BERNARDO, João. A Autonomia Nas Lutas Operárias. em BRUNO, Lúcia e SACCARDO, Cleusa. Organização, Trabalho e Tecnologia. São Paulo, Atlas, 1986

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LUCIA BRUNO CLEUSA SACCARDO (Coordenadoras) = Mit Be LL7 Organizacdo, Trabalho e Tecnologia SAO PAULO EDITORA ATLAS S.A. — 1986 7 A Autonomia nas Lutas Operarias JOAO BERNARDO Este texto reproduz uma palestra efetuada na Faculdade de Economia e Administragao da PUC de Sao Paulo, a 14 de novembro de 1984, e em suas linhas gerais reproduz também a palestra realizada no Instituto de Filosofia e Ciéncias Sociais da UFRJ, em 20-11-84. A transcricao da gravacao foi revista pelo autor; além de algumas alteragées de estilo pequenas corregées, deu-se maior desenvolvimento a certas passagens, ten- do em conta questées levantadas no debate que se seguiu a palestra. Para falar de autonomia, ou de movimento operdrio, ou mesmo da sociedade em geral, penso que a questio central é a mais-valia. Vou, por- tanto, comecar pela velha férmula da mais-valia. Vejamos: © tempo de trabalho incorporado na forca de trabalho é menor do que © tempo de trabatho que a forga de trabalho é capaz de despender no proces- so de produgao. A expresséo é capaz de, que aqui sublinho, transforma este modelo num modelo aberto. Quando se diz que o trabalhador € capaz de despen- der um tempo de trabalho superior ao incorporado na sua forca de trabalho, significa isto que os limites desse tempo de trabalho a despender nao sao fi- xos, dependendo precisamente da capacidade de o operario trabalhar ou ndo trabalhar. Ou seja, 0 modelo da mais-valia é aberto aos conflitos sociais. En- tendo-os aqui da forma mais ampla possivel, desde a sabotagem individual até a luta organizada ¢ coletiva. Sabotagem, como se sabe, vem do [ran- és sabot, tamanco. No comeco da industrializagao, os trabalhadores fran- ceses atiravam para o interior das maquinas os tamancos que calgavam, para as fazer parar ou até destruir as engrenagens. Depois as cngrenayens 103 104 tornaram-se mais fortes, as formas de parar as méquinas tornaram-se mais poderosas também. Mas no centro de tudo isto esta: é capaz de. Por iisso a economia de Marx, ou mais exatamente boa parte dessa economia, fundamentando-se num modelo aberto as lutas sociais, pode analisar em todos os seus aspectos e em qualquer dos seus momentos a atividade econémica. Para que o calculo matematico funcione em econo- mia tem dle se pressupor certa constancia das condigées relativas aos fato- res analisados. Se os conflitos sociais intervém, alterando sem cessar essas condigdes, Os modelos mateméaticos tornam-se inoperantes. A vida econémi ca é tanto mais matematizével quanto menos agudizadas forem as lutas sociais. E € este o motivo por que ha um campo da atividade econémica inteiramentte vedado aos economistas académicos: ¢ a economia dos pe- riodos revOlucionarios. A economia académica sé pode pensar os periodos revolucionarios como nao econémicos, ou como antiecondmicos. A partir de um modelo como o da mais-valia, pelo contrério, temos toda a latitude para conceber, quer uma economia que decorra em inteira normalidade — ou seja, na normalidade capitalista, sem lutas sociais ou com um minimo de conflitos — quer uma economia fracionada por lutas sociais. Se considerarmos novamente a velha frmula da mais-valia, veremos que © antagonismo entre o proletariado e os capitalistas tem dois aspectos, cuja existéncia constitui 0 fulero do que aqui pretendo dizer hoje. Eo proletariado, como classe, reparte-se por esses dois aspectos. Para empre- gar uma expresséo metafGrica, diria que o proletariado tem duas vidas, cuja articulagao Ihe é extremamente dificil. Vejantos o primeiro desses aspectos: Sc 0 proletariado pretende reduzir 0 tempo de trabalho que despende no processo de produgéo, a via aparentemente mais simples que se oferece ao capitalista é a da represséo. Mas a eficdcia marginal da repressao es- gota-se muito rapidamente. Qualquer capitalista sabe que se pusesse um policial atfés de cada operdrio nao conseguiria obter um trabalho eficaz € teria, além do mais, de instruir a policia sobre os gestos necessdrios & produgdo, para que obrigasse o trabalhador a fazé-los. E assim acabaria por transformar © policial num trabalhador e ter dois trabalhadores em vez de um. Este absurdo mostra que a repressao, para além de certo ponto ¢ como soluco geral, € uma via impraticdvel para 0 capital. © proceso mais econdmico que se oferece ao capital consiste em atuar sobre © primeiro termo da relagao da mais-valia. O proletario, ac reduzir