Tese - Experiências Autonomistas em Saúde Mental - Possibilidades de Empoderamento

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REGINA CÉLI FONSECA RIBEIRO

EXPERIÊNCIAS AUTONOMISTAS EM SAÚDE MENTAL:


POSSIBILIDADES DE EMPODERAMENTO

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em


Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais,
como requisito parcial para obtenção do título de
Doutora em Psicologia.
Orientadora: Profª Drª Izabel Christina Friche Passos
Área de Concentração: Psicologia Social
Linha de Pesquisa: Cultura, Modernidade e
Subjetividade.

Belo Horizonte
2017
150 Ribeiro, Regina Céli Fonseca
R484e Experiências autonomistas em saúde mental [manuscrito]
2017 : possibilidades de empoderamento / Regina Céli Fonseca
Ribeiro. - 2017.
196 f.: il.
Orientadora: Izabel Christina Friche Passos.

Tese (doutorado) - Universidade Federal de Minas Gerais,


Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas.
Inclui bibliografia

1.Psicologia – Teses. 2.Autonomia (Psicologia) - Teses.


3.Saúde mental - Teses. I. Passos, Izabel Christina Friche . II.
Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de
Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.
Aos meus filhos, Bárbara e Leonardo.
AGRADECIMENTOS

Às usuárias, usuários e equipe do Centro de Convivência São Paulo por sacudirem


minhas certezas acadêmicas.

Às atrizes, atores e equipe de produção do Núcleo de Pesquisa e Criação Sapos e


Afogados, que me acolheram no “breju” com tanta generosidade e confiança. Vocês me
ensinaram que era possível afogar e nascer outra.

Ao amigo Alessandro Tomasi, pelo apoio e parceria na construção do Louca Sintonia


e desta pesquisa. É muito bom ter com quem dialogar no dia-a-dia da prática docente.

A Kelly Dias Vieira, por atravessar o “breju” de mãos dadas comigo.

A Izabel C. Friche Passos, minha querida orientadora, por compartilhar seu saber com
generosidade, por me permitir conviver com sua leveza e rebeldia dentro e fora da
Universidade.

À Rádio FM UFMG Educativa por abrir suas portas para um feliz encontro de práticas
e ideias, em especial ao Pacífico, Luiza Glória, Alessandra Dantas e Danielle Pinto.

Às alunas e alunos da disciplina Prática Clínica em Terapia Ocupacional II pela


parceria na construção do Louca Sintonia.

A Cláudia M. Filgueiras Penido e ao Eduardo Mourão Vasconcelos pelas


contribuições na qualificação e por aceitarem estar comigo outra vez na banca de doutorado.

Ao Gilles Monceau e a Carla Andrea Silva Lima por terem aceitado contribuir com
esta tese participando da banca de defesa.

À Profª Cláudia Mayorga, pela oportunidade de reencontrar o pensamento crítico e


reflexivo.

A Bárbara e ao Léo que continuam me ensinando que ser mãe é um aprendizado diário
de confiança, desprendimento e amor.

A minha mãe, irmã e irmão pelo apoio, pela torcida e pelo respeito ao meu tempo de
produção.
A Maria Aline, que de colega passou a amiga durante o percurso do doutorado.
Obrigada por compartilhar seu saber e competência, testemunhados com afeto e discrição pelo
Marcelo.

Aos colegas do L@gir: Isabella, Rinaldo, Fábio, Maristela, Ana Luiza, Flávia, Cláudia
Eliza, Margarete e Breno. Muito obrigada pelas contribuições e pelo incentivo.

A Audrey Ivanenko, Jane Laiz, Tânia Hirochi, Dolores Lemos, Érika Dittz, Adriana
Valladão, Vinícius Caliman e Bruno Bechara, amigas queridas e amigos queridos que me
incentivaram, torceram por mim e me emprestaram seus ouvidos.

A Lívia de Castro Magalhães, Luci Fucaldi T. Salmela e John Salmela (in memorian)
por acreditarem e me incentivarem sempre.

Ao Departamento de Terapia Ocupacional e à UFMG por oferecerem as condições


para que eu pudesse me dedicar ao doutorado.
RESUMO

Ribeiro, Regina Céli Fonseca (2017). Experiências autonomistas em saúde mental:


possibilidades de empoderamento. (Tese de doutorado). Programa de Pós-Graduação em
Psicologia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade federal de Minas
Gerais, Belo Horizonte.

Autonomia e empoderamento são princípios e metas radicais na Atenção Psicossocial. São


conceitos polissêmicos e aparecem na literatura do campo da atenção psicossocial de forma
independente e muitas vezes como sinônimos. A concepção de autonomia, inspirada na
construção de Castoriadis encontra-se neste trabalho com a noção de empoderamento
proposta por Eduardo Mourão Vasconcelos, por meio da reflexividade da participação
próprios aos processos políticos emancipatórios. Trata-se de um estudo qualitativo, no
formato de uma pesquisa intervenção, orientada pelo referencial da Análise Institucional (AI)
francesa, que defende uma nova forma de pensar e exercer a ciência ao entender que pesquisa
e intervenção acontecem juntas, assim como a produção do objeto e do sujeito do
conhecimento, valorizando tudo o que decorre da posição do investigador nas relações sociais
e na rede institucional. O objetivo desta pesquisa foi estudar o processo de construção de
experiências de caráter autonomista no âmbito da saúde mental, analisando as possibilidades e
os desafios de produção real de autonomia e empoderamento em uma oficina de rádio que
produz o programa "Louca Sintonia" e no grupo de teatro 'Núcleo de Pesquisa e Criação
Sapos e Afogados". Os métodos e técnicas de pesquisa envolveram as ferramentas e
dispositivos conceituais e analíticos da AI, como os analisadores, a análise da implicação e da
sobreimplicação e a restituição, bem como a observação participante, a entrevista, a pesquisa
documental e os registros do caderno de campo da pesquisadora. O desenrolar do processo de
pesquisa conduziu a experiência de construção do programa de rádio Louca Sintonia para o
diálogo com a concepção de empoderamento, da qual se destacaram três estratégias: a luta
contra o estigma, as narrativas pessoais e a militância. Além do potencial empoderador a
experiência tem produzido efeitos analisadores e instituintes na formação em saúde mental A
característica autonomista do Sapos e Afogados de sustentar uma independência no vínculo
com rede de saúde mental de Belo Horizonte e a natureza do seu processo criativo foi o que
chamou Castoriadis para o diálogo na segunda fase do estudo. Essa práxis autonomista,
porque essencialmente criadora, confere nomeação e um novo lugar social que confronta o
estigma social relacionado à loucura, além de se reverter em apoio social, afeto e
solidariedade.

Palavras-chave: Autonomia. Empoderamento. Saúde Mental. Análise Institucional.


ABSTRACT

Ribeiro, Regina Céli Fonseca (2017). Autonomist experiences in mental health: possibilities
of empowerment. (Doctoral thesis). Graduate Program in Psychology, Faculty of Philosophy
and Human Sciences, Federal University of Minas Gerais, Belo Horizonte.

Autonomy and empowerment are radical principles and goals in Psychosocial Care. They are
polysemic concepts and appear in the literature of the field of Psychosocial Attention
independently and often as synonyms. The conception of autonomy, inspired by the
construction of Castoriadis, dialogues with the notion of empowerment proposed by Eduardo
Mourão Vasconcelos, through reflexivity and participation proper to emancipatory political
processes. This is a qualitative study, in the form of an intervention research, guided by the
French Institutional Analysis (AI) framework, which advocates a new way of thinking and
exercising science by understanding that research and intervention take place together, as well
as the production of the object and subject of knowledge, valuing everything that stems from
the researcher's position in social relations and in the institutional network. The objective of
this research was to study the process of constructing autonomist experiences in the field of
mental health, analyzing the possibilities and the challenges of the real production of
autonomy and empowerment in a radio workshop that produces the program " Crazy Tuning"
and in the group of theater " Research and Creation Center Frogs and Drowners". Research
methods and techniques involved the conceptual and analytical tools and devices of the
Institutional Analysis, such as analyzers, analysis of implication and overimplication and
restitution, as well as participant observation, interview, documentary research, and records in
the field notebook of the researcher. The development of the research process led to the
construction of the “Crazy Tuning” radio program for dialogue with the conception of
empowerment, which highlighted three strategies of empowerment: the fight against stigma,
personal narratives of life with mental disorder and militancy. In addition to the
empowerment potential, the experience has produced analyzing and instituting effects on the
academic formation in mental health. The autonomous characteristic of “Frogs and
Drowners” and the nature of its creative process was what made possible the dialogue with
Castoriadis in the second phase of the study. This autonomist praxis, because essentially
creative, confers appointment and a new social place that confronts the social stigma related
to madness, besides reverting to social support, affection and solidarity.

Key words: Autonomy. Empowerment. Mental Health. Institutional Analysis.


RESUMÉ

Ribeiro, Regina Céli Fonseca (2017). Expériences autonomistes en santé mentale: possibilités
d'empowerment. (Thèse de doctorat). Programme d'Études Supérieures en Psychologie,
Faculté de Philosophie et Sciences Humaines, Université Fédérale de Minas Gerais, Belo
Horizonte.

L'autonomie et l'empowerment sont des principes et des objectifs radicaux dans les soins
psychosociaux. Ce sont des concepts polysémiques et apparaissent dans la littérature du
domaine de l'attention psychosociale de manière indépendante et souvent comme synonymes.
La conception de l'autonomie, inspirée par la construction de Castoriadis, dialogue avec la
notion d'empowerment proposée par Eduardo Mourão Vasconcelos, par réflexivité et
participation propre aux processus politiques émancipateurs. Il s'agit d'une étude qualitative,
sous la forme d'une recherche d'intervention, guidée par le cadre de l'Analyse Institutionnelle
française (AI), qui préconise une nouvelle façon de penser et d'exercer la science en
comprenant que la recherche et l'intervention se déroulent ensemble, ainsi que la production
de l'objet et du sujet de la connaissance, valorisant tout ce qui découle de la position du
chercheur dans les relations sociales et dans le réseau institutionnel. L'objectif de cette
recherche était d'étudier le processus de construction d'expériences autonomistes dans le
domaine de la santé mentale, en analysant les possibilités et les défis de la production réelle
d'autonomie et d'empowerment dans un atelier de radio qui produit le programme "Folle
Réglage" et dans le Groupe de théâtre "Centre de Recherche et de Création Grenouilles et
Noyés ". Les méthodes et techniques de recherche impliquaient les outils et dispositifs
conceptuels et analytiques de l'Analyse Institutionnelle, tels que les analyseurs, l'analyse des
implications, l'analyse des surimplications et la restitution, ainsi que l'observation des
participants, l'entrevue, la recherche documentaire et les enregistrements sur le carnet de
champ du chercheur. Le développement du processus de recherche a conduit à la construction
du programme de radio " Folle Réglage" pour le dialogue avec la conception de
l'autonomisation, qui a mis en évidence trois stratégies d'autonomisation: la lutte contre la
stigmatisation, les récits personnels de la vie avec troubles mentaux et le militantisme. En plus
du potentiel d'autonomisation, l'expérience a permis des effets d'analyser et d'instituant sur la
formation académique en santé mentale. La caractéristique autonome des «Grenouilles et des
Drowners» et la nature de son processus créatif ont permis de dialoguer avec Castoriadis dans
la deuxième phase de l'étude. Cette praxis autonomiste, essentiellement créative, confère un
rendez-vous et un nouveau lieu social confronté à la stigmatisation sociale liée à la folie, en
plus de revenir au soutien social, à l'affection et à la solidarité.

Mots clés: Autonomie. Empowerment. Santé Mentale. Analyse Institutionelle.


LISTA DE SIGLAS

AI Análise Institucional
ASUSSAM Associação dos Usuários dos Serviços de Saúde Mental
AT Acompanhante Terapêutico
CAC-SP Centro de Apoio Comunitário do bairro São Paulo
CCSP Centro de Convivência São Paulo
CERSAM Centro de Referência em Saúde Mental
CILA Comissão Interna da Luta Antimanicomial
CNSM-I Conferência Nacional de Saúde Mental Intersetorial
FOFO Fórum de Formação em Saúde Mental de Minas Gerais
GAM Guia da Gestão Autônoma da Medicação
PASME Programa de Extensão em Atenção à Saúde Mental
PNH Política Nacional de Humanização
PROEX Pró Reitoria de Extensão
SRT Serviço Residencial Terapêutico
SUS Sistema Único de Saúde
TCLE Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
UFMG Universidade Federal de Minas Gerais
Sumário
1 O COMEÇO DO PERCURSO ................................................................................... 14

1.1 Contexto da pesquisa ..............................................................................................................17

2 EMPODERAMENTO E AUTONOMIA: PRÁXIS E REFLEXIVIDADE NA


BUSCA POR TRANSFORMAÇÃO .......................................................................... 21

2.1 Bases para a compreensão do uso da noção de empoderamento no campo da saúde mental .21

2.1.1 A apropriação da noção de empoderamento pelo campo da saúde mental no Brasil ...............29

2.1.2 Conceitos básicos que orientam as estratégias de empoderamento em saúde mental ............33

2.2 O empoderamento como convocação à autonomia ................................................................39

2.3 A autonomia em Castoriadis: um projeto de diálogo com a noção de empoderamento ...........44

3 TRILHAS PARA A SUSTENTAÇÃO DE UM PERCURSO ................................... 51

3.1 Ferramentas de intervenção e análise utilizadas neste estudo.................................................52

4 LOUCA SINTONIA: O PROGRAMA MAIS LÚCIDO DA CIDADE ...................... 64

4.1 Primeira edição do programa Louca Sintonia: Na trajetória entre o ensino e a pesquisa, o
empoderamento começa a dar sinais ......................................................................................66

4.2 Segunda edição do programa Louca Sintonia: analisar a implicação para manter a sintonia e a
lucidez ....................................................................................................................................74

4.2.1 O narrar-se ...............................................................................................................................76

4.2.2 Protagonismo no processo coletivo ..........................................................................................77

4.2.3 Louco cidadão ..........................................................................................................................78

4.3 Terceira edição do programa Louca Sintonia: desocupar a palavra e suas consequências ........80

4.3.1. O Seminário de avaliação: se a avaliação é coletiva por que as supervisões não podem ser
também? ................................................................................................................................84

4.4 Quarta edição do programa Louca Sintonia: sobre a importância de se retomar as condições de
informação, reflexividade e escuta para fortalecer a militância rumo à autonomia e ao
empoderamento .....................................................................................................................93

4.5 Considerações gerais sobre a experiência de construção do programa Louca Sintonia ............97
4.6 Dialogando com outras experiências radiofônicas de caráter autonomista ............................100

5 NÚCLEO DE CRIAÇÃO E PESQUISA SAPOS E AFOGADOS .......................... 110

5.1 A cortina se abre: que lugar é esse? Que pessoas são essas? Que pesquisador é esse? .........110

5.2 Um “teatro perturbado”: o percurso do Sapos e Afogados na trilha da autonomia e do


empoderamento ...................................................................................................................119

5.3 O cuidado como expressão de uma outra relação possível com a loucura .............................133

5.4 A trombada com a potencialidade criadora na loucura ..........................................................134

5.5 O processo de criação do espetáculo Caminho – autonomia em ato......................................142

5.5.1 Criação e autonomia ..............................................................................................................147

5.6 Se delirar, delirou! - Empoderamento como consequência natural da conquista da autonomia


158

6 O COMEÇO DO FIM OU O FIM DE UM COMEÇO ............................................. 162


REFERÊNCIAS ............................................................................................................... 171
APÊNDICE A – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido .................................... 181
APÊNDICE B – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido - Autorização para
divulgação do nome ................................................................................................... 182
APÊNDICE C – Texto da restituição apresentado ao Núcleo de Pesquisa e Criação Sapos
e Afogados .................................................................................................................. 183
Toda elucidação que empreendemos é finalmente interessada, é
para nós em sentido efetivo, porque não existimos para dizer o
que é, mas para fazer ser o que não é (ao qual o dizer daquilo
que é pertence como momento). (Castoriadis, 1982, p.197)
14

1 O COMEÇO DO PERCURSO

Iniciar este estudo me fez retomar alguns aspectos anteriores da minha formação e da
minha vida acadêmica e avançar em outros.

A graduação em Terapia Ocupacional (de 1981 a 1984) colocou-me em contato com o


estudo da filosofia da práxis, como um dos fundamentos da profissão. Associado a esse
fundamento e, muitas vezes, em contraposição à teoria que o sustenta, aconteceu o encontro
com as contribuições positivistas herdadas da Terapia Ocupacional dos Estados Unidos,
relacionadas à reabilitação física do pós-guerra, e com as teorias psicodinâmicas, em especial
as de base psicanalítica.

O percurso histórico da profissão e a busca por seu reconhecimento social e científico


no campo da saúde acabaram por aproximá-la do positivismo que marcou a história da
ciência, por mais que esta não seja a única influência.

Desde o meu último ano de graduação, minha opção foi pela Terapia Ocupacional em
saúde mental - nomeada, naquela época, Terapia Ocupacional aplicada à psiquiatria - de base
psicanalítica. Entendo hoje que a minha formação em psicanálise me possibilitou apostar no
envolvimento do sujeito na construção da própria vida, em contraposição ao modelo
biomédico e de influência norte-americana das demais áreas da Terapia Ocupacional.

A escolha pela carreira docente na universidade e pela maternidade me levou a deixar


a clínica em consultório e suspender a formação psicanalítica, reencontrando seus derivados
nos projetos de extensão, nas disciplinas do curso de Terapia Ocupacional específicas da área
de saúde mental e nas supervisões de estágios curriculares em hospitais, clínicas psiquiátricas
e em serviços ligados à rede substitutiva de saúde mental, esses últimos desde 1993.

Todos sabemos que no contexto da Reforma Psiquiátrica as atividades, agora


desenvolvidas no dispositivo nomeado como oficinas terapêuticas em saúde mental, são
retomadas enquanto um dos principais operadores de mudança, seja em sua vertente cultural,
artística, artesanal, seja na de geração de renda, de expressão, sempre buscando favorecer a
contratualidade social (Ribeiro, 2004). Como era de se esperar, esse movimento tira do lugar,
no sentido de produzir questionamentos e reflexões, os terapeutas ocupacionais que até então
lutavam para serem reconhecidos por sua prática psicoterápica.
15

À exceção das atividades voltadas para geração de renda, todas as demais sempre
fizeram parte do repertório de recursos terapêuticos utilizados pela Terapia Ocupacional em
saúde mental, visando sempre à elaboração psíquica do sofrimento mental e à reinserção
social que, até aquele momento, tinha sua construção muito restrita ao setting terapêutico.
Apesar de muitas atividades já serem realizadas na rua e em espaços da cidade, a construção
de uma provável reinserção social acontecia muito mais dentro das instituições e dos
consultórios, ainda que fossem em ambulatórios ou hospitais-dia, porque esse era
tradicionalmente o limite das práticas profissionais, não só da Terapia Ocupacional, mas
também das demais profissões da área.

As angústias, decorrentes do encontro com as diretrizes ético-políticas do campo da


Atenção Psicossocial, chegam à sala de aula. Em especial as que brotam da horizontalização
nas relações de poder, do protagonismo do usuário e do novo lugar proposto para as diferentes
atividades. Mas também chegam aos serviços e aos seus profissionais, que agora se vêm
diante da possibilidade e, muitas vezes, da exigência de terem que desenvolver atividades com
seus usuários, além de clinicar, medicar e cuidar. Essa nova lógica provoca uma revalorização
e uma rediscussão sobre o lugar da ocupação no campo da saúde mental, que introduz e
ultrapassa a noção do trabalho como direito do cidadão e atinge a ideia de “desterapeutização”
do uso de atividades, com consequente introdução dos profissionais não-psi no âmbito dos
serviços substitutivos ao manicômio, em especial nos Centros de Convivência. A convivência
com artistas plásticos, musicistas, atores, artesãos e pessoas da comunidade em geral, atuando
nesses serviços, provoca uma aproximação da cidade com a loucura e vice-versa,
evidenciando a necessária parceria intersetorial com os diferentes campos da sociedade.

A proposta do centro de convivência ilustra a “dimensão sociocultural”1 da Atenção


Psicossocial (Amarante, 2007), considerada estratégica no processo da Reforma Psiquiátrica
brasileira, por promover e instigar a reflexão e a participação da sociedade no debate sobre a
loucura, a doença mental e a desinstitucionalização.

Motivada pelas questões que vinham do diálogo entre a prática profissional, a prática
docente e o serviço, e interessada em entendê-las, mas do ponto de vista do usuário, realizei
no mestrado um estudo de caso único, analisando a percepção de um paciente esquizofrênico
sobre o que são as oficinas terapêuticas (Ribeiro, 2003), quando foi possível identificar o

1
As quatro dimensões da Atenção Psicossocial propostas por Amarante (2007) são: a teórico-conceitual; a
técnico-assistencial; a jurídico-política e a sociocultural.
16

papel das oficinas como uma das ocupações diárias na vida dessas pessoas e como ponte para
novas relações sociais e para o trabalho. O envolvimento do sujeito em questão com uma
oficina de pintura possibilitou, desde uma mudança na sua rotina de vida, a partir do
compromisso assumido, até a ampliação de sua contratualidade social. Para atender ao
compromisso assumido, ele precisou se envolver em inúmeras outras ocupações, como sair da
cama e se cuidar para ir até a instituição, fazer o percurso entre sua casa e a clínica a pé,
encontrar pessoas, passar na lanchonete e fazer um lanche, conhecer novas pessoas, fazer
amigos e programar atividades com eles nos finais de semana, procurar um curso de pintura,
participar de exposições de arte, até reduzir o envolvimento com a oficina de pintura porque
queria mesmo era trabalhar e entendeu que ali ele teria muitas dificuldades para conseguir seu
sustento.

No doutorado, o interesse pelas oficinas terapêuticas e pelo ponto de vista dos usuários
permaneceram na proposta de estudar o empoderamento e a autonomia no processo de
construção com eles de um novo lugar social, desafio introduzido com o fim dos manicômios.

Algumas experiências decorrentes do ensino, da extensão e do próprio doutorado me


ajudarem a reafirmar essa escolha. A primeira delas diz respeito à coordenação de uma
disciplina de Formação Livre2, no primeiro e segundo semestres de 2014, vinculada ao
Programa de Extensão em Atenção à Saúde Mental (PASME), quando qual tive a
possibilidade de trabalhar na co-construção da disciplina em parceria com docentes de
diferentes cursos da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e com usuários da saúde
mental e representantes da Associação de Usuários e Familiares de Serviços em Saúde Mental
(ASUSSAM). Foi possível vivenciar o encontro com os usuários fora de uma relação
terapêutica, onde o diagnóstico e os sintomas já não tinham função, sendo possível identificar
potencialidades nos usuários que não seriam visíveis na situação de tratamento; pude sair do
lugar para mudar de lugar, como bem descrevem Marques, Palombini & Onocko-Campos
(2013) e Pressoto et al. (2013) em estudos de co-participação com usuários e familiares.

A segunda das experiências referidas acima diz respeito a uma revisão bibliográfica
realizada já no doutorado, sobre a participação de usuários de saúde mental na produção de
conhecimento científico (Ribeiro, Barboza & Passos, no prelo). Foi interessante observar
como ainda há um descompasso entre a lógica da horizontalização das relações de poder do

2
As disciplinas de Formação Livre são atividades curriculares de livre escolha do aluno, fora do seu curso de
origem.
17

paradigma psicossocial e a produção de conhecimento cientifico na área. Prezamos pela


autonomia, participação, protagonismo, empoderamento do usuário, mas ainda nos
autorizamos a falar por ele; nos apropriamos de seu saber, como sujeito de pesquisa, e o
deixamos de fora durante a análise dos dados e mais ainda, na elaboração da proposta de
pesquisa e na redação final dos relatórios e artigos científicos. Há um movimento, ainda
incipiente no Brasil, de grupos de pesquisa que se propõem a realizar estudos e produção de
conhecimento cientifico no campo da atenção psicossocial com a coparticipação integral de
usuários. São exemplos: os grupos liderados por Rosana Onocko-Campos com as pesquisas
relacionadas à tradução, adaptação e validação do Guia da Gestão Autônoma da Medicação
(GAM) para o Brasil (Onocko-Campos et al., 2013); por Luciane Prado Kantorski com as
pesquisas sobre avaliação de serviços que usam da Metodologia de Avaliação de Quarta
Geração (Kantorski et al., 2009); e por Eduardo Mourão Vasconcelos com estudos acerca do
protagonismo e empoderamento em saúde mental (Vasconcelos, 2003).

A última das experiências que me ajudaram a reafirmar a escolha do tema deste estudo
está relacionada ao ensino, numa disciplina curricular do curso de graduação em Terapia
Ocupacional da UFMG. Trata-se de uma disciplina prática, realizada no Centro de
Convivência São Paulo (CCSP), da rede substitutiva de Belo Horizonte, que se propôs a
intermediar uma experiência de coparticipação dos usuários na construção de um programa de
rádio, em parceria com os trabalhadores do serviço e com a Radio UFMG Educativa. Nesse
momento, durante o doutorado, eu já me envolvia com estudos e discussões sobre pesquisa
participante, pesquisa intervenção e pesquisa ação e, encontrei aí o princípio que nos foi mais
essencial naquele processo: a democratização de todas as decisões referentes ao programa de
rádio, desde seu conteúdo, nome, formato até a estética final do mesmo.

1.1 Contexto da pesquisa

O paradigma psicossocial requer uma ruptura radical com a lógica manicomial e


propõe transformações nas práticas político-assistenciais no campo da saúde mental brasileira
(Costa-Rosa, 2000; 2013; Costa-Rosa, Luzio & Yasui, 2001; Costa-Rosa, Luzio & Yasui,
2003). Estas transformações vêm acontecendo desde meados dos anos 1980, a partir da
construção de uma política de saúde mental que introduziu uma nova concepção de processo
saúde-doença, e também das práticas profissionais que passaram a ser reconhecidas em sua
18

dimensão ético-política. Essas práticas afetam ações e valores culturais e éticos (Yasui &
Costa-Rosa, 2008).

A efetivação da proposta de uma atenção psicossocial como "Estratégia", que se


realiza em redes territoriais e toma por modelo a Estratégia de Saúde da Família (Yasui &
Costa-Rosa, 2008), tem enfrentado resistências e tensões de um campo em que o modelo
tradicional – hospitalocêntrico e medicalizante - coexiste com as novas ações e rupturas
epistemológicas propostas pelos movimentos da Reforma Psiquiátrica e da Reforma Sanitária.

A participação de usuários e familiares é um traço constitutivo da construção da


Reforma Psiquiátrica brasileira, que iniciou com o movimento de trabalhadores, mas buscou
envolver usuários e familiares na definição das políticas para a área, principalmente a partir da
II Conferência Nacional de Saúde Mental que ocorreu em 1992. Consta no relatório final que
20% dos delegados eram representantes dos usuários dos serviços e seus familiares. Calcula-
se ainda que houve a participação de 20 mil pessoas em todo o processo de construção da
conferência através das 24 conferências estaduais e 150 municipais e regionais. A II
Conferência Nacional de Saúde Mental potencializou o protagonismo e organização do
movimento social nos anos que se seguiram, favorecendo a emergência e difusão das
associações de usuários e familiares (Brasil, 1994; Mângia & Nicácio, 2002; Pressoto, et al.,
2013).

O fortalecimento da defesa da participação, do protagonismo e da autonomia dos


usuários dos serviços de saúde mental também se observa na IV Conferência Nacional de
Saúde Mental, a primeira com pretensão de ser intersetorial, que ocorreu em Brasília-DF, no
ano de 2010. Segundo o relatório final, foram realizadas 359 conferências municipais e 205
regionais, com a participação de 1200 municípios. Nas três etapas, estimou-se a participação
de 46.000 pessoas (Sistema Único de Saúde/Conselho Nacional de Saúde, 2010).

Além da participação em dispositivos de controle social, usuários e familiares


passaram a participar também de pesquisas científicas no campo da saúde mental, em especial
em estudos de avaliação de serviços, na qualidade de sujeitos de pesquisa. Uma das
deliberações sobre "Formação, Educação Permanente e Pesquisa em Saúde Mental" da IV
Conferência Nacional de Saúde Mental se destaca por incluir a população na proposta de
constituição de "comunidades ampliadas de pesquisa no âmbito da rede de saúde mental",
junto a trabalhadores e gestores (Sistema Único de Saúde/Conselho Nacional de Saúde, 2010,
p.55). Ainda assim, não se observa, ao longo de todo o documento, proposições que
19

incentivem a atuação protagonista dos usuários também no campo da pesquisa. Na atualidade,


a presença deles enquanto coparticipantes na produção do conhecimento científico ainda é
incipiente (Pressoto et al., 2013; Vasconcelos, 2013a; Ribeiro, Barboza & Passos, no prelo).

Autonomia, participação e protagonismo são princípios e metas radicais na Atenção


Psicossocial (Sade et al., 2013; Costa-Rosa, 2000) e encontram-se entre os diferentes sentidos
do conceito de empoderamento (Vasconcelos, 2003, 2013a; Pinto, 2011; Fazenda, n.d.;
Carvalho, 2004b). Assim como o conceito de empoderamento, cada uma dessas noções tem
um estatuto próprio e também são multifacetadas, aparecendo na literatura do campo da
atenção psicossocial de forma independente e muitas vezes como sinônimos. Tomando como
parâmetro a nossa revisão de literatura, observamos que a maioria dos estudos considerados
como coparticipativos eram decorrentes de experiências de coparticipação em que os
pesquisadores priorizaram as noções de empoderamento e autonomia como conceitos centrais
(Ribeiro, Barboza & Passos, no prelo).

As questões que conduziram à proposta deste estudo foram: como uma oficina de
rádio, inserida em estruturas instituídas como a universidade e o serviço, poderia abrir
caminho para a produção de autonomia e empoderamento? Como levar às últimas
consequências a participação dos usuários na construção do programa de rádio, considerando
os atravessamentos representados pelo processo ensino-aprendizagem, também inerente a essa
prática? De que forma se observa a conquista de autonomia e empoderamento em
experiências como a desta oficina ou de outras experiências que acontecem no serviço? De
que forma se observa a conquista de autonomia e empoderamento em experiências que
envolvem pessoas em sofrimento mental, mas que acontecem fora do âmbito da assistência?
Quais os limites destas experiências?

Além de considerar o conceito de empoderamento como central no paradigma


psicossocial, acredito também que o conceito de autonomia não pode ser dissociado dele e
que o primeiro é consequência do segundo, apostando na ideia de que o empoderamento só
será possível se houver autonomia, o que parece encontrar sustentação quando aproximo os
dois teóricos escolhidos como fundamentação para meu projeto, Eduardo Mourão
Vasconcelos, o principal estudioso do empoderamento em saúde mental no Brasil e Cornelius
Castoriadis, considerado como o filósofo da autonomia humana, tendo dedicado sua obra à
construção de um projeto político de autonomia para uma sociedade democrática (Morin,
1998; Passos, 1992; Rodrigues, 2008; Souza, 2000; Valle, 1999).
20

Busquei assim, estudar o processo de construção de experiências de caráter


autonomista no âmbito da saúde mental, analisando as possibilidades e os desafios de
produção real de autonomia e empoderamento. Os objetivos específicos do estudo foram
delineados a partir da decisão de tomar em análise duas experiências concretas de caráter
autonomista no campo da saúde mental: uma, a oficina de rádio já mencionada e a outra, a
experiência de um grupo de teatro que vem se consolidando no espaço cênico da cidade e do
país, o Núcleo de Pesquisa e Criação Sapos e Afogados. Os objetivos perseguidos foram:
analisar os atravessamentos institucionais e de poder nas duas experiências; identificar a
capacidade autogestiva dessas experiências; analisar a implicação dos diferentes atores
envolvidos na construção destas experiências, em especial da própria pesquisadora. Com o
estudo realizado, buscamos contribuir para o debate sobre o empoderamento e autonomia na
Reforma Psiquiátrica brasileira; contribuir para o debate sobre o empoderamento e autonomia
no âmbito das políticas públicas de saúde mental; e contribuir para o debate acerca da
formação em saúde mental.
21

2 EMPODERAMENTO E AUTONOMIA: PRÁXIS E REFLEXIVIDADE NA BUSCA


POR TRANSFORMAÇÃO

2.1 Bases para a compreensão do uso da noção de empoderamento no campo da saúde


mental

O conceito de empoderamento3 tem sido usado por muitas profissões como o serviço
social, a enfermagem e a psicologia e também no âmbito da promoção à saúde, da saúde
mental e da educação, adquirindo muitos sentidos que estão relacionados por exemplo ao
controle sobre a vida ou sobre a saúde, à autonomia, autoestima, auto eficácia, liberdade,
participação, conscientização, humanização, protagonismo, emancipação, etc. (Tengland,
2008). Cada uma dessas noções tem um estatuto próprio e também são multifacetadas,
aparecendo na literatura dos campos referidos acima de forma independente e muitas vezes
como sinônimos (Vasconcelos, 2003, 2013b; Pinto, 2009, 2011; Carvalho, 2004a, 2004b;
Tegland, 2008; Shor & Freire, 1986).

Empowerment é considerado como um termo de difícil tradução (Carvalho, 2004a,


2004b; Pinto, 2011; Vasconcelos, 2013a; Carvalho, 2010; Montero, 2006b). Autores como
Carvalho (2004b) consideram que as dificuldades de traduzir o termo para o português e para
o espanhol são o reflexo da "carência de um embasamento teórico consistente e [das]
múltiplas interpretações sobre essa noção na literatura" (p.1090), que vão da ideia de tomar
posse até a ideia de emancipação. Como não existe a palavra empoderamento na língua
portuguesa e as traduções existentes não são fidedignas, esse autor opta por manter o termo
empowerment em seus textos iniciais (Carvalho, 2004a; 2004b), rendendo-se, mais
recentemente, ao neologismo da língua portuguesa (Carvalho & Gastaldo, 2008). Pinto (2011)
prefere não traduzir o termo, optando pelo reconhecimento político e acadêmico que o
acompanha, apesar de entender que o melhor uso na língua portuguesa seria o da palavra
empoderamento, por manter a centralidade na noção de poder. Maritza Montero (2006b)
defende o uso do termo fortalecimento, perspectiva que tem sido presente no campo da
Psicologia Comunitária latino-americana desde o final da década de 1970. A autora considera
que o termo empowerment, criado nos Estados Unidos, no início da década de 1980, é um
neologismo "desnecessário" ao idioma espanhol, mas que acabou por produzir "uma reação de
cópia automática da denominação, inclusive em campos onde já se falava de fortalecimento"

3
Ao longo do texto utilizarei o termo empoderamento. No entanto, será mantido na língua inglesa quando se
referir diretamente a autores que optaram por esse formato.
22

(Montero, 2006b, p.61). Sustenta sua crítica em levantamento teórico sobre a utilização do
termo onde encontra uma correspondência quase total, entre as características e pressupostos
dos dois termos, empowerment e fortalecimento, em sua utilização no campo da Psicologia
Comunitária. Vasconcelos (2007, 2013a) considera que as traduções mais comuns do termo
para o português - autonomização, aumento de poder, fortalecimento - são interessantes, mas
parciais e mesmo na mais comum delas, empoderamento, observa a perda da força, da
complexidade e da multidimensionalidade que acompanham o original em inglês. Ainda
assim, opta pela última tradução, em sua utilização no campo da saúde mental brasileira, por
entender que é a mais acessível para as pessoas às quais o termo se refere, ou seja, aquelas
marcadas pela opressão, discriminação e por relações de dominação.

Carvalho (2004b) parte do princípio de que o conceito de empowerment é central nos


pressupostos filosóficos da Promoção à Saúde4, em sua perspectiva socioambiental, originada
na década de 1980, com a premissa de possibilitar aos indivíduos e coletivos, o aumento do
controle sobre os determinantes de saúde, o que depende de estratégias empoderadoras que
envolvam a participação direta dos sujeitos nas decisões e na maneira como fazem suas
escolhas, numa relação estreita com a distribuição de poder (Souza et al, 2014).

Para Carla Pinto (2011) o empoderamento é um conceito “polissêmico,


multidisciplinar, multidimensional, [...] ambíguo, controverso [...], escorregadio a definições,
contestado e polêmico” (p.47). Considera que, em sua origem, o conceito esteve relacionado a
práticas alternativas que pretendiam a emancipação, libertação e autonomia dos indivíduos,
pessoal e coletivamente, em sua relação com estruturas, práticas e conjunturas de opressão,
discriminação e injustiça. Mas a apropriação do termo pelo meio acadêmico e político, tanto
de direita como de esquerda, tem feito dele um jargão, que coloca em risco a perda de suas
características essencialmente desafiadoras e transformadoras, dando lugar a uma “retórica do
empowerment”.

Vasconcelos (2013a) concorda com esta perspectiva, caracterizando o empoderamento


como uma "interpelação de caráter polissêmico" (p.2827) associada à participação, autonomia
e humanização, que pode ser usada tanto de forma conservadora como emancipatória, o que

4
A Organização Mundial de Saúde (OMS) “caracteriza como iniciativas de promoção de saúde os programas, as
políticas e as atividades planejadas e executadas de acordo com os seguintes princípios: concepção holística,
intersetorialidade, empoderamento, participação social, equidade, ações multi-estratégicas e sustentabilidade”
(Sícoli & Nascimento, 2003, p.107).
23

acaba por exigir, na apropriação do conceito, uma contextualização crítica e cuidadosa e uma
clareza com relação às perspectivas ideológicas e políticas que se aplicam a ele.

O conceito de empoderamento pode e tem sido usado para fundamentar propostas e


políticas pouco ou nada emancipadoras, o que pode ser observado em discursos que
estimulam a autonomia e maior responsabilização dos indivíduos sobre suas vidas, mas que
na verdade conduzem a uma desresponsabilização do Estado e ao consequente
desinvestimento em políticas públicas (Vasconcelos, 2003, 2007, 2013a, 2013b, 2015;
Murguialday, Armiño & Eizagirre, 2000; Pinto, 2009, 2011).

A apropriação do termo de forma conservadora imprime a ele características


individualistas de cunho neoliberal, observadas, por exemplo, em sua incorporação pela
cultura da autoajuda, com vistas à uma adaptação ao status quo e às demandas sociais bem
como por aqueles que justificam o mero crescimento econômico como principal forma de
promover o desenvolvimento humano.

A conotação emancipadora do conceito pode ser observada, por exemplo, na prática


de movimentos sociais de gênero, étnico-raciais, da saúde mental e de cooperação para o
desenvolvimento humano (Vasconcelos, 2003, 2007, 2013a, 2013b, 2015; Pinto, 2009, (2011;
Murguialday, Armiño & Eizagirre, 2000).

Tais considerações apontam para limites e impasses relacionados à operacionalização


prática do conceito, que não deve ser definido a priori e sem considerar os contextos
particulares de cada sujeito, grupo ou comunidade. Além disso, não basta que indivíduos ou
coletivos se conscientizem de sua condição de exclusão e de como isso afeta a saúde para
estarem empoderados e produzirem alguma mudança. Assim como não basta que seja
considerado como provocador de transformações do status quo viabilizadoras da promoção à
saúde, se não estiver articulado à participação social (Carvalho & Gastaldo, 2008; Sícoli &
Nascimento, 2003; Vasconcelos, 2003, 2013a, 2013b; Pinto, 2011).

No Brasil, a filosofia do empoderamento se origina das ideias da Educação Popular


proposta por Paulo Freire, nos anos 1960. Em um de seus livros, intitulado Medo e Ousadia
(Shor & Freire, 1986), Paulo Freire desenvolve um diálogo com Ira Shor, onde um dos temas
é o empowerment. Freire acredita que não basta propor uma postura mais ativa e despertar a
"potencialidade criativa"(p.70) dos alunos para se alcançar o empowerment, bem como não é
suficiente desenvolver um certo grau de independência nos alunos ou uma postura crítica
24

perante a realidade para que sejam capazes de realizar transformações políticas radicais. O
empowerment individual ou de pequenos grupos e a sensação de mudança que decorre dele
não é suficiente para transformar a sociedade, mas é "absolutamente necessário para o
processo de transformação social" (p.71). Freire defende ali, um

Conceito de empowerment ligado à classe social [que] envolve a questão de como a


classe trabalhadora, através de suas próprias experiências, sua própria construção de cultura,
se empenha na obtenção do poder político. Isto faz do empowerment muito mais do que um
invento individual ou psicológico. Indica um processo político das classes dominadas que
buscam a própria liberdade de dominação, um longo processo histórico de que a educação é
uma frente de luta" (p.72).

O empowerment tem suas origens em movimentos sociais que ocorreram em países


desenvolvidos, a partir de 1970, como o movimento feminista e o movimento pelos direitos
civis, tendo sido influenciado pelas perspectivas individualistas de autoajuda, pelas
perspectivas comunitárias, propostas pela psicologia na década de 1980, e pelas
sociopolíticas, decorrentes dos movimentos em prol dos direitos de cidadania.

No âmbito dos movimentos sociais, o empoderamento é considerado como uma


estratégia

Que permite que as mulheres, e outros grupos marginalizados, aumentem seu poder,
isto é, que tenham acesso ao uso e controle dos recursos materiais e simbólicos, ganhem
influência e participem na mudança social. Isto inclui também um processo no qual as
pessoas tomem consciência de seus próprios direitos, capacidades e interesses, e de como
estes se relacionam com os interesses de outras pessoas, com o objetivo de participar desde
uma posição mais sólida na tomada de decisões e estar em condições de influir nelas
(Murguialday, Armiño & Eizagirre, 2000, p.2, tradução da autora)5.

Existem movimentos no Brasil e em alguns países vizinhos que utilizam estratégias


de empoderamento emancipadoras inspiradas nas tradições culturais latino-americanas, como
a teologia da libertação de Leonardo Boff; a educação popular de Paulo Freire, o controle
social incorporado ao Sistema Único de Saúde (SUS); o Teatro do Oprimido, de Augusto
Boal; a pesquisa participante e a pesquisa-ação de Michel Tiollent; a análise institucional, o
movimento institucionalista e grupalista representados por René Lourau, Pichón Riviere e
Deluze e Guattari; a política brasileira de economia solidária; a visão de empoderamento no
serviço social brasileiro, representada por Vicente Faleiros e Eduardo Mourão de Vasconcelos
e o movimento antimanicomial no Brasil e Argentina (Vasconcelos, 2013a, 2013b). Vale

5
Que propicia que las mujeres, y otros grupos marginados, incrementen su poder, esto es, que accedan al uso y
control de los recursos materiales y simbólicos, ganen influencia y participen en el cambio social. Esto incluye
también un processo por el que las personas tomen conciencia de sus propios derechos, capacidades e intereses,
y de cómo éstos se relacionan con los intereses de otras personas, con el fin de participar desde una posición más
sólida en la toma de decisiones y estar en condiciones de influir en ellas (Murguialday, Armiño & Eizagirre,
2000, p.2).
25

ressaltar que a perspectiva da Educação Popular já encontra-se incorporada à política de saúde


mental do país, sendo uma estratégias de empoderamento recomendadas pelo relatório final
da IV Conferência Nacional de Saúde Mental e já apropriada e adaptada por experiências no
campo da saúde mental (Sistema Único de Saúde 2010; Vasconcelos, Peres, Rodrigues,
Musse, & Braz, 2014; Vasconcelos, 2014).

Na perspectiva da Promoção à Saúde, Carvalho (2004a, 2004b) identifica a existência


de duas noções de empowerment, a psicológica e a comunitária, que em estudo posterior é
renomeada como empowerment social, por ser considerada mais pertinente à cultura
brasileira, onde o comunitário tem um caráter distinto daquele utilizado pela cultura anglo-
saxã (Carvalho & Gastaldo, 2008). Na primeira noção o empowerment é definido como “um
sentimento de maior controle sobre a própria vida que os indivíduos experimentam através do
pertencimento a distintos grupos, e que pode ocorrer sem que haja necessidade de que as
pessoas participem de ações políticas coletivas" (Carvalho, 2004b, p.1090). Essa noção tem
um fundo individualista e não considera que os indivíduos estejam inseridos num contexto
sociopolítico, favorecendo o desenvolvimento de estratégias que buscam fortalecer a
autoestima, a adaptação ao meio, a autoajuda e a solidariedade, por meio, por exemplo, de
práticas educativas que visam à "manutenção da harmonia social e de uma relação saudável
entre indivíduo com o seu meio externo" (p.1091). Nessa direção, acaba-se por criar uma
"ilusão" de que basta ter a sensação de empoderamento para estar empoderado, como também
destaca Paulo Freire (Shor & Freire, 1986), além de se correr o risco de ver o conceito ser
utilizado para fins de regulação social e para justificar iniciativas neoliberais de valorização
da autonomia e responsabilidade individual, em detrimento do investimento do Estado em
políticas públicas (Carvalho, 2004b; Vasconcelos, 2013a, 2013b, 2015).

A noção de empowerment comunitário (Carvalho, 2004b), de origem anglo-saxã,


introduz uma perspectiva política ao conceito, quando considera a materialidade e a
imaterialidade da noção de poder, a desigualdade em sua distribuição social, bem como a
ambivalência demarcada por suas características, ao mesmo tempo instituintes e
conservadoras, exigindo "uma postura ativa de enfrentamento das determinações macro e
microssociais da iniquidade social" (idem, p.1091). O autor entende que o empowerment
comunitário é "um processo, e um resultado, de ações que afetam a distribuição do poder
levando a um acúmulo, ou desacúmulo de poder (“disempowerment”) no âmbito das esferas
pessoais, intersubjetivas e políticas" (idem, p.1092). O processo de empowerment comunitário
é marcado por fatores de ordem micro, meso e macro sociais presentes: no desenvolvimento
26

de competências para assumir o controle da própria vida - como aquelas inerentes às


experiências subjetivas de desenvolvimento e fortalecimento da autoestima e da
autoconfiança, próprias ao empowerment psicológico; na reflexividade e no compartilhamento
de conhecimento possibilitados por "estruturas de mediação" coletiva; bem como no
desenvolvimento de uma crítica sócio-política que viabilize ações sociais e políticas (idem).

O empowerment comunitário diz respeito a metas e processos que envolvem


participação e reflexividade em prol da "transformação do status quo", da "emancipação
humana", da superação da opressão; é um "ato político libertador", uma experiência de
redistribuição de poder, numa relação de parceria em que os atores envolvidos, consideram e
valorizam a singularidade e os direitos dos usuários. (Carvalho, 2004b, p.1093-94). “Espera-
se, como resultado [do processo de empowerment], o aumento da capacidade dos indivíduos e
coletivos para definirem, analisarem e atuarem sobre seus próprios problemas através da
aquisição de habilidades para responder aos desafios da vida em sociedade" (Carvalho &
Gastaldo, 2008, p.2032).

