mares!
Porque os mares antigos são a Distância Absoluta,
O Puro Longe, liberto do peso do Actual...
E ah, como aqui tudo me lembra essa vida melhor,
Esses mares, maiores, porque se navegava mais devagar.
Esses mares, misteriosos, porque se sabia menos deles.
[…] modulação desse sentimento intenso de fusão com o mundo, ou melhor, com a natureza,
acompanhado de não menos intensa consciência de sua precariedade, alegria na tristeza,
tristeza na alegria. Em suma, uma modulação daquela particular maneira de sentir a vida
que os portugueses resumem na palavra-mito da sua cultura, a saudade (LOURENÇO, E.,
2001: 38-39).
Os versos de Ode Marítima ressumam uma Náusea amplificada pela impotência diante
do que chama o «peso actual» dos tempos modernos. O que justifica, talvez, o atemporal
mergulho simbolista numa “aventura indefinida”. Porém, depois da “fúria marítima”, uma
súbita brisa gelada dissipa a virulência das sensações trágicas e, de certo modo, pacifica-o:
Um calafrio arrepia-me.
E de repente, mais de repente do que da outra vez, de mais
longe, de mais fundo,
De repente – oh pavor por todas as minhas veias! –,
Oh frio repentino da porta para o Mistério que se abriu
Heteronímia como ficção de autognose 299
Por uma epifania ele queria dizer uma súbita manifestação espiritual, seja na vulgaridade
da fala ou do gesto ou em uma fase memorável da própria mente. Ele acreditava que toca ao
homem de letras registrar essas epifanias com extremo cuidado, vendo que elas próprias são
os mais delicados e evanescentes momentos (JOYCE, J., 2012: 16).
Antes de Joyce, Pessoa escreve epifanias, no caso, feito corrente de ar que anima o
sujeito poético a retornar às «cousas modernas e úteis». Ao apelar para o sensorial,
o frio repentino ganha correspondência de revelação metafísica, pois faz com que o
sujeito lírico desperte e retorne do “Cais Absoluto” para o cais comum da “Civilização
quotidiana”, para o pragmatismo antilírico das coisas imediatas.
E então, o sujeito poético torna a vestir a alma com os trajes da civilização, como se
após a apoteótica exaltação, feita de fúria, de ímpeto, da ideia de ser tudo, só restasse
o trânsito desconcertado, menos humilde do que humilhante, da vitalidade do Sonho
para a realidade comezinha cotidiana, um real que resiste ao avesso do sonho: o
utilitarismo pragmático, industrial, comercial da vida.
Homem do Sul, nascido à beira-mar, amou o mar e as viagens: e celebrou-as. Nas suas
odes, o mar é a história de Portugal: é a aventura do desconhecido, a obstinação, a ousadia
de um pequeno povo, mas também a violência colonizadora, o Eldorado falhado, a perda
da inocência. Mas amou principalmente a ideia da viagem. Autodefinia-se cosmopolita.
De facto, tinha a alma de um vagabundo prisioneiro na pele de um burguês sonhador. Os
seus críticos dizem-nos que de manhã descia até ao porto de Lisboa e passeava pelo cais
de Alcântara para ver surgir no horizonte os barcos que tinham atravessado o oceano. De
pé, no cais, à espera da sua “viagem” [Ode marítima], cantou com maiúsculas a Viagem e a
Distância, o “Cais Absoluto por cujo modelo inconsciente imitado” os homens construíram
os cais nos seus portos, “o grande Cais Anterior, eterno e divino”. Mas evocou também [...] os
veleiros e os Mares do Sul, o cordame, o alvoroço dos portos exóticos, a maresia, os piratas
4 Vale registrar que, para a compreensão desse artifício poético, faz-se necessário investigar a contribuição de
Cesário Verde à tessitura poética fernandina.
Heteronímia como ficção de autognose 301
e os velhos marinheiros. E ilhas rosadas com palmares oleográficos. Os lugares das suas
viagens eram lugares geométricos, cabem no espaço do conceito e do desejo (TABUCCHI,
A., 1984: 48).
Força é dizer que, do tratamento dado àquele fascínio bem português de uma
ficção poética de viagens, ressuma um ar do tempo. Da versificação exuberante
ao conteúdo semântico afetado por longas enumerações de imagens pulsantes ou
pela “sequência ininterrupta de imagens novas”, passando pelo culto à beleza da
velocidade, pela tematização dos rumores e odores urbanos e marítimos, num tempo
prenhe de tumulto e labirinto, Pessoa-Campos rubrica a persona que melhor delineia a
modernidade à portuguesa. Nas palavras de Isabel Margato, «a fragmentação da figura
do herói, o vazio que tal realidade instaura» (MARGATO, I., s/d.), acrescente-se, o
diálogo com as vanguardas históricas, a autoproclamação de quem se instala e ocupa
ruidosa e furiosamente um lugar, a caleidoscópica poética do olhar, o cosmopolitismo
e a tematização do espaço urbano, mais a consciência distópica do seu tempo, todos
elementos que povoam dita metamorfose poética, são as margens que delineiam a
transbordante modernidade pessoana.
Como vimos, se numa primeira leitura Ode Marítima lembra os expedientes
da escrita automática surrealista, ou um texto algo desordenado que acumula
enumerações de “cousas navais”, observando a sua tessitura constata-se que não há
espaço para o improviso, pois o longo poema é estruturado de modo lógico, coerente,
graças à metáfora da máquina como fio condutor, melhor, do volante cuja gradação
ascendente e descendente instaura uma circularidade que vai do mínimo ao vasto, do
vasto ao ínfimo, do nada ao tudo e do tudo ao nada.
Trocando em miúdos, o jorro enumerativo é falsamente caótico, uma vez que
todo o conjunto de acumulações reiterativas, de onomatopeias, de aliterações, que
substituem a cadência sonora das rimas, fazem um só corpo com o sentido. Noutras
palavras, a ode não deixa de figurar uma experiência oceânica outra marcada por
nova visão de mundo oriunda do processo industrial e sugere tecer uma resposta
crítica ao desafio de Marinetti, que se indagava sobre «que tipo de literatura pode
surgir oriunda da técnica?». Nessa rede de relações, caberia perguntar ainda se acaso
o fenômeno da heteronímia, com o seu alto grau de despersonalização poética, com
a fragmentação da alma em outros personas, não seria um desdobramento lógico do
que Marinetti pontifica no Manifesto Técnico da Literatura Futurista, de 1912, cito: é
preciso «Destruir na literatura o ‘eu’?»
Diálogo com emulação, suplemento, por certo, pois, para Pessoa-Campos, associar
futurismo e Orpheu seja «a coisa mais disparatada que se pode imaginar» (PESSOA,
F., 1987: 208), como escreve em carta datada de quatro de junho de 1915. Embora
302 100 Orpheu Stélio Furlan
haja elementos que evidenciem essas remissões intertextuais de modo mais explícito
em Ode Triunfal, força é dizer que Campos se distancia do futurismo com uma Ode
Marítima em que a expressão sensacionista é exacerbada até ao espasmo (SEABRA,
J. A., 1988: 235).
Nas palavras de Nelly Novaes Coelho, mais «do que a euforia futurista de Marinetti,
as odes de Álvaro de Campos expressam a experiência quase apocalíptica do poeta
contemporâneo, ao pretender expressar um mundo que ultrapassou sua capacidade
normal de apreensão» (COELHO, N. N., s/d.). Em consequência, a avant garde prosa
dos versos de Campos integra poeticamente o ser humano na inquietante realidade
do começo do século XX.
Pessoa-Campos não se contenta com o espetáculo do mundo. Artífice do excesso de
expressão poética, ele se circunscreve no domínio de Eros, logo, encarna um princípio
de ação. Se Eros simboliza o desejo, cuja energia é a libido, a contrapelo dos demais
heterônimos, nele se corporifica uma «atitude enérgica, vibrante, cheia de admiração
pela vida». E, ao mesmo tempo, não é menos certo dizer que Pessoa-Campos exibe
a consciência do seu tempo. Assim, não se pode dizer que essa inventio poética
traduza um elogio acrítico a positivar «tempos modernos»; antes, compendiando as
preocupações de uma geração, revela-se consciência distópica, leia-se um testemunho
das contradições próprias à modernidade.
Em suma, afora incorporar aquela noção de máquina enquanto invenção astuciosa
e assimilar irônica e poeticamente os elementos da civilização industrial para
transformar a metáfora da máquina e do mecanicismo em material criativo, talvez se
possa dizer que no olhar caleidoscópico de Pessoa-Campos não se disfarça o desejo de
tornar o próprio corpus todo um cosmopoema: «ser toda a gente e toda a parte»: «Afinal»
Bibliografia
Bibliografia Ativa
ANDRADE, Carlos Drummond de (1998). Claro Enigma. Rio de Janeiro: Record.
CALVINO, Ítalo (2002). Se um viajante numa noite de inverno. Tradução Nílson
Moulin. São Paulo, Cia das Letras, 1999.
CAMPOS, Haroldo de (2004). A máquina do mundo repensada. Cotia, SP: Ateliê
Editorial.
COELHO, Jacinto do Prado (1973). Diversidade e unidade em Fernando Pessoa.
Lisboa: Verbo.
COELHO, Nelly Novaes (s/d.). Fernando Pessoa, a dialética de ser em poesia.
[http://www.revista.agulha.nom.br/nelly01.html, 28 ago. 2007].
GALHOZ, Maria Aliete (s/d.). Orpheu 2. Edição fac-similada. Lisboa: Edições
Ática.
HANSEN, João Adolfo (2003). «A máquina do mundo». In: NOVAES, Adauto
et al. Poetas que pensaram o mundo. São Paulo: Companhia das Letras, p.
157-197.
JOYCE, James (2012). Epifanias. Tradução Piero Eyben. São Paulo: Iluminuras.
LOURENÇO, Eduardo (2002). Poesia e Metafísica. Lisboa: Gradiva.
LOURENÇO, Eduardo (2001). A nau de Ícaro. São Paulo: Companhia das Letras.
LOURENÇO, Eduardo (s/d.). Fernando Pessoa, Rei da nossa Baviera. Lisboa:
Imprensa Nacional; Casa da Moeda.
MARGATO, Isabel. É preciso ser moderno, “Poeta de Orpheu, Futurista e tudo.
[http://www.letras.puc-rio.br/Catedra/revista/4Sem_13.html, 10 nov. 2009].
PESSOA, Fernando (2003). Obra Poética. Volume único. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar.
PESSOA, Fernando (2004). Álvaro de Campos. Org. Teresa Rita Lopes. São Paulo:
Cia.das Letras.
PESSOA, Fernando (1987). Obras em Prosa, vol. V. Org. João Gaspar Simões.
Lisboa: Círculo de Leitores.
SEABRA, José Augusto (1974). Fernando Pessoa ou o poetodrama. São Paulo:
Perspectiva.
SEABRA, José Augusto (1988). O heterotexto pessoano. São Paulo: Perspectiva.
TABUCCHI, Antonio (1984). Pessoana Mínima. Temas Portugueses. Lisboa:
Imprensa Nacional; Casa da Moeda.
304 100 Orpheu Stélio Furlan
Bibliografia Passiva
AGRÓ, Ettore Finazzi (s/d.). O Álibi Infinito. O projecto e a prática na poesia de
Fernando Pessoa. Temas portugueses. Lisboa: Imprensa Nacional; Casa da
Moeda.
GIL, José (2000). Diferença e negação na poesia de Fernando Pessoa. Rio de Janeiro:
Relume Dumará.
LOURENÇO, Eduardo (2000). O labirinto da saudade. Lisboa: Gradiva.
LOURENÇO, Eduardo (1999). Mitologia da Saudade. São Paulo: Companhia das
Letras.
LOURENÇO, Eduardo (1994). Nós e a Europa ou as duas razões. Temas portugueses.
Imprensa Nacional. Lisboa: Casa da Moeda.
LOURENÇO, Eduardo (1974). «Dialética mítica da nossa modernidade». In:
LOURENÇO, Eduardo. Tempo e poesia. Porto: Inova.
NOVAES, Adauto et al. (2005). Poetas que pensaram o mundo. São Paulo:
Companhia das Letras.
PAZ, Octávio (2003). «O desconhecido de si mesmo. Fernando Pessoa». In: Signos
em rotação. São Paulo: Perspectiva.
PESSOA, Fernando (s/d.). «Carta ao Diário de Notícias sobre o futurismo». In:
QUADROS, António (Org.). Textos de intervenção social e cultural: a ficção
dos heterônimos. Porto: Publicações Europa-América.
PESSOA, Fernando (1997). «Mensagem». In: SEABRA, José Augusto (Coord.).
Poemas esotéricos: edição crítica. São Paulo: ALLCA XX/Scipione Cultural.
SÁ-CARNEIRO, Mário de (2001). Poesia. Org. Fernando Paixão. São Paulo:
Iluminuras.
Uma faceta ortónima “non despicienda”
Ler a poesia ortónima d.c., isto é, de depois das edições críticas, constituiu para
mim, por vezes, experiência surpreendente em relação ao que era a leitura a.c., de
antes das edições críticas. Em minha visão, o ortónimo acabou apresentando um
perfil com notas diferentes daquele que seus primeiros editores nos deram. Era o
“fingidor”? Era o vanguardista? Sim, era o “raciocinador subtil”, exato? isso também
estava patente desde poemas de há muito publicados como “Análise” e outros. Mas
o que ficou mais claramente revelado no ortónimo das edições críticas foi que,
mesmo tendo escrito o poema “Isto” em abril de 1933, ele escreveu outros não tão
rigorosamente despersonalizados. Como dizer, por exemplo, que o eu do poema “Un
soir à Lima”(17-9-1935) escreve livre de seu enleio, não usa o coração, ou que nele o
sentir é só para quem lê? O mesmo poderia ser dito doutros poemas que têm a figura
materna como motivo inspirador ou que trazem a figura da “ama”, todos impregnados
de emotividade. Outra faceta ortónima que praticamente não se conhecia nos
poemas a.c., ou só escassamente, diz respeito ao cristianismo. Conhecíamos poemas
esotéricos, mas em relação a Cristo, à Virgem Maria, à espiritualidade cristã, isso
constituiu tal surpresa que me decidi a fazer este texto.
Principio pelo poema cujo incipit é “Senhor, meu passo está no Limiar”, de
15/16-11-19151, no qual o ortónimo dirige uma prece a um destinatário que nomeia
como Senhor, grafado com maiúscula. Pelo seu teor, este pode ser identificado
com o Ser Supremo, com o Deus cristão. O poema guarda analogia formal com
“Ascensão”, de 10-1-1913, revelado como inédito na edição Poesia. 1902-19172. Os
dois são formados por seis estrofes, compostas por decassílabos combinados com
tetrassílabos e hexassílabos, embora sejam diversas as combinações dos metros nas
estrofes. Em ambos, rimas graves e agudas são habilmente distribuídas para salientar
as palavras chaves e neles o tema é a vida de relação com a Divindade. “Ascensão”,
apesar de o poema estar em 1ª pessoa, não é uma prece, mas uma autoconfissão e
“Senhor, meu passo está no Limiar” constitui, como o 1º verso indica, diálogo com
a Divindade.
Neste, o ortónimo revela uma consciência profunda da importância da sua obra
poética num plano que transcende a esfera imanente, ao mesmo tempo em que
formula um complexo pedido de humildade. Eis as primeiras estrofes:
1 Publicado pela primeira vez na edição crítica Poemas de Fernando Pessoa, tomo II – 1915-1920, edição de João
Dionísio, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005.
2 Quando não houver outra indicação, as citações da obra pessoana serão extraídas das edições organizadas por
Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine. São Paulo, Companhia das Letras, vols. I, II e
III, datados, respectivamente de 2006, 2007 e 2009.
Uma faceta ortónima “non despicienda” 307
O eu do poema sabe que o seu legado será grandioso, que ele pode ser presa da auto
complacência, daí a humildade pedida como dom; sabe que a sua virtude não será
suficiente para criá-la em si. Qualifica seu ser de “mero”, pouco importante. A 2ª estrofe
enfatiza, platonicamente, que o eu é “sombra” de um “Ti” com maiúscula, a cujos pés
se encontra. Mais: que é um “desenho/De Ti em mim” e irrompe novo pedido: que o
eu ponha seu “engenho” a serviço do Ser Supremo para fazer a revelação de um Fim
também com maiúscula. Aceita e mesmo pede para ser o “mero” instrumento desse
plano que o transcende, mas que o inclui.
Chama a atenção que a prece prossiga fazendo um oferecimento da sua obra à
Divindade numa fórmula em muito parecida à de orações litúrgicas que rogam que uma
determinada ação comece em Deus e n’Ele termine. A do poema diz: “Essa obra que é
tua e em mim começa /E acaba em Ti”. A obra começa no eu, não em Deus, mas como
o eu, de antemão dissera que a obra não era dele, mas do “Senhor” – “é tua” – podemos
considerar sua formulação equivalente às tradicionais. O cuidado de explicitar que a
obra “acaba” no “Senhor” é digno de nota, pois os que se exercitam na vida espiritual
conhecem bem que esse é um dos escolhos da navegação: pode-se começar uma
obra em Deus, mas, ao longo do caminho, consciente ou inconscientemente, ir-se
desviando e afastando do Fim proposto. O ortónimo demonstra-se conhecedor desse
meandro da vida interior.
Enquanto, na 4ª estrofe, para a obra que produz utiliza a metáfora “Teu Rio”,
qualificado de “fundo”, àqueles aos quais a obra se destina, o público, o eu poético
utiliza a metáfora do “mar”, que é para onde o “Rio fundo” leva “Verdade e Lei”.
Na Bíblia, o simbolismo do mar é ambivalente. O Génesis conta que os mares,
criados por Deus, são bons. Ele povoou o mar de rica fauna não só de peixes “normais”,
mas também de grandes cetáceos e de seres colossais, apresentados, por vezes, como
símbolos das forças do mal, submissos, contudo, ao Criador. O mar, pelas grandes
dimensões, instabilidade, tempestades, se apresenta muitas vezes assustador e será dele
que, no Apocalipse, sairá o Anticristo: “A Besta de 10 chifres e 7 cabeças” (Ap., 13.1).
A obra do ortónimo, começando e terminando na Divindade, “leva” “Verdade e
Lei” com maiúsculas ao “mar”, esse imenso e instável espaço mesclado de bem e de
mal, para lá cumprir uma missão divina. Nas estrofes finais do poema o eu fala da
“névoa que sobe do alto da montanha/E ergue-se à luz”, “a Tua luz”, como especifica
o verso seguinte, em que Tua é grafado com maiúscula e fala-nos de seu desejo:
“Eu quero ser a névoa que se ergue/ Para Te ver”. Tanto no Antigo quanto no Novo
Testamento, as grandes teofanias eram precedidas e/ou acompanhadas de névoas ou
de nuvens, às vezes luminosas, às vezes brancas, significando a presença de Deus e seu
mistério. Os dois versos finais da última estrofe dizem: “A humanidade sofredora é
cega – / O resto é apenas ser...4.
Citei os versos conclusivos do poema por considerá-los importantes para o
entendimento do que vínhamos tratando. Se o “mar” é “a humanidade sofredora” e o
eu a considera “cega”, sua obra, enquanto água de “Rio fundo”, leva água da “Verdade
e da Lei” para limpá-la, purificá-la e iluminá-la. Recordemos serem numerosas as
passagens do Antigo Testamento que falam das águas puras dos rios que revitalizam
as securas ao longo das andanças do povo de Israel e são célebres o Eufrates, o Jordão,
as águas que manavam do Templo no livro de Ezequiel, bem como passagens do Novo
Testamento que falam do batismo no Jordão e do rio da vida que, no Apocalipse, brota
do trono de Deus e do Cordeiro. Fica implícito que o eu do poema não está incluído
na humanidade “cega”. Se sua obra leva “Verdade e Lei”, é que o eu as conhece e se
considera em condições de almejar erguer-se para ver o seu Senhor.
5 Salmo 129: De profundis clamavi ad te Domine. Missal Quotidiano e Vesperal. Bruges, Desclée de Brouwer&Cie,
p.887.
6 Var. sobrep. para e interior:-divino amor.
310 100 Orpheu Maria Helena Nery Garcez
e dele rindo – exercício tantas vezes tão grato ao ortónimo – ao mesmo tempo em
que um “Amor” não baixo, mas “alto”, vindo de outra esfera, por isso com maiúscula,
conferiu-lhe “chama espiritual e interior” e deu “nova luz ao olhar”, “cor às faces” e
mais, porque a 3ª estrofe, surpreendentemente, acrescenta que, na alegria da fé, o eu,
“alma de joelhos”, crê e adora.
Convenhamos estar a lidar com um ortónimo diferente daquele com quem
tradicionalmente lidávamos, quando lemos esses versos e os que agora cito: “Porque
Deus fez de mim o seu altar/Quando Ele me nasceu tal como sou,/ (...)// Eu tenho
Deus em mim... Em Deus existo/ Quando crê, cega, acha-o minha fé calma.../
Maria-Virgem concebeu um Cristo/Dentro em minha alma...” Versos de pura teologia
mística, que poderiam ser encontrados em poemas de santos canonizados. A última
estrofe é que apresentará uma surpresa em parte dos dois versos finais. Após dizer
que a sua alma encontra seus céus dentro de si, que está morta para si em Deus, tudo
teologicamente ortodoxo, vêm reticências e as seguintes indagações: “Mas o que é
Deus? E existe Deus?/ Isso que importa?”. Desta vez, não foi necessário fazer uma
palinódia. A contradição estabeleceu-se no interior do próprio poema, em seu fecho,
espaço de força privilegiada. Quer isso dizer que o fecho anula o que o corpo do poema
colocara? Diria que não, mas que o problematiza, colocando-o sob o signo da dúvida.
Mas será que a atitude dubitativa, polémica, questionadora constitui novidade para
o leitor do ortónimo e de Pessoa, de modo geral? Nos primeiros textos recolhidos no
Poesia.1902-1917, do ortónimo, encontramos os poemas:
“Agnosticismo Superior”
“Lirismos”
7 Trata-se da 6ª estrofe do poema cujo incipit é “O céu ‘stá lúcido e tranquilo” (I, p.153).
8 Pareyson, L. Verdade e interpretação, p.228-229.
312 100 Orpheu Maria Helena Nery Garcez
dentre as árvores ao “sol pôr, “talvez, seria feita A Cruz”, querendo significar que
não se tratava de uma cruz qualquer, mas d’A Cruz redentora, merecendo portanto
esse destaque. Principia, neste soneto, a manifestar-se a temática da cruz, que
encontraremos noutras composições da década de 30.
Note-se também que, no mesmo dia em que datou o soneto da fuga para o Egito,
datou também e possivelmente mesmo teria escrito o poema: “Quando Cristo, Rei
da Lei,/ Voltou ser, após os três/Dias que Deus deu ou fez,/Viu logo nascer do chão/
Quem lhe roubasse o caixão/E disse: Já me enganei./Adeus, vou morrer de vez!” Será
que esse poema-blague, talvez para neutralizar o efeito piedoso do soneto, merece o
pomposo nome de palinódia? Mas, que o procedimento de dar uma no cravo e outra
na ferradura aqui se manteve, é verdade.
O ortónimo data de 20-1-1933 um de seus mais belos sonetos, em versos
decassílabos, no qual, nesse movimento pendular que o caracteriza, vemo-lo num
extremo de fé e de positividade. Ei-lo:
Se ainda permanecesse dúvida a respeito, esse soneto não revelaria uma vigorosa
faceta mística no ortónimo, já que só um místico o poderia ter escrito? Não há nele
tal envolvimento com a figura de Cristo paciente, que o poema não fica a dever a
314 100 Orpheu Maria Helena Nery Garcez
um suicídio tardo,/Um desejo de dormir que ainda vive.” (II, p. 282 e 283). Trata-se de
um poema desabusado, que mais parece Álvaro de Campos do que ortónimo. Ele faz
lembrar o de16-3-1934, que transcrevo:
lhes tira a gravidade e os reveste de certa ironia. Num verso alexandrino, o eu sintetiza
esse itinerário, não necessariamente cronológico, que, ao fim e ao cabo, ocupou-o
bastante, encheu-lhe o tempo, “mas nunca o [seu] meu coração.” Este último dado é
fundamental e importa não esquecê-lo.
Comido do fruto da árvore da ciência do bem e do mal, “a maçã diabólica” de querer
igualar-se a Deus, o eu perdeu radicalmente seus “dias serenos”, dias de inocência,
daí sucederem-se as interrogações: “De que é que me deserdou a verdade?” “(...) sou
outro, mas quanto?!” Mal houve tempo de formulá-la quando, surpreendentemente,
irrompe o verso chocante: “Oh a saudade/Da Igreja Católica!” Ironia, dirão alguns.
Talvez, mas, pelo contexto do poema, não parece, apesar de ele fazer “Católica” rimar
com “diabólica” – e ao chamar a atenção para isto, eu mesma forneço armas aos que
iriam levantar esse argumento contra minhas colocações.
A 4ª e última estrofe confirma a leitura que estamos fazendo. Em seu presente, o eu
perdeu a integridade, é como “mó” “que caísse mal”, está quebrado. Não é só Álvaro de
Campos que vê sua alma partir-se “como um vaso vazio”; também o ortónimo vê-se
partido, ele que, “em pequeno”, “seguia, magnanimamente só/ Sem nada fatal”. Indo ao
dicionário Houaiss, encontramos para magnânimo aquele “que, a despeito de todos
os riscos e perigos, age ou pensa desinteressadamente com vistas a servir alguém ou
a encarnar um ideal; generoso; bondoso”. O “pequeno”, que vivia coberto por uma
“redoma” vivia desinteressadamente “só”, generosamente “só”, “sem nada fatal”, donde
se conclui que, em seu presente, ele provavelmente está acompanhado, por um grupo
talvez, e oprimido por previsões funestas.
Semelhante ao poema analisado é o que principia com o verso “Na paz da noite,
cheia de tanto durar”, editado no Poesia.1931-1935 imediatamente a seguir ao que
acabamos de tratar, e datado de Abril de 1934, segundo a nota, à p. 589. Nele, após
confidenciar que leu muitos livros em vão, pois vê que há “paz” na noite acabada, mas
não no seu coração, acrescenta algo significativo: “Criança, era outro... Naquele em
que me tornei,/ Cresci e esqueci./ Tenho de meu agora um silêncio, uma lei./ Ganhei
ou perdi?” (III, p. 262). No poema anterior, a expressão utilizada foi “em pequeno”;
neste, “criança, era outro...”. Dois versos pentassílabos resultam do confronto entre o
passado e o presente: “Cresci e esqueci.” e “Ganhei ou perdi?”. A leitura do primeiro
pentassílabo parece-me desfavorável ao primeiro verbo, pois o resultado de crescer foi
esquecer, logo seu presente não está sendo bom. Quanto ao segundo pentassílabo, a
indagação também merece resposta negativa para o “ganhei”, porque no presente do
eu não há “paz”, ele só tem de seu “um silêncio” e “uma lei”. Ao crescer, perdeu.
Será que ainda se faria necessário tratar de dois outros poemas que, se estivessem
menos lacunares e/ou discutíveis, seriam excepcionais para nossa linha de reflexão,
“O Rei” e “Mãe de Deus”, ambos de 31-7-1935? Reproduzirei aqui apenas a fixação
Uma faceta ortónima “non despicienda” 319
que Carlos Pitella-Leite fez de “O Rei” como soneto, em sua tese de doutorado11, que
foi a fixação do texto que me pareceu a mais convincente, e dele tratarei num breve
comentário:
275. “O Rei”
O Rei, cuja coroa de oiro é luz
Fita do alto trono os seus mesquinhos.
Ao meu Rei coroaram-nO de espinhos
E por trono Lhe deram uma cruz.
11 Pequenos infinitos em Pessoa: uma investigação filológico-literária pelos sonetos de Fernando Pessoa. Tese
de doutorado (importante) defendida e aprovada no Departamento de Letras da Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro em 28 de março de 2012. Há variantes significativas deste soneto entre as leituras
de Carlos Pitella-Leite e a leitura deste mesmo poema não visto como soneto pelas editoras da Companhia das
Letras.
320 100 Orpheu Maria Helena Nery Garcez
12 Cf. texto de GARCEZ, Maria Helena Nery. “Uma poética grávida de impactos”. Vide Bibliografia.
13 Cf. texto de GARCEZ, Maria Helena Nery. “Uma noite em Durban”, aguardando publicação pela Revista do CLEPUL.
Uma faceta ortónima “non despicienda” 321
Mencionemos ainda os poemas “Virgem Maria”, que embora não trate da mãe do
eu poético, trata da mãe num sentido amplo: “Mãe de quem não tem mãe, no teu
regaço/ Poisa a cabeça a dor universal/ E dorme, ébria do fim do seu cansaço.../E tens
na mão, usado e nunca imundo,/ O pequenino lenço maternal/ Com que enxugas as
lágrimas do mundo.”, de 21-8-1935, (III, p. 435). O “Mater desiderata”, poema sem data,
dedicado a sua mãe, cujo título é uma criação do eu poético à maneira da ladainha
de Nossa Senhora, tão elevado é o amor que à mãe ele dedica. Curiosamente, neste
poema, ele descarta o argumento dos que procuram consolá-lo com a ideia de que irá
encontra-la na “reencarnação”, respondendo: “Mas é a mesma que eu quero,/Essa é
que eu choro em dor...”. Ele prefere a ressurreição: “Quem quero é minha mãe,/A mãe
que tive aqui.” (III, p. 548).14
Concluindo, penso que com as revelações trazidas pelas publicações das poesias
completas do ortónimo é preciso rever posições
No tabuleiro pessoano há o jogo heteronímico e há também a figura do ortónimo.
Não me parece que a visão dos heterónimos tenha mudado tanto quanto a do
ortónimo. Para que o jogo pessoano decorra fidedignamente, é preciso que cada peça
esteja bem definida e seu ethos (como diria Mariella Augusta Pereira em sua tese15)
bem configurado, mesmo se ele for complexo e/ou contraditório.
Dantes, em relação ao ortónimo, fazia-se muito finca-pé no distanciamento, no
vanguardismo, no sentir com a imaginação e não com o coração, no esoterismo e, de
fato, nele tudo isso existe. O mito daquele cerebral, do distanciado que sentia só com
a imaginação e não usava o coração, do “novelo embrulhado para dentro” mostrou-nos,
porém, em poemas d.c., que muitas vezes ele também usa muito o coração, que há
graus naquele distanciamento e o mito está se ajustando mais à realidade. O esoterismo
existe, mas não só. Na poesia ortónima lida cronologicamente, vamos assistindo a
uma progressiva aproximação da figura de Cristo até à adesão extática (e uso extática
com x intencionalmente) manifestada no soneto “O Rei”. Do cristianismo, ele adere
a Cristo e a Cristo crucificado. Também fica clara uma forte ligação entre a fé e a
educação recebida no âmbito familiar, mais concretamente sob a influência materna.
Vê-se, portanto, que o ethos do ortónimo não estava bem caracterizado.
14 Para terminar a sequência, como não citar um poema muito lacunar, mas significativo da importância que
o ortónimo, desde muito cedo, 1-7-1910, atribuía à figura materna, o inédito “Harlot’s song”, que nos traz a
figura de uma rameira do Bairro Alto, sem freguesia, e cantando uma triste canção? Ao ouvi-la, o eu tece
considerações sobre os caminhos da vida e, na estrofe final, fecha assim o poema: “E o mistério de tudo é tão/
Visível na tua vida e fado absurdo/Que esqueço até a compaixão/ E fico [ ] e surdo/E dolorido, como quem /
Pensasse, ó triste, ser tua mãe...” (I, p.100-101).
15 Pereira, Mariella Augusta. A heteronímia: metamorfoses retórico-poéticas. Ethos e pathos nas Ficções do
interlúdio. Tese de doutorado defendida e aprovada na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo em 11/07/2014.
322 100 Orpheu Maria Helena Nery Garcez
Parece até que o duvidador venceu. Seria? I do not know what tomorrow will bring.
Fica em aberto.
Bibliografia
Introdução
“Chuva Oblíqua” uma necessidade de garantir a sua identidade, a sua autonomia, a sua
existência em relação ao mestre dos heterónimos. É o que é possível depreender da
análise feita por Yvette Centeno acerca desse conjunto de poemas. No seu estudo do
poema, a autora comenta que o poeta anseia por uma Totalidade, por um regresso a
uma unidade mítica perdida, a um estado de indiferenciação, que se afirma a cada parte
do poema, mas que “não se concretiza de modo irreversível” (CENTENO, Y., 1976: 78).
A princípio pode parecer estranho supor que tenha havido, na constelação pessoana,
um discurso que se opusesse às inquietações metafísicas tão presentes na obra de Pessoa.
Se por um lado, na poética de Alberto Caeiro, nega-se a visão metafísica decorrente de
um transcendentalismo panteísta, por outro, com “Chuva Oblíqua”, restabelece-se uma
nova visão metafísica decorrente de uma poiese iniciática, não apenas saudosista. Há de
se considerar, nas palavras de Eduardo Lourenço, a obra de Fernando Pessoa como toda
ela atravessada por questões esotéricas: “A poesia ocultista cobre o espaço inteiro da vida e
da obra de Pessoa” (LOURENÇO, E., 1981: 175); “Não há em toda a poesia de Fernando
Pessoa nada mais afirmativo que a pulsão ocultista” (id.: 1981: 176, destaques do autor);
“A visão ocultista permite a Pessoa integrar positivamente o obstáculo des-realizante por
excelência, a Morte, [...] como transparência suprema e supremo repouso” (id.: 1981: 177).
Nesta comunicação, a partir do exame das imagens, dos símbolos, das metáforas,
do processo de autognose, do componente lúdico (próximo do fingimento de
“Autopsicografia”), do plano rítmico e da sinfonia iniciática que, tal como nas
correspondências de Baudelaire, “canta o transporte do espírito e dos sentidos”, discuto
a arquitetura imaginária de Pessoa como resposta ao dinamismo das sensações da
modernidade.
1. Caleidoscópio de sensações
1 Conforme Boaventura de Sousa Santos (1992: 107), Portugal esteve sempre na semiperiferia do sistema
capitalista, pois se encontrava em posição central com relação às colónias, porém, em situação periférica em
relação aos grandes centros de produção capitalista. Mesmo com o fim do Império colonial, Portugal mantém
essas características políticas, sociais, económicas e culturais de intermediação entre o centro e a periferia do
capitalismo.
328 100 Orpheu Fernando de Moraes Gebra
O poema “Chuva Oblíqua VI” apresenta duas paisagens: uma real e presente e outra
sonhada e ausente – a infância. A primeira é composta pelo maestro que “sacode a
batuta” para iniciar uma música “lânguida e triste” ou “triste e vaga”, que transporta o
eu-lírico para “a minha infância”, em um determinado marco temporal: “aquele dia/
Em que eu brincava ao pé dum muro de quintal” (PESSOA, F., 2005a: 217). O aspeto
verbal de duração do verbo “brincar” sugere uma prolongação da ação de jogar uma
bola multicor contra um muro branco:
primeiro sentir os symbolos, sentir que os symbolos teem vida ou alma – que os symbolos
são gente. Mais tarde virá a interpretação mas sem esse sentimento a interpretação não
vem. Os rituais, entre outros fins, teem o de fazer sentir ao iniciado pela solemnidade e o
332 100 Orpheu Fernando de Moraes Gebra
deslumbramento a vida dos symbolos que lhe communicam. Quem tenha em si o poder de
sentir prompta e instinctivamente a vida dos symbolos não precisa de iniciação ritual [...]
(Esp. 54 A-97 apud CENTENO, Y., 1985a: 72-3).
aspeto psicológico dos sonhos diurnos e noturnos e das percepções nas vigílias, os
autores do Dicionário de Símbolos consideram o preto como “ausência de toda cor,
de toda luz. O preto absorve a luz e não a restitui. Evoca, antes de tudo, o caos, o
nada, o céu noturno, as trevas terrestres da noite, o mal, a angústia, o inconsciente e
a Morte”(id.: 742).
Conforme Yvette Centeno, no seu estudo sobre a série poemática “Chuva Oblíqua”,
no poema I, “A sombra (o inconsciente) apoderou-se da alma do poeta. Saberá ele
integrá-lo, torná-lo luminoso?” (CENTENO, Y., 1976: 85); no poema III, “[...] o
elemento noturno, negativo, será destruidor”(id.: 87); no poema VI, “O negro não
se reúne no branco [...] Mas a cor amarela, do jockey, que se modifica no sentido
do negro, e não do branco, indica o retrocesso que se opera [...]” (id.: 91). “Sombra”,
“inconsciente”, “noturno”, “negativo”, “retrocesso” são algumas das imagens relativas
à cor preta, segundo Yvette Centeno, que corresponde às imagens apontadas pelo
Dicionário de Símbolos.
Como se vê, em “Chuva Oblíqua VI”, todo o palco das sensações é desmoronado, o
que permite conjeturar que o Interseccionismo ainda não será a resposta perfeita que
Fernando Pessoa dará ao vazio, evidente no poema “Como inútil taça cheia”, escrito
em 19 de agosto de 1930.
Bibliografia
Bibliografia ativa
PESSOA, Fernando (1999a). Correspondência: 1923-1935. (Organização Manuela
Parreira da Silva). São Paulo: Assírio & Alvim.
PESSOA, Fernando (1999b). Obra poética. (Organização, introdução e notas de
Maria Aliete Galhoz). Rio de Janeiro: Nova Aguilar.
PESSOA, Fernando (1998). Obras em prosa. (Organização, introdução e notas de
Cleonice Berardinelli). Rio de Janeiro: Nova Aguilar.
PESSOA, Fernando (2005a). Poesia (1902-1917). (Edição Manuela Parreira da
Silva; Ana Maria Freitas; Madalena Dine). Lisboa: Assírio & Alvim. (Obras
de Fernando Pessoa, 20).
PESSOA, Fernando (2005b). Poesia (1918-1930). (Edição Manuela Parreira da
Silva; Ana Maria Freitas; Madalena Dine). Lisboa: Assírio & Alvim. (Obras
de Fernando Pessoa, 21).
Bibliografia passiva
CENTENO, Yvette (1976). “Fragmentação e totalidade em “Chuva Oblíqua”, de
Fernando Pessoa”. In:______. 5 Aproximações. Lisboa: Ática, 1976. p.71-92.
CENTENO, Yvette (1985a.) Fernando Pessoa e a filosofia hermética: fragmentos do
espólio. Lisboa: Presença.
CENTENO, Yvette (1985b). ______. Fernando Pessoa. O amor. A morte. A
iniciação. Lisboa: A Regra do Jogo.
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain (2005). Dicionário de símbolos. 19ª ed.
(Coord. Carlos Sussekind). Trad. Vera da Costa e Silva et alli. Rio de Janeiro:
José Olympio.
HALL, Stuart (1999). A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro:
DP&A.
LOURENÇO, Eduardo (1981). “A existência mítica ou a porta aberta”. In: ______.
Fernando Pessoa revisitado: leitura estruturante do drama em gente. 2ª ed.
Lisboa: Moraes. pp.169-183.
Fluxos giratórios em “Chuva Oblíqua VI”, de Fernando Pessoa: Um convite para pensar a modernidade 337
NUNES, Benedito (1976). A viagem. In: ______. O dorso do tigre. São Paulo:
Perspectiva. pp.173-179.
PERRONE-MOISÉS, Leyla (2001). Aquém do eu, além do outro. São Paulo:
Martins Fontes.
REIS, Carlos (coord.) (1990). “Fernando Pessoa e o Modernismo português:
unidade e diversidade”. In:______. Literatura portuguesa moderna e
contemporânea. Lisboa: Universidade Aberta. (Textos de base, 6). pp.182-206.
ROSENFELD, Anatol (1996). Texto/contexto I. 5ª ed. São Paulo: Perspectiva.
SANTOS, Boaventura de Sousa (1992). “A semiperiferia europeia”. In:______.
O estado e a sociedade em Portugal (1974-1988). Porto: Afrontamento. pp.
105-150.
Para Lá da Loucura: As Viagens Poéticas e Órficas de
Ângelo de Lima e Dino Campana
Barbara Gori
Universidade de Pádua
Palavras-chave: Ângelo de Lima; Dino Campana; Poesia órfica; Poesia modernista; Simbolismo.
Resumo: De Ângelo de Lima (1872–1921) conhecemos quarenta e três poesias, incluindo as
que foram publicadas no segundo número da revista Orpheu. Este corpus, embora limitado,
estimula-nos não só pela qualidade dos seus versos, mas também por um paralelismo que
nasce espontaneamente: o simbolismo moderadamente modernista de Lima situa-se numa
ótica parecida com a do grande poeta “louco” italiano Dino Campana (1885–1932), cuja obra
é mais ou menos contemporânea de Lima, tal como o triste fim num manicómio e o tema da
busca do próprio Eu através da “viagem” – quer real quer unicamente poética – num “além”
espacial e temporal. Ambos esquizofrénicos, ambos presos por comportamentos socialmente
inaceitáveis, ambos adeptos das correntes modernistas, mas ancorados ao Simbolismo, Lima e
Campana são dois poetas visionários, alucinados, loucos, órficos, vagabundos, ou, pelo menos,
foi esse o modo como as respetivas críticas literárias os definiram, embora nenhuma dessas
definições seja capaz de iluminar claramente a poética destes dois autores que viveram na
passagem do século XIX para o XX.
1 O poeta dedica ao pai uma poesia, A meu Pai, da qual emerge um sentido intenso de solidão e de saudade por
aquela família perdida, mas nunca esquecida (Lima, Â. de, 2003: 41).
340 100 Orpheu Barbara Gori
Ângelo tinha apenas onze anos, razão pela qual se atribuiu a este um caso de loucura
hereditária –, no caso do poeta toscano, um conflito mais concreto.
Ambos deixam os estudos incompletos (Ângelo de Lima os de arte; Dino Campana
os de química e matemática) e essencialmente por inconstância na aplicação, muito
provavelmente devida às precárias condições mentais. Os distúrbios que afligem os
dois poetas são muito parecidos: mania de perseguição, síndrome maníaco-depressiva,
crises de alucinação, aos quais se acrescenta uma certa propensão para o alcoolismo,
mais marcada no lusitano, e certamente a sífilis, que talvez seja a causa da loucura do
italiano2. Manifestam-se nos dois em idade jovem; são internados várias vezes e a cerca
de dezasseis anos de distância, mais ou menos com a mesma idade, entram pela última
vez no manicómio, de onde não mais sairão. Ambos levam uma vida errante: além do
ano passado em África, segundo consta em serviço militar voluntário, de Ângelo de
Lima recordam-se as deslocações à pátria, sobretudo a Lisboa e Porto, mas também
ao Algarve, sem nunca iniciar uma atividade laboral definida e, muitas vezes, sem
uma direção certa. Da mesma forma, Dino Campana faz da viagem uma modalidade
de sobrevivência, em Itália, Europa, América do Sul, financiado esporadicamente pela
família, mas sobretudo arranjando-se com as mais variadas profissões, mesmo as mais
humildes (Mongini, F., 2007: 69).
Regressemos à produção literária: as principais publicações dos nossos poetas –
para Lima3, os oito poemas incluídos no segundo número da revista Orpheu, para
Campana a coletânea poética dos Canti Orfici – saem respetivamente em 1915 e em
1914, a poucos meses uma da outra. A identidade “órfica” não é de maneira nenhuma
casual: é uma componente essencial da busca poética em ambos os autores. Os dois
vão beber à poesia simbolista francesa, de Rimbaud a Mallarmé; ambos são “tocados”
pelo verbo futurista – recorde-se que o Manifesto de Marinetti é de 1909 – mas só
de maneira superficial, dado que a sua “viagem poética” é totalmente de outro tipo.
Digamos que a ambos interessa a “musicalidade” do verso – ou do poème en prose, no
que concerne a Campana – muito mais do que o seu significado: se quiséssemos utilizar
uma só palavra para os definir, qualificá-los-íamos como poetas meta-semânticos.
Deslocar a visual do signifié para o signifiant não é, como é óbvio, só prerrogativa
deles, mas é herança do milieu cultural em que se acham.
2 Para as condições mentais de Ângelo de Lima, veja-se o Relatório redigido pelo então diretor do hospital
psiquiátrico de Rilhafoles, em Lisboa, Miguel Bombarda, onde Ângelo de Lima ficou internado de dezembro
de 1901 até à sua morte em agosto de 1921 (Bombarda, M., 2003: 133-138).
3 Sobre a colaboração de Ângelo de Lima na revista Orpheu e sobre as polémicas que esta suscitou nos ambientes
literários e jornalísticos portugueses da época, veja-se a publicação interessante e completa intitulada Orpheu
– Percursos e Ecos de um Escândalo (HILÁRIO, F., 2008).
Para Lá da Loucura: As Viagens Poéticas e Órficas de Ângelo de Lima e Dino Campana 341
Assim como Lima começa o seu percurso poético com estilemas claramente
tardo-românticos – e estamos a pensar nas suas primeiras poesias conhecidas, como
Dizem os sábios que já nada ignoram, Eu ontem vi-te…, Súplica, poesias que vão de
1894 a 1895 –, também Campana tem bem presentes as experiências imediatamente
anteriores, em especial a de Gabriele d’Annunzio – não é importante para o caso em
apreço se este é considerado decadente ou tardo-romântico – que nesses anos se acha
no auge da sua fama e condiciona fortemente, mesmo por antítese, toda a produção
poética das primeiras décadas do século xx italiano (Verdenelli, M. – Vincenzi, G.,
2014: 197). Outro ponto, embora externo, que une os dois poetas, é a sua colaboração
ativa em algumas das revistas literárias mais importantes da altura: para Lima A Arte
e A Geração Nova do Porto, para Campana La Voce, em especial.
Voltemos ao Orfismo que caracteriza as principais composições de Ângelo de Lima
e todo o percurso poético de Dino Campana. Se o Orfismo é um culto iniciático, a
poesia órfica é uma forma elitista de comunicação poética concedida a poucos eleitos.
A palavra poética do cantor “órfico” ultrapassa a realidade e a racionalidade, graças
à sua capacidade evocativa, chegando ao limite do mistério. Em termos práticos, o
que caracteriza a poesia órfica é a sintaxe onírica, o critério livre, isto é, a associação
e condensação típicas da dimensão do sonho. Lima chega a ultrapassar esses limites,
aplicando o conceito também aos segmentos morfolexicais. O resultado é uma escrita
que, ao pôr em discussão e ao reelaborar a função dos dois elementos constitutivos do
signo linguístico, causa não só um afrouxamento da relação rígida entre significante
e significado, como também uma autêntica hegemonia do primeiro em detrimento
do segundo, levando, por conseguinte, a uma reelaboração total do referente. Esta
alteração da relação entre signo e referente, a perda de uma correspondência motivada
entre palavras e coisas, que liberta o poeta do princípio que atribui ao significante o
papel de representar, não renova mas inova a linguagem, primeiro forçando-a até ao
extremo das suas possibilidades e depois utilizando-a em todas as possibilidades que
a “nova língua” gera. É assim que, ao ativar mecanismos de significação ilimitada e
de distorção da materialidade do objeto, a língua de Ângelo de Lima “se pluraliza”,
causando não poucos problemas de compreensão da mensagem poética. Uma
poesia povoada de palavras com várias possibilidades de interpretação, muitas vezes
resultado de conexões lógicas deformadas, cheias de mistério e incoerência, de
imagens fragmentadas e de associações inverosímeis, de automatismos aparentes e
inadequações sintácticas, com tendências evidentes para a hiper-abstração que, para
ser compreendida, necessita de um processo de descodificação e de decomposição
atento do material linguístico presente em cada nível: lexical, sintáctico, morfológico,
fonológico e métrico-estilístico. Os aspetos mais percetíveis logo de imediato desta
alteração linguística dizem respeito ao léxico, em especial os termos raros e arcaicos,
342 100 Orpheu Barbara Gori
4 De entre os termos inusuais e arcaicos, encontramos «Crastina» (Fado), «Êxul» (Thora), «Místera» (Epitáfio),
«Espasma» (Cântico Semi-Rami), todos exemplos de palavras perdidas no tempo que parecem viajar para lá dos
limites da memória do leitor, mas que adquirem uma atualidade se vistas no contexto em que se encontram.
Palavras que espoletam um processo de renovação lexical na medida em que, não possuindo nenhuma
intenção de significação, valem unicamente pela função expressiva que veiculam através das conexões e do
poder sugestivo dos sons. Pelo contrário, outros termos, que já eram arcaicos no tempo de Ângelo de Lima, são
reatualizados por meio das transformações a que são submetidos, em especial a nível de significante. «Psalma»,
por exemplo, na poesia Oh Céu, aparece no feminino, quando a palavra que existe em português, embora em
desuso, é masculina; o caso da palavra «inora», na poesia Súplica, é diverso pois gera muitas dúvidas quanto
ao seu significado: «Que o teu olhar é bálsamo que inora,//Do céu sobre este seio, em que, latente». A leitura
isolada do verso levar-nos-ia a pensar que «inora» está ligada à palavra que a precede, isto é, «bálsamo»,
assumindo um significado próximo a «inodoro», ou seja, de algo que não tem odor. Todavia, conhecendo
as práticas de formação de novas palavras usadas por Lima, outras hipóteses tornam-se possíveis, isto é, que
a palavra possa ser um neologismo construído a partir da fusão do prefixo «in» com o substantivo «dor»,
assumindo o significado de “indolor”, ou que seja um termo arcaico e popular que remete para ‘ignora’, relativo
a quem não sabe ou não conhece algo. Ambos os significados são possíveis no contexto da poesia.
5 É o caso de «Emprona» (Fado), que no contexto remete para ‘prora/prua’, «Dogaresa» (Idem), como mulher
do doge, «fulguro», na poesia Neitha-Kri, que pode ser entendido quer como substantivo, por derivação
regressiva, ou como adjetivo.
6 Quanto à métrica, Lima serve-se de uma métrica tradicional, utilizando sobretudo o decassílabo como
medida do verso (endecassílabo como o entendemos em italiano), muitas vezes na forma métrica do
soneto, respeitando quadras, tercetos e vínculos de rima. Sendo o andamento rítmico-métrico graficamente
fragmentado pelos frequentes parágrafos dentro do endecassílabo, por vezes pode dar a impressão ao leitor
de uma certa perturbação: mas é uma questão puramente visual. O caso de Dino Campana é diverso, pois ele
escreve num momento histórico-literário italiano influenciado pelo ‘versoliberismo’, cujo promotor é Lucini
(1908), pouco antes que Marinetti irrompa em cena com as suas “parole in libertà”. O impacto sobre a nova
geração de poetas é enorme e Campana adequa-se porque o ‘versoliberismo’ serve à sua busca da poesia
“pura” que significa, também, seguir o seu ritmo interior.
7 Algumas palavras aparecem mutiladas nos versos, resultado de elisões silábicas retomadas em seguida por
simples aliteração ou assonância ou de agrupamentos de sílabas casuais. Aliterações que muitas vezes se realizam
na voz lexical, com alteração gráfica do significante e que a única coisa que fazem é aprofundar a dicotomia
entre signo e referente. Atente-se nos seguintes exemplos: «Narra» (Fado), de «narração»,«Kaleiscopo» (Oh
Vida), de «caleidoscópio»,«Cintis» (Qual?...), de «cintilantes»,«Luctula» (Alva), de «luctuoso», em desuso
já na época de Lima com o significado de «lutuoso», «fúnebre», «triste»,«Anxe» (Cântico Semi-Rami), de
«anxiedade» (latino), «Cilos» (– Quantos... desde Chu-Si a Kuan-Su) de «cílios», «Desvirgada» (Cântico
Semi-Rami), o mesmo que «desvirginada», «Dista» (idem), de «distante». Os neologismos sintáticos, ao
contrário dos fonológicos, obtêm-se de combinações de elementos lexicais já existentes no sistema. Estas
inovações formam-se a partir de elementos da língua portuguesa ou são emprestados de outros sistemas
linguísticos, como no caso do latim. Este tipo de processo de formação lexical tem origem na derivação,
quer nominal quer adjetival. Vejam-se os seguintes exemplos: «Exaustinados» (Olhos de Lobas!), do latim
«exhaustione», com o significado de «esgotados» ou «extenuados»; «Lete» (Morreu o Rei D. Carlos!... – A
Cidade) adjetivo formado a partir do latim «letum» ou «letalis»; «Pristinas» (idem), adjetivo derivado de
«pristinus», com o significado de «antigas» ou «de outros tempos»; «Longido» (Ocaso) e «Longeva» (Fado)
do latim «longi» que é um elemento de formação das palavras; «Fatos» (Qual?...), do latim «fatum», que
significa «predição», «destino», «fado»; e «Fatas» (Neitha-Kri), variação no feminino necessária para rimar
com «Horas», como significado de «fatais»; «Purfictrio» (Edane), do latim «purificatio», com o significado
de «purificada» ou «purificadora». Outros neologismos lexicais passam através de processos normais de
derivação à procura de uma forma fonética e ortográfica que se harmonize bem com a língua portuguesa
Para Lá da Loucura: As Viagens Poéticas e Órficas de Ângelo de Lima e Dino Campana 343
com o resultado de provocar muitas vezes uma certa indeterminação de sentido: os afixos usados pelo poeta,
embora reconhecíveis em português e combinados com palavras também com valor autónomo conhecido,
produzem um significante novo com um significado imprevisível, ou seja, uma totalidade de signo não
prevista no sistema. São exemplos, por derivação prefixal, «desdeixados» (Olhos de Lobas!); «Infados»
(Canção Portuguesa); «Improfundado» (Oh Céu) e «Improfundo» (Fado); por derivação sufixal: «murchadas»
(Inês de Castro); «Olorescente» (Cântico Semi-Rami), adjetivo derivado do latim «olor» («aroma»; «odor») +
o sufixo «escente» formado por sua vez a partir do sufixo «–escer», característico dos verbos incoativos, que
indicam o início de um estado, não pertencendo «oleo» («cheirar») a este tipo de verbos; «Argentida» (Alva).
344 100 Orpheu Barbara Gori
O delle primavere
Spente, per i tuoi mitici pallori
O Regina, o Regina adolescente:
Ma per il tuo ignoto poema
Di voluttà e di dolore
Musica fanciulla esangue,
Segnato di linea di sangue
Nel cerchio delle labbra sinuose,
Regina de la Melodia:
Ma per il vergine capo
Reclino, io poeta notturno
Vegliai le stelle vivide nei pelaghi del cielo,
Io per il tuo dolce mistero
Io per il tuo divenir taciturno. […]
Em Ângelo de Lima, sobretudo pela limitação do corpus poético que nos chegou,
os exemplos são menos evidentes, embora estejam presentes; vejam-se, a título
exemplificativo, alguns versos da poesia Ocaso – Serapi-Anubi (Lima, Â. de, 2003:
73):
346 100 Orpheu Barbara Gori
– Cresce a Treva
Na Dor Silenciosa
Da Saudade das Horas Expiradas!...
– Veste a Terra nas Sombras Enlutadas
Do Deus Longido, pelos Céus, Saudosa…
Outro tema que é interessante mencionar e que aparece, embora brevemente, nos
dois autores, é a consciência da própria falta de sanidade mental, que Lima exprime
na poesia Pára-me de repente o Pensamento, onde, por meio da metáfora do cavalo
fustigado até lhe sair o sangue, se vêa sua viagem no abismo da loucura (Lima, Â.
de, 2003: 55)8:
8 Sobre o tema, veja-se também a interessante obra de Fernando Hilário, A Loucura de Ângelo de Lima (2003),
e o texto em prosa de Ângelo de Lima, Eu não estou Doudo (2003).
Para Lá da Loucura: As Viagens Poéticas e Órficas de Ângelo de Lima e Dino Campana 347
9 «Ho scritto. Si chiuse in una grotta/Arsenio fortissimo disegnatore/Dipinse quadri piccoli e grotteschi/E tese
l’anima in affreschi/Per desolare l’immensità/Della sua furia policroma/Attese i gnomi e le fate;/Cantava il
ruscello ecc./Io mi domando. Ha ciò senso comune/Qual cosa mi tortura e mi sospinge/All’assurdo. È il
bisogno della morte/perché su tutto chiamo distruzione?» (Campana, D., 1972: 114).
10 Bem o notava, há já cinquenta anos, um grande crítico, Carlo Bo, que escrevia: «Campana negli anni della
sua libertà ha visto continuamente avanti ai suoi occhi il fantasma di una chimera che era poi il nome stesso
della poesia: tanto quella chimera gli turbava la coscienza, tanto più sentiva l’impossibilità di raggiungere la
prima parola di un discorso componibile. […] Pari alla forza della sua passione, risulta quella della delusione,
della assunzione di vuoto che segue ogni sua azione poetica: Campana è davvero dilaniato fra queste due forze
contrarie, per cui lo vediamo sospeso» (Bo, C., 1972: XXXIV).
348 100 Orpheu Barbara Gori
[…] Quando
In una baia profonda di un’isola equatoriale
In una baia tranquilla e profonda assai più del cielo notturno
Noi vedemmo sorgere nella luce incantata
Una bianca città addormentata […]
Todavia, ambos os poetas parecem ter consciência de que uma dimensão capaz de
atenuar o seu “mal de viver”, para propor uma metáfora de Montale, é unicamente a
do além. Campana, em Poesia facile (Campana, D., 1972: 25), assim se exprime:
11 «BALAAL Ora tu vieni o bruna/Amica Lidia col silenzioso/Tuo passo inghirlandata dall’oblio/Per lo sterile
fianco e per la bocca funerea./Nelle coppe fiorite il vin scintilli/Immoto e nella notte un lungo fremere/Passi
nel cielo//LIDIA La sua bocca è un serpente che riposa/Ma il mio cuore mi brucia di mistero/Che i fianchi
lunghi e sinuosi torce/E che l’ebbrezza risolleva a volo/Nella voluta lenta la vertigine/Attorce i cuori, infino che
il delirio/Li annebbia delle lacrime di sangue./Ecco, conto i terrori della notte/Io sola m’alzo ed ai fragori strani/
Del cembalo/Rompo il silenzio e chiamo alta la bocca:/Uomini riscuotete via l’ebbrezza/Sfoderate le spade
scintillanti/E levatele in alto. In uno specchio/Abbarbagliante io sia centuplicata/Ed il mio ventre splenda come
stella [...]//CORO Le coscie bronzine s’imbiancano/E gli occhi son madreperla/I suoni lontani e monotoni/
Carezzano il cuore fanciullo/E noi berremo alle fonti/Eterne della vita come il sole/Ci scalderemo al suo seno
inesausto./Alziamoci/Il sacro triangolo, o uomini,/È aperto soffuso alla luce» (Campana, D., 1972: 94-95).
Para Lá da Loucura: As Viagens Poéticas e Órficas de Ângelo de Lima e Dino Campana 351
É assim que se exprime a Rainha do Egito e através destes versos ela se desenha
no âmbito daquele sacer, ou seja, a dimensão sobre-humana, de que também Lidia
é titular. Uma dimensão sobre-humana que Lima, com o avançar da sua loucura
– mas para os antigos, o conceito de “louco” e de “sagrado” pertenciam ao mesmo
campo semântico – procura ao declinar, poesia após poesia, de maneira sempre mais
fabuladora, os muitos nomes de Deus.
Por fim, a viagem poética no amor e no eros. Neste sentido, de Ângelo de Lima
pouco sabemos, exceto o que se obtém das poucas notas biográficas disponíveis, de
onde se deduz a paixão por uma suposta meia-irmã, da qual pode derivar o tema do
incesto que aparece em Semi-rami12. As suas poesias de amor são fruto de inspiração
tardo-romântica que declina depois numa espécie de “amor platónico”, em certos
momentos quase inspiradas no dolce stil novo. De resto, o conhecimento de Dante
é confirmado pelo reenvio à «selva oscura», expresso em língua italiana, na poesia
Súplica. Eros é pouco mencionado, só o incesto em Semiramide e o turbamento de
Neitha-kri.
A experiência de Campana é completamente diversa, sendo ele um habitual
frequentador de bordéis florentinos, como se deduz dos octossílabos auto-irónicos
de Prosa fetida, ambientada numa “casa” de San Frediano e de muitos outros textos.
Todavia, o consumo de Eros a pagamento é totalmente insatisfatório para o poeta
e muitas vezes remete para o seu oposto, Thanatos, como acontece na poesia
Furibondo13. É a Sibilla Aleramo, escritora “escandalosa” dez anos mais velha do que
ele, que o fará conhecer a “verdadeira” paixão amorosa, após a publicação dos Orfici,
certamente uma das mulheres mais fascinantes da época, feminista ante litteram,
autora do bestseller Una donna, romance autobiográfico em que denunciava também a
violência de que foi vítima aos 15 anos, por parte do seu futuro marido. Sendo amante
de toda a redação de La Voce, de Papini a Soffici, sente-se logo turbada pela leitura
12 Note-se que no poema a protagonista confessa ter amato sua filha, enquanto que, em geral, o mito de
Semíramis prevê que ela seja incestuosa com o filho.
13 «Abbracciata io l’avea./Mentre affannoso delle cieche ebbrezze/Sul limitare cieco brancolavo/E accelerati colpi
replicavo/Sopra la porta di eterne dolcezze:/All’improvviso sopra la mia schiena/S’alzò e ricadde martellando
sordo/E ritmico il suo piede. Fu il ricordo/Dell’attimo fuggente, nella piena/Fantastica l’appello della morte».
352 100 Orpheu Barbara Gori
dos versos do “grosseiro” oriundo de Marradi e, ipso facto, decide entrar em contacto
com ele e ir ao seu encontro, de comboio, com a explícita intenção de o seduzir. Facto
que acontece, como é óbvio, em poucas horas sem nenhuma demonstração de recusa
da parte de Campana. A história de amor entre os dois é famosíssima e dura cerca
de um ano: se Campana já se encontrava à beira da loucura, a relação serve para
o empurrar definitivamente para ela, embora Sibilla seja a primeira a levá-lo a um
psiquiatra “sério”, que não pode deixar de lhe dizer que a sífilis é a principal causa e
que ela faria melhor a abandoná-lo e a não vê-lo mais.
Com este breve contributo, tentámos delinear as correspondências intrigantes
entre dois poetas tão distantes, quer geográfica quer histórico-culturalmente no
que concerne aos países de pertença de ambos, e ainda assim tão próximos no que
concerne à dolorosíssima vicissitude humana de “alienados” numa sociedade tão
propensa a impor um “estigma de infâmia” na carne viva de quem fosse visto como
“diverso”: não nos resta senão refletir sobre o facto, incontrovertível, que outro senhal,
para usar uma expressão provençal, o da Poesia, ficou, a um século de distância, a
iluminar os nomes de Dino Campana e Ângelo de Lima, enquanto que os dos seus
perseguidores, as chamadas autoridades “constituídas”, se encontram inelutavelmente
enterrados na escuridão do tempo.
Bibliografia
Bibliografia Ativa
Campana, Dino (1972). Canti Orfici e altri scritti. Milano: Mondadori.
Lima, Ângelo de (2003). Poesias Completas. Organização, prefácio e notas de
Fernando Guimarães. Lisboa: Assírio&Alvim.
Bibliografia Passiva
Bertolani, Lorenzo (2014). Felice di essere povero ignudo. Firenze: Meridiana.
Bo, Carlo (1972). Prefazione a Dino Campana, Canti orfici e altri scritti. Milano:
Mondadori, pp. XXXI-XXXV.
Bombarda, Miguel (2003). «Relatório sobre o Estado Mental de Ângelo de
Lima». In: De Lima, Ângelo de, Poesias Completas. Organização, prefácio e
notas de Fernando Guimarães. Lisboa: Assírio & Alvim, pp. 133-138.
Gurioli, Enrico (2012). Barcheamorrate. Bologna: Pendragon.
Hilário, Fernando (2008). Orpheu – Percursos e Ecos de um Escândalo. Porto:
Edições Universidade Fernando Pessoa.
Para Lá da Loucura: As Viagens Poéticas e Órficas de Ângelo de Lima e Dino Campana 353
Fernando Guimarães
Investigador no Centro de Estudos do Pensamento Português da Universidade Católica
fez para dar um sentido especial aos “nomes de gente” que iriam fundar uma expressão
poética que tende a ser considerada em si mesma, isto é, enquanto textualidade.
Vejamos… No caso do imaginado Fradique verifica-se que Antero de Quental,
Junqueiro, Eça, Guilherme de Azevedo (e outros?) procuram um estilo que é o de
Baudelaire. Os heterónimos de Pessoa criam, pelo contrário, uma dispersão de estilos,
os de Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos, Bernardo Soares (e muitos
outros) que convergem, no entanto, no grande e dispersivo Livro pessoano que assim
nos surge como uma unidade textual.
Precisemos um pouco mais a questão. Como se constituiu este Livro que, como
aconteceu em Mallarmé, ficou disperso, por vezes fragmentário, irrealizado na
sua totalidade? Pessoa reconhece que ser um poeta dramático representaria, como
diz expressamente na citada carta de 1931 a Gaspar Simões, “o ponto central da
minha personalidade”, porquanto haveria nele “a exaltação íntima do poeta e a
despersonalização do dramaturgo”.
Fixemo-nos nestas últimas palavras para as relacionar com que atrás se disse acerca
de Shakespeare e Browning. Se a “despersonalização do dramaturgo” é uma óbvia
referência a Shakespeare, aquela “exaltação íntima do poeta” não nos irá conduzir à
expressão lírica de um Browning (que, aliás, não é referido nesse texto)? Chegados a
este ponto, talvez fosse oportuno mostrar como os caminhos da heteronímia confluem
em outros caminhos que concorrem para que se configure a obra pessoana a partir dos
seus fundamentos, naquilo que se pode agora designar por estética textual. À poesia
dramática ou poética da alteridade, a qual temos vindo a referir, juntaríamos mais três
noções tão presentes nas reflexões de Fernando Pessoa sobre poesia: “complexidade”,
“fingimento” e “construção”. Alinharíamos, assim, os quatro caminhos que maior
realce assumem na orientação da sua obra. E seria este o método, o caminho teórico
que nos conduziria à obra ou, se se preferir, ao Livro pessoano.
Quando Pessoa, no texto que se acabou há pouco de citar, alude à “exaltação
íntima do poeta” parece, à primeira vista, estar a referir-se ao que seria a espontânea
subjetividade própria do lirismo; mas não, ela está referida, sob uma forma que se
torna diferida, ao poeta dramático que ele é (tal como Shakespeare, ao pôr na boca de
Hamlet a subjetivíssima expansão lírica do seu amor por Ofélia, sabe afinal que esse
amor não é o seu).
É aqui que radica a tão celebrada noção de “fingimento”. Ela irá ter uma má
receção por parte dos presencistas, mais interessados em apostar no que designaram
por “autenticidade” da poesia. Todavia, será nas páginas da Presença que aparece
publicado o poema “Autopsicografia” de Pessoa que, logo no seu início, consagra tal
noção: “O poeta é um fingidor. / Finge tão completamente / que chega a fingir que é
dor / a dor que deveras sente”.
358 100 Orpheu Fernando Guimarães
Almada (1981)
De quem é o olhar
Que espreita por meus olhos?
Quando penso que vejo,
Quem continua vendo
Enquanto estou pensando?
Por que caminhos seguem,
Não os meus tristes passos,
Mas a realidade
De eu ter passos comigo?