o tempo de trabalho que despende, age sobre o segundo termo dessa relagio. A resposta do capitalista incide no primeiro termo, pela diminuigio do tempo de trabalho incorporado na forca de trabalho. Isso sipnifien que © capitalista procura tornar mais produtivos os processos de fabric dos bens consumidos pelos trabalhadores. Nao pode fazé-lo, po- 1 aumentar também a produtividade no fabrico das maquinas que irao’ produzir aqueles bens. E assim por diante. Em conclusio, ao agir sobre o primeiro termo da relacio da mais-valia, em resposta & luta ope- réria, 0 capitalista desencadeia um mecanismo global de aumento da pro- dutividade que se estende a toda a economia. E este o processo de desen- voivimento da mais-valia relativa. O desencadear de uma luta ¢ a respos- ta imediata do capitalista definem, assim, um ciclo da mais-valia rclativa. Tendo em conta o que mais adiante direi, posso desde ja denominé-los ciclos curtos da mais-valia relativa. Vejamos agora o segundo dos aspectos, a segunda das vidas pelas quais se reparte o proletariado: Quando os operdrios lutam, desde que o facam autonomamente e com um minimo de organizagao, quebram a disciplina da fabrica. Deve, portanto, distinguir-se muito claramente entre, por um lado, a reivindi. cagao e, por outro, as formas das relagdes sociais estabelecidas entre os trabalhadores quando prosseguem uma reivindicacdo. Insisto neste ponto, porque € muito comum relatar as lutas proletérias em termos de reivindi- cagdes formuladas: quarenta ou trinta e tal horas semanais, fim do de- semprego, isto ou aquilo. E os jornalistas, os historiadores, os pesquisado- res costumam na grande parte dos casos — nado em todos, felizmente — manter em siléncio as formas assumidas pelas relacdes sociais que os tra- balhadores estabelecem quando conduzem a luta. A reivindicagao € aquele aspecto de uma luta ao qual o capitalista pode responder aumentando a produtividade, acelerando os ciclos curtos da mais-valia relativa, consoante © processo que hé pouco indiquei. F isto que explica por que grande parte dos jornais, grande parte da pesquisa se interessa sobretudo pelo enun- ciado das reivindicagdes. FE perante elas que ocorre a resposta imediata do capital e aqueles jornalistas ¢ pesquisadores sio elementos integrantes do processo de tomada de decis6es do capitalismo. Ou a reivindicagao € feita no interior das instituigdes das empresas, sujeita as diretorias dos sindicatos burocratizados, subordinada, portanto, a estrutura capitalista da fabrica e & sua disciplina — e neste caso nao se geram quaisquer formas novas de relacdes sociais —, ou a reivindicacao é feita em ruptura com o capital — e esse corte nunca se processa com os trabalhadores organizados pela disciplina da fabrica. Por conseguinte. quando ocorre uma ruptura com o capital, o primeiro ponto que nos deve ocupar é 0 de saber de que novo modo os trabalhadores se organizam. Que organizacdo, que relacdes sociais sGo essas que se opdem & estrutura capitalista do processo de trabalho e vao substitui-la enquanto a luta durar? Em meu entender, & nestas formas novas de relaco social que se situa a génese das relacdes sociais comunistas. Nao considero 0 comunisme nem como uma utopia, no sentido de uma sociedade vonhada segu ideal, nem como um projeto localizado no futuro. As relages so munistas. no sentido lato que ja irei precisar, esto localizaday no. jue sente e sempre tém estado localizadas no presente deste modo de pre 5 dugao. Tém sido sempre contemporaneas do capitalismo, em todas as suas etapas. Vou explicar melhor: Um modo de produgdo ndo se resume a relagdes sociais. Um modo de producdo € a organizacdo de certas forgas produtivas consoante dadas relagdes sociais. Enquanto as formas do que ha pouco denominei comu:" nismo se limitarem as relagGes sociais estabelecidas na luta proletdria nao constituem um modo de produgéo — sé-lo-do apenas embrionariamente. © que Ihes falta entio? Se uma dada luta perdurar, ou porque o patrao, resiste € os trabalhadores estdo suficientemente fortes para continuar o combate, ou porque, embora patrdes isolados cedam, a luta se expande a outros setores e a outras regides — os trabalhadores deparam-se entéo com a necessidade de garantir a continuidade da producio nas empresas que acabam por ter nas mos. Goste-se ou ndo desse lato, ele é uma neces- sidade inelutavel. Os saldrios nao so pagos, os trabalhadores tém de viver ¢ tém ali os elementos que Ihes asseguram a subsisténcia. Comegam entdo a organizar a produgdo nas empresas que dominam. A partir desse momen- to as relagdes sociais