Drogas e Pós Modernidade Prazer Sofrimento Tabu Vol. 1 1
Drogas e Pós Modernidade Prazer Sofrimento Tabu Vol. 1 1
Drogas e Pós Modernidade Prazer Sofrimento Tabu Vol. 1 1
Volume 1
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
Reitora
Nilcéa Freire
Vice-reitor
Celso Pereira de Sá
EDITORA DA UNIVERSIDADE DO
ESTADO DO RIO DE JANEIRO
Conselho Editorial
César Benjamin
Ferreira Gullar
Francisco Caruso Neto
Ivo Barbieri (Presidente)
José Augusto Messias
Luiz Bernardo Leite Araújo
Drogas
Drogas e prazer,
e pós-modernidade
pós-modernidade sofrimento
Prazer, sofrimento e tabu
e tabu
Volume 1
Organizadores
Marcos Baptista
Marcelo Santos Cruz
Regina Matias
Rio de Janeiro
2003
Copyright 2003, dos autores
Todos os direitos desta edição reservados à Editora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
A reprodução integral ou parcial do texto poderá ser feita mediante autorização da editora.
EdUERJ
Editora da UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
Rua São Francisco Xavier, 524 - Maracanã
CEP 20550-013 - Rio de Janeiro - RJ
Tel./Fax.: (21) 2587-7788 / 2587-7789
www2.uerj.br/eduerj
[email protected]
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/PROTAT
CDU 615.099
Valeu a pena?
Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Fernando Pessoa
À professora Maria Cecília de Souza Minayo, pela
amizade, pelo estímulo e pela provocação do seu
saber. À professora Edinilza Souza Ramos, pois
foi sob seu nome que concretizamos o projeto da
síntese de um evento. A Iolanda Silva Antunes
Faustino, amiga fiel, exímia tradutora e revisora.
À professora Maria do Céu de Carvalho, que nos
ajudou a traduzir um importante texto da coletâ-
nea. A nossas esposas, familiares e amigos, que
compartilharam nossas incertezas. E aos compa-
nheiros do NEPAD-UERJ, que colocaram sua
energia no sucesso do III Seminário Internacio-
nal sobre as Toxicomanias, marco de uma série
que se traduz nesta coletânea.
Sumário
Prefácio
Ética para centauros: subjetividade em tempos de hibridação ............... 13
Luiz Alberto Oliveira
Introdução
Drogas, Estado, sociedade ...................................................................... 25
Marcos Baptista
Capítulo 1
As patologias do ato
Uma interrogação sobre a dependência ................................................. 37
Claude Olievenstein
Desejo, afeto e patologia do ato ............................................................. 49
Diana Rabinovich
Sobre Édipo, atualidade e patologias do ato ........................................... 57
Fernando José Barbosa Rocha
A prática psicanalítica e as toxicofilias .................................................. 67
José Durval C. Cavalcanti de Albuquerque
Capítulo 2
O declínio da função paterna e a clínica das compulsões
Compulsão, maldição consentida – ou reinvenção do pai ...................... 79
Noêmia Santos Crespo
Compulsão e supereu ............................................................................. 91
Lia Amorim
O rei está nu: um dos avatares da função paterna na sociedade
contemporânea ....................................................................................... 97
Ligia Bittencourt
10 • Drogas e pós-modernidade
Capítulo 3
É a toxicomania pós-moderna?
A toxicomania e a busca da felicidade na sociedade de consumo ........ 119
Georgiana G. R. Gonçalves,
Simone C. Delgado, Cláudia A. Garcia
A comédia (entremez, arremedilho, farsa, imitação burlesca)
do mal-estar no pós-moderno ................................................................. 129
Isidoro Eduardo Americano do Brasil
O narcisismo em Freud e a paixão “tóxica” a partir de Freud .............. 147
Victor Eduardo Silva Bento
Capítulo 4
Do vínculo ao gênero
Uso de drogas entre mulheres ................................................................ 175
Monica Levit Zilberman
A (improvável?) vinculação entre aborto e dependência de drogas:
uma introdução ....................................................................................... 187
Elizabeth S. Palatnik
Psicoterapia psicanalítica de grupo para mulheres drogadictas:
o que há de feminino? ............................................................................. 199
Silvia Brasiliano
A família na toxicomania ........................................................................ 207
Miriam Schenker
Capítulo 5
Intervenções
O acolhimento revisitado ........................................................................ 221
Carlos Parada
Intervenção farmacológica no tratamento da dependência de cocaína:
fundamentos e limites ............................................................................. 231
Sonia Regina Lambert Passos
Sumário • 11
*
O autor agradece a Marcos Baptista o convite que inspirou esta contribuição. Embora ino-
centes do que vai se seguir, agradecimentos também são devidos aos filósofos Paulo Vaz e
Maurício Rocha e ao historiador Maurício Lissovsky, colaboradores do Programa
Transdisciplinar de Estudos Avançados (IDEA) da Escola de Comunicação da UFRJ.
**
Físico, pesquisador do grupo de Cosmologia e Gravitação do Centro Brasileiro de Pesquisas
Físicas, CBPF/MCT.
14 • Luiz Alberto Oliveira
mou com Zeus da injúria que acabara de sofrer em seus próprios aposentos. O
Rei dos Céus não pôde acreditar em tamanha ingratidão e, para pôr seu hóspe-
de à prova, tomou de uma nuvem que passava, conferiu-lhe as formas seduto-
ras de Hera e escondeu-se para observar. E de fato o inominável se repetiu:
assim que avistou a nuvem em forma de Hera, Íxion se atirou sobre ela, domi-
nou-a à força e a violou.
Em função desse crime nefando, mereceu de Zeus um castigo espan-
toso: foi atirado às funduras infernais do Tártaro, amarrado a uma roda em
perpétuo giro ao lado da qual se postava uma Erínia, uma Fúria punitiva, ati-
çando chamas contra seu corpo por todos os ciclos da eternidade. Dizem que
a raça dos centauros teve origem nesse encontro da paixão desmesurada e
perversa de Íxion com a flexibilidade plástica da nuvem. Ou seja: centauros
são híbridos, híbridos de homem e cavalo, de paixão e nuvem, de humano e
inumano.
Mas não nos enganemos, na verdade os hipo-homens são mais que
humanos, são hiper-humanos. Estão sempre associados ao excesso, quer de
valor, quer de vilania. Por exemplo, o sábio Fólo, confidente de Hércules, ami-
go dos argonautas, é querido igualmente pelos homens e pelos deuses, e em
sua caverna são comuns os banquetes em que se congraçam mortais e imor-
tais. A Quíron, de todos o mais célebre, foi confiada a formação de Esculápio,
filho de Apolo e semideus patrono da Medicina; a ele também foi entregue a
instrução de Aquiles, o supremo herói dos helenos, a quem nutriu com medula
de javardos, para despertar as virtudes viris, e igualmente educou nas artes
musicais e na matemática. Quíron foi tão honrado que, quando expirou, Zeus o
conduziu aos céus, onde assumiu a forma da constelação de Sagitário.
Em contraposição, encontramos Eurítion, que se embebedando no ca-
samento de Pirítoo, amigo de Teseu, desacata a noiva, Hipodâmia, o que deu
início à Guerra dos Lápitas, em que a raça dos centauros quase chegou ao
extermínio. Ou ainda Nesso, que, vendo Hércules prestes a cruzar um rio,
oferece-se para transportar a esposa do herói, Djanira, em seus lombos; po-
rém, no meio da travessia tenta possuí-la, e o filho de Alcmena o mata a
flechadas (acontecimento que futuramente levará à morte do próprio Hércules)
(Graves, 1960). Enfim, tanto na nobreza e na grandeza quanto na devassidão e
na mácula, os centauros são mais que humanos, são extra-humanos, são pós-
humanos.
A fígura de pós-modernidade que procuraremos trazer aqui é a de que
somos, estamos passando a ser, centauros, hibrídos de humano e de inumano.
A nuvem que nos pare é a aceleração tecnológica, que dilui as fronteiras
entre natureza e cultura, entre sujeito e objeto, entre interioridade e exterioridade.
Ética para centauros: subjetividade em tempos de hibridação • 15
mem o que somos. Assim, o texto bioquímico básico que suporta o existir
humano tornou-se suscetível a intervenções técnicas. Nos próximos dez
anos, diz Freeman Dyson, testemunharemos o desenvolvimento do projeto
Proteoma – que será a determinação das associações entre genes e moléculas
protéicas específicas, eventualmente levando à produção de proteínas (e de-
pois de células, tecidos, órgãos, quem sabe indivíduos vivos completos) de acordo
com propósitos utilitários –, seres vivos (e seus componentes) sendo “projetados”
segundo um design artificial, antrópico. Para Dyson, o prazo para que tais
eventos se desenrolem é entre dez e cinqüenta anos (Dyson, 1998). Surgem
então cenários realmente espantosos: é lícito imaginarmos que, quando houver
uma efetiva capacidade de manipulação, em nível molecular, dos dispositivos
de temporalização das células (como as cadeias de telômeros), será possível
estender a expectativa de longevidade de (algumas) pessoas para além de
qualquer limite biológico prévio, ou seja, engendrar indivíduos duradouros, qua-
se que literalmente intermináveis.
É indispensável frisar: não se trata aqui de profecias ou premonições,
mas sobretudo de um exercício de avaliação de valores – se não há, em prin-
cípio, dificuldades técnicas intransponíveis para se prolongar indefinidamente
a existência individual humana, decorre então a possibilidade assombrosa de
ocorrer uma repartição inédita do conjunto da humanidade: uma imensa legião
de precários, despossuídos quase absolutos que em sua imensa maioria nem
sequer teriam acesso à nutrição básica; a seguir, uma minoria de duráveis,
que disporia de recursos mínimos de alimentação e cuidados médicos; e então,
graças à manipulação genética e outras técnicas médicas sofisticadas, uma
elite de perpétuos, virtualmente imortais. Desnecessário dizer que esse seria
um acontecimento sem precedentes: nunca houve sociedade humana que ti-
vesse experimentado uma tal distinção por castas etárias (Oliveira, 2002).
A mescla entre sujeito e objeto, marca da dissolução da mais célebre
das fronteiras modernas, se dá precisamente pela ocorrência cada vez mais
comum e generalizada dos dispositivos pensantes. A óbvia expectativa é a de
que comece a haver entrelaçamentos progressivamente mais íntimos, interfaces
cada vez mais diretas entre processadores eletrônicos e processadores bioló-
gicos. Novamente, se não há em princípio dificuldades técnicas insuperáveis
para que uma tal mescla, e eventualmente uma fusão, venha a ser realizada,
então podemos estimar, mais uma vez seguindo Dyson, que entre cinqüenta e
cem anos seja possível desenvolver técnicas de sensoreamento do funciona-
mento do cérebro tão minuciosas a ponto de permitir que se mapeiem com
precisão os processos cerebrais de produção de sensações, de tal maneira que
tais sensações venham a se tornar efetivamente registráveis e até transferí-
Ética para centauros: subjetividade em tempos de hibridação • 19
veis (Dyson, op. cit.). Quer dizer, seria gravado um padrão de sensações ex-
perimentado por uma pessoa num “disquete” (imagem certamente ultrapassa-
da!), e outra pessoa poderia experienciar o que a primeira viveu, o que quer
que tenha sido. É difícil imaginar uma droga mais sedutora e potente. Repetin-
do: se não houver obstáculos técnicos concretos que impeçam de modo defini-
tivo que esse feito venha a ser alcançado no prazo sugerido, surge então a
oportunidade ainda mais extraordinária de suceder a produção de mentes co-
munitárias, de mentes compartilhadas, ou seja, em vez de se alimentar a men-
te de um indivíduo com as memórias do que outro experimentou, dar-se-ia a
interconexão direta entre cérebros (Warwick, 2001).
Talvez daqui a cinqüenta ou cem anos as crianças sejam postas peran-
te a fantástica opção: ser um indivíduo “individual” ou ser um indivíduo-nó, um
elemento de rede, uma sede local de uma comunidade mental? Sequer pode-
mos começar a imaginar o que seria, quem seria essa pessoa multiplicada e
que tipos de vivência uma inteligência efetivamente coletiva como essa pode-
ria realizar; certamente se trata de uma entidade pós-humana, embora feita –
parcialmente – de seres humanos. Desnecessário ressaltar que o controle mi-
nucioso de processos neuroquímicos provavelmente seguiria o mesmo padrão.
Em paralelo, podemos considerar o caso da mescla entre interior e
exterior: o aspecto que vai nos interessar principalmente é o da proliferação de
membranas, ou seja, de interfaces que diluem fronteiras (Johnson, 2001). Essa
ultrapassagem de limites não se dá por um esgarçamento das bordas ou por
um rompimento de barreiras, mas pela inclusão de mais camadas tradutoras,
de mais intermediações transdutivas que põem em contato o que era dentro e
fora, interior e exterior, passado e futuro. Com efeito, é por meio da interposição
de mais superfícies de contato, de mais membranas (e não de menos), que se
produz essa diluição de fronteiras. Um exemplo com que já lidamos todos os
dias é a transposição de blocos de bits digitais, expressos em código binário, a
linguagem básica dos computadores, para os ícones que, nas telas dos monitores,
simbolizam os programas que desejamos acionar. Ingênuos, achamos muito
natural clicar sobre eles e ativar o editor de textos ou o game; desconhecemos
por completo a miríade de processos lógico-simbólicos, incorporados numa
cascata de linguagens incompreensíveis, que estão associados à tradução con-
creta de nosso gesto para o domínio digital do sistema operacional. Se não
existissem essas diversas camadas de intermediação entre nossa cognição e
os fluxos eletrônicos de bits, os computadores seriam objetos inteiramente in-
compreensíveis para 99,9% de nós. A disseminação sempre mais numerosa
de interfaces de todos os tipos tem conseqüências curiosas. Por exemplo, nos-
sos corpos eram opacos e nossa individualidade tinha como borda essa opaci-
20 • Luiz Alberto Oliveira
dade – apenas nós mesmos podíamos perceber nosso interior. Hoje, os siste-
mas de diagnóstico de imagem tornaram os corpos inteiramente transparentes:
o projeto Visual Human, no qual um indivíduo inteiro foi seccionado em fatias
de um milímetro, está à disposição na internet.1 Pode-se visualizar integral-
mente o interior do corpo desse indivíduo, em todo detalhe que se queira. As-
sim, o corpo se torna transparente, o que era inacessível se torna mediatizado
e devassado.
Por outro lado, em relação à interpenetração do interno e do externo, o
próximo passo – que deverá suceder em cinco anos, segundo John-Paul Jacob,
guru de avanços tecnológicos da IBM2 – será o de os ambientes se tornarem
atentos, ou seja, a inclusão de um número tão grande de dispositivos de
processamento de informação nos mais diversos objetos técnicos que os pró-
prios ambientes vão se tornar responsivos a nossos gestos e indagações. Em
vez de se interfacear um processador eletrônico por meio de um teclado (meio
claramente obsoleto), vai-se falar e escutar – talvez, como vimos, como uma
etapa anterior a pensar e ser pensado. Os ambientes “atentos” vão tornar
muito natural que se entre em casa falando para as paredes, ou perfeitamente
habitual se dialogar com a geladeira e o forno microondas, ou o automóvel
avisar – num tom sóbrio ou jocoso, ao gosto do usuário – que está com pouca
gasolina.
Há também possibilidades curiosas no caso da arte. O artista Stelarc
opera exatamente nessa transição, nesse rompimento de fronteiras, entre o
interno e o externo. Suas exposições são bastante peculiares: ele ingere uma
microcâmera de vídeo e a exposição do trabalho é a projeção numa tela do que
está acontecendo em seu estômago. Ou então ele acrescenta um terceiro bra-
ço a seu corpo, controlado a distância por quem estiver assistindo à exposição
ou queira participar, via rede; esse terceiro braço se movimenta independente-
mente de sua vontade, ainda que integrado a seu corpo. Talvez a experiência
mais radical seja a que está planejando fazer em breve: implantar uma terceira
orelha, de silicone, por debaixo da pele do crânio. Essa terceira orelha artificial
tem uma característica peculiar: conta com um dispositivo eletrônico tal que,
quando alguém se aproxima dela, ela começa a falar. Uma orelha falante: esta
entidade paradoxal demonstra com clareza que, doravante, a arte pode
transpassar os antigos limites do corpo – uma arte incorporável.3
1
Ver http://www.nlm.nih.gov/research/visible/visible_human.html.
2
Ver http://www.almaden.ibm.com/cs/informatics/index-p.html.
3
As inquietantes produções de “arte ingerida” de Stelarc são comentadas em Fernanda Bruno,
“Membranas da interface”. In: VILLAÇA, N.; GÓES, F. N. e KOSOVSKI, E. (orgs.). Que
corpo é esse? Rio de Janeiro: Mauad, 1999.
Ética para centauros: subjetividade em tempos de hibridação • 21
cido. Todas as vezes que um novo músculo foi adicionado a nosso ser, mais
cedo ou mais tarde esse músculo foi exercitado. É isso que a atual cultura está
começando a fazer, para o bem ou para o mal, para aumentar nossa potência
ou para nos aniquilar, nos amesquinhar de vez. O problema é que estamos
sendo ixiônicos, estamos transgredindo; agredimos nosso hospedeiro. A ex-
periência dos toxicômanos nos parece poder evocar a de Íxion, tendo em vista
que o usuário oferece seu corpo para hospedar uma promessa de prazer. Pra-
zer transgressor/transgredido que tanto serve para o bem como para o mal,
que valida o que temos de potência das percepções, mas que por fim aniquila o
próprio hospedeiro. Estamos nos tornando centauros; que não finalizemos apri-
sionados a uma roda de fogo no Tártaro.