Às vezes, na penumbra
Do meu quarto, quando eu
Para mim próprio mesmo
Em alma mal existo,
Toma um outro sentido
Em mim o Universo —
É uma nódoa esbatida
De eu ser consciente sobre
Minha ideia das coisas.
(Pessoa, F., 1997: 139-140)
Já repararam nos meus olhos? Reparem bem nos meus olhos, não são meus, são os olhos do
nosso século! Os olhos que furam por detrás de tudo (Negreiros, A., 2006).
Em vez de ter morrido numa cruz, por ti, antes tivesse pegado na lança que me abriu o peito,
para com ela te rasgar os olhos da cara (Negreiros, A., 2005).
1 F. Pessoa, “A nova Poesia Portuguesa no seu aspecto psicológico”, Textos de Crítica e de Intervenção,
Lisboa, Ática, 1980, p. 68: «Na obra de poesia a ideia e a forma estão ligadas numa dupla unidade, unidade
imaginativa, isto é, unidade que vem da fusão da emoção e da ideia que em sua essência é o ato de imaginar.
Ora, a imaginação depende da organização dos sentidos do indivíduo; um visual imagina de modo
inteiramente diverso que um auditivo, um indivíduo de intensa vida interior e pouca atenção ao mundo
externo, de modo diferente de ambos». (...) Pior ainda, é na poesia do sr. T[eixeira] de P[ascoaes], a perpétua
confusão entre o físico e o psíquico e entre os mais sentidos. Isso denota uma perigosa e doentia falta de
atenção às representações que na psyche se formam dos dois distintos «mundos». Dizer que uma serra está
«coroada de neve e de silêncio» implica uma incapacidade em distinguir o carácter totalmente diferente dos
fenómenos «neve» e «silêncio», um dos quais é visual e o outro auditivo, no modo como são percebidos [Texto
inicialmente publicado em A Águia, 2ª série, nº 9, 11 e 12. Porto: Set., Nov. e Dez. 1912.]
362 100 Orpheu Marisa das Neves Henriques
O olhar surge aqui como pro-vocação, gume afiado que reclama a conquista
do presente, numa sede de lúcida clareza que A Invenção do Dia Claro anuncia. À
semelhança do poeta, Almada Negreiros também distingue os seres humanos em
função da sua vocação sensorial2. Colocando os dois perfis virados um para o outro
(figura 2), talvez se compreenda a justeza do atributo de auditivo quando aplicado a
Pessoa e o de visual a Almada Negreiros.
Não posso ser materialista, (...) porque não posso estabelecer uma relação nítida — uma
relação visual, direi — entre uma massa visível de matéria cinzenta, ou de outra cor
qualquer, e esta coisa eu que por detrás do meu olhar vê os céus e os pensa, e imagina céus
que não existem. Mas, ainda que nunca possa cair no abismo de supor que uma coisa possa
2 Almada Negreiros, “Arte e Artistas”, O.C. – Textos de Intervenção, Lisboa, IN-CM, 1993, p. 72-73: «Dos
nossos cinco sentidos, os dois primeiros, Ver e Ouvir, são o bastante para marcar nos indivíduos duas espécies
que imediatamente se diferenciam. (...) De modo que primeiro Ver, segundo Ouvir (...). O natural pois é
serem cinco os sentidos e nenhum a menos em cada indivíduo. Mas ao compararmos os indivíduos entre si
destacamos logo duas grandes espécies distintas: os visuais e os auditivos. E a razão é porque nos indivíduos
em comum os seus sentidos têm outras funções além das naturais. (...) Este facto [o predomínio de um dos
sentidos] sugere imediatamente a ideia de especialidade. É a organização do melhor sentido do indivíduo. É
a sua vocação. É a parte melhor pelo todo. O seu melhor quinhão pelos menos dotados.»
Fernando Pessoa e Almada Negreiros: olhares que se cruzam sem se intersectarem 363
ser outra só porque estão no mesmo lugar, como a parede e a minha sombra nela, ou que
depender a alma do cérebro seja mais que depender eu, para o meu trajeto, do veículo em
que vou, creio, todavia, que há entre o que em nós é só espírito e o que em nós é espírito do
corpo uma relação de convívio em que podem surgir discussões (Soares, B., 2005: 309).
Noutro trecho, Bernardo Soares confessará mesmo que nada observa diretamente,
usando um vidro de permeio, aspeto que o singulariza face ao comum dos mortais:
Sou como um ser de outra existência que passa indefinidamente interessado através desta.
Em tudo sou alheio a ela. Há entre mim e ela como um vidro. Quero esse vidro sempre
muito claro, para a poder examinar sem falha de meio intermédio; mas quero sempre o
vidro.
Para todo o espírito cientificamente constituído, ver numa coisa mais que o que lá está é ver
menos essa coisa. O que materialmente se acrescenta, espiritualmente a diminui.
Atribuo a este estado de alma a minha repugnância pelos museus. O museu, para mim, é a
vida inteira, em que a pintura é sempre exata, e só pode haver inexatidão na imperfeição do
contemplador. Mas essa imperfeição, ou faço por diminui-la, ou, se não posso, contento-me
com que assim seja, pois que como tudo, não pode ser senão assim (Soares, B., 2005: 309).
Seria esse mesmo vidro que Fernando Pessoa usava, qual Janus bifronte, na sua
criação, lançando a desconfiança a olhares a nu e sem mediação? Foi por esse motivo
que atribuiu a Pantaleão, figura modesta da sua galeria de personae, a afirmação «Sou
um visual. O que na memória trago, trago-o visualmente, se susceptível é de assim ser
trazido. Mesmo ao querer evocar em mim uma qualquer voz, um perfume qualquer,
não evito que antes que ela ou ele me vislumbre no horizonte do espírito, me apareça
à visão rememorativa a pessoa que fala, a coisa donde o perfume partiu.» (Pessoa,
F., 1990: 157)? Não assinar com o seu nome permitia-lhe, nesse caso, não subscrever
a ideia, mas ensaiá-la, através de outro...
Recuperemos uma vez mais a esfera desenhada por João Abel Manta. No artigo
«Cuidado com a Pintura!» Almada Negreiros serve-se do valor geométrico da esfera
que, de acordo com as suas palavras, representa a «noção precisa de um todo e das
partes que o formam em conjunto», escolhendo-o para chegar a uma definição de Arte:
A Arte é um todo, dominando toda a vida seja qual for o aspeto debaixo do qual ela seja
vista. Diversamente de todas as outras especialidades do mundo social, a Arte não é como
elas apenas um setor especializado fazendo parte de um todo, a Arte é essencialmente o
todo da vida visto debaixo de um aspeto (Negreiros, A., 1993: 107).
364 100 Orpheu Marisa das Neves Henriques
A espécie não subdivide o género, expõe-no. Assim, desejando e sendo desejado, o ser
faz-se espécie, torna-se visível. E ser especial não significa o indivíduo, identificado por esta
ou por aquela qualidade que lhe pertence de forma exclusiva. Significa, pelo contrário, ser
um qualquer, ou seja, um ser que é, indiferentemente e genericamente, cada uma das suas
qualidades, que adere a elas, sem deixar que nenhuma o identifique. (…)
3 F. Pessoa, Caderno de notas de Fernando Pessoa [março de 1914- junho de1916], 20r, disponível na Biblioteca
Nacional Digital, no Espólio Fernando Pessoa (http://purl.pt/1000/1/cadernos/index.html).
4 Sobre este aspecto, veja-se o nosso Antes de um Manual de Pintura e Caligrafia: uma poética modernista por
Almada Negreiros, Coimbra, CLP-Nota de Rodapé Edições, 2015.
Fernando Pessoa e Almada Negreiros: olhares que se cruzam sem se intersectarem 365
Bibliografia
Bibliografia ativa
Negreiros, José de Almada (1993). Obras Completas – Textos de Intervenção.
Lisboa: IN-CM.
Negreiros, José de Almada (2005). A Invenção do Dia Claro, edição
fac-similada. Lisboa: Assírio & Alvim.
366 100 Orpheu Marisa das Neves Henriques
Bibliografia passiva
Agamben, Giorgio (2006). Profanações, trad. de Luísa Feijó. Lisboa: Livros
Cotovia.
Henriques, Marisa das Neves (2015). Antes de um Manual de Pintura e
Caligrafia: uma poética modernista por Almada Negreiros. Coimbra-Paris:
Centro de Literatura Portuguesa - Nota de Rodapé Edições.
Merleau-Ponty, Maurice (2006). O olho e o espírito, trad. de Luís Manuel
Bernardo. Lisboa: Vega.
O Sensacionismo é um
Não-Existencialismo
Nuno Hipólito
IEMO Grupo Interdisciplinar de Estudos Pessoanos e Modernistas
II
Pessoa podia, em teoria, ter sido exposto às ideias Existencialistas e Analíticas do seu
tempo. Os principais membros dessas escolas escrevem no período em que o próprio
Pessoa escreve ou então imediatamente antes. Assim Falava Zaratustra, de Friedrich
Nietzsche é publicado em Inglês, em 1895. Principia Mathematica de Alfred North
Whitehead e Bertrand Russell aparece em 1910 e o Tractatus Logico-Philosophicus de
Ludwig Wittgenstein é traduzido para Inglês em 1922. No início dos anos 30 surgem
O Sensacionismo é um Não-Existencialismo 369
Eu era um poeta animado pela filosofia, não um filósofo com faculdades poéticas. Eu adorava
admirar a beleza das coisas, delinear – imperceptivelmente através do assombrosamente
pequeno - a alma poética do universo.
A poesia está em tudo – no mar e na terra, no lago e na margem do rio. Está na cidade
também – não o neguem – isto é evidente para mim, aqui sentado: há poesia nesta mesa,
neste papel, neste tinteiro; há poesia no ruído dos carros nas ruas, em cada minuto, cada
momento comum, no movimento ridículo do trabalhador, que, no lado oposto da rua pinta
a placa do talho (PESSOA, F., 1906: 22)8.
III
«O problema central da filosofia é a filosofia que a si própria se põe como problema.» Por
que precisamos de filosofia?
A ideia fundamental do ser, ou da realidade, ou da verdade, eis o que procuramos na
Filosofia. A Filosofia é a demanda do ser. O que é o Ser, o que é a realidade? Este é o problema
da filosofia9 (PESSOA, F., 1908: 52).
É espantoso que estas duas ideias, a do “problema central da filosofia ser a própria
filosofia” e a “colocação do ser enquanto principal demanda da filosofia” nunca tenham
sido analisadas devidamente pela exegética Pessoana. Isto porque a primeira antecipa
os problemas enfrentados pela filosofia no pós-Guerra perante a ameaça da lógica e a
segunda fornece pistas para o que será realmente “um poeta influenciado pela filosofia”.
Não há dúvidas que Pessoa se assume ao longo da sua obra como um escritor da
existência mas não um filósofo existencialista stricto sensu. Aliás, a partir de 1909
dificilmente se diria que ele mantenha sequer um interesse concreto em filosofia pura.
Ele rapidamente percebeu que a filosofia pura não lhe traria respostas, intuindo que a
razão dessa impotência poderia residir no uso dado à linguagem, ou mais amplamente
à linguagem poética. Ora, Pessoa nunca se deixou de interessar pela análise linguística,
pelo contrário – é um tema central e contínuo na sua obra.
O que não foi ainda analisado plenamente foi a transferência de interesse e
energia, da filosofia para a poesia e como ambas se complementam nas suas teorias
linguístico-literárias, sobretudos no seu “ismo” principal: o Sensacionismo. Veremos
como essa transferência terá estado na origem das principais aventuras ontológicas
de Fernando Pessoa através dos seus heterónimos, tendo culminado num sistema
filosófico que nada já tinha de filosofia pura, mas antes era uma total e coerente teoria
do pensamento poético.
Se “a poesia está em tudo” é através da poesia que se chegará a tudo. Mas como?
Wittgenstein tinha já questionado a conexão consciência-realidade, interpondo a
linguagem entre as duas e impondo rígidas regras lógicas a essa mesma linguagem,
que exigiam o silêncio quando nada podia ser dito10.
IV
[…] pus no Caeiro todo o meu poder de despersonalização dramática, pus em Ricardo
Reis toda a minha disciplina mental, vestida da música que lhe é própria, pus em Álvaro de
Campos toda a emoção que não dou nem a mim nem à vida. Pensar, meu querido Casais
Monteiro, que todos estes têm que ser, na prática da publicação, preteridos pelo Fernando
Pessoa, impuro e simples11! (PESSOA, F., 1935)
10 A passagem em questão é a seguinte: “Sobre o que não se pode falar, deve-se fazer silêncio.” Cf.
Wittgenstein, L., 1922: 90. E em correlação: “Os limites da minha linguagem denotam os limites do
meu mundo”, ob.cit., 5.6, p. 74. Em ambos os casos é nossa a tradução do Inglês.
11 Cf. PESSOA, F., 1999: 337 e ss.
372 100 Orpheu Nuno Hipólito
Existia, no seu quotidiano, uma distinção clara entre o que ele era e o que ele fazia,
se quisermos, entre a sua existência e a sua essência. A Rua dos Douradores, por
coincidência ou não, a rua mais escura da baixa Lisboeta, simboliza o Universo e no
Universo há lugar para a Vida e para a Arte, para o real e para o ideal.
Não é de estranhar que ele pudesse aparecer aos amigos ou conhecidos como um
dos heterónimos, porque eles afinal nada mais eram do que uma parte dele; como o
emprego itinerante nos escritórios, dentro e fora de horas, também era. Pessoa apenas
deu um nome mais concreto ao que nós todos sentimos também de forma incompleta
– emotividade, frieza ou racionalidade, Campos, Caeiro ou Reis.
No que nos interessa analisar, nomeadamente como esta cisão na personalidade
origina uma forma inovadora de filosofar, aproximamos a despersonalização
Pessoana primeiro à duplicidade dentro-fora, interior-exterior. A explosão de
personalidades-outros em Pessoa representa essencialmente a fuga da dor da
realidade, tendo Pessoa calado o mais fundo de si em favor de outras vozes que não a
sua. Não há verdade no exterior, apenas no interior, porque é no interior que todos os
nossos sonhos vivem e se conquistam. A vida sonhada é uma vida em que o sonhador
constrói a sua verdade, a sua realidade.
O primeiro passo a ser dado pelo sonhador é então o afastamento. O próprio Pessoa
diz que a “liberdade é a possibilidade do isolamento”13. O segundo passo? Evitar o
sofrimento conhecendo-o intimamente. O último passo – o terceiro como na tradição
alquímica – é a depuração da sensação pela inteligência para que tome uma forma
literária. Podemos resumir todos estes passos num único: o pensamento mata a acção
e a literatura dá forma visível a essa morte.
A necessidade da escrita em Pessoa parece então surgir da necessidade de analisar
as suas sensações para as transformar em sonhos. E cada pequena sensação poderá
estar na origem de um grande sonho e, por consequência, de um grande texto como
“Na floresta do Alheamento” ou “Viagem nunca feita”.
VI
No fundo da realidade sonhada está a sensação. Mas a realidade interior pode ser
resumida e constituir-se apenas de sensações ínfimas de si mesma? A resposta a esta
questão é dada no enquadramento do Sensacionismo Pessoano.
Estes são os três princípios do Sensacionismo:
Ao dizer que “todo o objecto é uma sensação nossa” e que “toda a arte é a
conversão de uma sensação em objecto”, Pessoa parece estar a dar-nos um manual
para a desconstrução da realidade em si mesma em objectos transferíveis de fora
para dentro. Ele acredita que é possível pegar em sensações exteriores (os objectos) e
transformá-las em sensações interiores (a literatura). Será necessário transferir toda
a realidade exterior para a realidade interior? Não. O objectivo não é compreender o
Universo, porque o Universo é incompreensível, mas antes construir o nosso próprio
Universo.
O Sensacionismo é assim o método da filosofia Pessoana, a forma de processar a
realidade para encontrar significados, em busca de uma verdade individual. Há que
VII
Bibliografia
Bibliografia Activa
PESSOA, Fernando (1986). Escritos Íntimos, Cartas e Páginas Autobiográficas.
Lisboa: Publ. Europa-América.
PESSOA, Fernando (1989). À Procura da Verdade Oculta, Lisboa: Publicações
Europa-América, 2ª edição.
PESSOA, Fernando (1999). Correspondência 1923-1935. Lisboa: Assírio & Alvim.
PESSOA, Fernando (2003). Escritos Autobiográficos, Automáticos e de Reflexão
Pessoal. Lisboa: Assírio & Alvim.
PESSOA, Fernando (2010). Livro do Desasocego. Lisboa: INCM.
PESSOA, Fernando (1966). Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Lisboa: Ática.
Bibliografia Passiva
AZEVEDO, António (2005). Pessoa e Nietzsche. Lisboa: Instituto Piaget.
COELHO, António Pina (1997). Os Fundamentos filosóficos da obra de Fernando
Pessoa. Lisboa: Verbo.
SARTRE, Jean-Paul (1946). L’Existentialisme est un humanisme. Nagel.
BLANCO, José (2008). Pessoana. Lisboa: Assírio & Alvim.
WITTGENSTEIN, Ludwig (1922). Tratactus Logico-Philosophicus. London:
Kegan Paul, Trench, Trubner.
REAL, Miguel (2011). O Pensamento Português Contemporâneo 1890-2010.
Lisboa: INCM.
RIBEIRO, Nuno (2011). Fernando Pessoa e Nietzsche: O pensamento da pluralidade.
Lisboa: Verbo.
RIBEIRO, Nuno (2012). Fernando Pessoa, Philosophical Essays: A critical edition.
New York: Contra Mundum Press.
Do desassossego ou a geometria do abismo
Lilian Jacoto
Universidade de São Paulo
Os dois números que fizeram existir a Revista Orpheu, há cem anos, expressam, na
conjugação de suas linhas estéticas, uma dualidade típica dos momentos de transição,
quando o velho e o novo devem coexistir para que o contraste grite e se estabeleça,
para que o novo exista em fricção e abertura, mas sobretudo pra que seja uma resposta
a questões que a antiga arte não dava mais conta de equacionar.
Responder ao seu tempo foi uma preocupação aguda do modernismo. E Fernando
Pessoa obrou suas respostas, tanto na concepção do Orpheu junto a Sá-Carneiro,
quanto no conjunto da obra que só em parte editou. Com Haquira Osakabe1
compartilhamos a intuição de que o conjunto da obra pessoana (tomado na sua
infinitude) carregue uma intencionalidade de responder à Decadência que contagiou
a cultura europeia desde os oitocentos, e que ainda ecoava, sobremaneira em Portugal,
numa arte afetada de um histerismo mal compreendido e mal curado dos traumas
históricos e políticos ainda muito recentes. O Mal, entretanto, era de outra natureza,
Caeiro contenta-se com a extensão que seu olhar permite alargar para além do corpo,
de modo que o horizonte visível, o seu campo de visão, é-lhe suficiente para conhecer
o conhecível. Tanto se lhe basta para dizer que sabe a verdade e é feliz. De outro lado,
segundo a lógica do mestre, a visão emparedada das ruas, dos becos e largos da baixa
lisboeta, onde o semi-heterônimo Bernardo Soares transita diariamente, fá-lo pequeno e
menor. Um ser diminuto e pobre, num sistema de valores em que “a nossa única riqueza
é ver”. Soares, por sua vez, ao delimitar sua existência, enuncia-se diametralmente avesso
à positividade visual de Caeiro: “Sou os arredores de uma vila que não há”3...
No eixo da negatividade como inóspito lugar, ou ainda, num não-lugar em que
se exilou a fusão Guedes-Pessoa e Mário de Sá-Carneiro até 1915; e onde após 1916,
2 Como bem definiu João Gaspar Simões: “Não era um místico Fernando Pessoa – o caminho místico
considerava-o incerto e lento -, também não era um perfeito mago – o caminho mágico repugnava à sua
inteligência. Era, todos o sabemos, uma alta inteligência abstrata. E, assim, ei-lo na sua operação favorita:
tornar abstrato o concreto, fazer geométrica a realidade, consubstanciar no espírito o que no mundo é da
ordem dos fenômenos materiais.” (1950, pp. 578-579)
3 Trata-se do fragmento número 262, da edição do Livro do Desassossego organizada por Richard Zenith
(1999), do qual trataremos mais adiante.
Do desassossego ou a geometria do abismo 383
Releio passivamente, recebendo o que sinto como uma inspiração e um livramento, aquelas
frases simples de Caeiro, na referência natural do que resulta do pequeno tamanho da sua
aldeia. Dali, diz ele, porque é pequena, pode ver-se mais do mundo do que da cidade; e por
isso a aldeia é maior que a cidade...
(...) Frases como estas, que parecem crescer sem vontade que as houvesse dito, limpam-me
de toda a metafísica que espontaneamente acrescento à vida. Depois de as ler, chego à
minha janela sobre a rua estreita, olho o grande céu e os muitos astros, e sou livre com um
esplendor alado cuja vibração me estremece no corpo todo.
«Sou do tamanho do que vejo!» Cada vez que penso esta frase com toda a atenção dos meus
nervos, ela me parece mais destinada a reconstruir consteladamente o universo. «Sou do
tamanho do que vejo!» Que grande posse mental vai desde o poço das emoções profundas
até às altas estrelas que se reflectem nele, e, assim, em certo modo, ali estão.
E já agora, consciente de saber ver, olho a vasta metafísica objectiva dos céus todos com
uma segurança que me dá vontade de morrer cantando. «Sou do tamanho do que vejo!» E
o vago luar, inteiramente meu, começa a estragar de vago o azul meio-negro do horizonte.
(PESSOA, F., 1999: 80-81 [frag. 46])
Entretanto, esse luar que obnubila a visão do horizonte, borrando seus limites, é
já a força abissal que não deixa durar muito o sossego trazido pela lição do mestre.
Afinal, o livro infinito de Soares é em si a expressão dessa impossibilidade de
contentar-se nos limites formais de uma vida que é pura textualidade. A própria
unidade de expressão alojada nos fragmentos do LD já aponta a ambição de
extravasar os limites do texto como corpo, fissurando a finitude da forma, abrindo
vazios que trazem, ao horizonte estreito da baixa lisboeta, a ilimitação dos abismos.
A imagem do abismo aparece com toda a sua carga de desalento no fragmento 262.
Repare-se como toda a positividade da cidade e do sujeito que a vê repentinamente
dá lugar ao vazio:
384 100 Orpheu Lilian Jacoto
Cheguei hoje, de repente, a uma sensação absurda e justa. Reparei, num relâmpago íntimo,
que não sou ninguém. Ninguém, absolutamente ninguém. Quando brilhou o relâmpago,
aquilo onde supus uma cidade era um plaino deserto; e a luz sinistra que me mostrou a mim
não revelou céu acima dele. Roubaram-me o poder ser antes que o mundo fosse. Se tive que
reencarnar, reencarnei sem mim, sem ter eu reencarnado. (PESSOA, 1999: 257-258)
Estou caindo, depois do alçapão lá em cima, por todo o espaço infinito, numa queda sem
direcção, infinitupla e vazia. Minha alma é um maelstrom negro, vasta vertigem à roda de
vácuo, movimento de um oceano infinito em torno de um buraco em nada, e nas águas que
são mais giro que águas bóiam todas as imagens do que vi e ouvi no mundo - vão casas,
caras, livros, caixotes, rastros de música e sílabas de vozes, num rodopio sinistro e sem
fundo.
E eu, verdadeiramente eu, sou o centro que não há nisto senão por uma geometria do
abismo; sou o nada em torno do qual este movimento gira, só para que gire, sem que esse
centro exista senão porque todo o círculo o tem. Eu, verdadeiramente eu, sou o poço sem
muros, mas com a viscosidade dos muros, o centro de tudo com o nada à roda.
E é, em mim, como se o inferno ele-mesmo risse, sem ao menos a humanidade de diabos a
rirem, a loucura grasnada do universo morto, o cadáver rodante do espaço físico, o fim de
todos os mundos flutuando negro ao vento, disforme, anacrónico, sem Deus que o houvesse
criado, sem ele mesmo que está rodando nas trevas das trevas, impossível, único, tudo.
Minha mãe morreu muito cedo, e eu não a cheguei a conhecer... (PESSOA, F., 1999: 258)
4 Sobre a fenomenologia do abismo, veja-se o trabalho de Anabela Ferreira Prova Canas (2010).
5 Vide a esse respeito o memorável texto de Foucault “Nietzsche, Freud e Marx” (1967).
386 100 Orpheu Lilian Jacoto
Também, com Bachelard, na assunção das imagens do poço e do céu como devaneios
do infinito, aprendemos que o ser é paradoxalmente infinito na visão que se delimita
pelo giro do olhar, de modo que o horizonte do visível seja, via de regra, circular.
Somos, com Caeiro, do tamanho do que vemos, e o que vemos é o mundo que está
ao redor. Assim temos o indivíduo (de)limitado pelo seu campo de visão; mas, com
Soares, também pelo que foge a esse campo, isto é, pelo abismo que o excede, estando
esse sujeito, portanto, no centro daquilo que é a precária ausência de si mesmo.
Na especularidade quiasmática da imagem do poço que contempla o céu, expressa-se
a reciprocidade entre o sujeito que olha e o ser contemplado. Afinal, o poço nos atrai e
chama, como se estivéssemos no fundo já, convidando-nos ao mergulho em nós mesmos,
na profundidade que de nós desconhecemos; olhá-lo é um (re)conhecimento que forja
uma subjetividade no objeto, o que dá à paisagem uma dimensão fantasmática. E se
entendemos a gnose como um processo de conhecer-se por imagens, à beira do abismo
o eu olha e é olhado; do mesmo modo em que, no desassossego, olhar é ver para dentro.
Afinal o abismo à beira do qual vive Soares, em seu vazio centro, é o que traz, ao
projeto pessoano, a fenda da escrita. Sem ter a exclusividade desse papel, Soares vem
trazer a suspeita do sujeito e da linguagem, que ele sabe impotente para superar a
negatividade, o lugar impossível em que habita, em infinita queda, apesar da paisagem
urbana quase palpável que seu olhar evoca, mas que se lhe mostra, ao cabo, um fundo
falso de realidade (DUARTE, L. P., 2011: 15). Em cada fragmento, fica expressa a
falência da presunção da totalidade, sendo, por isso mesmo, talvez, a face pessoana
mais próxima da ideia de um infinito.
E é justamente na debilidade desse sujeito em queda infinita que ressuma sua força
humana superior, tal qual a águia de Zaratustra, cuja força e altura do voo advêm do
abismo que traz dentro de si6.
Segundo Lélia Parreira Duarte (2011: 15), a vida do texto que se elabora em função
do abismo e da falta camufla a morte. Mas não é isso exatamente o que se dá no LD,
onde “só é forte quem desanima sempre” (PESSOA, F., 1999: 132). Ali não se trata de
escamotear a dor, de equiparar-se a Deus, de libertar-se do Fatum. No desassossego
experienciamos a queda no infinito, na mesma medida em que vemos, a todo
instante, a imagem da nossa finitude. Uma “prosa suicidária”, como denominara
Eduardo Lourenço, toda feita de paradoxos (LOURENÇO, E., 2008). Nela caímos
infinitamente sem cair, nela morremos a todo instante sem morrer. Dionisíaca e
abstrata, a geometria do abismo é também um caminho - lúcido e dramático - de
passar além da dor.
6 “O que vê o abismo, mas com olhos de águia; o que se prende ao abismo com garras de águia: é este o
valoroso.” (NIETZSCHE, F., 2002.)
Do desassossego ou a geometria do abismo 387
Bibliografia
Bibliografia Ativa
PESSOA, Fernando (1999). Livro do Desassossego (org., introdução e notas de
Richard Zenith). São Paulo: Companhia das Letras.
PESSOA, Fernando (1986). Obra Poética, volume único (org., introdução e notas
de Maria Aliete Galhoz). Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar.
Bibliografia Passiva
BACHELARD, Gaston (2008). A Poética do Espaço. São Paulo: Livraria Martins
Fontes Editores.
BARRENTO, João (2010). O Gênero Intranquilo: anatomia do ensaio e do
fragmento. Lisboa: Assírio & Alvim.
BATAILLE, George (1986). L’expérience intérieur. Paris: Éditions Gallimard.
CANAS, Anabela Ferreira Prova (2010). A apetência estética do abismo ou a
vertigem do autoconhecimento. Dissertação de Mestrado apresentada à
Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa. Disponível em http://
repositorio.ul.pt/bitstream/10451/3147/5/ULFBA_TES378.pdf [acesso em
fevereiro de 2015].
DUARTE, Lélia Parreira (2011). Potência e Negatividade em Fernando Pessoa. Belo
Horizonte: Veredas e& Cenários.
FOUCAULT, Michel (1967). “Nietzsche, Freud e Marx”, In: MOTTA, M. B.
(org). Michel Foucault: Arqueologia das Ciências e História dos Sistemas de
Pensamento. Col. Ditos e Escritos. Vol. II. Rio de Janeiro: Forense Universitária.
LOURENÇO, Eduardo (2008). Fernando Pessoa, Rei da nossa Baviera. Lisboa:
Gradiva.
NIETZSCHE, Frederico (2002). Assim Falava Zaratustra (Trad. base de José
Mendes de Souza). Versão para eBook: eBooksBrasil.org.: http://www.
ebooksbrasil.org/eLibris/zara.html [acesso em fevereiro de 2015].
OSAKABE, Haquira (2014). Fernando Pessoa: Resposta à Decadência. São Paulo:
Iluminuras.
SIMÕES, João Gaspar (1950). Vida e obra de Fernando Pessoa: história de uma
geração. Lisboa: Bertrand.
Orpheu… e depois1?...
100 anos depois, olho o Horóscopo de Orpheu: “revela, pouco mais ou menos, o
que a vida vê […]. A vida é essencialmente acção, e o que o horóscopo indica é a acção
que há na vida do nativo” (Pessoa, 1989: 158).
Se titulo o presente texto com palavras de Fernando Pessoa é por me parecer que
Orpheu é essencialmente ação. É a revista que mudou e continuará a mudar o rumo da
arte em Portugal. Não que essa mudança tenha sido abrupta e com data marcada – há
muito que se vinha anunciando no movimento da Renascença Portuguesa, mormente
com a publicação na revista A Águia do artigo “A nova poesia portuguesa” (1912)
de Fernando Pessoa – mas houve um momento que a firmou – “26 de Março às 7
p. m. 1.º número vendido” –, diz o horóscopo, e desconheço qualquer momento ou
um outro horóscopo indicador do seu terminus. Por isso “Orpheu acabou. Orpheu
continua” (PESSOA, F., 1976: 407).
1 O presente texto foi a base de intervenções várias em Portugal e no Brasil no ano das comemorações do
Centenário da publicação da Revista Orpheu.
390 100 Orpheu Isabel Ponce de Leão
2 Entendendo geração como um grupo de artistas contemporâneos e coetâneos que, citando Carlos Ceia,
“comungam dos mesmos ideais, respondem aos mesmos desafios históricos, partilham a mesma estética e
que muitas vezes procuram construir uma obra com características comuns”, não posso considerar que haja
em torno de Orpheu uma geração, tal como a definiu W. Dilthey, porquanto não se manifestem afinidades
estético-ideológicas nem o desejo de afirmação grupal quer em termos culturais quer sociais. Bem pelo contrário
são recorrentes as discrepâncias entre Fernando Pessoa e Santa-Rita ou mesmo Almada Negreiros apesar do
objectivo comum de escândalo “à força de se ultrapassarem uns aos outros, de romperem todos os limites e de
se atolarem no caprichismo subjectivista, quando não nas serventias ideológicas, os vanguardismos, sejam eles
quais forem” (Quadros, 1988:123). Apenas existia um desejo de mudança num relativamente escasso número de
pessoas, direi, uma elite, que não enforma uma geração antes se gere pelo individualismo.
Orpheu… e depois? 391
Bibliografia
Ceia, Carlos (s/d). “Geração Literária”. E-Dicionário de Termos Literários. [Em linha].
Disponível em <http://www.edtl.com.pt/index.php?option=com_mtree&
task=viewlink&link_id=109&Itemid=2>. [Consultado em 18.02.2015].
Lima, Ângelo (1935). “Soneto”, in Sudoeste, n.º 3.
Lourenço, Eduardo (1974). Tempo e Poesia. Porto: Inova.
Morna, Fátima Freitas. (1982). A poesia de Orpheu. Lisboa: Editorial
Comunicação.
Pessoa, Fernando (1924). “Editorial”, in Athena, n.º 1.
Pessoa, Fernando (1935). “Nós os de “Orpheu””, in Sudoeste, n.º 3.
Pessoa, Fernando (1976). Obras em Prosa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar.
Pessoa, Fernando (1989). Textos filosóficos e esotéricos. Mem Martins:
Publicações Europa-América.
Ponce de Leão, Isabel. (1996). Imagens da Vida (presença: poesia e artes
plásticas). Porto: Edições Universidade Fernando Pessoa.
Quadros, António (1988). O Primeiro Modernismo Português. Mem Martins:
Publicações Europa-América.
Régio, José. (1927). “Da geração modernista”, in presença, n.º 3.
Régio, José. (1930). “Divagação à roda do primeiro salão de independentes”, in
presença, n.º 27.
Ode satírica + comédia dinâmica em suportes móveis x Narcisos
intermédios = o sorriso do Desenho no tempo de Orpheu e tudO
Sandra Leandro
Universidade de Évora
IHA, FCSH, Universidade NOVA de Lisboa
CLEPUL - FLUL
À Lira
A Herberto Helder
I – Estrofe
A(s) cena(s) do(s) ódio(s)
O amigo mais próximo de Santa Rita foi Almada Negreiros (1893-1970), que
sempre me habituei a ver como «artista total» (DEUS, A. D., 1997: 117). Esse convívio
estreitou-se quando deflagrou a Grande Guerra e Santa-Rita teve que regressar de
Paris. Nas palavras de Sarah Affonso (1899-1983), Almada considerava Santa-Rita «o
mistificador mais completo!» (NEGREIROS, M. J. A., 1993: 24) e uma das «pessoas
mais inteligentes que tinha conhecido! Duma imaginação fortíssima e com uma
concepção de arte muito avançada. Mas era mais um intelectual, mais uma atitude.
Um teórico de arte» (id.: 25).
Passados longos anos sobre a aventura de Orpheu, perguntaram a Almada como se
tinha constituído o grupo. Ele respondeu: «Quando as pessoas têm a mesma desgraça
juntam-se»… Fernando Pessoa e Almada Negreiros travaram conhecimento por
consequência da exposição individual de caricaturas de Almada na Escola Internacional,
em Março de 1913. Pessoa publicou n’A Águia um artigo sobre a arte da sátira em que
faria menção definitiva a Almada Negreiros, detectando o «polimorfismo da sua arte»
e a frase que despertaria a curiosidade do Desenhador: «Que Almada Negreiros não
é um génio manifesta-se em não se manifestar». Procurando Pessoa para o esclarecer,
o Poeta referiu-lhe não ter visto sequer a exposição. Amigo do caricaturista Adolfo
Rodríguez Castañé1, Fernando Pessoa escreveu tendo em conta o que se comentava e
o que teria visto em periódicos e exposições colectivas (GONÇALVES, R.-M., 1993:
60). Foi o início de uma amizade e Almada integraria Orpheu, tal como José Pacheko
e Santa-Rita Pintor.
Regressando à frase «Quando as pessoas têm a mesma desgraça juntam-se»,
Almada «Poeta de Orpheu, Futurista e Tudo», sabia por dentro como a arte podia
servir para conceber um mundo alternativo num ambiente hostil e o mundo
desmultiplicava-se na época em diversas cenas de ódios (fig.1). «Narciso do Egipto»,
abandonando o «seu campo de desenhador humorístico – que daí a um mês voltaria a
ser, no salão portuense [Exposição de Humoristas e Modernistas]» (FRANÇA, J.-A.,
1986: 190), Almada assinou a sua prosa no número 1 de Orpheu como «desenhador
José de Almada Negreiros» (ibid.). Se tantas vezes o humor é uma sublimação da
tristeza, não estranha que ao perguntarem a Almada que papel tinha a caricatura e o
1 Adolfo Rodríguez Castañé (1887, Madrid- Lisboa, 1963) de origem espanhola, veio muito jovem residir para
Lisboa. Discípulo de Jorge Colaço, exibiu trabalhos nos Salões de Humoristas Portugueses (1912, 1913),
«executando ilustrações para publicidade nessa década. Foi autor do único retrato pintado em vida de Fernando
Pessoa, em 1912. Colaborou em várias revistas e jornais. Tem muitas pranchas de histórias aos quadradinhos em
O Século - Supplemento Humorístico assim como no Pim-Pam-Pum!, verdadeiro suplemento do jornal O Século
[…]. Ilustrou alguns livros e participou na rara colecção infantil Biblioteca Tamariz, ao lado de Tom e de Stuart
Carvalhais — […].realizados pela Sociedade de Propaganda da Costa do Sol, dirigidos e com texto de Augusto
de Santa-Rita. Monopolizou o sector gráfico do suplemento Pim-Pam-Pum! na primeira metade da década de
30 do século passado, mas consigo detectar a sua presença até meados do ano 1940» (SÁ, L. de, 2009).
404 100 Orpheu Sandra Leandro
humor na arte, a sua frase tenha sido lapidar: «Foi o elo com que se passou do século
XIX ao XX».
Baudelaire (1821-1867) vincou a ideia de que, para se fazer arte, é preciso ser
artista, ou seja, o modo de ser sobrepõe-se na criação artística aos modos de fazer. Este
património inextinguível da visão romântica do artista, enlaçada na modernidade,
tem em Santa-Rita Pintor uma das suas mais fascinantes encarnações. Aparentemente
e ao contrário de Almada, não estava empenhado na empresa satírica do desenho
humorístico, nem participou nas suas exposições. Podia-se objectar que estava em
Paris (1912, 1913), contudo, outros artistas também lá se encontravam e não deixaram
de estar presentes… A partir de certo momento desinteressou-se também da prática
oficinal da pintura. Ele era uma atitude. A sua arte era sobretudo a vida e o seu modo
de ser, introduzindo um humor protodadaísta (GONÇALVES, R.-M., 1993: 71). A
maioria dos seus contemporâneos não lhe perdoou.
Como observou José-Augusto França, Santa-Rita Pintor tinha vinte e três
anos em 1912, quando viu, em Paris, a exposição dos futuristas italianos e aderiu
2 Alonso, foi o pseudónimo de Joaquim Guilherme Santos Silva, caricaturista que se estreou em 1891 no
Charivari, jornal humorístico do Porto. Natural de Lisboa onde nasceu em 15 de Abril de 1874, faleceu em
30 de Julho de 1948, em Sintra. Foi professor na Escola António Arroio, decorador ilustrador e autor de
banda desenhada e caricatura. Dono de «uma capacidade narrativa intrínseca, imbuída de humor acessível e
mordaz, num traço redondo, decorativo, entre alegorias e metáforas de irreverência irónica. O seu estilo está
na transição entre o raphaelismo final (com influências da arte nova) e o modernismo» SOUSA, Osvaldo de –
A caricatura política em Portugal. Lisboa: Edição Salão Nacional de Caricatura, 1991, não paginado. Além d’O
Século os seus trabalhos foram publicados no Passatempo, Os Arautos, A Paródia, Os Ridículos, O Thalassa,
Almanaque Ilustrado de O Zé, Renovação, A Batalha, Os Grotescos, O Espectro, Charivari, O Palco, A Paródia,
Os Serões, entre outros. Trabalhou para a Companhia N. Editora. Foi galardoado com uma 2ª medalha na
secção de caricatura da Sociedade Nacional de Belas-Artes; (SOUSA, O., 1999: 58); (DEUS, A. D., 1997:
113-114); (SÁ, L.; DEUS, A.D., 1999: 15).
Ode satírica + comédia dinâmica em suportes móveis x Narcisos intermédios = o sorriso do Desenho no tempo ... 405
Sá-Carneiro], c.1912.
3 José Herculano Stuart Torrie de Almeida Carvalhais nasceu em 7 de Março de 1887. Por volta de 1905 deu
entrada no atelier de Jorge Colaço. Em 1906 viu publicado pela primeira vez um desenho seu n’O Século:
suplemento ilustrado. Stuart teve sempre um modo muito próprio de sintetizar a forma e uma notável capacidade
de desenhar de um modo expressivo e rápido. Participou no importante Primeiro Salão dos Humoristas em
1912, exposição decisiva para o desenvolvimento do modernismo em Portugal. Foi editor da revista A Satira e
publicou trabalhos n’O Zé, na Gargalhada, A Lanterna, a Ilustração Portugueza, o Imparcial. Partiu para Paris
onde foi desenhador de um dos mais importantes jornais do tempo o Ruy Blas, colaborando também no Le
journal, Excelcia, Pages Foles, Cris de Paris, Le Rire, Sourire. Participou no II Salão dos Humoristas. Foi o autor da
célebre dupla de banda desenhada Quim e Manecas, considerada por muitos como a primeira banda desenhada
portuguesa. Além de caricaturista e ilustrador foi pintor, figurinista, cenógrafo e fez alguns trabalhos no domínio
cinematográfico. Faleceu em 2 de Março de 1961 (PACHECO, J., s.d.: passim).
406 100 Orpheu Sandra Leandro
uma representando um WC (que, segundo o pintor se gabava, “só dez pessoas no mundo
podiam não só compreender como ver”), outros intitulados “Portugal” e “Ruído num
Quarto sem Móveis” – estando este na base de uma enganadora notícia enviada para a
revista “Teatro” de Lisboa, em 13, que o dizia escandalosamente exibido no Salon des
Indépendants e reproduzindo, como falso documento, um quadro de Picabia, vingança de
jornalista [Eduardo Freitas] inimigo do pintor… (FRANÇA, J.-A., 1991: 54).
propondo-se então editar, com procuração do autor, os manifestos de Marinetti (…) – e com
a intenção de “fazer a (sua) obra e de impor(-se) socialmente”, esperando sempre “o regresso
da monarquia para dominar”, dirigir um museu, fazer regressar os Jesuítas e reinstaurar a
Inquisição…(FRANÇA, J.-A., 1991: 55).
Futurista não foi publicado não sossegou. Sublinhe-se a descodificação que Bernardo
Pinto de Almeida apresenta da célebre fotografia de casaco aos quadrados legendada
como «Santa Rita Pintor o grande iniciador do movimento Futurista em Portugal»
(p.5) ali publicada:
A admirável encenação clownesca que Santa Rita faz de si mesmo nas páginas de Portugal
Futurista. Em que em vez de obras prefere a afixação da própria imagem num gesto de
irrisão, niilista e cómico que lembra de algum modo o retrato famoso de Duchamp
enquanto Rrose Sélavy por Man Ray, mesmo se não é de mulher que aparece travestido,
mas de louco, na pobre intimidade do seu quarto atelier. Imagem-performance, ela conduz o
Futurismo português para um rasgo que é pré-dadaísta pela atitude e que nem os italianos
em Paris tinham ousado. Na sua genial identificação do artista com o louco, o que explode
é uma sensibilidade que tem a força destrutiva da securização identitária que se lê também
no Ultimatum de Pessoa/Campos. O deslocamento para o espaço de uma subjectividade
que renega a normopatia e a afirmação radical de uma diferença que, depois, raras vezes se
ousou em Portugal até aos Surrealistas a que Mário Cesariny mais tarde daria um cunho
neo-dadaísta prévio mesmo ao surto americano do fim da década de 50 que anunciou
Fluxus. Nesse auto-retrato de pura provocação, o artista cuja obra é ele mesmo afirma no
seu próprio corpo as marcas ambíguas de uma inscrição deste num espaço de clausura,
prisão ou manicómio, que projecta o País de então na sua dimensão mais fantasmagórica
e claustrofóbica. Espécie de histerização clownesca do corpo que o faz contemporâneo do
provocador humor Dada, ele é um dos momentos mais altos do Futurismo europeu, mesmo
se tardio em relação com o surto primeiro, mas antecipatório de outros sentidos que o
Modernismo em breve tomaria na Europa. Nessa Europa a que Santa Rita, precocemente
falecido não haveria de voltar. (ALMEIDA, B. P.).
II – Antiestrofe
Santa-Rita caricaturado e Almada caricaturista
nas páginas dos periódicos. Farei igualmente menção às notícias escritas nesses
jornais humorísticos, iniciando a referência por um artigo não assinado, com o título
«O Orfeu»:
Não podemos hoje dar, com o desenvolvimento que desejávamos, noticia do aparecimento
da publicação trimestral O Orfeu, cujo primeiro numero temos á vista. Fica para o proximo
numero, se algum dos nossos redatores encarregados das criticas literarias conseguir lêr o
folheto até ao fim sem percalço de maior. Quatro dos nossos companheiros de trabalho que
tentaram a empreza, recolheram ao hospital com terriveis indícios de apoplexia fulminante
ás primeiras linhas; mais tres tiveram tal destempero intestinal que de momento a momento
correm a despejar-se. Veremos se algum insiste e é capaz de arcar com a tarefa. Tambem, se
der tão grande prova de resistência bem se póde dizer que comete maior proeza do que se
atravessasse agora os Dardanelos! (O Seculo Comico, (8 Abr. 1915) 3).
«”0””Orfeu”»
Pessoas de mau humor – e quasi não há agora de outras, por causa da carestia dos géneros
– receberam o Orfeu, revista trimestral de literatura, como um inimigo pessoal. O menos
que chamaram aos colaboradores foi doidos; mas a vontade de lhe trincarem os fígados é
evidente. Ora nós, que de principio tambem nos sentimos insultados, mudámos de parecer.
Infelizmente o Seculo Comico é de exíguas dimensões para o que desejaríamos transcrever;
nem alguns dos versos dos poetas do Orfeu cabem na largura d’estas paginas. Comtudo,
ficaríamos mal com a nossa consciencia se não nos penitenciássemos do movimento de
repugnância primitivo pela transcrição de qualquer das maravilhas do Orfeu. Ai vai uma
lasca: “Eh-lá-hô fachadas das grandes lojas! / Eh-lá-hô elevadores dos grandes edifícios!
/ Eh-lá-hô recomposições ministeriais! / Parlamentos, políticos, relatos de orçamentos,
/ Orçamentos falsificados! / (Um orçamento é tão natural como uma arvore / E um
parlamento tão belo como uma borboleta!)” / É do sr. Alvaro de Campos esta joia» (O
Seculo Comico, (22 Abr. 1915) 2).
No jornal humorístico O Zé, em 1915 (fig. 4) surgiu uma notícia dando conta do
aparecimento do número 2 de Orpheu «é destinada a irritar o indigena, aumentar a
clientela ao sr. Julio de Matos e dar que fazer aos tipografos»:
Também n’O Zé, 1915, mas sem referência explícita e directa a Orpheu surge
uma página que evoca o tipo de composição futurista, num texto carregado de
«Vivóóóóóó»’s não deixando de terminar com vários «Tapum»…
410 100 Orpheu Sandra Leandro
Orpheu a domar um
Abr. 1915).
Em 1916, n’O Seculo Comico, Belmiro revelava que ainda não tinha esquecido a
aventura de Orpheu (fig. 7). Considerando Augusto Santa-Rita, poeta e irmão do
Pintor, também filiado na escola futurista que o versejador enjeitava, «a lira de arame
ferrugento» de Orpheu soava, para sua surpresa, com «o poder da arte e do talento»
em Augusto Santa-Rita. Note-se que não se aplicaram quaisquer animações futuristas
nem no desenho, nem na tipografia. Era coisa séria.
III – EPODO
Elos de uma cadeia…
Como lidar com a herança de Orpheu? Pensando em transmissão é impossível não
lembrar Jean Cocteau e a sua pungente película Le testament d’Orphée de 1959. Olhando
Orpheu, cujo centenário celebramos, e considerando um dos seus protagonistas, é
impossível não recordar o que Ernesto de Sousa (1921-1988) rodou entre 1969-1983
em Filmando Almada, Um Nome de Guerra. Porém, a proposta que quero evocar surgiu
em 1989, passados (por acaso) 100 anos do nascimento de Santa-Rita Pintor:
Na Galeria Quadrum está patente ao público até ao dia 11 de Fevereiro uma exposição dos
artistas Amadeu de Sousa Veloso, Sanita Pintor, Palmada e Maluca. A exposição intitula-se
«Os Ases da Paleta» e reúne quatro jovens de Leiria que pela primeira vez apresentam as
respectivas obras em Lisboa. Dizem-se seguidores críticos do movimento homeostético (o
que quer que isso seja) e já participaram em diversas exposições paroquiais e em ginasiais
de diversos pontos do País. Os quatro regionalistas pretendem que o público se envolva nas
suas obras (Arquivo Pedro Portugal).
Manuel João Vieira (n. 1962) encarnou Sanita Pintor, Fernando Brito (n. 1958)
teve por pseudónimo Palmada, Pedro Portugal (n.1963) deu vida a Amadeu de Sousa
Veloso, e João Paulo Feliciano (n. 1963) era Maluca. Dos «quatro regionalistas»
nenhum deles de Leiria, três integravam os Homeostéticos - Pedro Portugal, Manuel
João Vieira, e Fernando Brito - movimento artístico pós-paradoxológico surgido em
1982 (GABINETE DE ALTOS ESTUDOS HOMEOSTÉTICOS, 2004).
Afirmavam-se de Leiria, com a intenção que o Manifesto dos Ases da Paleta
explicitava: «Pela 1ª vez em Lisboa, artistas da provincia (sic) dão cartas!» (Arquivo
Pedro Portugal), mas também como nos esclareceu Pedro Portugal: «porque na época
classificámos a região portuguesa epítome da fabricação organizada do mau-gosto».
Em geral, as notas de imprensa reforçavam o lado paródico. O jornal O Diabo advertia:
«Dulce d’Agro inaugurou na sua Galeria Quadrum uma colectiva. […] Preços: entre
500 escudos e 80 contos. Como se vê, esta Galeria já está a festejar o Carnaval» (O
Diabo (24 Jan. 1989), arquivo Pedro Portugal).
Reapoderando-se de mitos, criando o seu próprio espaço mito-paralógico,
considerando possivelmente a sua área de actuação ocupada e ocultada pelos vultos
que parodiavam, talvez encarando como pouco legítimos aqueles que os pretendiam,
ou não, validar, os Ases da Paleta afirmavam no seu Manifesto: «A ARTE DOS
ASES DA PALETA é um afastamento em relação à critica,(sic) á (sic) teoria, é uma
aproimação (sic) ao grande público!» (Arquivo Pedro Portugal).
Ode satírica + comédia dinâmica em suportes móveis x Narcisos intermédios = o sorriso do Desenho no tempo ... 413
No breve artigo que escreveu, João Pinharanda, crítico de arte, fez referência
ao «desejo de cortar a pilinha aos críticos» que os Ases da Paleta afirmavam ter,
expressando-o veementemente no seu Manifesto, a que pretendo voltar noutro artigo.
Atentemos na sua descrição:
Palavras de um rigor rustre (sic) e de uma fealdade abençoada, como orgia / da torrencial
aritmética do / mimetismo frater/anal / reivindicamos esta tradição / sempre renascida da
Ode satírica + comédia dinâmica em suportes móveis x Narcisos intermédios = o sorriso do Desenho no tempo ... 415
ternura / corajosa que assume a / arte como esposa /mãe / amante / puta / filha / avó / e tia
(Arquivo Pedro Portugal).
Bibliografia
Bibliografia Activa
Arquivo Pedro Portugal.
O Jornal (1915). Lisboa: Boavida Portugal.
O Século Cómico: suplemento humoristico de O Século (1915-1916). Lisboa:
Alexandre Augusto Ramos Certã.
O Zé: semanário de caricaturas e humoristico (1915-1916). Lisboa: Estevão de
Carvalho.
Bibliografia Passiva
ALMEIDA, Bernardo Pinto de. «Santa Rita Pintor (1889 - 1918)» in Arquivo
Virtual da Geração de Orpheu http://www.modernismo.pt/index.php/
santa-rita-pintor-1889-1918 [25 Fev. 2015].
NEGREIROS, Maria José Almada (1993). Conversas com Sarah Affonso. Lisboa:
Publicações Dom Quixote.
CHAVES, Joaquim Matos (1989). Santa Rita vida e obra: precisões e considerações.
Lisboa: Quimera.
DEUS, António Dias de (1997). Os comics em Portugal: uma história da banda
desenhada. Lisboa: Cotovia; Bedeteca.
FRANÇA, José-Augusto (1986). Amadeo de Souza-Cardoso o português à força &
Almada Negreiros o português sem mestre. Lisboa: Betrand Editora.
FRANÇA, José-Augusto (1991). A arte em Portugal no século XX. Lisboa: Betrand
Editora.
GABINETE DE ALTOS ESTUDOS HOMEOSTÉTICOS (2004). 6=0. Porto:
Fundação de Serralves.
GONÇALVES, Rui-Mário (1993). História da Arte em Portugal: pioneiros da
modernidade. Lisboa: Publicações Alfa.
PACHECO, José (s.d.). Stuart Carvalhais e o modernismo em Portugal. Lisboa:
Vega.
SÁ, Leonardo de (2009). «Quando e onde faleceu Adolfo Rodríguez
Castañé?» in http://historiasdosquadradinhos.blogspot.pt/2009/01/
de-origem-espanhola-adolfo-rodrguez.html [10 Jul.2015].
SÁ, Leonardo de; DEUS, António Dias (1999). Dicionário dos autores de Banda
Desenhada e Cartoon em Portugal. Edições Época de Ouro.
SAM (s.d.). Torneiras e funis de SAM. Lisboa: Galeria Fonte Nova.
SOUSA, Osvaldo de (1999) – História da arte da caricatura de imprensa em
Portugal. Vol. II Lisboa: Edição Humorgrafe.
Orpheu em tempo de guerra(s)
Já não é a primeira vez que lembro que Orpheu não representa Modernismo
nenhum. O que não é razão para não o celebrar. Parafraseando Almada Negreiros:
“todos os dias faz anos que se inventaram as palavras, celebremos todos os dias o
aniversário das palavras”, proponho um brinde: “celebremos todos os dias o aniversário
da Poesia”. Também poderia dizer que todos os dias faz anos que se inventou a Poesia.
O que não convém é repetir a ideia-feita de que Orpheu foi órgão de algo chamado
modernismo português - que, aliás, fica sempre por definir.
Vamos por partes.
Dizer Orpheu remete-nos logo para Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro e
Almada Negreiros (já agora, que este centenário sirva, ao menos, para os chamados
órgãos de comunicação social não chamarem ao último Almeida Negreiros, como às
vezes acontece).
Comecemos pelo mais velho, Pessoa.
Recordemos as suas primeiras composições, em português, por ele publicadas: os
artigos na revista Águia, (em Abril, Maio e Novembro de 1912) sobre “A nova poesia
portuguesa”, e a carta a Adolfo Coelho, no jornal República, em Setembro do mesmo
ano, sobre o mesmo assunto; “Na Floresta do Alheamento”, trecho do anunciado Livro
do Desassossego, na mesma revista, em 1913; o poema “Pauis”, na revista Renascença,
em 1914 (escrito em 1913).
Entretanto, Pessoa escrevera “O Marinheiro”, em 1913, que tentou publicar na Águia,
sem sucesso – o que concorreu para o seu afastamento da Renascença Portuguesa, de
que essa revista era órgão.
A estética subjacente a todas estas obras é inegavelmente a simbolista. Aliás, pouco
depois, na sua febre dos ismos, partilhada com Sá-Carneiro, Pessoa irá elencar, nas
suas notas, um “Neo-Simbolismo português”.
A tal “nova poesia portuguesa”, para que profetizava um “Super-Camões” (a
que também chamou “Supra-Camões) e de que dava como exemplo versos dos
colaboradores da dita revista: Teixeira de Pascoais, Mário Beirão e Jaime Cortesão,
também tinha raízes na estética simbolista - temperada aqui com nacionalismo.
E a poética que Pessoa começou a praticar e a enunciar, nas cartas trocadas
com Sá-Carneiro, então em Paris, ia no mesmo sentido. A palavra chave dessa
correspondência era “ampliação”, no sentido de busca de uma além-realidade. Num
418 100 Orpheu Teresa Rita Lopes
não lhe terem publicado “O Marinheiro” levou-o a romper com eles e com a Águia.
É, contudo, significativo que nos textos escritos, mais tarde, sobre o extinto Orpheu,
ainda se exprima com os mesmos termos usados na Águia sobre a então considerada
“novíssima” poesia, colocando-se no mesmo papel que nitidamente aí se atribuía de
“criador de cultura”. A verdade é que era sobretudo isso que para ele fundamente contava.
Mário de Sá-Carneiro não entendia minimamente o seu nacionalismo místico: para
ele, como confessa numa novela, Portugal era uma casa bafienta de que só lhe apetecia
fugir!
O “drama estático” “O Marinheiro” é a expressão máxima da filiação simbolista de
Pessoa: mediu-se, para o escrever, com Maeterlinck, papa do Simbolismo no teatro,
tentando ser mais papista do que ele: fazer “mais nebuloso” e “subtil”. Álvaro de Campos,
numa carta a um editor inglês propondo uma antologia do Sensacionismo, reconheceu
o êxito do desafio: “Maeterlinck’s best nebulosity and subtlety is coarse and carnal by
comparason”.2 (“Vaga” e “subtil” disse também Pessoa ser a “nova poesia portuguesa”.)
O encontro com Sá-Carneiro, alimentado durante a vasta correspondência trocada
ente 1912 e 1916, dá-nos notícia do comum anseio de criarem uma escola literária.
Pessoa assina um dos poemas de então acrescentando-lhe a sua pessoal filiação: “da
escola interseccionista”.
O primeiro ismo a aparecer foi o “Paùlismo”, a partir do poema “Pauis”, que Pessoa
publicaria na revista Renascença, em 1914 (escrito em 1913). Repare-se que o seu ideário
é em tudo semelhante ao simbolista. “Encontrar em tudo um além” conviria, aliás, como
lema, não só aos neo-simbolistas portugueses da nova escola como aos antigos colegas
da Águia, de quem, entretanto, Pessoa se afastara. Sá-Carneiro faz-se eco, numa carta,
de um irónico comentário de Pessoa sobre o seu patrono: Pascoais sofre de “pouca
arte”!
Os poemas que Sá-Carneiro começa então a enviar regularmente ao amigo também
comungam do ideário e do estilo simbolista: recordemos, como simples exemplo, a
“Epígrafe” de Indícios de Ouro:
“A sala do castelo é deserta e espelhada. /[…] A cor morreu - e até o ar é uma ruína…
/ Vem de Outro tempo a luz que me ilumina - / Um som opaco me dilui em Rei…”
É a mesma atmosfera maeterlinkiana em que “O Marinheiro” se desenrola.
É claro que ambos os textos, apesar da influência que acusam, eram já dignos dos
génios que os seus autores revelaram ser (não direi o mesmo de “Pauis” nem de “Na
Floresta do Alheamento”). Por isso permanecem vivos, ao abrigo do tempo e da sua
circunstância.
Pessoa assume então a batuta de chefe de escola: aconselha, por carta, um amigo,
Lebre e Lima, a conhecer o “estilo alheio”, o da sua “Floresta do Alheamento” – assim
designado pelos “rapazes do grupo”, esclarece…Entretanto, ele e Sá-Carneiro
oficializam o Paùlismo” como a “primeira dimensão” do que Pessoa chamará,
mais tarde, englobantemente, Sensacionismo. A “segunda dimensão” será o
Intersecionismo, seguindo também uma estética nitidamente pós-simbolista ou
decadentista.
Entretanto, acontece o parto heteronímico! Mário de Sá-Carneiro, embora sedento
de modernidade e já admirador dos seus cultores internacionais, em Paris (acredita no
génio de Picasso, de quem, diz, todos riem!), não acusa, nas produções dos primeiros
tempos, influência dessas novas modas, embora delas dê notícia: até envia revistas a
Pessoa sobre o Futurismo, já então muito “badalado” e discutido.
Vai ser precisamente Pessoa, de formação clássica mas práticas simbolistas, quem
vai dar forma de poema a esse ismo, e mesmo escrever o chef-d’oeuvre da escola
futurista – é o que diz Sá-Carneiro na carta em que saúda a receção da “Ode Triunfal”,
em Junho de 1914, assinada pelo recém-nascido Álvaro de Campos.
Tudo vai mudar no universo pessoano com o aparecimento da verdadeira heteronímia
(no dizer de Pessoa, os heterónimos são apenas três: Campos, Caeiro e Reis).
Convém, contudo, notar que o primeiro heterónimo moderno a aparecer foi
Alberto Caeiro – no tal “dia triunfal” de 8.3.1915 que Pessoa ficciona na célebre carta
a Casais Monteiro mas em que, afinal, só se manifestou com dois poemas; Campos
irrompeu três meses depois, em Junho, com a “Ode Triunfal” e Ricardo Reis logo
a seguir. Vários pessoanos têm “engolido” a ficção do “dia triunfal”, a começar por
João Gaspar Simões, apesar das cartas de Sá-Carneiro serem explícitas em relação às
diferentes datas do aparecimento dos três heterónimos.
Depois desse nascimento nada mais foi como antes. É importante sublinhar que a
verdadeira modernidade foi trazida para o universo pessoano por esses três inovadores.
Modernos, os três? Porque não? Mesmo Ricardo Reis foi moderno porque recria as
odes clássicas horacianas com verdadeiro espírito moderno, da mesma forma que
pretendia actualizar o Paganismo helénico.
Há algo de que nunca ninguém falou a propósito do Modernismo português,
que também nunca adequadamente é definido: é da importância do impulso
“anti-cristista” que acompanhou Pessoa durante toda a vida, desde que, ao regressar
a Portugal, assumiu interiormente a identidade judaica dos seus parentes paternos. A
partir de então empenhou-se numa verdadeira “cruzada” contra o Cristismo, assim
por ele chamado. Inicialmente apelidou de Novo Paganismo esse “movimento”, que
encontrará a sua expressão literária plena na personagem Alberto Caeiro, criada para
ser o filósofo (mais que o poeta) do também chamado Neo-paganismo. O seu poeta
Orpheu em tempo de guerra(s) 421
seria mesmo Ricardo Reis. E o seu teorizador a “personalidade literária” que não
chegou a heterónimo, António Mora.
Não se pode perder de vista que é a luta contra o Cristismo que está na origem
do nascimento de Caeiro e, por isso, da verdadeira modernidade de Pessoa – diz
ele que com o cultor do verso livre, Walt Whitman, no horizonte - paralelamente
ao Futurismo que fez nascer Campos, quando Pessoa se quis medir com Marinetti
(Numa carta a Armando Côrtes-Rodrigues, Pessoa refere-se ao “Álvaro-futurista”).
Recordemos que, na mesma atitude de desafio, Pessoa escrevera “O Marinheiro”, um
ano antes, medindo forças com Maeterlinck. Pessoa que, rapazinho débil, sempre
fora, na escola, péssimo desportista, adorava estes combates a medir forças!
Reagindo, por carta, à criação de Caeiro, Sá-Carneiro interroga Pessoa sobre a sua
integração no Paulismo e, algo dececionado com a negativa do amigo, resigna-se a
entender que ele não possa, de facto, entrar para a nova escola…
Mas convém também lembrar que, no tal “dia triunfal”, Pessoa escreveu em seu
próprio nome os poemas “Chuva Oblíqua”, que apelidou de “poemas interseccionistas”,
com que queria exemplificar o novo processo usado: em vez de se limitar a “pintar” a
paisagem do seu estado de alma, como em “Pauis, resolveu intersecionar a paisagem
exterior com outra, interior. Na carta a Casais Monteiro em que ficciona o dito “dia
triunfal”, apresenta esses poemas como um “regresso a si próprio” - reacção à sua
“inexistência como Caeiro”… E isto já não me parece ficção: Pessoa, autor desses
poemas, na sua própria pessoa, era, então, o chefe da escola intersecionista e desse
estilo - que Caeiro viera pôr em causa.
O que aconteceu foi que Pessoa se tornou então, definitivamente, no palco de si mesmo,
onde diferentes correntes estéticas irão contracenar. E Orpheu vai ser, semelhantemente,
o estrado onde vão desfilar os cultores do Neo-Simbolismo decadentista - que o
Paulismo e o Intersecionismo se apuraram a criar - mas também os seguidores da nova
escola Futurista: Álvaro de Campos e Sá-Carneiro, nas composições feitas com esse fim.
Pessoa dirá, mais tarde, que “Manucure” foi uma blague: de facto, Sá-Carneiro não se
soube, como Pessoa, despersonalizar numa personagem futurista: limitou-se a fazer,
nesse poema, em “Apoteose” e em “16”, meros pastiches.
Almada só mais tarde desabrochará: também “Cena do Ódio”, em Orpheu 3, não
passará de um pastiche de um poema futurista.
É preciso não perder de vista que Pessoa se apresenta, no palco em que Orpheu
também se transformou, encarnando diferentes papéis, isto é, estéticas opostas:
a Decadente, em que o Intersecionismo se insere, com a série “Chuva Oblíqua”,
assumida em seu próprio nome, e a estética moderna, à maneira futurista, com as
odes de Campos, “Triunfal” e “Marítima”. Mas também Álvaro de Campos fez questão
de desfilar na passerelle com a pose decadente que, numa “Crónica de vida que passa”,
422 100 Orpheu Teresa Rita Lopes
contemporânea diz que “é para nós o símbolo com que vestimos o estado de alma
colectivo de exilados da Beleza! Ser-se decadente é ser-se doente espiritualmente, é
ser-se superior! A arte é a doença imortal dos pálidos de Deus e da Beleza…”6
Pessoa associa-se a esta revista com a série de poemas “Nos Passos da Cruz”.
Esse sentimento de “exílio” anima outra revista do mesmo ano de 1916, dirigida por
Augusto de Santa-Rita (irmão de Santa-Rita pintor), precisamente intitulada Exílio,
em que Pessoa colabora com “Hora Absurda”. (Aliás, Pessoa teve o plano, nunca
realizado, de também assim intitular um livro de poemas destes primeiros tempos.)
É ele que encerra a revista com um artigo sobre o “Movimento Sensacionista” (a
pretexto da crítica de dois livros integrados nessa corrente) em que proclama a vitória
desse movimento, iniciado com Orpheu. Acutilantemente crítico, Pessoa define
Sensacionismo como a “primeira manifestação de um Portugal-Europa”, denunciando
“a estreiteza crónica” e a “tísica espiritualidade” dos seus colegas de há quatro anos,
na Águia, órgão da Renascença, ridicularizando, da mesma penada, o “neo-huguismo
(grande embora) do atual chefe honorário da intelectualidade portuguesa”. (Será
que visa Pascoais ou Guerra Junqueiro?) E, em tom de trombeta, afirma do dito
Sensacionismo: “Hoje é já uma vitória; amanhã será uma nacionalidade.”
É evidentemente difícil levar a sério este “triunfo” – que ele pretendia futuramente
nacional…Nem Pessoa se levaria inteiramente a sério ao escrever tais exageros.
Mas era a guerra declarada, não a que então amotinava a Europa, mas a que os
“Novos” - que Pessoa, na citada crónica, em O Jornal, aceitara representar - tinham
desencadeado contra os Velhos, representados tanto por Pascoais como por Junqueiro,
“grande embora”, concede Pessoa…À grandiloquência de ambos opunham os Novos
os murmúrios do seu tédio e das maleitas das suas “almas doentes” (refervidíssima
expressão, até título de alguns poemas). Mas o que mais interessava, como na guerra,
era o triunfo, muito mais importante que a justeza da estratégia e a constituição dos
exércitos …E esse, Pessoa reclamava-o.
