Tese - Experiências Autonomistas em Saúde Mental - Possibilidades de Empoderamento
Tese - Experiências Autonomistas em Saúde Mental - Possibilidades de Empoderamento
Tese - Experiências Autonomistas em Saúde Mental - Possibilidades de Empoderamento
Belo Horizonte
2017
150 Ribeiro, Regina Céli Fonseca
R484e Experiências autonomistas em saúde mental [manuscrito]
2017 : possibilidades de empoderamento / Regina Céli Fonseca
Ribeiro. - 2017.
196 f.: il.
Orientadora: Izabel Christina Friche Passos.
A Izabel C. Friche Passos, minha querida orientadora, por compartilhar seu saber com
generosidade, por me permitir conviver com sua leveza e rebeldia dentro e fora da
Universidade.
À Rádio FM UFMG Educativa por abrir suas portas para um feliz encontro de práticas
e ideias, em especial ao Pacífico, Luiza Glória, Alessandra Dantas e Danielle Pinto.
Ao Gilles Monceau e a Carla Andrea Silva Lima por terem aceitado contribuir com
esta tese participando da banca de defesa.
A Bárbara e ao Léo que continuam me ensinando que ser mãe é um aprendizado diário
de confiança, desprendimento e amor.
A minha mãe, irmã e irmão pelo apoio, pela torcida e pelo respeito ao meu tempo de
produção.
A Maria Aline, que de colega passou a amiga durante o percurso do doutorado.
Obrigada por compartilhar seu saber e competência, testemunhados com afeto e discrição pelo
Marcelo.
Aos colegas do L@gir: Isabella, Rinaldo, Fábio, Maristela, Ana Luiza, Flávia, Cláudia
Eliza, Margarete e Breno. Muito obrigada pelas contribuições e pelo incentivo.
A Audrey Ivanenko, Jane Laiz, Tânia Hirochi, Dolores Lemos, Érika Dittz, Adriana
Valladão, Vinícius Caliman e Bruno Bechara, amigas queridas e amigos queridos que me
incentivaram, torceram por mim e me emprestaram seus ouvidos.
A Lívia de Castro Magalhães, Luci Fucaldi T. Salmela e John Salmela (in memorian)
por acreditarem e me incentivarem sempre.
Ribeiro, Regina Céli Fonseca (2017). Autonomist experiences in mental health: possibilities
of empowerment. (Doctoral thesis). Graduate Program in Psychology, Faculty of Philosophy
and Human Sciences, Federal University of Minas Gerais, Belo Horizonte.
Autonomy and empowerment are radical principles and goals in Psychosocial Care. They are
polysemic concepts and appear in the literature of the field of Psychosocial Attention
independently and often as synonyms. The conception of autonomy, inspired by the
construction of Castoriadis, dialogues with the notion of empowerment proposed by Eduardo
Mourão Vasconcelos, through reflexivity and participation proper to emancipatory political
processes. This is a qualitative study, in the form of an intervention research, guided by the
French Institutional Analysis (AI) framework, which advocates a new way of thinking and
exercising science by understanding that research and intervention take place together, as well
as the production of the object and subject of knowledge, valuing everything that stems from
the researcher's position in social relations and in the institutional network. The objective of
this research was to study the process of constructing autonomist experiences in the field of
mental health, analyzing the possibilities and the challenges of the real production of
autonomy and empowerment in a radio workshop that produces the program " Crazy Tuning"
and in the group of theater " Research and Creation Center Frogs and Drowners". Research
methods and techniques involved the conceptual and analytical tools and devices of the
Institutional Analysis, such as analyzers, analysis of implication and overimplication and
restitution, as well as participant observation, interview, documentary research, and records in
the field notebook of the researcher. The development of the research process led to the
construction of the “Crazy Tuning” radio program for dialogue with the conception of
empowerment, which highlighted three strategies of empowerment: the fight against stigma,
personal narratives of life with mental disorder and militancy. In addition to the
empowerment potential, the experience has produced analyzing and instituting effects on the
academic formation in mental health. The autonomous characteristic of “Frogs and
Drowners” and the nature of its creative process was what made possible the dialogue with
Castoriadis in the second phase of the study. This autonomist praxis, because essentially
creative, confers appointment and a new social place that confronts the social stigma related
to madness, besides reverting to social support, affection and solidarity.
Ribeiro, Regina Céli Fonseca (2017). Expériences autonomistes en santé mentale: possibilités
d'empowerment. (Thèse de doctorat). Programme d'Études Supérieures en Psychologie,
Faculté de Philosophie et Sciences Humaines, Université Fédérale de Minas Gerais, Belo
Horizonte.
L'autonomie et l'empowerment sont des principes et des objectifs radicaux dans les soins
psychosociaux. Ce sont des concepts polysémiques et apparaissent dans la littérature du
domaine de l'attention psychosociale de manière indépendante et souvent comme synonymes.
La conception de l'autonomie, inspirée par la construction de Castoriadis, dialogue avec la
notion d'empowerment proposée par Eduardo Mourão Vasconcelos, par réflexivité et
participation propre aux processus politiques émancipateurs. Il s'agit d'une étude qualitative,
sous la forme d'une recherche d'intervention, guidée par le cadre de l'Analyse Institutionnelle
française (AI), qui préconise une nouvelle façon de penser et d'exercer la science en
comprenant que la recherche et l'intervention se déroulent ensemble, ainsi que la production
de l'objet et du sujet de la connaissance, valorisant tout ce qui découle de la position du
chercheur dans les relations sociales et dans le réseau institutionnel. L'objectif de cette
recherche était d'étudier le processus de construction d'expériences autonomistes dans le
domaine de la santé mentale, en analysant les possibilités et les défis de la production réelle
d'autonomie et d'empowerment dans un atelier de radio qui produit le programme "Folle
Réglage" et dans le Groupe de théâtre "Centre de Recherche et de Création Grenouilles et
Noyés ". Les méthodes et techniques de recherche impliquaient les outils et dispositifs
conceptuels et analytiques de l'Analyse Institutionnelle, tels que les analyseurs, l'analyse des
implications, l'analyse des surimplications et la restitution, ainsi que l'observation des
participants, l'entrevue, la recherche documentaire et les enregistrements sur le carnet de
champ du chercheur. Le développement du processus de recherche a conduit à la construction
du programme de radio " Folle Réglage" pour le dialogue avec la conception de
l'autonomisation, qui a mis en évidence trois stratégies d'autonomisation: la lutte contre la
stigmatisation, les récits personnels de la vie avec troubles mentaux et le militantisme. En plus
du potentiel d'autonomisation, l'expérience a permis des effets d'analyser et d'instituant sur la
formation académique en santé mentale. La caractéristique autonome des «Grenouilles et des
Drowners» et la nature de son processus créatif ont permis de dialoguer avec Castoriadis dans
la deuxième phase de l'étude. Cette praxis autonomiste, essentiellement créative, confère un
rendez-vous et un nouveau lieu social confronté à la stigmatisation sociale liée à la folie, en
plus de revenir au soutien social, à l'affection et à la solidarité.
AI Análise Institucional
ASUSSAM Associação dos Usuários dos Serviços de Saúde Mental
AT Acompanhante Terapêutico
CAC-SP Centro de Apoio Comunitário do bairro São Paulo
CCSP Centro de Convivência São Paulo
CERSAM Centro de Referência em Saúde Mental
CILA Comissão Interna da Luta Antimanicomial
CNSM-I Conferência Nacional de Saúde Mental Intersetorial
FOFO Fórum de Formação em Saúde Mental de Minas Gerais
GAM Guia da Gestão Autônoma da Medicação
PASME Programa de Extensão em Atenção à Saúde Mental
PNH Política Nacional de Humanização
PROEX Pró Reitoria de Extensão
SRT Serviço Residencial Terapêutico
SUS Sistema Único de Saúde
TCLE Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
UFMG Universidade Federal de Minas Gerais
Sumário
1 O COMEÇO DO PERCURSO ................................................................................... 14
2.1 Bases para a compreensão do uso da noção de empoderamento no campo da saúde mental .21
2.1.1 A apropriação da noção de empoderamento pelo campo da saúde mental no Brasil ...............29
2.1.2 Conceitos básicos que orientam as estratégias de empoderamento em saúde mental ............33
4.1 Primeira edição do programa Louca Sintonia: Na trajetória entre o ensino e a pesquisa, o
empoderamento começa a dar sinais ......................................................................................66
4.2 Segunda edição do programa Louca Sintonia: analisar a implicação para manter a sintonia e a
lucidez ....................................................................................................................................74
4.3 Terceira edição do programa Louca Sintonia: desocupar a palavra e suas consequências ........80
4.3.1. O Seminário de avaliação: se a avaliação é coletiva por que as supervisões não podem ser
também? ................................................................................................................................84
4.4 Quarta edição do programa Louca Sintonia: sobre a importância de se retomar as condições de
informação, reflexividade e escuta para fortalecer a militância rumo à autonomia e ao
empoderamento .....................................................................................................................93
4.5 Considerações gerais sobre a experiência de construção do programa Louca Sintonia ............97
4.6 Dialogando com outras experiências radiofônicas de caráter autonomista ............................100
5.1 A cortina se abre: que lugar é esse? Que pessoas são essas? Que pesquisador é esse? .........110
5.3 O cuidado como expressão de uma outra relação possível com a loucura .............................133
1 O COMEÇO DO PERCURSO
Iniciar este estudo me fez retomar alguns aspectos anteriores da minha formação e da
minha vida acadêmica e avançar em outros.
Desde o meu último ano de graduação, minha opção foi pela Terapia Ocupacional em
saúde mental - nomeada, naquela época, Terapia Ocupacional aplicada à psiquiatria - de base
psicanalítica. Entendo hoje que a minha formação em psicanálise me possibilitou apostar no
envolvimento do sujeito na construção da própria vida, em contraposição ao modelo
biomédico e de influência norte-americana das demais áreas da Terapia Ocupacional.
À exceção das atividades voltadas para geração de renda, todas as demais sempre
fizeram parte do repertório de recursos terapêuticos utilizados pela Terapia Ocupacional em
saúde mental, visando sempre à elaboração psíquica do sofrimento mental e à reinserção
social que, até aquele momento, tinha sua construção muito restrita ao setting terapêutico.
Apesar de muitas atividades já serem realizadas na rua e em espaços da cidade, a construção
de uma provável reinserção social acontecia muito mais dentro das instituições e dos
consultórios, ainda que fossem em ambulatórios ou hospitais-dia, porque esse era
tradicionalmente o limite das práticas profissionais, não só da Terapia Ocupacional, mas
também das demais profissões da área.
Motivada pelas questões que vinham do diálogo entre a prática profissional, a prática
docente e o serviço, e interessada em entendê-las, mas do ponto de vista do usuário, realizei
no mestrado um estudo de caso único, analisando a percepção de um paciente esquizofrênico
sobre o que são as oficinas terapêuticas (Ribeiro, 2003), quando foi possível identificar o
1
As quatro dimensões da Atenção Psicossocial propostas por Amarante (2007) são: a teórico-conceitual; a
técnico-assistencial; a jurídico-política e a sociocultural.
16
papel das oficinas como uma das ocupações diárias na vida dessas pessoas e como ponte para
novas relações sociais e para o trabalho. O envolvimento do sujeito em questão com uma
oficina de pintura possibilitou, desde uma mudança na sua rotina de vida, a partir do
compromisso assumido, até a ampliação de sua contratualidade social. Para atender ao
compromisso assumido, ele precisou se envolver em inúmeras outras ocupações, como sair da
cama e se cuidar para ir até a instituição, fazer o percurso entre sua casa e a clínica a pé,
encontrar pessoas, passar na lanchonete e fazer um lanche, conhecer novas pessoas, fazer
amigos e programar atividades com eles nos finais de semana, procurar um curso de pintura,
participar de exposições de arte, até reduzir o envolvimento com a oficina de pintura porque
queria mesmo era trabalhar e entendeu que ali ele teria muitas dificuldades para conseguir seu
sustento.
No doutorado, o interesse pelas oficinas terapêuticas e pelo ponto de vista dos usuários
permaneceram na proposta de estudar o empoderamento e a autonomia no processo de
construção com eles de um novo lugar social, desafio introduzido com o fim dos manicômios.
A segunda das experiências referidas acima diz respeito a uma revisão bibliográfica
realizada já no doutorado, sobre a participação de usuários de saúde mental na produção de
conhecimento científico (Ribeiro, Barboza & Passos, no prelo). Foi interessante observar
como ainda há um descompasso entre a lógica da horizontalização das relações de poder do
2
As disciplinas de Formação Livre são atividades curriculares de livre escolha do aluno, fora do seu curso de
origem.
17
A última das experiências que me ajudaram a reafirmar a escolha do tema deste estudo
está relacionada ao ensino, numa disciplina curricular do curso de graduação em Terapia
Ocupacional da UFMG. Trata-se de uma disciplina prática, realizada no Centro de
Convivência São Paulo (CCSP), da rede substitutiva de Belo Horizonte, que se propôs a
intermediar uma experiência de coparticipação dos usuários na construção de um programa de
rádio, em parceria com os trabalhadores do serviço e com a Radio UFMG Educativa. Nesse
momento, durante o doutorado, eu já me envolvia com estudos e discussões sobre pesquisa
participante, pesquisa intervenção e pesquisa ação e, encontrei aí o princípio que nos foi mais
essencial naquele processo: a democratização de todas as decisões referentes ao programa de
rádio, desde seu conteúdo, nome, formato até a estética final do mesmo.
dimensão ético-política. Essas práticas afetam ações e valores culturais e éticos (Yasui &
Costa-Rosa, 2008).
As questões que conduziram à proposta deste estudo foram: como uma oficina de
rádio, inserida em estruturas instituídas como a universidade e o serviço, poderia abrir
caminho para a produção de autonomia e empoderamento? Como levar às últimas
consequências a participação dos usuários na construção do programa de rádio, considerando
os atravessamentos representados pelo processo ensino-aprendizagem, também inerente a essa
prática? De que forma se observa a conquista de autonomia e empoderamento em
experiências como a desta oficina ou de outras experiências que acontecem no serviço? De
que forma se observa a conquista de autonomia e empoderamento em experiências que
envolvem pessoas em sofrimento mental, mas que acontecem fora do âmbito da assistência?
Quais os limites destas experiências?
O conceito de empoderamento3 tem sido usado por muitas profissões como o serviço
social, a enfermagem e a psicologia e também no âmbito da promoção à saúde, da saúde
mental e da educação, adquirindo muitos sentidos que estão relacionados por exemplo ao
controle sobre a vida ou sobre a saúde, à autonomia, autoestima, auto eficácia, liberdade,
participação, conscientização, humanização, protagonismo, emancipação, etc. (Tengland,
2008). Cada uma dessas noções tem um estatuto próprio e também são multifacetadas,
aparecendo na literatura dos campos referidos acima de forma independente e muitas vezes
como sinônimos (Vasconcelos, 2003, 2013b; Pinto, 2009, 2011; Carvalho, 2004a, 2004b;
Tegland, 2008; Shor & Freire, 1986).
3
Ao longo do texto utilizarei o termo empoderamento. No entanto, será mantido na língua inglesa quando se
referir diretamente a autores que optaram por esse formato.
22
(Montero, 2006b, p.61). Sustenta sua crítica em levantamento teórico sobre a utilização do
termo onde encontra uma correspondência quase total, entre as características e pressupostos
dos dois termos, empowerment e fortalecimento, em sua utilização no campo da Psicologia
Comunitária. Vasconcelos (2007, 2013a) considera que as traduções mais comuns do termo
para o português - autonomização, aumento de poder, fortalecimento - são interessantes, mas
parciais e mesmo na mais comum delas, empoderamento, observa a perda da força, da
complexidade e da multidimensionalidade que acompanham o original em inglês. Ainda
assim, opta pela última tradução, em sua utilização no campo da saúde mental brasileira, por
entender que é a mais acessível para as pessoas às quais o termo se refere, ou seja, aquelas
marcadas pela opressão, discriminação e por relações de dominação.
4
A Organização Mundial de Saúde (OMS) “caracteriza como iniciativas de promoção de saúde os programas, as
políticas e as atividades planejadas e executadas de acordo com os seguintes princípios: concepção holística,
intersetorialidade, empoderamento, participação social, equidade, ações multi-estratégicas e sustentabilidade”
(Sícoli & Nascimento, 2003, p.107).
23
acaba por exigir, na apropriação do conceito, uma contextualização crítica e cuidadosa e uma
clareza com relação às perspectivas ideológicas e políticas que se aplicam a ele.
perante a realidade para que sejam capazes de realizar transformações políticas radicais. O
empowerment individual ou de pequenos grupos e a sensação de mudança que decorre dele
não é suficiente para transformar a sociedade, mas é "absolutamente necessário para o
processo de transformação social" (p.71). Freire defende ali, um
Que permite que as mulheres, e outros grupos marginalizados, aumentem seu poder,
isto é, que tenham acesso ao uso e controle dos recursos materiais e simbólicos, ganhem
influência e participem na mudança social. Isto inclui também um processo no qual as
pessoas tomem consciência de seus próprios direitos, capacidades e interesses, e de como
estes se relacionam com os interesses de outras pessoas, com o objetivo de participar desde
uma posição mais sólida na tomada de decisões e estar em condições de influir nelas
(Murguialday, Armiño & Eizagirre, 2000, p.2, tradução da autora)5.
5
Que propicia que las mujeres, y otros grupos marginados, incrementen su poder, esto es, que accedan al uso y
control de los recursos materiales y simbólicos, ganen influencia y participen en el cambio social. Esto incluye
también un processo por el que las personas tomen conciencia de sus propios derechos, capacidades e intereses,
y de cómo éstos se relacionan con los intereses de otras personas, con el fin de participar desde una posición más
sólida en la toma de decisiones y estar en condiciones de influir en ellas (Murguialday, Armiño & Eizagirre,
2000, p.2).
25
confunde relações de poder com dominação, repressão, violência e controle pelo Estado,
existe uma positividade nessas relações. Como nos esclarece Passos (2008):
Poder, para Foucault, é apenas uma forma, variável e instável, do jogo de forças que
definem as relações sociais em cada momento histórico concreto, e que se define através de
práticas e discursos específicos. [...] São as práticas que dizem do tipo de poder que as
mantém ou desestabiliza (p.11)
Outra estratégia usada por eles são as que apresentam características de ajuda e
suporte mútuos e de cuidado de si6 (Vasconcelos, 2003, 2007, 2013a, 2013b, 2015) ou de
apoio mútuo, como preferem Chassot & Silva (2015). Essas estratégias ampliam as redes de
apoio e funcionam como formas de resistência ao sistema de saúde psiquiátrico,
representando a base das estratégias de empoderamento (Vasconcelos, idem), “a porta de
entrada para o ativismo” (Chassot & Silva, 2015, p.150), porque permitem o acolhimento da
diferença, “romper o isolamento social e a estigmatização” (idem), o compartilhamento das
experiências de sofrimento e o acesso democrático a informações que de outra forma ficariam
restritas ao controle dos profissionais, motivando e fortalecendo a vinculação aos grupos e o
consequente interesse pela defesa de direitos dos usuários.
O movimento britânico dos usuários conquistou um novo lugar social para seus
representantes (Chassot & Silva, 2015), que passaram a se fazer presentes e influenciar todas
as discussões sobre saúde mental, inclusive no ambiente acadêmico, onde seu ponto de vista
sobre o sofrimento psíquico e sobre o tratamento foi incorporado aos currículos dos cursos de
graduação da área e à participação efetiva em projetos de pesquisa; também prestam
consultoria e assessoria na construção de serviços de saúde mental públicos e privados e
fazem parte de organizações governamentais de fiscalização e gerenciamento de serviços. Por
outro lado,
6
Como veremos adiante, Vasconcelos propõe o ‘cuidado de si’ como um dos desdobramentos que faz ao criticar
a noção de autoajuda, associada ao empowerment.
32
... a necessidade de uma ampla reflexão ético-política sobre a gestão dos serviços e a
horizontalidade nos tratamentos [e de se retomar os] propósitos da Reforma Psiquiátrica
brasileira, enriquecidos pela mais expressiva participação de usuários de saúde mental em sua
construção e debate, [...] se quisermos sustentar a proposta de desinstitucionalização
promovida pela Reforma Psiquiátrica brasileira.
por Vasconcelos (2013). Aqui será entendido como um processo de mudança, individual e ao
mesmo tempo coletivo, que pode conduzir a “uma vida com satisfação, desejo e participação
social” (Vasconcelos, 2007, p. 178), apesar das limitações decorrentes do sofrimento
psíquico. Segundo este autor, estudos longitudinais realizados no âmbito da reabilitação
psicossocial norte-americana avaliaram os sintomas, funcionamento social e qualidade de vida
de pessoas com esquizofrenia e demonstraram que ao contrário do esperado pelos
prognósticos convencionais, houve melhora na recuperação e, ainda maior, na recuperação
daqueles que frequentaram programas de reabilitação, principalmente se envolviam aspectos
como a moradia, trabalho, educação e socialização, esta última encontrada nas relações de
amizade, nos grupos e nos movimentos de usuários. Esta perspectiva depende de um sistema
de saúde voltado para a recuperação bem como do desenvolvimento, pelo movimento de
usuários e familiares, de dispositivos e estratégias de empoderamento, que propiciem a defesa
de direitos, a militância e a autoajuda, este último, um conceito criticado, reapropriado e
desdobrado por Vasconcelos (2003; 2007; 2009; 2013).
...as estratégias, os movimentos e grupos de ajuda mútua devem ter suas origens
históricas, culturais e ideológicas avaliadas com muito cuidado. É necessário identificar não
só seus ideais e práticas com potencial humanitário, solidário e emancipatório, mas também e
principalmente os seus riscos de reproduzir valores e ideologias polêmicos, de reduzir a
flexibilidade normativa necessária para lidar com os conflitos do problema humano em foco
e da área em que atua, e, portanto, de ser usado como mais um dispositivo de normatização
cultural e social (Vasconcelos et al., 2013b, p. 192)
De acordo com Vasconcelos (2013b), “de um ponto de vista mais prático” (p.76),
destes desafios, no sentido de recuperar uma vida ativa, participativa e prazerosa do ponto de
vista pessoal e social (Vasconcelos et al., 2013b, p.75-76).
No contexto brasileiro, esse mesmo autor e outros como (Birman, 1992) e Passos
(2003), inspirados pelo antropólogo Roberto Damatta, discutem o paradoxo da cidadania do
louco. Damatta (1997) desnaturaliza a noção de cidadania, caracterizada pela ideologia do
individualismo e por regras universais para todos, em qualquer situação ou espaço social,
como teorizada por Marshall e assumida pela cultura norte americana e europeia. Para ele, a
lógica relacional e hierarquizada de funcionamento da sociedade brasileira dificulta a
incorporação de uma única noção de cidadania. Essa lógica, característica dos países de
origem latina, é marcada pelas relações familiares, de amizade, ocupacionais, configurando a
existência em uma sociedade com profundas desigualdades sociais, burocratizada,
patrimonialista e com programas de bem-estar social pouco desenvolvidos (Passos, 2003;
Vasconcelos, 2014). Conforme ilustra Damatta (1997)
Por fim, temos as narrativas pessoais de vida com o transtorno mental, que vêm sendo
reconhecidas internacionalmente e no Brasil como estratégias de empoderamento importantes
no processo de recovery em saúde mental (Vasconcelos, 2003, 2005, 2013a, 2013b). Elas têm
sido consideradas como formas de apropriação e ressignificação da experiência de sofrimento,
que podem ajudar na aceitação do fato de que a convivência com a loucura é ao mesmo tempo
muito difícil, mas que também faz "parte integral da vida humana" (idem, 2013b, p.80). Além
disso, representam possibilidade de troca de experiências; podem ser utilizadas como material
para discussão em grupos de ajuda e de suporte mútuos e nos dispositivos de cuidado de si;
buscam o reconhecimento da experiência subjetiva e da voz de quem a protagoniza enquanto
ferramentas para a luta contra o estigma e a defesa de direitos. As narrativas também têm sido
utilizadas como metodologias para coleta de dados em pesquisas científicas. Ainda de acordo
com Vasconcelos (2005), as narrativas
Carla Pinto (2011), por exemplo, considera que “empowerment é ‘ter poder’, poder
para ser capaz, para ser autônomo, autodeterminado e poder controlar de algum modo
significativo a própria vida" (p.465). Também no campo do Serviço Social, Fazenda (n.d.)
apresenta o empowerment como uma
Já no campo da saúde mental, Alves, Oliveira & Vasconcelos (2013) consideram que
o empoderamento é um dispositivo ou estratégia para a produção de
autonomia/responsabilização, e reinserção social, sendo que, para estes autores, a autonomia
está relacionada à liberdade e ao poder que usuários e familiares têm ou desenvolvem, para
serem sujeitos das suas decisões e escolhas. Apoiam-se em autores que defendem que o
empoderamento é um meio para se obter maior controle sobre a própria vida e de se alcançar
relações de poder menos hierarquizadas, sendo caracterizado pela liberdade e pelo acesso a
informações necessárias ao processo. Para os profissionais entrevistados no estudo conduzido
pelos autores, empoderamento é o mesmo que a "autonomia dos sujeitos, o fato de os usuários
serem protagonistas nas tomadas de decisão e se responsabilizarem por seus atos" (p.61),
40
visão que também observaram conviver com a ideia de autonomia enquanto algo a ser dado
ao usuário. Observa-se nesta última visão, a marca das perspectivas conservadoras de
empowerment, de características paternalistas e que centralizam o saber na figura do
profissional.
Para este autor, o sujeito será mais autônomo quanto maiores forem seus laços de
dependência, em confronto direto com perspectivas mais individualistas que consideram a
autonomia como sinônimo de independência, liberdade e autossuficiência. Vasconcelos
(2013b) avança um pouco mais nesse ponto ao deixar claro que concorda com a ideia daquele
autor, desde que articulada aos marcos culturais de cada sociedade. Para Passos et al. (2013),
“autonomia não é contrária à dependência, sendo efeito de processos de coconstituição de
sujeitos que agem sobre si mesmos e sobre o contexto conforme objetivos democráticos”
(p.2922).
Apesar de ser a concepção mais utilizada por autores do campo da saúde mental no
Brasil, parece residir nela um limite pois, não basta aumentar a inserção em relações sociais,
se esta inserção não vier acompanhada de reflexividade, elucidação e crítica sobre os novos
laços estabelecidos e as possibilidades de transformação político-social decorrentes daí. Na
verdade, poderíamos dizer, já introduzindo Castoriadis (1982), que estaríamos diante de uma
relação de inerência e não de codependência.
Na ordem social, os mesmos autores sustentam que a autonomia é marcada por leis de
ordem jurídica, religiosa ou simbólica, delimitando sócio historicamente, o caráter político da
autonomia coletiva:
A política deveria ser (e é, ainda que às vezes não consigamos apreciar este fato)
ponto de criação e de regulação da autonomia. [Na] medida em que as pessoas se constituem
como cidadãos responsáveis numa sociedade democrática, elas podem – e devem – agir em
prol de formas de organização que propiciem a libertação (isto é, a possibilidade de exercício
de graus maiores de autonomia) por parte de cada vez maior número de pessoas. Isto como
um caminho para facilitar a condenação de práticas deploráveis e corruptas, etc. Esse seria o
exercício da política quando a coconstrução de autonomia é tomada como uma finalidade,
como uma diretriz essencial. Mas, por sua vez, precisamos da política como resistência, isto
é, como ferramenta para impedir o exercício desenfreado e arbitrário do poder (Onocko-
Campos & Campos, 2006, p. 674).
7
“la pasión epistémica, el deseo de saber. Y aunque las consecuencias sociales de lo que hago no me son
indiferentes -¿cómo podrían serlo? -, no trabajo por eso” (Castoriadis, 2002, p.108)
8
“pero al mismo tiempo me siento profundamente implicado por el destino de la sociedad en la que vivo. Y para
mí ambas cosas no dejan de tener relación, en cierto sentido de la palavra. (Castoriadis, 2002, p.109).
44
Para chegar à noção de autonomia como proposta por Castoriadis torna-se importante
situar alguns de seus questionamentos acerca do marxismo, pois é a partir deles que surge seu
projeto revolucionário. O contato com a obra mais importante de Castoriadis - “A Instituição
imaginária da sociedade” - me fez vê-lo como um marxista na radicalidade de algumas ideias
marxistas. Ele faz uma crítica à teoria e filosofia marxistas, de dentro do próprio marxismo,
desde a época em que escrevia para a Revista Socialismo ou Barbárie, o que lhe valeu a
eterna rejeição da “esquerda oficial” (Morin,1998). Para tanto, ele retoma os princípios
essenciais da teoria marxista, que dizem respeito ao processo de transformação permanente,
presente na relação entre prática e teoria, para sustentar que a proposta de Marx teria se
perdido entre seus próprios criadores e seguidores.
ela. Para ele, o fazer que conduz à reflexividade e à elucidação9 é capaz de transformar a
realidade. Como esta relação só pode ser entendida se considerada em seu contexto social-
histórico10, não existe teoria absoluta, pois do contrário, estaríamos diante do sem sentido da
prática e da mera tentativa de aplicação da teoria. Ou seja, a condição de emergência de uma
teoria está na prática, na reflexividade e na consciência advindas da e na prática e, ao mesmo
tempo que emerge daí já não se basta como tal, porque o movimento contínuo de
transformação da realidade acaba por colocar em questão a teoria construída.
A teoria marxista da história seria uma teoria cientifica que, como qualquer outra
teoria científica importante, “depois de haver provocado uma reviravolta enorme e
irreversível em nossa maneira de ver o mundo histórico, [...] foi ultrapassada pela pesquisa
que ela mesma desencadeou” (Castoriadis, 1982, p. 54-55).
Para o autor, os marxistas desconsideram esta premissa quando se recusam a colocar
em questão sua própria teoria, levando o marxismo a adquirir contornos de uma filosofia
racionalista e determinista, ao oferecer "antecipadamente a solução de todos os problemas que
coloca” e carregar “significações que se encadeiam em totalidades” significantes em si
mesmas (Castoriadis, 1982, p. 55-56).
Tomando como exemplo o determinismo econômico de Marx, Castoriadis sustenta
que ele fez sentido no momento do surgimento do marxismo, mas não foi suficiente para
conter a transformação ou a consciência que decorreram da prática e das relações de trabalho.
Não foi suficiente porque a realidade histórica, cultural e social de cada momento certamente
incidiu sobre esta prática, fazendo deste, um movimento contínuo e inacabado, marcado mais
pelo não-causal do que pelo determinismo causal. A vida histórica e social “...contém o não
causal como um momento essencial [em que aparece não como o imprevisível, mas como um
comportamento criador], como instituição de uma nova regra social, como invenção de um
novo objeto” (Castoriadis, 1982, p. 58).
