A Interpretação Da Bíblia Na Igreja
A Interpretação Da Bíblia Na Igreja
A Interpretação Da Bíblia Na Igreja
ÍNDICE
INTRODUÇÃO
CONCLUSÃO
INTRODUÇÃO
A interpretação dos textos bíblicos continua a suscitar em nossos dias um vivo interesse e
provoca importantes discussões. Elas adquiriram dimensões novas nestes últimos anos. Dado
à importância fundamental da Bíblia para a fé cristã, para a vida da Igreja e para as relações
dos cristãos com os fiéis das outras religiões, a Pontifícia Comissão Bíblica foi solicitada a se
pronunciar a esse respeito.
A. Problemática atual
O problema da interpretação da Bíblia não é uma invenção moderna como algumas vezes se
quer fazer crer. A Bíblia mesma atesta que sua interpretação apresenta dificuldades. Ao lado
de textos límpidos, ela comporta passagens obscuras. Lendo certos oráculos de Jeremias,
Daniel se interrogava longamente sobre o sentido deles (Dn 9,2). Segundo os Atos dos
Apóstolos, um etíope do primeiro século encontrava-se na mesma situação a propósito de
uma passagem do livro de Isaías (Is 53,7-8) e reconhecia ter necessidade de um intérprete (At
8,30-35). A segunda carta de Pedro declara que « nenhuma profecia da Escritura resulta de
uma interpretação particular » (2 Pd 1,20) e ela observa, de outro lado, que as cartas do
apóstolo Paulo contêm « alguns pontos difíceis de entender, que os ignorantes e vacilantes
torcem, como fazem com as demais Escrituras, para sua própria perdição » (2 Pd 3,16).
O problema é, portanto, antigo mas ele se acentuou com o desenrolar do tempo: doravante,
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para encontrar os fatos e palavras de que fala a Bíblia, os leitores devem voltar a quase vinte
ou trinta séculos atrás, o que não deixa de levantar dificuldades. De outro lado, as questões
de interpretação tornaram-se mais complexas nos tempos modernos devido aos progressos
feitos pelas ciências humanas. Métodos científicos foram aperfeiçoados no estudo do textos
da antiguidade. Em que proporção esses métodos podem ser considerados apropriados à
interpretação da Sagrada Escritura? A esta questão a prudência pastoral da Igreja durante
muita tempo respondeu de maneira muito reticente, pois muitas vezes o métodos, apesar de
seus elementos positivos, encontravam-se liga dos a opções opostas à fé cristã. Mas uma
evolução positiva se produziu, marcada por uma série de documentos pontifícios, desde
encíclica Providentissimus Deus de Leão XIII (18 novembro 1893 até a encíclica Divino
afflante Spiritu de Pio XII (30 setembro 1943), e ela foi confirmada pela declaração Sancta
Mater Ecclesie (21 abril 1964) da Pontifícia Comissão Bíblica e sobretudo pele Constituição
Dogmática Dei Verbum do Concilio Vaticano II (18 novembro 1965).
Mas, ao mesmo tempo em que o método científico mais divulgado — o método « histórico-
crítico » — é praticado correntemente em exegese, inclusive na exegese católica, ele mesmo
encontra-se em discussão: de um lado, no próprio mundo científico, pela aparição de outros
métodos e abordagens, e, de outro lado, pelas críticas de numerosos cristãos que o julgam
deficiente do ponto de vista da fé. Particularmente atento, como seu nome o indica, à
evolução histórica dos textos ou das tradições através do tempo — ou diacronia — o método
histórico-crítico encontra-se atualmente em concorrência, em alguns ambientes, com
métodos que insistem na compreensão sincrônica dos textos, tratando-se da língua, da
composição, da trama narrativa ou do esforço de persuasão deles. Além disso, o cuidado que
os métodos diacrônicos têm em reconstituir o passado, para muitos é substituído pela
tendência de interrogar os textos colocando-os em perspectivas do tempo presente, seja de
ordem filosófica, psicanalítica, sociológica, política, etc. Esse pluralismo de métodos e
abordagens é apreciado por alguns como um indício de riqueza, mas a outros ele dá a
impressão de uma grande confusão.
Real ou aparente, essa confusão traz novos argumentos aos adversários da exegese científica.
O conflito das interpretações manifesta, segundo eles, que não se ganha nada submetendo os
textos bíblicos às exigências dos métodos científicos, mas, ao contrário, perde-se bastante.
Eles sublinham que a exegese científica obtém como resultado o provocar perplexidade e
dúvida sobre inumeráveis pontos que, até então, eram admitidos pacificamente; que ele força
alguns exegetas a tomar posições contrárias à fé da Igreja sobre questões de grande
importância, como a concepção virginal de Jesus e seus milagres, e até mesmo sua
ressurreição e sua divindade.
Mesmo quando não finaliza em tais negações, a exegese científica se caracteriza, segundo
eles, pela sua esterilidade no que concerne o progresso da vida cristã. Ao invés de permitir
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um acesso mais fácil e mais seguro às fontes vivas da Palavra de Deus, ela faz da Bíblia um
livro fechado, cuja interpretação sempre problemática exige técnicas refinadas fazendo dela
um domínio reservado a alguns especialistas. A estes, alguns aplicam a frase do Evangelho:
« Tomastes a chave da ciência! Vós mesmos não entrastes e impedistes os que queriam
entrar! » (Lc 11,52; cf Mt 23,13).
1. fará uma breve descrição dos diversos métodos e abordagens, (1) indicando suas
possibilidades e seus limites;
A. Método histórico-crítico
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1. História do método
Para apreciar corretamente este método em seu estado atual, convém dar uma olhada em sua
história. Certos elementos deste método de interpretação são muito antigos. Eles foram
utilizados na antiguidade por comentadores gregos da literatura clássica e, mais tarde,
durante o período patrístico, por autores como Orígenes, Jerônimo e Agostinho. O método
era, então, menos elaborado. Suas formas modernas são o resultado de aperfeiçoamentos,
trazidos sobretudo desde os humanistas da Renascença e o recursus ad fontes deles.
Enquanto que a crítica textual do Novo Testamento só pôde se desenvolver como disciplina
científica a partir de 1800, depois que se desligou do Textus receptus, os primórdios da crítica
literária remontam ao século XVII, com a obra de Richard Simon, que chamou a atenção
sobre as repetições, as divergências no conteúdo e as diferenças de estilo observáveis no
Pentatêuco, constatações dificilmente conciliáveis com a atribuição de todo o texto a um
autor único, Moisés. No século XVIII, Jean Astruc contentou-se ainda em dar como
explicação que Moisés tinha se servido de várias fontes (sobretudo de duas fontes principais)
para compor o Livro do Gênesis, mas, em seguida, a crítica contesta cada vez mais
resolutamente a atribuição da composição do Pentatêuco a Moisés. A crítica literária
identificou-se muito tempo com um esforço para discernir diversas fontes nos textos. É assim
que se desenvolveu, no século XIX, a hipótese dos « documentos », que procura explicar a
redação do Pentatêuco. Quatro documentos, em parte paralelos entre si, mas provenientes de
épocas diferentes, teriam sido incorporados: o yahvista (J), o elohista (E), o deuteronomista
(D) e o sacerdotal (P: do alemão « Priester »); é deste último que o redator final teria se
servido para estruturar o conjunto. De maneira análoga, para explicar ao mesmo tempo as
convergências e as divergências constatadas entre os três Evangelhos sinóticos, recorreram à
hipótese das « duas fontes », segundo a qual os Evangelhos de Mateus e o de Lucas teriam
sido compostos a partir de duas fontes principais: o Evangelho de Marcos de um lado e, de
outro lado, uma compilação das palavras de Jesus (chamada Q, do alemão « Quelle », «fonte
»). Essencialmente estas duas hipóteses são ainda aceitas atualmente na exegese científica,
mas elas são objeto de contestações.
No desejo de estabelecer a cronologia dos textos bíblicos, esse gênero de crítica literária se
limitava a um trabalho de cortes e de decomposição para distinguir as diversas fontes e não
dava uma atenção suficiente à estrutura final do texto bíblico e à mensagem que ele exprime
em seu estado atual (mostrava-se pouca estima pela obra dos redatores). Dessa maneira a
exegese histórico-crítica podia aparecer como fragmentária e destrutora, ainda mais que
certos exegetas sob a influência da história comparada das religiões, tal como ela se praticava
então, ou partindo de concepções filosóficas, emitiam contra a Bíblia julgamentos negativos.
Hermann Gunkel fez o método sair do gueto da crítica literária entendida desta maneira. Se
bem tenha continuado a considerar os livros do Pentatêuco como compilações, ele aplicou
sua atenção à textura particular das diferentes partes. Ele procurou definir o gênero de cada
uma (por exemplo, « legenda » ou « hino ») e seu ambiente de origem ou « Sitz im Lebem »
( por exemplo, situação jurídica, liturgia, etc.). A esta pesquisa dos gêneros literários
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2. Princípios
E um método histórico, não só porque ele se aplica a textos antigos — no caso, aqueles da
Bíblia — e estuda seu alcance histórico, mas também e sobretudo porque ele procura
elucidar os processos históricos de produção dos textos bíblicos, processos diacrônicos
algumas vezes complicados e de longa duração. Em suas diferentes etapas de produção, os
textos da Bíblia são dirigidos a diversas categorias de ouvintes ou de leitores, que se
encontravam em situações de tempo e de espaço diferentes.
É um método crítico, porque ele opera com a ajuda de critérios científicos tão objetivos
quanto possíveis em cada uma de suas etapas (da crítica textual ao estudo crítico da redação),
de maneira a tornar acessível ao leitor moderno o sentido dos textos bíblicos, muitas vezes
difícil de perceber.
Método analítico, ele estuda o texto bíblico da mesma maneira que qualquer outro texto da
antiguidade e o comenta enquanto linguagem humana. Entretanto, ele permite ao exegeta,
sobretudo no estudo crítico da redação dos textos, perceber melhor o conteúdo da revelação
divina.
3. Descrição
A crítica textual, praticada há muito mais tempo, abre a série das operações científicas.
Baseando-se no testemunho dos mais antigos e melhores manuscritos, assim como dos
papiros, das traduções antigas e da patrística, ela procura, segundo regras determinadas,
estabelecer um texto bíblico que seja tão próximo quanto possível ao texto original.
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É desta maneira que são colocadas em evidência as diferentes etapas do desenrolar concreto
da revelação bíblica.
4. Avaliação
Que valor dar ao método histórico-crítico, em particular no estágio atual de sua evolução?
É um método que, utilizado de maneira objetiva, não implica em si nenhum a priori: Se sua
utilização é acompanhada de tais a priori, isto não é devido ao método em si mas a opiniões
hermenêuticas que orientam a interpretação e podem ser tendenciosas.
Orientado, em seu início, como crítica das fontes e da história das religiões, o método obteve
como resultado a abertura de um novo acesso à Bíblia, mostrando que ela é uma coleção de
escritos que, muitas vezes, sobretudo para o Antigo Testamento, não têm um autor único,
mas tiveram uma longa pré-história inextricavelmente ligada à história de Israel ou àquela da
Igreja primitiva. Precedentemente, a interpretação judaica ou cristã da Bíblia não tinha uma
consciência clara das condições históricas concretas e diversas nas quais a Palavra de Deus
se enraizou. Ela tinha disto um conhecimento global e longínquo. O confronto da exegese
tradicional com uma abordagem científica que em seu início fazia conscientemente abstração
da fé e algumas vezes mesmo se opunha a ela, foi seguramente dolorosa; depois, no entanto,
ela se revelou salutar: uma vez que o método foi liberado dos preconceitos extrínsecos, ele
conduziu a uma compreensão mais exata da verdade da Santa Escritura (cf Dei Verbum, 12).
Segundo a Divino afflante Spiritu, a procura do sentido literal da Escritura é uma tarefa
essencial da exegese e, para cumprir esta tarefa, é necessário determinar o gênero literário
dos textos (cf E.B., 560), o que se realiza com a ajuda do método histórico-crítico.
Com certeza o uso clássico do método histórico-crítico manifesta limites, pois ele se
restringe à procura do sentido do texto bíblico nas circunstâncias históricas de sua produção
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A respeito da inclusão no método, de uma análise sincrônica dos textos, deve-se reconhecer
que se trata de uma operação legítima, pois é o texto em seu estado final, e não uma redação
anterior, que é expressão da Palavra de Deus. Mas o estudo diacrônico continua
indispensável para o discernimento do dinamismo histórico que anima a Santa Escritura e
para manifestar sua rica complexidade: por exemplo, o código da Aliança (Ex 21,23) reflete
um estado político, social e religioso da sociedade israelita diferente daquele que refletem as
outras legislações conservadas no Deuteronómio (Dt 12,26) e no Levítico (código de
santidade, Lv 17-26). À tendência de reduzir tudo ao aspecto histórico, que se pôde
repreender na antiga exegese histórico-crítica, seria o caso que não sucedesse o excesso
inverso: o de um esquecimento da história, por parte de uma exegese exclusivamente
sincrônica.
Nenhum método científico para o estudo da Bíblia está à altura de corresponder à riqueza
total dos textos bíblicos. Qualquer que seja sua validade, o método histórico-crítico não pode
pretender ser suficiente a tudo. Ele deixa forçosamente obscuros numerosos aspectos dos
escritos que estuda. Que não seja surpresa a constatação de que atualmente outros métodos e
abordagens são propostos para aprofundar um ou outro aspecto digno de atenção.
1. Análise retórica
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A retórica é a arte de compor discursos persuasivos. Pelo fato de que todos os textos bíblicos
são em algum grau textos persuasivos, um certo conhecimento da retórica faz parte do
instrumental normal dos exegetas. A análise retórica deve ser conduzida de maneira crítica,
pois a exegese científica é um trabalho que se submete necessariamente às exigências do
espírito crítico.
Muitos estudos bíblicos recentes deram uma grande atenção à presença da retórica na
Escritura. Podemos distinguir três abordagens diferentes. A primeira se baseia na retórica
clássica greco-latina; a segunda é atenta aos procedimentos semíticos de composição; a
terceira inspira-se nas pesquisas modernas que chamamos « nova retórica ».
Toda situação de discurso comporta a presença de três elementos: o orador (ou o autor), o
discurso (ou o texto) e o auditório (ou os destinatários). A retórica clássica distingue,
consequentemente, três fatores de persuasão que contribuem à qualidade de um discurso: a
autoridade do orador, a argumentação do discurso e as emoções que ele suscita no auditório.
A diversidade de situações e de auditórios influencia imensamente a maneira de falar. A
retórica clássica, desde Aristóteles, admite a distinção de três gêneros de eloqüência: o
gênero judiciário (diante dos tribunais), o deliberativo (nas assembléias políticas), o
demonstrativo (nas celebrações).
Tomando um ponto de vista mais geral, a « nova retórica » quer ser algo mais que um
inventário de figuras de estilo, de artifícios oratórios e de espécies de discurso. Ela busca o
porquê tal uso específico da linguagem é eficaz e chega a comunicar uma convicção. Ela se
quer « realista », recusando de se limitar à simples análise formal. Ela dá à situação de debate
a atenção que lhe é devida. Ela estuda o estilo e a composição enquanto meios de exercer
uma ação sobre o auditório. Com esta finalidade ela aproveita as contribuições recentes de
disciplinas como a lingüística, a semiótica, a antropologia e a sociologia.