Ao falar de Orpheu, há que ver, de alto, o que significou, abrangendo também com
o olhar do entendimento as mencionadas revistas, seus arredores. Se não levarmos
em conta a circunstância em que foram criadas e nos obstinarmos em analisá-las só
literariamente, não as entenderemos - e teremos que admitir apenas, com mágoa, que
não sobreviveram à sua circunstância. Nelas sobreviveram - ah sim! - os que, como
génios, viveram: Pessoa e Sá-Carneiro (Almada só desabrochou depois).
Mas há que levar em conta outro colaborador de Orpheu 3, C. Pacheco, que durante
quase um século foi considerado heterónimo pessoano, com o longo poema “Para
6 Ibidem: 8.
424 100 Orpheu Teresa Rita Lopes
além doutro oceano”. Assim aparece ainda na edição desse número da revista, deixado
em provas tipográficas, publicado por Arnaldo Saraiva em 19847. Sempre desconfiei,
no que não estive sozinha, que esse C. Pacheco, co-organizador da revista Renascença
em que Pessoa publicara “Paúis”, era criatura real, mas só disso tive a certeza quando,
em 2011, me apareceu a neta, Ana Rita Palmeirim, (que já tem longamente escrito
sobre o avô) com o rascunho desse poema. Dei então “O seu a seu dono”, título do
artigo que escrevi no Jornal de Letras.8
Esse poema, em verso livre, é dedicado a Alberto Caeiro e, de facto, para ele nos
remete o seu estilo. Tem que ter valor, para ter sido tomado como de Pessoa durante
tanto tempo. Além de Campos, é o único colaborador de Orpheu a assumir um estilo
verdadeiramente moderno.
O que também nunca foi levado em conta é outra guerra, travada nos bastidores
de Orpheu: ao mesmo tempo que os Decadentes “escrupulizam” na rebuscada
expressão das suas “almas doentes”, os Neopagãos, recentemente criados no
universo pessoano, reagem e condenam, considerando essa arte “degenerada” fruto
do adoecimento dos espíritos que o Cristismo trouxera à civilização. A cruzada
neopagã era encabeçada pelo Mestre Alberto Caeiro que, à maneira grega –
explicitou Pessoa – filosofava em poesia: Reis escreverá mesmo que ele era mais
filósofo que poeta. Ricardo Reis tinha um ajudante, só prosador e que não recebeu
o baptismo de heterónimo: António Mora – o verdadeiro teórico do Neopaganismo.
Paralelamente a Orpheu, Pessoa preparava uns “Cadernos de reacção pagã”- que já
encarava intitular Athena, dez anos antes da sua concretização como revista - que
seriam o órgão do movimento neo-pagão.9
O que é verdadeiramente curioso é que estes neopagãos “guerreavam”, na sombra,
o decadentismo de Orpheu, nomeadamente o Sensacionismo. Veja-se o que diz
Ricardo Reis, num texto sobre a poesia de Caeiro, que opõe à desses degenerados
“subtilizadores de sentimentos”:
“Nada, como os seus versos, vive tão longe dos modernos inventores de sensações,
dos subtilizadores de sentimentos simples, dos que mastigam a própria alma até a
terem que desconhecer – polpa amorfa de sensações indefinidas.”10
11 Ibidem: 60 e 61.
12 Espólio 3 B.N., 55ª-32. Inédito (creio).
426 100 Orpheu Teresa Rita Lopes
aderir (variante: concordar). Por isso hoje, mais do que nunca, importa aos superiores
abusar do paradoxo e do absurdo, petrarquizar sobre o abominável e minar em ritmos
lentos e dolências a mole estrutura das intenções de agir.”13
A personagem que monologa em “Opiário” é o poeta “dedicadamente doente” que,
num poema posterior, o próprio Campos reconhece ter sido, dirigindo-se ao Mestre
Caeiro: “Provera ao Deus ignoto que eu ficasse sempre aquele / Poeta decadente
estupidamente pretensioso, / Que poderia ao menos vir a agradar”14.
Compraz-se, em “Opiário”, na enfermidade da sua “alma doente”: “É antes do ópio
que a minha alma é doente”, “Sou um convalescente do Momento”, “Sou doente e fraco”,
“Estes nervos são a minha morte”, “Não fazer nada é a minha perdição”, “nunca fiz mais
do que fumar a vida”. E, já a beirar o Surrealismo, este Poeta Decadente auto-retrata-se
com a exótica flor do absurdo a brotar-lhe da cabeça: “O absurdo, como uma flor da tal
Índia / que não vim encontrar na Índia, nasce / no meu cérebro farto de cansar-se”.
O absurdo é um ingrediente desta escola, abundantemente cultivado pelo autor
do primeiro Livro do Desassossego, contemporâneo de Orpheu (sim, porque há três
Livro(s) do Desassossego e três autores, embora nunca assim considerados – mas isso
são contos largos a que me vou abandonar noutro sítio).
Basta auscultar a alma desse primeiro autor do Livro para sentirmos que o
seu ritmo, assim como a sua expressão, são o oposto do contemporâneo “Álvaro
futurista”. É com o autor da referida crónica, contemporânea de Orpheu1, e com as
“almas doentes” dos poetas decadentes, “estupidamente pretensiosos” aí revelados,
nomeadamente o poeta decadente de “Opiário” que plenamente se identifica.
Nos palcos simultâneos de Orpheu e da obra pessoana travaram-se, afinal, várias
guerras: a dos Novos de Orpheu contra os Velhos da Renascença Portuguesa; a
dos Decadentes contra os Futuristas, os verdadeiros modernos, e vice-versa; a dos
Neo-pagãos contra os degenerados herdeiros do Cristismo, quer se auto-intitulassem
decadentes ou sensacionistas. A esta última categoria pertencia Pessoa ele próprio, o
chefe de escola do Sensacionismo, com seus diferentes ismos, mas também Álvaro
de Campos, apesar dos seus arroubos futuristas (“produtos românticos, nós todos”,
reconhece ser, num poema, por isso inevitavelmente da estirpe cristista, como Pessoa
declarou ser o Romantismo).
13 Inédito (creio.) Sê-lo-á aqui ou na revista Colóquio, em que acabo de também o inserir num artigo, se a sua
publicação preceder a deste livro.
14 CAMPOS, Á., 2013: 338 (poema de 15.4.1928).
Orpheu em tempo de guerra(s) 427
por Pessoa em “Pauis” e “Na Floresta do Alheamento”, as duas composições a partir das
quais a nova escola foi baptizada como “Paulismo” e “estilo alheio”. (Talvez Pessoa se
lembrasse, quando se arvorou em chefe de escola, que também o Impressionismo, na
pintura, assim tinha sido designado a partir de um quadro de Monet: “Impressions”).
Da mesma forma que esses dois textos ficaram inevitavelmente datados na obra
pessoana (Pessoa confessa na citada carta a Côrtes-Rodrigues que “Pauis” não é
“sério”), igual sorte tiveram os dos seus seguidores. Quem se debruça hoje sobre as
produções dessas “almas doentes” senão para as arrumar na prateleira das modas
revolutas? Ah! mas algo pode tornar interessante a exibida pose do poeta decadente:
lembrarmo-nos que, nos bastidores, Caeiro, o Grande Curandeiro, o xamã da tribo,
apregoava mezinhas!
Para alcançarmos o pleno entendimento – isto é, a plena fruição - do universo
pessoano, temos sempre que montar o estrado onde os seus textos evoluem e
interagem, encarnados pelas diferentes personagens do seu “drama em gente”. E o
mesmo aconselho que se faça em relação a Orpheu.
O melhor balanço da festejada revista deixo que seja Pessoa a fazê-lo, num texto
que não me lembro de ver citado:
“É só pelo inferior - o banal, o factício, o extravagante – que agimos sobre a nossa era.”
E apresenta o caso de dois grandes, Victor Hugo e Shakespeare, que foram apreciados
no seu tempo pelas suas fraquezas, não pelas suas verdadeiras qualidades: Hugo pela
“sentimentalidade falsa e fruste, pela declamação oca e pomposa, pela verbosidade
cantante”, Shakespeare pelo “seu golpe de espírito, extravagante e grotesco”, “como
entre nós hoje é um revisteiro”. E compara com o que se passou com “o nosso Orpheu”:
Pessoa gostava de citar Goethe que escreveu que um homem de génio só pertence
ao seu tempo pelos seus defeitos – consideração que poderíamos usar para fazer o
rescaldo de Orpheu.
Quando Pessoa diz “nós,” no referido texto, pensa em quem? Não certamente
nos que não perceberam e por isso imitavam “o mesmo de que os outros riam” (“o
que em nós era exterior e por vezes acidental”). Este “nós” engloba apenas Mário de
Sá-Carneiro, Álvaro de Campos e Pessoa ele-próprio. Os outros foram, quase todos,
os que apenas imitaram “a extravagância da expressão”.
Afigura-se-me, por isso, indispensável, separar os que imitaram dos que criaram,
para desfazer equívocos – e, sobretudo, não andarmos por aí a querer convencer os
nossos estudantes de que tudo o que Orpheu apresenta é para ser estudado como
a Mensagem e Os Lusíadas. Nas guerras sempre latentes entre Velhos e Novos é
evidente o papel que nos será reservado…Convém que essas históricas revistas do
nosso histórico Modernismo, que continuamos a não saber o que é, não sejam por
eles integralmente deitadas para o lixo das velharias, com o Pessoa e o Sá-Carneiro lá
dentro…(É o mesmo que - como dizem os franceses – deitar fora a água do banho e a
criança avec…). Bem basta que o ensino da Mensagem esteja a ter, em muitos casos, o
mesmo papel de vacina que teve o dos Lusíadas, para mim, menina, através da divisão
de orações… Só anos depois do efeito passar consegui voltar ao nosso épico com
olhos de entender e amar.
Bibliografia
CAMPOS, Álvaro de (2013). Poesia, edição Teresa Rita Lopes. Porto: Porto
Editora.
Centauro (1982), edição fac-similada. Lisboa: Contexto, 1982.
LOPES, Teresa Rita (1985). Fernando Pessoa et le drame symboliste: héritage et
création. Paris: Fondation Calouste Gulbenkian.
LOPES, Teresa Rita (1990). Pessoa por Conhecer. Lisboa: Ed. Estampa.
Modernista: Modernista (2013). Lisboa: edição IEMO.
PESSOA, F. (1946). Páginas de Doutrina Estética, selecção, prefácio e notas de
Jorge de Sena. Lisboa: Editorial Inquérito.
REIS, Ricardo (2003). Prosa, ed. Manuela Parreira da Silva. Lisboa: Assírio
&Alvim.
O modelo de cidade nos textos do Grupo de Orpheu,
de 1915 a 1917
A cidade representada nos textos literários e nas obras artísticas das vanguardas do
início do século XX representa uma ruptura com o modelo da cidade tradicional e
apresenta-se como uma emanação da sociedade industrial, à qual vai buscar os seus
símbolos mais significativos: a máquina e as multidões. Entende-se aqui a cidade não
apenas como um lugar, mas antes como «la mémoire, les révolutions, les fondations,
les crises, ses murs, ses places, l’art d’y vivre encore ou de la déserter, les pouvoirs qui
s’y exercent, sans mesure semble-t-il, les hommes et les choses»1.
Este novo modelo de cidade engendra um novo tipo de homem e convoca um novo
conceito de poesia, os três factores que analisamos nesta comunicação.
O modelo citadino de que falamos aqui é obviamente a Metrópole que, segundo
L. Mumford, estende a lógica dos mecanismos da produção industrial a todos os
domínios da acção humana, sem qualquer excepção, pois «todas as bem-sucedidas
instituições da metrópole repetem, em sua própria organização, o gigantismo sem
1 AAVV, 1977: 9.
430 100 Orpheu Maria de La Salette Loureiro
meta do todo» (MUMFORD, L., 1982: 573). Também Manfredo Tafuri corrobora
esta opinião, ao considerar que «Não é apenas o poeta […]: é antes toda a cidade,
objectivamente estruturada como máquina funcional para a extracção de mais valia
social, que reproduz, nos próprios mecanismos de condicionamento, a realidade
dos modos de produção industrial» (TAFURI, M., 1985: 58). Paralelamente, para
este autor, «As vanguardas históricas surgem e sucedem-se seguindo a lei típica da
produção industrial: a sua essência é a contínua revolução técnica. Para todas as
vanguardas – e não apenas pictóricas – a lei da montagem é fundamental» (id.: 59).
A nosso ver, o elemento-símbolo que comanda o ritmo da «Ode Marítima», o
volante, acelerando e desacelerando, é a este título significativo2.
A cidade, agora Metrópole, adquire, assim, um papel fundamental na Modernidade,
configurando-se como o seu mito mais significativo, na opinião de Eduardo Lourenço
(LOURENÇO, E., 1987: 183). Na verdade, o progresso técnico, toda a convulsão
social gerada pela industrialização e consequente urbanização nutriram a Literatura e
as Artes a partir de meados do século XIX, e, assim, «A metrópole, lugar da alienação
absoluta, é, não por acaso, o centro das elaborações de vanguarda» (TAFURI, M.,
1985: 12).
Com efeito, a vida moderna, sobretudo das grandes capitais, instituiu-se como tema
de muitas das obras que mais prestígio obtiveram, bem como de alguns movimentos
culturais de vanguarda, gerando atitudes de empatia entusiástica ou de rejeição radical,
já designadas também de «Modernolatria» e «Desespero Cultural»3 (BERMAN, M.,
1989: 148), visões antitéticas, que se encontram já na obra de um dos grandes nomes
do início da Modernidade, Baudelaire, conforme constata Marshall Berman.
Uma das características da vida moderna é a experiência da multidão, do «bain
de multitude», que W. Benjamin chama de «expérience du choc»4 (BENJAMIN,
W., 1971: 234) que proporciona o anonimato, o isolamento, mas também uma
«ineffable orgie» uma «bebedeira», que permite ao poeta adoptar «comme siennes
toutes les professions, toutes les joies et toutes les misères que la circonstance lui
presente» (BAUDELAIRE, C., 1980: 170). Para o poeta francês, «Le poète jouit de
cet incomparable privilège, qu’il peut à sa guise être lui-même et autrui. Comme ces
âmes errantes qui cherchent un corps, il entre, quand il veut, dans le personnage de
chacun» (ibid.). Neste sentido, a cidade surge assim como o lugar privilegiado do
desdobramento do Sujeito, portanto, da despersonalização. Também para este autor, o
progresso técnico, característico da modernidade, contém em si próprio os germes da
destruição (id.: 418), confirmando a ideia de Marx, segundo a qual, nesta época, tudo
está impregnado do seu contrário (apud LOUREIRO, L. S., 1996: 44-45).
No que respeita à «experiência do choque» causada pelas multidões, uma
característica da condição urbana, W. Benjamin considera que a aquisição de
automatismos amortece o choque, tal como o operário fabril adapta os seus
movimentos às exigências da máquina, tornando-os automáticos (apud BENJAMIN,
W., 1971: 251-253). Na mesma linha se situa Tafuri, ao considerar que «agora o
problema é ensinar a não ‘sofrer’ esse choque, mas a absorvê-lo, a interiorizá-lo como
inevitável condição de existência» (TAFURI, M., 1985: 61).
Acresce que «a metrópole moderna gerou também um novo tipo de heroísmo. Os
heróis tornaram-se anti-heróis. O maravilhoso foi substituído. Vem da vida quotidiana
da cidade, conforme reconhecerá mais tarde Almada Negreiros, no seu «Ultimatum»
(LOUREIRO, L. S., 1996: 45).
Como referem vários autores5, a grande metrópole e as guerras que assolaram a
Europa na primeira metade do século XX projectam-se nos movimentos de vanguarda
e reflectem-se nas visões eufóricas ou disfóricas da cidade que as Artes nos oferecem.
Neste sentido, Marshall Berman considera que os temas que definem o Modernismo são:
Seguindo uma perspetiva marxista, este autor demonstra que todas estas
características brotam dos movimentos e pressões da vida económica moderna (ibid.).
Assim, «Num mundo em que «Tudo o que é sólido se dissolve no ar!»6, o que resta
ao Sujeito? Enfrenta tudo isso, integra-se na voragem, maquiniza-se, épouse la foule,
ou refugia-se na sua Torre de Marfim?» (LOUREIRO, L. S., 1996: 50).
O caminho apontado por Baudelaire indica que o artista deve mergulhar «dans
la foule comme dans un immense réservoir d’électricité», devendo, portanto, utilizar
5 Cf. Zéraffa, M., 1977 e KRISINSKI, W., 1977; também TADIÉ, J.-Y., 1992.
6 Título do livro de Berman, que reproduz uma frase do Manifesto Comunista, de Marx e Engels.
432 100 Orpheu Maria de La Salette Loureiro
e recriar os produtos gerados pelos avanços técnicos e científicos, sugestão que será
concretizada pelas vanguardas artísticas do século XX:
7 «Viver a vida em Extremo significa vivê-la até ao limite, mas há três maneiras de o fazer, [...]. Quando essa
alma, porém, verifica que lhe [é] impossível tal realização, que não tem forças para a conquista de todas as
partes do Todo, tem dois outros caminhos que siga ‒ um, a abdicação inteira, a abstenção formal, completa,
relegando para a esfera da sensibilidade aquilo que não pode possuir integralmente na região da actividade e
energia. Mais vale supremamente não agir que agir inutilmente, fragmentariamente, imbastantemente, como
a inúmera supérflua maioria inane dos homens» (PESSOA, F., 1986: 269-270).
8 A. Sant'Elia (1979). «A Arquitectura Futurista». Antologia do Futurismo Italiano. Lisboa: Editorial Vega, pp.
153-4.
O modelo de cidade nos textos do Grupo de Orpheu, de 1915 a 1917 433
Em cada alma giram os volantes de todas as fábricas do mundo, em cada alma passam todos
os comboios do globo, todas as avenidas de todas as grandes cidades acabam em cada uma
das nossas almas. Todas as questões sociais, todas as perturbações políticas, por pouco que
com elas nos preocupemos, entram no nosso organismo psíquico, no ar que respiramos
psiquicamente, passam para o nosso sangue espiritual, passam a ser, inquietamente, nossas
como qualquer cousa que seja nossa (id.: 167).
É preciso criar e desenvolver a actividade cosmopolita das nossas cidades e dos nossos
portos.
É absolutamente necessário resolver o maravilhoso citadino da nossa capital até ser a maior
ambição dos nossos dialectos e das nossas províncias.
Eis pelo que sempre cataloguei, excitantemente e a par, os corpos nus, esplêndidos; as
cidades tumultuosas de Europa ‒ os perfumes, os teatros rutilantes, atapetados a roxo ‒ as
paisagens de água, ao luar ‒ os cafés de ruído, os restaurantes de noite, as longas viagens
‒ o murmúrio contemporâneo das fábricas, das grandes oficinas ‒ a loucura e as bebidas
geladas ‒ [...]9.
«Há poesia em tudo ‒ na terra e no mar, nos lagos e nas margens dos rios. Há-a na cidade
também ‒ [...] há poesia na trepidação dos carros nas ruas; há poesia em cada movimento
ínfimo, vulgar, ridículo, de um trabalhador que, do outro lado da rua, pinta a tabuleta de um
talho» (PESSOA, F., 1966: 14).
Bibliografia
Bibliografia Ativa
LOPES, Teresa Rita (1990). Pessoa Por Conhecer, vols. I e II. Lisboa: Editorial Estampa.
NEGREIROS, J. Almada (1989). Obras Completas, Vol. IV ‒ Contos e Novelas.
Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda.
Orpheu (1989). Lisboa: Contexto Editora.
PESSOA, Fernando (1966). Páginas Intimas e de Auto-Interpretação. Lisboa:
Edições Ática.
PESSOA, F., 1986. Livro do Desassossego. Mem Martins: Publicações
Europa-América.
PESSOA, Fernando (1993). Álvaro de Campos. Livro de Versos. Lisboa: Editorial
Estampa.
Portugal Futurista (1990). Lisboa: Contexto Editora.
SÁ-CARNEIRO, Mário de (1992). Cartas Escolhidas. Mem Martins: Publicações
Europa-América.
SÁ-CARNEIRO, Mário de (s. d.). Céu em Fogo. Mem Martins: Publicações
Europa-América.
SÁ-CARNEIRO, Mário de (s. d.). A Confissão de Lúcio. Mem Martins: Publicações
Europa-América.
Bibliografia Passiva
AAVV (1977). La ville n’est pas un lieu. Revue d’Esthétique, nºs 03/04. Paris: Union
Générale d’Editions.
AMARAL, Fernando Pinto (1991). O Mosaico Fluido. Lisboa: Assírio & Alvim.
Antologia do Futurismo Italiano. Manifestos e Poemas (1979). Lisboa: Editorial
Vega.
BAUDELAIRE, Charles (1980). Oeuvres Complètes. Paris: Éditions Robert Laffont.
BENJAMIN, Walter (1971). Oeuvres II, Poésie et Revolution-2. Paris: Ed. Denoel.
BERMAN, Marshall (1989). Tudo o que é sólido se dissolve no ar. A Aventura da
Modernidade. Lisboa: Edições 70.
BLUMENKRANZ-ONIMUS, Noemi (1977). «La ville des Futuristes». La Ville n’est
pas un lieu, Revue d’Esthétique, nºs 03/04. Paris: Union Générale d’Editions.
CASTRO, Ernesto M. de Melo e (1980). As Vanguardas na Poesia Portuguesa do
séc. XX. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa.
COELHO, Jacinto do Prado (1980). Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa.
Lisboa: Editorial Verbo.
O modelo de cidade nos textos do Grupo de Orpheu, de 1915 a 1917 441
Eduardo Lourenço1
Eu escrevi algumas coisas há vários anos sobre Fernando Pessoa, mas sempre com
o sentimento de que estava flagelando as águas de um rio, com os excessos, impotente.
Porque o rio dele é de uma outra natureza, um rio paradoxalmente silencioso, na
verdade, difícil e impossível… não de ouvir o ruído, mas de estar à altura desse ruído
que ele produz. Creio que Fernando Pessoa – ele que sofreu tantas influências, o que
já foi dito aqui por muitos dos que intervieram no nosso colóquio – teve a sorte, ou
o destino (que lhe concedeu essa possibilidade), de frequentar um universo diferente
do nosso na sua educação escolar. E o que ele encontrou aí – grandes poetas ingleses,
particularmente românticos, entre outros – foi uma das figuras mais ilustres – senão
a mais ilustre, tirando os grandes nomes da Antiguidade – chamado Shakespeare. Ele
é um filho de Shakespeare. E mesmo não só um filho de Shakespeare pela imersão,
pelos traços que os textos deste autor – que ele deveria conhecer mais ou menos de
cor, como conhecia também um pouco os de Mallarmé – deixaram na sua obra; é
que a obra de Pessoa é, de facto, uma obra shakespeariana. Se tivéssemos de escolher
algumas das imortais figuras de Shakespeare, incluiríamos um Hamlet e um momento
hamletiano por excelência, que é o momento em que ele entra em cena, com um livro
na mão, e Polónio pergunta-lhe o que é que ele está lendo… Como todos sabem, a
resposta famosa foi: “Words, words, words…”, palavras, palavras, palavras…
Ora, é justamente este o problema: Pessoa é uma figura hamletiana, mesmo
biograficamente falando. Não teve um pai assassinado, como Hamlet, mas teve um
pai que perdeu cedo, jovem, e não teve uma mãe que o traiu, propriamente dito,
mas que o fez simbolicamente: levou-o com ela para África e, como todos sabemos,
depois do seu regresso a Portugal, esteve dela separado durante muito tempo. Sempre
fiquei muito admirado com o facto de que a obra que me influenciou mais num certo
momento – além da publicação das obras de Pessoa na famosa antologia de Casais
Monteiro – tivesse sido, como naturalmente é comum a todos nós pessoanos, a obra
de Gaspar Simões, mesmo através dos tempos. Seja quais forem os defeitos que se
lhe possam atribuir por quem seja mais exigente e tem outro tipo de sensibilidade, a
verdade é que foi ele quem colocou a chave de interpretação biográfica, psicológica e
1 Gravação por Rui Sousa (CLEPUL-FLL) e transcrição por Sofia Santos (CLEPUL-FLL), a quem os
organizadores muito agradecem.
444 100 Orpheu Professor Eduardo Lourenço
diz respeito, àquilo que nos define mais profundamente, que é a relação de amor que
nos constitui, como nossa identidade virtual infinita.
Agora, paradoxalmente, em termos míticos e, ao mesmo tempo, biográficos,
esse Orpheu – pelo menos para quase todos eles – era um Orpheu sem Eurídice.
Talvez para Almada Negreiros se possa imaginar uma Eurídice possível, mas para
os outros não: todos eles tiveram uma grande dificuldade em viver esse laço, ao
mesmo tempo natural e cultural característico do Ocidente, tal como ele é vivido na
nossa civilização judaico-cristã (ou ex-civilização judaico-cristã, já não sei… mas até
agora era assim). A verdade é que esse mito do amor tal como a nossa civilização o
imaginou, o construiu, o ofereceu, e em volta do qual praticamente não só a Poesia
mas toda a ficção gira, é único, não há outro tema; provavelmente nunca haverá
outro. A verdade é que nenhum dos poetas de Orpheu parece ter tido um problema
fundamental da sua existência que o confrontasse com o outro, como duplo de
si mesmo, ou espelho, em todo o caso, de si mesmo. Nós não recebemos a nossa
identidade, nós somos nós, nos chamamos a nós próprios. No texto bíblico – que
é o texto por excelência do Ocidente até hoje –, é o homem criado por Deus que é
encarregado de nomear tudo quanto o cerca, todas as coisas da Criação, mas não se
nomeia a si mesmo, é chamado, é nomeado, como feito terra, mas essa nomeação é
feita por Deus. A nossa nomeação enquanto seres humanos é aquela que nos vem
do outro. Provavelmente, o problema, ao mesmo tempo de ordem subjetiva e de
ordem poética, de todos, ou quase todos, os nossos poetas de Orpheu foi o de não
se terem sentido nomeados por outra entidade que os confirmasse na sua própria
identidade irredutível e única. Mas daí até se inventar uma entidade que possa ser
considerada como verdadeira, autêntica, que correspondesse, ainda numa perspetiva
bíblica, àquilo que nós somos como imagem, como absoluto de Deus, vai uma grande
distância. Mas essa crise identitária é, de facto, ao mesmo tempo, não a crise de um
momento particular da nossa civilização enquanto moderna, mas qualquer coisa que
sucedeu ao longo dos séculos.
Um dos grandes filósofos (ainda que discutíveis) que maior influência exerceu
sobre essa tribo especial que são os filósofos (particularmente no Ocidente), chamado
Heidegger, disse que a questão fundamental da nossa cultura até hoje foi não só o
que ele chamou o esquecimento do ser, mas também o facto de que deixámos de
poder, ou de saber, dar um nome àquilo que é o nosso próprio fundamento, aonde
estamos enraizados, àquilo que nós somos; se não somos, vivemos numa espécie de
vertigem do que somos, vertigem de nos confrontar com qualquer coisa que não tem
nome mas que nós nomeamos chamando ‘nada’. Durante muitos séculos, fugimos a
esta espécie de vertigem, até que houve um momento estranho – que é um momento
quase shakespeariano, porque é em Shakespeare que se encontra a expressão –, depois
446 100 Orpheu Professor Eduardo Lourenço
vivida num passado de que um deus está obscurecendo, até que chega o momento em
que este Deus, que durante tantos séculos era a única coisa verdadeiramente importante
para a humanidade da Europa (e não só), passou a ser declarado como algo que já
não enformava a nossa existência, a nossa cultura, a nossa política, que desaparece
primeiro na ordem de poder, o poder não sagrado ou sacralizado, como nos reis. Mas
isso fazia parte quase de um arsenal arcaico – curiosamente, nas formas mais arcaicas
do poder, o rei nunca estava seguro de conservar a sua cabeça; muitas das vezes era a
vítima de um certo número de poderes, era sacrificado. Historicamente, e já na nossa
civilização ocidental, os reis começam a ser contestados a partir do Renascimento,
mas só com a Revolução Francesa é que, efetivamente, o sujeito da contestação do
poder, sob a forma absoluta, tem uma forma já moderna, propriamente dita. Carlos I
de Inglaterra ainda foi guilhotinado por razões religiosas; Luís XVI, o Rei, a ideia da
realeza, foi guilhotinado em nome do povo francês. É uma grande mudança.
É muito curioso que Almada – aquele que ainda não tem uma mitologia adequada
ao papel que ele teve na nossa cultura –, já na sua juvenil intervenção na cena poética
e criadora portuguesa, especialmente n’ “A Cena do Ódio”, mencione Zaratustra. Nos
finais do século XIX, morre Nietzsche (que está outra vez muito na moda com o filme
sobre o famoso episódio de Turim), uma figura incontornável da nova modernidade
europeia, e mesmo mundial, porque não fez uma contestação de todos os grandes
referentes religiosos que nós conhecemos, mas, diretamente, uma recusa da nossa
referência suprema de um deus encarnado, de um deus crucificado... e chamou a isso
a “morte de Deus”. Mas foi suficientemente lúcido para pensar que nessa morte de
Deus o que estava verdadeiramente contido era a morte do homem, como senhor do
seu próprio destino, capaz de se salvar. Os primeiros anos dos séculos XIX e XX foram
anos em que os famosos textos de Nietzsche foram extremamente populares e mesmo
esta forma de protesto que conhecemos dos diversos manifestos na ordem cultural são
de origem nietzschiana. Se lerem O Anti-Cristo, numa passagem famosa em que ele
se refere a diversos *(passagem não entendida) culturais daquela época, que ele trata
exatamente como Pessoa vai tratar do mandado de despejo aos mandarins da Europa
(lembro-me que ele intitula, não sei se por anti-feminismo, uma grande romancista
romântica francesa mais conhecida por um caso com o Chopin, George Sand – por
“vaca leiteira”). E todos os nossos autores foram muito escassos por esta ideia.
Na verdade, nós tínhamos tido entre nós não um pré-Nietzsche, mas alguém
que tinha marcado na cultura portuguesa um corte, uma rutura, de consequências
extraordinárias; foi o primeiro autor (e ele próprio teve consciência disso) a inaugurar
uma espécie de cisão com os tempos anteriores, exatamente pela mesma razão – uma
razão demais banal – de perda da fé tradicional. Refiro-me naturalmente a Antero.
Há bocado, ouvi alguém perguntar se havia algum relacionamento entre a Geração
448 100 Orpheu Professor Eduardo Lourenço
de 70 e a Geração de Orfeu. Se houve!... Mas não somos nós que o dizemos; quem o
disse foi o jovem Pessoa no seu primeiro escrito, um pequeno ensaio sobre “A Nova
Poesia Portuguesa Sociologicamente Considerada”. Depois de fazer uma evocação da
poesia anterior, relativa a Pascoaes, declara que a poesia portuguesa vai conhecer um
período extraordinário, uma nova fase no imaginário português e – numa expressão
curiosa, já pré-futurista, se pode dizer – que essa genealogia começa no Antero e
que irá até eles, os modernos, os de Orpheu. Portanto, Pessoa tem a consciência de
que há uma paternidade cultural de outras gerações anteriores e que ele próprio se
coloca no fim dessa linha e no princípio de outra. Naturalmente que o que aqui nos
importa é que seja no princípio de outra. Ora, mas por mais imaginação, por mais
dons proféticos que nós possamos atribuir ao poeta dos Sonetos, ele nunca poderia
imaginar que meio século mais tarde alguém se inventaria uma espécie de genealogia
diferente, em que à morte do sujeito tradicional iria responder com uma invenção de
sujeitos poéticos e substituir a identidade perdida que a si própria se domina e se dá
sentido por uma multiplicidade de sujeitos (que agora vejo que nas últimas exegeses
é multiplicada indefinidamente, o que me parece absurdo porque a heteronímia são
aqueles quatro e não outros, por definição intrínseca e imposta pela leitura mesma do
Pessoa, que deveria saber do que estava a falar).
E assim entrámos naquilo que vai assegurar duradouramente até hoje – num tempo
que nós não podemos prever – essa criação que tem precedentes virtuais no passado mas
não desta maneira de forma extraordinária, tão inédita, que é a criação dos heterónimos.
E é verdade que do Orpheu, hoje, como referência para nós, como resultado da dispersão
da ordem psicológica – que era tão sensível que deu o título à poesia de Mário de Sá
Carneiro –, sucede uma espécie de nova criação, como se o poeta, essa nova espécie de
poeta, se concedesse a si próprio os dons divinos de criar outros seres semelhantes a ele
para substituir aquele que ele não sentia ser ou não sabia ser até hoje.
Nós não podemos dizer nada que Pessoa já não tenha dito de tantas maneiras
diferentes, porque, de facto, nós somos submetidos sem cessar à sua autorização, ou
desautorização, depende da escolha. Eu digo o que é, finalmente, o mais importante:
é que o lado orfaico, no que diz respeito particularmente a Pessoa, é esse. É evidente
que a novidade, a excentricidade, por assim dizer aparente em todo o caso, da sua
famosa criação heteronímica deixou na sombra tudo aquilo que não é heteronímico
neste poeta. Mas, na verdade, a raiz profunda da poesia de Fernando Pessoa é mesmo
o Ultra-Simbolismo; é a ideia que ele tem de que a exceção ao Mestre, ao Caeiro, é
uma exceção para se defender daquilo que é a sua visão mais profunda das coisas: de
que a nossa realidade, no sentido psicológico do termo e em todos os outros sentidos,
é uma realidade que tem como essência o facto de não ser real, de ser uma espécie
de fantasma. Não é só na ordem do seu apetite infinito pelo texto dos outros que
Conferência Professor Eduardo Lourenço 449
Fernando Pessoa é o maior vampiro das Literaturas Universais: é o facto que ele se
concebia como alguém que tinha tecido uma outra espécie de mundo. E isso não é
uma invenção total, é uma espécie de versão moderna de um dos mitos mais famosos
de Platão, o Mito da Er, que supõe que os homens seguirão o seu destino antes de
encarnarem e que nascer é o esquecimento dessa escolha, mas que ela permanece
latente e que eles estão aqui como sombras daquilo que já foram noutros sítios, como
fantasmas, de algum modo. Isso está praticamente em tudo o quanto ele escreveu. E
há um texto preciso:
Helena Malheiro
Universidade Aberta, Clepul
1 Esta conferência retoma a investigação da nossa tese de Doutoramento, publicada com o título O Enigma de
Sophia: da Sombra à Claridade.
452 100 Orpheu Helena Malheiro
Por outro lado, é interessante notar que, se Personna significa máscara no teatro
romano, a palavra Odysseus em grego significa ninguém. Neste poema de Sophia,
a figura de Pessoa “emerge de repente” para a acompanhar na sua mítica viagem de
demanda da unidade perdida:
De Pessoa a Sophia: um Diálogo Intertextual de Reunificação do Ser 453
Viveste no avesso
Viajante incessante do inverso
Isento de ti próprio
Viúvo de ti próprio
.........................................................
Esquartejado pelas fúrias do não-vivido
À margem de ti dos outros e da vida
Mantiveste em dia os teus cadernos todos
Com meticulosa exactidão desenhaste os mapas
Das múltiplas navegações da tua ausência –
....................................................
E tinhas muitos rostos
Para que não sendo ninguém dissesses tudo
Viajavas no avesso no inverso do adverso
..................................................................
Porém obstinada eu invoco –ó dividido –
O instante que te unisse
E celebro a tua chegada às ilhas onde jamais vieste
.................................................................
Invoco-te como se chegasses neste barco
E poisasses os teus pés nas ilhas
...............................................................
Chamo por ti – reúno os destroços as ruínas os pedaços –
Porque o mundo estalou como pedreira
E no chão rolam capitéis e braços
Colunas divididas estilhaços
E da ânfora resta o espalhamento de cacos
Perante os quais os deuses se tornam estrageiros
………………………………………
Pudesse o instante da festa romper o teu luto
Ó viúvo de ti mesmo
E que ser e estar coincidissem
No um da boda
nas últimas obras de Sophia, a presença de Pessoa surge com uma insistência enigmática,
como se Sophia sentisse a necessidade de integrar a sua sombra imersa ou a plenitude
inversa que ela instalou na consciência poética contemporânea.[...] Jamais se revisitou por
dentro, a aventura sem fim de Pessoa, poesia e vida confundidas, como nesse admirável
poema “Cíclades”. (LOURENÇO, E., 1985: IV-VI)
Neste poema está bem patente o carácter absoluto que a poetisa atribui à poesia. A
poesia é uma dádiva dos deuses e restabelece a aliança perdida entre o ser e o universo.
Através dela, o poeta procura “a ordem intacta do mundo / A palavra não ouvida”2.
Esta concepção “de que fazer versos é estar atento e de que o poeta é um escutador”,
culmina em “Arte Poética IV” (Dual) e em “Arte Poética V” (Ilhas). Com efeito,
nestes dois textos fundamentais, Sophia enuncia a forma inexplicável como a poesia
“acontece”, como “o poema aparece feito, emerge, dado” como “um ditado” que o
poeta escuta e nota. Resta-lhe apenas “encontrar” o poema “suspenso”, “imanente”.
Eu era de facto tão nova que nem sabia que os poemas eram escritos por pessoas, mas
julgava que eram consubstanciais ao universo, que eram a respiração das coisas, o nome
deste mundo dito por ele próprio.
Pensava também que, se conseguisse ficar completamente imóvel e muda em certos lugares
mágicos do jardim, eu conseguiria ouvir um desses poemas que o próprio ar continha em si.
No fundo, toda a minha vida tentei escrever esse poema imanente. […]
(id.: 349-350)
II
Há um poeta em mim que Deus me disse
.............................................................
XI
Não sou eu quem descrevo. Eu sou a tela
E a oculta mão colora alguém em mim.
.............................................................
XIII
Emissário de um rei desconhecido
Eu cumpro informes instruções de além
E as bruscas frases que aos meus lábios vêm
458 100 Orpheu Helena Malheiro
O poema é pois a própria “respiração das coisas, o nome deste mundo dito por ele
próprio” e só a poesia permite a visão total e unificadora da oculta essência do Ser, o
“aparecer total exposto inteiro”, a “veemência do visível” que a poetisa nunca cessará
de procurar obstinadamente:
Esta “distância” que faz aparecer o mundo traz ecos daquela que Pessoa convoca em
“Prece”: “E outra vez conquistemos a Distância - / Do mar ou outra, mas que seja nossa!”3
Por outro lado, a imagem da aparição do mundo em que “a terra escorre / Pelos
olhos que a vêem revelada” convoca indubitavelmente os dois poemas que Pessoa
dedica ao Infante em Mensagem:
..........................................
Trago o terror e trago a claridade
E através de todas as presenças
De Pessoa a Sophia: um Diálogo Intertextual de Reunificação do Ser 461
Bibliografia
Bibliografia Activa:
ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner (2001). Obra Poética I. Lisboa: Caminho,
(1990).
ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner (1999). Obra Poética II. Lisboa: Caminho,
(1991).
ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner (1996). Obra Poética III. Lisboa: Caminho,
(1991).
ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner (1994). Musa. Lisboa: Caminho.
PESSOA, Fernando (1993). Poesias de Álvaro de Campos. Lisboa: Edições Ática.
PESSOA, Fernando (1972). Mensagem. Lisboa: Edições Ática (1934).
PESSOA, Fernando (1973). Poesias. Lisboa: Edições Ática.
Bibliografia Passiva:
LOURENÇO, Eduardo (1985). «Para um retrato de Sophia», Prefácio a Antologia,
Lisboa: Moraes Editores.
MALHEIRO, Helena (2008). O Enigma de Sophia: Da Sombra à Claridade. Lisboa:
Oficina do Livro.
4 Sophia de Mello Breyner Andresen, “Fernando Pessoa”, Musa, Lisboa, Caminho, p.45.
«Um peso de mândria sobre mim»:
Sá-Carneiro inacabado
Giorgio de Marchis
Università Roma Tre
O gosto pelo ineditismo nunca teve Mário de Sá-Carneiro entre os seus mais
fervorosos adeptos. Imune à fradiquista «síndrome do silêncio» (REIS, C., 1997: 674),
para o autor de Céu em fogo poder-se-ia talvez diagnosticar uma forma aguda de
frenesim editorial, que o empurra a publicar os seus textos, a desejar levar ao palco
as suas peças e até a querer exibir-se no espaço público como autor das suas obras.
Tirando os poemas reunidos em Indícios de Ouro, que o suicídio do poeta tornaram
inevitavelmente póstumos, são, de facto, relativamente poucos os textos que, na
maturidade, Sá-Carneiro escreveu mas deixou inéditos.
Assim, para Mário de Sá-Carneiro é totalmente incompreensível a demora
pessoana em publicar os seus versos. E eis o que escreve ao amigo em Lisboa a 3 de
fevereiro de 1913:
O que é preciso, meu querido Fernando, é reunir, concluir os seus versos e publicá-los não
perdendo energias em longos artigos de crítica nem tão-pouco escrevendo fragmentos
admiráveis de obras admiráveis mas nunca terminadas. É preciso que se conheça o poeta
Fernando Pessoa, o artista Fernando Pessoa – e não só o crítico – por lúcido e brilhante que
ele seja (SÁ-CARNEIRO, M., 2001: 40).
464 100 Orpheu Giorgio De Marchis
há no Bailado algumas frases que sinceramente eu acho muito, muito belas. São as mesmas
que você destaca, é sobretudo a parte que antecede o final: “Numa incerta nostalgia” até
“Vivo em roxo e morro em som”. E é esta a tortura: como salvar essa beleza? Porque
o Bailado, como bailado, está inteiramente, mesmo mais do que inteiramente falhado.
(SÁ-CARNEIRO, M., 2001: 68).
1 «Andava ultimamente muito desolado por ver o meu tempo ir passando e as forças me faltarem para escrever
o livro que quero publicar cada ano – isto é, para escrever o meu volume de 1913.» (SÁ-CARNEIRO, M., 2001:
35).
2 «Confesso-lhe que, infantilmente, gostava muito de ver uma obra minha num palco.» (SÁ-CARNEIRO, M.,
2001: 93)
«Um peso de mândria sobre mim»: Sá-Carneiro inacabado 465
Para «salvar essa beleza», o autor encastoará várias frases desta prosa nos poemas
Inter-Sonho e Álcool e, mesmo tendo condenado Bailado em 1913, nunca renunciará à
possibilidade de publicar o texto, ao ponto de chegar a escrever o conto Asas, inserido
em Céu em Fogo, propositadamente para publicar o inédito Bailado e recuperar outra
prosa poética, Além3.
Lendo a sua correspondência, dir-se-ia que, para Mário de Sá-Carneiro, a obra,
uma vez concluída, exige a sua publicação.
Existe, contudo, também outra vertente da escrita sacarneiriana. Se é verdade
que são poucas, pouquíssimas, as obras que, uma vez terminadas, ficaram inéditas
por expresso desejo do seu autor, muitos são os textos que Sá-Carneiro deixou
inacabados ou que apenas esboçou ou praticamente nem sequer chegou a começar.
Esta tendência a “inacabar”, do meu ponto de vista, caracteriza o autor de A Confissão
de Lúcio, tanto quanto o desejo de publicar e, para analisar este aspecto da sua oficina
criativa, apresentarei um exemplo juvenil deste Sá-Carneiro inacabado; antes, porém,
limitando-me à fase projetual da produção em prosa, tenciono propor aquela que se
poderá considerar uma bibliografia sacarneiriana potencial, feita de textos aos quais
faltou para existir apenas um pouco mais de azul, um golpe d’asa; falarei, em suma,
dum “quasi Sá-Carneiro” que inevitavelmente transmite aos seus leitores a tristeza das
coisas que não foram.
Os três períodos parisienses da maturidade de Sá-Carneiro apresentam fases
criativas e projetuais completamente diferentes. A primeira fase – de outubro de 1912
até finais de junho de 1913 – é, neste sentido, claramente eufórica «(…) a melhor
quadra da minha vida literária», escreve o autor em março, reconhecendo nela «uma
enorme facilidade de trabalho, como nunca senti.» (SÁ-CARNEIRO, M., 2001: 55).
Pertence a esta primeira fase o esboço da novela Gentil Amor, que Mário destinava a
um volume que nunca chegou a existir onde, a 1 de abril de 1913, tencionava reunir,
sob o título Perturbadoramente, esta novela, a Confissão de Lúcio e uma peça que
apresenta ao amigo com um título provisório, Irmãos, que o autor considerava porém
inadequado. Seja como for, é provável que Sá-Carneiro tenha chegado a concluir
Irmãos e, sem dúvida, confiava muito na qualidade desta peça, considerando o seu
segundo ato – de onde Luís de Montalvor tirará uma frase que aparece como
epígrafe no seu poema A Vida de 1913 – «uma das coisas mais belas que tenho
escrito.» (SÁ-CARNEIRO, M., 2001: 65).
O teatro no primeiro semestre de 1913 ocupa ainda um lugar de eleição na escrita
sacarneiriana e, a 14 de maio, o poeta confessa a Fernando Pessoa querer «muito
3 «Quero mesmo escrever as Asas neste volume por causa do Além e Bailado, ultrapederasta assim o volume.»
(SÁ-CARNEIRO, M., 2001: 154).
466 100 Orpheu Giorgio De Marchis
escrever uma peça A Força (que é um estudo da Desilusão em que em tempos lhe
falei), colaborando com o Ponce que tem belas qualidades de autor dramático»
(SÁ-CARNEIRO, M., 2001: 93). Concordando com Luiz Francisco Rebello, que
demonstrou como A Força não pode ser Alma – outra peça que Sá-Carneiro escreverá
junto com António Ponce de Leão durante as férias grandes desse ano – temos
forçosamente que incluir também A Força entre as obras que não foram.
O principal projecto de 1913 que não se concretiza é, porém, uma plaquette – «o
mais elegante possível, é claro» (SÁ-CARNEIRO, M., 2001: 36) que, a 21 de janeiro
de 1913, Sá-Carneiro imagina intitulada Além – Sonhos e constituída por sete, breves,
pedaços de prosa: O Homem do Ar, O Homem dos Sonhos, A Orgia das Sedas, O
Fixador de Instantes, Asas, Mistério e Além. É um livro que, nestes termos não chega a
ser publicado em outubro de 1913, como desejava o seu autor, apesar de aparecerem
em “A Águia” e “A Renascença” alguns contos mais tarde reunidos no volume Céu em
Fogo. Limito-me a salientar como, pelo menos numa primeira fase, muito incipiente,
de projetação desta obra – que Sá-Carneiro julga conveniente orientar para o vago e
para o infinito, ciente do facto que se trata de projetos difíceis de resumir e impossíveis
de explicar em poucas palavras – à influência pessoana, talvez seja possível acrescentar
também sugestões vindas do convívio parisiense com Santa-Rita Pintor que, como
escreve Mário, «em literatura, quer em prosa, quer em verso, não admite a sombra
duma ideia (…) só admite coisas que se não possam narrar» (SÁ-CARNEIRO, M.,
2001: 14).
Nesta fase eufórica, surgem também ideias que não vão além duma fase meramente
projetual; é o caso do conto Aquele que estiolou o génio, que apresenta uma interessante
evolução, chegando Sá-Carneiro a ventilar a hipótese de trabalhar em verso o tema, de
maneira a incluí-lo como poema em Dispersão4. Ou ideias sem título que Sá-Carneiro,
a 21 de abril de 1913, transcreve telegraficamente ao amigo como possíveis novelas:
os dois homens que, sem se conhecerem, se reconhecem na rua, para «dar a ideia das
coisas incertas que na vida por vezes vivemos» (SÁ-CARNEIRO, M., 2001: 70) e «a
estranha obsessão dum homem que ama uma mulher que se lhe entrega toda, mas
que ele não pode possuir inteiramente porque a sua beleza se lhe afigura móvel, nunca
fixada.» (SÁ-CARNEIRO, M., 2001: 70), onde se entrevêem sugestões que aparecem
no poema Como eu não possuo e na peça Alma, também escritos nesse ano. Ou ainda
aquela «ideia nova» que Sá-Carneiro relata na carta de 31 de maio:
4 «Sobre Aquele que estiolou o génio. Esta ideia de conto, tratado até cientificamente, volveu-se-me de uma forma
bizarra, poética. (…) Você vai ver pelo excerto que adiante mando como poeticamente eu pretendo traduzir
estas coisas, que no conto seriam tratadas de fora. Peço muito que me diga o que antevê, pelos excertos, da
poesia total e se acha que a deva executar ou não. A executá-la há-de ser assim neste corte, nesta maneira, nesta
orientação. Caso contrário renunciarei a tratar o assunto em poesia.» (SÁ-CARNEIRO, M., 2001: 81 e 82).
«Um peso de mândria sobre mim»: Sá-Carneiro inacabado 467
Um indivíduo cuja ânsia é de criar mistérios só pelo perturbador que um mistério é. Assim
contará crimes só para ter a glória de todo o mundo andar ansiante por descobrir o mistério.
(Crimes dum género especial: Suponhamos: o roubo da Jucunda – isto para exemplificar
grosseiramente qual a minha ideia.) Este homem por fim será morto, despedaçado, pelo
mais grandioso mistério que conseguiu criar.» (SÁ-CARNEIRO, M., 2001: 96).
É curiosa esta função do cérebro-escritor. De tudo quanto em si descobre e pensa faz novelas
ou poesias. Mais feliz que os outros para quem as horas de meditação sobre si próprio são
horas perdidas. Para nós, elas são ganhas. Menos nobres só. O desperdício é nobre. O
interesse vil. E o artista mais interesseiro do que o judeu. Tudo – cenários, pensamentos,
dores, alegrias – se lhe transforma em matéria de arte!... Ganha sempre! (SÁ-CARNEIRO,
M., 2001: 34)
A segunda fase parisiense (junho 1914 – finais de agosto de 1914) é bem menos
fecunda. O poeta reconhece estar a atravessar um momento «literariamente inactivo»
(SÁ-CARNEIRO, M., 2001: 115) e introduz um elemento de auto-análise muito
relevante que, voltará a aparecer nos últimos meses antes do suicídio: a ideia da
necessidade dum “prémio” para escrever, um incentivo imprescindível que, agora,
começa a tornar-se insuficiente. O escritor continua a escrever poemas e novelas, mas
não faltam os projetos que Sá-Carneiro abandona. É o caso da Novela Burguesa –
que, a 18 de julho de 1914, o poeta imagina como a inversa de A Confissão de Lúcio
contada por um burguês, onde um artista olhará a vida burguesa como se essa vida
fosse a exceção e a sua a generalidade – e dum conto, Elegia (anteriormente chamado
Triste amor), que o autor, a 6 de outubro do mesmo ano, decide não escrever para Céu
em Fogo e destinar a um futuro livro que nunca chegará a existir. A tanta literatura
hipotética ou apenas imaginada, teremos que acrescentar Paris da Guerra – uma espécie
de diário íntimo interseccionista sobre a atmosfera parisiense desses dias, imaginado
em agosto de 19145 e que acabará por reduzir-se àquela única e malfadada crónica, A
Batalha do Marne, publicada em dezembro de 1915 na “Ilustração Portugueza” – e
5 «lembrei-me longinquamente de escrever um livro intitulado: Paris da Guerra aonde iria anotando as
impressões diárias: mas interseccionadamente: falando dos fluidos a que me referi na minha última carta, da
tristeza de que falo nesta etc. Compreende? Tenho de resto muitos episódios a tratar assim.» (SÁ-CARNEIRO,
M., 2001: 137).
468 100 Orpheu Giorgio De Marchis
um homem que (através dum enredo outonal e romântico) lute ardentemente para
merecer uma mulher: luta pela vida, luta material para ter os meios de fortuna, para poder
sustentar, no fim de contas, a mulher – luta por questões de família – luta mesmo, talvez – e
possivelmente a preço de infâmias – para obter o amor dessa mulher afastando um rival.
Este homem conseguirá enfim tudo. Mas então suicidar-se-á ou fugirá. (SÁ-CARNEIRO,
M., 2001: 189).
Assim como não escreve este conto, também não desenvolve os breves resumos
de possíveis novelas que, entre agosto e outubro de 1915 descreve a Fernando
Pessoa mas considera mero «treino imaginativo»: Para lá7, Pequeno Elemento
no Caso Fabrício8 e O Cúmplice. Apenas uma obra, Novela Romântica, parece
interessar Mário de Sá-Carneiro entre agosto de 1915 e fevereiro de 1916: «Coisa
esquisita: suponha você um Lúcio, um Inácio de Gouveia – enfim um dos meus
personagens-padrões lançado em pleno período romântico, vivendo um enredo
ultra-romântico: um Antony interseccionista, numa palavra.» (SÁ-CARNEIRO, M.,
2001: 194). Neste caso, Sá-Carneiro, ao longo de várias cartas, descreve um cenário
bem mais pormenorizado e, em janeiro de 1916, chega a considerar a escrita desta
6 «O mesmo eterno R. i R. na sua lepidopteria pediu-me para eu escrever um artigo sobre O Génio Peninsular
livro recém aparecido em edição da Renascença. Não tenho remédio, é claro, senão escrevê-lo. Mas tem piada.
Porque será publicado em Catalão no El Poble!... Seja como for sempre um pouco cosmopolita… Ah! e é claro
que unjo o artigo de paulismo, olá se o unjo!...» (SÁ-CARNEIRO, M., 2001: 149).
7 «Suponha você um homem de perfeito juízo, perfeitamente normal quanto a si próprio – mas que na sua vida
não encontrasse senão circunstâncias inesperadas, fenomenais, irrisórias, estrambóticas, inexplicáveis – que
o envolvessem continuamente? A realidade da vida deste homem seria pois uma realidade destrambelhada,
louca. E como essa realidade era a vida desse homem – esse homem, sem culpa nenhuma, de perfeito juízo:
não o poderíamos em verdade chamar um doido? Creia que o meu caso é um pouco o deste hipotético figurão.
E aqui tem você uma talvez futura novela minha: Para lá? Análise psicológica muito pessoal e, sobretudo, da
minha crise presente.» (SÁ-CARNEIRO, M., 2001: 202-203).
8 «Outro projecto: uma novela género Prof. Antena (mas muito menos importante). Título: Pequeno elemento
no caso Fabrício. O Fabrício é um homenzinho que de repente se encontra outro, perfeitamente outro. É
dado como doido, claro. O fim da novela, a processos Antena, é sugerir uma explicação real para este sarilho.
Noutra carta lhe explicarei o assunto. Note que não é nenhum caso de desdobramento à Eu-Próprio o Outro.
Trata-se dum homenzinho que de súbito aparece outro – em alma, claro: ele próprio concorda diante dum
espelho que aquele que ele diz ser é louro e gordo: enquanto o espelho lhe reflecte um magro e trigueiro.»
(SÁ-CARNEIRO, M., 2001: 203).
«Um peso de mândria sobre mim»: Sá-Carneiro inacabado 469
novela «a melhor terapêutica» (SÁ-CARNEIRO, M., 2001: 255) para a sua situação,
solicitando ao amigo o envio da carta onde lhe resumira o assunto, porque perdeu
os apontamentos.
Entre as coisas que não foram, além, claro, do terceiro número de “Orpheu”,
poder-se-iam lembrar também As esfinges e os guindastes: estudo do bi-metalismo
psicológico, palestra anunciada no segundo número da revista e prevista para a
rentrée, e um breve texto solicitado por Carlos Ferreira para um livro de opiniões
portuguesas sobre o rei Alberto da Bélgica9, mas não há dúvida que o último projeto
que Sá-Carneiro parece realmente querer levar a cabo é Novela Romântica acerca da
qual, ainda a 5 de fevereiro de 1916, declarava: «Esta novela interessa-me imenso –
estou ansioso por escrevê-la: mas não quero principiar antes de ajustados os mínimos
detalhes.» (SÁ-CARNEIRO, M., 2001: 265).
É sem dúvida possível recuar no tempo à procura de outros projetos literários não
concluídos por Mário de Sá-Carneiro. Graças a duas cartas enviadas ao amigo Luís de
Montalvor, sabemos que, nos poucos meses que viveu em Coimbra, por exemplo, o poeta
chegou a rabiscar «umas linhas de prosa» (SÁ-CARNEIRO, M., 1977: 45) e a planejar
uma «poesia naturalista» sobre a «a vida maçadora, impossível» (SÁ-CARNEIRO, M.,
1977: 42) na Lusa-Chatice.
Porém, antes de concluir, considero interessante apresentar um texto de Mário de
Sá-Carneiro, juvenil e inédito, que provavelmente o autor não concluiu e acabou por
abandonar.
Trata-se dum manuscrito constituído por 20 páginas e 11 folhas de 13,5 cm x 21
cm, não datado e não assinado mas que me parece sem dúvida sacarneiriano, pelo
menos é de Sá-Carneiro a mão que escreve. O manuscrito contém o título da obra,
uma lista de seis personagens, o nome dum ator, a descrição do cenário, as primeiras
4 cenas completas e a indicação das duas personagens que entrarão na quinta cena. É
evidentemente uma peça e intitula-se: YW. 248 K. Grande drama policial condensado
em 1 acto.
9 «Esta aqui um rapaz que eu conheço há mto tempo, do Liceu, chamado Carlos Ferreira, agente comercial
(…) que ultimamente publicou em Lisboa um livro sobre a invasão alemã, e que prepara outro de opiniões
portuguesas sobre o rei Alberto! Acho a ideia patusca: que se importará o rei – que deve ter tanto mais em
que pensar – com as opiniões dos portugueses… Enfim, isso é com o autor. Ele pediu a minha opinião e a sua.
Mando-lhe o papel pa a consulta, juntamente, e rogo muito ao papá que não deixe de escrever umas rápidas
lérias, em francês, claro, pois eu gosto muito que, no mesmo livro, apareçam as nossas respostas: papá e
menino. Não deixe por isso de escrever. Duas palavras bastam. Peço-lhe instantemente e rogo mto que se não
esqueça de maneira alguma deste meu pedido.» (SÁ-CARNEIRO, M., 1992: 68).
470 100 Orpheu Giorgio De Marchis
apareceu no dia 15 de julho de 1905 na revista parisiense “Je sais tout”), o manuscrito
não pode ser anterior a esta data. Temos, evidentemente, que considerar a hipótese
deste «grande drama policial condensado em 1 acto» ser apenas uma tradução ou uma
adaptação dum original francês – já que entre 1908 e 1911, três foram as peças francesas
levadas ao palco inspiradas nas aventuras do gentleman-cabrioleur10. Nenhuma delas,
porém, apresenta afinidades temáticas com o texto esboçado no manuscrito. Além
disso, como é sabido, Maurice Leblanc não foi autorizado por Conan Doyle a usar
as suas personagens e decidiu contornar o problema, criando para a primeira edição
em livro das aventuras de Lupin, Arsène Lupin gentleman cambrioleur (Paris, 1907),
o Doutor Wilson e Herlock Sholmès, evidente homenagem paródica à celebérrima
dupla detetivesca inventada pelo escritor inglês11. Agora, o manuscrito sacarneiriano
tem, entre as suas personagens, Sherlock Holmes e o Doutor Watson – os originais,
portanto, não as caricaturas – o que leva a considerar o texto sacarneiriano de alguma
maneira autónomo face a possíveis antígrafos franceses12.
Além disso, relevante é também a presença da personagem Raffles – que é o
nome dum outro ladrão literário da Belle Époque, Arthur J. Raffles, neste caso inglês,
criado em 1899 por Ernest William Hornung13. As aventuras de Raffles, hoje pouco
conhecidas, nas primeiras duas décadas do século XX tiveram muito sucesso e foram
sem dúvida uma fonte de inspiração também para Maurice Leblanc. Enfim, quem
escreveu YW. 248 K. apreciava a literatura detetivesca da sua época e, apropriando-se
de personagens alheias, criadas por outros autores, «was following a well-established
tradition within the detective/crime fiction genre, namely cross-referencing in order to
increase the status of one’s own hero» (DRAKE, D., 2009: 112); agora, se é verdade que
Mário de Sá-Carneiro, a 21 de abril de 1913, parece desconhecer Estudo em Vermelho
10 A 28 de outubro de 1908, no teatro Athénée, foi representada a peça em 4 atos Arsène Lupin de Francis de
Croisset e Maurice Leblanc; dois anos mais tarde foi levado ao palco do Teatro do Châtelet, Arsène Lupin
contre Herlock Sholmès, uma peça em 4 atos de Victor Darlay et Henry de Gorsse, e, poucos meses mais tarde,
Leblanc escreve a peça Une Aventure d'Arsène Lupin noticiada no “Comoedia”de 17 de setembro de 1911,
revista de que, como é sabido, Mário de Sá-Carneiro era assinante.
11 «In June 1906, possibly at the instigation of Lafitte, Leblanc wrote Holmes into a Lupin short story entitled
Sherlock Holmes arrive trop tard (…). Following letters from Conan Doyle’s lawyers, Leblanc was obliged to
change Holmes’ name, and in subsequent publications of the story he appears as Herlock Sholmès. Sherlock
Holmes/Herlock Sholmès, now accompanied by his faithful friend, not Watson but Wilson, features in La
Dame blonde and La Lampe juive, which were published between November 1906 and October 1907 and
appeared in book form as Arsène Lupin contre Herlock Sholmès in 1908. Holmes/Sholmès appeared again in
the novel L’aiguille creuse, published in Je sais tout between November 1908 and May 1909 and in book form
under the same title in June 1909» (DRAKE, D., 2009: 110)
12 De resto, parece pouco provável que, entre 1905 e 1906, Sá-Carneiro assinasse a recém criada revista “Je sais
tout”.
13 O nome desta personagem apresenta ligeiras diferenças ao longo do texto – Rafles, Raflles, Raffles – mas é
provável que Sá-Carneiro se tenha apropriado da personagem criada por Hornung.
472 100 Orpheu Giorgio De Marchis
de Conan Doyle, também é verdade que não faltam referências a romances policiais
na correspondência dum autor a quem a leitura no “Matin” dos Mistérios de New
York, poucas semanas antes de suicidar-se, dava «muito prazer» (SÁ-CARNEIRO,
M., 2001: 261).
Finalmente, o nome de Garcia Perez – o único ator indicado, a quem caberia o
papel do Doutor Watson – permite colocar a peça no meio teatral e estudantil do Liceu
São Domingos, onde Mário de Sá-Carneiro, como declarou o mesmo Rogério Garcia
Perez, sobressaia graças ao seu conhecimento dos teatros franceses e à possibilidade
de ler jornais e revistas parisienses de que Mário era assinante – e no manuscrito em
questão Raffles faz uma explícita referência ao Folies Bergère e à revista “Comoedia”...
Agora, sem dúvida este manuscrito não apresenta nenhuma afinidade temática
e formal com peças como Amizade e Alma. Trata-se dum exercício dramatúrgico
claramente anterior, que, do meu ponto de vista, podemos considerar uma tentativa,
inacabada, ligada à atividade teatral do Grupo Dramático do Liceu de São Domingos,
no qual Mário participou como ator cómico e como autor de uma revista de costumes
populares e académicos.
Se eu tivesse, portanto, que propor uma possível datação para este manuscrito
colocá-lo-ia entre a viagem a Paris no verão de 1907 e o mês de dezembro de 1909,
quando o poeta começa a escrever Amizade. E não resisto à tentação de lembrar
que, em junho de 1907, se publicava em Paris o primeiro volume de aventuras do
heroi criado por Leblanc, Arsène Lupin gentleman cambrioleur. Imagino Mário, com
dezassete anos de idade, que, numa livraria parisiense, compra essa novidade, lê
o livro com o mesmo prazer com que poucos meses antes do seu falecimento lerá
Os Mistérios de Nova York e, de volta a Lisboa, tenta levar ao palco as aventuras do
elegante ladrão francês.
Se assim fosse, mesmo inacabado, este texto seria uma das primeiras tentativas
(senão a primeira em absoluto) de adaptação para o teatro da personagem de Arsène
Lupin. Infelizmente, porém, limito-me a imaginar porque eu, ao contrário do
sacarneiriano doutor Watson, não posso afirmar que o deduzi cientificamente…
Bibliografia
Bibliografia Ativa
SÁ-CARNEIRO, Mário (s/d). YW. 248 K. Manuscrito inédito.
SÁ-CARNEIRO, Mário (1977). Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Luís de
Montalvor/Cândida Ramos/Alfredo Guisado/José Pacheco. Leitura, selecção e
notas de Arnaldo Saraiva. Porto: Limiar.
«Um peso de mândria sobre mim»: Sá-Carneiro inacabado 473
Bibliografia Passiva
CASTEX, François (1971). Mário de Sá-Carneiro e a génese de “Amizade”. Coimbra:
Almedina.
CASTEX, François (1985). «Un conte inédit de Mário de Sá-Carneiro. Biographie
ou autoportrait?». In: Revista da Universidade de Coimbra, 31, pp. 149-157.
DE MARCHIS, Giorgio (2007). O silêncio do dândi e a morte da esfinge. Edição
crítico-genética de Dispersão. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda.
DRAKE, David (2009). «Crime Fiction at the Time of the Exhibition: the Case of
Sherlock Holmes and Arsène Lupin. In: Synergies, 2, pp. 105-117.
REIS, Carlos (1997). «Fradique Mendes (Carlos)». In: Biblos, II. Lisboa: Verbo, p.
674.
REBELLO, Luiz Francisco (1987). «Nota Introdutória». In: SÁ-CARNEIRO,
Mário – LEÃO, António Ponce de. Alma. Original em 1 Acto. Lisboa: Rolim,
pp. 7-24.
RUAUD, André-François (2011). Arsène Lupin, une vie. Montélimar: Les Moutons
Électriques.
TORIELLO, Fernanda (1987). La ricerca infinita. Omaggio a Mário de Sá-Carneiro.
Bari: Lusitania.
A loucura e o génio de Orpheu
A) OS MALDITOS E OS VANGUARDISTAS
Tudo começa com Baudelaire, e com o spleen que constitui o coração das Flores
do Mal. Mais tarde, quando é constituída a personagem-emblema do Decadentismo,
o Des Esseintes do romance de Huysmans À Rebours, de 1884, define-se a noção da
476 100 Orpheu Fernando Cabral Martins
200 anos e a o mundo será um grande manicómio» (O Povo). No dia 19, Júlio Dantas
publica o seu célebre artigo artigo «Poetas Paranóicos» (Ilustração Portuguesa), em
que enuncia como sistomas de alienação mental a “extravagância” e a “incoerência”,
que são alterações dos princípios clássicos da composição.
Três meses mais tarde, logo a seguir à publicação do segundo número, A Capital
publica a 28 de junho um artigo intitulado “Artistas de Rilhafoles”. E, a 5 de julho, sai
em O Mundo outro artigo com o título “Literatura de Manicómio Astral”.
Ora, quando se considera o coro bem-pensante das reacções da imprensa a
Orpheu, deste conjunto de diagnósticos de loucura associada aos poetas e pintores
da nova geração resulta o Manifesto Anti-Dantas, de Almada Negreiros, em 1916, que
vai constituir uma manifestação de alegre desmesura de quem leva a provocação às
suas últimas consequências. O tom e o alcance do Manifesto Anti-Dantas é tornado
inevitável pelo próprio teor dos ataques produzidos por Júlio Dantas na polémica de
Orpheu. O ataque à figura do médico, dramaturgo e escritor prestigiado não procura
apenas pagar os diagnósticos infamantes que ele tinha publicado, mas configura-se
como um manifesto de afirmação geracional.
ao Orpheu ou aos “poetas do Orpheu”. Por Orpheu entende-se umas vezes a revista
com aquele nome, de que saíram só dois números, em março e junho de 1915; outras
vezes os que estiveram ligados a ela, ainda que como simples espectadores próximos
ou amigos, e sem que nela influíssem ou colaborassem; outras vezes ainda, os que
escreveram subsequentemente em estilo semelhante ou aproximado ao dos que de
facto colaboraram no Orpheu.”