Mas Castoriadis (1982) também reconhece que dentre os dois elementos históricos do
marxismo, o elemento revolucionário e a burocracia, de destinos e sentidos históricos
9
Em A Instituição Imaginária da Sociedade Castoriadis (1982) esclarece: “O que tento fazer aqui não é uma
teoria da sociedade e da história, no sentido herdado do termo teoria. É uma elucidação e esta elucidação, ainda
que apresente inevitavelmente uma aparência abstrata, é indissociável de uma finalidade e de um projeto
político. [...] O que denomino elucidação é o trabalho pelo qual os homens tentam pensar o que fazem e saber o
que pensam” (p.13-14).
10
O social histórico entendido aqui como "a união e a tensão da sociedade instituinte e da sociedade instituída,
da história feita e da história se fazendo" (Castoriadis, 1982, p. 131)
46
Não estamos no mundo para olhá-lo ou para suportá-lo; nosso destino não é o da
servidão, há uma ação que pode apoiar-se sobre o que existe para fazer existir o que
queremos ser [...]; além de uma atividade não consciente de seus verdadeiros fins e de seus
resultados reais, mais além de uma técnica que segundo cálculos exatos modifica um objeto
sem que nada de novo daí resulte, pode e deve haver uma práxis histórica que transforma o
mundo transformando-se ela própria, que se deixa educar educando, que prepara o novo
recusando-se a predeterminá-lo porque ela sabe que os homens fazem sua própria história
(Castoriadis, 1982, p. 71-72).
Mas, já de imediato, alerta para a redução desse esquema de meio e fim, que está mais
associado à atividade técnica. Esta sim tem um fim determinado e “finito”, que se obtém a
partir de meios calculados, produzindo uma relação de causa e efeito.
A práxis é uma atividade consciente, que se apoia num saber sempre fragmentário e
provisório, visto que não existe teoria completa para nada e novos saberes sempre surgem
com a práxis, fazendo dela uma experiência de criação, singular e universal. A criação emerge
como transformação da realidade e como resultado da elucidação produzida na práxis. Ao
mesmo tempo em que a elucidação possibilita uma transformação na realidade, também
possibilita uma transformação do sujeito que está engajado na experiência – ele faz e o seu
fazer transforma a realidade e a ele próprio, por meio da elucidação decorrente do processo.
Não como um “estado” de consciência, mas como processo, trabalho de ser com o
outro em sociedade. Abarca a subjetividade, inclusive o inconsciente e os discursos sociais,
sem se reduzir a eles. Pensa no sujeito como indivíduos, grupos, sociedades. Sociedade e
psique são inseparáveis embora irredutíveis uma à outra. O fato de o sujeito existir em
sociedade, e por meio da linguagem, não é o que determina o seu assujeitamento. Pelo
contrário, pode fundar também o seu movimento de emancipação (p.460).
O sujeito autônomo se faz e refaz a cada encontro com o mundo e com os outros,
incorpora e ao mesmo tempo nega o que vem do Outro, criando assim suas próprias
significações e suas próprias leis; e, mesmo negando o Outro, suas marcas permanecem no
sujeito.
econômicas e institucionais são inerentes à autonomia, como bem explicitado por Castoriadis
a respeito de suas relações com o social e o histórico12:
Nossa relação com o social - e com o histórico, que é seu desenvolvimento no tempo
- não pode ser chamada de relação de dependência, o que não teria nenhum sentido. É uma
relação de inerência, que como tal não é nem liberdade nem alienação, mas o terreno no qual
liberdade e alienação podem existir (Castoriadis, 1982, p.135-36).
Autonomia individual e autonomia social ou coletiva são dois lados de uma mesma
moeda; separá-las apenas nos ajuda a compreender a constituição da autonomia, uma vez que
uma sociedade autônoma é formada por sujeitos autônomos e são eles que constroem o
projeto, político e coletivo, de uma sociedade autônoma (Souza, 2000; Passos, 2006). “A
autonomia é um trabalho intersubjetivo, coletivo e social que resulta da possibilidade de
construção de instituições que favoreçam a autonomia da própria sociedade” (Afonso, 2011,
p.459).
12
Este ponto ajuda-nos a ampliar nosso questionamento a respeito da relação entre autonomia e dependência dos
usuários da saúde mental, proposta por Kinoshita (2001) “...a questão dos usuários é antes uma questão
quantitativa; dependem excessivamente de apenas poucas relações/coisas. Esta situação de dependência
restrita/restritiva é que diminui a sua autonomia. Somos mais autônomos quanto mais dependentes de tantas mais
coisas pudermos ser, pois isto amplia as nossas possibilidades de estabelecer novas normas, novos ordenamentos
para a vida” (p. 57). Não se trata de uma relação quantitativa, do tipo quanto mais dependência de relações mais
autonomia. Pensando assim estaríamos correndo o risco de cair numa concepção determinista que pressupõe que
para um sujeito ser autônomo ele precisa ser dependente de muitos outros ou de muitas coisas. Poderíamos dizer
com Castoriadis, “que a falta de autonomia é que gera o empobrecimento dos laços e vínculos. Um laço pode ser
de tipo dependente ou de tipo autonomista, e não é a quantidade de laço que importa” (Izabel C. F. Passos,
22/10/2015, comunicação pessoal), ou as amizades virtuais em redes sociais seriam a solução.
49
A autonomia social pode ser vista em uma sociedade que é capaz de auto instituir, de
forma explícita e consciente, suas próprias leis e seus modos de funcionar, com liberdade e
reflexividade (Castoriadis, 1998; Souza, 2000), sendo essas últimas "objetos e objetivos de
sua atividade instituinte" (Castoriadis, 1998, p.7). Isso só é possível numa sociedade
autônoma, cujos sujeitos autônomos podem questionar suas instituições e, por meio de uma
atividade instituinte, produzir novos sujeitos autônomos:
Como posso ser livre se devo obedecer às leis? Este é o problema. ... Pessoalmente,
acredito que na noção de autonomia há uma resposta, a única que dá um sentido positivo à
liberdade. Autônomo é aquele indivíduo que se dá a si mesmo suas próprias leis. Dado que
em uma sociedade um número indefinido de indivíduos, fica evidente que cada um deles não
pode dar-se sua própria lei. Em que sentido, então, posso afirmar que sou autônomo dentro
de uma sociedade? Pois bem, posso dizer que sou um indivíduo autônomo em uma sociedade
se tenho a possibilidade real, e não só formal, de participar, junto com os demais, em um
plano de igualdade efetiva, na formação da lei, das decisões a respeito dela, da sua aplicação
e do governo da coletividade, Aos meus olhos, esse é o verdadeiro sentido da democracia. E
13
Un “individuo autónomo” no significa un santo ni significa un hombre perfecto; quiere decir simplemente un
hombre capaz de criticar su pensamiento, sus propias ideas. La autonomía consiste en controlar los deseos y
saber que se los tiene. Cuando se habla de autonomía se habla de algo que es análogo a la capacidad de criticar el
propio pensamiento, a la facultad de reflexionar, de regresar sobre lo que uno ha pensado y ser capaz de decir:
“pienso esto porque me convence”. Tales individuos no pueden existir si la sociedad no los fabrica, para decirlo
de alguna manera; es decir, si no los enseña a ser verdaderamente libres en el sentido descrito, ya que sólo tales
individuos pueden configurar una sociedad autónoma. He ahí la idea general.
50
um regime que somente tem liberdades negativas é um regime liberal, não um regime
democrático. (Castoriadis, 1993, p. 3-4, tradução da autora). 14
A autonomia se constrói numa práxis coletiva e envolve uma reflexividade que pode
gerar uma postura decidida dos sujeitos em direção à transformação da relações de poder e ao
empoderamento. Entendemos então, que sujeitos empoderados são sujeitos autônomos, que
reassumem o poder sobre sua própria vida e sobre as decisões e escolhas inerentes a ela e
necessárias a uma mudança social.
A noção de empoderamento que nos orientará será a proposta por Vasconcelos (2003),
conforme apresentada anteriormente, na qual é entendido como "aumento do poder e
autonomia pessoal e coletiva de indivíduos e grupos sociais nas relações interpessoais e
institucionais, principalmente daqueles submetidos a relações de opressão, dominação e
discriminação social" (Vasconcelos, 2003, p. 20).
14
¿cómo puedo ser libre si debo obedecer a las leyes? Éste es el problema. [...] Personalmente, creo que en la
noción de autonomía hay una respuesta, la única que da un sentido positivo a la libertad. Autónomo es aquel
individuo que se da a sí mismo sus propias leyes. Dado que hay en la sociedad un número indefinido de
individuos, resulta evidente que cada uno de ellos no puede darse su propia ley. ¿En qué sentido, entonces,
puedo afirmar que soy autónomo dentro de una sociedad? Pues bien, se puede decir que soy un individuo
autónomo en una sociedad si tengo la posibilidad real, y no sólo formal, de participar, junto con todos los demás,
en un plano de igualdad efectiva, en la formación de la ley, las decisiones acerca de ella, su aplicación y el
gobierno de la colectividad. A mis ojos, ése es el verdadero sentido de la democracia. Y un régimen que no este
basado en este principio no puede ser llamado legítimamente democracia. Un régimen que sólo tiene libertades
negativas es un régimen liberal, no un régimen democrático (Castoriadis, 1993, p. 3-4)
51
Um caminhar mútuo por processos mutantes que, justo por não poder ser resumida
ao encontro de unidades distintas (sujeitos da investigação X objetos a serem investigados),
não pode ser pensada como uma mudança antecipável. Ao operar no plano dos
acontecimentos, a intervenção deve guardar sempre a possibilidade do ineditismo da
experiência humana, e o pesquisador a disposição para acompanhá-la e surpreender-se com
ela (Paulon, 2005, p.21).
A Análise Institucional propõe uma nova forma de pensar e exercer a ciência, que
tenta não isolar o momento da pesquisa do momento da produção do conhecimento, entende
que pesquisa e intervenção acontecem juntas, assim como a produção do objeto e do sujeito
do conhecimento (Lourau, 1993; Passos & Barros, 2000), valorizando tudo o que decorre da
posição do investigador nas relações sociais e na rede institucional. Ao introduzir seu texto O
objeto e método da Análise Institucional, Lourau busca uma referência de Guattari (1973,
citado por Lourau, 2004e), para demonstrar a radicalidade desse propósito:
todas e instituição cada vez diferente, em cada sociedade diferente. É o polo a cada vez
especificado da imputação e da atribuição sociais normalizadas, sem o que não pode haver
sociedade (p.121).
A instituição não é o mesmo que um estabelecimento, não tem uma dimensão concreta
e observável. É uma dinâmica contraditória que se constrói sócio historicamente, “na (e em)
história, ou tempo” (Lourau, 1993, p.11), caracterizando o dinamismo e o movimento que lhe
são próprios. A instituição é "uma dimensão fundamental que atravessa e funde todos os
níveis da estrutura social" (Lourau, 2004d, p. 76), assim como é atravessada por todos eles, o
econômico, o político e o ideológico. São regras, leis, normas, significações imaginárias
sociais que se articulam sócio historicamente aos indivíduos, grupos e coletividades e cujo
Suporte representativo ... ao qual, é claro, elas não se reduzem e que pode ser direto
ou indireto – consiste em imagens ou figuras, no sentido mais amplo do termo: fonemas,
palavras, cédulas, (...) igrejas, (...) pinturas corporais, (...) partituras musicais – mas também a
totalidade do percebido natural, designado ou designável pela sociedade considerada
(Castoriadis, 1982, p.277).
Lourau (2004e) nomeou como analisador aquilo que está oculto ou reprimido
socialmente, que cumpre uma função de manutenção do instituído e que, quando se manifesta,
adquire características instituintes, de não conformidade com o instituído, revelando a
natureza do instituído.
explicativo, mas mantendo a decomposição que traz à tona os elementos que compõe o
conjunto. A criação da noção de analisador produz um movimento instituinte dentro da
própria AI, apontando para a condição participativa como pressuposto de sua existência e
retirando do analista a 'responsabilidade' pela interpretação, num movimento de
descentramento (Lourau, 2004e).
Um analisador denuncia, manifesta, declara, revela o escondido, o não dito, mas não
se reduz à dimensão do discurso ou da palavra adquirindo também uma materialidade
expressiva bem diversa, conforme exemplifica Baremblitt (2002):
Um analisador (...) pode ser um monumento, a forma como está elaborada a planta
arquitetônica da organização, pode ser uma característica dos modos de relação que não está
formalizada nem anunciada em parte alguma, ou seja, pode ser um costume e não uma
norma, nem uma lei; pode ser um arquivo, isto é, a maneira como está organizada a memória
de uma organização; pode ser uma distribuição do tempo ou do espaço na organização. E é
claro que podem ser também formas escritas ou faladas do discurso organizacional. Por
exemplo, os estatutos, os regulamentos, a carta de princípios, o organograma, o fluxograma
etc. E podem ser os relatos ou as mensagens verbalmente proferidas pelos integrantes nas
entrevistas, nos questionários ou em qualquer forma de comunicação intersubjetiva. Os
mitos, os rituais, o uso do dinheiro, do lazer, da sexualidade, do domínio e o cuidado de si,
etc. (p.63).
formal de direitos, mas no ato de partilhar uma prática, a busca de uma troca isonômica e de
uma comunidade de trabalho e vida" (Lourau, 2004g, p.137).
Baremblitt (2002) nos lembra que toda instituição é movida por forças instituídas e
instituintes, de produção e de reprodução que se entrelaçam e se interpenetram produzindo
movimentos com características instituídas, de reprodução, mas também com características
instituintes, de resistência, reflexividade e transformação. Quando esta interpenetração se dá
ao nível do conservador e da reprodução, dá-se o nome de atravessamento e quando se
entrelaçam ao nível do instituinte e produtivo chama-se transversalidade.
A implicação imprime uma marca clínico-política à pesquisa intervenção, uma vez que
“ao colocarmos em xeque os lugares instituídos de saber/poder que ocupamos em muitos
momentos de forma natural e ahistórica estamos afirmando nossa implicação política, dentre
tantas outras implicações que nos atravessam” (Coimbra & Nascimento, 2008, p.146).
Conforme nos sugere Lourau (2004c), “estar implicado (realizar ou aceitar a análise de
minhas próprias implicações) é, ao fim de tudo, admitir que eu sou objetivado por aquilo que
pretendo objetivar; fenômenos, acontecimentos, grupos, ideias, etc.” (p.148).
Do conceito de implicação, Lourau (2004a) deriva o de sobreimplicação,
relacionando-o ao que chama de “subjetividade-mercadoria ... à ideologia normativa do
sobretrabalho, gestora da necessidade do ‘implicar-se’” (p.190).
A sobreimplicação ou “ impossibilidade de analisar a implicação” (Monceau, 2008, p.
23), camufla esta última, confundindo-a com um certo ativismo da prática que quando
analisado deixa transparecer “aspectos extremamente passivos: submissão a ordens explícitas
ou a consignas implícitas da nova ordem económica e social, ávida por preencher as grandes
brechas produzidas tanto pela desafetação quanto pela institucionalização, maior ou menor, do
desemprego” (Lourau, 2004a, p. 191).
De acordo com Lapassade (2005), até 1980 acreditava-se que o único dispositivo da
Análise Institucional era a socioanálise, "ou seja, a análise institucional em situação de
intervenção sob demanda de um cliente" (p.12) mas, atualmente, outros dispositivos são
58
considerados no corpo da AI, como a etnografia e a análise interna (feita pelos próprios
agentes) em autogestão, não sendo necessária a presença de um interventor externo.
Até bem pouco tempo os estudos etnográficos eram pouco utilizados no campo da
saúde mental (Passos & Barboza, 2009), ganhando destaque a partir da utilização de
metodologias participativas, como a pesquisa-ação, a pesquisa intervenção e a cartografia, na
construção do conhecimento científico nesse campo. Pressupostos comuns a cada uma dessa
abordagens metodológicas coincidem ou derivam da abordagem etnográfica, em especial “a
interação pesquisador/pesquisado, a problematização das questões de objetividade e
universalidade, a articulação entre teorias e interpretações do pesquisador com aquelas dos
pesquisados, a recusa do critério de neutralidade em proveito de uma análise da implicação do
pesquisador (Passos & Barboza, 2009, p. 16). Todos esses pressupostos contribuíram para que
a observação participante fosse o principal método de coleta nos campos estudados.
O Sapos e Afogados15 foi pensado então, por apresentar essas características – ser
formado por cidadãos em sofrimento mental e estar desvinculado da assistência e da
academia.
15
Nome pelo qual o coletivo é popularmente conhecido e que será utilizado a partir de agora quando me referir
ao Núcleo de Criação e Pesquisa Sapos e Afogados.
60
Numa pesquisa intervenção, assim como nos estudos etnográficos, o primeiro contato
do pesquisador com o campo acontece já durante a sondagem etnográfica para a primeira
negociação de sua entrada no campo16, que é constantemente renegociada, como parte de um
processo que não se fecha e nem é definitivo.
No caso do primeiro campo de estudo, a entrada aconteceu ainda antes da proposta da
pesquisa, no segundo semestre de 2014, durante a disciplina que eu ministrava, ao coordenar a
oficina de rádio e supervisionar os alunos in loco, o que permitiu a construção de uma relação
de confiança com os atores da pesquisa, anterior à permissão oficial para converter aquele
campo de ensino em campo de pesquisa. Ainda assim, questões práticas, comuns à fase de
sondagem, como aquelas relacionadas à melhor forma de se negociar a entrada no campo e
atender aos propósitos de pesquisa, também foram observadas aqui, em dúvidas como: será
que os usuários, a equipe e a gestão do serviço vão receber bem a proposta de uma pesquisa?
Como a proposta será recebida pela Coordenação de Saúde Mental do município? Em que
momento apresentar a proposta do projeto, uma vez que a intervenção já acontecia? Como
apresentá-la?
A entrada no segundo campo de estudo se iniciou durante o contato para apresentação
da proposta para a diretora e o assistente de direção do coletivo em questão.
Os registros das observações, falas e inquietações no diário de campo pela
pesquisadora foram essenciais à construção do conhecimento durante todo o percurso da
pesquisa, facilitando a identificação de analisadores e a análise das implicações e
sobreimplicações (Costa & Paulon, 2012; Penido, 2012).
De acordo com Lourau (1993) o uso do diário de campo nos permite
Produzir um conhecimento sobre a temporalidade da pesquisa; (...) o conhecimento
da vivência cotidiana de campo (não o "como fazer" das normas, mas o "como foi feito" da
prática). (...) Mostra, entre outras coisas, a contradição entre a temporalidade da produção
16
“Esse termo 'entrada' tanto designa a permissão formal de acesso quanto diz respeito ao momento em que é
adquirida a confiança dos membros que aceitam se abrir realmente ao pesquisador” (Lapassade, 2005, p.71)
61
17
Para uma discussão mais aprofundada sobre este aspecto vale a pena consultar o livro Reinventando a vida:
narrativas de recuperação e convivência com o transtorno mental organizado por Vasconcelos, Leme &
Weingarten (2005).
63
18
As quatro edições do programa Louca Sintonia, alvo desta pesquisa, podem ser acessadas na íntegra no link
https://www.ufmg.br/online/radio/arquivos/038315.shtml
65
Além dos usuários e equipe de profissionais, circulam pelo CCSP alunos e professores
de diferentes cursos e universidades de Belo Horizonte, desenvolvendo aulas práticas,
estágios curriculares, extracurriculares, projetos de extensão e de pesquisa, fazendo deste um
campo que tem importante contribuição na produção de conhecimento em saúde mental.
19
Parte do texto aqui apresentado originou o artigo: Do silêncio à voz: A experiência da construção de uma
oficina de rádio em um centro de convivência no município de Belo Horizonte (Ribeiro, Tomasi, & Passos,
2016).
67
antes que fosse ao ar, a fim de deixá-la tranquila acerca do cuidado ético que envolvia a
exposição dos usuários, da equipe e do próprio serviço na mídia radiofônica. Posteriormente,
com a confiança fortalecida e com o retorno que os próprios usuários davam sobre o trabalho
no dia-a-dia do CCSP, o trabalho ganhou maior independência, flexibilizando o
acompanhamento pela gestão. Ainda assim, sempre que alguma demanda nova surgia, era
compartilhada pessoalmente com a gerente, intermediando possíveis negociações, como
aconteceu no momento da proposição, pela rádio UFMG Educativa, de transmissão ao vivo,
direto do CCSP, de uma edição temática do programa conexões, durante a semana da luta
antimanicomial.
A ideia inicial da disciplina foi então apresentada aos alunos com o convite para que
colocassem em suspensão toda a teoria vista no curso até então e para que se abrissem para o
novo, para o encontro com os usuários e com a proposta de uma oficina de rádio que seria
apresentada a eles, que poderia ser aceita ou não por eles, e que seria construída a partir do
que eles trouxessem como ideias e demandas. Uma retomada da teoria ou nova reconstrução
teórica certamente aconteceria posteriormente, mas orientada pelo fazer, pela práxis da
oficina, em um processo de coconstrução do conhecimento (Ribeiro, Barboza & Passos, no
prelo), com todos os atores envolvidos. As reações imediatas dos alunos foram de interesse,
mas também de estranhamento.
20
É um recurso usado em rádio, televisão e publicidade que visa provocar a curiosidade e atrair a atenção das
pessoas sobre determinado assunto.
21
Refere-se a pequenas peças ou cenas dramáticas ou cômicas, de curta duração.
69
da disciplina anterior e de sua insatisfação com o fato de não ter ouvido o resultado da oficina,
reivindicando a gravação final e que o mesmo não se repetisse com essa turma. A
apresentação do programa realizado naquela época aconteceu durante atividade realizada em
um parque municipal, próximo ao serviço, mas nenhuma cópia da versão final ficou no
serviço para arquivo ou para disponibilizar aos interessados.
Assim, estava dada a partida para uma experiência originada do encontro entre as
demandas institucionais da universidade, voltadas para a formação acadêmica, com a
demanda do serviço de retomada de investimento em atividades relativas à comunicação.
Apesar de partir de demandas vindas de estruturas tão instituídas como a universidade e o
serviço, a proposta só faria sentido se fosse inicialmente acolhida e depois apropriada pelos
usuários, dando lugar a “reposicionamentos subjetivos” e corresponsabilização entre todos os
que assumiriam o protagonismo e a horizontalidade do processo (Passos, et al., 2013, p.31).
22
"a visibilidade serve tanto para divulgação de projetos quanto para uma certa prestação de contas junto à
sociedade. [...] formação complementar dos alunos, professores e funcionários da Universidade [e de] um
público mais crítico e com melhores ferramentas para selecionar a avalanche de informações a qual está sujeito
na sociedade contemporânea. [...] uma programação alternativa à de outras emissoras desta região. É
fundamental que um canal educativo de rádio, ligado a uma universidade pública, ouse criando formatos
diferentes, fale de assuntos nunca tratados, experimente locuções e paisagens sonoras alternativas" (Santos,
2010, p.46-47).
71
A visita à Rádio UFMG Educativa foi planejada previamente com eles e no dia contou
com a presença de três usuários, os mesmos que acabaram por se tornar os mais assíduos e
envolvidos durante os dois semestres que se seguiram. A visita foi marcada por muita
exaltação, ansiedade e por algumas provocações entre dois dos usuários, que precisaram ser
manejadas a fim de se manter a viabilidade da iniciativa. Experimentaram e ouviram a
locução de suas próprias vozes no estúdio de gravação, receberam do coordenador da Rádio a
informação de que poderiam ficar à vontade para falar do que quisessem no programa a ser
construído e que depois de definirem a linha do programa, produtores e estagiários da Rádio
UFMG Educativa estariam presentes em todos os nossos encontros, com os equipamentos
necessários para a gravação do material.
A partir daí o material produzido pelos usuários foi sendo recolhido por meio de
gravações nos celulares dos alunos e nos gravadores da equipe da Rádio UFMG Educativa,
para posterior seleção e edição conjunta com eles: depoimentos sobre a experiência com a
loucura; sobre o histórico e as ideias que originaram o Movimento da Luta Antimanicomial;
entrevista sobre o processo de criação do CD São Doidão; causos; piadas; redação de textos
por aqueles que não gostam de falar em rádio; músicas cantadas por eles em capela para
posterior associação com as melodias levantadas pela equipe da Rádio UFMG; raps de autoria
de um dos usuários, improvisados a cada encontro; paródias musicais feitas por outro usuário,
ou “canções corrigidas”, como ele preferiu nomeá-las.
No dia em que a primeira edição do Louca Sintonia foi ao ar todos os usuários que
tiveram participação direta no programa, outros que estavam no Centro de Convivência,
73
4.2 Segunda edição do programa Louca Sintonia: analisar a implicação para manter
a sintonia e a lucidez
projeto, bem como com os pressupostos de democratização das relações próprios à pesquisa
intervenção e norteadores das políticas de saúde mental brasileira (Marques, Palombini,
Passos, & Onocko-Campos, 2013).
A decisão pela segunda edição do Louca Sintonia foi unânime, o formato anterior foi
mantido e o conteúdo deveria focar as produções artísticas dos usuários participantes, que
cantaram músicas conhecidas ou de autoria própria, contaram parábolas, recitaram textos e
expressaram suas opiniões sobre assuntos diversos (Ribeiro, Tomasi & Passos, 2016).
uma das produtoras da Rádio UFMG: “há muito tempo eu não via uma cena como essa,
pessoas reunidas em torno de uma mesa conversando, comendo e ouvindo rádio”.
4.2.1 O narrar-se
A.R. trouxe para os programas a prática do rap de improviso, ou rap freestyle, como é
mais conhecido. Em suas letras retratou nossos encontros, sua história de vida, suas
preferências religiosas, a convivência com as drogas e as alternativas que buscava para se ver
livre delas ou para conviver com elas. O rap feito por A.R. tem características de narrativas
pessoais, uma das principais estratégias de empoderamento em saúde mental defendidas por
Vasconcelos (2003; 2005; 2015; Vasconcelos et al. 2013b):
... Eu também sei cantar/Fazer rima/Eu não vou falar de crack/Nem de cocaina/Eu
estou abstinente/E estou muito bem/Mas fazer rima é o que me convém/Eu volto de novo no
mesmo refrão/Que na rima eu sou campeão/Gente, me ajuda gente/A ser manso como a
pomba/E prudente como a serpente.../Já fui pagodeiro/Sei tocar a percussão/Mas na igreja
tem que ter comunhão.../Duelo de MC/Isso é coisa legal/Se eu for naquele lugar eu não vou
passar mal/Tomo meu remédio/Fumo minha maconha/Eu falo tudo isso sem vergonha/Eu
não cheiro pó/Não fumo crack/Só bebo uísque e conhaque/Isso tudo é rima/Pra fazer
música/Mas na realidade/Essas coisa me assusta... (Louca Sintonia: o programa mais lúcido
da cidade, 2014, 23’29’’)
É o estilo livre, o modo que o cara tem de se manifestar criando, organizando seu
pensamento, suas ideias, a sua ideologia praquele momento específico. Ele cria na hora, você
vê a arte borbulhando. Quem tem a oportunidade de ver um cara fazendo freestyle ele vê a
arte sendo feita ali, crua, sem muitas intervenções do universo. Eu pensei, se eu não falei na
23
hora, em cinco segundos, eu já adulterei, né.
A.R. iniciou um projeto em que seus raps, além de serem veiculados no programa,
ficariam registrados num CD, com capa e encarte contendo todas as letras. Havia tentado esse
registro antes com um DJ, mas não teve sucesso porque ele cobrava muito caro. Não sei se
23
O documentário foi acessado em 02/02/2017, na página:
http://www.vaiserrimando.com.br/2012/02/21/documentario-freestyle-um-estilo-de-vida-fala-sobre-a-arte-do-
improviso-no-brasil/ .
77
esse tipo de registro fere os princípios do rap freestyle, mas lhe pareceu interessante, como
forma de se evitar o roubo de suas letras por cantores profissionais, o que segundo ele já teria
acontecido: "Tem música no You Tube que fui eu que fiz. Pegaram e gravaram sem eu ver".
Nos dois semestres que se seguiram, problemas pessoais e familiares fizeram com que se
ausentasse do CCSP e, consequentemente da produção dos programas, retornando para
participar da 5ª edição, que não fez parte desse estudo.
Tímido inicialmente, I.C. sempre se lembrava de sua juventude e dos encontros com
os amigos para tocar violão e cantar Raul Seixas. Apresentando-se como técnico em
eletrônica, os aspectos que despertaram seu interesse pela oficina de rádio foram a parceria
com a Rádio UFMG, a possibilidade de conhecer um estúdio e o interesse em trabalhar na
construção de uma rádio. No início da produção da segunda edição gravou uma mensagem
para o coordenador da Rádio UFMG Educativa da época, que acompanhava, in loco, os
trabalhos da oficina, se oferecendo para trabalhar como voluntário na Rádio UFMG
Educativa, o que resultou em um convite para compartilhar, com um estagiário da Rádio, o
controle da mesa de som durante a transmissão, ao vivo, do Programa Conexões que foi ao ar
direto do Centro de Convivência, em comemoração à Semana da Luta Antimanicomial.
Contribuiu para a 2ª edição do Louca Sintonia cantando músicas de sua juventude, das
décadas de 1970-80. I.C. foi participante ativo das quatro edições do programa que fizeram
parte deste estudo, intensificando gradativamente o seu protagonismo no processo.
Incialmente sua participação era para “ajudar vocês a fazer esse rádio, faço o que for preciso
para ajudar vocês”. Aos poucos foi se apropriando e imprimindo sua marca aos programas.