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As análises retóricas têm, contudo, seus limites. Quando elas se contentam em ser
descritivas, seus resultados têm muitas vezes um interesse unicamente estilístico.
Fundamentalmente sincrônicas, elas não podem pretender constituir um método
independente que seja autosuficiente. Sua aplicação aos textos bíblicos levanta mais de uma
questão: os autores destes textos pertenciam aos ambientes mais cultos? Até que ponto eles
seguiram as regras de retórica para compor seus escritos? Qual retórica é mais pertinente
para a análise de tal escrito determinado: a greco-latina ou a semítica? Não se arrisca em
atribuir a certos textos bíblicos uma estrutura retórica elaborada demais? Estas questões — e
outras — não devem dissuadir o emprego deste tipo de análise; elas convidam a não recorrer
a ele sem discernimento.
2. Análise narrativa
Numerosos métodos de análise são atualmente propostos. Alguns partem do estudo dos
modelos narrativos antigos. Outros se baseiam sobre um ou outro estudo atual da narrativa,
que pode ter pontos comuns com a semiótica. Particularmente atenta aos elementos do texto
que dizem respeito ao enredo, às características e ao ponto de vista tomado pelo narrador, a
análise narrativa estuda o jeito pelo qual a história é contada de maneira a envolver o leitor
no « mundo do relato » e seu sistema de valores.
Vários métodos introduzem uma distinção entre « autor real » e « autor implícito », « leitor
real » e « leitor implícito ». O « autor real » é a pessoa que compôs o relato. Por « autor
implícito » é designada a imagem do autor que o texto produz progressivamente no decorrer
da leitura (com sua cultura, seu temperamento, suas tendências, sua fé, etc.). Chama-se «
leitor real » toda pessoa que tem acesso ao texto, desde os primeiros destinatários que leram
ou ouviram ler até os leitores ou ouvintes de hoje. Por « leitor implícito » entende-se aquele
que o texto pressupõe e produz, aquele que é capaz de efetuar as operações mentais e afetivas
exigidas para entrar no mundo do relato e assim responder a ele da maneira visada pelo autor
real através do autor implícito.
Um texto continua a exercer sua influência na medida em que os leitores reais (por exemplo,
nós mesmos no fim do século XX) podem se identificar com o leitor implícito. Uma das
maiores tarefas do exegeta é facilitar esta identificação.
À análise narrativa liga-se uma nova maneira de apreciar o alcance dos textos. Enquanto o
método histórico-crítico considera antes de tudo o texto como uma « janela », que permite
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algumas observações sobre uma ou outra época (não apenas sobre os fatos narrados, mas
também sobre a situação da comunidade para a qual eles foram contados), sublinha-se que o
texto funciona igualmente como um « espelho », no sentido de que ele estabelece uma certa
imagem do mundo — o « mundo do relato » que exerce sua influência sobre a maneira de
ver do leitor e o leva a adotar certos valores invés que outros.
A este gênero de estudo, tipicamente literário, associou-se a reflexão teológica, que levando
em consideração as consequências que a natureza de relato e de testemunho da Santa
Escritura representa para a adesão de fé, deduz disso uma hermenêutica de tipo prático e
pastoral. Reage-se desta maneira contra a redução do texto inspirado a uma série de teses
teológicas, formuladas muitas vezes segundo categorias e linguagem não escriturísticas.
Pede-se à exegese narrativa de reabilitar, em contextos históricos novos, os modos de
comunicação e de significado próprios ao relato bíblico, afim de melhor abrir caminho à sua
eficácia para a salvação. Insiste-se na necessidade de « contar a salvação » (aspecto «
informativo » do relato) e de « contar em vista da salvação » (aspecto de « desempenho »). O
relato bíblico, efetivamente, contém — explicitamente ou implicitamente, segundo o caso —
um apelo existencial dirigido ao leitor.
Para a exegese da Bíblia, a análise narrativa apresenta uma utilidade evidente, pois ela
corresponde à natureza narrativa de um grande número de textos bíblicos. Ela pode
contribuir a tornar fácil a passagem, muitas vezes sofrida, entre o sentido do texto em seu
contexto histórico — tal como o método histórico-crítico procura defini-lo — e o alcance do
texto para o leitor de hoje. Em contraposição, a distinção entre « autor real » e « autor
implicito » aumenta a complexidade dos problemas de interpretação.
Aplicando-se aos textos da Bíblia, a análise narrativa não pode se contentar de colar sobre
eles modelos pré-estabelecidos. Ela deve ao contrário esforçar-se em corresponder à sua
especificidade. Sua abordagem sincrônica dos textos pede para ser completada por estudos
diacrônicos. Ela deve, de outro lado, evitar uma possível tendência a excluir toda elaboração
doutrinária dos dados que contêm os relatos da Bíblia. Ela se encontraria, então, em
desacordo com a própria tradição bíblica que pratica esse gênero de elaboração, e com a
tradição eclesial que continuou nesta via. Convém, enfim, notar que não se pode considerar a
eficácia existêncial subjetiva da Palavra de Deus transmitida narrativamente, como um
critério suficiente da verdade de sua compreensão.
3. Análise semiótica
Entre os métodos chamados sincrônicos, isto é, que se concentram sobre o estudo do texto
bíblico tal como ele se apresenta ao leitor em seu estado final, coloca-se a análise semiótica
que, há uns vinte anos, se desenvolveu bastante em certos meios. Primeiramente chamado
pelo termo geral de « estruturalismo », este método pode se propor como descendente do
lingüista suíço Ferdinand de Saussure que no início deste século elaborou a teoria segundo a
qual toda língua é um sistema de relações que obedece regras determinadas. Vários lingüistas
e literatos tiveram uma influência marcante na evolução do método. A maior parte dos
biblistas que utilizam a semiótica para o estudo da Bíblia recorre a Algirdas J. Greimas e à
Escola de Paris, da qual ele é o fundador. Abordagens ou métodos análogos, fundados sobre
a Lingüística moderna, se desenvolvem em outros lugares. É o método de Greimas que
iremos apresentar e analisar brevemente.
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Princípio da gramática do texto: cada texto respeita uma gramática, isto é, um certo número
de regras ou estruturas; em um conjunto de frases, chamado discurso, há diferentes níveis,
tendo cada um a sua gramática.
O nível narrativo. Estuda-se, no relato, as transformações que fazem passar do estado inicial
ao estado terminal. No interior de um percurso narrativo, a análise procura retraçar as
diversas fases, logicamente ligadas entre elas, que marcam a transformação de um estado em
um outro. Em cada uma destas fases, apuram-se as relações entre os « papéis » exercidos por
« atuantes » que determinam os estados e produzem as transformações.
O nível lógico-semântico. É o nível chamado profundo. Ele é também o mais abstrato. Ele
procede do postulado que formas lógicas e significantes são subjacentes às organizações
narrativas e discursivas de todo discurso. A análise a esse nível consiste –em precisar a
lógica que gera as articulações fundamentais dos percursos narrativos e figurativos de um
texto. Para isto um instrumento é muitas vezes empregado, chamado de « quadrado
semiótico », figura utilizando as relações entre dois termos « contrários » e dois termos «
contraditórios » (por exemplo, branco e negro; branco e não-branco; negro e não-negro).
A semiótica pode ser utilizada para o estudo da Bíblia apenas quando este método de análise
é separado de certos pressupostos desenvolvidos na filosofia estruturalista, isto é, a negação
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dos sujeitos e da referência extra-textual. A Bíblia é a Palavra sobre o real, que Deus
pronunciou em uma história e que ele nos dirige hoje por intermédio de autores humanos. A
abordagem semiótica deve ser aberta à história: primeiramente àquela dos atores dos textos,
em seguida àquela de seus autores e de seus leitores. O risco é grande, entre os utilizadores
da análise semiótica, de ficar em um estudo formal do conteúdo e de não liberar a mensagem
dos textos.
Se ela não se perde nos mistérios de uma linguagem complicada mas é ensinada em termos
simples em seus elementos principais, a análise semiótica pode dar aos cristãos o gosto de
estudar o texto bíblico e de descobrir algumas de suas dimensões de sentido; sem possuir
todos os conhecimentos históricos que se relacionam à produção do texto e a seu mundo
sócio-cultural. Ela pode assim mostrar-se útil na própria pastoral, para uma certa apropriação
da Escritura em ambientes não especializados.
Mesmo que eles se diferenciem do método histórico-crítico por uma atenção maior à unidade
interna dos textos estudados, os. métodos literários que acabamos de apresentar permanecem
insuficientes para a interpretação da Bíblia, pois eles consideram cada escrito isoladamente.
Ora, a Bíblia não se apresenta como um conjunto de textos desprovidos de relações entre
eles, mas como um composto de testemunhos de uma mesma e grande Tradição. Para
corresponder plenamente ao objeto de seu estudo, a exegese bíblica deve levar em
consideração este fato. Tal é a perspectiva adotada por várias abordagens que se
desenvolvem atualmente.
1. Abordagem canônica
Para fazê-lo, ela interpreta cada texto bíblico à luz do Cânon das Escrituras, isto é, da Bíblia
enquanto recebida como norma de fé por uma comunidade de fiéis. Ela procura situar cada
texto no interior do único desígnio de Deus, com o objetivo de chegar a uma atualização da
Escritura para o nosso tempo. Ela não pretende substituir o método histórico-crítico, mas
deseja complementá-lo.
Dois pontos de vista diferentes foram propostos: Brevard S. Childs centraliza seu interesse
sobre a forma canônica final do texto (livro ou coleção), forma aceita pela comunidade como
tendo autoridade para expressar sua fé e dirigir sua vida.
Mais do que sobre a forma final e estabilizada do texto, James A. Sanders coloca sua atenção
sobre o « processo canônico » ou desenvolvimento progressivo das Escrituras às quais a
comunidade dos fiéis reconheceu uma autoridade normativa. O estudo crítico deste processo
examina como as antigas tradições foram reutilizadas em novos contextos antes de constituir
um todo ao mesmo tempo estável e adaptado, coerente e fazendo união de dados divergentes,
do qual a comunidade de fé tira sua identidade. Procedimentos hermenêuticos foram
acionados no decorrer desse processo e o são ainda após a fixação do Cânon; eles são muitas
vezes do gênero do Midrashim, servindo para atualizar o texto bíblico Eles favorecem uma
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constante interação entre a comunidade e sua Escrituras, fazendo apelo a uma interpretação
que visa torna contemporânea a tradição.
A abordagem canônica reage com razão contra a valorização exagerada daquilo que é
supostamente original e primitivo, como se somente isso fosse autêntico. A Escritura
inspirada é a Escritura tal como a Igreja a reconheceu como regra de sua fé. Pode-se insistir a
esse respeito, seja sobre a forma final na qual se encontra atualmente cada um dos livros, seja
sobre o conjunto que eles constituem como Cânon. Um livro torna-se bíblico somente à luz
do Cânon inteiro.
A comunidade dos fiéis é efetivamente o contexto adequado para a interpretação dos textos
canônicos. A fé e o Espírito Santo enriquecem a exegese; a autoridade eclesial, que se exerce
a serviço da comunidade, deve velar para que a interpretação permaneça fiel à grande
Tradição que produziu os textos (cf Dei Verbum, 10).
De outro lado, as relações complexas entre o Cânon judaico das Escrituras e o Cânon cristão
suscitam numerosos problemas para a interpretação. A Igreja cristã recebeu como « Antigo
Testamento » os escritos que tinham autoridade na comunidade judaica helenística, mas
alguns deles estão ausentes da Bíblia hebraica ou se apresentam sob uma forma diferente. O
corpus é, então, diferente. Por isso a interpretação canônica não pode ser idêntica, pois c, da
texto deve ser lido em relação com o conjunto do corpus. Ma sobretudo, a Igreja lê o Antigo
Testamento à luz do acontecimento pascal — morte e ressurreição de Cristo Jesus — que traz
um radical novidade e dá, com uma autoridade soberana, um sentido decisivo e definitivo às
Escrituras (cf Dei Verbum, 4). Esta nova determinação de sentido faz parte integrante da fé
cristã. Ela não deve, portanto, tirar toda consistência à interpretação canônica anterior, aquela
que precedeu a Páscoa cristã, pois é preciso respeitar cada etapa da história da salvação.
Esvaziar da sus substância o Antigo Testamento seria privar o Novo Testamento de sua raiz
na história.
O Antigo Testamento tomou sua forma final no judaísmo dos quatro ou cinco últimos séculos
que precederam a era cristã. Esse judaísmo foi também o ambiente de origem do Novo
Testamento e da Igreja nascente. Numerosos estudos de história judaica antiga e
principalmente as pesquisas suscitadas pelas descobertas de Qumrân colocaram em relevo a
complexidade do mundo judeu, em terra de Israel e na diáspora, ao longo deste período.
É neste mundo que começou a interpretação da Escritura. Um dos mais antigos testemunhos
de interpretação judaica da Bíblia é a tradução grega dos Setenta. Os Targumim aramaicos
constituem um outro testemunho do mesmo esforço, que continuou até nossos dias,
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As tradições judaicas antigas permitem particularmente conhecer melhor a Bíblia judaica dos
Setenta, que em seguida tornou-se a primeira parte da Bíblia cristã durante pelo menos os
quatro primeiros séculos da Igreja, e no Oriente até nossos dias. A literatura judaica extra-
canônica, chamada apócrifa ou inter-testamentária, abundante e diversificada, é uma fonte
importante para a interpretação do Novo Testamento. Os procedimentos variados de exegese
praticados pelo judaísmo das diferentes tendências reencontram-se no próprio Antigo
Testamento, por exemplo nas Crônicas em relação aos Livros dos Reis, e no Novo
Testamento, por exemplo, em certos raciocínios escriturísticos de são Paulo. A diversidade
das formas (parábolas, alegorias, antologia e florilégios, releituras, pesher, comparações
entre textos distantes, salmos e hinos, visões, revelações e sonhos, composições sapienciais)
é comum ao Antigo e ao Novo Testamento assim como à literatura de todos os ambientes
judaicos antes e após o tempo de Jesus. Os Targumim e os Midrashim representam a
homilética e a interpretação bíblica de grandes setores do judaísmo dos primeiros séculos.
Além disso, numerosos exegetas do Antigo Testamento pedem aos comentadores, gramáticos
e lexicógrafos judeus medievais e mais recentes, luzes para a inteligência de passagens
obscuras ou de palavras raras e únicas. Mais freqüentes que antigamente, aparecem hoje
referências a essas obras judaicas na discussão exegética.
Esta abordagem apóia-se sobre dois princípios: a) um texto torna-se uma obra literária
somente se ele encontra leitores que lhe dão vida apropriando-se dele; b) essa apropriação do
texto, que pode se efetuar de maneira individual ou comunitária e toma forma em diferentes
domínios (literário, artístico, teológico, ascético e místico), contribui a fazer compreender
melhor o texto em si.