Esta análise é importante porque manifesta a natureza colectiva da poética de
Orpheu. Apesar das singularidades de Pessoa, Sá-Carneiro, Ângelo de Lima, Raul
Leal, etc., há uma unidade que é cimentada pela própria marginalização de que são
vítimas, pela acusação de serem todos mais ou menos “doentes mentais”. Mas, por
outro lado, essa “doença” é caracterizada como de natureza estilística. É, pois, de um
enlouquecimento do estilo ou da escrita que é questão, é como se o próprio cerne
da actividade poética tivesse saído de vez das calhas da razão. É a consequência
portuguesa de Rimbaud, por exemplo, e da Vanguarda que continua a obra inicial de
Rimbaud, e a consequência do seu célebre “desregramento de todos os sentidos”. Um
pouco mais perto da raiz, é a vontade que se lê em Baudelaire de “mergulhar no mais
fundo abismo para descobrir o Novo”.
Assim, além de uma alteração qualitativa das relações entre os artistas e o seu
público, a loucura órfica vanguardista também contém um método de trabalho, e ela
é, em si mesma, um programa estético.
Os nomes dos poetas vanguardistas de Orpheu que provocam maior efeito nos
leitores, sobretudo por via do que é percebido como uma deliberada afirmação da
loucura, são Raul Leal, Sá-Carneiro e Álvaro de Campos. Mas a proposta mais radical
é a de Ângelo de Lima. No caso deste poeta, que está efectivamente internado há largos
anos num hospital psiquiátrico de Lisboa, além dos processos estilísticos insólitos e
da fragmentação do discurso poético, é a própria razão que se vê retirada de cena. Não
são só as regras do razoável que são infringidas, são também os trâmites habituais do
representável. Com Ângelo de Lima, qualquer leitor sabe que se está a aventurar numa
terra desconhecida, onde tudo é possível. Trata-se de uma experiência dos limites, e
de uma experiência-limite.
É curioso notar, a este respeito, um certo folheto publicitário do Orpheu 2 (agora
republicado no volume Sobre Orpheu e o Sensacionismo) em que se anuncia a
colaboração nesse número do “futurista Santa Rita Pintor” e ainda a publicação de
um Manifesto da Nova Literatura, “redigido por Fernando Pessoa”. E, depois, a nota
480 100 Orpheu Fernando Cabral Martins
que sai no Orpheu 2 a justificar a sua não inclusão: “O Manifesto da Nova Literatura,
que havia sido anunciado como devendo fazer parte do n.º 2 de ORPHEU, não é
nele inserto nem o acompanha. É motivo disto a circunstância de que, envolvendo
a confecção desse manifesto o desenvolvimento de princípios de ordem altamente
científica e abstrata, ele não pôde ficar concluído a tempo de ser inserto.” Esta nota,
com toda a evidência, procura um caminho sério e racional de comunicação, que se
opõe ao tom mais tipicamente vanguardista do anúncio feito por Sá-Carneiro, inserto
nesse mesmo n.º 2, de uma conferência intitulada “As Esfinges e os Guindastes:
Estudo do Bi-Metalismo Psicológico”. Neste último caso, a própria extravagância do
tema condiz com o tom humorístico, e, ao contrário das outras três conferências que
são anunciadas no mesmo n.º 2, essa conferência proposta sobre a relação entre as
esfinges e os guindastes sugere ser uma blague e pouco mais que uma blague.
Mas este projecto de um Manifesto da Nova Literatura proposto por Fernando
Pessoa, com “o desenvolvimento de princípios de ordem altamente científica e
abstrata” que é aí anunciado, se tem um tom vagamente irónico, não deixa também de
afirmar a vontade de contrariar a aparência de blague generalizada que a revista parece
oferecer. Sobretudo quando recordamos que Fernando Pessoa já tinha desenvolvido,
três anos antes, nos artigos sobre a “Nova Poesia Portuguesa” publicados em 1912
na revista A Águia, “princípios de ordem altamente científica e abstrata”. Uma tal
instrução sugerida por Pessoa parece ter como objectivo tornar, de algum modo,
possível que um leitor desprevenido se aventure pela poesia de Ângelo de Lima, que
aceite percorrer aquele conjunto precioso de textos que a revista inclui, apesar de
se apresentar do modo mais inesperado, semeado com uma ortografia extravagante,
em que até se pode encontrar, nos seus vários poemas, mas sobretudo em “Edd’ora
Addio... – Mia Soave!...”, a criação de uma linguagem que lembra a língua zaoum dos
futuristas russos, ou algumas experiências dadaístas. Essa, aliás, é a útima perversão,
ou a mais furiosa das loucuras, pois não são apenas o sentido e a representação que
se esvaem, é já a própria língua que se dissolve, tornando-se possíveil a aparição de
novas palavras e de uma nova sintaxe.
Em suma, esse Manifesto da Nova Literatura, de Fernando Pessoa, anunciado para
o Orpheu 2, não será tanto para ser entendida enquanto projecto programático, mas
antes como um gesto, ou uma sugestão, em ligação directa ao cronótopo lisboeta
e português, que deve ser interpretado – nesse contexto preciso de comunicação
poética – como uma chamada de atenção para o específico trabalho de arte que
Orpheu leva a cabo, procedendo segundo um método preciso, como se fosse uma
ciência experimental. A extravagância poética é compensada com a ideia de novidade
científica.
A loucura e o génio de Orpheu 481
O Orpheu 2 é lido no seu tempo como sintomático da mais estrita loucura literária.
Quer dizer, a metáfora da loucura é de tal modo saturante que quase deixa de ser
metáfora. Reproduzo, como exemplo disso, a notícia dada pelo jornal A Luta de 2 de
julho: “Orpheu – É o n.º 2. A loucura em marcha. Não já um átrio da loucura, mas a
doidice plena, a loucura no seu zénite. Abre o número com versos doidos de um poeta
que há anos está internado em Rilhafoles. Os que se seguem, se não estão deveriam
estar.”
De um ponto de vista da defesa das formas dominantes, são sobretudo estranhos,
no Orpheu 2 – além dos “Poemas Inéditos” de Ângelo de Lima e de “Manucure” de
Mário de Sá-Carneiro – os desmesurados poemas assinados por Álvaro de Campos e
Fernando Pessoa. Quer “Ode Marítima” quer “Chuva Oblíqua” têm um virtuosismo
e um fôlego poéticos a tal ponto evidentes que não chega a haver bem a percepção,
por parte dos leitores estupefactos, de que sejam frutos da insanidade mental, ou de
que tenham, como a Manucure, uma manifesta vontade de épater le bourgeois, ou de
ostentar o processo formal ao ponto de obrigar à rejeição do leitor. De facto, as críticas
da imprensa escolhem sistematicamente o poema de Sá-Carneiro, e “Chuva Oblíqua”
não é sequer citado. Quanto à “Ode Marítima”, de uma das raras vezes que é citada, é-o
de modo fascinado. É em A Capital, num artigo de 28 de junho: “A trapalhada mais
extraordinária e mais assombrosa que encerra o novo número do Orpheu é a ‘Ode
Marítima’ de Álvaro de Campos. Torna-se forçoso reconhecer que há nela qualquer
coisa de superior ao resto e que o seu autor tem talento apesar da maluqueira. Não
queremos com isto dizer que se possa considerar a ‘Ode Marítima’ um lavor artístico.
De modo nenhum! Mas parece-nos que a sua leitura permite apreciar com mais
segurança a fisio-psicologia, tão profundamente mórbida, daqueles a que chamam
os paúlicos.”
Álvaro de Campos é, com efeito, um caso especial entre todos. E aquele adjectivo,
“assombrosa”, serve, sem dúvida, para reconhecer o impacto da “Ode Marítima” e a
sua dimensão. Mesmo o olhar mais desatento e mais adverso é impressionado pela
evidência do génio.
Álvaro de Campos exemplifica, também, que a alegoria da catástrofe que transporta
a revista e a geração literária e artística à sua volta é um modo comum de dar
sentido aos caminhos da Vanguarda, tal como o Manifesto do Futurismo em 1909 a
desencadeou. É que são os próprios poetas modernistas, enquanto tais, que se medem
com os lampejos e os medos de demência. Sá-Carneiro, por exemplo, já publicara,
em 1912, no livro Princípio, uma novela, “Loucura...”, em que se constrói um caso de
violência extrema sobre os alicerces de uma consciência moderna agónica do tempo.
482 100 Orpheu Fernando Cabral Martins
É que a demência que assola o homem moderno não é apenas um tema literário ou
artístico, e aquela “dissociação da sensibilidade” de que fala T. S. Eliot no seu célebre
artigo sobre os Poetas Metafísicos, em 1921, não se resume a uma mera condição
poética. Os próprios psiquiatras referem a dissociação da sensibilidade – ou seja, a
separação entre o pensamento e a emoção, entre o intelecto e a sensação – como um
sintoma de dementia praecox (SASS: 357). Esta forma de demência é apontada para a
história psicológica do homem moderno, mas replica o que Max Nordau julgava ser
uma criação doentia dos Decadentistas.
De todo o modo, esta dissociação da sensibilidade é tratada por Fernando Pessoa
como um dos temas maiores da sua obra, e Ricardo Reis, por exemplo, será um
heterónimo quase por inteiro dedicado a uma longa glosa da descoincidência entre
o pensar e o sentir. Tal como, por outro lado, Alberto Caeiro tem toda a importância
que o lugar de Mestre lhe atribui no “drama em gente”, exactamente porque ele é capaz
de ensinar a resolver a dissociação da sensibilidade, isto é, curar essa forma moderna
de dementia.
Quanto a Álvaro de Campos, ele fala, na Ode Triunfal, dos “nervos doentes da
Matéria”, e expõe assim uma visão do mundo contemporâneo que não se refere já
apenas a uma doença individual de seres concretos atingidos por um qualquer mal
interior. E essa condição civilizacional definida como os “nervos doentes da Matéria” é
uma ampliação considerável do ponto de vista psiquiátrico. Álvaro de Campos formula
com essa expressão um tipo de relação entre o homem e o mundo que é dolorosa e
violenta, e essa relação existe porque o desenvolvimento industrial e tecnocientífico
assim a reconfigurou. Estes “nervos doentes” referem um tipo de enlouquecimento
que é o da sociedade industrial, o das grandes urbes contemporâneas e o das
comunicações de massa. A loucura que o poema recebe e transforma em poesia é a
loucura exterior. Tudo o que faz o poema é revelar a loucura da matéria tornando-a
clara, organizada, e taribuindo-lhe um sentido. A poesia, neste sentido, e a própria
arte de Vanguarda como um todo, oferecem uma poderosa terapêutica para a “doença
dos nervos” do mundo moderno, uma resolução artística das dúvidas e das cisões, das
contradições impossíveis de resolver, do som e da fúria sem fim.
Finalmente, são precisamente aqueles que sentem a “doença dos nervos da Matéria”
que são acusados de serem doidos, o que mostra que andam mais depressa que os seus
contemporâneos, e que são, portanto, de Vanguarda. Mas, para além de serem antenas
sensíveis ao que o mundo tem de novo e de violento, os artistas de Vanguarda são os
que preparam a arte futura, aquela que se chama a Arte Moderna. São aqueles que
dão sentido à experiência colectiva e reformulam as possibilidades de expressão, são
aqueles que reconstituem as forças mentais, que desenham os novos instrumentos de
compreensão e de representação.
A loucura e o génio de Orpheu 483
Acontece, portanto, que há por parte dos poetas de Orpheu uma irónica assunção
das acusações dos críticos de Orpheu, com, ao mesmo tempo, uma inversão do seu
sentido. O que implica também o reconhecimento da loucura como uma forma
crítica do mundo. Num poema de Almada Negreiros dos anos 30, intitulado
“Reconhecimento à Loucura”, lê-se:
O que está aqui implicado é, nada mais nada menos que o reconhecimento
modernista da loucura como a verdadeira, única transformação do mundo.
F) A PERDA DE SENTIDO
que o de Campos. Mas no Orpheu 2 a cortina que precede a sua colaboração tem
escrito com toda a clareza “Ode Marítima / por / Álvaro de Campos”. Ou seja, é como
se aquela figura de poeta autónomo nascesse e se impusesse aos nossos olhos.
Mas esta existência de papel está associada desde o princípio à neurastenia e ao
tédio, à febre, à violência interior, à mais explosiva imaginação. Sempre inconveniente
e provocatório, incompatibiliza-se com todos os jornalistas com quem troca
correspondência. Mas a sua loucura torna-se, a pouco e pouco, qualquer coisa como
uma metáfora.
No poema Lisbon Revisited (1923), Álvaro de Campos escreve:
Cerca de dez anos mais tarde, Álvaro de Campos escreve um poema em que diz:
“Tenho a loucura exactamente na cabeça.” É um poema que termina com estes versos:
Tenho uma náusea que, se pudesse comer o universo para o despejar na pia, comia-o.
Com esforço, mas era para bom fim.
Ao menos era para um fim.
E assim como sou não tenho nem fim nem vida…
A loucura e o génio de Orpheu 485
Aqui, a loucura que ele tem “exactamente na cabeça” define-se de um modo nítido.
É um efeito preciso, localizável, quase físico. E, no final do poema, percebe-se que ele
coincide com o tema da perda do sentido: “não ter um fim”. Diz que, “assim como
sou”, não existe fim nem vida, sequer. A vida, para merecer esse nome, tem de fazer
algum sentido, ainda que mínimo. Este não ter um “fim”, noutro poema de 1928,
exprime-se pelo verso “Fui, como ervas, e não me arrancaram.”
Toda a questão para Álvaro de Campos se fulcra no tema da perda de sentido,
que é, por outro lado, o tema da morte de Deus. É essa, afinal, a sua interpretação
possível para o tema da loucura. Pelo menos, é assim muito claramente para Bernardo
Soares, que escreve num trecho do Livro do Desassossego: “É toda a falta de um Deus
verdadeiro que é o cadáver vácuo do céu alto e da alma fechada. Cárcere infinito –
porque és infinito, não se pode fugir de ti!”. Assim, habitar um universo sem Deus é
habitar um universo sem saída, claustrofóbico. É essa exactamente a loucura, o nada
ter um fim, o nada ter sentido.
G) A QUESTÃO HETERONÍMICA
Bibliografia
Bibliografia Activa
PESSOA, Fernando (2006). Escritos sobre Génio e Loucura, 2 vol., ed. Jerónimo
Pizarro. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda.
Bibliografia Passiva
ELIOT, T. S. (1992). Ensaios Escolhidos, ed. e trad. Maria Adelaide Ramos. Lisboa:
Cotovia.
LALANDE, André (1983). Vocabulaire Technique et Critique de la Philosophie
(1926), 14.ª ed. Paris: PUF.
SASS, Louis A. (1992). Madness and Modernism. Nova Iorque: Basic Books.
Orpheu e a Guerra
modernidade. Esta foi, aliás, a posição dos futuristas na guerra, para quem ela era a
“grande experiência”. Foi também a posição de um grande teórico da modernidade
como Apollinaire. Esta mesma ideia dividiu os mais importantes representantes da
geração de Orpheu, como os dois manifestos publicados em Portugal Futurista em
1917 claramente dão a entender: o de Almada a favor da posição de Portugal na guerra,
o de Álvaro de Campos (ao qual, pela sua especificidade teremos de dar mais atenção)
comparando a política europeia a um “Maelström de chá morno”3 e condenando a
guerra pelas suas causas e pelos seus objectivos, vendo-a como “a falência de todos
por causa de tudo”4.
Em Portugal, cuja participação na guerra foi tardia e em menor escala, não abundam
os testemunhos directos da frente de batalha. De entre os intelectuais mais destacados
da geração anterior à de Orpheu, Jaime Cortesão ou Raul Proença tomaram partido
pela participação portuguesa e marcaram com as suas ideias da guerra como expiação
e renascimento o movimento da Renascença Portuguesa. Raul Brandão, nas suas
Memórias, apesar da amizade pessoal com os dirigentes da ala Republicana (que, também
por pressão da carbonária, foram os responsáveis políticos pela participação de Portugal
na guerra, faz o retrato da República como uma sucessão de governos fracos) e explica
como essa decisão foi contestada internamente, fracturando a sociedade civil e dividindo
entre si tanto os monárquicos como os republicanos. Aquilino, que se encontrava em
Paris no momento em que se soube que Portugal iria enviar um contingente militar,
escreveu por esses dias páginas repletas de perplexidade e de apreensão, onde repete que
a sociedade civil não está preparada para a guerra e afirma que os ambiciosos políticos
que representam Portugal no estrangeiro procuram apenas obter dessa forma a simpatia
dos dirigentes europeus dos países envolvidos no conflito e que tardam em reconhecer
a recém-criada e ameaçada República portuguesa. Aquilino lamenta a sorte dos seus
“pobres, ignorantes e pacíficos labregos”, enviados para a frente de batalha sem qualquer
preparação militar prévia, eles que tanta falta fazem na pátria para cultivar a terra.5
A guerra deflagrou em 1914, em pleno fervilhar das manifestações de vanguarda
e abateu-se sobre a nova geração à qual os poetas e artistas de Orpheu pertenceram.
Aparentemente, tratou-se de um conflito que, embora latente, foi desencadeado por
uma série de decisões ao nível político que correspondiam a estratégias militares e
jogadas de antecipação com vista a obter rapidamente os objectivos pretendidos, pelo
que o sentimento quase geral foi de surpresa e de incredulidade. Ezra Pound, no seu
livro sobre Gaudier, dá conta do choque que a guerra representou, interrompendo
abruptamente o ímpeto criativo das vanguardas: lembra-nos que, três semanas após a
publicação do primeiro número de Blast, a guerra a todos arrastou no seu turbilhão.
No pós-guerra o cenário das artes é já outro e o movimento em torno de Orpheu
estava extinto, não tendo sobrevivido à dispersão que ela provocara e à morte de três
dos seus nomes principais, Mário de Sá-Carneiro, que se suicida em Paris em 1916,
Guilherme de Santa-Rita e Amadeo de Souza Cardoso, vitimados respectivamente
pela tuberculose e pela gripe espanhola em 1918.
A suposição de uma espécie de continuidade natural entre a guerra e as práticas
artísticas de vanguarda, nos primeiros tempos da mobilização, parece suficientemente
documentada quando pensamos no caso de Gaudier enviando das trincheiras um
último manifesto para a revista Blast, ou no caso de Apollinaire compondo os seus
caligramas no “Front”, na qualidade de artilheiro e depois de oficial de cavalaria.
Com efeito, apesar da dureza das condições que descreve na correspondência com
Madeleine, os caligramas ditos da guerra dão continuidade ao tipo de composições
poéticas e visuais ou ideogramas líricos que publicara entre 1913 e 1914 na revista
de arte e de crítica que então dirigia, Les Soirées de Paris. Com esses poemas visuais
Apollinaire procurava dar poeticamente a ideia de simultaneidade, na sequência da
simultaneidade tipográfica dos manifestos de Marinetti.
Quer no caso de Apollinaire, que descreve em Caligrammes a guerra como
um “fogo de artifício de aço”6 quer no de Gaudier-Brzeska, amigo de Amadeo de
Souza-Cardoso,7 quer ainda no de Mário de Sá-Carneiro, encontramos o testemunho
da guerra directa ou indirectamente vivida sem que isso altere as práticas de
vanguarda e as concepções de antes da guerra. É porque uma continuidade entre a
guerra e as formas é pressuposta que Amadeo de Souza Cardoso, em carta de 1915
a Robert Delaunay, escreve: “Que charmosa é a guerra […] confesso-lhe o meu
pesar em estar tão longe. Gostaria de a sentir mais próxima e vivê-la directamente.
[…] Precisamos de alguma coisa mais forte – sou militarista!”8
Mário de Sá-Carneiro, por sua vez, numa carta a José Pacheco, compara a atmosfera
da cidade à que procurou descrever no seu conto “O Homem dos Sonhos”: “Paris da
Guerra é hoje, à noite – cidade do Homem dos Sonhos. Tudo mistério em volta: vago,
9 Idem: 250
10 SÁ-CARNEIRO, M., 2001: 135-136.
11 Orpheu, edição fac-similada, Contexto, 1994, p.9
12 .Mário de Sá-Carneiro “Paris e a Guerra – ‘A Restauração’ entrevista o escritor Mário de Sá-Carneiro, há
pouco chegado de Paris. As suas impressões sobre ‘A Cidade’ nos dias de mobilização” (2010: 653).
Orpheu e a Guerra 493
16 Por exemplo, as várias versões conhecidas de uma carta nunca enviada publicadas sob o título genérico
“Carta a um herói estupido” em PESSOA, F., 1978: 193-206
17 PESSOA, F., 2013: 221 (“Dissertação a favor da Alemanha”).
Orpheu e a Guerra 495
ideal grego”18 poderá vir inspirar no plano político a reconstrução do antigo conceito
de cidade-estado numa Europa unificada sob o seu domínio. Na qualidade de pagão
moderno, Mora não pretende no entanto tomar parte activa no conflito, tanto mais
que, a seu ver, uma derrota da Alemanha precipitaria de outro modo um reencontro
da Alemanha com o seu paganismo original pelo correlativo enfraquecimento do seu
espírito imperialista que é a doença da nacionalidades fortes. Quer no caso de uma
vitória, quer no de uma derrota desta, será sempre no âmbito da cultura alemã que
se dará o regresso à realidade concreta em detrimento da noção abstracta e idealista
da mesma. O pensamento de Kant, impregnado de cristianismo e responsável pela
centralização da realidade na alma, teria afastado a Alemanha dos princípios pagãos
que subsistiam originariamente na sua cultura, mas cujo regresso se anuncia já na
guerra em curso.
Curiosa é também, pelo que nos ensina da posição de Pessoa sobre o imperialismo,
a condenação por Mora da hipocrisia dos franceses dos ingleses, respectivamente,
“os mercadores de escravos da Argélia, e os bárbaros da Índia e do Transval”19, que
apontam as crueldades germânicas com os dedos cheios de sangue. Ela terá uma
equivalência em “Ultimatum” onde se fala de um Portugal com “vergonhas naturais
em África”, cuja participação na guerra se explica sobretudo pela necessidade de
preservar o império colonial.
Naquele momento da Europa que antecede a guerra, momento a que a crítica
Marjorie Perloff se referiu como futurista por excelência20, nem Pessoa, nem
Apollinaire dispensavam a tradição literária e artística, como pretendiam os futuristas
ou como se pode ler em alguns manifestos vorticistas de Blast, nomeadamente os
assinados por Wyndham Lewis. Nem Pound, apesar de em muitos aspectos ter estado
mais próximo do movimento futurista do que quis admitir.21 Pound comparava a
escultura modernista de Brzeska com as antigas esculturas de pedra dos Egípcios
e com os antigos bronzes da China. Este exemplo é elucidativo do facto de Pound,
como aliás, Pessoa, ter sempre tido dificuldade em admitir que o novo, o inaudito, o
inesperado, fossem, por si mesmo, um valor em arte.
Pessoa manifestava já em privado uma certa distância relativamente ao que
descrevia como os excessos das vanguardas, nomeadamente a rejeição do passado
18 Idem: 225
19 Idem: 210
20 PERLOFF, M., 2003.
21 Marjorie Perloff escreve que a relação do vorticismo e do futurismo é mais estreita do que certas afirmações
de Pound contra Marinetti deixam entender uma vez que estas teriam sido ditadas sobretudo pela atitude
nacionalista agressiva das vésperas da guerra.
496 100 Orpheu Patrícia Soares Martins
pode encontrar uma arte antiga digna desse nome. Com a autonomia do estético
que resulta, entre outros factores, da crise da representação e do abstracionismo, a
arte das Américas, da Ásia e da África, antes desconsiderada, é agora exibida como
uma prova de que a sensibilidade e o pensamento precedem a representação do
mundo. Neste contexto, está fora de questão uma representação dos horrores da
guerra usando os mesmos meios artísticos que as vanguardas procuravam enterrar.
Quando Gaudier-Brzeska, após três meses nas trincheiras escreve “As minhas ideias
sobre a escultura permanecem inalteradas”, está a ser fiel ao espírito das vanguardas.
Mas na realidade, uma das consequências da guerra parece ter sido provar, ao contrário
do que afirmava Marinetti, não o triunfo da arte de vanguarda, mas o regresso de uma
concepção representativa da arte: Em Ultimatum, Álvaro de Campos desmentindo
Marinetti, escreve: “Agora a arte é o ter ficado Rodin”26.
Marinetti, num manifesto aos estudantes italianos em 1915, apelava à participação
na guerra como modo de pôr fim, pela força, ao esteticismo nas artes, consequência de
um intelectualismo de ideias de origem germânica, antipatriótico e internacionalista,
que causa uma estúpida hipertrofia cerebral, ensina o perdão, anuncia a paz
universal num mundo em que a única guerra admissível é a das ideias. O futurismo,
pelo contrário, pretendia introduzir brutalmente a vida na arte (“vuole introdurre
brutalmente la vita nell’arte”) combater o ideal de uma estética “estática, decorativa,
efeminada, preciosa”, opondo-lhe “o instinto, a força, a coragem, o desporto e a
guerra”. Marinetti apresenta a simbiose da arte e da guerra numa imagem: “Le mani
sporche per aver scavata la trincea, pronte alla penna, al remo, al timone, al volante,
allo schiaffo, al pugno, al fucile”27. Parece claro que este compromisso com a vida,
com a acção, visava em primeiro as concepções estéticas das gerações anteriores e
em particular as do simbolismo (Marinetti cita Baudellaire, Mallarmé, Verlaine,
Carducci, Pascoli, D’Annunzio). O texto termina com seguintes palavras elucidativas:
“Il Futurismo dinamico e agressivo si realiza oggi pienamente nella grande guerra
mondiale che – solo – previde e glorificò prima chè scopiasse. La guerra attuale è il
piu bel poema futurista apparso finora.”28
Dois anos depois da publicação deste manifesto de Marinetti, o Ultimatum de
Álvaro de Campos, publicado em 1917 em Portugal Futurista, sobretudo na sua
primeira parte, que consiste numa enumeração de tudo o que se pretende abolir,
incluindo nomes de políticos europeus e dignatários da guerra e de escritores
ice.berg s.o.s titanic titan-tan tan-tan tantania lusitania s.o.s wanderbilt u35 berlim kronprinz
prussia kaiser 300 hp+42 krupp canet 72 joffre 38 goritza 914 neo-salvar-sen europa
super-dreadnought monitor alta-tensão perigo de morte ∞ martinica panama exposition
universelle tour Eiffel coupe internationale des motor-cars mercedes benz the cruzaders
rugby jeffriesjohnson duncan scott polo-sul petrogrado nijinski polonia marne front poilus
reims kodak nordisk gallito & belmonte carranza zeis zeppelin taube tank zenith quadrado
azul viva k4 bravo salvas morteiro terra estampido rachar marte funeraes mysterio herança
fortuna beleza gloria viva quadrado azul José de Almada-negreiros europa.29
32 Idem: 37
33 Idem: 37
34 PESSOA, F., 2005: 235.
500 100 Orpheu Patrícia Soares Martins
Bibliografia
Há imagens que ficam tatuadas na nossa memória sem uma razão aparente. Na
minha ficou, sem que tenha ainda descoberto a misteriosa razão, a imagem de um
programa televisivo com o estranho nome de Zip Zip e de um homem não menos
estranho de nome Almada Negreiros. Era eu criança, andava nos primeiros anos da
escola, num tempo em que as crianças raramente viam televisão, ocupadas como
estavam então as crianças a ser crianças, sem preocupações de atingirem o topo da
excelência e dos rankings ou de virem a ser futuros empresários de sucesso. Sei apenas
que essa imagem me fez ficar presa ao ecrã.
Lembro-me do corpo esguio, do rosto anguloso, marcado pelas rugas, da linha
fina e curva que nele fazia as vezes de lábios. Da estranheza das suas palavras
cheias de ressonâncias, pairando no ar, enigmáticas, cortantes. Lembro-me dos
silêncios profundos, misteriosos como florestas ou um rumor de búzio. Lembro-me,
sobretudo, de uns olhos grandes e penetrantes, escondidos por trás dos óculos, da
força magnetizante do seu olhar. Creio que foi esse olhar que me fez ficar parada em
frente do ecrã, sentada sobre o tapete da sala, pernas cruzadas, como se viajasse num
tapete mágico para um mundo desconhecido.
Só anos mais tarde viria a descobrir quem era o mago dos olhos grandes saído
das mil e umas noites televisivas para hipnotizar o meu olhar de criança. Evocar esse
olhar mágico que para sempre me marcou é, antes de mais, a minha forma de prestar
homenagem a Almada e o ponto de partida para uma ou duas breves notas de reflexão.
No prefácio que escreveu para a edição do primeiro volume das Obras Completas
de Almada Negreiros, Jorge de Sena afirmou em tom provocador que “uma das
necessidades absolutas (…) da poesia portuguesa” do século XX é “descobrir o Orpheu
de 1915, de vez em quando”1. Desde logo, pelo que Orpheu significara de desconhecido,
de complexo e de mudança radical no panorama literário português2, mas também
pelo que de futurante, de desafiador (de mais projectivamente desafiador, diria)
Orpheu continha. Se essa era já uma necessidade absoluta no século XX, muito mais
necessária se torna neste momento em que celebramos o seu centenário, num novo
século e num novo milénio.
Procurando corresponder ao desafio lançado por Jorge de Sena, proponho assim
(re)descobrir Orpheu a partir da deslocação da perspetiva habitual, aquela que
tem como centro do enfoque a figura de Fernando Pessoa e o fulgor da sua criação
heteronímica. Não para questionar ou de algum modo pôr em causa o lugar de Pessoa
na aventura órfica, mas para nela recentrar a figura de Almada. Uma mudança de
perspetiva que nos permite de alguma forma interrogar sobre que leitura faríamos
hoje de Orpheu se nele tivesse ocupado um lugar central (mais central) o poeta e
artista plástico Almada Negreiros? Que caminhos de modernidade trilharia Orpheu?
É certo que a não-centralidade de Almada Negreiros na geografia de Orpheu não
se terá ficado apenas a dever ao brilho ofuscante de Pessoa. Ela deve-se igualmente
à estranheza da linguagem almadiana, ao escândalo e à irreverência iconoclasta
do futurista que ousou afrontar, em mais de um momento, o lepidóptero burguês,
deve-se à redução de um autor multifacetado à faceta de artista plástico, como se
deve ao facto de Almada não ter sabido (ou não ter querido) gerir a sua produção
artística, de nunca se ter preocupado com a publicação da sua obra poética muito
menos com a teorização, divulgação ou marketing literários (ao contrário de Pessoa).
Deve-se ainda ao facto de um poema central do modernismo português, A Cena
do Ódio, que deveria ter saído no terceiro número de Orpheu (não editado), só ter
sido publicado na íntegra já tardiamente, em 1958, na antologia Líricas Portuguesas,
organizada, justamente, por Jorge de Sena. Isto apesar de Pessoa ter definido Almada
Negreiros, logo em 1915, como um “homem de génio em absoluto, uma das grandes
sensibilidades da literatura moderna”.3
Tomo assim como ponto de partida para esta reflexão a leitura de Jorge de Sena, para
quem Almada Negreiros foi aquele que “desde o início representava uma linguagem
nova”4, o mais ousado e coerentemente vanguardista de todos os de Orpheu, aquele
que, pela sua própria actividade artística plural, melhor corporizava o diálogo
perfeito entre as letras e as artes plásticas. No momento em que o vendaval Orpheu
varria a sociedade e o panorama cultural português, inaugurando um Modernismo
cosmopolita, “uma arte-todas-as-artes”5, desnacionalizada, marcada pela rasura de
fronteiras entre géneros e pelo hibridismo de linguagens, Almada Negreiros era já o
nome que mais se aproximava desse ideal.
sobretudo uma provocadora forma de o seu autor exigir, enquanto português, “uma
pátria que [o] mereça” e de exortar os portugueses a “criar a pátria portuguesa do
século XX”8. O futurismo foi um breve fogacho em Almada, como o foi, de resto, nos
outros companheiros de Orpheu.
Não admira, por esse motivo, que nas comemorações dos cinquenta anos da revista,
Almada tenha sublinhado o facto de “os de Orpheu” serem meros companheiros do
acaso, sem uma verdadeira identidade de grupo ou artística, de comum tendo apenas
“uma mesma não-identidade” ou um “mesmo escorraçar comum que a vida nos fazia.9”
Uma ideia que retoma na entrevista do Zip Zip10 (a que entretanto voltei) ao referir-se
a uma “mesma desgraça”, a desgraça de se encontrarem “todos suspensos do mesmo fio
de nos faltar território”. Ao mesmo tempo que vê em Orpheu um “monólogo” plural,
uma não-identidade, Almada esforçar-se-á desde o início (importa sublinhá-lo)
por construir e afirmar a identidade singular da sua voz. Isso mesmo no-lo dirá em
“As quatro manhãs”, texto que se configura como autobiografia deste “eu” poético:
“Quando cheguei aqui / o que havia estava no fim/ e o que estava no fim e o que
estava por vir /andava disperso pelo sonho de alguns.” “Eu tive d’inventar-me um
génio discretíssimo”11.
Diria que o projeto mais vanguardista de Almada passa por este inventar-se um génio
discretíssimo e com ele o inventar-se uma linguagem pessoalíssima, diferentíssima,
nascida de uma voz singularíssima e da destruição do passado, da destruição do que
nesse passado era convenção, norma artística, solidez racional ou conforto burguês.
Um projeto de construção de uma genealogia e identidade artísticas no qual terá um
papel fundamental o “martelo” niilista, como lembra o próprio Almada em carta
dirigida ao redator do Diário de Lisboa na sequência do comício do Chiado Terrasse:
“Quando entrei em casa, a seguir ao comício intelectual, abri o Zarathrusta, Frederico
Nietzsche tinha entretanto escrito com o próprio punho: “tu deves ser o martelo, eu pus
o martelo na tua mão!
8 NEGREIROS, A., 1993: 37. Publicação original, Portugal Futurista (1982: 36; 38).
9 “Orpheu”. In: NEGREIROS, A., 1993: 169.
10 Cf. www.youtube.com/watch?v=xEfcJowGZgs
11 NEGREIROS, A., 1985: 187-190. O poema tem a indicação de que foi composto de 1915 a 1935.
12 NEGREIROS, A., 1993: 51. Diário de Lisboa, 21 de Dezembro de 1921.
“Lápis e linhas para desenhar uma flor de nome Almada” 507
“Quando digo Eu não me refiro apenas a mim, mas a todo aquele que couber dentro do jeito
em que está empregado o verbo na primeira pessoa”13.
Existo, logo sou.Para afirmar com tal violência o seu eu – como o faz, quase adolescente,
no frenético Ultimatum Futurista –, para se instalar no centro do mundo, era preciso, antes,
ter sido negado com simétrica violência. Em suma, era preciso ter sentido, por assim dizer,
na carne, aquele Ódio teatral e teatralizado que dedica a uma sociedade que o negava por
orfandade ou abandono. Almada ressentiu, antes de reflectir, que 1+1= 1, isto é, que a vida é
solidão radical de que não se pode sair senão saltando a pés juntos por cima dela, convertendo
a noite em dia, dizendo “sim” ao mundo por conta própria. (…) Pessoa podia passar a vida
a regressar ao “outrora feliz” que, afinal, sempre tinha tido; Almada parece ter passado a sua
a inventar a infância roubada, a constituir o lugar matricial da ingenuidade, a imaginar o
diálogo maternal abolido, apenas começado. Em suma, sem o saber muito bem e sabendo-o
cada vez melhor, Almada apoiado no seu mito pessoal, transfigurá-lo-á em invenção da
Modernidade enquanto vontade de origem e de originalidade, já inscrita, de diversa maneira,
por Rimbaud e Nietzsche na dinâmica da cultura europeia14.
aquilo que Gustavo Rubim chamou a “permanente encenação” que nela se joga, onde
o “lugar do sujeito é desde sempre o lugar dos outros e onde, por isso mesmo, não se
pode nem se deseja ser mais que actor e personagem”15.
Invenção ou inventar-se são assim palavras-chave do projeto de Almada, aquelas
que melhor dizem ou traduzem a ideia de construção do novo depois da destruição
niilista. Inventar-se significa, neste contexto, construir-se de raiz uma identidade
poética, atribuir-se uma genealogia e uma geografia familiares, como aquela que
transparece dos quadros-fragmentos que compoem “A Invenção do Dia Claro”
(1921), onde Almada se inventa a mãe que (quase) não conheceu, a memória de uma
cumplicidade que não chegou a existir, a infância e um tempo que não viveu, uma
casa a que não pertenceu. Um lugar matricial.
“Mãe! ata as tuas mãos às minhas e dá um nó-cego muito apertado! Eu quero ser qualquer
coisa da nossa casa. Como a mesa. Eu também quero ter um feitio, um feitio que sirva
exactamente para a nossa casa como a mesa.
Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça! quando passas a tua mão na minha cabeça é tudo
tão verdade!”16
Inventar-se significa, desta forma, criar-se uma linguagem diferente, capaz de dizer
a pureza de um mundo original, mesmo se este “eu” tem plena consciência de que
todas “as palavras já foram inventadas”. Para Almada, “Nós não somos do século de
inventar as palavras. As palavras já foram inventadas. Nós somos do século de inventar
outra vez as palavras que já foram inventadas”17.
O que significa depurar as palavras, de as libertar do peso semântico depositado por
séculos de racionalismo, de corroer e fazer explodir pelo “ódio” futurista a bienséance
linguística,” as convenções sociais e artísticas, as narrativas tradicionais, a começar
pela narrativa histórica, como acontece em A Cena do Ódio18:
“Tu, que tens a mania das Invenções e das Descobertas /e que nunca descobriste que eras
bruto,/ e que nunca inventaste a maneira de o não seres…/ Tu que consegues ser cada vez mais
besta/ e a este progresso chamas Civilização! /Vai vivendo a bestialidade na Noite dos meus
olhos,/ vai inchando a tua ambição-toiro/ ‘té que a barriga te rebente rã.”
Para Almada, trata-se de encontrar palavras que desconstruam a ciência dos livros
(“E de que serve o livro e a ciência /se a experiência da vida/ é que faz compreender
a ciência e o livro?”), que promovam o des-pensamento como única via de acesso à
vida e ao mundo. Trata-se de re-aprender a olhar o mundo, de re-inventar as palavras
que permitem dizer a respiração da terra, das fontes, das árvores como se fosse a
primeira vez; de descobrir ou inventar a inocência da linguagem (numa espécie de
primitivismo que então ia rasgando novos caminhos nas artes plásticas) através de
uma aproximação à oralidade, à criatividade popular, nomeadamente desconstruindo
ou reescrevendo aforismos, rimas e imagens, dotando essa linguagem de uma
densidade e profundidade poética e simbólica inesperadas que exigem decifração,
adesão e colaboração interpretativa do leitor. Essa a griffe indelével e única da sua
escrita: a invenção de uma linguagem tão simples e ao mesmo tempo tão intensa
como o gesto infantil de desenhar uma flor:
“Pede-se a uma criança que desenhe uma flor. A criança vai sentar-se no outro canto da sala
onde não há mais ninguém. Passado algum tempo o papel está cheio de linhas. Umas numa
direcção, outras noutras; umas mais carregadas, outras mais leves; umas mais fáceis, outras
mais custosas. A criança quis tanta força em certas linhas que o papel quase que não resistiu.
Outras eram tão delicadas que apenas o peso do lápis já era demais. Depois a criança vem
mostrar essas linhas às pessoas: Uma flor! As pessoas não acham parecidas estas linhas com as
de uma flor! Contudo, a palavra flor andou por dentro da criança, da cabeça para o coração
e do coração para a cabeça, à procura das linhas com que se faz uma flor, e a criança pôs no
papel algumas dessas linhas, ou todas. Talvez as tivesse posto fora dos seus lugares, mas, são
aquelas as linhas com que Deus faz uma flor!”19
“Cada português terá que ser mais português do que nunca em face do espanhol mais espanhol
do que nunca e sobretudo, portugueses e espanhóis teremos que ser mais portugueses e
espanhóis do que nunca, em face do alemão mais alemão do que nunca, do inglês mais inglês
do que nunca, do francês mais francês do que nunca, do italiano mais italiano do que nunca,
do russo mais russo do que nunca, enfim, de todo e qualquer povo mais nacional hoje do que
ontem, mais ele mesmo hoje do que nunca”.23
Bibliografia
Almada Negreiros
Negreiros, Almada (1985). Obras Completas, Vol. I (Poesia). Lisboa: Imprensa
Nacional-Casa da Moeda.
Negreiros, Almada (1992). Obras Completas, Vol. V (Ensaios). Lisboa:
Imprensa Nacional-Casa da Moeda.
Negreiros, Almada (1993). Obras Completas, Vol. VI (Textos de Intervenção).
Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda.
Sudoeste: Cadernos de Almada Negreiros (edição fac-similada; pref. de Nuno
Júdice). Lisboa: Contexto, 1982.
Gerais
Calvino, Italo (2009). O Barão Trepador. Lisboa: Teorema.
Centauro (edição facsimilada; prefácio de Nuno Júdice). Lisboa: Contexto Editora,
1982.
Correia, Natália (2015). “Não percas a Rosa”, Diário e algo mais (25 de Abril
de 1974- 20 de Dezembro de 1975), org. de Vladimiro Nunes. Ponta Delgada:
Ponto de Fuga.
Dix, Steffen (org.) (2015). 1915 - O ano de Orpheu. Lisboa: Tinta da China.
Lourenço, Eduardo (1992). “Almada, Ensaísta?”. In: Negreiros, Almada, Obras
Completas, Vol. V (Ensaios). Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda.
Mateus, Isabel Cristina (2011). “Sob o signo de Goya: diálogos ibéricos em
torno do(s) Modernismo(s)”. Diálogos Ibéricos sobre a Modernidade (org.
Xaquín Nuñez Sabarís). Braga: CEHUM, Universidade do Minho.
Mourão-Ferreira, David (1989). Sob o mesmo tecto: Estudos sobre autores de
língua portuguesa. Lisboa: Editorial Presença.
Orpheu 1 (3ª reedição; introdução de Maria Aliete Galhoz). Lisboa: Ática, s/d.
Pessoa, Fernando (1999). Correspondência 1905-1922, Lisboa, Assírio & Alvim.
Pessoa, Fernando (s/d). Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Lisboa: Edições
Ática.
Rubim, Gustavo (1990). “As palavras em cena”. In: Público, Leituras, 28 de Agosto.
Portugal Futurista (edição fac-similada; pref. de Nuno Júdice). Lisboa: Contexto,
1981.
Sena, Jorge de (1985). “Almada Negreiros poeta” (Introdução). In: Negreiros,
Almada, Obras Completas, Vol. I. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda.
Zip Zip, Programa RTP, 24 de Maio de 1969, 1ª emissão, entrevista de Raul Solnado
a Almada Negreiros (www.youtube.com/watch?v=xEfcJowGZgs)
O Contributo de Armando Côrtes-Rodrigues
para a revista Orpheu
Vai entrar imediatamente no prelo a nossa revista, “Orpheu” […]. Não nos falte. Seria para
nós um grande desgosto que a revista aparecesse sem v. colaborar. Naturalmente teremos
ocasião de publicar umas 6 páginas suas […]. Mande quanto original v. possa, excedendo
bastante o necessário […]. Mande o mais interseccionista que tiver” (Carta de 19 de
Fevereiro de 1915).
Introdução
Vai entrar imediatamente no prelo a nossa revista, “Orpheu” […]. Não nos falte. Seria para
nós um grande desgosto que a revista aparecesse sem v. colaborar. Naturalmente teremos
ocasião de publicar umas 6 páginas suas […]. Mande quanto original v. possa, excedendo
bastante o necessário […]. Mande o mais interseccionista que tiver” (PESSOA, F., 1959,
96-97).
Digo-lhe isto para demonstrar o valor de todas essas notas e cartas que forneci a Joel
Serrão para que as publicasse precedidas de um ensaio completo sobre a personalidade de
Fernando Pessoa. Se as tivesse comigo, dar-lhe-ia pormenores muito mais interessantes do
que tudo o que lhe posso dizer agora (Ib., 2).
Fomos apontados a dedo, troçados nas revistas do ano e olhados com certa desconfiança
pelos frequentadores dos cafés, tantas vezes “A Capital” reclamava a nossa presença em
O Contributo de Armando Côrtes-Rodrigues para a revista Orpheu 517
Rilhafoles. Lisboa inteira saboreou êsse escândalo de meia duzia de rapazes que se atreveram
a abrir uma janela para entrar ar fresco e sol na atmosfera bafienta da literatura de então
(Ib., 3).
Ele é que que foi, de facto, a alma, o espírito criador de todo o movimento de Orfeu. Ninguém
mais simples, mais acolhedor, menos dogmático do que êle, de uma tolerância que bem
podia servir de exemplo em certos partidarismos de escolas literárias. Mas ao mesmo tempo
ninguém mais misterioso do que êle, o grande poeta incompreendido, ganhando a vida a
escrever à máquina nos escritórios comerciais (Ib, 5).
A colaboração no Nº 1 de Orpheu
[…] um profundo conceito da vida, diverso em todos os três, mas em todos gravemente
atento à importância misteriosa de existir. E por isso não são sérios os Paúis, nem o seria o
Manifesto interseccionista de que uma vez lhe li trechos desconexos. Em qualquer destas
composições a minha atitude para com o público é a de um palhaço. Hoje sinto-me afastado
de achar graça a esse género de atitude (PESSOA, F., 1959, 76).
2. A colaboração no Nº 2 de Orpheu
ao movimento de Orfeu e colaborei nos dois números dessa revista, mas no segundo com o
nome de Violante de Cisneiros, nome aliás escolhido por Fernando Pessoa para uma série
de poesias líricas que lhe apresentei, o que me livrou no exame das fúrias do Dr. Adolfo
Coelho contra os poetas futuristas (CÔRTES-RODRIGUES, A., 1945, 6).
Só o pharol é real!
A treva nunca tem fim,
Ó sensação infinita,
- Sou já só Pharol de Mim! (Ib., 123).
A vida é só o Espirito
Que vai da propria Linha
Á sombra d’elle num traço (Ib., 124).
O Contributo de Armando Côrtes-Rodrigues para a revista Orpheu 521
O Contributo de Armando Côrtes-Rodrigues para a revista Orpheu 523
Viver, sentir, olhar e sonhar o mundo é o registo da vida, expressa pelo sujeito
feminino, no poema dedicado ao Sr. Armando Côrtes-Rodrigues. Mas, em contraste
com este registo, o sonho desempenha uma função real dentro de si própria:
Só em Mim me concretiso,
E o Sonho da minha vida
Nesse sonho o realiso,
E sempre de Mim Presente,
Todo o Meu ser se limita
Em Eu Me Ser Real (Ib.).
Conclusão
L., in MARTINS, F. C., 1994, 5). Pelo contrário, considera a revista “um exílio de
temperamentos de arte que a querem como a um segredo ou tormento” (Ib.), de
acordo com um “ideal esotérico e bem nosso de nos sentirmos e conhecer-nos” (Ib.).
De qualquer modo, como sublinha José Augusto Seabra, em referência ao Orpheu
mítico, paira sobre ele o “destino trágico, de que a liberdade é face”, como um “número
iniciático e fatal”: “Dir-se-ia que, adiando o olhar derradeiro sobre Eurídice, ele se
interditou e ao mesmo tempo assumiu, diferindo-a, a própria morte, inscrevendo o
infinito no finito” (SEABRA, J. A., 1983, III).
Côrtes-Rodrigues, assumindo, já em 1945, a diversidade de estilos que marcou a
sua obra, não deixa de a reconhecer como sua, ainda que inspirada em específicos
momentos e preocupações. A dupla colaboração prestada à revista Orpheu
inscreve-se na estética vanguardista que se enquadra na fase juvenil, em consonância
com os ideais compartilhados com os amigos da sua geração. O ideal cimeiro da
escrita poética domina e resume todo o seu labor:
Entendo com Jean Wahl que “la poésie est la plus haute du journal d’un poète». Assim tenho
escrito todos os meus livros. Cada um representa um momento determinado da minha
sensibilidade. E quando olho para trás e penso no que publiquei e ainda tenho escrito em
casa, tomo sempre para mim aquelas palavras de Moreau: “Dieu m’est témoin que suis un
vrai poète. Malheureusement je ne suis que cela” (CÔRTES-RODRIGUES, A., 1945, 9-10).
Bibliografia
Marisa Mourinha
Università Degli Studi di Perugia
1 Em 1984 a Ática publica um volume compilado por Arnaldo Saraiva, com o nome de Orpheu III.
526 100 Orpheu Marisa Mourinha
Em Março de 1915, o mundo já tinha visto Proust – mas não Eliot; já tinha visto
Joyce – mas não Breton. Já se afundara o Titanic, mas não o Lusitania2. Em Março de
1915, a Grã-Bretanha impõe um bloqueio naval à Alemanha; partem os primeiros
navios para o ataque aos Dardanelos. Em Abril do mesmo ano dá-se o primeiro
ataque com gás. Em Maio, a Itália entra na guerra. Ao mesmo tempo, já haviam sido
publicados os principais manifestos futuristas: Marinetti funda, em 1905, a revista
Poesia, em Milão; o seu Manifesto Futurista é publicado em 1909 pelo Le Figaro.
Fernando Pessoa vinha d’A Águia, onde se estreara em 1912. Sobre isto, escreve
Cleonice Berardinelli, a partir da análise da troca de correspondência entre Pessoa e
Sá-Carneiro:
2 Du côté de chez Swann sai em 1913; a primeira edição de Prufrock and Other Observations sai em 1917; Joyce
começa a publicar em 1907, mas o primeiro marco importante é Dubliners, que sai em 1914; o primeiro
Manifesto Surrealista é de 1924; o Titanic afundou em 1912, o Lusitania foi afundado por um torpedo em Maio
de 1915, e este episódio revestiu-se de grande importância simbólica.
Efemérides: e depois de Orpheu? – recepções, repercussões, reverberações 527
É neste contexto que surge a revista Orpheu, como resposta a esta sede de Europa – a
revista esteve para chamar-se Europa:
Lusitânia foi uma primeira proposta, Europa aquela que, segundo Pessoa, “esteve mais
próximo de realizar”, no formato de “uma revista pequena”, para a qual terá iniciado um
Manifesto (Pessoa, 1986: 1324).
A ansiedade em torno do tema torna-se cada vez mais intensa na mesma medida em que os
de Orpheu vão descobrindo em si e nas suas obras a força e coesão necessárias ao projecto.
A 20 de Junho de 1914 Sá-Carneiro conclui que “depois de tudo isto, meu Amigo, mais
do que nunca urge a Europa!... “(Sá-Carneiro, 2006: 109). Sensivelmente um mês mais
tarde, em carta de 27 de Julho, Guisado evidencia essa ansiedade crescente: “Quando forem
necessários os 1.500 você bem sabe que é só dizer. A Europa é absolutamente necessário que
saia e o mais breve possível” (Pessoa, 1996: 206). (SOUSA, R., 2011: 36)
A intenção, desde o início, era agitar; o projecto nunca se pensou duradouro, como
se percebe deste excerto de uma carta de Sá-Carneiro a Pessoa: «A sua ideia sobre a
revista entusiasma-me simplesmente. É, nas condições que indica, perfeitamente
realizável materialmente, disso mesmo me responsabilizo. Claro que não será uma
revista perdurável. Mas para marcar e agitar basta uma meia dúzia de números»
(SÁ-CARNEIRO, M., apud SOUSA, R., 2001: 36).
Pessoa chegou aliás, a certo ponto, a considerar produzir simplesmente uma antologia:
3 «Sou um dos directores da revista trimestral de literatura Orpheu. Não sei se V. Ex.ª a conhece; é provável que
não a conheça. Terá talvez lido, casualmente, alguma das referências desagradáveis que a imprensa portuguesa
nos tem feito. Se assim é, é possível que essa notícia o tenha impressionado mal a nosso respeito, se bem que
eu faça a V. Ex.ª a justiça de acreditar que pouco deve orientar-se, salvo em sentido contrário, pela opinião dos
meros jornalistas». (PESSOA, F., 1999: 184-185)
528 100 Orpheu Marisa Mourinha
Resta explicar o que é Orpheu. É uma revista, da qual saíram já dois números; é a única
revista literária a valer que tem aparecido em Portugal, desde a Revista de Portugal, que foi
dirigida por Eça de Queirós. A nossa revista acolhe tudo quanto representa a arte avançada;
assim é que temos publicado poemas e prosas que vão do ultra-simbolismo ao futurismo.
Falar do nível que ela tem mantido será talvez inábil, e possivelmente desgracioso. Mas o
facto é que ela tem sabido irritar e enfurecer, o que, como V. Ex.ª muito bem sabe, a mera
banalidade nunca consegue que aconteça. Os dois números não só se têm vendido, como
se esgotaram, o primeiro deles no espaço inacreditável de três semanas. Isto alguma coisa
prova – atentas as condições artisticamente negativas do nosso meio – a favor do interesse
que conseguimos despertar. (PESSOA, F., 1999: 184-185)
Orpheu é assim um lugar de exílio, porto seguro para sujeitos cuja sensibilidade os
distingue dos demais... Em vez de Europa, nome que estabelecia e enfatizava a ligação
com o resto do mundo, o grupo acaba por escolher o nome de Orfeu (e, recordemos,
que foi uma ideia do próprio Montalvor), onde ressoa o exílio, o tormento, a hipótese
de descida aos infernos... mas também o «princípio aristocrático» de que esta élite
Efemérides: e depois de Orpheu? – recepções, repercussões, reverberações 529
se sentia investida – e, acima de tudo, este é um nome com espaço para «o seu ideal
esotérico», a dimensão iniciática que o projecto acaba por ter.
A codificação que, trinta anos depois, fará Almada, coloca a tónica na questão da
vanguarda, sentindo-se parte desta élite artística e intelectual cujo papel se resumia
muito a fazer-se ouvir: «Orpheu era uma consequência fatal de determinados
portugueses, desligando-se dos outros portugueses, porém ligados entre si pela
mesma fé na élite de Portugal» (NEGREIROS, J. A., 1935: 1)
O texto de Almada Negreiros no Diário de Lisboa (1935) é importante porque
possui já alguma distância – e é interessante verificar o quanto, vinte anos depois,
ainda ressoa as mesmas premissas expostas no primeiro número por Montalvor;
além de que parece ser esta primeira efeméride que a sociedade oferece a Orpheu:
assinalando os vinte anos da saída do primeiro número da revista, o director do
Diário de Lisboa (onde de resto já há anos Almada e os seus tinham voz) dirige um
convite «ao colaborador de Orpheu que assina estas linhas» (id.: ibid.). E, como Pessoa
fizera anos antes, ao escrever a Camilo Pessanha, também Almada “explica” Orpheu;
mais elíptico que Pessoa, nunca chega a dizer textualmente «é uma revista»; mas ecoa,
como Pessoa fizera vinte anos antes (nomeadamente nas cartas a Cortes Rodrigues
e a Camilo Pessanha), o escândalo, para eles conotado com êxito, que o projecto
provocara na sociedade de então: «O escândalo que o aparecimento de Orpheu
produziu no público, foi e ficou inédito na vida literária portuguesa. Portugal leitor,
de norte a sul, delirava de regozijo, exactamente como se cada português tivesse sido
o achador daqueles loucos à solta!» (id.: ibid.)
«Loucos à solta» era exactamente a imagem que queriam dar «os de Orpheu» –
sobretudo depois que Pessoa e Sá-Carneiro tomaram em mãos a direcção; sintoma
disso é a inclusão, no segundo número, do soneto de Ângelo de Lima, que, como dirá
Pessoa em 1935, «não sendo nosso, todavia se tornou nosso» (AA.VV., 1935: 3).
Focando-se no escândalo que provocou a revista, detém-se Almada a analisá-lo:
Foi essa a reacção mais viável encontrada pelos leitores de Orpheu para justificar o incómodo
que a revista lhes causou lá em seus ripanços.
Não tinha sido tão conscientemente que fizéramos tais rivais. Não os tínhamos adivinhado
tão concretos. Pelo contrário, julgávamos os erros que atacávamos e a rotina que queríamos
romper como defeitos de nós todos, mais do que apenas de alguns que se sentiram lesados
no seus prestígios.
Mas, não é verdade que parece extraordinário uma revista literária ter o condão de fazer
saltar dos seus respectivos buracos tanta gente sensata, indignada com tal emprego das
palavras?!
[...]
530 100 Orpheu Marisa Mourinha
Mais extraordinário parecerá ainda quando se disser que Orpheu era exclusivamente
literário, que não tinha o mais pequeno vislumbre político, que não era como os jornais e
revistas literárias portuguesas da actualidade, nas quais é afinal a política que se mascara de
letras – Orpheu era honradamente literário!
Sem programa, a não ser o de reunir autores, assim se fez Orpheu. Todos autores e sem
chefes, o que de verdade só é possível entre gente de Arte.
[...]
A razão de Orpheu era profundamente aristocrática, não no seu efémero sentido de sangue,
mas na sua verdadeira essência de valores. (NEGREIROS, J. A., 1935: 1)
Com efeito, as reacções foram veementes e imediatas, desde a polémica n’A Capital4
que Pessoa celebra em carta a Cortes-Rodrigues5, à – chamemos-lhe assim – polémica
Dantas: em Abril desse ano (ou seja, pouco depois da saída do primeiro número do
Orpheu), sai na Ilustração Portuguesa um artigo assinado por Júlio Dantas6, com o
título «Poetas Paranóicos»:
Alguns rapazes, com muita mocidade e muito bom humor, publicaram, há dias, uma revista
literária em Lisboa. Essa revista tinha apenas de notável a extravagância e a incoerência de
algumas, senão de todas as suas composições. Como a recebeu a imprensa diária? Com o
silêncio que merecia? Com as duas linhas indulgentes e discretas que é de uso consagrar
às singularidades literárias de todos os moços? Não. A imprensa recebeu essa revista
com artigos de duas colunas – na primeira página. A imprensa fez a essa revista um tão
extraordinário réclame, que a primeira esgotou-se e já se está a imprimir a segunda. Ora
semelhante atitude está longe de ser inofensiva ou indiferente. Em primeiro lugar, consagra
uma injustiça fundamental; em segundo lugar, favorece e prepara uma selecção invertida.
Eu bem sei que o réclame a certas obras é às vezes feito à custa da veemente suspeita de
alienação mental que pesa sobre os seus autores. Mas neste caso, como em outros muitos, é
justo confessar que os loucos não são precisamente os poetas, mais ou menos extravagantes,
que querem ser lidos, discutidos e comprados; quem não tem juízo é quem os lê, quem os
discute e quem os compra. (DANTAS, J., 1915: 481)
4 Ver, por exemplo, “Os poetas do Orpheu”. In A Capital, Lisboa, 6 de Julho de 1915.
5 Carta a Armando Côrtes-Rodrigues de 4 de Abril de 1915 (PESSOA, F., 1985: 63).
6 Júlio Dantas licenciara-se em Medicina com uma tese intitulada Pintores e poetas de Rilhafoles, publicada em
1900 pela Livraria Editora Guimarães, Libânio e C.ia.
Efemérides: e depois de Orpheu? – recepções, repercussões, reverberações 531
Madness had great symbolic weight for the 1915 generation and was a constant theme in the
work of its major poets, Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, and Almada Negreiros.
It was used not only as a clownish metaphor of avant-garde iconoclasm, but also as a more
profound sign of the crisis of the modern subject. (ROCHA, C., 2013: 420)
A autora continua, citando referências à loucura na poesia de Campos e na prosa
de Sá-Carneiro e analisando, depois, mais em detalhe, a poesia de Ângelo de Lima;
mas não menciona este poema de Almada Negreiros («Reconhecimento à Loucura»),
que diz mais do que qualquer página de crítica:
Se o projecto de Orpheu teve a força que teve foi, quanto a nós, pelo que não teve
de programático; foi por ser, como diz Almada no texto do Diário de Lisboa acima
citado, «exclusivamente literário», «honradamente literário».
532 100 Orpheu Marisa Mourinha
Orpheu acabou? Orpheu continua: embora o número 3 nunca tenha visto a luz do
dia, o arco do ímpeto modernista (ou moderno, sem -ismos) estava assestado: em
1916, é dado à estampa o Manifesto Anti-Dantas7; em 1917 sai o primeiro (e único)
número de Portugal Futurista.
Por muitos considerado o terceiro efectivo número de Orpheu8, Portugal
Futurista reunia participações de Santa-Rita Pintor, Almada Negreiros, Amadeu de
Souza-Cardoso; traduções de Marinetti, Boccioni, Carrà, Russolo e Severini; textos
em francês de Raul Leal, Apollinaire e Blaise Cendrars; poemas de Sá-Carneiro
(cuja morte não o impede de participar do projecto); e Fernando Pessoa tem uma
participação dupla, com «Episódios» e «Ficções do Interlúdio» (ortónimos), e o
«Ultimatum», assinado por Álvaro de Campos. Também aqui, à semelhança do que
sucedia com Orpheu, «há diversas tendências que se sobrepõem, confundem, ou até
divergem» (SENA, J., 1988: 77).
Ainda em 1915, arranca a Contemporânea, de José Pacheco, cuja publicação se
interrompe abruptamente, para depois encontrar uma estabilidade, publicando
regularmente entre 1922 e 1926. Sobre ela, dirá Pessoa, numa carta de 1928 a
Cortes-Rodrigues: «É, de certo modo, a sucessora de Orpheu. Mas que diferença!
Que diferença!» (apud LOURENÇO, 1988: 28)
Na revista Athena, dirigida por Fernando Pessoa e Ruy Vaz (e da qual saíram
apenas cinco números, entre Outubro de 1924 e Fevereiro de 1925), serão publicados
textos de autores modernistas (alguns dos quais autores de Orpheu – aliás o número
dois é dedicado a Sá-Carneiro), mas também muito material do próprio Pessoa, tanto
literário como crítico – que ele assina, quer como ortónimo, quer como Campos
(já publicado em Orpheu, teve desde o início também uma produção ensaística ou
crítica), publicando também poemas dos seus heterónimos Reis e Caeiro. De Athena
dirá Seabra (SEABRA, 1996: 206) ter sido «uma metástase» de Orpheu.
Sudoeste teve o seu primeiro número em Junho de 1935, e o seu sub-título
(«Cadernos de Almada Negreiros») não deixava margem para dúvidas quanto à
paternidade e à filosofia do projecto. Inicialmente previsto como mensal, o segundo
número acabou por sair só em Outubro. O número 3, de Novembro, volta a encarnar
9 Já Almada Negreiros em 1916 assinava o Manifesto Anti-Dantas «Poeta de Orpheu, Futurista e tudo»
(NEGREIROS, J. A., 2006: 7)
534 100 Orpheu Marisa Mourinha
o foi» (NEGREIROS, J. A., 2006: 9), cuja marca foi de tal modo profunda que o seu
eco continuou a reverberar ao longo do século – e depois disso.
Almada, no seu texto de 1935, coloca, como já vimos, a questão em termos nacionais:
«Orpheu era uma consequência fatal de determinados portugueses». E continua: «As
suas personalidades vinham já esclarecidas o bastante para uma dignidade comum,
por isso mesmo éramos portugueses sem sermos nacionalistas, nem regionalistas,
nem indigenistas. Queríamos apenas o mais difícil dos títulos portugueses: sermos
portugueses simplesmente!» (NEGREIROS, J. A., 1935: 1) Esta postura – que pode
facilmente ser lida à luz da tendência futurista para o ímpeto patriótico – não deixa
de ser curiosa, tanto mais que se tratava de um projecto luso-brasileiro. Mas Almada
não vê contradição, e ele próprio explica, mais à frente:
Bibliografia
Bibliografia Activa
AA.VV. (1915) Orpheu - Revista Trimestral de Literatura (Março de 1915). Lisboa:
Orpheu, Lda.
Efemérides: e depois de Orpheu? – recepções, repercussões, reverberações 535
Bibliografia Passiva
BERARDINELLI, Cleonice (1988). «Ínclita geração, altos artistas». In
LOURENÇO, Eduardo, et al. Fernando Pessoa no seu tempo. Lisboa:
Presidência do Conselho de Ministros, Secretaria de Estado da Cultura,
Biblioteca Nacional.
DANTAS, Júlio (1915). «Poetas Paranoicos». In Ilustração Portuguesa. Lisboa, 19
de Abril.
LOURENÇO, Eduardo, et al., (1988). Fernando Pessoa no seu tempo. Lisboa:
Presidência do Conselho de Ministros, Secretaria de Estado da Cultura,
Biblioteca Nacional.
PEREIRA-RUIVO, Albertina (2004). «La genèse du sensationnisme. Lettres de
Sá-Carneiro e Fernando Pessoa». In PENJON, Jacqueline (org.). Boîte aux
lettres. Paris: Presses Sorbonne Nouvelle.
ROCHA, Clara (2013). «Modernist magazines in Portugal: Orpheu and its
legacy». In BROOKER et al (org.), The Oxford Critical and Cultural History
of Modernist Magazines: Europe 1880 – 1940. Oxford: Oxford University
Press.
SEABRA, José Augusto (1996). Mensagem. Poemas esotéricos. Edição crítica. Paris:
ALLCA XX.
SENA, Jorge de (1988). «Tentativa de um panorama coordenado de literatura
portuguesa – 1901 a 1950». In Estudos de Literatura Portuguesa II. Lisboa:
Edições 70.
SOUSA, Rui (2011). Os bastidores de Orpheu. Visões dos do grupo a respeito do
seu tempo e do seu projecto. Lisboa: CLEPUL.
O Modernismo no Romance Português, ou o Terceiro Modernismo como
Modernismo Tardio
Marcelo G. Oliveira
Universidade Europeia / CLEPUL
pese embora a eclética diversidade presente no seu âmbito – não há um mas vários
modernismos, como a própria heteronímia pessoana bem demonstra –, o termo
modernismo viria a impor-se enquanto categoria ex post facto abarcando ambas as
tendências.
A mera utilização de um termo que tem na sua base o conceito de moderno, por
seu lado, aponta para questões importantes ao nível da periodização. A longa história
do conceito, herança do latim tardio, e da sua relação com a literatura, tal como
seminalmente exposta por Hans Robert Jauss (JAUSS, H. R., 2005), aponta para o facto
de, a um novo período, corresponder necessariamente a emergência de uma nova
configuração temporal. Assim sendo, e enquanto categoria periodológica, o termo
modernismo, antes de mais, apontaria não para correntes ou práticas específicas mas
para uma distinta articulação de temporalidades – uma configuração que, retomando
os termos da célebre formulação de Baudelaire, pode ser descrita como uma tensão
antitética entre a noção de eterno, de imutável e a transitoriedade e efemeridade da
vida moderna. Com efeito, embora equacionando esse eterno de formas distintas,
tanto o modernismo em sentido restrito como as vanguardas conduziriam a uma
consciência intensificada do presente justamente por manterem a relação antitética já
anteriormente patente na conceção de modernité de Baudelaire.