O empowerment social, na perspectiva crítico-social defendida por Carvalho &


Gastaldo (2008), busca nas ideias de Paulo Freire a inspiração que ajuda a sustentar a
necessidade de uma horizontalização nas relações de poder estabelecidas entre os atores do
processo, privilegiando o "exercício do poder-com-o-outro", em "espaços dialógicos e de
cogestão" onde predomina a escuta.

Murguialday, Armiño & Eizagirre (2000) também consideram uma dimensão


individual e outra coletiva para o empoderamento. A primeira está diretamente relacionada à
conquista ou incremento da confiança, autoestima e capacidade de satisfazer as próprias
necessidades e ter influência nas decisões que afetam as pessoas vulneráveis, num processo
que pode ser difícil e demorado, o que explicaria o fato das organizações de ajuda humanitária
se verem tentadas, por vezes “a trabalhar não com os mais excluídos, mas com aqueles
coletivos com um mínimo de consciência e organização, para reduzir o risco do fracasso”
(idem, p.2). A dimensão coletiva está relacionada ao poder conquistado com a organização de
coletivos que tenham objetivos comuns relacionados ao aumento da autonomia, ao direito de
tomar decisões, questionar e acabar com a própria “subordinação”. O empoderamento
implicaria então na tomada de consciência sobre a subordinação e aumento da confiança; na
organização autônoma para tomada de decisões e na mobilização para identificar interesses e
transformar as relações de poder.
27

Pinto (2009) recorre a diferentes teóricos do empowerment para demonstrar o quanto


ele está enraizado em outro conceito também polissêmico, o conceito de poder, concluindo
que o empowerment “implica a possibilidade real de mudar os desequilíbrios de poder, seja a
nível individual ou coletivo” (p.402), com ênfase na ação, reflexiva e consciente, capaz de
produzir incômodo e desafiar as relações de poder instituídas na sociedade. A autora
considera ainda que, apesar de não haver consenso sobre o significado de empowerment na
literatura, a questão relacionada ao aumento do poder de grupos oprimidos socialmente
associada ao termo não é nova, concluindo que,

"O que é consensual na definição de empowerment é que implica acréscimo de


poder por parte de sujeitos que apresentam alguma vulnerabilidade na sua cidadania por falta
de poder necessário para assegurar o exercício dos seus direitos e deveres como sujeitos
ativos das suas comunidades e sociedades" (Pinto, 2011, p. 89).

Além da ênfase dada ao aspecto do poder, apresenta três conceitos considerados


fundamentais para a teoria do empowerment, tomando de empréstimo a proposta de Marc
Zimmerman (2002, apud Pinto, 2009): o controle, que está relacionado à capacidade de
influenciar decisões; a consciência crítica, decorrente da reflexividade sobre as relações de
poder; e a participação, que implica necessariamente em uma ação, direcionada para a busca
de resultados desejados, destacando que esta última dimensão do empowerment é às vezes
encontrada na literatura como seu sinônimo (Pinto, 2009).

Os três conceitos acabam por destacar o quanto o binômio ação-reflexão é essencial ao


empowerment: a consciência crítica se obtém no encontro reflexivo com a realidade,
possibilitando aos sujeitos maior controle sobre sua vida e uma participação mais ativa em
direção à mudança.

Para a autora, o empowerment “ visa melhorar o exercício do poder, através do


exercício do poder. É poder em ação, com vista aos fins de cidadania e de justiça social"
(Pinto, 2011, p.51), ou seja, é meio e fim de um processo participativo e equitativo que
viabiliza a crítica e a transformação subjetiva e social. A ênfase do empowerment estaria
assim, na ação, reflexiva e consciente, capaz de produzir incômodo e desafiar as relações de
poder instituídas na sociedade.

Para pensar a noção de poder implícita no conceito de empowerment Carvalho &


Gestaldo (2008) e Pinto (2011) apoiam-se nas construções de Foucault. Para Foucault (1995),
o poder não tem substancialidade, o que impede sua apropriação, por quem quer que seja. O
autor propõe que para além de uma concepção negativa e moralista, que normalmente
28

confunde relações de poder com dominação, repressão, violência e controle pelo Estado,
existe uma positividade nessas relações. Como nos esclarece Passos (2008):

Poder, para Foucault, é apenas uma forma, variável e instável, do jogo de forças que
definem as relações sociais em cada momento histórico concreto, e que se define através de
práticas e discursos específicos. [...] São as práticas que dizem do tipo de poder que as
mantém ou desestabiliza (p.11)

A força positiva do poder vem acompanhada de resistência, de luta permanente, capaz


de produzir resistência ao poder instituído, gerando processos criativos, subjetividade e
emancipação (Foucault, 1995, Passos, 2008). “É uma dimensão produtiva da vida que pode
assumir conteúdo de dominação, mas não se confunde com dominação” (Izabel C. Friche
Passos, comunicação pessoal, 22 de outubro de 2015). Há aí uma formulação paradoxal, que
nos convoca a um questionamento e reflexão permanentes acerca da verdade e do discurso
que sustenta a concepção emancipadora de empoderamento, uma vez que “dimensões
criativas e instituintes do poder podem gerar, simultaneamente, formas de docilização e de
resistência/criação” (Carvalho & Gestaldo, 2008, p.2036).

As abordagens de empoderamento são delimitadas pelos objetivos que se pretende


alcançar e por princípios ético-políticos associados ao contexto onde se inserem, podendo
estar relacionadas às práticas profissionais (Carvalho, 2004b; Carvalho & Gastaldo, 2008;
Pinto, 2011; Souza et al, 2014; Tegland, 2007) ou a experiências autonomistas, assumidas
diretamente ou em sua maioria pelos próprios usuários (Vasconcelos, 2003; 2007; 2013;
2013b; Montero, 2006b; Chassot & Silva, 2015; Almeida, Dimenstein & Severo, 2010).

No primeiro caso, prioriza-se uma perspectiva positiva dos sujeitos e de suas


potencialidades, onde eles deixam o lugar de objetos da intervenção para assumir o de sujeitos
da sua própria história, em detrimento da ênfase nas limitações relacionadas a um provável
diagnóstico ou deficiência, exigindo do profissional uma disposição ao trabalho em parceria
com os usuários, numa relação horizontalizada e na qual abre mão do poder supostamente
conferido pelo conhecimento técnico e científico, para reconhecer o saber advindo das
experiências culturais e de sofrimento psíquico dos usuários. A perspectiva mais autonomista
do empoderamento em saúde mental é desenvolvida, em especial, pelo movimento de
usuários, na militância cultural e política, em iniciativas de ajuda e suporte mútuos e no
controle social do sistema de saúde, por exemplo.
29

2.1.1 A apropriação da noção de empoderamento pelo campo da saúde mental no


Brasil

A Reforma Psiquiátrica brasileira busca o estabelecimento de novas relações sociais


com a loucura, por meio da substituição do manicômio pelos serviços substitutivos instalados
no território, num processo de desisntitucionalização que vai além da mera desospitalização
ao abarcar princípios éticos, culturais e de cidadania, conduzido com a participação de
diferentes atores, desde os usuários até o Estado. A superação do paradigma manicomial
pressupõe a restauração, promoção e fortalecimento da autonomia e da cidadania (Chassot &
Silva, 2015; Pitta, 2001; Kinoshita, 2001), princípios essenciais às abordagens psicossociais
atuais, que foram influenciadas pela “luta contra a discriminação racial e étnica, a clínica
ampliada e as abordagens de empoderamento dos usuários de serviço de saúde mental”
(Anastácio & Furtado, 2012, p.73).

O princípio do empoderamento está implícito na Política Nacional de Saúde Mental do


Brasil, enquanto “instrumento de reinserção social, autonomia e promoção da saúde mental”
(Alves, Oliveira & Vasconcelos, 2013, p.53). No Relatório Final da IV Conferência Nacional
de Saúde Mental-Intersetorial (IV CNSMI), aparece explicitamente em diferentes momentos:
já na apresentação, se ressalta a ampla participação dos usuários e familiares no processo de
organização da IV CNSMI; no Eixo II - Consolidar a Rede de Atenção Psicossocial e
Fortalecer os Movimentos Sociais, subeixo 2.6 Saúde mental, atenção primária e promoção
da saúde, surge como um dos importantes aspectos da Reforma Psiquiátrica a serem
considerados nos programas de educação permanente da Equipes de Saúde da Família; no
eixo III – Direitos Humanos e cidadania como desafio ético e intersetorial, ressurge
associado às propostas referentes às garantias de direitos trabalhistas de usuários, familiares e
profissionais e, de forma destacada, no subeixo 3.7 – Organização e mobilização dos
usuários e familiares em saúde mental, onde nomeia o conjunto de propostas Empoderamento
e Fortalecimento da Organização pela Base, voltadas para: o fortalecimento e viabilização
das associações de usuários e familiares; a produção de autonomia e de protagonismo; a
implantação de estratégias de empoderamento nos serviços, como os grupos de ajuda e
suporte mútuos, o plano/cartão de crise e a psicoeducação; a criação de material informativo e
de divulgação sobre os direitos e deveres de usuários e familiares; e ações educativas
baseadas na educação popular (Sistema Único de Saúde, 2010).
30

No contexto da Reforma Psiquiátrica brasileira, Eduardo Mourão de Vasconcelos pode


ser considerado como o principal estudioso do empoderamento em saúde mental, desde a
década de 1980. Em 2000, o empoderamento é apresentado por ele enquanto "valorização do
poder contratual dos clientes nas instituições e do seu poder relacional nos contatos
interpessoais na sociedade" (Vasconcelos, 2000, p.169). Este é um entendimento anterior ao
apresentado em seu livro "O poder que brota da dor e da opressão: empowerment, sua história,
teorias e estratégias", publicado em 2003, quando organiza de forma mais sistemática e
ampliada toda a construção que vinha fazendo em torno do tema, introduzindo uma definição
de empoderamento que é mantida em publicações posteriores (2003; 2005; 2013; 2013b,
2015), apesar de ser considerada por ele como provisória. Nesta definição, o termo é
entendido como: "aumento do poder e autonomia pessoal e coletiva de indivíduos e grupos
sociais nas relações interpessoais e institucionais, principalmente daqueles submetidos a
relações de opressão, dominação e discriminação social" (Vasconcelos, 2003, p.20). Este
também tem sido o conceito utilizado por diferentes autores do campo da saúde mental no
Brasil que trabalham sobre o tema (Almeida, Dimenstein & Severo, 2010; Amorim et al.,
2011; Arraes et al., 2012; Dimenstein et al., 2012; Figueiró & Dimenstein, 2010; Figueiró et
al., 2011; Figueiró, Costa Neto & Sousa, 2012; Passos et al., 2013; Pressoto et al., 2013;
Soalheiro, 2012).

A perspectiva de empoderamento defendida por Vasconcelos (2007), apoia-se nas


contribuições da literatura anglo-saxônica sobre o tema e nas particularidades sociais e
culturais que compõe a saúde mental no Brasil. Chassot & Silva (2015) também estudaram as
experiências anglo-saxãs voltadas para o empoderamento, reafirmando que naquele contexto,
a experiência de sofrimento psíquico é reconhecida e defendida como uma forma de saber em
pé de igualdade com o científico, o técnico e o político. A consequência desse
reconhecimento pode ser vista na força que os usuários desenvolveram para se fazerem
ouvidos, seja por meio de protestos, da defesa dos próprios direitos ou da influência direta em
espaços de produção de cuidado. Esse processo de empoderamento trouxe como importantes
conquistas, a profissionalização do movimento britânico de usuários e sua incorporação ao
sistema de saúde. Mas, ao instituir-se, acabou por comprometer seu caráter instituinte de
produzir resistência, trazendo como consequência,

... a diminuição de sua independência em relação ao governo e aos serviços de


saúde. A agenda do movimento torna-se mais pautada pelas demandas do sistema e menos
pelas demandas dos usuários. À medida que líderes do movimento passam a ser remunerados
como consultores de serviços de saúde e de gestão, eles também se afastam da militância
31

voluntária, enfraquecendo o movimento independente de usuários (Chassot & Silva, 2015,


p.147-8).

Outra estratégia usada por eles são as que apresentam características de ajuda e
suporte mútuos e de cuidado de si6 (Vasconcelos, 2003, 2007, 2013a, 2013b, 2015) ou de
apoio mútuo, como preferem Chassot & Silva (2015). Essas estratégias ampliam as redes de
apoio e funcionam como formas de resistência ao sistema de saúde psiquiátrico,
representando a base das estratégias de empoderamento (Vasconcelos, idem), “a porta de
entrada para o ativismo” (Chassot & Silva, 2015, p.150), porque permitem o acolhimento da
diferença, “romper o isolamento social e a estigmatização” (idem), o compartilhamento das
experiências de sofrimento e o acesso democrático a informações que de outra forma ficariam
restritas ao controle dos profissionais, motivando e fortalecendo a vinculação aos grupos e o
consequente interesse pela defesa de direitos dos usuários.

O movimento britânico dos usuários conquistou um novo lugar social para seus
representantes (Chassot & Silva, 2015), que passaram a se fazer presentes e influenciar todas
as discussões sobre saúde mental, inclusive no ambiente acadêmico, onde seu ponto de vista
sobre o sofrimento psíquico e sobre o tratamento foi incorporado aos currículos dos cursos de
graduação da área e à participação efetiva em projetos de pesquisa; também prestam
consultoria e assessoria na construção de serviços de saúde mental públicos e privados e
fazem parte de organizações governamentais de fiscalização e gerenciamento de serviços. Por
outro lado,

... a excessiva burocratização dos espaços e sua falta de resolutividade, [dispersa] a


energia do movimento [...] em um grande número de ações, junto ao poder público, que têm
pouco ou nenhum impacto em termos de demandas dos usuários. [...]A incorporação do
movimento pela gestão pública tornou-o menos capaz de sustentar-se como movimento
independente (Chassot & Silva, 2015, p.154-55).

No cotidiano dos serviços de saúde mental brasileiros, profissionais e usuários


associam o empoderamento às experiências vividas e adquiridas com a doença; ao
estabelecimento de trocas sociais; às possibilidades de participação e representação sócio-
políticas e à produção de conhecimento, por meio do envolvimento nos dispositivos de
controle social, como nas Conferências de Saúde Mental e em projetos de pesquisa,
respectivamente (Alves, Oliveira & Vasconcelos, 2013).

6
Como veremos adiante, Vasconcelos propõe o ‘cuidado de si’ como um dos desdobramentos que faz ao criticar
a noção de autoajuda, associada ao empowerment.
32

No entanto, diversos fatores “estruturais, culturais e conjunturais” (Vasconcelos,


2013a, p. 2829) fragilizam as experiências brasileiras de empoderamento, onde se destacam: a
preponderância de profissionais tanto no movimento antimanicomial quanto nas associações
civis, que em geral são compostas por usuários, familiares e profissionais; a característica
cultural hierárquica e patrimonialista do Brasil, que acaba por exigir menos autonomia e
empoderamento; a restrição das iniciativas de empoderamento ao espaço dos serviços
públicos de atenção psicossocial, cujos principais frequentadores pertencem às classes
populares e cujas lideranças, por sua vez, "têm maiores dificuldades e limitações econômicas,
sociais e culturais para se capacitarem e exercerem este ativismo explícito dentro do sistema
público de saúde e na sociedade em geral" (idem, p.2829).

Além disso, o contexto neoliberal de redução de financiamentos para as políticas


públicas, sucateia os serviços, campo onde têm início muitas das experiências de
empoderamento, favorecendo uma maior rotatividade no trabalho e fazendo com que o
empoderamento deixe de ser prioridade (Vasconcelos, 2013a). As dificuldades impostas por
este fator puderam ser observadas, por exemplo, na gestão municipal de Belo Horizonte,
vigente à época desta pesquisa, cujo desinvestimento na política de saúde mental, nos
serviços e profissionais, gerava insegurança e fazia com que o olhar do trabalhador se voltasse
para tentar garantir a continuidade dos trabalhos desenvolvidos até então, dificultando o
envolvimento contínuo com os projetos relacionados à construção do empoderamento dos
usuários; faltavam vales transporte para que os usuários pudessem comparecer aos Centros de
Convivência, recursos financeiros para a realização de oficinas terapêuticas, para o
funcionamento dos Serviços Residenciais Terapêuticos (SRTs) e, até no âmbito da gestão, foi
preciso conviver com as incertezas relacionadas a indicações pró-tempore de coordenadores
de saúde mental do município.

Apesar da horizontalização das relações de poder ser um pressuposto da Reforma


Psiquiátrica inerente às concepções de empoderamento e autonomia, Chassot & Silva (2015)
fazem uma dura crítica sobre o quanto é incipiente o envolvimento dos usuários na prática da
cogestão, no âmbito da atenção psicossocial, onde prevalece a heterogestão e onde, "por
vezes, cria-se uma fachada de gestão participativa, em assembleias que pouco decidem, o que
apenas alimenta a desilusão dos usuários com a participação social e enfraquece a crença em
sua própria capacidade de decisão e atuação política" (Chassot & Silva, 2015, p.142).
33

A predominância de lideranças de profissionais no movimento antimanicomial


brasileiro também é uma fragilidade apontada por autores que trabalham o tema do
empoderamento em saúde mental, a partir do olhar crítico e reflexivo da analise institucional.
(Almeida, Dimenstein & Severo, 2010). Para Vasconcelos (2015), o perfil histórico, cultural e
social do Brasil, marcado por relações hierárquicas e por desigualdades sociais, educacionais
e no âmbito da saúde e trabalho, explica o papel secundário dos usuários e familiares no
movimento, apontando para a importância de se fortalecer o movimento antimanicomial por
meio de um investimento mais sistemático na

... disseminação de organizações de base e associações de usuários e profissionais,


bem como de abordagens efetivas de empoderamento, para além da militância política de
lideranças mais individualizadas, na perspectiva de buscar construir no médio e longo prazo
um deslocamento mais efetivo do poder para o público alvo dos programas de saúde mental
(Vasconcelos, 2007, p.189)

Amparadas pela experiência britânica de empoderamento dos usuários e considerando


as peculiaridades socioculturais de nosso país, Chassot & Silva (2015, p.156-57) enfatizam
ainda

... a necessidade de uma ampla reflexão ético-política sobre a gestão dos serviços e a
horizontalidade nos tratamentos [e de se retomar os] propósitos da Reforma Psiquiátrica
brasileira, enriquecidos pela mais expressiva participação de usuários de saúde mental em sua
construção e debate, [...] se quisermos sustentar a proposta de desinstitucionalização
promovida pela Reforma Psiquiátrica brasileira.

2.1.2 Conceitos básicos que orientam as estratégias de empoderamento em saúde


mental

Ao destacar aspectos que considera importantes para se entender as estratégias de


empoderamento na saúde mental, Vasconcelos (2013a) considera as particularidades desse
campo, relacionadas aos limites impostos pelo sofrimento psíquico e aos desafios e
possibilidades de enfrentamento inerentes ao cotidiano de quem vive com ele, introduzindo a
importância das redes de apoio social e conceitos-chave para se entender as estratégias de
empoderamento, como recovery, cuidado de si, ajuda mútua, suporte mútuo, narrativas
pessoais, advocacy, transformação do estigma e dependência na relação com a loucura e o
louco na sociedade, participação no sistema de saúde e militância. Vemos aqui presentes,
conceitos que estão tão interligados que se torna impossível pensá-los de forma isolada.

O primeiro dos conceitos-chave diz respeito à perspectiva da recuperação (recovery),


que tem suas origens no campo das doenças e deficiências físicas, conforme Wright, citado
34

por Vasconcelos (2013). Aqui será entendido como um processo de mudança, individual e ao
mesmo tempo coletivo, que pode conduzir a “uma vida com satisfação, desejo e participação
social” (Vasconcelos, 2007, p. 178), apesar das limitações decorrentes do sofrimento
psíquico. Segundo este autor, estudos longitudinais realizados no âmbito da reabilitação
psicossocial norte-americana avaliaram os sintomas, funcionamento social e qualidade de vida
de pessoas com esquizofrenia e demonstraram que ao contrário do esperado pelos
prognósticos convencionais, houve melhora na recuperação e, ainda maior, na recuperação
daqueles que frequentaram programas de reabilitação, principalmente se envolviam aspectos
como a moradia, trabalho, educação e socialização, esta última encontrada nas relações de
amizade, nos grupos e nos movimentos de usuários. Esta perspectiva depende de um sistema
de saúde voltado para a recuperação bem como do desenvolvimento, pelo movimento de
usuários e familiares, de dispositivos e estratégias de empoderamento, que propiciem a defesa
de direitos, a militância e a autoajuda, este último, um conceito criticado, reapropriado e
desdobrado por Vasconcelos (2003; 2007; 2009; 2013).

Os elementos essenciais à perspectiva do recovery coincidem com aqueles presentes


na perspectiva do empoderamento, como a participação, autonomia, valorização das
potencialidades do usuário e, quando no contexto da Atenção Psicossocial, somam-se a estes,
a desinstitucionalização, a horizontalização nas relações entre técnicos e usuários, o direito e a
cidadania (Anastácio e Furtado, 2012; Lopes, 2011; Vasconcelos, 2013a, 2013b).

Em produção recente sobre o tema, Vasconcelos (2015) chama a atenção para os


riscos ideológicos e políticos associados à “apropriação ingênua”, da concepção de recovery,
assim como vem fazendo em relação à concepção de empoderamento. A utilização do termo,
bem como a proposição de práticas baseadas nele, sem a devida clareza se estão sendo
sustentados por princípios conservadores ou emancipadores e sem a necessária consideração
acerca das marcas culturais de cada contexto, pode acabar facilitando a sua apropriação por
políticas sociais e econômicas individualistas e de cunho neoliberal. O autor considera que a
apropriação das ideias e práticas relacionadas ao recovery e ao empoderamento, pelas
políticas sociais brasileiras demandarão um longo tempo e uma “‘paciência histórica”
(fazendo referência a Paulo Freire), porque exigirão que os gestores de programas e políticas
de saúde mental priorizem o assunto, invistam em pesquisas, intercâmbios internacionais,
capacitação profissional e em iniciativas voltadas para a educação popular e para projetos
protagonizados por usuários e familiares.
35

Em segundo lugar, os conceitos de ajuda mútua, suporte mútuo e cuidado de si são


introduzidos como resultado de uma crítica à noção de autoajuda e sua associação a uma
perspectiva conservadora de empoderamento que defende, por exemplo, a busca do sucesso
em todas as esferas sociais, de forma “instrumental e adaptativa”, por meio da crença de que o
crescimento do indivíduo vem das suas próprias capacidades, que se enfraquecerão quando
vinculadas a ajudas externas a ele. No intuito de descolar esta característica “individualista e
liberal” (Vasconcelos et al., 2013b, p. 192) da concepção emancipadora de empoderamento o
autor aprofunda sua crítica e propõe o desdobramento da noção de autoajuda em outras três:
cuidado de si, ajuda mútua e suporte mútuo, ainda assim alertando para o fato de que

...as estratégias, os movimentos e grupos de ajuda mútua devem ter suas origens
históricas, culturais e ideológicas avaliadas com muito cuidado. É necessário identificar não
só seus ideais e práticas com potencial humanitário, solidário e emancipatório, mas também e
principalmente os seus riscos de reproduzir valores e ideologias polêmicos, de reduzir a
flexibilidade normativa necessária para lidar com os conflitos do problema humano em foco
e da área em que atua, e, portanto, de ser usado como mais um dispositivo de normatização
cultural e social (Vasconcelos et al., 2013b, p. 192)

Vasconcelos (2003; 2013b) confere uma conotação muito própria ao primeiro


desdobramento, o cuidado de si, propondo uma aproximação de Foucault, ao utilizar a
expressão.

De acordo com Foucault (2004), o cuidado de si é um conceito que diz respeito a um


trabalho filosófico, ético-moral, do sujeito sobre si mesmo, voltado mais para uma estética da
existência, para o sujeito da ação ética do que para o sujeito do conhecimento e essencial para
se pensar em emancipação política. Ao se aprofundar nesse conceito expressa uma
preocupação com “uma nova posição de sujeito: reflexivo-crítica, ativo-afetiva e ético-estética
de relação consigo mesmo e com os outros, mas que depende de condições sócio históricas
para acontecer” (Izabel C. Friche Passos, comunicação pessoal, 22 de outubro de 2015). Essa
perspectiva também é encontrada em Castoriadis, filósofo escolhido para pensar a autonomia
de uma forma político-subjetiva, no âmbito do presente trabalho. A complexidade do conceito
proposto por Foucault, que passou por transformações históricas importantes, não me permite
abordá-lo no corpo deste trabalho com a profundidade que merece.

De acordo com Vasconcelos (2013b), “de um ponto de vista mais prático” (p.76),

Temos então o que chamo de cuidado de si, me reapropriando parcialmente de uma


ideia chave de Foucault, significando aqui estratégias para mobilizar a iniciativa e a vontade
individual de cada pessoa, para que atue para responder os desafios pessoais concretos
colocados pelo transtorno mental no dia a dia e para reinventar uma nova vida que vá além
36

destes desafios, no sentido de recuperar uma vida ativa, participativa e prazerosa do ponto de
vista pessoal e social (Vasconcelos et al., 2013b, p.75-76).

Nessa perspectiva, o cuidado de si implica a ressignificação das experiências de


sofrimento, a construção de amizades às quais se possa recorrer nos momentos mais difíceis e
o apoio dos serviços de saúde mental e dos movimentos de usuários (Vasconcelos, 2013b).

A ajuda mútua constitui-se de práticas, prioritariamente conduzidas por usuários e/ou


familiares, que possibilitam um suporte emocional, o compartilhamento e a troca de
experiências sobre o cotidiano de quem sofre ou convive com o sofrimento psíquico, como
por exemplo, os Alcoólicos Anônimos, os chats, blogs, correio eletrônico, redes sociais. O
suporte mútuo é normalmente derivado das práticas de ajuda mútua, constituindo-se de
iniciativas concretas de suporte no cotidiano como, por exemplo, a realização de atividades
culturais e de lazer, o cuidado informal prestado a quem passa por momentos de maior
fragilidade, auxílio nas Atividades de Vida Diária e de Vida Prática. As três noções – cuidado
de si, ajuda mútua e suporte mútuo - trazem em comum exatamente a condição de serem
construídas na relação com outras pessoas.

O conceito de defesa de direitos (advocacy) envolve a busca pelos direitos civis,


políticos e sociais dos usuários, de maneira informal, desenvolvida pelo próprio usuário em
conjunto com os grupos de suporte mútuo, ou formal, onde profissionais de saúde mental e
advogados defendem os direitos dos usuários. Esta prática conduz à criação de documentos
que asseguram direitos e leis, como a Lei 10.216 da Reforma Psiquiátrica e está associada às
estratégias de empoderamento que buscam transformar o estigma social relacionado à loucura
e que induzem à militância e ao controle social no sistema de saúde (Vasconcelos et al.,
2013b). A questão dos direitos envolve uma discussão muito maior, que diz respeito ao
paradoxo entre lutar por direitos civis ou reivindicar direitos especiais, considerando as
consequências do estigma e das desigualdades sociais que acompanham o sofrimento
psíquico. Esse dilema acompanha os debates de movimentos internacionais de usuários, como
no movimento sueco, por exemplo, que optou por assumir a deficiência como forma de
reconhecimento social que possibilitou a garantia de direitos especiais como trabalho, salário
subsidiado e acesso a moradia. Outra tática política adotada pelo movimento europeu é a
discriminação positiva, intermediária entre a defesa de igualdade e a defesa de direitos
especiais e que implica em lutar pela garantia dos direitos universais, mas também por direitos
especiais que compensem as desigualdades sociais e de oportunidades desse grupo
(Vasconcelos, 2000; Vasconcelos et al., 2014).
37

No contexto brasileiro, esse mesmo autor e outros como (Birman, 1992) e Passos
(2003), inspirados pelo antropólogo Roberto Damatta, discutem o paradoxo da cidadania do
louco. Damatta (1997) desnaturaliza a noção de cidadania, caracterizada pela ideologia do
individualismo e por regras universais para todos, em qualquer situação ou espaço social,
como teorizada por Marshall e assumida pela cultura norte americana e europeia. Para ele, a
lógica relacional e hierarquizada de funcionamento da sociedade brasileira dificulta a
incorporação de uma única noção de cidadania. Essa lógica, característica dos países de
origem latina, é marcada pelas relações familiares, de amizade, ocupacionais, configurando a
existência em uma sociedade com profundas desigualdades sociais, burocratizada,
patrimonialista e com programas de bem-estar social pouco desenvolvidos (Passos, 2003;
Vasconcelos, 2014). Conforme ilustra Damatta (1997)

Na América, a existência social é praticamente impossível sem a conta bancária, o


cartão de crédito e o social security number; mas, em compensação, pode-se viver sem laços
sociais instrumentais e imperativos. No Brasil, ao inverso, há milhões que vivem sem conta
bancária, número de INSS ou cartão de crédito. Mas ninguém existe de modo social pleno
sem ter uma família e uma rede de laços pessoais imperativos e instrumentais (p.92).

O reconhecimento da existência e da convivência entre diferentes práticas e


concepções de cidadania como inerentes à sociedade brasileira (Damatta, 1997), favorece a
coexistência, no campo da Saúde Mental, da luta pela garantia de direitos civis e universais e
da luta por direitos especiais das pessoas em sofrimento psíquico (Birman, 1992; Passos,
2003; Vasconcelos, 2014).

A ideia de participação no sistema de saúde e militância considera a participação dos


usuários e familiares nas instâncias de controle social ligadas ao Sistema Único de Saúde
(SUS) e às demais políticas sociais; na produção de conhecimento científico sobre os serviços
e no planejamento dos mesmos; no processo de capacitação dos profissionais; e nas
associações de moradores da comunidade onde moram ou nas quais stá inserido o serviço que
frequentam. Todas são formas de valorizar e reconhecer a contribuição daqueles que vivem
diretamente o cotidiano e as experiências de sofrimento mental. (Vasconcelos, 2013a, 2013b)

A respeito da transformação do estigma social relacionado à loucura observa-se que


acontece por meio do desenvolvimento de projetos e iniciativas sociais que articulem cultura,
arte, lazer, esporte como forma de transformar o discurso de incapacidade e a discriminação
relacionados ao louco, viabilizando sua recuperação e abrindo portas a uma nova forma de
convivência familiar, comunitária e social. Projetos importantes nessa direção são aqueles de
mídia impressa, televisiva e radiofônica, coproduzidos, em todas as suas fases, por usuários e
38

familiares, onde as questões do estigma, da discriminação e da nova lógica assistencial podem


ser pautadas e trabalhadas do ponto de vista de seus principais envolvidos e maiores
interessados.

Por fim, temos as narrativas pessoais de vida com o transtorno mental, que vêm sendo
reconhecidas internacionalmente e no Brasil como estratégias de empoderamento importantes
no processo de recovery em saúde mental (Vasconcelos, 2003, 2005, 2013a, 2013b). Elas têm
sido consideradas como formas de apropriação e ressignificação da experiência de sofrimento,
que podem ajudar na aceitação do fato de que a convivência com a loucura é ao mesmo tempo
muito difícil, mas que também faz "parte integral da vida humana" (idem, 2013b, p.80). Além
disso, representam possibilidade de troca de experiências; podem ser utilizadas como material
para discussão em grupos de ajuda e de suporte mútuos e nos dispositivos de cuidado de si;
buscam o reconhecimento da experiência subjetiva e da voz de quem a protagoniza enquanto
ferramentas para a luta contra o estigma e a defesa de direitos. As narrativas também têm sido
utilizadas como metodologias para coleta de dados em pesquisas científicas. Ainda de acordo
com Vasconcelos (2005), as narrativas

Capacitam a quem as viveu a poder se colocar como porta-vozes mais universais


destas dimensões recalcadas do ser, e reclamarem mudanças concretas na forma como a
sociedade encara e trata destas dimensões e destas pessoas, nas suas teorias da subjetividade,
nos serviços de saúde mental e no conjunto da vida social (p.17).

Os conceitos apresentados, apesar de intimamente interligados, permitem a criação de


estratégias de empoderamento com diferentes níveis de complexidade favorecendo uma maior
flexibilidade na participação dos envolvidos, que podem se ligar aos grupos de ajuda e suporte
mútuos, considerados como a base das estratégias de empoderamento e o primeiro acesso a
futuras experiências de ativismo e militância, ou ainda, buscar iniciativas e projetos mais
avançados em termos de organização, capacidade de liderança e militância, por exemplo.
Como consequência, os efeitos subjetivos da experiência de militância acabam por
retroalimentar o funcionamento dos grupos como redes de apoio, espaços de convivência, de
compartilhamento e de resistência, evidenciando como os aspectos sociopolíticos podem
contribuir para uma nova forma de pensar e entender as experiências de sofrimento psíquico.
Além disso, a articulação entre as diferentes estratégias ajuda a reforçar os grupos de ajuda e
suporte mútuos como espaços de referência aos quais pode-se recorrer em momentos de maior
fragilidade ou durante possíveis crises (Vasconcelos, 2007; Chassot & Silva, 2015).
39

2.2 O empoderamento como convocação à autonomia

A associação entre os conceitos de empoderamento e autonomia aparece entre autores


do campo da saúde mental ou de campos distintos, mas afins a ela.

Carla Pinto (2011), por exemplo, considera que “empowerment é ‘ter poder’, poder
para ser capaz, para ser autônomo, autodeterminado e poder controlar de algum modo
significativo a própria vida" (p.465). Também no campo do Serviço Social, Fazenda (n.d.)
apresenta o empowerment como uma

...consequência de uma evolução nas concepções de autonomia e responsabilidade


dos indivíduos, e de uma maior consciência dos mecanismos de discriminação e exclusão que
se geram na sociedade", [considerando que] "o seu objetivo é a autonomia das pessoas
desfavorecidas e a sua participação a um nível de igualdade com os técnicos, numa
perspectiva de parceria (p.1).

No âmbito da Promoção à Saúde, autores como Tengland (2007, 2008) consideram


que a autonomia pode ser vista como um dos objetivos e também como uma consequência do
processo de empowerment. Para este autor, o aumento de controle sobre a própria vida é uma
conquista desse processo que também está associada à autonomia, que é entendida por ele
como uma habilidade, de ordem individual, a ser alcançada, com vistas ao empowerment
psicológico. A autonomia é considerada pelo autor como uma das habilidades básicas
relacionadas à saúde, ajudando o indivíduo a estabelecer seus próprios objetivos e
conduzindo-o em direção a uma melhor qualidade de vida e bem-estar. Por outro lado, na
perspectiva crítico-social defendida por Carvalho e Gastaldo (2008) o processo de
empowerment (social) acontece por meio de uma práxis reflexiva com vistas à transformação
social.

Já no campo da saúde mental, Alves, Oliveira & Vasconcelos (2013) consideram que
o empoderamento é um dispositivo ou estratégia para a produção de
autonomia/responsabilização, e reinserção social, sendo que, para estes autores, a autonomia
está relacionada à liberdade e ao poder que usuários e familiares têm ou desenvolvem, para
serem sujeitos das suas decisões e escolhas. Apoiam-se em autores que defendem que o
empoderamento é um meio para se obter maior controle sobre a própria vida e de se alcançar
relações de poder menos hierarquizadas, sendo caracterizado pela liberdade e pelo acesso a
informações necessárias ao processo. Para os profissionais entrevistados no estudo conduzido
pelos autores, empoderamento é o mesmo que a "autonomia dos sujeitos, o fato de os usuários
serem protagonistas nas tomadas de decisão e se responsabilizarem por seus atos" (p.61),
40

visão que também observaram conviver com a ideia de autonomia enquanto algo a ser dado
ao usuário. Observa-se nesta última visão, a marca das perspectivas conservadoras de
empowerment, de características paternalistas e que centralizam o saber na figura do
profissional.

Autonomia, assim como o empowerment, não é algo que se dê a alguém; o profissional


pode, talvez, oferecer o campo para sua construção e conquista, o que só será possível se
houver uma engajamento do sujeito nesse processo. Como profissionais que acreditam no
protagonismo do usuário é preciso, já de início, se desempoderar, se deslocar desse lugar de
quem pode supostamente dar empoderamento ou autonomia.

Almeida, Dimenstein & Severo (2010) apresentam o empoderamento como noção


chave para a "criação de autonomia e sociabilidade" (p.578), no âmbito da reabilitação
psicossocial, sendo que, aliado à participação social, torna-se também fundamental ao campo
da saúde mental e coletiva e à Estratégia de Atenção Psicossocial, na busca por um novo lugar
social para o louco, por novas formas de vida, por diferentes espaços de socialização e na
coprodução de políticas. De acordo com as autoras, "a ideia de empoderamento [...] implica a
criação de estratégias de potencialização da força e da autonomia dos usuários e familiares
envolvidos com a saúde mental" (p.579), o que vai ao encontro da definição proposta por
Vasconcelos (2003).

Observa-se assim, que o conceito de autonomia é muito presente no campo da saúde


mental, chegando a ser considerado como “o que de mais importante o processo de tratamento
tem a produzir” (Leal, 2001, p.69), mas não tem sido descrito, explicado ou problematizado
pela literatura da área (Zambillo & Palombini, 2015).

Na literatura da saúde mental brasileira a principal referência sobre a noção de


autonomia tem sido Kinoshita (2001), que em sua concepção deixa transparecer uma relação
direta entre autonomia e dependência:

Entendemos a autonomia como a capacidade de um indivíduo gerar normas, ordens


para a sua vida, conforme as diversas situações que enfrente. Assim, não se trata de confundir
autonomia com autossuficiência nem com independência. Dependentes somos todos; a
questão dos usuários é antes uma questão quantitativa; dependem excessivamente de apenas
poucas relações/coisas. Esta situação de dependência restrita/restritiva é que diminui a sua
autonomia. Somos mais autônomos quanto mais dependentes de tantas mais coisas pudermos
ser, pois isto amplia as nossas possibilidades de estabelecer novas normas, novos
ordenamentos para a vida (Kinoshita, 2001, p.57).
41

Para este autor, o sujeito será mais autônomo quanto maiores forem seus laços de
dependência, em confronto direto com perspectivas mais individualistas que consideram a
autonomia como sinônimo de independência, liberdade e autossuficiência. Vasconcelos
(2013b) avança um pouco mais nesse ponto ao deixar claro que concorda com a ideia daquele
autor, desde que articulada aos marcos culturais de cada sociedade. Para Passos et al. (2013),
“autonomia não é contrária à dependência, sendo efeito de processos de coconstituição de
sujeitos que agem sobre si mesmos e sobre o contexto conforme objetivos democráticos”
(p.2922).

Apesar de ser a concepção mais utilizada por autores do campo da saúde mental no
Brasil, parece residir nela um limite pois, não basta aumentar a inserção em relações sociais,
se esta inserção não vier acompanhada de reflexividade, elucidação e crítica sobre os novos
laços estabelecidos e as possibilidades de transformação político-social decorrentes daí. Na
verdade, poderíamos dizer, já introduzindo Castoriadis (1982), que estaríamos diante de uma
relação de inerência e não de codependência.

A concepção de autonomia escolhida por Kinoshita é pautada na ideia de auto-


organização do ser vivo de Maturana e Varela, autores da biologia do conhecimento, que

Compreendem que os seres vivos só podem ser considerados autossuficientes


quando tomados isoladamente. Quando o que se considera é sua relação com o meio,
percebe-se que eles dependem de recursos externos para viver. Nessa lógica, autonomia e
dependência deixam de ser opostos excludentes para serem complementares... (Zambillo,
2015, p.84)

Castoriadis, que em determinado momento da construção de seu projeto de autonomia


dialoga com os autores, demarca sua diferença deles quando associa à autonomia a ideia de
que a criação ex nihilo acontece sempre a partir das “condições necessárias” (Castoriadis,
2002) dadas pelo social-histórico, daí a ideia de imanência entre sujeito e socius e não
independência ou dependência, como na autodeterminação adaptativa do ser vivo.

Zambillo & Palombini (2015) também se referenciam em Kinoshita para propor a


concepção de autonomia utilizada na pesquisa GAM, mas deixam transparecer uma
perspectiva mais ativa, na qual

... é possível pensar a autonomia deslocada da autossuficiência, mas em


manifestação de práticas de liberdade que se fundam na criação de redes e laços afetivos,
sociais e solidários. E se ampliam na construção da cidadania, da vida pública e política,
possibilitando o empoderamento dos indivíduos (p.419).
42

A implementação do SUS no Brasil, faz ascender a autonomia, ao destacar a


importância da participação popular, o que, por outro lado, não parece suficiente para se
garantir práticas realmente democráticas e emancipadoras. Apesar de não haver delimitação
clara acerca de seu significado nas leis que estabelecem o SUS os princípios da educação
popular estão incorporados nas políticas de saúde mental e em experiências do campo
abrindo-se para o empoderamento dos usuários do SUS (Vasconcelos, 2014).

O paradigma ético-estético, “que afirma a existência e o mundo como invenções


permanentes” (Zambillo & Palombini, 2015, p.410), orienta a Política Nacional de
Humanização (PNH), na qual a autonomia direciona os processos de trabalho e a construção
do SUS como política de saúde, “alinhada ao conceito de cogestão ou gestão compartilhada,
ao protagonismo, à corresponsabilidade e ao estabelecimento de vínculos solidários, à
participação coletiva no processo de gestão e produção da saúde” (idem, p.412).

No âmbito da saúde coletiva e da cogestão dos serviços integrados à rede de atenção


psicossocial, encontramos ainda a visão de Rosana Onocko-Campos e Gastão Wagner
Campos que introduzem a perspectiva política enquanto "ponto de criação e regulação da
autonomia" (Onocko-Campos & Campos, 2006, p.674). Inspirados em pensadores como
Castoriadis, Freud, Winnicott e Lourau, propõem que a autonomia é uma das finalidades do
trabalho em saúde, o que traz implicações políticas, organizacionais e epistemológicas como a
valorização dos sujeitos, trabalhadores e usuários, envolvidos na produção de saúde. É
entendida em sua relação com a liberdade e a dependência, não como sinônimo da primeira
ou o contrário da segunda, mas como “um processo de coconstituição de uma maior
capacidade dos sujeitos compreenderem e agirem sobre si mesmo e sobre o contexto
conforme objetivos democraticamente estabelecidos” (p.670). Para eles, dizer de coprodução
de autonomia significa dizer que esse é um processo que se constrói em corresponsabilidade
com o sujeito ou a coletividade, mas que também depende de condições externas ao sujeito,
tais como condições econômicas, culturais, políticas públicas, acesso à informação e
capacidade de fazer uso dela de forma crítica e reflexiva.

Acompanhando Castoriadis, concebem a autonomia como uma coconstrução


individual e coletiva. Ilustram o início do processo de coconstrução da autonomia individual
se reportando à relação de alienação estabelecida entre o bebê e a figura materna, na qual, de
forma dialética, ele vai descobrindo formas de ter suas demandas atendidas e, pouco a pouco,
vai ampliando sua rede de relações e se constituindo, com um estilo e personalidade próprios,
43

mas sempre em relação à heteronomia, passando da dependência relativa a uma


independência também relativa, da dependência e alienação à autonomia e responsabilização.
Para os autores, esta associação entre autonomia e responsabilização, inerente ao pensamento
freudiano, não seria somente uma questão intrapsíquica e traria consequências políticas, uma
vez que “só posso ser autônomo na medida em que me responsabilizo pelos rumos e pelos
atos a que meu desejo tem me levado” (Onocko-Campos & Campos, 2006, p. 676).

Na ordem social, os mesmos autores sustentam que a autonomia é marcada por leis de
ordem jurídica, religiosa ou simbólica, delimitando sócio historicamente, o caráter político da
autonomia coletiva:

A política deveria ser (e é, ainda que às vezes não consigamos apreciar este fato)
ponto de criação e de regulação da autonomia. [Na] medida em que as pessoas se constituem
como cidadãos responsáveis numa sociedade democrática, elas podem – e devem – agir em
prol de formas de organização que propiciem a libertação (isto é, a possibilidade de exercício
de graus maiores de autonomia) por parte de cada vez maior número de pessoas. Isto como
um caminho para facilitar a condenação de práticas deploráveis e corruptas, etc. Esse seria o
exercício da política quando a coconstrução de autonomia é tomada como uma finalidade,
como uma diretriz essencial. Mas, por sua vez, precisamos da política como resistência, isto
é, como ferramenta para impedir o exercício desenfreado e arbitrário do poder (Onocko-
Campos & Campos, 2006, p. 674).

Apesar de Kinoshita (2001) ser considerado o autor de referência para pensar a


autonomia no campo da saúde mental, entendo que aspectos centrais a esse campo como a
democracia, emancipação, cidadania e liberdade, por exemplo, são problematizados de forma
mais potente por Castoriadis, por isso ele foi eleito para referenciar esse trabalho.

Em diálogo entre o biólogo Francisco Varela e Castoriadis (Castoriadis, 2001) os


limites e possibilidades da escolha de cada um dos pensadores fica evidente quando o
primeiro assume que o que o impulsiona como biólogo é “a paixão epistêmica, o desejo de
saber. E ainda que as consequências sociais do que faço não me sejam indiferentes – como
poderiam sê-lo? -, não trabalho por isso” (Castoriadis, 2002, p.108, tradução da autora)7. Ao
que Castoriadis completa dizendo-se também tomado pelo desejo de saber, “porém, ao
mesmo tempo me sinto profundamente implicado peplo destino da sociedade em que vivo. E
para mim ambas as coisas não deixam de ter relação, em certo sentido da palavra”
(Castoriadis, 2002, p.109, tradução da autora)8

7
“la pasión epistémica, el deseo de saber. Y aunque las consecuencias sociales de lo que hago no me son
indiferentes -¿cómo podrían serlo? -, no trabajo por eso” (Castoriadis, 2002, p.108)
8
“pero al mismo tiempo me siento profundamente implicado por el destino de la sociedad en la que vivo. Y para
mí ambas cosas no dejan de tener relación, en cierto sentido de la palavra. (Castoriadis, 2002, p.109).
44

2.3 A autonomia em Castoriadis: um projeto de diálogo com a noção de


empoderamento

Mas o que significa autonomia? Autos, eu mesmo; nomos, lei. É


autônomo aquele que dá a si mesmo suas próprias leis. (Não
quem faz o que lhe dá na cabeça: quem dá leis a si mesmo).
Ora, isso é imensamente difícil. Para um indivíduo, dar-se a si
mesmo a sua lei, nos campos em que isso é possível, exige poder
ousar fazer face à totalidade das convenções, das crenças, da
moda, dos sábios que continuam a sustentar concepções
absurdas, da mídia, do silêncio público, etc. E, para uma
sociedade dar a si mesma a sua própria lei quer dizer aceitar a
fundo a ideia de que ela criou, ela mesma, a sua instituição, e
que ela a criou sem invocar nenhum fundamento extra social,
nenhuma norma da norma, nenhuma medida da medida. Isso
significa dizer, portanto, que ela mesma deve decidir sobre o
que é justo ou injusto – e é esta a questão com a qual a vida
política tem relação (não, evidentemente, a política dos políticos
que hoje ocupam a cena) (Castoriadis, 2004a, p. 161-162).