Sem ser totalmente desconhecida da antiguidade, esta abordagem se desenvolveu entre 1960
e 1970 nos estudos literários, logo que a crítica interessou-se pelas relações entre o texto e
seus leitores. A exegese bíblica só podia obter benefícios com esta pesquisa, ainda mais que
a hermenêutica filosófica afirmava por seu lado a necessária distância entre a obra e seu
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autor, assim como entre a obra e seus leitores. Nesta perspectiva, começou-se a fazer entrar
no trabalho de interpretação a história do efeito provocado por um livro ou uma passagem da
Escritura (« Wirkungsgeschichte »). Esforça-se em medir a evolução da interpretação no
decorrer do tempo em função das preocupações dos leitores e em avaliar a importância do
papel da tradição para iluminar o sentido dos textos bíblicos.
Colocar-se em presença do texto e de seus leitores suscita uma dinâmica, pois o texto exerce
uma irradiação e provoca reações. Ele faz ressoar um apelo, que é ouvido pelos leitores
individualmente ou em grupos. O leitor, aliás, não é nunca um sujeito isolado. Ele pertence a
um espaço social e se situa em uma tradição. Ele vem ao texto com suas questões, opera uma
seleção, propõe uma interpretação e, finalmente, ele pode criar uma outra obra ou tomar
iniciativas que se inspiram diretamente na sua leitura da Escritura.
Os exemplos de uma tal abordagem já são numerosos. A história da leitura do Cântico dos
Cânticos oferece um excelente testemunho disso; ela mostra como esse livro foi recebido na
época dos Padres da Igreja, no ambiente monástico latino da Idade Média ou ainda por um
místico como são João da Cruz; assim ele permite melhor descobrir todas as dimensões do
sentido deste escrito. Da mesma maneira no Novo Testamento é possível e útil esclarecer o
sentido de uma pericope (por exemplo, aquela do jovem rico em Mt 19,16-26) mostrando sua
fecundidade no curso da história da Igreja.
Para se comunicar, a Palavra de Deus se enraizou na vida de grupos humanos (cf Ecle 24,12)
e ela traçou a si mesma um caminho através dos condicionamentos psicológicos das diversas
pessoas que compuseram os escritos bíblicos. Resulta disso que as ciências humanas — em
particular a sociologia, a antropologia e a psicologia — podem contribuir a uma
compreensão melhor de certos aspectos dos textos. Convém, no entanto, notar que existem
várias escolas, com divergências notáveis sobre a própria natureza dessas ciências. Dito isto,
um bom número de exegetas tirou recentemente proveito desse gênero de pesquisas.
1. Abordagem sociológica
Os textos religiosos estão unidos por uma conexão de relação recíproca com as sociedades
nas quais eles nascem. Esta constatação vale evidentemente para os textos bíblicos.
Consequentemente, o estudo crítico da Bíblia necessita um conhecimento tão exato quanto
possível dos comportamentos sociais que caracterizam os diversos ambientes nos quais as
tradições bíblicas se formaram. Esse gênero de informação sócio-histórica deve ser
completado por uma explicação sociológica correta, que interprete cientificamente, em cada
caso, o alcance das condições sociais de existência.
Na história da exegese, o ponto de vista sociológico encontrou seu lugar há muito tempo. A
atenção que a « Formgeschichte » deu ao ambiente de origem dos textos (« Sitz im Leben »)
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é um testemunho disso: reconhece-se que as tradições bíblicas levam a marca dos ambientes
sócio-culturais que as transmitiram. No primeiro terço do século XX a Escola de Chicago
estudou a situação sócio-histórica da cristandade primitiva, dando assim à crítica histórica
um impulso apreciável nesta direção. Não decorrer dos vinte últimos anos (1970-1990), a
abordagem sociológica dos textos bíblicos tornou-se parte integrante da exegese.
Numerosas são as questões feitas a esse respeito à exegese do Antigo Testamento. Deve-se
perguntar, por exemplo, quais são as diversas formas de organização social e religiosa que
Israel conheceu no decorrer de sua história. Para o período anterior à formação de um
Estado, o modelo etnológico de uma sociedade acéfala segmentária forneceu uma base de
partida suficiente? Como se passou de uma liga de tribos, sem grande coesão, a um Estado
organizado em monarquia e, de lá, a uma comunidade baseada simplesmente sobre as
ligações religiosas e genealógicas? Quais transformações econômicas, militares e outras
foram provocadas na estrutura da sociedade pelo movimento de centralização política e
religiosa que conduziu à monarquia? O estudo das normas de comportamento no Antigo
Oriente e em Israel não contribui com mais eficácia à inteligência do Decálogo do que as
tentativas puramente literárias de reconstrução de um texto primitivo?
É o caso aqui de assinalar alguns riscos que a abordagem sociológica faz correr a exegese.
Efetivamente, se o trabalho da sociologia consiste em estudar as sociedades vivas, é
previsível encontrar algumas dificuldades logo que se quer aplicar seus métodos a ambientes
históricos que pertençam a um passado longínquo. Os textos bíblicos e extra-bíblicos não
fornecem forçosamente uma documentação suficiente para dar uma visão de conjunto da
sociedade da época. Aliás, o método sociológico tende a dar mais atenção aos aspectos
econômicos e institucionais da existência humana do que às suas dimensões pessoais e
religiosas.
A abordagem dos textos bíblicos que utiliza as pesquisas de antropologia cultural está em
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ligação estreita com a abordagem sociológica. A distinção dessas duas abordagens situa-se
ao mesmo tempo a nível da sensibilidade, do método e dos aspectos da realidade que retêm a
atenção. Enquanto que a abordagem sociológica — acabamos de dizê-lo — estuda sobretudo
os aspectos econômicos e institucionais, a abordagem antropológica interessa-se por um
vasto conjunto de outros aspectos que se refletem na linguagem, arte, religião, mas também
nos vestuários, ornamentos, festas, danças, mitos, lendas e tudo o que concerne a etnografia.
Tendo-se por base esses diversos elementos, constitui-se tipologias e « modelos » comuns a
várias culturas.
Esse gênero de estudos pode evidentemente ser útil para a interpretação dos textos bíblicos e
ele é efetivamente utilizado para o estudo das concepções de parentesco no Antigo
Testamento, a posição da mulher na sociedade israelita, a influência dos ritos agrários, etc.
Nos textos que relatam o ensinamento de Jesus, por exemplo as parábolas, muitos detalhes
podem ser esclarecidos graças a essa abordagem. Ocorre o mesmo para as concepções
fundamentais, como aquela do reino de Deus, ou para a maneira de conceber o tempo na
história da salvação, assim como para os processos de aglutinação das comunidades
primitivas. Esta abordagem permite distinguir melhor os elementos permanentes da
mensagem bíblica cujo fundamento está na natureza humana, e as determinações
contingentes segundo culturas particulares. Todavia, não mais que outras abordagens
particulares, esta não está em si à altura de levar em conta as contribuições específicas da
revelação. Convém estar ciente disso no momento de apreciar o alcance de seus resultados.
Psicologia e teologia não cessaram jamais de estar em diálogo uma com a outra. A extensão
moderna das pesquisas psicológicas ao estudo das estruturas dinâmicas do inconsciente
suscitou novas tentativas de interpretação dos textos antigos, e assim também da Bíblia.
Obras inteiras foram consagradas à interpretação psicanalítica de textos bíblicos. Vivas
discussões seguiram-nas: em qual medida e em quais condições as pesquisas psicológicas e
psicanalíticas podem contribuir para uma compreensão mais profunda da Santa Escritura?
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Numerosos exemplos podem ser citados, que mostram a necessidade de um esforço comum
dos exegetas e dos psicólogos: para esclarecer o sentido dos ritos do culto, dos sacrifícios,
dos interditos, para explicar a linguagem cheia de imagens da Bíblia, o alcance metafórico
dos relatos de milagres, a força dramática das visões e audições apocalípticas. Não se trata
simplesmente de descrever a linguagem simbólica da Bíblia, mas apreender sua função de
revelação e de interpelação: a realidade « luminosa » de Deus entra aqui em contato com o
homem.
Notemos ainda que não se pode falar da « exegese psicanalítica » como se houvesse apenas
uma. Existe, em realidade, provenientes de diversos domínios da psicologia e das diversas
escolas, uma grande variedade de conhecimentos suscetíveis de contribuir à interpretação
humana e teológica da Bíblia. Considerar absoluta uma ou outra posição de uma das escolas
não favorece a fecundidade do esforço comum, ao contrário lhe e nocivo.
E. Abordagens contextuais
1. Abordagem da libertação
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ponto de partida, além das circunstâncias econômicas, sociais e politicas dos países da
América Latina, encontra-se em dois grandes acontecimentos eclesiais: o Concilio Vaticano
II, com sua vontade declarada de aggiornamento e de orientação do trabalho pastoral da
Igreja em direção às necessidades do mundo atual, e a 2ª Assembléia plenária do CELAM
(Conselho Episcopal Latino-americano) em Medellin em 1968, que aplicou os ensinamentos
do Concilio às necessidades da América Latina. O movimento se propagou também em
outras partes do mundo (África, Ásia, população negra dos Estados Unidos).
É difícil discernir se existe « uma » teologia da libertação e definir seu método. É tão difícil
quanto determinar adequadamente sua maneira de ler a Bíblia para indicar em seguida as
contribuições e os limites. Pode-se dizer que ela não adota um método especial. Mas,
partindo de pontos de vista sócio-culturais e políticos próprios, ela pratica uma leitura bíblica
orientada em função das necessidades do povo, que procura na Bíblia o alimento da sua fé e
da sua vida.
Ao invés de se contentar com uma interpretação objetivante, que se concentra sobre aquilo
que diz o texto em seu contexto de origem, procura-se uma leitura que nasça da situação
vivida pelo povo. Se este último vive em circunstâncias de opressão, é preciso recorrer à
Bíblia para nela procurar o alimento capaz de sustentá-lo em suas lutas e suas esperanças. A
realidade presente não deve ser ignorada, mas, ao contrário, afrontada em vista de iluminá-la
à luz da Palavra. Desta luz resultará a práxis cristã autêntica, tendendo à transformação da
sociedade por meio da justiça e do amor. Na fé, a Escritura se transforma em fator de
dinamismo de libertação integral.
Deus está presente na história de seu povo para salvá-lo. Ele é o Deus dos pobres, que não
pode tolerar a opressão nem a injustiça.
É por isso que a exegese não pode ser neutra, mas deve tomar partido pelos pobres no
seguimento de Deus, e engajar-se no combate pela libertação dos oprimidos.
Mas a leitura tão engajada da Bíblia comporta riscos. Como ela é ligada a um movimento em
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plena evolução, as observações que seguem não podem que ser provisórias.
Essa leitura se concentra sobre textos narrativos e proféticos que iluminam situações de
opressão e que inspiram uma práxis tendendo a uma mudança social: aqui ou lá ela pôde ser
parcial, não dando tanta atenção a outros textos da Bíblia. É certo que a exegese não pode ser
neutra, mas ela deve também evitar de ser unilateral. Aliás, o engajamento social e politico
não é a tarefa direta do exegeta.
Sob a pressão de enormes problemas sociais, o acento foi colocado principalmente sobre
uma escatologia terrestre, muitas vezes em detrimento da dimensão escatológica
transcendente da Escritura.
2. Abordagem feminista
A hermenêutica bíblica feminista nasceu por volta do fim do século XIX nos Estados
Unidos, no contexto sócio-cultural da luta pelos direitos da mulher, com o comitê de revisão
da Bíblia. Este último produziu o « The Woman's Bible » em dois volumes (New York 1885,
1898). Esta corrente se manifestou com grande vigor e teve um enorme desenvolvimento a
partir dos anos '70, em ligação com o movimento de libertação da mulher, sobretudo na
América do Norte. Melhor dizendo, deve-se distinguir várias hermenêuticas bíblicas
feministas, pois as abordagens utilizadas são muito diversas. A unidade delas provém do
tema comum, isto é a mulher, e do fim perseguido: a libertação da mulher e a conquista de
direitos iguais aos do homem.
Deve-se mencionar aqui três formas principais da hermenêutica bíblica feminista: a forma
radical, a forma neo-ortodoxa e a forma crítica.
A forma radical recusa completamente a autoridade da Bíblia, dizendo que ela foi produzida
por homens em vista de assegurar a dominação do homem sobre a mulher (androcentrismo).
A forma neo-ortodoxa aceita a Bíblia como profecia e suscetível de servir, na medida em que
ela toma partido pelos fracos e assim também pela mulher; esta orientação é adotada como «
cânon no cânon », para colocar em relevo tudo aquilo que é em favor da libertação da mulher
e de seus direitos.
A forma crítica utiliza uma metodologia sutil e procura redescobrir a posição e o papel da
mulher cristã no movimento de Jesus e nas Igrejas paulinas. Naquela época teria-se adotado
o igualitarismo. Mas esta situação teria sido mascarada, em grande parte, nos escritos do
Novo Testamento e ainda mais na sua sequência, tendo progressivamente prevalecido o
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patriarcalismo e o androcentrismo.
A hermenêutica feminista não elaborou um método novo. Ela se serve dos métodos correntes
em exegese, especialmente o método histórico-crítico. Mas ela acrescenta dois critérios de
investigação.
O segundo critério é sociológico; ele se baseia no estudo das sociedades dos tempos bíblicos,
de sua estratificação social e da posição que a mulher ocupava.
Na medida em que a exegese feminista se fundamenta sobre uma idéia preconcebida, ela se
expõe a interpretar os textos bíblicos de maneira tendenciosa e portanto contestável. Para
provar suas teses ela deve muitas vezes, na falta de melhor, recorrer a argumentos ex silentio.
É sabido que estes são geralmente duvidosos; eles não podem nunca bastar para estabelecer
solidamente uma conclusão. De outro lado, a tentativa feita para reconstituir, graças a
indícios fugitivos discernidos nos textos, uma situação histórica que esses mesmos textos
pretendem querer esconder, não corresponde mais a um trabalho de exegese propriamente
dito, pois ela conduz à rejeição dos textos inspirados preferindo uma construção hipotética
diferente.
A exegese feminista propõe muitas vezes questões de poder na Igreja que são, sabe-se, objeto
de discussões e mesmo de confrontos. Nesse domínio, a exegese feminista só poderá ser útil
à Igreja na medida em que ela não cair nas armadilhas mesmas que denuncia e quando ela
não perder de vista o ensinamento evangélico sobre o poder como serviço, ensinamento
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F. Leitura fundamentalista
A leitura fundamentalista parte do princípio de que a Bíblia, sendo Palavra de Deus inspirada
e isenta de erro, deve ser lida e interpretada literalmente em todos os seus detalhes. Mas por
« interpretação literal » ela entende uma interpretação primária, literalista, isto é, excluindo
todo esforço de compreensão da Bíblia que leve em conta seu crescimento histórico e seu
desenvolvimento. Ela se opõe assim à utilização do método histórico-crítico, como de
qualquer outro método científico, para a interpretação da Escritura.