A distinção entre modernismo e vanguarda no âmbito do próprio modernismo
revela-se, na verdade, crucial para a sua periodização, nomeadamente para a
distinção entre um primeiro modernismo, associado aos membros de Orpheu, e
um segundo, tradicionalmente ligado à presença. Embora a consideração de uma
«contra-revolução» operada pelos membros desta, para utilizar a clássica expressão
de Eduardo Lourenço (LOURENÇO, E., 1987: 143), seja, naturalmente, excessiva –
como, de resto, viria a ser reconhecido pelo próprio autor (LOURENÇO, E., 2003:
93) –, os impulsos vanguardistas do primeiro modernismo ficariam em grande
medida adormecidos durante o que Fernando Guimarães considera ser um «período
intervalar que corresponde aproximadamente ao tempo que decorre entre os anos 20
e 40» (GUIMARÃES, F., 2004: 12), aspeto desde logo patente na conhecida apreciação
negativa de José Régio de movimentos vanguardistas como o Futurismo, o Dadaísmo
ou o Expressionismo.
A referência de Fernando Guimarães a este «período intervalar» surge no âmbito
de uma consideração sobre as possibilidades abertas pelo primeiro modernismo que
seriam posteriormente retomadas por uma «segunda vanguarda», ou seja, por uma
terceira fase do modernismo cujos contornos começariam a tornar-se nítidos na
«década de 50» e para a qual a influência do tardio movimento surrealista português
teria sido fulcral. Óscar Lopes havia já explicitamente considerado este «terceiro
modernismo», associando-o ao «heterogéneo vanguardismo do pós-guerra» (LOPES,
O Modernismo no Romance Português, ou o Terceiro Modernismo como Modernismo Tardio 539
O., 1990: 92) e a ele se referindo, numa outra passagem do mesmo texto, como o
modernismo «dos anos 40-50-60» (LOPES, O., 1990: 88). Luís Adriano Carlos, por
seu lado, vinculará o conceito à geração dos Cadernos de Poesia, que estabeleceria
uma relação não mediada com o modernismo inicial de Orpheu (CARLOS, L. A.,
2002: 240-242) cujas repercussões se fariam sentir, «em todas as suas derivas, dos
mestres de 40 aos epígonos de 70» (CARLOS, L. A., 2004: xv).
Também Ana Hatherly, adotando a perspetiva alargada de Malcolm Bradbury e
James McFarlane, proporia a consideração deste «terceiro modernismo» nos seguintes
termos:
tais como as exibidas pelos membros de Orpheu e da presença, bem como a apreciação
de eventuais mutações em percursos autorais individuais, revela uma acuidade crítica
e um potencial produtivo que não devem ser subestimados.
Salvo observações pontuais, comum a todas as propostas acima referidas é a sua
manifesta ênfase na poesia, em claro detrimento da prosa de ficção. Ao considerarmos
a produção ficcional deste longo período, particularmente no que respeita ao romance,
a legitimidade de uma distinta categoria periodológica com base no conceito de
modernismo, associável nomeadamente às décadas de 1950, 1960 e 1970, ganha
nitidez. Essa fora já, de resto, a intuição inicial de Eduardo Lourenço no seu clássico
ensaio «Uma Literatura Desenvolta, ou os Filhos de Álvaro de Campos», inicialmente
publicado em O Tempo e o Modo em Outubro de 1966, pese embora a desconsideração
do termo «neomodernismo» para qualificar as obras em apreço (LOURENÇO, E.,
1994: 258). Debruçando-se sobre a literatura produzida em Portugal de 1953 (data de
publicação de A Sibila, de Agustina Bessa Luís) a 1963 (Rumor Branco, de Almeida
Faria), com especial foco para a produção ficcional, Eduardo Lourenço salienta a
vitalidade e desenvoltura desta «Nova Literatura», referindo-se ao fenómeno singular
que constitui o aparecimento no período analisado de «um número considerável de
obras particularmente brilhantes […] obras de um tom e de uma estrutura afins»
(LOURENÇO, E., 1994: 256). Sucessores desse «terramoto espiritual em contínua
expansão que se chamou Álvaro de Campos» (LOURENÇO, E., 1994: 260), os
autores referidos (entre eles Agustina Bessa-Luís, Ruben A., José Cardoso Pires,
Fernanda Botelho, Augusto Abelaira, Almeida Faria ou Maria Judite de Carvalho),
revelariam como característica comum uma «neutralidade ética inegável, ou antes,
indiferença ética profunda» perante os «valores que informam a nossa efectiva e ainda
actuante mitologia espiritual portuguesa» (LOURENÇO, E., 1994: 266). Embora A
Sibila represente para Eduardo Lourenço a afirmação clara desta nova literatura, o
momento de viragem, segundo um texto posterior, teria tido lugar alguns anos antes,
em 1949, com a publicação de Mudança, de Vergílio Ferreira, placa giratória que inicia
o afastamento do autor da matriz neorrealista que caracterizara os seus romances
anteriores e que o aproxima do existencialismo que distinguirá a sua obra futura,
abrindo um novo caminho para a literatura portuguesa de meados de novecentos
(LOURENÇO, E., 1994: 103).
O retomar de uma tradição iniciada pela geração de Orpheu servirá igualmente de
ponto de partida para a apreciação que Nelly Novaes Coelho e Maria Lúcia Lepecki
farão da ficção produzida em Portugal a partir da década de 50, salientando, porém, a
importância fundamental do movimento surrealista para o aparecimento dessa nova
literatura. Nas palavras de Nelly Novaes Coelho:
O Modernismo no Romance Português, ou o Terceiro Modernismo como Modernismo Tardio 541
Meteórico mas decisivo na abertura de novos caminhos, o Surrealismo faz a sua aparição
em Portugal em 1947 (simultaneamente com o ressurgimento do Surrealismo de Bréton em
Paris), através de um grupo de pintores, poetas e críticos, que se dissolveu dois anos depois,
após a realização da Exposição Surrealista em Lisboa.
É nesse momento que o «jogo», como elemento-chave da criação contemporânea, reentra
na prosa narrativa portuguesa, retomando certa linha interrompida no Modernismo de
1915: a da prosa da geração do Orpheu, com o Almada Negreiros de A Engomadeira, K4
Quadrado Azul, «Saltimbancos», etc., ou com o Mário de Sá Carneiro de Céu em Fogo e A
Confissão de Lúcio. (COELHO, N. N., 1973: 69)
Com efeito, só na década de 50 uma nova viragem se desenhará. Para isso contribuiu a
irrupção, aliás tardia em Portugal, do movimento surrealista. A complexidade perseguida
pelos presencistas no campo psicológico transformar-se-á, com o Surrealismo, em
complexidade da própria função imaginativa, a qual, em parte sob o seu impulso, se há-de
converter, ao acompanhar as derivas da escrita, num discurso assumidamente transgressivo,
marcando, assim, o aparecimento de uma nova vanguarda que se fixa num experimentalismo
conseguido mediante a fuga ao estatuto das formas ficcionais ou, como acontece sobretudo
na poesia, do campo unilateralmente significativo da linguagem. (GUIMARÃES, F., 2004: 12)
torna manifesta, reflexo de uma configuração temporal onde o eterno se revela como
o polo antitético de um presente incerto e transitório onde o sentido de totalidade se
encontra ausente. Com efeito, o que encontramos nas obras dos escritores que efetuam
a viragem do romance português na década de 50 é precisamente a constatação
dessa ausência e a resultante busca de um sentido no mundo suspenso que lhes é
apresentado, demanda que ocorrerá a par de uma aguda consciência da manifesta
improbabilidade de o encontrar. Conscientes da queda anunciada pelo modernismo
inicial, eles persistiriam, todavia, com o esforço de procura de uma unidade de
antemão sentida como definitivamente perdida, encetando uma inovadora busca por
novas formas de expressão que afastariam definitivamente o romance português da
sua herança oitocentista.
Num outro estudo (OLIVEIRA, M. G., 2012), denomino de modernismo tardio
o período correspondente a esta nova fase. Mas talvez seja conveniente recordar que
o termo – ao filiar as obras abrangidas no modernismo, salientando o seu carácter
necessariamente diverso face à produção dos membros de Orpheu justamente
por lhes serem posteriores1 – não implica, de todo, uma fase degenerescente do
modernismo. Pelo contrário, o que então se verifica é a uma verdadeira profusão
de obras profundamente inovadoras que transformarão definitivamente o romance
nacional. Dada a consideração, por certos autores, do neorrealismo como um
terceiro modernismo, a designação «modernismo tardio» – de resto, a mais
utilizada a nível internacional após a ascensão do pós-modernismo – afigura-se a
mais adequada, nomeadamente ao permitir uma frutífera reapreciação da produção
literária portuguesa das décadas em apreço e a sua mais nítida diferenciação tanto de
tendências anteriores como posteriores.
Em termos periodológicos, a consideração desta fase, que se prolongaria até à
década de 70, converge com a apreciação de um terceiro modernismo poético nos
estudos anteriormente referidos. Os anos 40, anos da Segunda Guerra Mundial e
do seu desenlace, com a continuação da influência da presença, a implantação do
neorrealismo, o despontar de nomes associados aos Cadernos de Poesia e a fulgurante
irrupção do movimento surrealista em Portugal, seriam o caldeirão de onde surgiria
uma literatura profundamente inovadora que, sem responder a rótulos simplistas,
marcaria de forma indelével as décadas seguintes: primeiro tentativamente, nos anos
50, uma década mais inclinada «a continuar» do que «a romper» (ANTUNES, M.,
1987: 182); depois, nos anos 60, acentuando as tendências mais transformacionais do
seu intrínseco modernismo.
1 A própria institucionalização da obra de Pessoa, com a sua publicação pela Ática, a partir de 1942, assinalaria
de modo indiscutível o carácter póstumo da situação cultural que então se vivia.
544 100 Orpheu Marcelo G. Oliveira
Bibliografia
1.
Pode dizer-se, citando um pouco obliquamente Fernando Pessoa,1 que a estética
modernista portuguesa, se não começou em absoluto, pelo menos se desenvolveu
e aprofundou essencialmente com a amizade entre este poeta e outro: Mário de
Sá-Carneiro.
A correspondência enviada pelo autor de Dispersão – na sua maior parte de Paris – é
um importante testemunho dessa amizade “leal e forte” que, para além de uma relação
ímpar, verdadeira correspondência de almas que lhes permitia compreenderem-se
sem esforço, viabilizou a definição e a consolidação das inúmeras opções estéticas que
tornaram efeverscente a segunda década do século XX.
Os dois volumes que compõem estas cartas, trocadas ao longo de três anos e
meio,2 documentam esse percurso estético seguido em conjunto pelos dois poetas,
permitindo-nos acompanhar toda a gestação do modernismo e dos vários ‘ismos’
1 Mais propriamente Álvaro de Campos, autor do “Prefácio para uma Antologia de Poetas Sensacionistas” que
se inicia assim: “O Sensacionismo começou com a amizade entre Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro.
Provavelmente é difícil destrinçar a parte de cada um na origem do movimento e, com certeza, absolutamente
inútil determiná-lo. O facto é que ambos lhe deram início” (PESSOA, F., s/d: 155).
2 Entre 20 de Outubro de 1912 e 18 de Abril de 1916. Nesta correspondência, Sá-Carneiro vai anotando em
pormenor estados de alma relacionados com o projectar da sua obra, fragmentos ou primitivas versões desta,
novidades sobre o agitado meio cultural parisiense que transmite a Pessoa, comentários aos textos, opiniões e
acontecimentos de que, de Lisboa, Pessoa lhe dá notícia.
548 100 Orpheu Ana Nascimento Piedade
2.
A primeira manifestação pública – embora não publicamente assumida enquanto
tal – sintomática de que alguma coisa iria mudar radicalmente no panorama das letras
3 O autor de «Mensagem» ressente-se de toda esta agitação dispersiva, caracterizando-a como «excesso de
forças vivas em acção, conflito e evolução interconexa e divergente» (PESSOA, F., 1985: 34).
4 SÁ-CARNEIRO, M., 1978: 158.
“Orpheu ou «a única ponte entre Portugal e a Europa»” 549
5 Publicados, respectivamente, em A Águia, 2ª série, nº 4 e 5, Porto, Abril e Maio de 1912 e A Águia, 2ª série, nº
9, 11 e 12, Porto, Set., Nov. e Dez. de 1912.
6 Por sua vez sintonizado com o messianismo republicano então na ordem do dia.
7 PESSOA, F., 1986: 24 e 34.
8 Em “A nova poesia portuguesa no seu aspecto psicológico”, Pessoa propõe-se “perscrutar” qual a estética da
nova poesia, sublinhando que por estética “se não quer dizer as suas teorias de arte [...] mas o seu modo de ser
literário, a sua alma literária”. Cf. a análise deste texto pessoano que desenvolvemos em A Questão Estética em
Mário de Sá-Carneiro, Lisboa, Universidade Aberta, 1994, capítulo III, pp. 112-116.
9 PESSOA, F., 1986: 42.
550 100 Orpheu Ana Nascimento Piedade
3.
A segunda década do século XX foi, como se sabe, um período de intensa criatividade
em que a par de uma exigência de abertura e sintonia com as novas referências europeias,
se procurava uma assimilação desse esprit nouveau que mantivesse a especificidade da
alma literária nacional.
Recorde-se que a revista Orpheu se deveria afirmar como “a soma e síntese de todos
os movimentos literários modernos”15, europeus e portugueses naturalmente, surgindo
assim como o momento culminante de concretização de todos os ideais e teorias que
os órficos vinham ensaiando em prol desse “marvellous synthetic movement”, como lhe
chama Álvaro de Campos no “Prefácio” que redige em inglês “para uma Antologia de
Poetas Sensacionistas”.16
Ora, a “tarefa” do Movimento Sensacionista é, segundo Pessoa, “a da reconstrução
da literatura e da mentalidade nacionais”17, o que, entre outros aspectos, nos remete
para o fim criador-de-civilização de que esta Arte se declarava portadora. Tratava-se, por
outras palavras ainda de Pessoa, de revolucionar profundamente toda a literatura lusa,
4.
Para os poetas órficos, “ter um pouco de Europa na alma” - frase que Sá-Carneiro
destaca entusiasticamente numa das suas Cartas atribuindo-a a Pessoa - funcionava
praticamente como uma divisa pela qual todos os actos estéticos deveriam ser concebidos
com “carácter europeu”. Significativamente, Europa era, nessa altura, “a região civilizada
que da[va] o tipo e a direcção a todo o mundo”23, e tinha sido também o nome que
os dois amigos tencionavam dar a uma revista que em conjunto planeavam,24 ainda
antes de, no início de 1915, terem aceite o desafio de Luís de Montalvor para editarem a
revista trimestral chamada Orpheu25.
Não somos portugueses que escrevem para portugueses; [...] somos portugueses que
escrevem para a Europa, para toda a civilização; nada somos por enquanto, mas aquilo
que agora fazemos será um dia universalmente conhecido e reconhecido. [...] Não pode
ser de outra maneira, realizamos condições sociológicas cujo resultado é inevitavelmente
esse. Afastamo-nos de Camões, de todos os absurdos enfadonhos da tradição portuguesa e
avançamos para o futuro.29
5.
Em suma, os órficos consubstanciaram valores e atitudes fundamentais da
modernidade, tendo sido entre os portugueses testemunhos privilegiados da crise
geral de toda a civilização ocidental então em curso. Por isso, o mais amplo alcance
da missão indisciplinadora de Orpheu consistiu em criar civilização fazendo arte, e
fazê-la sobretudo em função de uma irrequieta busca de libertação dela mesma e
do ser-artista. Tal revelava a consciência, natural para o artista moderno e presente
nos nossos novos poetas, da implicação essencial existente entre a arte e a vida. Para
além disto, também a radicalidade da sua opção pela arte, essa “aceitação sem limites
da seriedade da poesia”, como disse Eduardo Lourenço, fez “a importância única da
geração do «Orpheu».”35
O seu «sê plural como o universo» reflecte a fragilidade e o niilismo de toda a
consciência moderna, verdadeiramente uma «consciência infeliz» ao descobrir a
absoluta imprevisibilidade essencial de tudo e, ainda, o sentimento de incerteza
infinita que a possibilidade - cada vez mais precária - de pensar a divindade ou
qualquer unidade não pode deixar de provocar.
Bibliografia
Por vezes, é difícil aceitar que alguém que consideramos sisudo, ou melhor, alguém
de quem se convencionou que era ‘pessoa’ unicamente cerebral, pudesse revelar uma
extraordinária veia de ludismo e jocosidade. Em boa verdade, a opinião massiva
que se tem de Fernando Pessoa é a de um pensador muito sério que passou a sua
vida a raciocinar sobre a vida, retirando dela máximas e/ou pensamentos de teor
fundamentalmente intelectual. Por essa razão é surpreendente embater-se numa
‘pessoa’ que escreve composições poéticas que remetem para aquela área do cérebro
que parece ser a que menos tem a ver com o raciocínio puramente formal.
Não obstante, é o que se poderia deduzir da seleção realizada por Georg Rudolf Lind
em 1965 – obra em seguida republicada –, isto é, um conjunto de quadras ao gosto
popular que deixam ver uma ‘pessoa’ diferente do Pessoa, chamemo-lo, ‘metafísico’.
Este não me parece o momento para demandar as motivações do Autor, nem
tampouco é profícuo para provar que se possa tratar de abandono da especulação
metafísica, cansaço do pensamento, ludicidade, ou de outras causas. O que posso fazer
é tentar entender por que razão Fernando Pessoa regressa, sobretudo nos últimos dois
556 100 Orpheu Maria da Graça Gomes de Pina
anos da sua vida, àquela variedade notável e incrível de modos lúdicos de abordar
o saber popular (embora eu queira tratar somente a temática do feminino),
aquele mesmo saber que parecia ter sido posto definitivamente de parte por ele,
após ter-se-lhe dedicado na juventude. Estaria Fernando Pessoa a modelar mais
um heterónimo, desta vez, um pouco mais próximo do seu povo e da sua forma de
expressão popular ou, pelo contrário, estaria ele a pôr em causa a função literária do
modernismo até aí defendida?
Fosse qual fosse a sua ‘verdadeira’ intenção, aqui não pretendo fixar as causas
que possam ter impelido Pessoa a escrever quadras (estaria a trabalhar sobretudo
de fantasia!), mas analisar as poucas em que o tema principal é um sujeito feminino
nomeado, isto é, as que são dedicadas a nomes próprios de mulheres, de onde emerge
a capacidade altamente jocosa – sem contudo deixar de reenviar para a metafísica
do seu Autor – de fazer interagir qualidades e modos de expressão populares com a
soturnidade que caracteriza o pensamento poético pessoano.
O envelope que Georg Rudolf Lind acabou por descobrir naquele famoso baú
do qual parecem sair não os males de Pandora, mas a fantasia de Pessoa (ambos,
porém, guardando no fundo a esperança), continha algumas singelas quadras de
1907 e de 1908, o que significa composições de um jovem autor que tudo deixava
entrever menos uma tendência a um pensamento infundido de metafísica, sobretudo
para quem nunca tivesse tido contacto com o poeta. Todavia, a grande maioria das
quadras encontradas, quando datadas, são dos últimos dois anos de vida do Autor, a
saber, 1934 e 1935, ou seja, de um período em que os heterónimos pessoanos estavam
amplamente formados e definidos.
Tudo isto levanta, como é óbvio, alguns problemas de difícil solução, para não
falar da impossibilidade de conseguir enquadrar esse novo estilo no corpus pessoano.
Razão pela qual Lind afirma que:
Não há dúvida que a quadra popular, na sua singular manifestação portuguesa, representa
uma das formas primárias, em cujo domínio o cantor popular e o poeta culto se podem
reencontrar. Compondo quadras, Fernando Pessoa quis entreter-se, certamente, pondo mais
uma máscara, desta vez a do poeta popular, e renunciando deliberadamente à expressão
individualista da sua alma proteica (PESSOA, F., 1965:10).
em torno delas, o nosso Autor não deixa de unir precisamente o individualismo com
a multiformidade que contradistingue o seu pensamento.
Poderíamos chamar a isto um jogo da velhice, vendo-o como o entendia o
Ateniense – personagem das Leis de Platão –, quando afirmava que dar a volta às leis
era um divertimento saudável idóneo à terceira idade (III 685A), pois que nessa altura
a alma já estava bem definida e educada.
Todavia, as leis podem ser muitas (e não falo só das normas políticas pelas quais
se rege a sociedade humana), tanto assim é que, no caso em apreço, as podemos
interpretar também como leis no que concerne à composição poética.
Levando ao extremo esta analogia, o que Fernando Pessoa estaria a fazer é pôr em
ato um simples jogo da velhice, daqueles que deliciam e intrigam os espíritos bem
consolidados e educados, isto é, operar uma remodelação das normas de construção
– possivelmente – e de funcionalidade – certamente – das quadras.
Contudo, a analogia poderia tornar-se ainda mais esquizofrénica, se pensarmos que
nas quadras selecionadas, 9 no total, o Autor não só parodia os nomes de mulheres,
como também extrai, com esse jogo, algumas características que revelam quer o
castiço da construção poética popular, quer o matiz culto da poesia lírica. Dessas nove
quadras, quatro são dedicadas unicamente ao nome Maria, duas a Dona Rosa, uma a
Maria das Dores, uma a Maria da Graça e uma a Maria da Piedade.
Ora, é sabido que o nome Maria representa na cultura portuguesa, e não só, o
nome por excelência do sexo feminino. Até há bem poucas décadas, era inusual
encontrar em Portugal mulheres que não tivessem o nome Maria inserido algures
entre os seus nomes próprios, e se não o tinham, decerto alguma parente próxima o
possuía. De maneira que, sendo a mulher por antonomásia Maria, mesmo quem não
tenha esse nome acaba por ser Maria igualmente. Portanto, quando Pessoa escreve
três quadras dedicadas a Maria, na verdade está a dedicá-las a todas as mulheres e ao
mesmo tempo a retirar delas aspetos curiosos do que chamamos feminilidade. Eis os
primeiros três casos. Reservo o quarto para o fim deste excurso.
Maria, se eu te chamar,
Maria, vem cá dizer
Que não podes cá chegar.
Assim te consigo ver (p. 50).
Estas três quadras centradas no nome de ‘Maria’ tocam, a meu ver, três aspetos
diferentes da relação homem-mulher.
Na primeira, o Autor foca sobretudo o desejo que o sujeito poético tem de voltar
a ver a mulher que cobiça, onde, todavia, a reciprocidade do desejo de rever-se é
deixada em aberto de propósito, pois, como se mostrará, estas quadras pretendem,
de certa forma, chamar a atenção para uma malícia ínsita e própria do sexo feminino.
O jogo de significantes reside portanto na contraposição entre os verbos vir e chegar.
O sujeito poético pede a Maria que venha dizer-lhe, ao seu chamamento, que não
pode vir, mas para lho comunicar, terá de vir igualmente. O paradoxo da significação,
tão ao gosto do pensamento pessoano, serve justamente para, através de um simples
trocadilho, mostrar que, por meio do engano linguístico, se cria a oportunidade de
rever a pessoa desejada, mesmo que esta possa não querer encontrar-se com o sujeito
poético! Possibilidade essa dada pelo verbo conseguir que exprime a realização do
objetivo primário, isto é, ver Maria de novo: «Assim te consigo ver».
A segunda das quadras dedicadas a Maria foca o desinteresse (como se verá, só
aparente) do sujeito poético pelo paradeiro de Maria. Um desinteresse que inicia por
uma expressão bastante ríspida em relação às andanças dela – «Quero lá saber» – e
que deixa intuir um grande ressentimento relativamente ao que ela possa ter feito
estando ausente. De maneira que o terceiro verso da quadra – «Nunca faz bem quem
se esconde...» – poderia ser uma espécie de ‘manipulação’ do provérbio Quem se
esconde de mim não é bom para mim (MACHADO, J. P., 2011: 544), porém, só parte
dele abraça o sentido do verso, pois o sujeito poético, apesar de acusar Maria de não
agir bem por não o fazer às claras, acaba, no final, por revelar a imensa curiosidade
pelo seu paradeiro, que ao início se mascarava de puro desinteresse.
A terceira, e por ora última, quadra a Maria, mais do que tocar a nota do desejo
ou da acusação, como penso que fazem as anteriores, fala de um encontro, muito
possivelmente secreto, entre amantes. Os primeiros dois versos iniciam com a
chamada de atenção a Maria, dada pela repetição anafórica do imperativo Olha, talvez
por um descuido atribuído à distração: o leque esquecido e o cabelo solto são indícios de
que Maria se encontra em desalinho e podem, por conseguinte, fazer com que alguém
perceba a razão que a levou a achar-se naquele estado. Por esse motivo, o sujeito poético
reprova-a por estar distraída e por não prestar a devida atenção a pormenores altamente
reveladores. Com efeito, diz-lhe «toma sentido!» e ameaça-a de não regressar.
Pessoa(s) por trás das quadras 559
És Maria da Piedade,
Pois te chamaram assim.
Sê lá Maria à vontade,
Mas tem piedade de mim (p. 70).
Tu és Maria da Graça,
Mas a que graça é que vem
Ser essa graça a desgraça
De quem a graça não tem? (p. 70)
O modernismo não veio, ao contrário do que se tem pensado, liquidar com brutalidade
uma literatura que se academizava. Não é esse o papel das revoluções em arte: elas não
trazem em si uma função de morte, mas sim uma função de vida. O regresso à infância é
um símbolo de começo e não um signo de fim.
ponto de partida ou para as origens. Fernando Pessoa faz precisamente isso: serve-se
da estrutura das composições mais próximas do cancioneiro popular, como se quisesse
regressar à infância da poesia portuguesa. Será que, ao fazê-lo, está a abandonar a
linha de pensamento modernista pela qual sempre se norteou, ou está simplesmente
a melhorá-la e a torná-la mais abrangente? Propendo para a segunda hipótese, pois
considero que de certa forma regressar a esse tipo de composição poética é mais
um modo que o Autor encontrou para se reinventar. Mas não só se reinventa como
inventa também o modo de olhar para o feminino, no caso em apreço.
Quem são, portanto, estas Marias de quem se fala? Trata-se, a meu ver, de mais três
aspetos do género feminino que ganham conotações particulares quando conectadas
ao sentido do segundo nome em apenso a ‘Maria’.
O primeiro caso, o da piedade, e o terceiro, o das dores, são duas quadras que
aparentemente contêm uma mensagem que aponta para a exposição dos atributos
corriqueiros que se costumam dar à mulher vista como femme fatale. O último verso
da quadra dedicada a ‘Maria da Piedade’ – «Mas tem piedade de mim» –, que apela
para a magnanimidade de um gesto de Maria, deixa entrever precisamente esse aspeto
impiedoso do agir feminino. Falo de apelo porque é por meio deste que o sujeito
poético caracteriza Maria. Esta hipótese pode ser validada pelo verso anterior – «Sê
lá Maria à vontade» –, em que se pede a Maria que se mantenha tal, isto é, que guarde
a sua condição feminina, mas que não se sirva do seu atributo para a conservar, ou
melhor, de um atributo, dizia, que é usado para chamar a atenção justamente para o
seu valor contrário, isto é, a ausência de piedade em Maria.
Na mesma esteira segue a quadra dedicada a Maria das Dores. Também aqui o
sujeito poético aponta para a malícia feminina, especificamente no que diz respeito
ao facto de esta ser a causa do seu mal. As dores que Maria leva no seu nome acabam
por ser as mesmas que o sujeito poético sente pela confiança depositada mas não
respeitada: «[...] porque deste as dores / A quem quer que em ti se fia». De facto,
concordando no penúltimo verso «Tratam-te só por Maria. / Está bem, [...]» que
Maria seja só Maria, está a citar a mesma mensagem que passara na quadra dedicada a
Maria da Piedade, isto é, que abandone o seu segundo atributo, continuando, porém,
a ser Maria à vontade.
Fernando Pessoa dedica a Maria da Graça a última quadra que leva o nome Maria
unido a uma característica. Trata-se de uma composição bastante complexa porque
faz interagir os vários níveis de significação que o termo graça pode ter. Ligado ao
nome Maria, como explicitado no primeiro verso, ganha claramente o sentido de favor
divino. Maria da Graça é mais um dos nomes que o Catolicismo cunhou para marcar
os vários atributos da Virgem. Contudo, no segundo verso, resvala-se do sentido de
favor divino para o de benefício. O sujeito poético pergunta-se que benefício pode
Pessoa(s) por trás das quadras 561
obter de alguém que é a causa da desgraça de quem não tem a graça. Todavia, o último
verso é ambíguo, propositadamente ambíguo, não só porque o sentido de graça pode
ser plurívoco, como também é plurívoca a pessoa que a graça não possui. De facto, no
verso, a pessoa que não tem a graça pode ser entendida, a meu ver, quer como a Maria
da Graça do verso inicial, e assim a quadra se ligaria às outras duas supramencionadas,
onde o Autor realiza a inversão do significado das características a atribuir a Maria,
isto é, Piedade e Dores (Maria não tem piedade e Maria causa dores), razão pela qual
Maria da Graça não a teria e isso representaria uma desgraça, ou então, a pessoa a
quem falta a graça pode ser exatamente a que deseja Maria da Graça. Seja qual for a
interpretação pela qual optarmos, não faz uma grande diferença na substância, pois o
propósito de parodiar sobre o feitio feminino é plenamente alcançado.
Das quadras construídas para um nome próprio sobram-nos as duas dedicadas a
Dona Rosa.
Bibliografia
Bibliografia Ativa
PESSOA, Fernando (1965). Quadras ao gosto popular. Texto estabelecido e
prefaciado por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho. Lisboa: Edições
Ática.
PESSOA, Fernando (1986). Obra Poética e em Prosa. Organização de António
Quadros. Porto: Lello & Irmãos, vol. II.
PESSOA, Fernando (1999). Quadras populares. Selecção e introdução de Luísa
Freire. Lisboa: Assírio & Alvim-Câmara Municipal de Lisboa.
Bibliografia Passiva
LISBOA, Eugénio (1986). Poesia Portuguesa: do «Orpheu» ao Neo-Realismo.
Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 2a edição.
PLATONE (2005). Le Leggi. Traduzione di Franco Ferrari e Silvia Poli. Milano:
BUR.
PRISTA, Luís (1998). «Sombras e sonhos na fixação de quadras de Pessoa».
Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. N. 11. Lisboa: Colibri,
pp. 197-213.
RUSSO, Mariagrazia (2001). «Il colore e i suoi significati nell’opera di Fernando
Pessoa». In: CANCELLIER Antonella; LONDERO, Renata (a cura di). Atti
del XIX Congresso Associazione Ispanisti Italiani “Le arti figurative nelle
letterature iberiche e iberoamericane”. Padova: Unipress, pp. 275-90.
MACHADO, José Pedro (2011). O grande livro dos provérbios. Alfragide: Casa das
Letras, 4a edição.
SARAIVA, António José; LOPES, Óscar (2001). História da Literatura Portuguesa.
Porto: Porto Editora, 17a edição.
VILA MAIOR, Dionísio (1994). Fernando Pessoa: heteronímia e dialogismo.
Coimbra: Livraria Almedina.
VILA MAIOR, Dionísio (1996). Introdução ao Modernismo. Coimbra: Livraria
Almedina.
Intersecionismos:
Pessoa, o símbolo e o oculto
como a Pátria possível, construída num mundo “que não tem tempo ou espaço” e
onde vivem os mitos, os heróis, os profetas, o Poeta, o mar primordial da Poesia.
O presente trabalho, portanto, não propõe uma nova interpretação da aventura
heteronímica do poeta, já bastante esmiuçada, mas tão somente frisa como esse
“drama em gente”, ou “poetodrama” (para usarmos os achados do crítico-poeta
José Augusto Seabra), vivendo a sua particularíssima Saison en enfer, exacerbou o
conflito com os Outros que habitam e infiltram as frinchas do Eu, num paroxismo
da máxima de Rimbaud “Je est un autre”. Hugo Friedrich, ao acentuar a aceleração
do processo de desumanização do Eu na poesia do autor francês, é como se se
referisse a Fernando Pessoa ao afirmar que o eu-lírico de Rimbaud apresenta uma
“multiplicidade dissonante de vozes [...] [e] pode vestir todas as máscaras, estender-se
a todas as formas de existência, a todos os tempos e povos” (FRIEDRICH, H., 1991:
69). Tal multiplicidade, penso eu, pressupõe a noção de “Alquimia do verbo” e certo
“Desregramento consciente de todos os sentidos”, conquanto estes adquiram em
Pessoa conotações muito diferentes, diversas e distantes do uso que os surrealistas,
por exemplo, fizeram das antecipações de Rimbaud.
A seu modo, pois, o jogo poético assumido pelo lisboeta, a sua desintegração,
desumanização e despersonalização num complexo e dramático lance de dados talvez
possam ser lidos como a resposta radical de Pessoa à crise de amplo espectro que
está na essência mesma da modernidade. Crise de amplo espectro que vincara os
românticos alemães, Poe, Baudelaire e os melhores simbolistas, na sua tentativa de
apreensão analógica das realidades fugidias, ainda que a ironia – como contraponto
da analogia (pensando-se em Octavio Paz), ou como consciência da crise e da
impossibilidade humana de totalidade – rasure sempre a possibilidade intuitiva de
conhecimento e verdade.
Por isto, frise-se que os muitos aspetos da vasta galáxia pessoana – em que a prática
e a teoria da poesia, da prosa e do drama acentuam a plena inserção do poeta na
modernidade, bem como a consciência do fazer poético e o apreço pela palavra e pela
linguagem –, evidenciam também as suas raízes no fecundo chão simbolista. Assim,
este breve ensaio tentará seguir algumas águas sulcadas pela poliédrica nau pessoana,
talvez bêbada como o barco de Rimbaud, mas em segura busca do Livro absoluto
(ainda que em desassossego), tão sonhado por Mallarmé.
Portanto, em termos crítico-históricos, as complexas ressonâncias simbolistas na
poesia de Fernando Pessoa, temáticas, formais ou estéticas, já foram apontadas por
estudiosos do naipe de Eduardo Lourenço, Fernando Guimarães ou António Quadros.
Este último observa que “tem sido notado por críticos e historiadores da literatura
o hibridismo do movimento órfico: o simbolismo e o decadentismo constituem
importantes linhas de força e delas não são completamente independentes os mais
Intersecionismos: Pessoa, o símbolo e o oculto 567
Por seu turno, a problemática relação de Pessoa com sua época e com a heterodoxa
herança recebida está bem crivada nos seus textos doutrinários, como no conhecido
manuscrito de 1913 (presumivelmente) recolhido em Páginas de estética e de teoria e
crítica literárias, livro organizado por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho:
A arte moderna é arte de sonho. [...] Na Idade Média e na Renascença, um sonhador, como
o Infante D. Henrique, punha o seu sonho em prática. [...] Hoje o mundo exterior humano
é desta complexidade tripla e horrorosa [democracia, industrialismo e imperialismo]. Logo
no limiar do sonho surge o inevitável pensamento da impossibilidade. [...] O Mistério
morreu na vida [...] Desde que a arte moderna se tornara a arte pessoal, lógico era que o seu
desenvolvimento fosse para uma interiorização cada vez maior – para o sonho crescente,
cada vez mais para mais sonho (PESSOA, F., 1966: 156-157; grifo do autor; negrito meu).
568 100 Orpheu Antônio Donizeti Pires
Adiante, Pessoa ressalta o duplo caráter musical e visual do poeta moderno, numa
afirmação que justifica plenamente a sua produção da época, “O marinheiro” ou “Na
floresta do alheamento”: “o ‘quadro’, a ‘paisagem’ é de sonho, na sua essência, porque
é estática, negadora do continuamente dinâmico que é o mundo exterior” (id.: 158;
aspas e grifo do autor). Por isso, conclui, “o maior poeta da época moderna será o que
tiver mais capacidade de sonho” (id.: 160).
O mesmo texto apresenta os três caminhos que, na visão de Pessoa, foram
seguidos pela nova arte: a imersão na natureza e na vida (Whitman); a evasão, seja
pelo medievalismo (Rossetti, Verlaine), seja para lugares distantes e exóticos (Poe,
Baudelaire, Eugênio de Castro); e, em terceiro lugar, “[...] metendo esse ruidoso
mundo, a natureza, tudo, dentro do próprio sonho – e fugindo da ‘Realidade’ nesse
sonho. É o caminho português (tão caracteristicamente português) – que vem desde
Antero de Quental cada vez mais intenso até à nossa recentíssima poesia” (id.: 159;
grifos e aspas do autor).
O poeta de Orpheu elenca ainda as três características básicas do Simbolismo:
“uma decadência do romantismo; [...] um movimento de reação contra o cientismo;
um estádio na evolução (ou princípio duma evolução) de uma nova arte” (ibid.), e
acrescenta que “quem quiser compreender o simbolismo tem de contar com a sua
tripla natureza” (ibid.).
No mesmo livro há outros textos do poeta sobre a matéria, como um fragmento
em inglês, datilografado (talvez de 1914), intitulado “Clássicos, românticos e
decadentes”, em que se lê “simbolista” como sinônimo de “decadente”. Pessoa, apesar
de várias outras afirmações contraditórias e/ou negativas sobre o Simbolismo,
reconhece, em Páginas íntimas e de autointerpretação (citado por Fernando
Guimarães):
de teoria e crítica literárias, o que entende por “intelectualização duma emoção”, bem
explicada em cinco passos ao destinatário da carta:
Com Antero de Quental se fundou entre nós a poesia metafísica, até ali não só ausente,
mas organicamente ausente, da nossa literatura. Com Cesário Verde se fundou entre nós a
poesia objectiva, igualmente ignorada entre nós. Com Camilo Pessanha a poesia do vago e
do impressivo tomou forma portuguesa (PESSOA, F. apud QUADROS, A., 1989: 72; negrito
meu).
A referência a esses três tipos de poesia (de um lado, a poesia metafísica e a poesia
do vago e do impressivo, subjetivas; de outro, a poesia objetiva) é de suma importância
para se compreender a síntese a que chegou Fernando Pessoa: a fusão do objetivo e do
subjetivo; a intelectualização da sensação; a reflexão como parâmetro para a inspiração.
Enfim, como práticas do legado simbolista na obra pessoana podemos aduzir as
blagues vanguardistas do Paulismo e do Intersecionismo e alguns poemas que lhe
são correspondentes (“Impressões do crepúsculo – II”, “Hora absurda”, a série “Chuva
oblíqua”), ou o drama estático “O marinheiro” e a primeira fase do Livro do desassossego.
O Paulismo, primeira das blagues vanguardistas de Pessoa, deriva de “pauis”,
palavra que abre a segunda parte do poema “Impressões do crepúsculo” (“Pauis de
roçarem ânsias pela minh’alma em ouro... / Dobre longínquo de Outros Sinos...”),
escrito em 29 de março de 1913 e publicado no número único da revista A Renascença
570 100 Orpheu Antônio Donizeti Pires
– fevereiro de 1914. O Paulismo, que encontra a sua melhor definição no citado poema,
consiste num refinamento dos processos simbolistas, explorando a um só tempo,
desde o título, o vago, o complexo, o sutil, o evanescente, o indefinido. Dentre outras
características da estética paúlica, logo abandonada por Pessoa, estão: a violação da
sintaxe; a confusão do subjetivo e do objetivo – que terá outros desdobramentos no
Intersecionismo –; a associação livre de ideias; o uso das reticências e a suspensão de
pensamentos e sensações; o abuso das maiúsculas, que traduzem a carga espiritual de
certas palavras (“Tempo”, “Imperfeição”, “Foi”, “Eu” etc.); o vocabulário revelador do
tédio, do vago, da dilaceração existencial, do anseio por outros mundos. A segunda
parte de “Impressões do crepúsculo”, paúlica, em versos livres e rimas emparelhadas
(com exceção dos quatro últimos versos, onde as rimas se alternam), choca o leitor
porque, além da temática inusitada, destoa bastante da primeira parte do poema
(republicada em Athena 3, 1924), em quatro quartetos de versos redondilhos maiores e
sistema de rimas cruzadas nos versos pares: “Ó sino da minha aldeia, / Dolente na tarde
calma, / Cada tua badalada / Soa dentro da minh’alma” (PESSOA, F., 2012: 9-10). Um
outro exemplo paúlico pode ser apontado no poema “Hora absurda” (id.: 17-21), escrito
em 4 de julho de 1913 e publicado no primeiro e único número da revista Exílio (abril
de 1916), em que se lê o famoso verso: “Eu fui amado em efígie num país para além
dos sonhos...”
Já o Intersecionismo, definido por Pessoa como “o sensacionismo que toma
consciência de cada sensação ser, na realidade, constituída por diversas sensações
mescladas” (PESSOA, F. apud HATHERLY, A., 1979: 77), apresenta a mistura
consciente de presente e passado, sonho e realidade, paisagem interior e paisagem
exterior, abstrato e concreto etc., numa exacerbação de processos metafóricos,
sinestésicos e analógicos que partilha da exploração das correspondências caras
aos poetas simbolistas. Com a ressalva de que o Pessoa intersecionista está mais
preocupado em captar a complexidade de suas sensações pessoais, paradoxais, vagas
e fugidias, e menos as correspondências entre o mundo real, sensível, e o mundo
celeste, ideal, inteligível. Por outro lado, a desconstrução e reconstrução do real aparente
e a captação fragmentária do eu e do mundo (tão caras à modernidade) podem ser
comparadas aos processos da montagem cinematográfica e da colagem cubo-futurista,
preocupados com a exploração geométrica, poliédrica e multidimensional da vida,
do eu, do mundo e da pessoa humana. Como exemplo, a série de seis poemas
“Chuva oblíqua”, escritos na noite do dia triunfal de 8 de março de 1914, logo após
os “trinta e tantos poemas” (PESSOA, F., 1990: 53) do “Guardador de rebanhos”, e
cuja redação significou, conforme o poeta, “o regresso de Fernando Pessoa Alberto
Caeiro a Fernando Pessoa ele só” (ibid.). Outros exemplos intersecionistas, já se
disse, são o drama estático “O marinheiro” (escrito em 1913; publicado em Orpheu 1,
Intersecionismos: Pessoa, o símbolo e o oculto 571
1915) e aquela fase inicial do Livro do desassossego que foi considerada por Jorge de
Sena, segundo Leyla Perrone-Moisés, “[...] simbolista e esteticista, anterior à criação
dos grandes heterônimos” (PERRONE-MOISÉS, L., 1986b: 11-12). Conquanto,
em minha opinião (seguindo empós da senda aberta por Eduardo Lourenço), seja
simbolista todo o Livro do desassossego (composto por Vicente Guedes, por Bernardo
Soares ou pelo próprio Fernando Pessoa, que no desassossego trabalhou a vida toda).
“Livro-caixa, livro-sensação” (MOISÉS, M., 1998: 139-143); ou “livro em potência,
livro em plena ruína, livro-sonho, livro-desespero, antilivro” (ZENITH, R., 1999: 13),
o Livro do desassossego, em sua complexa, poliédrica e intercambiável estrutura de
poemas em prosa redondos e completos, reflexões estéticas, aforismos, esboços de
diário, narrativas em gérmen, fragmentos inconclusos etc., escrito numa prosa
impecável, clássica e ao mesmo tempo inovadora, decerto é mais um passo na busca
do Livro puro, espiritual e absoluto, tão sonhado por Mallarmé. Embora, ressalte-se,
tal pureza espiritual e absoluta não é mais possível no caso pessoano, uma vez que o seu
Livro-símbolo, analógico, sintético de todo um percurso vivencial ético e estético, está
um tanto vincado pela ironia e pela fragmentação alegórica do mundo moderno, se
quisermos encarar a outra face de Jano que foi o seu tempo de vanguarda e crise.
De todo modo, Paulismo e Intersecionismo (eivados, menos ou mais, de recortes
simbolistas, saudosistas e vanguardistas) são exemplos pessoais do Sensacionismo tão
explorado e teorizado por nosso poeta: o “sentir tudo de todas as maneiras” de Álvaro
de Campos, cujas “sensações vivíssimas” compõem um “outro mundo” (PESSOA, F.,
1986a: 98; 104): um mundo de poesia, de sonho, de alquimia verbal e de um contundente
e personalíssimo desregramento (racional) de todos os sentidos. É nesta perspectiva,
pois, que a sensação já aparece explorada – e também teorizada, mesmo sutilmente –
pelos poetas românticos e simbolistas. Embora cumpra salientar, no caso de Pessoa, a
sua contradição inerente, que exacerba os autores novecentistas: poeta da sensação e
do sonho, do mundo interior e dos abismos da in/consciência, ainda assim a razão e a
reflexão vincam profundamente a poesia plural e polissêmica desse novo Orfeu.
Novo Orfeu que teve, pois, uma vivência estreita com o Símbolo: em maiúsculas,
agora, porque adentramos um terreno sagrado para o Pessoa, que propriamente
escreveu sobre os graus e os degraus do símbolo e sobre os muitos modos de
ocultismo, esoterismo ou hermetismo, três palavras que, sabemos todos, detêm
certa similaridade semântica ao designar, genericamente, o conjunto de tradições e
interpretações filosóficas das doutrinas e religiões que buscam desvendar o sentido
oculto, sobrenatural, místico, das realidades essenciais (espirituais), ao mesmo tempo
em que procuram conservar tal sentido mistérico (e escatológico, em alguns casos) e
o revelar apenas a iniciados privilegiados. Conquanto o hermetismo, como também
se sabe, seja mais específico, pois se baseia na prática e no estudo da filosofia oculta e
572 100 Orpheu Antônio Donizeti Pires
A criação literária é, para Fernando Pessoa, uma das faces do mistério iniciático. [...] Trata-se
para ele de dar corpo a vários corpos, a partir de um corpo só, de dar voz a várias vozes, a
partir de uma só voz. A iniciação, única e sempre a mesma, que encontramos no pensamento
filosófico como na atividade literária, é a do desdobramento que na criação se verifica desde
o primeiro ser, o Adão primordial de gnósticos, kabalistas, alquimistas [...] Desdobramento,
multiplicação, que só depois de assumidos e esgotados permitem a unidade (Id.: 361).
574 100 Orpheu Antônio Donizeti Pires
Finalmente, num apontamento solto, sem data, publicado pela primeira vez na Obra
poética, o intérprete de símbolos Fernando Pessoa preconiza as cinco qualidades que,
a seu ver, são necessárias para a exegese esotérica: as quatro primeiras são a simpatia,
a intuição, a inteligência e a compreensão. A quinta e última parece apontar para o
coração da própria matéria hermético-poética (a “alquimia do verbo”, em suma):
A quinta é menos definível. Direi talvez, falando a uns, que é a graça, falando a outros, que
é a mão do Superior Incógnito, falando a terceiros, que é o Conhecimento e Conversação
do Santo Anjo da Guarda, entendendo cada uma destas coisas, que são a mesma da maneira
como as entendem aqueles que delas usam, falando ou escrevendo (PESSOA, F., 1997b: 43-44).
jornada, conforme professa o poeta em Esp.54A-6: “Todo homem, que talhar para
si um caminho para o Alto, encontrará obstáculos incompreensíveis e constantes”
(PESSOA, F. apud CENTENO, Y. K., 1997: 365). Ou outros “[...] ternos que o farão,
como Orpheu, volver o erro do olhar para o vedado Averno.” (Ibid.; negrito meu).
À guisa de conclusão, talvez devêssemos chamar à cena o Sr. Álvaro de Campos
e pedir vistas dos fumos decadentistas de seu poema “Opiário”, escrito no Canal de
Suez, em março de 1914, a bordo do navio que o trazia de volta da viagem que fizera
ao Oriente. Pensando bem, talvez seja melhor saltarmos uns 20 anos e, de olhos e
ouvidos atentos aos debates estéticos entre ortônimo e heterônimos, saborearmos a
deliciosa ironia de Campos para com Fernando Pessoa nos versos iniciais de outro
poema do engenheiro, datado de 18 de dezembro de 1934: “Símbolos? Estou farto
de símbolos... / Mas dizem-me que tudo é símbolo. Todos me dizem nada. Quais
símbolos? Sonhos. –” (PESSOA, F., 1986a: 67).
Bibliografia
Bibliografia Ativa
PESSOA, Fernando (1966). Páginas de estética e de teoria e crítica literárias. Textos
estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho;
tradução dos textos ingleses por Jorge Rosa. Lisboa: Ática.
PESSOA, Fernando (1986a). Poesias de Álvaro de Campos. Lisboa: Ática.
PESSOA, Fernando (1986b). Livro do desassossego. Seleção e introdução de Leyla
Perrone-Moisés. São Paulo: Brasiliense.
PESSOA, Fernando (1988). Poemas dramáticos. Poemas ingleses. Poemas franceses.
Poemas traduzidos. Anotações de Maria Aliete Galhoz. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira.
PESSOA, Fernando (1990). Alguma prosa. Organização e prefácio de Cleonice
Berardinelli. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
PESSOA, Fernando (1997a). Mensagem. Poemas esotéricos. Edição crítica
coordenada por José Augusto Seabra. Paris/São Paulo: ALLCA XX/Scipione
Cultural.
PESSOA, Fernando (1997b). O eu profundo e os outros eus. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira.
PESSOA, Fernando (1999). Livro do desassossego. Organização de Richard Zenith.
São Paulo: Companhia das Letras.
PESSOA, Fernando (2012). Ficções do interlúdio 1914-1935. Edição de Fernando
Cabral Martins. Lisboa: Assírio & Alvim, 2.ed.
Intersecionismos: Pessoa, o símbolo e o oculto 577
Bibliografia Passiva
CENTENO, Yvete K. (1997). O pensamento esotérico de Fernando Pessoa. In:
PESSOA, Fernando. Mensagem. Poemas esotéricos. Edição crítica coordenada
por José Augusto Seabra. Paris/São Paulo: ALLCA XX/Scipione Cultural,
pp.359-395.
FRIEDRICH, Hugo (1991). Estrutura da lírica moderna. São Paulo: Duas Cidades.
GUIMARÃES, Fernando (1992). Simbolismo, Modernismo & vanguardas. Porto:
Lello & Irmão.
HATHERLY, Ana (1979). O cubo das sensações e outras práticas sensacionistas
em Alberto Caeiro. In: HATHERLY, Ana. O espaço crítico – do Simbolismo à
vanguarda. Lisboa: Caminho.
LOURENÇO, Eduardo (1986). Fernando rei da nossa Baviera. Lisboa: Imprensa
Nacional/Casa da Moeda.
MOISÉS, Massaud (1998). Fernando Pessoa: o espelho e a esfinge. São Paulo:
Cultrix.
NUNES, Benedito (1976). Fernando Pessoa. In: NUNES, Benedito. O dorso do
tigre. São Paulo: Perspectiva.
PAZ, Octavio (1974). Los hijos del limo: del romanticismo a la vanguardia.
Barcelona: Seix Barral.
QUADROS, António (1989). O primeiro Modernismo português: vanguarda e
tradição. Mem Martins: Europa-América.
SEABRA, José Augusto (1991). Fernando Pessoa ou O poetodrama. São Paulo:
Perspectiva.
SEABRA, José Augusto (1988). O heterotexto pessoano. São Paulo: Perspectiva/
EDUSP.
Os poetas do Orpheu em tradução bangla
Rita Ray
Jadavpur University
Enquanto Orpheu nem chegou a ver o seu terceiro número publicado. Mas a verdade
é que as duas revistas estabeleceram a base do modernismo nas duas literaturas,
nomeadamente a bangla e a portuguesa respectivamente.
Como base, Orpheu não tinha nenhuma ideologia – pelo menos declarada. Luís
de Montalvor escreveu na «Introdução» de Orpheu: «Bem propriamente, Orpheu, é
um exílio de temperamentos de arte que a querem como a um segredo ou tormento...»1.
Vamos primeiro examinar o início de Kallol. Tudo começou com a fundação, em
Kolkata, em 1921, do Four Arts Club (Clube de quarto artes, nomeadamente para a
literatura, a música, o artesanato e a pintura) para promover o modernismo nas artes.
O contexto da fundação deste clube era o das crises políticas e intergeracionais. O
movimento de não-cooperação de Gandhi estava em curso e, como consequência,
milhares de indianos que participaram neste movimento, foram encarcerados. No
ano seguinte, Kazi Nazrul Islam, o poeta rebelde muçulmano que tinha lutado na
Grande Guerra, foi preso por ter publicado literatura marxista. Para protestar, ele
iniciou uma greve da fome. Em resposta, o Four Arts Club deu o início à «revolta
vitalista» em literatura (SENGUPTA, A. K., 1950: 49). O clube fechou as portas em
1923. No mesmo ano, em abril, os fundadores do clube começaram a publicar a revista
literária Kallol, que começou por ser uma revista mensal de contos mas também
incluía crónicas, traduções, recensões e poemas. Kallol continuou a ser publicada até
janeiro de 1929 e veio a ser, eventualmente, o porta-voz da geração que nasceu no
finissecular Bengala e viu o mundo mudar radicalmente. Os dois directores da revista
eram dois jovens relativamente pobres – Gokul Chandra Nag (1895 – 1925) e Dinesh
Ranjan Das (1888 – 1941). Nag era um licenciado da Governmente Art College, que
já tinha publicado contos e estava na via de completar um romance. Durante o dia
trabalhava numa florista, que era o sítio de encontro para muitos jovens intelectuais
e literatos; também trabalhava como artista e ator na indústria novata de filmes. Por
seu turno, Das era empregado numa loja de objectos desportivos. O grupo que os
dois fundaram foi sujeito a vigilância, em 1924, pelo Calcutta Criminal Investigation
Department (departamento de Investigação Criminal). Todavia, a revista tinha uma
influência destacável sobre a vida intelectual bengali. Do movimento literário, a que
Kallol deu início, surgiram muitos escritores, sobretudo poetas, importantantes da
época pós-tagoreana. Entre eles são Jibananda Das (1899 – 1954), que é o maior vulto
na poesia bangla depois de Rabindranath Tagore, e Buddhadeb Bose (1908 – 1974),
poeta, romancista e teórico da literatura bangla muito importante a partir dos anos
trintas do século passado, que também fundou a sua própria editora Kavita Bhavan
1 Orpheu Nº 1, p. 5: http://www.gutenberg.org/files/23620/23620-8.txt
582 100 Orpheu Rita Ray
(expressão que significa «residência de poema») com o fim de publicar obras de poetas
jovens e pouco conhecidos. Foi ele que fundou, em 1956, o primeiro departamento da
literatura comparada da Índia, na Universidade de Jadavpur.
Kallol declarou-se como uma revista fundada por «alguns jovens» (koyjon yubak)
e eis a abertura do poema, escrito colectivamente pelos membros do conselho de
diretores: «Sou o som da vaga, apenas o som da onda, sem sono à deriva». A mudança
geracional era de uma imaginação imperial para uma imaginação internacional
(MANJAPRA, K., 2011: 339). Através desta mudança, a geração que nasceu entre o
fim do século XIX e o início do século XX procurou fugir da sombra de Rabindranath
Tagore, primeiro Nobel na literatura da Ásia, bem como encontrar um caminho para
uma «radical revolta intelectual» (id.: 339) contra o reino britânico. Para os de Kallol,
o entusiasmo pela literatura estrangeira significava um lugar para experimentações
artísticas além do quadro imperial. Os jovens carentes de Kallol não dispunham de
meios para viajar além-mar mas havia amigos e parentes no estrangeiro que lhes
enviaram livros, relatos e cartas. Foi através desses que a geração dos jovens escritores
de Kallol ganharam acesso à literatura e ao pensamento modernistas para além do
currículo ensino colonial dos colonizadores ingleses. Talvez o mais significativo
destes contactos tenha sido o indólogo Kalidas Nag (1891 - ?), irmão mais velho de
Gokul Chandra Nag, que naquela altura estava a preparar a sua tese de doutoramento
sob a orientação de Sylvain Lévi em Paris. Com a sua ajuda, os dois directores de
Kallol entraram em contacto com Lévi e Romain Rolland. Kalidas traduziu partes
do romance experimental de Romain Rolland, Jean Christophe, do francês para o
bangla e a tradução foi publicada em Kallol. Coincidentemente, na mesma altura,
algumas livrarias mais frequentadas da cidade começaram a importar traduções da
literatura mundial. Por esta conjuntura de razões durante os seis anos em que Kallol
apareceu, houve ensaios e traduções dedicados a pelo menos 31 artistas modernos
do estrangeiro, a maioria deles de nações europeias ou pequenas ou derrotadas na
Grande Guerra, bem como da Rússia e do Japão. Apenas três eram britânicos. Esta
seleção era em forte contraste com o cânone literário da educação colonial britânica
que dava ênfase sobre Shakespeare, Milton, Wordsworth, Keats, Shelley, Browning,
Tennyson e Shaw no nível universitário (id.: 345). Além da avaliação e da crítica,
Kallol também se estabeleceu como um meio de tradução da literatura moderna do
mundo para o bangla. A secção “Correio” (Dakghar) proclamou em 1926: «A tradução
bengali está activa. Ela faz revelar algo novo no original2.» O desenvolvimento de uma
colecção da literatura mundial em tradução bangla permitiria eventualmente uma
ligação direta com o mundo exterior, dando cabo à necessidade do inglês como a
língua intermediária. A indústria bangla de tradução literária atingiu o seu apogeu
nos anos 20 do século XX e foi nesta época que a ênfase sobre traduções fiéis ao
contrário a adaptações se tornou mais comum.
Juntamente com a publicação de traduções da literatura mundial, Kallol fomentou
as tentativas de prosas e poemas experimentais por parte de jovens escritores bengalis.
Estes escritores mostraram uma disponibilidade para se rebelarem na literatura
e para transgredir a divisão presumível entre géneros e culturas bem como uma
abertura a novas tendências na estética e no valor. Como já foi dito acima, quase
todos os escritores importantes da época pós-tagoreana começaram a sua carreira
em Kallol. Além de Buddhadeb Bose e Jibananda Das, que já foram mencionados,
outros eram Kazi Nazrul Islam (1899 – 1976), Premendra Mitra (1904 – 1988) e
Achintya Kumar Sengupta (1903 – 1976). A publicação de Kallol deu origem a furor
e escândalo e a razão principal era a preocupação dos jovens escritores com sexo e
as relações interpessoais de homens e mulheres. A leitura das obras de Freud e Jung
contribuíram de uma maneira destacável para esta preocupação. Mais tarde, um dos
romances de Buddhadeb Bose, Rat bhore brishti (Chuva ao longo da noite), chegou a
ser proibido, em 1967, por motivos de obscenidade e em 1927 Jibananda Das perdeu o
seu emprego como professor de inglês numa das faculdades de Kolkata por ter usado
uma palavra obscena num dos seus poemas. Mas foi Jibananda que veio a ser a maior
figura na poesia pós-tagoreana bangla com a sua própria dicção, ritmo e vocabulário.
Faleceu em 1954, com 55 anos, atropelado por um elétrico. Durante a sua vida viu a
publicação de cinco livros de poemas mas, como Pessoa, deixou uma arca cheia de
mais poemas e sobretudo obras em prosa – romances e contos que não chegou a
publicar durante a vida.
Como no caso de Orpheu, havia outras revistas literárias que seguiram Kallol –
Uttara (1925), Pragati (1926), Kalikalam (1926) e Purbasha (1932). Mas nenhuma
delas conseguiram ter um êxito tão duradouro como o de Kallol. Dinesh Ranjan
Das, que sozinho continuou a publicar esta revista mensalmente sem qualquer apoio
depois da morte precoce de Gokul Chandra Nag em 1925, viu-se obrigado a parar
depois de ter contraído uma enorme dívida.
Vejamos agora como se pode comparar Orpheu com Kallol, começando pela
situação socio-política de cada país. Portugal descartou a monarquia e tornou-se
numa república em outubro de 1910, isto é, exatamente quatro anos e seis meses antes
da publicação do número inaugural da revista que ia ser o prenúncio do primeiro
modernismo português. Portanto, o espírito geral do país era uma exaltação, um
fervor, uma esperança que a promessa de um futuro radioso fosse cumprida. Em
Bengala, que naquela altura fazia parte na íntegra da Índia, a situação era justamente
584 100 Orpheu Rita Ray
português, não havia nenhuma luta mas uma tentativa para a síntese. Conforme
Eduardo José Paz Ferreira Barreto:
Bibliografia
Outros:
GHOSH, Tapobrata (1995). «Literature and Literary Life in Calcutta: The Age of
Rabindranath». In: CHAUDHURI, Sukanta (org.). Calcutta, The Living City,
Vol II. Kolkata: Oxford University Press, pp. 229–230.
SENGUPTA, Acintya Kumar (1950). Kalloler Yug: Kolkata.
SINGHA RAY, Jibendra (2008). Kalloler Kal: Kolkata: Dey’s Publishing (1973).
3 PESSOA, Fernando. Obras em prosa. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1993. P. 352 apud BARRETO, E. J. P. F.,
2004.
4 BARRETO, E. J. P. F., 2004: 75.
Visões do Atlântico: de Pessoa a Valle-Inclán1
Ramón del Valle-Inclán foi enquadrado pela crítica na geração literária partilhada
por Unamuno, Baroja ou Machado, representando entre eles um dos máximos
paradigmas da modernidade literária não apenas hispânica, mas também europeia.
Para além da sua profissão como escritor, desenvolveu ao longo da sua vida todo
tipo de atividades que manifestam a sua vontade de intervenção na sociedade e na
cultura do seu tempo: literato de prestígio, eloquente orador, colaborou intensamente
em jornais e revistas, desde as quais podemos fazer o acompanhamento da sua
trajetória, durante a qual desempenhou roles de jornalista, conferencista, crítico de
pintura, correspondente de guerra na frente franco-germana, Catedrático de Estética,
1 O presente trabalho faz parte das atividades de investigação desenvolvidas pela autora no seio do Grupo de
Investigación Valle-Inclán da USC e no quadro dos seguintes programas financiados pela Junta da Galiza:
Consolidación e Estruturación de Unidades de Investigación Competitivas (GPC2014/039) e Apoio á Etapa
Posdoutoral, do Plan Galego de Investigación, Innovación e Crecemento 2011-2015 (Plan I2C).
588 100 Orpheu Rosario Mascato Rey
É, por tanto, a «historia de un lugar cualquiera [...] puesto en relación con el mundo
atlántico en que se encuentra» (id.: 21). Para nós, portanto, trata-se aqui de falar da
historia de Portugal, da Galiza, da Ibéria, tal como concebida por Pessoa e Valle-Inclán
em relação com o mundo atlântico, deixando à margem (talvez para um outro estudo), a
análise referida ao relacionamento de ambos os autores com um mundo atlântico outro
que o de origem, ou o estudo comparado das suas visões deste atlantismo com aquelas
doutros autores (como é o caso de Walt Whitman; SANTOS, I. R., 2004).
E isto é assim porque, tal como explicamos abaixo, entendemos que tanto Pessoa
como Valle-Inclán se referenciam para a sua visão do Atlântico e do atlantismo nas
mesmas coordenadas geográfico-identitárias, que podemos referenciar nos conceitos
da Lusitânia e Ibéria, fulcrais em ambos os seus ideários, mas com matizes divergentes
no seu desenvolvimento poético.
Ainda que o escritor galego fosse vinte e dois anos maior do que o português,
ambos têm entre si interessantes coincidências que convém pôr de relevo, quando
menos sumariamente. Para além do facto de terem falecido com apenas um mês de
diferença, a sua obra é claramente devedora dos princípios do misticismo, esoterismo
e teosofia de entresséculos; em muitos aspetos, os seus escritos fazem-se eco das teses
da filosofia intuicionista do francês Henri Bergson; do ponto de vista poético
Valle-Inclán partilha a problemática identitária pessoana, que no seu caso se
manifesta tanto na criação de máscaras poéticas como na inventio da personagem
do Marqués de Bradomín – sempre considerado como alter ego ficcional do autor –.
Da mesma maneira, é impossível entender a trajetória literária de ambos os dois sem
as suas intervenções no mundo da imprensa, fonte inesgotável de recursos para o
estudo da sua ideologia e obra; a que devemos somar ainda a descoberta dum grosso
legado manuscrito em que se reúnem papeis de tipo pessoal, reflexões e anotações
ao lado de obra inédita, ainda pendente, em ambos os casos, de arrumação e análise
pormenorizada -apesar de algumas chaves terem sido já esboçadas2.
Mas estes paralelismos também se estendem à sua própria experiência do Atlântico
como viajeiros, se bem em eixos diferenciados. Pessoa, pela sua parte, no seu trânsito
infanto-juvenil de norte para sul; Valle-Inclán, entre as margens este-oeste. Assim, se em
Pessoa só podemos falar em duas grandes viagens oceânicas, para Valle-Inclán serão três.
O poeta luso irá para África do Sul, particularmente, para a cidade de Durban:
a primeira viagem com ida (pela Madeira) em 1896 e regresso em 1901 (com
paragens em Lourenço Marques, Zanzíbar, Dar-es-Salaam, Port Said e Nápoles,
que deixaram especial pegada na obra de Álvaro de Campos); a segunda, de 1902
2 Para o caso de Ramón del Valle-Inclán, veja-se Santos Zas, M., 2013a.
590 100 Orpheu Rosario Mascato Rey
(via Las Palmas de Gran Canaria) em 19053. Daí em diante, a crítica especula com
hipotéticas, e em qualquer caso breves, fugidas a Portalegre, o Algarve, Évora ou
Alcobaça, e eventuais visitas a Sintra, Cascais ou Estoril; às quais deverá ser somada
ainda a manifesta possibilidade de viajar à Inglaterra, nunca realizada. Enfim, um
Pessoa urbanista, pegado à Baixa lisboeta (Taibo, C., 2010: 183-194), e escassamente
interessado noutra viagem que não seja, em palavras de Bernardo Soares, uma
«circum-navegação»: aquela «que tem por fim voltar ao mesmo sítio» (PESSOA, F.,
2003: 360), especialmente num sentido subjetivo, interior.
Valle-Inclán, por sua parte, atravessou o Atlântico até em três ocasiões, em que
conseguiu visitar a maior parte dos países americanos: o México, onde permanece entre
abril de 1892 e março de 1893 (García-Velasco, J., 2000); Argentina, Uruguay,
Paraguay e o Chile na segunda delas, de abril a novembro de 1910, como assessor
artístico da Compañía Teatral de María Guerrero e Fernando Mendoza (Garlitz,
V. M., 2000); e, em 1921, México (outra vez, entre setembro e novembro; Schneider,
2000), Cuba (Santos Zas, M., 2001) e Estados Unidos (Juan Bolufer, A.,
2008), na viagem de regresso. Mas, a diferença de Pessoa, Valle-Inclán foi viageiro
incansável, e também teve oportunidade de visitar a França (e particularmente a
fronte de guerra franco-germana) em 1916, ou a Itália de Mussolini entre 1933 e 1935,
datas em que exerceu, como já dissemos, de Diretor da Academia de Bellas Artes da
España em Roma. Em qualquer caso, o percurso atlântico foi determinante desde
época recente na sua conceção do mundo e da literatura, em que a visão americana
teve especial impacte, muito particularmente na redação de dois dos seus textos mais
conhecidos: A Sonata de Estío (1903) e Tirano Banderas. Novela de tierra caliente
(1927). Mas não se limitou esta experiência ao puramente literário. Também teve eco
na conceção do que denominará a «civilización atlántica», que em 1916 definia da
seguinte maneira:
3 A estas podemos ainda acrescentar duas breves estadias do poeta no Algarve (a finais de 1901) e
na Ilha Terceira dos Açores (em Maio de 1902) (Taibo, C., 2010: 179-183).