Castoriadis pode ser considerado o filósofo da autonomia humana. Ao construir sua


obra, em defesa do projeto político de autonomia para uma sociedade democrática, resgata a
democracia e suas formas de participação plena em todas as fases de construção da vida
coletiva. (Passos, 1992; Morin, 1998; Valle, 1999; Souza, 2000; Rodrigues, 2008).

Para chegar à noção de autonomia como proposta por Castoriadis torna-se importante
situar alguns de seus questionamentos acerca do marxismo, pois é a partir deles que surge seu
projeto revolucionário. O contato com a obra mais importante de Castoriadis - “A Instituição
imaginária da sociedade” - me fez vê-lo como um marxista na radicalidade de algumas ideias
marxistas. Ele faz uma crítica à teoria e filosofia marxistas, de dentro do próprio marxismo,
desde a época em que escrevia para a Revista Socialismo ou Barbárie, o que lhe valeu a
eterna rejeição da “esquerda oficial” (Morin,1998). Para tanto, ele retoma os princípios
essenciais da teoria marxista, que dizem respeito ao processo de transformação permanente,
presente na relação entre prática e teoria, para sustentar que a proposta de Marx teria se
perdido entre seus próprios criadores e seguidores.

Castoriadis considera, ao mesmo tempo, que o retorno a Marx ou "querer encontrar o


sentido do marxismo exclusivamente no que Marx escreveu" (Castoriadis, 1982, p. 20) é
impossível porque viola os próprios princípios marxistas de que a significação de uma teoria
só pode ser compreendida em sua relação com a prática histórica e social correspondente a
45

ela. Para ele, o fazer que conduz à reflexividade e à elucidação9 é capaz de transformar a
realidade. Como esta relação só pode ser entendida se considerada em seu contexto social-
histórico10, não existe teoria absoluta, pois do contrário, estaríamos diante do sem sentido da
prática e da mera tentativa de aplicação da teoria. Ou seja, a condição de emergência de uma
teoria está na prática, na reflexividade e na consciência advindas da e na prática e, ao mesmo
tempo que emerge daí já não se basta como tal, porque o movimento contínuo de
transformação da realidade acaba por colocar em questão a teoria construída.

A teoria marxista da história seria uma teoria cientifica que, como qualquer outra
teoria científica importante, “depois de haver provocado uma reviravolta enorme e
irreversível em nossa maneira de ver o mundo histórico, [...] foi ultrapassada pela pesquisa
que ela mesma desencadeou” (Castoriadis, 1982, p. 54-55).
Para o autor, os marxistas desconsideram esta premissa quando se recusam a colocar
em questão sua própria teoria, levando o marxismo a adquirir contornos de uma filosofia
racionalista e determinista, ao oferecer "antecipadamente a solução de todos os problemas que
coloca” e carregar “significações que se encadeiam em totalidades” significantes em si
mesmas (Castoriadis, 1982, p. 55-56).
Tomando como exemplo o determinismo econômico de Marx, Castoriadis sustenta
que ele fez sentido no momento do surgimento do marxismo, mas não foi suficiente para
conter a transformação ou a consciência que decorreram da prática e das relações de trabalho.
Não foi suficiente porque a realidade histórica, cultural e social de cada momento certamente
incidiu sobre esta prática, fazendo deste, um movimento contínuo e inacabado, marcado mais
pelo não-causal do que pelo determinismo causal. A vida histórica e social “...contém o não
causal como um momento essencial [em que aparece não como o imprevisível, mas como um
comportamento criador], como instituição de uma nova regra social, como invenção de um
novo objeto” (Castoriadis, 1982, p. 58).

Mas Castoriadis (1982) também reconhece que dentre os dois elementos históricos do
marxismo, o elemento revolucionário e a burocracia, de destinos e sentidos históricos

9
Em A Instituição Imaginária da Sociedade Castoriadis (1982) esclarece: “O que tento fazer aqui não é uma
teoria da sociedade e da história, no sentido herdado do termo teoria. É uma elucidação e esta elucidação, ainda
que apresente inevitavelmente uma aparência abstrata, é indissociável de uma finalidade e de um projeto
político. [...] O que denomino elucidação é o trabalho pelo qual os homens tentam pensar o que fazem e saber o
que pensam” (p.13-14).
10
O social histórico entendido aqui como "a união e a tensão da sociedade instituinte e da sociedade instituída,
da história feita e da história se fazendo" (Castoriadis, 1982, p. 131)
46

radicalmente opostos, está no primeiro a possibilidade de um projeto radical de construção da


sociedade:

Não estamos no mundo para olhá-lo ou para suportá-lo; nosso destino não é o da
servidão, há uma ação que pode apoiar-se sobre o que existe para fazer existir o que
queremos ser [...]; além de uma atividade não consciente de seus verdadeiros fins e de seus
resultados reais, mais além de uma técnica que segundo cálculos exatos modifica um objeto
sem que nada de novo daí resulte, pode e deve haver uma práxis histórica que transforma o
mundo transformando-se ela própria, que se deixa educar educando, que prepara o novo
recusando-se a predeterminá-lo porque ela sabe que os homens fazem sua própria história
(Castoriadis, 1982, p. 71-72).

Ao introduzir a discussão sobre seu projeto11 revolucionário Castoriadis apresenta a


noção de práxis, que já se anunciava anteriormente e que traz em si e de forma indissociável,
a ideia de autonomia. Para ele, práxis é “este fazer no qual o outro ou os outros são visados
como seres autônomos e considerados como o agente essencial do desenvolvimento de sua
própria autonomia [...] é aquilo que visa o desenvolvimento da autonomia como fim e utiliza
para este fim a autonomia como meio” (Castoriadis, 1982, p. 94).

Mas, já de imediato, alerta para a redução desse esquema de meio e fim, que está mais
associado à atividade técnica. Esta sim tem um fim determinado e “finito”, que se obtém a
partir de meios calculados, produzindo uma relação de causa e efeito.

Quando se trata da práxis, a autonomia se coloca como o início de um processo que


não é finito e que não se define previamente. Há uma relação interna entre o desenvolvimento
da autonomia e o exercício da autonomia, que não se estabelece de forma calculada, ou já não
seria autonomia.

A práxis é uma atividade consciente, que se apoia num saber sempre fragmentário e
provisório, visto que não existe teoria completa para nada e novos saberes sempre surgem
com a práxis, fazendo dela uma experiência de criação, singular e universal. A criação emerge
como transformação da realidade e como resultado da elucidação produzida na práxis. Ao
mesmo tempo em que a elucidação possibilita uma transformação na realidade, também
possibilita uma transformação do sujeito que está engajado na experiência – ele faz e o seu
fazer transforma a realidade e a ele próprio, por meio da elucidação decorrente do processo.

A viabilidade do projeto revolucionário castoridiano encontra-se no âmbito da gestão


operária que permite a participação, que pressupõe uma práxis cujo objeto
11
Projeto “é a intenção de uma transformação do real, guiada por uma representação do sentido desta
transformação, levando em consideração as condições reais e animando uma atividade. [...] é um sentido e uma
orientação (em direção a) que não se deixa simplesmente fixar em ‘ideias claras e distintas’ e que ultrapassa a
própria representação do projeto tal como poderia ser fixada a qualquer momento” (Castoriadis, 1982, p. 97).
47

É ativo, possui tendências, produz e se organiza - porque se não é capacidade de


produção e capacidade de auto-organização, não é nada. [...] Não há nenhum sentido em
interessar-se por uma criança, um doente, um grupo ou uma sociedade, se não vemos neles,
primeiro e antes de mais nada, a vida, a capacidade de ser fundada sobre si mesma, a
autoprodução e a auto-organização (Castoriadis, 1982, p. 111)

Essa autoprodução e auto-organização são possíveis a indivíduos e sociedade


autônomos. Mas, o que é autonomia para Castoriadis?

Afonso (2011) entende que Castoriadis concebe a autonomia a partir de relações


complexas estabelecidas entre o sujeito, o outro e o social,

Não como um “estado” de consciência, mas como processo, trabalho de ser com o
outro em sociedade. Abarca a subjetividade, inclusive o inconsciente e os discursos sociais,
sem se reduzir a eles. Pensa no sujeito como indivíduos, grupos, sociedades. Sociedade e
psique são inseparáveis embora irredutíveis uma à outra. O fato de o sujeito existir em
sociedade, e por meio da linguagem, não é o que determina o seu assujeitamento. Pelo
contrário, pode fundar também o seu movimento de emancipação (p.460).

A autonomia se constrói na interação e pressupõe uma autonomia individual e uma


autonomia coletiva, intimamente ligadas. A autonomia individual se faz, num primeiro
momento, numa relação de alienação com o Outro, ou na heteronomia, como prefere
Castoriadis, o que em si, já remete a uma ordem social. A princípio, o discurso do outro é que
define a existência do sujeito, fala pelo sujeito, define para ele o que é a realidade e por onde
passa seu desejo. O sujeito então, se apropria do discurso do Outro e o ressignifica, de acordo
com sua própria verdade, que está sempre relacionada a uma verdade que o ultrapassa, porque
está enraizada na sociedade e na história. O que está em jogo nesse processo é “a subjugação
e a alienação do sujeito, seja à ordem inconsciente (alienação psíquica), seja à ordem social
estabelecida (alienação social)." (Passos, 2006, p.6).

O sujeito autônomo se faz e refaz a cada encontro com o mundo e com os outros,
incorpora e ao mesmo tempo nega o que vem do Outro, criando assim suas próprias
significações e suas próprias leis; e, mesmo negando o Outro, suas marcas permanecem no
sujeito.

A autonomia não é, pois, elucidação sem resíduo e eliminação total do discurso do


Outro não reconhecido como tal. Ela é instauração de uma outra relação entre o discurso do
outro e o discurso do sujeito. A total eliminação do discurso do Outro não reconhecido como
tal é um estado não histórico (Castoriadis, 1982, p. 126)

A autonomia se constitui na interação social, em que o sujeito é a todo momento


marcado pelo Outro, pela sociedade, pela história, mas com a liberdade de construir suas
próprias leis a partir daí. Relações intersubjetivas e aspectos encarnados em estruturas sociais,
48

econômicas e institucionais são inerentes à autonomia, como bem explicitado por Castoriadis
a respeito de suas relações com o social e o histórico12:

Nossa relação com o social - e com o histórico, que é seu desenvolvimento no tempo
- não pode ser chamada de relação de dependência, o que não teria nenhum sentido. É uma
relação de inerência, que como tal não é nem liberdade nem alienação, mas o terreno no qual
liberdade e alienação podem existir (Castoriadis, 1982, p.135-36).

Para Castoriadis, a existência humana é intersubjetiva, social e histórica. É exatamente porque


a autonomia individual se constrói na intersubjetividade e em relação de inerência com o
social e o histórico, que se torna impossível dissociá-la da autonomia social.
A autonomia, como a definimos, conduz diretamente ao problema político e social.
[...]. Não podemos desejar a autonomia sem desejá-la para todos e [...] sua realização só pode
conceber-se plenamente como empreitada coletiva. [...]. Se o problema da autonomia é que o
sujeito encontra em si próprio um sentido que não é o seu e que tem que transformá-lo
utilizando-o; se a autonomia é essa relação na qual os outros estão sempre presentes como
alteridade e como ipseidade do sujeito - então a autonomia só é concebível, já
filosoficamente, como um problema e uma relação social (Castoriadis, 1982, p. 129-30)

A alienação, ou heteronomia social, não diz respeito apenas ao discurso do outro


presente nas relações intersubjetivas, mas também ao outro que desaparece "no anonimato dos
mecanismos econômicos de mercado ou da racionalidade do Plano, da lei de alguns
apresentada como lei simplesmente" e ressurge reencarnado na forma de " uma metralhadora,
uma ordem de mobilização, uma folha de pagamento e de mercadorias caras, uma decisão de
tribunal e uma prisão." (Castoriadis, 1982, p. 131)

Autonomia individual e autonomia social ou coletiva são dois lados de uma mesma
moeda; separá-las apenas nos ajuda a compreender a constituição da autonomia, uma vez que
uma sociedade autônoma é formada por sujeitos autônomos e são eles que constroem o
projeto, político e coletivo, de uma sociedade autônoma (Souza, 2000; Passos, 2006). “A
autonomia é um trabalho intersubjetivo, coletivo e social que resulta da possibilidade de
construção de instituições que favoreçam a autonomia da própria sociedade” (Afonso, 2011,
p.459).

12
Este ponto ajuda-nos a ampliar nosso questionamento a respeito da relação entre autonomia e dependência dos
usuários da saúde mental, proposta por Kinoshita (2001) “...a questão dos usuários é antes uma questão
quantitativa; dependem excessivamente de apenas poucas relações/coisas. Esta situação de dependência
restrita/restritiva é que diminui a sua autonomia. Somos mais autônomos quanto mais dependentes de tantas mais
coisas pudermos ser, pois isto amplia as nossas possibilidades de estabelecer novas normas, novos ordenamentos
para a vida” (p. 57). Não se trata de uma relação quantitativa, do tipo quanto mais dependência de relações mais
autonomia. Pensando assim estaríamos correndo o risco de cair numa concepção determinista que pressupõe que
para um sujeito ser autônomo ele precisa ser dependente de muitos outros ou de muitas coisas. Poderíamos dizer
com Castoriadis, “que a falta de autonomia é que gera o empobrecimento dos laços e vínculos. Um laço pode ser
de tipo dependente ou de tipo autonomista, e não é a quantidade de laço que importa” (Izabel C. F. Passos,
22/10/2015, comunicação pessoal), ou as amizades virtuais em redes sociais seriam a solução.
49

A autonomia social pode ser vista em uma sociedade que é capaz de auto instituir, de
forma explícita e consciente, suas próprias leis e seus modos de funcionar, com liberdade e
reflexividade (Castoriadis, 1998; Souza, 2000), sendo essas últimas "objetos e objetivos de
sua atividade instituinte" (Castoriadis, 1998, p.7). Isso só é possível numa sociedade
autônoma, cujos sujeitos autônomos podem questionar suas instituições e, por meio de uma
atividade instituinte, produzir novos sujeitos autônomos:

Um “indivíduo autônomo" não significa um santo nem significa um homem


perfeito; significa simplesmente um homem capaz de criticar seu pensamento, suas próprias
ideias. A autonomia consiste em controlar os desejos e saber que os tem. Quando falamos de
autonomia refere-se a algo que é análogo à capacidade de criticar seu próprio pensamento, a
faculdade de refletir, de retornar sobre o que alguém pensou e ser capaz de dizer: "penso isso
porque me convence". Tais indivíduos não podem existir se a sociedade não os produz; ou
seja, se não os ensina a serem verdadeiramente livres no sentido descrito, uma vez que
somente tais indivíduos podem configurar uma sociedade autônoma. Está aí a ideia geral
(Castoriadis, 1993, p. 6-7, tradução da autora). 13

A autonomia coletiva pressupõe uma sociedade na qual se depreende a existência de


garantias político-institucionais e o acesso a informação suficiente e confiável que conduza à
possibilidade efetiva de participação em processos decisórios, em igualdade de condições.
(Souza, 2000)

Evidencia-se aqui que há uma indissociabilidade entre liberdade e igualdade, quando


se fala de sujeitos autônomos em uma sociedade autônoma. A liberdade está presente na
possibilidade de refletir, escolher e decidir sobre suas próprias leis e sua própria vida. A
igualdade surge na possibilidade concreta da participação em todos os níveis de poder e
decisão da sociedade. Concluindo com Castoriadis (1993):

Como posso ser livre se devo obedecer às leis? Este é o problema. ... Pessoalmente,
acredito que na noção de autonomia há uma resposta, a única que dá um sentido positivo à
liberdade. Autônomo é aquele indivíduo que se dá a si mesmo suas próprias leis. Dado que
em uma sociedade um número indefinido de indivíduos, fica evidente que cada um deles não
pode dar-se sua própria lei. Em que sentido, então, posso afirmar que sou autônomo dentro
de uma sociedade? Pois bem, posso dizer que sou um indivíduo autônomo em uma sociedade
se tenho a possibilidade real, e não só formal, de participar, junto com os demais, em um
plano de igualdade efetiva, na formação da lei, das decisões a respeito dela, da sua aplicação
e do governo da coletividade, Aos meus olhos, esse é o verdadeiro sentido da democracia. E

13
Un “individuo autónomo” no significa un santo ni significa un hombre perfecto; quiere decir simplemente un
hombre capaz de criticar su pensamiento, sus propias ideas. La autonomía consiste en controlar los deseos y
saber que se los tiene. Cuando se habla de autonomía se habla de algo que es análogo a la capacidad de criticar el
propio pensamiento, a la facultad de reflexionar, de regresar sobre lo que uno ha pensado y ser capaz de decir:
“pienso esto porque me convence”. Tales individuos no pueden existir si la sociedad no los fabrica, para decirlo
de alguna manera; es decir, si no los enseña a ser verdaderamente libres en el sentido descrito, ya que sólo tales
individuos pueden configurar una sociedad autónoma. He ahí la idea general.
50

um regime que somente tem liberdades negativas é um regime liberal, não um regime
democrático. (Castoriadis, 1993, p. 3-4, tradução da autora). 14

A concepção de autonomia, inspirada na construção de Castoriadis encontra-se com a


noção de empoderamento, por meio da reflexividade e participação que conduz processos
políticos emancipatórios.

A autonomia se constrói numa práxis coletiva e envolve uma reflexividade que pode
gerar uma postura decidida dos sujeitos em direção à transformação da relações de poder e ao
empoderamento. Entendemos então, que sujeitos empoderados são sujeitos autônomos, que
reassumem o poder sobre sua própria vida e sobre as decisões e escolhas inerentes a ela e
necessárias a uma mudança social.

A noção de autonomia, de inspiração castoridiana, proposta por Passos (2006), será


utilizada neste trabalho, como ponto de partida para se pensar a construção da autonomia
pelos usuários da saúde mental: "autonomia é a capacidade de apropriação, pela
reflexividade, de nossa experiência de sujeitos e, também, a capacidade para transformá-la a
partir de projetos coletivos, construídos eticamente com outros sujeitos" (p.9).

A noção de empoderamento que nos orientará será a proposta por Vasconcelos (2003),
conforme apresentada anteriormente, na qual é entendido como "aumento do poder e
autonomia pessoal e coletiva de indivíduos e grupos sociais nas relações interpessoais e
institucionais, principalmente daqueles submetidos a relações de opressão, dominação e
discriminação social" (Vasconcelos, 2003, p. 20).

14
¿cómo puedo ser libre si debo obedecer a las leyes? Éste es el problema. [...] Personalmente, creo que en la
noción de autonomía hay una respuesta, la única que da un sentido positivo a la libertad. Autónomo es aquel
individuo que se da a sí mismo sus propias leyes. Dado que hay en la sociedad un número indefinido de
individuos, resulta evidente que cada uno de ellos no puede darse su propia ley. ¿En qué sentido, entonces,
puedo afirmar que soy autónomo dentro de una sociedad? Pues bien, se puede decir que soy un individuo
autónomo en una sociedad si tengo la posibilidad real, y no sólo formal, de participar, junto con todos los demás,
en un plano de igualdad efectiva, en la formación de la ley, las decisiones acerca de ella, su aplicación y el
gobierno de la colectividad. A mis ojos, ése es el verdadero sentido de la democracia. Y un régimen que no este
basado en este principio no puede ser llamado legítimamente democracia. Un régimen que sólo tiene libertades
negativas es un régimen liberal, no un régimen democrático (Castoriadis, 1993, p. 3-4)
51

3 TRILHAS PARA A SUSTENTAÇÃO DE UM PERCURSO

Os pressupostos da Análise Institucional (AI) francesa (Altoé, 2004) foram eleitos


para orientar a pesquisa intervenção apresentada nesta tese.

A pesquisa intervenção é uma metodologia tributária de embates e reflexões ocorridos


durante o século XX, entre os defensores de uma ciência pura que valoriza a objetividade, o
distanciamento e a neutralidade do pesquisador e aqueles que acreditam na possibilidade de
uma ciência não aplicada, mas implicada, que considera a ampliação do escopo da clínica e é
realizada por “cientistas engajados [que entendem] como inelutável a implicação do
pesquisador no seu trabalho” (Machado, 2004, p.14). A pesquisa-intervenção aprofunda os
questionamentos de pressupostos gerais da pesquisa científica, como verdade, objetividade e
universalização de saberes (Brandão, 1987; Rocha, 2006; Ribeiro, Barboza & Passos, no
prelo).
Foi antecedida e recebeu influência de trabalhos pioneiros como o de psicólogos e
sociólogos da Escola de Chicago, do psicodrama de Moreno, da pesquisa ação de Kurt Lewin,
das teorias e práticas grupais propostas por Bion, Grimberg, Langer, Rodrigué e Pichon-
Rivière, da psicanálise kleiniana e da perspectiva de conscientização e participação de Paulo
Freire (Machado, 2004).
Já no final do século XX, ganha impulso com as contribuições do movimento
institucionalista, representado pelas vertentes da psicoterapia institucional, da luta
antimanicomial, da antipsiquiatria, das ideias de Castoriadis sobre a autonomia, instituinte e
instituído, da Análise Institucional, da Psicossociologia, da Sócioanálise, da Esquizoanálise,
etc. (Baremblitt, 2002; Machado, 2004; Passos, Kastrupe & Escóssia, 2009; Ribeiro, Barboza
& Passos, no prelo).
De acordo com Baremblitt (2002), o objetivo máximo dos movimentos
institucionalistas é a autogestão, o que coloca o engajamento ético-político dos participantes
como elemento central (Ribeiro, Barboza & Passos, no prelo). Como acréscimo a esta linha de
pensamento Machado (2004) destaca que só é possível a realização de uma pesquisa-
intervenção a partir do estabelecimento de relações de colaboração entre pesquisadores e
pesquisados caracterizadas pela atuação conjunta nas análises, interpretações e reflexões ao
longo de todo o processo de pesquisa, tornando indissociáveis o conhecimento e a
52

transformação que se opera na realidade, no pesquisador e nos demais atores da pesquisa


(Passos, Kastrup & Escóssia, 2009).

Em síntese, a pesquisa intervenção pode ser entendida como

Um caminhar mútuo por processos mutantes que, justo por não poder ser resumida
ao encontro de unidades distintas (sujeitos da investigação X objetos a serem investigados),
não pode ser pensada como uma mudança antecipável. Ao operar no plano dos
acontecimentos, a intervenção deve guardar sempre a possibilidade do ineditismo da
experiência humana, e o pesquisador a disposição para acompanhá-la e surpreender-se com
ela (Paulon, 2005, p.21).

3.1 Ferramentas de intervenção e análise utilizadas neste estudo

A Análise Institucional propõe uma nova forma de pensar e exercer a ciência, que
tenta não isolar o momento da pesquisa do momento da produção do conhecimento, entende
que pesquisa e intervenção acontecem juntas, assim como a produção do objeto e do sujeito
do conhecimento (Lourau, 1993; Passos & Barros, 2000), valorizando tudo o que decorre da
posição do investigador nas relações sociais e na rede institucional. Ao introduzir seu texto O
objeto e método da Análise Institucional, Lourau busca uma referência de Guattari (1973,
citado por Lourau, 2004e), para demonstrar a radicalidade desse propósito:

A análise institucional implica um descentramento radical da enunciação científica


[sendo que] não basta dar a palavra aos sujeitos envolvidos [...], às vezes é necessário criar as
condições de um exercício total, paroxístico mesmo, desta enunciação. [...] É todo 'um novo
espírito científico' que precisa ser refeito (p.66).

O institucionalismo destaca ainda a dimensão política de qualquer intervenção, seja no


âmbito da clínica ou da produção de conhecimento, que é viabilizada por meio de ferramentas
e dispositivos conceituais e analíticos como os analisadores e a análise da implicação (Passos,
Kastrup & Escóssia, 2009; Coimbra & Nascimento, 2008).

Lourau e Lapassade introduziram na AI as contribuições de Cornelius Castoriadis, em


especial as que se referem à dialética sociedade instituinte-sociedade instituída que
"contribuíram para dar à AI um objeto específico e novo, qual seja: a produção instituinte do
instituído, do fato social e, por conseguinte, o trabalho de instituição" (Lapassade, 2005,
p.55).

Para Castoriadis (1992)

A instituição, no sentido fundador, é criação originária do campo social-histórico –


do coletivo anônimo – que ultrapassa como eidos, toda ‘produção’ possível dos indivíduos ou
da subjetividade. O indivíduo – e os indivíduos – é instituição, instituição de uma vez por
53

todas e instituição cada vez diferente, em cada sociedade diferente. É o polo a cada vez
especificado da imputação e da atribuição sociais normalizadas, sem o que não pode haver
sociedade (p.121).

A instituição não é o mesmo que um estabelecimento, não tem uma dimensão concreta
e observável. É uma dinâmica contraditória que se constrói sócio historicamente, “na (e em)
história, ou tempo” (Lourau, 1993, p.11), caracterizando o dinamismo e o movimento que lhe
são próprios. A instituição é "uma dimensão fundamental que atravessa e funde todos os
níveis da estrutura social" (Lourau, 2004d, p. 76), assim como é atravessada por todos eles, o
econômico, o político e o ideológico. São regras, leis, normas, significações imaginárias
sociais que se articulam sócio historicamente aos indivíduos, grupos e coletividades e cujo

Suporte representativo ... ao qual, é claro, elas não se reduzem e que pode ser direto
ou indireto – consiste em imagens ou figuras, no sentido mais amplo do termo: fonemas,
palavras, cédulas, (...) igrejas, (...) pinturas corporais, (...) partituras musicais – mas também a
totalidade do percebido natural, designado ou designável pela sociedade considerada
(Castoriadis, 1982, p.277).

Para a Análise Institucional, qualquer instituição resulta da articulação de três


momentos: do instituído, que é o resultado de seu reconhecimento e nomeação; do instituinte,
que ao mesmo tempo em que a gera “não cessa de negar” (L’Abbate,2012, p.199) o instituído;
e a institucionalização, que diz respeito ao processo dialético entre o instituído e o instituinte,
que tensiona e imprime singularidade à instituição (Baremblitt, 2002; L’Abbate, 2012).

Tomando como ponto de partida o movimento de maio de 1968, na França, Lourau


(2004g) apresenta a instância do instituinte como "a contestação, a capacidade de inovação e
[...] a prática política como significante da prática social" e a instância do instituído como "a
ordem estabelecida, os valores, modos de representação e de organização considerados
normais, [bem como] os procedimentos habituais de previsão (econômica, social e política)"
(p.47), deixando claro como a oposição entre elas acaba por mascarar sua verdadeira
articulação presente no conceito de instituição.

Lourau (2004e) nomeou como analisador aquilo que está oculto ou reprimido
socialmente, que cumpre uma função de manutenção do instituído e que, quando se manifesta,
adquire características instituintes, de não conformidade com o instituído, revelando a
natureza do instituído.

O analisador, "palavra política, liberada e liberadora" assume o lugar da noção de


análise, "palavra terapêutica, até agora escravizada pelos analistas" (Lourau, 2004e, p.70) e
passa a dirigir a análise, liberando-se da necessidade de interpretação e do discurso
54

explicativo, mas mantendo a decomposição que traz à tona os elementos que compõe o
conjunto. A criação da noção de analisador produz um movimento instituinte dentro da
própria AI, apontando para a condição participativa como pressuposto de sua existência e
retirando do analista a 'responsabilidade' pela interpretação, num movimento de
descentramento (Lourau, 2004e).

Um analisador denuncia, manifesta, declara, revela o escondido, o não dito, mas não
se reduz à dimensão do discurso ou da palavra adquirindo também uma materialidade
expressiva bem diversa, conforme exemplifica Baremblitt (2002):
Um analisador (...) pode ser um monumento, a forma como está elaborada a planta
arquitetônica da organização, pode ser uma característica dos modos de relação que não está
formalizada nem anunciada em parte alguma, ou seja, pode ser um costume e não uma
norma, nem uma lei; pode ser um arquivo, isto é, a maneira como está organizada a memória
de uma organização; pode ser uma distribuição do tempo ou do espaço na organização. E é
claro que podem ser também formas escritas ou faladas do discurso organizacional. Por
exemplo, os estatutos, os regulamentos, a carta de princípios, o organograma, o fluxograma
etc. E podem ser os relatos ou as mensagens verbalmente proferidas pelos integrantes nas
entrevistas, nos questionários ou em qualquer forma de comunicação intersubjetiva. Os
mitos, os rituais, o uso do dinheiro, do lazer, da sexualidade, do domínio e o cuidado de si,
etc. (p.63).

O autor prossegue, indicando que um analisador traz em si características que, em


condições apropriadas, não precisa ser analisado de fora, podendo ser apropriado por seus
atores e ser autoanalisado, “dessa maneira, não apenas é capaz de enunciar, como também de
resolver a situação da qual ele é emergente” (Baremblitt, 2002, p. 64), pode ser revelador e
catalisador, ser produzido por uma situação e, ao mesmo tempo, agir sobre ela, não se
confundindo com intuições individuais de quem está implicado no campo (Lourau, 2004g).

Lapassade (2005) nomeia dois tipos de analisador, o analisador natural, ou


acontecimento, e o analisador construído, ou dispositivo. Essa nomeação é retomada e
criticada por Baremblitt (2002) que prefere nomear os primeiros como analisadores históricos,
ou seja, aqueles produzidos pela “própria vida histórico-social-natural” e os segundos como
“analisadores artificiais ou construídos” (p.64), ou seja, dispositivos introduzidos nas
organizações para facilitar a explicitação e resolução dos conflitos.

A intervenção da AI tem como objetivo "validar o conceito de analisador" (Lourau,


2004e, p.78) enquanto dispositivo, cuja função reveladora e ao mesmo tempo catalisadora,
dissolve o saber instituído que sustenta o consenso presente em todas as relações de poder e
modifica as relações de força, abrindo espaço para o novo (instituinte), para uma práxis que
torna "a palavra comum a todos" e "cujo suporte e desafio residem não na reivindicação
55

formal de direitos, mas no ato de partilhar uma prática, a busca de uma troca isonômica e de
uma comunidade de trabalho e vida" (Lourau, 2004g, p.137).

De acordo com Baremblitt (2002), “a Análise Institucional considera a prática de seus


agentes como uma militância, e propõe para eles o perfil de um intelectual implicado, à
diferença do intelectual orgânico (partidário) ou engajado (frequentemente um tanto
especulativo) ” (p. 137).

A concepção de implicação coloca em cheque a neutralidade, a objetividade e o


distanciamento do analista em relação ao objeto de seu estudo, considerando que sua simples
presença já faz dele um elemento do campo, suficiente para produzir transformações no
campo, nos atores e no próprio pesquisador.

Derivada das noções psicanalíticas de transferência e contratransferência, inicialmente


a implicação estava referida à relação do pesquisador com todas as determinações da
instituição analisada. Posteriormente, Lapassade e Lourau concluíram que a oposição entre
analistas e analisandos explicitada nas duas noções não fazia sentido, pois o que “os distingue
é a posição do dispositivo de análise e em particular a relação de saber e a relação de poder”
(Monceau, 2008, p.21). Assim, a noção de implicação passa a designar também “todas as
determinações transversais ao estabelecimento onde tem lugar a AI" (Lourau, 2004g, p.133).
É a relação desenvolvida com a instituição, um processo complexo, heterogêneo, marcado por
atravessamentos, inconscientes ou não, de múltiplas dimensões, tais como econômicas,
políticas, sociais, etnológicas, ideológicas, libidinais, etc., que podem ser inclusive anteriores
ao contato do pesquisador com o campo de intervenção (Baremblitt, 2002, Monceau, 2008;
Passos, Kastrup & Escóssia, 2009).

Baremblitt (2002) nos lembra que toda instituição é movida por forças instituídas e
instituintes, de produção e de reprodução que se entrelaçam e se interpenetram produzindo
movimentos com características instituídas, de reprodução, mas também com características
instituintes, de resistência, reflexividade e transformação. Quando esta interpenetração se dá
ao nível do conservador e da reprodução, dá-se o nome de atravessamento e quando se
entrelaçam ao nível do instituinte e produtivo chama-se transversalidade.

A transversalidade opera “cortes, os mais diversos, nas relações, processos, pesquisas,


campos, pensamentos” (Lacaz, Passos, & Louzada, 2013, p.223), produz conflitos e expõe
resistências presentes no não dito. “É aqui que aparece a implicação” (Lourau, 2004g, p.133).
56

A implicação imprime uma marca clínico-política à pesquisa intervenção, uma vez que
“ao colocarmos em xeque os lugares instituídos de saber/poder que ocupamos em muitos
momentos de forma natural e ahistórica estamos afirmando nossa implicação política, dentre
tantas outras implicações que nos atravessam” (Coimbra & Nascimento, 2008, p.146).

As implicações analisadas no processo da pesquisa foram primárias e secundárias. As


primárias são aquelas relacionadas às implicações do pesquisador na situação da pesquisa-
intervenção, seja com o objeto de pesquisa, com instituição de pesquisa e de pertencimento,
com a equipe, com a encomenda. As implicações secundárias estão relacionadas ao campo de
análise, como por exemplo, as implicações sociais, históricas, epistemológicas e aquelas
relacionadas à forma de divulgar a pesquisa (Lourau, 2004a; Monceau, 2008; Paulon, 2005),
que podem estar localizadas fora da situação de pesquisa, mas determinam muito do que vai
ser feito:
Quando eu faço uma intervenção junto a uma equipe, eu já pensei em como vou
poder fazer publicações na esfera universitária. Esses elementos institucionais escapam
totalmente aos meus interlocutores locais. Entretanto, essas implicações secundárias
determinam, em grande parte, o que eu vou fazer no real, no campo de intervenção
(Monceau, 2008, p.22).

Sobre as consequências da implicação do pesquisador na sua própria produção


científica, Monceau (2008, p. 22) esclarece que “a questão não é que devamos nos livrar de
nossas ideologias, mas tentar analisá-las coletivamente. O verdadeiro trabalho científico deve
estar aí”.
A análise da implicação evidencia os interesses e as relações de poder presentes no
campo de intervenção e também os diferentes lugares que se ocupa nas relações sociais, no
cotidiano, na vida profissional, na história (Paulon, 2005).
Aceitar o caráter inquietante e desestabilizador das implicações durante todo o
processo de pesquisa confirma a análise das implicações como ferramenta que desnaturaliza
expectativas positivistas acerca da pesquisa, que dissolve as fronteiras entre pesquisador,
objeto, campo de intervenção e produção de conhecimento (Lacaz, Passos & Louzada, 2013)
e que reafirma “processualidades, singularidades e multiplicidades” (Coimbra & Nascimento,
2008, p.147).
Trata-se, portanto, de afirmar um outro modo de pesquisar que escapa das
formatações prontas e que nos possibilita sair do lugar arrumado do cientista para nos
misturar com o campo e, nessa mistura, nos aproximar daquilo que, muitas vezes, fica
ausente do trabalho final. Interessa-nos aquilo que fica de fora, os desacertos, as indecisões,
os desvios e dificuldades. Isso também compõe a pesquisa e a constitui. (Lacaz, Passos &
Louzada, 2013, p.213)
57

Conforme nos sugere Lourau (2004c), “estar implicado (realizar ou aceitar a análise de
minhas próprias implicações) é, ao fim de tudo, admitir que eu sou objetivado por aquilo que
pretendo objetivar; fenômenos, acontecimentos, grupos, ideias, etc.” (p.148).
Do conceito de implicação, Lourau (2004a) deriva o de sobreimplicação,
relacionando-o ao que chama de “subjetividade-mercadoria ... à ideologia normativa do
sobretrabalho, gestora da necessidade do ‘implicar-se’” (p.190).
A sobreimplicação ou “ impossibilidade de analisar a implicação” (Monceau, 2008, p.
23), camufla esta última, confundindo-a com um certo ativismo da prática que quando
analisado deixa transparecer “aspectos extremamente passivos: submissão a ordens explícitas
ou a consignas implícitas da nova ordem económica e social, ávida por preencher as grandes
brechas produzidas tanto pela desafetação quanto pela institucionalização, maior ou menor, do
desemprego” (Lourau, 2004a, p. 191).

Coimbra & Nascimento (2007) exemplificam esse ativismo da prática ao se remeterem


à sobreimplicação no âmbito da universidade. Consideram o “acúmulo de tarefas e a produção
de urgências” como “dispositivos da sobreimplicação” que naturalizam o individualismo,
fragilizam parcerias e “esvaziam os espaços coletivos de discussão”.

Ambos [o acúmulo de tarefas e a produção de urgências], em muitos momentos,


impõem e naturalizam a necessidade de respostas rápidas e competentes tecnicamente,
podendo estar afirmando, assim, um certo ativismo. Tal funcionamento atende com perfeição
à lógica capitalista contemporânea, onde o tempo cada vez mais se comprime e se acelera,
onde se naturaliza o modo de ser perito e onde a flexibilização das tarefas torna-se uma
obrigatoriedade. (Coimbra & Nascimento, 2007, p. 28)

Além das ferramentas e dispositivos conceituais da AI, como o analisador e a análise


da implicação e da sobreimplicação, a observação participante foi essencial neste estudo,
associada ao estudo dos registros de campo da pesquisadora e à restituição. Considerando o
caráter processual da pesquisa, outros recursos surgidos durante a observação foram
considerados essenciais à construção da narrativa, como a entrevista em profundidade, a
entrevista em grupo, a consulta a documentos, literatura produzida sobre as experiências,
gravações de áudios e de vídeos de programas de rádio e de entrevistas em canais do You
Tube.

De acordo com Lapassade (2005), até 1980 acreditava-se que o único dispositivo da
Análise Institucional era a socioanálise, "ou seja, a análise institucional em situação de
intervenção sob demanda de um cliente" (p.12) mas, atualmente, outros dispositivos são
58

considerados no corpo da AI, como a etnografia e a análise interna (feita pelos próprios
agentes) em autogestão, não sendo necessária a presença de um interventor externo.

Até bem pouco tempo os estudos etnográficos eram pouco utilizados no campo da
saúde mental (Passos & Barboza, 2009), ganhando destaque a partir da utilização de
metodologias participativas, como a pesquisa-ação, a pesquisa intervenção e a cartografia, na
construção do conhecimento científico nesse campo. Pressupostos comuns a cada uma dessa
abordagens metodológicas coincidem ou derivam da abordagem etnográfica, em especial “a
interação pesquisador/pesquisado, a problematização das questões de objetividade e
universalidade, a articulação entre teorias e interpretações do pesquisador com aquelas dos
pesquisados, a recusa do critério de neutralidade em proveito de uma análise da implicação do
pesquisador (Passos & Barboza, 2009, p. 16). Todos esses pressupostos contribuíram para que
a observação participante fosse o principal método de coleta nos campos estudados.

A observação participante é caracterizada por intensa interação social entre


pesquisador e os sujeitos da pesquisa, durante a qual acontece a coleta dos dados que
emergem do compartilhamento de experiências, de entrevistas e de conversas. De acordo com
Lapassade (2005) e Montero (2006a), objetiva conhecer e registrar, desde dentro e a partir do
ponto de vista dos atores, os valores, normas, eventos, fenômenos, circunstâncias inerentes à
vida cotidiana das pessoas, produzindo uma “forma de teorização que surge a partir da
experiência” (Montero, 2006a, p.77).

A intensidade da imersão do observador participante, faz com que Montero (2006a)


recomende ao pesquisador assumir a observação como uma forma de invasão, marcada pelo
olhar de um outro sobre a realidade estudada, o que torna essencial que ele deixe claro, desde
sua chegada ao campo, quais são suas intenções, buscando se tornar familiar ao ambiente.

Durante sua presença no campo, o observador participante olha, escuta, conversa,


coleta e registra os relatos, sem uma programação pré-definida, sendo que a análise se dá à
medida que o trabalho acontece fazendo com que "as construções teóricas [sejam], assim, o
resultado das trocas com as pessoas, da participação na situação e da implicação" (Lapassade,
2005, p.83).

As conversas de campo, o uso de documentos, oficiais ou não, e as entrevistas também


podem emergir do processo de observação participante como métodos a serem usados na
pesquisa. A conversa de campo tem caráter espontâneo, determinado pelo que está
59

acontecendo ou vai acontecer nas atividades das quais o pesquisador participa. Os


documentos oficiais são importantes para a compreensão e contextualização histórica do
serviço e os documentos pessoais apresentam a perspectiva da pessoa sobre toda sua vida ou
parte dela, como o que pode ser encontrado em diários pessoais, cartas, autobiografias,
histórias de vida (Lapassade, 2005). No presente estudo um dos documentos estudados foi o
caderno de campo produzido pela pesquisadora antes do início da pesquisa, no qual foram
feitos registros sobre o cotidiano da disciplina que originou a oficina de rádio.

A pesquisa aconteceu em duas etapas e em dois campos empíricos distintos. A


primeira acompanhou a experiência de construção do programa de rádio Louca Sintonia,
produto de uma oficina de rádio realizada no Centro de Convivência São Paulo, serviço
substitutivo da rede de saúde mental de Belo Horizonte. A segunda etapa acompanhou o
processo de criação de um espetáculo de dança teatro do Núcleo de Criação e Pesquisa Sapos
e Afogados, um coletivo autônomo cujos atores são cidadãos em sofrimento mental, usuários
ou não dos serviços substitutivos da cidade de Belo Horizonte.

Originalmente, a proposta do meu projeto de pesquisa era estudar apenas a primeira


experiência, mas questões acerca de como uma oficina de rádio, inserida e vinculada a
estruturas instituídas como a universidade e o serviço poderia abrir caminho para a produção
de autonomia e empoderamento, além dos atravessamentos representados pelo processo
ensino-aprendizagem, também inerente a essa prática, apontaram para a necessidade de
conhecer outra experiência autonomista já mais amadurecida e desenvolvida fora dos
serviços, na tentativa de construir um diálogo sobre a conquista de autonomia e
empoderamento em experiências que envolvem cidadãos em sofrimento mental dentro e fora
do âmbito da assistência, bem como sobre os limites destas experiências.

O Sapos e Afogados15 foi pensado então, por apresentar essas características – ser
formado por cidadãos em sofrimento mental e estar desvinculado da assistência e da
academia.

Assim, a primeira fase do estudo teve como parceiros de pesquisa os usuários,


membros da equipe e a gerente do Centro de Convivência São Paulo, os alunos e o professor
da disciplina Prática Clínica em Terapia Ocupacional II, do 5º período do curso de Terapia

15
Nome pelo qual o coletivo é popularmente conhecido e que será utilizado a partir de agora quando me referir
ao Núcleo de Criação e Pesquisa Sapos e Afogados.
60

Ocupacional da UFMG, a equipe da Rádio UFMG Educativa, pesquisadores do Laboratório


de Grupos, Instituições e Redes Sociais (L@GIR) e minha orientadora de doutorado.

Na segunda fase, os parceiros de pesquisa foram os atores e a equipe de produção do


Sapos e Afogados, os pesquisadores do L@GIR, em especial minha orientadora de doutorado
e Kelly Dias, pesquisadora que se integrou à equipe do projeto de pesquisa, sendo
coparticipante em todo o processo de reflexão e construção do estudo.

Numa pesquisa intervenção, assim como nos estudos etnográficos, o primeiro contato
do pesquisador com o campo acontece já durante a sondagem etnográfica para a primeira
negociação de sua entrada no campo16, que é constantemente renegociada, como parte de um
processo que não se fecha e nem é definitivo.
No caso do primeiro campo de estudo, a entrada aconteceu ainda antes da proposta da
pesquisa, no segundo semestre de 2014, durante a disciplina que eu ministrava, ao coordenar a
oficina de rádio e supervisionar os alunos in loco, o que permitiu a construção de uma relação
de confiança com os atores da pesquisa, anterior à permissão oficial para converter aquele
campo de ensino em campo de pesquisa. Ainda assim, questões práticas, comuns à fase de
sondagem, como aquelas relacionadas à melhor forma de se negociar a entrada no campo e
atender aos propósitos de pesquisa, também foram observadas aqui, em dúvidas como: será
que os usuários, a equipe e a gestão do serviço vão receber bem a proposta de uma pesquisa?
Como a proposta será recebida pela Coordenação de Saúde Mental do município? Em que
momento apresentar a proposta do projeto, uma vez que a intervenção já acontecia? Como
apresentá-la?
A entrada no segundo campo de estudo se iniciou durante o contato para apresentação
da proposta para a diretora e o assistente de direção do coletivo em questão.
Os registros das observações, falas e inquietações no diário de campo pela
pesquisadora foram essenciais à construção do conhecimento durante todo o percurso da
pesquisa, facilitando a identificação de analisadores e a análise das implicações e
sobreimplicações (Costa & Paulon, 2012; Penido, 2012).
De acordo com Lourau (1993) o uso do diário de campo nos permite
Produzir um conhecimento sobre a temporalidade da pesquisa; (...) o conhecimento
da vivência cotidiana de campo (não o "como fazer" das normas, mas o "como foi feito" da
prática). (...) Mostra, entre outras coisas, a contradição entre a temporalidade da produção

16
“Esse termo 'entrada' tanto designa a permissão formal de acesso quanto diz respeito ao momento em que é
adquirida a confiança dos membros que aceitam se abrir realmente ao pesquisador” (Lapassade, 2005, p.71)
61

pessoal e a institucional, ou burocrática, [como por exemplo] a angustiante questão do


calendário da pesquisa (p.77-78).