A leitura fundamentalista teve sua origem na época da Reforma, com uma preocupação de
fidelidade ao sentido literal da Escritura. Após o século das Luzes, ela se apresentou no
protestantismo como uma proteção contra a exegese liberal. O termo « fundamentalista » é
ligado diretamente ao Congresso Bíblico Americano realizado em Niagara, Estado de New
York, em 1895. Os exegetas protestantes conservadores definiram nele « cinco pontos de
fundamentalismo »: a inerrância verbal da Escritura, a divindade de Cristo, seu nascimento
virginal, a doutrina da expiação vicária e a ressurreição corporal quando da segunda vinda de
Cristo. Logo que a leitura fundamentalista da Bíblia se propagou em outras partes do mundo
ela fez nascer outras espécies de leituras, igualmente « literalistas », na Europa, Ásia, Africa
e América do Sul. Esse gênero de leitura encontra cada vez mais adeptos, no decorrer da
última parte do século XX, em grupos religiosos e seitas assim como também entre os
católicos.
Se bem que o fundamentalismo tenha razão em insistir sobre a inspiração divina da Bíblia, a
inerrância da Palavra de Deus e as outras verdades bíblicas inclusas nos cinco pontos
fundamentais, sua maneira de apresentar essas verdades está enraizada em uma ideologia que
não é bíblica, apesar do que dizem seus representantes. Ela exige uma forte adesão a atitudes
doutrinárias rígidas e impõe, como fonte única de ensinamento a respeito da vida cristã e da
salvação, uma leitura da Bíblia que recusa todo questionamento e toda pesquisa crítica.
O fundamentalismo insiste também de uma maneira indevida sobre a inerrância dos detalhes
nos textos bíblicos, especialmente em matéria de fatos históricos ou de pretensas verdades
científicas. Muitas vezes ele torna histórico aquilo que não tinha a pretensão de historicidade,
pois ele considera como histórico tudo aquilo que é reportado ou contado com os verbos em
um tempo passado, sem a necessária atenção à possibilidade de um sentido simbólico ou
figurativo.
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O fundamentalismo tem igualmente tendência a uma grande estreiteza de visão, pois ele
considera conforme à realidade uma antiga cosmologia já ultrapassada, só porque
encontra-se expressa na Bíblia; isso impede o diálogo com uma concepção mais ampla das
relações entre a cultura e a fé. Ele se apóia sobre uma leitura não-crítica de certos textos da
Bíblia para confirmar idéias políticas e atitudes sociais marcadas por preconceitos, racistas,
por exemplo, simplesmente contrários ao Evangelho cristão.
A abordagem fundamentalista é perigosa, pois ela é atraente para as pessoas que procuram
respostas bíblicas para seus problemas da vida. Ela pode enganá-las oferecendo-lhes
interpretações piedosas mas ilusórias, ao invés de lhes dizer que a Bíblia não contém
necessariamente uma resposta imediata a cada um desses problemas. O fundamentalismo
convida, sem dizê-lo, a uma forma de suicídio do pensamento. Ele coloca na vida uma falsa
certeza, pois ele confunde inconscientemente as limitações humanas da mensagem bíblica
com a substancia divina dessa mensagem.
A. Hermenêuticas filosóficas
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Georg Gadamer e Paul Ricceur. Não se pode aqui resumir-lhes o pensamento. Será suficiente
indicar algumas idéias centrais da filosofia deles, aquelas que têm uma incidência sobre a
interpretação dos textos bíblicos.(3)
1. Perspetivas modernas
Constatando a distância cultural entre o mundo do primeiro século e aquele do século XX, e
preocupado em obter que a realidade da qual trata a Escritura fale ao homem contemporâneo,
Bultmann insistiu na pré-compreensão necessária a toda compreensão e elaborou a teoria da
interpretação existencial dos escritos do Novo Testamento. Apoiando-se no pensamento de
Heidegger, ele afirma que a exegese de um texto bíblico não é possível sem pressupostos que
dirigem a compreensão. A pré-compreensão (« Vorverständnis ») é fundamentada na relação
vital (« Lebensverhältnis ») do intérprete com a coisa da qual fala o texto. Para evitar o
subjetivismo, é preciso no entanto que a pré-compreensão se deixe aprofundar e enriquecer,
até mesmo se modificar e se corrigir, por aquilo do qual fala o texto.
Gadamer sublinha igualmente a distância histórica entre o texto e seu intérprete. Ele retoma
e desenvolve a teoria do círculo hermenêutico. As antecipações e as pré-concepções que
marcam nossa compreensão provêm da tradição que nos sustenta. Esta consiste em um
conjunto de dados históricos e culturais, que constituem nosso contexto vital, nosso
horizonte de compreensão. O intérprete deve entrar em diálogo com a realidade à qual se
refere o texto. A compreensão se opera na fusão dos horizontes diferentes do texto e de seu
leitor (« Horizontverschmelzung »). Ela só é possível se há uma dependência («
Zugehörigkeit »), isto é, uma afinidade fundamental entre o intérprete e seu objeto. A
hermenêutica é um processo dialético: a compreensão de um texto é sempre uma
compreensão mais ampla de si mesmo.
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O que dizer dessas teorias contemporâneas de interpretação dos textos? A Bíblia é Palavra de
Deus para todas as épocas que se sucedem. Consequentemente não se poderia dispensar uma
teoria hermenêutica que permite incorporar os métodos de crítica literária e histórica em um
modelo de interpretação mais amplo. Trata-se de ultrapassar a distância entre o tempo dos
autores e primeiros destinatários dos textos bíblicos e nossa época contemporânea, de modo
a atualizar corretamente a mensagem dos textos para alimentar a vida de fé dos cristãos. Toda
exegese dos textos é chamada a ser completada por uma « hermenêutica », no sentido recente
do termo.
É preciso reconhecer, efetivamente, que certas teorias hermenêuticas são inadequadas para
interpretar a Escritura. Por exemplo, a interpretação existencial de Bultmann conduz ao
aprisionamento da mensagem cristã na argola de uma filosofia particular. Além disso, em
virtude dos pressupostos que comandam esta hermenêutica, a mensagem religiosa da Bíblia é
esvaziada em grande parte de sua realidade objetiva (na sequência de uma excessiva «
demitização ») e tende a se subordinar a uma mensagem antropológica. A filosofia torna-se
norma de interpretação invés de ser instrumento de compreensão daquilo que é o objeto
central de toda interpretação: a pessoa de Jesus Cristo e os acontecimentos da salvação
realizados em nossa história. Uma autêntica interpretação da Escritura é primeiramente
acolhida de um sentido dado nos acontecimentos e, de maneira suprema, na pessoa de Jesus
Cristo.
Este sentido é expresso nos textos. Para evitar o subjetivismo, uma boa atualização deve
então ser fundada sobre o estudo do texto e os pressupostos de leitura devem ser
constantemente submetidos à verificação através do texto.
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Mas esta tese choca-se agora com as conclusões das ciências da linguagem e das
hermenêuticas filosóficas, que afirmam a polissemia dos textos escritos.
O problema não é simples e ele não se apresenta da mesma maneira para todos os gêneros de
textos: relatos históricos, parábolas, oráculos, leis, provérbios, orações, hinos, etc. Pode-se,
entretanto, dar alguns princípios gerais, levando-se em conta a diversidade das opiniões.
1. Sentido literal
É não apenas legítimo mas indispensável procurar definir o sentido preciso dos textos tais
como foram produzidos por seus autores, sentido chamado de « literal ». Já são Tomás de
Aquino afirmava sua importância fundamental ( S. Th., I, q.l, a. 10, ad. 1).
O sentido literal não deve ser confundido com o sentido « literalista » ao qual aderem os
fundamentalistas. Não é suficiente traduzir um texto palavra por palavra para obter seu
sentido literal. É preciso compreendê-lo segundo as convenções literárias da época. Quando
um texto é metafórico, seu sentido literal não é aquele que resulta imediatamente do palavra
por palavra (por exemplo: « Tende os rins cingidos », Lc 12,35), mas aquele que corresponde
ao uso metafórico dos termos (« Tende uma atitude de disponibilidade »). Quando se trata de
um relato, o sentido literal não comporta necessariamente a afirmação de que os fatos
contados tenham efetivamente acontecido, pois um relato pode não pertencer ao gênero
histórico, mas ser uma obra de imaginação.
O sentido literal da Escritura é aquele que foi expresso diretamente pelos autores humanos
inspirados. Sendo o fruto da inspiração, este sentido é também desejado por Deus, autor
principal. Ele é discernido graças a uma análise precisa do texto, situado em seu contexto
literário e histórico. A tarefa principal da exegese é de bem conduzir esta análise, utilizando
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O sentido literal de um texto é único? Geralmente sim; mas não se trata aqui de um princípio
absoluto, e isso por duas razões. De um lado, um autor humano pode querer se referir ao
mesmo tempo a vários níveis de realidade. O caso é comum em poesia. A inspiração bíblica
não desdenha esta possibilidade da psicologia e da linguagem humana; o IV Evangelho
fornece numerosos exemplos disto. De outro lado, mesmo quando uma expressão humana
parece ter um único significado, a inspiração divina pode guiar a expressão de maneira a
produzir urna ambivalência. Este é o caso da palavra de Caifás em Jo 11,50. Ela exprime ao
mesmo tempo um cálculo político imoral e uma revelação divina. Estes dois aspectos
pertencem um e outro ao sentido literal, pois eles são, os dois, colocados em evidência pelo
contexto. Se bem que ele seja extremo, este caso é significativo; ele deve advertir contra uma
concepção muito estrita do sentido literal dos textos inspirados.
Convém particularmente estar atento ao aspecto dinâmico de muitos textos. O sentido dos
Salmos reais, por exemplo, não deve estar limitado estritamente às circunstâncias históricas
da produção deles. Falando do rei, o salmista evocava ao mesmo tempo uma instituição
verdadeira e uma visão ideal da realeza, conforme ao plano de Deus, de maneira que seu
texto ultrapassava a instituição real tal como ela tinha se manifestado na história. A exegese
histórico-crítica teve muitas vezes a tendência de fixar o sentido dos textos, ligando-o
exclusivamente a circunstâncias históricas precisas. Ela deve antes de tudo procurar
determinar a direção do pensamento expresso pelo texto, direção que, ao invés de convidar o
exegeta a fixar o sentido, sugere-lhe, ao contrário, de perceber seu desenvolvimento mais ou
menos previsível.
Uma corrente da hermenêutica moderna sublinhou a diferença de estatuto que afeta a palavra
humana logo que ela é colocada por escrito. Um texto escrito tem a capacidade de ser
colocado em circunstancias novas, que o iluminam de maneiras diferentes, acrescentando ao
seu sentido novas determinações. Esta capacidade do texto escrito é especialmente efetiva no
caso dos textos bíblicos, reconhecidos como Palavra de Deus. Efetivamente, o que levou a
comunidade de fiéis a conservá-los foi a convicção que eles continuariam a ser portadores de
luz e de vida para as gerações vindouras. O sentido literal é, desde o início, aberto a
desenvolvimentos ulteriores, que se produzem graças a « releituras » em contextos novos.
Não se deve concluir que se possa atribuir a um texto bíblico qualquer sentido,
interpretando-o de maneira subjetiva. E preciso, ao contrário, rejeitar como inautêntica toda
interpretação que seja heterogênea ao sentido expresso pelos autores humanos e no texto
escrito por eles. Admitir sentidos heterogêneos equivaleria a cortar a mensagem bíblica de
sua raiz, que é a Palavra de Deus comunicada historicamente, e a abrir a porta a um
subjetivismo incontrolável.
2. Sentido espiritual
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antigas circunstancias deveriam ser considerados como hipérboles (por exemplo, o oráculo
onde Deus, falando de um filho de Davi, prometia afirmar « para sempre » seu trono: 2 Sam
7,12-13; 1 Cron 17,11-14), doravante esses textos devem ser tomados ao pé da letra, porque
o « Cristo, tendo ressuscitado dentre os mortos, já não morre » (Rom 6,9). Os exegetas que
têm uma noção limitada, « histórica », do sentido literal estimarão que aqui há
heterogeneidade. Aqueles que são abertos ao aspecto dinâmico dos textos reconhecerão uma
continuidade profunda ao mesmo tempo que uma passagem a um nível diferente: o Cristo
reina para sempre, mas não sobre o trono terrestre de Davi (cf também Sal 2,7-8; 110,1.4).
Nos casos desse gênero, fala-se de « sentido espiritual ». Em regra geral, pode-se definir o
sentido espiritual, entendido segundo a fé cristã, como o sentido expresso pelos textos
bíblicos, logo que são lidos sob influência do Espírito Santo no contexto do mistério pascal
do Cristo e da vida nova que resulta dele. Esse contexto existe efetivamente. O Novo
Testamento reconhece nele a realização das Escrituras. É, assim, normal reler as Escrituras à
luz deste novo contexto, que é aquele da vida no Espírito.
Da definição dada pode-se fazer várias precisões úteis sobre as relações entre sentido
espiritual e sentido literal:
Em sentido contrário a uma opinião corrente, não há necessariamente distinção entre esses
dois sentidos. Quando um texto bíblico se refere diretamente ao mistério pascal do Cristo ou
à vida nova que resulta dele, seu sentido literal é um sentido espiritual. Este é o caso habitual
no Novo Testamento. Conclui-se que é a respeito do Antigo Testamento que a exegese cristã
fala muitas vezes de sentido espiritual. Mas já no Antigo Testamento, os textos têm em
vários casos como sentido literal um sentido religioso e espiritual. A fé cristã reconhece aqui
uma relação antecipada com a vida nova trazida pelo Cristo.
Quando há distinção, o sentido espiritual não pode jamais ser privado de relações com o
sentido literal. Este último permanece a base indispensável. De outra maneira não se poderia
falar de « realização » da Escritura. Para que haja realização efetiva, é essencial uma relação
de continuidade e de conformidade. Mas é preciso também que haja passagem a um nível
superior de realidade.
O sentido espiritual não pode ser confundido com as interpretações subjetivas ditadas pela
imaginação ou a especulação intelectual. Ele resulta da relação do texto com dados reais que
não lhe são estranhos, como o acontecimento pascal e sua fecundidade inesgotável que
constitui o grau supremo da intervenção divina na história de Israel em proveito da
humanidade inteira.
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3. Sentido pleno
Trata-se, então, ou do significado que um autor bíblico atribui a um texto bíblico que lhe é
anterior, quando ele o retoma em um contexto que lhe confere um sentido literal novo, ou
ainda do significado que a tradição doutrinal autêntica ou uma definição conciliar dão a um
texto da Bíblia. Por exemplo, o contexto de Mt 1,23 dá um sentido pleno ao oráculo de Is
7,14 sobre a almah que conceberá, utilizando a tradução dos Setenta (parthenos): « A virgem
conceberá ». O ensinamento patrístico e conciliar sobre a Trindade expressa o sentido pleno
do ensinamento do Novo Testamento sobre Deus Pai, Filho e Espírito. A definição do pecado
original pelo Concilio de Trento fornece o sentido pleno do ensinamento de Paulo em Rm
5,12-21 a respeito das consequências do pecado de Adão para a humanidade. Mas, quando
falta um controle desse gênero — por um texto bíblico explicito ou por uma tradição
doutrinal autêntica — o recurso a um pretenso sentido pleno poderia conduzir a
interpretações subjetivas desprovidas de toda validade.