criadas na luta projetam-se em direcao as forcas pro- dutivas e podem comegar a reorganizd-las. E este 0 ponto em que o comu- nismo pode converter-se: de meras relagdes sociais num verdadeiro modo de produgao. Até agora, porém, o movimento operdrio tem ficado em suspenso so- bre essa nova fase, parando quando mal acaba de a encetar. Tém sido extremamente raras, ¢ breves, as experiéncias de reorganizagao das forcas produtivas pela expansdo das relades sociais de luta. Por qué? Para responder a esta questo, que é crucial no desenvolvimento do movimento operério, comecemos por analisar a pluralidade de situagdes em que se encontram os trabalhadores durante uma luta. A grande parte das correntes marxistas, e ndo s6, considera que na base dessa diversidade esta- ria a distingdo entre a “vanguarda” operdria e as “‘massas” trabalhadoras. Na interpretacdo que aqui proponho, porém, torna-se impossivel definir uma vanguarda operdria. E claro que vanguardas existem desde que haja lutas. Se ocorre uma luta numa empresa e nao nas restantes, essa empresa € a van- guarda; se existem dentro dela trés ou quatro individuos que primeiro come- cam a ativar o combate, sdo eles a vanguarda. Mas nao se adianta nada com estas generalidades mais do que sabidas. Vanguarda, neste sentido, existe para tudo, sempre, em quaisquer circunstancias. Uma teoria das vanguardas, que sustenta as concepgdes dos partidos de base operdria, pressupde algo muito diferente: pressupde a possibilidade de organizar as vanguardas de maneira que a vanguarda definida num dado momento continuasse a sé-lo nos momentos seguintes. A representatividade que qualquer partido de base operdria atribui a si proprio resulta de pretender ser uma vanguarda permanente, educada para tal. E é isto que cu nego. Na minha opinido as vanguardas sio mutaveis historicamente. Desde 106 que centremos 0 movimento operdrio no processo de luta nas empresas, as vanguardas de um dado momento nao 0 serio no momento seguinte e, além disso, até em relacZo a um mesmo momento é impossivel defini-las de modo absoluto, Partindo desta constatagao poderemos comecar a entender a razio por que, até agora, tem ficado suspensa a projecdo das relacdes sociais de luta sobre as forgas produtivas. Estou a lembrar-me de um exemplo, fornecido pelos acontecimentos em Portugal no periodo de 1974 e 1975. As grandes empresas do setor metalo-mecdnico, da siderurgia, da construgio e reparacdo de petroleiros, essas empresas que tradicionalmente constituiam o coracdo industrial do proletariado portugués, foram as primeiras a impulsionar 0 avanco operd- rio, a impor a autonomia dos trabalhadores no processo politico posterior & queda do salazarismo. Neste sentido foram uma vanguarda. A luta expandiu-se enormemente ¢ abarcou a classe operatia de todo o pais. Um dos indicios mais reveladores do antagonismo entre as relagdes sociais cria- das nessa luta e a disciplina capitalista da fabrica foi a palavra-de-ordem “Quem suja, limpa”. Esta palavra-de-ordem surgiu de modo absolutamen- te espontaneo no veréo de 1974 e alcangou uma grande difusdo. “Quem suja, limpa” resultou da pressio da mao-de-obra menos qualificada, da- queles que apenas ajudam os que operam com as méquinas e, em geral, auxiliam os operdrios qualificados, trazendo-lhes os instrumentos e mate- tiais necessdrios para o processo de trabalho. Significa aquela palavra- -de-ordem que os operdrios mais qualificados, que estavam nos seus postos de trabalho e sujavam o chao, a bancada ou as maquinas, deviam limpé-las. E ff-lo-iam dentro do hordrio de trabalho, evidentemente, pois nao iam trabalhar mais do que o periodo estabelecido. Com essa palavra-de-ordem simples a forca de trabalho menos qualificada subvertia completamente a hierarquizaco interna do operariado, pondo assim em causa a disciplina da fabrica. Esta nao é uma mera sujei¢éo que o capitalista imponha a um proletariado considerado em bloco. A disciplina capitalista da fabrica ¢ uma forma de organizar a forca de trabalho que visa hierarquizé-la inter- namente e fracioné-la. “Quem suja, limpa” impunha um tipo de relacdes entre operérios absolutamente contrério a essa hierarquia e a essa disci- plina. Os trabalhadores menos qualificados apareciam, entao, como uma vanguarda. Se os trabalhadores, porém, com estas relagdes sociais do “Quem suja, limpa’”’, tomassem conta das empresas e as remodelassem segundo esse principio, nao iriam produzir consoante as exigéncias da produtividade capitalista. E fundamental ter em conta que nao existe um critério tnico de produtividade. Ha tantos critérios de produtividade quantos os obje- tivos da produgo, as forcas sociais que controlam ¢ as formas sociais em que se realiza. E fica assim colocado o problema central, que é o do confronto entre aquelas empresas onde prevalecem as relacdes sociais c das pelos trabalhadores em luta, e que laboram segundo um dado critério de produtividade, e as restantes empresas, que se subordinam as formas capitalistas de organizacio e a outro critério de produtividade. Ou seja, 0 confronto entre as relagdes sociais de luta e o mercado capitalista mundial. 