O uso do diário de campo permitiu ainda a conexão com a dimensão sócio-histórica e


temporal da produção de conhecimento apresentada no texto da tese, deslocando o
pesquisador do centro e dando visibilidade à complexidade institucional e a sua implicação
com e na pesquisa (Lourau, 2004f; Penido, 2012; Pezzato & L'abbate, 2011; Rossi & Passos,
2014).
A análise do que foi “cultivado” (Barros & Barros, 2013) durante as observações
também acompanhou o processo, na identificação e elucidação dos possíveis analisadores e na
análise das implicações e sobreimplicações, buscando dar visibilidade aos elementos e
relações que compuseram a realidade, desnaturalizando o instituído e fazendo emergir o
instituinte. Assim como a intervenção, teve uma dimensão participativa, envolvendo os atores
implicados na pesquisa (Altoé, 2004; Barros & Barros, 2013) nos diferentes momentos de
restituição.
A restituição e a reflexão sobre os acontecimentos, analisadores, atravessamentos e
implicações observados e analisados, aconteceram de forma concomitante ao desenrolar do
processo da pesquisa-intervenção, durante os encontros com os usuários na oficina de rádio,
com os atores nos ensaios do Sapos e Afogados, nos encontros de orientação aos alunos ou de
reflexão com o professor da disciplina, bem como nas reuniões de equipe do Centro de
Convivência e da equipe de produção do Sapos e Afogados.
A pesquisa respeitou os preceitos éticos da Resolução CNS 466/12, tendo sido
submetida ao Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais (COEP-
UFMG), sob o registro CAAE: 53344216.1.0000.5149 e autorizada pelo parecer de número:
1.446.72.
Todos os parceiros do estudo assinaram o Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido (TCLE) (Apêndice A). O anonimato dos parceiros envolvidos no primeiro campo
de estudo foi preservado no texto desta tese, tendo sido identificados apenas pelas letras
iniciais de seus nomes.
Com relação ao segundo campo de estudo, os parceiros decidiram explicitar seus
nomes na pesquisa por considerarem importante dar visibilidade ao trabalho teatral que
realizam e aos seus nomes artísticos. Além disso, entenderam que esta seria uma forma de
contribuir para o combate ao estigma social contra a loucura. Apesar de diferenciado, este é
62

um procedimento comum em trabalhos centrados no empoderamento17. Assim, um


complemento ao TCLE (Apêndice B) foi elaborado e assinado por todos.
Os capítulos que se seguem apresentam as duas experiências estudadas nesta tese. Na
primeira experiência a lógica da narrativa é cronológica, acompanhando o amadurecimento da
construção das quatro edições do programa Louca Sintonia, que foram alvo deste estudo.
Cada uma das edições foi associada ao tema que mais se destacou durante o percurso e que
determinou tanto os rumos do processo quanto a estética final do programa.
A narrativa sobre a segunda experiência teve como pano de fundo o processo de
criação do espetáculo Caminho, mas sua trajetória não foi cronológica e nem se ateve ao
referido processo. De início, minha chegada como pesquisadora em um campo desconhecido
foi problematizada, assim como a dissolução do ponto de vista de observadora. Buscando
compreender melhor a experiência retomo a história do coletivo estudado para em seguida
problematizar a relação com a loucura, a produção de autonomia e sua relação com o
empoderamento.
No último capítulo faço uma aproximação entre as duas experiências e as concepções
de autonomia e empoderamento.

17
Para uma discussão mais aprofundada sobre este aspecto vale a pena consultar o livro Reinventando a vida:
narrativas de recuperação e convivência com o transtorno mental organizado por Vasconcelos, Leme &
Weingarten (2005).
63

Então como, ao escrever, colocar-se à altura do que aconteceu,


ser digno do acontecimento, não traí-lo? Para além do deleite
que pôde propiciar, ou da comoção que produziu e que há de se
prolongar, um tal acontecimento nos força a repensar nosso
atlas antropológico, obriga-nos a redesenhar nossa geografia
mental e certas fronteiras entre saúde e doença, entre a
potência e a impotência, a vitalidade e o sofrimento, a arte e a
inadequação..., ou reproblematizar a relação entre as
linguagens menores e as maiores, ou as dissonâncias vividas e a
pesquisa estética, as derivas e as identidades, mesmo
profissionais. (Pelbart, 2000, p.111)
64

4 LOUCA SINTONIA: O PROGRAMA MAIS LÚCIDO DA CIDADE18

O Centro de Convivência São Paulo é um dispositivo comunitário, substitutivo ao


manicômio, que busca a inclusão social de pessoas com sofrimento mental grave.
De acordo com Soares (2009), gerente do CCSP, o centro de convivência é

Um lugar tensionado, criativo, inusitado, flexível, aberto ao novo e ao não pronto,


que se inventa e se reinventa na medida em que vai fazendo por fazer. Podemos dizer de um
ethos que agrega valor à existência por meio da experiência (p.40).

Ainda de acordo com a autora, a práxis produzida no Centro de Convivência é baseada


no protagonismo dos usuários e na solidariedade, podendo ser considerada como um
instrumento de empoderamento e crítica (idem).

As oficinas terapêuticas são seus principais operadores e organizadores, favorecendo a


criação, a expressão, a experimentação, a transformação, a invenção de novas formas de
estabelecer trocas e de estar no mundo, aliando efeitos clínicos, sociais e políticos (Ribeiro,
2004; Soares, 2011). Operadores que, de acordo com a Linha-Guia em Saúde Mental de
Minas Gerais, comportam o
Desafio de invenção de complexas redes de negociação e de oportunidades,
de novas formas de sociabilidade, de acesso e exercício de direitos: lugares de diálogos e
de produção de valores que confrontem os pré-conceitos de incapacidade, de invalidação
e de anulação da experiência da loucura. Em outras palavras, não devemos usar as
oficinas como uma resposta pré-formada, e sim produzi-las como recurso nos processos de
singularização, de produção de emancipação e de construção de cidadania na vida social
dos portadores de sofrimento mental. (Minas Gerais. Secretaria de Estado de Saúde, 2006,
p.72)

O Centro de Convivência São Paulo (CCSP) é um dos 9 centros de convivência da


rede de saúde mental de Belo Horizonte (Belo Horizonte, 2014). Localizado no Distrito
Sanitário Nordeste, compartilha seu espaço físico com o Centro de Apoio Comunitário do
bairro São Paulo (CAC-SP), um dispositivo da Assistência Social que presta serviços e
oferece atividades esportivas, culturais e cursos profissionalizantes à comunidade. Além das
oficinas como as de música, teatro, pintura, costura e rádio, outras atividades também são
desenvolvidas no CCSP como passeios, idas ao cinema, festas, reuniões com familiares e
assembleias.

18
As quatro edições do programa Louca Sintonia, alvo desta pesquisa, podem ser acessadas na íntegra no link
https://www.ufmg.br/online/radio/arquivos/038315.shtml
65

Além dos usuários e equipe de profissionais, circulam pelo CCSP alunos e professores
de diferentes cursos e universidades de Belo Horizonte, desenvolvendo aulas práticas,
estágios curriculares, extracurriculares, projetos de extensão e de pesquisa, fazendo deste um
campo que tem importante contribuição na produção de conhecimento em saúde mental.

Desde a época de sua criação, o Centro de Convivência São Paulo é parceiro do


Departamento de Terapia Ocupacional e do curso de Terapia Ocupacional da UFMG em
projetos de extensão, disciplinas práticas e estágios curriculares, sendo a primeira vez que esta
parceria se estende para o âmbito da pesquisa. Apesar da parceria de longa data, a proposição
da pesquisa foi cuidadosa, devido a dificuldades que a UFMG, em especial, vinha
encontrando para implementar projetos de pesquisa na rede substitutiva de saúde mental de
Belo Horizonte. O Comitê de Ética em Pesquisa da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte
(CEP/PBH) e a Coordenação de Saúde Mental do município, alinhados ao movimento
antimanicomial, sempre questionaram o baixo envolvimento e participação da universidade
nos debates e na construção da Reforma Psiquiátrica brasileira; as críticas eram e ainda são
mais acirradas diante da perspectiva biologicista da psiquiatria, no curso de medicina da
UFMG, o que acaba por intensificar as questões acerca da formação em saúde mental na
universidade.
Vale destacar que encontramos na UFMG iniciativas de formação, debate e parceria
na construção do atual projeto de Reforma Psiquiátrica, como dissertações, teses, projetos de
extensão, estágios curriculares e eventos nas áreas da Terapia Ocupacional, Psicologia e
Enfermagem, por exemplo, cumprindo um importante papel de resistência neste, que de
acordo com Oliveira (2009), é um “lócus que tem um imenso poder social” (p. 88), muitas
vezes garantido por um discurso científico que de “mera reprodução” (idem, p. 89).

Dentre estas iniciativas, duas merecem destaque. A primeira delas é o Simpósio de


Saúde Coletiva e Saúde Mental, que tem sido realizado pelo L@gir desde 2004 e cujo
objetivo é exatamente “diminuir a distância existente entre a formação acadêmica e as práticas
profissionais efetivamente desenvolvidas nos campos da saúde coletiva e da saúde mental”
(L@GIR, 2017). Este evento, que inicialmente foi interno à UFMG, ganhou caráter
internacional em sua última edição, aliando-se ao Encontro Internacional de Grupos de
Pesquisa e Intervenção. Os temas de cada edição do evento ilustram o compromisso com o
debate em torno da Reforma Psiquiátrica brasileira: “A Loucura atrás dos Muros da
Universidade”; “Agindo para além do Escrito”; “Pesquisar e Intervir para Transformar”;
66

“Contra os Excessos de Teoria ou de Prática: uma interlo(u)cução”; “Caminhos e


Descaminhos da Reforma Psiquiátrica Brasileira: 10 anos da Lei 10.216/2001”; e “A
Formação, a Pesquisa e a Intervenção no Agir em Saúde”.

A outra iniciativa teve início em 2011, a partir de provocações vindas de


representantes da comunidade, como o Fórum de Formação em Saúde Mental de Minas
Gerais (FOFO), Associação dos Usuários dos Serviços de Saúde Mental de Minas Gerais
(ASUSSAM) e o Espaço Saúde (movimento estudantil). Professores da UFMG, que
trabalham diretamente ou em interface com a saúde mental, com o apoio da Pró-Reitoria de
Extensão (PROEX), criaram o Programa de Extensão em Atenção à Saúde Mental (PASME).
Este programa tem cumprido a importante função de discutir a formação em saúde mental e as
políticas públicas da área. Dentre as principais ações do PASME, encontram-se: a criação e
coordenação da disciplina de Formação Livre, “Diálogos Universitários em Saúde Mental”
aberta a alunos de todos os cursos da UFMG e a realização anual da Semana de Saúde Mental
e Inclusão Social, que resultou em dois produtos importantes. O primeiro deles, foi a criação,
pela PROEX, da Rede Saúde Mental UFMG, que agrega representantes de todos os
seguimentos da comunidade universitária, representantes da sociedade e a administração
central da UFMG em torno do diálogo sobre a saúde mental. O segundo foi a discussão e
construção das diretrizes de uma política institucional de saúde mental para a UFMG.

A proximidade entre a universidade e o movimento antimanicomial foi essencial no


início do processo da Reforma Psiquiátrica , quando muitos dos seus “estudantes se tornaram
profissionais militantes do movimento e trabalhadores de serviços de saúde mental”, mas foi
seguida de um progressivo distanciamento e do “reconhecimento praticamente unânime da
necessidade de uma reaproximação entre academia e serviços” (Passos & Barboza, 2012,
p.112). A relação entre a academia e a rede de saúde mental é movida por uma tensão que não
se restringe ao âmbito da saúde mental e que merece ser melhor esclarecida.

4.1 Primeira edição do programa Louca Sintonia: Na trajetória entre o ensino e a


pesquisa, o empoderamento começa a dar sinais19

19
Parte do texto aqui apresentado originou o artigo: Do silêncio à voz: A experiência da construção de uma
oficina de rádio em um centro de convivência no município de Belo Horizonte (Ribeiro, Tomasi, & Passos,
2016).
67

Como já foi dito anteriormente, esta pesquisa de doutorado se originou de uma


disciplina curricular obrigatória do 5º período do curso de graduação em Terapia
Ocupacional, sob minha responsabilidade. O caderno de campo, principal recurso utilizado
para o registro dos encontros com alunos, usuários e equipe do serviço bem como das
reflexões decorrentes daí, foi a base para a construção inicial deste texto.

O ponto de partida da experiência aconteceu em reunião com a gerente do Centro de


Convivência São Paulo para apresentar a proposta de realização da disciplina Prática Clínica
em Terapia Ocupacional II, que contaria com uma turma de 6 a 7 alunos, em encontros
semanais de três horas, ao longo do semestre e sob minha supervisão direta a cada encontro.
Como de costume, durante a negociação para entrada de alunos nos serviços, me prontifiquei
a planejar as atividades da disciplina considerando a demanda dos usuários e do próprio
serviço, sob a sustentação dos princípios da Reabilitação Psicossocial propostos por Saraceno
(1999), em especial no que diz respeito aos eixos habitar, rede social e trabalho. Nesse
primeiro encontro lembramos da boa receptividade que os usuários tiveram em uma
experiência anterior da mesma disciplina, quando foi realizada uma oficina de rádio que
promoveu algumas articulações com espaços culturais da cidade, construiu uma rádio-novela
e apresentou seus resultados dentro do próprio centro de convivência ao final do semestre. A
gerente destacou também a “vocação” do CCSP para atividades relacionadas à área de
comunicação, como oficinas de rádio e de vídeo já desenvolvidas no centro de convivência, a
produção de jornal, um projeto de construção de uma rádio dos próprios usuários, que foi
submetido a um edital do governo federal, mas que não foi aprovado, e um projeto de
realização de um seminário sobre comunicação e saúde mental. A sugestão de resgatarmos a
ideia do rádio, inicialmente no âmbito do CCSP para, quem sabe, despertar neles o interesse
pela construção de uma rádio própria, foi bem aceita e nos remeteu à aproximação que alguns
profissionais da Rádio UFMG Educativa tiveram com a luta antimanicomial, no papel de
jurados do concurso de samba-enredo para o 18 de maio em Belo Horizonte. Entramos em
consenso sobre propor aos usuários uma oficina de rádio e, se eles concordassem com a ideia,
propor também uma tentativa de interlocução com a Rádio UFMG Educativa, como forma de
desenvolver uma prática intersetorial e de viabilizar a circulação social de uma possível
produção da oficina.
Considerando as ponderações acerca da relação entre UFMG e a rede de saúde mental
mencionada anteriormente, reforcei o caráter coparticipativo da proposta e assumi o
compromisso de compartilhar com a gerente todo o material produzido na oficina de rádio,
68

antes que fosse ao ar, a fim de deixá-la tranquila acerca do cuidado ético que envolvia a
exposição dos usuários, da equipe e do próprio serviço na mídia radiofônica. Posteriormente,
com a confiança fortalecida e com o retorno que os próprios usuários davam sobre o trabalho
no dia-a-dia do CCSP, o trabalho ganhou maior independência, flexibilizando o
acompanhamento pela gestão. Ainda assim, sempre que alguma demanda nova surgia, era
compartilhada pessoalmente com a gerente, intermediando possíveis negociações, como
aconteceu no momento da proposição, pela rádio UFMG Educativa, de transmissão ao vivo,
direto do CCSP, de uma edição temática do programa conexões, durante a semana da luta
antimanicomial.

A ideia inicial da disciplina foi então apresentada aos alunos com o convite para que
colocassem em suspensão toda a teoria vista no curso até então e para que se abrissem para o
novo, para o encontro com os usuários e com a proposta de uma oficina de rádio que seria
apresentada a eles, que poderia ser aceita ou não por eles, e que seria construída a partir do
que eles trouxessem como ideias e demandas. Uma retomada da teoria ou nova reconstrução
teórica certamente aconteceria posteriormente, mas orientada pelo fazer, pela práxis da
oficina, em um processo de coconstrução do conhecimento (Ribeiro, Barboza & Passos, no
prelo), com todos os atores envolvidos. As reações imediatas dos alunos foram de interesse,
mas também de estranhamento.

Um convite para que os usuários participassem do primeiro encontro da oficina foi


gravado pelos alunos, na forma de um teaser20, e enviado ao serviço para divulgação. No
horário combinado ninguém apareceu, o que provocou uma decepção geral da turma e, por
outro lado nos permitiu fazer as primeiras reflexões acerca do encontro com a prática, as
expectativas idealizadas por todos e o cuidado necessário para que não nos antecipássemos ao
desejo dos usuários. In loco, os alunos ensaiaram, então, um pequeno esquete21 fazendo novo
convite aos usuários e apresentando-o nas oficinas que aconteciam no serviço naquele
momento, o que resultou na presença de alguns deles poucos minutos depois.

No primeiro encontro dialogamos com os usuários sobre a experiência de escutar rádio


e da participação anterior deles em oficinas com esse tema, sobre a conversa com a gerente e
a ideia que surgiu de retomarmos a proposta de uma oficina de rádio pensando na
possibilidade futura de uma rádio dos usuários. Todos se interessaram e um deles se lembrou

20
É um recurso usado em rádio, televisão e publicidade que visa provocar a curiosidade e atrair a atenção das
pessoas sobre determinado assunto.
21
Refere-se a pequenas peças ou cenas dramáticas ou cômicas, de curta duração.
69

da disciplina anterior e de sua insatisfação com o fato de não ter ouvido o resultado da oficina,
reivindicando a gravação final e que o mesmo não se repetisse com essa turma. A
apresentação do programa realizado naquela época aconteceu durante atividade realizada em
um parque municipal, próximo ao serviço, mas nenhuma cópia da versão final ficou no
serviço para arquivo ou para disponibilizar aos interessados.

Esse primeiro encontro permitiu retomarmos a construção de uma relação de


confiança mútua entre os usuários, o serviço e a universidade. Ficaram claras tanto a
importância do cuidado ético nas relações no nível da assistência, do ensino e da pesquisa,
quanto a necessidade de uma problematização ética permanente a respeito da prática (Ribeiro,
Tomasi, & Passos, 2016) que, no caso da pesquisa, por exemplo, não se esgota na vigilância
feita pelos comitês de ética em pesquisa (Colinet & Passos, 2015).

Acordo feito, os usuários passaram a levantar as possibilidades de músicas e o tipo de


informação que gostariam de ver veiculadas numa rádio deles; pensaram também em
possíveis nomes para uma rádio, como Futurismo, Bem-Estar, Dinâmica, Criativa, Flex,
Convivência, Jovem, Evolutiva, Missão, Autêntica. Dado o passo inicial, novo teaser foi
gravado, agora com a participação de dois usuários, convidando os demais a comparecerem
aos próximos encontros, ilustrado pelos trechos deste rap de A.R.:

Você que é meu amigo


Você que é meu colega
Eu te faço um convite
Não é égua
Não é burro
Não é buchecha
É mau?
É bom?
É ruim?
É legal.
Por isso estou aqui te convidando
E tal
.....
Deu vontade de cantar, deu vontade de rimar
E as pessoas convidar
As pessoas convidar pra oficina de rádio
Isso é muito legal
Fala comigo que eu escuto com a boca
Eu já fui vida louca
Quinta feira
Tá começando a oficina
De rádio
Eu vou cair na piscina.
70

Assim, estava dada a partida para uma experiência originada do encontro entre as
demandas institucionais da universidade, voltadas para a formação acadêmica, com a
demanda do serviço de retomada de investimento em atividades relativas à comunicação.
Apesar de partir de demandas vindas de estruturas tão instituídas como a universidade e o
serviço, a proposta só faria sentido se fosse inicialmente acolhida e depois apropriada pelos
usuários, dando lugar a “reposicionamentos subjetivos” e corresponsabilização entre todos os
que assumiriam o protagonismo e a horizontalidade do processo (Passos, et al., 2013, p.31).

A consulta à Rádio UFMG Educativa sobre a viabilidade de uma parceria resultou


num feliz encontro que enlaçou a perspectiva de coparticipação da oficina com o tripé
editorial da Rádio UFMG Educativa - visibilidade, formação e alternativa22 - e com o
cotidiano da Rádio UFMG, também coconstruído coletivamente por todos daquela equipe. De
imediato, abriram as portas para receber os usuários em uma visita para conhecer o dia-a-dia
da rádio e colocaram a proposta de nos assessorarem, in loco, na construção de um programa
que pudesse entrar na grade de programação da Rádio UFMG Educativa. Saí de lá com a
tarefa de submeter aos usuários a ideia de construção de um programa de rádio que entrasse
na grade de programação da rádio e, havendo concordância, de responder as seguintes
perguntas que fazem parte do procedimento inicial de elaboração de qualquer programa da
emissora:

1. Qual o público que pretendemos alcançar?

2. Quais os meios de produção nós temos? Recursos financeiros; recursos técnicos


(estúdio, telefone, microfone, etc.); recursos humanos; disponibilidade de tempo para
gravação; as fontes de informação que fornecerão o material para o programa
(usuários, trabalhadores, teóricos); embasamento teórico que vai dar a linha do
programa. Os recursos financeiros não seriam necessários e os técnicos não se
aplicariam ao nosso caso porque seriam os da Rádio UFMG Educativa.

22
"a visibilidade serve tanto para divulgação de projetos quanto para uma certa prestação de contas junto à
sociedade. [...] formação complementar dos alunos, professores e funcionários da Universidade [e de] um
público mais crítico e com melhores ferramentas para selecionar a avalanche de informações a qual está sujeito
na sociedade contemporânea. [...] uma programação alternativa à de outras emissoras desta região. É
fundamental que um canal educativo de rádio, ligado a uma universidade pública, ouse criando formatos
diferentes, fale de assuntos nunca tratados, experimente locuções e paisagens sonoras alternativas" (Santos,
2010, p.46-47).
71

3. Qual o formato do programa? Considerar que as estreias normalmente acontecem


depois de um mês de programas prontos, sendo que as duas primeiras opções abaixo
envolvem gravação semanal.
a. Pílulas: com 2 a 3 minutos de duração em torno de um determinado tema. Não
tem música e vai ao ar de 2ªa 6ª feira;
b. Programete: com 7 a 8 minutos, pode contar com falas e música e vai ao ar
pelo menos uma vez por semana;
c. Programa de 15 minutos: semanal, com música, informação, cultura.
d. Programa de 60 minutos: semanal, com 4 blocos de 12 minutos e são mais
musicais
Os usuários se entusiasmaram e aderiram imediatamente à ideia de parceria com a
Rádio UFMG Educativa. A partir daí algumas ações aconteceram: definição do nome do
programa; visita ao espaço da Rádio e resposta às perguntas que ajudariam a definir a estética
do programa.

A definição do nome do programa aconteceu em um processo de eleição que se deu


em dois turnos, ao longo de duas semanas e a partir de nomes sugeridos por eles, resultando
no nome "Louca Sintonia".

A visita à Rádio UFMG Educativa foi planejada previamente com eles e no dia contou
com a presença de três usuários, os mesmos que acabaram por se tornar os mais assíduos e
envolvidos durante os dois semestres que se seguiram. A visita foi marcada por muita
exaltação, ansiedade e por algumas provocações entre dois dos usuários, que precisaram ser
manejadas a fim de se manter a viabilidade da iniciativa. Experimentaram e ouviram a
locução de suas próprias vozes no estúdio de gravação, receberam do coordenador da Rádio a
informação de que poderiam ficar à vontade para falar do que quisessem no programa a ser
construído e que depois de definirem a linha do programa, produtores e estagiários da Rádio
UFMG Educativa estariam presentes em todos os nossos encontros, com os equipamentos
necessários para a gravação do material.

Os tramites para a construção do programa foram os mesmos de qualquer outro da


emissora. A dinâmica de funcionamento da rádio permitiu adequar o formato do programa ao
tempo dos usuários, dos alunos e da disciplina, resultando na estética de 1 hora de duração,
com quatro blocos de 12 minutos, frequência semestral, para um público alvo geral; os
recursos humanos disponíveis foram os próprios usuários, alunos e professores; as fontes de
72

informação seriam os próprios usuários, os oficineiros, as oficinas do centro de convivência,


sua gerente, as ideias de Saraceno e Basaglia e a política nacional de saúde mental; o tempo
disponível correspondeu ao horário da disciplina, ou seja, toda quinta feira, de 8h30 às 11h30.
Como conteúdo do programa optaram por temas relacionados à cultura (cinema, TV, teatro),
esporte, variedades, saúde, piadas, música de diferentes gêneros (Música Popular Brasileira
[MPB], sertanejo, Jovem Guarda, gospel) e músicas do Raul Seixas, compositor brasileiro
tornado ícone do movimento antimanicomial. A Rádio UFMG Educativa reafirmou a
viabilidade da estética proposta e que o programa poderia ir ao ar uma vez por semestre, como
um especial dentro do programa diário chamado Conexões, que tem como pauta divulgar
grupos, projetos e propostas sobre ciência, cultura e cidadania (Santos, 2010).

A partir daí o material produzido pelos usuários foi sendo recolhido por meio de
gravações nos celulares dos alunos e nos gravadores da equipe da Rádio UFMG Educativa,
para posterior seleção e edição conjunta com eles: depoimentos sobre a experiência com a
loucura; sobre o histórico e as ideias que originaram o Movimento da Luta Antimanicomial;
entrevista sobre o processo de criação do CD São Doidão; causos; piadas; redação de textos
por aqueles que não gostam de falar em rádio; músicas cantadas por eles em capela para
posterior associação com as melodias levantadas pela equipe da Rádio UFMG; raps de autoria
de um dos usuários, improvisados a cada encontro; paródias musicais feitas por outro usuário,
ou “canções corrigidas”, como ele preferiu nomeá-las.

No penúltimo encontro o material definitivo foi selecionado por eles, no intuito de


compor os quatro blocos de 12 minutos cada e a equipe da Rádio UFMG Educativa fez a
primeira edição, sem cortes. No último encontro antes de ir ao ar os usuários ouviram a versão
final do programa, fizeram os cortes necessários, criaram a vinheta, escreveram teasers sobre
a Reforma Psiquiátrica, sobre a loucura e suas relações com a sociedade, que foram lidos por
eles para fazer a ligação entre as falas e as músicas, como os criados por P.T., um dos
usuários:

Lidar com a loucura é difícil porque ela é um mistério misterioso.

Tem o louco total, o louco real e o louco legal.

Vozes do além? Invenções dos loucos ou simplesmente vozes do além?

No dia em que a primeira edição do Louca Sintonia foi ao ar todos os usuários que
tiveram participação direta no programa, outros que estavam no Centro de Convivência,
73

alunos, professores, trabalhadores e gerente do serviço e a equipe da Rádio UFMG Educativa


nos reunimos para lanchar e ouvir o programa. Foi muito bonita a reação de cada um deles ao
ouvirem seus nomes serem anunciados, ao vivo, pela locutora e ao ouvirem o programa todo.
O empoderamento começava a se manifestar ali, ainda que de forma incipiente, na mistura de
orgulho, vaidade, e posturas altivas daqueles que tiveram a oportunidade de usar a própria voz
para dizer ao mundo que "a loucura é um jeito diferente de ouvir, sentir e pensar a vida"
(P.T.). As audições coletivas ao final de cada edição do programa foram instituídas desde
então, propiciando um momento de encontro bem como de devolutiva do trabalho realizado.

A construção da 1ª edição do programa Louca Sintonia demonstrou assim, seu


potencial de estratégia de empoderamento que busca a transformação do estigma social
relacionado à loucura, comum em projetos que articulam iniciativas culturais, artísticas,
esportivas e de lazer.

Os depoimentos gravados, as letras das músicas compostas pelos usuários e a


entrevista que conta sobre o processo de criação do CD do Coral São Doidão ganharam
contornos de narrativas pessoais da vida com o transtorno mental, reconhecidas como
estratégias de empoderamento importantes no processo de recovery em saúde mental
(Vasconcelos, 2003, 2005, 2013, 2013b). O depoimento de W. sobre o processo de criação do
Coral São Doidão é ilustrativo a esse respeito:

O trabalho em equipe e ao mesmo tempo relacionando com a saúde mental é muito


gratificante, porque você passa a ter visão em grupo, em sociedade. E mesmo a pessoa que
tem um pouquinho de dom pra música, esse pouquinho de dom pode aumentar, porque
quando é um processo que você tá num objetivo de participar e envolver a música em seus
termos diversos – a composição, a criação – você começa a sentir que qualquer pessoa tem
condições de conseguir os objetivos.... Prá mim tá sendo muito gratificante e tenho observado
isso aí no meu próprio relacionamento com outras pessoas, né (Louca Sintonia: o programa
mais lúcido da cidade, 2014, 18’55’’).

Na 1ª edição do Louca Sintonia os participantes usaram suas vozes para, a partir de


suas próprias experiências de sofrimento, provocar a reflexão do ouvinte sobre o estigma em
torno da loucura e suas consequências.
Com uma estética provocadora, o programa não segue os padrões e expectativas
comuns em torno de atrações radiofônicas comerciais, permitindo, por exemplo, que Raul
Seixas se encontre com o rap freestyle e com a música Gospel num roteiro onde a loucura
mostra sua cara, ou melhor, mostra sua voz de resistência.
74

4.2 Segunda edição do programa Louca Sintonia: analisar a implicação para manter
a sintonia e a lucidez

Sabendo da proximidade do meu afastamento das atividades docentes em função do


doutorado e visando preservar o compromisso feito com os usuários, com o Centro de
Convivência e com a Rádio UFMG Educativa, submeti o formato coparticipativo da
disciplina ao Departamento de Terapia Ocupacional, que assumiu o compromisso de dar
continuidade ao projeto, indicando um professor para conduzir as atividades com a nova
turma de alunos, já no processo de construção da 2ª edição do Louca Sintonia.

A partir daí, já no papel de observadora participante da experiência, me deparo com


interrogações do tipo: Como conciliar clínica, ensino e pesquisa? Como lidar com os
diferentes tempos e expectativas de cada participante? O tempo e as demandas dos usuários; o
tempo de aprender aliado às expectativas e inseguranças dos alunos; o tempo da transmissão e
as exigências relacionadas ao processo de ensino-aprendizagem; o tempo do doutorado, aliado
ao desejo de dar continuidade à experiência que iniciei e aos desafios de fazer dela meu
campo de pesquisa. Como passar ao papel de observador participante depois de ter sido a
responsável direta pela experiência? Como lidar com as inseguranças relativas à nova
condução da oficina de rádio por outra pessoa e permanecer no lugar de observador?

No início e, na tentativa de garantir o caráter coparticipativo da experiência, me peguei


retomando o processo de construção do semestre anterior, fazendo recomendações ao novo
professor e aos novos alunos para que evitassem decidir pelos usuários, além de alertar para o
fato de que as ideias que surgiam entre nós eram tantas e tão interessantes, que precisaríamos
cuidar para que tudo fosse levado para decisão conjunta com os participantes da oficina.

A partir daqui a análise da implicação e da sobreimplicação da pesquisadora passaram


a fazer parte do cotidiano da pesquisa, tanto nas trocas acontecidas com a orientadora e com o
grupo de pesquisa do L@gir quanto com o professor e alunos da disciplina, durante as
supervisões, nas conversas que aconteciam no trajeto de ida e volta ao serviço e nos encontros
na própria universidade.

Analisar minha implicação e sobreimplicação possibilitou constatar que, tentar


proteger o que havia sido criado até então sob minha coordenação, era contraditório com a
proposta de coparticipação e de coconstrução do conhecimento almejada pela proposta inicial
da oficina de rádio e com os ideais de autonomia e empoderamento que sustentavam o
75

projeto, bem como com os pressupostos de democratização das relações próprios à pesquisa
intervenção e norteadores das políticas de saúde mental brasileira (Marques, Palombini,
Passos, & Onocko-Campos, 2013).

O decorrer do semestre reafirmou a continuidade do processo, marcado, sem dúvidas,


pelo novo, representado pelas pessoas que chegavam e pelas novas relações e possibilidades
que se evidenciavam. Exatamente como pedem processos que não se fecham e que vão se
fazendo e se refazendo na medida em que acontecem, o que é muito pertinente à práxis de
uma oficina terapêutica em saúde mental, à práxis do processo de aprendizagem e à práxis da
pesquisa-intervenção.

O novo professor pôde se revelar como parceiro de práticas e ideias, com a


radicalidade de defensor da construção do SUS, o que em si já comporta a coparticipação e a
coconstrução do conhecimento como condição.

As atividades e parcerias foram reafirmadas e o formato e teor do programa de rádio


submetidos novamente aos usuários, inclusive a possibilidade de ser interrompido, se assim
desejassem. Em reunião de avaliação do semestre anterior, os novos alunos, usuários e equipe
se apresentaram, reafirmaram a importância do processo, da concretização da primeira edição
e da audição coletiva do programa no dia em que foi ao ar.

A decisão pela segunda edição do Louca Sintonia foi unânime, o formato anterior foi
mantido e o conteúdo deveria focar as produções artísticas dos usuários participantes, que
cantaram músicas conhecidas ou de autoria própria, contaram parábolas, recitaram textos e
expressaram suas opiniões sobre assuntos diversos (Ribeiro, Tomasi & Passos, 2016).

O programa foi tomando forma no cotidiano do serviço e da disciplina. A participação


dos usuários foi quantitativamente menor que na 1ª edição, mas os que escolheram continuar
já estavam mais à vontade com os gravadores e microfones e já demandavam a presença dos
alunos ou da equipe da Rádio UFMG para produzir e gravar seus materiais. O material
levantado foi organizado pela equipe da emissora, o que facilitou sua seleção pelos usuários e
a edição final foi feita pelos professores e produtores nas dependências da Rádio UFMG
Educativa. A audição coletiva da transmissão do programa instituiu-se como o momento de se
constatar a unidade de um trabalho que foi construído também de forma coletiva. Além disso,
configurou-se como espaço de confraternização e de trocas afetivas, como explicitado por
76

uma das produtoras da Rádio UFMG: “há muito tempo eu não via uma cena como essa,
pessoas reunidas em torno de uma mesa conversando, comendo e ouvindo rádio”.

Dentre as participações dos usuários na construção do programa, as que se seguem


ilustram três dimensões importantes para a conquista do empoderamento: as narrativas
pessoais da vida com transtorno mental, o protagonismo no processo coletivo e a defesa dos
direitos (advocacy).

4.2.1 O narrar-se

A.R. trouxe para os programas a prática do rap de improviso, ou rap freestyle, como é
mais conhecido. Em suas letras retratou nossos encontros, sua história de vida, suas
preferências religiosas, a convivência com as drogas e as alternativas que buscava para se ver
livre delas ou para conviver com elas. O rap feito por A.R. tem características de narrativas
pessoais, uma das principais estratégias de empoderamento em saúde mental defendidas por
Vasconcelos (2003; 2005; 2015; Vasconcelos et al. 2013b):

... Eu também sei cantar/Fazer rima/Eu não vou falar de crack/Nem de cocaina/Eu
estou abstinente/E estou muito bem/Mas fazer rima é o que me convém/Eu volto de novo no
mesmo refrão/Que na rima eu sou campeão/Gente, me ajuda gente/A ser manso como a
pomba/E prudente como a serpente.../Já fui pagodeiro/Sei tocar a percussão/Mas na igreja
tem que ter comunhão.../Duelo de MC/Isso é coisa legal/Se eu for naquele lugar eu não vou
passar mal/Tomo meu remédio/Fumo minha maconha/Eu falo tudo isso sem vergonha/Eu
não cheiro pó/Não fumo crack/Só bebo uísque e conhaque/Isso tudo é rima/Pra fazer
música/Mas na realidade/Essas coisa me assusta... (Louca Sintonia: o programa mais lúcido
da cidade, 2014, 23’29’’)

O depoimento do rapper Criolo, no curta metragem “Freestyle: um estilo de vida”


ajuda a entender o que é o rap freestyle praticado por A.R.:

É o estilo livre, o modo que o cara tem de se manifestar criando, organizando seu
pensamento, suas ideias, a sua ideologia praquele momento específico. Ele cria na hora, você
vê a arte borbulhando. Quem tem a oportunidade de ver um cara fazendo freestyle ele vê a
arte sendo feita ali, crua, sem muitas intervenções do universo. Eu pensei, se eu não falei na
23
hora, em cinco segundos, eu já adulterei, né.

A.R. iniciou um projeto em que seus raps, além de serem veiculados no programa,
ficariam registrados num CD, com capa e encarte contendo todas as letras. Havia tentado esse
registro antes com um DJ, mas não teve sucesso porque ele cobrava muito caro. Não sei se

23
O documentário foi acessado em 02/02/2017, na página:
http://www.vaiserrimando.com.br/2012/02/21/documentario-freestyle-um-estilo-de-vida-fala-sobre-a-arte-do-
improviso-no-brasil/ .
77

esse tipo de registro fere os princípios do rap freestyle, mas lhe pareceu interessante, como
forma de se evitar o roubo de suas letras por cantores profissionais, o que segundo ele já teria
acontecido: "Tem música no You Tube que fui eu que fiz. Pegaram e gravaram sem eu ver".
Nos dois semestres que se seguiram, problemas pessoais e familiares fizeram com que se
ausentasse do CCSP e, consequentemente da produção dos programas, retornando para
participar da 5ª edição, que não fez parte desse estudo.

4.2.2 Protagonismo no processo coletivo

Tímido inicialmente, I.C. sempre se lembrava de sua juventude e dos encontros com
os amigos para tocar violão e cantar Raul Seixas. Apresentando-se como técnico em
eletrônica, os aspectos que despertaram seu interesse pela oficina de rádio foram a parceria
com a Rádio UFMG, a possibilidade de conhecer um estúdio e o interesse em trabalhar na
construção de uma rádio. No início da produção da segunda edição gravou uma mensagem
para o coordenador da Rádio UFMG Educativa da época, que acompanhava, in loco, os
trabalhos da oficina, se oferecendo para trabalhar como voluntário na Rádio UFMG
Educativa, o que resultou em um convite para compartilhar, com um estagiário da Rádio, o
controle da mesa de som durante a transmissão, ao vivo, do Programa Conexões que foi ao ar
direto do Centro de Convivência, em comemoração à Semana da Luta Antimanicomial.
Contribuiu para a 2ª edição do Louca Sintonia cantando músicas de sua juventude, das
décadas de 1970-80. I.C. foi participante ativo das quatro edições do programa que fizeram
parte deste estudo, intensificando gradativamente o seu protagonismo no processo.
Incialmente sua participação era para “ajudar vocês a fazer esse rádio, faço o que for preciso
para ajudar vocês”. Aos poucos foi se apropriando e imprimindo sua marca aos programas.
Na 1ª edição cantou, na segunda acrescentou ao seu canto a oferta de trabalho voluntário na
Rádio UFMG, na terceira edição foi um dos que assumiram o microfone para realizar as
entrevistas, que na 4ª edição ganharam maior espontaneidade e receberam toques criativos nas
finalizações, imprimindo seu estilo ao programa. A viabilidade do trabalho voluntário se viu
comprometida por atravessamentos institucionais que culkminaram com a saída e demissão da
maior parte da eqipe de produção da Rádio UFMG Educativa, inclusive o diretor, que apoiava
e sustentava as iniciativas vindas dos usuários. Durante a produção da terceira edição do
programa começou a manifestar seu interesse e envolvimento sócio-político com as questões
do CCSP e da luta antimanicomial. De início expressou desconhecimento sobre a existência
78

da ASUSSAM, de sua proposta e reuniões - “tenho cinco anos aqui e não sabia que existia” -
expressando também um estranhamento por não ser convidado para as reuniões entre os
profissionais e alguns usuários do CCSP para discutir sobre os conflitos com a gestão do
munícipio: “às vezes não sou chamado pra tudo”. No semestre seguinte se ofereceu para
participar da comissão criada durante assembleia geral para pensar em estratégias de
mobilização junto à gestão municipal, participou do protesto, do desfile do 18 de maio e,
junto com I.M.B. e Z.C., foi um dos convidados do programa Conexões que foi ao ar no dia
18 de maio de 2016, debatendo a Reforma Psiquiátrica . Seu posicionamento em defesa do
coletivo se evidenciou num episódio relacionado a sua participação no VI Simpósio de Saúde
Coletiva e Saúde Mental e I Encontro Internacional de Grupos de Pesquisa e Intervenção,
realizado pelo L@gir no segundo semestre de 2015. Como o protagonismo e a coconstrução
do conhecimento eram focos do evento e da experiência da oficina de rádio e I.C. tinha, além
do interesse pelo rádio, um timbre de voz mais grave, sugeri convidá-lo para experimentar a
locução, compartilhando com o mestre de cerimônias do evento a apresentação das atrações
culturais. A ideia foi bem recebida pela organização, pelo mestre de cerimônias e pelo próprio
I.C., que também frequentou as conferências, mesas redondas e um dos grupos de trabalhos
do evento. Além do transporte de ida e volta entre sua casa e o evento e a alimentação, a
organização ofereceu a ele um pequeno cachê. Nesse momento, além de se prontificar a
devolver a sobra do dinheiro que recebeu para o transporte, quis saber se poderia dividir o que
recebeu com os colegas do CCSP. Ao saber que não precisaria devolver o dinheiro do
transporte e que a decisão sobre o que fazer com o dinheiro era dele, ele disse que iria
comprar um lanche para os colegas, porque aquele dinheiro era de todos.

4.2.3 Louco cidadão

A demanda que I.M.B. trazia a todo momento para as oficinas era ser escutado,
divulgar seus livros, suas mensagens e "canções" corrigidas, em que substitui alguns "erros",
transformando-as em paródias ou, como prefere, em novas "canções de bom brilho". Além do
relato sobre os “mais de 30 livros” que diz ter escrito, tesouros dos quais chegou a extrair
fragmentos para compartilhar no programa, sempre levou para as oficinas uma demanda
insistente para que alguém o acompanhasse até seu lote, na região metropolitana de Belo
Horizonte e para ajudá-lo a gravar “um apelo a um juiz que goste de Yaohushua” (nome do
Deus em que acredita) a fim de resolver um problema relacionado à invasão de parte de sua
79

área pelo proprietário do lote vizinho. “Será que a gente vai achar um juiz que acredita em
nós? Será que ele vai me ajudar? ” Suas demandas prosseguiram até o dia em que chegou ao
serviço muito afetado pela notícia de que realmente poderia perder parte de seu lote por
usucapião. Certamente existe todo um histórico que caracteriza as relações desse usuário com
o serviço, com a rede de saúde mental e com a própria família, que ultrapassam os limites
desse estudo, mas que ao mesmo tempo não foi suficiente para deixarmos de nos interrogar a
respeito do que ocorria. Por mais que toda a questão trazida por ele ganhasse um colorido e
exaltação próprios ao seu sofrimento mental, devemos nos interrogar sobre nossa dificuldade
de escutar os usuários fora do diagnóstico que carregam, e se isso não acabaria
comprometendo o exercício dos direitos civis deles. Usando expressão do Professor
Alessandro24, parece que “somos reféns do diagnóstico”. Como nos lembra uma das
nikosianas da Radio Nikosia25, “não compreendo como podem relacionar-se comigo como
louco total; eu sou louco só 10% do meu tempo de vida” (Correa-Urquiza, Arqués, &
Gonzalo, 2005, p. 17). Basaglia (1985) joga luz sobre esse desafio propondo “colocar a
doença entre parênteses”, o que é diferente de negar a doença, como esclarece em uma
entrevista transcrita no capítulo introdutório do livro A Instituição Negada:

Não é que nós prescindamos da doença, mas pensamos que, para estabelecer uma
relação com o indivíduo, é necessário considerá-lo independentemente daquilo que pode ser
o rótulo que o define. Relaciono-me com uma pessoa não pelo nome que tem, mas por aquilo
que é. Assim, quando digo: este indivíduo é um esquizofrênico (com tudo quanto o termo
implica, por razões culturais), relaciono-me com ele de um modo particular ... minha relação
não irá além daquilo que se espera diante da “esquizofrenicidade” do meu interlocutor.... É
por essa razão que se torna necessário enfocar esse doente de um modo que coloque entre
parênteses a sua doença: a definição da síndrome já assumiu o peso de um juízo de valor, de
um rótulo, que vai além do significado real da própria enfermidade. O diagnóstico tem valor
de um juízo discriminatório, o que não significa que procuremos negar o fato de que o doente
seja, de alguma forma, um doente. (Vascon, 1985, p. 28)

Essa reflexão nos remete a outra das estratégias de empoderamento, a defesa de


direitos (advocacy) que, conforme já discutido no corpo desta tese, envolve a busca pelos
direitos civis, políticos e sociais dos usuários, remetendo também ao debate acerca da luta por
direitos especiais. No Brasil, parece não haver ainda um consenso sobre o assunto. Ações
intersetoriais no âmbito dos direitos humanos ou por meio de parcerias com cursos de

24
Alessandro Tomasi é o professor do curso de Terapia Ocupacional que assumiu a disciplina a partir da
segunda edição do Louca Sintonia.
25
A Rádio Nikosia é uma rádio espanhola autônoma, de características comunitárias, cujas transmissões são
produzidas em sua totalidade por cidadãos em sofrimento mental, ou como eles mesmos se nomeiam pessoas
diagnosticadas. Inspirada na experiência argentina da Rádio La Colifata, foi criada por iniciativa de dois
antropólogos e posteriormente assumida integralmente pelos “diagnosticados”.
80

advocacia por exemplo, seriam importantes para dar conta desse tipo de demanda relacionada
aos direitos civis individuais dos cidadãos em sofrimento mental.

4.3 Terceira edição do programa Louca Sintonia: desocupar a palavra e suas


consequências

Os trabalhos da terceira edição do Louca Sintonia se iniciaram com a interrogação do


professor Alessandro: “será que não estamos fazendo mais do mesmo? ”, manifestando seu
incômodo com um aparente continuísmo da experiência da oficina. Uma pergunta semelhante
- até quando a oficina existiria, ou até onde/quando ela faria sentido? - me acompanhava
naquele momento, provocada pelas proposições de Lourau (2004g) sobre a função dos
analisadores:

A teoria dos analisadores implica uma teoria da autodissolução


das formas sociais.... Dissolver o saber instituído (efeito de "revelador") e modificar as
relações de força constitutivas das formas da representação instituída (efeito de
"catalisador"), tal é o trabalho dos analisadores” (pp. 135-136).

Parece-me que este momento marcou o fim de uma transição, na qual eu deixei a
coordenação da disciplina para assumir a observação participante enquanto pesquisadora e o
Prof. Alessandro se autorizou a assumir a condução do processo de construção do programa
de rádio. Um incômodo semelhante me ocorreu quando da chegada dele e da nova turma de
alunos, porque ao mesmo tempo em que eu via perspectivas possíveis de avanço da
experiência percebi também, ao analisar minha implicação, que meu tempo era diferente e que
precisaria me refrear um pouco, inclusive para possibilitar um trabalho diferente do meu.
Perceber que estávamos tocados pelo mesmo tipo de questão, nos permitiu pensar em
estratégias que facilitassem a entrada dos alunos no campo sem que fosse preciso a cada início
de semestre desacelerar tanto o processo iniciado.

A renegociação da permanência em campo com a gerencia do CCSP nos permitiu


continuar nossa reflexão, ponderando sobre a importância de fazermos prevalecer uma
postura de interrogação como forma de lidar com a estagnação e a repetição do instituído.
Repactuamos ainda o compromisso de que qualquer ideia só poderia se viabilizar se pudesse
ser submetida aos usuários, no tempo deles. Evidenciou-se também, a necessidade de uma
maior aproximação da equipe, que ficava especialmente incomodada no início de cada
81

semestre letivo com a chegada dos nossos novos alunos e de alunos de outras universidades
de Belo Horizonte.