Visões do Atlântico: de Pessoa a Valle-Inclán 591
que están en la ruta del sol. Y una nueva aurora se encenderá en el Japón al ocaso del sol
americano, y entretanto florecerá la civilización del mar Pacífico... (apud Dougherty,
D., 1983: 79; itálicos nossos)4
O ATLANTISMO
Hegemonia Ibérica.
A concepção atlântica da vida.
O imperialismo espiritual.
Germanofilia de alma, anglofilia de corpo.
(Admiremos os construtivos, os criadores, ainda que seja de coisas inferiores; não os
ponhamos ao nível dos meros arrastadores da vida pelo acaso dos acasos!)
Inutilidade e malefício das nossas colónias.
Sebastianismo.
Expansão atlântica — Ibéria, Irlanda, Ultramar americano.
(Esta concepção, presente já, por uma intuição nocturna, no alto espírito atlântico do Walt
Whitman.) Atlantismo da Raça.
(Foi pelo Atlântico que fomos à procura da glória, à criação da Civilização Maior. É pelo
Atlântico, mas em alma e espiritualização, que devemos ir em demanda da Civilização
máxima!)
4 Para as citações de textos dos anos vinte e trinta, respeitamos a disposição ortográfica e puntuação das edições
utilizadas.
592 100 Orpheu Rosario Mascato Rey
Absorção artística.
Misticismo.
Roma, Londres, Paris — os inimigos.
Anticatolicismo, anticristianismo.
Repaganização — paganismo transcendental.
Antidemocratismo, individualismo aristocrático.
[Somos contra Roma, porque Roma veio destruir no paganismo a visão lúcida da vida.
Somos contra Inglaterra, porque Inglaterra veio destruir, [...]. Somos contra França, porque
a França veio, com o seu democratismo e o seu liberalismo plebeu, destruir os restos de
paganismo que havia entre nós.]
Sensacionismo (e Interseccionismo) (Pessoa, F., 1979: 76; itálicos nossos)
... Spain, far from being a unified country, is not even, in the proper sense of the word,
a country at all. It is, at the least, four countries -what is generally called `Spain´ within
Spain (that is to say, Castile and the other provinces where Spanish is the language, though
highly dialectal in some of them), Catalonia, the Basque provinces and Galicia. In two cases
-Catalan and Basque- the language diverge more from Spanish than does Portuguese, which
anyone who reads Spanish can read without learning it, whereas that does not apply to
the other two cases; in the third case, Galician, the differences are almost the same as with
Portuguese, Galician being, as a matter of fact, an undeveloped Portuguese (Pessoa, F.,
2015: 153).
Esta mesma ideia está presente em Valle-Inclán, desde 1908, em que começa
a escrever os seus artigos sobre pintura. Neles esboça a sua teoria da existência de
quatro geografias e sensibilidades diferentes na Península Ibérica, originadas durante
o processo de romanização: a Cantábrica, a Bética, a Tarraconense e a Lusitânia. Esta
teoria estética chegou ao ponto da sua máxima elaboração nos anos 30, em que adquire
definitivos matizes políticos, até ao ponto de reclamar o status de Estado para a ditas
regiões ibéricas, tal como assinalava em conversa com António Ferro, publicada no
Diário de Notícias:
Assusta-o a ideia duma republica federal? Pois, muito bem... Há outra finalidade, a
fragmentação da península em quatro países completamente opostos, sem ligações políticas,
com uma indenpendencia igual à que têm hoje, Portugal e Espanha. Regressemos ao golpe
de vista dos romanos que viram a Peninsula, geograficamente, como ela deve ser vista. As
grandes linhas da Peninsula romana, com menos divisões, com mais síntese: a Cantabria, a
Lusitania, a Tarraconense e a Bética. A Cantabria, toda a zona do ferro compreendida entre
o Cabo Finisterre e os limites das Vascongadas. Capital: Bilbao, unica cidade viva da cabeça
de Espanha. A Tarraconense, toda a região mediterrânea. Capital: Barcelona... A Bética, a
região africana da Espanha, com a sua fisionomia propria, inconfundível. Capital: Sevilha.
Lusitania seria todo o Portugal e quase toda a Galiza, Vigo, Pontevedra, Orense, até Lugo,
todo esse caminho dos rios suaves e líricos da Península, dos rios-poetas... Capital: Lisboa, a
cidade atlántica da Península. A fragmentação não agradaria a Portugal? (apud Mascato
REY, R., 2013a: 77-78)
parte da sua trajetória também optou pela posta em valor doutro dos elementos de
repertório definitórios da identidade galega com respeito a essa visão atlântica da
vida: o celtismo.
Em 1921, durante a sua viagem a Nova Iorque, Valle-Inclán é entrevistado para o
jornal The New York Evening Post, e interpelado pelas suas origens, comenta:
You must know, said Don Ramón, that Spanish Galicia, where I was born, is pure Celtic, quite
as much as Ireland. Many of the place names are Irish: my own means simply «of the Valley
Clan». [...] There are the same superstitions, the same awe and reverence for natural forces.
All through my childhood the servants told me Celtic stories [...]. The Galician character has
all the Irish traits. The land abounds in Druid monuments. (Storm, M., 1921: 11)
Não era esta a primeira vez que Ramón del Valle-Inclán recorria à ideia do
celtismo como elemento mito fundacional da galeguidade. Provavelmente o melhor
dos exemplos seja o seu poema «Del Celta es la victoria», dedicado ao violinista
galego Manuel Quiroga Losada só três anos antes, em 19185. Este poema constitui
um dos melhores exemplos da vontade do escritor por construir uma imagem da
Galiza atlântica, alheia à tradição mediterrânea fundacional da nacionalidade
espanhola (Mascato REY, R., 2013b: 278). E, neste sentido, Valle-Inclán coincide
no seu discurso com autores fulcrais do nacionalismo galeguista da altura, como
Vicente Risco, Otero Pedrayo ou Daniel Rodríguez Castelao6. Todos estes produtores
integram o Grupo Nós e promovem a revista do mesmo nome7, desde a qual tratavam,
em essência, de recuperar para a Galiza a mesma capacidade de autoafirmação que
Pessoa procurava no Sebastianismo e no Quinto Império, com umas possibilidades
de realização que, mais cedo que tarde, se mostraram igualmente utópicas, mas em
que os membros de Nós se reafirmavam no primeiro número da publicação, em 1920:
5 O texto, do qual se conserva um exemplar manuscrito entre o arquivo do músico depositado no Museu de
Ponte-Vedra, foi posteriormente editado pelo escritor nos seus poemários El Pasajero (1920) e Claves Líricas
(1930), sob o título «Rosa matinal». Para uma transcrição dele, acompanhada do correspondente estudo,
veja-se Mascato REY, R., 2013b: 278-281).
6 Sobre a ideia de atlantismo neste último, veja-se o trabalho de Domínguez (2014), que igualmente recorre à
taxonomia da Armitage.
7 Isabel García Piqueras resume os dois processos essenciais para a construção identitária galega durante o
primeiro terço do século XX: duma parte, o enxebrismo e, doutra, a europeização. Isto é, a combinatória
da capacidade de criação especificamente galega (determinada pela arqueologia, o folklore ou a etnografia
do país) com a superação do isolamento da Galiza, através da sua vinculação direta com outras culturas
europeias, particularmente aquelas de substrato céltico (1997: 144). Para a historiografia da articulação da
identidade galega em volta do conceito de celtismo -em grande parte construído por Manuel Murguía-,
remetemos aqui tanto para a Historia de Galicia, do professor Ramón Villares, como para o artigo do mesmo
autor especificamente referido a este assunto (Villares, R., 2001).
Visões do Atlântico: de Pessoa a Valle-Inclán 595
É a ansia qu´oxe sinte Galizia de vivir de novo, de voltar ó seu ser verdadeiro e inmorrente,
a evidencia lumiosa do mañán, o que nos fai sair (...). Os colaboradores de Nós poden ser o
que lles pete (...) con tal de que se poñan por riba de todo o sentimento da Terra e da Raza,
o desexo coleitivo de superación, a orgulosa satifaición de seren galegos (Nós, 1920: 1)
Este atlantismo do nacionalismo galego entende que a Galiza e Portugal são duas
terras com uma história, língua e tradições em comum, sobre o qual construir essa
nova civilização, cujo referente de oposição é o mediterraneismo representado, como
bem assinalava o poeta português, por Castela e os seus territórios adjacentes:
Poetas bretóns, normandos, flamengos, vascos, gaélicos, ingreses, irlandeses, poetas que
en francés, en inglés, en céltigo, en tantos idiomas ampriamente espallados pol-o mundo
ou homildemente apegados á terra da patria, gerdades (sic) um ecoar salgado do Atlántico,
todos sodes -ás veces sen querelo- fillos da grande raza espiritual dos Fisterres, da raza
cósmica y eterna, da úneca que garda un ollar sinxelo e creador baixo as mais difrentes
e compretas culturas. Portugal e Galiza ven en vós bardos irmaus dos seus. Por isso
adicámoslles estas lembranzas imperfeitas e probes, mais cheas de simpatía que nasce da
comunidade espiritual que xunta ós que miramos a diaria morte do sol no hourizonte
mistereoso do Océano oucidental (Otero Pedrayo, R., 1925: 2).
Assim, em 1925, não hesitaria em negar a utilidade da tese celtista para o desenvolvimento
da Galiza, como confessa ao redator do jornal viguês El Pueblo Gallego:
Don Ramón rechaza el celtismo y todas sus pretensiones literarias que pretenden desplazar
nuestro espíritu situándolo en un ambiente exótico. Para el gran amigo de Casanova, la
raza es la lengua. Somos romanos, más romanos que ninguno de los otros hombres de
Iberia, no por más romanizados, sino por menos desromanizados. Por no haber sentido
la influencia de diversas inmigraciones como otros pueblos después de la romanización
(apud Valle-Inclán, J. J., 1995: 272-273)
8 Estes ataques estendem-se, para além de à questão linguística, à evolução estética e artística do autor, para
aos movimentos de vanguarda europeus do momento (o cubismo ou expressionismo), discutidos por certos
sectores do galeguismo da altura como alheios à identidade literária galega focada desde uma perspetiva
política mais tradicionalista (Mascato REY, R., 2013a: 53-58).
Visões do Atlântico: de Pessoa a Valle-Inclán 597
Toda mudanza substancial en los idiomas es una mudanza en las conciencias, y el alma
colectiva de los pueblos, una creación del verbo más que de la raza. Las palabras imponen
las normas al pensamiento, lo encadenan, lo guían y le muestran caminos imprevistos, al
modo de la rima.
Los idiomas nos hacen, y nosotros hemos de deshacerlos. Triste destino el de aquellas razas
enterradas en el castillo hermético de sus viejas lenguas, como las momias de las remotas
dinastías egipcias, en la hueca sonoridad de las Pirámides. Tristes vosotros, hijos de la Loba
Latina en la ribera de tantos mares, si vuestras liras no quebrantan todas las cadenas con
que os aprisiona la tradición del Habla. ¡Y más triste el destino de vuestros nietos, si en lo
porvenir no engendran dialectos suyos, ciclos de una nueva conciencia en la lengua de los
Conquistadores. (Valle-Inclán, R., 1916: 78-79).
Bibliografia
Bibliografia ativa
Nós. Boletín mensual da cultura galega (1920). «Primeiras verbas». Ourense, 30 de
Outono, pp. 1 e 2.
Otero Pedrayo, Ramón (1925). «Os poetas atlánticos». Nós. Boletín mensual
da cultura galega. Ourense, 15 de Novembro, núm. 23, pp. 2-3.
Pessoa, Fernando (1934). Mensagem. Lisboa: Parceria Antonio Maria Pereira
Pessoa, Fernando (1979). Sobre Portugal - Introdução ao Problema Nacional.
Lisboa: Ática.
Pessoa, Fernando (2003). Escritos Autobiográficos, Automáticos e de Reflexão
Pessoal. Fernando (Richard Zenith, ed.) Lisboa: Assírio & Alvim.
Pessoa, Fernando (2015). Sobre o fascismo, a ditadura militar e Salazar. Lisboa:
Tinta-da-China
Risco, Vicente (1994). Teoria do nacionalismo galego. Vigo: Galaxia.
Storm, Marian (1921). «Writes Night and Day for a Week. Spanish Author Dare
Not Stop for a Minute. Inspiration Gone If He Does, Says Don Ramon, Who
Is Here For a Rest», The New York Evening Post, 7 de Dezembro: 11
Valle-Inclán, Ramón del (1916). La Lámpara Maravillosa. Madrid, Sociedad
General Española de Librería.
Valle-Inclán, Joaquín e Javier (1995). Ramón del Valle-Inclán. Entrevistas,
conferencias y cartas. Valencia: Pre-Textos.
Bibliografia pasiva
Antliff, Mark (1992). «Cubism, Celtism, and the Body Politic». The Art Bulletin.
74, 4, pp. 655-668.
Armitage, David (2004). «Tres conceptos de historia atlántica». Revista de
Occidente. (Outubro), 281, pp. 7-28.
Castle, Gregory (2001). Modernism and the Celtic Revival. Cambridge:
Cambridge University Press
Domínguez, César (2014). «`Eu son fillo dunha Patria descoñecida´: Do
Atlántico negro ao Atlántico verde a través da diáspora galega. Castelao
(cunhas notas sobre Whitman e Lorca)». Grial. Revista Galega de Cultura.
202. 52 (abril-xuño), pp. 64-71
Dougherty, Dru (1983). Un Valle-Inclán olvidado: entrevistas y conferencias.
Madrid: Fundamentos.
García Piqueras (1997). «La revista Nós y el vínculo atlantista». Revista de
Filología Románica, 14.2, pp. 143-149.
Visões do Atlântico: de Pessoa a Valle-Inclán 599
Annabela Rita
CLEPUL-FLUL
Instituto Fernando Pessoa & Academia Lusófona Luís de Camões (SHIP)
Presidente/Comissão Científica do 100/Orpheu
1 Este texto é uma versão resumida (e tão expurgada de notas) da comunicação apresentada, que será publicada
na sua versão original no meu próximo livro (Do que não existe, no prelo). Remeto para lá a fundamentação
de muitas das minhas observações neste texto, uma vez que as constrições de espaço a isso obrigam.
2 http://arquivopessoa.net/textos/1298
602 100 Orpheu Annabela Rita
Preambularmente…
… e avançando
Aquém-fronteiras
3 Cf. http://doportoenaoso.blogspot.pt/2010/09/os-planos-do-porto-dos-almadas-aos.html
Mensagem em moldura epocal 605
Além-fronteiras
4 “Os olhos da feira estão no futuro – não no sentido de perscrutar o desconhecido nem na tentativa de
prever os eventos do amanhã e a forma das coisas do futuro, mas no sentido de apresentar uma nova
concepção do presente encarado a partir do amanhã; alcançar uma ideia das forças e ideias que vão
prevalecer e do mesmo modo as máquinas.” [Panfleto oficial da Feira: http://pt.wikipedia.org/wiki/
Feira_Mundial_de_Nova_Iorque_de_1939-40].
606 100 Orpheu Annabela Rita
Outras molduras
1. Visita virtual
Da grande angular…
… ao zoom…
… aos travellings…
E a visita começa como nas velhas narrativas de viagens, livros de maravilhas que
deslumbraram a velha Europa, com o registo da surpresa e da emoção (“comoção
religiosa”) e com o comentário recorrendo à comparação com que se sublinha e
demonstra a diferença, a singularidade, a portugalidade.
Depois, passa à visão de conjunto, ainda exterior, do conjunto em díptico (“De
um lado, o mosteiro /…/; do outro, dominando tudo, a igreja abacial /…/”). O
tempo verte-se em espaço e este representa-o numa espécie de friso cronológico
destacado, o século entre a batalha e a descoberta, a independência e o império
e assinala nesse século o progresso da História nacional, no exercício de uma
pedagogia da hermenêutica, uma didáctica da observação para o olhar mais
ingénuo, através da qual partilha as sucessivas emoções que a observação nos vai
fazendo experimentar.
… aos acontecimentos…
… às figuras na paisagem…
2. Exposições
1934 é ano do primeiro ensaio desse ofício que se emoldura em graálico Palácio de
Cristal (a Exposição Colonial Portuguesa do Porto) e é o ano de uma Mensagem ao
país, a de Pessoa, que lhe revisita o imaginário e o folheia em exposição organizada em
livro, álbum de mitos simbolizados, figurados, ilustrados, catalogados e sistematizados
em núcleos temáticos, ciclos históricos… convocados. Muitas das figuras respondem
a interpelações de outrora (no tónus épico evocador do camoniano, nos Castelos de
Finis Patriae e da Mensagem, etc.).
A convocação, em ambos os casos, visa quebrar o encantamento estiolante de uma
desesperança cinzentista que parecia dominar um povo que acreditara encontrar na
República a solução da decadência e que sobrevivia ao trauma da convulsão que ela
trouxera8. Povo que se sentira desprezado e desrespeitado desde antes do regicídio,
trucidado nos combatentes da I Guerra Mundial, afundado no sentimento da decadência
e da falta de horizontes, anelante de um sinal de esperança. “É a hora!” é o sopro conclusivo
dessa convocação, a invectiva, a ordem à fraternidade para o início de um novo ciclo no
meio das representações do velho, desse Portugal de Varões e epopeia que se encontrara
com o Preste João e que tinha sonhado o V Império. Exclamação religiosa na instauração
de um novo tempo. Ao lado, atrás, nesse 1910 em que os Painéis de Nuno Gonçalves se
instalaram no Museu, levantara-se o estandarte de uma águia que se tornará nova, outra9,
mas com a memória da antecessora.
3. Políptico literário.
8 Já Guerra Junqueiro sentira essa necessidade revitalizadora e convocara em Finis Patriae os ‘génios do lugar’ e do
futuro configurados pela “Mocidade nas Escolas”: “Por terra, a túnica em pedaços, /Agonizando a Pátria está. /
Ó Mocidade, oiço os teus passos!... /Beija-a na fronte, ergue-a nos braços,/ Não morrerá! // Com sete lanças os
traidores / A trespassaram, vede lá!... /Ó Mocidade!... unge-lhe as dores, / Beija-a nas mãos, cobre-a de flores, / Não
morrerá!” [http://nautilus.fis.uc.pt/personal/marques/old/very-old/junqueiro/work/finis_patriae.html]
9 Em Diálogos em Roma, Francisco de Holanda fala d’“A tábua dos famosos pintores modernos a que eles
chamam «águias»”, com os grandes do Renascimento (Miguel Ângelo, Leonardo da Vinci, Andrea Mantegna,
Rafael, Ticiano, etc.), lista em que Nuno Gonçalves surge em 21º lugar ("O pintor português, ponho entre
os famosos, que pintou o altar de S. Vicente de Lisboa.", HOLANDA, F., 1984: 137). Já no séc. XXI, surge A
Nova Águia. Revista de Cultura para o Século XXI [http://novaaguia.blogspot.pt/], lançada em 2008 pelo MIL
– Movimento Internacional Lusófono.
10 Cf. http://paineis.org/C10.htm
614 100 Orpheu Annabela Rita
11 Conjunto de tapeçarias de grandes dimensões (11 metros por 4 metros), em lã e seda, celebratórias da
conquista de Arzila (O Desembarque, O Cerco e O Assalto) e Tânger (Entrada) (1471) pelas forças de
D. Afonso V de Portugal com legendas, além de duas outras, ainda não restauradas, sobre a conquista de
Alcácer Ceguer (1458).
Mensagem em moldura epocal 615
3.1 Da heteronímia
No quadro da mitologia identitária de Portugal como País e Povo eleito, assente nas
pedras angulares dos juramentos reais (RITA, A., 2012: 155-173)13 Fernando Pessoa
desenvolve uma obra cujo modelo encontra o que se agiganta em ponto de fuga no
cânone ocidental: a Bíblia, o Livro dos Livros (BLOOM, H., 1997; CALVINO, I., 1994;
RITA, A., 2014). E não está alheado da estratégia sua contemporânea de construção
de imagem identitária através de exposições.
Deixando de lado a controvérsia sobre a sua génese e explicação (para a qual
Pessoa também contribuiu fortemente), a verdade é que a progressiva, hesitante e
redesenhada multiplicação heteronímica tem dois modelos na sua anterioridade:
• por um lado, o bíblico, na complexa definição do seu cânone textual (desde
as traduções, às versões, à selecção e atribuição de autoria dos textos e dos
apócrifos);
• por outro, a própria literatura portuguesa, onde a redefinição da portugalidade
estética se vai processando, como se exprime em exemplos como o de Garrett,
no seu Bosquejo da História da Língua Portuguesa e da Poesia Portuguesa
(1826).
12 Paula André, Luís Louzã Henriques, Luísa Isabel Martinho, Sónia Apolinário e Rui Reis Costa. Modos de ver
e de dar a ver os Painéis de São Vicente: http://midas.revues.org/256.
13 Reproduzo ambos os textos em “A Imaculada Conceição e a legitimação da nacionalidade”, comunicação
inserida no meu livro Focais Literárias (2012).
616 100 Orpheu Annabela Rita
3.2 Da Mensagem
14 Cf. http://casafernandopessoa.cm-lisboa.pt/index.php?id=4292
15 “IV - Sim ou não o moral da Nação pode ser levantado por uma intensa propaganda, pelo jornal, pela revista
e pelo livro, de forma a criar uma mentalidade colectiva capaz de impor aos políticos uma política de grandeza
nacional? Na hipótese afirmativa, qual o caminho a seguir?
Há só uma espécie de propaganda com que se pode levantar o moral de uma nação — a construção ou
renovação e a difusão consequente e multímoda de um grande mito nacional. De instinto, a humanidade
odeia a verdade, porque sabe, com o mesmo instinto, que não há verdade, ou que a verdade é inatingível. O
mundo conduz-se por mentiras; quem quiser despertá-lo ou conduzi-lo terá que mentir-lhe delirantemente,
e fá-lo-á com tanto mais êxito quanto mais mentir a si mesmo e se compenetrar da verdade da mentira
que criou. Temos, felizmente, o mito sebastianista, com raízes profundas no passado e na alma portuguesa.
Nosso trabalho é pois mais fácil; não temos que criar um mito, senão que renová-lo. Comecemos por nos
embebedar desse sonho, por o integrar em nós, por o encarnar. Feito isso, cada um de nós independentemente
e a sós consigo, o sonho se derramará sem esforço em tudo que dissermos ou escrevermos, e a atmosfera
estará criada, em que todos os outros, como nós, o respirem. Então se dará na alma da Nação o fenómeno
imprevisível de onde nascerão as Novas Descobertas, a Criação do Mundo Novo, o Quinto Império. Terá
regressado El-Rei D. Sebastião”. Cf. PESSOA, F., 1979: 100) [http://multipessoa.net/labirinto/portugal/14].
16 PESSOA, F., 1993 [http://arquivopessoa.net/textos/2041].
17 [http://nautilus.fis.uc.pt/personal/marques/old/very-old/junqueiro/work/finis_patriae.html]. Cf. sobre este
assunto: tese de Onésimo Teotónio de Almeida em Pessoa, Portugal e o Futuro (1987), Porto, Gradiva, 2014
Mensagem em moldura epocal 617
heráldica dos tempos (as três “Partes”), dos lugares/elementos (terra, mar/água
e ar) e dos respectivos protagonistas, símbolos e referências numa composição de
diversos núcleos com crescendos internos, esboçando movimentos ondulatórios que
se impulsionam recíproca e sucessivamente. Políptico, exposição, convocação de
símbolos (a epopeia, narrativa do tempo, cede à heráldica, sistémica, centrada no
brasão, no timbre). A linhagem e a chave de uma série dos profetas, de diferentes grãos
da voz sibilina, oracular (da poesia cifrada de Bandarra à filosofia de Vieira), vertida
pelo poeta, último intérprete dessa genealogia mediúnica no livro à beira-mágoa.
Depositário do saber, arauto (codificador e leitor) da mensagem de um Rei oculto
(Artur, Sebastião e outros), velador e desvelador desse conhecimento, ser-nevoeiro,
só ele se pode transformar, em súbita epifania, na própria revelação, instituindo um
novo ciclo anunciado na profecia que veiculava, correspondendo à performatividade
mágica do verbo: porque É a Hora! Fiat lux! No timbre, o Grifo atravessando os
tempos dos homens e dos deuses.
Como no início… o Verbo, o Homem, a História e o Mito!
Bibliografia
Arnaldo Saraiva
“Depois da grande ferroada que foi o Orpheu, Lisboa ficou aturdida durante
séculos”.
Não sabemos se os séculos vindouros confirmarão o juízo e a profecia que em
1990 saíram da boca de Mário Cesariny1. O que sabemos é que Lisboa – quer dizer,
Portugal – conheceu em 1915 um terremoto bem distinto do de 1755, provocado não
pela fúria da natureza mas por uma revista literária e artística que a lisboeta Tipografia
do Comércio acabara de imprimir em 24 de Março, uma revista de que só saíram
dois números, cada qual com cerca de 80 páginas, e que só teve 17 colaboradores,
15 escritores e dois artistas plásticos; e sabemos que depois da centena de críticas
impressas que em poucas semanas logo suscitou, depois dos livros e dos ensaios que
ao longo de décadas estudiosos como João Gaspar Simões, Adolfo Casais Monteiro,
Eduardo Lourenço, Jacinto do Prado Coelho, Maria Aliete Galhoz, Fernando
Guimarães, Nuno Júdice e tantos outros lhe foram dedicando, ainda hoje continua
a exercer grande fascínio junto de elites culturais de vários países e ainda justifica os
livros, as homenagens, as exposições, os documentários, os colóquios, os debates, as
conferências que celebram o seu centenário.
Já por várias vezes e de distintos modos tinham sido assinalados alguns aniversários
do Orpheu; lembro, por exemplo, que, na passagem dos 20 anos, o Diário de Lisboa
(8/3/1935) lhe dedicou o seu suplemento literário, que abria com um texto e um
desenho de Almada Negreiros; a passagem dos 30 anos celebrou-a o jornal República
(20/5/1945) publicando colaboração inédita dos então “cinco únicos sobreviventes” de
Orpheu; a passagem dos 50 anos justificou o estudo e a memória do “desdobrável” de
Almada Negreiros 1915 Orpheu 1965; na passagem dos 60 anos a Câmara Municipal
de Gaia e a Casa Museu Teixeira Lopes organizaram uma exposição, de que se fez
um catálogo que abria com o meu estudo: “A génese de Orpheu e do modernismo
português e brasileiro (novos elementos para o seu estudo)”, e realizaram uma sessão
coletiva, finda a qual julgo ter convencido Alberto de Serpa, que a ela assistiu, a
disponibilizar para publicação as “provas” que tinha do Orpheu 3; a Colóquio/Letras
publicou, na passagem do mesmo aniversário, um inquérito sobre “o significado
Pela parte que me toca poderia anunciar – até por que nos desabituámos de ver
anúncios desses em jornais, rádios e televisões, que quase só têm tempo e espaço para
boçalidades futebolísticas, banalidades políticas, passatempos idiotas e cançonetas ou
cançonetistas pimba – que publiquei há pouco Os Órfãos do Orpheu 6 ; e noutro volume
intitulado “Para o Túmulo de Fernando Pessoa” e Outras Prosas7 recolhi as prosas
dispersas, tão desconhecidas, de um dos principais responsáveis pelo aparecimento
do Orpheu, de que foi inicialmente diretor. Refiro-me, claro, a Luís de Montalvor, cujo
Livro de poemas também revelei em 1998, e de que publicarei mas tarde as cartas que
recebeu e escreveu, muitas das quais inéditas.
Mas nesta oportunidade gostaria de propor algumas reflexões que prolongam ou
aprofundam as que deixei no livro Os Órfãos do Orpheu.
1) O nome do Orpheu
Fernando Pessoa escreveu Orpheu, com ph. Mas em tempos que já eram, imagine-
se, de acordos e desacordos ortográficos, não faltava quem escrevesse com f, mesmo
entre os colaboradores da revista. Ronald de Carvalho, por exemplo, usou sempre essa
grafia nas cartas a Montalvor. Recorde-se aliás o que Almada Negreiros escreveu no
Diário de Lisboa de 8 de Março de 1935: que no Orpheu até a ortografia era a de cada
autor.
Pensando que o nome da revista veio do Brasil não é difícil entender a preferência
pela grafia com ph – porque toda a imprensa do Rio a usava então, quer na referência
ao mito, quer na referência a espetáculos de música ou dança, quer em nomes
individuais. Fica assim algo desfavorecida a hipótese da sugestão arcaizante (somada
à da sugestão do mito grego) que alguns viram nessa grafia, ou a de que o padrinho
ou os padrinhos dela tinham imitado os da revista coimbrã de 1912, Dionysos, com
y grego.
9 Id., p.595.
10 Id., p.100.
11 Fernando Pessoa, Correspondência 1905-1922, edição de Manuela Parreira da Silva, Lisboa, Assírio & Alvim,
1999, p.148.
O Mito do Orpheu 623
3) O Tempo de Orfeu.
14 Poeira,2ª série (1911-1915), Porto, impresso na Empresa Literária e Tipográfica para a Editora Leite Ribeiro
& Maurillo, (1917), p.203.
15 Convergência, S Paulo, Livraria Duas Cidades, 1970 (ou: Poesia Completa e Prosa, Rio de Janeiro, Editora
Nova Aguilar, 1994, p.625). Antes desses dois versos finais o “exergo” – datado de “Roma 1964” - tem estes:
“Lacerado pelas palavras-bacantes / Visíveis tácteis audíveis / Orfeu / Impede mesmo assim sua diáspora /
Mantendo-lhes o nervo & a ságoma”.
16 “Perfis de Orfeu na poesia brasileira recente”, in Texto Poético, Vol.11, 2011.
O Mito do Orpheu 625
Maria Aliete Galhoz, que é hoje, com Eduardo Lourenço, a decana dos estudos
pessoanos e que nos anos 50 do século passado foi quem mais teve de se haver com
a letra de Fernando Pessoa, disse-me estar convencida que é deste - e não de José
Pacheco – a grafia do título na capa de Orpheu 1. Parece-me difícil admitir que José
Pacheco dividisse com outrem a responsabilidade da capa, que aliás tem semelhanças,
até na cadente cauda final, com a da revista Contemporânea, dirigida pelo mesmo José
Pacheco. Mas também me parece evidente a relação do grafismo do título do Orpheu
com o grafismo que Pessoa usa na referência ao Orfeu em três ou quatro manuscritos;
imitaria ele o que escreveu José Pacheco, ou foi este a imitar a letra de Pessoa? De
qualquer modo, temos de notar que Pessoa, tão presente em textos e dedicatórias da
revista, também estaria de algum modo presente logo no grafismo do título.
Projetada no Brasil, projetada como revista para Portugal e para o Brasil, a revista
Orpheu só se valeu da colaboração de 2 brasileiros, numa desproporção enorme; o
diretor brasileiro do 1º número foi afastado e substituído, apressadamente, e talvez
sem nenhuma explicação direta dos novos diretores, que na explicação pública nem
se preocuparam em referir o seu nome, como se só devessem uma explicação ao outro
diretor substituído; veja-se o que diz o já referido “Serviço da redação” com que abria
o n.º2:
Tudo leva a crer que nem foi enviada para assinantes brasileiros, que Ronald de
Carvalho supostamente angariara, a revista que, inesperadamente, se esgotou em
Portugal em duas semanas. Porque nunca foi encontrada notícia ou rasto de algum
exemplar que tivesse pertencido a Ronald ou a outro escritor brasileiro. E até há
pouco só me fora dado saber - por um recorte guardado num caderno de Mário de
Sá-Carneiro - de um perdido exemplar que chegou a uma revista carioca, que deu
o Orpheu como uma “publicação que honra sobremaneira os centros intelectuais
portugueses e brasileiros,” por isso lhe desejando “o mais brilhante futuro”, e que até
louvou o seu papel de “superior qualidade”, garantindo que podia “mesmo sofrer o
confronto” com duas das mais cotadas publicações parisienses.
O Mito do Orpheu 627
No seu prestimoso livro de 1986, A Era do Orpheu18, Nuno Júdice foi o primeiro a
dar extensa conta das reações da imprensa portuguesa à publicação da revista, creio
que usando as dezenas de recortes que Mário de Sá-Carneiro colou meticulosamente
em cadernos que confiou a Fernando Pessoa.
Como hoje é por demais sabido, tais reações só por exceção foram sérias e favoráveis,
como a que Carvalho Mourão publicou no jornal de província (de Estremoz),Terra
Nova, a 11 de Abril de 1915. Em geral eram sarcásticas, insultuosas, zombeteiras, e até,
de acordo com o que diz Júdice, “furiosas”.
Embora não tenha feito o inventário de tais reações nem a sua análise sistemática,
Júdice achou por bem referir separadamente reações “no Sul” e “no Norte”, quando talvez
tivesse sido mais pertinente referir em separado as reações “em Lisboa” e “na província”.
No entanto pôde afirmar, sem provas nem argumentos relevantes, que “o acolhimento
feito na província a Orpheu era bem mais positivo do que o que se verificava na capital”19.
No que concerne ao Norte, Júdice sinalizou referências de O Primeiro de Janeiro de:
- 7 de Abril (Guedes de Oliveira, “Carta de Lisboa”)
-13 de Abril (anónimo, “Orfeu”)
-3 e 4 de Julho (2 partes, anónimo, “Cartas do país”)
-9 de Julho (João Neiva, “Carta de Lisboa”)
-“Um grupo de novos /…/ resolveu despertar a atenção pública para algumas
extravagâncias, geralmente de péssimo gosto, e, na sua maioria, sem sombra de valor
de arte”
- “a lira deste Orpheu não mostra sonoridade nem grandeza”
- “a crítica mostra-se implacável com os colaboradores da original revista, que começou
a produzir exemplares curiosos, no género de literatura de manicómio”
- “são sublimes de poesia futurista estes berros em é, e em ó, e em y!”
Mas Nuno Júdice também ignorou uma crónica de Simões de Castro intitulada “O
caso do Orpheu” e publicada no jornal portuense A Tarde, de 15 de Abril, que é um
documento invulgarmente interessante para a teoria da receção da revista. O jornalista
começa por dizer que “não esmoreceu ainda nas gazetas o ardoroso furor de discutir
o caso da revista Orpheu, que os cronistas são unânimes em considerar como um
documento patológico”. E depois de lembrar que entre os colaboradores da revista “há,
sem dúvida, rapazes de talento, temperamentos originais e brilhantes que não podem ser
tratados do modo chocarreiro por que se trata o poeta Sevilha ou o poeta Camarão”, passa
a zurzir os críticos e os jornalistas incultos, “preguiçosos” e “desocupados”, das esquinas
19 Op.cit., p.74.
O Mito do Orpheu 629
e dos cafés, que, farejando o escândalo e a polémica para vender mais, “apareceram nas
folhas a denunciar o crime horrendo dos blagueurs do Orpheu, em rotundos artigos de
coluna, entrevistas, inquéritos”, e fizeram da revista “o assunto do dia nesta boa terra
de pacóvios”. Mas quando pensávamos que ele iria exaltar as virtudes da revista ou dos
seus colaboradores, eis que se limita a assinalar “o seu bizarro futurismo”, “uma blague
de criaturas de espírito” que quiseram “em hora de bom humor, épater o meio com
uma dúzia de excentricidades espetaculosas, o que, seja dito de passagem, conseguiram
plenamente”. E a conclusão da crónica era brilhante: “muitos dos críticos do Orpheu
escreveram a sério muito pior do que os colaboradores do mesmo Orpheu – a brincar”.
Como vemos, o Orpheu foi mais do que a “grande ferroada” a que se referiu Almada
Negreiros: foi, repito, um terremoto cultural, um claríssimo divisor ou clarificador
entre mentalidades portuguesas fechadas e abertas, acomodadas e inquietas, boçais
e criativas. O espantoso é que esse terremoto tenha sido produzido só com palavras
e quase só com palavras de poesia: para lá da poesia, nos dois Orpheu, que não
incluíram nenhum ensaio ou crítica, só houve uma peça de teatro – O Marinheiro,
de Fernando Pessoa -, só houve um texto em prosa, aliás a típica prosa enrolada,
caudalosa e vertiginosa (“novela vertígica”) de Raul Leal (Pessoa não quis publicar na
revista nenhuma página do Livro do Desassossego), e só houve a poesia prosaica ou
prosa poética dos “Frisos” de Almada Negreiros (a que no nº 3 se acrescentariam os
textos de Albino de Meneses, Augusto Ferreira Gomes e Castelo de Morais).
Para que tal acontecesse era necessária a conjugação de génios literários como os
de Pessoa, Sá-Carneiro e Almada; mas era também necessário o empenho, a entrega
e a coragem de que dão conta as cartas de Mário de Sá-Carneiro e de Pessoa, que
encararam a publicação do Orpheu como um dever ou uma missão urgente a cumprir
ao serviço de Portugal e até da humanidade.
Uma vez cumprida essa missão, ainda que parcialmente, percebe-se com clareza
a euforia que deles se apossou. Porque o Orpheu foi bem mais do que a bofetada
que os futuristas quiseram dar no rosto ou no gosto de homens ou de intelectuais,
escritores, jornalistas, rotineiros, preconceituosos, mesquinhos, sem generosidade,
sem inquietação, sem imaginação; foi a coragem e a ousadia do inconformismo, o
triunfo da liberdade criativa, a vontade de inventar um país novo, não só uma nova
literatura, de revitalizar uma língua de séculos – que foi a única usada na revista,
por portugueses e por brasileiros, em textos linguisticamente ortodoxos ou tão
heterodoxos como os de Raul Leal e, sobretudo, Ângelo de Lima. Isso terá levado
Fernando Pessoa a escrever que valia a pena aprender português só para ler o Orpheu.
630 100 Orpheu Arnaldo Saraiva
A polémica que suscitou o Orpheu foi ainda mais extensa e fecunda do que a do Bom
Senso e Bom Gosto, por não se limitar a ideias ou a ideologias, já que implicava a ideia
mesma da criação e da liberdade da criação. O espantoso é que os agentes de tal revolução
poderiam à partida parecer condenados à apagada e vil tristeza que o país ou a sua
condição existencial auguravam. Na verdade, eles eram testemunhas em plena juventude
de dramas e tragédias de um Portugal a entristecer, de lutas fratricidas entre republicanos
e monárquicos e até de assassinatos de um rei e de um presidente, ou de uma Europa onde
nascera e se travava a primeira Guerra Mundial. Mas não esqueçamos que quase todos
eles se viram também envolvidos em dramas e tragédias pessoais: a orfandade de pai ou
de mãe (Pessoa perdeu o pai quando mal completara os 5 anos, Côrtes Rodrigues perdeu
a mãe quando ainda não fizera um ano, Sá-Carneiro quando ainda não fizera 2 anos,
Almada perdeu-a com 3 anos…); a falta de suporte familiar, tão sentida por Sá-Carneiro
depois da morte da mãe e mais ainda quando o pai foi para Moçambique, e por Pessoa
quando regressou da África do Sul, ou por Almada, quando cortou com o pai, mas ainda
mais notada no vagabundo Raul Leal ou no isolado – no asilado – Ângelo de Lima; a falta
de apoio afetivo ou conjugal (Pessoa, Sá-Carneiro, Raul Leal…); a falta de dinheiro, que
impediu a publicação do 3º nº de Orpheu e gerou graves e repetidas aflições, sobretudo de
Sá-Carneiro e de Pessoa, mas também de Raul Leal depois que desbaratou uma fortuna;
as ameaças de perturbações mentais, que tanto preocuparam o neto da avó Dionísia, que
levaram Ângelo de Lima ao manicómio, que geraram os delírios ou vertigens de Raul
Leal, que isolaram ou marginalizaram Albino de Meneses; as mortes prematuras, por
suicídio (Sá-Carneiro), por doença anómala (Pessoa), por acidente automobilístico (que,
curiosamente, atingiu, em tempos e lugares diversos, os dois primeiros diretores do Orpheu,
Ronald de Carvalho, no Rio em 1935, e Luís de Montalvor, em Lisboa 1947). Note-se
que 30 anos depois da publicação do Orpheu já só viviam 5 dos seus 17 colaboradores –
Almada, Guisado, Côrtes Rodrigues, Ferro e Montalvor; e este morreria dois anos depois.
Homens “sem suporte” - e no Orpheu só colaboraram homens, não constituindo
excepção o colaborador com o ambíguo nome de Violante de Cysneros -, eles
encontraram na revista o seu lugar simbólico de segurança, de afirmação ou de triunfo.
O poeta americano Frank O´Hara evocou num seu poema a sua condição de menino
órfão, tímido e solitário, que todavia poderia dizer mais tarde:
20 Do poema “Autobiographia literaria”, in The Select Poems of Frank O’Hara, Nova York, Randon House, 1974.
O Mito do Orpheu 631
Cianuresco recorre aos cinco componentes da obra literária para diferenciar influência
de imitação e tradução, são eles: tema (compreendido como matéria e organização da
narração), forma ou molde literário (o gênero); recursos estilísticos expressivos, as
ideias e sentimentos (ligados à camada ideológica) e finalmente a ressonância afetiva. O
fenômeno da influência limita-se à absorção de um ou outro desses aspectos. (Nitrini,
1997: 161).
Ao entardecer, debruçado na janela, e sabendo de soslaio que há campos em frente, leio até
me arderem os olhos o livro de Cesário Verde (Alberto Caeiro)
Com quem se pode comparar Caeiro? Com bem poucos poetas. Não, diga-se desde logo,
com aquele Cesário Verde a quem ele se refere como a um antepassado literário, embora um
antepassado antecipadamente degenerado. Cesario Verde exerceu sobre Caeiro a espécie de
influência que pode ser chamada de simplesmente provocadora inspiração, sem transmitir
qualquer espécie de inspiração. (Op. 127).
estético que nomeou como Sensacionismo. E para que o mesmo tomasse forma, criou
seus principais heterônimos: Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos, cada um com
uma perspectiva diferente em relação ao Sensacionismo, sendo Caeiro o que mais
trabalha as sensações da visão. Os princípios do Sensacionismo são:
“1 – Todo o objeto é uma sensação nossa; 2 – Toda a arte é uma conversão de uma sensação
em objeto; 3 – Portanto, toda a arte é a conversão duma sensação em outra sensação”. [...]
“A base do Sensacionismo é a substituição do pensamento pela sensação, não só como base
de inspiração, mas como meio de expressão”. [...] Para Caeiro, no entanto, o Sensacionismo
significa a sensação das coisas como são, sem acrescentar a isto quaisquer elementos de
pensamento pessoal, convenção, sentimento ou qualquer outro lugar da alma”. (Pessoa,
F., 1974: 129-130).
V
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas cousas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada...
IX
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.
Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.
XXIV
O que nós vemos das cousas são as cousas.
Por que veríamos nós uma cousa se houvesse outra?
Por que é que ver e ouvir seriam iludirmo-nos
Se ver e ouvir são ver e ouvir?
Para os impressionistas, o que eles pintavam era o que exatamente estava sendo
visto. Não uma pintura das ideias, dos conceitos, perspectivas e normas. Mas uma
pintura das sensações, No entanto, este nascimento é rapidamente abafado pelo
pensamento e pelo conhecimento sobre o mundo “de que vale uma sensação se há
sempre uma razão exterior para ela?”.
Quando o pintor não estabelece uma linha divisória entre sentido e experiência ele
não vê os detalhes, ao observar detalhes, a sensação parte para um plano secundário
e entrega os sentidos à razão, às coisas pré-concebidas.
Não há na poesia de Caeiro nenhuma proposta de cunho idealista e nem política.
Caeiro apenas observa a natureza e tenta traduzi-la em palavras da maneira como ela
se mostra através de suas sensações. No impressionismo a pintura apenas tenta captar
as formas e as cores tal quais são vistas, da maneira que são vista por seu espectador.
No entanto, Caeiro explora essa percepção, libertando a visão de qualquer referência
significativa que se interponha entre o ser e o mundo.
Da mesma forma, Caeiro constrói sua poesia sensacionista. Vertendo versos em
palavras que se objetivam a partir das sensações, do que é visto. Falando das coisas
A Poesia Pictórica de Alberto Caeiro 639
como elas são. Olhando-as sem subjetivação, sem a borra de conceitos filosóficos
ou outra ciência. Caeiro fala da realidade esculpida pela palavra poética, mas da
realidade dita pelas sensações. Ele não apenas traça o contorno dos temas ditados
pelo que é visto, mas também oferece como material sensível a língua trabalhada. É
isso o que Caeiro repete em todos os seus poemas. O pensamento ou a consciência
das coisas surgidas pela aprendizagem intelectual introduzem elementos estranhos no
percebido, fazendo-nos crer que uma flor ou uma paisagem pode nos trazer tristeza
ou alegria; mas a flor é apenas flor, a nuvem é apenas nuvem e tristeza ou alegria não
são coisas. Não se deve misturar o objetivo com o subjetivo. “Toda coisa que vemos,
devemos vê-la sempre pela primeira vez, porque realmente é a primeira vez que a
vemos” (Caeiro, OP. 108).
Da mesma forma, nas telas impressionistas não havia a intenção de educar, comover
ou moralizar o expectador como nos estilos anteriores, a exemplo do classicismo e
romantismo. Mas apenas tentar causar a mesma sensação no expectador que o autor
da tele sentiu ao observar a paisagem.
Quanto às aproximações do poema com o impressionismo no que se refere
à estrutura do texto temos algumas particularidades tanto no campo das palavras
quanto no campo da leveza da escrita e leitura. As expressões: “olhar nítido como um
girassol” e “olhando para a esquerda e para a direita”, nos dão a noção de perspectiva
e espacialidade existentes no impressionismo. A imagem do girassol representa
o respeito à luminosidade usada pelo artista para conceber a obra. As palavras:
momento, nunca, nascer e eterno, nos dão o sentido de tempo, o tempo efêmero do
impressionismo. O poema como um todo, constrói-se como um olhar para a natureza,
em momentos e cenas recortadas. À medida que descreve sua atividade de observador
o eu - poético registra impressões que se entrecruzam em diferentes momentos.
Assim como os impressionistas reproduziam a imagem do que era realmente
visto como parte do mundo comum, Alberto Caeiro fez poemas que estimulavam
o exercício da percepção visual, porque na descrição dos objetos transpareciam
aspectos da ordem da cor, da luminosidade, da forma etc. Nossa visão deixou de
reparar na originalidade da paisagem que constantemente está ali diante de nós. No
impressionismo, o pintor deixa de lado os detalhes criados pelo pensamento, pelo
mundo concebido pelo conhecimento e revela a natureza, regatando a origem das
coisas que nos parece tão distante. Buscar essa origem das coisas, ver o mundo como
uma criança ao nascer é justamente o que Caeiro faz a partir de uma visão natural e
simples da vida, de uma existência consciente de que os objetos aparecem a nós como
fenômeno visível antes mesmo de serem um conceito ou um nome.
Caeiro em todo poema do Guardador de Rebanhos, tenta desvincular-se
da atividade racional e mostrar apenas a existência visível das coisas, não está
640 100 Orpheu Gilvan José da Silva Filho, Christina Bielinski Ramalho
Bibliografia
Marta Soares
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa
I.
Para Orpheu
(…)
Ver, ouvir, cheirar, gostar, palpar — são os únicos
mandamentos da lei de Deus.
Os sentidos são divinos
porque são a nossa relação com o Universo,
e a nossa relação com o Universo Deus.
(PESSOA, F., 2009: 177)
II.
1 Refiro-me ao poema de 35 Sonnets: “How many masks wear we, and undermasks…”.
2 À excepção de Trou de la serrure Parto da Viola Bon Ménage Fraise Avant-Garde (Fig. 2) que tem um título
documentado, as restantes obras enumeradas são intituladas postumamente em função das inscrições
(Entrada ou Coty) ou em função das figuras (máquina registadora) mais relevantes.
Amadeo e Orpheu 645
Parto da Viola (Fig. 2) é um possível ponto de partida para a relação entre Amadeo
e Orpheu. Através do título, Amadeo destaca um buraco da fechadura, uma viola de
arco e um morango. Estes três detalhes podem apontar para experiências sensoriais
(o gesto de espreitar pelo buraco da fechadura representaria a visão, a viola a audição,
o morango o gosto). Tendo em conta a valorização das sensações no sensacionismo
(movimento projectado por Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro que tende a
conotar-se com a revista Orpheu), estes elementos do quadro de Amadeo activam a
possibilidade da pintura entrar no debate da representação da sensação, um debate
pictural que remonta a outras cronologias – é visível na natureza-morta de Jacques
3 «Não tanto Santa-Rita, com quem rapidamente se zangaria, mas os próprios poetas do Orpheu, a quem
visitou entusiasmado, iam exercer sobre ele uma influência nova, levando-o a um movimento que, num
élan colectivo de camaradagem, podia canalizar-lhe as revoltas pessoais. Decidido a expor com eles, tratado
como uma bandeira necessária para completar a empresa pelo lado artístico, Amadeo foi o pintor futurista do
momento, muito mais do que Santa-Rita, seu rival menos produtivo, ou menos facilmente produtivo, que aliás
o diminuirá nas páginas do Portugal Futurista (...).» (FRANÇA, J.-A., 1991 [1979]: 29) [Itálicos acrescentados]
4 «Isolado, numa solidão que pesa cada vez mais, e que acaba por ter que ver com os seus próprios companheiros
da fugaz aventura lisboeta que parecem tê-lo esquecido, uma vez longe das tertúlias da capital – Amadeo
evolui a par daquilo que iria dar sentido maior à arte do pós-guerra, este “dadaísmo” ferozmente anti-cubista,
do parentesco futurista sem teoria acreditável, de parentesco expressionista também, por necessidade de
revolta.» (FRANÇA, J.-A., 1986 [1957]: 131)
646 100 Orpheu Marta Soares
Linard (Les Cinq Senses, c. 1638), ou nas alegorias da Visão e do Olfacto, de Brueghel,
O Velho. Já no contexto modernista, Le Gouter, de Metzinger, ou Il Profumo, de
Russolo, continuam essa via.
5 «Todas as formas da sensação teem estados diversos comparados aos trez estados da materia. Assim temos
passagem da sensação do solido para o liquido: A côr já não é côr, é som e aroma. / A passagem do liquido
para o solido - O aroma endoideceu, upou-se em côr, quebrou.» (PESSOA, F., 2009: 114)
Amadeo e Orpheu 647
Tal como Amadeo, Camilo Pessanha seria um colaborador de Orpheu 3. Uma leitura
comparada de Parto da Viola com o poema “Os Violoncelos”, que Pessoa manifestou
interesse em publicar na revista (PESSOA, F., 1999 [1915]: 185), pode aproximá-los ao
nível do animismo dos instrumentos musicais – expresso na invocação às “arcadas do
violoncelo” que choram. Uma subtil antropomorfização observa-se no humanizado
da viola de Amadeo, no pormenor do disco-olho embutido no tampo e na indicação
do nascimento de uma viola de arco (ou de uma viola em trabalho de parto). Também
a fragmentação das peças – “despedaçam-se, as cordas” – domina no poema e no
quadro, onde circulam cordas, buracos “f ” e peças de uma guitarra.
Por concretisação abstracta da emoção entendo que a emoção, para ter relevo, tem
de ser dada como realidade, mas não realidade concreta, mas realidade abstracta.
Por isso não considero artes a pintura, a escultura e a architectura, que pretendem
concretisar a emoção no concreto. Há só trez artes: a metaphysica (que é uma arte),
a literatura e a musica. E talvez mesmo a musica... (PESSOA, F., 2009: 172)
6 Até este momento nada mais disse que Orpheu tinha sido o nosso encontro actual das letras e da pintura.
É tudo o que queria ter dito. A continuar seria isto mesmo no resultado do Orpheu. Nenhuma geração post
Orpheu se acusa no da pintura não separada do seu encontro com as letras. Orpheu continua. (NEGREIROS,
J. de A., 1997: 1088).
7 “Seria escusada esta notificação se a crítica ao Orpheu alguma vez tivesse dado conta do encontro actual das
letras e da pintura, o qual é no Orpheu o seu evidente sentido mesmo.” (NEGREIROS, J. de A., 1997: 1092).
648 100 Orpheu Marta Soares
Embora uma primeira leitura pareça extrair da resposta de Amadeo uma defesa da
inefabilidade da imagem, rapidamente se detecta que a anedota não é uma competição
profissional pela representação do mesmo referente. Aquilo que Amadeo contraria não
é uma descrição verbal da paisagem, mas sim um acréscimo, a narrativa épica que o
escritor (muito provavelmente Pascoaes) escreveu nas montanhas do Marão. A resposta
do pintor aproxima-se, assim, de mecanismos modernistas de fuga à narrativa e à
palavra, encaradas como ameaça num campo puramente visual, propenso a pesquisas
e abordagens formalistas que tendem a valorizar a abstracção (MITCHELL, W.J.T.,
1989).
Perante uma vasta produção que coincide com a estadia de Amadeo de
Souza-Cardoso em Portugal (1914-1918) e o contacto com elementos de Orpheu,
é notável a sua preocupação com os títulos. Muitos são longos, bilingues e podem
remeter para a mesma história (como Crime Abismo Azul Remorso Físico e Mulher
Decepada Brisement de la Grace Croisée de Violence Nouvelle) ou para um tópico em
desenvolvimento (como O Larápio do Quadrado Encarnado e A Ascensão do Quadrado
Verde..., em que uma figura abstracta dialoga com a figuração; e Luxúria do Violino...,
Parto da Viola..., Vida dos Instrumentos, dedicados ao animismo dos instrumentos
musicais). O título Promontório cabeça indigo MARES D’OSSIAN rose orange (Fig. 3)
estabelece uma explícita relação com um excerto de Illuminations, de Rimbaud:
Du détroit d’indigo aux mers d’Ossian, sur le sable rose et orange qu’a lavé le ciel
vineux viennent de monter et de se croiser des boulevards de cristal habités incontinent
par des jeunes familles pauvres qui s’aliment chez les fruitiers. Rien de riche. – La
ville ! (RIMBAUD, A., 2010 [1886]: 231)
Na tradução portuguesa de Cesariny:
Do estreito de índigo aos mares d’Ossian, na areia rosa e laranja que o céu vinhento lavou,
acabam de erguer-se e de cruzar-se avenidas de cristal imediatamente ocupadas por
jovens famílias pobres que se alimentam do que compram nas lojas de hortaliça. Nada de
grandioso. – A cidade! (RIMBAUD, A., 1972 [1886]: 70).
Amadeo e Orpheu 649
Colecção particular
V. Os 4 hors-textes de Orpheu 3?
Em Orpheu 1915-1965, Almada afirma que tem na sua posse as fotografias dos
quadros de Amadeo que seriam reproduzidos em Orpheu 3 (NEGREIROS, J. A., 1997
[1965]: 1087). Almada poderia ter satisfeito a nossa curiosidade no cinquentenário
de Orpheu, revelando os títulos dos quadros ou publicando essas fotografias. Ao
suspender a revelação, mantém Amadeo no núcleo das colaborações indefinidas da
revista: «Os queridos companheiros de Orpheu não estão todos nos dois números
saídos incluindo o terceiro quase impresso.» (id.: 1084).
É provável que não fosse do interesse de Almada precisar as obras. Tanto na
conferência “Cuidado com a Pintura!” (NEGREIROS, J. de A., 2006 [1934]: 219-235),
650 100 Orpheu Marta Soares
*****
poderá ter servido de base para a edição das 12 Reproductions [álbum publicado por
Amadeo em 1916] (...). No verso verifica-se a indicação gráfica do título da obra nesta
publicação. A pintura reproduzida nesta fotografia ainda não apresenta o letrismo a pochoir.
Estes elementos pictóricos foram acrescentados à obra numa data posterior. As inscrições
na margem inferior da fotografia não parecem ser da autoria do artista (FREITAS, H., 2008:
307).
8 Sobre a apropriação dos discos simultâneos e o quadro de título desconhecido [“Entrada”], leia-se (LEAL, J.
C., 2012; 2013).
Amadeo e Orpheu 651
Estas três fotografias suscitam interesse pelo registo dos quadros ainda sem
inscrições com pochoir, pelas anotações dos títulos, pela assinatura, datação e
numeração. No topo do verso da fotografia de Parto da Viola, lê-se, a lápis, “nº 2”. Par
Ímpar corresponde a um “nº 4”...
Quando se cruza esta informação com o espólio de Amadeo de Souza-Cardoso na
Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian, o resultado é surpreendente.
Num dossier de reproduções de obras de Amadeo, há um pequeno núcleo de
fotografias que terão sido encomendadas pelo pintor aquando da preparação das
exposições de 1916 e do álbum 12 Reproductions. Quatro delas estão numeradas (de
1 a 4) e anotadas no verso.
Fig. 8 – Legendas dos hors-textes de Santa-Rita Pintor Fig. 9 – Detalhes das anotações de Amadeo de
12 Tratam-se de fotografias coladas nas páginas em branco de um catálogo de Robert Delaunay localizado por
Sara Afonso Ferreira. Esta documentação foi-me gentilmente cedida por Sara Afonso Ferreira e Mariana
Pinto dos Santos.
13 No catálogo das suas exposições de 1916 (SOUZA-CADOSO, A. de, 1916) e na correspondência com os
Delaunay: “Rimbaud est dans ma chambre” (SOUZA-CARDOSO, A. de. 1981 [1916]: 134-135).
654 100 Orpheu Marta Soares
Destaca-se, por fim, a clave de sol invertida14 no título de Parto da Viola (nunca
publicada – nem em 12 Reproductions, nem nos catálogos das exposições de 1916).
A sua ausência pode sugerir uma dificuldade tipográfica (curiosa, tendo conta a
reprodução bem sucedida dos grafismos inseridos no título de Arabesco dinâmico) ou
um acréscimo desta nota de Amadeo que se destinava a outra publicação, suspensa...
Esperemos que esta selecção, que reúne altas probabilidades de resolver o mistério
da colaboração plástica de Orpheu 3, contribua para a problematização do lugar de
Amadeo de Souza-Cardoso em Orpheu. É importante alertar para a qualidade da
amostra (bastante superior à de Portugal Futurista) e para a coerência da mesma (pelos
títulos). Num primeiro nível, reage (em última análise, provoca) à obra de Santa-Rita,
adoptando traços do repertório plástico da revista. Mas os títulos de Amadeo não
se resumem aos “esplendores mecano-geométricos” futuristas de Santa-Rita mais
evidentes em Arabesco dinâmico. Eles apontam para ambiguidades, destacam
elementos da tela ou verbalizam a cor. Realçam, com a palavra, a fragmentação e
outros sentidos da imagem. Noutro nível, que escapa à escolha de Amadeo, Parto da
Viola congrega a possibilidade de construir uma aproximação ao sensacionismo.
Bibliografia
Bibliografia Activa
AA.VV. (1989 [1915]). Orpheu: Edição facsimilada. Lisboa: Contexto.
AA.VV. (1990 [1917]). Portugal Futurista. Lisboa: Contexto.
FREITAS, Helena de (coord.) (2008). Catálogo Raisonné: Amadeo de Souza-
Cardoso: Pintura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian; Assírio & Alvim.
GALHOZ, Maria Aliete (ed.) (1971 [1959]). Orpheu. Lisboa: Ática.
GALHOZ, Maria Aliete (ed.) (1979 [1976]). Orpheu 2. Lisboa: Ática.
NEGREIROS, José de Almada (1997 [1965]). “Orpheu 1915-1965”, In Obra
Completa: Manifestos, Ensaios, Prosa Doutrinária. Rio de Janeiro: Nova Aguilar.
14 Para uma interpretação mais completa da clave sol em Parto da Viola, leia-se (SOARES, M., 2014: 15). Numa
troca de e-mails, Mariana Pinto dos Santos adiantou outra leitura para a clave de sol invertida. Cito, com a
autorização da investigadora: «Teríamos assim no título de Amadeo uma propositada ambiguidade em que
o próprio título representa algo: a pauta é a pauta em si, suporte de notação musical, e é objecto, as cordas da
guitarra. A clave de sol em espelho pode adicionar ainda mais um patamar de leitura: do buraco da guitarra
emergem os sons, ao vê-la ao contrário estamos a olhar de dentro para fora, através das cordas da guitarra que
são também pauta; nós estamos dentro da guitarra, o quadro é o seu interior, a caixa de ressonância. Quando
olhamos para fora é como se espreitássemos pelo buraco da fechadura. O quadro é uma caixa de ressonância
e olha para fora de si, para o exterior — o sentido é inverso do que se poderia pensar quando se evoca o "trou
de la serrure", isto é, não olhamos para dentro do quadro como que por um buraco de fechadura, ele é que nos
olha assim.» [E-mail enviado a 17-02-2015, 17:54].
Amadeo e Orpheu 655
Bibliografia Passiva
ALMEIDA, Bernardo Pinto de (2002 [1993]). “O Futurismo em Portugal.” In
Pintura portuguesa no século XX. Porto: Lello Editores.
ALVARENGA, Fernando (1984). A Arte Visual Futurista Em Fernando Pessoa.
Lisboa: Editorial Notícias.
DAUNT, Ricardo (2007). “Amadeo de Souza-Cardoso E Fernando Pessoa:
Simultaneísmo Órfico e Interseccionismo: Aproximações”. Vértice, v. 186.
FERREIRA, Ermelinda Maria Araújo (2007). “Mário de Sá-Carneiro e Amadeo
de Souza-Cardoso: o Triunfo da Cor.” In A Mensagem e a Imagem: Literatura
e Pintura no Primeiro Modernismo Português, 135–89. Recife: Editora
Universitária UFPE.
FRANÇA, José-Augusto (1986). Amadeo & Almada. Venda Nova: Bertrand.
FRANÇA, José-Augusto (2009 [1974]). A Arte em Portugal no século XX:
(1911-1961). Lisboa: Livros Horizonte.
FRANÇA, José-Augusto (1991 [1979]). O Modernismo na Arte Portuguesa. Lisboa:
ICALP.
FRANÇA, José-Augusto (2004). História da Arte em Portugal: O Modernismo.
Lisboa: Presença.
656 100 Orpheu Marta Soares
Agradecimentos
Rui Sousa
CLEPUL
Em principios de 1915 (se me não engano) regressou do Brasil Luiz de Montalvor, e uma
vez, em Fevereiro (creio), encontrando-se no Montanha commigo e com Sá-Carneiro,
lembrou a idéa de se fazer uma revista, trimestral – idéa que tinha tido no Brasil, tanto
658 100 Orpheu Rui Sousa
assim que trazia alguns poemas de poetas brasileiros jovens, e a idéa do próprio titulo da
revista – “Orpheu” (apud Castex, F., 1968: 59).
suas mudanças” (BRAGA, R. S., 2008: 5)1. Procurando manter um permanente diálogo
com os meios cosmopolitas europeus, nomeadamente aqueles que se centravam em
Paris, e acompanhando em simultâneo a transformação do Rio de Janeiro em função
das novas tecnologias, transportes, modelos culturais e comportamentais, Fon-Fon!
era também um dos palcos principais para o encontro de uma ambiciosa geração de
jovens poetas particularmente atentos aos ecos do Velho Continente. Álvaro Moreira
descreve exemplarmente esse Grupo da Fon-Fon!:
A geração do Fon-Fon! era tida por simbolista. Na verdade era maníaca. Se os dois adjetivos
não qualificam o mesmo substantivo, a diferença deve ser essa. Cada um dos iniciadores e
dos incorporados, sem nenhuma combinação, adorava o Outono, o Poente, o Incenso, [...]
os Pierrots de Willettem, a Boêmia de Puccini, os Noturnos de Chopin, Bruges com todos
os canais, Paris com todas as canções... Geração estrangeira. Estávamos exilados no Brasil.
Achávamos tudo ruim aqui. [...]. (MOREIRA, Á., 2007: 66)
No núcleo desses poetas encontravam-se pelo menos alguns dos que colaboraram
em Orpheu ou, pelo menos, foram pensados para a ponte estabelecida por intermédio
de Montalvor2. Referimo-nos a nomes como Mário Pederneiras, um dos fundadores
da Fon-Fon!, Felippe d’Oliveira, Olegário Mariano, Homero Prates, Rodrigo Otávio
Filho, Carlos Maul, Álvaro Moreira e, mais especificamente, a Eduardo Guimaraens,
Ronald de Carvalho e ao próprio autor da “Introducção” do primeiro número de
Orpheu. No caso dos dois brasileiros, a participação na revista carioca começou a
verificar-se desde muito cedo3. No número de 15 de julho de 1911, Ronald de Carvalho
estreava-se com o soneto “Ardentias...”; já o poeta do Rio Grande do Sul, aquando da
primeira estadia no Rio de Janeiro, no decorrer da qual estabelecera contacto com a
Geração de Fon-Fon! e com Luís Ramos, publicaria o primeiro poema, “Melodia de
outomno”, a 5 de outubro de 19124.
5 https://www.youtube.com/watch?v=xEfcJowGZgs
6 Para uma leitura da importância da tradição portuguesa no desenvolvimento da poética dos de Orpheu,
cf., por exemplo, os seguintes textos de Paula Morão: “Na senda de Orpheu – alicerces e consequências”
(Morão, P., 2011a: 13-28) e “Portuguese Precursors of the First Modernist Generation” (MORÃO, P., 2011b:
12-23).
Contextos de Orpheu nas páginas de Fon-Fon! 661
Correia Dias, cuja visita ao Brazil estava annunciada desde o outro anno, chegou emfim ao
Rio... Vem de Coimbra... Recebeu em Lisbôa o applauzo de todos os criticos, ao aprezentar
os seus trabalhos no salão da Illustração Portugueza. É um artista novo, com uma maneira
muito individual, um traço fino, extranho (...).
E aos nossos amigos, que são todos os nossos leitores, recommendamos o espiritual artista
da moderna geração de Portugal.
Há ainda typos raros de mystica doçura, de expressão serena, de gestos tão neves que nem
se lhes move a sombra que o sól dá a cada um e a cada coisa na terra, e assim são, dir-se-hia,
por amor da harmonia que os cerca e para não serem causa de que ella se desfaça num só
momento. A voz com que dão vida ao pensamento, parece que chega a nós por modos extra
naturaes, tão branda sôa e atravessa o ar em torno sem ruido quasi.
7 A este respeito, cf., por exemplo, a recente edição facsimilada de Orpheu 1915-1965, texto fundamental no
qual Almada Negreiros acentua a importância do encontro entre as diferentes expressões artísticas, em torno
de personalidades como Pessoa, Sá-Carneiro, Amadeo ou Santa Rita Pintor, sendo o próprio Almada o mais
expressivo representante desse programa intrinsecamente modernista (NEGREIROS, A., 2015).
Contextos de Orpheu nas páginas de Fon-Fon! 663
função de uma revista capaz de reunir as iniciativas dos jovens poetas inovadores.