Na 1ª edição cantou, na segunda acrescentou ao seu canto a oferta de trabalho voluntário na
Rádio UFMG, na terceira edição foi um dos que assumiram o microfone para realizar as
entrevistas, que na 4ª edição ganharam maior espontaneidade e receberam toques criativos nas
finalizações, imprimindo seu estilo ao programa. A viabilidade do trabalho voluntário se viu
comprometida por atravessamentos institucionais que culkminaram com a saída e demissão da
maior parte da eqipe de produção da Rádio UFMG Educativa, inclusive o diretor, que apoiava
e sustentava as iniciativas vindas dos usuários. Durante a produção da terceira edição do
programa começou a manifestar seu interesse e envolvimento sócio-político com as questões
do CCSP e da luta antimanicomial. De início expressou desconhecimento sobre a existência
78
da ASUSSAM, de sua proposta e reuniões - “tenho cinco anos aqui e não sabia que existia” -
expressando também um estranhamento por não ser convidado para as reuniões entre os
profissionais e alguns usuários do CCSP para discutir sobre os conflitos com a gestão do
munícipio: “às vezes não sou chamado pra tudo”. No semestre seguinte se ofereceu para
participar da comissão criada durante assembleia geral para pensar em estratégias de
mobilização junto à gestão municipal, participou do protesto, do desfile do 18 de maio e,
junto com I.M.B. e Z.C., foi um dos convidados do programa Conexões que foi ao ar no dia
18 de maio de 2016, debatendo a Reforma Psiquiátrica . Seu posicionamento em defesa do
coletivo se evidenciou num episódio relacionado a sua participação no VI Simpósio de Saúde
Coletiva e Saúde Mental e I Encontro Internacional de Grupos de Pesquisa e Intervenção,
realizado pelo L@gir no segundo semestre de 2015. Como o protagonismo e a coconstrução
do conhecimento eram focos do evento e da experiência da oficina de rádio e I.C. tinha, além
do interesse pelo rádio, um timbre de voz mais grave, sugeri convidá-lo para experimentar a
locução, compartilhando com o mestre de cerimônias do evento a apresentação das atrações
culturais. A ideia foi bem recebida pela organização, pelo mestre de cerimônias e pelo próprio
I.C., que também frequentou as conferências, mesas redondas e um dos grupos de trabalhos
do evento. Além do transporte de ida e volta entre sua casa e o evento e a alimentação, a
organização ofereceu a ele um pequeno cachê. Nesse momento, além de se prontificar a
devolver a sobra do dinheiro que recebeu para o transporte, quis saber se poderia dividir o que
recebeu com os colegas do CCSP. Ao saber que não precisaria devolver o dinheiro do
transporte e que a decisão sobre o que fazer com o dinheiro era dele, ele disse que iria
comprar um lanche para os colegas, porque aquele dinheiro era de todos.
A demanda que I.M.B. trazia a todo momento para as oficinas era ser escutado,
divulgar seus livros, suas mensagens e "canções" corrigidas, em que substitui alguns "erros",
transformando-as em paródias ou, como prefere, em novas "canções de bom brilho". Além do
relato sobre os “mais de 30 livros” que diz ter escrito, tesouros dos quais chegou a extrair
fragmentos para compartilhar no programa, sempre levou para as oficinas uma demanda
insistente para que alguém o acompanhasse até seu lote, na região metropolitana de Belo
Horizonte e para ajudá-lo a gravar “um apelo a um juiz que goste de Yaohushua” (nome do
Deus em que acredita) a fim de resolver um problema relacionado à invasão de parte de sua
79
área pelo proprietário do lote vizinho. “Será que a gente vai achar um juiz que acredita em
nós? Será que ele vai me ajudar? ” Suas demandas prosseguiram até o dia em que chegou ao
serviço muito afetado pela notícia de que realmente poderia perder parte de seu lote por
usucapião. Certamente existe todo um histórico que caracteriza as relações desse usuário com
o serviço, com a rede de saúde mental e com a própria família, que ultrapassam os limites
desse estudo, mas que ao mesmo tempo não foi suficiente para deixarmos de nos interrogar a
respeito do que ocorria. Por mais que toda a questão trazida por ele ganhasse um colorido e
exaltação próprios ao seu sofrimento mental, devemos nos interrogar sobre nossa dificuldade
de escutar os usuários fora do diagnóstico que carregam, e se isso não acabaria
comprometendo o exercício dos direitos civis deles. Usando expressão do Professor
Alessandro24, parece que “somos reféns do diagnóstico”. Como nos lembra uma das
nikosianas da Radio Nikosia25, “não compreendo como podem relacionar-se comigo como
louco total; eu sou louco só 10% do meu tempo de vida” (Correa-Urquiza, Arqués, &
Gonzalo, 2005, p. 17). Basaglia (1985) joga luz sobre esse desafio propondo “colocar a
doença entre parênteses”, o que é diferente de negar a doença, como esclarece em uma
entrevista transcrita no capítulo introdutório do livro A Instituição Negada:
Não é que nós prescindamos da doença, mas pensamos que, para estabelecer uma
relação com o indivíduo, é necessário considerá-lo independentemente daquilo que pode ser
o rótulo que o define. Relaciono-me com uma pessoa não pelo nome que tem, mas por aquilo
que é. Assim, quando digo: este indivíduo é um esquizofrênico (com tudo quanto o termo
implica, por razões culturais), relaciono-me com ele de um modo particular ... minha relação
não irá além daquilo que se espera diante da “esquizofrenicidade” do meu interlocutor.... É
por essa razão que se torna necessário enfocar esse doente de um modo que coloque entre
parênteses a sua doença: a definição da síndrome já assumiu o peso de um juízo de valor, de
um rótulo, que vai além do significado real da própria enfermidade. O diagnóstico tem valor
de um juízo discriminatório, o que não significa que procuremos negar o fato de que o doente
seja, de alguma forma, um doente. (Vascon, 1985, p. 28)
24
Alessandro Tomasi é o professor do curso de Terapia Ocupacional que assumiu a disciplina a partir da
segunda edição do Louca Sintonia.
25
A Rádio Nikosia é uma rádio espanhola autônoma, de características comunitárias, cujas transmissões são
produzidas em sua totalidade por cidadãos em sofrimento mental, ou como eles mesmos se nomeiam pessoas
diagnosticadas. Inspirada na experiência argentina da Rádio La Colifata, foi criada por iniciativa de dois
antropólogos e posteriormente assumida integralmente pelos “diagnosticados”.
80
advocacia por exemplo, seriam importantes para dar conta desse tipo de demanda relacionada
aos direitos civis individuais dos cidadãos em sofrimento mental.
Parece-me que este momento marcou o fim de uma transição, na qual eu deixei a
coordenação da disciplina para assumir a observação participante enquanto pesquisadora e o
Prof. Alessandro se autorizou a assumir a condução do processo de construção do programa
de rádio. Um incômodo semelhante me ocorreu quando da chegada dele e da nova turma de
alunos, porque ao mesmo tempo em que eu via perspectivas possíveis de avanço da
experiência percebi também, ao analisar minha implicação, que meu tempo era diferente e que
precisaria me refrear um pouco, inclusive para possibilitar um trabalho diferente do meu.
Perceber que estávamos tocados pelo mesmo tipo de questão, nos permitiu pensar em
estratégias que facilitassem a entrada dos alunos no campo sem que fosse preciso a cada início
de semestre desacelerar tanto o processo iniciado.
semestre letivo com a chegada dos nossos novos alunos e de alunos de outras universidades
de Belo Horizonte.
Era preciso manter presente a “natureza transitória e finita” (Baremblitt, 2002, p. 139)
da oficina de rádio, como
26
http://www.abrasco.org.br/site/noticias/institucional/saude-mental-e-futuro-artigo-de-rosana-onocko-
campos/15355/ Acessado em 03/02/2017
82
Eu acho que melhorou muito, porque naquela época [da visita de Basaglia à
Barbacena] as pessoas eram tratadas como animais, tipo assim, eles ficavam lá onde a família
não podia ver, eles eram totalmente excluídos da sociedade. E hoje não, hoje a gente pode ter
contato com a sociedade e as pessoas que convivem com a gente podem saber que a gente
não faz mal a ninguém, né (depoimento de uma usuária aos 58’ do 1º bloco do programa).
luta ou sobre a mobilização contra a tentativa da PBH de tirar o CCSP do espaço que ocupava
junto ao CAC, onde, segundo ela, têm a oportunidade de conviver com a comunidade, apesar
do próprio CAC ter dificuldades com a presença dos usuários. No trecho de uma das
entrevistas que foi ao ar na terceira edição ela retrata a mobilização dos usuários, que estavam
se reunindo em comissão junto com a gerência do CCSP e com o Fórum Mineiro de Saúde
Mental para pensar em estratégias para enfrentar a situação:
Mas, antes de passarmos à quarta edição do programa Louca Sintonia, faremos uma
análise pormenorizada do Seminário de Avaliação que a antecedeu e das mudanças ocorridas
produziu na dinâmica das supervisões de trabalho da disciplina.
O que primeiro chamou atenção no Seminário foi a diferença gritante entre o número
de 10 usuários e o de 27 membros da equipe, dentre os quais estavam incluídos 3 oficineiros e
a gerente do CCSP, esta pesquisadora, 4 alunas e o professor da Terapia Ocupacional, 14
alunos e a professora de um curso de medicina e 2 profissionais da Rádio UFMG.
I.M.B. referindo-se ao trabalho que fazia e trazia consigo conta que são “bordados
masculinos, gosto de inventar um monte de coisa boa, desde que nasci ... o seu 'O' pode ser de
um jeito, o meu 'M' pode ser de cabeça para baixo. Estou escrevendo a originalidade de tudo”.
A.R. contou que frequentava o CCSP para "aprender a conviver com as pessoas,
porque não é fácil" e, já anunciando onde estava seu interesse, completou sua apresentação
dizendo que “estou realizando o 1º sonho da minha vida: gravar meu primeiro CD, por isso,
agora não quero fazer rap, quero ouvir, refletir, até quando sair o CD. ”
85
Que vocês tragam algo para ajudar, alguns passam e não trazem nada. Nosso lema
aqui é amar nosso próximo sem saber quem ele é... Aqui nós somos gente, passou daquele
portão somos todos iguais, apesar de que tem gente que acha que é melhor que a gente. Aqui
é colorido. Aqui eu sou eu mesmo. Sou doidinha, mas sou feliz.
Inventar a vida. É espaço da invenção, onde a arte tem o papel da humanidade, tratar
a humanidade, não a doença. Aqui os artistas não são arte terapeutas.... É um lugar de troca
[referindo-se à fala de um usuário]. A gente vem aqui para aprender o que? O que esse lugar
tem para ensinar? É tão singelo, tão simples, é o que cada um de nós tem de humano.
Condição para maior inclusão? A mudança começa com a nossa desinstitucionalização, como
diz Basaglia. Mesmo com toda técnica, é o humano com o humano do outro lado. Tirar a
bagagem, desarmar... E aí?
Isso é importante. Os outros estudantes chegavam aqui e eles eram estudantes e nós
usuários. É a primeira vez que a turma de estudantes entrosa com a gente. Se eu não confiar
em você não vou fazer oficina com você nunca. [E, referindo-se à ideia da turma de Medicina
de fazer uma gincana para encerrar o semestre, conclui que] tem que aprontar o pacote junto
com a gente, aqui dentro.
No carro de volta para UFMG após o seminário, prevaleceu o silêncio entre as alunas,
ninguém conseguia falar muito, tal era o impacto diante do que surgiu no Seminário. Na
supervisão seguinte as alunas da Terapia Ocupacional manifestaram a surpresa e satisfação
com o posicionamento dos usuários e por "eles terem o que acrescentar para nós. E não é
qualquer coisa que eles esperam!" Além disso expressaram também o incômodo pelo fato da
proposta dos alunos da medicina não ter sido construída em conjunto com os usuários e com o
recorrente “estamos aqui para ajudar”, presente nas falas deles durante a reunião e nas nossas
supervisões, o que no entendimento de uma delas retratava a postura de superioridade na qual
muitos médicos se colocam, na relação com o paciente.
Ocupacional se calaram diante deles, não só durante a reunião, mas também durante as
supervisões das quais eles participavam. A já tão angustiante tarefa de explicar o que é e a que
se propõe a Terapia Ocupacional se exaltou, impedindo inclusive um distanciamento mínimo
que permitisse a elas refletir sobre o fato de que nem mesmo os alunos da medicina
conseguiam dizer o que é a profissão deles, dada a naturalização que o conceito tem entre nós.
Ninguém tem dúvidas do que é a medicina e do que faz o médico, ou pelo menos questões a
esse respeito não costumam ser levantadas. Mas, quando os alunos foram chamados a
responderem o que é a Medicina o que conseguiram dizer, de imediato, foi sobre aspectos que
não a definem, como por exemplo, tratar bem o paciente e buscar qualidade de vida. Apesar
de serem alunos do início do curso, nunca terem tido contato com a saúde mental e estarem ali
também para aprender, assim como as alunas da Terapia Ocupacional, estas se calaram diante
do suposto saber desses futuros médicos, além de manifestarem uma oposição inicial à ideia
de trabalharem formando duplas com eles.
Se o que foi dito na reunião, a princípio foi direcionado aos estudantes de medicina,
podemos pensar que também se referia aos estudantes da Terapia Ocupacional que, sob nossa
orientação, se colocam na posição de observadores a cada novo semestre e, numa postura
naturalizada, adentram os espaços das oficinas, como se a repactuação do contrato não
devesse acontecer cotidianamente, reforçando um saber que se impõe ao sujeito, como
explicitado na crítica de uma das alunas “a gente se impõe aqui, estarmos aqui hoje é uma
imposição”.
27
O Espaço Cultural Suricato é a sede da Associação de Trabalho e Produção Solidária – Suricato. Funciona
como show-room para as produções de seus quatro núcleos de produção: Costura, Culinária, Marcenaria e
88
do Acompanhante Terapêutico (AT) para fazer uso de bebida alcoólica. A demanda foi
discutida e negociada entre eles, após o que alguns optaram por beber de um a dois copos, o
que acabou estimulando outros do grupo a beberem também. O retorno recebido da AT no dia
seguinte foi que “ficaram numa felicidade só e que há muito tempo não se dormia tão bem
naquela casa”.
Da ausência de resposta à pergunta da estudante: “mas, nós estamos aqui para que? ”
até a constatação de outra aluna de que “nós também somos formados assim”, referindo-se a
uma formação que enfatiza a hierarquização nas relações de saber, que coloca o usuário no
lugar de receber ajuda daquele que tem o conhecimento, o que se observa é um percurso
muitas vezes angustiante. A interrogação permanente da própria prática, essência da análise
da implicação, parece ser o ponto de partida para a coconstrução do saber, uma vez que
Nos retira dos portos seguros, dos caminhos lineares e conhecidos, da paz das
certezas, nos jogando em alto mar, no turbilhão das dúvidas, da diversidade e dos contornos
indefinidos. Um dos efeitos políticos presentes na ferramenta análise de implicações é,
portanto, a problematização das relações de saber/poder, visto que ela aponta para o lugar
instituído de onde falamos quando, com nossas práticas especialistas, legitimamos a divisão
social do trabalho no capitalismo. Ou seja, fortalecemos essa divisão quando naturalizamos
que há aqueles que sabem, que detêm a verdade científica, neutra e objetiva – os especialistas
e acadêmicos - e de outro os que simplesmente devem executar o que foi pensado/planejado
por esses iluminados, detentores do saber/poder (Coimbra & Nascimento, 2008, p.148).
A reflexão foi estendida para a relação professor-aluno, que também reproduz a lógica
na qual se pressupõe que o primeiro tenha que derramar seu conhecimento sobre o segundo,
que por sua vez parece estar sempre correndo atrás de falar ou fazer aquilo que acredita que o
professor quer ouvir.
Mosaico. Além disso, abriga em seu quintal um bar e restaurante, que tem conquistado reconhecimento no
cenário cultural e musical de Belo Horizonte.
89
profissionalização, mas que por outro pode conduzir a uma realidade em que “a teoria
interroga cada vez menos a prática. Quanto mais tentamos articulá-las, menos a distância que
pode existir entre elas vai poder produzir análise” (Passos, et al., 2008).
Na chegada dos alunos ao campo de prática, o que se impunha sempre era a questão
do diagnóstico e suas relações com os sintomas, com a intervenção, com o lugar do terapeuta
ocupacional, o que acabava por comprometer a entrega dos alunos, interferindo no ritmo dos
trabalhos da oficina. Os usuários já sabiam dessa rotina no início de cada semestre, o que
vinha sendo aceito de forma naturalizada, pelo menos até a realização do seminário de
avaliação, onde um incômodo apareceu e foi verbalizado pelos usuários e equipe, sendo
direcionados de forma mais pesada aos alunos de um curso de medicina que frequentava o
serviço, mas que nos fez refletir e criticar nosso próprio modo de funcionar e estar ali. É
preciso manter uma abertura para que esses incômodos apareçam sempre, a fim de que não se
naturalizem.
Está no sujeito e não no rótulo dado pelo diagnóstico. Então, olhar para o
diagnóstico limita, porque a gente se esquece de olhar outras coisas. Se eu considerasse os
limites do 5º período, eu não exigiria mais de vocês, mas eu sei que vocês podem mais.
Outro questionamento importante feito pelo professor era sobre o protagonismo dos
próprios alunos na relação com ele e com os outros professores do curso de Terapia
Ocupacional, conduzindo o grupo a uma reflexão sobre o fato de que permitir ao usuário
assumir seu próprio caminho estava diretamente relacionado a uma postura ou
posicionamento do próprio aluno nas relações que estabeleciam com o usuário, com seus
professores e na própria vida.
90
Como já foi dito anteriormente, a demanda primeira, que originou todo o processo da
oficina de rádio foi institucional – em primeiro lugar a demanda de formação acadêmica pela
universidade, em segundo a demanda do serviço, manifestada pela gestão e acatada por nós. A
entrada dos usuários no processo se deu num terceiro tempo ao acolherem a proposta
apresentada. A partir daí a condução foi sempre no sentido de provocá-los a assumir o
protagonismo da proposta, o que exigiu de todos nós um exercício de desocupação da palavra
para que ela pudesse ser assumida pelos usuários e para que as decisões pudessem partir deles
o que, ao longo das edições do programa pode ser observado com a maior ocupação dos
espaços do serviço, com a apropriação do espaço radiofônico e do microfone.
reflexividade sobre a prática, deixando claro que a direção do processo terapêutico na Terapia
Ocupacional seguiria o caminho prática-reflexividade-ação-mudança-reflexividade-ação-
mudança-reflexividade, num trabalho, em conjunto com o usuário, de pensar, ouvir, entender,
acolher, pensar, criticar, para propor, junto com ele, algo que pudesse produzir as mudanças
desejadas em seu cotidiano.
I.M.B. foi o primeiro a romper os limites: “posso ficar aqui? Eu fico caladinho. ”
Outro usuário chegou em seguida e saiu logo depois dizendo que ia nos deixar trabalhar, mas
assegurando-nos de que estávamos todos no mesmo barco. No primeiro dia ficaram assim, em
silêncio, sem tomarem a palavra, apesar de já anunciarem, que o trabalho é conjunto e, aos
poucos, foram ficando por mais tempo. Durante uma supervisão que discutia sobre os limites
do contexto, trouxeram à tona a questão dos limites com os quais têm que lidar nas relações
familiares, na sociedade e no próprio serviço, enfatizando a importância de se focar “no seu
potencial”, como quer I.C., ou de se atentar para a discussão sobre direitos que ainda não são
garantidos aos cidadãos em sofrimento mental de Belo Horizonte, como por exemplo o passe
livre no transporte. A falta de regulamentação legal para o direito de transporte dos usuários
favorecia a irregularidade na concessão de vale-transporte pela gestão do município,
produzindo em certos dias um grande esvaziamento no serviço, o que acabava por
comprometer a continuidade de projetos iniciados por eles.
Desde então, a chegada/entrada nas oficinas foi mais cuidadosa e, além dos usuários,
profissionais do serviço da Rádio UFMG também passaram a participar de algumas
supervisões, convocando os alunos a dizerem a que vieram enquanto futuros terapeutas
ocupacionais e a refletirem sobre a contemporaneidade do conceito de Terapia Ocupacional,
sobre a origem da demanda com a qual a Terapia Ocupacional trabalha e sobre a importância
do trabalho em equipe, como manifestado por um dos oficineiros.
ampliou as possibilidades de participação de pessoas que até aquele momento não tinham se
movimentado até a sala onde os encontros aconteciam.
A primeira das consequências disso foi a redução dos encontros com o professor da
disciplina, fora do horário previsto para a mesma, o que coincidiu também com a entrada dele
no curso de doutorado e a necessária mudança do horário da oficina, que passou do turno da
manhã para o da tarde. Atravessamentos inevitáveis produzidos pelas demandas de pesquisa
em seu encontro com as demandas de formação – nos níveis da graduação e da pós-graduação
- e com as demandas da clínica.
Mais uma vez impôs-se encarar e explicitar essa realidade como parte da pesquisa,
tomando o que emerge daí enquanto a essência de um processo que é atravessado, mas
também transversalizado pelas mesmas circunstâncias.
todos diante das ameaças de perda do espaço físico do CCSP. Esse mesmo usuário sugeriu
ainda que a ideia fosse submetida à próxima assembleia geral do CCSP como contribuição ao
movimento de resistência que vinha sendo construído e como forma de atrair novos
participantes, conferindo ao programa lugar político importante na luta pelos direitos dos
cidadãos em sofrimento mental. Assim foi feito e novos usuários se juntaram à oficina,
aumentando a qualidade e a quantidade do material produzido.
anos e com a Suricato desde o início dos anos 2000. Além das palestras, as salas seriam
utilizadas para cursos de formação profissionalizante de jovens com idade entre 18 e 24 anos,
frutos de parcerias que estavam sendo estabelecidas com empresas multinacionais alemãs e
canadenses. Apesar da faixa etária coincidir com a de parte dos usuários do CCSP, eles não
poderiam participar dos cursos porque, de acordo com o gestor, não se enquadravam no perfil
da clientela. A oferta de algum tipo de formação pelos associados da Suricato que
trabalhavam no núcleo de marcenaria também foi descartada.
O movimento foi adiante e produziu seus efeitos, apesar da subcomissão criada não ter
avançado em seu propósito, cumprindo o que foi antecipado por Z.C.. Esse acontecimento nos
faz lembrar que sustentar o ideal de horizontalização das relações de poder, inerente às
concepções de empoderamento e autonomia da Reforma Psiquiátrica é um desafio cotidiano,
mesmo em serviços como o CCSP, cujos usuários e profissionais têm sido reconhecidos como
uma importante referência de militância na luta antimanicomial.
Escola de Samba Liberdade Ainda que Tam-Tam28, pauta das duas assembleias, deram um
colorido à discussão e reforçaram o caráter político daquela reunião.
Seria importante pra nós, não só no 18 de maio, passar essas coisas pra gente,
porque agora, vamos dizer, se alguém me perguntar quem foi Cézar Campos, eu já sei quem
ele foi. Eu sei que tem um centro de convivência chamado Cézar Campos, mas eu não sei o
que que ele era, o que que ele fez. Agora Basaglia, eu sou fã do Basaglia, porque através dele
é que nós estamos nessa luta né (...). Vamos continuar aprendendo sobre esses militantes,
porque pra nós é importante, né. Nossas referências, isso mesmo (Aos 3’14’’ do 4º bloco do
programa).
Ao longo das quatro edições do Louca Sintonia a militância se fez presente na defesa
do projeto da Reforma Psiquiátrica manifestada nos depoimentos e entrevistas, nas
mobilizações de resistência que aconteciam no serviço, nos preparativos para a comemoração
do 18 de maio e no desfile da Escola de Samba Liberdade Ainda que Tam tam, alimentando
suas atrações – o programa também era uma forma de resistir, de acordo com a possibilidade
28
Para informações mais detalhadas sobre as alas e o samba-enredo, consultar o texto “Dia Nacional da Luta
Antimanicomial - 18 de maio 2016”, no endereço eletrônico: http://antimanicomialbh.blogspot.com.br/ ,
acessado em 08/02/2017.
98
de cada um dos envolvidos. Em toda essa movimentação alguns foram mais presentes, como a
Z.C., o I.M.B. e o I.C..
Nesse contexto o acesso à informação surge como uma das principais ferramentas
tanto para a conquista da autonomia quanto de um maior empoderamento.
reuniões aconteciam - “tenho cinco anos aqui e não sabia que existia”. De acordo com a
gerente do CCSP houve um
No âmbito do serviço, o mesmo usuário expressa também estranhamento por não ter
sido informado nem convidado para as reuniões entre os profissionais e alguns usuários do
CCSP que discutiam sobre os conflitos com a gestão do munícipio – “às vezes não sou
chamado pra tudo” (I.C.).
Para o autor, o germe da autonomia emergiu historicamente pela primeira vez com a
criação da democracia, da política e da filosofia pelos gregos. Com a filosofia veio a
reflexividade, a interrogação sem limites e com a democracia e a política a possibilidade de
discussão da lei (nomos) na coletividade, de forma explícita e ilimitada, o que significa que,
mais do que interrogar a existência de leis, direitos ou igualdade entre os cidadãos se alcance
“as significações imaginárias sociais e seu fundamento possível” (Castoriadis, 1992, p.139). É
o que ele deixa transparecer na afirmação de que “se quisermos ser livres, devemos fazer
nosso nomos. Se quisermos ser livres, ninguém deve poder dizer-nos o que devemos pensar”
(idem, p.138).
100
Durante o período de realização desta pesquisa foi possível observar que o histórico
militante do CCSP parecia não ser mais suficiente para dar suporte às demandas internas de
luta e organização, como demonstrado na dificuldade dos usuários de levarem adiante as
atividades da subcomissão criada durante uma das assembleias, apesar de seus oito inscritos.
Essa dificuldade, aliada àquelas relacionadas à produção de programas extras, no início de
2016, já explicitadas anteriormente, permitiram refletir sobre a urgência de mobilização e de
ações de resistência demandadas por determinados momentos políticos e sobre a importância
de uma formação política que dê suporte a uma mobilização permanente que faça frente a
essas urgências.
Assim como acontece com o Programa Louca Sintonia (Ribeiro, Tomazzi & Passos
2016), uma das práticas estudadas nesta pesquisa, o que parece caracterizar as diferentes
experiências de radiodifusão em saúde mental é a aposta em seu potencial estratégico de
combate ao estigma (Fortuna & Oliveira, 2012; Guerrini Jr., 2012; Mello, 2001; Streppel &
Palombini, 2011), de ação política de ocupação da cidade, não só por intermédio das ondas do
rádio, mas também pela movimentação e circulação exigidas para que se produza os
programas (Palombini, Cabral & Belloc, 2008), e na possibilidade de acesso e “produção de
conhecimento coletivo e democrático” (Marques et al., 2016, p. 106). Além disso, os
fundamentos que sustentam a maioria das práticas são inspirados na perspectiva da
comunicação comunitária e na Educação Popular de Paulo Freire (Fortuna & Oliveira, 2012;
Marques et al., 2016; Santana et al., 2015; Sousa, 2010 e Streppel & Palombini, 2011). Outro
traço comum às experiências nacionais é a vinculação a algum serviço de saúde mental, ainda
que circulem em rádios comerciais e/ou educativas ou pela web.
29
Para retomar a história da Rádio TAMTAM recorrer ao texto Loucos por diálogo: um estudo comparativo de
programas de rádio produzidos por pessoas com transtornos mentais no Estado de São Paulo, de Irineu Guerrini
Júnior (Guerrini Jr., 2012).
102
O nome La Colifata, que na gíria argentina significa “maluco adorável” (Streppel &
Palombini, 2011, p. 503), foi escolhido pelos ouvintes que, dentre tantos outros optaram
exatamente pelo único que remetia à loucura.
La Colifata aceita esta designação social para a partir daí questioná-la. "La Colifata"
como significante propõe uma torção humorística, apontando para - em princípio -
desdramatizar o problema sem negá-lo, [...] trabalhamos, desde esse lugar designado
socialmente, mas operando uma pequena mudança. O projeto "Colifata" o que faz é instalar
uma questão onde há uma certeza. A certeza é louco = perigoso, louco = gênio, louco =
insensato permanente, portanto, é necessário afastá-lo. Colifata é ... o que é? Loco = que?
Assim começa a circular uma série de outros novos significados possíveis para o problema.
Vamos criando e promovendo uma grande construção coletiva de novas representações que
desafiam esses mitos. O caminho proposto é para ir até o mito para depois desconstruí-lo
numa tarefa de todos. Desconstrução participante e participativa. (Olivera, 2005, p. 63,
tradução da autora).31
A Rádio Nikosia, por sua vez, é definida por Correa-Urquiza (2010) como
32
Una experiencia de intervención-acción-participación; se propone como una herramienta de intervención sobre
la comunidad y sobre lo social en general, a partir de una serie de acciones específicas vinculadas a la necesidad
de transformar la situación de exclusión por la que atraviesan las personas diagnosticadas. Estas acciones, que
terminan adoptando características de índole terapéutica –precisamente por no plantearse como inicialmente
terapéuticas–, se llevan a cabo con la participación, en cuanto eje fundamental, de las mismas personas que
sufren la problemática y sus malestares. Sobre la base de estas tres nociones gira el funcionamiento global de la
experiencia. En resumen, la idea es intervenir mediante acciones que apunten a deconstruir una situación de
exclusión y que incorporen en sí mismas la participación de las personas afectadas (p.21).
33
Como consecuencia de lo que los propios nikosianos denominaron um empoderamiento real y de una
necesidad expresada por los redactores, un grupo de 25 redactores decidieron formarse como entidad
independiente y apostar definitivamente por la posibilidad de autogestionarse. La intención era, en palabras de
Joan, nikosiano, «tomar el mando de la nave», hacerse cargo definitivamente del dispositivo contando con el
apoyo de alguno de los coordinadores y reivindicar la posibilidad de ser ellos mismos quienes decidieran el
rumbo global de la experiencia. La idea de Dolors y Xavier fue la de crear una asociación propia cuya junta
directiva estuviese formada íntegramente por redactores. (Correa-Urquiza, 2010, p.23)
104
fortalecimento “real e profundo” de alguns dos envolvidos, que assumiram cada vez mais a
responsabilidade pelas dinâmicas que estruturavam a experiência.
Apesar da proximidade entre as duas experiências no que diz respeito à luta contra o
estigma na saúde mental, o enlaçamento com a clínica, característico da La Colifata talvez
represente a maior diferença em relação à Rádio Nikosia. La Colifata é uma “rádio terapia
des-estigmatizante”, como define seu criador, o psicólogo Alfredo Olivera (2005, p.60), um
espaço criado para lidar com
Por outro lado, a Radio Nikosia tem seus pressupostos muito mais voltados para a
interface entre a loucura e a sociedade, o que se evidencia no entrelaçamento entre a dimensão
reivindicativa, direcionada à questão da luta contra o estigma com a dimensão lúdico-cultural-
criativa, que atende à necessidade expressiva. Por mais que em alguns momentos as ações
possam ganhar contornos terapêuticos,
34
Nikosia iba “transformándose, cada vez más, en un movimiento propio, de dimensiones políticas com
capacidad para incidir en los processos relativos al fenómeno de la locura. O, al menos, con la clara voluntad de
hacerlo. Los nikosianos creían en ello” (Correa-Urquiza, 2010, p.25-26).