Era preciso manter presente a “natureza transitória e finita” (Baremblitt, 2002, p. 139)
da oficina de rádio, como

Precondição para seu bom funcionamento, que implica conjurar os riscos de


cristalização do instituído. Quando um conjunto instituinte cumpriu todos os seus objetivos,
ou quando constata que não está mais conseguindo isso com a "identidade" que se deu, deve
ser capaz de autodissolver-se para não se perpetuar como uma finalidade em si mesma.
(idem).

Propusemos assim, a realização de um Seminário com o objetivo de avaliar a oficina


de rádio, possíveis dificuldades relacionadas ao trabalho em equipe, o impacto que nossa
chegada produzia no cotidiano dos usuários e da equipe a cada semestre e também com o
objetivo de compartilhar as propostas de trabalho dos nossos alunos, do CCSP, de suas outras
oficinas e de uma turma de alunos de medicina que se incorporou ao serviço, o que será
melhor detalhado e analisado separadamente, logo adiante.

Circunstâncias políticas, agora no âmbito da gestão federal, representaram


atravessamentos importantes durante a construção da 3ª edição do Louca Sintonia, por colocar
em risco direitos sociais essenciais ao protagonismo do cidadão em sofrimento mental. O
mais marcante dos atravessamentos foi a demissão do Coordenador Nacional de Saúde
Mental, Roberto Tikanori Kinoshita, um protagonista importante da Reforma Psiquiátrica no
Brasil, em consequência da oferta de cargos e postos que o governo da presidente Dilma
Rouseff implementava na busca por apoio e fortalecimento político. Em seu lugar, o recém
empossado Ministro da Saúde nomeou seu amigo pessoal, Valencius Wurch Duarte Filho,
psiquiatra de perfil hospitalocêntrico e manicomial, crítico declarado da Reforma Psiquiátrica
implementada pela Lei 10.216/2001. De imediato, as forças instituintes representadas pelos
defensores das políticas públicas de atenção à saúde mental se organizaram em uma
mobilização nacional e internacional de resistência ao discurso defendido pelo Ministro da
Saúde de reformulação e humanização da “lógica da segregação e despersonalização dos
manicômios” (Onocko-Campos, 2015)26. Diversos movimentos sociais se reuniram em
protestos por meio de caravanas que viajaram a Brasília, ocupando fisicamente o espaço da
Coordenação de Saúde Mental no Ministério da Saúde, por meio da criação de petições

26
http://www.abrasco.org.br/site/noticias/institucional/saude-mental-e-futuro-artigo-de-rosana-onocko-
campos/15355/ Acessado em 03/02/2017
82

virtuais pedindo a exoneração de Valencius e por meio de informações, críticas, reflexões,


reinvindicações e apoios nas redes sociais.

A produção da terceira edição do Louca Sintonia se deu nesse cenário. O sentimento


de apreensão diante da ameaça a todas as conquistas introduzidas pelas políticas públicas de
saúde mental tomou conta do cotidiano do CCCSP e da oficina de rádio e, como não podia
deixar de ser, foi o fio condutor da terceira edição do Louca Sintonia, que privilegiou
entrevistas e depoimentos sobre a experiência no manicômio vivida pelos usuários, sobre a
Reforma Psiquiátrica e sobre a maior participação social decorrente daí, como exemplificado
pelos depoimentos abaixo, extraídos da 3ª edição do Louca Sintonia:

Quando eu tô dentro da sala [consultório de um hospital psiquiátrico] conversando,


de repente eu quis sair. Para que eu fui tentar sair... Aí o psiquiatra foi e apertou um
botãozinho debaixo da mesa ... e entrou um monte de enfermeiro na sala e me bateram
demais. Aí foi a primeira vez que tomei o tal sossega leão.... Quando eu acordei eu tava
amarrado numa cama, tinha feito as necessidades tudo na cama, ninguém olhava. .... Lá
dentro na época não tinha muita conversa não, a gente só tinha punição. Por exemplo, eu
fiquei nessa cela forte, e dentro dessa cela forte sabe o que é que tinha lá dentro que fazia
muito barulho? Eu achava que era bicho que tava comigo. Tinha um anão surdo mudo que
eles não tiravam lá de dentro de jeito nenhum, e ele ficava sem comer (depoimento de um
usuário aos 8’49’’ do 4º bloco do programa).

Eu acho que melhorou muito, porque naquela época [da visita de Basaglia à
Barbacena] as pessoas eram tratadas como animais, tipo assim, eles ficavam lá onde a família
não podia ver, eles eram totalmente excluídos da sociedade. E hoje não, hoje a gente pode ter
contato com a sociedade e as pessoas que convivem com a gente podem saber que a gente
não faz mal a ninguém, né (depoimento de uma usuária aos 58’ do 1º bloco do programa).

Nesta edição do programa os usuários assumiram integralmente os microfones e foram


a campo em busca da matéria, protagonizando a realização de entrevistas com outros usuários
e com a equipe do CCSP a partir de perguntas elaboradas por eles mesmos, à medida em que
a conversa ia acontecendo. Nessas entrevistas predominaram temas como a militância na luta
antimanicomial, as ameaças de perda do espaço físico pelas quais o CCSP passava e a
participação em um campeonato entre serviços da rede, no qual o CCSP foi campeão no
futebol, peteca e terceiro lugar no boliche. A abertura para falar sobre os dois primeiros
temas, a militância e as ameaças de perda do espaço no CAC-SP, trouxeram Z.C. para a
oficina de rádio. Ela que durante o seminário deixou claro para todos nós que: “Quando vocês
menos esperar tô chegando na Rádio. Mas tem o tempo certo, não gosto que me force.
Deixem a porta aberta, pra eu entrar e sair”.

Aqui apareceu a quarta dimensão do empoderamento: a militância. Tiramos as portas e


todos foram para a praça, inclusive Z.C. que se comprometeu a se preparar para falar sobre a
83

luta ou sobre a mobilização contra a tentativa da PBH de tirar o CCSP do espaço que ocupava
junto ao CAC, onde, segundo ela, têm a oportunidade de conviver com a comunidade, apesar
do próprio CAC ter dificuldades com a presença dos usuários. No trecho de uma das
entrevistas que foi ao ar na terceira edição ela retrata a mobilização dos usuários, que estavam
se reunindo em comissão junto com a gerência do CCSP e com o Fórum Mineiro de Saúde
Mental para pensar em estratégias para enfrentar a situação:

Usuário entrevistador: Politicamente tá tendo algum problema aqui no CC que tem


que ter uma intervenção da gente?
Z.C.: Sim, tá tendo que a prefeitura tá querendo tirar a gente desse espaço, pra levar
a gente não sei pra onde, e agora nós estamos unidos nessa briga, e nós vamos lutar porque
nós não vamos sair assim não, nós vamos lutar.

Ao deixar a sala onde acontecem os encontros, o Louca Sintonia ocupou os diferentes


espaços do CCSP e do CAC, como as oficinas, áreas de convivência, cozinha, os bancos sob
as sombras das árvores e o ginásio de esportes. A terceira edição do programa foi
conquistando assim, um caráter mais autônomo, mesclando arte e cultura com reflexão e
posicionamentos políticos decorrentes das entrevistas criadas e conduzidas pelos usuários. O
desenrolar das histórias e dos depoimentos sobre a experiência com a loucura e com as
violências sofridas durante internações psiquiátricas aconteceram de forma mais fluida e
natural, sem o constrangimento de terem que falar ou seguir o politicamente correto e
esperado.

A partir de diretrizes vindas da mobilização nacional contra a indicação do


Coordenador Nacional de Saúde Mental, a partir de janeiro de 2016, no dia 18 de cada mês
cada dispositivo da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) faria uma intervenção visando a
chamar atenção da comunidade para a tentativa de desmonte da política nacional de saúde
mental. A coincidência com o período de férias escolares dos nossos alunos e a limitação no
número de pessoas da equipe da Rádio UFMG, devido a demissões e férias, inviabilizaram a
realização de programas para os meses de janeiro, fevereiro e março. Decidimos então
trabalhar a partir das três edições do Louca Sintonia que já tinham ido ao ar. A terceira foi
reprisada no dia 18 de janeiro e teasers extraídos dos programas passaram a entrar algumas
vezes durante toda programação diária da rádio e, de forma mais intensiva, nos dias 18 de
cada mês. O resultado foi que o Louca Sintonia ganhou maior visibilidade e despertou a
curiosidade dos ouvintes da rádio. Algumas das frases que ganharam o formato de teaser
foram:

Mais perigoso que o louco bruto é o político corrupto.


84

Maldade... maldade... onde está a maldade? Na fantasia do louco ou na brutalidade


da sociedade?

Demandas ou oportunidades para ações políticas às vezes pedem agilidade. Foi


quando nos deparamos com o desafio de conciliar o tempo da política com o tempo dos
usuários, da academia e do serviço. A necessidade de uma mobilização permanente, não só
entre os profissionais da saúde mental, mas também entre os próprios usuários tornou-se
evidente pela primeira vez, durante o processo de realização da pesquisa, evidenciando o
aspecto relacionado à militância, que retornará na quarta edição do programa.

Mas, antes de passarmos à quarta edição do programa Louca Sintonia, faremos uma
análise pormenorizada do Seminário de Avaliação que a antecedeu e das mudanças ocorridas
produziu na dinâmica das supervisões de trabalho da disciplina.

4.3.1. O Seminário de avaliação: se a avaliação é coletiva por que as supervisões não


podem ser também?

O que primeiro chamou atenção no Seminário foi a diferença gritante entre o número
de 10 usuários e o de 27 membros da equipe, dentre os quais estavam incluídos 3 oficineiros e
a gerente do CCSP, esta pesquisadora, 4 alunas e o professor da Terapia Ocupacional, 14
alunos e a professora de um curso de medicina e 2 profissionais da Rádio UFMG.

Ainda assim usuários e equipe se posicionaram de forma incisiva, defendendo a


singularidade de seus projetos e de sua forma de participar, ao mesmo tempo em que
reivindicaram se envolver na construção de propostas de atividades futuras, lembrando a
todos que ali o estigma em relação à loucura e a imposição de saber não seriam bem-vindos.
As falas abaixo ilustram o exposto.

I.M.B. referindo-se ao trabalho que fazia e trazia consigo conta que são “bordados
masculinos, gosto de inventar um monte de coisa boa, desde que nasci ... o seu 'O' pode ser de
um jeito, o meu 'M' pode ser de cabeça para baixo. Estou escrevendo a originalidade de tudo”.

A.R. contou que frequentava o CCSP para "aprender a conviver com as pessoas,
porque não é fácil" e, já anunciando onde estava seu interesse, completou sua apresentação
dizendo que “estou realizando o 1º sonho da minha vida: gravar meu primeiro CD, por isso,
agora não quero fazer rap, quero ouvir, refletir, até quando sair o CD. ”
85

Z.C., dirigindo-se aos estudantes reivindica

Que vocês tragam algo para ajudar, alguns passam e não trazem nada. Nosso lema
aqui é amar nosso próximo sem saber quem ele é... Aqui nós somos gente, passou daquele
portão somos todos iguais, apesar de que tem gente que acha que é melhor que a gente. Aqui
é colorido. Aqui eu sou eu mesmo. Sou doidinha, mas sou feliz.

Anunciando a horizontalização das relações de saber como pressuposto de


funcionamento do serviço, usuários e equipe apresentaram o CCSP aos estudantes como um
espaço de convivência, de estabelecimento de trocas, “de inventar, [para] ajudar a construir
isso aqui. Esse é um lugar diferente de tudo, [onde] a primeira coisa que a gente precisa fazer
quando entra aqui é esquecer tudo que a gente sabe” (oficineira).

A gerente do serviço, reafirmou o potencial do Centro de Convivência para

Inventar a vida. É espaço da invenção, onde a arte tem o papel da humanidade, tratar
a humanidade, não a doença. Aqui os artistas não são arte terapeutas.... É um lugar de troca
[referindo-se à fala de um usuário]. A gente vem aqui para aprender o que? O que esse lugar
tem para ensinar? É tão singelo, tão simples, é o que cada um de nós tem de humano.
Condição para maior inclusão? A mudança começa com a nossa desinstitucionalização, como
diz Basaglia. Mesmo com toda técnica, é o humano com o humano do outro lado. Tirar a
bagagem, desarmar... E aí?

Z.C. aproveita a colocação da gerente e introduz também a relevância da


democratização nas relações de poder:

Isso é importante. Os outros estudantes chegavam aqui e eles eram estudantes e nós
usuários. É a primeira vez que a turma de estudantes entrosa com a gente. Se eu não confiar
em você não vou fazer oficina com você nunca. [E, referindo-se à ideia da turma de Medicina
de fazer uma gincana para encerrar o semestre, conclui que] tem que aprontar o pacote junto
com a gente, aqui dentro.

No carro de volta para UFMG após o seminário, prevaleceu o silêncio entre as alunas,
ninguém conseguia falar muito, tal era o impacto diante do que surgiu no Seminário. Na
supervisão seguinte as alunas da Terapia Ocupacional manifestaram a surpresa e satisfação
com o posicionamento dos usuários e por "eles terem o que acrescentar para nós. E não é
qualquer coisa que eles esperam!" Além disso expressaram também o incômodo pelo fato da
proposta dos alunos da medicina não ter sido construída em conjunto com os usuários e com o
recorrente “estamos aqui para ajudar”, presente nas falas deles durante a reunião e nas nossas
supervisões, o que no entendimento de uma delas retratava a postura de superioridade na qual
muitos médicos se colocam, na relação com o paciente.

Ao final todo o peso das críticas e expectativas explicitadas na reunião acabaram


centradas na chegada dos alunos da Medicina, o que acabou por cumprir o papel de analisador
ao expor a essência das relações de poder no âmbito da saúde. As alunas da Terapia
86

Ocupacional se calaram diante deles, não só durante a reunião, mas também durante as
supervisões das quais eles participavam. A já tão angustiante tarefa de explicar o que é e a que
se propõe a Terapia Ocupacional se exaltou, impedindo inclusive um distanciamento mínimo
que permitisse a elas refletir sobre o fato de que nem mesmo os alunos da medicina
conseguiam dizer o que é a profissão deles, dada a naturalização que o conceito tem entre nós.
Ninguém tem dúvidas do que é a medicina e do que faz o médico, ou pelo menos questões a
esse respeito não costumam ser levantadas. Mas, quando os alunos foram chamados a
responderem o que é a Medicina o que conseguiram dizer, de imediato, foi sobre aspectos que
não a definem, como por exemplo, tratar bem o paciente e buscar qualidade de vida. Apesar
de serem alunos do início do curso, nunca terem tido contato com a saúde mental e estarem ali
também para aprender, assim como as alunas da Terapia Ocupacional, estas se calaram diante
do suposto saber desses futuros médicos, além de manifestarem uma oposição inicial à ideia
de trabalharem formando duplas com eles.

Se o que foi dito na reunião, a princípio foi direcionado aos estudantes de medicina,
podemos pensar que também se referia aos estudantes da Terapia Ocupacional que, sob nossa
orientação, se colocam na posição de observadores a cada novo semestre e, numa postura
naturalizada, adentram os espaços das oficinas, como se a repactuação do contrato não
devesse acontecer cotidianamente, reforçando um saber que se impõe ao sujeito, como
explicitado na crítica de uma das alunas “a gente se impõe aqui, estarmos aqui hoje é uma
imposição”.

O momento foi oportuno para retomar a reflexão sobre as relações de poder


estabelecidas entre professor aluno e entre profissionais de saúde e usuários iniciada na
semana anterior à do seminário, durante a discussão do filme “Em Nome da razão”, de
Helvécio Ratton, que foi sugerido como forma de se retomar parte da história que culminou
na atual Reforma Psiquiátrica e na proposta de desinstitucionalização, dando origem aos
atuais serviços substitutivos ao manicômio. Esse filme costuma produzir um efeito impactante
ao trazer de volta a dura realidade manicomial, em especial para os que entram no campo da
saúde mental pela porta dos serviços abertos. Ao final do filme os alunos comentaram sobre
como é difícil entender porque a coisa acontecia daquela forma, o que pensavam as pessoas
que permitiam que aquilo acontecesse e como podiam nomear aquela desumanidade como
tratamento.
87

O Prof. Alessandro chamou atenção para as relações de poder explicitadas no filme e


para a segregação que acontecia e ainda acontece de forma naturalizada, a todo momento, nas
relações que os profissionais de saúde estabelecem com os próprios pacientes, ao colocarem-
se na posição de quem tem o saber sobre eles e de como, muitas vezes, esse saber está
incorporado ao uso do jaleco, por exemplo. Sua colocação produziu um incômodo muito
grande em todos os alunos, provocando reação imediata de um dos alunos da medicina, que se
defendeu dizendo que estavam num curso diferenciado, que prezava muito pela relação
terapêutica, mas que estudavam para ajudar o sujeito a se curar e que "se não pudermos fazer
isso para eles, então o que vamos fazer?" As alunas da Terapia Ocupacional concordaram,
lembrando que também eram formadas para ajudar e que a questão levantada também passava
por elas.

Mas o fato é que o lugar instituído do saber e do conhecimento acadêmicos está


presentificado não só naqueles que usam o “jaleco branco. Símbolo da superioridade,
estereótipo comprado, hierarquia desejada” (Gaudenzi, 2015, p. 177), mas em todo aquele que
de alguma forma representa a universidade, seja professor ou aluno.

Introduzi na discussão a experiência da pesquisa multicêntrica, que traduziu e validou


um instrumento canadense de Gestão Autônoma da Medicação (GAM) e do efeito que
produziu em algumas equipes que não se dispuseram a acatar a possibilidade de discutir o uso
do medicamento com o usuário, devido ao risco de ele optar por não usar o medicamento e
dos riscos e responsabilidades decorrentes daí (Onocko-Campos, et al., 2013). Nesse
momento um dos alunos defendeu o papel e a responsabilidade do médico, que é formado
para isso e que o usuário precisava entender e aceitar as recomendações feitas, para que o
tratamento desse certo. O contraponto a esta questão foi feito pela gerente do CCSP, ao
apresentar duas situações distintas que demonstravam possibilidades de cuidado orientadas
por uma ética que passa pela escuta, pela negociação e pelo compartilhamento de
responsabilidades com o usuário. A primeira delas dizia respeito a experiências em que as
equipes negociaram com o usuário o uso do medicamento ou alguma outra condução clínica,
introduzindo ao mesmo tempo acompanhamentos mais frequentes a fim de avaliar os efeitos
da decisão do usuário. A segunda foi uma situação em que moradores de um Serviço
Residencial Terapêutico (SRT) em visita ao Espaço Cultural Suricato27 queriam autorização

27
O Espaço Cultural Suricato é a sede da Associação de Trabalho e Produção Solidária – Suricato. Funciona
como show-room para as produções de seus quatro núcleos de produção: Costura, Culinária, Marcenaria e
88

do Acompanhante Terapêutico (AT) para fazer uso de bebida alcoólica. A demanda foi
discutida e negociada entre eles, após o que alguns optaram por beber de um a dois copos, o
que acabou estimulando outros do grupo a beberem também. O retorno recebido da AT no dia
seguinte foi que “ficaram numa felicidade só e que há muito tempo não se dormia tão bem
naquela casa”.

Da ausência de resposta à pergunta da estudante: “mas, nós estamos aqui para que? ”
até a constatação de outra aluna de que “nós também somos formados assim”, referindo-se a
uma formação que enfatiza a hierarquização nas relações de saber, que coloca o usuário no
lugar de receber ajuda daquele que tem o conhecimento, o que se observa é um percurso
muitas vezes angustiante. A interrogação permanente da própria prática, essência da análise
da implicação, parece ser o ponto de partida para a coconstrução do saber, uma vez que

Nos retira dos portos seguros, dos caminhos lineares e conhecidos, da paz das
certezas, nos jogando em alto mar, no turbilhão das dúvidas, da diversidade e dos contornos
indefinidos. Um dos efeitos políticos presentes na ferramenta análise de implicações é,
portanto, a problematização das relações de saber/poder, visto que ela aponta para o lugar
instituído de onde falamos quando, com nossas práticas especialistas, legitimamos a divisão
social do trabalho no capitalismo. Ou seja, fortalecemos essa divisão quando naturalizamos
que há aqueles que sabem, que detêm a verdade científica, neutra e objetiva – os especialistas
e acadêmicos - e de outro os que simplesmente devem executar o que foi pensado/planejado
por esses iluminados, detentores do saber/poder (Coimbra & Nascimento, 2008, p.148).

A reflexão foi estendida para a relação professor-aluno, que também reproduz a lógica
na qual se pressupõe que o primeiro tenha que derramar seu conhecimento sobre o segundo,
que por sua vez parece estar sempre correndo atrás de falar ou fazer aquilo que acredita que o
professor quer ouvir.

Há uma distância entre a teoria e a prática, que a realização de uma disciplina de


natureza prática não vai resolver, porque o cerne da questão está no modelo de transmissão
dentro da universidade. Ao longo da formação acadêmica não se prioriza a construção de um
processo, mas a busca por comprovação do que está no livro ou do que saiu da boca daquele
que soprou 'a verdade' no ouvido dos alunos em sala de aula. A angústia dos alunos será
eterna, não só porque é impossível enquadrar o sofrimento, o afeto, o psíquico, mas também
porque a prática sempre vai confrontar o cientificismo da academia e não necessariamente vai
produzir retificações no conhecimento construído ali. Durante uma entrevista (Passos, et al.,
2008) Gilles Monceau chama atenção também para um paradoxo presente na tentativa de
diminuir a distância entre teoria e prática, que por um lado é necessária no processo de

Mosaico. Além disso, abriga em seu quintal um bar e restaurante, que tem conquistado reconhecimento no
cenário cultural e musical de Belo Horizonte.
89

profissionalização, mas que por outro pode conduzir a uma realidade em que “a teoria
interroga cada vez menos a prática. Quanto mais tentamos articulá-las, menos a distância que
pode existir entre elas vai poder produzir análise” (Passos, et al., 2008).

Na chegada dos alunos ao campo de prática, o que se impunha sempre era a questão
do diagnóstico e suas relações com os sintomas, com a intervenção, com o lugar do terapeuta
ocupacional, o que acabava por comprometer a entrega dos alunos, interferindo no ritmo dos
trabalhos da oficina. Os usuários já sabiam dessa rotina no início de cada semestre, o que
vinha sendo aceito de forma naturalizada, pelo menos até a realização do seminário de
avaliação, onde um incômodo apareceu e foi verbalizado pelos usuários e equipe, sendo
direcionados de forma mais pesada aos alunos de um curso de medicina que frequentava o
serviço, mas que nos fez refletir e criticar nosso próprio modo de funcionar e estar ali. É
preciso manter uma abertura para que esses incômodos apareçam sempre, a fim de que não se
naturalizem.

À ansiedade dos alunos para seguir protocolos de avaliação e conhecer os diagnósticos


e sintomas antes de propor uma intervenção ou atividade, o professor Alessandro respondia
com provocações:

“Será que se segurar no diagnóstico é assim tão seguro? Saber o diagnóstico


significa que o tratamento vai ser sempre o mesmo? Que diferença faz, na prática, saber o
diagnóstico? Por que isso limita vocês? O que é o diagnóstico?

Após longos silêncios ou respostas que reafirmavam a lógica de que estavam na


universidade para aprender a aplicar protocolos, avaliar e propor intervenções como forma de
ajudar e tratar, o professor continuava sustentando que a questão

Está no sujeito e não no rótulo dado pelo diagnóstico. Então, olhar para o
diagnóstico limita, porque a gente se esquece de olhar outras coisas. Se eu considerasse os
limites do 5º período, eu não exigiria mais de vocês, mas eu sei que vocês podem mais.

Outro questionamento importante feito pelo professor era sobre o protagonismo dos
próprios alunos na relação com ele e com os outros professores do curso de Terapia
Ocupacional, conduzindo o grupo a uma reflexão sobre o fato de que permitir ao usuário
assumir seu próprio caminho estava diretamente relacionado a uma postura ou
posicionamento do próprio aluno nas relações que estabeleciam com o usuário, com seus
professores e na própria vida.
90

Outro aspecto que se destacou na relação academia-serviço-usuário foi a dificuldade


de conciliar o tempo e o protagonismo dos usuários com as exigências de programas
curriculares e de avaliações acadêmicas.

A experiência de construção do programa Louca Sintonia não ficou isenta desses


atravessamentos, porque também esteve submetida às exigências acadêmicas de
estabelecimento de objetivos, de desenvolvimento de habilidades e de avaliações e às
expectativas dos alunos de aplicar na prática o que viram na teoria, ao mesmo tempo em que o
encontro com a clínica mostrava que a experiência não era exatamente como aparecia na
teoria. A dificuldade de conciliar as exigências acadêmicas próprias ao papel de professora e
de pesquisadora com as demandas da clínica foram compartilhadas com os participantes do
seminário, assim como a constatação de que a cada dia de observação participante no CCSP
era possível confirmar que “colocar o saber técnico, o diagnóstico e a clínica em suspensão,
de forma deliberada” (Ribeiro, Tomasi & Passos, 2016) fazia ascender a potencialidade do
usuário assumir o protagonismo de sua própria história.

Como já foi dito anteriormente, a demanda primeira, que originou todo o processo da
oficina de rádio foi institucional – em primeiro lugar a demanda de formação acadêmica pela
universidade, em segundo a demanda do serviço, manifestada pela gestão e acatada por nós. A
entrada dos usuários no processo se deu num terceiro tempo ao acolherem a proposta
apresentada. A partir daí a condução foi sempre no sentido de provocá-los a assumir o
protagonismo da proposta, o que exigiu de todos nós um exercício de desocupação da palavra
para que ela pudesse ser assumida pelos usuários e para que as decisões pudessem partir deles
o que, ao longo das edições do programa pode ser observado com a maior ocupação dos
espaços do serviço, com a apropriação do espaço radiofônico e do microfone.

Os alunos também precisaram ser muito provocados a refletirem sobre o papel


ocupado por eles na relação com os usuários, exercício que recomeçava a cada novo semestre
e que foi atravessado e transversalizado pelas histórias de vida e de relação com a academia
que cada um trazia.

Difícil isolar pesquisa e intervenção. As reflexões feitas com o professor Alessandro


deixavam cada vez mais claro uma afinidade de ideias entre as concepções que sustentam a
prática da disciplina e a concepção de autonomia adotada na pesquisa, ambas inspiradas na
concepção marxista de práxis e no protagonismo do usuário, essenciais à saúde mental e à
saúde coletiva. As supervisões convocavam os alunos a adotarem uma postura de
91

reflexividade sobre a prática, deixando claro que a direção do processo terapêutico na Terapia
Ocupacional seguiria o caminho prática-reflexividade-ação-mudança-reflexividade-ação-
mudança-reflexividade, num trabalho, em conjunto com o usuário, de pensar, ouvir, entender,
acolher, pensar, criticar, para propor, junto com ele, algo que pudesse produzir as mudanças
desejadas em seu cotidiano.

Como consequência de todo o processo os usuários começaram a participar das


supervisões, que antes aconteciam apenas entre professor e alunos. Nesse momento nossos
olhares e ouvidos se abriram para uma demanda dos usuários que até então era respondida
com um pedido de licença e com a demarcação de espaço no qual eles não entravam: o da
produção de conhecimento acadêmico. A iniciativa deles cumpriu uma função de analisador
da relação com a academia permitindo pensar o cunho autonomista da experiência.

I.M.B. foi o primeiro a romper os limites: “posso ficar aqui? Eu fico caladinho. ”
Outro usuário chegou em seguida e saiu logo depois dizendo que ia nos deixar trabalhar, mas
assegurando-nos de que estávamos todos no mesmo barco. No primeiro dia ficaram assim, em
silêncio, sem tomarem a palavra, apesar de já anunciarem, que o trabalho é conjunto e, aos
poucos, foram ficando por mais tempo. Durante uma supervisão que discutia sobre os limites
do contexto, trouxeram à tona a questão dos limites com os quais têm que lidar nas relações
familiares, na sociedade e no próprio serviço, enfatizando a importância de se focar “no seu
potencial”, como quer I.C., ou de se atentar para a discussão sobre direitos que ainda não são
garantidos aos cidadãos em sofrimento mental de Belo Horizonte, como por exemplo o passe
livre no transporte. A falta de regulamentação legal para o direito de transporte dos usuários
favorecia a irregularidade na concessão de vale-transporte pela gestão do município,
produzindo em certos dias um grande esvaziamento no serviço, o que acabava por
comprometer a continuidade de projetos iniciados por eles.

Em suas participações nas supervisões os usuários também compartilharam as saídas


às quais costumam recorrer para superar as adversidades com que se deparam no encontro
com a loucura, como as escolhidas por I.C.: frequentar o templo Hare Krishna, meditar, ouvir
música, ir a uma cachoeira, a “reflexão [quando diante de] assuntos difíceis: escuto e fico no
meu quarto pensando, elaborando”. Ele também reforça o lugar da “espiritualidade, [dizendo
que] as aparências enganam. Se não tem comprovação, evidência, não se aceita”, referindo-se
à dificuldade que as pessoas têm de aceitar ou escutar que o discurso religioso/espiritual, seja
ele delirante ou não, pode ter uma função importante para eles.
92

Experiências pessoais de conquista do próprio espaço nas relações afetivas e nas


relações com a família, foram compartilhadas por eles durante uma supervisão em que se
discutia como lidar com a transferência e a contratransferência que se anunciavam nas
relações das alunas com os usuários do serviço: “por exemplo, as pessoas lá em casa mexem
muito comigo e se eu não gostar como é que faz? ” (...) “por exemplo, minha namorada gosta
de me morder, mas eu não gosto e falei com ela”. Um dos usuários dirige-se para uma das
alunas confortando-a: “Fica preocupada não, você não atrapalhou nada. Da próxima vez você
vai me ajudar”.

Os efeitos sobre o trabalho em equipe tornaram-se evidentes após o seminário em que


os oficineiros e usuários explicitaram a necessidade de maior cuidado na chegada ao serviço,
nas oficinas e de se respeitar o trabalho e o tempo de cada um, como explicitado por uma das
oficineiras: “Incomoda a gente, assentar do lado dele [do usuário], ficar perguntando da vida
dele, tirar fotinha, às vezes eles não querem tirar foto. Podem ter certeza que aqui vocês não
são só observadores, vocês [estudantes] são muito observados também ”. Retomar as
recomendações de Maritza Montero sobre a observação participante na situação de pesquisa
nos parece importante também para pensar as relações com o serviço:

Em muitos casos a característica participante se refere à presença dos


investigadores/as em lugares onde não costumam estar. O investigador participa de forma
especial, enquanto as pessoas da comunidade fazem o que costumam fazer todo dia, a menos
que fiquem tão incomodados por serem observados que decidam trocar de atividade e se
dediquem por sua vez a observar e a interrogar o observador. Por isso, propomos que a
observação se assuma como a forma de invasão que o olhar do outro sempre representa sobre
nós, que manifeste de entrada suas intenções, que se torne familiar ao entorno que será
observado e que registre o que vê, no meio das atividades diárias das pessoas observadas
(Montero, 2006a, p.77) (Tradução livre)

Desde então, a chegada/entrada nas oficinas foi mais cuidadosa e, além dos usuários,
profissionais do serviço da Rádio UFMG também passaram a participar de algumas
supervisões, convocando os alunos a dizerem a que vieram enquanto futuros terapeutas
ocupacionais e a refletirem sobre a contemporaneidade do conceito de Terapia Ocupacional,
sobre a origem da demanda com a qual a Terapia Ocupacional trabalha e sobre a importância
do trabalho em equipe, como manifestado por um dos oficineiros.

A maior sintonia resultou em iniciativas mais compartilhadas e na saída da oficina de


rádio de dentro da sala onde aconteciam os encontros para ocupar todo os espaços do CCSP,
passando a ter como seu principal ponto de referência uma praça interna ao serviço, por onde
circulavam todas as pessoas que frequentam o CCSP e o CAC. Impressionante como isso
93

ampliou as possibilidades de participação de pessoas que até aquele momento não tinham se
movimentado até a sala onde os encontros aconteciam.

4.4 Quarta edição do programa Louca Sintonia: sobre a importância de se retomar


as condições de informação, reflexividade e escuta para fortalecer a militância rumo à
autonomia e ao empoderamento

A quarta edição do programa Louca Sintonia aconteceu concomitantemente com a


entrada da pesquisadora no segundo campo de pesquisa, demandando que boa parte da
energia, até então voltada apenas para o Louca Sintonia, fosse redirecionada introduzindo o
desafio de conciliação de dois processos distintos de imersão.

A primeira das consequências disso foi a redução dos encontros com o professor da
disciplina, fora do horário previsto para a mesma, o que coincidiu também com a entrada dele
no curso de doutorado e a necessária mudança do horário da oficina, que passou do turno da
manhã para o da tarde. Atravessamentos inevitáveis produzidos pelas demandas de pesquisa
em seu encontro com as demandas de formação – nos níveis da graduação e da pós-graduação
- e com as demandas da clínica.

Mais uma vez impôs-se encarar e explicitar essa realidade como parte da pesquisa,
tomando o que emerge daí enquanto a essência de um processo que é atravessado, mas
também transversalizado pelas mesmas circunstâncias.

Assim, os encontros foram se dando sob novas e interessantes configurações: os


usuários, acompanhados pelos alunos, assumiram as produções para o programa de rádio de
forma mais autônoma, distanciados dos olhares observadores da pesquisadora e do professor,
que estavam presentes no serviço mas já não ficavam do lado deles todo o tempo. As
supervisões dos alunos, como já mencionado, passaram a acontecer na presença e com a
participação efetiva dos usuários interessados. Minha observação participante que estava mais
centrada nos momentos de realização da oficina de rádio e de supervisão, expandiu-se para
outros espaços e acontecimentos do CCSP.

A reunião inicial de retomada dos trabalhos reafirmou a continuidade do programa e


sugeriu que o próximo tema fosse o próprio Centro de Convivência, visando a informar a
comunidade sobre seu papel e importância enquanto dispositivo da política de saúde mental.
A ideia veio de um dos novos participantes e foi motivada pela apreensão ainda vivida por
94

todos diante das ameaças de perda do espaço físico do CCSP. Esse mesmo usuário sugeriu
ainda que a ideia fosse submetida à próxima assembleia geral do CCSP como contribuição ao
movimento de resistência que vinha sendo construído e como forma de atrair novos
participantes, conferindo ao programa lugar político importante na luta pelos direitos dos
cidadãos em sofrimento mental. Assim foi feito e novos usuários se juntaram à oficina,
aumentando a qualidade e a quantidade do material produzido.

Nessa edição, os usuários se apropriaram ainda mais dos microfones, criando e


conduzindo entrevistas bastante informativas sobre personagens que fizeram a história da
Reforma Psiquiátrica em Belo Horizonte e no estado de Minas Gerais, sobre a importância do
Centro de Convivência na política de Saúde Mental e na vida de cada um dos entrevistados, e
sobre os desafios vividos pela Suricato desde sua origem até o momento atual em que
conquistou um lugar de reconhecimento na cultura da cidade. A coleta do material também foi
feita fora do CCSP, durante a semana de realização do projeto: ‘Por uma sociedade sem
manicômios – ocupação dos centros de convivência”, na qual aconteceram oficinas,
exposições e intervenções abertas ao público, como parte da programação cultural do SESC
Palladium, que no mês de maio foi toda voltada para a conexão entre arte e loucura.

Quando o CCSP se torna o tema da 4ª edição do programa Louca Sintonia amplia o


alcance desta pesquisa intervenção para além dos limites da experiência radiofônica. Como
não é objetivo deste estudo a análise do serviço, o foco foi mantido na produção de autonomia
e empoderamento da experiência estudada. Entretanto, como o CCSP emergiu o tempo todo,
as possibilidades e limites que ele representa para a experiência serão analisados aqui, assim
como as circunstâncias político-institucionais que atravessaram o processo.

A apreensão decorrente das mudanças na coordenação nacional de saúde mental e da


pressão da gestão municipal para que o CCSP e núcleos de trabalho da Suricato saíssem do
espaço ocupado no CAC-SP, se estenderam ao longo do primeiro semestre de 2016 e,
somados aos preparativos para a comemoração do dia da luta antimanicomial, produziram
momentos ricos de reflexão, mobilização e resistência, tanto para a disciplina quanto para a
produção do programa e para o próprio serviço.

As pressões da gestão do CAC-SP chegaram também à disciplina da Terapia


Ocupacional, que foi convocada a prestar “contrapartidas” pelo uso do espaço físico para as
supervisões, oferecendo palestras para a comunidade. A demanda dirigida à Terapia
Ocupacional fazia parte do plano de retomada dos espaços compartilhados com o CCSP há 23
95

anos e com a Suricato desde o início dos anos 2000. Além das palestras, as salas seriam
utilizadas para cursos de formação profissionalizante de jovens com idade entre 18 e 24 anos,
frutos de parcerias que estavam sendo estabelecidas com empresas multinacionais alemãs e
canadenses. Apesar da faixa etária coincidir com a de parte dos usuários do CCSP, eles não
poderiam participar dos cursos porque, de acordo com o gestor, não se enquadravam no perfil
da clientela. A oferta de algum tipo de formação pelos associados da Suricato que
trabalhavam no núcleo de marcenaria também foi descartada.

Apesar do convênio com o curso de Terapia Ocupacional ser para a realização de


atividades acadêmicas com o CCSP, nada impediria que a parceria se estendesse ao CAC-SP.
Mas, a parceria precisaria respeitar a relação construída com o CCSP ao longo dos anos e os
princípios de coconstrução com os principais interessados, a comunidade daquele território,
dentre os quais deveriam estar incluídos os usuários do CCSP. A primeira proposta levada à
gestão do CAC-SP pelas alunas da disciplina seguiu essa linha, com a sugestão de consulta à
comunidade acerca do que gostariam de conversar, mas foi descartada pelo gestor com a
justificativa de que a demanda espontânea não viria tão facilmente a partir de uma proposta
tão “generalizada”, sendo contraposta pela ideia de cursos, palestras, grupos operativos e
cartilhas informativas para grupos já existentes.

Concomitantemente às iniciativas da gestão do CAC-SP, um movimento de resistência


protagonizado pelos usuários e trabalhadores da saúde mental do município, pela Suricato,
pelo Conselho Municipal de Saúde, pelo Fórum Mineiro de Saúde Mental e por
representantes das universidades produzia seus efeitos. Em nível nacional, uma petição
pública foi criada e divulgada nas redes sociais. Em audiência com representantes do
movimento, o prefeito de Belo Horizonte não viu lógica na desapropriação de um espaço que
iria colocar em risco dispositivos que vinham cumprindo sua função social, garantindo a
permanência do CCSP e das atividades da Suricato nos espaços ocupados até então. Esta foi
considerada uma importante vitória, diante do preocupante desinvestimento público na saúde
mental, tanto no âmbito da infraestrutura dos serviços quanto dos subsídios, como o vale
transporte, que viabilizavam a frequência dos usuários ao CCSP.

Ainda como consequência do movimento de resistência, a gestão do CAC-SP acabou


recuando na iniciativa dirigida ao curso de Terapia Ocupacional.

Parte da mobilização exposta acima foi discutida durante as assembleias gerais do


CCSP dos meses de abril e maio, que contaram com a participação maciça dos usuários, e
96

onde foi possível observar o posicionamento político deles em relação ao 18 de maio e em


relação aos riscos de desmonte da política de SM local, representado naquele momento, pela
possível perda do espaço ocupado no CAC-SP.

Essas assembleias representaram espaço relevante para o resgate da história da


Reforma Psiquiátrica e da luta antimanicomial e de reconhecimento da importância de se
fortalecer essa luta. Z.C. ressurge aqui convocando seus colegas: “precisamos sair do lugar,
quem passou pelo manicômio como eu sabe porque precisa lutar. Quem sofre na pele é que
sabe onde dói. A luta não é só 18 de maio, é o ano todo”.

Ao reivindicar a retomada das idas ao cinema, outro usuário se dá conta de que a


privação do cinema é parte das perdas decorrentes da dificuldade encontrada no repasse do
vale-transporte.

Uma importante decisão da assembleia foi a criação de uma subcomissão, a partir da


Comissão Interna da Luta Antimanicomial (CILA) do Centro de Convivência São Paulo
(CILA), a fim de estudar estratégias para lidar com as dificuldades pelas quais passavam. Sete
usuários e um oficineiro se prontificaram a participar.

Ao constituírem a comissão interna, Z.C. volta a cobrar o envolvimento de todos,


enfatizando que “esse assunto é sério. Chega na hora da reunião arruma dor no dedo
[referindo-se a justificativas para ausências]. Isso é muito sério! Nós encontramos um tubarão
na frente, temos que enfrentar ele e pesquisar a respeito”, sugerindo que estudassem e
buscassem informações históricas e atuais que os ajudasse a “enfrentar” a fera que iriam
encontrar na audiência com o prefeito, reivindicada pelo movimento de resistência.

O movimento foi adiante e produziu seus efeitos, apesar da subcomissão criada não ter
avançado em seu propósito, cumprindo o que foi antecipado por Z.C.. Esse acontecimento nos
faz lembrar que sustentar o ideal de horizontalização das relações de poder, inerente às
concepções de empoderamento e autonomia da Reforma Psiquiátrica é um desafio cotidiano,
mesmo em serviços como o CCSP, cujos usuários e profissionais têm sido reconhecidos como
uma importante referência de militância na luta antimanicomial.

As comemorações do Dia Nacional da Luta Antimanicomial, além de produzirem o


desfile, representaram uma oportunidade para retomada de reflexões em torno da política de
saúde mental e do engajamento na luta antimanicomial. Os preparativos para o desfile da
97

Escola de Samba Liberdade Ainda que Tam-Tam28, pauta das duas assembleias, deram um
colorido à discussão e reforçaram o caráter político daquela reunião.

Os usuários interrogaram sobre os custos e o financiamento do desfile, uma vez que a


maior parte do material utilizado seria reciclado de fantasias de anos anteriores, manifestando
estranhamento ao saber que o apoio financeiro não veio da secretaria de saúde do munícipio,
mas de outras entidades como Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais e o Sindicato
dos Farmacêuticos.

A preparação para o desfile da Escola de Samba Liberdade Ainda que Tam-Tam


representou ainda uma oportunidade para se procurar notícias e retomar o contato com
usuários ausentes do serviço, quando cerca de trinta nomes foram lembrados para serem
contatados pela equipe do serviço e pelos próprios usuários.

Os dias que antecederam o desfile do 18 de maio produziram encontros ricos. Durante


a confecção de fantasias, uma conversa informal entre Z.C. e Marta sobre nomes importantes
da história da Reforma Psiquiátrica, homenageados em uma das alas da escola de samba, foi
gravada e editada em forma de entrevista para a 4ª edição do Louca Sintonia. A importância
do caráter sócio histórico e da informação na construção e fortalecimento do movimento
antimanicomial foi resgatada pela entrevista, sendo reforçado na fala final da entrevistadora:

Seria importante pra nós, não só no 18 de maio, passar essas coisas pra gente,
porque agora, vamos dizer, se alguém me perguntar quem foi Cézar Campos, eu já sei quem
ele foi. Eu sei que tem um centro de convivência chamado Cézar Campos, mas eu não sei o
que que ele era, o que que ele fez. Agora Basaglia, eu sou fã do Basaglia, porque através dele
é que nós estamos nessa luta né (...). Vamos continuar aprendendo sobre esses militantes,
porque pra nós é importante, né. Nossas referências, isso mesmo (Aos 3’14’’ do 4º bloco do
programa).

4.5 Considerações gerais sobre a experiência de construção do programa Louca


Sintonia

Ao longo das quatro edições do Louca Sintonia a militância se fez presente na defesa
do projeto da Reforma Psiquiátrica manifestada nos depoimentos e entrevistas, nas
mobilizações de resistência que aconteciam no serviço, nos preparativos para a comemoração
do 18 de maio e no desfile da Escola de Samba Liberdade Ainda que Tam tam, alimentando
suas atrações – o programa também era uma forma de resistir, de acordo com a possibilidade
28
Para informações mais detalhadas sobre as alas e o samba-enredo, consultar o texto “Dia Nacional da Luta
Antimanicomial - 18 de maio 2016”, no endereço eletrônico: http://antimanicomialbh.blogspot.com.br/ ,
acessado em 08/02/2017.
98

de cada um dos envolvidos. Em toda essa movimentação alguns foram mais presentes, como a
Z.C., o I.M.B. e o I.C..

Mas, nos bastidores do programa, o cotidiano do serviço, as assembleias e supervisões


não conseguiram esconder fragilidades nessa militância, manifestada em aspectos
relacionados à circulação da informação entre os usuários, os familiares e na comunidade, à
ausência da ASUSSAM junto de sua base e às dificuldades dos usuários levarem adiante a
subcomissão mencionada anteriormente.

Estudos sobre o empoderamento em saúde mental têm produzido reflexões sobre o


envolvimento efetivo dos usuários na militância, na cogestão, na construção de políticas e na
pesquisa em saúde mental (Chassot & Silva, 2015; Vasconcelos, 2013a), trazendo à tona
impasses colocados pelo processo de institucionalização, que muitas vezes funcionam como
justificativa para manutenção do que é da ordem do instituído. Mas, o desafio maior parece
ser o de fazer prevalecer o instituinte, criar condições para que a interrogação seja
permanente, fazer conviver instituído e instituinte.

Nesse contexto o acesso à informação surge como uma das principais ferramentas
tanto para a conquista da autonomia quanto de um maior empoderamento.

A autonomia coletiva pressupõe (uma sociedade onde se depreende) a existência de


“garantias político-institucionais” e “o acesso a informação suficiente e confiável” que
conduza à possibilidade efetiva de “participação em processos decisórios”, em igualdade de
condições (Souza, 2000). No entanto,

Quando se diz: ‘igualdade significa a igual possibilidade efetiva de participação de


todos’, não se está falando, evidentemente, apenas da possibilidade de acesso à informação.
Pressupõe-se aqui a capacidade efetiva de julgar - o que conduz diretamente à questão da
educação - como também o tempo necessário para a informação e a reflexão... (Castoriadis,
2004b, p.209-210)

Durante a produção de material para o Louca Sintonia e durante as supervisões o


acesso à informação emergiu na forma de duas demandas distintas. Primeiro, de
esclarecimento e sensibilização das famílias e sociedade para a importância de se ter paciência
no convívio com a loucura.

Em segundo lugar, o acesso à informação surge como necessário ao maior


envolvimento dos usuários na militância e nos processos de decisão dentro do serviço. A
informação parecia não circular quando o assunto era a ASUSSAM, pelo menos para I.C., que
não sabia da existência da associação e nem tinha conhecimento dos dias e local onde as
99

reuniões aconteciam - “tenho cinco anos aqui e não sabia que existia”. De acordo com a
gerente do CCSP houve um

Distanciamento da ASUSSAM da base, ela distanciou completamente. Houve um


tempo em que ela fazia reuniões itinerantes nos serviços. Depois ela distancia completamente
e não publiciza inclusive as datas dos encontros.