Embora não se conheça se os importantes textos que marcaram a estreia editorial de
Fernando Pessoa, em 1912, tiveram algum impacto no Brasil, A Águia, o orgão da
Renascença Portuguesa em que foram publicados, não era de todo desconhecida. A
6 de setembro de 1913, Mário Pederneiras (M. P.) criticava o panorama literário
português da época, aproximando-se dos comentários trocados entre Pessoa e
Sá-Carneiro, nas missivas do mesmo ano de transição. A 25 de março, por exemplo,
Sá-Carneiro insiste na “possível monotonidade” (Sá-Carneiro, M., 2001: 60)
da poesia de Mário Beirão, autor d’ O Último Lusíada, e a 14 de maio, Pessoa – em
palavras resgatadas pelo autor de A Confissão de Lúcio – descreve a Renascença como
“uma corrente funda, rápida, mas estreita” (Sá-Carneiro, M., 2001: 88). Ora, logo
no início do seu comentário, Pederneiras estabelece um contraste significativo entre o
“moderno movimento poético de Portugal”, como primeiro lhe chama, e a “moderna
geração de poetas portuguezes”, dando a entender que, apesar de jovens, as principais
figuras da poesia portuguesa do tempo não eram suficientemente representativas do
que ele entendia por “moderno”; Pederneiras lê-os como uma geração carente de “um
poeta forte, que emocione pela amplitude do assumpto, nem pelo rigor da fórma”
e critica, também, o tom predominante na poesia do movimento saudosista, típico
de uma poesia “triste, extremamente triste, cantando maguas, chorando o passado,
evocando a languidez das recordações”, na esteira de António Nobre, mas sem
qualquer preocupação em dar continuidade às importantes vozes poéticas de Cesário
Verde e de Eugénio de Castro, referências dos poetas de Orpheu.
Cumpre assinalar também que, no mesmo ano de 1913, período em que se
projetava em Portugal uma publicação coletiva capaz de representar uma nova escola
e encarnar uma voz crítica, no Brasil exigia-se idêntica atitude renovadora, capaz de
congregar as vozes dispersas dos jovens poetas. A 26 de abril, lê-se em Fon-Fon!:
A actual geração literaria, precisa movimentar-se e dar á sua passagem pelas nossas letras
um cunho de vitalidade e de competencia.
Todos estes bellos espiritos que surgem, com um brilhantismo offuscante e com um intenso
valor incontestavel, precisam iniciar um movimento em que o seu destaque seja decicivo e
benefico. (...)
Sempre tivemos, num inicio de geração, um natural periodo de lutas, congregadas numa
revista especial, onde dominavam os superiores do agrupamento, e onde se acolhiam todos
aquelles que vinham para apostolisação da nova Crença.
Hoje não ha uma revista desta especie. E todas as que surgem visam apenas a popularidade
da Rua, sem o necessario exclusivismo de um jornal de doutrina.
A geração actual está, portanto, em divida, neste ponto, com o nosso movimento literario.
664 100 Orpheu Rui Sousa
Parece-nos não dever ser afastada a hipótese de se sugerir que a revista idealizada
por Montalvor e Ronald seria de algum modo uma tentativa de cristalizar a
reação de alguns dos poetas do grupo a que estavam associados a esta e a outras
invetivas do periódico. Não faltam de resto, ao repto de Pederneiras, algumas linhas
estruturantes do conteúdo discursivo dos bastidores de Orpheu: (1) a perceção de
que, por via de publicação coletiva, a nova geração poderia exprimir-se mais ampla
e significativamente, face à dispersão das energias dos que nelas se conjugavam;
(2) o incentivo à coordenação em torno de alguns vultos mais relevantes, possíveis
iniciadores de uma nova escola; e (3) a necessidade de ser ultrapassado o mero
escândalo da “popularidade da Rua” e a consequente efemeridade das manifestações
artísticas carentes de um projeto coeso. Na sequência de cartas de Pessoa para
Côrtes-Rodrigues, de setembro de 1914 a janeiro de 1915, também são frequentes as
passagens em que se sublinha a necessidade de algo mais do que a pura provocação.
Na célebre carta de 19 de janeiro, por exemplo, é clara a exposição, por parte de
Pessoa, de um entendimento da própria obra em que são evidentes intuitos muito
mais abrangentes do que aqueles que chegaram a nortear projetos anteriores a Orpheu,
nomeadamente uma provocatória Antologia do Interseccionismo.
Outro fenómeno que se evidencia nas páginas de Fon-Fon! e que se assemelha ao
que acontece em Orpheu é a proliferação de anúncios de projetos editoriais nunca
concluídos ou dados à estampa. Recordem-se, entre outros, os casos de Fernando
Pessoa, que, logo em Orpheu 1, anunciava um dos muitos esboços de obras dispersos
pelo seu espólio, Arco de Triunfo, mas também as sugestivas conferências de Santa
Rita Pintor, de Manuel Jardim, de Raul Leal e de Mário de Sá-Carneiro, referidas nas
páginas de Orpheu 2 e que, como sugere Fernando Cabral Martins, funcionam no
âmbito da performatividade inerente ao espírito dos modernistas portugueses – e,
como veremos, também recorrente na construção da imagem de Ronald de Carvalho
enquanto autor. O ensaísta salienta que “Tudo se passa como se essas conferências
se cumprissem no simples acto do seu anúncio, por uma pura performatividade que
pudesse prescindir de mais texto” (MARTINS, F. C., 2012: 138).
O mesmo procedimento ocorre nas páginas de Fon-Fon! No número de 29 de
março de 1913, a revista voltava a dedicar atenção privilegiada a Luís de Montalvor,
classificando-o como um dos “poetas novos” e citando-o já de acordo com o
pseudónimo que o tornaria célebre. Nesta nota, refere-se O Lusíada encantado,
um livro em preparação e descrito como um “tour de force neste momento pleno
da literatura portuguesa”. Na nota, figura a estrutura do livro, constituído por doze
partes, cujos títulos são delineados, tal como a atmosfera enigmática que rodeava a
sua preparação: “Conseguimos que Luiz nos mostrasse um excerpto que fosse do seu
livro, e foi da confusão de notas rabiscadas n’um caderno que extrahimos alguns versos
Contextos de Orpheu nas páginas de Fon-Fon! 665
Há por todas aquellas paginas magnificas, que a intimidade carinhosa do poeta nos permittiu
lêr, a fulguração quente e luminosa de Ouro novo; o sabor acre e impressão escarlate do
Sangue vivo e, por fim, o encanto socegado, longo e suggestivo do Silencio.
Eduardo Guimaraens é um poeta pessoal, possuindo uma nitida visão esthetica da Arte
difficil do Verso e sabendo movimentar e impor a emoção que detalha ou o sentimento que
analysa.
Esta é, aliás, a característica preciosa da moderna geração de poetas riograndenses, que
vamos conhecendo agora. Cada um tem o seu geito, o seu feitio, e a sua nota pessoal.
Depois de installado em Pariz, Ronald, uma noite, no socego do seu apartamento, releu o
seu livro, cuidadosaente, despreoccupadamente.
Releu-o e não gostou; achou-o falho e cheio de impressões extranhas.
Longe do applauso incondicional das coteries litterarias e das amizades pessoaes, do elogio
facil da imprensa e de estimulos extemporaneos, sosinho, isolado em terra extranha, a idade
mais sazonada, o espirito mais educado pela bôa leitura sã e digna, o Poeta avaliou bem a
inutilidade que representava o esforço daquelle livro, sem feição individual, nem segura
nota de emoção real. Acabou de relel-o, retirou-lhe duas ou tres poesias que lhe pareciam
melhores e atirou ao fogo, resolutamente, o resto dos versos que deviam constituir o seu
livro (...).
No dia seguinte, Ronald de Carvalho, começou a trabalhar no novo livro, que foi a sua
grande preoccupação, durante o tempo em que esteve na Europa.
Este livro ahi está, impondo-se como um trabalho superior, uma obra original e emotiva.
Esta nota indicia que o contacto com a capital europeia da cultura, num clima de
absoluto exílio e interiorização, tão caro aos órficos, potenciou um espírito novo, capaz
de converter o autor de uma obra de assuntos bebidos “em todas as manifestações da
nossa bizarra Natureza” num representante por excelência dos “Poetas Modernos”
que em Paris pululavam. De facto, Luz Gloriosa constitui um dos primeiros livros
publicados por um (futuro) colaborador da revista Orpheu – são também de 1913
A Liberdade Transcendente, de Raul Leal, e Rimas da Noite e da Tristeza, de Alfredo
Pedro Guisado. O exemplar dedicado pelo poeta a Fernando Pessoa motivaria,
como é conhecido, a única missiva conhecida do poeta português para aquele que,
anos mais tarde, seria o único colaborador de Orpheu a marcar presença na célebre
Semana de Arte Moderna de 1922. Essa carta, aliás, apresenta indícios de que Pessoa
terá apreciado a poesia de Luz Gloriosa, sobretudo – como se poderá verificar pelo
Contextos de Orpheu nas páginas de Fon-Fon! 667
exemplar que consta da sua biblioteca11 – nos poemas da segunda secção da obra,
“Vida Silenciosa”.
Antes de finalizar esta exposição de alguns dos muitos aspectos em que Fon-Fon! se
assume como um interessante interlocutor dos futuros desenvolvimentos do projeto
de Orpheu – a que não é alheia também a publicação do poema “Vontade de Dormir,
de Mário de Sá-Carneiro, no número de 24 de janeiro de 1914, colaboração potenciada
provavelmente pela amizade entre Montalvor e os representantes de ambos os grupos
em desenvolvimento – parece-nos interessante apresentar um texto de Eduardo
Guimaraens, no qual figura um amplo entendimento e apologia da individualidade
poética. Trata-se de “Palavras a um Novo”, publicado em 25 de outubro de 1913. Se é
verdade que este texto se afasta de algumas das principais teses pessoanas a respeito
do fenómeno poético, nomeadamente no que respeita à recusa da aniquilação de
um Eu individual, será importante reter algumas das suas ideias, nomeadamente
a supremacia dos grandes poetas relativamente às correntes literárias e a recusa da
subjugação da arte a qualquer moral ou doutrina exterior. Para Eduardo Guimaraens,
o que fica da arte verdadeira é “o que havia da alma do artista, feita emoção, feita
imagem, feita rythmo”, o que aponta tanto para um subjectivismo devedor da
tradição romântica, que os de Orpheu encarariam com evidentes reservas, como para
a supremacia do imaginário, do sonho e da musicalidade. A apologia, por parte do
poeta da Divina Quimera, da ideia de que “em arte, não ha theoria possivel, não ha
idéas centraes dominantes, scientificas ou não, a obedecer” poderia perfeitamente
ser subscrita por Pessoa, por exemplo nos apontamentos, provavelmente de 1913, a
respeito do processo pelo qual “a arte moderna se tornara a arte pessoal”, exigindo
“uma interiorização cada vez maior – para o sonho crescente, cada vez mais para
mais sonho” (PESSOA, F., 1967: 156). Nos conselhos ao jovem interlocutor ao qual se
dirige o texto “Palavras a um Novo”, o sonho adquire também assinalável destaque:
“tudo está, a principio, em ler, ler muito, ler tudo [...]. Sentir o que leias, sobretudo.
É preciso, depois, que vivas. Eu te direi: vive, ama, soffre. Sonha, acima de tudo! Sê o
mais possível tu mesmo: porque a maior parte do mal está em aniquilar a noção do
Eu. Toda a tua poesia será immediatamente original”. Parece existir uma deliberada
aproximação entre os planos do sonho e da identidade, que propicia uma outra forma
de compreender a noção do Eu, que já não é a do subjetivismo romântico expresso
enquanto experiência simples, mas uma projeção de um mundo onírico adquirido
no contacto do sujeito com o mundo exterior e depois trabalhado poeticamente.
Para se ter uma noção do alcance deste texto, bastará, mesmo sem aprofundarmos a
11 Consultável em http://casafernandopessoa.cm-lisboa.pt/bdigital/8-93/2/8-93_item2/index.html.
668 100 Orpheu Rui Sousa
polémica com José Oiticica por ele desencadeada, ter em conta que a 29 de novembro
Mário Pederneiras (M. P.), num texto em que promove as vozes poéticas que entende
estarem implicadas na renovação da poesia brasileira, adota as considerações de
Eduardo Guimaraens como síntese desse projeto:
Bibliografia
Apaixonou-se por Eurídice. Casou-se com ela. Mas Eurídice era tão bonita que,
pouco tempo depois do casamento, atraiu um apicultor chamado Aristeu. Quando
ela recusou suas atenções, ele a perseguiu. Tentando escapar, ela caiu, pisou numa
serpente que a mordeu e morreu. Por causa disso, as ninfas, companheiras de Eurídice,
fizeram todas as suas abelhas morrerem. Orfeu ficou transtornado de tristeza. Levando
sua lira, foi até o mundo inferior, para tentar trazê-la de volta. A canção pungente e
emocionada de sua lira convenceu o barqueiro Caronte a levá-lo vivo pelo rio Estige.
A canção da lira adormeceu Cérbero, o cão de três cabeças que vigiava os portões. Seu
tom carinhoso aliviou os tormentos dos condenados. Encontrou muitos monstros
durante sua jornada e os encantou com seu canto. Finalmente, Orfeu chegou ao trono
de Hades. O rei dos mortos ficou irritado ao ver que um ser vivo tinha entrado em
seu domínio, mas a agonia na música de Orfeu o comoveu, e ele chorou lágrimas de
ferro. Sua esposa, a deusa Perséfone, implorou-lhe que atendesse o pedido de Orfeu.
Assim, Hades atendeu seu desejo. Eurídice poderia voltar com Orfeu ao mundo dos
vivos, sob uma única condição: que ele não olhasse para ela até que estivessem sob a
luz do sol. Orfeu partiu pela trilha íngreme que levava para fora do escuro reino da
morte, tocando músicas de alegria e celebração enquanto caminhava, para guiar a
sombra de Eurídice de volta à vida. Ele então quase no final do tenebroso túnel olhou
para se certificar de que Eurídice o acompanhava e não a viu. Hades e Perséfone os
seguiam e como ficou estabelecido que ele não poderia olhar para Eurídice até chegar
ao fim do túnel, Hades a tomou novamente. Em desespero, Orfeu se tornou amargo.
Recusava-se a olhar para qualquer outra mulher, não querendo lembrar-se da perda
de sua amada. O Orfismo, comportamento ambíguo de aconselhar sem poder usufruir
do próprio conselho, vem daí, ao que parece. Orfeu morre sob a fúria das Mênades
que o mataram a golpes de dardo, jogando seu corpo no Hebro, aos pedaços e, ainda
assim, cantando. As nove musas reuniram os pedaços de Orfeu e o enterraram no
monte Olimpo. Na morte, Orfeu se uniu a Eurídice.
Uma lição, dentre outras, que fica do enredo do mito pode ser a da ideia de desejo
que persiste, mesmo em condições nada viáveis, o que reforça a natureza própria do
desejo. De índole instintual, o desejo não escolhe data e local, cor ou textura, preferência
ou circunstância. Ele está ali e, se a mão de Lacan não conduz a erro, é pela linguagem
que ele se manifesta de maneira mais contundente. Para além disso, é talvez na e pela
linguagem poética que essa contundência atinge foro de intransponibilidade. Há que
ressaltar que, de maneira genérica, estou considerando a carta como um texto poético,
em seu sentido mais largo – o que é discutido por Sophia Angelides e Marie-Claire Grassi,
por exemplo. Tópico este que vou tomar como pressuposto, por questão de tempo.
Outra lição é a da sedução. Fenômeno ou processo – dependendo do direcionamento
que a utilização desse conceito segue – fica claro que o canto de Eurídice seduz pela
Alberto, Orpheu, Álvaro: pontes 673
beleza, quebrando todas as resistências. Esta sedução, acaba por fazer com que o
poeta, por ansioso que estava, deixe de cumprir o que mandou a divindade e se vire
para, ele também seduzido pelo desejo, tentar ver sua amada. O vaticínio se cumpre.
Ele perde de vez a chance de voltar a viver com Eurídice. O encontro só se realizará
na morte, o que pode causar certas diferenças interpretativas muito instigantes que
também serei obrigado a deixar de lado aqui.
Num e noutro caso, o relato do mito me leva a pensar no destino da revista Orpheu
como proposta estética de revolução, mudança, renovação. Para tanto, farei uma
pequena digressão sobre dois trechos de cartas que, a meu ver, ilustram o espírito
anunciado pela letra de Orpheu, em seu nascedouro. Atente-se para o fato de que
se trata aqui de apresentação sumária e introdutória, um projeto, que vem sendo
desenvolvido e que deseja encontrar satisfação em sua demanda.
Merecem ainda destaque duas expressões presentes no relato do mito. A primeira,
“trilha íngreme que levava para fora do escuro”, é expressão que pode remeter a uma
leitura do perímetro afetivo que circunda a correspondência entre António Nobre e
Alberto d’Oliveira – uma das consequências da abordagem aqui apresentada. Esse
perímetro só pode ser desenhado por conta da “abertura” que a revista propunha
ensejar no cenário cultural de Portugal, quando de seu aparecimento. A segunda
expressão, “comportamento ambíguo de aconselhar sem poder usufruir do próprio
conselho, vem daí, ao que parece”, pode remeter a uma análise do fim da revista, por
todos os motivos que se lhe possam atribuir, sem destaque para nenhum. O caráter
“ambíguo” marca de novo o direcionamento do olhar homoerótico que é utilizado
para ler os trechos de cartas aqui arrolados.
Momento 1
Vai sair Orpheu 3. É aí que, no fim do número, publico dois poemas ingleses meus, muito
indecentes, e, portanto, impublicáveis em Inglaterra. Outra colaboração do número: Versos
do Camilo Pessanha (a propósito não cite isto a ninguém), versos inéditos do Sá-Carneiro,
A Cena do Ódio do Almada-Negreiros (que está actualmente homem de génio em absoluto,
uma das grandes sensibilidades da literatura moderna), prosa do Albino de Meneses (não
sei se v. conhece) e, talvez, do Carlos Parreira, e uma colaboração variada do meu velho e
infeliz amigo Álvaro de Campos.
674 100 Orpheu José Luiz Foureaux de Souza Júnior
Orpheu 3 trará, também quatro hors-texte do mais célebre pintor avançado português -
Amadeu de Sousa Cardoso.
A revista deve sair por fins do mês presente. Para a mala que vem já lhe poderei dar notícias
mais detalhadas. (PESSOA, F., 1999: 220-221)
mundo moderno. Mais uma vez, o espírito vanguardista e revolucionário, para não
dizer transgressivo da revista, se explicita.
Momento 2
(...) sois, talvez, gêmeos, mas não sois com certeza patrícios, por que o teu corpo de Purinho,
desengonçado e cor de leite, foi batizado na concha de pedra da Igreja de Santo Ildefonso,
o desse monstro do Britannia, sólido e negro, tem o seu nascimento arquivado, nalguma
babilónica oficina de Liverpool. Contudo, há esta coincidência mas eu não consinto que a
tua pilinha-morango, toque nem de leve o vergalho deste paquete. (CASTILHO, G., 1982:
116)
O poeta faz, neste passo da carta, uma comparação entre o navio em que viaja
e o corpo de Alberto de Oliveira. Uma comparação reveladora. Para além disso,
muito além aliás, a carta apresenta uma série de três pares comparativos constituídos
pelo poeta “da torre”, envolvendo seu amigo e o navio em que viajava. O primeiro
par aponta para a coincidência entre o ano de nascimento de Alberto de Oliveira
e o de inauguração do Britannia, 18732. São “gêmeos”, como diz Nobre, apesar de
nacionalidades diferentes. Dada a particular oscilação de António Nobre em relação
a seus sentimentos quando se trata dos ingleses, de cara, evidencia-se a preferência
pela própria identidade cultural, o que vai ficar cada vez mais evidente nos pares
comparativos seguintes.
1 Coloco a expressão entre aspas, não porque alguém a tenha citado – e creio que tenha sido – mas porque é
usada aqui e ali, e por mim mesmo, para identificar Alberto de Oliveira.
2 NA verdade, trata-se do ano de naufrágio do navio que foi inaugurado dez anos antes. Pode ter sido uma
gralha na edição das cartas. Como não tive acesso ao original – dado que não constitui objeto primordial
de minha investigação – levo a cabo a informação obtida na internete: http://en.wikipedia.org/wiki/SS_
Britannia, acesso em 10/02/2015.
676 100 Orpheu José Luiz Foureaux de Souza Júnior
amigo. A força fonética do segundo termo confirma a ideia representada pelo navio
nas comparações feitas por António Nobre.
O “sabor” da comparação – no sentido barthesiano deste substantivo – não deixa de
ser sugestivo: assim, “morango” funciona como índice identificador, uma espécie de
predicativo do sujeito. Por um lado, a delicadeza da fruta que se revela no adocicado
e no líquido associados ao paladar e, por outro, a cor que identifica, indiretamente, a
“adolescência” de Alberto de Oliveira; ratificando, uma vez mais e definitivamente, a
delicadeza percebida, devotada e celebrada na/pela relação entre os dois poetas.
Uma pergunta caberia aqui: como associar estas linhas ao que representou a revista
Orpheu em seu tempo de aparecimento e seu legado? Acredito que a resposta pode
ser simples. O primeiro número da revista traz uma “introdução”, de autoria de Luis
de Montalvor que pode servir de ponte para a(s) outra(s) possível(is) resposta(s) à
questão final que coloco. No sentido de ser veículo de mudança, diz o autor do texto
da “Introdução” que a revista “propondo-se, vincula o direito de em primeiro lugar se
desassemelhar de outros meios, maneiras de formas de realisar arte, tendo por notavel
nosso volume de Beleza não ser incaracteristico ou fragmentado, como literarias
que são essas duas formas de fazer revista ou jornal.” Já aqui a nota da diferença na
manifestação de certo espírito inconoclasta é perceptível.
Mais adiante, diz Montalvôr que “Puras e raras suas intenções como seu destino de
Beleza é o do:—Exilio! Bem propriamente, ORPHEU, é um exilio de temperamentos
de arte que a querem como a um segrêdo ou tormento…”. Nas reticências que fecham
este período e em seu conteúdo, percebe-se uma das notas que marcam os comentários
acerca dos trechos de carta aqui feitos – sobretudo ligadas aos termos “segredo” e
“tormento”. “Isto explica nossa ansiedade e nossa essencia!”, continua Montalvôr,
reafirmando o que eu já afirmei aqui.
De mais a mais, a julgar pelo que Fernando Pessoa diz acerca dos poemas que
desejou publicar no número 3 da revista e o que António Nobre exara nas linhas
de uma carta, já saudosa ainda que em princípio de viagem, o espírito de Orpheu,
a revista, remete ao incurável sofrimento de Orfeu, o mito, deixando os sujeitos
alienados de seu desejo, mas ansiosos por sua satisfação. A expressão artística pode
ser considerada um dos instrumentos de concretização desta mesma satisfação.
De uma forma ou de outra, o que resulta como elemento estrutural para a resposta
à pergunta acima mencionada é o fato de que o caráter homoerótico que atormenta,
tanto a voz heterônima de Fernando Pessoa, quanto a agonia em êxtase da saudade
678 100 Orpheu José Luiz Foureaux de Souza Júnior
Bibliografia
Palavras-chave: António Ferro, Mar Alto, Teatro séc. XX, Censura teatral.
Resumo: A representação da peça Mar Alto, de António Ferro, foi alvo de contestação tanto
no Brasil, onde subiu pela primeira vez ao palco em novembro de 1922, como em Portugal,
onde foi apresentada no final do ano seguinte no Teatro de São Carlos e logo proibida pelo
governador civil de Lisboa. Os poucos estudos realizados sobre esta receção descuram a inserção
da obra na produção teatral da época bem como a análise dos contextos culturais, português e
brasileiro, em que a mesma foi apresentada. Estas duas vertentes de enquadramento contextual
parecem-nos promissoras no que se refere à revelação de aspetos cruciais para melhor
entendermos o lugar ocupado por esta produção dramática de António Ferro, considerada
atípica no panorama espetacular do início dos anos 20.
Como tem sido inúmeras vezes referido, implicamos António Ferro na publicação
da revista Orpheu devido ao facto de o seu nome figurar como editor do 1.º número,
não se tendo registado qualquer colaboração conteudisticamente percetível1. No que
diz respeito ao teatro, é com a peça Mar Alto que Ferro figura como dramaturgo nas
histórias de teor generalista que tratam do teatro português, embora as investigações
que estão em curso, nomeadamente no âmbito de trabalhos académicos, apontem
para a existência de outros escritos teatrais que urge recuperar.
Depois de ter sido estreada no Rio de Janeiro e em São Paulo, na companhia teatral
Lucília Simões-Erico Braga, Mar Alto subiu à cena em Lisboa, a 10 de julho de 1923,
ou seja, 8 anos depois da publicação de Orpheu, numa altura em que o seu autor é já
uma figura destacada no panorama intelectual português2.
Oiçamos o que recorda a sua mulher, Fernanda de Castro, muitos anos depois de
ter assistido à estreia, sentada num camarote de 1.ª ordem no Teatro de São Carlos:
1 A este propósito é esclarecedor o artigo de José Barreto (2015: 215-224), intitulado «António Ferro, o ‘Editor
Irresponsável’», no qual se defende comprovadamente o «cunho superficial» da sua ligação ao grupo do
Orpheu.
2 Cf. Biografia de António Ferro publicada no site da Fundação António Quadros, onde se encontra
depositado o seu espólio. http://www.fundacaoantonioquadros.pt/index.php?option=com_content&task=
view&id=29&Itemid=59&limit=1&limitstart=2
680 100 Orpheu Ana Isabel Vasconcelos
Como o Mar Alto era uma peça pequena, embora tivesse três atos, o espetáculo principiava
com uma peça em um ato de Jacinto Benavente. Quando, depois das três pancadas de Molière,
o pano subiu, houve uns momentos de profundo silêncio, mas logo que a representação
principiou, começaram lá de cima, da geral, assobios, apitos e outras manifestações do
mesmo gosto, até que se ouviu nitidamente uma voz de homem gritar: «É pá, calem-se que
isto ainda não é do Ferro!» Até ao intervalo não houve mais incidentes. Depois é que as
coisas se complicaram: gargalhadas, impropérios, assobios, etc., etc. Entretanto, os atores,
interditos, não sabiam o que fazer. O ponto bem se esforçava, mas eles, tal era o charivari,
não ouviam nada. Quem ouvia eram os da plateia, sobretudo os das primeiras filas, que
riam e pateavam alternadamente. […] Quando o pano subiu para o 2.º ato, o espetáculo foi
mais ou menos semelhante, até ao momento em que, não se sabe porquê, o António saiu dos
bastidores e entrou palco dentro, começando a discutir violentamente com o público das
primeiras filas. […] No dia seguinte, a peça foi proibida pelo Governo Civil, por perturbar
a ordem pública (CASTRO, F., 1986: 193-4).
Na sequência deste incidente, Ferro escreveu a Lucília Simões uma carta que foi
publicada no Diário de Lisboa, em 12 de julho de 1923:
Enquanto você, anteontem, no palco de S. Carlos, assombrava a plateia com uma espantosa
criação, uma parte da plateia conseguia assombrá-la com uma espantosa má-criação.
Sinto-me responsável pelo desaire que sofreu como me sinto responsável pelos prejuízos que
trouxe à Empresa a proibição da peça numa hora em que a lotação do teatro estava quase
esgotada. […] Pois, minha boa amiga, é exatamente como lhe digo: o principal motivo da
tempestade de terça-feira foi a inveja […]. Era difícil liquidar-me na crítica de um livro, era
perigoso liquidar-me na atmosfera restrita de uma conferência […]. Na arena de um teatro,
porém, era mais fácil. Mar Alto foi a grande ocasião, o excelente pretexto. […] Você viu…
O espetáculo abriu com um episódio de Benavente e Benavente passou um mau bocado por
minha causa. Confundiram-no comigo e vá de romper em fogo. […] houve logo um tremor
de terra… Alguém, porém, mais cuidadoso, como quem deseja salvar um embuçado que vai
ser morto por engano, gritou: «Cautela, rapazes!... Ainda não é o Mar Alto!». Creio que nada
mais é preciso para demonstrar o parti-pris (in FERRO, A., 1924: s/p).
3 A lista de assinaturas é encabeçada por Raul Brandão e entre os 53 nomes estão Alfredo Cortês, Fernando
Pessoa, Robles Monteiro, Jorge de Faria, Gustavo Matos Sequeira e José Pacheco.
682 100 Orpheu Ana Isabel Vasconcelos
Esta afirmação diz bem da estética que presidia às representações e que replicava,
mesmo nestas «peças de tese», o modelo naturalista de Antoine, que havia mais de
20 anos tinha sido uma revelação em Portugal. As novas tendências cenográficas
que agora se manifestavam por toda a Europa insistiam em ultrapassar a estafada
«ilusão panorâmica», fazendo da luz e sua exploração o objeto cénico. Mas esta nova
«arte decorativa» continuava arredada das práticas dos chamados teatros públicos,
mesmo quando nestes espaços se apresentavam novos autores, dois dos quais um
crítico de renome considerou como os únicos dramaturgos que mereceriam «lugares
de destaque entre a púrria de patarecos e lesmas que grasnam e rastejam no lodaçal
dos palcos portugueses» (MADUREIRA, J., 1924: 4). Referia-se Joaquim Madureira a
Carlos Selvagem e a Alfredo Cortez, que, no mesmo ano em que é representado Mar
Alto, levaram a cena duas obras que podemos igualmente inscrever no role das tais
«peças de tese».
Como veremos, a receção buliçosa de Mar Alto, que brevemente relatámos, não
foi acontecimento único naquela época teatral. Uma semana antes de a peça de
Ferro subir ao palco do São Carlos, era apresentado, no Teatro Politeama, o segundo
drama de Alfredo Cortez, sugestivamente intitulado O Lodo. Depois de recusado
pela administração do Teatro Nacional, foi recebido pela companhia de Amélia
Rey Colaço, em récita única e por obséquio dos atores, assumindo o autor todas
as responsabilidade e encargos (SANTOS, V., 2015: 17). Atentemos no que a atriz
Adelina Abranches registou dessa noite, nas suas memórias:
Também não esqueço o que foi a primeira representação do «Lodo», de Alfredo Cortez;
noite tempestuosa, em que as palmas e a pateada se fizeram ouvir constantemente… Palavra
Mar Alto, de António Ferro, no contexto teatral da Lisboa dos anos 20 683
que nunca percebi lá muto bem por que se fez tal alarido em volta dessa peça, aquando
da estreia em récita única […] Na tal récita é que foi o bom e o bonito! A sala regurgitava
de amigos e inimigos do autor, além daquele numeroso grupo de espectadores que nunca
falta às primeiras de sensação, mormente quando lhe cheira a escândalo… Nunca senti
pateada tão retumbante e nunca vi pessoa que, com mais desassombro, a recebesse de
frente, como Alfredo Cortez! O grande dramaturgo estava muito pálido, nervosíssimo, mas
procurava dominar-se; agarrava-me o braço com toda a sua força e só sabia agradecer-me o
que eu tinha feito pela sua peça! Na plateia travavam-se discussões em voz alta. Os amigos
e admiradores de Alfredo Cortez queriam manifestar-lhe, com aplausos delirantes, o seu
sincero apreço; os inimigos e os puritanos queriam provar-lhe a sua indignação pela obra
apresentada, que reputavam ignóbil. E o charivari era ensurdecedor! Não sei como tive
nervos para representar até ao fim, sem desfalecimentos, em tal atmosfera de desagrado!
(ABRANCHES, A., 1947: 379-380)
Mas, afinal, o que tinham em comum a peça de Ferro e esta peça de Cortez para
provocarem tamanha indignação por parte não só do público como também da
maioria dos críticos?
Sublinhe-se que nem uns nem outros manifestaram qualquer estranheza
relativamente às linguagens cénicas de qualquer um dos espetáculos. O motivo de
desconforto residia nas temáticas tratadas nos textos e no recorte das personagens,
criaturas ignóbeis a quem não é dada a possibilidade de redenção. A apresentação crua
de quadros sociais e familiares que replicam relações marcadas por alguma sordidez
criam estranheza no espectador, que, reconhecendo embora a verosimilhança das
situações retratadas, partilham do ponto de vista de um crítico que considera que
«nem toda a verdade da vida se pode transferir, nua e crua, para o palco, porque nem
toda a realidade cabe nos domínios da Arte […]» (ALMEIDA, A., 1923: 57).
E que «verdade da vida» se apresentava neste texto de Cortez?
Uma casa de família na Mouraria, que inclui um espaço destinado à prostituição,
por onde vão passando algumas personagens de somenos importância, como Sara
(uma prostituta) e Marcolina (uma criada), centrando-se todo o enredo em duas
relações triangulares: Domingas e as duas filhas; e Domingas, uma das filhas (Júlia)
e Manuel Facão, um proxeneta que já vivera às custas de Domingas e a trocara, havia
algum tempo, por Júlia, filha desta. A peça demonstra a dificuldade de resgate do
indivíduo pertencente à camada social que vive ao nível do lodo, dada a assunção
de culpa e o desejo de expiação dentro do seu quadro social de referência. Embora
se vislumbre a possibilidade de «salvação», qualquer tentativa de libertação daquelas
vidas sucumbe, pois estão de tal forma imersas que elas próprias lutam para assim se
manterem.
684 100 Orpheu Ana Isabel Vasconcelos
Esclareçamos que a exposição destas «chagas sociais» em palco não era, à data,
propriamente inédita, embora os traços realistas nem sempre fossem tão acentuados.
Recorde-se, a este propósito, a crítica de Fernando Pessoa à representação, no Teatro
Nacional em maio de 1916, do drama Octávio, de Vitoriano Braga, cujo conflito assenta
na temática da homossexualidade. Numa das suas páginas sobre literatura e estética,
Pessoa refere-se a este texto como um exemplo de «peça moderna», correspondendo
às exigências de uma nova cultura. Considera o poeta que «a preocupação artística
moderna, de sugerir em vez de exprimir, obriga-nos a que concebamos o ideal dramático
neste ponto como o de que a tese, conclusão ou filosofia do drama seja sugerida pelo seu
enredo ou conjunto, e não dita por esta ou aquela personagem [...]» (PESSOA, F., 1986:
64). Esta substituição da explicitação pela alusão, tão cara aos simbolistas, é o traço que
este modernista evidencia em Octávio, como elemento distintivo de uma nova estética.
Ferro também insiste no caráter inovador do seu texto, referindo-se às
características de uma peça «moderna». Em primeiro lugar, uma peça de tese, limpa
de ações espúrias, em que tudo concorra para um mesmo fim, numa «simplificação de
processos» (FERRO, A., 1924: 61); depois, uma peça moldada num grande conflito,
com poucas personagens e apenas as que estão envolvidas nesse conflito, pois a «única
testemunha de um drama sério deve ser o público» (idem: 62); e, ainda, uma peça
inovadora pelo assunto, que deve ser inédito, e pela linguagem que deve fundir a
literatura e a sobriedade, empregar o tom coloquial, mas albergar grandes pensamentos
(ibidem). Sem dúvida que Mar Alto se inscreve neste figurino, que, enunciado desta
forma, também se ajusta aos preceitos da produção dramática naturalista, de que a
peça de Cortez acima referida é modelar. Acontece, porém, que não só já se passaram
muitos anos desde a publicação do texto português que teorizou o teatro naturalista4,
como Mar Alto se apresentou publicamente, pela primeira vez, em São Paulo, no que
foi considerado como o «ano simbólico da manifestação do modernismo no Brasil»
(TORGAL, L., 2004: 1099), o mesmo em que se realizou a Semana de Arte Moderna
naquela cidade brasileira. Sabemos ainda que, nesta sua deslocação, Ferro proferiu
várias conferências, tendo sido apresentado como um dos intelectuais pertencentes
à nova geração de modernistas. Neste contexto, é plausível que as expectativas e
também os receios relativos à peça que aí se ia estrear fossem no sentido de um texto
que rompesse com os cânones tradicionais, envolvido numa encenação quiçá de teor
futurista, um pouco à guisa não só do conteúdo mas também da forma como as suas
conferências decorriam5.
4 Referimo-nos à publicação de Júlio Lourenço Pinto, Estética Naturalista: estudos críticos, de 1884.
5 A este propósito, leia-se o subcapítulo «António Ferro e o Brasil» de Torgal (2004: 1099 e ss), em que se relata
o clima feérico das conferências, acompanhado de excertos elucidativos do teor das comunicações.
Mar Alto, de António Ferro, no contexto teatral da Lisboa dos anos 20 685
que melhor têm sabido dar o momento, o nosso momento, este momento decadente
e vistoso que é o casulo donde vai desabrochar uma nova moral, uns novos estatutos
sociais» (ILUSTRAÇÃO, 1922: 295), e O ramo das violetas, pequena peça de Leitão de
Barros que trata da «questão do assédio sexual por parte de homens sem escrúpulos
relativamente a mulheres de condição social inferior que eles seduzem, engravidam e
depois abandonam à sua sorte» (CAMPOS, A., 2007: 125).
A crise por que estava então a passar o Teatro Nacional teve como consequência
a extinção da sociedade artística, tendo sido este um período paupérrimo em todos
os sentidos. No que respeita à dramaturgia portuguesa, assinala-se O homem que
passa, de Leitão de Barros, a comédia A vizinha do lado, de André Brun, Viriato, de
Luna d’Oliveira, uma reposição de Frei Luís de Sousa, e a Farsa do ciúme, de Afonso
Gaio, textos que procuram não melindrar os velhos frequentadores e apostar no bom
acolhimento dos novos, já que, como observou um crítico, este teatro é de todas as
repartições públicas a única em que os funcionários não são remunerados pelo Estado,
ficando assim na completa dependência dos gostos do público (COSTA, M., 1923: s/p).
O teatro Avenida, por onde passaram, entre janeiro e julho, três companhias
(Luiza Satanela-Estevão Amarante, Aura Abranches e Palmira Bastos), pautou-se pela
representação de comédias que não deixaram história nem saudade. A Companhia
de Opereta Armando Vasconcelos ocupou, neste período, o São Luiz, pelo que aquele
género teve exclusividade naquele espaço, tendo-se o Éden também dedicado ao
teatro cantado ligeiro, à ópera cómica e à opereta.
A companhia Maria Matos-Mendonça de Carvalho, a companhia José Ricardo e a
companhia Palmira Bastos partilham a sala do Apolo durante esta época, apresentando
adaptações de dois romances de Júlio Dinis, A lei dos morgados de Costa Cascais, 30
H.P. de Leitão de Barros, Má sina de Bento Mântua, A morgadinha de Vale-Flor de
Pinheiro Chagas, na sua maioria peças já com muitos anos que evidenciavam marcas
de outro tempo. Mesmo a peça Bodas de Oiro, de Vasco de Mendonça Alves, não
escapou à feroz crítica de Mário Costa, devido ao tom melodramático da intriga e ao
tão supostamente desejado, mas estafado, final feliz.
Ocupado desde 1922 pela companhia Rey Colaço-Robles Monteiro, o Politeama é o
teatro que mais diversifica as suas peças, sendo vários os textos de autores portugueses
que se representam neste período. Iniciou-se o ano com Rosas de Todo o Ano, de Júlio
Dantas, voltando o autor a este palco, pouco depois, com a sua Castro. Entretanto
foi representada A ribeirinha, da dupla João Correia de Oliveira e Francisco Lage,
e As pragas, também deste último autor. O Herdeiro, de um dos dramaturgos mais
reconhecido na época, Carlos Selvagem, subiu a cena em abril, com uma temática
considerada demasiado realista. Seguiram-se outros textos, Que pena ser só ladrão,
de João do Rio, Uma história de boneca, de Ester Leão, e A luva de Ricardina, este
Mar Alto, de António Ferro, no contexto teatral da Lisboa dos anos 20 687
publicado na revista «De Teatro», com uma ação que não foge à temática dos casos
amorosos, das rivalidades, dos casamentos de conveniência, e das infidelidades
conjugais. (CAMPOS, A., 2007: 123). De amores contrariados trata também a peça
A filha de Lázaro, escrita em coautoria por Eduardo Chianca de Garcia e Norberto
Lopes (id.: 128).
Pela variedade do repertório, qualidade do desempenho e novidade de algumas das
encenações, os espetáculos apresentados por esta companhia tinham normalmente
uma boa receção por parte do público e até da crítica. Provavelmente por esta razão,
não terá Amélia Rey Colaço e seu marido tido grandes hesitações em aceder à proposta
de Cortez para a estreia de O Lodo6, tanto mais que Zilda, dois anos antes, tinha sido
um sucesso, se bem que caldeado por algum escândalo.
Como acima recordámos, as coisas não foram nada pacíficas e o Politeama assistiu,
na noite de 2 de julho de 1923, a uma autêntica batalha campal. Cortez, tal como Ferro
e muitos dos intelectuais da época, não se deixavam intimidar pela crítica e amiúde
afrontavam os seus opositores com tomadas de posição públicas. Dias antes da estreia
deste espetáculo saiu um Manifesto assinado por quatro dramaturgos, entre os quais o
próprio Alfredo Cortez. Num extenso texto intitulado «Pelo Teatro Português, contra
os que sistematicamente o dificultam», a crítica e os periódicos que a sustentam
são afrontados e acusados de responsáveis pelo atraso em que se encontra o teatro,
pretendendo manter nos palcos «o que de mais barato e mais reles nos é exportado
do ‘boulevard’, […] e jugular à nascença esse movimento de libertação generosamente
nacionalista».
Quando nas peças abundam, num realismo cru, os motivos amorais da hora que passa, os
incestos, as torpezas, as imundices morais de que vai transbordando a vida contemporânea,
a crítica alçapremando-se em mentora da moralidade, em fiscal dos bons costumes, logo
decreta, com um enjoo pudibundo, que as peças são dissolventes, são pútridas – uma
infâmia! (BRAGA, V. et al., [1923]: s/p)
Da breve passagem que fizemos pelo repertório português coevo do Mar Alto,
confirmamos que as companhias pouco arriscavam em dramaturgias mais modernas e
a comprová-lo, não nos cansamos de apontar, está o facto de o teatro de Raul Brandão,
sobretudo O gebo e a sombra publicado em 1923 e configurando então o que se pretendia
em teoria de uma peça moderna, não ter merecido qualquer atenção.
6 Numa obra recente de Pavão dos Santos (2015: 17-19), na qual este profundo conhecedor do teatro português
transcreve longas conversas que teve com Amélia Rey Colaço, são-nos relatadas pela própria algumas
peripécias dessa noite bem como a forma como tinha preparado a personagem.
688 100 Orpheu Ana Isabel Vasconcelos
Bibliografia Final
Bibliografia Ativa
FERRO, António (1924). Mar Alto. Lisboa: Livraria Portugália.
Bibliografia Passiva
ABRANCHES, Aura (1947). Memórias de Adelina Abranches apresentadas por
Aura Abranches. Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade.
ALMEIDA, Avelino de (1923). «O Lodo, por Alfredo Cortez». In Ilustração
Portuguesa, n.º 908, pp. 57 e 62.
BARRETO, José (2015). «António Ferro, o ‘Editor Irresponsável’». In DIX, Stephen
(org.). 1915 – O Ano do Orpheu. Lisboa: Ed. tinta-da-china, pp. 215-224.
BASTOS, Glória e VASCONCELOS, Ana Isabel Teixeira de (2004). O Teatro em
Lisboa no Tempo da Primeira República. Lisboa: Museu do Teatro.
BRAGA, Victoriano, SELVAGEM, Carlos, OLIVEIRA, João Correia de,
CORTEZ Alfredo [1923]. Manifesto «Pelo Teatro Português contra os que,
sistematicamente, o dificultam». Lisboa: Ottosgrafica.
CAMPOS, Ana (2007). A Revista DE TEATRO. Uma visão parcial da dramaturgia
portuguesa dos anos 20. In Sinais de cena, n.º 7, junho, pp. 122-129.
CASTRO, Fernanda (1986). Do fim da memória (1906-1939). Lisboa: Verbo.
COSTA, Mário (1923). «Três peças originais». In Ilustração Portuguesa, n.º 899,
12 maio 1923, s/p.
FERREIRA, Armando (1923). «A directriz artística do teatro moderno». In De
teatro, n.º 15, Nov.-Dez., pp. V-VI.
FRANÇA, José-Augusto (1992). Os Anos Vinte em Portugal. Lisboa: Editorial
Presença.
Mar Alto, de António Ferro, no contexto teatral da Lisboa dos anos 20 689
Roberto Vecchi
Universidade de Bolonha
Antes de tudo é, uma vez mais, uma questão de nomes. O espetro – aliás, os
espetros- já estão presentes e em multidão no nome. E são só os primeiros de uma
série quase interminável. Interminada, inclusive na nossa mesa de hoje, onde os
espetros de ORPHEU continuam a praticar o que, como Derrida aponta no livro
com que muito dialogam estas considerações, Spectres de Marx (1993), é chamada
de hantise, a frequência -ou a obsessão- espetral de um lugar: ORPHEU é parte assim
-e plenamente- de uma hantologie, termo que se pode entender, na apropriação de
Derrida, como uma ontologia do fantasma (que para o filósofo francês, mas isto não
nos interessa, é próxima, se não coincidente, da gramatologia).
Poder-se-ia observar que há sempre algum espetro, quando a citação está em jogo. A
arte de citar é espetral porque na citação há um cadáver – ou os seus despojos – insepulto
692 100 Orpheu Roberto Vecchi
que continua a alimentar uma elaboração da perda, um trabalho enlutado que se instaura
na contemplação do que foi mas também é, o fantasma de uma obra que se perdeu mas
ao mesmo tempo mantém um elo, uma relação, em termos de força “exemplar” (se a
citação for correta) com o presente:a citação é, se quisermos lembrando Mensagem,
um cadáver adiado que procria.
Mas quais os espetros do nome próprio ORPHEU? A introdução de Luís de
Montalvor do volume I é um cúmulo de dobras. No entanto, o que se afirma com a sua
força simbólica é o nome ORPHEU (sempre em maiúsculo) sobre o qual se estrutura
o esboço da nova proposta.
A evocação é de uma fantasmática plural: o nome ativa a memória mitológica de
Orfeu, mas também, na conjuntura daquele tempo, outro espírito provocado -neste
caso não só pela referência ao nome, mas também pelas descodificações que ocorrem
no texto de Montalvor (com a recorrência evidente ao termo exílio, de ORPHEU como
«exílio de temperamentos de arte que a querem como a um segredo ou tormento»,
ORPHEU, 1994, p.5)- ao espetro de uma outra modernidade, externa. Trata-se do
orfismo não tanto (ou não só) como mistério eleusino do santuário de Demetra, mas,
na pintura, como efeito do gesto pós cubista e abstratista de Apollinaire (1912) - que
agrega Duchamps, Deluanay, Picabia, Léger, os futuristas italianos – e se concentra
sobre o lado irracional, mágico, místico, do espírito, matriz de multíplices fantasmas.
No entanto, pela força do nome, é impossível não captar na opção por ORPHEU
a raiz espetral do mito clássico. Na recente entrevista de Eduardo Lourenço ao JL
sobre o centenário da revista (n.1159 de março 2015, pp. 8-9) o Professor retoma a
mitologia cultural daquele grupo evidenciando a rutura programática que se associa
à repetição do mito órfico: a consciência de que, quando Orfeu olha para trás o olhar,
é mortal. Porque é verdade que o mito de Orfeu se associa ao horizonte da morte: a
descida ao reino de Hades, o apoio de Perséfone, a libertação de Eurídice do mundo
dos mortos, sob a condição que não a poderia olhar, a infração de Orfeu que faz
com que Hades recapture novamente Eurídice, vinculando-a definitivamente à sua
condição espetral, o desmembramento do corpo de Orfeu pelas Mênades, a sua cabeça
cortada e flutuante: tudo no mito continua a evocar -a citar e re-citar- o nome próprio
do fantasma. Os espetros redundam sempre se associados ao nome de Orpheu, seja
qual for a matriz de onde é derivado -cultural ou mitológica-; um nome que sempre
se abre para o horizonte intermediário entre a vida e a morte: o reino do inacabado e
da sobre-vivência.
Poder-se-ia observar, neste elemento, o elo que conjuga de imediato o ORPHEU
à história cultural de um País, uma história que também, por sua vez, amplamente
povoada, ao longo da sua trajetória secular e traumática, de fantasmas que atravessam
a trama da sua vivência, alimentando pesadelos que não se extinguem. Temos no
Espetralidades do Sul: hantologie de Orpheu 693
pensamento crítico português (que pode remontar a Garrett - Frei Luis de Sousa-
e que tem como principal pensador atuante Eduardo Lourenço) una genealogia
fantasmática vastíssima por contemplar.
É por isso que ORPHEU, cuja inscrição é precária em todas as dinâmicas modernas,
nacionais e internacionais - como o próprio Pessoa sustentava: impropriamente
futurista, parcialmente sensacionista ou intersecionista, erroneamente modernista,
residuariamente simbolista, onde qualquer designação coletiva é inadequada a não ser
aquela, por sua vez fantasmática, de «vencidos» (MARTINS, F., 2008: 568) - encontra,
na sua inconsistência que constitui a natureza espetral, um apego na trama íntima da
ontologia portuguesa. Uma ontologia que, inclusive na sua modernização que surge
no reflexo deformado que devolve o espelho -ou a balança- da Europa, se redefine com
um ajuste de contas de espetros (a desmontagem do dispositivo do sebastianismo, a
assunção da sua condição póstuma, a espetral deriva anti europeia e, pelo contrário, a
afirmação dos fantasmas imperiais como resíduo de um luto muito pouco trabalhado
no plano coletivo, que permeia o caráter trágico da história novecentista etc.) e se
confirma como uma hantologie derridiana, isto é, uma ontologia de fantasmas.
Neste sentido, o ORPHEU não é uma exceção, um corpo estranho ou excêntrico,
de uma sombria (ou, melhor, assombrada) história de Portugal que se interseta
incindivelmente com a sua história cultural. Se quisermos, a partir desta leitura
alternativa, ORPHEU põe em jogo efetiva e visivelmente o que é um espetro e como
é que ele funciona. No sentido que, se já desde o nome surge o problema, a própria
história, aparentemente efémera mas na verdade muito extensa e ainda inacabada
de ORPHEU, mostra não só como os fantasmas são numerosos, mas também -e
sobretudo- como as funções dos espetros são multíplices.
Sempre na esteira dos Espetros de Marx, por questões sintéticas e de modo
esquemático, podemos dizer que o espetro, não o «corpo» mas a «coisa» (na leitura
do Hamlet de Shakespeare realizada por Derrida) remete antes de tudo para o luto,
para a ontologização dos restos que, para se tornarem presentes e «esconjurar» as
confusões, impõe sempre o trabalho de identificação dos despojos e da localização
dos mortos (DERRIDA, J., 1994: 17). Os outros elementos de de-composição do
«espírito» são a voz ou a língua, ou seja, o que tem o lugar do nome, marcando-o e,
enfim, a transformação que deriva do trabalho do fantasma e que o põe e decompõe,
mostrando a sua «potência» transformadora, e que se conecta, poder-se-ia dizer
através de Blanchot, com um outro conceito chave associado à espetralidade, o
conceito de «herança» (id.: 25), de transmissão de uma memória, de uma finitude, em
toda sua heterogeneidade.
Através de um arsenal crítico moldado a partir destes elementos, o filósofo
francês vasculha na multidão de espetros de Marx evidenciando o valor do
694 100 Orpheu Roberto Vecchi
contrário fortalece, no sentido que torna mais nítida -pelo caminho do “menos”, pela
subtração- a facies hippocratica que é, neste caso, facies não da história (à Benjamin)
ou de um fato, mas facies hippocratica, máscara mortuária, do mito. Do mito espetral
da modernidade de ORPHEU, diríamos.
Uma outra pergunta que sobre-vive a esta reconstrução talvez condicionada
por um tempo assombrado - que é o nosso, mais do que o de ORPHEU- poderia
ser assim formulada: qual é a modernidade implicada por um projeto de síntese de
tantas -na vontade dos protagonistas, todas- modernidades quando ela surge pela
força de espetros que não extinguem, mas pelo contrário reproduzem lutos e perdas?
O fantasma de ORPHEU fala à nossa contemporaneidade a partir da viseira -como
o espetro do pai que fala a Hamlet na tragédia de Shakespeare e que produz o efeito
viseira em que, como diz Derrida pensando em Marx, «somos vistos por um olhar
que sempre será impossível cruzar», o efeito de que «herdamos uma lei» (DERRIDA,
J., 1994: 15).
O que será uma modernidade como aquela que ORPHEU lança, sem que nós
possamos ver o seu corpo mas pensando que, atrás da viseira, supostamente esteja o
seu olhar?
Uma resposta icónica poderia ser aquela que, por acaso, o próprio Pessoa do Orpheu
3 nos oferece. Num quadro dominado de quedas e declínios, a imagem espetral que
surge nos poemas «Gládio e além-Deus» de Pessoa não poderia ser um sinal mais
claro. Refiro-me sobretudo ao poema de desfecho, «Braço sem corpo brandindo um
gládio», de que cito um fragmento:
Bibliografia
Bibliografia ativa
AA.VV. (1994). ORPHEU; Edição Facsimilada. 2.ª edição. Lisboa: Contexto
Editora.
SARAIVA, Arnaldo (1984). Orpheu 3. Lisboa: Ática.
Bibliografia passiva
BENJAMIN, Walter (1997). Sul concetto di storia. G. Bonola - M. Ranchetti (orgs.).
Torino: Einaudi.
DERRIDA, Jacques (1994). Spettri di Marx; Stato del debito, lavoro del lutto e nuova
Internazionale. Milano: Raffaello Cortina.
FERRONI, Giulio (1996). Dopo la fine; sulla condizione postuma della letteratura.
Torino: Einaudi.
MARTINS, Fernando Cabral (2014). Introdução ao estudo de Fernando Pessoa.
Lisboa: Assírio & Alvim.
MARTINS, Fernando Cabral org. (2008). Dicionário de Fernando Pessoa e do
Modernismo Português. Lisboa: Caminho.
Caeiro e Espinosa: em torno do conceito de liberdade
Não é sem razão que Joaquim Montezuma de Carvalho lê em Caeiro «toda a lição
de Espinosa» (CARVALHO, J. M., 1992: 489) recriada por Pessoa e que Pinharanda
Gomes, em O Pensamento Português, o considera «realmente um outro Espinosa»
(GOMES, J. P., 1979: 31), filósofo de quem aceitou o monismo e o pensamento de que
«Deus é Ser» (ibid.), «uma ‘pessoa impessoal’ passível de expressão na metafísica das
árvores, cuja metafísica é uma não-metafísica» (ibid).
Sabemos como no universo especulativo de Pessoa todas as filosofias são defensáveis
por serem igualmente verdadeiras. O poeta cita, até, como única verdade a repetir pelo
movimento sensacionista em relação às coisas da arte, a ideia do pensador holandês
segundo a qual «os sistemas filosóficos estão certos naquilo que afirmam e errados
naquilo que negam» (PESSOA, F., 2009: 155). No entanto, Espinosa representa o apelo
de uma metafísica diversa, pedida por «Certas horas da Natureza» (PESSOA, F., 2006:
81). Nos Textos Filosóficos, Pessoa honra-o como mestre de pensamento, o «verdadeiro
génio, que teve o que faltou a Descartes, o arrojo e a falta de respeito pelo que está
estabelecido» (id.: 205). Nos escritos sobre génio e loucura, investigação obsidiante
dos anos de juventude, a Ética é mencionada como obra que nenhuma descoberta,
ou trabalho científico, ultrapassa no poder de motivar o homem. Serve, ainda, como
exemplo de metafísica incompreendida, exposta à irrisão do homem vulgar a quem se
tentasse ler a sua definição de Substância. Essa definição, que o filósofo entende como
potência de existir, de exteriorização, é conviva do debate pessoano com os impasses
do criticismo kantiano. O lançamento do naturalismo de Caeiro não é estranho a
este debate. O Mestre entra nele como libertador, uma espécie de cavalo de Tróia
702 100 Orpheu Paula Marçalo Viegas
dela, maneiras diferentes de a perceber. Uma ideia, que para Espinosa é um corpo, é
em Caeiro uma sensação, ou melhor, uma visão da singularidade das coisas, o mais
alto grau do conhecimento na Ética.
Alberto Caeiro foi o único poeta da Natureza porque quis ser a ideia estética de um
corpo finito a viver no amor da única coisa eterna e infinita, no amor das essências
singulares, por isso livre, certo de que a sua existência decorre da essência divina
enquanto natura naturans, não inibida pela força externa de ideias tristes como a de
mistério ou de sentido oculto do mundo. O Deus-Natureza deste heterónimo quer ser
conhecido como árvores e flores, como coisas, e não como causa final, transcendente.
De tal modo que imagina, num dos Poemas Inconjuntos (id.: 103), a alegria de
conseguir chegar a Deus com o Universo intacto, tendo percebido sem pensar (porta
do erro também para Espinosa), por uma intuição de sentidos limpos de doutrinas,
que o conhecimento adequado é ver as coisas nas coisas. Atingir a liberdade, isto
é, uma natureza humana mais firme no cumprimento do seu conatus, só é possível,
para Espinosa e Caeiro, no «conhecimento da união que a mente possui com toda a
Natureza» (ESPINOSA, B., 1971: 28).
A alegria desta descoberta exige, na poesia do heterónimo e na ética de Espinosa,
um profundo estudo de desaprender as «mentiras dos homens» (PESSOA, F., 2009:
60), as ideias falsas. Requer uma existência a desenrolar-se segundo ideias de um
corpo tanto mais perfeito quanto mais livre de paixões tristes, de maus encontros
com o mundo. Chegar à ideia fonte de toda a Natureza, a fim de a partir dela produzir
todas as outras ideias, significa a cura do entendimento no abandono de sistemas
de representação construídos no amor a objetos sem qualidade. Assim, a poesia de
Caeiro é uma profissão de Inestética, tão desinteressada da arte e tão desconfiada da
imaginação e da linguagem quanto a filosofia de Espinosa.
Se, no apêndice da Parte I da Ética (ESPINOSA, B., 2006: 99), a beleza surge como
qualidade desprovida de essência, conceito relativo, dependente da afecção de quem
olha para o objeto, - só mais um entre tantos preconceitos humanos decorrentes
da visão antropomórfica, finalista, da criação, - no poema XXVI do Guardador de
Rebanhos Caeiro mostra-se tão ironista quanto Espinosa, ao escrever que a «beleza é
o nome de qualquer cousa que não existe/Que eu dou às cousas em troca do agrado
que me dão» (PESSOA, F., 2009: 60). Sem dúvida, o piano da senhora agrada, mas
o «melhor é ter ouvidos/E amar a Natureza» (id.: 44). Também os «pastores de
Virgílio […]/[…] cantavam de amor literariamente», mas, «coitados, são Virgílio,/E a
Natureza é bela e antiga» (id.: 45). A beleza será, para o poeta e para o filósofo, a força
vital de viver na região ontológica dos particulares.
Fingir «que compreende» (id.: 23) é uma via perardua, traçada numa crítica
da linguagem e da imaginação igualmente empreendida pelo filósofo holandês.
Caeiro e Espinosa: em torno do conceito de liberdade 705
que são parte, ao primeiro género de conhecimento que pode causar «muitos e grandes
erros» (ESPINOSA, B., 1971: 81) se universalizarmos ou transcendentalizarmos o seu
modo de presentificação da realidade.
A argonáutica de Caeiro conclui-se, assim, com a surpreendente descoberta de
que a Natureza não existe. É «partes sem um todo», não havendo «um conjunto
real e verdadeiro» a que «isso pertença» (PESSOA, F., 2009: 84). Num dos Poemas
Inconjuntos reformula a ideia para a necessidade de, se o homem fosse um animal
«directo e não indirecto», adquirir um «sentido de ‘total’ ou de ‘conjunto’» da
«verdadeira Natureza talvez nem todo nem partes» (id.: 126). Na primeira parte do
Curto Tratado (ESPINOSA, B., 1988: 71), Espinosa enuncia o pensamento de que
a parte e o todo são nomes, não são seres atuais, apenas seres de razão, pelo que,
na Natureza, nem há partes nem todo. Quer o poeta quer o filósofo menorizam o
conhecimento racional, o das noções comuns: os fundamentos da razão, as noções
que explicam o que é comum a todas as coisas, não explicam a essência de nenhuma
coisa singular.
A lição de Espinosa não se restringe à conceção monista, imanente, do Ser
como Substância única, cuja essência envolve necessariamente a existência, a tal
Realidade-em-si cosubstancia da pluralidade-em-si que, segundo António Mora,
Caeiro veio repor; abrange ainda o serenar da fluctuatio animi pessoana na laetitia
do Mestre. A filosofia não foi um consolo para Pessoa. A sua arte, feita de emoções
intelectualizadas, centrada na ideia de perfeição, mesclou desejo, tristeza e alegria,
três afetos estruturantes no projeto espinosano de beatitude. Escreveu-se no litígio
do fascínio com o terror ante um mesmo objeto de desejo, o mistério de existir. O
seu pensamento estético é iluminado e ao mesmo tempo ensombrado pela dúvida
metafísica, indeciso quanto à contingência ou essencialidade do seu idioma. Pessoa
viveu o seu ingenium na ambivalência entre o desânimo de um pensar que enche
eternamente o tonel das Danaides e a alegria caeiriana, intuitiva, da Substância; entre
a dúvida sobre se a razão se podia provar a si mesma e a certeza de Espinosa de que
«as coisas não são sombras de ideias, nem as ideias são mais reais do que as coisas»,
mas «idênticas, da mesma ordem» (PESSOA, F., 2006: 86).
O atrativo da ontologia do herético de Amesterdão parece-nos, assim, compreensível
num espaço literário marcado pela angústia fáustica, sempre a braços com a missão
cheia da gravidade de termos de «reflectir no que diremos ao Desconhecido para
cuja casa a nossa inconsciência guia os nossos passos…» (PESSOA, F., 1985: 47),
conforme Pessoa confidenciou em carta a Côrtes-Rodrigues. A paz da visão intuitiva
caeiriana preenche, Tant bien que mal, a ânsia muito espinosana de «intellectual joy»,
«joy of comprehending, of understanding» (PESSOA, F., 2006: 102), já expressa nas
notas juvenis, em inglês, para o estudo sobre a degeneração. Heterónimo-interlúdio
Caeiro e Espinosa: em torno do conceito de liberdade 709
do desassossego, finge a alegria intelectual, libertadora, de intuir que vive sob o prisma
da eternidade na dimensão do unbeyond, percebido por Campos como território do
Mestre. Fiel a sensações-radiações do Ser, o arauto da repaganização da sensibilidade
moderna repete, com o filósofo holandês, a explicação segundo a qual é perfeito o que
é real. Cura, assim, do ceticismo, da forma mais doente do espírito filosófico, que data
de Kant.
A prosa dos versos de Caeiro conta a história de um Orfeu que olha todos os
dias de frente para Eurídice porque o mistério é ela andar sempre à superfície. Só
se desvanece quando se fecham os olhos sobre o lugar onde estamos. É o modo de a
Substância falar; o modo de falar que reparar para as coisas ensina. A lucidez vem-lhe
da «ligação direta com a Terra» (PESSOA, F., 2009: 128). A Coisa-Em-Si liberta-se nas
suas «frases simples», que Bernardo Soares, ao reler, sente como «livramento», desejo
de «afirmar uma nova personalidade larga» (SOARES, B., 2005: 80), do tamanho do
que vê e não da sua altura. É a «magia da essenciação» (PESSOA, F., 2012: 106), para
Campos. Ao apear a transcendência em favor do imanentismo, como Espinosa, afasta
o problema da causa primeira, extrínseca à autonomia de uma Natureza autocausada.
Afasta igualmente o medo pessoano do Infinito. Se, pelo sentido da imanência e da
inerência, a individualidade de Caeiro se constrói enquanto expressão da perpétua
atividade do Ser, a natura naturans espinosana, assistimos então à positividade do
Infinito na noção de causa sui. O mundo finito de Caeiro, todo coisas singulares, é uma
variação de perspetiva ou de dimensão do infinito; nele se experimenta passageiro e
eterno, numa ontologia confluente com a de Espinosa.
O verso «Passo e fico, como o Universo» (PESSOA, F., 2009: 86) traz ecos daquela
qualquer coisa da mente humana, sempre ideia de um corpo que, na parte final da
Ética, sentimos e experimentamos ser eterna.
Bibliografia
Bibliografia Activa
ESPINOSA, Bento de (1971). Tratado Sobre a Reforma do Entendimento. Lisboa:
Livros Horizonte.
ESPINOSA, Bento de (1992). Ética. Lisboa: Relógio d’Água.
PESSOA, Fernando (2002). Obras de António Mora. Edição Crítica de Fernando
Pessoa, Série Maior, vol. VI., edição de Luís Filipe B. Teixeira. Lisboa: INCM.
PESSOA, Fernando (2006). Escritos Sobre Génio e Loucura. Edição Crítica de
Fernando Pessoa, Série Maior, vol. VII, Tomos I e II, edição de Jerónimo
Pizarro. Lisboa: INCM.
710 100 Orpheu Paula Marçalo Viegas
Bibliografia Passiva
ADKINS, Brent (2009). True Freedom. Spinoza’s Practical Philosophy. Plymouth:
Lexington Books.
ALAIN (1949). Spinoza. Paris: Éditions Gallimard.
BALIBAR, Étienne (1996). «Individualité et Transindividualité chez Spinoza». In:
Architectures de la Raison: Mélanges offerts à Alexandre Matheron. Lyon: ENS
Éditions.
BALSO, Judith (2006). Pessoa, le Passeur Métaphysique. Paris: Seuil.
BOVE, Laurent (1996). La Stratégie du Conatus, Affirmation et Résistance chez
Spinoza. Paris: Vrin.
COELHO, António Pina (1971). Os Fundamentos Filosóficos da obra de Fernando
Pessoa.Vols. I e II. Lisboa: ed. Verbo.
CRISTOFOLINI, Paolo (1998). Spinoza, Chemins dans l’«Éthique». Paris: PUF.
DE DIJN, Herman (1996). The Way to Wisdom. Indiana: Purdue University Press.
DELEUZE, Gilles (1968). Spinoza et le Problème de L’Expression. Paris: Minuit.
DONAGAN, Alan (1977). Substance, Essence and Attribute in Spinoza, Ethics I.
California: Institute of Technology.
DUFRENNE, Mikel (1967). Phénoménologie de l’Expérience Esthétique.Vols. I, II.
Paris: PUF.
FERREIRA, Mª Luísa Ribeiro (1997). A Dinâmica da Razão na Filosofia de
Espinosa. Lisboa: FCG.
FERREIRA, Mª Luísa Ribeiro (2003). Uma Suprema Alegria: escritos sobre
Espinosa. Coimbra: Quarteto Ed.
GIL, José (1986). Fernando Pessoa ou a Metafísica das Sensações. Lisboa: Relógio
d’Água.
Caeiro e Espinosa: em torno do conceito de liberdade 711
1 Note-se que a conotação aqui emprestada ao termo “geração” não é certamente a mesma com que, quatro
anos antes, no início do um outro manifesto seu (o Ultimatum Futurista às Gerações Portuguesas do Século
XX), Almada se referira à «geração» do Orpheu — a «geração construtiva» (NEGREIROS, J. A., 1993a: 37)
—, à qual, segundo Luciana Stegagno Picchio, o autor atribui uma «conotação eufórica» — ao contrário do
«significado negativo» que o mesmo termo “geração” veicula no Manifesto Anti-Dantas (PICCHIO, L. S.,
1989: 234).