Pois Nietzsche já nos advertia: não sabemos o que pode o corpo. Nunca
essa sentença foi tão eficaz quanto neste nosso momento. Por quê? Porque hoje
o problema essencial é que não mais encontramos a alteridade, passamos a
produzir a alteridade. Se o inconsciente, por exemplo, era nosso alter, nossa
alteridade radical, à medida que o sujeito está se artificializando configura-se a
aparição de um inconsciente artificial, intrapessoal e extrapessoal, individual e
coletivo. As fronteiras do humano se prolongam no inumano, e reciprocamente o
inumano penetra no que até então era humano. Todo tipo de questões antes
inconcebíveis despontam no horizonte dessa hibridação generalizada, em função
da auto-afecção que estamos começando a realizar sobre o próprio tecido bási-
co do que somos. Qual seria então o problema-fonte do mal-estar de nossa
época? Talvez se pudesse correr o risco de dizer: o problema nuclear é como
gerenciar a substância suprema, o tempo, o tempo de vida, uma vez que a vida
opera por repetição e diferenciação, por modulações de durações – mas o que
estamos testemunhando hoje é o estabelecimento de uma desigualdade
incontornável, a abertura de distâncias sociais impossíveis de serem transpostas,
um enorme incremento da exclusão. Ora, essa exclusão exponencial não é um
mal-estar, é um mal-ser. No limite, aniquila-se o próprio tempo, as condições e
operações do próprio existir para a maior parte, quiçá mesmo para a totalidade,
da comunidade humana (Santos, 1998). Voltamos, aqui, a evocar o fenômeno
toxicomaníaco, a partir do que Olievenstein (1997) nos chama a atenção, isto é,
a droga e seus avatares correspondem a um fenômeno ligado à temporalidade e
à intensidade. Por exemplo, o boom da droga da década de sessenta implicava
uma nova manifestação do existir, uma contestação à sociedade estabelecida,
suas formas de consumo e de distribuição. O que vemos atualmente, com o
surgimento cada vez mais rápido das drogas sintéticas “recreativas”, parece ter
como objetivo muito mais do que a busca por um remédio para o mal-estar, e sim
um meio de calar por completo o falta-a-ser.
Ética para centauros: subjetividade em tempos de hibridação • 23
Spinosa, princípe dos filósofos, nos ensinou que não nascemos livres; a
liberdade não é um dom inato, a liberdade precisa pois ser exercitada, precisa-
mos aprender a praticá-la (Deleuze, 1984). Quanto menos constrangimentos
houver para a expressão e composição das potências singulares dos indivídu-
os, mais facilitado será o aprendizado da liberdade. Assim, a cidade demo-
crática, o espaço coletivo em que mais expansivamente se expressa a potên-
cia da multitudo, da multidão de cidadãos, seria ao mesmo tempo a forma
mais natural e mais avançada da organização política; segundo Antonio Negri,
“onde há ao mesmo tempo direito e apropriação, repartição igual das riquezas
e participação igual na produção” (Negri, 1997). Se por ética entendemos a
determinação de modos de ação, portanto, de modos de ser, enfrentamos hoje,
na aurora da Era dos Centauros, problemas éticos ingentes, decisivos. Nós nos
tornamos, no corpo e no espírito, a matéria-prima para nosso próprio engenho
e arte. Que sejamos, que possamos ser bons artistas.
Referências bibliográficas
Introdução
Marcos Baptista **
*
Discurso de abertura do 3º Seminário Internacional sobre as Toxicomanias. Julho 2002.
**
Neuropsiquiatra, psicanalista e supervisor do ambulatório da Unidade Docente Assistencial
de Psiquiatria da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (FCM/UERJ).
26 • Marcos Baptista
1
Betle – nos antigos textos sânscritos, é citado sob o nome de Guvaka, descrito por Theo
Phrast em 340 a. C. e conhecido dos médicos chineses no terceiro século, que lhe deram o
nome de Pin Lang. Atualmente, é consumido regularmente por 250 milhões de pessoas nas
Filipinas, na Indochina, na Índia, em Madagascar, em Zanzibar e entre os árabes. Derivado de
uma noz – fruto de uma palmeira (Areca catchu) que chega a 15 m de altura, cultivada próxima
ao mar e que produz a folha de betle propriamente dita – a droga é preparada diferentemente,
segundo as regiões geográficas, e em geral é mascada nas diferentes preparações.
2
Kawa-kawa – são raízes retiradas de uma piperácea arbustiforme que, em geral, cresce na
Oceania e pode atingir 1,80 m e pesar de um a dois quilos. Constituída por dois alcalóides
descritos por Lewin, é consumida sob forma de bebida que, pela tradição, é pilada e mascada
por mulheres adolescentes, cujo resultado é misturado em água e ingerido pelos homens da
região.
3
Cato (etimologia francesa “le kât”) – usado notadamente pelos árabes e habitantes da África
Oriental, o Catha edulis é um arbusto cultivado em vales frios entre 900 m e 1.500 m de
altura. Na China, é considerado uma planta mágica, denominada Ma-Huang (Efedra vulgaris).
As folhas da planta são mascadas e seu uso é bastante disseminado no Iemên, na Somália, na
China e em toda África Oriental.
4
Fantástico, TV Globo, 27 mar. 2000.
Drogas, Estado, sociedade • 27
5
Pivotar tem origem no verbo francês “pivoter” (1611), cuja conjugação no particípio presen-
te “pivotant” quer dizer pôr sobre pivô. Em mecânica diz-se de peça que gira em torno de um
ponto fixo (Houaiss, 2001).
28 • Marcos Baptista
O Estado se tornou a mão visível que duplica a mão invisível do mercado, sem
impedi-lo de funcionar. As palavras de ordem são: reduzir as despesas e
racionalizar a economia que se destina à saúde. Por exemplo, a aplicação de
normas médicas à psiquiatria e à saúde pública mental atualmente se encontra
sob a perspectiva de reabsorção da psiquiatria pela medicina geral. Não
obstante, a psiquiatria resiste, nem que seja pela necessidade de longas
hospitalizações, malgrado o custo com pessoal que implica essas
hospitalizações. Os critérios de melhora e de produtividade, tão eficazes na
cirurgia, têm padecido na tentativa de traduzirem-se em diretrizes precisas no
campo da saúde mental (ibidem).
cia forma um novo par –, e até ao coração clonado para substituir o do doador,
quando este falhar. Atualmente, a própria clonagem independe do
espermatozóide. Pode-se clonar e produzir um embrião a partir de uma estru-
tura genética xx, isto é, a mulher sozinha poderá reproduzir por ela mesma sem
necessitar de nenhuma inseminação.
Contemplamos igualmente o nascimento de uma psiquiatria cosméti-
ca, e com ela também aparece o uso de psicotrópicos, não sob o pretexto de
lutar contra uma angústia existencial massiva, mas simplesmente para se repa-
rar o que o sujeito considera como uma injustiça da natureza contra ele. Não
mais se pode elaborar o luto de um parente falecido sem que alguém receite
um antidepressivo para aplacar a dor. A depressão, que pouco interessava à
psiquiatria da década de cinqüenta, tornou-se o distúrbio mais comum do pla-
neta. Logo, enquanto a neurose seria uma tragédia da culpabilidade, a depres-
são se estabeleceria como um drama da insuficiência. Os distúrbios psíquicos
e mentais não mais correspondem à história inconsciente do sujeito, a seu
lugar na família e sua relação com o meio social. A própria psicanálise ainda
mantém o binômio alcoolismo-homossexualidade, enquanto nos parece claro
que estamos no campo de uma homoerotização.
A prolongada e incansável discussão sobre o conceito de dependência
– suas causas, raízes, avatares e desfechos – ainda não consegue traduzir a
dimensão do vivido pelo sujeito fazedor de sua toxicomania. Pensamos que do
ponto de vista psicanalítico somente poderíamos considerar dependência quando
a dessexualização do sujeito se instala. O mais de gozar e o auto-erotismo, tão
apontados como fazendo parte da estrutura do suporte de uma toxicomania,
seriam mecanismos “garantias” da certeza da repetição, parte do gozo, toxico-
mania esta no ato de imaginar gozar.
Devemos ressaltar que a civilização e a pulsão não se encontram pura
e simplesmente em oposição. Precisamos pensar que uma parcela da pulsão
alimenta a civilização e suas exigências quanto à renúncia, encontrando aí uma
forma de satisfação ainda mais secreta. “O problema ético não se situa entre
a renúncia ou a satisfação, mas sim em saber qual é o desejo que está na
ordem do dia; se é um desejo do qual nos envergonhamos ou se é um desejo
responsável por suas conseqüências” (Laurent, 1996).
Enquanto isso, a tecnologia, em sua extensão atual, alterou o predomí-
nio das forças naturais, modificando assim o equilíbrio das relações entre a
cultura e a natureza. A tecnologia, interessada nos homens apenas enquanto
consumidores ou empregados, reduz a humanidade, em seu conjunto, a condi-
ções que representam seus interesses. A indústria cultural traz em seu bojo
todos os elementos característicos do mundo industrial moderno e nele exerce
Drogas, Estado, sociedade • 31
Referências bibliográficas
As patologias do ato
*
Tradução de Iolanda Faustino. Revisão de Marcos Baptista.
**
Médico-chefe e fundador do Centro Médico Marmottan em Paris, França.
38 • Claude Olievenstein
mais clinicamente desta confrontação entre as três dimensões cada vez menos
funcionais da lei: real, simbólico e imaginário, de sua história e das possibilida-
des entreabertas do mundo.
A modernidade, desesperançada, se incorpora, mais do que se crê,
no vivido dos sujeitos, e essa incorporação fabrica por sua vez o psíquico. É
o suficiente para se convencer de verificar o conteúdo dos temas delirantes
dos alienados, desde há cinqüenta anos até agora. E pode-se afirmar que
essa modernidade não é apenas o apanágio do parâmetro social, mas que
existe uma forma “moderna” de utilizar a droga: primeiro em sua técnica;
está-se longe do cachimbo do ópio quando se injeta heroína ou cocaína com
uma seringa de plástico, e o flash se dá em uma extrema velocidade, em
seguida à incorporação comparativa na memória dos sujeitos, enfim em sua
elaboração fantasmática. A partir de então, nos é necessário instituir uma
dependência “moderna”, que, longe de excluir a arcaica, a reinterpreta numa
concepção mais dinâmica, que melhor explica a perda da liberdade como um
inelutável e um desejo. “Se a droga é investida pelo toxicômano, é da
investidura que se trata, tanto quanto do investimento!” (B. Giraud). É sem
dúvida o porquê de alguns sujeitos ingressarem em “estado de dependência”,
assim como outros, na religião, enquanto outros jamais o fazem e outros
ainda estabelecem compromissos mais ou menos corrompidos. A impotência
torna-se então muito menos inelutável do que parece aí e, portanto, esse tipo
de distinção abre múltiplos caminhos para se promoverem terapias diante de
todo usuário de drogas.
Para alguns se trata portanto de dependência “necessária” e, se não
se aceita essa necessidade como uma evidência clínica, não se poderá jamais
tratar de tais sujeitos; quando é levada em conta, pode-se criar o campo das
dependências substitutivas, sob a condição pragmática e ética em que o obje-
tivo final seja o fim de toda dependência. Lembremos aqui que essa necessida-
de tem uma inscrição neuroquímica que é melhor conhecida depois da desco-
berta das endorfinas. Mas lembremos mais uma vez que essa inscrição se
instala numa dinâmica psíquica de “transferência” de investidura, e o produto
se torna o delegado geral do desejo do sujeito, dupla perfeita do período de lua-
de-mel ao qual se sucede a dupla inteiramente perfeita do sujeito e de sua
falta. Se o terapeuta toma consciência disso, sua presença permitirá dissociar
uma tal dupla, por força da transferência, em uma outra dinâmica, aquela da
transferência relacional. Essa transferência relacional tem vocação legislado-
ra, como a tem o pacto feito entre a droga e o sujeito. Nesse sentido, a clínica
da toxicomania não pode ser senão uma clínica que situa o conflito no e pelo
voluntarismo para que, como diz o pequeno Hans, “ter inveja não é fazer e
44 • Claude Olievenstein
fazer não é ter inveja”. Sair da dependência é como entrar nela; isso tem a ver
com um estado que se constrói, a menos que o produto esteja ou não esteja
mais aí, com seus efeitos reais e não fantasmáticos.
Mas os efeitos destes produtos são insubstituíveis. É melhor saber
antes mesmo de começar toda a avaliação terapêutica, da mesma forma que é
insubstituível o estado de dependência que lhe permite verificar os efeitos
insubstituíveis do produto. Também isto é melhor lembrar antes de começar.
Pois como curar alguma coisa que é insubstituível? A paixão de um ser huma-
no por esta pequena coisa inerte? Área de resistência contraditória ao biológi-
co e à linguagem. É somente não perdendo de vista tudo o que precede à
paixão toxicomaníaca, e que reaparece com uma intensidade e uma desmesura
total no momento em que se esgotam o estado de lua-de-mel e o estado de
dependência, que se pode propor, passo a passo, com modéstia, o compromis-
so legislativo que evocamos anteriormente, na e para uma relação pervertida,
muito fechada, muito próxima, quase fusional a princípio, que permite forçar
uma brecha nas portas fechadas pelas verdadeiras razões do sofrimento até
então incomunicáveis, porque censuradas pelo sujeito e toda organização tera-
pêutica. Assim, pouco a pouco, aceitará a autoridade de uma relação muito
mais a distância.
Aos efeitos insubstituíveis dos quais falávamos se substitui uma cinética
de sedução – contra-sedução, numa sucessão de compromissos instáveis, que
deve conduzir à democracia psíquica: a de poder fazer escolhas ao preço de
manter a repressão de um desejo que aceita não mais poder se exprimir. A
função estruturante da dependência especialmente em relação à não-identida-
de nascida do espelho quebrado se oporá à função estruturante da relação
perversa com o terapeuta e/ou a instituição terapêutica, até que essa nova
dupla seja suficientemente forte para compensar, ainda que mal, a precedente
e que se possa passar, pouco a pouco, ao aprendizado da não-dependência.
Então aquele que de seu desejo tomou o significante droga e o tornou um
desejo significado pode tomar como significante o terapeuta e como desejo
significado a liberdade.
Pouco a pouco, o que caracterizava o toxicômano em sua parte per-
versa quer dizer que não havia para ele perpetuação do prazer e do sofrimento
numa fertilidade ou numa fecundidade e, portanto, que justificasse a depen-
dência em si, deixa de ser aceitável, porque inicialmente o terapeuta aceitou se
colocar nesse lugar perverso e se tornar “alguma parte” da dependência. Feito
isto, ele não é o corpo jubiloso nem o corpo sofredor, que não têm nada de
fantasmático. Se ele permanece nessa posição, não é nada mais do que o
produto, é alienado e alienante, senhor e escravo, e arrisca-se por sua vez a
Uma interrogação sobre a dependência • 45
Referências bibliográficas
*
Tradução de Marcos Baptista. Revisão de Iolanda Faustino.
**
Psicanalista e professora da Universidade de Buenos Aires, Argentina.
1
Os afetos aqui são relacionados a inibição, acting-out e passagem ao ato. (N. do T.).
2
A autora refere-se ao texto de Freud “Projeto para uma psicologia científica”. (N. do T.).
50 • Diana Rabinovich
trando dessa forma que a experiência da dor deixa em seu trajeto um vestígio
mnêmico hostil, o qual define como afeto. O afeto é um vestígio, é uma recor-
dação da experiência hostil, e a partir dela se constitui a defesa primária. Po-
deríamos dizer que este quadro é, em certo sentido, o aprofundamento de uma
gama de afetos que corresponderiam aos vestígios mnêmicos da experiência
hostil, de uma experiência que está fora do campo do prazer.
Qual seria seu equivalente em relação à experiência de satisfação? O
desejo, responde Freud. Lacan considera que são as ficções do desejo, o ves-
tígio da experiência da satisfação. Em uma de suas últimas aulas, introduz o
ato, que é um conceito destinado a suprir a perda da ação freudiana específica
da necessidade. O que supre a ação específica é precisamente o ato. Dessa
forma, Lacan instrumenta sua série: ato, passagem ao ato, acting-out, que
poderíamos considerar como uma série lacaniana.
Cabe ressaltar como Lacan introduz o desejo em sua relação com o
ato. Ele começa assinalando que a inibição esconde um desejo e que o lugar
adequado para situar o desejo é no registro da inibição, na medida em que o
desejo pode assumir uma função de defesa. Diríamos que, dessa forma, Lacan
retoma a conceitualização freudiana clássica – a da cegueira histérica, o dese-
jo se infiltrando em uma função natural. O artigo sobre a cegueira histérica se
inscreve no marco da primeira teoria pulsional – uma oposição entre as pulsões
de autoconservação e as pulsões libidinais – e a inibição se define pela ação de
um desejo diferente do desejo no qual esta função se satisfaz naturalmente.
Lacan ressalta que este ocultamento do desejo pela inibição, lugar da repres-
são primária freudiana, é uma condição de estrutura que obriga o sujeito a se
esconder sob a inibição, em que a defesa aparece como uma função do desejo.
Em seguida, Lacan introduz um terceiro termo; o ato, assinalando que
é o único correlato polar da angústia e que estes estariam em dois pólos de
uma diagonal, a angústia e o ato ou inibição, o desejo e o ato. Ele coloca o ato
no registro do desejo e obtém no final a série inibição, desejo e ato.
O que é um ato? No que pese a ser anterior às teorias que Lacan fará
posteriormente sobre o ato, tanto na Lógica do fantasma (1966/67) como em
O ato psicanalítico (1967/68), sua definição é notavelmente precisa: o ato se
caracteriza por uma manifestação significante, na qual se inscreve o que qua-
lifica de estado do desejo. O estado do desejo, nesse caso, não é a inibição.
Portanto, o ato para ser ato tem de ser inseparável do desejo, deve veicular um
desejo, um desejo que pode, por sua vez, inibir o ato. O desejo fica demarcado
por dois significantes: inibição e ato. E é entre ambos que está definido o cam-
po do desejo, o que se observa na clínica analítica. Portanto, a noção de ato se
fundamenta em uma relação com a inibição.
Desejo, afeto e patologia do ato • 51
por que não falar de um desejo de castração, tendo em vista que o desejo é, na
castração, a falta central que separa e estabelece a disjunção entre o desejo e
o gozo? Nesta disjunção, o desejo [ao qual chama de desejo de castração, de
castração simbólica] também está em ação. Porque ali também está suspenso
um desejo, cuja ameaça para todos consiste somente no fato de ser reconhe-
cido no desejo do Outro.
se; porém, acredito que exista outra dimensão, que é muito diferente e face à
qual Lacan, com tanta perspicácia, chamou de economia política do gozo.
A economia política do gozo aponta para a distribuição social dos obje-
tos de consumo que freia o desejo. Por que insisto neste ponto? Porque o
problema não está no fato de sermos uma sociedade narcisista. Narcisistas
foram todas as sociedades. As sociedades que nos antecederam eram muito
mais narcisistas que a atual. A honra, a dignidade, os ideais comuns, que ti-
nham algum valor, atualmente têm pouco. A honra, por exemplo, está em fran-
ca decadência.
Nesse ponto, não se trata da falta de ideais e sim do ideal que é subsi-
diário do gozo. O importante está na acumulação de objetos mais de gozar, de
gadgets, que se pode fazer. O objeto mais de gozar, quando começa a cumprir
essa função, tampona o desejo. Nesse sentido, às vezes a droga pode funcio-
nar como objeto, como se fosse por um lado o vazio do desejo do Outro e por
outro, o que, em nível de uma recuperação de gozo, permite tamponar o desejo,
inclusive se tornar uma defesa contra o desejo. Freud, em O mal-estar na
cultura, alertava para esse fato, ao falar das satisfações sucedâneas, e colo-
cava em primeiro plano o álcool e seus substitutos: as drogas e algo muito
menos privilegiável – a sublimação.