A exegese católica não procura se diferenciar por um método científico particular. Ela
reconhece que um dos aspectos dos textos bíblicos é o de ser a obra de autores humanos, que
se serviram de suas próprias capacidades de expressão e meios que a época e o ambiente
deles colocavam-lhes à disposição. Consequentemente, ela utiliza sem subentendidos todos
os métodos e abordagens científicos que permitem melhor apreender o sentido dos textos no
contexto linguístico, literário, sócio-cultural, religioso e histórico deles, iluminando-os
também pelo estudo de suas fontes e levando em conta a personalidade de cada autor (cf
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Divino afflante Spiritu, E. B., 557). Ela contribui ativamente ao desenvolvimento dos
métodos e ao progresso da pesquisa.
O que a caracteriza é que ela se situa conscientemente na tradição viva da Igreja, cuja
primeira preocupação é a fidelidade à revelação atestada pela Bíblia. As hermenêuticas
modernas colocaram em destaque, lembremo-nos, a impossibilidade de interpretar um texto
sem partir de uma « pré-compreensão » de um gênero ou de um outro. A exegese católica
aborda os escritos bíblicos com uma pré-compreensão que une estreitamente a cultura
moderna científica e a tradição religiosa proveniente de Israel e da comunidade cristã
primitiva. Sua interpretação encontra-se, assim, em continuidade com o dinamismo de
interpretação que se manifesta no interior da própria Bíblia e que se prolonga em seguida na
vida da Igreja. Ela corresponde à exigência de afinidade vital entre o intérprete e seu objeto,
afinidade que constitui uma das condições de possibilidade do trabalho exegético.
Os textos da Bíblia são a expressão de tradições religiosas que existiam antes deles. A
maneira pela qual eles se ligam a essas tradições é diferente segundo o caso, a criatividade
dos autores manifestando-se em graus diversos. No decorrer dos tempos, múltiplas tradições
convergiram pouco a pouco para formar uma grande tradição comum. A Bíblia é urna
manifestação privilegiada desse processo, que ela contribuiu a realizar e do qual ela continua
a ser reguladora.
1. Releituras
O que contribui a dar à Bíblia sua unidade interna, única em seu gênero, é o fato de que os
escritos bíblicos posteriores apóiam-se muitas vezes sobre os escritos anteriores. Fazem
alusão a eles, propõem « releituras » que desenvolvem novos aspectos de sentido, algumas
vezes muito diferentes do sentido primitivo, ou ainda referem-se a eles explicitamente, seja
para aprofundar-lhes o significado, seja para afirmar-lhes a realização.
É assim que a herança de uma terra, prometida por Deus a Abrahão para a sua descendência
(Gn 15,7.18), torna-se a entrada no santuário de Deus (Ex 15,17), uma participação ao
repouso de Deus (Sal 132,7-8) reservada aos verdadeiros fiéis (Sal 95,8-11; He 3,7-4,11) e,
finalmente, a entrada no santuário celeste (He 6,12.18-20), «herança eterna » (He 9,15).
O oráculo do profeta Natã, que promete a Davi uma « casa », isto é, uma sucessão dinástica,
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« estável para sempre » (2 Sam 7,12-16), é lembrado em numerosas ocasiões (2 Sam 23,5; 1
Re 2,4; 3,6; 1 Cron 17,11-14), especialmente nos tempos de aflição (Sal 89,20-38), não sem
variações significativas, e ele é desenvolvido por outros oráculos (Sal 2,7-8; 110,1.4; Am
9,11; Is 7,13-14; Jer 23,5-6; etc.), alguns dos quais anunciam o retorno do próprio reino de
Davi (Os 3,5; Jer 30,9; Ez 34,24; 37,24-25; cf Mc 11,10). O reino prometido torna-se
universal (Sal 2,8; Dn 2,35.44; 7,14; cf Mt 28,18). Ele realiza plenamente a vocação do
homem (Gn 1,28; Sal 8,6-9; Sab 9,2-3; 10,2).
O oráculo de Jeremias sobre os 70 anos de castigo merecidos por Jerusalem e Judá (Jer
25,11-12; 29,10) é lembrado em 2 Cron 25,20-23, que constata sua realização. Mas, no
entanto, ele é remeditado após muito tempo pelo autor de Daniel na convicção de que esta
palavra de Deus guarda ainda um sentido escondido, que deve iluminar a situação presente
(Dn 9,24-27).
Como sempre, entre as Escrituras e os acontecimentos que as realizam, as relações não são
de simples correspondência material, mas de iluminação recíproca e de progresso dialético:
constata-se ao mesmo tempo que as Escrituras revelam o sentido dos acontecimentos e que
os acontecimentos revelam o sentido das Escrituras, isto é, que eles obrigam a renunciar a
certos aspectos da interpretação recebida para adotar uma interpretação nova.
Desde o tempo de seu ministério público, Jesus tinha tomado uma posição pessoal original,
diferente da interpretação recebida em sua época, que era aquela « dos escribas e dos fariseus
» (Mt 5,20). Numerosos são os testemunhos disso: as antíteses do Sermão da montanha (Mt
5,21-48), a liberdade soberana de Jesus na observância do sábado (Mc 2, 27-28 e paral.), sua
maneira de tornar relativos os preceitos de pureza ritual (Mc 7,1-23 e paral.), ao contrário,
sua exigência radical em outros domínios (Mt 10,2-12 e paral.; 10,17-27 e paral.) e sobretudo
sua atitude de receptividade em relação « aos publicanos e pecadores » (Mc 2,15-17 e paral.).
De sua parte não era capricho de contestador mas, ao contrário, fidelidade mais profunda à
vontade de Deus expressa na Escritura (cf Mt 5,17; 9,13; Mc 7,8-13 e paral.; 10,5-9 e paral.).
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interpretação terrestre dos Salmos reais e dos oráculos messiânicos. Sua ressurreição e sua
glorificação celeste como Filho de Deus deram a esses mesmos textos uma plenitude de
sentido inconcebível anteriormente. Expressões que pareciam hiperbólicas devem doravante
ser tomadas ao pé da letra. Elas aparecem como que preparadas por Deus para expressar a
glória do Cristo Jesus, pois Jesus é realmente « Senhor » (Sal 110,1) no sentido mais forte do
termo (At 2,36; Fil 2,10-11; He 1,10-12); ele é o Filho de Deus (Sal 2,7; Mc 14,62; Rm
1,3-4), Deus com Deus (Sal 45,7; He 1,8; Jo 1,1; 20,28); « seu reino não terá fim » (Lc
1,32-33; cf 1 Cron 17,11-14; Sal 45,7; He 1,8) e ele é ao mesmo tempo « sacerdote
eternamente » (Sal 110,4; He 5,6-10; 7,23-24).
Foi à luz dos acontecimentos da Páscoa que os autores do Novo Testamento releram o
Antigo Testamento. O Espírito Santo enviado pelo Cristo glorificado (cf Jo 15,26; 16,7) os
fez descobrir nele o sentido espiritual. Foram assim conduzidos a afirmar mais do que nunca
o valor profético do Antigo Testamento, mas também a tornar fortemente relativo seu valor
de instituição salvífica. Esse segundo ponto de vista, que aparece já nos Evangelhos (cf Mt
11,11-13 e paral.; 12,41-42 e paral.; Jo 4,12-14; 5,37; 6,32) aparece com vigor em certas
cartas paulinas assim como na Carta aos Hebreus. Paulo e o autor da Carta aos Hebreus
demonstram que a Torá, enquanto revelação, anuncia ela mesma seu próprio fim como
sistema legislativo (cf Gal 2,15-5,1; Rm 3,20-21; 6,14; He 7,11-19; 10,8-9). Conclui-se que
os pagãos que aderem à fé no Cristo não têm que ser submetidos a todos os preceitos da
legislação bíblica, doravante reduzida, em seu conjunto, ao estatuto de instituição legal de
um povo particular. Mas eles têm que se alimentar do Antigo Testamento como Palavra de
Deus, que lhes permite de melhor descobrir todas as dimensões do mistério pascal do qual
eles vivem (cf Lc 24,25-27.44-45; Rm 1,1-2).
No interior da Bíblia cristã as relações entre Novo e Antigo Testamento não deixam de ser
complexas. Quando se trata da utilização de textos particulares, os autores do Novo
Testamento recorrem naturalmente aos conhecimentos e aos procedimentos de interpretação
da época deles. Exigir que se conformem aos métodos científicos modernos seria um
anacronismo. O exegeta deve antes de tudo adquirir o conhecimento dos procedimentos
antigos para poder interpretar corretamente o uso que é feito deles. É verdade, de outro lado,
que ele não deve dar um valor absoluto àquilo que é conhecimento humano limitado.
3. Algumas conclusões
Disto que foi dito pode-se concluir que a Bíblia contém numerosas indicações e sugestões
sobre a arte de interpretar. A Bíblia é efetivamente, desde o início, ela mesma uma
interpretação. Seus textos foram reconhecidos pelas comunidades da Antiga Aliança e do
tempo apostólico como expressão válida da fé que elas tinham. É segundo a interpretação das
comunidades e em relação àquela que foram reconhecidos como Santa Escritura (assim, por
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exemplo, o Cântico dos Cânticos foi reconhecido como Santa Escritura enquanto aplicado à
relação entre Deus e Israel). No decorrer da formação da Bíblia, os escritos que a compõem
foram, em muitos casos, retrabalhados e reinterpretados para responderem a situações novas,
desconhecidas anteriormente.
Dado que a Santa Escritura nasceu sobre a base de um consenso de comunidades de fiéis que
reconheceram em seu texto a expressão da fé revelada, sua própria interpretação deve ser,
para a fé viva das comunidades eclesiais, fonte de consenso sobre os pontos essenciais.
Dado que a expressão da fé, tal como se encontrava reconhecida por todos na Santa
Escritura, teve que se renovar continuamente para fazer face a situações novas — o que
explicam as « releituras » de muitos textos bíblicos — a interpretação da Bíblia deve
igualmente ter um aspecto de criatividade e afrontar as questões novas, para respondê-las
partindo da Bíblia.
Dado que os textos da Santa Escritura têm algumas vezes relações de tensão entre eles, a
interpretação deve necessariamente ser múltipla. Nenhuma interpretação particular pode
esgotar o sentido do conjunto, que é uma sinfonia a várias vozes. A interpretação de um texto
particular deve assim evitar de ser exclusivista.
A Santa Escritura está em diálogo com as comunidades dos fiéis: ela saiu de suas tradições
de fé. Seus textos se desenvolveram em relação com essas tradições e contribuíram,
reciprocamente, ao desenvolvimento delas. Conclui-se que a interpretação da Escritura faz-se
no seio da Igreja, em sua pluralidade, em sua unidade e em sua tradição de fé.
O diálogo com a Santa Escritura em seu conjunto, e, assim, com a compreensão da fé própria
a épocas anteriores, é acompanhado necessariamente de um diálogo com a geração presente.
Isso provoca o estabelecimento de uma relação de continuidade, mas também a constatação
de diferenças. Conclui-se que a interpretação da Escritura comporta um trabalho de
verificação e de triagem; ele permanece em continuidade com as tradições exegéticas
anteriores, das quais conserva e toma para si muitos elementos, mas em outros pontos ela se
separa delas para poder progredir.
A Igreja, povo de Deus, tem consciência de ser ajudada pelo Espírito Santo em sua
compreensão e sua interpretação das Escrituras. Os primeiros discípulos de Jesus sabiam que
não estavam à altura de compreender imediatamente em todos os seus aspectos a totalidade
do que tinham recebido. Faziam a experiência, na vida de comunidade conduzida com
perseverança, de um aprofundamento e de uma explicitação progressiva da revelação
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1. Formação do Cânon
Guiada pelo Espírito Santo à luz da Tradição viva que ela recebeu, a Igreja discerniu os
escritos que devem ser olhados como Santa Escritura no sentido de que, « tendo sido escritos
sob a inspiração do Espírito Santo, eles têm Deus por autor, foram transmitidos como tais à
Igreja » (Dei Verbum, 11) e contêm « a verdade que Deus, para nossa salvação, quis ver
consignada nas Letras sagradas » (ibid.).
A esses textos que formam o « Antigo Testamento » (cf 2 Co 3,14), a Igreja uniu
estreitamente os escritos onde ela reconheceu, de um lado o testemunho autêntico
proveniente dos apóstolos (cf Lc 1,2; 1 Jo 1,1-3) e garantido pelo Espírito Santo (cf 1 Pd
1,12), sobre « todas as coisas que Jesus fez e ensinou » (At 1,1), e de outro lado instruções
dadas pelos apóstolos mesmos e outros discípulos para constituir a comunidade de fiéis. Esta
dupla série de escritos recebeu depois o nome de « Novo Testamento ».
Discernindo o Cânon das Escrituras, a Igreja discernia e definia sua própria identidade, de
maneira que as Escrituras são doravante um espelho no qual a Igreja pode constantemente
redescobrir sua identidade e verificar, século após século, a maneira com a qual ela responde
sem cessar ao Evangelho e se dispõe ela mesma a ser o meio de transmissão dele (cf Dei
Verbum, 7). Isso confere aos escritos canônicos um valor salvífico e teológico
completamente diferente daquele de outros textos antigos. Se esses últimos podem dar muita
luz sobre as origens da fé, eles não podem jamais substituir a autoridade dos escritos
considerados como canônicos e, assim, fundamentais para a inteligência da fé cristã.
2. Exegese patrística
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Desde os primórdios compreendeu-se que o mesmo Espírito Santo, que levou os autores do
Novo Testamento a colocar por escrito a mensagem da salvação (Dei Verbum, 7, 18), traz
igualmente à Igreja uma assistência continua para a interpretação de seus escritos inspirados
(cf Irineu, Adv. Haer. 3.24.1; cf 3.1.1; 4.33.8; Orígenes, De Princ., 2.7.2; Tertuliano, De
Praescr., 22).
O lugar habitual da leitura bíblica é a igreja, no decorrer da liturgia. É por isso que a
interpretação proposta é sempre de natureza teológica, pastoral e teologal, a serviço das
comunidades e dos fiéis individuais.
Os Padres consideram a Bíblia antes de tudo como Livro de Deus, obra única de um único
autor. Mesmo assim eles não reduzem os autores humanos a meros instrumentos passivos e
eles sabem atribuir a um ou outro livro tomado individualmente uma finalidade singular. Mas
o tipo de abordagem deles dá apenas uma pequena atenção ao desenvolvimento histórico da
revelação. Numerosos Padres da Igreja apresentam o Logos, Verbo de Deus, como autor do
Antigo Testamento e afirmam assim que toda a Escritura tem um alcance cristológico.
Preocupados antes de tudo em viver da Bíblia em comunhão com seus irmãos, os Padres
contentam-se muitas vezes em utilizar o texto bíblico mais comum no meio deles.
Interessando-se metodicamente pela Bíblia hebraica, Orígenes é animado sobretudo pelo
cuidado de argumentar face aos Judeus a partir de textos aceitáveis por esses últimos.
Exaltando a hebraica veritas, são Jerônimo figura como excepção.