107 108 Temos uma empresa, ou duas, ou trés, quantas quisermos, onde os trabalhadores, mediante um processo de luta, ficaram com as instalagdes nas maos ¢ se véem na necessidade de as fazer laborar. Mas no resto da sociedade existe capitalismo. Esses trabalhadores estéo a produzir para compradores que analisam 0 produto consoante critérios capitalistas de pro- dutividade; estéo a adquirir matérias-primas e maquinaria e vendedores que as produzem e distribuem consoante critérios capitalistas de produtivi- dade. Entéo, das duas, uma: ou os trabalhadores organizam a producao que tém nas maos segundo os novos critérios decorrentes das relagdes so- ciais de luta, coletivos ¢ igualitérios — mas neste caso o resultado & completamente antag6nico dos principios da produtividade capitalista e, porque restritos a uma empresa ou a uma regido isolada ou a um tnico pais, estes trabalhadores permanecem em inferioridade relativamente ao mercado mundial e séo por ele sufocados, ou os trabalhadores se sujeitam aos critérios da produtividade capitalista — e neste caso tém de reintroduzir a disciplina patronal na fabrica, as hierarquias etc. Enquanto 0 mercado capitalista mundial prevalecer, 0 princfpio do “Quem suja, limpa” seguird desenvolver-se até reestruturar as forcas produtivas. Foi exatamente isso que aconteceu em Portugal em 1975 e o grau de relacionamento das empresas com o mercado mundial marcou a velocidade com que em cada uma delas ocorreu o recuo das lutas. Aquelas grandes empresas do metalo-mecanica, da sidertirgia, da construgéo naval, que ha- viam constituido uma vanguarda no arranque do processo, eram também as que mais estreita e diretamente decorriam do mercado mundial. Com © principio do “Quem suja, limpa” pode, evidentemente, fabricar pe- troleiros, mas néo obedecendo aqueles critérios de competitividade exigidos pelas grandes companhias que os vio comprar. Perante essa barreira tais empresas deixavam, assim, de ser uma vanguarda. Sob este novo ponto de vista, as empresas que surgiram como vanguarda foram aquelas que pro- duziam bens de consumo popular, tais como toalhas, agasalhos desportivos @ outros produtos do mesmo género. Empresas deste tipo, embora nas maos dos operdrios e prevalecendo nelas relagdes de trabalho mais igualitdrias, puderam continuar a laborar durante um periodo consideravel, uns dois anos ou mais. Estou a recordar-me de um caso em que durante muito tempo uma destas fabricas vendeu sobretudo para o que se poderia de- nominar um “mercado de solidariedade”. Era mercado no sentido de que continuava a existir dinheiro, porém as aquisigdes nao obedeciam a qual- quer dos critérios capitalistas de produtividade, mas ao apoio prestado pela populacdo trabalhadora a trabalhadores em luta. Foram empresas deste tipo as que mais longe projetaram as novas relacdes sociais no sentido da remodelacéo do proceso de trabalho e das forcas produtivas. Nas fases sucessivas da luta ¢, em cada momento, para as suas vdrias facetas, des- tacaram-se diferentes vanguardas. Em meu entender, este é um dos aspec- tos fundamentais que pdem em causa a concepcao tradicional de partido operério enquanto vanguarda tinica e organizada. Tivemos, assim, ritmos diferentes para o recuo das lutas em cada tipo de empresa, mas nao sendo possivel em nenhuma delas uma duracao inde- finida das experiéncias revolucionérias. Quanto mais nao seja indiretamen- te, mediante a generalidade da sociedade, o mercado mundial tem feito sen- tir © seu peso em todas as empresas sem excegio e feito triunfar os seus critérios. Vemos, portanto, que a barreira que se opde a reorganizacao das forgas produtivas consoante as relagdes sociais criadas na luta € o mer- ‘ado capitalista e, nomeadamente, o mercado mundial. O que é outra for- ma de referir a necessidade de internacionalizacao da luta e as conseqiién- cias trégicas acarretadas pela auséncia — até hoje — de uma unificagéo internacional do movimento operério. E precisamente neste ponto que os capitalistas podem proceder a uma segunda recuperacao das