Por exemplo, uma criança assistindo à televisão está exposta à tenta-
ção de uma masturbação fértil em fantasias, o que não é uma masturbação
direta. As potencialidades auto-eróticas têm aumentado, o que se percebe nas
observações clínicas, o que aparece cada vez mais freqüentemente em gente
jovem, ponto muito difícil de trabalhar, que é o gozo auto-erótico, que geral-
mente se apresenta de mil maneiras diferentes. Um gozo que pode ir da músi-
ca clássica ao rock, ao baile, aos jogos, e que também pode passar pela droga
ou por qualquer outra coisa. Entretanto, o ponto de auto-erotismo aparece
como o principal ponto que resiste em ceder na análise. Lacan, no Seminário
16 (1968/69), introduziu o mais de gozar, dizendo: “o mais de gozar é um con-
solo do sujeito” – e se me desculpam a grosseria trata-se de uma sociedade de
consoladores, ainda que aí esteja o outro, este é simplesmente uma coisa.
Para finalizar, peço que me permitam expor-lhes uma breve ilustração
clínica. Um jovem de dezesseis anos, adicto à cocaína, me consulta por sua
apatia, inibição, abulia e angústia. Neste caso, enfrentávamos uma situação de
inibição que nos dava trabalho para localizar o desejo. Podemos dizer que a
inibição funciona como uma espécie de anestésico frente à dor, que provoca a
súbita perda do lugar de causa com relação ao desejo materno. A análise
dessa perda de lugar fez aparecer um luto até então não-realizado. A elabora-
ção dessa perda – que se produziu quando sua mãe, até então “modelo”, se
56 • Diana Rabinovich
separou de seu pai e uniu-se a um homem muito mais jovem que ela – permitiu o
desaparecimento da adição, em que a droga cumpria uma função de operar
como o motor que substitui o motor que é o desejo do Outro, encarnado neste
caso pelo desejo materno. Em minha opinião, não se trata para a psicanálise de
pensar a droga como um universal para o qual se dariam respostas universais.
Nesse caso, por exemplo, podemos apreciar que o desaparecimento da adição
se produziu quando se pôde aceder à particularidade do desejo em cada sujeito.
A psicanálise não pode esquecer que sua bússola, no que concerne à
direção da cura, é o desejo como desejo do Outro.
Referências bibliográficas
*
Psicanalista e membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro e da Société
Psychanalytique de Paris.
58 • Fernando José Barbosa Rocha
da vida. Nesse sentido, pensar uma clínica do ato exige refletir sobre a tênue
fronteira que há entre o que naturaliza e o que culturaliza o homem.
A intolerância que há no homem quanto ao desprazer, seja ele ocasio-
nado pela retenção de quantidade de energia, seja pela estase libidinal, permite
considerar três possibilidades para que essa energia encontre uma via de libe-
ração: simbolização, fenômeno psicossomático ou patologias do ato. Na
simbolização, ocorre a ligação da quantidade de energia a uma representação,
propiciando a formação de cadeias associativas que abrem vias de escoamen-
to para liberação daquela quantidade, ou a concentração de energia no orga-
nismo, provocando o fenômeno da conversão histérica. Nesses dois casos, é
importante registrar, há a possibilidade do processo de simbolização. Já no
fenômeno psicossomático a quantidade de energia se dirigindo para o organis-
mo ali permanece, podendo provocar somatizações não-simbólicas que o dani-
ficam. Nas patologias do ato, essa descarga, embora possa ocorrer por várias
vias, nelas encontra dificuldade de simbolização, caracterizando essas patolo-
gias por um agir compulsivo.
No entanto, essas possibilidades de escoamento de energia estão dire-
tamente relacionadas à formação do Sujeito. Como modelo exemplar do que
propicia ao homem a condição de Sujeito, encontramos na antiga tragédia gre-
ga Édipo rei uma atualidade, pois nela fica destacada a necessidade de o
homem estar submetido a uma lei que lhe interdite. Tal necessidade fica
explicitada quando Freud ressalta existir nessa tragédia um vínculo entre lei e
função simbólica,1 revelando que a eficácia do mito reside na instância interditora
que ele porta. Interdição que é instituída pela lei que proíbe o incesto, aquela
que limita o acesso ao gozo pleno. Ao articular o desejo à lei, Freud demonstra
o caráter estruturante do desejo, responsável pela inserção do homem no uni-
verso simbólico, possibilitando-lhe representar em vez de agir. Dessa maneira,
fica diferenciado o movimento de repetição, impulsionado pelo desejo vincula-
do a representações, daquele movimento que, por estar desligado de represen-
tação, faz como descarga por meio de atos.
Áurea Lowenkron (2000), descrevendo sobre a inabilidade para re-
presentar, faz uma pertinente articulação entre este fenômeno e o conceito
freudiano de neurose atual, remetendo o termo atual a três sentidos: “o de
tempo presente; o de real efetivo; e o que está em ato”. “São concepções”, diz
1
Em Interpretação dos sonhos (1905), sob o título de “A morte de pessoas queridas” (cap. 5),
Freud retoma e desenvolve o conteúdo da carta de 15 de outubro, ao afirmar as vinculações
entre mito, sonho e fantasia. A partir de então, Freud não mais hesita em oferecer análises que
corroboram a idéia segundo a qual tanto o mito quanto o sonho – da mesma forma que as
fantasias – seriam realizações de desejos.
60 • Fernando José Barbosa Rocha
2
L. Hans apresenta as composições do termo zwang (compulsão, obsessão, pressão) como
evocando, do ponto de vista lingüístico, a imagem de um sujeito sendo obrigado, contra sua
vontade, a agir ou pensar de determinada forma. Dicionário comentado do alemão de Freud.
Rio de Janeiro: Imago, 1996.
Sobre Édipo, atualidade e patologias do ato • 61
despedaçamento desse reino pelas bacantes. Por sua vez, Laio, o herdeiro
legítimo, fica impedido de assumir o trono por ser ainda muito jovem, cedendo
então o lugar ao tio, logo assassinado pelos sobrinhos. Laio foge de Tebas,
buscando asilo na corte de Pélops, filho de Tântalo. Laio se torna finalmente o
herdeiro do trono de Tebas, herdando também as maldições de seus antepas-
sados, entre elas a principal, que deriva do fato de Cadmo ter matado o dragão
de Ares e de Labdaco ter se confrontado com Dioniso, o deus do êxtase e do
entusiasmo (Bohadana, 1992).
Já sob a guarda da corte de Pélops, Laio seduz e rapta Crísipo, filho de
seu hospedeiro. Desrespeitando o princípio da hospitalidade, Laio comete uma
hamartia na corte de Pélops, ao agir contrariamente aos princípios “justos e
legítimos” (Heródoto, 1985). Revestido da maldição, Laio ocupa o trono, tor-
nando-se então alvo da sentença do oráculo que vaticina sua morte, praticada
por um filho seu que depois desposaria a própria mãe.
Um dos primeiros aspectos lógicos a ser assinalado sobre a linhagem
de Édipo refere-se ao nome dos homens que constituíam a série de pais:
todos possuíam um defeito nos pés. O nome Labdaco significa “pés voltados
para fora”, enquanto Laio indica o “cambaio”, o “desajeitado”. E finalmente
Édipo, que quer dizer “pés inchados”. Segundo Levi-Strauss, essas denomi-
nações são denotadoras de uma ressonância mítica de um desejo ctônico, já
que toda deformidade nos pés indicaria o nascimento do homem a partir da
mãe Terra (autoctonia). Um outro aspecto relevante é o fato de Cadmo ter
tido que matar o dragão para que a primeira série de homens fosse iniciada.
Essa série dos humanos principia por meio do desafio enfrentado por Édipo:
o de decifrar o enigma da esfinge, que uma vez desvendado forçaria o ho-
mem a admitir ter nascido de um homem e uma mulher. Nessas duas dimen-
sões, fica evidenciada a necessária e inevitável morte de um pai para que a
lei possa se instaurar.
Cabe lembrar que é também por repetir que o homem se torna um ser
desejante. Por meio das várias repetições, ainda na dimensão da necessidade,
é que o homem, em algum momento, encontra “um a mais de prazer” – ativa-
ção da zona erógena –, tornando-se um ser desejante. Podemos dizer que é
essa condição desejante que confere à tragédia de Édipo ser reveladora do
que é próprio do humano: desejar.
Já em seu trabalho “Projeto para uma psicologia científica”, Freud
(1895), pela primeira vez, refere-se à experiência de satisfação como aquela
que ocorreria no momento em que o bebê vivencia simultaneamente a saciedade
de uma necessidade – a fome, por exemplo – e a ativação de uma zona erógena
produtora de um a mais de prazer. A partir de então, o bebê repetiria a mesma
62 • Fernando José Barbosa Rocha
Eis aí o que Freud nomeou de sintomas das neuroses atuais, nas quais
os sintomas não teriam qualquer significação psíquica.
Se há algumas décadas o fenômeno psicossomático vem desafiando
os psicanalistas e sendo pauta de importantes debates, hoje essa pauta é au-
mentada pela inclusão das patologias do ato. O incremento dessas patologias
pode ser entendido como fruto de uma época marcada pela existência de dis-
positivos e agenciamentos sociais que produzem e são produzidos por um
narcisismo que encontra na ausência de lei um dos seus sustentáculos. Na
ausência de culpa e de lei, a sociedade se torna cada vez mais permissiva,
gerando a ilusão de que seria possível encontrar um “estado de gozo” no qual
o homem pudesse ingressar no ilimitado e no indiscriminado.
Baudrillard (l990), referindo-se às características da pós-modernidade,
enfatiza a diferença entre a imagem e o visual, salientando que a imagem se
refere a um “existo, estou aqui”; exige, portanto, na mesma percepção, um
3
Freud (1895): Qu’il est justifié de séparer de la neurasthénie un certain complexe
symptomatique sous le non de “nevrose d’angloisse”. In: Nevrose, psychose et perversion.
Paris: PUF, 1978, p. 18.
64 • Fernando José Barbosa Rocha
outro, que por sua vez demarca a existência de uma relação estruturante do
narcisismo. Já o visual é definido como uma espécie de “imagem minimal, de
definição menor, como a imagem vídeo, imagem tátil”. O autor acrescenta
ainda que o visual se distancia “da lógica da distinção”: nele inexiste o “jogo de
diferenças”, que “recorre à diferença sem nela acreditar”. Trata-se, portanto,
da indiferença, em que “ser torna-se uma performance efêmera sem futuro,
um maneirismo desencantado num mundo sem maneiras”. A propósito, lem-
bramos que respeitar, do latim respicere, “olhar para”, conota o olhar para o
outro em sua diferença, em sua singularidade.
É neste mundo sem “futuro”, desprovido de sonhos e de respeito – no
sentido de respicere –, que a delinqüência, a toxicomania, a psicopatia, a ado-
lescência prolongada, as inibições múltiplas ganham dimensões alarmantes.
É considerando essas “novas doenças da alma”4 que a clínica atual
deve ser criativa, repensando tipos de intervenções adequadas às situações
nas quais os sistemas de simbolização, inclusive o da expressão verbal, mos-
tram-se fragilizados e preteridos. Vale salientar a expressão “patologias do
não-agir”, para se referir a certos comportamentos, entre eles os das “inibi-
ções múltiplas” e o da “adolescência prolongada”, sendo este muitas vezes
incentivado e mesmo produzido pela família (Nouvelle Revue de Psychanalyse,
1985).
Como procedimento, talvez fosse oportuno que a clínica do ato consi-
derasse que se o paciente busca, por diferentes meios aditivos – dentre eles a
toxicomania –, o gozo total, caberia a essa clínica desenvolver práticas, no
sentido de desconstruir esse universo ilusório, tentando ao mesmo tempo criar
mecanismos que possibilitem reincorporar a palavra como elo entre o dizível e
o indizível, entre o representado e o não-representado. Enquanto elemento
constituinte da cultura, a palavra fornece uma via de inclusão na dimensão do
limitado, propiciando a “desconstrução da crença nesse gozo para não mor-
rer”. A reconstrução ou construção de parâmetros que conduza um outro tipo
de ilimitado: aquele que se cria no interior do limite. A partir dessa inserção
talvez se possa cogitar a “recuperação” por meio de um “aprendizado” no qual
prevaleça a crença de que na espera, no não imediato, seja possível obter
prazer (Jornal do Brasil, 2000). Prazer possível, prazer afirmador da vida,
prazer finito. Prazer que termine para poder recomeçar.
4
Título de livro de Julia Kristeva, no qual ela aborda de modo muito interessante, dentre
outras coisas, a redução do espaço psíquico, provocada por condições da vida moderna.
Sobre Édipo, atualidade e patologias do ato • 65
Referências bibliográficas
*
Psiquiatra, psicanalista e membro da Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle, Rio de Janeiro.
68 • José Durval C. Cavalcanti de Albuquerque
das reações sobre o organismo como de um laboratório, com uma certeza tão
despudorada, que a suposição de saber atribuída ao analista parecia de saída
desconsiderada, na medida em que o prever e o conhecer sentavam-se a seu
lado. Sentia-se senhor de seu corpo, garantindo provavelmente com isso um
sentimento secreto de que no final tudo ia muito bem, normal. De fato, não se
sentia doente, pois em sua organização tinha sempre a seu alcance algo para
aliviar a dor do existir. É certo que nesse constante êxodo do viver o risco de
um desenlace fatal é grande. Só que isso já se encontrava descartado, não
fazendo parte de sua lógica que, tal a do computador, é a do zero ou um, do
tudo ou nada. Agora, por que solicitar um analista se ele tem a quem pedir e
quem lhe entregue o que precisa para seu apaziguamento?
Presumivelmente algo da ordem de um incômodo que não era obtura-
do nestes procedimentos, que ao persistir o fez me procurar. Transmitia visível
avidez para com suas sessões e quando seus desempenhos tornavam impossí-
vel seu comparecimento, tratava rapidamente de requerer outra hora. Associ-
ado a isso, tratava-me como se fôssemos velhos camaradas. Por outro lado,
veladamente me solicitava uma atitude compreensiva e de absolvição de seus
atos, que contivesse um desejo de curá-lo da droga. Qualquer coisa semelhan-
te a quem comprometido com a droga com freqüência ouve no ambiente fami-
liar. Alguma coisa que numa justificativa de ajuda, o isto ou aquilo a ser feito
para seu próprio bem. Algo como: “faço isso porque só quero seu bem”. Isso
mais tarde vai se mostrar, tendendo a um sentido de poder confirmar que seu
bem é o bem do outro, resumindo assim sua via de vinculação social como uma
proposta de relação dual, cuja escrita poderia ser: “ele não me quer bem e sim
quer meu bem para ele, ou seja, acabar comigo”, indicando um eu e seu duplo
atracados num enlace mortífero.
Apresentado assim cruamente, esta edificação numa primeira olhada
não parece dispor de qualquer entrada para o psicanalista. Porém, contida na
aparente banalidade do discurso, trazendo no caudal associativo algo que reve-
la e que oculta, apresentando-se de forma voraz e sequiosa, a transferência se
punha a desenhar uma trilha possível de levar a um campo de trabalho. Huma-
namente ela apontava para uma triangulação, para uma instância terceira, para
uma lei reguladora da relação com o objeto da satisfação. Aos poucos, garim-
pados na ribeira de queixas de preterido, injustamente considerado, mal ama-
do, os traços de suas relações com os outros foram produzindo um contorno.
Assim, a trama transferencial foi se estendendo. Chegava e discursava como
se fosse para ninguém. O estar ali era como se não estivesse, ou como o dizer
de sua palavra não fosse de boca própria, ou mesmo como se houvesse uma
dúvida sobre o que era dele ou do outro. Sua sofreguidão em comparecer e lá
A prática psicanalítica e as toxicofilias • 71
curso sem falhas, nesse deserto sem perda, venha condicionar um acidente,
transfigurar-se em formações de sintoma. O momento em que isso ocorre é
aquele mesmo da saída do psicanalista da posição do hipnotizador para aquele
que abre espaço às determinações do desejo, subvertendo a economia do toxi-
cômano e incluindo-o numa lógica ternária, referida à problemática edípica e
seu momento crucial que é a castração.
Mellman (1992) diz que o toxicômano possui uma lógica e uma econo-
mia tão própria que nos parece um ser extraterrestre. Se considerarmos a
presença constante da toxicomania na história, é provável que em contextos
sociais mais recentes pudesse o drogado parecer estranho a uma maioria.
Atualmente, a provável causa de nosso desconforto deve se encontrar no fato
de que este modos facere do toxicômano é cada vez menos restrito a ele.
Como em outras nações, vivemos nos tempos do que andam chaman-
do “pós-modernidade”. Trata-se de um compósito de uma homogeinização
cultural com uma tendência a um extremo individualismo. Acrescente-se à
chamada “cultura jovem” a liberdade de escolhas sem limite como afirmação
individual e a propaganda que objetiva tornar o produto anunciado um bem sem
o qual não se possa passar, que alcança sua expressão na perda do silêncio e
no vazio de imagens contidas no fast food da televisão (Sarlo, l997). Seus
modismos – tais como cirurgia plástica anunciada a preços parcelados para
que se possa acompanhar as últimas determinações do prêt-à-porter, personal
trainning, walkman, jogging, enfim, uma escancarada incitação ao auto-ero-
tismo – condicionam uma pletora de liberdades que se vai tomando à lei, à
instância terceira. Neste imperativo de consumo, a divisão subjetiva do sujeito
reduzido a consumidor vai na direção de um encontro com os objetos do con-
sumo. Deste composto, obtém-se uma legião de indivíduos que contemplam
seus umbigos, numa faina constante em satisfazer a si mesmos.
Ninguém duvida que a droga é um êxito comercial sem paralelos, in-
clusive dispensando com largueza a propaganda explícita. A toxicomania pode
ser abordada como sintoma social enquanto inscrita nesse discurso do consu-
mo, aquele que anula o sujeito, discurso cada vez mais dominante, visto que a
propagação dela não ocorre somente por uma escolha daquele que consome,
mas também reforçada por violentas incitações do meio.