35
El problema de las Psicosis como formación clínica y el problema de la Estigmatización de la locura presente
en las representaciones y conductas sociales. El primero refiere al campo de lo clínico. Entendemos las psicosis
como un modo particular de estructuración del psiquismo donde la dificultad principal es la “falla en la función
simbólica” (el lenguaje como capaz de producir sentido a la propia existencia) generando en el plano subjetivo
un profundo sufrimiento y padecer. El espacio creado para abordar el problema es el de “Radio La Colifata”, los
pacientes toman la palabra en su radio y los terapeutas intervenimos en relación a este hecho que vincula a los
internos con el resto de la sociedad. Hacemos una Clínica de la situación, de lo imprevisto, una clínica del
acontecimiento. La Colifata, además de ser un espacio de subjetivación, es un espacio de socialización, un
proyecto que hace “lazo” (Olivera, 2005, p. 60).
105
acontecimento a cobrir, cada um faça uma pequena crônica a ser lida, ao vivo, no programa
da quarta-feira seguinte. (Correa-Urquiza, 2010, p.33, tradução da autora).36
Voltando ao programa Louca Sintonia, o que pudemos observar e que foi registrado no
primeiro artigo decorrente do estudo atual, é que a produção de autonomia e empoderamento
na experiência em questão representa ainda um grande desafio, que passa por exemplo, pelas
“dificuldades de nos descolarmos do papel central ocupado pelo profissional de saúde [e] de
privilegiar o saber e o cotidiano dos usuários” (Ribeiro, Tomazzi & Passos, 2016). Assim
como nas experiências referenciadas anteriormente, o Louca Sintonia também se apresentou
como campo potencial para a luta contra o estigma na saúde mental, para o exercício da
construção de narrativas sobre a loucura e para o exercício e fortalecimento da militância.
O Louca Sintonia tem favorecido uma aproximação maior entre os usuários, a rede
substitutiva e a UFMG, evidenciada por exemplo, na denúncia de desrespeito aos direitos de
usuários encaminhada à Rádio pela ASUSSAM ou ainda na demanda do movimento
antimanicomial para que intermediássemos junto à rádio a cobertura de realizações e eventos
comemorativos do 18 de maio. Além disso, o programa tem contribuído para a ampliação do
espaço para temas relacionados à saúde mental ao longo de toda a programação da Rádio
UFMG e permitiu que a locutora do Conexões tomasse a iniciativa de incorporar o “Bom
Brilho” como seu cumprimento diário na abertura do programa, uma alternativa ao bom dia
convencional, proposta por um dos usuários envolvidos na produção do programa semestral, a
todas as pessoas que encontra pela frente.
36
Llamamos «intervenciones» a las acciones concretas llevadas a cabo por los participantes de la radio en cuanto
corresponsales dentro de la comunidad. Así, una intervención puede ser la salida a cubrir un evento social, un
espectáculo, unas jornadas vinculadas o no al tema de la salud mental. Es una manera de cumplir con la labor
periodística y, a la vez, de poner en evidencia la existencia y el trabajo de Radio Nikosia, de plantear un
«estamos aquí». Al mismo tiempo, es una actividad que contribuye al proceso de identificación y
autoconfirmación de los participantes en cuanto redactores/nikosianos. La idea es que, a partir del
acontecimiento a cubrir, cada uno realiza una pequeña crónica que relata en directo el miércoles siguiente en la
radio (Correa-Urquiza, 2010, p.33).
106
A transmissão foi um sucesso, abrindo portas para o segundo especial temático sobre a
Reforma Psiquiátrica que foi ao ar no dia 18/05/2016. Desta vez, inspirado em Paulo Freire e
suas mangueiras37, Cleiber Pacífico, coordenador da Radio UFMG, instalou o “estúdio” para
transmissão do programa sob a sombra das árvores, em frente ao prédio da emissora. Uma
animada conversa se seguiu durante as duas horas do programa Conexões, que contou com a
presença de Z.C., I.M.B. e I.C., usuários do CCSP e de convidados que participavam da V
Semana de Saúde Mental e Inclusão Social da UFMG, como Ernesto Venturini, representando
a psiquiatria democrática italiana, Paulo Amarante, pesquisador da Fiocruz e Markku Salu,
sociólogo finlandês.
37
Referência ao livro “À sombra desta mangueira”, onde Paulo Freire explicita sua atração e encantamento pelas
sombras das árvores, sob as quais estudava em sua infância e onde, depois de adulto, passava horas envolvido
em suas perguntas e discursos.
107
aqui para desaprender como faz um rádio e aprender como fazer um rádio com todas as
pessoas que estão aqui. Meu prazer é esse”. Ao saber da notícia alguns usuários se
manifestaram com pesar e apreensão: “ele era muito humano com a gente”; “a gente sabe que
quando sai alguém da direção outros podem sair...”. As edições do Louca Sintonia que se
seguiram não foram alvo deste estudo, mas continuaram acontecendo em parceria com a
Rádio UFMG, que já não conseguiu mais viabilizar a presença de profissionais e/ou
estagiários in loco. A equipe anterior de profissionais da produção reduziu de quatro para um
no período de 2014 a 2016.
Um dos maiores desafios das experiências radiofônicas em saúde mental no Brasil tem
sido exatamente sustentar a periodicidade e mesmo a existência delas, que sofrem com os
atravessamentos institucionais como os levantados nesse estudo, com outros relacionados, por
exemplo, à demissão dos profissionais envolvidos (Marques et al., 2016) e às exigências de
mercado, como apontado por Di Renzo, criador da Rádio TAMTAM, em entrevista concedida
a Guerrini Jr (2012): “Respondendo à pergunta ‘Por que o programa parou?’, ele explica que
hoje em dia as emissoras AM foram tomadas por programações evangélicas, e que não há
mais espaço para um programa como a Rádio Tam Tam”(p.174).
Maluco Beleza online, ligada ao Ponto de Cultura Maluco Beleza, em Campinas/SP 38, que
transmite 24 horas de programação.
38
Para mais informações conferir https://www.facebook.com/Ponto-de-Cultura-Maluco-Beleza-
117134775052047/?ref=page_internal
109
5.1 A cortina se abre: que lugar é esse? Que pessoas são essas? Que pesquisador é
esse?
“... essa produção de vocês, esse olhar de fora é muito importante para a gente agora,
justamente porque o nosso desejo agora é pensar esse lugar, esse cuidado também com essa
[equipe de] produção que vai cuidar do grupo como um todo. Então, só pra dizer que chega
numa hora imprescindível pra gente, a gente precisa disso, estou curiosíssima...”
A identidade do grupo e sua presença nas redes sociais (Facebook, Instagram, Twitter,
You Tube e Flickr) foram o centro da discussão. A particularidade de cada ferramenta ou
mídia social, seu alcance e dicas para o uso de cada uma delas foram apresentados, com a
proposta de que cada membro da equipe assumisse a responsabilidade por uma delas. A
apresentação sobre o Facebook foi a mais completa, colocando na mesa “a identidade do
Sapos e Afogados”, conforme demonstrado no trecho do texto apresentado durante a reunião
por Priscila Ayub, responsável da equipe de produção pelos aspectos relacionados à
comunicação:
O objetivo da nossa página é construir uma relação mais próxima com o nosso
público. É importante lembrar que devemos imprimir a personalidade do grupo no Facebook.
39
Os participantes desta fase do estudo serão identificados com seu nome artístico, completo ou reduzido. As
considerações éticas a esse respeito serão apresentadas adiante.
111
Ali na nossa página, independente de quem está postando, quem [estará] falando é o Sapos e
Afogados. Para isso devemos construir a persona do Sapos. Essa persona tem uma linguagem
e um modo próprio de se comunicar nas redes sociais, essas características devem ser
respeitadas e estar sempre coerentes em todos os posts, ainda que os temas mudem muito,
uma vez que isso facilita a identificação e consolida a nossa imagem.
Naquele momento, começou a ficar claro que refletir sobre a identidade do coletivo
era parte do seu processo de institucionalização. As recomendações acima eram essenciais
para que a “persona” do Sapos se instituísse como tal. Quando se enfatiza que não são as
pessoas que falam, mas o Sapos, pressupõe-se que características e normas ou leis muito
próprias vão constituindo o Sapos enquanto instituição, vão constituindo o nomos do Sapos e
Afogados. Instituição e lei, aspectos intrínsecos ao nomos, um dos termos que compõem o
significado de autonomia (Castoriadis, 2004a). Como nos lembra o autor, nomos é
Fui apresentada para a equipe de produção, falei sobre o projeto de pesquisa e recebi a
sugestão de iniciar as observações imediatamente, a fim de acompanhar o processo de criação
do espetáculo Caminho, cujo patrocínio estava sendo negociado com o SESC Palladium, um
centro cultural da cidade de Belo Horizonte. A possibilidade com a qual me deparava ali era
única, pois talvez não tivesse a mesma oportunidade se cumprisse à risca o cronograma da
pesquisa, que previa iniciar as observações no Sapos e Afogados somente depois de terminar a
análise e redação referentes à observação da oficina de rádio. Concordo com a proposta do
coletivo e me disponho a começar a observação participante, já introduzindo a presença de
40
A partir daqui sempre que me referir ao Núcleo de Pesquisa e Criação Sapos e Afogados usarei o nome Sapos
e Afogados ou somente Sapos.
112
Estava claro, desde o início, que eu poderia me deparar com um não em relação à
autorização de utilização das informações colhidas durante a observação, vindo de qualquer
um dos parceiros da pesquisa, uma das incertezas que a pesquisa participativa impõe aos
pesquisadores. Para Colinet & Passos (2015), a responsabilização do pesquisador na verdade
aumenta,
41
Atualmente já se encontra em vigor a Resolução do CNS nº 510, de 07 de abril de 2016, que instituiu “as
normas aplicáveis a pesquisas em Ciências Humanas e Sociais cujos procedimentos metodológicos envolvam a
utilização de dados diretamente obtidos com os participantes ou de informações identificáveis ou que possam
acarretar riscos maiores do que os existentes na vida cotidiana” (Conselho Nacional de Saúde, 2016, p.1).
113
Assim, o TCLE foi assinado durante uma restituição marcada para apresentar o que foi
consolidado durante as observações feitas nos quatro primeiros meses de encontros regulares
com o coletivo, durante duas vezes por semana e, diariamente, durante a temporada do
espetáculo Caminho. No momento da apresentação do TCLE, outra questão ética veio à tona,
a preservação da identidade de cada uma das pessoas do Sapos e Afogados envolvidas na
pesquisa. Após reflexão sobre o assunto os participantes concluíram que, uma vez que eram
atores de um coletivo de teatro, não viam porque omitir o próprio nome. Além do interesse de
se fazerem conhecer como artistas de teatro e de dar visibilidade ao trabalho do Sapos e
Afogados, a decisão foi coerente com o compromisso de cada um e do coletivo como um
todo, com a militância na saúde mental e com a desconstrução do estigma social relacionado à
loucura. Assim, uma declaração com a autorização para manutenção dos próprios nomes nos
documentos, relatórios e produções científicas gerados pela pesquisa foi providenciada e
assinada por todos.
Junto dos objetivos também trazia comigo, fresca na memória, a constatação teórica de
que a participação dos usuários da saúde mental na produção de conhecimento científico
ainda é muito pequena no Brasil e a constatação, decorrente da práxis da oficina de rádio
desenvolvida no CCSP, de que a construção da autonomia, do empoderamento e a
horizontalização das relações no campo da saúde mental são um desafio cotidiano.
114
Com o decorrer da primeira reunião em que participei, fui entendendo mais sobre o
modo de funcionar do Sapos, fiquei sabendo que havia um ator – Elon Rabin - que participava
das reuniões da equipe de produção, mas que não estava frequentando o Sapos há algum
tempo; que os demais atores participavam de diferentes momentos da produção, que
aconteciam fora daquela reunião, como a aquisição de materiais para os espetáculos e a
discussão sobre a questão financeira do coletivo. Além disso, fui compreendendo um pouco
mais sobre os diferentes momentos e espaços de um grupo de teatro, como a produção, a
criação e o espetáculo em si; que atores de alguns grupos de teatro não costumam participar
da produção, o que os protege, de certa forma, do estresse inerente a essa atividade, e que no
Sapos, em especial, isso era importante devido à “fragilidade emocional” dos atores. De
acordo com Juliana, corroborada por Viviane Vida Ferreira, uma das atrizes do Sapos e
Afogados, ao falar sobre o funcionamento de grupos de teatro de uma forma geral, “o bom
seria que o ator tivesse seu lugar preservado, mas às vezes a gente produz e está em cena, faz
tudo”.
No meu primeiro encontro com os atores, me apresentei e falei sobre meu projeto em
momentos distintos, atendendo demandas de alguns atores. Expliquei o projeto, falei a
respeito do meu estudo sobre autonomia e empoderamento, sobre a oficina de rádio que
originou o interesse pela pesquisa e a sugestão da banca de qualificação para que eu
observasse outra experiência com propósitos autonomistas, culminando com minha chegada
aos Sapos e Afogados. Deixo claro ainda que vou fazer uma observação participante, anotar,
escrever um texto sobre o que observei, mostrar a eles para verem se concordam, escrever,
observar....
Todos me receberam muito bem e já, desde o início, fui integrada a algumas das
atividades realizadas pelo grupo: nos momentos iniciais, de recepção e de exercícios de
alongamento e ao final, durante a roda de conversa e o relaxamento que encerravam cada
encontro. Em muitos desses momentos eu pude compartilhar minhas impressões sobre o que
observava e anotava. Edmundo Veloso Caetano me alerta já no primeiro dia: “nós somos uteis
e não somos uteis. Você vai ver que somos bons artistas, tanto no serviço como fora”.
115
Aparecia aí o primeiro sinal da implicação deles com a pesquisa, provar que são bons no que
fazem. A partir daí, passamos a acompanhar todo o processo de criação e os ensaios do
espetáculo Caminho, duas tardes por semana.
Não busquei informações prévias sobre o espetáculo assim como nunca tive contato
com o teatro para além do lugar de expectadora. Fui descrevendo no diário de campo tudo o
que via e escutava, sem entender nada. Depois de algum tempo revi as anotações feitas e
percebi que elas diminuíam drasticamente em alguns momentos. A distância inicial cedeu
espaço a um envolvimento com a experiência que fazia com que eu me esquecesse de anotar
e, quando percebia, já estava admirando o que estava em fase de criação, como se já estivesse
na plateia do teatro. O encontro com o campo de pesquisa estava marcado, assim, por um
estado de
Receptividade afetiva ... [na qual] há uma contração que torna inseparáveis termos
que se distinguem: sujeito e objeto, pesquisador e campo da pesquisa, teoria e prática se
conectam para a composição de um campo problemático ... que vai ganhando consistência
com o tempo, marcando o propósito de seguir cultivando algo [que no início é] muitas vezes
confuso. Mas tal confusão, de ordem intelectual, é acompanhada de uma atração afetiva, uma
espécie de abertura, uma receptividade aos acontecimentos em nossa volta, que nos abre para
o encontro do que não procuramos ou não sabemos bem o que é. Atentos ao que
desconhecemos, com uma atenção fora do foco, orientados por uma atitude de espreita (ethos
da pesquisa), o cartógrafo se guia sem ter metas predeterminadas. Seu caminho (hodós da
pesquisa) vai se fazendo no processo (Alvarez & Passos, 2009, p. 137-138).
As anotações diminuíam não por diminuir o "assunto", mas justamente porque, como
expôs a pesquisadora Kelly durante a reunião de restituição,
As afetações são tão intensas, a cada dia, que vai ficando cada vez mais difícil
anotar, racionalizar, registrar, a não ser pelo viés do afeto, do corpo que vibra, do coração que
sente e bate mais sensível e forte a cada experiência, a cada encontro.
O novo apresentado a mim a cada dia e a dificuldade para entender que processo era
aquele, me faziam retornar sempre ao diário de campo, o que me permitiu conformar
aproximações e semelhanças que identificavam a autonomia, a criação e o cuidado como
centrais em todo o processo. A autonomia eu trouxe comigo enquanto parte dos meus
objetivos de pesquisa e da interrogação permanente que eu me colocava na tentativa de
entender o que observava: Que experiência é esta? Esta é uma experiência autonomista? Onde
tem autonomia aqui? A criação emergiu ao perceber que a condução dos ensaios, seja por
Filipe ou por Juliana, buscava o novo, o inédito em cada gesto, texto ou palavra trazidos pelos
atores, que por sua vez, iam se soltando e ganhando confiança para trazer suas propostas, para
aceitar ou não as sugestões dos diretores e para refazer tudo a cada repetição de movimento,
fala, gesto, texto. Até o ponto em que tive um insight que me mostrou que a autonomia de
116
cada um dos atores se manifestava em ato, quando criavam a cena ou na própria cena. Era
uma “questão de autoinvenção, não de autorevelação, de criação de si, não de descoberta de
si” (Pelbart, 2000, p. 114). Disparador para retomar ou assumir a ligação estreita entre
autonomia e criação, como proposto por Castoriadis ou, a criação como aspecto essencial à
conquista da autonomia.
Esta foi uma questão discutida entre mim e Regina algumas vezes. A maneira como
nós fomos convidadas a participar da construção e execução deste espetáculo. Viramos
Sapônicas. Lembro a citação de Deleuze e Guatarri no Anti-édipo quando eles dizem que se
misturaram tanto que já não era possível dizer quem era quem. Fomos absorvidas pela
equipe. Participamos. Fomos contrarregras. Auxiliamos nos camarins, com o figurino, com
os convidados, com o lanche, com a organização dos objetos cênicos, com a organização dos
bastidores, com as orientações aos atores, seguimos religiosamente o "puta-merda"42. Nos
misturamos a tal ponto que ocorreu duas vezes, uma com Regina e uma comigo, a sensação
de estarmos "sozinhas" nos bastidores em determinados momentos. Da minha parte posso
dizer que no último dia do espetáculo eu fiquei realmente sozinha atrás do palco. Tive o
auxílio da Poliana e do Filipe no momento em que teríamos que produzir a chuva, mas com
exceção desse momento, coordenei todas as outras ações [nos bastidores]. Fomos convidadas
a entrar no palco e receber os aplausos do público. Fizemos parceria. Participamos. (Kelly)
42
Puta-merda é um roteiro que lista a sequência e os nomes das cenas do espetáculo. Para nós que ficávamos nos
bastidores, orientava a organização dos objetos de cena e os passos a serem rigorosamente seguidos no apoio
dado aos atores. A expressão, muito utilizada entre artistas, surgiu daqueles momentos em que o ator, no meio do
palco ou na coxia, exclama: ‘Puta merda! O que eu tenho que fazer agora?’ E recorre ao roteiro para se orientar.
117
Alguns meses depois, durante uma reunião da equipe de produção para planejamento
do semestre fomos convidadas a integrar de vez a equipe e nos tornarmos Sapônicas. Convite
feito, convite aceito, com um misto de satisfação e tensão, em especial porque colocou em
cheque o propósito inicial de nossa presença ali, a realização da pesquisa. Como conciliar os
papéis? Como lidar com a sobreimplicação que poderia decorrer daí? Seria a aceitação do
convite efeito de uma possível sobreimplicação das pesquisadoras no processo? Ou estes
efeitos ainda estavam por vir e acabariam comprometendo a análise das implicações, por dar
lugar ao ativismo da prática e ao sobretrabalho (Lourau, 2004a)?
A nova posição ocupada a partir daí, como membro da equipe de produção do Sapos e
Afogados, por um lado possibilitou o acesso imediato a informações com as quais até então
não tínhamos tido contato e por outro, provocou incômodo e gerou constrangimento.
Cuja atuação une arte e inclusão social ao desenvolver a prática teatral na formação
de novos atores portadores de sofrimento mental, um novo campo de criação (...) que vem se
118
Passado o primeiro impacto diante de regras que soavam tão contraditórias com a
práxis do coletivo, parecia necessário retomar a história desse coletivo, a partir do ponto em
que alguns usuários dos serviços substitutivos de saúde mental de Belo Horizonte dirigiram
uma demanda de profissionalização à então monitora das oficinas de teatro, Juliana Barreto,
que a assumiu e levou adiante na forma do projeto coletivo que originou o Sapos e Afogados.
O incômodo foi levado à diretora na busca de uma melhor compreensão a respeito das
demandas que originaram a elaboração do contrato, sobre o motivo dos atores não estarem
envolvidos nessa discussão e nem fazerem parte do contrato em questão e sobre a recorrente
preocupação, presente no contrato, com a preservação de direitos adquiridos, de direitos
autorais e bem como com o registro de Juliana como “autora intelectual do projeto”.
Mas, e a participação dos atores nesse processo? De acordo com Juliana, tinham
conhecimento e vinham participando de discussões a respeito, ao longo desses anos. Quanto à
existência de um contrato para eles, essa não era a maior preocupação de Juliana: “com eles
não tem problema nenhum, nunca teve. É tudo conversado. E duvido que algum familiar vá
colocar problemas, eles não se envolvem com os meninos, e quando assistem o que eles
fazem se surpreendem com a capacidade deles”.
O Coletivo de Artes Cênicas e Saúde Mental Sapos e Afogados reúne as pessoas que
dão suporte ao trabalho dos atores do Núcleo de Criação e Pesquisa Sapos e Afogados e é
guiado pelos mesmos princípios de seu funcionamento: solidariedade, cuidado, afeto,
compartilhamento, democracia e militância na luta antimanicomial.... [Sua] atuação une arte
e inclusão social à prática teatral, na formação e desenvolvimento artístico dos atores do
Núcleo de Criação e Pesquisa Sapos e Afogados.
Boa parte da história do Sapos e Afogados apresentada aqui foi recuperada do relato da
diretora Juliana durante as observações da oficina Se delirar, delirou!, inserida na
programação do SESC Palladium no mês de maio de 2016, durante a qual os atores
assumiram a condução das aulas para um público de cerca de doze pessoas da cidade, dentre
os quais encontravam-se atores, atrizes, psicólogos e pessoas interessadas em teatro. A
composição da história também se deu a partir dos relatos dos atores durante as entrevistas de
pesquisa e da consulta a trabalhos científicos (Barreto, 2012; Oliveira P. F., 2012; Oliveira,
Melo Júnior, & Silva, 2012), o portfólio do coletivo e vídeos divulgados na internet (Barreto,
2014; Sapos e Afogados, 2014a, 2014b, 2016).
É falar também como que eu aprendi, [como] me descobri diretora de teatro. Dizem
que ser diretor de teatro é quando alguém te coloca nesse lugar. Até então ninguém tinha me
colocado, foram eles. Então, se eu pude construir com eles esse outro nome de ator, de
artista, eles também me deram um novo lugar.
O encontro da diretora geral do Sapos e Afogados com a saúde mental aconteceu por
meio da apresentação artística de algumas cenas durante um desfile da Escola de Samba
Liberdade ainda que Tamtam, em comemoração ao dia nacional da luta antimanicomial, dia
de “luta colorida, de revolução colorida”. Depois disso, foi convidada a ministrar oficina de
teatro nos Centros de Convivência da rede municipal de saúde mental de Belo Horizonte.
Apesar de já contar com atores em seus quadros de profissionais, estes serviços ainda não
tinham trabalhado com o teatro. Havia, até então, um desconhecimento sobre as
possibilidades da prática do teatro pelos cidadãos em sofrimento mental, que se manifestava
por meio do cuidado e cautela dos gestores dos serviços em relação à proposta:
Acho que existia certo receio de que a oficina de teatro pudesse desencadear um
surto, fazer sofrer. Tinha esse cuidado: ‘mas o que você vai trabalhar com eles? Você vai
fazer laboratório? ’. Mas, cheio de temores, assim, eu diria que em alguns lugares até uma
certa censura [do tipo] ‘ah eles não podem ver isso! ’ [ao que Juliana retrucava] ‘mas como
assim, porque que não podem ver este espetáculo? ’ Como é que eles iam fazer teatro se eles
nunca tinham nem visto? (Juliana).
Naquele momento, por volta dos anos 2001-2002, tudo era muito novo para os
profissionais da rede substitutiva de saúde mental de Belo Horizonte e para a própria Juliana.
Depois de um ano de realização da oficina, 12 usuários demandaram ser atores “de verdade”,
originando então o grupo de teatro chamado Companhia Momentânea de Teatro, abrigado no
Centro de Convivência Cézar Campos. O primeiro trabalho da Companhia Momentânea foi
anunciado para Juliana por um dos usuários, já falecido, que informou a ela ter assumido uma
agenda para apresentação do Auto de Natal Hoje é o Dia dos Santos Reis, no Centro de
121
Convivência Cézar Campos. O espetáculo seguinte, chamado Mais de uma vez, mais de uma
voz, apresentado pela primeira vez no 2º Encontro Mineiro de Saúde Mental, na cidade de
Lagoa da Prata, Minas Gerais, circulava dentro dos equipamentos da saúde e abriu as portas
para que a companhia ganhasse “uma cara de grupo de teatro mesmo”.
Os usuários começaram então, a questionar o “aplauso garantido” que vinham recebendo e a
reivindicar a realização de produções que não fossem direcionadas somente ao público da
saúde mental. Esse momento coincidiu com provocações do ex-Coordenador Municipal de
Saúde Mental, o psiquiatra e psicanalista Musso Greco, que refletia com a equipe do Centro
de Convivência Cézar Campos acerca do caráter artístico das produções de usuários da saúde
mental e coincidiu também com os ensaios do terceiro espetáculo da companhia, chamado
Sapos e Afogados, que se propunha a questionar exatamente o lugar da arte no Centro de
Convivência. Como parte do espetáculo, personagens inusitados recebiam todo o público
carimbando um de seus braços com “Centro de Convivência” e o outro braço com o nome do
espetáculo – Sapos e Afogados. Foi com este espetáculo que a Companhia Momentânea de
Teatro entrou para o cenário cultural de Belo Horizonte, fazendo suas apresentações durante a
“3ª Zona de Ocupação Cultural”, um projeto realizado pelo Centro de Cultura Belo Horizonte.
Depois disso, outros convites foram feitos pela Secretaria Municipal de Cultura de Belo
Horizonte para que participassem de eventos da área do teatro e da cultura.
A propósito, o nome Sapos e Afogados surgiu durante o processo de criação desse
espetáculo, quando
Um dos atores, vira para mim e fala, ‘porque que o espetáculo não se chama Sapos e
Afogados?’ Aí eu falei: ‘maravilhoso esse nome, mas porquê? Aí ele falou: ‘não existem
Secos e Molhados43?! Porque que a gente não pode fazer o Sapos e Afogados?’ Aí eu falei:
‘claro que pode! Maravilhoso!’ E ele também estava falando desses lugares, dessa diferença,
do que é arte, do quê que não é, do que é que é estar dentro do centro de convivência, do que
é que é não estar, e assim foi (Juliana).
Os meninos falavam, ‘eu quero ser ator de verdade, eu quero ser ator de verdade, eu
quero ser ator de verdade’. Hoje, sei lá, um ano, dois anos atrás assim, eu entendi o quê que
eles estavam me falando. Que eles são atores de verdades. O que eles estão colocando em
cena, e como estão compondo em cena é a partir de algo que eles viveram, é a partir de algo
que eu vivi, é a partir de algo que nós construímos a partir do que nos atravessou o corpo, a
memória, os sentidos, o sentimento [...]. Então eu rompi com a rede na época. Eu saio porque
era impossível deixar de ser atriz, era impossível deixar de ser artista. Eu não sei, eu não
quero, não vou ser outra coisa. E aí, na ocasião, a rede tinha uma demanda, e queria que eu
43
Banda brasileira de rock dos anos 1970.
122
cumprisse algumas coisas que era impossível para mim, e eu não podia abrir mão deste
trabalho. Abri mão do emprego e não abri mão do trabalho (Juliana).
Ato instituinte, a saída de Juliana da rede assistencial deu origem ao Sapos e Afogados
e colocou em cena a produção de autonomia enquanto um momento de criação no qual, por
meio da reflexividade, as significações imaginárias implícitas nas leis que regem uma
instituição são questionadas, tanto no plano individual quanto no plano coletivo. É quando,
para Castoriadis (1992), a dimensão instituinte da sociedade faz balançar a heteronomia
instituída que a mantém e a seus membros vivendo em conformidade e na repetição.
Abrir portas e janelas, mudar de teatro (!), mudar de cena ..., mudar o cenário, mudar
de roteiro, sobretudo mudar o olhar sobre os atores e sobre a fronteira que nos separa deles,
não para tornar tudo indiferente – ah, a ilusão mais perigosa! – mas para deixar emergir
outras personagens (e quantas outras experimentamos nessa quebra e reconstrução incessante
da “identidade” de terapeuta), outros estados, outras afetações e outras conexões entre eles,
entre nós (Pelbart, 2000, p. 117).
Da formação inicial ainda fazem parte do grupo os atores Rogério Gomes, Ludmila
Kondziolková e Elon Rabin. Além deles, o corpo de atores atual conta com Edmundo Veloso
Caetano, Lídia Silva, Jaqueline Gonçalves, Viviane Vida Ferreira, Emílha Marques e Beth
Flores.
O espetáculo Sapos e Afogados abriu portas para parcerias e novas produções, como a
aproximação com diretor de cinema Ricardo Alves Júnior, que propôs ao grupo transformar o
espetáculo em um curta-metragem de mesmo nome (Alves Júnior & Barreto, 2004), lançado
44
Os moradores deste bairro da cidade o descrevem assim: “Carinhosamente chamado Santé, quase uma
referência ao seu pulsar de “mineiridade”, que corta a “compridez” das palavras, (...) é um dos poucos [bairros]
que ainda conserva suas características arquitetônicas e culturais (...), um desses lugares onde perduram algumas
tradições e onde aflora cultura em amplitude, como a boemia dos bares e restaurantes (...), e os encontros
marcantes “marcados” de fazer arte, como o Clube da Esquina, Skank e Sepultura e os diversos ateliês de
cerâmica, artes plásticas, artesanato e grupos de teatro e de música. É um lugar onde as pessoas ainda conservam
o hábito de dar bom dia, boa noite e oferecer ajuda, quando alguém está em apuros e até mesmo sentar no banco
da praça ou na porta da rua e trocar um dedo de prosa”. Informações coletadas em 16/01/2016, no Portal Santa
Tereza Tem - http://santaterezatem.com.br/
123
em 2005. Esta parceria deu origem a outro curta-metragem, o premiado Material Bruto (Alves
Júnior & Barreto, 2006), no qual Juliana dividiu a direção com o cineasta e participaram os
atores Ludmila Kondziolková, Elon Rabin, Germana Silva e Rogério Gomes. Material Bruto
foi exibido em 15 festivais de cinema no Brasil, Argentina, Bolívia, Portugal, Canadá e Israel
conquistando diversos prêmios, como o Prêmio de Melhor Direção no FENAVID - Festival
de Vídeo Santa Cruz (Bolívia), o Prêmio do Júri no VII Cine Esquema Novo (Brasil), o
Prêmio de Melhor Curta Brasileiro pelo Júri da Crítica, no Festival Internacional de Curtas de
Belo Horizonte (Brasil), o Prêmio Troféu Caleidoscópio, no III Festival Novos Realizadores
do MERCOSUL (Brasil), o Prêmio Aquisição SESC TV, no Festival Internacional de Curtas
de São Paulo (Brasil), o Prêmio de Melhor Curta Brasileiro, no Mostra Curta Goiânia (Brasil)
e Menção Honrosa no Festival Luso-Brasileiro de Santa Maria da Feira (Portugal).