lutas proletdrias. J4 enunciei a primeira das for- mas de recuperacao, que consiste em responder de imediato as reivint cagées do proletariado mediante a répida reducdo do tempo de trabalho incorporado na sua forga de trabalho; foi o que denominei de ciclos cur- tos da mais-valia relativa. A segunda das formas de recuperacao surge pre- cisamente quando o mercado mundial impede as novas relacdes sociais decorrentes da luta de se expandirem em direcdo ao processo de trabalho e as forcas produtivas. Quando essas relagdes sociais deixam de se expandir, acaba por acontecer que os trabalhadores deixam de as apoiar. Eles pos- suiam comiss6es de fabrica, comissdes de trabalhadores, eleitas da maneira mais democratica, revogaveis ¢ cujo objetivo era o de reestruturar 0 proces- so de trabalho. Quando essas comissdes se defrontam com o mercado mun- dial e so incapazes de o destruir, obedecem aos critérios por ele impostos. A reestruturagao do processo de trabalho, em vez de prosseguir, é pelo contrério travada e a empresa continua a laborar segundo os moldes da produtividade capitalista. A reagéo imediata dos trabalhadores é a de mu- dar a comissio. E 0 que acontece com a nova? Acontece que faz exata- mente o mesmo que a anterior e aqueles dos seus membros que nao qui- serem seguir por esta via resta apenas a demissao. E por este processo que se enceta ¢ prossegue a desmoralizagao da classe operdria em cada empre- sa. Os trabalhadores abandonam entao progressivamente o combate, desin- teressam-se dele, desistem e deixam de acreditar na possibilidade de reor- ganizacdo das relacées de producao e das forcas produtivas. Simultaneamente, é esse mesmo o processo pelo qual os capitalistas se apropriam das instituicdes j4 degeneradas em virtude da travagem das lutas, desvirtuam-nas mais ainda e as integram no processo produtivo. Vou dar um exemplo: em dada época, as instituicdes que correspondiam as caracteristicas organicas que a classe operdria entéo possuia e que a en- quadravam no secu combate eram os sindicatos altamente centralizados. Do fracasso dessa etapa do movimento proletdrio resultou a recuperacdéo dessas instituigdes pelo capitalismo, o desenvolvimento dos grandes sindi- catos burocratizados e a reorganizacio do processo de trabalho consoante as normas do taylorismo. Em meu entender, cada estdgio da organizacao do trabalho ndo é sendo o resultado da apropriacdo pelos capitalistas de 109 110 instituigdes que surgiram originariamente com as lutas operérias, que se depararam depois com um impasse, que sofreram o afastamento eo desin- teresse por parte das massas dos trabalhadores, que por isso degeneraram e se burocratizaram — ficando ent@o maduras, ou podres, para serem re- cuperadas pelo capital. A histéria das reorganizagées capitalistas do processo dc trabalho é sinénimo das derrotas do movimento operdrio. Vejamos outro exemplo atual: nos ultimos dez ou mesmo vinte anos o proletariado tem avangado com formas de luta caracterizadas por elevada autonomia. Foi o caso da ala mais radical, que conduziu a critica de esquerda ao maofsmo, du- rante o complexo processo de “revolugao cultural” na China; foi o caso em Portugal, em 1974 e 1975; ou, mais recentemente, com a imensa luta do proletariado na Pold: E numerosissimos outros exemplos, de menor amplitude ¢ repercussao, confirmam a tendéncia para a condugao auténoma do movimento. E uma tendéncia ainda em plena ascensao e, neste sentido, triunfante; mas, @ medida que cada uma destas lutas particulares nado con- seguiu derrubar o capitalismo, foram, sob este ponto de vista, derrotadas € as suas instituigdes tém sido recuperadas pelos capitalistas. E nessa re- cuperacdo que se fundamenta a constituicdo dos CCQ e dos restantes sis- temas de trabalho que com eles se relacionam. O que é que o proletariado impée quando luta, de forma autonoma? Impée a sua capacidade de gerir a luta, de ele proprio a conduzir. Os trabalhadores negam um sistema de sindicato hierarquizado em que se limitem a obedecer as diretivas e querem contribuir para a definicéo dos objetivos ¢ do processo de os passar a pratica. E 0 que séo os CCQ e¢ os outros sistemas correlacionados? Eles constituem a exploracao por parte do capitalista da capacidade que os ope- rérios manifestam para raciocinar e para gerir. Recordo-me de um artigo publicado sobre o assunto na Business Week* em que se citam declaracdes do vice-presidente para as RelagGes Industriais da General Motors: “Esta- mos ainda a viver no mundo da década de trinta. Pagamos pelo uso das mios do trabalhador e nao pelo que ele pode oferecer