Edifica-se uma verdadeira utopia do bem-estar, em que o sofrimento é
tido como desvio e a indústria farmacêutica brilha soberana. Panacéia que o
toxicômano denuncia e zomba daqueles que o querem tratar. O “pós-moder-
no” foge da subjetividade. A angústia e ansiedade, como ruídos indicativos de
alguma doença, que contrarie o preceito “a saúde é o silêncio dos órgãos”,
devem ser suprimidas com medicamentos. Eliminando-se as pistas, cortam-se
A prática psicanalítica e as toxicofilias • 75
Referências bibliográficas
*
Psicanalista e professora adjunta do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do
Espírito Santo.
1
Adição de 1915 a uma nota de rodapé acrescentada em 1910 ao capítulo 1 dos “Tres ensayos
para una teoria sexual” (“Las aberraciones sexuales”), item “Objeto sexual de los invertidos”:
“Así, pues, en un sentido psicoanalítico, el interés exclusivo del hombre por la mujer constituye
también un problema, y no algo natural, basado ultimamente en una atracción química”. In:
Obras completas. Madri: Biblioteca Nueva, 1980, p. 1178.
80 • Noêmia Santos Crespo
2
FREUD, S. Ver, por exemplo, “El ‘Yo’ y el ‘Ello’” e “Nuevas lecciones introductorias al
psicoanalisis”, n. 32 (La Angustia y la Vida Instinctiva). In: Obras completas. Madri: Biblio-
teca Nueva, 1980.
Compulsão, maldição consentida – ou reinvenção do pai • 81
não faça o que eu faço (isto é, mandar)” – até porque a relação de autoridade
é assimétrica. Então a criança dificilmente seria expulsa de seus Édens infan-
tis sem alguma revolta contra o agente de tal expulsão – e sem conservar lá no
fundo um resto de esperança: o sonho de encontrar um “jeitinho” de recuperar
a satisfação perdida.
Nesse ponto, Lacan faz um comentário bastante esclarecedor à teoria
freudiana do Complexo de Édipo: assinala que a interdição paterna deve incidir
primeiro sobre a mãe, proibindo-lhe a reintegração de seu produto – proibindo-
lhe criar o filho para si mesma, para sua satisfação privativa ou privilegiada.
Assim, o pai interviria não só, e nem principalmente, como o agente de uma
dolorosa privação, impondo à criança a perda do seio, do excremento, do olhar
complacente, do amor da mãe. O pai interditor funcionaria como um anteparo
capaz de proteger a criança do devoramento, do despedaçamento, do aprisio-
namento, por parte do Outro materno (Lacan, 1998b).3
Da perspectiva lacaniana, os supostos paraísos de que cada um de
nós deveria ter sido expulso nada teriam de paradisíaco. Pelo contrário, seri-
am versões imaginárias de uma placenta mítica, da qual precisaríamos nos
livrar – a fim de nascer para o desejo e construir um destino humano (Lacan,
1985a).4 O Shangri-lá regressivo do fantasma neurótico – reencontro do seio
perfeito, olhar ou voz; pedaço do Outro que pudesse completá-lo – seria um
3
Ver, por exemplo, LACAN, J. “Subversão do sujeito e dialética do desejo”. In: Escritos. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 1998b, p. 828 (“É este capricho, no entanto, que introduz o fantasma
da Onipotência, não do sujeito, mas do Outro em que se instala sua demanda [...], e juntamen-
te com este fantasma a necessidade de seu refreamento pela lei”). Ou ainda LACAN, J.
Seminário 4: a relação de objeto. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1995, p. 199 (“O furo aberto
na cabeça da Medusa é uma figura devoradora que a criança encontra como saída possível em
sua busca da satisfação da mãe. Aí está o grande perigo que nos é revelado por suas fantasias,
ser devorado”). Ou ainda LACAN, J. Seminário 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1992, p. 105 (“O desejo da mãe não é algo que se possa suportar assim, que lhe
seja indiferente. Carreia sempre estragos. Um grande crocodilo em cuja boca vocês estão – a
mãe é isso. Não se sabe o que lhe pode dar na telha, de estalo fechar sua bocarra. [...] Há um
rolo, de pedra, é claro, que lá está em potência, no nível da bocarra, e isso retém, isso emperra.
É o que se chama falo. É o rolo que os põe a salvo, se de repente aquilo se fecha. [...] Falei
então, neste nível, de metáfora paterna.”).
4
Ver LACAN, J. Seminário 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1985a, pp. 186-7 (“Essa lâmina, esse órgão, que tem como caracterís-
tica não existir [...], é a libido. É a libido como puro instinto de vida, quer dizer, de vida
imortal [...]. É o que é justamente subtraído ao ser vivo pelo fato de ele ser submetido ao ciclo
da reprodução sexuada. E é disso aí que são os representantes, os equivalentes, todas as
formas que se podem enumerar do objeto a. Os objetos a são apenas seus representantes,
suas figurações. O seio – como equívoco, como elemento característico da organização
mamífera, a placenta, por exemplo – bem representa essa parte de si mesmo que o indivíduo
perde ao nascer, e que pode servir para simbolizar o mais profundo objeto perdido”).
82 • Noêmia Santos Crespo
5
Ver LACAN, J. Seminário 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985b, p. 61 (“[...]
não será verdadeiro que a linguagem nos impõe o ser e nos obriga como tal a admitir que, do
ser, jamais temos nada?”).
6
Ver LACAN, J. “Subversão do sujeito e dialética do desejo”. In: Escritos. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1998, p. 839 (“[...] a verdadeira função do pai [...] é, essencialmente, unir (e não
opor) um desejo à lei”).
7
Ver, por exemplo, FREUD, S. “El ‘Yo’ y el ‘Ello’” e “Nuevas lecciones introductorias al
psicoanalisis”, n. 32 (La Angustia y la Vida Instinctiva). In: Obras completas. Madri: Biblio-
teca Nueva, 1980.
Compulsão, maldição consentida – ou reinvenção do pai • 83
instinto.8 O instinto falta ao bicho falante. Isso quer dizer que lhe falta uma
realidade premoldada; sua realidade será construída no campo da fala e da
linguagem, e nesse campo o significante paterno equivale ao axioma zero “existe
lei”. Ou seja, nem tudo pode acontecer, nem tudo se pode fazer; não se pode
falar ou agir senão conforme a certas regras.
Se há declínio do pai, isso então quer dizer que de algum modo a pró-
pria noção de lei e limite se encontra abalada no cenário contemporâneo. Po-
dem-se rastrear sinais deste enfraquecimento em todas as formas de mídia –
em que encontramos um debate interminável em torno do esgarçamento da
autoridade na família, na escola, no cenário social e político. Cinema, TV, jor-
nais e revistas exploram ad nauseum a figura do genitor intrusivo, abusivo,
hesitante, covarde ou abjeto; e, para complicar ainda mais as coisas, sucedem-
se sugestões e notícias de projetos de procriação artificial que tornam obsoleta
a própria noção de paternidade.
Pode-se pensar o declínio da função paterna como efeito de nosso
próprio modelo dominante de produção e de gozo coletivo – regido por um
imperativo de consumo furioso, expansão ilimitada de riqueza e de saber. Isso
não anda sem pressupor – e sem reafirmar continuamente nas entrelinhas da
maioria das práticas discursivas – que podemos fazer proliferar infinitamente
o saber, as tecnologias, a produção de bens e serviços, os modos de fruição.
Isso pretende saber cada vez mais – pretende inclusive saber-fazer-gozar cada
vez melhor.9
Nossa cultura é amplamente dominada e organizada pelo discurso da
ciência; o discurso da ciência não tem pai. Claro, podemos invocar os márti-
res e heróis da luta contra o obscurantismo religioso, como Giordano Bruno e
Galileu, e situá-los como pais fundadores de um novo projeto do pensamento
8
Ver LACAN, J. Seminário 3: as psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988; e LACAN, J.
(1971). Seminário 18: D’Un Discours qui ne Serait Pas du Semblant. (Mimeo). [Aula de 16
jun. 1971].
9
Vários autores do campo lacaniano relacionam, como nós, o declínio contemporâneo da
função paterna a fatores de ordem “macro”: a lógica mesma da civilização capitalista, que se
alicerça na “reprodução ampliada” do saber e do poderio técnico e comanda um desafio
permanente a toda espécie de limite; a dominância do discurso da ciência, que “foraclui” toda
filiação do saber que produz, como se o extraísse do nada; e a ideologia individualista, com seu
mito/mandato de autonomia do sujeito. Ver, por exemplo, BETTS, J. A. “Missão impossí-
vel? Sexo, educação e ficção científica”. In: Educa-se uma criança? Porto Alegre: Artes e
Ofícios, 1995; CALLIGARIS, C. “O grande casamenteiro”. In: O laço conjugal. Revista da
Associação Psicanalítica de Porto Alegre. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1994; MELMAN,
C. Alcoolismo, delinqüência, drogadicção. São Paulo: Escuta, 1992; TEIXEIRA, M. R. “O
espectador inocente”. In: Goza! Salvador: Ágalma, 1997; entre outros.
86 • Noêmia Santos Crespo
10
Ver COSTA, N. C. A. Ensaios sobre os fundamentos da lógica. São Paulo: Hucitec, 1994, p.
185 (“Historicamente, os teoremas de Gödel constituem um marco na evolução da lógica e da
matemática. Ao contrário do que se acreditava, consciente ou inconscientemente, a matemá-
tica não pode ser formalizada de maneira completa [...]; isto patenteia que o método axiomático
– essencial à lógica e à matemática – não basta para fundamentar as ciências formais. Esta
descoberta veio como um choque [...]”); ou HOBSBAWM, E. A era dos extremos. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995, p. 520 (“Um lógico matemático austríaco, Kurt Gödel, provou
que um sistema de axiomas jamais pode se basear em si mesmo. Se se quer demonstrá-lo como
consistente, é preciso empregar princípios de fora do sistema. À luz do ‘Teorema de Gödel’,
não se poderia sequer pensar num mundo consistente internamente não contraditório”).
11
Ver MARX, K. O capital. Livro I. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, pp. 171-2, v.
1 (“A circulação de dinheiro como capital [...] tem sua finalidade em si mesma, pois a
expansão do valor só existe nesse movimento continuamente renovado. Por isso, o movimen-
to do capital não tem limites. Como representante consciente desse movimento, o possuidor
de dinheiro torna-se capitalista. [...] Enquanto a apropriação crescente da riqueza abstrata for
o único motivo que determina suas operações, funcionará ele como capitalista, ou como
capital personificado, dotado de vontade e consciência”).
Compulsão, maldição consentida – ou reinvenção do pai • 87
12
Idem, pp. 306-7 (“O capital, que tem tão ‘boas razões’ para negar o sofrimento das gerações
de trabalhadores que o circundam, não se deixa influenciar, em sua ação prática, pela perspec-
tiva da degenerescência futura da humanidade e do irresistível despovoamento final. Tudo
isso não o impressiona mais que a possibilidade de a terra chocar-se com o sol [...]. Après moi
le déluge! É a divisa de todo capitalista e de toda nação capitalista. [...] De modo geral, isso
não depende, entretanto, da boa ou da má vontade de cada capitalista. A livre competição
torna as leis imanentes da produção capitalista leis externas, compulsórias para cada capita-
lista individualmente considerado”).
13
Ver a caracterização da ideologia do mercado irrestrito feita por Hobsbawm: “a fé teológica
numa economia em que os recursos eram alocados inteiramente pelo mercado sem qualquer
restrição, em condições de competição ilimitada, um estado de coisas que se acreditava capaz
de produzir não apenas o máximo de bens e serviços, mas também o máximo de felicidade, e
o único tipo de sociedade que mereceria o nome de ‘liberdade’” (op. cit., p. 542).
88 • Noêmia Santos Crespo
Referências bibliográficas
14
LACAN, J. (1974). Seminário 22: R. S. I. (“É entre esses três termos, nominação do imaginá-
rio como inibição, nominação do real como acontece dela se passar de fato, quer dizer,
angústia, ou nominação do simbólico, [...] ou seja, como se passa, efetivamente, na forma do
sintoma, que tentarei, ano que vem [...], me interrogar quanto ao que convém dar como
substância ao Nome-do-Pai.”). Edição não-autorizada. Aula de 13 de maio de 1975, fim do
último parágrafo.
15
LACAN, J. Seminário 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992, p.
103 (“Não se esperou, para ver isso, que o discurso do mestre tivesse se desenvolvido
plenamente para mostrar sua clave no discurso do capitalista, em sua curiosa copulação
com a ciência”).
Compulsão, maldição consentida – ou reinvenção do pai • 89
*
Psicanalista e membro da Escola Letra Freudiana e graduada em Direito pela UERJ.
92 • Lia Amorim
1
LACAN, J. Seminário 1: os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Zahar, 1979 [1953-4].
2
AMORIM, L. e SANT’ANNA, M. A. “A compulsão de comer”. Revista Ágora. Rio de
Janeiro: Contra Capa, v. 2, n. 1, jan./jun. 1999, pp. 121-30.
Compulsão e supereu • 93
a ruidosa voz que ele ouvia: “Come!”. E então, em vez de ser apenas um
sujeito que ouviu uma voz e nada mais, a voz transformava-se num tirano pelo
qual ele, como um fantoche, se deixava manipular cegamente.
A crise de devoração que pode concernir à comida, droga ou qualquer
outro transe que se refira a esse complexo garante a alienação para o sujeito.
É por isso que podemos dizer que a comida tem para o gordo, por exemplo, o
papel de duplo que é a garantia de que o perigo não o atingirá. O poema
“Caranguejola” de Mário de Sá Carneiro é um belo exemplo da comida como
duplo.3 Mas por outro lado ela pode matá-lo e esse é o lado diabólico do duplo.
Nas adições, o verbo do comando é um empuxo à ação em direção
àquilo que o substantivo nomeia: a coisa com a qual o sujeito faz laço: Come!
Cheira! Fuma! A palavra adição deveria ser privilegiada quando nos referi-
mos a esse complexo, porque se trata sempre de um adicionamento de gozo,
um mais gozar para reposição do já-perdido-de-saída – bem a propósito. Lacan
diz no Seminário R. S. I. que o mais-gozar é tudo o que se tem para encher a
barriga. Esse complexo mostra um trabalho de recuperação que, entretanto, é
uma perda. O que é que o sujeito perde aí? Perde a possibilidade do exercício
do desejo e perde em pulsão porque, curto-circuitando o trajeto da pulsão, o
sujeito fica privado do prazer que ele poderia usufuir, se a pulsão fizesse o
circuito normal, que é o de contornar o objeto, satisfazer-se e depois deixá-lo
cair. Nesse sentido, a chamada compulsão é uma pulsão mal dita.
O comando, elemento constante e imprescindível do complexo, é algu-
ma coisa que está lá, todo o tempo, potencialmente, como se fosse a rede elétrica
instalada numa casa. Pode-se ligar nela qualquer aparelho: uma esteira rolante
ou um computador. Do mesmo modo, um pensamento comum se for “plugado”
no comando, pode se transformar em pensamento obsedante, um pensamento
que seda o sujeito como já dissemos, para a pulsão e para o desejo.
Uma compulsão expressa motivos e idéias inconscientes, e é por essa
razão que o sujeito não compreende o que faz quando está debaixo do
mandado.
Freud diz que “é somente através dos esforços do tratamento psicana-
lítico que a compulsão se torna consciente do sentido de seu ato obsessivo e
simultaneamente dos motivos que compelem o sujeito”.
A hesitação é uma pista preciosa na escuta do analista porque revela
que, se por um lado há gozo, por outro, há um sujeito em vacilação, um sujeito
entregue ao mandado do supereu, mas que não aceita realizar o ato pacifica-
3
AMORIM, L. e SANT’ANNA, M. A. “Clonagem psíquica: o duplo na obesidade”. Papéis.
Revista do Corpo Freudiano. Rio de Janeiro, n. 8, 1997, pp. 1-9.
94 • Lia Amorim
mente, nessa posição subalterna. Ele quer e também não quer realizar o ato. A
hesitação suspende o ato, mesmo que seja por um curto espaço de tempo,
tempo em que a palavra poderá entrar e desmantelar o complexo. Nesse pon-
to, é preciso perguntar pelo lugar do sujeito no instante em que ouve a voz do
comando. Ou seja: a quem se dirige o tu do comando tu deves!
Lacan trabalhou a resposta a partir de duas frases que estão no Semi-
nário de 1955-6, especificamente, retomadas no ano seguinte: “Tu és aquele
que me seguirá” e “Tu és aquele que me seguirás”, ambas atribuídas à voz do
supereu que o sujeito pode escutar de posições diferentes. Na frase sem s, há
uma certeza de seguir e de ser aquele que seguirá sua via até o fim. O sujeito
não responde como sendo o tu a quem essa voz se dirige, mas como ele, na
terceira pessoa do singular, ele é aquele que seguirá. Sua relação não é com o
significante a seguir, mas com o mandado ao qual não pode dizer não. Ele está
aí, em posição de objeto. Na frase com s, a obrigação de seguir se dá por uma
escolha. O sujeito segue aquele que fala, porque sabe que com ele estará
seguindo o significante que quer seguir e por isso poderá deixar de seguir a
qualquer momento. Há uma confiança que supõe um vínculo mais frouxo entre
a pessoa que aparece no tu e aquele que aparece no relativo que. Não há
certeza aqui. Quem segue sente certa intimidade com aquele que será seguido:
há um sujeito que escuta a frase alojado no pronome tu. É a relação com o
significante que determina a ênfase que vai assumir para o sujeito a primeira
parte da frase tu és aquele.
Consideradas as frases separadamente e sem o relativo que, essa con-
cordância não procede, já que não posso dizer: tu me seguirá ou aquele me
seguirás. O tempo do verbo seguir, na segunda frase, tu és aquele que me
seguirás concorda com o pronome tu: tu me seguirás, e é como alguém espe-
cial, a quem o Outro se dirige, que o sujeito aceita, sentindo-se um eleito. O
sujeito assume ser esse tu e delega, outorga, ao Outro um poder. Aí não se
trata de um comando do complexo, um mandado do supereu e sim de um
mandato do supereu.
O sujeito está em sintonia com esse Outro que só sabe dizer: “Tu
deves”. Somente que essa obrigação de seguir é aí um encontro de dois que
esposam alguma coisa, é um encontro de esposos. Um dos sentidos da palavra
esposar é abraçar uma causa. Esse encontro se dá, como mostra Alain Didier-
Weil,4 quando no jazz, por exemplo, o músico, depois de todo um fraseado de
promessas em que ele envolve o ouvinte, sedutoramente, tentando de todos os
4
Weil, A. D. “A nota azul: de quatro tempos subjetivantes na música”. In: Nota azul (Freud,
Lacan e a arte). Rio de Janeiro: Contra Capa, 1997, pp. 57- 84.