45
Galpão Cine Horto é o centro cultural do Grupo Galpão, uma companhia teatral de Belo Horizonte que tem
origens no teatro popular e de rua.
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circuito cultural da cidade nos anos que se seguiram. De acordo com Juliana, o Caixa Preta
foi o
Primeiro espetáculo depois que a gente sai desse processo com o cinema, [...] que é
um espetáculo que a gente brinca com a metáfora da caixa preta do teatro, [...] com o
inconsciente como a caixa preta, com a tarja preta de uma medicação, e com a caixa preta de
um avião. [...] A gente só faz uso, só recorre a uma caixa preta, para falar de algo que já foi,
de algo que passou, de algo que a gente não viu, que a gente não tem acesso. Então
inevitavelmente os meninos falavam dessa questão da morte. Isso aparece no espetáculo
também, e é um espetáculo com uma estrutura de improvisação, em que a gente tem um
circuito onde eles passam por determinados lugares. Mas, entre uma coisa e outra algo
acontece de novo, seja na densidade do movimento, seja numa coisa nova que aparece.
A primeira Casa Breve eu tenho com o maior carinho, porque foi uma ideia minha.
No dia que eu cheguei lá na casa eu fiquei doida com a casa. Falei ‘Ric [Ricardo Alves
Júnior], vamos ocupar essa casa? Vamos ficar aqui?’ Aí eu mudei pra lá. A ideia era a gente
filmar umas cenas para um curta, que nunca rolou. Eu cheguei e fiquei doida com a casa e
falei, ‘vamos ocupar isso aqui. Mudei com minhas coisas’. Ele falou ‘me dá até amanhã pra
eu falar com a Ju’. Os dois gostaram da ideia. Eu mesmo conversei com o cara que era vigia
da casa pra ficar lá, depois de algum tempo, porque no início era pra fazer a coisa meio
escondida, mas ele desconfiou, descobriu. Eu conversei com ele, conversei com a dona [da
casa] pelo telefone. Ela morava em outra cidade. Fiquei lá, tive a ideia de apresentar uns
trabalhos e fiz uma performance muito importante pra mim (...) que chamava Hoje são
mistérios gozosos, meus surtos psicóticos.
Juliana também dá uma boa ideia sobre as relações com a cidade e os produtos
decorrentes desta 1ª Casa Breve:
As pessoas da rua não entenderam nada, acharam que a casa tinha sido invadida, que
era morador de rua. A gente começou aos poucos, descobrindo como era estar naquele
espaço. De manhã, os meninos tinham o ritual de cuidar da casa. Logo o pessoal da rua, um
dava água, o outro passava o fio para poder ligar o computador, enfim, os meninos colocaram
uma placa [na porta, com o escrito] Casa dos Atores Loucos, pedindo vela e cigarro.
Convidavam o pessoal para poder assistir os ensaios e aí ficaram trinta dias. De manhã eles
tinham esse cuidado, dormiam nessa casa. Então tinham os cuidados pessoais, cuidados com
o espaço, depois eles iam meditar. Foi quando surgiu a Mirra46. Então eles faziam aula de
Mirra junto, depois cada um ia para seu cômodo criar a sua cena. Na parte da tarde, eu e
Ricardo, a gente chegava para dirigir as cenas. [...] no final da tarde a gente encontrava na
varanda para falar dessas cenas
Do lado dessa casa tinha uma distribuidora de bebida, de festa, essas coisas. O
Edmundo logo ficou amigo íntimo desse dono dessa distribuidora, todo dia ele ia e
conversava. E aí, quando a gente está encerrando [a temporada], fechando a casa, às nove
horas da noite, esse cara manda nove garrafas de champanhe pra gente. Virou um caos, uma
46
Mirra é uma “arte marcial para flutuar”, na qual “flutuar não está apenas no sentido literal da palavra ... flutuar
é celebrar o encontro com alguém, é estabelecer uma relação de proximidade com outra pessoa. Flutuar não é
necessariamente voar: é algo que pode ser feito através de ações e palavras. ... ‘Uma interação com quem você
ama já é flutuar, flutuar está no encontro. O importante é saber que depois de flutuar cada um tem que colocar o
pé no chão novamente. Aprender a fazer isso é muito importante’”, como explica seu criador, Edmundo Veloso
Caetano. https://www.facebook.com/ufmgbr/posts/10203271187761810 Acessado em 19/04/2017.
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ciranda louca, e o público já não estava mais, porém a gente comemorou em grande estilo. E
ele mandou entregar para o Edmundo!
O ano de 2011 foi ainda muito importante para o coletivo porque marcou o
reconhecimento de seu trajeto na cultura com duas conquistas. No âmbito da Fundação
Municipal de Cultura de Belo Horizonte, conseguiu financiamento por meio da Lei Municipal
de Incentivo à Cultura para o primeiro espetáculo de rua, chamado Frog Sound, isso não é um
sorvete.
Além disso, o SESC Palladium, pela primeira vez, “aposta” no Sapos e Afogados,
patrocinando a mostra comemorativa dos 10 anos de existência do grupo, que aconteceu no
ano seguinte, na semana da luta antimanicomial. Durante a “Sapos e Afogados – Mostra 10
anos”, além de ter sido apresentado todo o repertório que marcou a trajetória do grupo,
seguido de rodas de conversa com o público, aconteceu também a estreia do Frog Sound, isso
não é um sorvete.
Em 2012 a Oficina Se delirar, delirou! foi oferecida pela primeira vez durante o
Festival de Verão da UFMG, sendo incorporada às atividades permanentes do Núcleo de
Pesquisa, com a possibilidade de ser oferecida à comunidade no espaço do Galpão Cine
Horto. Nesta oficina, os atores propõem ao público experimentar o processo de criação do
Sapos e Afogados, uma “oportunidade de jogar cenicamente com delírios, fantasias e
devaneios pessoais. Acompanhados pela obra O livro das Ignorãças, de Manoel de Barros,
[buscam] ‘desacostumar as palavras’, o corpo e os sentidos” (Sesc Palladium, 2016, p.53).
O ano de 2014 foi marcado pela palestra de Juliana e pela apresentação do Frog Sound
na terceira edição do TEDx BeloHorizonte47, que teve como tema os limites da participação
cidadã, o que deu maior visibilidade ao trabalho e “fez o brejo crescer”, atraindo novos
colaboradores para a equipe de produção.
Também em 2014 aconteceu a segunda edição do Louca da Laje, cujo tema “Não vai
ter culpa” fazia alusão a toda a agitação política e confrontos entre a polícia e movimentos
sociais, que protestavam contra a realização da Copa do Mundo de Futebol no Brasil. O tema
47
TEDx é a versão local de eventos independentes, nos quais os palestrantes compartilham ideias no intuito de
estabelecer trocas de experiências entre comunidades, organizações e indivíduos. São eventos ligados à TED,
que é uma organização norte americana, sem fins lucrativos, que organiza palestras curtas para divulgar ideias
que podem inspirar mudanças. (https://www.ted.com)
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escolhido inspirou o nome Imagina na Copa! Vinte e uma mulheres foram convidadas a
escolher um dos sete pecados capitais e relacionar sua performance com a copa do mundo. E,
assim, pode-se ver, por exemplo, “a Gula comendo um tropeirão na porta do Mineirão48, a
Luxúria com um time de futebol inteiro e a Ira, quebrando uma televisão" (Juliana).
O ano de 2015 introduziu ainda outra atividade de formação de atores conduzida pelo
elenco do Sapos e Afogados, batizada de Frog Cidadão, na qual deram aulas para pacientes de
uma clínica de atenção psicossocial de Belo Horizonte. Esta experiência abriu portas para que,
em 2016 uma nova ação de formação, de caráter permanente, começasse a ser experimentada
no espaço do Galpão Cine Horto, o Sapo Oficina, que se propõe a oferecer à comunidade em
geral, uma formação semestral em teatro, coordenada pelos atores e supervisionada pela
direção do coletivo.
O elenco é composto pelos Sapos, pelos Flutuantes e pelos Girinos. Os Sapos são os
atores permanentes, que participam ativamente das atividades do grupo, seja nos ensaios,
apresentações ou dando aulas. Os Flutuantes não participam das atividades que estão
acontecendo, mas não se desligaram do grupo, continuam sendo Sapos, mas permanecem
afastados durante um tempo, que é delimitado pela necessidade de cada um. Os Girinos são os
que estão experimentando o processo na sala de ensaio até que se autorizem nesse lugar e
sejam reconhecidos pelos demais atores como um Sapo. É comum ouvi-los afirmar que
“fulano está virando Sapo”. Dentre os atores atuais, Emílha, Jaqueline e Lídia foram as
últimas a se tornarem Sapos e Beth Flores é a Girino recém integrada ao coletivo.
48
Referência ao conhecido prato típico mineiro servido nos bares do estádio de futebol Mineirão. Comer o feijão
tropeiro no Mineirão é quase um ritual para os torcedores que vão aos jogos.
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Por decisão dos atores, para fazer parte do elenco do Sapos e Afogados é preciso ser
um cidadão em sofrimento mental. Pessoas que não trazem esta marca podem atuar nos
espetáculos somente na qualidade de convidadas, como aconteceu no curta metragem
Material Bruto, no espetáculo Duo, em Frog Sound, isso não é um sorvete e no espetáculo
Caminho.
Em Material Bruto um ator profissional fez parte das primeiras filmagens, mas acabou
desaparecendo das cenas quando, ao final (ou seria o começo?) do processo de criação, o
diretor optou por refazer todo o processo, por entender que o material bruto era muito melhor.
Segundo Juliana,
O nome do filme era ‘Escolhe o que comer’. O Elon falava assim, ‘eu fiz quarenta
anos agora eu já escolho o que comer’, e a gente começou a investigar e falar disso, filmar,
entrevistar. E eu convidei um ator, um diretor de Belo Horizonte, para jogar junto com eles,
para interpretar. Ele foi e aí, nessa ocasião, depois que a gente filmou, a gente foi assistir o
que tinha produzido, e os meninos escolheram o que comer: eles devoraram o ator. (...) Ele
ficou completamente frágil, as imagens, os meninos, estavam muito melhores do que ele. E aí
o Ricardo [diretor do filme] olhava isso e falava assim, ‘mas o material bruto é muito
melhor’, porque a gente tinha cenas gravadas sem ele. [E falou] ‘eu vou gravar de novo’. Aí
eu falei ‘o que?! Tem um mês que a gente tá gravando!’ [O Ricardo insistiu:] ‘Não, mas eu
vou gravar de novo’. [Juliana, que dividia a direção com Ricardo acabou por concordar:]
‘Beleza, então vai chamar Material Bruto’.
O espetáculo Duo, criado para ser apresentado em Trieste, na Itália, a princípio era um
solo, mas passou a contar no elenco com uma atriz que também era assistente de direção do
Sapos e Afogados. Inicialmente a ideia era que ela traduzisse o texto para o italiano, evitando
assim o uso do recurso de projeção de legendas. Mas, o processo de criação acabou por
incorporá-la às cenas de tal forma que o solo se tornou duo e a presença de “duas mulheres no
palco, duas vozes no palco [permitiu] brincar com esse lugar da loucura (...), com o lugar que
a [atriz do Sapos] ocupava, que era esse lugar do enlouquecimento” (Juliana). Em
determinado momento do espetáculo elas trocam de lugar e a atriz do Sapos começa a falar
italiano e a tradutora passa a falar português.
O espetáculo Frog Sound, isso não é um sorvete, incorporou a diretora Juliana e uma
produtora da equipe ao elenco, depois de uma negociação com os atores, cujo relato de
Juliana a respeito vale a pena trazer aqui:
Eu era louca para entrar em cena com eles, e tinha que alguém levar o som né. Aí eu
ficava com essa, ‘ah, gente deixa eu carregar o som?’ Aí eles, ‘ah! Tá doida para entrar em
cena com a gente! ’. E eu falava, ‘deixa eu entrar carregando o som?’ [Eles insistiam:] ‘Ah,
não pode, só se você alterasse sua consciência’. Aí, a Vivi falou que eu tinha que fumar um
baseado. Falei, ‘mas não vou poder não, eu vou presa, no meio da rua fumando. Quando
legalizar eu fumo’. (...) Aí os meninos [se perguntavam] ‘como que ela vai alterar a
consciência?’ Eu falei, ‘então tá, vai ser assim, eu vou tomar uma garrafa de vinho, ou uma
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Todas essas pessoas que estão no grupo, trabalham de forma voluntaria, é incrível!
.... É uma troca, não tem ninguém fazendo favor, o Sapos não está devendo ninguém, porque
o que a gente ganha também! Tem um interesse meu como artista, não vou ser hipócrita aqui
[mas] não é uma coisa assistencialista. Eu aprendo, é importante para mim como artista,
como atriz, é um caminho sem volta. Isso é o meu fazer artístico hoje, então não tem isso.
Não tô ajudando ninguém, não! A gente está se ajudando, a gente está trocando.... O trabalho
é bonito e é forte por este encontro, [...] eles têm muito para ensinar. E têm mesmo, vocês
estão vendo aí, entende? [Referindo-se à experiência da oficina Se delirar, delirou!] Então é
uma forma diferente, é uma outra perspectiva de dialogar com a loucura ou com o que quer
que seja.
Mas, a “flutuância49” das pessoas que passam pela equipe de produção, ao mesmo
tempo em que traz um colorido instituinte, pode trazer também uma inconstância que pode
fragilizar a necessária estabilidade que faz com que o instituído mantenha a coesão da
instituição.
Eu sempre encarei aqui como um trabalho que a gente faz. [...]. A nossa autonomia
pega [...] a autonomia financeira, [...] a gente ainda luta, tem esse objetivo, ter nosso próprio
espaço e isso a gente ainda ..., captação de recurso, né. A gente não está muito próximo de
certos empresários [...], não chegou alguém assim com essa visão que possa nos ajudar mais
nesse sentido. Acho que tem essa pessoa, não sei se a gente vai encontrar essa pessoa, é um
desejo que a gente tem né.
49
Expressão usada por Juliana, em referência à Mirra, arte marcial, criada por Edmundo, cujo objetivo é fazer
flutuar.
130
Não adianta os meninos estarem só criando se a gente não tiver uma produção ou se
eles não estiverem com essa saúde de um jeito legal. Não adianta também ter uma produção,
ter grana, se não estiver bem e se não estiver criando alguma coisa. Então são três eixos [a
partir dos quais] a gente vai fazendo esse trançado no trabalho.
Figura 1 - Eixos que sustentam o trabalho do Núcleo de Pesquisa e Criação Sapos e Afogados
A “máxima do Elon”, um dos atores do Sapos, está na base dos três eixos: “As regras
do jogo são postas para serem respeitadas, mas você pode optar em desrespeitar essas regras.
Sem adversário teremos espetáculo? ”
Isso aqui é um caos super organizado! Isso aqui você não vai mexer não! Você não
vem querer arrumar demais não.... é um jeito de organizar, é um laço frouxo, como a gente
usa o termo da psicanálise. Não é sem responsabilidade, é com muita coragem, muita
responsabilidade, mas com esses espaços assim sabe, com esse lugar para o respiro. Pode
mudar, hoje eu não dou conta, hoje eu vou fazer diferente, hoje eu quero ... sabe?
A formação dos atores é parte essencial do trabalho do Sapos e Afogados que, desde
2002 vem se formando ao mesmo tempo em que forma seus atores e que desenvolve uma
metodologia muito própria de fazer teatro. Além do processo de criação e ensaios nesses
quatorze anos, os atores tiveram ou têm aulas de Gatka, uma arte marcial indiana, trabalho
corporal em oficinas de View Points - uma técnica de improvisação que surgiu da dança pós-
132
moderna -, trabalho com a dança e com a dança-teatro, aulas de maquiagem e livre expressão,
oficina de cinema e oficina de expressão vocal.
O Eixo Estabilização é o que promove mais de perto o cuidado com a saúde dos
atores, por meio do núcleo de trabalho que era nomeado, no início das nossas observações,
como Acompanhamento de Casos, no qual é feito o contato com os atores fora dos horários de
ensaio ou com a família ou com o profissional de referência na rede de saúde mental, quando
necessário. Cada um dos atores é responsável por seu próprio tratamento, têm clareza de que o
Sapos e Afogados não é responsável por isso, mas não deixam de cuidar uns dos outros e
sabem que podem contar com o apoio de todos os que participam do coletivo.
Faz parte dos planos relacionados a este eixo de atuação do Sapos e Afogados,
viabilizar projetos em que os atores tenham acesso à prática de Kundalini Yoga, Reiki,
acupuntura, yoga, ayurveda, como “uma outra forma de acolher esse corpo, que às vezes está
cansado. E, às vezes, o trabalho do teatro é isso, cansa, cansa a perna, sabe, cansa” (Juliana).
caráter clínico que vinha associado ao nome anterior, em contraposição à práxis do coletivo,
que apostava numa outra relação possível com a loucura, para além do diagnóstico ou do
transtorno.
5.3 O cuidado como expressão de uma outra relação possível com a loucura
Nessa coisa da doença entre parênteses quando eu cheguei pra trabalhar com o
grupo, acho que eu fiquei assim... No primeiro mês eu fui trabalhando e ficava pensando
assim ‘o que é que tem de diferente?’ Porque eu ficava assim, pensando, que eu tinha que
entender o que é que tinha aí, porque a princípio eles faziam tudo o que eu propunha, então
eu ficava assim ‘uai? E aí?’ Até hoje não sei qual que é a resposta disso muito bem, lembro
que eu ficava pensando muito na Lud [Ludmila Kondziolková, atriz do Sapos], que trazia
muito sofrimento, [e pensava] ‘ah, entendi, tem uma coisa aí, tem a questão teatral, mas tem
um sofrimento’. Mas não sei assim, isso não é um ponto de partida, e a gente vai caminhando
muito com essas coisas.
Mas o olhar clínico sobre a loucura atravessa por vezes a própria organização de
trabalho do coletivo, em especial no eixo nomeado Estabilização, referência direta à
134
influência da psicanálise lacaniana, mesmo que o que se ofereça como “outra forma de
acolhimento, de tratamento”, no dizer de Juliana, sejam alternativas desvinculadas da
psiquiatrização ou da psicologização das relações, e marcadas pelo afeto, pela solidariedade e
pelo compartilhamento. Alternativas nomeadas por eles como “cuidado", têm contornos de
uma rede de apoio: “eles sabem que podem contar com a gente”, assegura Juliana.
Se essa pesquisa me serviu de alguma forma, foi para me confrontar com estas
contradições, inclusive agora, ao priorizar a dura dicotomia louco/ator na tentativa de mostrar
como o processo de criação coloca o dedo nesta ferida ilustrando, de forma crua às vezes, mas
também lírica, aquilo que Basaglia chamou de colocar o diagnóstico entre parênteses
(Vascon, 1985) e que Juliana descreve tão bem:
Porque se a gente fala e nega que não existe essa diferença a gente também está
sendo preconceituoso às avessas. É igual do ponto de vista de um relacionamento, existe uma
delicadeza no tempo, no jeito de ver, e é isso que é bonito assim, permitir a troca a partir
dessa diferença, de verdade. Não é normatizar a loucura para poder dialogar com ela né, e
nem tão pouco abrir mão da minha, porque a gente também carrega o sofrimento da gente, a
loucura da gente. Então, eu também trago as coisas que me fazem sofrer, que me angustiam,
que me partem no meio, para colocar em cena. Eu acho que todo artista fala deste lugar. Eu
acho que os meninos, construindo também este lugar de artista, falam com esta visceralidade.
Ela foi a primeira pessoa que me ensina até onde eu podia ir, porque embora eu
reconheça o delírio como uma feitura assim, um trabalho, igual a brincadeira para criança é
um trabalho sério, eu acho que o delírio ele tem este lugar de você possibilitar uma resposta
praquilo que te faz sofrer. E, embora eu reconheça isso como uma verdade, eu não queria
colocar na cena o delírio pura e simplesmente. [...]. Tem cada um mais lindo, mas não era
essa a minha viagem, eu queria que eles tivessem essa consciência desse jogo de estar
fazendo teatro, e isso pressupõe que eu faço para o outro me ver, que eu assumo este lugar.
Mas, eu posso a partir de um recorte de uma memória, a partir disso que me fez sofrer, enfim
a partir de uma cor, a partir do que meu pai me ensinou, a partir do meu bordado no vestido,
construir uma cena de teatro. [...] A Germana todo dia que a gente chegava no centro de
convivência, ela me pedia para fazer a cena da traição ‘Juliana, me deixa fazer a cena da
traição’? E talvez, por identificar que ali tinha algo muito denso, muito forte para ela eu
mudava de assunto, falava, ‘mas então Germana, vamos trabalhar outra cena hoje’, e mudava
de assunto, deixava aquilo passar e aí ela insistia em fazer essa cena da traição. Se eu tive
medo, a Germana não me traiu, ela insistiu, ela pedia para fazer. Bom, um belo dia a gente
foi visitar o Chico Nunes51 [...] e eu vou para a cabine de luz e a Germana [pede de novo] ‘eu
quero fazer a cena da traição’ e nesse dia eu falei assim, ‘então tá, eu topo’. Aí ela chama o
Rogério para poder fazer essa primeira passagem dessa cena com ela, e ela começa a chorar.
Ela tem uma catarse, assim, enorme por causa dessa cena, e voa no pescoço do Rogério.
Blackout na hora! O teatro tem isso concreto, que me faz então trazer de volta. Blackout!
‘Acabou a cena Germana’. Mas, aí eu chego perto e penso ‘o que eu vou fazer agora? ’
Tinham exatamente 4 meses que eu trabalhava na rede, e por dentro, os meninos sabem
disso, eles sabem que eu passei esse frio na barriga, de falar assim, ‘fudeu, ela surtou e o que
eu vou fazer agora?’ Aí eu vou me aproximando da Germana assim devagar, toda delicada.
‘Germana, tudo bem? Tá tudo bem? ’ Ela olhou pra mim assim [e falou], ‘que isso Juliana!
Estou fazendo teatro! Você está me atrapalhando!’ Na hora que ela me fala isso, foi um soco
50 Companhia teatral nascida dentro de um hospital-dia em São Paulo e que posteriormente deixou o serviço e
se constituiu como uma companhia autônoma. "É formada por um coletivo de atores das mais variadas
trajetórias de vida. Cada um traz da sua própria trajetória de fragilidade e loucura ... uma energia singular e um
repertório único que nutre a criação do grupo". Tradução livre de informação recuperada em:
https://www.facebook.com/Ueinzz-255803149821/
51
Teatro Francisco Nunes, na cidade de Belo Horizonte.
136
na minha cara. Primeiro, que eu vi o tanto que eu estava sendo preconceituosa. A gente acha
que a gente não carrega um preconceito, mas carrega sim. Eu estava ali como atriz, achando,
partindo do pressuposto que ela não era capaz de transmitir aquele sentimento, que ela não
podia transmitir aquilo chorando. E a partir de então eu falo, ‘é teatro? Então vamos repetir’.
E ela chora igual, e aí depois pede um copo d'água e chora de molhar a blusa, e o dia que a
Germana não chorava mais no ensaio ela falava, ‘ai o ensaio hoje foi tão sem graça, nem
consegui trabalhar’. Enfim, tinha isso, ela também fazia desse momento da cena um jeito de
pôr para fora. [...]. Era muito forte, ela fala de um lugar, desse ponto de verdade, dela mesmo
e ela consegue colocar isso na cena e repetir e melhorar.
Germana ensina que “o teatro ajuda a curá-los e a nós também, de uma série de
cacoetes. Por exemplo, do cacoete de reduzi-los à personagem exclusiva chamada doente (ou
doente-mental) ” (Pelbart, 2000, p.117).
Em dois outros relatos Juliana novamente exemplifica essa dificuldade que tinha de
escutar o louco para além de sua loucura. O primeiro deles, também relacionado a Germana e
o segundo a Jaqueline, outra atriz do grupo. Germana sempre contava que era uma índia e que
foi abandonada, o que era ouvido sem muita atenção. Certa vez, durante a última das visitas
que fez a Germana, antes de sua morte, no asilo onde ela morava, Juliana assentou-se na porta
do lugar com ela. A tranquilidade da rua fez lembrar Nanuque, a terra natal de Juliana e de
sua família, provocando o seguinte comentário: ‘Nossa Germana, que rua gostosa, parece que
eu estou em Nanuque!’ Ao que Germana responde dizendo, ‘Nanuque? Eu morei lá’. ”
Juliana se espanta quando percebe que levou dez anos pra descobrir isso e, mais ainda,
quando Germana completa dizendo: “sou uma índia Naquinuque52” e encerra seu relato
dizendo: “eu achei que era eu que estava delirando”. No asilo onde Germana morava também
não acreditavam nela quando dizia que fazia cinema: “Ela falava com o povo que ela fazia
cinema e ninguém acreditava, aí a gente chegava lá, levava um filme, fazia sessão...”
(Juliana).
52
Os índios Nakneuck foram os primeiros habitantes daquela região, sendo o nome da cidade de Nanuque
derivado daí.
137
Podemos concluir com Pelbart (2000) que a experiência artística além de colocar em
suspensão o imaginário social que cerca a loucura, produz subjetividades:
Como não poderia deixar de ser, todos os espetáculos e projetos do Sapos e Afogados
trazem em suas propostas o diálogo com a loucura. Em Frog Sound, não é um sorvete é o
louco de rua que fica em evidência, no concurso Louca da Laje é o estereótipo de beleza em
suas relações com a medicalização da loucura, na Casa Breve a convivência da cidade com a
loucura. A própria identidade de coletivo pressupõe ser louco para ser aceito como ator.
Viviane:
E encontrei (...) a expressão ‘atriz louca’, que eu achei que me cabia, sabe, que me
identificava. Isso eu era. Eu não era mais uma atriz, eu não conseguia fazer um teatro
convencional, eu creio. E vale dizer que eu já tinha uma formação em teatro quando eu
cheguei ao Sapos. Eu estudei teatro no Palácio das Artes, me formei lá. Isso foi antes de eu
adoecer. E quando eu cheguei no Sapos eu já não conseguia decorar um texto grande, a
insegurança era muita, coisas assim que não convêm. Insegurança, timidez, dificuldade de
53
Antunes Filho, diretor brasileiro de teatro.
138
relacionamento, nada disso combina com a profissão do ator. E eu carregava essas coisas
todas. E aqui eu ajeitava com essas coisas. Foi muito legal. Eu me senti muito atendida,
muito cuidada mesmo pela Ju ou pela equipe dos ‘normais’, entre aspas, porque são todos
loucos também. Enfim, eu não me sentia a diferente, [não sentia] a distância que eu sentia
com os outros normais, num ambiente de trabalho comum.
Juliana:
Quando eu falo que a gente tá inventando um teatro é... dessa coisa de tentar colocar
o sujeito ... numa caixinha, como se a gente tivesse que normatizar a loucura ou dizer pra ela
‘isso agora não cabe aqui’. Não. É dizer ‘isso que você traz aqui como uma confusão, como
toda essa forma como você subverte a realidade, pode estar em cena’. Como que isso pode
ser inclusive um detonador de uma cena, como pode ser a raiz poética de uma cena. Não é
uma catarse, mas é a partir daquilo fazer virar uma cena. E aí eu fico pensando, quando a
gente vai falar de teatro, quando a gente vai buscar qual que é a verdade do ator, a pergunta
da gente fica lá com Grotowski perguntando: qual é a verdade do ator, qual é a verdade do
ator, qual é a verdade do ator? É uma pergunta que todo ator fica tentando achar, a verdade
na cena, qual é verdade do ator? E pra mim, assim, lendo isso [refere-se ao texto apresentado
na reunião de restituição], vendo o trabalho, só confirma o tanto que a psicose pra mim é a
verdade do ator, esse lugar esquizofrênico, porque o ator também experimenta a loucura.
Então, eu acho que os meninos do Sapos têm isso. Quando eu falo dessa visceralidade como
atores é por isso, porque eles não têm esses pudores que talvez a gente como ator, né Felipe e
Japa, a gente fica com isso assim, arrumando muito isso. Essa coisa deles é espontânea [...], e
também dizer que essa espontaneidade ela é bem-vinda, mas que a gente precisa, e aí eu acho
que é um lugar da direção, quando vocês falam que a gente é ponte, que a gente ordena isso,
é também não expor esse delírio, não colocar isso no que tem às vezes de frágil, mas ao
contrário no que tem de potente.
A dimensão do cuidado aparece por vezes, em momentos onde se está às voltas com a
dicotomia entre os papeis de usuário da saúde mental e o papel de “ator louco”, como os
próprios atores do Sapos e Afogados se nomeiam. Como se percebe, a loucura continua ali,
mas não é o que antecede as relações, ou o encontro com o social. Certamente, não é possível
isolar esses papeis porque ser louco faz parte da existência de cada um deles, mas o encontro
com o teatro confere um novo lugar que facilita, torna mais leve, coloca em segundo plano
toda a significação imaginaria negativa que a loucura carrega, como instituição, tornando
possível o cuidar enquanto manifestação de afeto, atenção, solidariedade e formando a base
para que o Sapos e Afogados funcione como uma rede de apoio, assim como os grupos de
suporte mútuo descritos por Vasconcelos (2003, 2007, 2013, 2013b, 2015) e por Chassot &
Silva (2015), enquanto uma das estratégias de empoderamento que permitem o acolhimento
da diferença, o rompimento com o isolamento social e com a estigmatização e o
compartilhamento das experiências de sofrimento.
Não por acaso, uma das frases criadas por Rogério para sua cena com Viviane, no
espetáculo Caminho - “Eu preciso de alguém que me olhe nos olhos” – que remete tanto ao
afeto, quanto à atenção e à solidariedade, deixou o espetáculo e alcançou, por meio de um dos
espectadores, as reflexões acerca da solidão e da saúde mental no meio acadêmico, durante a
139
O pessoal todo trouxe os Sapos e Afogados, todo mundo que teve fala falou do
Sapos e Afogados, falou de Caminho. Ou era Caminho ou era ‘somos feitos de carne’ [frase
que conclui uma das cenas de Edmundo],várias vezes. [...]. Ficou muito famoso lá. Foi muita
merda!54 [...]. As pedras no caminho foi falado demais, pedra no sapato [referência ao texto
de uma das cenas de Emílha]. Eles usavam muito, se apropriaram e acharam bom demais!