mentalmente.”” A cada estégio da constituigdo organica do proletariado correspondem dadas formas de luta ¢ dadas relagdes sociais de luta; sempre que essas relacdes sociais se deparam com um obstdculo que nao conseguem transpor, entram em degencrescéncia e sao recuperadas pelo capitalismo, que reorga- niza o processo de trabalho consoante essas formas j4 degeneradas. Deno- mino cada um destes ciclos de desenvolvimento das formas de luta e da sua recuperagao ciclos longos da mais-valia relativa. Comecei por dizer que © proletariado tem duas vidas. Procurei até aqui mostrar como esses dois aspectos se articulam, pelas lutas sociais, nos quadros da mais-valia relativa. Digo que a mais-valia relativa, apés cumprir cada ciclo, se absolutiza. Uma dada forma de mais-valia relativa nao € eternamente relativa; a partir do momento em que se converte no padrao normal da produgao capita- * The New Indust no 61 | Relations, Business Week, 11 de maio de 1981. p. 58-68. A citacio vem lista, esgota-se o diferencial que a caracterizava como relativa e outras formas surgem. E sempre, com cada novo ciclo longo, reestruturam-se os sistemas capitalistas de organizagao do trabalho. E vemos assim que a his- t6ria do movimento operdrio nao deve centrar-se no anedotério dos parti- dos politicos, nas atas dos congressos, nas sessdes, nas cisGes, nas divergén- cias e convergéncias, mas precisamente nds ciclos da mais-valia relativa. & neste enquadramento que poderemos entender as relagdes sociais surgidas nas lutas ¢ a posterior degenerescéncia ¢ recuperagéo das instituig6es que clas haviam produzido; nesse sentido deveria, em minha opinido, incidir a aten- gGo dos pesquisadores do movimento operdtio. Os ciclos de ascensio e re- cuperago das lutas pautam as caracteristicas que véo assumindo as novas relagdes sociais, ritmam o desenvolvimento organico da classe operétia, a sua relagao com os capitalistas. Com esta perspectiva dinamica do modelo da mais-valia verificamos que o capital nao € senao a relagio antagGnica esta- belecida entre os capitalistas e 0 proletariado. Mas vejamos: se a histéria do movimento operdrio & a historia dos ciclos da mais-valia relativa, esta implica a crescente integracao reciproca das empresas. O aumento da produtividade numa empresa ndo se obtém nela isolada, mas recorrendo a todas as outras, que tém assim de acrescer também a sua produtividade, num mecanismo global; e a remodelagao dos processos de trabalho nao pode operar-se numas empresas sem se reper- cutir nas restantes. E, portanto, a prdpria estrutura do capitalismo que obri- ga as empresas a relacionar-se cada vez mais estreitamente. As condigdes fundamentais necessdrias para essa integracao chamo Condicées Gerais de Produgdo. Numa definicao muito suméria e simplista, trata-se das infra- -estruturas sociais e materiais, as mais latas possivel, necessdrias a inter- -relagdo das unidades de produco no processo econémico global. Do ponto de vista social, a integracdo crescente das empresas susci- tada pelos mecanismos da miais-valia relativa implica o reforco daquela classe que se fundamenta na inter-relagéo das unidades de producdo e o declinio da classe que existe em fungdo das empresas enquanto unidades isoladas; ambos os aspectos se podem detectar no funcionamento das uni- dades econdmicas, mas o primeiro ultrapassou progressivamente o segundo. Considero, assim, que ha duas classes capitalistas: uma delas, a classe bur- guesa, decorre do funcionamento isolado de cada unidade produtiva, da fragmentago dos processos econdmicos. Por isso, as formas de proprie- dade — ou seja, os titulos para a reparticaio da mais-valia entre os elemen- tos da classe — sao, na burguesia, fracionadas e privadas. A outra das classes capitalistas é a classe dos gestores, que decorre do funcionamento das unidades econémicas em relacdo reciproca e do carater globalizante do processo produtivo. Por isso, as formas de propriedade sao coletivas entre os gestores, ou seja, os seus titulos para repartigaio da mais-valia pas- sam pela relacio de cada elemento da classe com os aspectos mais centrais € integrados do processo cconémico. Nao é a forma como os elementos de uma classe se apropriam dos meios de producdo que define o cardter dessa classe, mas a posicéo que ocupam no sistema de exploracdo. Seja por 111 112 uma apropriacao privada ou coletiva, em qualquer caso os burgueses e os gestores detém os meios de producdo contra o proletariado, que explora. Tanto os gestores come os burgueses constituem classes capitalistas porque ocupam, relativamente ac proletariado, a