Compulsão e supereu • 95
5
Essas articulações fazem parte do trabalho que Maria Amélia Martins Sant’Anna e eu temos
desenvolvido sobre a obesidade.
96 • Lia Amorim
Referências bibliográficas
*
Psicanalista, membro da Escola Letra Freudiana e mestre em Psicologia Clínica pela PUC-RJ.
Trabalha no setor clínico do NEPAD-UERJ.
98 • Ligia Bittencourt
1
Vemos aí como a idealização funciona como suporte do laço social.
O rei está nu: um dos avatares da função paterna... • 99
2
Cf. “O adolescente freudiano”. In: RIBEIRO, H. e POLLO, V. (orgs.). Adolescência. Rio de
Janeiro: Contra Capa, 1996.
3
FREDA, H. “O toxicômano: um enfermo do final do século”, na mesa-redonda “Toxicomania
e adolescência”. II Seminário Internacional sobre as Toxicomanias, nov. 1996 (mimeo).
4
LACAN, J. Le Seminaire 23: le sinthome [aula de 13 de abril de 1976].
100 • Ligia Bittencourt
especial, alguém digno de ser amado, enfim, um pai herói. No entanto, esse pai
ideal é também aquele que, apesar de onipotente, não fez o melhor que pôde e
por isso mesmo é responsabilizado pela criança por aquilo que ela não é, diga-
mos, pela sua imperfeição, pelo seu mal. Nessa perspectiva, desse pai há mui-
to que recriminar e se ressentir, pois o pai ideal se correlaciona aos ideais do
pai onipotente, tanto na vertente do amor como do ódio.
A esse propósito, reteríamos como hipótese o fato de que a narcose
tem como uma de suas funções encobrir e indicar a um só tempo certo vazio,
certo desvanecimento relativo ao pai como imagem ideal. Lacan dirá no Semi-
nário: as psicoses5 que é pela via de um conflito imaginário – de uma relação
agressiva – que se dá a realização simbólica do pai. Assim, podemos supor
também a narcose como um modo de o sujeito fazer economia face ao cami-
nho necessário para realizar o luto do pai ideal. Com efeito, para que o luto
opere é necessário que o filho reconheça o próprio ódio a respeito do pai, em
vez de voltá-lo contra si.
Se pensarmos que o toxicômano é aquele que se faz sem pai, o objeto
do trabalho analítico seria de algum modo trabalhar primeiramente o pai como
imagem,6 para que possa então advir o desligamento deste e finalmente sua
ultrapassagem,7 não nos termos de sua função, posto que isso é impossível,
mas ultrapassá-lo como homem.
Por outro lado, quando o pai é reduzido a um mero provedor ou
reprodutor biológico, sua presença tem o estatuto de uma ausência, no sentido
de que seu lugar não é de modo algum protegido sobre o plano simbólico, como
se ele estivesse daí demissionário ou não existisse. Talvez possamos nos refe-
rir a ele como um pai off8 (como adjetivo significa livre, desocupado, afastado,
desligado; como advérbio significa fora, longe, ao largo). A bem dizer, utiliza-
mos o termo pai off não nos termos de sua abolição, mas no sentido de que
haveria um descumprimento no que concerne ao contrato da paternidade sim-
5
J. LACAN. Seminário 3: as psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1982, p. 242 [1955-6].
6
Certa vez Lacan disse: “Admito que está excluído que se analise o pai real; bem melhor o
manto de Noé quando o pai é imaginário”. Ou seja, o que tem lugar na experiência analítica é
a vestimenta própria ao pai imaginário. (Cf. LACAN, J. Televisão. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1993, p. 40).
7
Essa idéia de “ultrapassar o pai” aparece em Freud nos termos do sentimento de culpa
neurótico, vinculado à satisfação de ter realizado mais do que o pai realizou. (Cf. FREUD, S.
“Um distúrbio de memória na Acrópole”. In: Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976,
v. 22 [1936]).
8
Cabe salientar o sentido diverso empregado, por exemplo, na expressão “informação em off”,
ou seja, “por debaixo dos panos, não-oficial, o que não se escreve”.
102 • Ligia Bittencourt
bólica. O pai “se libera” ou “é liberado” da função da qual deveria ser o repre-
sentante. Muitas vezes, diga-se de passagem, acompanhado por certo gozo
passivo e complacente em ser dispensado.
Hugo Freda (1996) faz uma equiparação muito apropriada do pai do
toxicômano ao pai de Leonardo da Vinci: “aquele que olha de longe, mas não
intervém”. E Antônio Benetti lembra a outra face desse pai, exercida sob o
patrocínio de um “autoritarismo extremo”.9 Na verdade, são duas faces de
uma mesma moeda do ponto de vista da degradação da função paterna.
A dimensão estruturante da paternidade simbólica10 implica a figura
do pai como guardião e representante da lei, mas ele não se confunde com
esta. A força constrangedora da lei se atém ao fato de que ela concilia o
desejo de cada um com o bem da maioria (idealmente). A lei tem isso de
excepcional: ela é “não-agressiva”. Ela protege mesmo contra as inclina-
ções agressivas individuais. Pode-se dizer ainda que, onde há agressão (onde
qualquer meio é justificável para atingir um ideal), a lei está em deformidade.
Vale dizer então que a eficácia da lei vigora pelo ditado, não pelo ditador. Em
outras palavras, podemos dizer que o pai é aquele que paira, ou seja, aquele
que mesmo na ausência está presente.11 O pai em sua função simbólica terá
então uma dimensão apaziguadora, pois vai velar para que o ato possa surgir
nos termos de um pacto, sem imposição alguma, relativizando a lei, apontan-
do seu limite.
O pai do toxicômano, em vez de ser o embaixador da lei de seu país, o
representante legal do país da simbolização, aquele da alteridade que sustenta
uma função terceira, passa a encarnar de alguma forma o papel do monarca
nu, aquele que desprovido das vestimentas fálicas está destituído da função
simbólica que lhe cabe representar, não fazendo valer a castração. Se, por um
lado, caberia à mãe conceder-lhe seu título de nobreza, por outro, caberia a ele
também reconhecer seu mandato. Afinal, o filho precisa ser adotado pelo de-
sejo, e não apenas parido pelo gozo. Aliás, o gozo compulsivo, como um gozo
não regrado pela lei, denuncia a inoperância da função paterna em sua dimen-
9
Leia-se um pai violento, sádico, cruel, arbitrário, que se identifica com a lei e se faz lei para
tudo, dando corpo ao fantasma do pai mítico conforme elaborado por FREUD em “Totem e
tabu”. In: Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1977, v. 15 [1913].
10
Em Freud remete ao pai morto, quer dizer, “o momento em que o nome é aliviado do peso de
seu suporte [...]. Ou seja, morto aqui em baixo para viver alhures” (SOLLER, C. Artigos
clínicos. Salvador: Fator, 1991).
11
Aliás, a eficácia do pai simbólico como guardião da lei faz justamente com que não seja
necessário um policial em cada esquina da cidade, para que os sinais de trânsito sejam
respeitados.
O rei está nu: um dos avatares da função paterna... • 103
12
O pai real, agente da castração, é aquele que com seu ato separador instaura um corte naquilo
que a criança é em relação ao gozo materno, introduzindo um não-saber sobre esse gozo.
13
Não obstante, cabe assinalar que o adolescente é também aquele que perdeu o estatuto de falo
imaginário que outrora o sustentava no seio familiar e ainda não encontrou outra pertinência
fálica.
14
RASSIAL, Jean-Jacques. L’adolescent et le psychanalyste. Paris: Éditions Payot e Rivages,
1996.
15
Da mesma forma, podemos dizer que a recusa desta validação, na perversão, pode ser inter-
pretada como um não-reconhecimento da autoridade do pai simbólico, exceto para ser cons-
tantemente contestado.
16
Cf. BITTENCOURT, L. “Algumas considerações sobre a neurose e a psicose nas toxicoma-
nias”. In: ACSELRAD, G. e INEM, C. (orgs.). Drogas: uma visão contemporânea. Rio de
Janeiro: Imago, 1993.
104 • Ligia Bittencourt
Por outro lado, sabemos que o que ancora o Outro, ou seja, o que
provoca a redução do campo do Outro materno é o Nome-do-Pai, por meio da
operação da metáfora paterna. No entanto, a função paterna só é operatória
sob a condição de que seja investida da indumentária fálica, o que não aconte-
ce com o monarca nu.
A freqüência com que o consumo de drogas é acompanhado de insis-
tentes e ininterruptos roubos às famílias talvez ilustre bem esse estado de ca-
rência em relação ao significante, que viria interditar o gozo e legalizar o dese-
jo. Roubar é tomar posse daquilo que falta ao sujeito, cujo acento se apresenta
mais do lado do feito em questão do que a título de enriquecimento. Ao mesmo
tempo, ao pensarmos a droga como instrumento de transgressão é evidente
sua função de tornar presente a lei e, portanto, restituir a figura do pai, ali onde
este não funcionou inteiramente. É justamente no que não vai bem que a me-
táfora paterna se denuncia como deficiente em nos dar condições para com-
pletar a separação do universo materno.
Podemos ainda ressaltar que aquilo que fica suspenso na transmissão
de pai para filho – a castração,17 como dirá Lacan – implica também uma
dificuldade de inscrição do desejo no campo do Outro. Ora, a mediação pater-
na é o que engendra no sujeito um corte no gozo do ser e, portanto, é o esteio
do exercício do desejo. Com efeito, uma das manifestações clínicas mais im-
portantes no campo das toxicomanias diz respeito à prevalência do estado de
depressão,18 um dos nomes da inibição, que implica justamente um não
engajamento do sujeito a seu desejo. A presença da inércia, essa espécie de
negativa à luta, é antitética ao desejo e deixa o sujeito numa deriva subjetiva,
sem ponto de ancoragem no campo do Outro. A toxicomania, nesse sentido, é
uma má maneira de o sujeito encontrar um modo de inscrição no Outro social
e fazer dessa prática um nome para si.
Dada a freqüência com que depressão e toxicomania caminham juntas,
perguntaria em que medida poderíamos situar essa deriva do desejo como tributá-
ria de uma consistência deficitária da função paterna a qual vimos assinalando?
17
Lacan dirá no Seminário 17: o avesso da psicanálise (1967-70): “[...] se a castração é o que
atinge o filho, não será também o que o faz aceder pela via justa ao que corresponde a função
do pai? [...] E não é isso mostrar que é de pai para filho que a castração se transmite?”.
18
Já situei, em outro lugar, o ato toxicomaníaco ao lado da inibição, enquanto uma prática de
escape que funciona para o sujeito como uma solução para a angústia, sem ser pela via da
formação do sintoma. Ambas são formas de não entrar em conflito com isso e poupam o
sujeito de lidar com sua própria divisão e a determinação inconsciente. (Cf. “A paixão triste
ou a narcose do desejo: algumas relações entre toxicomania e depressão”. In: BITTENCOURT,
L. (org.). A vocação para o êxtase: uma antologia sobre o homem e suas drogas. Rio de
Janeiro: Imago, 1994.).
O rei está nu: um dos avatares da função paterna... • 105
Um mestre-todo
19
O pentecostalismo se desenvolveu fora do protestantismo tradicional, surgindo nos Estados
Unidos no início do século XX. Dentre as inúmeras denominações pentecostais no Brasil,
estão a Assembléia de Deus e a Igreja Universal do Reino de Deus.
20
FREUD, S. “Moisés e o monoteísmo”. In: Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1980, v.
23 [1939].
21
Para os católicos há destaque para a mulher ideal que se chama Virgem Maria. O fundamento
da Igreja Católica é mariano – há uma deificação de Maria, cuja importância vemos nos
slogans “Quem não tem Mãe não chega ao Filho”, “Pede à Mãe que o Filho faz”. Enquanto
para os evangélicos, “Maria cheia de graça” foi apenas um instrumento de Deus para trazer
Cristo.
22
Desenvolvi de forma mais detalhada essa questão no artigo “Escravos de Deus: algumas
considerações sobre toxicomania e religião evangélica”. In: BAPTISTA, M. et al. (orgs.).
Drogas e pós-modernidade: faces de um tema proscrito. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2003.
106 • Ligia Bittencourt
23
Na verdade, não estamos diante de um mimetismo, de uma identificação que se faz só pela
imagem, mas também está em jogo a identificação a um traço que vai ordenar qualquer imagem
O rei está nu: um dos avatares da função paterna... • 107
que seja posta em jogo. Freud já sublinhava a identificação nos grupos, como a identificação
ao traço único que se dá pela via do ideal do eu, um ideal a ser seguido. A questão que se coloca
entre os evangélicos é que essa identificação é de tal ordem que tampona qualquer hiância,
qualquer possibilidade de uma singularidade desejante.
108 • Ligia Bittencourt
é somente num “para além do pai”, ou seja, num além do movimento identificador
ao pai que o sujeito poderá inscrever seu desejo, sua singularidade.
Qual será então a alternativa nos dias de hoje em relação à figura do
pai em nossa sociedade para além destes dois modos de apresentação: pai
degradado, por exemplo, do toxicômano, ou o pai na religião evangélica como
mestre onipotente, que acredita na potência do saber totalizado? Talvez possa-
mos pensar na importância para a contemporaneidade da figura de um mestre
sim, mas que opere levando em conta sua castração simbólica, a saber, um
mestre não-todo, um mestre que não pode tudo. Trata-se possivelmente de um
jogo muito particular de semblantes, do faz de conta do mestre-todo, porém
sem encarná-lo.
Como o sujeito não poderá viver sem um pai, a questão, sempre atual,
não se situa se Deus existe ou se está morto, mas sim por que há a necessida-
de Dele. Isto é o que Dostoiewski escreve tão precisamente em Os irmãos
Karamasov: “certamente foi o homem que inventou Deus e o que surpreende
não é que Deus exista em realidade, mas que essa idéia da necessidade de
Deus veio ao espírito de um animal tão feroz e maligno como o homem”.
Referências bibliográficas
Entendo, pelo modo que me foi realizado este convite, que, num semi-
nário sobre toxicomanias, numa mesa sobre a clínica das compulsões, trata-se
aí de pensar aquilo que destas últimas interessa ou implica ao corpo. Também
os modos específicos em que certas afecções – aderência aos tóxicos, anorexias,
bulimias, entre outras – colocam esse corpo em causa.
Pensar o corpo em psicanálise é falar do encontro da linguagem com o
vivente. Encontro/desencontro que produz uma torção da carne em corpo,
constituindo um corpo erógeno que, sabemos, será também corpo falante e
legível, mas também passível de conter silêncios e pontos de mudez. Pensar o
corpo em psicanálise é perscrutar os avatares da amarração do imaginário –
especular ao real e ao simbólico, vale dizer essa articulação do corpo à vida e
ao Outro, articulação que implica o desejo do Outro, a pulsão, o fantasma e a
função simbólica do Nome-do-Pai. Vale dizer as particularidades e os aciden-
tes na constituição do sujeito implicados:
• no modo em que é veiculizado o desejo do Outro por meio de sua
demanda, apoiada nas necessidades do infans, ou seja, movimento
de esburaqueamento de uma superfície constituindo os orifícios
pulsionais;
• na organização desses furos e suas bordas – definidas pelas moda-
lidades dessa demanda e o assujeitamento a ela
(S D);
• na identificação do sujeito com a imagem de seu corpo, no modo
em que foi significado pelo Outro, imagem a qual identifica o seu
eu;
• na regulação que o Nome-do-Pai e a operação da metáfora pater-
na farão sobre essas articulações.
*
Psicanalista e membro fundador da Biblioteca Freudiana de Curitiba – Centro de Trabalho em
Psicanálise (1980).
112 • Norberto Carlos Irusta
esvaziada de desejo (an-orex) denuncia essa falta que não houve, naquele
seio locupletado demais que o afogou, empanturrando-a com o bem de seu
alimento.
Essa metáfora não esgota as alternativas. Nossa contemporaneidade
apresenta inúmeras condições para que os “bons cuidados” substituam a falta
de desejo ou a falta de atribuição fálica ao bebê na fase oral por parte de
algumas mães, questões que temos tratado em outros trabalhos. O todo-saber
atual da medicina e da puericultura: uma prateleira cheia de bons nutrientes e
eficientes enfermeiras para cuidar do bebê nos primeiros meses (“porque eu
me angustio muito”, como me manifestava uma mãe) podem ser a boa via
para rebater a necessidade sobre o desejo.
Assim, no lugar dos alimentos e dos cuidados entrarem numa dialética
de trocas simbólicas (investimentos libidinais maternos em troca de um corpo/
falo), vale dizer em seu estatuto enigmático e significante, a comida é introduzida
ao modo de um bem ou como um saber/signo materno que “chapa” um objeto
a uma necessidade, uma coisa a um corpo, tomado em seu estatuto biológico,
essa coisa insuportável à qual o anoréxico fechará a boca. Essas “gororobas”,
“porcarias”, “merdas” (no próprio dizer deles) com que se empanturram os
bulímicos previamente ao vômito, que recusam e se liberam dessa coisa mor-
tífera e mortificante;1 ou esse corpo a ser devastado, perfurado e tornado
irreconhecível pelo Outro de certos toxicômanos.
Se orientado para o Outro o acting-out é mostração, o é desse resto,
desse nada de ser que poderia ter sido dado ao Outro, se este, em vez da
certeza de seu bem, tivesse apresentado o intervalo de sua hesitação e o furo
de seu desejo. Entre o bem que se oferta e o falo que se demanda abre-se
caminho às vicissitudes do amor, já que, como Lacan nos adverte, amar é dar
ao outro o que não se tem, a falta que diz do valor do outro.
1
Observações clínicas: Não pareceria se tratar de uma gulodice na bulimia, na qual o prazer
pela comida iria ao excesso. Geralmente se empanturram com “porcarias”. Uma paciente
de condição econômica abastada produzia uma sopa de restos de comida dos filhos e
músculo cozido, bem pouco apetitosa, que denominava de “gororoba”, e como “uma por-
ca” – segundo seu dizer –, sentada no chão e comendo com as mãos, se empanturrava ao
limite do fisicamente insuportável. Vomitava e após devinha novamente a empresária “chi-
que” e elegante com que passeava em sua vida. Uma paciente anoréxica mostrando-me uma
montagem fotográfica que teria feito de um tio amado, recentemente morto, na qual ele
aparecia em transparência junto à família dizia: “eu quero desaparecer, não morrer, desapa-
recer como corpo... ficar no espírito”.