Os Padres praticam de maneira mais ou menos freqüente o método alegórico afim de dissipar
o escândalo que poderia ser provocado em certos cristãos e nos adversários pagãos do
cristianismo diante de uma ou outra passagem da Bíblia. Mas a literalidade e a historicidade
dos textos são muito raramente esvaziadas. O recurso dos Padres à alegoria ultrapassa
geralmente o fenômeno de uma adaptação ao método alegórico dos autores pagãos.
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O recurso à alegoria deriva também da convicção de que a Bíblia, livro de Deus, foi dado por
ele a seu povo, a Igreja. Em princípio nada deve ser deixado de lado como antiquado ou
definitivamente caduco. Deus dirige uma mensagem sempre de atualidade a seu povo cristão.
Em suas explicações da Bíblia, os Padres misturam e entrelaçam as interpretações tipológicas
e alegóricas de uma maneira mais ou menos inextricável, sempre com finalidade pastoral e
pedagógica. Tudo o que está escrito o foi para nossa instrução (cf 1 Co 10,11).
Persuadidos de que se trata do livro de Deus, portanto inesgotável, os Padres crêem poder
interpretar uma passagem segundo um determinado esquema alegórico, mas eles estimam
que cada um permanece livre para propor outra coisa, contanto que respeite a analogia da fé.
A interpretação alegórica das Escrituras, que caracteriza a exegese patrística, corre o risco de
desorientar o homem moderno, mas a experiência de Igreja que esta exegese exprime oferece
uma contribuição sempre útil (cf , Divino afflante Spiritu 31-32; Dei Verbum, 23). Os Padres
ensinam a ler teologicamente a Bíblia no seio de uma Tradição viva com um autêntico
espírito cristão.
Enquanto dadas à Igreja, as Escrituras são um tesouro comum do corpo completo formado
pelos fiéis: « A Santa Tradição e a Santa Escritura constituem um único depósito sagrado da
Palavra de Deus, confiado à Igreja. Ligando-se a ele, todo o povo santo unido a seus pastores
permanece assiduamente fiel ao ensinamento dos apóstolos... » (Dei Verbum, 10; cf também
21). É bem verdade que a familiaridade com o texto das Escrituras foi, entre c fiéis, mais
notável em certas épocas da história do que em outras Mas as Escrituras ocuparam uma
posição de primeiro plano em ta dos os momentos importantes de renovação na vida da
Igreja, desde o movimento monástico dos primeiros séculos até a época recente do Concilio
Vaticano II.
Este mesmo Concilio ensina que todos os batizados, quando tomam parte, na fé ao Cristo, da
celebração da Eucaristia, reconhecem a presença do Cristo também em sua palavra, « pois é
ele mesmo que fala quando as Santas Escrituras são lidas na igreja (Sacrosanctum
Concilium, 7). A esta escuta da palavra eles contribuem com o « sentido da fé (sensus fidei)
que caracteriza o Povo (de Deus) inteiro. (...) Graças a esse sentido da fé que é desperta do e
sustentado pelo Espírito de verdade, o Povo de Deus, sob direção do magistério sagrado, que
ele segue fielmente, recebe, não uma palavra humana, mas verdadeiramente a Palavra de
Deu: (cf 1 Tess 2,13). Ele se une indefectivelmente à fé transmitida ao: santos uma vez por
todas (cf Jud 3), ele a aprofunda corretamente e a aplica à sua vida da maneira mais completa
» (Lumen gentium, 12) .
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Cabe aos padres e aos diáconos, sobretudo quando eles administram os sacramentos, de
colocar em evidência a unidade que Palavra e Sacramento formam no ministério da Igreja.
O Espírito é dado também, claro, aos cristãos individualmente, de maneira que seus corações
possam tornar-se « ardentes dentro deles » (cf Lc 24,32) quando rezam e fazem um estudo
em oração das Escrituras no contexto da vida pessoal deles. É por isso que o Concilio
Vaticano II pediu com insistência que o acesso às Escrituras seja facilitado de todas as
maneiras possíveis (Dei Verbum, 22, 25). Esse gênero de leitura, note-se, não é nunca
completamente privado pois, aquele que crê, também lê e interpreta a Escritura sempre na fé
da Igreja e traz em seguida à comunidade o fruto de sua leitura, para enriquecer a fé comum.
Toda a tradição bíblica e, de uma maneira mais notável, o ensinamento de Jesus nos
Evangelhos indicam como ouvintes privilegiados da Palavra de Deus aqueles que o mundo
considera como gente de condição humilde. Jesus reconheceu que coisas escondidas aos
sábios e doutores foram reveladas aos simples (Mt 11,25; Lc 10,21) e que o Reino de Deus
pertence àqueles que se parecem com as crianças (Mc 10,14 e paral.).
Na mesma linha, Jesus proclamou: « Bem aventurados vós, os pobres, porque vosso é o
Reino de Deus » (Lc 6,20; cf Mt 5,3). Entre os sinais dos tempos messiânicos encontra-se a
proclamação da boa nova aos pobres (Lc 4,18; 7,22; Mt 11,5; cf CDF, Instrução sobre a
liberdade cristã e a libertação, 47-48 ). Aqueles que, na incapacidade e na privação de seus
recursos humanos, encontram-se forçados a colocar a única esperança deles em Deus e sua
justiça, têm uma capacidade de escutar e interpretar a Palavra de Deus que deve ser levada
em conta pela Igreja inteira e pede também uma resposta a nível social.
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atenção ao texto em seu contexto histórico original, a Igreja confia em exegetas animados
pelo mesmo Espírito que inspirou a Escritura para assegurar que « um maior número
possível de servidores da Palavra de Deus esteja à altura de oferecer efetivamente ao povo de
Deus o alimento das Escrituras » (Divino afflante Spiritu, 24; 53-55; E. B., 551, 567; Dei
Verbum, 23; Paulo VI, Sedula cura [1971]). Um motivo de satisfação é dado à nossa época
pelo número crescente de mulheres exegetas, que trazem mais de uma vez à interpretação da
Escritura novas visões mais penetrantes e colocam em evidência aspectos que tinham caído
no esquecimento.
Se as Escrituras, como se lembrou acima, são o bem da Igreja inteira e fazem parte da «
herança da fé » que todos, pastores e fiéis, « conservam, professam e colocam em prática em
um esforço comum », é bem verdade no entanto que a « tarefa de interpretar de maneira
autêntica a Palavra de Deus, transmitida pela Escritura ou pela Tradição, foi confiada
unicamente ao Magistério vivo da Igreja, cuja autoridade exerce-se em nome de Jesus Cristo
» (Dei Verbum, 10). Assim, em última análise, é o Magistério que tem a tarefa de garantir a
autenticidade de interpretação e de indicar, quando ocorre, que uma ou outra interpretação
particular é incompatível com o autêntico Evangelho. Ele desempenha encargo no interior da
koinônia do Corpo, exprimindo oficialmente a fé da Igreja para servir a Igreja; para este
efeito ele consulta teólogos, exegetas e outros expertos, dos quais reconhece a legítima
liberdade e com os quais permanece ligado por uma relação recíproca com o fim comum de «
conservar o povo de Deus na verdade que torna livre » (CDF, Instrução sobre a vocação
eclesial do teólogo, 21).
C. A tarefa do exegeta
A tarefa dos exegetas católicos comporta vários aspectos. É uma tarefa de Igreja, pois ela
consiste em estudar e explicar a Santa Escritura de maneira a colocar todas as riquezas à
disposição dos pastores e dos fiéis. Mas é ao mesmo tempo uma tarefa científica que coloca
o exegeta católico em relação com seus colegas não-católicos e com vários setores da
pesquisa científica. De outro lado, esta tarefa compreende ao mesmo tempo o trabalho de
pesquisa e aquele de ensinamento. Tanto um como outro concluem normalmente em
publicações.
1. Orientações principais
No trabalho de interpretação que fazem, os exegetas católicos não devem nunca esquecer que
o que eles interpretam é a Palavra de Deus. A tarefa comum que têm não está terminada
após terem distinguido as fontes, definido as formas ou explicado os procedimentos
literários. A finalidade do trabalho deles só é atingida quando tiverem esclarecido o sentido
do texto bíblico como palavra atual de Deus. A esse efeito devem levar em consideração as
diversas perspectivas hermenêuticas que ajudam a perceber a atualidade da mensagem
bíblica e lhes permitem de responder às necessidades dos leitores modernos das Escrituras.
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Os exegetas têm também que explicar o alcance cristológico, canônico e eclesial dos escritos
bíblicos.
O alcance cristológico dos textos bíblicos não é sempre evidente; deve ser colocado em
evidência cada vez que seja possível. Se bem que o Cristo tenha estabelecido a Nova Aliança
em seu sangue, os livros da Primeira Aliança não perderam seu valor. Assumidos na
proclamação do Evangelho, adquirem e manifestam seu pleno significado no « mistério do
Cristo » (Ef 3,4), do qual eles iluminam os múltiplos aspectos ao mesmo tempo que são
iluminados por ele. Esses livros, efetivamente, preparavam o povo de Deus à sua vinda (cf
Dei Verbum, 14-16).
Se bem que cada livro da Bíblia tenha sido escrito com uma finalidade distinta e que tenha o
seu significado específico, ele se manifesta portador de um sentido ulterior quando se torna
uma parte do conjunto canônico. A tarefa dos exegetas inclui, então, a explicação da
afirmação agostiniana: « Novum Testamentum in Vetere latet, et in Novo Vestus patet » (cf s.
Agostinho, Quaest. in Hept., 2, 73: CSEL 28, III, 3, p.141).
Os exegetas devem explicar também a relação que existe entre a Bíblia e a Igreja. A Bíblia
veio à luz em comunidades de fiéis. Ela exprime a fé de Israel e aquela das comunidades
cristãs primitivas. Unida à Tradição viva que a precedeu, a acompanha e da qual se alimenta
(cf Dei Verbum, 21), ela é o meio privilegiado do qual Deus se serve para guiar, ainda hoje, a
construção e o crescimento da Igreja enquanto Povo de Deus. Inseparável da dimensão
eclesial está a abertura ecumênica.
Pelo fato de que a Bíblia exprime uma oferta de salvação apresentada por Deus a todos os
homens, a tarefa dos exegetas comporta uma dimensão universal, que requer uma atenção às
outras religiões e aos anseios do mundo atual.
2. Pesquisa
A tarefa exegética é vasta demais para poder ser bem conduzida por um único indivíduo.
Impõe-se uma divisão de trabalho, especialmente para a pesquisa, que requer especialistas
em diferentes domínios. Os inconvenientes possíveis da especialização serão evitados graças
a esforços interdisciplinares.
É muito importante para o bem da Igreja inteira e para sua irradiação no mundo moderno que
um número suficiente de pessoas bem formadas sejam consagradas à pesquisa em diferentes
setores da ciência exegética. Preocupados com as necessidades mais imediatas do ministério,
os bispos e os superiores religiosos são muitas vezes tentados a não levar suficientemente a
sério a responsabilidade que lhes incumbe de prover a esta necessidade fundamental. Mas
uma carência neste ponto expõe a Igreja a graves inconvenientes, pois pastores e fiéis
arriscam de estarem à mercê de uma ciência exegética estranha à Igreja e privada de relações
com a vida da fé. Declarando que « o estudo da Santa Escritura » deve ser « como a alma da
teologia » (Dei Verbum, 24), o II Concílio do Vaticano mostrou toda a importância da
pesquisa exegética. Ao mesmo tempo também lembrou implicitamente aos exegetas
católicos que suas pesquisas têm uma relação essencial com a teologia, da qual eles devem se
mostrar conscientes.
3. Ensinamento
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Os professores de exegese devem comunicar aos estudantes uma profunda estima pela Santa
Escritura, mostrando o quanto ela merece um estudo atento e objetivo que permita apreciar
melhor seu valor literário, histórico, social e teológico. Eles não podem se contentar em
transmitir uma série de conhecimentos a serem registrados passivamente mas devem dar uma
iniciação aos métodos exegéticos, explicando suas principais operações para tornar os
estudantes capazes de julgamento pessoal. Visto o tempo limitado que se dispõe, convém
utilizar alternativamente duas maneiras de ensinar: de um lado, por meio de exposições
sintéticas, que introduzem ao estudo de livros bíblicos inteiros e não deixam de lado nenhum
setor importante do Antigo Testamento nem do Novo; de outro lado, por meio de análises
aprofundadas de alguns textos bem escolhidos, que sejam ao mesmo tempo uma iniciação à
prática da exegese. Tanto em um como em outro caso é preciso cuidar para não ser unilateral,
isto é, de não se limitar nem a um comentário espiritual desprovido de base histórico-crítica,
nem a um comentário histórico-crítico desprovido de conteúdo doutrinal e espiritual (cf
Divino afflante Spiritu; E. B., 551-552; PC, De Sacra Scriptura recte docenda, E. B., 598). O
ensinamento deve mostrar ao mesmo tempo as raízes históricas dos escritos bíblicos, o
aspecto deles enquanto palavra pessoal do Pai celeste que se dirige com amor a seus filhos
(cf Dei Verbum, 21) e o papel indispensável que têm no ministério pastoral (cf 2 Tim 3,16).
4. Publicações
A curto prazo, são as outras publicações que prestam grandes serviços pois se adaptam a
diversas categorias de leitores, desde o público cultivado até às crianças dos catecismos,
passando pelos grupos bíblicos, os movimentos apostólicos e as congregações religiosas. Os
exegetas dotados para a divulgação fazem uma obra extremamente útil e fecunda,
indispensável para assegurar aos estudos exegéticos a irradiação que devem ter. Neste setor, a
necessidade de atualização da mensagem bíblica faz-se sentir de maneira mais premente. Isso
significa que os exegetas levem em consideração as legítimas exigências das pessoas
instruídas e cultas de nosso tempo e distingüam claramente, para o bem delas, o que deve ser
olhado como detalhe secundário condicionado pela época, o que é preciso interpretar com
linguagem mítica e o que é preciso apreciar como sentido próprio, histórico e inspirado. Os
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escritos bíblicos não foram compostos em linguagem moderna, nem em estilo do século XX.
As formas de expressão e os gêneros literários que eles utilizam no texto hebreu, aramaico
ou grego devem ser tornados inteligíveis aos homens e mulheres de hoje que, de outra
maneira, seriam tentatos ou a perder o interesse pela Bíblia, ou a interpretá-la de maneira
simplista: literalista ou fantasiosa.
Em toda a diversidade de suas tarefas, o exegeta católico não tem outra finalidade senão o
serviço da Palavra de Deus. Sua ambição não é substituir aos textos bíblicos os resultados de
seu trabalho, que se trate de reconstituição de documentos antigos utilizados pelos autores
inspirados ou de uma apresentação moderna das últimas conclusões da ciência exegética. Sua
ambição é, ao contrário, colocar em maior evidência os próprios textos bíblicos, ajudando a
apreciá-los melhor e a compreendê-los com sempre mais exatidão histórica e profundidade
espiritual.
Sendo ela mesma uma disciplina teológica, « fides quaerens intellectum », a exegese mantém
relações estreitas e complexas com as outras disciplinas da teologia. De um lado,
efetivamente, a teologia sistemática tem uma influência sobre a pré-compreensão com a qual
os exegetas abordam os textos bíblicos. Mas, de outro lado, a exegese fornece às outras
disciplinas teológicas dados que lhes são fundamentais. São estabelecidas, então, relações de
diálogo entre a exegese e as outras disciplinas teológicas, no respeito mútuo à especificidade
de cada uma delas.