posicio de extorsores de mais- -valia. Mas o desenvolvimento da mais-valia relativa, estreitando a integragdo reciproca das unidades produtivas, nao se limita a tornar mais homogéneo o campo de existéncia da classe dos gestores, reforgando-a por isso e debili- tando a burguesia. Acarreta ainda a remodelacio do aparelho de Estado. Enquanto prevalecia a fragmentacao do processo econémico e o cardter isolado das empresas predominava sobre a sua inter-relagdéo — ou seja, enquanto a classe burguesa era socialmente mais forte do que a classe dos gestores —, o necessdrio relacionamento entre as empresas era estabele- cido mediante o aparelho de Estado classico. Refiro-me aqui aquelas ins- tituigdes em que todos pensam quando se ouve falar em Estado: o gover- no, as administragées dele imediatamente dependentes, os tribunais. Ao conjunto dessas instituigdes tradicionais chamo Estado Restrito. E restrito porque, quanto mais a integracdo reciproca das unidades econdmicas se vai acentuando, mais se processa ao nivel das préprias empresas, ultrapas- sando as instituic6es do Estado classico e, por isso, relegando-o para funcées restritas. As empresas, e sobretudo as maiores de todas, as grandes com- panhias transnacionais, estabelecem diretamente relagdes entre si e com as restantes unidades econdémicas e atraem para a sua Orbita outras insti- tuicdes que antes pertenciam ao aparelho de Estado classico ou giravam em seu torno. E desta maneira que as administracdes estatais se vao em numero crescente autonomizando dos governos. As suas diretorias deixam de depender dos ministros — e fato, quando nao mesmo por lei — e cada vez mais se fundamentam na cooptacaio; e o mesmo sucede até com as empresas formalmente detidas pelo Estado. Sem esquecer aquela que, de entre todas as administracdes estatais, tem em tantos paises assumido o caréter mais declaradamente econémico: a institui¢ao militar. Mudam os ministros, mudam os governos, os regimes até, mas toda uma parte do que havia sido o aparelho de Estado classico permanece insensivel a essas re- modelagGes ¢ autonomiza-se das restantes instituigdes do Estado restrito, passando a integrar-se na teia de relacdes estabelecida diretamente ao nivel das grandes empresas. Um proceso idéntico ocorre também com as dire- cdes dos sindicatos burocrdticos, que cada vez menos dialogam ou cola- boram com o que resta do Estado classico ¢ passam a relacionar-se direta- mente com as grandes empresas. Estas ocupam, agora, 0 vértice do siste- ma a que chamo neocorporativismo: corporativismo, porque articula as grandes empresas, as maiores administracdes, as direcdes dos grandes sin- dicatos; neo, porque se desenvolve exteriormente ao aparelho de Estado tradicional. E & assim que este Estado, tornado restrito, é ultrapassado pelo que denomino Fstado Amplo. Se os ciclos da mais-valia relativa pautam a histéria do movimento operdrio, marcam também o ritmo, pelo lado do capital, ao reforgo social da classe dos gestores ¢ & crescente superagao do Estado Restrito pelo Es- tado Amplo. O campo de existéncia da classe dos gestores é a inter-relacao das empresas num processo econémico global; o Estado Amplo nao é sendo a organizaco do proceso econémico global conduzida diretamente ao ni- vel das empresas em inter-relacao. E inversamente: quanto mais o Estado Amplo desenvolve a sua esfera de aco, mais a classe dos gestores se unifica e, por conseguinte, mais se fortalece socialmente. Desenvolvimento do Estado Amplo e desenvolvimento da classe gestorial sio sinénimos. Quanto mais unificada e homogénea se torna a classe dos gestores, tanto mais claramente se opde A classe operdria. Até agora, e para me exprimir de maneira impressionista, a forca dos gestores tem vindo da sua capacidade para se ocultgrem aos olhos do proletariado e se revelarem uni- camente perante a burguesia. Perante o proletariado os gestores apresen- tam-se como também assalariados c, assim, afirmam-se como adversarios comuns da classe burguesa — até a altura em que a unificagao da classe gestorial, a teducao do ambito de acéo da burguesia, o desenvolvimento do Estado Amplo e 0 declinio do Estado Restrito clarificam o antago- nismo que opde a classe proletaria a classe dos gestores. No momento atual, contrariamente ao que sucedeu em épocas histéricas anteriores, a fraqueza do proletariado nao resulta jé da ambigiiidade com que se confundia com os gestores; resulta da sua fragmentacao por diferentes formas praticas de exploracao, onde os mecanismos concretos da mais-valia relativa operam de raneiras distintas e onde a