116 • Norberto Carlos Irusta
Referências bibliográficas
É a toxicomania
pós-moderna?
com sua droga? Acreditamos, como bem diz Freud, que “a intenção de que o
homem seja feliz não se acha incluída no plano da criação” (1930) e aposta-
mos a partir daí que o sujeito que chega a uma análise e pretende atravessá-la
se deparará com a incompletude, própria do sujeito desejante, e
concomitantemente com a impossibilidade de encontrar a satisfação plena por
meio de qualquer objeto. A psicanálise convidará o sujeito que se diz toxicô-
mano a sair desse lugar de produto da droga para alcançar uma posição subje-
tiva, na qual ele seja responsável por sua droga e produtor de sua adicção.
Somente com esta mudança é possível questionar o lugar do sujeito em sua
relação com a droga e fazer a passagem do lugar de objeto ao lugar de sujeito
desejante. Para isso, será necessária a construção de algo da ordem de um
particular que aflige e singulariza o sujeito, como seu sintoma, já que a toxico-
mania não faz enigma para os sujeitos toxicômanos, ela é uma solução que
recusa as formações do inconsciente como estratégia para evitar o confronto
com a castração e a divisão subjetiva. Caberia então à psicanálise converter
esta solução em sintoma.
Conclusão
Referências bibliográficas
*
Psiquiatra, psicanalista e professor convidado da Unidade Docente Assistencial de Psiquia-
tria, FCM-UERJ.
130 • Isidoro Eduardo Americano do Brasil
mudem da noite para o dia, onde lhe seja permitido agir razoavelmente e espe-
rar pelo melhor (a revolução está descartada, a subversão abandonada).
Os homens de nosso tempo sofrem de uma crônica falta de recursos
com os quais possam construir uma identidade verdadeiramente sólida e dura-
doura, estão sempre à deriva (ponto dominante de seu transtorno: a “depres-
são”, tema que desenvolveremos em seguida). A sociedade depressiva inscri-
ta no movimento de uma globalização econômica que transforma os homens
em objetos não quer mais ouvir falar de culpa, de sentido íntimo, de consciên-
cia, de desejo e de inconsciente. Quanto mais ela se encerra na lógica narcísica,
mais foge da idéia de subjetividade. Só se interessa pelo indivíduo, portanto,
para contabilizar seus sucessos, e só se interessa pelo sujeito sofredor para
encará-lo como vítima. E, se procura incessantemente codificar o déficit, me-
dir a deficiência ou quantificar o trauma, é para nunca mais se interrogar sobre
a origem deles. O homem doente da sociedade depressiva é literalmente “pos-
suído” por um sistema biopolítico que rege seu pensamento à maneira de um
grande feiticeiro. Não apenas ele não é responsável por coisa alguma em sua
vida, como também já não tem o direito de imaginar que sua morte possa ser
um ato de sua consciência ou de seu inconsciente. Jonh Mann, em janeiro de
1998, publica em Nature medicine que o suicídio residiria não numa decisão
subjetiva, numa passagem ao ato ou dependente de um contexto histórico, mas
numa produção anormal de serotonina!
A psiquiatria pós-moderna
As convivências do pós-moderno
As farsas
Só no próprio momento em que acredito que o possuo, eis que, por uma
inversão curiosa, ele me possui... Se um objeto que seguro nas mãos é sólido,
posso soltá-lo quando quiser; sua inércia simboliza, para mim, meu poder
total... Mas aqui está o viscoso invertendo os termos: (meu eu) é subitamente
comprometido, abro as mãos, quero desfazer-me do viscoso e ele se cola em
mim, me puxa, me chupa... Já não sou o senhor... O visgo é como um líquido
visto num pesadelo, em que todas as suas propriedades são animadas por
uma espécie de vida, e volta-se contra mim... Tocar o viscoso é se arriscar a
ser dissolvido na viscosidade.
O trabalho
pel atribuído aos pobres na nova versão da “classe baixa” ou da “classe além
das classes”. Ela não é mais o “exército de reserva da mão-de-obra”, mas a
“população redundante”. Ela serve para o fornecimento de peças sobressalen-
tes para consertar corpos humanos.
Policiar é obliquamente incriminar os “pobres globais” – áreas do mundo
afligidas pela “pobreza endêmica” –, é uma necessária concomitância da cres-
cente desigualdade que confronta a parte rica do mundo com uma tarefa não
menos urgente, porém muito mais complexa. As guerras civis (ou simplesmen-
te de bandos) infindáveis, cada vez mais devastadoras e cada vez menos ide-
ologicamente motivadas (ou sob qualquer outro aspecto “orientadas por uma
causa” no que diz respeito a isso) são, do ponto de vista dos países ricos,
formas inteiramente eficazes, baratas e com freqüência lucrativas de policiar
e “pacificar” os pobres globais. Transmitidas em milhões de telas de televisão
para que todos assistam, elas fornecem um testemunho vívido da selvageria
dos pobres e do caráter auto-infligido de sua miséria, bem como argumentos
convincentes para o despropósito da ajuda, quanto mais de qualquer substanci-
al redistribuição de riqueza.
Legal e ilegal
experimentais presentes nos outros dois ramos da ciência. Gilles Gaston Granger
(1998) evidencia três modalidades do irracional que são próprias da história
das ciências.
A primeira aparece quando um cientista tem de se confrontar com um
obstáculo constituído por um conjunto de doutrinas, que regem o pensamento
de uma época e que se tornaram dogmáticas, coercitivas ou estéreis. Para ele,
nesse momento, trata-se de inovar e contestar um modelo dominante, convo-
cando temas insólitos ou submetendo ao olhar da ciência objetos que são es-
clarecidos de outra maneira. Os exemplos mais marcantes destes temas insó-
litos são o inconsciente, a loucura, o feminino, o sagrado (tudo o que Bataille
chama de heterogêneo ou “a parte maldita”). O recurso ao irracional permite
então ressuscitar uma imagem da razão e partir novamente para a conquista
de outra racionalidade.
A segunda modalidade aparece quando um pensamento se fixa num
dogma ou num racionalismo muito restritivo. Então é preciso avançar contra
ele mesmo, no intuito de atingir resultados mais convincentes. Longe de rejei-
tar o racional, ela prolonga o ato criador que lhe deu origem, insuflando nele
um vigor novo.
A terceira concerne à adoção por parte dos cientistas ou criadores de
um modo de pensar deliberadamente estranho à racionalidade. Assistimos en-
tão a uma adesão a ciências falsas e a atitudes de rejeição sistemática do
saber dominante. Daí a valorização da magia e do religioso, associada a uma
crença no além ou no poder de um ego não controlado.
Essas três modalidades do irracional perpassam todas as ciências e,
portanto, estão presentes na história do pensamento atual, em que a meu ver
vigora a terceira forma do irracional.
Referências bibliográficas
*
Este trabalho foi extraído de minha tese de doutorado em Psicopatologia Fundamental e
Psicanálise, intitulada La passion amoureuse toxique: une approche psychanalytique à partir
de la sémiologie et du narcissisme chez Freud, defendida na Universidade Paris VII – Denis
Diderot, em 1996.
**
Psicólogo, psicanalista, professor do Departamento de Psicologia da UFPR e diretor do
Centro de Estudos das Toxicomanias Dr. Claude Olievenstein, UFPR.
148 • Victor Eduardo Silva Bento
a prescrições médicas, enquanto que a segunda se referia aos casos que pro-
curavam voluntariamente a droga.1
Nessa história da definição do termo toxicomania reportada por Delrieu
(1988), vê-se que ela começa com a definição da toxicomania como paixão e
culmina na definição de farmaco-dependência pela Organização Mundial de
Saúde. Este último termo valoriza sobretudo o comportamento em vez da ex-
periência subjetiva pressuposta na toxicomania passional. Ele foi definido pela
OMS em 1969 (p. 6) e de novo em 1974 (p. 15) como segue:
dependência com relação ao médico hipnotizador que não podem ser a finali-
dade do tratamento”. E mais adiante Freud (1905a, p. 22) escreve: “É também
nestes casos que existe a tendência a se instalar no doente uma dependência
em relação ao médico e uma espécie de adicção a hipnose (Sucht nach der
Hypnose)”. E na mesma obra Freud (1905a, pp. 16-7) compara a relação
hipnotizador-hipnotizado com as “relações amorosas caracterizadas por um
total abandono de si”.
Após Freud, pode-se encontrar recentemente neste domínio da
psicanálise da paixão associações entre esta e a toxicomania. Por exemplo,
pode-se citar a obra de Joyce McDougall (1978), onde se encontra uma con-
cepção de “sexualidade adictiva”. Tal concepção, assim como as pesquisas
sobre a relação psico-soma da mesma autora, são referidas por Aulagnier
(1979, p. 174) como pontos de confirmação de suas próprias hipóteses. Esta
segunda autora distingue três protótipos de relações passionais segundo a na-
tureza do objeto: a droga, o jogo, ou o Je2 do outro (paixão amorosa). Nestes
três casos, “o objeto é para o Je fonte exclusiva de todo prazer e se encontra
deslocado para o registro das necessidades”.
Mais tarde, com Fédida (1986, p. 177), pode-se encontrar uma
associação entre a intoxicação e o estado amoroso. Mais precisamente este
autor se interroga se “o estado amoroso não produziria o mesmo efeito de um
antidepressivo ou de um ansiolítico, e se a análise não acarretaria o risco de
abandonar os benefícios deste estado sem garantir a cura das angústias”. Mais
recentemente, ainda neste mesmo domínio da psicanálise da paixão, com Paul-
Laurent Assoun (1992, pp. 13-4) aparece esta mesma associação entre paixão
e toxicomania. Ele sublinha o selo da paixão pela declaração: “você me falta”.
Interrogando-se sobre o que falta quando o outro falta, ele afirma:
2
O termo francês Je se encontra traduzido na edição brasileira da obra em questão pelo termo
português “Eu”. A esse respeito, ver: AULAGNIER, P. Os destinos do prazer. Rio de
Janeiro: Imago, 1985, p. 150.
150 • Victor Eduardo Silva Bento
trução subjetiva. Nesse caso, então só existiria a libido narcísica. Sobre esta
questão Aulagnier (1979, pp. 128-9) escreve:
mento quando o outro se torna presente, será efetivamente sua presença, seu
discurso, seus gestos que serão fonte de prazer ou de decepção.
Com efeito, desde que ela existe, Psique fala e só se desdobra em amor. Rele-
remos Platão ainda uma vez, em O banquete (385 antes de nossa era) e no
156 • Victor Eduardo Silva Bento
foi dito, como estado anobjetal ele antecede o advento do objeto sexual. Con-
tudo, a autora faz referência à identificação com um “objeto”. Trata-se de um
objeto metafórico: o falo, uma matriz simbólica, anterior ao Édipo, que abriga o
vazio. Segundo a autora, a partir desta identificação o amor assumiria seu
caráter divino de perfeição e unicidade. Eros é descrito como essencialmente
desejo pelo que falta. Por um lado, isso remete a uma espécie de aspiração à
completude e à ilusão de poder preencher o vazio. Por outro lado, a dimensão
do poder é associada aos sentidos de escravização, dominação e possessão.
Pode-se questionar que o quadro anteriormente descrito não seria comparável
ao de uma toxicomania. De qualquer maneira, tal questão não está presente
em Kristeva (1983).
A figura mítica reveladora da completude é indicada por Kristeva como
sendo o andrógino de “Aristophane”. Ela insiste que não se trata de
bissexualidade, uma vez que andrógino é unissexo. Ela igualmente enfatiza o
andrógino como símbolo de uma espécie de fonte da incapacidade de amar.
Como já foi dito, não se trata de ocupar o lugar de um objeto sexual, mas sim
de ser o falo materno. Kristeva (1983, p. 91) escreve:
dificações do próprio Freud, pode-se dizer que de fato esta questão da androginia
em Kristeva está de acordo com o ponto de vista freudiano.
Vê-se também este ponto de vista freudiano em Kristeva (1983) com
relação às questões da identificação primária anobjetal, da homossexualidade
da paixão e da libido macho. Sobre esta última, Kristeva (1983, p. 96) chega
mesmo a citar Freud (1905b) nessa obra no momento estudada. Ela escreve:
“Eros seria próprio do homem, do macho? Ao menos é o que pensa Freud
quando ele precisa que só existe uma única libido, a masculina”.
Pode-se questionar se de fato o verdadeiro desacordo não se situa
entre Aulagnier (1979) e Kristeva (1983), a propósito da noção de “objeto da
paixão amorosa”. Com a primeira autora se encontra uma reflexão sobre o
objeto da necessidade, enquanto com a segunda o questionamento gira em
torno de um “objeto” de identificação metafórica: o falo, um objeto entre as-
pas, uma vez que se trata de um narcisismo anobjetal. Por outro lado, estas
duas autoras parecem estar de acordo no que diz respeito à concepção
metapsicológica da paixão amorosa como sendo principalmente caracterizada
por uma economia principalmente narcísica.
Com relação à questão da paixão amorosa “tóxica”, outra observação
comparativa entre Aulagnier (1979) e Kristeva (1983) consiste em as diferen-
ciar pelo fato de a primeira enunciar diretamente essa associação entre a pai-
xão amorosa e a toxicomania, enquanto com a segunda isso não ocorre.
O menino reprime seu amor pela mãe; coloca-se em seu lugar, identificando-
se com ela, e toma a si próprio como modelo a semelhança do qual ele
escolherá seus novos objetos de amor. Desse modo ele transformou-se
num homossexual. O que de fato aconteceu foi um retorno ao auto-erotis-
mo, pois os meninos que ele doravante ama são apenas pessoas
substitutivas e lembranças de si próprio durante a infância, que ele ama
como sua mãe o amava quando ele era criança. Nós diremos que ele busca
seus objetos de amor segundo o modelo do narcisismo, pois Narciso, se-
gundo a lenda grega, era o jovem que preferia sua própria imagem a qual-
quer outra, e foi assim transformado na bela flor do mesmo nome.
O narcisismo em Freud e a paixão “tóxica” a partir de Freud • 159
Nós desvendamos então o segredo deste casal infernal: na medida em que ele
alimenta seu objeto com uma transgressão e na medida em que ele consome
certa desnaturalização do simbólico – a paixão se situando de alguma maneira
além do sexual –, este casal se coloca em relação a certa instância do feminino.
[...] Nós veríamos a emanação da deusa-mãe, ativa até o seio do casal como
divindade tutelar e incarnando a lei apaixonada.
bros do casal obtém (imaginariamente) aquilo que se supõe detido pelo outro
(o gozo fálico).
tendo matado “Tilbert”, ele toma conhecimento que sua bem amada “lamenta
seu sobrenome”: “Como se este nome, partido de algum canhão assassino à
queima-roupa, o tivesse transpassado, da mesma maneira que a mão maldita
que matou seu parente. Oh, diga-me, bom monge, diga-me em qual odiosa
parte de meu corpo se alojou meu sobrenome? Diga-me, que eu saqueio esta
execrável morada” (ato III, sc. III). É então enquanto Montecchio que Romeu
tornou-se assassino.
Eis aqui com Ingold uma das questões desta pesquisa: Qual é o corpo
que falta e que ao mesmo tempo é criado pela intoxicação? E ainda pode-se
acrescentar: esse corpo que falta e que é criado pela paixão amorosa “tóxica”
é um corpo andrógino? A hipótese de Ingold anteriormente destacada foi con-
cebida no contexto da clínica da toxicomania e especificamente a partir da
observação e análise da síndrome de abstinência do toxicômano. Antes de
164 • Victor Eduardo Silva Bento
3
Esta expressão “paixão fulminante” foi traduzida da expressão francesa “coup de foudre”
que, segundo o dicionário de língua francesa Le petit Robert, designa “uma manifestação
súbita de amor desde o primeiro encontro”. No senso comum, entende-se “coup de foudre”
como sinônimo de “passion amoureuse”. E na citação em questão se percebe claramente que
Ingold empregou os dois termos como sinônimos.
O narcisismo em Freud e a paixão “tóxica” a partir de Freud • 165
membro do casal detém sobre o outro este poder de morte, assim como se
submete ao risco da morte. Como se todos dois ocupassem alternativamente o
papel de vítima e de assassino. A segunda situação descrita por Aulagnier é
chamada “desejo de auto-alienação”. Designa o fenômeno do Je que se recu-
sa a desidealizar um outro. O exemplo dado é a relação passional, descrita
como não-idêntica à relação de alienação, mas respondendo a uma mesma
economia psíquica.
A paranóia e a paixão amorosa, ainda que dissociadas a propósito do
que Aulagnier (1979) chama de “duas situações distintas de alienação”, são
descritas como possuindo um ponto principal comum: uma economia psíquica
essencialmente narcísica. No entanto, ao contrário de dissociação, na história
do mito de Narciso pode-se encontrar na verdade uma integração entre a
paixão amorosa e uma situação social de tipo paranóico. O que é narrado por
Ovídeo em Metamorfoses é a história de uma paixão amorosa, a de Narciso
por si mesmo, que ao mesmo tempo conduz à morte. E essa vicissitude é a
conseqüência da vingança das mulheres que Narciso houvera desprezado em
nome de si mesmo. Como conta o mito, “estas meninas, desprezadas, pediram
vingança aos céus. ‘Némésis’ as escutou e fez com que, num dia de grande
calor, após a caça, Narciso se debruçasse numa fonte a fim de matar sua sede.
Lá se viu belo, apaixonando-se por sua imagem. Lá permaneceu contemplativo,
insensível ao mundo, deixando-se assim morrer” (Grimal, 1991, p. 308).
Então, a partir das contribuições de Aulagnier (1979), em vez de uma
dissociação entre o “desejo de auto-alienação” e o “sistema social que ameaça
de morte todos os pensamentos de oposição”, não se poderia aceitar a existên-
cia de uma integração dessas duas situações? Isto é, não será possível admitir
efetivamente a existência de um componente paranóico da paixão amorosa
“tóxica”? O fenômeno dos crimes passionais, por exemplo, não seriam eles
conseqüência direta justamente deste componente paranóico da paixão amo-
rosa “tóxica”? Parece que tais crimes seguem perfeitamente o modelo do mito
de Narciso: uma separação objetal, uma diferenciação mortal com relação às
expectativas ideais, narcísicas, seguidas por um assassinato vingativo. Como
Narciso, aquele que foge do parceiro apaixonado é perseguido pelo ódio do
outro. Será que o componente paranóico da paixão amorosa “tóxica” não seria
uma defesa contra a homossexualidade inerente a essa paixão?
Não será possível supor que o ódio está presente em todo fenômeno
passional, ainda que de maneira escondida? Como se ele aparecesse de ma-
neira visível apenas nos momentos de separação objetal? Neste caso, será que
este ódio indissociável da paixão amorosa não poderia ser pensado como con-
seqüência da lei passional que interdiz todos os pensamentos de oposição, gra-
170 • Victor Eduardo Silva Bento
invasão. A admiração dos outros por si é uma estratégia do ódio radical cuja
obra não é destruir, mas cercar o isolamento na impiedosa lógica do amor
narcísico. De natureza toxicomaníaca este amor é uma paixão da dissolução e
o vazio aspira desta à imagem última.