Um episódio ocorrido em torno do risco de choque elétrico devido à água que formava
poças no palco durante os ensaios do espetáculo Caminho ilustra a questão do cuidado e, ao
mesmo tempo, a dicotomia referida acima. Um técnico do teatro, em visita ao palco, durante a
roda de conversa que acontecia entre atores, direção e produção ao final dos ensaios detectou
e denunciou, de forma abrupta, o perigo de choque elétrico e morte, devido à proximidade
entre a água que empoçava no palco e os fios de eletricidade da iluminação. Sem dúvida, a
maneira de apresentar o problema provocaria medo em qualquer pessoa, mas o que se
observou em seguida, foi um grande incômodo, por parte de toda a equipe, com a forma como
o problema foi colocado pelo profissional e com o fato de ter sido colocado na presença dos
atores, trazendo uma preocupação a respeito de como eles receberiam ou seriam afetados por
aquela informação. De imediato a questão que me ocorreu foi se a preocupação e o incômodo
seriam os mesmos se não fossem atores diagnosticados. Depois de passado o momento inicial,
de providenciada a solução para o problema, de ver a resposta e a forma como cada um dos
atores lidou com a situação, a questão que permanecia era se havia necessidade de protegê-los
de determinadas preocupações. A resposta veio de forma esclarecedora, durante a restituição,
na seguinte fala do Filipe, diretor artístico do Sapos e Afogados:
... isso não é um ponto de partida e a gente vai caminhando muito com essas coisas.
Vocês fazem a pergunta da chuva, se a gente ia agir da mesma forma se fosse com um grupo
não diagnosticado. Achei legal isso. Acho que aí entra realmente a questão da diferença. Eu
fico pensando, eu acho que talvez a gente não tivesse o mesmo cuidado. Porque é isso, esse
trabalho tem uma dimensão do cuidado, sim.
54
No teatro a expressão ‘Merda!’ é usada para desejar boa sorte. De origem francesa, conta-se que
antigamente as pessoas iam ao teatro em charretes guiadas por cavalos e quando o teatro lotava muitas fezes
eram encontradas na porta ou nas proximidades. Assim, Merda! Passou a ser um indicativo do sucesso do
espetáculo.
140
incertezas e pensamentos persecutórios. Peneirar novamente a areia que cairia sobre a cabeça
de Edmundo durante o espetáculo, a fim de evitar que alguma pedrinha o atingisse, como
tinha acontecido em um dos ensaios, foi um exemplo dessa atenção: “caiu uma pedra no
Edmundo! Não pode acontecer isso! [...] Qualquer corpo que está em cima ali naquela hora
seria afetado de um jeito ruim” (Juliana). O banho de areia foi algo desconfortável para
Edmundo desde o início dos ensaios: “Vai cair areia na minha cabeça? Vou ficar todo sujo?
Depois vou tomar banho”? Além de desconfortável, o banho de areia permaneceu como uma
incógnita para Edmundo, mesmo ao final da temporada de apresentações, ressurgindo na
pergunta feita por uma criança que havia assistido o espetáculo, sobre o porquê de ele ter
tomado banho de areia, ao que Edmundo respondeu “vou perguntar pra minha diretora e te
respondo”.
Levei um própolis sem álcool e um chá de hortelã para alguns atores que
apresentaram início de gripe no dia anterior [alguns atores que participavam da cena da
chuva]. Edmundo interessou-se por tomar o própolis e eu disse a ele que própolis era um
anti-inflamatório natural. Imediatamente ele disse que não podia tomar anti-inflamatórios
porque era alérgico. Eu e Luciana Mendes [figurinista] informamos a ele que não se tratava
de um medicamento alopático e sim de um produto natural, feito por abelhas. Ele foi
indagado se queria ou não fazer o uso, mas ao final aceitou. Entretanto, no meio da
apresentação, quando eu coordenava os bastidores junto a equipe do grupo, ele me chama
discretamente em um local mais reservado e me diz nervoso que sua boca estava inchada por
causa do própolis. Peço para ver com calma em um local mais iluminado e vejo que não há
inchaço. Imediatamente informo isso a ele e peço para ele se acalmar porque parecia estar
141
tudo bem. Ele diz não saber se conseguiria finalizar o espetáculo. Eu o encorajo e digo que
sim, que ele iria conseguir. Ele confia em minha fala. Pede desculpas e diz que a culpa não é
minha. Que ele tomou porque quis. [E vai] finalizar o espetáculo, maravilhosamente, como
havia feito o tempo todo”.
Outro momento em que se evidenciou o cuidado estético foi em uma cena de Ludmila,
servindo inclusive como forma de feedback para a qualidade da atuação dela:
Nossa trilha é executada na hora, não é um play que ele dá lá. Então, por exemplo,
na cena da pedra com a Ludmila, o André [André Geraldo, o musicista] foi achando os
lugares em que ele sobe aquele som. (...). Isso faz a Ludmila completamente diferente no
primeiro dia [e nos] últimos. Como ela começa a entender aquela música, agora é hora de eu
crescer a minha interpretação e ela cresce. E de ter essa segurança também, porque já fez
muitas vezes, então ela começa a brincar com esse outro elemento. Ela tá dentro do roteiro
que a gente criou, mas ela tá jogando é com o André. Então a gente continua dirigindo (...):
‘Você sacou André, que você tá interferindo na cena’?
O cuidado surge também na fala de Edmundo ao distinguir o teatro feito por grupos
em que os atores são considerados normais do teatro que é feito pelo Sapos e Afogados, no
qual a história de cada um, o diálogo, a escuta e a troca são marcas essenciais:
O teatro que eu trabalhei numa época em que eu era considerado ‘nooormal’, [brinca
com a referência gestual da Jackie no espetáculo Caminho] era tudo uma frescuragem, uma
babaquice tremenda, tinha a estrela, que tinha um camarim próprio, cheia de não me toque.
Aqui não, aqui a gente quebra o pau, a gente xinga mesmo e torra e o teatro sai.... O teatro
142
dos ‘normais’ visa lucro, cachê, status... A diferença do teatro do Sapos e Afogados não é só
porque o Sapos e Afogados foi um dos pioneiros a trabalhar com atores loucos, não. A
diferença é que aqui a gente tem mais segurança. Quando a gente interpreta um papel a gente
sabe que tem todo um apoio verdadeiro, um cuidado. Já na companhia, vamos supor, você tá
lá nos Estados Unidos, naquela máquina de fazer cinema, você não tem cuidado, você é
tratado como descartável. Se você adoece, na mesma hora tem um cara pra te substituir.
[Cuidado] é o seguinte, é porque aqui, se a gente torra, se a gente xinga, se a gente
berra, manda o outro pra merda, aqui tem um desconto. Não é porque a gente é louco, não, se
tá xingando [é porque] alguma coisa tá certa [...]. Aqui tem mais diálogo entre os atores. Nas
companhias que frequentei não tinha diálogo. Chegava lá, estudava, decorava o texto,
apresentava, até beijava na boca, mas não tinha amor, não tinha diálogo. Aqui tem diálogo.
55
“Um dos mais conhecidos e respeitados mestres Zen no mundo de hoje, poeta e militante da paz e dos direitos
humanos [...]. Nascido no Vietnã central em 1926, aos dezesseis anos entrou para a vida monástica. A Guerra do
Vietnã confrontou os mosteiros com a questão de ou aderir à vida contemplativa e permanecer meditando nos
mosteiros, ou ajudar os aldeãos sofrendo sob o bombardeio e outras devastações da guerra. Nhat Hanh foi um
daqueles que escolheu fazer as duas coisas, ajudando a fundar o movimento de “budismo engajado”. Desde
então sua vida tem sido dedicada ao trabalho de transformação interior em benefício dos indivíduos e da
sociedade”. Do site: http://sobrethichnhathanh.blogspot.com.br/ . Acessado em 31/03/2017.
143
Voltar à Terra
Nesse dia a sala estava muito quente, chovia muito e goteiras começaram a cair. Ainda
assim Juliana continuava chamando todos a se concentrarem no espaço e nos sons ao redor
enquanto caminhavam: "Aceitar barulhos, água, trovão, chão rangendo, som. Quem é esse
que caminha? Qual história ele traz? E a gente vai caminhando com as pedras."
Luciana Brandão, uma das responsáveis pelo trabalho corporal dos atores, foi
orientada a pensar na limpeza do movimento depois que já tivessem a partitura do pas de deux
com duas mulheres e do outro pas de deux com dois homens.
Durante a roda final de conversas, Juliana contou a todos que algumas das imagens
introduzidas naquele dia foram inspiradas em observações feitas por ela durante as oficinas
dos atores com Filipe e que outras ela trouxe como provocação. As sugestões vindas dos
atores eram sempre recebidas como possibilidades efetivas de composição de cenas. Em
alguns momentos os diretores pediam aos atores: “guarde essa imagem, guarde essa imagem!
Ela vai voltar depois!”
Nesse primeiro dia de observação, diante da palavra que me foi franqueada durante a
roda final, eu não soube o que dizer. Eram muitas informações. Talvez a questão principal
144
fosse exatamente o que observar ou como observar. Precisava de um tempo para processar o
que vi. Era o primeiro impacto diante de uma experiência que de cara já me tirava da distância
esperada do pesquisador e colocava em questão a própria observação participante.
No segundo encontro fui novamente apresentada a eles por Filipe. Participo da roda
inicial e do aquecimento. Eles se apresentaram para mim e seguiram mostrando fotos que
trouxeram para o ensaio, documentos de identidade ou contando de sua cidade de origem, da
origem dos nomes de família, do início da experiência com o teatro. Conversaram um pouco
sobre a herança paterna e materna presente nos sobrenomes. Dali sairia a inspiração para a
cena de Jaqueline.
Aos poucos fui entendendo como se dava o processo de criação. Parecia começar aí.
Nos movimentos inspirados pela palavra do dia ou pelos textos produzidos entre um ensaio e
outro ou ainda pelas conversas em torno das fotos trazidas.
As perguntas que me vinham giravam em torno do porquê daquela peça, qual o nome
dela, Caminho ou Caminhos? Como as cenas iriam se tornar uma peça? A princípio eu
procurava por uma peça de teatro, com um roteiro pré-estabelecido a ser seguido. Me
pregaram uma peça! Era um espetáculo de dança-teatro, estilo que associa à dança elementos
das artes cênicas, criado pela dançarina e coreógrafa alemã Pina Bausch. E mais, a proposta
do espetáculo não estava pronta, ela seria construída coletivamente entre os atores e todos os
participantes do coletivo, como elucidado por Filipe, em entrevista sobre o espetáculo
Caminho, concedida à TV Horizontes (Sapos e Afogados, 2016), “a dança teatro traz isso, né,
é uma democratização. Todos os corpos sabem dançar. Todo corpo, tudo o que se movimenta,
todo corpo que movimenta tá aí, tá em estado de dança, pode estar em estado de dança”.
Edmundo sentia falta de um texto, “será que vai ter uma pedra no meio do caminho?
A pedra é menos que o mundo, mas incomoda”. Com o tempo foi possível compreender que a
pedra no caminho, representada pelo pedido insistente de um texto, manifestado também por
Emílha, dizia respeito ao próprio Filipe, que em 2015 havia sido introduzido no coletivo como
diretor artístico e trazia consigo uma proposta nova – a dança teatro. Até então, não estava
muito claro para os atores o que era isso, o que teria gerado reações como a manifestada por
Ludmila num primeiro momento: “eu não sei se você sabe, mas isso aqui é um grupo de
teatro, tá?”
Quando a gente ia começar, punha a música e punha a gente pra dançar. O Filipe
fazia isso e falava que ia sair um espetáculo daquilo. Sinceramente, eu não comentava, mas
acreditar eu não acreditava. Eu fui seguindo, eu achei muito bacana essa virada que deu. Em
tão pouco tempo ... a gente ... do nada ... saiu um espetáculo que as pessoas falaram que
choravam e que riam, saiam com os olhos vermelhos. E eu acho que esse teatro é isso, você
emocionar a outra pessoa.
Essa fala de Emílha também ilustra, o percurso do processo de criação: “do nada...saiu
um espetáculo”.
Eu nem sei o que falar. Eu acho que eu vou é, na pessoa da Juliana, falar o que eu
queria falar pra todo mundo... porque a única coisa que me ocorreu... o processo, foi tudo
maravilhoso, mas eu, o que eu queria falar é dessa temporada, sabe assim. Porque eu me senti
insegura e ao mesmo tempo segura e achei que todo mundo foi tão profissional, tão bacana!
Aquele espaço pequeno [o palco do teatro], aqueles medos, e o medo que a gente tem,
‘ah, vou esquecer o texto, vou cair na hora que eu for pular, vou cair lá na frente’. Mas, só
que tudo ia me dando segurança, aos poucos eu consegui fazer, realizar tudo. Eu acho que eu
só ficava pensando ‘gente, a Juliana é foda, é foda’. É foda porque ela fez aquele negócio
ficar lindo e como atraiu pessoas lindas pro nosso convívio, pro nosso processo. Então era
fácil vivenciar essas coisas sem ter insegurança paralisante, o que às vezes eu temia. Porque
tinha todo mundo ali, te segurando a mão, te olhando no olho, e com afeto, e com carinho.
Com trabalho também né, tinha um figurino lindo que você sentia poderosa, tinha um
146
cabelaço, tinha maquiagem. E tinha o seu... também... a fim de acertar a cena e de dar certo.
Tinha chuva, que deu certo. Tinha areia, que deu certo. Tudo então, tudo aconteceu tão
perfeitamente Juliana, você é tão foda, assim, de ter reunido essas pessoas, de ter montado
esse espetáculo. Eu acho a sua cara ele, eu acho que ele tem até uma coisa meio oriental,
assim, que você trouxe, do sertão com o oriente. (Todos riem e Juliana concorda: É verdade,
o silêncio do sertão eu acho que é o mesmo desse zen budismo assim, né, é bem parecido). E
pra completar, esse trabalho da Regina que ela trouxe pra gente hoje e da Kelly, que também
ficou tão bonito. Tão bacana a observação, que foi sempre tão cautelosa conosco e amorosa.
Amorosa, eu fiquei achando isso, que tem muito amor nas relações e isso é bom demais.
Cometemos algumas loucuras, teve os desacertos, mas enfim são experiências do grupo, são
afetos também e no final a gente fez uma bela temporada. Espero que a gente faça mais e
realmente é o empoderamento, né, assim, ‘eu tô atriz, tô em cartaz’.
Como que esse elemento da trilha sonora, concretamente teve efeito na sua
interpretação e hoje aqui, pensando no processo, como que isso era um elemento de jogo pra
você fundamental, a ponto de quando trocou [quando, nos ensaios, saiu a trilha sonora
provisória e entrou a definitiva] te incomodou, lembra? Você falava, ‘não, não gosto disso,
não tô entendendo’, até você buscar qual era o ponto que te ligava e o que é que isso
interferiu na sua ação no seu movimento, dialogar com isso. E isso é um trabalho seu de atriz,
da sua experimentação sabe, de você já fazer alguma coisa com o que a gente construiu no
roteiro. Chega uma hora que é seu, já é o seu diálogo com o André [musicista compositor e
operador da trilha sonora], sabe, assim, é muito bonito.
56
“Viewpoints é uma técnica de improvisação que surgiu a partir da dança pós-moderna [e que] possibilita um
vocabulário comum para pensar e agir sobre movimentos e gestos. Desenvolve a articulação e precisão dos
movimentos e possibilita construir a relação de um coletivo de maneira espontânea e intuitiva, gerando material
criativo e movimento para o palco”. In.: http://barco.art.br/viewpoints-e-composicao-cenica/ Acessado em
18/01/2016.
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transportavam de tal forma para o que estava sendo conduzido, a proposta era incorporada por
eles de tal forma que faziam parecer que as cenas tinham sido ensaiadas inúmeras vezes e não
que eram uma improvisação. Certamente, a experiência da loucura e todo o sofrimento que a
acompanha, faz deles experts na arte de criar e, no caso do Sapos e Afogados, coloca em
questão a diferença entre ser ator profissional e ser ator de carreira o que, para Edmundo,
Meu primeiro insight a esse respeito aconteceu durante um ensaio, sob condução de
Filipe e que vou transcrever abaixo:
Jaqueline entra em cena dançando a música I can't get no, da banda Rolling Stones e
fala: não sei se nasci de uma pedra ou se uma pedra nasceu de mim; se nasci de Mick Jagger
ou Mick Jagger nasceu de mim. Minha avó era Ernesta Bertoline, do lar. Meu avô Manoel
Gonçalves Lima, mestre de obras. Coloquei meu nome Jackie Bertoline em homenagem a
ela.
Todos entram dançando e ao final jogam pedra nela e ela morre.
Jaqueline sugere saírem correndo: no ocidente as mulheres correm, no oriente é que
elas morrem. As mulheres aqui não caem e morrem.
Filipe: você precisa buscar estratégias para poupar sua energia, fala pausada, mais
pausas, sem as pessoas saberem que está cansada. E, dirigindo-se às outras atrizes: Lídia,
balança esse cabelo lindo! Emílha, solta esse quadril, tem um quadril aí!
Jaqueline referindo-se aos nomes de família: não sei se falo.
Emílha: acho que deve. Essa coisa de família é legal. As pessoas vão lembrar das
suas avós.
Filipe: importante para as pessoas saberem que você escolheu o sobrenome feminino
da família, sua trajetória.
Jaqueline: entrar Mick Jagger faz assim com a peça (movimento ascendente com os
braços). Tá tudo muito assim, morno.
Filipe concorda e acrescenta: e a parte da pedra, da mulher que sai correndo, que não
se deixa atingir...
148
A compreensão sobre o processo de criação de cada ator ficou ainda mais clara
durante uma entrevista grupal, onde conversamos sobre a experiência deles com o Sapos. À
pergunta da pesquisadora sobre como se dá o processo de criação de cada um deles o que
57
"Dança Pessoal: é a construção de uma metodologia de elaboração, codificação e sistematização das energias
potenciais do ator e a transposição dessa técnica, que é pessoal, para um processo de montagem de um
espetáculo". Cafiero, C. (2012). A Arte de Luís Otávio Burnier: em busca da memória. ILINX-Revista do
LUME, 1(1).
149
surge como resposta conjuga história pessoal relacionada à loucura e à experiência anterior no
teatro com o ineditismo do ato criador:
Jaqueline:
O processo de criação, eu penso assim, é igual ao de todo ator. Você pode tirar
lembranças da sua memória e essa lembrança vai te dar uma emoção, aí você vai e coloca
aquilo na cena, certo? Então, é o processo de criação de todo ator. Eu fiz teatro muitos anos,
depois eu parei. Então, eu fiz escola de teatro, eu tive um aprendizado de teatro, não foi
muito, mas foi o suficiente. Então, você vai lendo Stanislavski, você vai criando, você vai
fazendo esse processo de criação, assim. Você coloca um pouco de você na cena, mas você
sabe que não pode ser você, que tem que ser outra pessoa ali. Então, você empresta seu corpo
pro personagem e este personagem vai pra cena.
Edmundo:
O meu processo de criação é mais assim realístico, né, da realidade absurda do dia-
a-dia. [...]. Cada ator tem a sua individualidade, sua impressão digital, ou melhor, a sua
retina, a sua marca da retina [...]. Então, comparo o meu processo de criação, igual vendo
aquele cara que viajou, que fala da brisa, [que] o destino é a brisa, né [se remete ao
personagem principal do filme Forest Gump]. Eu tava observando ele e pensei, nó é isso
mesmo, né. Eu uso o meu destino pra tá aqui e a brisa pra soltar as palavras. O que for
soltado, o que for cravado no meu destino se torna realidade, se torna texto e esse texto pode
se tornar realidade, pode se tornar material de trabalho. Então, o destino é esse corpo, ele não
pode fugir dele. E a brisa é tudo que a gente tá impregnado, de texto, de lembrança de
palavra, de idiomas. E quando vai criar é como se fosse assim uma revelação, você abre o
corpo e solta os textos. Aí vem o diretor, ou o assistente de direção, vem a Regina, vem os
atores, os amigos, ‘isso é bom, faz isso, vamos fazer como combinado’. É uma criação em
conjunto, aí sai o espetáculo.
Rogério:
O meu ponto de vista sobre o processo de criação, por exemplo, o que eu aprendi
como ator, é porque o ator ele tem que ser muito observador, em qualquer lugar que você tá,
se você for um observador você vê que existe uma certa cena.... Então, (...) se você for um
bom observador, você consegue improvisar em cima daquilo que você viu. Porque o que que
é o ator, o teatro? É a arte da imitação, você tem que saber imitar, observação e imitação.
Então, tudo isso é um processo. Então, quando a gente encena, por exemplo, a gente já
passou por alguns espetáculos e a gente passava através da criação, de uma memória de
alguma coisa que foi vivida pela gente, ou então até mesmo uma criação daquilo que você tá
fazendo. Daí, surge aquele processo que vai... surge do nada e você, aos poucos, você vai
trabalhando aquilo que você já sabe. Então, daí é que nasce um espetáculo.
Emílha:
Eu penso que eu sou muito individual, sabe. Quando eu tenho uma cena pra fazer,
seja no Frog Sound, no Caminho, eu crio na minha casa, no formato e procuro trazer aquele
formato pro conjunto, né, pra cena toda. Eu penso que eu sou individual. (...). Eu tiro
[inspiração] de passagens da minha própria vida, mas observando também. Aí entra
observação, observando também o outro. Mas, eu tiro muito de mim mesma, sabe. (...). Tem
uma coisa que eu faço também, quando é tempo de criação, de apresentação assim, é
perguntar prás pessoas também, (...) o que que fica bom, ou eu falo da minha expressão,
daquilo que eu tô tirando de mim e pergunto o que que a pessoa acha. Eu também faço isso.
Eu procuro explorar de mim tudo que eu tenho, sonhos, vontade, objetivo, né. E também
perguntar pra outra pessoa, pros outros. É isso, não tem muito.
150
Ludmila:
A gente vê até coisa que não quer contar, que é tão... que é tão.... Que a gente vê
uma coisa até legal, assim, no meu caso, que eu não quero nem contar assim, que eu escondo
pra mim, sabe. Uma coisa tão legal que vi, que é ... tão intrínseca, tem tanto a ver com a vida.
Ah, não sei se é isso. Não sei, é uns flashs que dá, assim. No Material Bruto eu senti uma
emoção muito grande. A Juliana me tocou tanto na minha ferida, que ela me fez representar
como eu nunca representei na minha vida. Acho que desde Material Bruto eu nunca fiz nada
tão parecido assim, tão fundo assim, que mexeu com meu sangue, com as minhas ... vísceras,
foi fundo, assim (...). Foi cansativo, mas foi um cansativo legal. Foi cansativo assim,
estimulante, ela não deixava eu ... ela falava ‘vamo, vamo, vamo’ ... Ela me instigou, até que
eu pus pra fora tudo que eu sentia. Tudo que eu queria falar eu pus pra fora, assim sabe? E eu
senti uma leveza depois que eu tinha posto pra fora, como [quando] você vai na psicanálise,
na psicóloga e fala lá no divã, entendeu? E o Material Bruto foi assim, importante, foi a cena
de subir na mesa, a cena de falar [em tcheco]. E eu pedi pro meu pai umas frases em tcheco,
o meu pai passou pra mim por telefone, sabe, me dando um estímulo assim, sabe.
Aos poucos fui percebendo que a cena do ator talvez representasse o ápice do processo
de autonomia, do qual a criação é parte intrínseca. A evolução das observações e o transcorrer
do espetáculo Caminho ilustram isso, com destaque especial para a cena da chuva. Nela, as
atrizes entram no palco representando lavadeiras que carregam baldes e bacias e executam
uma dança-pessoal debaixo de uma chuva fina que cai no palco. Ao longo da temporada
Emílha passa a ser a única a deixar o palco seca e com o balde cheio de água, a ponto de outra
atriz perguntar se ela havia participado da cena. De acordo com a diretora, que acompanhava
tudo da coxia,
Ela roda, ela roda onde a água não tá caindo. Ela roda e na hora que ela vai pro
lugar que tem água ela põe o balde na cabeça... aí ela abaixa... e aí o que acontece é que é
maravilhoso, porque como ela repete o gesto pra fugir da água caindo, ela fez uma partitura e
todo dia, todo dia ela faz igualzinho.
A partitura criada por Emílha encanta a todos, como expresso na admiração de Filipe,
diretor artístico: “Isso é muito lindo. Eles achando a sua solução em cena”. Mais uma vez a
autonomia se manifesta em ato, em cena, nas improvisações e criações que se renovam na e a
partir da práxis da dança-teatro, num processo que não se fecha, sempre parcial (Castoriadis,
1992), como enfatizado pelos diretores
Juliana: cada dia que você vai fazer, [...] é um dia diferente, apesar de ser o mesmo
roteiro. [...] quando o espetáculo tá pronto entre aspas, ele tá vivo, é um organismo que vai
sempre se modificando. [...]. Eu acho que isso é [com] qualquer ator. Tem uma coisa do
teatro que faz isso também, que é aquela hora ali. [...]. E chega uma hora que é deles. Eu falo,
assim, não tem mais nada que a gente possa fazer, agora tá feito. Nós, no sentido da direção,
tá feito.
Filipe: E tem um consentimento nosso, né Ju? A gente fica na coxia... e a cena dos
bastões... Edmundo resolveu fazer o que ele queria fazer. E aí tem o olhar meu pra Ju assim,
eu olho pra Ju, Ju olha pra mim.
Ju: Tem dia que eu só penso assim ‘bastão, não voa na plateia agora não’. [...] Ele
[Edmundo], todo dia [falava assim] ‘hoje o espetáculo vai ser pro fulano’. E então, esse
151
fulano vai alterar a cena. Ao mesmo tempo, pensando na direção desse grupo, eu fico assim,
achando, que o lugar da autonomia é dar esse lugar para o ator.
Sair do lugar para mudar de lugar (Marques, Palombini, Passos, & Onocko-Campos,
2013), como na cena do Caminho em que os diretores dançam todo o tempo de olhos
vendados, até que ao final dois dos atores do elenco entram e os conduzem para fora do palco
enfatizando “uma coisa simbólica, que é os dois diretores se cegarem mesmo (...) e deles
guiarem a gente” (Filipe e Juliana).
“Os diretores foram alfaiates da alma, cerzindo personagens sob medida!... [numa
conexão em que] traços singulares são colocados em evidência, mas ao mesmo tempo
desterritorializados de seu contexto psiquiátrico e, arrastados para longe de si mesmos, são
prolongados até uma vizinhança que lhes permite uma transmutação amplificada, numa
dinâmica que extrapola completamente os dados iniciais e personológicos, fazendo-os
reverberarem com a cultura como um todo e experimentarem variações inusitadas (Pelbart,
2000, 114).
Um exemplo disso aconteceu quando Edmundo levou um texto escrito por ele - “A
profecia do amor” - para mostrar para Juliana que, segundo ele, reagiu imediatamente à leitura
“pulando em cima de mim com o maior carinho” dizendo que o texto tinha que entrar e
sugerindo que fosse finalizado com a frase: “somos feitos de carne”. Edmundo prossegue,
ilustrando o papel dessa relação com a direção e com os demais atores no tornar-se ator:
Contracenar com o grupo todo me emociona muito. Eu sou a terracota, você é que
me molda [referindo-se a Juliana]. Agora é Juliana e Filipe. É lógico que não é só Juliana e
Filipe, porque contracenando com os atores a gente recebe uma porrada aqui, outra ali, um
toque aqui, outro ali e a gente vai se moldando, a gente também se automodela, né.
sugerir uma cena ou a mudança de alguma outra, como Edmundo, Viviane e Jaqueline.
Quanto aos demais atores, imagino que se assistissem suas próprias atuações já nos ensaios ou
mesmo nos vídeos que circulam pela internet poderiam identificar a qualidade do que fazem e
o quanto sua autonomia é visível quando estão no palco, o que certamente favoreceria seu
empoderamento.
O processo de criação dos atores é contínuo, não cessa com a estreia do espetáculo. Na
verdade, ganha uma vida própria, numa partitura inacabada, na qual “cada espetáculo é um
vôo” (Juliana), provocando surpresas e inseguranças, inclusive na diretora Juliana quando, ao
substituir uma das atrizes na abertura do Caminho, se depara com a autonomia do próprio
espetáculo:
O papel da direção durante o processo de criação fica evidente nesta fala da diretora:
Mas, olha que maravilhoso, porque é assim, também tem uma hora, eu não sei se o
Filipe compactua com essa ideia, mas vocês dão pra gente de presente (...) vocês trazem pra
gente. A gente traz algumas propostas, algumas ideias e vocês dão pra gente um monte de
material, um monte de cenas, de boa, vocês vão trazendo isso. São presentes mesmo, um
texto maravilhoso (...), imagens... E aí o que é que acontece? Chega uma hora que é a hora
em que a gente, como direção também desenvolve isso. Como? [...]. Toda criação teatral, tem
um diretor de teatro que chama Peter Brook, [que] fala que toda peça de teatro nasce amorfa,
não tem forma, e que os atores nesse processo colaborativo vão trazendo isso. Quando o Elon
fala que a nossa dramaturgia é aberta é porque é desse lugar. Um traz uma coisa, outro traz
outra. Isso já é dar forma. E aí, depois, eu acho que o lugar da dramaturgia, da construção do
roteiro e da direção é esse. Da direção de trabalhar um por um e de falar ‘aquela hora ali, a
coluna, o quadril, o pé, a luz, o som’. E ao mesmo tempo criar uma cadência, criar um ritmo,
criar um roteiro mesmo, criar uma sequência pra isso que vocês já nos deram. É como
também se a gente tivesse devolvendo pra vocês e aí vocês fazem uma outra coisa. Depois
que menino nasce ainda vira outra coisa!
Eu achei muito bom que a Regina colocou de mim no trabalho, eu achei importante
por que é justo a pedra no meu sapato né, que é lidar com o corpo. E eu achei também o meu
lugar, achei bem o meu lugar na peça. Eu tava gostando de fazer, eu achei o meu lugar. Eu
não estava deslocada hora nenhuma, eu achei o meu lugar. Lógico que isso pra um ator,
153
principalmente de teatro, que você tá de frente pra plateia, que você tá ali, ao vivo, você tem
que estar no seu lugar. Eu achei isso.
Pra mim esclarece muito como se dá o processo de criação, porque é uma coisa que
meu analista tem me cobrado é eu ter noção do que eu faço, não agir por intuição; aí o olhar
de vocês me ajuda a entender como o processo acontece. Eu acho muito importante, é uma
questão pessoal.