No âmbito do serviço, o mesmo usuário expressa também estranhamento por não ter
sido informado nem convidado para as reuniões entre os profissionais e alguns usuários do
CCSP que discutiam sobre os conflitos com a gestão do munícipio – “às vezes não sou
chamado pra tudo” (I.C.).

A militância e o posicionamento reflexivo e político de boa parte dos usuários sempre


fizeram com que o CCSP fosse reconhecido como referência entre os demais serviços
substitutivos ao manicômio. Alguns usuários ainda cumprem um papel importante de
provocação e interrogação permanentes no CCSP, como é o caso de Z.C., que ao longo da
pesquisa questionou a universidade em relação ao cuidado ético dos alunos e professores nas
relações com os usuários e com o serviço; convocou os usuários a assumirem o protagonismo
no controle social e na defesa das políticas de saúde mental, durante o movimento de
resistência contra as iniciativas da gestão municipal; manifestou seu incômodo em ser mão de
obra para atender às “encomendas” de fantasias para o desfile do 18 de maio.

A militância e o posicionamento político decorrentes da reflexividade podem ser


consideradas como conquistas de um projeto de autonomia que, de acordo com Castoriadis,
precisa encontrar o campo para que se produza, uma vez que indivíduos autônomos só podem
se constituir em sociedades autônomas assim como estas só podem existir como consequência
deles.

Para o autor, o germe da autonomia emergiu historicamente pela primeira vez com a
criação da democracia, da política e da filosofia pelos gregos. Com a filosofia veio a
reflexividade, a interrogação sem limites e com a democracia e a política a possibilidade de
discussão da lei (nomos) na coletividade, de forma explícita e ilimitada, o que significa que,
mais do que interrogar a existência de leis, direitos ou igualdade entre os cidadãos se alcance
“as significações imaginárias sociais e seu fundamento possível” (Castoriadis, 1992, p.139). É
o que ele deixa transparecer na afirmação de que “se quisermos ser livres, devemos fazer
nosso nomos. Se quisermos ser livres, ninguém deve poder dizer-nos o que devemos pensar”
(idem, p.138).
100

Durante o período de realização desta pesquisa foi possível observar que o histórico
militante do CCSP parecia não ser mais suficiente para dar suporte às demandas internas de
luta e organização, como demonstrado na dificuldade dos usuários de levarem adiante as
atividades da subcomissão criada durante uma das assembleias, apesar de seus oito inscritos.
Essa dificuldade, aliada àquelas relacionadas à produção de programas extras, no início de
2016, já explicitadas anteriormente, permitiram refletir sobre a urgência de mobilização e de
ações de resistência demandadas por determinados momentos políticos e sobre a importância
de uma formação política que dê suporte a uma mobilização permanente que faça frente a
essas urgências.

Assumir o caráter indissociável do binômio ação-reflexão é essencial em qualquer


projeto de autonomia e na direção a um maior empoderamento. O empoderamento implicaria
então na conscientização sobre a subordinação e no aumento da confiança; na organização
autônoma para tomada de decisões e na mobilização para identificar interesses e transformar
as relações de poder (Murguialday, Armiño & Eizagirre, 2000).

Acreditamos, com Paulo Freire, (1979) que

a conscientização não consiste em “estar frente à realidade” assumindo uma posição


falsamente intelectual. A conscientização não pode existir fora da “práxis”, ou melhor, sem o
ato ação – reflexão. Esta unidade dialética constitui, de maneira permanente, o modo de ser
ou de transformar o mundo que caracteriza os homens. Por isso mesmo, a conscientização é
um compromisso histórico. É também consciência histórica: é inserção crítica na história,
implica que os homens assumam o papel de sujeitos que fazem e refazem o mundo. Exige
que os homens criem sua existência com um material que a vida lhes oferece… (p.15).

O potencial autonomista da oficina de rádio se mostrou exatamente quando o objetivo


primeiro de produzir o Louca Sintonia se expandiu, passando a interrogar as relações de poder
na saúde, na formação e no serviço e a fragilidade da militância.

4.6 Dialogando com outras experiências radiofônicas de caráter autonomista

Experiências comunicacionais têm sido frequentes nas oficinas terapêuticas em saúde


mental que acontecem nos serviços substitutivos ao manicômio no Brasil, como por exemplo,
oficinas de rádio, de TV, de fotografia, de jornal e de vídeo (Fortuna & Oliveira, 2012;
Amarante, 2007; Streppel & Palombini, 2011).

Estas experiências ilustram a dimensão sociocultural da Atenção Psicossocial,


considerada como “uma dimensão estratégica, e uma das mais criativas e reconhecidas, nos
101

âmbitos nacional e internacional, do processo brasileiro de Reforma Psiquiátrica ” (Amarante,


2007, p. 73) porque permite envolver a sociedade na reflexão sobre o imaginário que cerca a
loucura e sobre a Reforma Psiquiátrica e as políticas públicas de saúde mental (idem).
Também são consideradas como uma das estratégias de empoderamento que favorecem a luta
contra o estigma (Vasconcelos, 2003; Sistema Único de Saúde, 2010). Um mapeamento,
descrição e análise das principais experiências brasileiras podem ser encontradas nos estudos
de Fortuna & Oliveira (2012), Marques et al. (2016), Mello (2001), Moreira (2011),
Palombini, Cabral & Belloc (2008), Ribeiro, Tomazzi & Passos (2016), Santana et al. (2015),
Sousa (2010) e Streppel & Palombini (2011).

No Brasil, a experiência da Rádio TAMTAM é considerada a pioneira em


radiodifusão, protagonizada por cidadãos em sofrimento mental em conjunto com
profissionais de saúde mental. Originou-se dentro da Casa de Saúde Anchieta, cidade de
Santos, SP, com programação que circulava internamente à instituição, durante as 24 horas do
dia. A partir de 1990 e durante os nove anos seguintes, tiveram um programa diário de uma
hora de duração, que era transmitido ao vivo em emissoras comerciais da cidade (Guerrini Jr.,
2012)29.

Assim como acontece com o Programa Louca Sintonia (Ribeiro, Tomazzi & Passos
2016), uma das práticas estudadas nesta pesquisa, o que parece caracterizar as diferentes
experiências de radiodifusão em saúde mental é a aposta em seu potencial estratégico de
combate ao estigma (Fortuna & Oliveira, 2012; Guerrini Jr., 2012; Mello, 2001; Streppel &
Palombini, 2011), de ação política de ocupação da cidade, não só por intermédio das ondas do
rádio, mas também pela movimentação e circulação exigidas para que se produza os
programas (Palombini, Cabral & Belloc, 2008), e na possibilidade de acesso e “produção de
conhecimento coletivo e democrático” (Marques et al., 2016, p. 106). Além disso, os
fundamentos que sustentam a maioria das práticas são inspirados na perspectiva da
comunicação comunitária e na Educação Popular de Paulo Freire (Fortuna & Oliveira, 2012;
Marques et al., 2016; Santana et al., 2015; Sousa, 2010 e Streppel & Palombini, 2011). Outro
traço comum às experiências nacionais é a vinculação a algum serviço de saúde mental, ainda
que circulem em rádios comerciais e/ou educativas ou pela web.

29
Para retomar a história da Rádio TAMTAM recorrer ao texto Loucos por diálogo: um estudo comparativo de
programas de rádio produzidos por pessoas com transtornos mentais no Estado de São Paulo, de Irineu Guerrini
Júnior (Guerrini Jr., 2012).
102

Algumas das experiências brasileiras são ou foram inspiradas em duas rádios


internacionais também protagonizadas por usuários, a argentina LT22 La Colifata e a
espanhola Rádio Nikosia (Palombini, Cabral & Belloc, 2008; Streppel & Palombini, 2011).

A LT22 Rádio La Colifata, nasceu em 1991, dentro do Hospital José T. Borda, em


Buenos Aires, de onde é transmitida até hoje, por meio de uma antena própria. Seus
programas são gravados e editados segundo “critérios ético-terapêuticos e estéticos” (La
Colifata, 2015, p. 5), estabelecendo assim o diálogo entre o campo de intervenção clínico e o
campo de intervenção social, com vistas à

a- Diminuição do estigma social em relação às pessoas que foram diagnosticadas


com algum sofrimento mental, com o objetivo de alcançar uma sociedade mais tolerante e
inclusiva; e
b- Promover recursos simbólicos aos usuários dos serviços de saúde mental,
favorecendo processos de criação de laço e produção de autonomia para uma vida social
integrada, saudável, digna e no exercício de seus direitos como cidadãos. (La Colifata, 2015,
p. 2, tradução da autora).30

O nome La Colifata, que na gíria argentina significa “maluco adorável” (Streppel &
Palombini, 2011, p. 503), foi escolhido pelos ouvintes que, dentre tantos outros optaram
exatamente pelo único que remetia à loucura.

La Colifata aceita esta designação social para a partir daí questioná-la. "La Colifata"
como significante propõe uma torção humorística, apontando para - em princípio -
desdramatizar o problema sem negá-lo, [...] trabalhamos, desde esse lugar designado
socialmente, mas operando uma pequena mudança. O projeto "Colifata" o que faz é instalar
uma questão onde há uma certeza. A certeza é louco = perigoso, louco = gênio, louco =
insensato permanente, portanto, é necessário afastá-lo. Colifata é ... o que é? Loco = que?
Assim começa a circular uma série de outros novos significados possíveis para o problema.
Vamos criando e promovendo uma grande construção coletiva de novas representações que
desafiam esses mitos. O caminho proposto é para ir até o mito para depois desconstruí-lo
numa tarefa de todos. Desconstrução participante e participativa. (Olivera, 2005, p. 63,
tradução da autora).31

A experiência radiofônica avançou e se constitui atualmente como uma das ações da


Asociación Civil La Colifata, Salud Mental y Comunicación, uma organização não
30
a- La disminución del estigma social hacia personas que han sido diagnosticadas de algún padecer psíquico,
con el objetivo de lograr una sociedad más tolerante e inclusiva; y
b- La promoción de recursos simbólicos en los usuarios de servicios de salud mental, favorecendo procesos de
creación de lazo y producción de autonomia hacia una vida social integrada, saludable, digna y en el ejercicio de
sus derechos ciudadanos. (La Colifata, 2015, p. 2).
31
La Colifata acepta este lugar de asignación social para desde allí cuestionarlo. “La Colifata” como significante
propone un giro humorístico, apuntando a – en principio – desdramatizar el problema sin negarlo, [...]trabajamos
desde ese lugar asignado socialmente pero operando un pequeño corrimiento. El proyecto “Colifata” lo que hace
es instalar una pregunta allí donde hay una certeza. La certeza es loco = peligroso, loco=genio, loco=insensato
permanente, por lo tanto hay que apartarlo. COLIFATA es… Que es? Loco = que? Así empieza a circular toda
otra serie de posibles nuevas significaciones respecto al problema. Vamos generando y promoviendo una gran
construcción colectiva de nuevas representaciones que cuestionen estos mitos. El camino propuesto es ir hacia el
mito para luego de-construirlo en una tarea de todos. De-construcción participante y participativa. (Olivera,
2005, p. 63).
103

governamental “que desarrolla actividades en el área de investigación y brinda servicios em


salud mental utilizando los medios de comunicación para la creación de espacios en salud”
(La Colifata, 2015, p. 2).

A Rádio Nikosia, por sua vez, é definida por Correa-Urquiza (2010) como

Uma experiência de intervenção-ação-participação; propõe-se como uma ferramenta


de intervenção sobre a comunidade e sobre o social em geral, a partir de uma série de ações
específicas relacionadas com a necessidade de transformar a situação de exclusão
experimentada por pessoas diagnosticadas. Essas ações, que acabam adotando características
terapêuticas - precisamente que não serem consideradas terapêuticas de início - são realizadas
com a participação, como eixo fundamental, das mesmas pessoas que sofrem os problemas e
desconfortos. Sustentado por essas três noções acontece o funcionamento global da
experiência. Em suma, a ideia é intervir por meio de ações que visam desconstruir uma
situação de exclusão e incorporar a participação das pessoas afetadas (p.21, tradução da
autora).32

Inspirados nos fundamentos da La Colifata, os antropólogos Nella Gonzalo e Martín


Correa-Urquiza, promoveram uma adaptação sociocultural daquela experiência e, em 2003,
com a colaboração e apoio institucional da Associação Joia de Barcelona e da Associação
Cultural Radio Contrabanda e criaram a Rádio Nikosia. Quatro anos depois, nascia a
Asociación Kultural Radio Nikosia quando,

Como consequência do que eles os próprios nikosianos denominaram


empoderamento real e de uma necessidade expressa pelos editores, um grupo de 25 redatores
decidiram formar uma entidade independente e definitivamente apostar na capacidade da
autogesão. A intenção era, nas palavras de Joan, nikosiano, "assumir o comando do navio"
assumir definitivamente o dispositivo com o apoio de algum dos coordenadores e reivindicar
a possibilidade deles mesmos decidirem o rumo geral da experiência. A ideia de Dolors e
Xavier foi criar uma associação própria cujo conselho diretivo fosse formado integralmente
pelos redatores (Correa-Urquiza, 2010, p.23, tradução da autora).33

Desde então a Asociación Kultural Radio Nikosia se consolidou e os coordenadores


passaram a delegar algumas tarefas e funções aos redatores, o que resultou num

32
Una experiencia de intervención-acción-participación; se propone como una herramienta de intervención sobre
la comunidad y sobre lo social en general, a partir de una serie de acciones específicas vinculadas a la necesidad
de transformar la situación de exclusión por la que atraviesan las personas diagnosticadas. Estas acciones, que
terminan adoptando características de índole terapéutica –precisamente por no plantearse como inicialmente
terapéuticas–, se llevan a cabo con la participación, en cuanto eje fundamental, de las mismas personas que
sufren la problemática y sus malestares. Sobre la base de estas tres nociones gira el funcionamiento global de la
experiencia. En resumen, la idea es intervenir mediante acciones que apunten a deconstruir una situación de
exclusión y que incorporen en sí mismas la participación de las personas afectadas (p.21).
33
Como consecuencia de lo que los propios nikosianos denominaron um empoderamiento real y de una
necesidad expresada por los redactores, un grupo de 25 redactores decidieron formarse como entidad
independiente y apostar definitivamente por la posibilidad de autogestionarse. La intención era, en palabras de
Joan, nikosiano, «tomar el mando de la nave», hacerse cargo definitivamente del dispositivo contando con el
apoyo de alguno de los coordinadores y reivindicar la posibilidad de ser ellos mismos quienes decidieran el
rumbo global de la experiencia. La idea de Dolors y Xavier fue la de crear una asociación propia cuya junta
directiva estuviese formada íntegramente por redactores. (Correa-Urquiza, 2010, p.23)
104

fortalecimento “real e profundo” de alguns dos envolvidos, que assumiram cada vez mais a
responsabilidade pelas dinâmicas que estruturavam a experiência.

Nikosia ia transformando-se, cada vez mais, em um movimento próprio, de


dimensões políticas com capacidade para incidir nos processos relativos ao fenômeno da
loucura. Ou, ao menos, com a clara vontade de fazê-lo. Os nikosianos acreditavam nisso. ”
(Correa-Urquiza, 2010, p.25-26, tradução da autora).34

Apesar da proximidade entre as duas experiências no que diz respeito à luta contra o
estigma na saúde mental, o enlaçamento com a clínica, característico da La Colifata talvez
represente a maior diferença em relação à Rádio Nikosia. La Colifata é uma “rádio terapia
des-estigmatizante”, como define seu criador, o psicólogo Alfredo Olivera (2005, p.60), um
espaço criado para lidar com

O problema das Psicoses como formação clínica e o problema da Estigmatização da


loucura presente nas representações e condutas sociais. O primeiro refere-se ao campo
clínico. Entendemos as psicoses como um modo particular de estruturação psíquica onde a
dificuldade principal é a “falha na função simbólica” (a linguagem como capaz de produzir
sentido à própria existência) gerando no plano subjetivo uma profunda dor e sofrimento. O
espaço criado para abordar o problema é o da "Radio La Colifata", os pacientes tomam a
palavra em seu rádio e nós terapeutas intervimos em relação a este fazer que vincula os
internos com o resto da sociedade. Fazemos uma Clínica da situação, do inesperado, uma
clínica do acontecimento. La Colifata, além de ser um espaço de subjetivação é um espaço de
socialização, um projeto que faz "laço" (Olivera, 2005, p. 60, tradução da autora).35

Por outro lado, a Radio Nikosia tem seus pressupostos muito mais voltados para a
interface entre a loucura e a sociedade, o que se evidencia no entrelaçamento entre a dimensão
reivindicativa, direcionada à questão da luta contra o estigma com a dimensão lúdico-cultural-
criativa, que atende à necessidade expressiva. Por mais que em alguns momentos as ações
possam ganhar contornos terapêuticos,

Chamamos "intervenções" às ações concretas empreendidas pelos participantes da


rádio enquanto correspondentes dentro da comunidade. Assim, uma intervenção pode ser a
saída para cobrir um evento social, um show, eventos ligados ou não ao tema da saúde
mental. É uma maneira de cumprir o trabalho jornalístico e, simultaneamente, colocar em
evidência a existência e o trabalho da Rádio Nikosia, de colocar um 'estamos aqui'. Ao
mesmo tempo, é uma atividade que contribui para o processo de identificação e
autoconfirmação dos participantes enquanto redatores/nikosianos. A ideia é que, a partir do

34
Nikosia iba “transformándose, cada vez más, en un movimiento propio, de dimensiones políticas com
capacidad para incidir en los processos relativos al fenómeno de la locura. O, al menos, con la clara voluntad de
hacerlo. Los nikosianos creían en ello” (Correa-Urquiza, 2010, p.25-26).
35
El problema de las Psicosis como formación clínica y el problema de la Estigmatización de la locura presente
en las representaciones y conductas sociales. El primero refiere al campo de lo clínico. Entendemos las psicosis
como un modo particular de estructuración del psiquismo donde la dificultad principal es la “falla en la función
simbólica” (el lenguaje como capaz de producir sentido a la propia existencia) generando en el plano subjetivo
un profundo sufrimiento y padecer. El espacio creado para abordar el problema es el de “Radio La Colifata”, los
pacientes toman la palabra en su radio y los terapeutas intervenimos en relación a este hecho que vincula a los
internos con el resto de la sociedad. Hacemos una Clínica de la situación, de lo imprevisto, una clínica del
acontecimiento. La Colifata, además de ser un espacio de subjetivación, es un espacio de socialización, un
proyecto que hace “lazo” (Olivera, 2005, p. 60).
105

acontecimento a cobrir, cada um faça uma pequena crônica a ser lida, ao vivo, no programa
da quarta-feira seguinte. (Correa-Urquiza, 2010, p.33, tradução da autora).36

Voltando ao programa Louca Sintonia, o que pudemos observar e que foi registrado no
primeiro artigo decorrente do estudo atual, é que a produção de autonomia e empoderamento
na experiência em questão representa ainda um grande desafio, que passa por exemplo, pelas
“dificuldades de nos descolarmos do papel central ocupado pelo profissional de saúde [e] de
privilegiar o saber e o cotidiano dos usuários” (Ribeiro, Tomazzi & Passos, 2016). Assim
como nas experiências referenciadas anteriormente, o Louca Sintonia também se apresentou
como campo potencial para a luta contra o estigma na saúde mental, para o exercício da
construção de narrativas sobre a loucura e para o exercício e fortalecimento da militância.

O Louca Sintonia tem favorecido uma aproximação maior entre os usuários, a rede
substitutiva e a UFMG, evidenciada por exemplo, na denúncia de desrespeito aos direitos de
usuários encaminhada à Rádio pela ASUSSAM ou ainda na demanda do movimento
antimanicomial para que intermediássemos junto à rádio a cobertura de realizações e eventos
comemorativos do 18 de maio. Além disso, o programa tem contribuído para a ampliação do
espaço para temas relacionados à saúde mental ao longo de toda a programação da Rádio
UFMG e permitiu que a locutora do Conexões tomasse a iniciativa de incorporar o “Bom
Brilho” como seu cumprimento diário na abertura do programa, uma alternativa ao bom dia
convencional, proposta por um dos usuários envolvidos na produção do programa semestral, a
todas as pessoas que encontra pela frente.

Outro efeito importante da produção do programa Louca Sintonia foi a transmissão, ao


vivo e direto do CCSP, do programa Conexões (que abriga a edição semestral do Louca
Sintonia) durante a semana de comemoração do 18 de maio de 2015. Durante as 2 horas de
duração do programa aconteceu uma roda de conversa com o tema ‘Penso, Louco Existo’,
uma alusão a uma das alas da Escola de Samba “Liberdade Ainda que Tam-Tam” daquele
ano. Contou com a participação dos usuários, da equipe envolvida na produção do Louca
Sintonia e convidados externos, dentre eles, um representante da Coordenação Municipal de
Saúde Mental, professoras da UFMG e o psiquiatra italiano Ernesto Venturini. Os usuários

36
Llamamos «intervenciones» a las acciones concretas llevadas a cabo por los participantes de la radio en cuanto
corresponsales dentro de la comunidad. Así, una intervención puede ser la salida a cubrir un evento social, un
espectáculo, unas jornadas vinculadas o no al tema de la salud mental. Es una manera de cumplir con la labor
periodística y, a la vez, de poner en evidencia la existencia y el trabajo de Radio Nikosia, de plantear un
«estamos aquí». Al mismo tiempo, es una actividad que contribuye al proceso de identificación y
autoconfirmación de los participantes en cuanto redactores/nikosianos. La idea es que, a partir del
acontecimiento a cubrir, cada uno realiza una pequeña crónica que relata en directo el miércoles siguiente en la
radio (Correa-Urquiza, 2010, p.33).
106

protagonizaram músicas, depoimentos e opiniões durante a roda de conversa e um deles atuou


nos bastidores do programa compartilhando a operação da mesa de som.

A negociação para realização do programa ao vivo gerou insegurança na gestão, que


se mostrou preocupada com o que iria ao ar e com a imagem que seria passada do CCSP,
devido ao momento de grande dificuldade com a gestão municipal, que não reconhecia e nem
investia na saúde mental. Mas o esclarecimento sobre o tema e sobre o foco do programa, que
estaria voltado para as produções, depoimentos e opiniões dos usuários, quebrou a resistência
inicial, que estava centrada na preocupação com o conteúdo e com a forma como o mesmo
chegaria à Coordenação de Saúde Mental e se isso poderia dificultar ainda mais as relações
institucionais

A transmissão foi um sucesso, abrindo portas para o segundo especial temático sobre a
Reforma Psiquiátrica que foi ao ar no dia 18/05/2016. Desta vez, inspirado em Paulo Freire e
suas mangueiras37, Cleiber Pacífico, coordenador da Radio UFMG, instalou o “estúdio” para
transmissão do programa sob a sombra das árvores, em frente ao prédio da emissora. Uma
animada conversa se seguiu durante as duas horas do programa Conexões, que contou com a
presença de Z.C., I.M.B. e I.C., usuários do CCSP e de convidados que participavam da V
Semana de Saúde Mental e Inclusão Social da UFMG, como Ernesto Venturini, representando
a psiquiatria democrática italiana, Paulo Amarante, pesquisador da Fiocruz e Markku Salu,
sociólogo finlandês.

Ao final do programa Cleiber Pacífico comunicou aos ouvintes sobre o seu


desligamento da Rádio. Junto com ele saiu também a Alessandra Dantas, da equipe de
produção, fechando a lista daqueles que vinham sendo demitidos, em nome do corte de
recursos financeiros que o governo federal vinha impondo às universidades. Pudemos
vivenciar, ao vivo, os efeitos de um atravessamento institucional que surpreendeu e
emocionou os presentes, deixando a todos em estado de suspensão com relação à
continuidade ou não do programa Louca Sintonia e com relação à linha diretiva que seria
seguida pela emissora a partir dali, uma vez que Pacífico sustentava a condução das ações da
Rádio a partir do que ele próprio nomeava como “um conceito importante na comunicação,
que é o de produção colaborativa” Além disso, eles imprimia à construção do Louca Sintonia
um modo de fazer cartográfico, evidente em declarações do tipo: “descobrimos que viemos

37
Referência ao livro “À sombra desta mangueira”, onde Paulo Freire explicita sua atração e encantamento pelas
sombras das árvores, sob as quais estudava em sua infância e onde, depois de adulto, passava horas envolvido
em suas perguntas e discursos.
107

aqui para desaprender como faz um rádio e aprender como fazer um rádio com todas as
pessoas que estão aqui. Meu prazer é esse”. Ao saber da notícia alguns usuários se
manifestaram com pesar e apreensão: “ele era muito humano com a gente”; “a gente sabe que
quando sai alguém da direção outros podem sair...”. As edições do Louca Sintonia que se
seguiram não foram alvo deste estudo, mas continuaram acontecendo em parceria com a
Rádio UFMG, que já não conseguiu mais viabilizar a presença de profissionais e/ou
estagiários in loco. A equipe anterior de profissionais da produção reduziu de quatro para um
no período de 2014 a 2016.

Um dos maiores desafios das experiências radiofônicas em saúde mental no Brasil tem
sido exatamente sustentar a periodicidade e mesmo a existência delas, que sofrem com os
atravessamentos institucionais como os levantados nesse estudo, com outros relacionados, por
exemplo, à demissão dos profissionais envolvidos (Marques et al., 2016) e às exigências de
mercado, como apontado por Di Renzo, criador da Rádio TAMTAM, em entrevista concedida
a Guerrini Jr (2012): “Respondendo à pergunta ‘Por que o programa parou?’, ele explica que
hoje em dia as emissoras AM foram tomadas por programações evangélicas, e que não há
mais espaço para um programa como a Rádio Tam Tam”(p.174).

No mesmo trabalho Guerrini Jr aponta ainda os motivos para o encerramento do Papo


Cabeça, série de dez programas que foi transmitida pela Rádio Cultura de Amparo, no estado
de São Paulo, e que, de acordo com a diretora da emissora na época

Foram várias as razões do cancelamento do programa. Tínhamos o patrocínio da


Petrobrás para o projeto e para as bolsas [num total de 15], e esse patrocínio foi encerrado.
Depois, a Petrobrás manifestou interesse em renovar. Eu tinha assumido a diretoria, estava
muito ocupada fazendo mudanças, e pedi para que outra pessoa refizesse o projeto. Mas as
pessoas foram se dispersando. Deixei para outros encaminharem. Os próprios pacientes
se desmobilizaram. O próprio grupo se desmotivou. Houve dois falecimentos. O
Arnaldo, o locutor oficial, morreu no hospital. Projetos são como filhos. Não se pode
deixar a peteca cair. Pegaram o bonde andando e não se envolveram (Guerrini Jr, 2012,
p.182).

Dentre os programas ou rádios que permanecem no ar atualmente, podemos citar o


programa semestral Louca Sintonia, fruto de parceria entre o curso de Terapia Ocupacional da
UFMG, o CCSP/PBH e a Rádio UFMG Educativa; o programa mensal Maluco Beleza, que
vai ao ar pela Rádio Educativa de Campinas (Guerrini Jr., 2012; Moreira, 2011) e a Rádio
108

Maluco Beleza online, ligada ao Ponto de Cultura Maluco Beleza, em Campinas/SP 38, que
transmite 24 horas de programação.

Considerando a proposta inicial da oficina de rádio, que era a de construir, a longo


prazo, uma rádio dos próprios usuário e as conquistas e limites decorrentes da realização do
programa Louca Sintonia, uma reflexão merece ser feita, em conjunto com os usuários, acerca
da continuidade da experiência e das seguintes questões: investir na estrutura física de uma
rádio ou numa rádio online; dar continuidade ao Louca Sintonia como uma das atrações do
programa Conexões, da Rádio UFMG Educativa; propor a realização de um programa
independente dentro da Rádio UFMG Educativa; manter a inserção dentro da Rádio UFMG
Educativa e buscar parceria com outras rádios da cidade considerando que o alcance que o
programa teria seria maior dessa forma; manter a inserção na Rádio UFMG Educativa e
também investir na criação de uma rádio com estrutura física de estúdio, por exemplo; investir
em novas mídias como um jornal ou um canal no You Tube; se o tempo e formato da
disciplina do curso de Terapia Ocupacional da UFMG atende às possíveis demandas de
crescimento da experiência; se não seria mais pertinente a um estágio curricular ou projeto de
extensão, com alunos presentes no cotidiano do serviço de forma mais intensiva

38
Para mais informações conferir https://www.facebook.com/Ponto-de-Cultura-Maluco-Beleza-
117134775052047/?ref=page_internal
109

Com esse pequeno gesto, se inaugura para todos o espaço


sagrado do teatro, onde cada um pode virar ator, onde cada
gesto, som ou postura ganha densidade e leveza, a fragilidade é
esplendor, mesmo a brutalidade adquire graça e ritmo.
(Pelbart, 2000, p. 107)
110

5 NÚCLEO DE CRIAÇÃO E PESQUISA SAPOS E AFOGADOS

A trajetória da segunda fase desta pesquisa-intervenção favoreceu o diálogo com as


ideias de Castoriadis e permitiu uma reflexão dialogada entre as duas experiências.

5.1 A cortina se abre: que lugar é esse? Que pessoas são essas? Que pesquisador é
esse?

A aproximação com o campo da pesquisa foi feita, primeiramente, por meio de


contato telefônico com Juliana Barreto39, diretora geral do Núcleo de Criação e Pesquisa
Sapos e Afogados, seguida de uma reunião com ela e com Filipe Aredes, diretor artístico do
coletivo. Desde o primeiro momento, a ideia da pesquisa e a ciência de que um dos marcos
teóricos do projeto passaria pela Análise Institucional foram muito bem recebidos por ambos,
porque coincidiu com o momento em que tentavam fazer um exercício de reflexão sobre a
própria identidade do coletivo, como ficou claro na fala de Juliana durante a apresentação da
primeira narrativa de restituição:

“... essa produção de vocês, esse olhar de fora é muito importante para a gente agora,
justamente porque o nosso desejo agora é pensar esse lugar, esse cuidado também com essa
[equipe de] produção que vai cuidar do grupo como um todo. Então, só pra dizer que chega
numa hora imprescindível pra gente, a gente precisa disso, estou curiosíssima...”

Fui apresentada, em primeiro lugar, à equipe de produção, durante a primeira reunião


do ano de 2016 onde, além de Juliana e Filipe, estavam presentes outras.

A identidade do grupo e sua presença nas redes sociais (Facebook, Instagram, Twitter,
You Tube e Flickr) foram o centro da discussão. A particularidade de cada ferramenta ou
mídia social, seu alcance e dicas para o uso de cada uma delas foram apresentados, com a
proposta de que cada membro da equipe assumisse a responsabilidade por uma delas. A
apresentação sobre o Facebook foi a mais completa, colocando na mesa “a identidade do
Sapos e Afogados”, conforme demonstrado no trecho do texto apresentado durante a reunião
por Priscila Ayub, responsável da equipe de produção pelos aspectos relacionados à
comunicação:

O objetivo da nossa página é construir uma relação mais próxima com o nosso
público. É importante lembrar que devemos imprimir a personalidade do grupo no Facebook.

39
Os participantes desta fase do estudo serão identificados com seu nome artístico, completo ou reduzido. As
considerações éticas a esse respeito serão apresentadas adiante.
111

Ali na nossa página, independente de quem está postando, quem [estará] falando é o Sapos e
Afogados. Para isso devemos construir a persona do Sapos. Essa persona tem uma linguagem
e um modo próprio de se comunicar nas redes sociais, essas características devem ser
respeitadas e estar sempre coerentes em todos os posts, ainda que os temas mudem muito,
uma vez que isso facilita a identificação e consolida a nossa imagem.

O Instagram e o Twiter foram considerados como mídias que privilegiam o


relacionamento mais íntimo e informal com seus seguidores e que também deveriam respeitar
a identidade do Sapos40. O You Tube e o Flickr foram designados apenas para as produções
profissionais de divulgação do portfólio do Sapos e Afogados.

Naquele momento, começou a ficar claro que refletir sobre a identidade do coletivo
era parte do seu processo de institucionalização. As recomendações acima eram essenciais
para que a “persona” do Sapos se instituísse como tal. Quando se enfatiza que não são as
pessoas que falam, mas o Sapos, pressupõe-se que características e normas ou leis muito
próprias vão constituindo o Sapos enquanto instituição, vão constituindo o nomos do Sapos e
Afogados. Instituição e lei, aspectos intrínsecos ao nomos, um dos termos que compõem o
significado de autonomia (Castoriadis, 2004a). Como nos lembra o autor, nomos é

Aquilo que é particular a cada sociedade ou a cada etnia, é sua


instituição/convenção, aquilo que se opõe à ordem ‘natural’ (e imutável) das coisas, à phusis;
e, ao mesmo tempo, nomos é a lei, aquilo sem o que os seres humanos não podem existir
enquanto seres humanos, pois não há cidade, polis, sem leis, e não há seres humanos fora da
polis, da cidade, da coletividade/comunidade política (p. 162).

Assim, o nomos do Sapos e Afogados se anuncia:

O Sapos é um grupo de referência importante e militante na luta antimanicomial.


Não podemos esquecer o [contexto] político em que estamos imersos! Reportagens, notícias,
trabalhos em geral sobre o assunto podem e devem ser divulgados na nossa página. [...] Falar
de saúde mental pode ser muito pesado, mas o Sapos vem justamente para lidar com o tema
de uma forma leve e colorida. Então, podemos falar sobre papo sério, mas sem pesar ainda
mais o bagulho! (Priscila)

Fui apresentada para a equipe de produção, falei sobre o projeto de pesquisa e recebi a
sugestão de iniciar as observações imediatamente, a fim de acompanhar o processo de criação
do espetáculo Caminho, cujo patrocínio estava sendo negociado com o SESC Palladium, um
centro cultural da cidade de Belo Horizonte. A possibilidade com a qual me deparava ali era
única, pois talvez não tivesse a mesma oportunidade se cumprisse à risca o cronograma da
pesquisa, que previa iniciar as observações no Sapos e Afogados somente depois de terminar a
análise e redação referentes à observação da oficina de rádio. Concordo com a proposta do
coletivo e me disponho a começar a observação participante, já introduzindo a presença de

40
A partir daqui sempre que me referir ao Núcleo de Pesquisa e Criação Sapos e Afogados usarei o nome Sapos
e Afogados ou somente Sapos.
112

Kelly Dias pesquisadora do L@GIR que passaria a me acompanhar na coconstrução de todo


o processo da pesquisa a partir da semana seguinte.

Além da mudança do cronograma de pesquisa, uma reconsideração e reflexão ética se


impôs já de início. Se considerarmos a legislação sobre ética na pesquisa com humanos, que
até o momento da submissão deste projeto de pesquisa ao COEP desconsiderava as
particularidades das pesquisas das áreas humanas e sociais 41, nosso procedimento
metodológico foi subvertido já na chegada a este campo de estudo, uma vez que aqui o
respeito ao sujeito da pesquisa foi garantido não pela assinatura prévia do TCLE, antes de se
iniciar os procedimentos de pesquisa, mas exatamente após a entrada no campo e a melhor
compreensão, por todos os envolvidos, do que seria a observação participante, em ato, e do
estabelecimento de um laço de confiança. Entendemos que a produção de conhecimento na
área das Ciências Humanas e Sociais não deixa de ser ética ao considerar a relação e o
respeito aos participantes da pesquisa (Duarte, 2015), uma vez que

A compreensão das formas de experiência social, cultural, histórica e psicológica


passa por um delicado controle da relação entre pesquisador e pesquisado; a produção de
conhecimento só se materializa no fluxo entre o sistema de significação de um e de outro dos
dois lados da interação investigativa. (p.34).

Estava claro, desde o início, que eu poderia me deparar com um não em relação à
autorização de utilização das informações colhidas durante a observação, vindo de qualquer
um dos parceiros da pesquisa, uma das incertezas que a pesquisa participativa impõe aos
pesquisadores. Para Colinet & Passos (2015), a responsabilização do pesquisador na verdade
aumenta,

Quando se inclui a participação ativa dos sujeitos durante o processo de pesquisa e


não apenas no momento da restituição de seus resultados - é isso que sustenta a "pesquisa
com" ou participativa. Mas há um preço a pagar: esse tipo de pesquisa ultrapassa em muito o
controle e previsão pretendidos pelos procedimentos formais. O processo participativo
implica em uma abertura dos processos de pesquisa às mudanças e incertezas; ele requer a
habilidade do pesquisador de colocar em reflexão teórica e ética permanente suas estratégias
e sua relação com os atores (p.261).

Para lidar com esses desafios, os dispositivos da restituição e da análise da implicação


cumpriram papel decisivo na submissão, discussão e reflexão com os envolvidos, de tudo o
que foi observado. Ao final de cada dia de observação as pesquisadoras tinham a
oportunidade de colocar suas impressões sobre o observado e os parceiros de concordar,

41
Atualmente já se encontra em vigor a Resolução do CNS nº 510, de 07 de abril de 2016, que instituiu “as
normas aplicáveis a pesquisas em Ciências Humanas e Sociais cujos procedimentos metodológicos envolvam a
utilização de dados diretamente obtidos com os participantes ou de informações identificáveis ou que possam
acarretar riscos maiores do que os existentes na vida cotidiana” (Conselho Nacional de Saúde, 2016, p.1).
113

discordar ou ainda de trazer questões sobre a pesquisa. Assim, o “contrato” de participação na


pesquisa, foi construído e reconstruído a cada encontro e a cada momento de restituição, em
acordo com um dos pressupostos fundamentais da nova resolução, que considera que “a
relação pesquisador-participante se constrói continuamente no processo da pesquisa, podendo
ser redefinida a qualquer momento no diálogo entre subjetividades, implicando reflexividade
e construção de relações não hierárquicas” (Conselho Nacional de Saúde, 2016, p.1).

Assim, o TCLE foi assinado durante uma restituição marcada para apresentar o que foi
consolidado durante as observações feitas nos quatro primeiros meses de encontros regulares
com o coletivo, durante duas vezes por semana e, diariamente, durante a temporada do
espetáculo Caminho. No momento da apresentação do TCLE, outra questão ética veio à tona,
a preservação da identidade de cada uma das pessoas do Sapos e Afogados envolvidas na
pesquisa. Após reflexão sobre o assunto os participantes concluíram que, uma vez que eram
atores de um coletivo de teatro, não viam porque omitir o próprio nome. Além do interesse de
se fazerem conhecer como artistas de teatro e de dar visibilidade ao trabalho do Sapos e
Afogados, a decisão foi coerente com o compromisso de cada um e do coletivo como um
todo, com a militância na saúde mental e com a desconstrução do estigma social relacionado à
loucura. Assim, uma declaração com a autorização para manutenção dos próprios nomes nos
documentos, relatórios e produções científicas gerados pela pesquisa foi providenciada e
assinada por todos.

Eu conhecia pouco do Sapos e Afogados quando cheguei e não procurei muitas


informações além das que me pareceram necessárias para justificar a inclusão do coletivo
como um dos campos da minha pesquisa – o fato de serem um coletivo autônomo,
desvinculado dos serviços de saúde mental de Belo Horizonte e cujos atores são cidadãos em
sofrimento mental. Minha intenção era buscar alguma informação na medida em que me
parecessem necessárias, mas não posso deixar de dizer que fui para a primeira reunião com os
objetivos do meu projeto em mente.

Junto dos objetivos também trazia comigo, fresca na memória, a constatação teórica de
que a participação dos usuários da saúde mental na produção de conhecimento científico
ainda é muito pequena no Brasil e a constatação, decorrente da práxis da oficina de rádio
desenvolvida no CCSP, de que a construção da autonomia, do empoderamento e a
horizontalização das relações no campo da saúde mental são um desafio cotidiano.
114

Assim, a primeira questão que me ocorreu ao participar da primeira reunião no Sapos


e Afogados com a equipe de produção foi: Onde estão os atores? A reunião é só com os
profissionais e estagiários? Estas questões iniciais retornaram em outros momentos do
processo de observação e motivaram reflexões que serão apresentadas ao longo do texto.

Com o decorrer da primeira reunião em que participei, fui entendendo mais sobre o
modo de funcionar do Sapos, fiquei sabendo que havia um ator – Elon Rabin - que participava
das reuniões da equipe de produção, mas que não estava frequentando o Sapos há algum
tempo; que os demais atores participavam de diferentes momentos da produção, que
aconteciam fora daquela reunião, como a aquisição de materiais para os espetáculos e a
discussão sobre a questão financeira do coletivo. Além disso, fui compreendendo um pouco
mais sobre os diferentes momentos e espaços de um grupo de teatro, como a produção, a
criação e o espetáculo em si; que atores de alguns grupos de teatro não costumam participar
da produção, o que os protege, de certa forma, do estresse inerente a essa atividade, e que no
Sapos, em especial, isso era importante devido à “fragilidade emocional” dos atores. De
acordo com Juliana, corroborada por Viviane Vida Ferreira, uma das atrizes do Sapos e
Afogados, ao falar sobre o funcionamento de grupos de teatro de uma forma geral, “o bom
seria que o ator tivesse seu lugar preservado, mas às vezes a gente produz e está em cena, faz
tudo”.

No meu primeiro encontro com os atores, me apresentei e falei sobre meu projeto em
momentos distintos, atendendo demandas de alguns atores. Expliquei o projeto, falei a
respeito do meu estudo sobre autonomia e empoderamento, sobre a oficina de rádio que
originou o interesse pela pesquisa e a sugestão da banca de qualificação para que eu
observasse outra experiência com propósitos autonomistas, culminando com minha chegada
aos Sapos e Afogados. Deixo claro ainda que vou fazer uma observação participante, anotar,
escrever um texto sobre o que observei, mostrar a eles para verem se concordam, escrever,
observar....

Todos me receberam muito bem e já, desde o início, fui integrada a algumas das
atividades realizadas pelo grupo: nos momentos iniciais, de recepção e de exercícios de
alongamento e ao final, durante a roda de conversa e o relaxamento que encerravam cada
encontro. Em muitos desses momentos eu pude compartilhar minhas impressões sobre o que
observava e anotava. Edmundo Veloso Caetano me alerta já no primeiro dia: “nós somos uteis
e não somos uteis. Você vai ver que somos bons artistas, tanto no serviço como fora”.
115

Aparecia aí o primeiro sinal da implicação deles com a pesquisa, provar que são bons no que
fazem. A partir daí, passamos a acompanhar todo o processo de criação e os ensaios do
espetáculo Caminho, duas tardes por semana.

Não busquei informações prévias sobre o espetáculo assim como nunca tive contato
com o teatro para além do lugar de expectadora. Fui descrevendo no diário de campo tudo o
que via e escutava, sem entender nada. Depois de algum tempo revi as anotações feitas e
percebi que elas diminuíam drasticamente em alguns momentos. A distância inicial cedeu
espaço a um envolvimento com a experiência que fazia com que eu me esquecesse de anotar
e, quando percebia, já estava admirando o que estava em fase de criação, como se já estivesse
na plateia do teatro. O encontro com o campo de pesquisa estava marcado, assim, por um
estado de

Receptividade afetiva ... [na qual] há uma contração que torna inseparáveis termos
que se distinguem: sujeito e objeto, pesquisador e campo da pesquisa, teoria e prática se
conectam para a composição de um campo problemático ... que vai ganhando consistência
com o tempo, marcando o propósito de seguir cultivando algo [que no início é] muitas vezes
confuso. Mas tal confusão, de ordem intelectual, é acompanhada de uma atração afetiva, uma
espécie de abertura, uma receptividade aos acontecimentos em nossa volta, que nos abre para
o encontro do que não procuramos ou não sabemos bem o que é. Atentos ao que
desconhecemos, com uma atenção fora do foco, orientados por uma atitude de espreita (ethos
da pesquisa), o cartógrafo se guia sem ter metas predeterminadas. Seu caminho (hodós da
pesquisa) vai se fazendo no processo (Alvarez & Passos, 2009, p. 137-138).

As anotações diminuíam não por diminuir o "assunto", mas justamente porque, como
expôs a pesquisadora Kelly durante a reunião de restituição,

As afetações são tão intensas, a cada dia, que vai ficando cada vez mais difícil
anotar, racionalizar, registrar, a não ser pelo viés do afeto, do corpo que vibra, do coração que
sente e bate mais sensível e forte a cada experiência, a cada encontro.

O novo apresentado a mim a cada dia e a dificuldade para entender que processo era
aquele, me faziam retornar sempre ao diário de campo, o que me permitiu conformar
aproximações e semelhanças que identificavam a autonomia, a criação e o cuidado como
centrais em todo o processo. A autonomia eu trouxe comigo enquanto parte dos meus
objetivos de pesquisa e da interrogação permanente que eu me colocava na tentativa de
entender o que observava: Que experiência é esta? Esta é uma experiência autonomista? Onde
tem autonomia aqui? A criação emergiu ao perceber que a condução dos ensaios, seja por
Filipe ou por Juliana, buscava o novo, o inédito em cada gesto, texto ou palavra trazidos pelos
atores, que por sua vez, iam se soltando e ganhando confiança para trazer suas propostas, para
aceitar ou não as sugestões dos diretores e para refazer tudo a cada repetição de movimento,
fala, gesto, texto. Até o ponto em que tive um insight que me mostrou que a autonomia de
116

cada um dos atores se manifestava em ato, quando criavam a cena ou na própria cena. Era
uma “questão de autoinvenção, não de autorevelação, de criação de si, não de descoberta de
si” (Pelbart, 2000, p. 114). Disparador para retomar ou assumir a ligação estreita entre
autonomia e criação, como proposto por Castoriadis ou, a criação como aspecto essencial à
conquista da autonomia.

Aos poucos fomos incorporadas ao coletivo, eu e Kelly, pesquisadora do L@gir que


compartilhou todo o processo comigo. Chegamos como pesquisadoras e, dois meses depois
éramos consideradas como parceiras, representantes da academia junto ao grupo, como parte
dos Afogados, apelido dado aos apoiadores, aos artistas convidados, aos parceiros e
colaboradores do coletivo. A estreia do espetáculo Caminho e a semana de atividades que
acompanhou a temporada dele no SESC Palladium intensificaram a proximidade, em especial
durante todas as sessões de apresentação e nas horas que as anteciparam, quando estivemos
em imersão total com os atores e equipe de produção, compondo as escalas e divisão de
tarefas nos bastidores do espetáculo, momento em que a dimensão do cuidado se fez mais
presente em todo o processo, cuidado com todo o trabalho construído, com os detalhes que
garantiriam o sucesso da empreitada e com cada um dos atores.