Os modernistas e a (des)construção do ineludível 715
de pertencer à coletividade portuguesa, quando diz: «[…] Eu, que tantas vezes
me excomungara por esta injustiça de Deus me ter feito homem, e mais ainda por
esta infâmia de Deus me ter nascido português […]» (id.: 22). É evidente que não
significa isto que Almada se fecha nos limites do seu universo individual, rejeitando
a coletividade e a Pátria portuguesas. Significa, pelo contrário, que Almada pretende
que a coletividade portuguesa se corrija, mas que também o compreenda. No mesmo
ano (1917), aliás, em Lisboa, no então Teatro República, declama, a 14 de Abril, o
seu manifesto intitulado Ultimatum Futurista às Gerações Portuguesas do Século XX
(que publicaria depois na revista Portugal Futurista) (cf. NEGREIROS, J. A., 1993a:
37-43). Note-se como, logo desde o início do texto, também aí Almada manifesta uma
presença muito forte e muito vincada do seu eu:
[…] É a guerra que desclassifica os direitos e os códigos ensinando que a única justiça é a
Força, é a Inteligência, e a Sorte dos arrojados.
[…] É a guerra que proclama a pátria como a maior ambição do homem. É a guerra que faz
ouvir ao mundo inteiro plo aço dos canhões o nosso orgulho de Europeus.
Enfim: a guerra é a grande experiência. Contra o que toda a gente pensa a guerra é a melhor
das seleções porque os mortos são suprimidos plo destino […].
[…] Na guerra os fortes progridem e os fracos alcançam os fortes.
Portugal é um país de fracos. Portugal é um país decadente […].
2 Sobre a "guerra" almadiana, veja-se LIND, G. R., 1981: 206; MCNAB, G., 1984: 108-109; LOPES, Ó., 1987: 559;
D’ALGE, C., 1989: 136 ss.
Os modernistas e a (des)construção do ineludível 717
destrutiva e pela via apologética; e é por esta segunda via que Almada elogia todas
as formas que representem a vitalidade e a modernidade, como a hora presente, o
cosmopolitismo («É preciso criar e desenvolver a actividade cosmopolita») e os
“criadores” do século XX («Edison, Marinetti, Pasteur, Elchrïet, Marconi, Picasso, e o
padre português Gomes de Himalaia»). Caberá ao povo português destruir o passado
e cantar a modernidade e a pátria portuguesa do século XX: «[…] é preciso criar a
pátria portuguesa do século XX. / Digo segunda vez: é preciso criar a pátria portuguesa
do século XX. / Digo terceira vez: é preciso criar a pátria portuguesa do século XX».
Essa possibilidade, segundo Almada, será uma realidade, se o povo português adotar
uma atitude ativa perante a vida. Se o povo português correspondesse, estaria criado
o «Homem Definitivo»; o mesmo é dizer: estaria criada «a pátria portuguesa do
século XX». Porém, isto não significa que Almada não duvide do advento desse novo
“Homem”, desse “novo povo” com uma nova mentalidade. Com efeito, a frase com
que ele acaba este Ultimatum Futurista às Gerações Portuguesas do Século XX — «O
povo completo será aquele que tiver reunido no seu máximo todas as qualidades e
todos os defeitos. Coragem, Portugueses, só vos faltam as qualidades» (id.: 43) —,
ainda que denotativamente se enquadre na crítica à sociedade portuguesa de então,
também revela, no fundo, o ceticismo de Almada perante a regeneração dessa
sociedade. Mas mais do que isso, o que interessa fundamentalmente reter é o facto de
Almada terminar o texto com uma ideia que nos remete novamente para a presença
de um eu cada vez mais fortalecido. E isso é visível pela forma como ironicamente
deprecia os «Portugueses» — sendo, afinal, o eu que acaba por prevalecer em relação
à coletividade portuguesa, já que se deduz que aquelas «qualidades», que ela não tem,
possui-as ele. Seguindo linearmente este raciocínio, seria então ele, Almada, com o
seu «organismo transbordante», o «Homem Definitivo», o «homem completo» (id.: 37).
É do ódio entre homem e homem que a civilização nasce, é da concorrência entre homem e
homem que o progresso surge, é do conflito entre nação e nação que a humanidade recebe
o seu impulso (PESSOA, F., 1986c: 789-790).
ideal que mereça o sacrifício de um comboio de lata» (PESSOA, F., 2010a: 177)? Que
outra ilação, que não essa, se poderá retirar das palavras do menino Jesus de Alberto
Caeiro, que «tem pena de ouvir falar das guerras» (PESSOA, F., 1986a: 752), ou das
palavras de Caeiro, quando este atribui à guerra o «tipo perfeito do erro da filosofia»
(id.: 797)? Que outra conclusão, que não essa, se poderá encontrar na escolha do
modernista António Ferro, que timbrará a sua solução não com a construção de uma
estória nos moldes como Caeiro o fez, antes com o registo manifestatário, justificando
a necessidade de contrapor o jazz-band aos tempos de «treva» e «sofrimento» que um
mundo «perdido, com Deus à cabeceira», vivenciou (FERRO, A., 1987: 216, 222)?
A esse tempo, «com Deus à cabeceira», respondeu o artista e o escritor modernista,
criando «the art of modernization», «the literature of technology» — replicando ao
sentido da incerteza com a incerteza do sentido traduzido pelo «linguistic chaos» em
muito do seu discurso literário (BRADBURY, M., McFARLANE, J., 1991: 27); por outro
lado ainda, partilhando o princípio geral segundo o qual a relação do sujeito-artista,
do sujeito-escritor, com a sociedade se torna tanto menos precária quanto mais esse
mesmo sujeito se inscrever ativamente no processo de transformação, estética ou
social, do contexto que o rodeia. Essa relação manifestar-se-á, por exemplo, como já
vimos, através da exploração estético-literária da correlação eu—outros, ou de uma
atitude cuja eficácia deve ser entendida em função da repercussão ao nível do grupo
social (como, por exemplo, a que se encontra presente no discurso de intervenção ou
no discurso manifestatário e programático).
Não será por isso incorreto dizer-se que é também por aí que se pode compreender
como as componentes temáticas e pragmáticas envolvidas pelo processo de atuação
atinente ao discurso modernista, mas acima de tudo futurista, passam necessariamente
por uma expressão teórico-programática, manifestatária e estético-literária
visivelmente agónica — ou, como escreve Wladimir Krysinski: «Le récit futuriste serait
une fable symbolique qui émane de discursivités collectives, une fable para-militaire.
Sa stratégie se laisse interpréter ainsi: pour mieux convaincre, il faut préparer et utiliser
le discours comme instrument de guerre» (KRYSINSKY, W., 1980: 91). Seriam Campos
e Almada quem melhor demonstrariam esse princípio: Campos, por exemplo — na
sua Ode Triunfal —, ao valorizar literariamente o seu creófilo prazer futurista com
os «Progressos dos armamentos gloriosamente mortíferos!» e com as «guerras»,
«tratados», «invasões» (PESSOA, F., 1986a: 881, 884), ou ainda — no seu Ultimatum
de 1917 —, figurando (pela subversão, provocação e linguagem imperativa) o seu
insulto aos «mandarins da Europa» (PESSOA, F., 1986b: 1103); Almada, por seu lado,
de modo bem explícito, quando — no texto Manha e falso prestígio. Os dois males
de que sofre a vida portuguesa, que publica no Diário de Lisboa, a 3 de novembro
1933 — declara «a guerra ao empenho, à cunha, à apresentação, ao salamaleque, à
Os modernistas e a (des)construção do ineludível 721
3 Almada critica, ainda, a figura do burguês no artigo O Diamante; Álvaro de Campos, na Ode Triunfal, na Ode
Marítima e no Ultimatum; António Ferro, em diferentes textos seus (nas Cartas do Martinho I - O Martinho;
na Teoria da Indiferença, n’O Elogio das Horas, n’A Idade do Jazz-Band, Na feira da Europa, no “Prefácio”
da peça Mar Alto, na Carta a Lucília Simões, em Colette, Colette Willy, Colette, no Prefácio da República
Espanhola… E a figura do burguês encontra-se de igual modo presente, de forma pejorativa, em Mário de
Sá-Carneiro (no que diz respeito aos hábitos sociais, alimentares e sexuais, características psicológicas e vida
familiar daquele): em algumas cartas a Fernando Pessoa, datadas de 10 de Dezembro de 1912, 18 e 27 de Julho
de 1914; nas novelas Ressurreição, Loucura e O Incesto. Por seu lado, de igual modo pelo Pessoa ortónimo
o burguês é variavelmente referido: em textos ficcionais (como n’O Banqueiro Anarquista); em artigos de
opinião (como O caso mental português); no conjunto de fragmentos textuais com o título de Erostratus; num
texto intitulado 14 de Maio; num texto em francês sobre a “actual ditadura à Mussolini” (posterior a 2 de Julho
de 1932) (FP, PIN: 370).>
722 100 Orpheu Dionísio Vila Maior
Aquilo a que nós chamamos a Grande Guerra é o princípio do fim antes daquela Grande
Devastação simbolicamente profetizada pelo astrólogo Daniel e pelo Vidente de Patmos
[refere-se ao apóstolo João] […].
Esta grande luta é a manifestação no século vinte da antiga guerra que data do princípio
das cousas. […]
Ela é, em resumo, a eterna luta entre as forças da Luz e as da Treva, as lutas entre os
representantes do Espírito e os da Matéria (PESSOA, F., 1986c: 414).
Os modernistas e a (des)construção do ineludível 723
7. Atendendo, também, ao que ficou escrito, cremos, então, ser possível encadear
as observações entretanto referidas com o âmbito ideológico mais vasto da crise
civilizacional e da crise do sujeito modernista, crises essas que podem também
conceituar-se como o culminar de um processo de crítica aos valores que estariam
ligados à confirmação, no início do século XX, da modernidade segundo Jean-Marie
Domenach — para quem a modernidade não constitui propriamente um período
cronológico, antes um “estado de espírito” que se configura de forma definitiva e
explícita no século XVIII (DOMENACH, J. M., 1986: 14). Tendendo para a delimitação
de um cenário de relação próxima do Homem com o progresso da Ciência e com
o capitalismo industrial — e de afastamento crítico em relação aos alicerces das
sociedades tradicionais, equacionadas como universos sociais estabelecidos em bases
holísticas (id.: 16-17) —, esses valores (como a liberdade, a igualdade, a justiça, o
racionalismo e o progresso) acabam por ser postos em questão. Criticados, ao longo do
século XIX, pelos tradicionalistas, esses valores teriam, então, entrado em contradição
quando compreendidos num processo histórico-cultural de rutura intrínseca com os
próprios contornos ideológicos com que eram emoldurados. Segundo Domenach,
podemos encontrar algumas incoerências da modernidade, que, a esse nível, os valores
que integram o seu universo apresentam (id.: 127 ss). Uma delas é a que diz respeito
à «contradiction entre la bourgeoisie et la classe ouvrière», resultado procedente da
oposição entre o proclamar da independência do indivíduo e o reclamar do valor
de igualdade. E se essas variáveis podem ser contempladas sob o ângulo das “forças
próprias” do indivíduo ou do poder do dinheiro, viabilizadas com o triunfo da
modernidade (que renega a anterior conceção de distribuição social dos indivíduos,
de acordo com o seu nascimento ou mérito), daquela contradição terá nascido o
descontentamento social. Outra contradição da modernidade, segundo Domenach,
incide sobre a relação ambígua, e de certa forma paradoxal, entre a reivindicação de
valores como a liberdade e a igualdade e a reivindicação de valores como o direito
à diferença. Esta conciliação tornar-se-ia desde logo difícil, pela confusão que dela
eventualmente decorre — o que, por isso, e em última instância, com o regresso a uma
conceção de sociedade de tipo holista (provocada talvez, segundo ainda Domenach,
pelo geral “medo do Mesmo” a que as ideias de liberdade e igualdade conduzem), terá
permitido, ao longo do século XX, o desenvolvimento dos regimes totalitários (na
conceção mais ampla deste termo e conceito).
A aproximação das conceções alicerçadas na crítica aos valores da modernidade,
na crise do sujeito modernista e na situação europeia durante os tempos da I Grande
Guerra poderia então traduzir-se, neste contexto, na reação do homem dos finais
do século XIX e inícios do século XX a um cenário de dissolução de valores —
que passariam a ser entendidos como propostas conducentes à separação entre o
724 100 Orpheu Dionísio Vila Maior
De qualquer forma, se, cem anos volvidos após o início da I Guerra Mundial,
os nossos modernistas se confessassem terem sido incapazes de, na sua totalidade,
aceitar ou criticar a guerra que o seu tempo vivenciou, restar-lhes-ia certamente
o reconhecimento de que, afinal, os opostos por vezes se tocam, de que, afinal,
individualismo e coletivismo, sentido e absurdo, acabam, por vezes, por conduzir a
resultados semelhantes. Seria certo que à consciência desses pressupostos sobreviria
a inquietação e o ceticismo; mas não menos certo seria também a consciência da
necessidade de renascimento dos princípios que constituem «a tradição oculta de todo
o nosso estado civilizacional — os princípios guias da nossa comum mãe helénica, e
de Roma, a nossa nutriz» (PESSOA, F., 1993: 302). E se alguém, por ventura, então os
tivesse questionado sobre a sua crença nesse renascer futuro, provavelmente teriam
respondido: “Sim, mas pelos princípios, pelos princípios!”
Bibliografia
Bibliografia Ativa
FERRO, António (1927) - Viagem à Volta das Ditaduras. Lisboa: Empresa Diário
de Notícias.
FERRO, António (1929) - Praça da Concórdia. Lisboa: Empresa Nacional de
Publicidade.
FERRO, António (1987) - Obras de António Ferro — Intervenção Modernista.
Lisboa: Verbo.
FERRO, António (1994) - «[artigos vários]», in LEAL, Ernesto Castro, António
Ferro. Espaço Político e Imaginário Social (1918-32) [«Antologia de António
Ferro»]. Lisboa: Edições Cosmos.
LOPES, Teresa Rita (1990) - Pessoa por conhecer — Textos para um novo mapa.
Lisboa: Editorial Estampa, Vol. II.
Os modernistas e a (des)construção do ineludível 725
Bibliografia Passiva
ALMEIDA, Onésimo Teotónio de (2014). Pessoa, Portugal e o Futuro. Porto:
Gradiva.
BRADBURY, Malcolm e McFARLANE, James [eds.] (1991). Modernism 1890-1930.
Harmondsworth: Penguin Books.
D’ALGE, Carlos (1989). A experiência futurista e a geração de “Orpheu”. Lisboa:
ICALP.
DOMENACH, Jean-Marie (1986). Approches de la Modernité. Paris: École
Polytechnique.
FAULKNER, Peter (1977). Modernism. London / New York: Methuen.
FREUND, Julien (1976). «Observations sur deux catégories de la dynamique
polémogène. De la crise au conflit». In: Communications, 25, pp. 101-112.
KARL, Frederick, R. (1988). Modern and Modernism. The Sovereignty of the Artist
1885-1925. New York: Atheneum.
KRYSINSKI, Wladimir (1980). «Une automobile, une mitraillette, une gifle et un
singe crevé: Marinetti et ses avatars slaves». In: Études Françaises, 16, 3-4, pp.
79-103.
LIND, Georg Rudolf (1981). Estudos sobre Fernando Pessoa. Lisboa: Imprensa
Nacional-Casa da Moeda.
LOPES, Óscar (1987). Entre Fialho e Nemésio II. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa
da Moeda.
McNAB, Gregory (1984). «Sobre duas “intervenções” de Almada Negreiros». In:
Cadernos da Colóquio / Letras, 2, pp. 101-110.
PICCHIO, Luciana Stegagno (1989). «Il Manifesto come genere letterario.
Premesse a uno studio dei manifesti modernisti porthoghesi e brasiliani:
i manifesti portoghesi», Studi in Memoria di Erilde Melillo Reali. Nápoles:
Istituto Universitario Orientale, pp. 219-237.
SENA, Jorge de (1990). «Almada negreiros poeta», in NEGREIROS, José de
Almada, Obras Completas — Poesia. 2ª ed. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa
da Moeda, Vol. I, pp. 9-33.
SHORT, Robert (1991). «Dada and Surrealism». In: BRADBURY, Malcolm e
McFarlane, James [eds.], Modernism 1890-1930. Harmondsworth: Penguin
Books, pp.292-308.
VILA MAIOR, Dionísio (2011). «Le manifeste littéraire et la cohérence carnavalisée
du discours moderniste portugais et brésilien». In: BESSE, Maria Graciete
[org.], Le Futurisme et les Avant-gardes au Portugal et au Brésil. Éditions
Convivium Lusophone: Argenteuil, pp.133-151.
Fernando Pessoa e João Cabral:
leitores de Cesário Verde1
Palavras-chave: Fernando Pessoa; João Cabral; Cesário Verde; Poesia moderna; Tradição.
Resumo: Acompanha-se o modo como Fernando Pessoa e João Cabral leem Cesário Verde,
elegendo-o como precursor, e também aventam-se algumas possíveis razões das restrições que
o poeta brasileiro, malgrado reivindicar a mesma tradição que o autor de Mensagem, a ele faz.
1 Trabalho vinculado a estágio pós-doutoral em desenvolvimento na FLUP - Portugal, com bolsa do CNPq -
Brasil.
2 Sobre o papel precursor de Cesário em relação aos de Orpheu, confira o artigo «Na senda de Orpheu -
alicerces e consequências», de Paula Morão (2011: 91-105).
728 100 Orpheu Solange Fiuza Cardoso Yokozawa
o que levou António José Saraiva a observar que ele «[c]omo ninguém, conseguiu
dar expressão poética à realidade objetiva e quotidiana [...] Tudo isto é dado de
forma impressionisticamente exacta, sem véus de retórica, com uma aparente
impassibilidade, numa linguagem que consegue ser corrente e comum» (SARAIVA,
A. J., 1999: 136). Ao proceder dessa forma, ainda conforme Saraiva, «[de] todos os
poeta da chamada ‘escola nova’ Cesário foi o único que conseguiu cortar com a
retórica romântica, criando uma expressão inteiramente nova, ajustada à expressão
directa de um novo conteúdo» (id.: 137).
A «aparente impassibilidade» da poesia de Cesário notada por Saraiva antecede
a despersonalização que está na base da heteronímia de Fernando Pessoa, o qual,
por sua vez, homenageia o autor de «Nós» em poemas de Alberto Caeiro e Álvaro
de Campos. Ricardo Reis, numa das tentativas de prefácio à obra de Alberto Caeiro,
escreve: «Esta obra inteira é dedicada/ Por desejo do próprio autor/ À memória de/
Cesário Verde» (PESSOA, F., 1995: 116). O próprio Caeiro, em poema de O guardador
de rebanhos, aparece lendo Cesário Verde e dele constrói um retrato crítico:
Ao entardecer, debruçado pela janela,/ E sabendo de soslaio que há campos em frente,/ Leio
até me arderem os olhos/ O livro de Cesário Verde.// Que pena que tenho dele! Ele era um
camponês/ Que andava preso em liberdade pela cidade./ Mas o modo como olhava para as
casas,/ E o modo como reparava nas ruas,/ E a maneira como dava pelas cousas,/ É o de
quem olha para árvores,/ E o de quem desce os olhos pelas estrada por onde vai andando/ E
anda a reparar nas flores que há pelos campos...// Por isso ele tinha aquela grande tristeza/
Que ele nunca disse bem que tinha,/ Mas andava na cidade com quem anda no campo/ E
triste como esmagar flores em livros/ E pôr plantas em jarros... (PESSOA, F., 1990: 205)
Alberto Caeiro, o heterônimo que valoriza a realidade mais imediata, que prefere a
sensação em detrimento do pensamento, quer-se um antilivresco, mas toma Cesário
como mestre e entrega-se à leitura de sua poesia, preterindo a ela os campos que se
oferecem à vista e nela destacando a maneira visualista. Mas a poesia com acento na
visão da realidade exterior seria, para Caeiro, uma forma de integração do ser com
a natureza, o qual nela está como uma árvore, e a poesia objetiva do seu precursor
volta-se para um meio em que a correspondência não é mais possível e a cisão é
inarredável. Como nota o próprio Pessoa em fragmento crítico a ser retomado mais
adiante, Cesário não canta nem as cidades nem os campos, mas «a ‘vida humana’,
e canta ‘nos’ campos e ‘nas’ cidades, em relação à natureza livre dos campos e à/
natureza artificial/ das cidades» (PESSOA, F., 2006: 232). Ao cantar a vida humana,
Cesário não é indiferente às fraturas sociais e às contradições que assinalam o espaço
citadino e também o campo, cujo imaginário literário de locus abstrato bucólico
Fernando Pessoa e João Cabral: leitores de Cesário Verde 729
reformulou3. Daí a tristeza que Caeiro lê em seu mestre, visualista como ele, mas que,
diferentemente dele, em lugar de ver na representação das árvores, das flores e dos
montes um ideal de poesia, representou o homem na cidade e também no campo
com as tensões sociais e estéticas que isso implica4. O poeta visualista Cesário seria,
na cidade e na perspectiva de Caeiro, uma espécie artificial, uma flor de estufa, um
inadaptado («Mas andava na cidade com quem anda no campo/ E triste como esmagar
flores em livros/ E pôr plantas em jarros...») e por isso dele se apieda: «Que pena que
tenho dele! Ele era um camponês/ Que andava preso em liberdade pela cidade.»
Caeiro foi mestre de Álvaro de Campos, que também rende homenagem a Cesário
Verde em fragmentos de «Dois excertos de ode» e «Ode marítima», respectivamente
transcritos:
Cada rua é um canal de uma Veneza de tédios/ E que misterioso o fundo unânime das ruas,/
Das ruas ao cair da noite, ó Cesário Verde, ó Mestre,/ Ó do «Sentimento de um Ocidental»!
(PESSOA, F., 1990: 314)
Complexidade da vida! As faturas são feitas por gente/ Que tem amores, ódios, paixões
políticas, às vezes crimes --/ E são tão bem escritas, tão alinhadas, tão independentes de
tudo isso!/ Há quem olhe para uma fatura e não sinta isto./ Com certeza que tu, Cesário
Verde, sentias./ Eu é até as lágrimas que sinto humanissimamente./ Venham dizer-me que
não há poesia no comércio, nos escritórios! (id.: 334)
3 Escreve David Mourão-Ferreira que com Cesário Verde o «contraste cidade-campo deixou de ser um tema
literário. Só dá por ele quem o sentir. A experiência agora é individual e inesperada; dantes fazia parte do
programa, estava inscrita no roteiro da actividade literária» (MOURÃO-FERREIRA, D., [1981]: 72). Para
acompanhar a representação da cidade e do campo na poesia verdiana, confira o livro-tese de Helder Macedo
(1975) Nós: uma leitura de Cesário Verde.
4 Adolfo Casais Monteiro nota que «na poesia de Alberto Caeiro o homem foi 'abolido'» (MONTEIRO, A. C.,
1999: 60). É evidente que Fernando Pessoa, por meio do discurso poético de Caeiro, não abole o homem, pois
basta a recorrência à linguagem, à impura linguagem dos homens, para desmentir isso. Mas essa tentativa de
elidir o homem, integrando-o à natureza, como um de seus elementos constitutivos, é um dos objetivos do
projeto Caeiro; um objetivo fundamental na busca de uma síntese integrativa com o mundo natural.
730 100 Orpheu Solange Fiuza Cardoso Yokozawa
5 lacuna do próprio texto de Pessoa, conforme registro de Teresa Sobral Cunha em Cânticos do realismo e outros
poemas [seguidos de] 32 cartas.
Fernando Pessoa e João Cabral: leitores de Cesário Verde 731
Cesário Verde usava a tinta/ de forma singular:/ não para colorir,/ apesar da cor que
nele há.// Talvez que nem usasse tinta,/ somente água clara,/ aquela água de vidro/ que
se vê percorrer a Arcádia.// Certo, não escrevia com ela,/ ou escrevia lavando:/ relavava,
enxaguava/ seu mundo em sábado de banho.// Assim chegou aos tons opostos/ das maçãs
que contou: rubras dentro da cesta/ de quem no rosto as tem sem cor. (MELO NETO, J. C.,
2008: 275)
*
* *
João Cabral, apesar de tomar, como Fernando Pessoa, Cesário Verde como
precursor e nele valorizar o mesmo discurso poético objetivo fundador de um
paradigma novo de poesia em língua portuguesa, ao se referir a Pessoa, fá-lo por
meio de restrições declaradas ou veladas. Isso parece se situar num quadro maior da
complexa e contraditória relação entre Cabral e a literatura portuguesa; relação que,
feita de grandes admirações e amizades, mas também de preferências e preterições
nem sempre as mais convencionais, sofreu reformulações ao longo dos anos e das
contingências. Mas não cabe discutir essa relação neste trabalho, bastando aqui notar
734 100 Orpheu Solange Fiuza Cardoso Yokozawa
que, em 1969, na já citada entrevista a Fábio Freixeiro, Cabral diz ser a literatura
portuguesa a que menos leu, lembrando-se apenas de ter lido Eça de Queiroz (o
escritor preferido pelo seu pai), Antônio Nobre e Fernando Pessoa (exclusivamente
Mensagem) (FREIXEIRO, F., 1971: 184). Considerando somente a curiosidade da
declaração em relação a Fernando Pessoa, há que se notar que o próprio Cabral, em
entrevista a Arnaldo Saraiva, em 1987, diz ter permanecido um dia em Lisboa, em
1947, quando viajava de navio para ocupar o posto de vice-cônsul em Barcelona,
ocasião em que se lembra de ter comprado o Páginas de doutrina estética, com seleção,
prefácio e notas de Jorge de Sena (MELO NETO, J. C., 2014: 66). Custa a acreditar que
o leitor dessas Páginas não tivesse se interessado também pelos primeiros volumes das
obras completas de Fernando Pessoa, sob a editoria de João Gaspar Simões e Luís de
Montalvor, este falecido um ou dois dias antes de Cabral pisar em terras portuguesas.
Ou não tivesse se interessado pela Antologia6, em dois volumes, organizada por Adolfo
Casais Monteiro, cuja importância para a jovem geração dos começos dos anos 40
teria sido capital, conforme assinala Eduardo Lourenço (LOURENÇO, E., 1986: 24).
Mas se, malgrado essas curiosidades, Cabral diz, em 1969, ter lido de Pessoa apenas
o Mensagem, declara ao Jornal do Brasil, em 1987, quando seu acervo de leituras
portuguesas e pessoanas havia declaradamente se ampliado, preferir Cesário Verde,
Miguel Torga e Camilo Pessanha à Fernando Pessoa (ATHAYDE, F., 1998: 141).
Na compilação de entrevistas de Cabral selecionadas e organizadas por Félix de
Athayde, sob o verbete «Fernando Pessoa», são reunidas declarações de 1985 e 1991
que vale a pena transcrever, pois esclarecedoras para o que neste artigo se discute:
O que acontece é que ele [Fernando Pessoa] tinha essas coisas geniais (“sentir pensando e
pensar sentindo”) [...] (Entrevista à revista Vértice, Coimbra, n. 454/5, 1985)
Fernando Pessoa, por exemplo, é o poeta mais influente na literatura brasileira. Toda a gente
faz Pessoa... (Entrevista a Maria Leonor Nunes, JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, Lisboa,
n.448, 05/10 fev. 1991)
Penso que [Fernando Pessoa] é um poeta extraordinário. Mas acho que, geralmente, lhe
pegam pelos aspectos menos interessantes da sua obra. É seu excesso de subjetivismo que
interessa aos brasileiros. (Entrevista a Maria Leonor Nunes, JL - Jornal de Letras, Artes e
Ideias, Lisboa, n.448, 05/10 fev. 1991)
6 Trata-se, na coleção Antologia de autores portugueses e estrangeiro, dos dois volumes de Poesia: Fernando
Pessoa, publicados em 1942 pela Editora Confluência.
Fernando Pessoa e João Cabral: leitores de Cesário Verde 735
O mal que Pessoa fez à literatura é imenso. Aquela coisa “inspirada”, caudalosa, criou uma
legião de poetastros que acreditam na inspiração metafísica [...] (Entrevista a Arnaldo Jabor,
Folha de São Paulo, Folha Ilustrada, São Paulo, 05 set. 1991)
(ATHAYDE, F., 1998: 126)
7 José Augusto Seabra, que demonstrou o construtivismo de Caeiro, nota que «há nos poemas de Caeiro, sob a
exterioridade de uma justaposição arbitrária e negligente de versos livres, uma organização rítmica cuidada»
(SEABRA, J. A., 1991: 100) e que «esta construção é justamente perfeita na medida em que se esconde, por
uma discrição calculada, a fim de melhor sugerir o efeito de espontaneidade querido pelo poeta: e é aí que
reside toda a sua 'mestria'» (id.: 101)
736 100 Orpheu Solange Fiuza Cardoso Yokozawa
8 Vale citar palavras do próprio Pessoa num prefácio a uma edição projetada das suas obras: «A cada
personalidade mais demorada, que o autor destes livros conseguiu viver dentro de si, ele deu uma índole
expressiva, e fez dessa personalidade um autor, com um livro, ou livros, com as ideias, as emoções, e a arte dos
quais, ele o autor real (ou porventura aparente, porque não sabemos o que seja a realidade), nada tem, salvo o
ter sido, no escrevê-las, o médium de figuras que ele próprio criou.
«Nem esta obra, nem as que se lhe seguirão têm nada que ver com quem as escreve. Ele nem concorda com o
que nelas vai escrito, nem discorda» (PESSOA, F., 1995: 82).
Fernando Pessoa e João Cabral: leitores de Cesário Verde 737
uma saída poética para Cabral. Daí ele encontrar em poetas como Francis Ponge e
Cesário Verde influências reforçativas, que confirmaram nele o partido das coisas, o
gosto pela representação de realidades concretas.
Se, desde os românticos, o conceito de poesia que se impõe é o que a entende
como expressão do eu do poeta, logo, a poesia que desdenha essa concepção e prefere,
em lugar da expressão deliberada da subjetividade do poeta, a representação de uma
dada realidade objetiva, faz-se antilírica. Daí a pecha que Cabral assume para si de
«antilírico», autor de «antiversos».
A poesia fundada no fingimento, na criação de personalidades em Pessoa e aquela
assentada no falar de coisas em Cabral, não tem como corolário o banimento da emoção
ou da subjetividade poética. Cabral afirma, em momentos diversos de entrevistas e
poemas, que toda escrita é uma autoescrita9, que falar de coisas é uma forma outra
de falar de si10. Também, reconfigura sua poesia, centralizando nela, ainda que sem
trair seu discurso inconfundível, temas por excelência da poesia mais subjetivista,
como a memória pessoal, em A escola das facas (1980), e a mulher amada, em Sevilha
andando (1989). Pessoa, antes dele, sustenta a exigência de uma sinceridade estética,
fundada na coerência poética e que se faz em detrimento de uma sinceridade ética, de
base romântica, calcada na vida do poeta.
Mas Pessoa, diferentemente de Cabral, que procurou rasurar as marcas discursivas
da subjetividade, escrevendo inclusive um livro como Educação pela pedra (1966), em
que não há um único poema em que apareça a primeira pessoa discursiva, constrói
uma poesia cujo discurso é marcadamente subjetivo. Além disso, Pessoa, mesmo que
seja, em certo sentido, um antirromântico, é herdeiro da subjetividade tirânica dos
românticos, para os quais, conforme Hegel, «[t]udo o que é é pelo eu, e tudo quanto
existe mediante o eu pode ser também pelo eu ser destruído» (HEGEL, G.W.F., 1996:
84). Esse sujeito fichteano que tudo põe e destrói é por excelência o sujeito irônico. Se
ele é um criador livre, pois nada o prende, também não encontra uma referência que
o sustente definitivamente. É essa subjetividade titânica, mãe da ironia romântica11,
que nada tem a ver com uma subjetividade romântica epidérmica, que está na base
da criação pessoana.
Leyla Perrone-Moisés se refere à «alteridade absoluta» (PERRONE-MOISÉS, L.,
1982: 3), que talvez seja um termo mais apropriado em se tratando de Pessoa. Essa
9 Leia-se o poema «Retrato de escritor», de Educação pela pedra (MELO NETO, J.C., 2008: 336).
10 Leia-se o poema «Dúvidas apócrifas de Marianne Moore» (id.: 522).
11 Adolfo Casais Monteiro já relacionou a despersonalização pessoana e eliotiana com a ironia romântica:
«há um antecedente para as posições assumidas por Eliot e por Pessoa: é aquilo a que se costuma chamar
(paradoxalmente) ironia romântica» (CASAIS MONTEIRO, A. 199: 137)
738 100 Orpheu Solange Fiuza Cardoso Yokozawa
Bibliografia
Bibliografia Ativa
ATHAYDE, Félix (1998). Ideias fixas de João Cabral de Melo Neto. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira/FBN; Mogi das Cruzes, SP: Universidade de Mogi das
Cruzes12.
FREIXEIRO, Fábio (1971). «João Cabral de Melo Neto - roteiro de auto-interpretação».
In: FREIXEIRO, Fábio. Da razão à emoção II; ensaios rosianos e outros ensaios e
documentos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, pp.179-19213.
12 Trata-se o livro de entrevistas concedidas por Cabral ao longo de sua vida, tendo sido selecionadas e
organizadas em verbetes por Félix de Athayde.
13 Entrevista com João Cabral reproduzida em 3a pessoa do discurso pelo entrevistador.
Fernando Pessoa e João Cabral: leitores de Cesário Verde 739
MELO NETO, João Cabral (2008). Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar.
MELO NETO, João Cabral (1996). «Entrevista». In: CADERNOS DE
LITERATURA BRASILEIRA. João Cabral de Melo Neto. São Paulo: Instituto
Moreira Sales, pp.18-31.
MELO NETO, João Cabral (2014). «Entrevista ao Jornal de Letras, Artes e Ideias
(Portugal, Espanha, Brasil... a poesia)» In: SARAIVA, Arnaldo. Dar a ver e
a se ver no extremo: o poeta e a poesia de João Cabral de Melo Neto. Porto:
CITCEM, Edições Afrontamento, pp.65-72.
PESSOA, Fernando (2006). «Estudo crítico; fragmentos». In: CUNHA, Teresa
Sobral (org.). Cânticos do realismo e outros poemas [seguidos de] 32 cartas.
Lisboa: Relógio D’Água, pp.223-240.
PESSOA, Fernando (1995). Obras em prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar.
PESSOA, Fernando (1990). Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar
VERDE, Cesário (2003). Obra completa de Cesário Verde. Org. Joel Serrão. Lisboa:
Livros Horizontes.
Bibliografia Passiva
HEGEL, G.W.F (1997). Curso de estética: o sistema das artes. São Paulo: Martins
Fontes.
HIGA, Mario (2010). «Introdução». In: VERDE, Cesário. Poemas reunidos. Cotia,
SP: Ateliê, pp.15-87.
LOURENÇO, Eduardo (1986). Fernando Pessoa: rei da nossa Baviera. Lisboa:
Imprensa Nacional - Casa do Moeda.
MACEDO, Helder (1975). «Nós»: uma leitura de Cesário Verde. Lisboa: Plátano.
MOISÉS, Carlos Felipe (2001). Modernidade. In: MOISÉS, Carlos Felipe. O
desconcerto do mundo: do Renascimento ao Surrealismo. São Paulo: Escrituras,
pp. 199-207.
MONTEIRO, Adolfo Casais (1999). A poesia de Fernando Pessoa. Lisboa: Imprensa
Nacional - Casa do Moeda.
MORÃO, Paula (2011). «Na senda de Orpheu - alicerces e consequências». In:
CERDEIRA, Teresa Cristina (org.). Metamorfoses. Lisboa: Caminho e Cátedra
Jorge de Sena, v. 11, n. 1, pp. 91-105.
MOURÃO-FERREIRA, David [1981]. Notas sobre Cesário Verde. In:
MOURÃO-FERREIRA, David. Hospital das Letras. Lisboa: Imprensa
Nacional - Casa da Moeda.
PERRONE-MOISÉS, Leyla (1982). Fernando Pessoa: aquém do eu, além do outro.
São Paulo: Martins Fontes.
740 100 Orpheu Solange Fiuza Cardoso Yokozawa
SARAIVA, António José (1999). «Cesário Verde». In: SARAIVA, António José.
Iniciação à literatura portuguesa. São Paulo: Cia das Letras, pp. 135-138.
SEABRA, José Augusto (1991). Fernando Pessoa ou o poetodrama. São Paulo:
Perspectiva.
SENA, Jorge (2001). «A linguagem de Cesário Verde». In: SENA, Jorge. Estudos de
Literatura Portuguesa I. Lisboa: Edições 70, pp.177-181.
Campos Triunfal
Richard Zenith
Investigador independente
1 Drummond decerto conhecia o verso do poeta Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810) que reza assim: «Eu
tenho um coração maior que o mundo» (Marília de Dirceu). No seu poema «Mundo Grande» (ANDRADE,
C. D., 2012b: 45), voltaria ao mesmo verso, desta vez para contrariá-lo: «Não, meu coração não é maior que o
mundo. / É muito menor.»
742 100 Orpheu Richard Zenith
Sete Faces» (ANDRADE, C. D., 2012a: 19-20), que inclui os referidos versos, voltaria
a ser publicado em 1930, como primeiro poema do seu primeiro livro. A sétima e
última estrofe, ou «face», da sua auto-psico-grafia reza assim:
Triunfal», mas em 2010 foi publicado um fac-símile de uma folha manuscrita com
52 versos do poema (MOISÉS, C. F. e ZENITH, R., 2010: 71), dez versos de uma
segunda folha manuscrita foram reproduzidos e transcritos em 2012 (ZENITH, R.,
2012: 89), e existem, no verso da mesma folha, mais 13 versos divulgados apenas
em 2015 (ZENITH, R., LOPES, F. e RÊGO, M., 2015: 174). Estes 75 versos — um
pouco menos de um terço do número total — sofreram grandes alterações. Os quatro
versos que rematam o poema, na sua versão final, encontravam-se mais perto do
início; alguns versos foram divididos em dois, com conteúdos acrescentados; novos
versos e até estrofes inteiras foram posteriormente escritos e inseridos entre os versos
destes primeiros rascunhos; e várias palavras e nomes próprios deram lugar a outros.
Na «Ode Triunfal» publicada em Orpheu 1, o narrador, dirigindo-se aos «tramways,
funiculares, metropolitanos», implora: «Roçai-vos por mim até ao espasmo!», mas no
rascunho era mais explícito, dizendo, «Chegai-vos por mim e masturbai-me!»
A emenda mais significativa, no entanto, foi a supressão de um nome crucial para
a poética de Campos. Um verso do rascunho que invocava «Walt Whitman tão alto
que não pode passar pela porta!» (ZENITH, R., 2012: 89) foi convertido, na versão
definitiva, numa exclamação anónima: «Ser tão alto que não pudesse entrar por
nenhuma porta!». Num texto em prosa redigido quinze anos depois, Álvaro de Campos
recordaria a grande novidade que representou «a minha ‘Ode Triunfal’, no Orpheu I,
visto que, embora escrita perto de setenta anos depois da primeira edição das Leaves
of Grass, aqui ninguém sabia sequer da existência de Whitman, como não sabem em
geral da própria existência das coisas» (LOPES, T. R., 1990: 337). Aquando da sua
revelação pública, optou-se por esconder a sua dívida para com o poeta americano, o
que não foi difícil, pois Pessoa-Campos tinha razão quanto à ignorância dos críticos
portugueses. Nenhuma das muitas recensões de Orpheu 1 detectou a influência
whitmaniana na grande ode. Não foi sequer detectada por Mário de Sá-Carneiro.
Na sua apoteótica carta de 20/vi/1914, Sá-Carneiro garantiu: «você acaba de
escrever a obra-prima do Futurismo. Porque, apesar talvez de não pura, escolarmente
futurista — o conjunto da ode é absolutamente futurista. Meu amigo, pelo menos a
partir de agora o Marinetti é um grande homem... porque todos o reconhecem como
o fundador do Futurismo, e essa escola produziu a sua maravilha» (SÁ-CARNEIRO,
M., 2001: 108). Note-se que a maravilhosa ode ainda não se chamava «Triunfal».
Pessoa, aliás, tinha escrito na carta ao amigo que os versos nela incluídos eram apenas
alguns «excertos» de uma ode (sem nome). Sá-Carneiro discordou: «Não acho a
ode um excerto (ou excertos). Acho-a pelo contrário — tal como está — um todo
completo, perfeito em extremo, em extremo equilibrado» (109). Com efeito, os vários
versos que elogiosamente cita na carta de resposta a Pessoa não correspondem à
versão dos rascunhos, mas sim à versão definitiva, e depreende-se que tinha recebido
744 100 Orpheu Richard Zenith
praticamente a ode inteira, à excepção da primeira parte, que seguiria para Paris no
início de Julho. Pessoa ainda lhe fez alguns retoques e emendas2, mas a ode já estava
completa nesse mês de Julho.
Não sabemos se Pessoa escreveu os primeiros rascunhos poucos dias ou algumas
semanas antes da versão já revista que enviou a Sá-Carneiro, mas se a história do Dia
Triunfal for verdadeira, pelo menos na sua essência poética, o heterónimo Álvaro de
Campos terá surgido juntamente com a escrita do poema. É possível, aliás, que o eu
poético que andava por Lisboa a celebrar máquinas e a vida moderna, gritando coisas
como «Olhar é em mim uma perversão sexual!» (verso do rascunho, quase igual na
versão final) tenha sido inicialmente concebido como uma faceta cosmopolita do
tranquilo observador da Natureza chamado Alberto Caeiro. Foi Teresa Rita Lopes
quem primeiro trouxe para a ribalta a existência de odes futuristas — trechos ou inícios
de odes — atribuídas ao heterónimo que surgira já em Março de 1914. Valendo-se
de uma lista de tarefas que Pessoa elaborou para Caeiro e em que incluía não só O
Guardador de Rebanhos mas também «Cinco Odes Futuristas» e «Chuva Oblíqua»
(PESSOA, F., 2014: 205-206) a estudiosa deduziu que Caeiro começou por ser um
vasto e polivalente poeta modernista — ora bucólico, ora urbano, ora vanguardista
(LOPES, T. R., 1993: 46-48). Porém, o autor das odes futuristas acabou por se chamar
Álvaro de Campos, os poemas interseccionistas de «Chuva Oblíqua» tornaram-se
património literário de Pessoa ele-mesmo3, e Caeiro ficou com O Guardador.
Entre os papéis de 1914 deixados por Pessoa, existem três odes abortadas que foram
explicitamente destinadas ao projecto de cinco odes futuristas: 1) «E eu era parte de
toda a gente que partia» (PESSOA, F., 2002: 258), inicialmente atribuída a A. Caeiro,
nome substituído pelo de A. Campos, 2) «Ah, os primeiros minutos nos cafés de
novas cidades!» (PESSOA, F., 2002: 104), atribuída a A[lberto] C[aeiro] mas imbuída
do espírito e da linguagem poética de Campos, e 3) «Casa a Casa», sem atribuição
heteronímica e que não é obviamente de Campos. Esta última foi, aliás, publicada
no apêndice a uma edição de poemas de Caeiro (PESSOA, F., 2014: 194)4, enquanto
as outras duas surgem em várias edições da poesia de Campos. Um quarto poema,
«Uma vontade física de comer o universo» (PESSOA, F., 2002: 257), cuja atribuição
inicial a Caeiro foi alterada a favor de Campos, terá sido igualmente concebido
como uma ode futurista. Avento Abril de 1914 como o mês em que Pessoa começou
2 Por exemplo, substituiria uma referência ao «Shakespeare do século cem» (citada por Sá-Carneiro na sua
carta de 13/vii/1914) por um Eurípides dessa mesma altura hiperfuturista.
3 Estes poemas passaram primeiro para Campos, indicado como o seu autor em carta de Pessoa a Armando
Côrtes-Rodrigues datada de 4/x/1914._
4 O verso do fragmento (bnp E3/68-8v) tem um texto sobre Alberto Caeiro redigido em inglês.
Campos Triunfal 745
a trabalhar nestas odes, dado a referida lista de tarefas literárias para Caeiro ser
anterior a 7/v/19145.
As quatro odes iniciadas nessa Primavera heteronímica são ambientadas na cidade
e falam de movimentos e deslocações, com menções de navios, comboios e outros
modos de transporte. O narrador de todas elas observa a vida urbana com uma
atenção sentida que lembra o olhar de Cesário Verde. De mais a mais, este olhar e este
sentimento — à semelhança do que encontramos no poeta de «O Sentimento dum
Ocidental» — são fortemente atraídos pela realidade humana, na sua individualidade
e no seu conjunto. Passo a citar versos exemplificativos de cada uma das quatro odes
(pela ordem em que foram mencionadas no último parágrafo):
1) «A minha alma era parte do lenço com [que] aquela rapariga acenava / Da janela
afastando-se de comboio...»;
2) «O movimento, o movimento, / Rápida cousa colorida e humana que passa e fica...»;
3) «E a rapariga que cose à janela, de cabeça baixa, / Quem pode desprezar olhando-a como
se ela fosse / Um ponto sobre a capital de um grande império...»;
4) «Um novo tacto que fizesse pertencer-me, / A meu ser possuidor fisicamente, / O universo
com todos os seus sóis e as suas estrelas / E as vidas múltiplas das suas almas...».
O espírito destas odes, ou destes estudos para odes, tem muito pouco a ver com o
guardador de rebanhos, que não desejava possuir nada, não pretendia ter uma alma
ou um coração transbordante de sentimentos, nem manifestava interesse pelas vidas
alheais. Quando Caeiro se apaixonou por uma rapariga, foi por estar doente. No ciclo O
Guardador, tido por Pessoa como a fase mais puramente caeiriana, o único momento
francamente humano ocorre no oitavo poema, mas a criança brincalhona que acaba
por ir morar com Caeiro na sua casa branca é o Menino Jesus e todo o poema é uma
parábola. No terceiro poema do ciclo, o pastor de pensamentos presta homenagem a
Cesário Verde, mas manifesta pena por este ter sido constrangido a viver na cidade
em vez do campo. E alega que o poeta oitocentista olhava para as casas, as pessoas e as
ruas como se fossem árvores — alegação que me parece altamente discutível. Quanto
ao guardador, que dizia apreciar, acima de tudo, a pura e objectiva visão de todas
as coisas imediatamente ao seu alcance, temos de admitir que a sua poesia não vê
as coisas (árvores, flores, pedras) tais como são; faz antes uma apologia, constitui-se
num evangelho, que prega a superioridade de ver as coisas (árvores, flores, pedras) tais
5 A lista de tarefas é precedida por uma lista de quinze poemas de O Guardador de Rebanhos, que inclui dez
poemas sem data, cinco poemas datadas ou datáveis de entre 8 e 13 de Março, e nenhum dos seis poemas
redigidos em 7 de Maio.
746 100 Orpheu Richard Zenith
como são. É uma poesia abstrata, de certo modo platónica, na qual uma flor é uma flor
é uma flor — uma categoria e não uma flor realmente percebida ou, como acontece
em Campos, imaginariamente sentida.
Caeiro era o mestre, que ensinava a importância de ver até não poder ver mais aquilo
que existe, mas quem humanizou a lição, pondo-a em prática de modos opostos, foram
os seus dois discípulos, surgidos quase em simultâneo. Três ou quatro dias depois
de ter enviado a Sá-Carneiro a maior parte da primeira grande ode de Álvaro de
Campos, Pessoa anunciou-lhe o «nascimento» de Ricardo Reis, que também escrevia
odes, mas de um tipo completamente diferente. Enquanto as de Campos, expansivas
e excessivas, se inspiravam nas odes corais da tragédia grega, género que derivou do
ditirambo, o extasiado canto coral em honra de Dionísio, as odes ricardianas eram
mais breves e comedidas, imitadoras de Horácio na sua forma e também nas suas
temáticas, que se prendiam com a necessidade de aceitarmos o destino que nos foi
dado. Foi ainda em Junho de 1914 que Pessoa enviou para o seu amigo em Paris
um primeiro lote de odes do classicista, juntamente com uma explicação do «enredo
Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos» (referido por Sá-Carneiro na sua
carta-resposta de 27/vi/1914).
O Dia Triunfal, ao fim de três meses e meio, estava final e gloriosamente consumado.
As descrições físicas e os dados biográficos do novo e admirável trio poético seriam
desenvolvidos e aperfeiçoados ao longo de muitos anos, mas as suas personalidades, as
suas ideias e os seus estilos literários, bem como as relações entre eles, foram definidos
com nitidez em Julho de 1914. Nos primeiros dias desse mês, como para o ajudar a
assentar tudo por escrito, Pessoa inventou Frederico Reis, irmão de Ricardo e autor de
um folheto sobre a «Escola de Lisboa», basicamente constituída pelo «Mestre jovem
e glorioso» de nome Alberto Caeiro e pelos seus discípulos Ricardo Reis e Álvaro de
Campos.6 O efeito exercido pela obra de Caeiro sobre estes últimos «foi o de uma
paisagem totalmente nova que contemplassem, que lhes despertasse as almas, mas a
cada um a sua, a cada um segundo as suas tendências e faculdades». O precursor de
todos eles era, no entanto, Cesário Verde, segundo se afirma no mesmo folheto.
Assim, não é de admirar que Álvaro de Campos — ao descrever o cair da noite
6 bnp E3/146-3 a 17. O folheto, escrito em envelopes da Empreza Ibis — Typographica e Editora, foi transcrito
e publicado em Sensacionismo e Outros Ismos (PESSOA, F., 2009: 57-61) e, com muitas diferenças de leitura,
em Sobre Orpheu e o Sensacionismo (PESSOA, F., 2015: 18-25). Existe um rascunho, inédito, de uma
«Carta de Fernando Pessoa a Frederico Reis», que consiste numa recensão (inacabada) do folheto e cuja
publicação foi prevista «para Europa» (bnp E3/146-18). Europa, um projeto de revista de 1914, era muito
referida nas cartas trocadas por Pessoa e Sá-Carneiro no Verão desse ano. Na sua carta a Pessoa datada de
18/vii/1914, Sá-Carneiro escreve: «Gostaria muito, se fosse possível, conhecer o que sobre mim (e sobretudo
o interseccionismo e Caeiro & C.ª) o mano Reis escreveu.» Com efeito, o folheto de Frederico Reis também
menciona Sá-Carneiro como escritor associado à «Escola de Lisboa».
Campos Triunfal 747
sobre as ruas de Lisboa, no segundo dos seus «Dois Excertos de Odes», escritos na
mesma altura (30/vi/1914) — exclame, de repente: «ó Cesário Verde, ó Mestre» e
invoque seguidamente «O Sentimento dum Ocidental», um poema que tem tudo a
ver com os sentimentos e a materialidade viva da sua própria poesia dos primeiros
tempos.
Frederico Reis define Campos como «o poeta de Sensações e só de sensações», ou
então como um «génio febril, nervoso», que «na sua enorme Ode II triunfa de uma
vez para sempre de todos os vários futuristas por acabar, que na França, na Itália e na
Inglaterra não conseguem dizer o que querem». Visto que a «Ode Triunfal», nessa
altura, se intitulava «Ode II», é razoável conjecturar que Pessoa encarava os «Dois
Excertos de Odes» (subtitulados «fins de duas odes») como as secções concludentes de
uma «Ode I» e uma «Ode III» por completar. Metade desta conjectura é comprovada
por uma carta para Armando Côrtes-Rodrigues, datada de 4/x/1914, em que Pessoa
menciona um «trecho ‘à Noite’ da ‘Ode Triunfal N.º 3’ do Álvaro de Campos». O
trecho corresponderá, sem sombra de dúvida, ao primeiro dos «Dois Excertos de
Odes», todo ele um magnífico hino à Noite. A citada frase da carta também sugere que
o antigo projeto de «Cinco Odes Futuristas» dera lugar a «Cinco Odes Triunfais», título
confirmado por um plano de publicações datável de 1915 (PESSOA, F., 2003: 287).
Quanto à primitiva e despojada designação de «Ode II» para a «Ode Triunfal»,
reaparece num citadíssimo texto em inglês sobre o mestre Caeiro e os seus dois
discípulos, que principia «To whom can Caeiro be compared?» Foi publicado pela
primeira vez em Páginas Íntimas e de Auto-interpretação (PESSOA, F., 1966: 335) com
a data conjectural de 1917 — conjectura baseada, suponho eu, no facto de o longo
texto elucidar com tanta perfeição as prováveis influências literárias de Caeiro (Cesário
Verde, Walt Whitman e — «por oposição» — Teixeira de Pascoaes), a ascendência que
Caeiro, por sua vez, exerceu sobre Ricardo Reis e Álvaro de Campos, o génio que
distingue cada um dos três poetas inventados, as semelhanças e diferenças entre eles,
etc. É este texto que nos explica (cito a tradução para português):
Caeiro tem uma disciplina: as coisas devem ser sentidas tal como são. Ricardo Reis tem
outro tipo de disciplina: as coisas devem ser sentidas, não só como são, mas também de
modo a enquadrar-se num certo ideal de medida e regra clássicas. Em Álvaro de Campos,
as coisas devem simplesmente ser sentidas.
Em toda a obra de Fernando Pessoa, não encontraremos melhor resumo das índoles
contrastantes dos três heterónimos. Os primeiros editores deste texto calcularam que
terão sido necessários três anos para o sistema heteronímico evoluir até ficar tão
claramente traçado e descritível.
748 100 Orpheu Richard Zenith
Já vimos, no entanto, que a evolução foi bem mais rápida. Em Julho de 1914, o
sistema de Pessoa e C.ª estava estabelecido, com as órbitas e as forças de atração e
de repulsão em pleno funcionamento. O longo texto em inglês que acabo de referir
será de 1915 ou mesmo de 1914 — de acordo com vários indícios, entre os quais a
designação de «Ode II» dada à que viria a intitular-se «Ode Triunfal»7. Neste sistema,
que à nascença estava intimamente ligado ao Sensacionismo teorizado por Pessoa8,
o sentir do mestre, Alberto Caeiro, é supostamente sensorial, como se a visão fosse
uma máquina fotográfica e a audição um simples gravador de sons («as coisas devem
ser sentidas tal como são»; «Eu não tenho filosofia: tenho sentidos…» (O Guardador,
II). Na verdade, os seus poemas explicam continuamente que ele privilegia os cinco
sentidos, sobretudo o da visão. Afigurar-se-ia que o poeta-pastor prefere o verso
livre para poder moldar, com toda a naturalidade, as suas palavras à realidade que
descrevem, mas não é isso que acontece. O versilibrismo de Caeiro é um simulacro da
Natureza; imita a sua forma livre, espontânea, irregular. Em vez de escrever com base
na observação, a sua poesia apresenta uma ideia da Natureza.
O sentir de Campos é sensual. Importa-lhe apenas o facto de experienciar sensações,
que podem derivar de interpretações erróneas ou até de dados falsos. Desde que
sinta, seja o que for, está tudo bem («as coisas devem simplesmente ser sentidas»).
As referências ao sadomasoquismo nas suas duas odes publicadas em Orpheu têm
sido lidas, com toda a legitimidade, à luz de várias teorias de erotismo literário ou
biográfico, mas a sua função poética imediata é salientar a exigência, em Campos,
de um sentir sem barreiras. Quanto ao seu uso do verso livre, não deriva da Natureza
exterior mas sim da sua própria natureza — da sua «emoção natural», daquilo que
sente «profundamente». Estas palavras entre aspas provêm de um texto sobre o «ritmo
paragráfico», o termo que Pessoa-Campos cunhou para a cadência de grande fôlego,
ao estilo de Walt Whitman, dos seus versos (PESSOA, F., 1994: 271-272). Desprezando
as limitações da rima ou de uma métrica regular, o autor do texto conclui: «O limite
que temos é a nossa própria personalidade; é o sermos nós e não a vida inteira. É isso
o limite dentro do qual temos que trabalhar, porque não podemos trabalhar fora dele.»
A proeza de Campos é ter feito o que ele próprio julgava impossível: ultrapassar o
limite da sua personalidade. Dedicando-se a sentir tudo na vida de todas as maneiras,
7 Outro indício é a alusão ao «sad epicureanism» de Ricardo Reis, frase que se repete («epicurismo triste») no
início de um texto de Frederico Reis sobre o seu irmão e que datará de 1914 ou 1915 (PESSOA, F., 1966: 386).
Este texto e o folheto sobre a Escola de Lisboa são os únicos atribuídos a Frederico Reis.
8 O texto mais antigo sobre o Sensacionismo surge numa folha com dois poemas de Caeiro datados de 13/
iii/1914 (bnp E3/67-30 e 30a, consultável no portal da BNP: http://purl.pt/1000/1/alberto-caeiro/indices.
html [procurar em «cotas»]). Tanto o texto em inglês aqui citado como o folheto de Frederico Reis apontam
para o Sensacionismo como sendo a tendência que engloba os três heterónimos e que eles mesmos definem.
Campos Triunfal 749
de algum modo passou a ser a vida na sua totalidade. Superou-se, portanto, exatamente
como Friedrich Nietzsche aconselhava aos que tivessem a força e o génio necessários
para o fazer (e são notórias as afinidades do engenheiro com o filósofo alemão). Mais
espantoso ainda: Campos superou o seu criador, Fernando Pessoa. Esta superação
tem três aspetos, que são os três componentes do seu sentir triunfal: (1) chutzpah, (2)
imaginação sonhadora e (3) amor. Ocuparei o resto do presente ensaio com algumas
considerações sobre estes aspetos...
(1) Permito-me usar a palavra chutzpah, que é yiddish, devido às raízes parcialmente
hebraicas de Álvaro de Campos. Chutzpah significa audácia, coragem, atrevimento,
insolência… Quem possui esta qualidade diz tudo, faz tudo, sem medo ou hesitação.
Mesmo para com o seu querido mestre, Caeiro, Campos mostra-se insolente e ousado.
Vejam-se, por exemplo, os seguintes versos da «Ode Triunfal»:
Capital a conhecida carta em que se regozijava com o desastre de elétrico sofrido pelo
estadista Afonso Costa, então deitado numa cama de hospital, em perigo de vida.
Como se sabe, quase todos os colaboradores de Orpheu se dirigiram aos jornais, nos
dias seguintes, para se demarcaram do gesto de Campos. Menos conhecido é o facto de
este último ter iniciado uma segunda carta para A Capital em que reafirmava as suas
anteriores declarações sobre o desastre acontecido ao líder do Partido Democrático,
lamentando apenas «a circunstância, que infelizmente se parece confirmar, do seu
restabelecimento»9.
No plano da realidade em que nos encontramos, claro que é Campos, e não Pessoa,
que é inexistente. Se, apesar disso, afirmo que Álvaro de Campos «redigiu» e «enviou»
cartas, é por achar que Fernando Pessoa, sem a intermediação do seu heterónimo,
não teria conseguido ir tão longe. Nem nunca teria produzido, sem a voz destemida
de Campos, um manifesto com a força do Ultimatum (1917).
(2) A inexistência dos heterónimos faz com que eles estejam forçosamente exilados,
afastados da vida real. Ao ler Campos pela primeira vez, o que fazia pasmar Sá-Carneiro,
mais ainda do que a sua extraordinária capacidade de sentir imaginativamente, era
conseguir fazê-lo longe do mundo que cantava e com tão verdadeira exaltação. Nem
Pessoa (ou Campos) pretendia que fosse de outro modo. Num texto assinado por ele
e datável de 1916 ou 1917, Campos assume a sua preferência por estar na vida como
um turista:
Quero, para aproveitar a minha viagem, sentir o maior número de coisas no mais pequeno
espaço de tempo possível. Sentir tudo de todas as maneiras, amar tudo de todas as formas,
tocar e ver coisas e não lhes pegar, passar por elas e não olhar para trás — parece-me o único
destino digno dum poeta. (PESSOA, F., 1994: 232)
Esta modalidade oximorónica de viver — tocar nas coisas sem pegar nelas, passando
sempre adiante — já tinha sido experimentada por Alexander Search, mas sem um
resultado feliz. No seu poema mais comprido, «In the Street», datado de 12/xi/1907,
o alter ego inglês visualiza as famílias que habitam as casas por onde vai passando
e sente um misto de inveja e horror. Lamenta ser «the eternally excluded / From
socialness and mirth» [«o eternamente excluído / De todo o convívio e do prazer»] e
tenta imaginar-se numa dessas casas com uma mulher e filhos junto de uma lareira.
9 Rascunho da carta publicado, pela primeira vez, em Da República (1910-1935) (PESSOA, F., 1978: 171-173).
Campos Triunfal 751
Esta mera ideia provoca-lhe, porém, uma aversão instantânea. Rejeita a vida feliz dos
outros, dizendo: «The world my home, my brother men / Are prisons, chains that bind
and pen» [Os homens irmãos, o mundo meu lar, / São prisões, cadeias de prender e
atar] (PESSOA, F., 1999: 162-163). (Cito a tradução de Luísa Freire.)
No annus mirabilis de 1914, Pessoa concretizou nos heterónimos várias das coisas
que Alexander Search buscava. No caso de Álvaro de Campos, em vez de invejar a
vida dos outros, conseguiu usurpá-la e ser, imaginativamente, todos os outros. A
significativa epígrafe de «In the Street» reza assim: «But I, mein Werther, sit above
it all; I am alone with the stars» 10 (CARLYLE, Sartor Resartus). Campos, pelo
contrário, atirou-se para a vida, projetou-se nos outros, ao mesmo tempo que se
mantinha «always apart from the crowd» [sempre isolado da multidão], segundo o
supracitado texto que começa «To whom can Caeiro be compared». Sem ser ou ter
nada, tudo lhe era possível, através da técnica onírica exposta no poema «Tabacaria»
e, de forma mais sucinta, em «Pecado Original». Neste poema, Campos defende
que a «verdadeira história da humanidade» consiste não naquilo que fizemos, mas
sim naquilo que falhámos, naquilo que não conseguimos, mas que imaginámos,
sonhámos, supusemos. Lido e ponderado com atenção, o final do poema revela-nos
o génio íntimo de Campos:
(3) Para além de todos esses Césares, Álvaro de Campos foi muitas outras coisas
na imaginação, incluindo muitos Romeus. Como insistia em sentir tudo, era natural
e mesmo inevitável que sentisse também o amor, mas tentarei demonstrar que o
amor não era apenas um sentimento entre outros, mas sim o seu sentimento mais
triunfante. Comecemos pela evidência empírica. Ao contrário do que acontece na
obra de Caeiro ou Reis, os poemas e também certos textos em prosa de Campos estão
habitados por numerosas pessoas, de várias idades e classes sociais. As relações entre
10 «Mas eu, mein Werther, estou acima de tudo isso; estou sozinho com as estrelas.»
752 100 Orpheu Richard Zenith
os seres humanos intrigam este heterónimo, o único habilitado para falar, nas suas
Notas para a Recordação do meu Mestre Caeiro, sobre os laços afetivos que os uniam
— a Caeiro, Reis, Campos, António Mora e Fernando Pessoa —, a maneira como se
conheceram, os encontros que realizaram e as discussões que travaram... Os poemas
de Campos tematizam com alguma frequência as relações amorosas que observa ou
em que ele próprio está envolvido e, já que quer sentir de todas as maneiras, gosta
tanto de mulheres como de rapazes (contudo, parece não gostar de homens maduros,
a menos que sejam piratas rudes).
Alberto Caeiro, exceto quando estava doente, era supremamente indiferente aos
outros seres e aos afetos que os ligam. Casado com as árvores e as flores, ou com o seu
dom de filosofar sobre a forma como elas devem ser vistas, vivia satisfeito, disse o que
tinha para dizer, e morreu.
Ricardo Reis possuía os seus deuses e também as suas ideias sobre eles. As Lídias
e Cloes dos seus versos, se dermos crédito às insinuações de Campos, eram rapazes
travestidos de senhoras da Roma antiga, o que não altera em nada o seu estatuto
fantasmático de meras sombras ouvintes. (LOPES, T. R., 1990: 475) Reis só atendia
às leis do destino, devidamente espelhadas nas leis métricas a que as suas odes
horacianas obedeciam. Ao que parece, procurava através delas a paz e a liberdade
interiores. «A disciplina do ritmo é aprendida até ficar sendo uma parte da alma»
explicou o neoclassicista numa discussão com Campos (PESSOA, F., 2003: 210), e foi
decerto a propósito de pessoas como Reis que Pessoa escreveu, num texto intitulado
«Liberdade»: «Ser livre não é não ter disciplina, é não precisar de disciplina — ser
rítmico e superior»11.
Trilhando um caminho algo inverso, Álvaro de Campos, sem deuses nem leis,
gozando de uma liberdade absoluta, sentia a necessidade de algum constrangimento,
ou compromisso. Isto verifica-se tanto no plano formal, pois volta e meio sai-lhe
um soneto ou outro tipo de poema com rima e métrica regulares, como na própria
«vida» que os seus versos vão narrando. Tanto Bernardo Soares como Ricardo Reis
advertiam que o amor dos outros pesa, oprime, e parece ter sido precisamente isso —
algum peso, algum aprisionamento — que Campos precisava e procurava.
Numa das mais célebres canções gravadas por Janis Joplin, poucos dias antes da
sua morte em 1970, surge duas vezes a seguinte frase: «Freedom’s just another word
for nothing left to lose.» Kris Kristofferson, que escreveu a canção, «Me and Bobby
McGee» (e também a cantou), explicou numa entrevista, a propósito da referida frase,
que a liberdade é uma faca de dois gumes, pois pode ser dolorosa, como quando
11 bnp E3/92M-52. Ver o meu artigo «Reis Triunfal», disponível em linha, na Revista Estranhar Pessoa, n.º 1,
Outubro 1914.
Campos Triunfal 753
alguém está sozinho, sem ninguém que o mace, mas também sem ninguém para
perder12. Nothing left to lose.
Há uma frase de Álvaro de Campos que exprime uma ideia semelhante, ou
porventura a mesma. Nas Notas para a Recordação, afirma, a dada altura, que «o
amor da humanidade não nasce do egoísmo mas do cansaço dele» (PESSOA, F., 1994:
176). Isto parece significar que um egoísmo extremado — que implica uma grande
liberdade e também uma grande solidão — acaba por cansar, gerando o impulso de
procurar outros seres humanos.
Paradoxalmente, o exílio permanente de Campos («já me isolei numa grande
fábrica, entre os seus ruídos; já fugi do mundo num grande café internacional»,
garante ele no trecho das Notas que acabo de citar) é o motivo do seu amor pela
humanidade. Há um poema de Carlos Drummond de Andrade, publicado em
1925, que ilustra o mesmo paradoxo e que, tal como o seu «Poema de Sete Faces»,
está em grande sintonia com a poética de Álvaro de Campos. Intitulado «Coração
Numeroso», o poema é narrado por um forasteiro — aparentemente o próprio
Drummond — que se passeia pela noite do Rio de Janeiro. Entre as numerosas luzes,
os bondes a tilintarem e as pessoas a divertirem-se na noite quente, o poeta sente-se
cansado de viver, não conhece ninguém à sua volta e contempla, por um momento,
a possibilidade de suicídio...
12 No programa televisivo Enough Rope with Andrew Denton, em 25/vii/2005. Consultei a seguinte transcrição:
http://www.abc.net.au/tv/enoughrope/transcripts/s1422317.htm. A canção intitula-se «Me and Bobby
McGee».
754 100 Orpheu Richard Zenith
Meu coração tribunal, meu coração mercado, meu coração sala da Bolsa,
meu coração balcão de Banco,
Meu coração rendez-vous de toda a humanidade [...]. (PESSOA, F., 2002: 199)
Bibliografia