Quando fazem a abordagem dos escritos bíblicos, os exegetas têm necessariamente uma
pré-compreensão. No caso da exegese católica, trata-se de uma pré-compreensão baseada nas
certezas de fé: a Bíblia é um texto inspirado por Deus e confiado à Igreja para suscitar a fé e
guiar a vida cristã. As certezas de fé não chegam aos exegetas em estado bruto, mas depois
de terem sido elaboradas na comunidade eclesial pela reflexão teológica. Os exegetas são,
assim, orientados em suas pesquisas pela reflexão dos dogmáticos sobre a inspiração da
Escritura e a função desta na vida eclesial.
Mas, reciprocamente, o trabalho dos exegetas sobre os textos inspirados traz-lhes uma
experiência da qual os dogmáticos devem levar em conta para melhor elucidar a teologia da
inspiração escriturária e da interpretação eclesial da Bíblia. A exegese suscita
particularmente uma consciência mais viva e mais precisa do caráter histórico da inspiração
bíblica. Ela mostra que o processo da inspiração é histórico não apenas porque ele teve seu
lugar no decorrer da história de Israel e da Igreja primitiva, mas também porque ele se
realizou através da mediação de pessoas humanas marcadas cada uma pela sua época e que,
sob a guia do Espírito, tiveram um papel ativo na vida do povo de Deus.
Aliás, a afirmação teológica da relação estreita entre Escritura inspirada e Tradição da Igreja
viu-se confirmada e precisada graças ao desenvolvimento dos estudos exegéticos, que levou
os exegetas a dar uma atenção maior à influência que teve sobre os textos o ambiente vital
onde eles se formaram (« Sitz im Leben »).
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Sem ser seu único locus theologicus, a Santa Escritura constitui a base privilegiada dos
estudos teológicos. Para interpretar a Escritura com exatidão científica e precisão, os
teólogos necessitam do trabalho dos exegetas. De outro lado, os exegetas devem orientar
suas pesquisas de tal maneira que o « estudo da Santa Escritura » possa efetivamente ser «
como a alma da Teologia » (Dei Verbum, 24). A este efeito, é preciso dar uma atenção
particular ao conteúdo religioso dos escritos bíblicos.
Os exegetas podem ajudar os dogmáticos a evitar dois extremos: de um lado o dualismo, que
separa completamente uma verdade doutrinal de sua expressão lingüística, considerada como
sem importância; de outro lado o fundamentalismo que, confundindo o humano e o divino,
considera como verdade revelada mesmo os aspectos contingentes das expressões humanas.
Para evitar esses dois extremos é preciso distinguir sem separar, e assim aceitar uma tensão
persistente. A Palavra de Deus exprimiu-se na obra de autores humanos. Pensamento e
palavras são ao mesmo tempo de Deus e do homem, de maneira que tudo na Bíblia vem ao
mesmo tempo de Deus e do autor inspirado. Não se conclui, no entanto, que Deus tenha dado
um valor absoluto ao condicionamento histórico de sua mensagem. Esta é suscetível de ser
interpretada e atualizada, isto é, de ser separada, pelo menos parcialmente, de seu
condicionamento histórico passado para ser transplantada no condicionamento histórico
presente. O exegeta estabelece as bases desta operação que o dogmático continua, levando
em consideração os outros loci theologici que contribuem ao desenvolvimento do dogma.
Observações análogas podem ser feitas sobre as relações entre exegese e teologia moral. Aos
relatos concernentes à história da salvação, a Bíblia une estreitamente múltiplas instruções
sobre a conduta a ser mantida: mandamentos, interdições, prescrições jurídicas, exortações,
invectivas proféticas, conselhos de sábios. Uma das tarefas da exegese consiste em precisar o
alcance deste abundante material e em preparar, assim, o trabalho dos moralistas.
Esta tarefa não é simples pois muitas vezes os textos bíblicos não se preocupam em
distinguir preceitos morais universais, prescrições de pureza ritual e ordens jurídicas
particulares. Tudo é posto junto. De outro lado, a Bíblia reflete uma evolução moral
considerável, que encontra sua perfeição no Novo Testamento. Não é suficiente que uma
certa posição em matéria de moral seja atestada no Antigo Testamento (por exemplo, a
prática da escravidão ou do divórcio, ou aquela das exterminações em caso de guerra), para
que esta posição continue a ser válida. Um discernimento deve ser feito, levando em conta o
necessário progresso da consciência moral. Os escritos do Antigo Testamento contêm
elementos « imperfeitos e caducos » (Dei Verbum, 15), que a pedagogia divina não podia
eliminar de uma só vez. O Novo Testamento mesmo não é fácil de interpretar no domínio da
moral, pois muitas vezes ele se exprime através de imagem, ou de maneira paradoxal, ou
mesmo provocadora, e a relação dos cristãos com a Lei judaica é objeto aqui de ásperas
controvérsias.
Os moralistas são, assim, levados a apresentar aos exegetas muitas questões importantes que
estimularão suas pesquisas. Em mais de um caso, a resposta poderá ser que nenhum texto
bíblico trata explicitamente do problema considerado. Mas mesmo assim o testemunho da
Bíblia, compreendido em seu vigoroso dinamismo de conjunto, não pode deixar de ajudar a
definir uma orientação fecunda. Sobre os pontos mais importantes, a moral do Decálogo
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Os pontos de vista, efetivamente, são diferentes e devem sê-lo. A primeira tarefa da exegese
é discernir com precisão o sentido dos textos bíblicos no próprio contexto deles, isto é,
primeiramente no contexto literário e histórico particular desses mesmos textos e em seguida
no contexto do Cânon das Escrituras. Realizando esta tarefa, o exegeta coloca em evidência o
sentido teológico dos textos, desde que eles tenham um alcance dessa natureza. Uma relação
de continuidade é, assim, feita possível entre a exegese e a reflexão teológica ulterior. Mas o
ponto de vista não é o mesmo, pois a tarefa da exegese é fundamentalmente histórica e
descritiva e limita-se à interpretação da Bíblia.
O dogmático realiza uma obra mais especulativa e mais sistemática. Por esta razão ele só se
interessa verdadeiramente por certos textos e por certos aspectos da Bíblia e, aliás, ele leva
em consideração muitos outros dados que não são bíblicos — escritos patrísticos, definições
conciliares, outros documentos do Magistério, liturgia — assim como sistemas filosóficos e a
situação cultural, social e política contemporânea. Sua tarefa não é simplesmente interpretar
a Bíblia, mas visar uma compreensão plenamente refletida da fé cristã em todas as suas
dimensões e especialmente em sua relação decisiva com a existência humana.
Por causa de sua orientação especulativa e sistemática, a teologia muitas vezes cedeu à
tentação de considerar a Bíblia como um reservatório de dicta probantia destinado a
confirmar teses doutrinárias. Em nossos dias, os dogmáticos adquiriram uma viva
consciência da importância do contexto literário e histórico para a correta interpretação dos
textos antigos e eles recorrem muito mais à colaboração dos exegetas.
Enquanto Palavra de Deus colocada por escrito, a Bíblia tem uma riqueza de significado que
não pode ser completamente captado nem emprisionado em nenhuma teologia sistemática.
Uma das funções principais da Bíblia é aquela de lançar sérios desafios aos sistemas
teológicos e de lembrar continuamente a existência de importantes aspectos da revelação
divina e da realidade humana que algumas vezes foram esquecidos ou negligenciados nos
esforços de reflexão sistemática. A renovação da metodologia exegética pode contribuir a
esta tomada de consciência.
Reciprocamente, a exegese deve se deixar iluminar pela pesquisa teológica. Esta a estimulará
a apresentar aos textos questões importantes e descobrir melhor todo o alcance e a
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fecundidade deles. O estudo científico da Bíblia não pode se isolar da pesquisa teológica,
nem da experiência espiritual e do discernimento da Igreja. A exegese produz seus melhores
frutos quando ela se realiza no contexto da fé viva da comunidade cristã, que é orientada em
direção da salvação do mundo inteiro.
Tarefa particular dos exegetas, a interpretação da Bíblia mesmo assim não lhes pertence
como um monopólio, pois na Igreja essa interpretação apresenta aspectos que vão além da
análise científica dos textos. A Igreja, efetivamente, não considera a Bíblia simplesmente
como um conjunto de documentos históricos concernentes às suas origens; acolhe-a como
Palavra de Deus que se dirige a ela e ao mundo inteiro no tempo presente. Esta convicção de
fé tem como consequência a prática da atualização e da inculturação da mensagem bíblica,
assim como os diversos modos de utilização dos textos inspirados, na liturgia, a « lectio
divina » , o ministério pastoral e o movimento ecumênico.
A. Atualização
1. Princípios
A atualização é necessária, pois, se bem que a mensagem dos textos da Bíblia tenha um valor
durável, estes foram redigidos em função de circunstâncias passadas e em uma linguagem
condicionada por diversas épocas. Para manifestar o alcance que eles têm para os homens e
as mulheres de hoje, é necessário aplicar a mensagem desses textos às circunstâncias
presentes e exprimi-la em uma linguagem adaptada à época atual. Isso pressupõe um esforço
hermenêutico que visa discernir através do condicionamento histórico os pontos essenciais
da mensagem.
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lado uma proteção contra as interpretações aberrantes; ela assegura de outro lado a
transmissão do dinamismo original.
Atualização não significa assim a manipulação dos textos. Não se trata de projetar sobre os
escritos bíblicos opiniões ou ideologias novas, mas de procurar sinceramente a luz que eles
contêm para o tempo presente. O texto da Bíblia tem autoridade em todos os tempos sobre a
Igreja cristã e, se bem que passaram-se séculos desde os tempos de sua composição, ele
conserva seu papel de guia privilegiado que não se pode manipular. O Magistério da Igreja «
não está acima da Palavra de Deus, mas ele a serve, ensinando somente aquilo que foi
transmitido; por mandato de Deus, com a assistência do Espírito Santo, ele a escuta com
amor, conserva-a santamente e explica-a com fidelidade » (Dei Verbum, 10).
2. Métodos
A atualização pressupõe uma exegese correta do texto, que determina o sentido literal dele.
Se a pessoa que atualiza não tem ela mesma uma formação exegética, deve recorrer a bons
guias de leitura que permitam de bem orientar a interpretação.
Para bem conduzir a atualização, a interpretação da Escritura pela Escritura é o método mais
seguro e o mais fecundo, especialmente no caso dos textos do Antigo Testamento que foram
relidos no próprio Antigo Testamento (por exemplo, o maná de Ex 16 em Sab 16,20-29) e/ou
no Novo Testamento (Jo 6). A atualização de um texto bíblico na existência cristã não pode
ser feito corretamente sem se colocar em relação com o mistério do Cristo e da Igreja. Não
seria normal, por exemplo, propor a cristãos, como modelos para uma luta de libertação,
unicamente episódios do Antigo Testamento (Êxodo; 1-2 Macabeus).
Graças à atualização, a Bíblia vem iluminar inúmeros problemas atuais, por exemplo: a
questão dos ministérios, a dimensão comunitária da Igreja, a opção preferencial pelos pobres,
a teologia da libertação, a condição da mulher. A atualização pode também estar atenta a
valores cada vez mais reconhecidos pela consciência moderna como os direitos da pessoa, a
proteção da vida humana, a preservação da natureza, a aspiração à paz universal.
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3. Limites
Para permanecer de acordo com a verdade salvífica expressa na Bíblia, a atualização deve
respeitar certos limites e evitar possíveis desvios.
Se bem que toda leitura da Bíblia seja forçosamente seletiva, as leituras tendenciosas devem
ser descartadas, isto é, aquelas que ao invés de serem dóceis ao texto só os utilizam para fins
limitados (como é o caso na atualização feita pelas seitas, a dos Testemunhas de Jeová, por
exemplo).
A atualização perde toda validade se ela se baseia em princípios teóricos que estão em
desacordo com as orientações fundamentais do texto da Bíblia, como por exemplo, o
racionalismo oposto à fé ou o materialismo ateu.
De toda maneira, os riscos de desvios não podem constituir uma objeção válida contra a
realização de uma tarefa necessária, isto é, a de fazer chegar a mensagem da Bíblia até os
ouvidos e o coração de nossa geração.
B. Inculturação
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traduziu oralmente o texto hebreu da Bíblia em aramaico (Ne 8,8.12) e, mais tarde, por
escrito em grego. Uma tradução, efetivamente, é sempre mais que uma simples transcrição
do texto original. A passagem de uma língua a uma outra comporta necessariamente uma
mudança de contexto cultural: os conceitos não são idênticos e o alcance dos símbolos é
diferente, pois eles colocam em relação com outras tradições de pensamento e outras
maneiras de viver.
Etapa fundamental, a tradução dos textos bíblicos não pode, no entanto, ser suficiente a
assegurar uma verdadeira inculturação. Esta deve continuar graças a uma interpretação que
coloque a mensagem bíblica em relação mais explícita com as maneiras de sentir, de pensar,
de viver e de se exprimir próprias à cultura local. Da interpretação passa-se em seguida a
outras etapas da inculturação que terminam na formação de uma cultura local cristã,
estendendo-se a todas as dimensões da existência (oração, trabalho, vida social, costumes,
legislação, ciências e artes, reflexão filosófica e teológica). A Palavra de Deus é,
efetivamente, uma semente que tira da terra, onde ela se encontra, os elementos úteis ao seu
crescimento e à sua fecundidade (cf Ad Gentes, 22). Consequentemente, os cristãos devem
procurar discernir « quais riquezas Deus, em sua generosidade, dispensou às nações; eles
devem ao mesmo tempo fazer um esforço para iluminar essas riquezas com a luz evangélica,
de libertá-las, de trazê-las sob a autoridade do Deus Salvador » (Ad Gentes, 11).
Não se trata, pode-se ver, de um processo com sentido único, mas de uma « mútua
fecundação » . De um lado as riquezas contidas nas diversas culturas permitem à Palavra de
Deus de produzir novos frutos e de outro lado a luz da Palavra de Deus permite de fazer uma
triagem naquilo que trazem as culturas, para rejeitar os elementos nocivos e favorecer o
desenvolvimento dos elementos válidos. A total fidelidade à pessoa do Cristo, ao dinamismo
de seu mistério pascal e a seu amor pela Igreja faz evitar duas soluções falsas: aquela da «
adaptação » superficial da mensagem e aquela da confusão sincretista (cf Ad Gentes, 22).
C. Uso da Bíblia
1. Na liturgia
Desde os primórdios da Igreja, a leitura das Escrituras fez parte integrante da liturgia cristã,
por um lado herdeira da liturgia sinagogal. Hoje ainda, é principalmente pela liturgia que os
cristãos entram em contato com as Escrituras, particularmente durante a celebração
eucarística do domingo.
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A homilia, que atualiza mais explicitamente a Palavra de Deus, faz parte integrante da
liturgia. Falaremos mais adiante a propósito do ministério pastoral.