O depoimento da pesquisadora Kelly ilustra nosso percurso:

Esta foi uma questão discutida entre mim e Regina algumas vezes. A maneira como
nós fomos convidadas a participar da construção e execução deste espetáculo. Viramos
Sapônicas. Lembro a citação de Deleuze e Guatarri no Anti-édipo quando eles dizem que se
misturaram tanto que já não era possível dizer quem era quem. Fomos absorvidas pela
equipe. Participamos. Fomos contrarregras. Auxiliamos nos camarins, com o figurino, com
os convidados, com o lanche, com a organização dos objetos cênicos, com a organização dos
bastidores, com as orientações aos atores, seguimos religiosamente o "puta-merda"42. Nos
misturamos a tal ponto que ocorreu duas vezes, uma com Regina e uma comigo, a sensação
de estarmos "sozinhas" nos bastidores em determinados momentos. Da minha parte posso
dizer que no último dia do espetáculo eu fiquei realmente sozinha atrás do palco. Tive o
auxílio da Poliana e do Filipe no momento em que teríamos que produzir a chuva, mas com
exceção desse momento, coordenei todas as outras ações [nos bastidores]. Fomos convidadas
a entrar no palco e receber os aplausos do público. Fizemos parceria. Participamos. (Kelly)

Durante a reunião de restituição que apresentou o consolidado das observações feitas


fomos chamadas de Sapônicas pela primeira vez, nome dado à equipe de produção do
coletivo: “vocês pegaram desde lá do comecinho [...] foram muitos encontros, né. Muitas
coisas que a gente vivenciou tendo vocês duas de Sapônicas” (Juliana).

42
Puta-merda é um roteiro que lista a sequência e os nomes das cenas do espetáculo. Para nós que ficávamos nos
bastidores, orientava a organização dos objetos de cena e os passos a serem rigorosamente seguidos no apoio
dado aos atores. A expressão, muito utilizada entre artistas, surgiu daqueles momentos em que o ator, no meio do
palco ou na coxia, exclama: ‘Puta merda! O que eu tenho que fazer agora?’ E recorre ao roteiro para se orientar.
117

Alguns meses depois, durante uma reunião da equipe de produção para planejamento
do semestre fomos convidadas a integrar de vez a equipe e nos tornarmos Sapônicas. Convite
feito, convite aceito, com um misto de satisfação e tensão, em especial porque colocou em
cheque o propósito inicial de nossa presença ali, a realização da pesquisa. Como conciliar os
papéis? Como lidar com a sobreimplicação que poderia decorrer daí? Seria a aceitação do
convite efeito de uma possível sobreimplicação das pesquisadoras no processo? Ou estes
efeitos ainda estavam por vir e acabariam comprometendo a análise das implicações, por dar
lugar ao ativismo da prática e ao sobretrabalho (Lourau, 2004a)?

Coimbra & Nascimento (2007), lembram que ao se analisar as implicações e


sobreimplicações é preciso considerar que

O profissional sobreimplicado responde a uma demanda instituída, ocupa um lugar


que lhe foi designado. Sua forma de perceber o que deve fazer no dia a dia se dá numa
situação que produz urgência, ao mesmo tempo em que é atravessado pela ilusão
participacionista, pela esperança depositada em seus ombros (p.36).

A nova posição ocupada a partir daí, como membro da equipe de produção do Sapos e
Afogados, por um lado possibilitou o acesso imediato a informações com as quais até então
não tínhamos tido contato e por outro, provocou incômodo e gerou constrangimento.

Já havia algum tempo, se falava nas reuniões da equipe de produção sobre a


construção do Estatuto e Regimento Interno do coletivo e dos consequentes documentos
contratuais, como tarefas a serem realizadas e finalizadas desde o ano de 2011. A negociação
de patrocínios e de projetos para captação de recursos para o coletivo agilizou a retomada das
questões contratuais, o que me permitiu entrar em contato com a proposta de um termo de
compromisso que tinha como objetivo regulamentar a participação da direção e da equipe de
produção no coletivo. A rigidez e as formalidades exigidas por esse tipo de documento
fizeram saltar aos olhos questões do tipo: por que um contrato direcionado somente para a
direção e produção? Mesmo que haja uma distribuição de papéis distintos e uma hierarquia
nas relações produção-atores ou produção-criação seja inevitável, por que eu não via os atores
não estavam participando da construção desse contrato?

A equipe de produção do Núcleo de Criação e Pesquisa Sapos e Afogados era


apresentada no documento como Coletivo de Artes Cênicas e Saúde Mental Sapos e
Afogados,

Cuja atuação une arte e inclusão social ao desenvolver a prática teatral na formação
de novos atores portadores de sofrimento mental, um novo campo de criação (...) que vem se
118

firmando como referência na aplicação da arte cênica em situação especial, a fim de


contribuir para o desenvolvimento artístico e equilíbrio mental dos atores participantes.

Nomear a atividade do Sapos como uma “aplicação da arte cênica em situação


especial” direcionada ao “equilíbrio mental” e à “formação de novos atores portadores de
transtorno mental” fazia parecer que as ações do grupo estavam direcionadas pela doença e
tinham um cunho terapêutico por princípio, quando o que vinha sendo ouvido e observado
pelas pesquisadoras contradizia essa lógica.

Passado o primeiro impacto diante de regras que soavam tão contraditórias com a
práxis do coletivo, parecia necessário retomar a história desse coletivo, a partir do ponto em
que alguns usuários dos serviços substitutivos de saúde mental de Belo Horizonte dirigiram
uma demanda de profissionalização à então monitora das oficinas de teatro, Juliana Barreto,
que a assumiu e levou adiante na forma do projeto coletivo que originou o Sapos e Afogados.
O incômodo foi levado à diretora na busca de uma melhor compreensão a respeito das
demandas que originaram a elaboração do contrato, sobre o motivo dos atores não estarem
envolvidos nessa discussão e nem fazerem parte do contrato em questão e sobre a recorrente
preocupação, presente no contrato, com a preservação de direitos adquiridos, de direitos
autorais e bem como com o registro de Juliana como “autora intelectual do projeto”.

Como já foi dito anteriormente, a tentativa de elaboração do regimento interno do


coletivo vinha se arrastando há vários anos, estando paralisada desde 2011.
Concomitantemente a isso, nos seus quatorze anos de história construída, o Sapos e Afogados
passou por dificuldades e enfrentamentos com pessoas que se dispuseram a trabalhar com o
coletivo, mas descumpriram o compromisso assumido, trouxeram problemas ou levantaram
questões referentes a direitos autorais e direitos de imagem, conforme informações recolhidas
de relatos de Juliana.

Mas, e a participação dos atores nesse processo? De acordo com Juliana, tinham
conhecimento e vinham participando de discussões a respeito, ao longo desses anos. Quanto à
existência de um contrato para eles, essa não era a maior preocupação de Juliana: “com eles
não tem problema nenhum, nunca teve. É tudo conversado. E duvido que algum familiar vá
colocar problemas, eles não se envolvem com os meninos, e quando assistem o que eles
fazem se surpreendem com a capacidade deles”.

Depois de entender melhor o processo de elaboração do termo de compromisso, fiz


sugestões de mudança na redação, propondo deixar claro para as pessoas que o assinariam
119

quais seriam os objetivos e os princípios que dariam suporte à existência e funcionamento do


Sapos e Afogados e propondo também registrar no contrato a abertura para participação dos
atores nas comissões de trabalho da equipe de produção. Todas elas foram acatadas e
incorporadas ao texto.

A apresentação do Coletivo de Artes Cênicas e Saúde Mental Sapos e Afogados no


contrato passou a se configurar da seguinte forma:

O Coletivo de Artes Cênicas e Saúde Mental Sapos e Afogados reúne as pessoas que
dão suporte ao trabalho dos atores do Núcleo de Criação e Pesquisa Sapos e Afogados e é
guiado pelos mesmos princípios de seu funcionamento: solidariedade, cuidado, afeto,
compartilhamento, democracia e militância na luta antimanicomial.... [Sua] atuação une arte
e inclusão social à prática teatral, na formação e desenvolvimento artístico dos atores do
Núcleo de Criação e Pesquisa Sapos e Afogados.

Estas são marcas que no processo de institucionalização do Sapos e Afogados,


apontam para a presença inevitável e determinante das normas na construção da identidade e
mostram também a relação inerente entre instituído e instituinte na vida institucional.

5.2 Um “teatro perturbado”: o percurso do Sapos e Afogados na trilha da autonomia


e do empoderamento

As regras do jogo são postas para serem respeitadas, mas você


pode optar por desrespeitar essas regras. Sem adversário
teremos espetáculo? (Ellon Rabin, ator do Sapos e Afogados)

Boa parte da história do Sapos e Afogados apresentada aqui foi recuperada do relato da
diretora Juliana durante as observações da oficina Se delirar, delirou!, inserida na
programação do SESC Palladium no mês de maio de 2016, durante a qual os atores
assumiram a condução das aulas para um público de cerca de doze pessoas da cidade, dentre
os quais encontravam-se atores, atrizes, psicólogos e pessoas interessadas em teatro. A
composição da história também se deu a partir dos relatos dos atores durante as entrevistas de
pesquisa e da consulta a trabalhos científicos (Barreto, 2012; Oliveira P. F., 2012; Oliveira,
Melo Júnior, & Silva, 2012), o portfólio do coletivo e vídeos divulgados na internet (Barreto,
2014; Sapos e Afogados, 2014a, 2014b, 2016).

Falar da história do Sapos para Juliana,


120

É falar também como que eu aprendi, [como] me descobri diretora de teatro. Dizem
que ser diretor de teatro é quando alguém te coloca nesse lugar. Até então ninguém tinha me
colocado, foram eles. Então, se eu pude construir com eles esse outro nome de ator, de
artista, eles também me deram um novo lugar.

O encontro da diretora geral do Sapos e Afogados com a saúde mental aconteceu por
meio da apresentação artística de algumas cenas durante um desfile da Escola de Samba
Liberdade ainda que Tamtam, em comemoração ao dia nacional da luta antimanicomial, dia
de “luta colorida, de revolução colorida”. Depois disso, foi convidada a ministrar oficina de
teatro nos Centros de Convivência da rede municipal de saúde mental de Belo Horizonte.
Apesar de já contar com atores em seus quadros de profissionais, estes serviços ainda não
tinham trabalhado com o teatro. Havia, até então, um desconhecimento sobre as
possibilidades da prática do teatro pelos cidadãos em sofrimento mental, que se manifestava
por meio do cuidado e cautela dos gestores dos serviços em relação à proposta:

Acho que existia certo receio de que a oficina de teatro pudesse desencadear um
surto, fazer sofrer. Tinha esse cuidado: ‘mas o que você vai trabalhar com eles? Você vai
fazer laboratório? ’. Mas, cheio de temores, assim, eu diria que em alguns lugares até uma
certa censura [do tipo] ‘ah eles não podem ver isso! ’ [ao que Juliana retrucava] ‘mas como
assim, porque que não podem ver este espetáculo? ’ Como é que eles iam fazer teatro se eles
nunca tinham nem visto? (Juliana).

Naquele momento, por volta dos anos 2001-2002, tudo era muito novo para os
profissionais da rede substitutiva de saúde mental de Belo Horizonte e para a própria Juliana.

As oficinas aconteciam em dois centros de convivência “polos” (Barreto, 2012): o CC


Cezar Campos, que recebia usuários de quatro Centros de Convivência e o Centro de
Convivência Providência, que recebia os usuários dos outros quatro Centros de Convivência
da cidade interessados na prática teatral. A prática era conduzida levando-se em consideração
um público flutuante, que modificava a cada encontro. Assim, “minha forma de pensar o
roteiro acompanhava o modo de o usuário “compor” um personagem, sua trajetória e sua
linha de ação” (Barreto, 2012) e todos os usuários experimentavam todos os
lugares/personagens, trazendo uma flexibilidade que permitia lidar com alguma possível
ausência no dia de apresentação (Idem; Oliveira, 2012).

Depois de um ano de realização da oficina, 12 usuários demandaram ser atores “de verdade”,
originando então o grupo de teatro chamado Companhia Momentânea de Teatro, abrigado no
Centro de Convivência Cézar Campos. O primeiro trabalho da Companhia Momentânea foi
anunciado para Juliana por um dos usuários, já falecido, que informou a ela ter assumido uma
agenda para apresentação do Auto de Natal Hoje é o Dia dos Santos Reis, no Centro de
121

Convivência Cézar Campos. O espetáculo seguinte, chamado Mais de uma vez, mais de uma
voz, apresentado pela primeira vez no 2º Encontro Mineiro de Saúde Mental, na cidade de
Lagoa da Prata, Minas Gerais, circulava dentro dos equipamentos da saúde e abriu as portas
para que a companhia ganhasse “uma cara de grupo de teatro mesmo”.
Os usuários começaram então, a questionar o “aplauso garantido” que vinham recebendo e a
reivindicar a realização de produções que não fossem direcionadas somente ao público da
saúde mental. Esse momento coincidiu com provocações do ex-Coordenador Municipal de
Saúde Mental, o psiquiatra e psicanalista Musso Greco, que refletia com a equipe do Centro
de Convivência Cézar Campos acerca do caráter artístico das produções de usuários da saúde
mental e coincidiu também com os ensaios do terceiro espetáculo da companhia, chamado
Sapos e Afogados, que se propunha a questionar exatamente o lugar da arte no Centro de
Convivência. Como parte do espetáculo, personagens inusitados recebiam todo o público
carimbando um de seus braços com “Centro de Convivência” e o outro braço com o nome do
espetáculo – Sapos e Afogados. Foi com este espetáculo que a Companhia Momentânea de
Teatro entrou para o cenário cultural de Belo Horizonte, fazendo suas apresentações durante a
“3ª Zona de Ocupação Cultural”, um projeto realizado pelo Centro de Cultura Belo Horizonte.
Depois disso, outros convites foram feitos pela Secretaria Municipal de Cultura de Belo
Horizonte para que participassem de eventos da área do teatro e da cultura.
A propósito, o nome Sapos e Afogados surgiu durante o processo de criação desse
espetáculo, quando

Um dos atores, vira para mim e fala, ‘porque que o espetáculo não se chama Sapos e
Afogados?’ Aí eu falei: ‘maravilhoso esse nome, mas porquê? Aí ele falou: ‘não existem
Secos e Molhados43?! Porque que a gente não pode fazer o Sapos e Afogados?’ Aí eu falei:
‘claro que pode! Maravilhoso!’ E ele também estava falando desses lugares, dessa diferença,
do que é arte, do quê que não é, do que é que é estar dentro do centro de convivência, do que
é que é não estar, e assim foi (Juliana).

Nessa trajetória, os usuários continuavam insistindo que queriam ser atores de


verdade:

Os meninos falavam, ‘eu quero ser ator de verdade, eu quero ser ator de verdade, eu
quero ser ator de verdade’. Hoje, sei lá, um ano, dois anos atrás assim, eu entendi o quê que
eles estavam me falando. Que eles são atores de verdades. O que eles estão colocando em
cena, e como estão compondo em cena é a partir de algo que eles viveram, é a partir de algo
que eu vivi, é a partir de algo que nós construímos a partir do que nos atravessou o corpo, a
memória, os sentidos, o sentimento [...]. Então eu rompi com a rede na época. Eu saio porque
era impossível deixar de ser atriz, era impossível deixar de ser artista. Eu não sei, eu não
quero, não vou ser outra coisa. E aí, na ocasião, a rede tinha uma demanda, e queria que eu

43
Banda brasileira de rock dos anos 1970.
122

cumprisse algumas coisas que era impossível para mim, e eu não podia abrir mão deste
trabalho. Abri mão do emprego e não abri mão do trabalho (Juliana).

Ato instituinte, a saída de Juliana da rede assistencial deu origem ao Sapos e Afogados
e colocou em cena a produção de autonomia enquanto um momento de criação no qual, por
meio da reflexividade, as significações imaginárias implícitas nas leis que regem uma
instituição são questionadas, tanto no plano individual quanto no plano coletivo. É quando,
para Castoriadis (1992), a dimensão instituinte da sociedade faz balançar a heteronomia
instituída que a mantém e a seus membros vivendo em conformidade e na repetição.

Partiram então, para a aventura de

Abrir portas e janelas, mudar de teatro (!), mudar de cena ..., mudar o cenário, mudar
de roteiro, sobretudo mudar o olhar sobre os atores e sobre a fronteira que nos separa deles,
não para tornar tudo indiferente – ah, a ilusão mais perigosa! – mas para deixar emergir
outras personagens (e quantas outras experimentamos nessa quebra e reconstrução incessante
da “identidade” de terapeuta), outros estados, outras afetações e outras conexões entre eles,
entre nós (Pelbart, 2000, p. 117).

Da formação inicial ainda fazem parte do grupo os atores Rogério Gomes, Ludmila
Kondziolková e Elon Rabin. Além deles, o corpo de atores atual conta com Edmundo Veloso
Caetano, Lídia Silva, Jaqueline Gonçalves, Viviane Vida Ferreira, Emílha Marques e Beth
Flores.

Com o desligamento da rede de serviços substitutivos, a trupe, agora batizada como


Sapos e Afogados, ficou sem lugar para ensaiar e, apesar de não contarem mais com a
estrutura do serviço, insistiram e sustentaram a decisão tomada. Encontravam-se na rua, na
Praça Santa Tereza, em cafeterias, fazendo literalmente “teatro de rua”, um teatro “andarilho”,
que durava até a próxima chuva, naquela que é uma região da cidade de Belo Horizonte que
transborda cultura, o bairro Santa Tereza44.

O espetáculo Sapos e Afogados abriu portas para parcerias e novas produções, como a
aproximação com diretor de cinema Ricardo Alves Júnior, que propôs ao grupo transformar o
espetáculo em um curta-metragem de mesmo nome (Alves Júnior & Barreto, 2004), lançado

44
Os moradores deste bairro da cidade o descrevem assim: “Carinhosamente chamado Santé, quase uma
referência ao seu pulsar de “mineiridade”, que corta a “compridez” das palavras, (...) é um dos poucos [bairros]
que ainda conserva suas características arquitetônicas e culturais (...), um desses lugares onde perduram algumas
tradições e onde aflora cultura em amplitude, como a boemia dos bares e restaurantes (...), e os encontros
marcantes “marcados” de fazer arte, como o Clube da Esquina, Skank e Sepultura e os diversos ateliês de
cerâmica, artes plásticas, artesanato e grupos de teatro e de música. É um lugar onde as pessoas ainda conservam
o hábito de dar bom dia, boa noite e oferecer ajuda, quando alguém está em apuros e até mesmo sentar no banco
da praça ou na porta da rua e trocar um dedo de prosa”. Informações coletadas em 16/01/2016, no Portal Santa
Tereza Tem - http://santaterezatem.com.br/
123

em 2005. Esta parceria deu origem a outro curta-metragem, o premiado Material Bruto (Alves
Júnior & Barreto, 2006), no qual Juliana dividiu a direção com o cineasta e participaram os
atores Ludmila Kondziolková, Elon Rabin, Germana Silva e Rogério Gomes. Material Bruto
foi exibido em 15 festivais de cinema no Brasil, Argentina, Bolívia, Portugal, Canadá e Israel
conquistando diversos prêmios, como o Prêmio de Melhor Direção no FENAVID - Festival
de Vídeo Santa Cruz (Bolívia), o Prêmio do Júri no VII Cine Esquema Novo (Brasil), o
Prêmio de Melhor Curta Brasileiro pelo Júri da Crítica, no Festival Internacional de Curtas de
Belo Horizonte (Brasil), o Prêmio Troféu Caleidoscópio, no III Festival Novos Realizadores
do MERCOSUL (Brasil), o Prêmio Aquisição SESC TV, no Festival Internacional de Curtas
de São Paulo (Brasil), o Prêmio de Melhor Curta Brasileiro, no Mostra Curta Goiânia (Brasil)
e Menção Honrosa no Festival Luso-Brasileiro de Santa Maria da Feira (Portugal).

Assim, os atores começaram a ter a dimensão de que suas verdades poderiam


conquistar aplausos não garantidos e ainda se reverterem nos diversos prêmios conquistados
nos festivais nos quais, de acordo com Juliana “a gente nem chegava a falar [que era da saúde
mental]. Só no final que a gente falava, para testar também até que ponto o que a gente estava
produzindo podia ser inserido assim, dentro da cultura”.

A inserção do Sapos nos espaços culturais da cidade de Belo Horizonte começa a


acontecer com a solução para o problema da falta de espaço para os ensaios. Em 2007 Juliana,
que fazia parte do núcleo pedagógico do Galpão Cine Horto45, comentou com Chico Pelúcio,
diretor do lugar, como vinham trabalhando, e ele os convidou para usar as salas de ensaio do
local. Todos foram recebidos e acolhidos com cuidado, afeto e sensibilidade (Oliveira, 2012),
numa parceria que se consolidou ao longo dos anos e que compartilha de figurinos,
equipamentos e do acervo do grupo Galpão.

A realização do filme Material Bruto e todo o reconhecimento e premiações


recebidos, consolidaram a existência do Sapos e Afogados e viabilizaram a sobrevivência
financeira do grupo por alguns anos. Juliana conta que esta foi uma época que estavam “se
afogando entre a Secretaria de Saúde e a Secretaria de Cultura, e aí a gente se ferrava. A gente
chegava na cultura, e falavam ‘isso é da saúde’, aí a gente chegava na saúde e falavam ‘isso é
da cultura’”. Mesmo assim, o espetáculo Caixa Preta foi produzido em 2009 e apresentado no

45
Galpão Cine Horto é o centro cultural do Grupo Galpão, uma companhia teatral de Belo Horizonte que tem
origens no teatro popular e de rua.
124

circuito cultural da cidade nos anos que se seguiram. De acordo com Juliana, o Caixa Preta
foi o

Primeiro espetáculo depois que a gente sai desse processo com o cinema, [...] que é
um espetáculo que a gente brinca com a metáfora da caixa preta do teatro, [...] com o
inconsciente como a caixa preta, com a tarja preta de uma medicação, e com a caixa preta de
um avião. [...] A gente só faz uso, só recorre a uma caixa preta, para falar de algo que já foi,
de algo que passou, de algo que a gente não viu, que a gente não tem acesso. Então
inevitavelmente os meninos falavam dessa questão da morte. Isso aparece no espetáculo
também, e é um espetáculo com uma estrutura de improvisação, em que a gente tem um
circuito onde eles passam por determinados lugares. Mas, entre uma coisa e outra algo
acontece de novo, seja na densidade do movimento, seja numa coisa nova que aparece.

Em 2011 o Sapos e Afogados realizou sua 1ª Residência Artística – Casa Breve,


durante um mês de ocupação que resultou na criação de performances e instalações pelos
atores do grupo, como descreve a atriz Viviane:

A primeira Casa Breve eu tenho com o maior carinho, porque foi uma ideia minha.
No dia que eu cheguei lá na casa eu fiquei doida com a casa. Falei ‘Ric [Ricardo Alves
Júnior], vamos ocupar essa casa? Vamos ficar aqui?’ Aí eu mudei pra lá. A ideia era a gente
filmar umas cenas para um curta, que nunca rolou. Eu cheguei e fiquei doida com a casa e
falei, ‘vamos ocupar isso aqui. Mudei com minhas coisas’. Ele falou ‘me dá até amanhã pra
eu falar com a Ju’. Os dois gostaram da ideia. Eu mesmo conversei com o cara que era vigia
da casa pra ficar lá, depois de algum tempo, porque no início era pra fazer a coisa meio
escondida, mas ele desconfiou, descobriu. Eu conversei com ele, conversei com a dona [da
casa] pelo telefone. Ela morava em outra cidade. Fiquei lá, tive a ideia de apresentar uns
trabalhos e fiz uma performance muito importante pra mim (...) que chamava Hoje são
mistérios gozosos, meus surtos psicóticos.

Juliana também dá uma boa ideia sobre as relações com a cidade e os produtos
decorrentes desta 1ª Casa Breve:

As pessoas da rua não entenderam nada, acharam que a casa tinha sido invadida, que
era morador de rua. A gente começou aos poucos, descobrindo como era estar naquele
espaço. De manhã, os meninos tinham o ritual de cuidar da casa. Logo o pessoal da rua, um
dava água, o outro passava o fio para poder ligar o computador, enfim, os meninos colocaram
uma placa [na porta, com o escrito] Casa dos Atores Loucos, pedindo vela e cigarro.
Convidavam o pessoal para poder assistir os ensaios e aí ficaram trinta dias. De manhã eles
tinham esse cuidado, dormiam nessa casa. Então tinham os cuidados pessoais, cuidados com
o espaço, depois eles iam meditar. Foi quando surgiu a Mirra46. Então eles faziam aula de
Mirra junto, depois cada um ia para seu cômodo criar a sua cena. Na parte da tarde, eu e
Ricardo, a gente chegava para dirigir as cenas. [...] no final da tarde a gente encontrava na
varanda para falar dessas cenas
Do lado dessa casa tinha uma distribuidora de bebida, de festa, essas coisas. O
Edmundo logo ficou amigo íntimo desse dono dessa distribuidora, todo dia ele ia e
conversava. E aí, quando a gente está encerrando [a temporada], fechando a casa, às nove
horas da noite, esse cara manda nove garrafas de champanhe pra gente. Virou um caos, uma

46
Mirra é uma “arte marcial para flutuar”, na qual “flutuar não está apenas no sentido literal da palavra ... flutuar
é celebrar o encontro com alguém, é estabelecer uma relação de proximidade com outra pessoa. Flutuar não é
necessariamente voar: é algo que pode ser feito através de ações e palavras. ... ‘Uma interação com quem você
ama já é flutuar, flutuar está no encontro. O importante é saber que depois de flutuar cada um tem que colocar o
pé no chão novamente. Aprender a fazer isso é muito importante’”, como explica seu criador, Edmundo Veloso
Caetano. https://www.facebook.com/ufmgbr/posts/10203271187761810 Acessado em 19/04/2017.
125

ciranda louca, e o público já não estava mais, porém a gente comemorou em grande estilo. E
ele mandou entregar para o Edmundo!

No mesmo ano compartilharam experiências com o grupo italiano Academia Della


Follia, que resultaram na apresentação do espetáculo Mad Music, no Galpão Cine Horto e na
criação do espetáculo Duo, apresentado em Trieste, na Itália, e no qual, pela primeira vez um
ator profissional contracenou com uma atriz do grupo.

O ano de 2011 foi ainda muito importante para o coletivo porque marcou o
reconhecimento de seu trajeto na cultura com duas conquistas. No âmbito da Fundação
Municipal de Cultura de Belo Horizonte, conseguiu financiamento por meio da Lei Municipal
de Incentivo à Cultura para o primeiro espetáculo de rua, chamado Frog Sound, isso não é um
sorvete.

Além disso, o SESC Palladium, pela primeira vez, “aposta” no Sapos e Afogados,
patrocinando a mostra comemorativa dos 10 anos de existência do grupo, que aconteceu no
ano seguinte, na semana da luta antimanicomial. Durante a “Sapos e Afogados – Mostra 10
anos”, além de ter sido apresentado todo o repertório que marcou a trajetória do grupo,
seguido de rodas de conversa com o público, aconteceu também a estreia do Frog Sound, isso
não é um sorvete.

Em 2012 a Oficina Se delirar, delirou! foi oferecida pela primeira vez durante o
Festival de Verão da UFMG, sendo incorporada às atividades permanentes do Núcleo de
Pesquisa, com a possibilidade de ser oferecida à comunidade no espaço do Galpão Cine
Horto. Nesta oficina, os atores propõem ao público experimentar o processo de criação do
Sapos e Afogados, uma “oportunidade de jogar cenicamente com delírios, fantasias e
devaneios pessoais. Acompanhados pela obra O livro das Ignorãças, de Manoel de Barros,
[buscam] ‘desacostumar as palavras’, o corpo e os sentidos” (Sesc Palladium, 2016, p.53).

A realização da 2ª Residência Artística - Casa Breve, em 2013 foi submetida a edital


da lei de incentivo à cultura, mas não foi aprovado. Como Juliana estava encerrando um
contrato da casa onde morava e ainda podia ficar de posse das chaves por dezessete dias,
viram ali a possibilidade de usá-la como locação. Apesar de não haver consenso entre a
equipe de produção nem entre a equipe de atores, a Casa Breve 2 aconteceu, adaptando-se ao
curto período de tempo disponível e contando com a participação de parte do elenco do
Sapos, de artistas, de performers e de músicos da cidade na composição da grade de
programação.
126

Naqueles dias, observando a laje de uma construção ao lado da casa, enquanto


conversava com Cacá Zech, a maquiadora que fez o “embelezamento” dos atores durante o
Frog Sound, Juliana brincou com a ideia de fazer um concurso da louca da laje, o que bastou
para que Cacá Zech comprasse a ideia. Convidaram o fotógrafo Gabriel Barreto e assim foi
gestado o Concurso Psicofotográfico Performático: Louca da Laje, projeto anual, onde são
fotografadas mulheres representantes dos segmentos “psi”, artístico e “as originais de fábrica,
as malucas de verdade, como dizem os meninos”, num “democrático concurso de beleza”, que
questiona “os ‘enlouquecedores’ padrões de beleza a que toda mulher, esquizofrênica ou não,
é submetida” (Sapos e Afogados, s.d.), qual é o olhar atribuído à beleza das mulheres em
sofrimento mental e o que os tratamentos aos quais se submetem, produzem em seus próprios
corpos. As participantes são produzidas e dirigidas em uma performance que subverte a
imagem de divas, cuidadosamente escolhidas para representar o tema de cada edição do
concurso. A 1ª edição do Louca da Laje aconteceu ainda no período de realização da Casa
Breve 2, quando as convidadas representaram divas do cinema, como “a Marilyn Monroe
descolorindo os pelos, [...] Fanny Ardant em cima de uma escada [e] a Gretchen, que ganhou
[e] foi [personificada pela atriz do Sapos] Ludmila” (Juliana).

Assim como a oficina Se delirar, delirou!, outra ação de formação criada e


desenvolvida a partir de 2013 pelo Sapos e Afogados foi o Projeto Sapo Escola, no qual a
discussão sobre a loucura é levada para crianças e adolescentes de escolas públicas e privadas,
a partir da aula de Mirra, ministrada por Edmundo e por meio de uma redação, cujo tema é
“O que é a loucura?”, que é corrigida pelos atores e devolvida, de forma dialogada, em novo
encontro com os estudantes.

O ano de 2014 foi marcado pela palestra de Juliana e pela apresentação do Frog Sound
na terceira edição do TEDx BeloHorizonte47, que teve como tema os limites da participação
cidadã, o que deu maior visibilidade ao trabalho e “fez o brejo crescer”, atraindo novos
colaboradores para a equipe de produção.

Também em 2014 aconteceu a segunda edição do Louca da Laje, cujo tema “Não vai
ter culpa” fazia alusão a toda a agitação política e confrontos entre a polícia e movimentos
sociais, que protestavam contra a realização da Copa do Mundo de Futebol no Brasil. O tema

47
TEDx é a versão local de eventos independentes, nos quais os palestrantes compartilham ideias no intuito de
estabelecer trocas de experiências entre comunidades, organizações e indivíduos. São eventos ligados à TED,
que é uma organização norte americana, sem fins lucrativos, que organiza palestras curtas para divulgar ideias
que podem inspirar mudanças. (https://www.ted.com)
127

escolhido inspirou o nome Imagina na Copa! Vinte e uma mulheres foram convidadas a
escolher um dos sete pecados capitais e relacionar sua performance com a copa do mundo. E,
assim, pode-se ver, por exemplo, “a Gula comendo um tropeirão na porta do Mineirão48, a
Luxúria com um time de futebol inteiro e a Ira, quebrando uma televisão" (Juliana).

O ano de 2015 testemunhou o início das manifestações de rua contrárias ao governo


Dilma e, mais uma vez, a efervescência política alimentou o tema da 3ªedição do concurso:
“tinham começado a acontecer as manifestações detonando a Dilma. E aí a gente ficou muito
puta, [e se perguntando]: Que isso gente! A nossa rainha?!” (Juliana). Estava criado o tema –
Louca da Laje 2015: “Majestade, deu a louca na corte!”

O ano de 2015 introduziu ainda outra atividade de formação de atores conduzida pelo
elenco do Sapos e Afogados, batizada de Frog Cidadão, na qual deram aulas para pacientes de
uma clínica de atenção psicossocial de Belo Horizonte. Esta experiência abriu portas para que,
em 2016 uma nova ação de formação, de caráter permanente, começasse a ser experimentada
no espaço do Galpão Cine Horto, o Sapo Oficina, que se propõe a oferecer à comunidade em
geral, uma formação semestral em teatro, coordenada pelos atores e supervisionada pela
direção do coletivo.

O organograma do Sapos e Afogados é composto por três categorias de participantes:


atores; equipe; e apoiadores, artistas convidados e parceiros/colaboradores.

Dentre os atores, destaca-se o lugar de Eterna Diva, cativo e dedicado a Germana


Silva, a primeira atriz do Sapos e Afogados, falecida em 2014.

O elenco é composto pelos Sapos, pelos Flutuantes e pelos Girinos. Os Sapos são os
atores permanentes, que participam ativamente das atividades do grupo, seja nos ensaios,
apresentações ou dando aulas. Os Flutuantes não participam das atividades que estão
acontecendo, mas não se desligaram do grupo, continuam sendo Sapos, mas permanecem
afastados durante um tempo, que é delimitado pela necessidade de cada um. Os Girinos são os
que estão experimentando o processo na sala de ensaio até que se autorizem nesse lugar e
sejam reconhecidos pelos demais atores como um Sapo. É comum ouvi-los afirmar que
“fulano está virando Sapo”. Dentre os atores atuais, Emílha, Jaqueline e Lídia foram as
últimas a se tornarem Sapos e Beth Flores é a Girino recém integrada ao coletivo.

48
Referência ao conhecido prato típico mineiro servido nos bares do estádio de futebol Mineirão. Comer o feijão
tropeiro no Mineirão é quase um ritual para os torcedores que vão aos jogos.
128

Por decisão dos atores, para fazer parte do elenco do Sapos e Afogados é preciso ser
um cidadão em sofrimento mental. Pessoas que não trazem esta marca podem atuar nos
espetáculos somente na qualidade de convidadas, como aconteceu no curta metragem
Material Bruto, no espetáculo Duo, em Frog Sound, isso não é um sorvete e no espetáculo
Caminho.

Em Material Bruto um ator profissional fez parte das primeiras filmagens, mas acabou
desaparecendo das cenas quando, ao final (ou seria o começo?) do processo de criação, o
diretor optou por refazer todo o processo, por entender que o material bruto era muito melhor.
Segundo Juliana,

O nome do filme era ‘Escolhe o que comer’. O Elon falava assim, ‘eu fiz quarenta
anos agora eu já escolho o que comer’, e a gente começou a investigar e falar disso, filmar,
entrevistar. E eu convidei um ator, um diretor de Belo Horizonte, para jogar junto com eles,
para interpretar. Ele foi e aí, nessa ocasião, depois que a gente filmou, a gente foi assistir o
que tinha produzido, e os meninos escolheram o que comer: eles devoraram o ator. (...) Ele
ficou completamente frágil, as imagens, os meninos, estavam muito melhores do que ele. E aí
o Ricardo [diretor do filme] olhava isso e falava assim, ‘mas o material bruto é muito
melhor’, porque a gente tinha cenas gravadas sem ele. [E falou] ‘eu vou gravar de novo’. Aí
eu falei ‘o que?! Tem um mês que a gente tá gravando!’ [O Ricardo insistiu:] ‘Não, mas eu
vou gravar de novo’. [Juliana, que dividia a direção com Ricardo acabou por concordar:]
‘Beleza, então vai chamar Material Bruto’.

O espetáculo Duo, criado para ser apresentado em Trieste, na Itália, a princípio era um
solo, mas passou a contar no elenco com uma atriz que também era assistente de direção do
Sapos e Afogados. Inicialmente a ideia era que ela traduzisse o texto para o italiano, evitando
assim o uso do recurso de projeção de legendas. Mas, o processo de criação acabou por
incorporá-la às cenas de tal forma que o solo se tornou duo e a presença de “duas mulheres no
palco, duas vozes no palco [permitiu] brincar com esse lugar da loucura (...), com o lugar que
a [atriz do Sapos] ocupava, que era esse lugar do enlouquecimento” (Juliana). Em
determinado momento do espetáculo elas trocam de lugar e a atriz do Sapos começa a falar
italiano e a tradutora passa a falar português.

O espetáculo Frog Sound, isso não é um sorvete, incorporou a diretora Juliana e uma
produtora da equipe ao elenco, depois de uma negociação com os atores, cujo relato de
Juliana a respeito vale a pena trazer aqui:

Eu era louca para entrar em cena com eles, e tinha que alguém levar o som né. Aí eu
ficava com essa, ‘ah, gente deixa eu carregar o som?’ Aí eles, ‘ah! Tá doida para entrar em
cena com a gente! ’. E eu falava, ‘deixa eu entrar carregando o som?’ [Eles insistiam:] ‘Ah,
não pode, só se você alterasse sua consciência’. Aí, a Vivi falou que eu tinha que fumar um
baseado. Falei, ‘mas não vou poder não, eu vou presa, no meio da rua fumando. Quando
legalizar eu fumo’. (...) Aí os meninos [se perguntavam] ‘como que ela vai alterar a
consciência?’ Eu falei, ‘então tá, vai ser assim, eu vou tomar uma garrafa de vinho, ou uma
129

garrafa de champanhe. Eu tomo então antes do espetáculo, e durante o espetáculo carrego o


som tomando essa garrafa de champanhe’. No final do espetáculo eu [estava] completamente
bêbada, com minha consciência muito alterada, chorando, feliz. A gente estreando e eu
chorava [falando] ‘foi lindo, foi maravilhoso!’ [ao que eles respondiam] ‘para de chorar
Juliana, por que que você tá chorando? Você é normal, não chora não’.

No espetáculo Caminho, os diretores Juliana e Filipe participam das cenas de abertura


e encerramento e de uma outra, em que atuam todo o tempo com os olhos vendados.

O que aparece no organograma nomeado como Equipe envolve as pessoas


responsáveis pela direção, produção, pesquisa, acervo, comunicação, secretaria e formação
dos atores, sendo composta em sua maioria, por artistas e estagiários, além de contar com a
participação de dois dos atores, na direção e na secretaria, respectivamente.

Os demais envolvidos, apelidados como Afogados, são os apoiadores, os artistas


convidados, os parceiros e colaboradores do coletivo.

De acordo com Juliana,

Todas essas pessoas que estão no grupo, trabalham de forma voluntaria, é incrível!
.... É uma troca, não tem ninguém fazendo favor, o Sapos não está devendo ninguém, porque
o que a gente ganha também! Tem um interesse meu como artista, não vou ser hipócrita aqui
[mas] não é uma coisa assistencialista. Eu aprendo, é importante para mim como artista,
como atriz, é um caminho sem volta. Isso é o meu fazer artístico hoje, então não tem isso.
Não tô ajudando ninguém, não! A gente está se ajudando, a gente está trocando.... O trabalho
é bonito e é forte por este encontro, [...] eles têm muito para ensinar. E têm mesmo, vocês
estão vendo aí, entende? [Referindo-se à experiência da oficina Se delirar, delirou!] Então é
uma forma diferente, é uma outra perspectiva de dialogar com a loucura ou com o que quer
que seja.

Mas, a “flutuância49” das pessoas que passam pela equipe de produção, ao mesmo
tempo em que traz um colorido instituinte, pode trazer também uma inconstância que pode
fragilizar a necessária estabilidade que faz com que o instituído mantenha a coesão da
instituição.

Depois de ultrapassar os limites dos “aplausos garantidos” direção e atores desejam e


buscam agora um reconhecimento que lhes permita fazer do teatro sua atividade exclusiva,
dedicar-se somente ao Sapos e Afogados, como exposto por Elon:

Eu sempre encarei aqui como um trabalho que a gente faz. [...]. A nossa autonomia
pega [...] a autonomia financeira, [...] a gente ainda luta, tem esse objetivo, ter nosso próprio
espaço e isso a gente ainda ..., captação de recurso, né. A gente não está muito próximo de
certos empresários [...], não chegou alguém assim com essa visão que possa nos ajudar mais
nesse sentido. Acho que tem essa pessoa, não sei se a gente vai encontrar essa pessoa, é um
desejo que a gente tem né.

49
Expressão usada por Juliana, em referência à Mirra, arte marcial, criada por Edmundo, cujo objetivo é fazer
flutuar.
130

A organização do trabalho em eixos de atuação demonstra esse esforço na direção da


profissionalização.

O trabalho do Sapos e Afogados sustenta-se em três eixos assim nomeados:


Criação/Formação, Produção/Circulação e Estabilização. Em cada um desses eixos estão
inseridos os Núcleos de Trabalho, conforme demonstrado na figura e explicado por Juliana:

Não adianta os meninos estarem só criando se a gente não tiver uma produção ou se
eles não estiverem com essa saúde de um jeito legal. Não adianta também ter uma produção,
ter grana, se não estiver bem e se não estiver criando alguma coisa. Então são três eixos [a
partir dos quais] a gente vai fazendo esse trançado no trabalho.

Figura 1 - Eixos que sustentam o trabalho do Núcleo de Pesquisa e Criação Sapos e Afogados

Fonte: Documento interno do Núcleo de Pesquisa e Criação Sapos e Afogados

A “máxima do Elon”, um dos atores do Sapos, está na base dos três eixos: “As regras
do jogo são postas para serem respeitadas, mas você pode optar em desrespeitar essas regras.
Sem adversário teremos espetáculo? ”

Essa “máxima” tem o propósito de marcar a flexibilidade, a “flutuância” de todo o


trabalho, “permitir que a gente saia de uma lógica tão fechada, tão cartesiana, tão boba às
vezes, tão chata, sabe, de deixar a coisa bagunçar mesmo” explica Juliana que, ao ser
questionada por um produtor da cidade sobre o aparente caos do coletivo que dirige, faz
questão de deixar bem claro que
131

Isso aqui é um caos super organizado! Isso aqui você não vai mexer não! Você não
vem querer arrumar demais não.... é um jeito de organizar, é um laço frouxo, como a gente
usa o termo da psicanálise. Não é sem responsabilidade, é com muita coragem, muita
responsabilidade, mas com esses espaços assim sabe, com esse lugar para o respiro. Pode
mudar, hoje eu não dou conta, hoje eu vou fazer diferente, hoje eu quero ... sabe?

É a máxima que apresenta o Sapos e Afogados como campo propício à produção de


autonomia, abrindo-se à reflexividade acerca de suas próprias leis, mas também expondo sua
“autolimitação. Toda limitação da democracia somente pode ser, de fato também em direito,
autolimitação. Essa autolimitação pode ser mais e outra coisa além de simples exortação, se
ela se encarnar na criação de indivíduos livres e responsáveis” (Castoriadis, 1992, p.148).

No Eixo Criação e Formação, as ações do núcleo de trabalho nomeado como Grupo


de Estudo envolvem diferentes formas de articulação com a cidade, como por exemplo, a
participação em reuniões do Fórum Mineiro da Saúde Mental, como forma de manter o laço
político com a luta antimanicomial. Outra ação ligada a este núcleo de trabalho tem uma
característica que é muito cara a todos os que frequentam o coletivo, que é a dimensão do
cuidado e do afeto, deixando transparecer, por vezes, uma linha tênue entre tratamento,
acolhimento e cuidado, visível de forma mais evidente no Eixo Estabilização, como veremos
mais adiante. Por hora, essa aproximação pode ser observada na seguinte fala de Juliana:

A gente propõe também, dentro do Sapos, uma outra forma de acolhimento e de


tratamento. Isso ainda não acontece da forma como eu gostaria, mas já aconteceram algumas
ações, que são os atendimentos por exemplo, com outra maneira de acolher, com Yoga, com
Heiki, com Mirra. Nesse grupo de estudo, seria um momento onde a equipe [de produção]
participa disso, cuida do corpo, medita junto, pensa junto.

O Núcleo de Fotografia agrega quatro fotógrafos que realizam trabalhos individuais de


registro dos espetáculos e de experimentações fotográficas, passíveis inclusive de participar
de concursos de fotografia, aproximando-se do trabalho que acontecia quando ainda havia o
núcleo de cinema no Sapos e Afogados.

O Núcleo da Coordenação Artística e de Projetos cuida do repertório, cenário, figurino


e caracterização.

A formação dos atores é parte essencial do trabalho do Sapos e Afogados que, desde
2002 vem se formando ao mesmo tempo em que forma seus atores e que desenvolve uma
metodologia muito própria de fazer teatro. Além do processo de criação e ensaios nesses
quatorze anos, os atores tiveram ou têm aulas de Gatka, uma arte marcial indiana, trabalho
corporal em oficinas de View Points - uma técnica de improvisação que surgiu da dança pós-
132

moderna -, trabalho com a dança e com a dança-teatro, aulas de maquiagem e livre expressão,
oficina de cinema e oficina de expressão vocal.

Além de sua própria formação os atores também participam da formação de outros


atores, por meio de projetos como o Sapo Escola e as oficinas Se Delirar, delirou!, Sapo
Oficina e Frog Cidadão, já apresentadas anteriormente.

O Eixo Produção e Circulação é responsável pela circulação das produções que já


existem, dentro de um planejamento anual. O núcleo de contatos externos e de viabilização
dos editais é responsável pela captação de recursos e pela busca de apoio para realização das
produções, em especial por meio de editais. A produção executiva, carinhosamente apelidada
pelos atores como Sapônicas, cuida da programação e produção dos eventos ou espetáculos.

A trajetória do coletivo, baseada em ricas produções autorais, ressalta a importância do


núcleo de trabalho, apelidado pelos atores como Os Legais, que cuida dos direitos autorais,
direitos de imagem, dá suporte aos atores que participam de produções independentes,
desvinculadas do Sapos e Afogados, cuida da gestão financeira, das atas e da elaboração do
regimento interno do grupo.

O núcleo de trabalho Identidade e Comunicação é responsável pela identidade e


presença do coletivo nas redes sociais, pelo acervo físico e histórico.

O Eixo Estabilização é o que promove mais de perto o cuidado com a saúde dos
atores, por meio do núcleo de trabalho que era nomeado, no início das nossas observações,
como Acompanhamento de Casos, no qual é feito o contato com os atores fora dos horários de
ensaio ou com a família ou com o profissional de referência na rede de saúde mental, quando
necessário. Cada um dos atores é responsável por seu próprio tratamento, têm clareza de que o
Sapos e Afogados não é responsável por isso, mas não deixam de cuidar uns dos outros e
sabem que podem contar com o apoio de todos os que participam do coletivo.