Referências bibliográficas
*
Médica psiquiatra, doutora em Psiquiatria pela FMUSP, pós-doutoramento pelo Addiction
Centre – Universidade de Calgary, Canadá.
176 • Monica Levit Zilberman
Álcool
Cocaína
Conclusões
Referências bibliográficas
*
Assistente social do NEPAD-UERJ e mestre em Saúde Coletiva, pelo Instituto de Medicina
Social-UERJ.
1
Para uma apresentação detalhada dos relatos e de nossas conclusões, ver Palatnik, 1997
e 2002.
188 • Elizabeth S. Palatnik
este seja um tema controverso. A mulher que decide abortar então estaria
decidindo pela morte do filho. Deste modo, seria cometido assassinato con-
tra outra pessoa não muito ou claramente diferenciada da mãe que o rejeita.
Assim, a morte concreta ou figurada faz parte destas temáticas, ao refletir-
mos sobre elas, ao abordá-las intelectualmente. Mas também faz parte das
vivências – e então da dor e do sofrimento – destas mulheres (as mães dos
toxicômanos), mesmo que seja só no relativo à sua possibilidade: esse seu
não-desejo ou ambivalência – apresentados anteriormente – do modo como
são social e culturalmente considerados propiciam que elas se sintam culpa-
das por ter querido “matar” esses filhos, o que eles parecem cotidianamente
lembrar-lhes, a cada ingestão de drogas.
A ilegalidade de ambas as práticas é um aspecto importante de consi-
derar ao tratar da aproximação entre as temáticas anteriormente apresenta-
das. Será em torno desta noção que desenvolveremos este artigo, onde preten-
demos entrelaçar – mesmo que de modo incipiente – vivências subjetivas,
conhecidas a partir dos relatos da clientela e compreendidas numa perspectiva
psicodinâmica, com alguns aspectos socioculturais que as atingem ou as influ-
enciam. A legitimidade dos sentimentos e a dignidade do sujeito sofredor nos
interessam particularmente, na medida em que é em torno disto que se dá
nosso trabalho clínico, e assim nos perguntamos como se vinculam estes dois
aspectos com a questão da legalidade. A seguir, apresentamos algumas consi-
derações a este respeito.
Um pouco de história
1
É interessante observar que os avanços científicos, ainda no século XX, foram recursos para
aprimorar as explicações a respeito da inferioridade da mulher com relação ao homem (cére-
bro de menor tamanho, entre outros). A este respeito, ver Nunes, S. A., 1991.
192 • Elizabeth S. Palatnik
Um olhar dinâmico
2
Em Palatnik, 2002, este tema é revisto: a legalização do aborto não está “necessariamente”
relacionada com a legitimidade da prática.
A (improvável?) vinculação entre aborto e dependência... • 193
lactente triste e doentio até a criança incapaz de linguagem motora, [...] ver-
bal, passando pelas crianças angustiadas [...] que se tornam, na idade dita da
razão, e depois na puberdade, delinqüentes” (idem). É importante ressaltar e
considerar que, ao falar de como se comportam estas crianças, isto nos remete
aos relatos de nossa clientela a respeito da infância de seus filhos ou às descri-
ções encontradas na bibliografia sobre a toxicomania que abordam esse perío-
do do desenvolvimento do sujeito.
Considera que os bebês têm capacidade de compreender o que se lhes
diz e têm direito à verdade; para eles tudo o que se passa a seu redor é lingua-
gem significativa. Por isso, é fundamental para a autora que a comunicação
com a criança, mesmo ainda bebê, se dê com o que ela chama de palavras
verdadeiras, já que é a linguagem que estabelece o elo entre os seres humanos,
essencialmente seres de linguagem. Nesse sentido, os adultos, pai e mãe da
criança, têm de ser verdadeiros ao falar do que sentem com relação a seus
bebês. Isso porque apesar de a comunicação com a criança poder dar-se pela
linguagem não-verbal, para o adulto, “as palavras são aquelas que nos expri-
mem a nós mesmos, de verdade” (Dolto, 1999). É nesse sentido que a lingua-
gem verbal “facilita” a comunicação para o próprio adulto: a palavra verdadei-
ra comunicará suas emoções e sentimentos genuínos. A comunicação
interpsíquica produz “efeitos, tenha-se consciência disso ou não, cada vez mais
cedo, já na vida fetal, mas principalmente depois do nascimento, entre o bebê e
seu meio, genitores e irmãos” (Dolto, 1999).
Ainda para essa autora, é pela palavra fiel à verdade, por mais desa-
gradável ou dolorosa que possa se tornar para quem a ouve e até mesmo a
quem a expressa, que o sintoma pode ser evitado, prevenido. É significativo
que, para Dolto, não somente o bebê tem direito à verdade, mas também os
adultos, e nesse sentido eles têm de poder expressar seus desejos, mesmo que
seja um desejo de não tornar-se pai ou mãe.
Finalmente
3
Será por isso que os abortos não se concretizaram, no caso de nossa clientela? Embora não
seja tema deste artigo investigar o que teria determinado ou interferido no fato de essa
tentativa de aborto não ter se concretizado, nos colocamos esta questão, pretendendo conti-
nuar a pesquisa no sentido de compreendê-la.
196 • Elizabeth S. Palatnik
como a mãe deve “curar” o filho, mas que contrariamente considera essa
mulher como demandante de ajuda para si mesma,4 o aparecimento do sinto-
ma drogadictivo, abre – paradoxalmente – a possibilidade de que segredos
tão bem guardados sejam explicitados. É assim que sabemos e ouvimos so-
bre culpa e vergonha, por terem tido desejos ou práticas que, ao não serem
legitimadas, tornam também ilegítimos seus sentimentos. Consideram-se e
são consideradas pela sociedade indignas de sentir o que sentem: indignas
por sentir que desejaram a “morte” do filho, ou porque “criaram” um filho
desajustado, toxicômano. É curioso observar que, muito mais do que lembra-
mos cotidianamente, nossos sentimentos e atos são (ou podem estar sendo)
moldados ou até determinados pelo direito ou pela expectativa social, e nes-
se sentido parece-nos fundamental levar isto em conta tanto no trabalho
clínico (na escuta da dor) quanto nas discussões a respeito do status legal da
toxicomania e do aborto.
Referências bibliográficas
4
Sobre a abordagem junto a esta clientela, ver Palatnik, 1993.
A (improvável?) vinculação entre aborto e dependência... • 197
*
Programa de Atenção à Mulher Dependente Química – ambulatório associado ao Grupo
Interdisciplinar de Estudos do Álcool e Drogas e Ambulatório de Bulimia e Transtornos
Alimentares – do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina
da Universidade de São Paulo (Promud – Grea/Ambulim – Ipq – HC-FMUSP).
200 • Silvia Brasiliano
cas (Blume, 1990; Davis, 1994; Swift et al., 1996; Hodgins et al., 1997; Stein e
Cyr, 1997).
Na busca de atenção a estas necessidades, a psicoterapia de grupo
tem sido sugerida como uma intervenção fundamental. Embora possa ser dito
que isto não diferencia homens e mulheres, pois a abordagem grupal é a moda-
lidade psicoterapêutica mais largamente utilizada no tratamento das adições, o
que torna a característica é a defesa dos grupos especificamente de mulheres
e não mistos quanto ao sexo (Wallace, 1994; Roth e James, 1994; Kauffman et
al., 1995; Brasiliano, 1997a; Hodgins et al., 1997).
A recomendação do grupo específico está baseada principalmente
na possibilidade de participação integral da mulher. Em princípio, os pesqui-
sadores referem que este tipo de grupo favorece a intimidade, o calor e a
livre troca afetiva. Este clima estimula o desenvolvimento de variados com-
portamentos e habilidades, elementos fundamentais na recuperação da mu-
lher dependente química, que apresenta como uma de suas dificuldades cen-
trais o relacionamento interpessoal. Além disso, apontam que o grupo misto
tende a restringir o estilo de relação da mulher, principalmente quando são
dominados pela presença masculina, o que é comum em serviços de droga-
dependência. Quando o número de homens excede o de mulheres, as expec-
tativas dos primeiros restringem os comportamentos, as oportunidades e a
influência da mulher. Ademais, como a linguagem, a forma de comunicação
e as normas dos homens tendem a predominar, os problemas das mulheres
são geralmente negligenciados ou evitados (Roth e James, 1994; Kauffman
et al., 1995; Hodgins et al., 1997). Dessa forma, o grupo exclusivo de mulhe-
res é apontado como especialmente efetivo no tratamento da adição em
mulheres, embora existam poucos estudos avaliando a eficácia de diferentes
abordagens em psicoterapia neste campo.
Há cerca de três anos e meio, iniciamos nosso trabalho no Programa
de Atenção à Mulher Dependente Química do Instituto de Psiquiatria do Hos-
pital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
(Promud – Ipq – HC-FMUSP). O Promud é um programa de tratamento
institucional, multidisciplinar e especificamente voltado para as necessidades
das mulheres dependentes. No que diz respeito à psicoterapia, optamos por
utilizar a grupal – segundo nossa perspectiva, a mais adequada ao âmbito
institucional – em grupos exclusivos para mulheres, como sugeria a literatura,
e tendo como referencial teórico técnico a psicoterapia analítica de grupo
(Brasiliano, 1997a; Brasiliano, 1997b). Baseados em nossa experiência em um
serviço misto, iríamos iniciar os grupos com cinco pacientes e deixá-los aber-
tos até que o total de doze pacientes fosse atingido, quando então os grupos
Psicoterapia psicanalítica de grupo para mulheres drogadictas... • 201
seriam fechados. Isto deveria ocorrer em cerca de seis, já que a taxa de aban-
dono esperada nos primeiros três meses era de aproximadamente 50%
(Hochgraf, 1995).
Quando começamos o primeiro grupo, ao contrário dessa expectativa,
ele foi fechado no segundo mês, com quinze pacientes. É claro que este núme-
ro havia ultrapassado em muito o número adequado para uma psicoterapia
grupal, naquele momento não tínhamos uma estrutura institucional para a aber-
tura de um novo grupo em apenas dois meses. Simplesmente não tínhamos
pensado nesta possibilidade! Este dado era absolutamente novo para nós! A
progressão do trabalho também foi mostrando outra realidade que desconhecí-
amos: a permanência das pacientes no grupo. Em um ano cerca de 65% das
mulheres continuavam freqüentando a psicoterapia, enquanto nossa experiên-
cia em grupos mistos era que 70% delas deixavam o tratamento nos primeiros
meses de seguimento (Brasiliano e Hochgraf, 1998).
Mas não era só a freqüência o dado importante, pois as pacientes não
somente vinham ao grupo, como principalmente evoluíam com ele. Da mesma
forma que o grupo rapidamente se constituiu como espaço, também em pouco
tempo configurou-se como lugar de análise, onde era possível observar, inter-
pretar e viver as fantasias, os medos, os sonhos, as resistências e as emoções
de cada uma das mulheres e de todas como grupo. Frente a esses resultados,
perguntávamo-nos: o que acontecia nestes grupos? O que os tornava diferen-
tes dos outros? Sua característica singular era sua homogeneidade quanto ao
sexo, mas em que isto contribuiria para a manutenção do vínculo terapêutico?
Em princípio, é importante considerar que a experiência destes grupos não é
única. Outros grupos exclusivos de mulheres, em diferentes áreas, também se
mostraram como vivências gratificantes, significativas e promotoras de cresci-
mento (Zuwick e Malta, 1995; Bombana e Duarte, 1997).
Por outro lado, parece ocorrer aqui algo específico do feminino ou
como diz Bastos (1994) “mulher fala muito, fala pelos cotovelos. Mas não fala
em qualquer lugar. A fala da mulher tem um código próprio: ela é íntima num
duplo sentido. Mulher fala de coisas íntimas em lugares íntimos. O espaço que
lhe é próprio é o espaço privado e seu texto relacional”. Nessa direção, parece
que para a mulher a criação de um espaço vincular, onde a identificação pri-
mária com o outro do mesmo sexo e com a mesma problemática está favorecida,
facilita o desenvolvimento da intimidade e o falar gerador de sentido.
Mas nossas mulheres não são quaisquer mulheres e sim dependentes
de álcool e drogas. Assim, também é fundamental levantar o que pode estar
relacionado à própria adição. Em uma aproximação teórica, Rojas (1996) in-
clui as adições entre as que denomina patologias do desamparo. Estas patolo-
202 • Silvia Brasiliano
Referências bibliográficas
*
Mestre em Psicologia Clínica pela Universidade de Brasília (UnB) e terapeuta de família do
NEPAD-UERJ.
208 • Miriam Schenker
usada abusivamente? Já vimos que crescer implica riscos para a família com
um dependente. Sabemos que essas são famílias repassadoras de propinas,
uma forma de retroalimentar a dinâmica da prisão do sistema toxicômano –
não se cresce; alguém sacrifica sua vida em prol da manutenção do arranjo
familiar. Esse alguém, o adicto, está sempre dando problema, colocando o foco
da família sobre si. Mais fácil sobre si do que entre eles, irmãos, pais, avós.
Mas nosso mar não está para peixe... Vimos construindo uma socie-
dade semelhante à forma como temos sido educados e não podia ser dife-
rente! Vivemos numa sociedade capitalista, altamente individualista, com um
incessante apelo à adicção consumista – comprar, comprar; ter, ter; ser? o
quê?! Consumo esse patrocinado pela mídia, principalmente a TV, que se
instala nos lares do Oiapoque ao Chuí. Assim, a sociedade vem se mostran-
do personalista e individualista – o jovem se interessa pelo seu prazer pesso-
al do tipo: “eu quero é me dar bem, o resto que se...”, “ou ainda, o resto é o
resto...”. Mas, numa sociedade construída dessa forma, com tão pouco lugar
para o desenvolvimento comunitário, solidário, social, acirra-se uma
competitividade muitas vezes mortífera entre seus cidadãos para a manuten-
ção da sobrevivência; interessa o lucro acima de qualquer suspeita/cidadão.
Culpa da sociedade? E quando nos propusemos a educar aqueles que hoje
ditam as regras do poder?!
De uma forma geral, os filhos não são educados tendo metas a alcan-
çar, metas que falem deles e de sua relação com seu contexto social – estudo,
trabalho, contribuição social; em vez disso, são criados para usufruírem do que
os pais produziram, não interessando a classe social, e esperam que se conti-
nue a fazer por eles. Isto sim é criar condições para se ter sérios problemas no
futuro. Como esses que ultimamente vêm saindo nos jornais sobre a violência
na mídia eletrônica, a violência dos jovens nas escolas, onde a droga é um par
constante.
Uma educação permissiva, de satisfação imediatista dos desejos, mui-
to dificulta a aquisição da capacidade de se respeitar o outro. Tudo o jovem
pode fazer porque não será punido. E nessa cultura de impunidade os pais
passam a mão na cabeça dos filhos, acobertando, muitas vezes junto com a
escola, seu comportamento transgressor. Essa é mais uma regrinha de como
criar um monstro. Quanto mais se acobertam os comportamentos infratores,
quanto mais cega a família para o uso de drogas de seu adicto, mais fortalecido
fica o monstro. Isso significa que posteriormente será muito mais custoso,
trabalhoso, tentar reverter o quadro infrator do que se as providências tives-
sem sido tomadas a tempo e a hora. O mesmo ocorrendo para o drogado e sua
família. É melhor prevenir do que ter de tratar posteriormente.
A família na toxicomania • 211
grupo e adotá-lo para ser aceito por ele, ter parte ativa em seu funcionamento
para fazer realmente parte dele” (Barreto e Boyer, 1996, p. 26).
Assim, que espécie de ser humano estará sendo criada quando os pais
se eximem da responsabilidade de educá-lo ativamente? A ausência parental,
que em inúmeros casos se dá com os pais presentes na vida do filho, implica
sérios danos na construção da forma como o sujeito irá se perceber, valorar e
se gostar. O indivíduo irá buscar, ao longo de sua vida emocional, quem colocar
como seus pais no quesito filiação de seu documento de identidade. Para tal,
percorrerá diferentes grupos, ao longo de sua formação, e possivelmente opta-
rá por aqueles que se mostrarem abertos para aceitá-lo, confirmá-lo como
sujeito, não se importando tanto com as características inerentes a tais grupos.
Esta é uma das faces da história. Outra é a grande dificuldade que o
sistema familiar tem de legitimar seus membros na forma como eles se perce-
bem, e isso aparece principalmente quando o jovem começa a tentar se afir-
mar como pessoa independente dos pais. O caldo entorna; não há espaço para
ser diferenciado, para ao mesmo tempo alçar vôo e pertencer à família. Cri-
am-se pessoas com baixíssima auto-estima, com seus recursos próprios ador-
mecidos e dependentes emocionalmente da aprovação dos pais, que não vem,
que não vem, que não vem. A auto-estima e a convicção de sua própria eficá-
cia são sobretudo promovidas pelas relações pessoais de apoio: pais ou figuras
substitutas e/ou adultos significativos.
Em outra ponta da corda, o que temos? Pelo fato de estarmos vivendo
um período violento, com crimes e mortes impunes, o receio de soltar os filhos
é maior do que na geração anterior. Com o advento da Aids, os pais estão
ainda mais temerosos quanto ao início e à consecução da atividade sexual dos
filhos. Com a crescente dificuldade inicial de sobrevivência num mercado de
trabalho competitivo, o sujeito acaba ficando mais tempo no seio da família de
origem. Essas situações estimulam a manutenção de uma relação de depen-
dência entre pais e filhos por um tempo maior. Essas são situações de depen-
dência diferentes das que eu venho apontando. Entretanto, é bom que perma-
neçamos atentos porque elas poderão servir de álibi para a manutenção de
relações de dependência emocional, ou seja, o adolescente ou o jovem não
poderá sair de casa, porque será assaltado e morto, ter relações sexuais, por-
que pegará Aids; e poderá ser taxado de incompetente para a luta de um lugar
ao sol no mercado de trabalho atual.
As famílias geralmente buscam auxílio terapêutico quando já estão
desgastadas e calcificadas suas relações e sua comunicação. São raros os
sistemas que buscam auxílio preventivo numa conversa terapêutica. Creio que
novamente caímos numa questão paradigmática: em nossa cultura, o sujeito
216 • Miriam Schenker
vai ao médico desde que nasce para cuidar de sua saúde física. Mas a saúde
emocional é completamente desconsiderada. Criados neste paradigma são
poucos os seres humanos que se desenvolvem e crescem emocionalmente. A
terapia tem o estigma de loucura: “Procurar terapia?! Eu não estou louco!”.