mais-valia absoluta assume importancias variada, passando, por vezcs, para primeiro plano. F este 0 fundamento das heterogeneidades regionais e nacionais do proletariado, em face de uma classe dos gestores que se unifica e homogeneiza a escala mundial. © Brasil é um exemplo timo para mostrar como, perante uma classe gestorial verdadeiramente unificada, e que assim se apresenta nos antagonismos scciais, temos um proletariado repartido, muitos trabalhando em centros altamente industriais e com uma elevada produtividade, outros submetidos a exploragao mais priméria e, estes, divididos e fracionados também entre si. O defasamento entre a fragmentacdo da classe prole- taria e a unificacdo mundial da classe dos gestores é, em meu entender, 0 responsdvel pelas presentes fraquezas do movimento operdrio. E este, sem diivida, 0 ponto a partir do qual o estagio atual das lutas ird inaugurar um novo ciclo longo da mais-valia relativa. Se definirmos Estado como os mecanismos de poder das classes domi- nantes — e¢ s6 esta perspectiva me parece ter interesse para o movimento operirio —, no podemos limitar-nos ao Estado Restrito. Temos de con- siderar como Estado todo o aparelho de poder efetivo do capitalismo. Os capitalistas ndo sao apenas legisladores no governo ou no parlamento — e hoje j4 nem sequer é ai que o siio fundamentalmente. Os capitalistas leg’ lam no interior das fabricas —- e fazem-no entao praticamente sem limites, ou melhor. com os limites que decorrem apenas da luta direta dos traba- Ihadores. No interior da empresa, o capitalista legisla na exata medida em que organiza o process de producdo. em que impoe uma disciplina de tra- 113 114 balho. E nesse campo que vigora e se desenvolve o neocorporativismo, o Estado Amplo. Por isso, € contra o Estado Amplo, e em detrimento do Estado Restrito, que 0 movimento operdrio se orienta na fase atual, carac- terizada pela conducao auténoma das lutas. Foi essa a condenagéo @ morte dos partidos chamados operérios, ou com base operdria. De modelo leninista — ou neoleninista, para englobar todas as tentativas, por vezes desesperadas ¢ contraditérias, de atualizago do modelo — esses partidos tinham a sua forca nas empresas, mas cana- lizavam a aco dos trabalhadores para fora das empresas, em diregao a conquista dos centros de governo tradicionais. Os érgaos classicos do apa- relho de Estado aparecem hoje, porém, desprovidos de poder efetivo. A medida que o sufrdgio se tornou universal, que os partidos de base ope- réria ascenderam aos parlamentos, estas instituigdes abandonaram a e! c&cia que haviam tido e reduziram-se a um Estado restrito. O proletariado que em Petrogrado, a 7 de novembro de 1917, ajudou a tomar o Palécio de Inverno pensara ai encontrar o poder. Que se enganou demonstra-o claramente a continuagdo da exploracdo na URSS, até hoje. Pelo que é dado observar das formas atuais do movimento operario, nao parece que esses enganos estejam a repetir-se. Aqueles que, pelas armas ou pelo voto, pretendem conquistar outros palécios tém-se em geral deparado nas alturas cruciais com a indiferenca do proletariado. E mesmo que tais movimenta- Ges despertem ocasionalmente surtos de interesse, estes tém sido demasi do breves para revelar qualquer tendéncia presente da classe operdria & conquista das instituigGes do Estado Restrito. Os confrontos sociais tém manifestado claramente que o poder nao se encontra j4 concentrado no Estado tradicional, mas disperso pelos multiplos centros do Estado Amplo. Para a classe operdria a conquista do Estado Restrito seria, hoje, uma con- quista do vazio. A Constituigao que conta nao é a que rege, ou pode vir a reger, o funcionamento de instituigdes cada vez mais desprovidas de contetido, mas a organizacio do processo de trabalho em que assenta a exploracao e, por af, assentam todos os mecanismos de poder, sempre mais efetivos, do Estado Amplo. Sao estas, em meu entender, as perspectivas abertas ao movimento operdrio pelo desenvolvimento dos ciclos da mais-valia relativa. No estagio atual, em que é tao elevado o grau de integracdo reciproca das unidades econémicas, 0 tinico sentido que a autonomia operdria pode ter é o de constituir uma luta contra 0 capitalismo enquanto totalidade. Trata-se de uma estrutura global, a das relacdes sociais nascidas na luta dos traba- thadores, que defronta outra estrutura global. a do capitalismo organizado como Estado Amplo. A autonomia operdria € hoje sinénimo da luta con- tra o Estado Amplo. Das duas vidas do proletariado, uma destruiré a outra.

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