Tem um ano que o meu exercício no Sapos e Afogados tem sido de estar no grupo,
no coletivo, mas de permitir que esse trabalho também aconteça com uma certa autonomia.
Eu precisei tomar uma certa distância no sentido de ter outra pessoa, por exemplo, dirigindo
o trabalho com os meninos. Hoje eu cheguei aqui mais cedo e tive notícia dos dois dias que
vocês tiveram de oficina, morrendo de vontade de estar aqui. Sabe mãe [quando] a pessoa
entrega o filho e fala assim, ‘olha! Ele nem chorou, que legal!’... O Felipe falou ‘nossa foi
lindo’, eu falei ‘ah, que bom, [eu] nem queria’. Então, tem ao mesmo tempo esse ciúme, mas
ao mesmo tempo sabendo que o trabalho está na mão de uma pessoa que eu confio muito que
é o Felipe. E hoje, quando eu falo hoje tem um ano, está sendo importante experimentar esse
lugar, que é estar no coletivo, mas também construindo um outro lugar para mim. Chegou
uma hora também que até essa coisa da direção não podia ser só comigo..., que os meninos
estavam me dando sempre a mesma variação sobre o tema. E aí é bom quando traz alguém,
um outro ar mesmo, na condução das oficinas. E então, por exemplo, a gente ficou seis meses
só com o Felipe em sala de ensaio. Eu ficava roendo as unhas do lado de fora, mas é muito
rico. Porque aí eu vou ter uma devolução desse trabalho com esse outro olhar. É muito
importante pra mim e para os meninos também.
ele, “ninguém sabe mais da minha doença do que eu. Tenho 40 anos que eu sou louco. Ele
não sabe mais da minha doença do que eu, não vou tomar isso”. E assegura a todos: “eu não
vou deixar a minha loucura subir no palco”. E assim foi.
O depoimento de Viviane sobre sua participação no Caminho também nos conta sobre
como compromisso, responsabilidade, autonomia e empoderamento caminham juntos:
Foi um trabalho que eu também tive uma responsabilidade grande. Eu faço até uma
espécie de costura no espetáculo, eu acho, porque eu tô presente em várias cenas, contraceno
com quase todos, se não com todos os outros atores, no trabalho e eu fico pensando: ‘e se eu
não der conta? E se me der uma crise e eu não der contar de realizar o espetáculo? O que é
que vai acontecer?’ E extremamente insegura, mas consegui realizar, as pessoas gostaram....
Eu particularmente não fiquei tão satisfeita com meu trabalho. É como se eu pudesse dar
mais, mas eu não dou conta de dar mais, ou não dei conta naquele momento. Mas, dei conta
de realizar, muitas pessoas elogiaram, não sei se pra agradar, ou se realmente gostaram...
Mas, eu acredito tanto na boa vontade, na generosidade das pessoas que foram. Tem o valor
de eu ter realizado de qualquer maneira, de não ter deixado o grupo na mão, ter participado
dos ensaios, das apresentações, ter ido nas oficinas que o Filipe falou pra gente que era
importante a gente aparecer. Eu apareci, dei um jeito de ir lá. Eu acho que é um lugar que me
cabe bem, que eu me sinto muito à vontade, eu não me sinto obrigada a nada – eu não tenho
que vir aqui, eu não tenho que bater ponto, eu não tenho que apresentar. Mas, eu tenho
compromissos também e isso me faz bem porque parece um trabalho, é um trabalho que eu
dou conta de realizar. Hoje sou aposentada por invalidez, então eu realmente não estou apta
para trabalhar, para disputar uma vaga no mercado de trabalho, nem como atriz nem como
nada. Mas, aqui me dá uma sensação de estar fazendo um trabalho e isso é bacana, isso é
legal, isso é uma experiência de autonomia, eu acredito. Eu posso fazer e me sinto alegre em
conviver com essas pessoas, eu sinto que sou querida, que sou respeitada no que eu faço.
Então, eu acho minha história com o Sapos muito bonita, uma história de amor mesmo,
muito legal.
Elon Rabin, depois de algum tempo afastado do Sapos e Afogados, faz seu retorno na
reunião de restituição da pesquisa e abre as reflexões associando a noção de autonomia à de
independência financeira, também construída por cada um e pelo grupo:
Tem muito tempo que eu não falo, né. Tô com vontade de falar. Esse texto aí me deu
vontade de falar. Tem uns três pontos que eu notei. Da autonomia individual e da autonomia
coletiva, achei importante, da capacidade de criticar o próprio comportamento, as próprias
ideias. A autonomia social, eu não entendi muito bem. [...] A nossa autonomia pega [...], mas
na autonomia financeira, que a gente ainda luta, né, tem esse objetivo, da gente ter o nosso
próprio espaço e isso a gente ainda... captação de recurso, né. A gente não está muito
próximo de certos empresários, eu acho que... a gente não tem, não chegou alguém assim
com essa visão, que possa nos ajudar mais nesse sentido. Acho que tem essa pessoa, não sei
se a gente vai encontrar essa pessoa, é um desejo que a gente tem, né.
da função de rede de apoio exercida pelo Sapos até a luta contra o estigma, o pertencimento
social, o reconhecimento social do trabalho realizado pelo grupo e a inserção na cidade.
Para Elon Rabin, o fato de terem se desvinculado da rede de saúde mental tem sido
essencial para a desconstrução do estigma social relacionado à loucura, o que poderia ser
fortalecido com o uso das redes sociais (Vasconcelos, 2003):
O outro ponto é que nós, com esse tempo de trajetória, a gente tá desconstruindo
essa imagem de que o louco é incapaz, de que louco é perigoso, improdutivo, é perigoso pra
nossa existência. Então, o fato da gente estar circulando na cidade já contribui, dentro pelo
menos em Belo Horizonte já, pra gente estar desconstruindo, porque nós temos autonomia de
trabalhar desvinculado da rede.
Outras mídias que eu vi [referência ao texto da restituição], eu acho isso inovador,
acho isso importante porque hoje, internet, mídias sociais... a gente deve realmente avançar
nesse sentido porque isso também vai ajudar a desconstruir ainda mais essa imagem que tem
de que louco é perigoso, é incapaz, é improdutivo (Elon Rabin).
Jaqueline: Eu fiz curso, eu fiz Antunes Filho, né, eu fiz Ronaldo Boschi aqui em
Belo Horizonte, Eid Ribeiro. Eu já tinha trabalho com outras pessoas já, na juventude,
quando eu tava mais legal. Depois que eu tive a crise, né, aí eu retornei ao teatro através do
Sapos e Afogados, né. Então pra mim foi uma experiência assim fascinante, né. Eu até
cheguei a chorar! Uma vez sabe, depois da apresentação, nós fomos apresentar lá no
Mercado Distrital do Cruzeiro, aí na volta alguém falou assim, [que] nós somos muito
excluídos da sociedade. Aí eu comecei a chorar, falei, ‘não, mas agora não, agora eu tô
incluída’, no Sapos eu tô incluída na sociedade’. Nossa, meu olho encheu de água.... Não
tava acreditando que eu tava assim num grupo de pessoas legais, sabe? Mesmo que tenha
suas brigas, suas rixas, que eu tava num grupo de pessoas legais. Então eu fiquei feliz com
isso, de tá participando de alguma coisa, porque eu tava muito abandonada, eu tava me
sentindo muito abandonada, muito sozinha, às vezes ficava só dentro de casa, dentro de casa,
dentro de casa. Eu precisava de um grupo, de uma atividade, de algo que me colocasse pra
fora, pra fora, mas em sociedade, que eu pudesse ter amigos, fazer amizade, frequentar as
casas, porque eu fico muito sozinha, eu sou uma pessoa sozinha, né, ainda. Mas, eu achei que
o Sapos e Afogados pra mim foi de grande importância e até hoje eu estou aqui presente.
Rogério: e esse convívio em grupo é bom, porque você cresce ali, junto um com o
outro, sabe. A gente sozinho, pra fazer alguma coisa é muito mais difícil do que quando você
tá em grupo. Quando você tá em grupo, fica mais fácil as coisas. Um ajuda o outro...
Jaqueline: fica mais fácil, mais envolto naquilo, sabe. Eu chorei no Sapos e
Afogados, ninguém me viu chorando. Eu chorava de emoção, de tá pertencendo a alguma
coisa, aquela necessidade, você precisa de pertencer a alguma coisa na sociedade, esse
pertencimento. É o pertencimento, né, de alguma coisa [e] é fora de cena também.
Rogério: fora de cena também. O convívio, sabe, assim. Acho que o convívio em
grupo é uma coisa que enriquece a pessoa, porque quando você tá junto com outras pessoas,
as coisas ficam mais fácil do que [quando] você tá sozinho. Dificilmente você vai conseguir
alguma coisa se você tá em casa deitado, sem fazer nada, sozinho em casa.
Jaqueline: isso é horrível! Isso é horrível!
Ludmila: eu era super antissocial, assim. Antes do Sapos eu não gostava de ficar no
meio das pessoas, de jogar um jogo, misturava com um pouco de timidez.
Rogério: por exemplo, na construção do Caminho, desde que o Filipe entrou que a
gente vem nesse processo, né, a gente passou quase um ano fazendo, pra poder sair aquilo ali.
156
E foi através dos encontros, a cada encontro a gente fazia uma coisa, fazia um jogo teatral,
fazia expressão corporal, isso tudo é bom pra gente, sabe. Melhora a autoestima da gente e a
criatividade, é bom pra cabeça da gente, tudo é importante, ajuda.
Edmundo: estamos aqui entre amigos. Só de tá assentado aqui, me ouvindo falar
essas palavras todas, tô entre amigos. 'Ah, mas não é a mesma coisa'. É a mesma coisa. A
amizade não tá na quantidade, é o tempo e a qualidade. Tamo aqui com qualidade de Sapos e
Afogados, trabalhando em prol da tese de doutorado da Dra. Regina, né, a futura Dra. Regina,
por quê? Porque vale a pena investir, vale a pena investir no doutorado, no mestrado ou então
no PhD. Depois do doutorado tem o PhD., não é isso? Vale a pena investir no sonho e eu
acho que o Sapos e Afogados é um sonho que a gente pode realizar nessa vida. Como ator do
Sapos a gente pode realizar vários sonhos. E se a gente souber comunicar com a diretoria, a
gente pode criar coisas, coisas inesperadas.
Elon:
Edmundo:
157
Eu posso tá errado, mas a gente trabalha aqui com improvisação. A gente improvisa,
a Juliana pega, modela, escolhe, faz o molde, encaixa e aí surge o trabalho do Sapos. Então,
eu considero o Sapos como um teatro da improvisação, de atores loucos. Então, eu posso
chamar de teatro da espontaneidade, a pura espontaneidade, porque o louco, quando ele surta,
ele é tão espontâneo que ninguém aguenta ele. Mas, quando ele tá sob remédio, sob
medicação ele [também] é espontâneo. Os normais têm que bater ponto, essas coisas. O louco
não tá nem aí pra isso, ele solta o verbo mesmo, ele fala a verdade mesmo. [...]. É
espontaneidade, não digo que é loucura. O teatro do Sapos e Afogados, o teatro da loucura, é
espontâneo, da improvisação, é espontâneo no seu máximo grau. Se a Juliana Barreto não
tivesse noção do que é a loucura, a loucura no seu mais alto nível teatral, ele seria falso.
Então ele [referindo-se ao Filipe Aredes] tem que ter um pouco de loucura, a Juliana tem que
ter um pouco de loucura. O teatro da espontaneidade louca, o teatro da improvisação
espontânea louca...
É um trabalho, eu sempre encarei aqui como um trabalho que a gente faz. A questão
é que a gente trabalha as questões pessoais e até questões sociais aqui, mas isso não é o foco,
mas a gente trabalha as questões pessoais e sociais aqui. Aqui não é um ambiente terapêutico
propriamente dito, mas acaba funcionando um pouco como um ambiente terapêutico pra nós,
porque a gente torna a nossa vida melhor quando a gente lida com os outros grupos sociais. E
o laço social que a gente tem aqui, ele é indispensável pra que a gente continue como
coletivo e pra que isso seja um laço social que a gente... junto de outros laços sociais...
Porque a gente chega em certas fases da vida que costumamos perder laços sociais, entra na
nossa história as perdas. A perda profissional, porque você se aposenta; a perda de um ente
querido, que em um ou outro momento você acaba tendo; a perda da juventude muitas das
vezes, que a gente já tá na idade mais avançada... E a gente se adapta a essas perdas, e a gente
procura compreendê-las também e ver de que forma a gente pode seguir em frente. E a gente
tá conseguindo isso aqui, isso é um laço social que a gente não deve deixar perder, a gente
deve valorizá-lo como valoriza a família, como a gente valoriza o de amizade que a gente
tem.
“Remédio na dose certa” também porque não pretende calar o sofrimento ou a solidão
que acompanham a experiência com a loucura, mas, antes fazer dela criação artística.
Descobri que não temos amigos, só conhecidos. A loucura vem da solidão. Família,
acham que a gente é perigoso, vai matar todo mundo. Aí vem a propaganda, que é a alma do
negócio... A loucura se resume a uma solidão muito grande dentro da gente e um chão muito
árduo pra trilhar.
O tema também foi lembrado pelo grupo no diálogo sobre pertencimento social,
exposto anteriormente. Ludmilla teve oportunidade de compartilhar com o grupo as marcas
que o teatro deixa em seu próprio corpo, como o cansaço, dores, lembranças que retornam ao
sentir o abraço apertado da Viviane ou o gostinho passageiro da presença do irmão na estreia
do Caminho, ressaltando a solidão que não hesita em se fazer presente ao final de cada ensaio
158
Quem que fala que a solidão pode se tornar loucura? Tem uma parte do texto que
fala [refere-se ao texto da restituição]. Será que pode levar? Talvez possa levar. Será que a
solidão pode chegar num ponto extremo de ser insuportável pra pessoa? Até na semana da
saúde teve essa discussão da solidão né, da importância dela na saúde mental58 e nós nunca
trabalhamos esse tema né. Eu acho que é uma discussão que...todo mundo tem momento de
solidão, né.
Cada um dos atores, a sua maneira, conta como se “encaixou” no Sapos e Afogados e
de como, ao encontrarem um lugar em que “cabem” também encontraram realização,
autonomia e empoderamento.
Beth Flores, atriz Girino por exemplo, ressalta o acolhimento, o afeto e a escuta que
encontrou no grupo:
Já fiz teatro [...], mas como eu fiz teatro com a Juliana, eu gostei mais de fazer com a
Juliana. Eu tava fazendo [...], mas não tava me sentindo bem, parece que tinha um trem me
incomodando... às vezes falava as coisas pra professora... e ela não dava atenção pra mim,
dava atenção pros outros alunos [...]. Alguma coisa que eu tava fazendo, ela cortava. Eu
ficava toda sem graça, não falava mais nada, e foi me doendo aquilo, falei ‘ah, não vou fazer
isso mais não’. Com a Juliana eu gostei [...] eu falei ‘ô Juliana, queria continuar o teatro com
cê’. Aí eu fui se aproximando devagarzinho, entendeu? [...]. No evento eu pedi a Juliana pra
ficar com ela, ela me aceitou de bom coração, de braços abertos, me apresentou o Filipe, e eu
gostei do Filipe [...]. E eu gostei do teatro da Juliana, Sapos e Afogados, tô adorando,
entendeu? [...] eu encaixei, achei que eu queria fazer esse teatro do Sapos e Afogados e
adorei. Eu encaixei, que eu gostei dos dois demais, eles têm um carinho com os alunos,
conversa com todos, dá atenção pra um, dá atenção pra outro, legal é assim.... Eu tinha medo
de fazer esse negócio de Sapos e Afogados, [pensava] ‘esse teatro não vai dar certo não’. Eu
pensava mesmo, ‘acho que teatro não vai dar certo’. No dia que eu falei com Juliana, ‘hoje eu
posso ir?’ Ela falou ‘vai, mas vai com fé’. E com fé eu vim e tô aqui até hoje. Já falei com
[não consigo identificar os nomes] que ‘aqui eu estou me servindo a mim, meu coração tá
aberto, tenho amigo verdadeiro’.
Viviane deixa entrever como o compromisso pode conviver com a liberdade, no que
ela mesmo nomeia como experiência de autonomia.
58
Referência À V Semana de Saúde Mental e Inclusão Social da UFMG, cujo tema foi Por uma vida menos
solitária.
159
Eu acho que é um lugar que me cabe bem, que eu me sinto muito à vontade, eu não
me sinto obrigada a nada – eu não tenho que vir aqui, eu não tenho que bater ponto, eu não
tenho que apresentar, mas eu tenho compromissos também e isso me faz bem porque parece
um trabalho, é um trabalho que eu dou conta de realizar. Hoje sou aposentada por invalidez,
então eu realmente não estou apta para trabalhar, para disputar uma vaga no mercado de
trabalho, nem como atriz nem como nada, mas aqui me dá uma sensação de estar fazendo um
trabalho e isso é bacana, isso é legal, isso é uma experiência de autonomia, eu acredito. Eu
posso fazer e me sinto alegre em conviver com essas pessoas, eu sinto que sou querida, que
sou respeitada no que eu faço.
As vezes a gente aborrece também, tem uma hora que o saco explode mesmo, mas
dá um tempo, depois volta e fica tudo normal. É porque na verdade o convívio entre as
pessoas é uma coisa difícil demais. Na verdade, teatro também é como se fosse uma terapia
pra gente. A gente tá ali, participando, bacana e ajuda também no tratamento, distrai muito a
cabeça da gente. Até porque a gente já é um grupo que faz parte do convívio em Belo
Horizonte, é bem conhecido. Eu participo do Sapos, mas é como se fosse uma atividade mais
lúdica, assim, não tem aquela coisa assim que eu dependo exclusivamente né, porque eu
tenho meu trabalho, né. Pra mim é importante, claro, que eu tô aqui, participando e tudo, é
uma atividade que faz parte da minha vida, né.
Jaqueline fala sobre a possibilidade de autogerir seu dia a dia tanto na família quanto
em relação ao centro de convivência, desde que se aposentou e também ao retomar o teatro no
Sapos e Afogados:
É a realização, né. Não sei se é todo mundo que tem esse sentido dentro de si, mas
tem uma coisa que a gente deseja bastante, que eu desejo, que é a realização. Realizar sendo
pessoa na sociedade, né. Os papéis que eu cumpro, de amiga, família, nesses papéis o Sapos
teve importância porque eu posso convidar a pessoa pra ir ver a cena, então é uma realização,
né. É uma realização, esse querer ficar famosa, querer ficar conhecida. [...]. O Sapos tem um
ponto bom pra gente é quando tem cachê pra gente, né. É muito bom.
Ludmila, assim como Jaqueline, destaca que a experiência do Sapos ultrapassa a dos
centros de convivência:
160
Quando cheguei no Sapos [...] eu vi a empolgação do pessoal, vi uma coisa além dos
centros de convivência, uma atividade além [...]. Você se sentir importante, assim, eles se
sentiam inteiros.
Como já foi antecipado no corpo desta tese, a oficina Se delirar delirou! faz parte do
núcleo de formação do Sapos e Afogados e foi inserida na programação do SESC Palladium
no mês de maio de 2016, durante a qual os atores assumiram a condução das aulas para um
público de cerca de dez pessoas da comunidade.
O depoimento da pesquisadora Kelly nos ajuda a ter noção do que transcorreu ali:
Participei apenas um dia dessa oficina. E como não poderia deixar de ser, fiquei
extremamente emocionada com os relatos que ouvi dos atores do grupo sobre seu próprio
adoecimento, com o profissionalismo com que conduziam as atividades da oficina e com o
retorno do público que participou, que demonstrou bastante satisfação com a experiência e
com o aprendizado proporcionado a partir das atividades propostas pelos atores. Percebi
autonomia e empoderamento nesta atividade. Os atores criavam, produziam as cenas e
propunham aos participantes que executassem junto deles.
sofrimento mental, que por vezes os acompanha inclusive durante os espetáculos, como
expõem os depoimentos de Rogério e Viviane.
Rogério:
Na verdade, o teatro mexe com o ego da gente, sabe? Você tá ali no palco, você vê
que a plateia tá aquele monte de gente ali na sua frente e você tá ali. Aquilo mexe muito com
o ego da gente. Você se envaidece, ‘que bacana isso, que legal, eu tô fazendo uma coisa
bacana’. Na verdade, o Sapos e Afogados é um grupo que já existe há quase 15 anos. Durante
esse período, não é fácil você ter um grupo de quase 15 anos. Imagina quantas pessoas já
passaram por aqui, quantas não ficaram, quantas vieram acreditando que ia ser uma coisa
diferente, mas não é. Outro dia eu tava falando, as pessoas vem pro Sapos e Afogados
imaginando o seguinte, ‘eu vou ficar famoso e vamos ganhar muito dinheiro’, que na verdade
não é assim. O nosso trabalho é um trabalho de dia-a-dia, é um trabalho que a gente tá
fazendo ali, todo dia. Tá fazendo um projeto, não dá certo, faz outro (...).
A gente já sobrevive a muitos grupos, [como] uma família que tá ali junto e tal.
Porque é uma coisa independente, porque a gente não depende de nenhum apoio de algum
órgão público, a prefeitura não dá vale transporte, não dá nada. Ás vezes, pra gente tomar um
café a gente precisa tirar do bolso e tomar um café, porque patrocínio a gente quase não tem.
Então, a gente é como se fosse um sobrevivente mesmo, somos sobreviventes mesmo, porque
a gente tá ali, trabalhando, estamos em busca e a gente tá indo. Esse ano nós não temos
apresentação? Teve uma apresentação? O ano tá acabando? Mas vamos continuar.
Viviane:
Todas as vezes eu dei conta desse trabalho, mesmo estando numa fase de depressão.
Teve uma época que eu me mantive mais afastada do Sapos, eu nem aparecia por aqui, mas
também não fui cobrada, tive o meu tempo e por sorte não teve espetáculo na época. De
modo que eu nunca furei com o Sapos. Eu posso dizer assim. Um dia eu fiz esse Frog Sound
alucinada, completamente alucinada, no Mercado do Cruzeiro. Eu falei ‘Ju, eu não dou conta
de fazer, eu tô louca, eu tô esquisita.’. Mas, nesse dia o Edmundo também tava muito mal e a
Jaque substituiu o Edmundo. E a Ju falou ‘Vivi, não fura comigo nesse não, por favor. Você
fica, faz, a gente te tira daqui, te deixa em casa depois, mas eu preciso que você faça’. E eu
fiz ele louca, esfuziante e tal e o povo diz que foi ótimo. Eu lembro que eu aprontei, eu
aprontei no Mercado, mas cabe né, cabe no trabalho essa coisa assim, ele abarca tudo, não
tinha texto (...). Eu fiquei contente de realizar aquilo. De fato, fui de carro pra casa e fiquei
bem, com a sensação de ter realizado isso, faz bem pra autoestima, no final das contas, você
ter dado conta. Isso também fortalece, empodera.
162
Para tanto, tentei substituir a crença na práxis pela crença “científica” e acabei me
perdendo em meio a teorias que não conhecia e acreditava. A sensação de desamparo teórico
foi evidente no tempo em que levei para assumir, finalmente, o fazer humano pleno de
história e materialidade, de sentidos e sensações. Neste momento, me redescobri.
Desde que conclui o mestrado até o início do doutorado, passaram-se exatos dez anos,
nos quais a única certeza que eu tinha era de que não me submeteria a fazer um doutorado só
para ter um título e satisfazer a exigência de “massa crítica”. Nesse meio tempo até tentei
conciliar as diferentes demandas institucionais com as pessoais, buscando o doutorado em
Occupational Science, na Western University, no Canadá, onde fui aceita. Mas, para nossos
órgãos de fomento – CAPES e CNPq – eu não me enquadrava no perfil para obter uma bolsa.
163
Foi esta concepção a eleita neste estudo, da qual se destacaram três estratégias de
empoderamento: a luta contra o estigma, as narrativas pessoais e a militância.
Assim, não foi por coincidência que o desenrolar do processo de pesquisa conduziu a
experiência de construção do programa de rádio Louca Sintonia para o diálogo com a
concepção de empoderamento que também agrega em sua polissemia outros tantos conceitos
fundamentais à Atenção Psicossocial, como os de participação, protagonismo e autonomia.
Era muita novidade! Doce ilusão a minha acreditar que no segundo campo, como
havia planejado durante a elaboração do projeto de pesquisa que foi submetido ao
COEP/UFMG, minha participação corresponderia à de um observador participante externo,
164
ou seja, aquele que vem de fora, se insere no campo, faz sua pesquisa e se desliga ao final dos
trabalhos, conciliando um papel ativo no grupo ou instituição com um certo distanciamento
(Lapassade, 2005).
Ali foi possível experimentar o subjetivismo e o objetivismo como duas faces de uma
mesma moeda (Passos, Kastrup, & Escóssia, 2009), uma outra relação possível com a
loucura, que envolvia um cuidado que era mais próximo da solidariedade e do afeto do que da
clínica. Com o Sapos e Afogados, a autonomia se encontra com a criação, na criação e em
criação. Instituido e instituinte confrontam-se a todo momento do/em processo de
institucionalização, desde os questionamentos que antecederam o ato instituinte que
inaugurou o projeto de autonomia da então Companhia Momentânea de Teatro.
Pensar o indivíduo autônomo é considerar que uma outra relação é estabelecida entre
sua psique e a sociedade, “entre a instância reflexiva e as outras instâncias psíquicas”, o que
permite ao indivíduo refletir sobre si mesmo, sobre o porquê de seus pensamentos e atos e
“escapar à servidão da repetição” (Castoriadis, 1992, p.140), deixando de ser
Puro produto de sua psique, de sua história, e da instituição que o formou. Em outras
palavras, a formação de uma instância reflexiva e deliberante, da verdadeira subjetividade,
libera a imaginação radical do ser humano singular, como fonte de criação e alteração. [...]
Ser autônomo implica que psiquicamente investimos a liberdade e a intenção da verdade
(Castoriadis, 1992, p.141).
Por outro lado, a liberdade efetiva pressuposta pela conquista da reflexividade não é
possível fora do “oceano social-histórico” (Castoriadis, 1992, p.142), uma vez que não é
possível ser livre sozinho, em nenhuma sociedade. Ao mesmo tempo em que a interiorização
da instituição social é condição para existência do indivíduo autônomo, também é preciso que
a liberdade e a intenção da verdade já façam parte das significações imaginárias sociais, que
uma “auto-alteração da instituição social” abra caminho para a interrogação. “É preciso que a
instituição se torne tal que permita seu questionamento pela coletividade, que a faz ser, e
pelos indivíduos que a ela pertencem. A encarnação concreta da instituição, porém, são os
indivíduos que se locomovem, falam e agem” (Castoriadis, 1992, p.142).
166
A ideia contida aqui traz à tona as duas experiências estudadas: a oficina de rádio e o
Sapos e Afogados. Até que ponto a dimensão instituinte do dispositivo da oficina de rádio
conseguirá cumprir a função de interrogar, questionar as significações instituídas acerca da
loucura no âmbito do CCSP e da rede de saúde mental de BH e da própria cidade? Os sujeitos
envolvidos nela têm a liberdade e a intenção de verdade? Ou mais, foram formados (paideia)
para isso? Como formá-los para isso ? O espaço para a “interrogação sem limites” está dado
por alguma das instituições às quais estão submetidos (loucura, Reforma Psiquiátrica ,
universidade)?
O mesmo pode ser pensado a respeito da história recente do Brasil, que certamente
tem atravessado o cotidiano das práticas de saúde mental. Após o Partido dos Trabalhadores
assumir a presidência e instituir políticas sociais mais democráticas e participativas, instalou-
se uma heteronomia tal que desconsiderou o fato de que mesmo os “projetos mais
amadurecidamente refletidos podem ser num instante deitados por terra pelo que acontece”
(Castoriadis, 1992, p.146).
59
Deixo claro aqui que essa constatação é feita somente a partir do ponto de vista de um dos lados que
protagonizou esse processo, uma vez que extrapolaria os limites deste estudo procurar os representantes da rede
de saúde mental de Belo Horizonte para acrescentarem informações a respeito.
167
Ato criador, criação política, que coloca em cena um projeto de autonomia que,
exatamente por ser projeto, não pode ser demonstrado, mas deve ser postulado, aceito e
passível de ser interrogado e racionalmente argumentado em suas implicações ou
consequências. Fazer arte (criação) e fazer política andam de braços dados com a autonomia.
Isso confere a uma política da autonomia um conteúdo, desde sempre parcial, mas
também impõe limitações e traz para o centro a educação, a paideia (a formação, sempre
social), dos cidadãos “que interiorizaram a necessidade da lei e ao mesmo tempo a
possibilidade de questioná-la (...), que interiorizaram também a interrogação, a reflexividade e
a capacidade de deliberar, a liberdade e a responsabilidade” (Castoriadis, 1992, p.148).
Algumas das perguntas essenciais para as quais qualquer sociedade busca respostas,
segundo Castoriadis (1982), coincidem com aquelas que o Sapos tem se feito: “quem somos
nós, como coletividade? Quem somos nós uns para os outros? Que queremos, que desejamos,
o que nos falta?” (Castoriadis, 1982, p.177). São uma forma metafórica de pensar a busca por
uma identidade, por uma maior elucidação acerca da relação com o mundo, necessidades e
desejos, uma vez que não se trata de buscar na linguagem, definições diretas para cada uma
das questões. A proposição do autor a esse respeito é de que “é no fazer de cada coletividade
que surge como sentido encarnado a resposta a essas perguntas” (Castoriadis, 1982, p.177).