No entanto, o que vemos se processar no mundo familiar da toxicoma-
nia? Famílias cegas para as questões emocionais de seus membros. Famílias
que se esmeram em ter um membro eternamente infantil, regredido, precisan-
do ser cuidado. Filhos criados sem limites, pais sendo bonzinhos, ou que pri-
mam pelo autoritarismo, não exercitando a difícil arte de educar. Famílias ima-
turas e ingênuas e que, portanto, conhecem quase nada sobre seus membros.
Poder auxiliar essas famílias a pensar sobre o sistema de crenças que lhes
serve de couraça há tanto tempo é um desafio. Ao longo do trabalho terapêutico,
a família se flexibiliza porque passa a desfrutar de uma comunicação mais
clara, podendo assim ir solucionando suas questões.
O trabalho que desenvolvemos no NEPAD é uma das possibilidades
de enfrentamento da questão da toxicomania para o indivíduo e seu sistema
familiar. O fato de estarmos navegando em meio a uma turbulência social não
significa que eu, na condição de cidadã e terapeuta voltada para essa questão,
não mobilize meus esforços para auxiliar as famílias que se enredaram nessa
viagem tão sofrida, impeditiva de crescimento e letal para a aquisição de uma
qualidade para viver a vida de uma forma rica.
Essas são famílias que perderam a dimensão de movimento pendular,
característica de sistemas flexíveis. Nesse movimento, “tudo assume a ca-
racterística da contração e da expansão em alternância rítmica. O pêndulo
nunca oscila de volta a seu ponto inicial de partida, um pouco abaixo, faz sua
história como as aspirais” (Bonder, 1990, p. 57). O que importa é a revela-
ção do movimento pendular, o processo, e não os diversos extremos que são
tocados pelo pêndulo a cada movimento seu. As famílias com membros adic-
tos calcificam-se em torno de seu sintoma, estagnando nos extremos, impe-
dindo assim a fluidez do movimento e, portanto, do processo. O sintoma
empobrece, desvitaliza e esconde a diversidade de recursos que qualquer
sistema tem na promoção da saúde.
Tenho consciência de que minha atuação é uma parcela muito peque-
na na vida desse sistema familiar e creio ser geralmente pequeno o alcance
que temos uns sobre os outros. Só que de pequeno em pequeno construímos
um maior que possa dar conta de transformar esse período de águas turvas em
que vivemos em outro novo, em que as águas, embora sempre agitadas, tor-
nem-se mais claras e prazerosas de mergulhar e de viver.
A família na toxicomania • 217
Referências bibliográficas
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
Fernando Pessoa
O acolhimento revisitado *
Carlos Parada **
*
Tradução de Iolanda Faustino e revisão final do autor.
**
Psiquiatra do Centre Médical Marmottan – Paris, França.
222 • Carlos Parada
A disponibilidade
quer um vir nos ver quando lhe apetecer e ser atendido sem marcar consulta
previamente. O fato de receber sem hora marcada não faz sentido se não for
acompanhado de uma verdadeira disponibilidade objetiva e subjetiva constan-
te. Estar presente não é sinônimo de estar disponível, e por vezes a presença é
simples vigília. Nesse caso, as consultas sem horários marcados são para al-
guns de nossos clientes percebidas como uma falta de disponibilidade de nossa
parte. Vale dizer que cada um de nós não pode estar disponível para todos o
tempo todo, por isso a disponibilidade (como o acolhimento) não é uma simples
conduta que se poderia ditar, é uma disposição institucional, coletiva e individual.
A escuta (vigília)
A heterotopia crítica
Não se vive num espaço neutro, branco. Não se vive, não se morre, não se
ama dentro do retângulo de uma folha de papel. [...] É bem provável que cada
grupo humano, qualquer que seja, reparta o espaço que ocupa, onde vive
realmente, onde trabalha, os lugares utópicos. E o tempo em que ele se ocupa,
momentos de ucronia. Há entre todos estes lugares, que se distinguem uns
dos outros, os que são, de alguma forma, absolutamente diferentes. Lugares
226 • Carlos Parada
O ambiente
Conclusão
Referências bibliográficas
*
Médica psiquiatra do NEPAD-UERJ e da Secretaria Municipal de Saúde – RJ. Doutoranda
em Saúde Pública da ENSP/Fiocruz – Departamento de Epidemiologia e Métodos Quanti-
tativos.
232 • Sonia Regina Lambert Passos
Tabela 1
Fatores que estimulam o ceticismo terapêutico
Estimula Desestimula
Ineficácia do remédio Teoria microbiólogica
Indicação equivocada Avanços da química
Uso indiscriminado Avanços da fisiologia
Automedicação Barbitúricos
Reações adversas Sulfonamidas (1937)
Iatrogenias Penicilina (1941)
Ênfase higiene/prevenção Estreptomicina (1947)
Custo elevado Cloranfenicol (1948)
Isoniazida (1951)
Caráter lucrativo da indústria Insumo básico
farmacêutica (bem de consumo) e essencial
Imperativos éticos
Conclusões
Referências bibliográficas
*
Departamento de Informações em Saúde, Fundação Oswaldo Cruz.
**
Ambulatório do Banco da Providência.
240 • Claudia Carneiro-da-Cunha et al.
mentos dos custos com a assistência, exigindo esquemas mais complexos, pro-
cedimentos diagnósticos mais sofisticados e uma maior freqüência de episódi-
os de hospitalização (Valenti, 2001).
Estudos internacionais e brasileiros demonstram que a aderência à
HAART depende de diversos fatores, que vão da estrutura dos serviços (Nemes
et al., 2000; Turner, 2001; Turner et al., 2000), passando pelas atitudes e qua-
lificação de equipe médica (Mostashari et al., 1998; Nemes et al., 2000; Teixeira
et al., 2000), oferta de suporte psicológico e social (Catz et al., 2000; Nemes et
al., 2000; Schilder et al., 2001; Teixeira et al., 2000) e características
sociodemográficas e comportamentais da clientela (Catz et al., 2000; Cook et
al., 2001; Nemes et al., 2000; Teixeira et al., 2000; Thompson et al., 1998). É
fundamental contar com serviços multiprofissionais, flexíveis e adaptados às
necessidades de cada paciente, respeitando as especificidades de seu estilo de
vida (Magnus et al., 2001; Stone, 2001; Turner et al., 2001). Um serviço com
uma equipe multidisciplinar e que estimule e crie condições para uma partici-
pação ativa do paciente no planejamento e no desenvolvimento de seu trata-
mento está geralmente mais preparado para fazer face às diferentes necessi-
dades e dificuldades individuais ao longo do processo terapêutico (New York
Department of Health, 2001b; Wright, 2000).
É importante também avaliar os diversos aspectos que podem estar
envolvidos na não-aderência ou na ausência de resposta à terapia, pois esses
fatores podem não se relacionar à variável-resposta (isto é, à não-aderência
ou à ausência de resposta terapêutica) segundo uma lógica linear de causa/
efeito. Ou seja, nem sempre a falha terapêutica decorre da não-aderência.
Problemas como a má absorção ou dificuldade de metabolização dos medica-
mentos, por exemplo, podem também determinar falhas terapêuticas em paci-
entes aderentes (Turner et al., 2000; Stone, 2001).
Segundo Zorrilla (2000), fatores psicossociais – tais como a pobreza, a
falta de assistência de um modo amplo e questões ligadas a faixas etárias mais
jovens – costumam afetar mais freqüentemente as mulheres do que os ho-
mens, no que se refere a dificuldades de aderência à HAART. Dificuldades
que podem representar fatores adicionais para a não-aderência entre as mu-
lheres incluem: seu papel como responsável pelo cuidado de outros (filhos,
companheiros etc.), os múltiplos papéis da mulher moderna (trabalho, cuidado
de casa etc.), o medo de revelar seu sorostatus e experimentar a
marginalização e o estigma, as relações desiguais de gênero/sociais, as cren-
ças errôneas sobre a terapia e os diferentes efeitos colaterais anti-retrovirais,
inclusive estéticos e sobre a esfera sexual e reprodutiva (Zorrilla, 2000; Roberts
e Mann, 2000; Mann, 2001). Tais trabalhos apontam para a necessidade de
Aderência à terapia anti-retroviral de alta potência (HAART)... • 241
Lições aprendidas
Referências bibliográficas
*
Terapeuta familiar, doutorando em Psicologia – Programa de Atenção e Estudo das Depen-
dências Químicas (Prodequi) –, Instituto de Psicologia, Universidade de Brasília.
254 • Maurício S. Neubern
1
O Brasil vive um momento muito especial nesse sentido. Ao mesmo tempo em que o governo
federal busca a implantação de toda uma política de caráter repressivo, são apuradas diaria-
mente pelos meios de comunicação e diante da opinião pública inúmeras denúncias sobre o
envolvimento de autoridades brasileiras com o narcotráfico.
256 • Maurício S. Neubern
das nessa ciência para a compreensão dos processos humanos. Desse modo,
as ciências psíquicas parece terem se envolvido em um grave paradoxo sobre
o estudo do homem: ao mesmo tempo em que buscam estudá-lo de modo
confiável e fidedigno, a descaracterização promovida pelas mutilações pare-
ceu expulsá-lo do cenário de estudo.
Tal problema se relaciona com a drogadição de uma forma especial no
que diz respeito à forma como esta é compreendida. Da mesma forma que o
paradigma expulsa a subjetividade,2 as cosmovisões e epistemologias presen-
tes na abordagem da drogadição parecem tê-la situado em diversas posições,
sem no entanto lograr compreender que ela consiste em um momento funda-
mental para a compreensão dessa problemática. O termo toxicomania, por
exemplo, remonta à noção de uma personalidade toxicomaníaca, o que seria
dado por uma estrutura, pela natureza humana ou por conteúdos universais.
Tal cosmovisão implica a desconsideração da diversidade dos sujeitos e cená-
rios sociais em que se dão os processos complexos de construção das relações
com a droga. Corre-se ainda o considerável risco de uma rotulação que
inviabilize uma compreensão mais abrangente dos demais momentos da subje-
tividade em que o sujeito se constitui. Ao mesmo tempo, a ideologia de um
“combate às drogas”, ou do “poder das drogas”, parece sacramentar a noção
de que os processos subjetivos estão alheios ao problema da drogadição.
A relação sujeito-drogas deve ser compreendida em função dos pro-
cessos que desenvolve em que ambos tomam papéis ativos. Um produto, qual-
quer que seja, não possui qualquer influência se não se encontra integrado ao
interjogo subjetivo, ao mesmo tempo social e individual, em que ganha sentido
e significações específicas de grande importância para os sujeitos.3 Toda essa
atividade, imbricada com processos históricos e atuais dos sujeitos, integra e
constrói importantes necessidades, sobretudo emocionais, a partir das quais
esses mesmos sujeitos poderão direcionar suas opções e construções como
também pautar suas relações sociais e suas visões de mundo. É a partir disso
que se torna possível a afirmação de que a droga “ganha vida” para os sujei-
2
Subjetividade aqui não será tomada no sentido tradicional do paradigma, i. e., em oposição à
objetividade. Ela consiste em uma realidade ontológica, um fato social e, portanto, passível de
se tornar objeto de estudo, embora comporte exigências distintas dos objetos das ciências
físicas. Gonzalez Rey (1997) a conceitua como a constituição psíquica do sujeito em sua ação
social, a partir da qual se organizam sentidos, motivos, estados e configurações. Ele acrescen-
ta ainda a subjetividade social como um momento importante da vida social.
3
Isso não exclui obviamente a própria influência farmacológica, mas apenas ressalta que o
próprio corpo de onde a subjetividade emerge se constitui em um sujeito, num espaço
cultural e social.
258 • Maurício S. Neubern
tos, ou seja, que ela adquire sentido e, como uma realidade, passa a desem-
penhar um papel ativo em sua subjetividade. Desse modo, como muitas cons-
truções e constituições não só escapam ao controle e à intencionalidade dos
sujeitos, como também adquirem certa autonomia quanto aos mesmos, pode-
se compreender como a relação com a droga é capaz de se impor a alguém,
com a nítida sensação de escravidão, como no caso das dependências
comumente narradas. Semelhante conjunto de processos subjetivos, criados
nesse interjogo, objetiva-se à medida que se autonomiza dos indivíduos, pas-
sando também a compor uma importante dimensão da subjetividade social.4
Nessa perspectiva, não seria absurdo sustentar que os demônios (Morin,
1998) ligados à drogadição são criações humanas que se impõem rigorosa-
mente sobre seus criadores.
O próprio conceito de subjetividade aqui adotado (Gonzalez Rey, 1997)
apresenta contribuições de grande valia para a compreensão do problema da
drogadição, sobretudo por sua relação com a noção todo-parte de Morin (1998).
Na psicologia, existe considerável carência nesse sentido; pois, embora o pro-
blema da drogadição aponte para uma intrincada relação entre o indivíduo e o
social, as escolas dessa ciência tradicionalmente têm dicotomizado essas duas
dimensões (Neubern, 1999a; Gonzalez Rey, 1997). O próprio construcionismo
social, ao levantar uma crítica incisiva contra a tendência individualista da psi-
cologia – “o ponto morto do conhecimento individual” (Gergen, 1996), ou “o
self encapsulado” (Anderson e Goolishian, 1996) –, recai num reducionismo
oposto ao colocar todos os momentos do sujeito individual subjugados à pauta
interativa. Tradicionalmente, as tendências de psicologia, quando não atribuem
uma relação de exclusão ou redução entre ambas as dimensões, atribuem-lhes
relações isomórficas e diretas que desconsideram o caráter auto-eco-regulado
presente em cada uma.
Nesse sentido, apropriando-se dos conceitos acima mencionados,
Neubern (1999b) apresenta a noção de um sujeito hologramático, isto é, de um
sujeito5 que sintetiza em si as relações que desenvolve com seus inumeráveis
4
Essa afirmação se liga ao conceito de noosfera de Morin (1998), que consiste no reino das
coisas do espírito e é habitado por sistemas de idéias, doutrinas, sistemas religiosos e seres
bioantropomórficos. A noosfera envolveria o habitat das idéias ou seres ideais, que são
criações humanas com relativa autonomia quanto aos mesmos.
5
O sujeito, segundo Gonzalez Rey (1997), consiste em um momento da subjetividade
individual que é ativo, intencional e consciente. Ele apresenta, quanto à sua constituição
subjetiva, uma relação de autonomia-dependência, pois mesmo possuindo uma determina-
ção estabelece rupturas com a mesma. Daí a possibilidade da ação voluntária nos processos
cotidianos das pessoas.
Contribuições da epistemologia complexa para abordagens... • 259
6
Conforme já mencionado, outra leitura para a noção de Anderson e Goolishian (1996) de que
os problemas criam sistemas de significados.
7
Para Gonzalez Rey (1997), existe uma dimensão que dialetiza com a construção que é a
constituição. Remonta a processos históricos e comumente está além da intencionalidade dos
sujeitos. Não consiste em uma noção estrutural, pois não apresenta padrões fixos nem
relações deterministas com as construções, mas uma relação dialética com elas.
8
Embora se reconheça a importância da noção de holograma (Neubern, 1999b), a família
consiste em um momento de importância primordial para a abordagem da drogadição. Tais
noções não se excluem, mas apenas ajudam a uma compreensão mais flexível de ambas e do
processo como um todo.
260 • Maurício S. Neubern
se impõe ao real, mas gera a partir da interação com ele um pensamento que
busca interpretá-lo.9
É nesse sentido uma forma de ação teórica que pode levar a modifica-
ções substanciais nas próprias referências teóricas com que chegou ao cam-
po. Ele tem a função não só de dialogar com o real, mas de a partir dessa
relação com o empírico regenerar a teoria que o gera (Morin, 1998). Em temas
complexos como a drogadição, esse cuidado é fundamental, uma vez que a
importância e a gravidade de suas questões podem propiciar o surgimento de
doutrinas (científicas, políticas e religiosas) que, sob o pretexto da urgência,
impõem-se a priori aos problemas estudados.
Isso implica também considerar que, para a abordagem do método,
intervenção e pesquisa consistem em momentos integrados do mesmo proces-
so. Uma vez que se privilegia o cenário dos sujeitos para a construção do
conhecimento de acordo com parâmetros como a qualidade do vínculo, a co-
municação e a motivação (Gonzalez Rey, 1997), o foco do trabalho não con-
siste em uma coleta de informações que façam sentido apenas ao pesquisador,
mas um processo de ação conjunta em que os sujeitos, numa postura
participativa, possam expressar e construir significados e sentidos ligados às
suas necessidades. Isso pode implicar de diferentes modos novas formas de
organização subjetiva para sujeitos e grupos sociais.
Sob outro prisma, não é apenas a subjetividade dos estudados que é
posta em relevo: deve-se conceder especial atenção ao papel que os próprios
pesquisadores desempenham como sujeitos. O método não consiste em um
conjunto de instrumentos externos ao sujeito pesquisador, mas no pensamento
por ele gerado a partir do diálogo com o real. Dito de outro modo, ele só ganha
vida com a atividade do sujeito pensante que se defronta com os diferentes
momentos da realidade.
Torna-se necessário, portanto, um trabalho sistemático com o mesmo,
uma vez que um método complexo não se torna possível se baseado em uma
cosmovisão ou ideologia simplificadora ou repressiva. Tal trabalho deve abran-
ger não apenas os tipos de crenças que o pesquisador possui sobre a drogadição,
mas também que posições tal tema ocupou ao longo de sua história. Em uma
perspectiva semelhante, deve-se propiciar especial cuidado às equipes de tra-
9
Gonzalez Rey (1997) sustenta que isso é possível não só pela noção de um papel ativo do
sujeito que constrói o pensamento e do real que resiste a esse pensamento e o perturba, e sim
também pela adoção de categorias que não se impõem pelo conteúdo, mas permitem a
integração dos conteúdos dos sujeitos estudados. Como exemplo, podem ser citadas as
categorias configurações e sentidos.
262 • Maurício S. Neubern
10
Logicamente, não se concebe uma busca de acordo com o narcotráfico, embora isso já exista
de diferentes formas em países desenvolvidos e subdesenvolvidos. Pretende-se, ao contrário,
uma reflexão sobre os vários tipos de interação entre pensamentos éticos existentes na
sociedade e a partir daí denunciar e buscar novas soluções para outros absurdos que nem
sempre são vistos como tal.
Contribuições da epistemologia complexa para abordagens... • 263
Referências bibliográficas
*
Doutorando – Programa de Dependências Químicas (Prodequi), Instituto de Psicologia, UnB.
268 • Omar A. Bravo
Referências bibliográficas