O lecionário, saído das diretivas do Concilio (Sacrosanctum Concilium, 35), deveria permitir
uma leitura da Santa Escritura « mais abundante, mais variada e mais adaptada ». Em seu
estado atual ele responde somente em parte a esta orientação. No entanto, sua existência teve
felizes efeitos ecumênicos. Em alguns países ele mediu a falta de familiaridade dos católicos
com a Escritura.
Se nas leituras « Deus dirige a palavra a seu povo » (Missal romano, n. 33), a liturgia da
Palavra exige um grande cuidado tanto para a proclamação das leituras como para a
interpretação delas. Assim, é desejável que a formação dos futuros presidentes de
assembléias e daqueles que os circundam leve em conta as exigências de uma liturgia da
Palavra de Deus fortemente renovada. Assim, graças aos esforços de todos, a Igreja
continuará a missão que lhe foi confiada « de tomar o pão da vida sobre a mesa da Palavra de
Deus bem como sobre a mesa do Corpo do Cristo para oferecê-lo aos fiéis» (Dei Verbum,
21).
2. A lectio divina
A lectio divina é uma leitura, individual ou comunitária, de uma passagem mais ou menos
longa da Escritura acolhida como Palavra de Deus e que se desenvolve sob a moção do
Espírito em meditação, oração e contemplação.
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A lectio divina como prática sobretudo individual é atestada no ambiente monástico em seu
auge. No período contemporâneo, uma Instrução da Comissão Bíblica aprovada pelo papa
Pio XII recomendou-a a todos os clérigos, tanto seculares como regulares (De Scriptura
Sacra, 1950; E. B., 592). A insistência sobre a lectio divina sob seu duplo aspecto, individual
e comunitário, voltou assim a ser atual. A finalidade que se procura é a de suscitar e de
alimentar « um amor efetivo e constante » à Santa Escritura, fonte de vida interior e de
fecundidade apostólica (E. B., 591 e 567), de favorecer também uma melhor inteligência da
liturgia e de assegurar à Bíblia um lugar mais importante nos estudos teológicos e na oração.
A Constituição conciliar Dei Verbum (n. 25) insiste igualmente sobre a leitura assídua das
Escrituras para os padres e religiosos. Além disso — e é uma novidade — ela convida
também « todos os fiéis do Cristo » a adquirir « por uma frequente leitura das Escrituras
divinas "a eminente ciência de Jesus Cristo" (Fil 3,8) ». Diversos meios são propostos. Ao
lado de uma leitura individual é sugerida uma leitura em grupo. O texto conciliar sublinha
que a oração deve acompanhar a leitura da Escritura, pois ela é a resposta à Palavra de Deus
encontrada na Escritura sob a inspiração do Espírito. Numerosas iniciativas foram tomadas
no povo cristão para uma leitura comunitária e só se pode encorajar esse desejo de um
melhor conhecimento de Deus e de seu plano de salvação em Jesus Cristo através das
Escrituras.
3. No ministério pastoral
Recomendado pela Dei Verbum (n. 24), o freqüente recurso à Bíblia no ministério pastoral
toma diversas formas dependendo do gênero de hermenêutica da qual se servem os pastores e
que os fiéis podem compreender. Pode-se distinguir três situações principais: a catequese, a
pregação e o apostolado bíblico. Numerosos fatores intervêm, no que se refere ao nível geral
de vida cristã.
A explicação da Palavra de Deus na catequese — Sacros. Conc., 35; Direct. catéch. gén.,
1971, 16 — tem como primeira fonte a Santa Escritura que, explicada no contexto da
Tradição, fornece o ponto de partida, o fundamento e a norma de ensinamento catequético.
Uma das finalidades da catequese deveria ser a de introduzir a uma justa compreensão da
Bíblia e à sua leitura frutuosa, que permitam descobrir a verdade divina que ela contém e que
suscitem uma resposta, a mais generosa possível, à mensagem que Deus dirige por sua
palavra à humanidade.
Para passar do texto bíblico ao suo significado de salvação para o tempo presente, utiliza-se
hermenêuticas variadas que inspiram diversos gêneros de comentários. A fecundidade da
catequese depende do valor da hermenêutica empregada. O perigo consiste em se contentar
de um comentário superficial que permaneça em uma consideração cronológica sobre a
sucessão dos acontecimentos e dos personagens da Bíblia.
A catequese pode evidentemente explorar apenas uma pequena parte dos textos bíblicos.
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Geralmente ela utiliza sobretudo os relatos, tanto no Novo como no Antigo Testamento. Ela
insiste sobre o Decálogo. Ela deve cuidar em empregar igualmente os oráculos dos profetas,
o ensinamento sapiencial e os grandes discursos evangélicos como o Sermão da montanha.
A apresentação dos Evangelhos deve ser feita de maneira a provocar um encontro com o
Cristo, que dá a chave de toda a revelação bíblica e transmite o apelo de Deus, ao qual cada
um deve responder. A palavra dos profetas e aquela dos « ministros da Palavra » (Lc 1,2)
devem aparecer como dirigidas agora aos cristãos.
Observações análogas aplicam-se ao ministério da pregação, que deve tirar dos textos
antigos um alimento espiritual adaptado às necessidades atuais da comunidade cristã.
A explicação que se dá dos textos bíblicos no decorrer da homilia não pode entrar em muitos
detalhes. Convém, então, colocar em evidência as contribuições principais desses textos,
aqueles que são os mais esclarecedores para a fé e os mais estimulantes para o progresso da
vida cristã, comunitária ou pessoal. Apresentando essas contribuições, é preciso fazer uma
atualização e uma inculturação, segundo o que foi dito acima. A este efeito são necessários
princípios hermenêuticos válidos. Uma falta de preparação neste domínio provoca uma
tentativa de renúncia a um aprofundamento das leituras bíblicas e contenta-se em moralizar
ou em falar de questões atuais sem iluminá-las pela Palavra de Deus.
Em diversos países, publicações foram feitas com o auxílio de exegetas para ajudar os
responsáveis pastorais a interpretar corretamente as leituras bíblicas da liturgia e a
atualizá-las de maneira válida. É desejável que esforços semelhantes sejam generalizados.
Uma insistência unilateral sobre as obrigações que se impõem aos fiéis deve seguramente ser
evitada. A mensagem bíblica deve conservar seu caráter principal de boa nova da salvação
oferecida por Deus. A pregação fará trabalho mais útil e mais conforme à Bíblia se ele ajudar
primeiramente os fiéis a « conhecer o dom de Deus » (Jo 4,10), tal como ele é revelado na
Escritura, e a compreender de maneira positiva as exigências que decorrem disso.
O apostolado bíblico tem como objetivo fazer conhecer a Bíblia como Palavra de Deus e
fonte de vida. Em primeiro lugar ele favorece a tradução da Bíblia nas línguas mais diversas
e a difusão dessas traduções. Ele suscita e sustenta numerosas iniciativas: formação de
grupos bíblicos, conferências sobre a Bíblia, semanas bíblicas, publicação de revistas e de
livros, etc.
Uma importante contribuição é trazida por associações e movimentos eclesiais, que colocam
em primeiro plano a leitura da Bíblia em uma perspectiva de fé e de engajamento cristão.
Numerosas « comunidades de base » centralizam suas reuniões sobre a Bíblia e se propõem
um triplo objetivo: conhecer a Bíblia, construir a comunidade e servir o povo. Aqui também
a ajuda de exegetas é útil para evitar atualizações mal fundadas. Mas deve-se alegrar em ver
a Bíblia tomada por mãos de gente humilde, dos pobres, que podem trazer à sua interpretação
e à sua atualização uma luz mais penetrante do ponto de vista espiritual e existencial do que
aquela que vem de uma ciência segura dela mesma (cf Mt 11,25).
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4. No ecumenismo
A maior parte dos problemas que enfrenta o diálogo ecumênico tem relação com a
interpretação de textos bíblicos. Alguns desses problemas são de ordem teológica: a
escatologia, a estrutura da Igreja, o primado e a colegialidade, o casamento e o divórcio, a
atribuição do sacerdócio ministerial às mulheres, etc. Outros são de ordem canônica e
jurisdicional; eles concernem à administração da Igreja universal e das Igrejas locais. Outros,
enfim, são de ordem estritamente bíblica: a lista dos livros canônicos, algumas questões
hermenêuticas, etc.
Se bem que ela não possa ter a pretensão de resolver sozinha todos esses problemas, a
exegese bíblica é chamada a trazer ao ecumenismo uma importante contribuição. Progressos
notáveis já foram realizados. Graças à adoção dos mesmos métodos e de metas
hermenêuticas análogas, os exegetas de diversas confissões cristãs chegaram a uma grande
convergência na interpretação das Escrituras, como o mostram o texto e as notas de diversas
traduções ecumênicas da Bíblia, assim como em outras publicações.
Como a Bíblia é a base comum da regra de fé, o imperativo ecumênico comporta para todos
os cristãos um apelo premente a reler os textos inspirados na docilidade ao Espírito Santo, na
caridade, na sinceridade, na humildade, a meditar esses textos e a vivê-los de maneira a
chegar à conversão do coração e à santidade de vida, as quais, unidas à oração para a unidade
dos cristãos, são a alma de todo o movimento ecumênico (cf. Unitatis redintegratio, 8). Seria
preciso para isso tornar acessível ao maior número possível de cristãos a aquisição da Bíblia,
encorajar as traduções ecumênicas — pois um texto comum ajuda uma leitura e uma
compreensão comuns — promover grupos de oração ecumênicos afim de contribuir com um
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CONCLUSÃO
Do que foi dito no decorrer desta longa exposição — que no entanto continua breve demais
sobre vários pontos — a primeira conclusão que se salienta é que a exegese bíblica preenche,
na Igreja e no mundo, uma tarefa indispensável. Querer se dispensar dela para compreender
a Bíblia seria ilusão e manifestaria urna falta de respeito para com a Escritura inspirada.
Pretendendo reduzir os exegetas ao papel de tradutores (ou ignorando que traduzir a Bíblia já
é fazer obra de exegese) e recusando de segui-los em seus estudos, os fundamentalistas não
se dão conta de que, por um louvável cuidado de inteira fidelidade à Palavra de Deus, em
realidade eles entram em caminhos que os afastam do sentido exato dos textos bíblicos assim
como da plena aceitação das consequências da Encarnação. A Palavra eterna encarnou-se em
uma época precisa da história, em um ambiente social e cultural bem determinado. Quem
deseja entendê-la deve humildemente procurá-la lá onde ela se tornou perceptível, aceitando
a ajuda necessária do saber humano. Para falar aos homens e às mulheres, desde a época do
Antigo Testamento, Deus explorou todas as possibilidades da linguagem humana, mas ao
mesmo tempo ele teve também que submeter sua palavra a todos os condicionamentos dessa
linguagem. O verdadeiro respeito pela Escritura inspirada exige que sejam realizados todos
os esforços necessários para que se possa compreender bem seu sentido. Seguramente não é
possível que cada cristão faça pessoalmente as pesquisas de todos os gêneros que permitam
compreender melhor os textos bíblicos. Esta tarefa é confiada aos exegetas, responsáveis
nesse setor pelo bem de todos.
Uma segunda conclusão é que a natureza mesma dos textos bíblicos exige que para
interpretá-los, continue-se o emprego do método histórico-crítico, ao menos em suas
operações principais. A Bíblia, efetivamente, não se apresenta como uma revelação direta de
verdades atemporais, mas como a atestação escrita de uma série de intervenções pelas quais
Deus se revela na história humana. A diferença de doutrinas sagradas de outras religiões, a
mensagem bíblica é solidamente enraizada na história. Conclui-se que os escritos bíblicos
não podem ser corretamente compreendidos sem um exame de seu condicionamento
histórico. As pesquisas « diacrônicas » serão sempre indispensáveis à exegese. Qualquer que
seja o interesse das abordagens « sincrônicas », elas não estão à altura de substitui-las. Para
funcionar de maneira fecunda, estas devem primeiramente aceitar as conclusões das outras,
pelo menos em suas grandes linhas.
Mas, uma vez preenchida esta condição, as abordagens sincrônicas (retórica, narrativa,
semiótica e outras) são suscetíveis de renovar em parte a exegese e de dar uma contribuição
muito útil. O método histórico-crítico, efetivamente, não pode pretender o monopólio. Ele
deve ser consciente de seus limites, assim como dos perigos que o espreitam. Os
desenvolvimentos recentes das hermenêuticas filosóficas e, de outro lado, as observações que
pudemos fazer sobre a interpretação na Tradição Bíblica e na Tradição da Igreja colocaram
em evidência vários aspectos do problema da interpretação que o método histórico-crítico
tinha tendência a ignorar. Preocupado, efetivamente, em bem fixar o sentido dos textos,
situando-os no contexto histórico original deles, este método mostra-se algumas vezes
insuficientemente atento ao aspecto dinâmico do significado e às possibilidades de
desenvolvimento do sentido. Quando ele não vai até o estudo da redação, mas se absorve
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A Interpretação da Bíblica na Igreja http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/pcb...
unicamente nos problemas de fontes e de estratificação dos textos, ele não preenche
completamente a tarefa exegética.
Por fidelidade à grande Tradição, da qual a própria Bíblia é testemunha, a exegese católica
deve evitar tanto quanto possível esse gênero de deformação profissional e manter sua
identidade de disciplina teológica, cuja finalidade principal é o aprofundamento da fé. Isso
não significa ter um compromisso menor com uma pesquisa científica mais rigorosa, nem a
deformaçãos dos métodos por preocupações apologéticas. Cada setor da pesquisa (crítica
textual, estudos linguísticos, análises literárias, etc.) tem suas próprias regras, que é preciso
seguir com toda autonomia. Mas nenhuma dessas especialidades é uma finalidade em si
mesma. Na organização de conjunto da tarefa exegética, a orientação em direção à finalidade
principal deve permanecer efetiva e evitar os desperdícios de energia. A exegese católica não
tem o direito de se parecer com um curso d'água que se perde nas areias de uma análise
hiper-crítica. Ela deve preencher na Igreja e no mundo uma função vital, isto é, de contribuir
a uma transmissão mais autêntica do conteúdo da Escritura inspirada.
É bem a esta finalidade que tendem desde já seus esforços, em ligação com a renovação das
outras disciplinas teológicas e com o trabalho pastoral de atualização e de inculturação da
Palavra de Deus. Examinando a problemática atual e exprimindo algumas reflexões a esse
respeito, a presente exposição espera ter facilitado a todos uma tomada de consciência mais
clara do papel dos exegetas católicos.
Notas
(2) O texto desta última alínea foi escolhido por 11 votos favoráveis entre 19 votantes; 4
votaram contra e 4 se abstiveram. Os oponentes pediram que o resultado da votação fosse
publicado com o texto. A Comissão comprometeu-se em fazê-lo.
(3) A hermenêutica da Palavra desenvolvida por Gerhard Ebeling e Ernst Fuchs parte de uma
outra abordagem e depende de um outro campo de pensamento. Trata-se mais de uma
teologia hermenêutica do que uma filosofia hermenêutica. Ebeling está de acordo, no
entanto, com autores tais como Bultmann e Ricoeur para afirmar que a Palavra de Deus só
acha plenamente seu sentido quando encontra aqueles aos quais ela se dirige.
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