Sua vida e atividade, manifestas nas formas de fazer, nos seus objetos, nos seus fins, nos
instrumentos usados para tal, vão indicar “uma maneira cada vez mais específica de captar o
168
É por meio das significações sociais imaginárias que estas perguntas são respondidas,
materializando “a instituição que coloca a coletividade como existente” (Castoriadis, 1982,
p.178) ao lhe conferir um nome que, mais do que designar, conota, imprime qualidade,
propriedade, compreensão, cumprindo uma função de identificação. Ser um usuário de saúde
mental que faz teatro dentro de um serviço substitutivo, apesar do avanço que isso representa,
não impede que venha à tona toda a significação social imaginária presente na instituição
loucura, aparente em expressões do tipo: “eles não são atores! ” ou “eles vão surtar! ”, vindas
de profissionais da saúde mental e “Não queremos aplausos garantidos! ”, ouvidas dos
próprios atores. O rompimento com a rede e a criação do coletivo autônomo confere àqueles
antes nomeados como usuários, um novo nome – ator ou atriz. A instituição da loucura
convive agora com outra, o teatro, que passa a antecedê-la e a prevalecer sobre ela. Isso não
resolve o problema da relação que a sociedade estabelece com a loucura, mas produz efeitos
analisadores, convocando à reflexividade aqueles que se permitem assistir aos espetáculos do
coletivo, ou são surpreendidos por um dos espetáculos na rua. A reação dos espectadores,
observada após cada sessão do espetáculo Caminho, demonstrou isso: pessoas que saíram
chorando sem entender o porquê da emoção; pessoas que não entenderam nada e que foram
embora com uma interrogação estampada na testa; outros que se surpreenderam porque
esperavam ver um espetáculo como os teatrinhos da época de colégio e, por fim, aqueles que
deixaram de assistir ao espetáculo também porque imaginavam que encontrariam esse mesmo
tipo de teatro. Estes preferiram se manter na segurança ilusória do instituído.
estabilizou, acostumou na lógica instituída a partir de 2002, com o governo Lula. É bem
verdade que movimentos sociais voltaram às ruas, como resposta à provocação neoliberal,
que acabou por cumprir uma dolorosa função instituinte. O que me parece e que não me deixa
desanimar de todo, é que no período de 2002 a 2013, o projeto então instituído, parece ter
contribuído para “a formação de indivíduos que aspiram à autonomia” (Castoriadis, 2004a, p.
171) apesar de, contraditoriamente, não ter sustentado a reflexividade necessária ao exercício
da autonomia, da política, da democracia. Agora, mais que nunca, a proposta de uma
formação política para os usuários da saúde mental, que já despontava como necessária à
construção e ao exercício da autonomia deles, se impõe como urgência, uma vez que estarão
entre os mais afetados pela nova lógica da gestão do país, que já coloca como um de seus
projetos, por exemplo, a desconstrução do SUS.
Ao concluir esta tese a única certeza que me resta é de que seus resultados e reflexões
são parciais. Espero que meus parceiros no estudo me acompanhem nessa perceção e que os
leitores deste trabalho sintam-se provocados a interrogar suas práticas.
171
REFERÊNCIAS
Basaglia, F. (1985). A instituição negada: relato de um hospital psiquiátrico. Rio de Janeiro: Edições
Graal.
Belo Horizonte. (2014). Plano Municipal de Saúde 2014-2017. Belo Horizonte: Secretaria Municipal
de Saúde de Belo Horizonte. Acesso em 24 de 04 de 2017, disponível em
<http://portalpbh.pbh.gov.br/pbh/ecp/files.do?evento=download&urlarqplc=pms-20142017-
aprovado-18-dez-14.pdf
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mental. Em C. Guanaes-Lorenzi, C. C. Motta, L. M. Borges, M. d. Zurba, & M. D. Vecchia,
180
Você está sendo convidado (a) a participar do projeto de pesquisa “Experiências autonomistas em saúde
mental: possibilidades de empoderamento” de responsabilidade das pesquisadoras Izabel Christina Friche
Passos e Regina Céli Fonseca Ribeiro, aluna de doutorado dela. Você tem total liberdade de escolher entre
participar ou não deste estudo.
Nosso objetivo é estudar as possibilidades e desafios de produção de autonomia e empoderamento em
experiências como as da oficina de rádio do Centro de Convivência São Paulo e a do Sapos e Afogados.
A pesquisadora Regina Céli Fonseca Ribeiro, será observadora participante, ou seja, vai participar e
observar a experiência em que você está envolvido, fará anotações sobre o que observou, para depois analisá-las
junto com os participantes que se interessarem. Os resultados finais farão parte da tese de doutorado da
pesquisadora e poderão ser apresentados em eventos da área e publicados em artigos científicos. Em nenhum
momento você será identificado. Seu nome só será revelado caso você deseje e autorize.
Como o estudo estará integrado ao seu cotidiano no lugar frequentado, os riscos que por ventura
existirem serão mínimos e eventuais. Mesmo assim, se você se sentir constrangido ou incomodado em participar
da pesquisa pode se desligar dela a qualquer momento. Caso você precise de algum tipo de assistência durante a
pesquisa, você será atendido no Centro de Referência em Saúde Mental ao qual está referenciado. A
pesquisadora responsável e a doutoranda Regina Céli Fonseca Ribeiro são responsáveis por indenizar eventuais
danos decorrentes desta pesquisa. Você não receberá nenhum pagamento para participar deste estudo, mas, se for
preciso, receberá de volta algum valor que tenha sido gasto para participar da pesquisa. Você vai assinar duas
vias deste TCLE – uma ficará com você e a outra será arquivada pela pesquisadora.
Qualquer dúvida que surgir poderá ser esclarecida a qualquer momento pelas responsáveis pela
pesquisa, e caso tenha dúvidas sobre aspectos éticos dessa pesquisa entre em contato com os Comitês de Ética
em Pesquisa COEP/UFMG e CEP/PBH.
Espera-se que através desta pesquisa seja possível contribuir para a melhor compreensão sobre o
processo de construção de autonomia e empoderamento pelos usuários de saúde mental e assim, ajudar a
fortalecer a Reforma Psiquiátrica brasileira, em especial, em Belo Horizonte.
Agradecemos sinceramente a sua colaboração.
Cordialmente,
____________________________________ __________________________
Profª Izabel Christina Friche Passos Regina Céli Fonseca Ribeiro
Doutoranda em Psicologia/UFMG
Departamento de Psicologia/FAFICH/UFMG
Fone: [email protected]
Fone: [email protected]
COEP/UFMG – Comitê de Ética em Pesquisa – UFMG - Av. Antônio Carlos, 6627, Unidade Administrativa II –
2º andar / Sala: 2005 - Telefone: (31) 3409-4592- e-mail: [email protected]
CEP/PBH - Comitê de Ética em Pesquisa – SMSA/PBH – Fone: 3277-5309 - Avenida Afonso Pena, 2336 - 9º
andar, Bairro Funcionários. Belo Horizonte – MG-Cep 30130-007
_________________________________________________________________________________
CONSENTIMENTO PARA PARTICIPAÇÃO EM PESQUISA
Eu, __________________________________________, declaro que entendi os objetivos, riscos e benefícios de
minha participação na pesquisa e concordo em participar como voluntário do projeto de pesquisa “Experiências
autonomistas em saúde mental: possibilidades de empoderamento”.
_______________________
Assinatura do voluntário Belo Horizonte, ____ de ______________de 201_.
__________________________________________________________________________________________
CONSENTIMENTO PARA PARTICIPAÇÃO EM PESQUISA PELO TUTOR/RESPONSÁVEL
LEGAL
Eu, __________________________________________, declaro que entendi os objetivos, riscos e benefícios da
participação, nesta pesquisa, de ____________________________________________, pelo qual sou
responsável legal, e concordo que o mesmo participe como voluntário.
_______________________________
Assinatura do tutor/responsável legal Belo Horizonte, ____ de ______________de 201_.
182
COEP/UFMG – Comitê de Ética em Pesquisa – UFMG - Av. Antônio Carlos, 6627, Unidade Administrativa II–
2º andar/Sala: 2005 - Telefone: (31) 3409-4592- e-mail: [email protected]
CEP/PBH - Comitê de Ética em Pesquisa – SMSA/PBH – Fone: 3277-5309 - Avenida Afonso Pena, 2336 - 9º
andar, Bairro Funcionários. Belo Horizonte – MG-Cep 30130-007
183
O Sapos e Afogados foi pensado então, por apresentar essas características – composto
por cidadãos em sofrimento mental e estar desvinculado da assistência.
No primeiro encontro com Juliana e Filipe fui muito bem recebida por ambos. Juliana
repetiu o que já havia me falado pelo telefone sobre o exercício de reflexão sobre a própria
identidade que tem sido feito pelo coletivo e que minha chegada seria importante para eles
poderem pensar sobre o próprio trabalho. Filipe se entusiasma ao saber que um dos marcos
teóricos do meu projeto passa pela Análise Institucional. Em 26/01/2016 o termo de
compromisso foi assinado por Juliana e eu fui convidada a participar da primeira reunião do
ano, no dia 27/02. O cronograma da minha pesquisa previa que as observações seriam
iniciadas em agosto, mas achamos que talvez eu pudesse frequentar algumas reuniões da
equipe antes.
Nessa primeira reunião estava presente a equipe de produção: Juliana (diretora), Filipe
(diretor artístico), Luciana-Japa Crazy, Priscila e Poliana.
60
Este texto foi lido integralmente para a equipe de produção e para os atores e seguido de várias horas de
conversa, cujo conteúdo foi apresentado ao longo da tese.
184
A identidade do grupo, sua presença nas redes sociais são o centro da discussão. A
particularidade de cada ferramenta ou mídia é apresentada por Priscila e cada membro da
equipe assume a responsabilidade por uma delas, da forma que se segue: Facebook com Japa
Crazy, Instagram com Juliana, Twitter com Filipe e o Portfólio no You Tube e Flickr com
Priscila. Priscila dá dicas para o uso de cada uma das mídias, do alcance de cada uma. A
apresentação sobre o Facebook foi a mais completa e, no meu ponto de vista, coloca na mesa
o momento atual do coletivo, manifestado por Juliana nos contatos iniciais: a identidade do
Sapos e Afogados.
O objetivo da nossa página é construir uma relação mais próxima com o nosso
público.
PERSONA: É importante lembrar que devemos imprimir a personalidade do grupo
no facebook. Ali na nossa página, independente de quem está postando, quem está falando
não é a Juliana, a Priscila, A Poli, a Cacá, a Anne ou o Filipe, é o Sapos e Afogados.
Para isso devemos construir a persona do Sapos. Essa persona tem uma linguagem e
um modo próprio de se comunicar nas redes sociais, essas características devem ser
respeitadas e estarem sempre coerentes em todos os posts, ainda que os temas mudem muito,
uma vez que isso facilita a identificação e consolida a nossa imagem. (Priscila)
são as pessoas que falam, mas o Sapos, já há um indicativo do que estou falando. Talvez uma
pergunta sobre a qual devo me debruçar na análise seja: que tipo de instituição é o Sapos e
Afogados?
Sou apresentada para a equipe. Falo brevemente sobre meu projeto. Juliana considera
que devo começar as observações agora, porque assim poderei acompanhar o processo de
criação atual. No segundo semestre não sabe se terei esta oportunidade. Concordo e me
disponho a começar a observação, introduzindo a presença de Kelly como pesquisadora
participante no meu estudo, a partir da próxima semana. A princípio vou observar os ensaios
com Filipe na sexta-feira, participar das reuniões da equipe de produção e observar os ensaios
com Juliana no sábado. Kelly estará presente aos sábados. Uma reflexão sobre a questão ética
desta pesquisa em contraposição ao que comumente encontramos em outras pesquisas
acadêmicas e nas exigências da legislação que rege pesquisas envolvendo humanos, será
importante. Se considerarmos a legislação vigente, que desconsidera as particularidades das
pesquisas das áreas humana e social, o procedimento metodológico seguido aqui foi
subvertido desde já, uma vez que aqui, o respeito ao sujeito da pesquisa não está garantido
pela assinatura prévia do TCLE antes de se iniciar os procedimentos de pesquisa, mas
exatamente após a entrada no campo e a melhor compreensão, por todos os envolvidos, do
que seja uma observação participante, em ato. Sei que posso me deparar com um não em
relação à autorização de utilização dos dados coletados durante a observação, vindo de
qualquer um dos ‘sujeitos’ da pesquisa, mas esse é o objetivo da restituição nesse tipo de
pesquisa: submeter e discutir com os interessados o que foi levantado. Assim, o “contrato” de
participação na pesquisa, é construído e reconstruído a cada encontro no campo e a cada
momento de restituição.
Cadê eles?
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Junto desses objetivos também trouxe comigo, fresca na memória, toda a constatação
teórica de que a participação dos usuários da saúde mental na produção de conhecimento
científico ainda é muito pequena no Brasil, que a construção da autonomia, do
empoderamento e a horizontalização das relações no campo da saúde mental continua sendo
um desafio cotidiano, experimentado semanalmente na oficina de rádio do CCSP.
Aos poucos fui entendendo mais sobre o modo de funcionar do Sapos, fiquei sabendo
que havia um ator que participava das reuniões de produção, mas que não estava presente há
algum tempo, O Elon Rabin, que os demais atores participam de diferentes momentos da
produção que acontecem fora dessa reunião, como a aquisição de materiais para os
espetáculos e a discussão sobre a questão financeira do coletivo. Além disso, fui
compreendendo um pouco mais sobre os diferentes momentos e espaços de um grupo de
teatro, como a produção, a criação e o espetáculo em si; que atores de grupos de teatro não
costumam participar da produção, o que os protege, de certa forma, do stress inerente a essa
atividade e que no Sapos, em especial, isso é importante devido à fragilidade emocional dos
atores. As dificuldades ou o sofrimento mental de cada um dos atores não é negado porque
deixou-se o vínculo com a assistência, mas também não é o ponto de partida das relações.
Parece tudo muito contraditório porque o ponto de partida para a criação e existência do
coletivo é exatamente o fato de todos serem loucos. A experiência do Sapos teve origem
dentro de dispositivos substitutivos ao manicômio vinculados à rede de saúde mental de BH,
um dos critérios para atuar no Sapos é ser louco/diagnosticado. Mas, por outro lado, no
cotidiano do coletivo, o ponto de partida para as relações não é o diagnóstico, que por sua vez
também não é negado. É o diagnóstico entre parênteses do Baságlia.
No meu primeiro encontro com os atores, me apresento e falo um pouco sobre meu
projeto. Edmundo fala comigo: “nós somos uteis e não somos uteis. Você vai ver que somos
bons artistas, tanto no serviço como fora”. Os ensaios começam sempre com uma roda em que
todos os presentes participam, meditam em pé, trocam ideias e de onde pode surgir um tema
ou “palavra do dia” que inspira toda a dança e movimentos. Algumas vezes Juliana joga um
aroma em todos nós, que depois fiquei sabendo ser um chá. As primeiras palavras sobre o
espetáculo veem de Juliana: “travessia, dança e pedras”. Edmundo completa: ‘caminho
repleto de cruz, caminho repleto de morte, caminho repleto de amor”. E Juliana continua:
“quando falamos de travessia, estamos falando desse movimento. A palavra do dia é cisco”.
Passam para a meditação em pé, com a leitura do texto Voltar à Terra, do livro “Meditação
andando - guia para a paz interior”, de Thich Nhat Hanh:
Juliana conta que algumas imagens que trouxe hoje foram inspiradas em oficinas dos
atores com Filipe observadas por ela, outras ela trouxe como provocação.
Edmundo sugere uma imagem em que Ludmila desamarra a pedra que Vivi arrasta
amarrada no pé e saiam juntas.
Juliana pede que tragam “fotos antigas, que dizem da nossa travessia, dessa trajetória”
inspirada em postagens de Jaqueline no Facebook, que depois foram retiradas por ela mesmo.
Para Vivi pergunta “que mulher é essa? Como podemos transformar? ”
Nesse primeiro dia de observação não soube o que dizer na roda final. Eram muitas
informações. Talvez a questão principal fosse exatamente o que observar ou como observar.
Precisava de um tempo para processar o que vi.
No segundo encontro sou apresentada a eles novamente, por Filipe. Participo da roda
inicial e do aquecimento. Eles se apresentam para mim e seguem mostrando fotos que
trouxeram para o ensaio, documentos de identidade ou contando de sua cidade de origem, da
origem dos nomes de família, do início da experiência com o teatro. Conversam um pouco
sobre a herança paterna e materna presente nos sobrenomes. Filipe os convida para o trabalho
corporal, vocal e de construção do roteiro. Edmundo acha que precisa ter um texto, “será que
vai ter uma pedra no meio do caminho? A pedra é menos que o mundo, mas incomoda”.
Mas, não entendo nada de teatro. E as perguntas que me veem giram em torno do
porquê dessa peça, qual o nome dela, Caminho ou Caminhos? Como as cenas vão se tornar
uma peça? A princípio eu procurava por uma peça de teatro com um roteiro pré-estabelecido a
ser seguido. Me pregaram uma peça! É um espetáculo de dança-teatro. A proposta do
espetáculo não estava pronta, ela seria construída coletivamente entre os atores e todos os
participantes do coletivo.
Imagens vão surgindo e compondo o que todos ali chamam de partitura, termo que
para mim, até então, era sinônimo de texto musical. Assim como não entendo nada do texto
musical, também não conseguia entender como aquelas “imagens” corporais se tornariam
cenas e ganhariam sentido, até perceber que a costura entre cada cena se dava pelo olhar dos
diretores e dos próprios atores, num movimento contínuo. A construção é coletiva, numa
relação de muita confiança entre todos e sempre a partir das deixas ou de sutilezas trazidas
pelos atores. O que é da ordem do delírio atravessa as cenas, mas não se cristaliza como
“doença”, traduzindo-se em ato criativo capaz de produzir encantamentos em quem assiste.
Fico impactada com isso porque desde o início me chamou muito a atenção a
capacidade de entrega às cenas propostas para ela, e de transmitir quase de imediato, uma
interpretação tão verdadeira que me fazia esquecer que estava no campo teatral, o que para
mim deveria ser o parâmetro para qualificar um bom ator/atriz profissional. Essa impressão
também é transmitida pelos demais atores, o que me traz à tona depoimentos comuns em
entrevistas com atores sobre a realização de 'laboratórios' antes de se entregarem a um
personagem. O que me parece é que o Sapos é o laboratório, ou seja, o processo de criação
parece se dar a partir da própria experiência dos atores com a loucura, ou da capacidade que
essa experiência traz (ou seria privilégio? Ou necessidade?) de criar a própria realidade. Em
um dos dias de trabalho sob condução de Japa Crazy, onde experimentaram a técnica de
improvisação chamada Viewpoints, pude observar como os atores se entregaram aos
comandos dela gradualmente, construindo improvisações. Ainda não consegui encontrar a
palavra que melhor descreve esses momentos: entrega, concentração, envolvimento. É
maciço! É um dom da psicose, ao se colar no Outro como objeto? Eles se transportam de tal
forma para o que está sendo conduzido, a proposta é incorporada por eles de tal forma que
fazem parecer cenas ensaiadas inúmeras vezes e não uma improvisação. São experts na arte
de criar, mesmo que isso às vezes traga algum tipo de sofrimento associado.
191
Autonomia em ato
Os diretores parecem pontes que ligam as pistas, ordenam as pistas ou o que emerge
delas como criação, conduzindo a um sentindo: Dos Delírios ao Dê Lírios.
E é nesse processo de criação que parece emergir uma autonomia, que me parece
semelhante ao processo de produção de autonomia proposto por Castoriadis.
Meu primeiro insight a esse respeito aconteceu no ensaio do dia 18/03, sob condução
de Filipe e que vou transcrever abaixo:
Jac dançando Rolling Stones (I can't get no): 'não sei se nasci de uma pedra ou se uma
pedra nasceu de mim; se nasci de Mick Jagger ou Mick Jagger nasceu de mim'. Minha avó era
Ernesta Bertolini, do lar. Meu avô Manoel Gonçalves Lima, mestre de obras. Coloquei meu
nome Jac Bertolini em homenagem a ela'. Todos entram dançando e ao final jogam pedra
nela. Jaqueline sugere sairem correndo: 'no ocidente as mulheres correm, no oriente é que elas
morrem. As mulheres aqui não caem e morrem'. Cansada.
Filipe: vc falou que é fumante... - Jac: atrapalha, né - você precisa buscar estratégias
para poupar sua energia, fala pausada, mais pausas, sem as pessoas saberem que está cansada.
Lídia, balança esse cabelo lindo! Emilha, solta esse quadril, tem um quadril aí!
192
Jac: não sei se falo. Emilha: acho que deve. Essa coisa de família é legal. As pessoas
vão lembrar das suas avós. Filipe: importante para as pessoas saberem que você escolheu o
sobrenome feminino da família, sua trajetória.
Jac: entrar Mick Jagger faz assim com a peça (movimento ascendente com os braços),
tá tudo muito assim, morno.
Filipe: e a parte da pedra, da mulher que sai correndo, que não se deixa atingir.
Emilha: traz frases com pedra e lê - Jac: acha que está muito grande - Filipe: pede a
ela que espere, porque “vamos construir a partir do material que ela trouxer”. Emilha, é
importante você saber a frase final e aí improvisa as outras.
Emilha: 'atire a primeira prece quem nunca errou'. Pede ajuda para o trabalho
corporal; 'tô sem saber o que fazer com meu corpo'.
Filipe: vamos mexer esse corpicho antes de ver o texto. Você pediu umas aulinhas de
dança. Filipe conduz Emilha numa dança pessoal.
Filipe propõe uma 'Dança pessoal' no escuro! Emilha: difícil demais!' Filipe: você
melhorou demais! Você ficava aqui (mostra os ombros encolhidos, curvados). Emilha: é, mas
é isso mesmo. Filipe: é um processo, todos estamos em processo. Passam a cena mais uma
vez - Filipe sugere que ela dance até se ajoelhar no chão, de cabeça baixa, aí levanta o tronco
e faz a fala - Emilha pergunta se a música vai ser essa. Filipe: tem uma pessoa fazendo a
trilha. Ele tem essas referências, mas não sei como vai ser. Vai entreagr no início de abril.
Emilha: eu sou pedra, pedrinha, pedregulho, pedreira...... Filipe: gostei demais! Emilha:
fiquei mais independente
Filipe: amanhã a gente apresenta prá Ju o que a gente construiu até aqui. Você tem
material Emilha, você já trouxe coisa nova - Emilha: eu precisava disso tudo por escrito -
Filipe: você vai ter.
Lídia : dança com o véu que ela mesmo trouxe - Filipe vai trazer o filó - tem a
memória dela com o filó - Lidia: esse aqui tá pequeno - Filipe pede apenas um pouco mais de
delicadeza - Lidia concorda e acha que foi conseguindo isso mais para o final - Filipe troca a
música - você trouxe movimentos que você fez da 1ª vez, no ano passado, na 1ª oficina que eu
dei no Sapos, dançou com o filó há 7-8 meses atrás - é incrível, tem uma memória corporal
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fantástica - Lidia pede a mesma música - Filipe: a música diferente é para você trabalhar a
possibilidade do seu corpo, você tem isso - Lidia quer experimentar entrar com o véu -
Filipe: experimenta o peso, tamanho, textura, tempo que ele cai quando é jogado e como afeta
seu corpo quando cai.
A princípio, o discurso do outro é que define a existência do sujeito, fala pelo sujeito,
define para ele o que é a realidade e por onde passa seu desejo. O sujeito então, se apropria do
discurso do Outro e o ressignifica, de acordo com sua própria verdade, que está sempre
relacionada a uma verdade que o ultrapassa, porque está enraizada na sociedade e na história.
Autonomia individual e autonomia social são dois lados de uma mesma moeda;
separá-las apenas nos ajuda a compreender a constituição da autonomia, uma vez que uma
sociedade autônoma é formada por sujeitos autônomos e são eles que constroem o projeto,
político e coletivo, de uma sociedade autônoma (Souza, 2000; Passos, 2006). “A autonomia é
um trabalho intersubjetivo, coletivo e social que resulta da possibilidade de construção de
instituições que favoreçam a autonomia da própria sociedade” (Afonso, 2011, p.459). A
autonomia social pode ser vista em uma sociedade que é capaz de auto instituir, de forma
explícita e consciente, suas próprias leis e seus modos de funcionar, com liberdade e
reflexividade (Castoriadis, 1998; Souza, 2000), sendo essas últimas "objetos e objetivos de
sua atividade instituinte" (Castoriadis, 1998, p.7). Isso só é possível numa sociedade
autônoma, cujos sujeitos autônomos podem questionar suas instituições e, em uma atividade
instituinte, produzir novos sujeitos autônomos. (Castoriadis, 1993, 1998)
Um “indivíduo autônomo" não significa um santo nem significa um homem
perfeito; significa simplesmente um homem capaz de criticar seu pensamento, suas próprias
ideias. A autonomia consiste em controlar os desejos e saber que os tem. Quando falamos de
autonomia refere-se a algo que é análogo à capacidade de criticar seu próprio pensamento, a
faculdade de refletir, de retornar sobre o que alguém pensou e ser capaz de dizer: "penso isso
porque me convence". Tais indivíduos não podem existir se a sociedade não os produz; ou
seja, se não os ensina a serem verdadeiramente livres no sentido descrito, uma vez que
somente tais indivíduos podem configurar uma sociedade autônoma. Está aí a ideia geral
(Castoriadis, 1993, p. 6-7, tradução da autora).
A autonomia coletiva pressupõe uma sociedade onde se depreende a existência de
garantias político-institucionais e o acesso a informação suficiente e confiável que conduza à
possibilidade efetiva de participação em processos decisórios, em igualdade de condições.
(Souza, 2000).
“Em discussão teórica com Regina, no dia 13/05, sexta-feira, ainda de ressaca após o
afastamento da presidenta do nosso país de forma abrupta e incoerente, discutíamos sobre a
autonomia, questão central do trabalho de doutorado da Regina e de como observávamos
estes aspectos em nossas observações e convivência com o grupo. Relatei uma situação que
vivenciei nos bastidores do espetáculo, no dia 08/05, quando levei um própolis sem álcool e
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um chá de hortelã para alguns atores que apresentaram início de gripe no dia anterior.
Edmundo interessou-se por tomar o própolis e eu disse a ele que própolis era um anti-
inflamatório natural. Imediatamente ele disse que não podia tomar anti-inflamatórios porque
era alérgico. Eu e Luciana Mendes informamos a ele que não se tratava de um medicamento
alopático e sim de um produto natural, feito por abelhas. Ele foi indagado se queria ou não
fazer o uso, mas ao final aceitou. Entretanto, no meio da apresentação, quando eu coordenava
os bastidores junto a equipe do grupo, ele me chama discretamente em um local mais
reservado e me diz nervoso que sua boca estava inchada por causa do própolis. Peço para ver
com calma em um local mais iluminado e vejo que não há inchaço. Imediatamente informo
isso a ele e peço para ele se acalmar porque parecia estar tudo bem. Ele diz não saber se
conseguiria finalizar o espetáculo. Eu o encorajo e digo que sim. Ele iria conseguir. Ele confia
em minha fala. Pede desculpas e diz que a culpa não é minha. Que ele tomou porque quis.
Naquele dia, Edmundo estava aparentemente mais agitado. Disse que havia passado a noite no
SUP e que não estava muito bem. Comunico ao Filipe e no fim da peça, que ele fez até o
final, comunico também a Juliana e a Lu Mendes o ocorrido. Naquele momento acredito ter
conseguido vivenciar plenamente a sensação da doença estar em parênteses, como nos disse
Basaglia. Eu não me "preocupei" com o diagnóstico de esquizofrenia paranóide e sim com o
ator que devia finalizar o espetáculo maravilhosamente, como havia feito o tempo todo”
(Kelly).
Parceria, coparticipação
“Esta foi uma questão discutida entre mim e Regina algumas vezes. A maneira como
nós fomos convidadas a participar da construção e execução deste espetáculo. Viramos
sapônicas. Lembro a citação de Deleuze e Guatarri no Anti-édipo quando eles dizem que se
misturaram tanto que já não era possível dizer quem era quem. Fomos absorvidas pela equipe.
Participamos. Fomos contra-regras. Auxiliamos nos camarins, com o figurino, com os
convidados, com o lanche, com a organização dos objetos cênicos, com a organização dos
bastidores, com as orientações dos atores, os "puta-merda" , seguimos religiosamente. Nos
misturamos a tal ponto que ocorreu duas vezes, uma com Regina e uma comigo, a sensação
de estarmos "sozinhas" nos bastidores em determinados momentos. Da minha parte posso
dizer que no último dia do espetáculo eu fiquei realmente sozinha atrás do palco. Tive o
auxílio da Poliana e do Filipe no momento em que teríamos que produzir a chuva, com
195
exceção desse momento, coordenei todas as outras ações. Fomos convidadas a entrar no palco
e receber os aplausos do público. Fizemos parceria. Participamos” (Kelly).
O colocar a doença entre parênteses é outro aspecto que será importante retomar por
nós, porque parece ser o que marca as relações. O ponto de partida não é o diagnostico ou o
transtorno mental.
“Participei apenas um dia dessa oficina. E como não poderia deixar de ser, fiquei
extremamente emocionada com os relatos que ouvi dos atores do grupo, sobre seu próprio
adoecimento, pelo profissionalismo pelo qual conduziam as atividades da oficina e pelo
retorno do público que participou que demonstrou bastante satisfação com a experiência e
com o aprendizado proporcionado a partir das atividades propostas pelos atores. Percebi
autonomia e empoderamento nesta atividade. Os atores criavam, produziam as cenas e
propunham aos participantes que executavam junto deles. Edmundo relatou emocionadamente
a sensação terrível que vivenciou em aguardar na fila do eletrochoque para ser o próximo a
receber esta intervenção, quando esteve internado em hospital psiquiátrico. Rogério disse que
estava na faculdade, era professor quando teve o primeiro surto de esquizofrenia e de como
sua vida se transformou a partir deste episódio e de como se viu impedido de realizar suas
atividades e também a solidão. Alessandra diz que ficou sete anos sem sair do próprio quarto,
com quadro de desnutrição absoluto. Vivi diz de sua vida "normal" e de ter ocupado cargo de
gestão na política de Belo Horizonte antes do surto psicótico que acredita ter tido após a
morte de um filho. Todos ressaltam como a experiência com o grupo de teatro Sapos e
Afogados os trouxe de volta a possibilidade de viver de forma mais leve, mais alegre, mais
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comprometida com a criatividade e a potência. "Hoje eu sou uma louca feliz" é o que diz
Alessandra ao final de sua fala” (Kelly).
Empoderamento
Estratégia que permite que as mulheres, e outros grupos marginalizados, aumentem
seu poder, isto é, que tenham acesso ao uso e controle dos recursos materiais e simbólicos,
ganhem influência e participem na mudança social. Isto inclui também um processo no qual
as pessoas tomem consciência de seus próprios direitos, capacidades e interesses, e de como
estes se relacionam com os interesses de outras pessoas, com o objetivo de participar desde
uma posição mais sólida na tomada de decisões e estar em condições de influir nelas
(Murguialday, Armiño & Eizagirre, 2000, p.2, tradução da autora)
perspectiva positiva dos sujeitos e de suas potencialidades, onde eles deixam o lugar
de objetos da intervenção para assumir o de sujeitos da sua própria história, em detrimento da
ênfase nas limitações relacionadas a um provável diagnóstico ou deficiência, exigindo do
profissional uma disposição ao trabalho em parceria com os usuários, numa relação não
hierarquizada e na qual abre mão do poder supostamente conferido pelo conhecimento
técnico e científico, para reconhecer o saber advindo das experiências culturais e de
sofrimento psíquico dos usuários.