Faz parte dos planos relacionados a este eixo de atuação do Sapos e Afogados,
viabilizar projetos em que os atores tenham acesso à prática de Kundalini Yoga, Reiki,
acupuntura, yoga, ayurveda, como “uma outra forma de acolher esse corpo, que às vezes está
cansado. E, às vezes, o trabalho do teatro é isso, cansa, cansa a perna, sabe, cansa” (Juliana).

Ao longo das reflexões provocadas pela pesquisa, o organograma do Sapos e Afogados


foi tomando novas formas, o que fez com que, por exemplo, o núcleo de “Acompanhamento
de Casos” se tornasse “Cuidado e Afeto”. A mudança foi consequência da reflexão acerca do
133

caráter clínico que vinha associado ao nome anterior, em contraposição à práxis do coletivo,
que apostava numa outra relação possível com a loucura, para além do diagnóstico ou do
transtorno.

5.3 O cuidado como expressão de uma outra relação possível com a loucura

O encontro com a loucura, as pessoas têm medo. [...] O meu


desejo é que as pessoas pudessem olhar sem ser de uma forma
romantizada. Tem hora que é muito difícil, dói. O jeito de sofrer
é diferente sim, mas ela também ensina. (Juliana)

Sem dúvida, a loucura é a instituição mais evidente no Sapos e Afogados e apresenta-


se subvertendo uma ordem secular que insiste em excluir, segregar, incapacitar. Digo insiste
porque por vezes se impõe às relações, aos laços e às expectativas. Não à atoa, já no final do
processo da pesquisa, durante uma orientação coletiva no doutorado, me pego nomeando o
elenco do Sapos e Afogados como usuários e não como atores que são. Ser usuário é também
um dos papéis sociais de cada um deles, mas ali no Sapos e Afogados são atores. É
interessante perceber como essa dicotomia louco-ator por vezes acaba se sobrepondo aos
outros diferentes papéis ocupados por eles socialmente, fazendo-nos esquecer que entre um
polo e outro existem filhos e filhas, irmãs e irmãos, namoradas e namorados, companheiros e
companheiras, garçom, artista plástica, trabalhadores e trabalhadoras aposentados, mãe,
embaixatriz cósmica, pastora e por aí vai.

Ao entrar em contato com o cotidiano do coletivo a primeira dificuldade foi


exatamente a de nos descolar da formação clínica, como aconteceu com esta pesquisadora e
com o diretor artístico Filipe, que também é psicólogo de formação:

Nessa coisa da doença entre parênteses quando eu cheguei pra trabalhar com o
grupo, acho que eu fiquei assim... No primeiro mês eu fui trabalhando e ficava pensando
assim ‘o que é que tem de diferente?’ Porque eu ficava assim, pensando, que eu tinha que
entender o que é que tinha aí, porque a princípio eles faziam tudo o que eu propunha, então
eu ficava assim ‘uai? E aí?’ Até hoje não sei qual que é a resposta disso muito bem, lembro
que eu ficava pensando muito na Lud [Ludmila Kondziolková, atriz do Sapos], que trazia
muito sofrimento, [e pensava] ‘ah, entendi, tem uma coisa aí, tem a questão teatral, mas tem
um sofrimento’. Mas não sei assim, isso não é um ponto de partida, e a gente vai caminhando
muito com essas coisas.

Mas o olhar clínico sobre a loucura atravessa por vezes a própria organização de
trabalho do coletivo, em especial no eixo nomeado Estabilização, referência direta à
134

influência da psicanálise lacaniana, mesmo que o que se ofereça como “outra forma de
acolhimento, de tratamento”, no dizer de Juliana, sejam alternativas desvinculadas da
psiquiatrização ou da psicologização das relações, e marcadas pelo afeto, pela solidariedade e
pelo compartilhamento. Alternativas nomeadas por eles como “cuidado", têm contornos de
uma rede de apoio: “eles sabem que podem contar com a gente”, assegura Juliana.

Se essa pesquisa me serviu de alguma forma, foi para me confrontar com estas
contradições, inclusive agora, ao priorizar a dura dicotomia louco/ator na tentativa de mostrar
como o processo de criação coloca o dedo nesta ferida ilustrando, de forma crua às vezes, mas
também lírica, aquilo que Basaglia chamou de colocar o diagnóstico entre parênteses
(Vascon, 1985) e que Juliana descreve tão bem:

Porque se a gente fala e nega que não existe essa diferença a gente também está
sendo preconceituoso às avessas. É igual do ponto de vista de um relacionamento, existe uma
delicadeza no tempo, no jeito de ver, e é isso que é bonito assim, permitir a troca a partir
dessa diferença, de verdade. Não é normatizar a loucura para poder dialogar com ela né, e
nem tão pouco abrir mão da minha, porque a gente também carrega o sofrimento da gente, a
loucura da gente. Então, eu também trago as coisas que me fazem sofrer, que me angustiam,
que me partem no meio, para colocar em cena. Eu acho que todo artista fala deste lugar. Eu
acho que os meninos, construindo também este lugar de artista, falam com esta visceralidade.

Na trajetória existencial do Sapos e Afogados, observamos que a diretora Juliana e,


mais recentemente, o assistente de direção Filipe, fazem um exercício cotidiano de
significação da experiência construída em conjunto com os atores – exercício de direção, de
troca a partir da diferença. Penso que se não adotassem essa posição de reflexividade e de
diálogo permanente com a loucura, não seria possível dirigir o coletivo. Intermediar a
construção do lugar de cada ator é inseparável do movimento pessoal em que cada um dos
diretores busca seu próprio lugar.

Introduz-se assim a aproximação entre o processo de criação e a produção de


autonomia, ao unir reflexividade e o diálogo permanente numa construção que parte da práxis
individual e coletiva.

5.4 A trombada com a potencialidade criadora na loucura


135

De forma semelhante ao que encontramos na Companhia Teatral Ueinzz50, a


experiência do Sapos e Afogados se dá

Na confluência de dois grandes vetores que atravessam nossa cultura. O primeiro é


o do teatro, com seu cortejo de magia e assombro, esse espaço ritual e sagrado, campo
privilegiado de experimentação estética. O segundo vetor é o da vida quando ela experimenta
seus limites, quando ela tangencia estados alterados, quando é sacudida por tremores fortes
demais, por rupturas devastadoras, intensidades que transbordam toda forma ou
representação, acontecimentos que extrapolam as palavras e os códigos disponíveis, ou o
repertório gestual comum, mobilizando linguagens que põem em xeque a língua hegemônica,
que reinventam uma vidência e uma audição. É a vida quando ela está às voltas com o
irrepresentável, ou com o inominável, ou com o indizível, ou com o invisível, ou com o
inaudível, ou com o impalpável – com o invivível (Pelbart, 2000, p.111-112).

Os relatos de Juliana sobre Germana, considerada a primeira atriz e “eterna diva” do


Sapos e Afogados, ilustram esse encontro da loucura com o processo de criação no teatro e
também expõem o desafio cotidiano de colocar o diagnóstico entre parênteses, como nos
propõe Basaglia, ou seja, a dificuldade de enxergar o ator, quando o que antecede as relações
é todo o imaginário social que envolve a loucura. A riqueza do relato de Juliana a esse
respeito me fez mantê-lo em sua quase completa extensão:

Ela foi a primeira pessoa que me ensina até onde eu podia ir, porque embora eu
reconheça o delírio como uma feitura assim, um trabalho, igual a brincadeira para criança é
um trabalho sério, eu acho que o delírio ele tem este lugar de você possibilitar uma resposta
praquilo que te faz sofrer. E, embora eu reconheça isso como uma verdade, eu não queria
colocar na cena o delírio pura e simplesmente. [...]. Tem cada um mais lindo, mas não era
essa a minha viagem, eu queria que eles tivessem essa consciência desse jogo de estar
fazendo teatro, e isso pressupõe que eu faço para o outro me ver, que eu assumo este lugar.
Mas, eu posso a partir de um recorte de uma memória, a partir disso que me fez sofrer, enfim
a partir de uma cor, a partir do que meu pai me ensinou, a partir do meu bordado no vestido,
construir uma cena de teatro. [...] A Germana todo dia que a gente chegava no centro de
convivência, ela me pedia para fazer a cena da traição ‘Juliana, me deixa fazer a cena da
traição’? E talvez, por identificar que ali tinha algo muito denso, muito forte para ela eu
mudava de assunto, falava, ‘mas então Germana, vamos trabalhar outra cena hoje’, e mudava
de assunto, deixava aquilo passar e aí ela insistia em fazer essa cena da traição. Se eu tive
medo, a Germana não me traiu, ela insistiu, ela pedia para fazer. Bom, um belo dia a gente
foi visitar o Chico Nunes51 [...] e eu vou para a cabine de luz e a Germana [pede de novo] ‘eu
quero fazer a cena da traição’ e nesse dia eu falei assim, ‘então tá, eu topo’. Aí ela chama o
Rogério para poder fazer essa primeira passagem dessa cena com ela, e ela começa a chorar.
Ela tem uma catarse, assim, enorme por causa dessa cena, e voa no pescoço do Rogério.
Blackout na hora! O teatro tem isso concreto, que me faz então trazer de volta. Blackout!
‘Acabou a cena Germana’. Mas, aí eu chego perto e penso ‘o que eu vou fazer agora? ’
Tinham exatamente 4 meses que eu trabalhava na rede, e por dentro, os meninos sabem
disso, eles sabem que eu passei esse frio na barriga, de falar assim, ‘fudeu, ela surtou e o que
eu vou fazer agora?’ Aí eu vou me aproximando da Germana assim devagar, toda delicada.
‘Germana, tudo bem? Tá tudo bem? ’ Ela olhou pra mim assim [e falou], ‘que isso Juliana!
Estou fazendo teatro! Você está me atrapalhando!’ Na hora que ela me fala isso, foi um soco

50 Companhia teatral nascida dentro de um hospital-dia em São Paulo e que posteriormente deixou o serviço e
se constituiu como uma companhia autônoma. "É formada por um coletivo de atores das mais variadas
trajetórias de vida. Cada um traz da sua própria trajetória de fragilidade e loucura ... uma energia singular e um
repertório único que nutre a criação do grupo". Tradução livre de informação recuperada em:
https://www.facebook.com/Ueinzz-255803149821/
51
Teatro Francisco Nunes, na cidade de Belo Horizonte.
136

na minha cara. Primeiro, que eu vi o tanto que eu estava sendo preconceituosa. A gente acha
que a gente não carrega um preconceito, mas carrega sim. Eu estava ali como atriz, achando,
partindo do pressuposto que ela não era capaz de transmitir aquele sentimento, que ela não
podia transmitir aquilo chorando. E a partir de então eu falo, ‘é teatro? Então vamos repetir’.
E ela chora igual, e aí depois pede um copo d'água e chora de molhar a blusa, e o dia que a
Germana não chorava mais no ensaio ela falava, ‘ai o ensaio hoje foi tão sem graça, nem
consegui trabalhar’. Enfim, tinha isso, ela também fazia desse momento da cena um jeito de
pôr para fora. [...]. Era muito forte, ela fala de um lugar, desse ponto de verdade, dela mesmo
e ela consegue colocar isso na cena e repetir e melhorar.

Germana ensina que “o teatro ajuda a curá-los e a nós também, de uma série de
cacoetes. Por exemplo, do cacoete de reduzi-los à personagem exclusiva chamada doente (ou
doente-mental) ” (Pelbart, 2000, p.117).

Em dois outros relatos Juliana novamente exemplifica essa dificuldade que tinha de
escutar o louco para além de sua loucura. O primeiro deles, também relacionado a Germana e
o segundo a Jaqueline, outra atriz do grupo. Germana sempre contava que era uma índia e que
foi abandonada, o que era ouvido sem muita atenção. Certa vez, durante a última das visitas
que fez a Germana, antes de sua morte, no asilo onde ela morava, Juliana assentou-se na porta
do lugar com ela. A tranquilidade da rua fez lembrar Nanuque, a terra natal de Juliana e de
sua família, provocando o seguinte comentário: ‘Nossa Germana, que rua gostosa, parece que
eu estou em Nanuque!’ Ao que Germana responde dizendo, ‘Nanuque? Eu morei lá’. ”
Juliana se espanta quando percebe que levou dez anos pra descobrir isso e, mais ainda,
quando Germana completa dizendo: “sou uma índia Naquinuque52” e encerra seu relato
dizendo: “eu achei que era eu que estava delirando”. No asilo onde Germana morava também
não acreditavam nela quando dizia que fazia cinema: “Ela falava com o povo que ela fazia
cinema e ninguém acreditava, aí a gente chegava lá, levava um filme, fazia sessão...”
(Juliana).

O que se evidencia aqui ilustra como estamos submetidos à constante deslegitimação


social dos discursos e ações dos cidadãos em sofrimento mental e à deslegitimação desses
sujeitos como protagonistas frente ao seu próprio processo de vida e de recuperação, fazendo
deles “doentes absolutos”, o que acaba “por inabilitar as possibilidades de ser e estar ativo
socialmente” (Correa-Urquiza, 2010, p.37).

Por fim, o episódio ocorrido com Jaqueline:

52
Os índios Nakneuck foram os primeiros habitantes daquela região, sendo o nome da cidade de Nanuque
derivado daí.
137

A Jackie falava da experiência dela com o Antunes53, da experiência dela com o


teatro, e quando ela falava comigo: ‘Eu trabalhei com o Antunes’, eu nunca achava que era
verdade. Outro momento que eu vivi lá no centro de convivência, ainda super-
preconceituosa, [e pensava] ‘tá bom viu meu bem, tá bom que você trabalhou com o
Antunes’, achando que ela nunca tinha trabalhado. E aí ela chegou um dia com várias fotos,
aí eu fiquei... [faz expressão de muito espantada e completa: ] ‘Ela trabalhou mesmo!’ Então
era assim, eu fui aprendendo com eles, com esses socos, ‘tomou distraída!’ [...]. Por que que
ela não poderia trabalhar? Na minha cabeça eu ficava [pensando] ‘como eu fui boba, ela
trabalhou mesmo’. E eu acho que são preconceitos que a gente carrega sabe, de achar [que é]
‘lógico que ela não trabalhou, ela está delirando’, mas não estava.

Podemos concluir com Pelbart (2000) que a experiência artística além de colocar em
suspensão o imaginário social que cerca a loucura, produz subjetividades:

O teatro pode ajudar a curar-nos da crença generalizada, partilhada por muitos


pacientes e também inúmeros profissionais de saúde mental, sobre sua suposta impotência ou
ensimesmamento estéril, incomunicabilidade social, incapacidade criadora. Ou da ideia de
que a clínica deve ficar de um lado e a cultura de outro, como se a arte não fosse ela mesma a
um só tempo crítica e clínica, como se a arte não fosse já um dispositivo, como se o olhar de
um diretor de teatro, a escuta de um músico não fossem, na sua exterioridade em relação ao
campo clínico tradicional e na possibilidade de assistir a nascimentos que nosso olhar viciado
abortaria, poderosamente clínica e no mais alto grau (p.117).

Como não poderia deixar de ser, todos os espetáculos e projetos do Sapos e Afogados
trazem em suas propostas o diálogo com a loucura. Em Frog Sound, não é um sorvete é o
louco de rua que fica em evidência, no concurso Louca da Laje é o estereótipo de beleza em
suas relações com a medicalização da loucura, na Casa Breve a convivência da cidade com a
loucura. A própria identidade de coletivo pressupõe ser louco para ser aceito como ator.

Um dos marcadores da existência do coletivo é o fato de todos os seus atores serem


cidadãos em sofrimento mental. As dificuldades ou o sofrimento mental de cada um dos
atores não são negados ali, mas também não são o ponto de partida das relações. Dentro dessa
lógica, a ideia de cuidado aparece no discurso corrente de todas as pessoas ligadas ao Sapos,
mas de uma forma que ressalta a possibilidade de uma outra relação com a loucura, diferente
daquela centrada nos diagnósticos que direcionam possíveis tratamentos, como fica evidente
nas falas de Viviane, ao explicar sobre seu encontro com a expressão “atriz louca” e na de
Juliana, acerca de como a subversão que a loucura produz na realidade entra na cena:

Viviane:

E encontrei (...) a expressão ‘atriz louca’, que eu achei que me cabia, sabe, que me
identificava. Isso eu era. Eu não era mais uma atriz, eu não conseguia fazer um teatro
convencional, eu creio. E vale dizer que eu já tinha uma formação em teatro quando eu
cheguei ao Sapos. Eu estudei teatro no Palácio das Artes, me formei lá. Isso foi antes de eu
adoecer. E quando eu cheguei no Sapos eu já não conseguia decorar um texto grande, a
insegurança era muita, coisas assim que não convêm. Insegurança, timidez, dificuldade de

53
Antunes Filho, diretor brasileiro de teatro.
138

relacionamento, nada disso combina com a profissão do ator. E eu carregava essas coisas
todas. E aqui eu ajeitava com essas coisas. Foi muito legal. Eu me senti muito atendida,
muito cuidada mesmo pela Ju ou pela equipe dos ‘normais’, entre aspas, porque são todos
loucos também. Enfim, eu não me sentia a diferente, [não sentia] a distância que eu sentia
com os outros normais, num ambiente de trabalho comum.

Juliana:

Quando eu falo que a gente tá inventando um teatro é... dessa coisa de tentar colocar
o sujeito ... numa caixinha, como se a gente tivesse que normatizar a loucura ou dizer pra ela
‘isso agora não cabe aqui’. Não. É dizer ‘isso que você traz aqui como uma confusão, como
toda essa forma como você subverte a realidade, pode estar em cena’. Como que isso pode
ser inclusive um detonador de uma cena, como pode ser a raiz poética de uma cena. Não é
uma catarse, mas é a partir daquilo fazer virar uma cena. E aí eu fico pensando, quando a
gente vai falar de teatro, quando a gente vai buscar qual que é a verdade do ator, a pergunta
da gente fica lá com Grotowski perguntando: qual é a verdade do ator, qual é a verdade do
ator, qual é a verdade do ator? É uma pergunta que todo ator fica tentando achar, a verdade
na cena, qual é verdade do ator? E pra mim, assim, lendo isso [refere-se ao texto apresentado
na reunião de restituição], vendo o trabalho, só confirma o tanto que a psicose pra mim é a
verdade do ator, esse lugar esquizofrênico, porque o ator também experimenta a loucura.
Então, eu acho que os meninos do Sapos têm isso. Quando eu falo dessa visceralidade como
atores é por isso, porque eles não têm esses pudores que talvez a gente como ator, né Felipe e
Japa, a gente fica com isso assim, arrumando muito isso. Essa coisa deles é espontânea [...], e
também dizer que essa espontaneidade ela é bem-vinda, mas que a gente precisa, e aí eu acho
que é um lugar da direção, quando vocês falam que a gente é ponte, que a gente ordena isso,
é também não expor esse delírio, não colocar isso no que tem às vezes de frágil, mas ao
contrário no que tem de potente.

A dimensão do cuidado aparece por vezes, em momentos onde se está às voltas com a
dicotomia entre os papeis de usuário da saúde mental e o papel de “ator louco”, como os
próprios atores do Sapos e Afogados se nomeiam. Como se percebe, a loucura continua ali,
mas não é o que antecede as relações, ou o encontro com o social. Certamente, não é possível
isolar esses papeis porque ser louco faz parte da existência de cada um deles, mas o encontro
com o teatro confere um novo lugar que facilita, torna mais leve, coloca em segundo plano
toda a significação imaginaria negativa que a loucura carrega, como instituição, tornando
possível o cuidar enquanto manifestação de afeto, atenção, solidariedade e formando a base
para que o Sapos e Afogados funcione como uma rede de apoio, assim como os grupos de
suporte mútuo descritos por Vasconcelos (2003, 2007, 2013, 2013b, 2015) e por Chassot &
Silva (2015), enquanto uma das estratégias de empoderamento que permitem o acolhimento
da diferença, o rompimento com o isolamento social e com a estigmatização e o
compartilhamento das experiências de sofrimento.

Não por acaso, uma das frases criadas por Rogério para sua cena com Viviane, no
espetáculo Caminho - “Eu preciso de alguém que me olhe nos olhos” – que remete tanto ao
afeto, quanto à atenção e à solidariedade, deixou o espetáculo e alcançou, por meio de um dos
espectadores, as reflexões acerca da solidão e da saúde mental no meio acadêmico, durante a
139

IV Semana de Saúde Mental e Inclusão Social da UFMG, nomeando o relatório de um dos


grupos de trabalho do evento. A esse respeito, Emílha, atriz do Sapos que participou do
evento, completa:

O pessoal todo trouxe os Sapos e Afogados, todo mundo que teve fala falou do
Sapos e Afogados, falou de Caminho. Ou era Caminho ou era ‘somos feitos de carne’ [frase
que conclui uma das cenas de Edmundo],várias vezes. [...]. Ficou muito famoso lá. Foi muita
merda!54 [...]. As pedras no caminho foi falado demais, pedra no sapato [referência ao texto
de uma das cenas de Emílha]. Eles usavam muito, se apropriaram e acharam bom demais!

Um episódio ocorrido em torno do risco de choque elétrico devido à água que formava
poças no palco durante os ensaios do espetáculo Caminho ilustra a questão do cuidado e, ao
mesmo tempo, a dicotomia referida acima. Um técnico do teatro, em visita ao palco, durante a
roda de conversa que acontecia entre atores, direção e produção ao final dos ensaios detectou
e denunciou, de forma abrupta, o perigo de choque elétrico e morte, devido à proximidade
entre a água que empoçava no palco e os fios de eletricidade da iluminação. Sem dúvida, a
maneira de apresentar o problema provocaria medo em qualquer pessoa, mas o que se
observou em seguida, foi um grande incômodo, por parte de toda a equipe, com a forma como
o problema foi colocado pelo profissional e com o fato de ter sido colocado na presença dos
atores, trazendo uma preocupação a respeito de como eles receberiam ou seriam afetados por
aquela informação. De imediato a questão que me ocorreu foi se a preocupação e o incômodo
seriam os mesmos se não fossem atores diagnosticados. Depois de passado o momento inicial,
de providenciada a solução para o problema, de ver a resposta e a forma como cada um dos
atores lidou com a situação, a questão que permanecia era se havia necessidade de protegê-los
de determinadas preocupações. A resposta veio de forma esclarecedora, durante a restituição,
na seguinte fala do Filipe, diretor artístico do Sapos e Afogados:

... isso não é um ponto de partida e a gente vai caminhando muito com essas coisas.
Vocês fazem a pergunta da chuva, se a gente ia agir da mesma forma se fosse com um grupo
não diagnosticado. Achei legal isso. Acho que aí entra realmente a questão da diferença. Eu
fico pensando, eu acho que talvez a gente não tivesse o mesmo cuidado. Porque é isso, esse
trabalho tem uma dimensão do cuidado, sim.

São duas as dimensões do cuidado nomeadas por Juliana: a ética e a estética. O


cuidado ético, que considera as situações relacionadas à segurança, como descrito acima, mas
em especial, o fato dos atores serem também cidadãos em sofrimento mental. Na medida do
possível, evita-se situações que possam acentuar fragilidades emocionais, produzir medo,

54
No teatro a expressão ‘Merda!’ é usada para desejar boa sorte. De origem francesa, conta-se que
antigamente as pessoas iam ao teatro em charretes guiadas por cavalos e quando o teatro lotava muitas fezes
eram encontradas na porta ou nas proximidades. Assim, Merda! Passou a ser um indicativo do sucesso do
espetáculo.
140

incertezas e pensamentos persecutórios. Peneirar novamente a areia que cairia sobre a cabeça
de Edmundo durante o espetáculo, a fim de evitar que alguma pedrinha o atingisse, como
tinha acontecido em um dos ensaios, foi um exemplo dessa atenção: “caiu uma pedra no
Edmundo! Não pode acontecer isso! [...] Qualquer corpo que está em cima ali naquela hora
seria afetado de um jeito ruim” (Juliana). O banho de areia foi algo desconfortável para
Edmundo desde o início dos ensaios: “Vai cair areia na minha cabeça? Vou ficar todo sujo?
Depois vou tomar banho”? Além de desconfortável, o banho de areia permaneceu como uma
incógnita para Edmundo, mesmo ao final da temporada de apresentações, ressurgindo na
pergunta feita por uma criança que havia assistido o espetáculo, sobre o porquê de ele ter
tomado banho de areia, ao que Edmundo respondeu “vou perguntar pra minha diretora e te
respondo”.

O cuidado ético tornou possível sustentar a confiança dos atores na capacidade da


direção e da equipe para solucionar os problemas e manter abertos os canais para que
direcionassem outras dúvidas e inseguranças, como se evidenciou no pedido que Lídia me
direcionou, em um dos dias do espetáculo Caminho, para conferir se todos os fios estavam
cobertos e protegidos, porque sua cena acontecia depois da cena da chuva e ela dançaria no
chão molhado: “tem um fio lá que tá meio de fora, eu quero que você veja pra eu poder ficar
segura pra poder entrar”, ou ainda quando Edmundo recorre ao humor para encerrar uma
entrevista de divulgação do espetáculo dizendo que “a Juliana prometeu, não vai morrer
ninguém no palco” (Sapos e Afogados, 2016).

Durante a temporada do espetáculo a insegurança com a possibilidade do choque


elétrico desapareceu e o que apareceu como demanda de cuidado foi proteger os atores do frio
e de um possível resfriado, após a cena da chuva. Nos bastidores, uma infraestrutura era
montada a cada dia, para receber os atores ao final de cada uma de suas cenas, na tentativa de
minimizar alguns desconfortos. O relato da pesquisadora Kelly a respeito de uma situação
vivida por ela nos bastidores do espetáculo Caminho ilustra isso:

Levei um própolis sem álcool e um chá de hortelã para alguns atores que
apresentaram início de gripe no dia anterior [alguns atores que participavam da cena da
chuva]. Edmundo interessou-se por tomar o própolis e eu disse a ele que própolis era um
anti-inflamatório natural. Imediatamente ele disse que não podia tomar anti-inflamatórios
porque era alérgico. Eu e Luciana Mendes [figurinista] informamos a ele que não se tratava
de um medicamento alopático e sim de um produto natural, feito por abelhas. Ele foi
indagado se queria ou não fazer o uso, mas ao final aceitou. Entretanto, no meio da
apresentação, quando eu coordenava os bastidores junto a equipe do grupo, ele me chama
discretamente em um local mais reservado e me diz nervoso que sua boca estava inchada por
causa do própolis. Peço para ver com calma em um local mais iluminado e vejo que não há
inchaço. Imediatamente informo isso a ele e peço para ele se acalmar porque parecia estar
141

tudo bem. Ele diz não saber se conseguiria finalizar o espetáculo. Eu o encorajo e digo que
sim, que ele iria conseguir. Ele confia em minha fala. Pede desculpas e diz que a culpa não é
minha. Que ele tomou porque quis. [E vai] finalizar o espetáculo, maravilhosamente, como
havia feito o tempo todo”.

A segunda dimensão do cuidado, a do cuidado estético, esteve presente na


preocupação da direção para que cada aspecto do espetáculo trabalhasse de forma afinada
favorecendo e dando destaque à atuação dos atores no palco, antes e durante o espetáculo,
como nos dois momentos exemplificados abaixo:

Essa coisa da luz, por exemplo, mudou completamente quando a Lu Mendes


[figurinista] sobe e vai ficar com o Mael [Ismael Soares, o iluminador] lá em cima. Estava
tudo aberto, aparecendo aquelas coxias pretas feias. ‘Fecha! Vamos recortar aqui!’ Aí é
quando a luz vai entrando. (...) [Na cena do Edmundo recomenda para o iluminador:] ‘você já
tá entrando 100% com a luz, perdeu a graça, deixa a luz ir chegando, deixa a luz chegar. Não
entra com 100%, entre com 10, depois com 30%’. Essa imagem chega pro espectador
diferente, mas [também] interfere naquele corpo que está em cena. Edmundo tava gastando,
ele tava matando uma cena que não tinha acabado ainda, porque ele já tava jogando a luz do
Edmundo na pedra, e aí quando eu falo ‘não põe a luz no Edmundo agora’, ele [Edmundo]
segura a pedra, ele segura a interpretação. É esse cuidado estético com a imagem que está
sendo produzida (Juliana).

Outro momento em que se evidenciou o cuidado estético foi em uma cena de Ludmila,
servindo inclusive como forma de feedback para a qualidade da atuação dela:

Nossa trilha é executada na hora, não é um play que ele dá lá. Então, por exemplo,
na cena da pedra com a Ludmila, o André [André Geraldo, o musicista] foi achando os
lugares em que ele sobe aquele som. (...). Isso faz a Ludmila completamente diferente no
primeiro dia [e nos] últimos. Como ela começa a entender aquela música, agora é hora de eu
crescer a minha interpretação e ela cresce. E de ter essa segurança também, porque já fez
muitas vezes, então ela começa a brincar com esse outro elemento. Ela tá dentro do roteiro
que a gente criou, mas ela tá jogando é com o André. Então a gente continua dirigindo (...):
‘Você sacou André, que você tá interferindo na cena’?

O cuidado ético se entrelaça ao estético manifestando-se, por exemplo, quando uma


nova integrante chegou ao coletivo. O diretor artístico Filipe Aredes a introduziu na fase
inicial dos ensaios, onde ela participou da conversa inicial e dos alongamentos e em seguida
foi convidada a ficar observando o restante do ensaio “porque ela não é atriz, eu não posso
expor aquele corpo, sabe. Tem a ver com esse cuidado com qualquer pessoa que chegar pra
atuar, porque tem uma exposição muito grande quando a gente tá no palco” (Filipe).

O cuidado surge também na fala de Edmundo ao distinguir o teatro feito por grupos
em que os atores são considerados normais do teatro que é feito pelo Sapos e Afogados, no
qual a história de cada um, o diálogo, a escuta e a troca são marcas essenciais:

O teatro que eu trabalhei numa época em que eu era considerado ‘nooormal’, [brinca
com a referência gestual da Jackie no espetáculo Caminho] era tudo uma frescuragem, uma
babaquice tremenda, tinha a estrela, que tinha um camarim próprio, cheia de não me toque.
Aqui não, aqui a gente quebra o pau, a gente xinga mesmo e torra e o teatro sai.... O teatro
142

dos ‘normais’ visa lucro, cachê, status... A diferença do teatro do Sapos e Afogados não é só
porque o Sapos e Afogados foi um dos pioneiros a trabalhar com atores loucos, não. A
diferença é que aqui a gente tem mais segurança. Quando a gente interpreta um papel a gente
sabe que tem todo um apoio verdadeiro, um cuidado. Já na companhia, vamos supor, você tá
lá nos Estados Unidos, naquela máquina de fazer cinema, você não tem cuidado, você é
tratado como descartável. Se você adoece, na mesma hora tem um cara pra te substituir.
[Cuidado] é o seguinte, é porque aqui, se a gente torra, se a gente xinga, se a gente
berra, manda o outro pra merda, aqui tem um desconto. Não é porque a gente é louco, não, se
tá xingando [é porque] alguma coisa tá certa [...]. Aqui tem mais diálogo entre os atores. Nas
companhias que frequentei não tinha diálogo. Chegava lá, estudava, decorava o texto,
apresentava, até beijava na boca, mas não tinha amor, não tinha diálogo. Aqui tem diálogo.

5.5 O processo de criação do espetáculo Caminho – autonomia em ato

No espetáculo Caminho a gente não sabe se são os atores que


dançam a música ou se é a música que acompanha os atores.
Movimento é música, movimento musicado, música corporal. O
corpo toca. (Pesquisadora – caderno de campo)

Normalmente os ensaios começavam com um círculo em que todos os presentes


participavam, inclusive as pesquisadoras. O momento inicial era de preparação, provocação e
aquecimento, assemelhando-se a um ritual de respeito ao trabalho que estava se iniciando, era
o início do processo de concentração, um voltar-se para dentro, antes da entrega ao
personagem, ou melhor, ao ato em si. Era um tempo de meditação, “meditação em pé”,
conduzida a partir de algum texto ou mantra. Era quando aconteciam atividades de
relaxamento, troca de ideias e de onde às vezes surgia um tema ou a “palavra do dia” que
inspirava toda a dança e movimentos da fase seguinte dos ensaios. Algumas vezes Juliana
jogava um aroma em todos nós, que depois fiquei sabendo ser um chá. As primeiras palavras
que ouvi sobre o espetáculo que estava sendo construído vieram de Juliana, “travessia, dança
e pedras”, logo completadas por Edmundo, “caminho repleto de cruz, caminho repleto de
morte, caminho repleto de amor” e finalizadas por Juliana: “quando falamos de travessia,
estamos falando desse movimento. A palavra do dia é cisco”. Em seguida, nesse dia de
observação passaram a um exercício de meditação em pé, com a leitura de um pequeno texto
do livro “Meditação andando - guia para a paz interior”, de Thich Nhat Hanh55:

55
“Um dos mais conhecidos e respeitados mestres Zen no mundo de hoje, poeta e militante da paz e dos direitos
humanos [...]. Nascido no Vietnã central em 1926, aos dezesseis anos entrou para a vida monástica. A Guerra do
Vietnã confrontou os mosteiros com a questão de ou aderir à vida contemplativa e permanecer meditando nos
mosteiros, ou ajudar os aldeãos sofrendo sob o bombardeio e outras devastações da guerra. Nhat Hanh foi um
daqueles que escolheu fazer as duas coisas, ajudando a fundar o movimento de “budismo engajado”. Desde
então sua vida tem sido dedicada ao trabalho de transformação interior em benefício dos indivíduos e da
sociedade”. Do site: http://sobrethichnhathanh.blogspot.com.br/ . Acessado em 31/03/2017.
143

Voltar à Terra

Imagine que você e eu somos astronautas. Pousamos na lua e percebemos que a


volta à terra é impossível porque nossa nave está quebrada e sem conserto. Ficaremos sem
oxigênio antes que a central de controle de Houston possa mandar outra nave para nos
resgatar. Só temos dois dias de vida. Qual seria o nosso maior desejo? O que nos tornaria
mais felizes do que voltar para o nosso belo planeta e andar sobre ele? Quando confrontados
com a morte, tomamos consciência da preciosidade que é andar sobre a terra verde.
Por um acaso maravilhoso sobrevivemos e fomos levados de volta à terra. Vamos
celebrar nossa alegria, andando juntos sobre nosso belo planeta com profunda paz e
concentração (Hanh, 2006, p.61).

Nesse dia a sala estava muito quente, chovia muito e goteiras começaram a cair. Ainda
assim Juliana continuava chamando todos a se concentrarem no espaço e nos sons ao redor
enquanto caminhavam: "Aceitar barulhos, água, trovão, chão rangendo, som. Quem é esse
que caminha? Qual história ele traz? E a gente vai caminhando com as pedras."

Luciana Brandão, uma das responsáveis pelo trabalho corporal dos atores, foi
orientada a pensar na limpeza do movimento depois que já tivessem a partitura do pas de deux
com duas mulheres e do outro pas de deux com dois homens.

O grupo ensaiou o prólogo do espetáculo, onde todos começariam de costas para o


público e com pedras na mão. Luciana Brandão sugeriu que imaginassem o que estariam
mostrando para o público ao se movimentarem de costas para ele. Depois, em duplas, a
proposta foi para tentarem perceber o que “muda no meu caminho quando estou com outra
pessoa, quando meu corpo leva o corpo do outro e quando o outro leva meu corpo”.

Durante a roda final de conversas, Juliana contou a todos que algumas das imagens
introduzidas naquele dia foram inspiradas em observações feitas por ela durante as oficinas
dos atores com Filipe e que outras ela trouxe como provocação. As sugestões vindas dos
atores eram sempre recebidas como possibilidades efetivas de composição de cenas. Em
alguns momentos os diretores pediam aos atores: “guarde essa imagem, guarde essa imagem!
Ela vai voltar depois!”

O primeiro ensaio que observei se encerrou com o pedido da direção, inspirado em


postagens de Jaqueline no Facebook, que depois foram retiradas por ela mesmo, para que
trouxessem “fotos antigas, que dizem da nossa travessia, dessa trajetória”. Para Viviane
deixou uma questão para reflexão sobre a cena que estava construindo: “que mulher é essa?
Como podemos transformá-la? ”

Nesse primeiro dia de observação, diante da palavra que me foi franqueada durante a
roda final, eu não soube o que dizer. Eram muitas informações. Talvez a questão principal
144

fosse exatamente o que observar ou como observar. Precisava de um tempo para processar o
que vi. Era o primeiro impacto diante de uma experiência que de cara já me tirava da distância
esperada do pesquisador e colocava em questão a própria observação participante.

No segundo encontro fui novamente apresentada a eles por Filipe. Participo da roda
inicial e do aquecimento. Eles se apresentaram para mim e seguiram mostrando fotos que
trouxeram para o ensaio, documentos de identidade ou contando de sua cidade de origem, da
origem dos nomes de família, do início da experiência com o teatro. Conversaram um pouco
sobre a herança paterna e materna presente nos sobrenomes. Dali sairia a inspiração para a
cena de Jaqueline.

Aos poucos fui entendendo como se dava o processo de criação. Parecia começar aí.
Nos movimentos inspirados pela palavra do dia ou pelos textos produzidos entre um ensaio e
outro ou ainda pelas conversas em torno das fotos trazidas.

As perguntas que me vinham giravam em torno do porquê daquela peça, qual o nome
dela, Caminho ou Caminhos? Como as cenas iriam se tornar uma peça? A princípio eu
procurava por uma peça de teatro, com um roteiro pré-estabelecido a ser seguido. Me
pregaram uma peça! Era um espetáculo de dança-teatro, estilo que associa à dança elementos
das artes cênicas, criado pela dançarina e coreógrafa alemã Pina Bausch. E mais, a proposta
do espetáculo não estava pronta, ela seria construída coletivamente entre os atores e todos os
participantes do coletivo, como elucidado por Filipe, em entrevista sobre o espetáculo
Caminho, concedida à TV Horizontes (Sapos e Afogados, 2016), “a dança teatro traz isso, né,
é uma democratização. Todos os corpos sabem dançar. Todo corpo, tudo o que se movimenta,
todo corpo que movimenta tá aí, tá em estado de dança, pode estar em estado de dança”.

Dos trabalhos corporais e vocais surgiam os argumentos para as cenas do espetáculo e


para a construção do roteiro. Imagens iam surgindo e compondo o que todos ali nomeavam
como partitura, termo que para mim, até então, era sinônimo de texto musical. E, assim como
não entendo nada do texto musical, também não conseguia entender como aquelas “imagens”
corporais se tornariam cenas e ganhariam sentido, até perceber que a costura entre cada cena
se dava pelo olhar dos diretores e dos próprios atores, num movimento contínuo. A
construção era coletiva, numa relação de muita confiança entre todos e sempre a partir das
deixas ou de sutilezas trazidas pelos atores. O que era da ordem do delírio atravessava as
cenas, mas não se cristalizava como sintoma, traduzindo-se em ato criativo capaz de produzir
encantamentos.
145

Edmundo sentia falta de um texto, “será que vai ter uma pedra no meio do caminho?
A pedra é menos que o mundo, mas incomoda”. Com o tempo foi possível compreender que a
pedra no caminho, representada pelo pedido insistente de um texto, manifestado também por
Emílha, dizia respeito ao próprio Filipe, que em 2015 havia sido introduzido no coletivo como
diretor artístico e trazia consigo uma proposta nova – a dança teatro. Até então, não estava
muito claro para os atores o que era isso, o que teria gerado reações como a manifestada por
Ludmila num primeiro momento: “eu não sei se você sabe, mas isso aqui é um grupo de
teatro, tá?”

Já num momento posterior “a pedra no meio do caminho” aparece ressignificada em


dois momentos do discurso de Emílha. Na poesia sobre “pedras, pedreiras, pedregulhos” que
cria para uma de suas cenas do espetáculo e que termina com a frase “atire a primeira prece
[destaque meu] quem nunca errou”. E também durante a reunião de restituição da pesquisa, de
forma explícita:

Quando a gente ia começar, punha a música e punha a gente pra dançar. O Filipe
fazia isso e falava que ia sair um espetáculo daquilo. Sinceramente, eu não comentava, mas
acreditar eu não acreditava. Eu fui seguindo, eu achei muito bacana essa virada que deu. Em
tão pouco tempo ... a gente ... do nada ... saiu um espetáculo que as pessoas falaram que
choravam e que riam, saiam com os olhos vermelhos. E eu acho que esse teatro é isso, você
emocionar a outra pessoa.

Essa fala de Emílha também ilustra, o percurso do processo de criação: “do nada...saiu
um espetáculo”.

Durante o encerramento dos trabalhos o coletivo avaliava a produção do dia. Os


diretores, com admiração e afeto, davam suas dicas, faziam suas críticas, mas antes de tudo,
elogiavam sempre. Posteriormente, foi possível observar como esta condução fez diferença na
segurança que os atores adquiriram para entrar em cena. Eles mesmos reconhecem o quanto é
cuidadosa e respeitosa essa relação, produzindo saúde, prazer, reconhecimento profissional
para alguns e empoderamento, como ficou claro na fala de Viviane durante a restituição:

Eu nem sei o que falar. Eu acho que eu vou é, na pessoa da Juliana, falar o que eu
queria falar pra todo mundo... porque a única coisa que me ocorreu... o processo, foi tudo
maravilhoso, mas eu, o que eu queria falar é dessa temporada, sabe assim. Porque eu me senti
insegura e ao mesmo tempo segura e achei que todo mundo foi tão profissional, tão bacana!
Aquele espaço pequeno [o palco do teatro], aqueles medos, e o medo que a gente tem,
‘ah, vou esquecer o texto, vou cair na hora que eu for pular, vou cair lá na frente’. Mas, só
que tudo ia me dando segurança, aos poucos eu consegui fazer, realizar tudo. Eu acho que eu
só ficava pensando ‘gente, a Juliana é foda, é foda’. É foda porque ela fez aquele negócio
ficar lindo e como atraiu pessoas lindas pro nosso convívio, pro nosso processo. Então era
fácil vivenciar essas coisas sem ter insegurança paralisante, o que às vezes eu temia. Porque
tinha todo mundo ali, te segurando a mão, te olhando no olho, e com afeto, e com carinho.
Com trabalho também né, tinha um figurino lindo que você sentia poderosa, tinha um
146

cabelaço, tinha maquiagem. E tinha o seu... também... a fim de acertar a cena e de dar certo.
Tinha chuva, que deu certo. Tinha areia, que deu certo. Tudo então, tudo aconteceu tão
perfeitamente Juliana, você é tão foda, assim, de ter reunido essas pessoas, de ter montado
esse espetáculo. Eu acho a sua cara ele, eu acho que ele tem até uma coisa meio oriental,
assim, que você trouxe, do sertão com o oriente. (Todos riem e Juliana concorda: É verdade,
o silêncio do sertão eu acho que é o mesmo desse zen budismo assim, né, é bem parecido). E
pra completar, esse trabalho da Regina que ela trouxe pra gente hoje e da Kelly, que também
ficou tão bonito. Tão bacana a observação, que foi sempre tão cautelosa conosco e amorosa.
Amorosa, eu fiquei achando isso, que tem muito amor nas relações e isso é bom demais.
Cometemos algumas loucuras, teve os desacertos, mas enfim são experiências do grupo, são
afetos também e no final a gente fez uma bela temporada. Espero que a gente faça mais e
realmente é o empoderamento, né, assim, ‘eu tô atriz, tô em cartaz’.

A questão do reconhecimento enquanto atores profissionais foi uma das que me


chamou atenção, em especial, a partir de questionamentos feitos por Ludmila em um dos
encontros, onde expressava que não se sentia atriz, comparando-se à Viviane e Jaqueline, que
têm formação teatral profissional anterior ao Sapos. Fiquei impactada com isso porque desde
o início me chamou muito a atenção tanto a capacidade que ela tinha de se entregar às cenas
propostas como de transmitir, quase de imediato, uma interpretação tão verdadeira que me
fazia esquecer que estava diante de uma encenação, o que acredito seja parâmetro para
qualificar um bom ator/atriz profissional. Juliana reforça essa impressão no retorno que dá
para Ludmilla, sobre o crescimento de sua atuação ao longo da temporada de Caminho:

Como que esse elemento da trilha sonora, concretamente teve efeito na sua
interpretação e hoje aqui, pensando no processo, como que isso era um elemento de jogo pra
você fundamental, a ponto de quando trocou [quando, nos ensaios, saiu a trilha sonora
provisória e entrou a definitiva] te incomodou, lembra? Você falava, ‘não, não gosto disso,
não tô entendendo’, até você buscar qual era o ponto que te ligava e o que é que isso
interferiu na sua ação no seu movimento, dialogar com isso. E isso é um trabalho seu de atriz,
da sua experimentação sabe, de você já fazer alguma coisa com o que a gente construiu no
roteiro. Chega uma hora que é seu, já é o seu diálogo com o André [musicista compositor e
operador da trilha sonora], sabe, assim, é muito bonito.

Essa “visceralidade” na interpretação também era transmitida pelos demais atores, me


remetendo à ideia dos necessários 'laboratórios' que antecedem a entrega de atores a
determinado personagem. Os atores do Sapos carregam consigo o próprio laboratório, ou seja,
o processo de criação se dá a partir da própria experiência de cada um deles com a loucura,
em seu exercício permanente de criar uma realidade menos sofrida. Exemplo disso aconteceu
em um dos dias de trabalho sob condução de Luciana Brandão, onde ao experimentarem a
técnica de improvisação chamada Viewpoints56, podia-se observar como os atores se
entregavam aos comandos dela gradualmente, construindo improvisações viscerais. Eles se

56
“Viewpoints é uma técnica de improvisação que surgiu a partir da dança pós-moderna [e que] possibilita um
vocabulário comum para pensar e agir sobre movimentos e gestos. Desenvolve a articulação e precisão dos
movimentos e possibilita construir a relação de um coletivo de maneira espontânea e intuitiva, gerando material
criativo e movimento para o palco”. In.: http://barco.art.br/viewpoints-e-composicao-cenica/ Acessado em
18/01/2016.
147

transportavam de tal forma para o que estava sendo conduzido, a proposta era incorporada por
eles de tal forma que faziam parecer que as cenas tinham sido ensaiadas inúmeras vezes e não
que eram uma improvisação. Certamente, a experiência da loucura e todo o sofrimento que a
acompanha, faz deles experts na arte de criar e, no caso do Sapos e Afogados, coloca em
questão a diferença entre ser ator profissional e ser ator de carreira o que, para Edmundo,

Não tem diferença nenhuma. Um tem o registro na carteira, pode trabalhar de


carteira assinada e o outro tem o registro no coração. Porque não adianta ter o registro na
carteira se não tiver o registro no coração.... Aqui o teatro é da espontaneidade lúcida
também, lúcida, louca, depende do remédio, da hora, do momento, da espontaneidade
surtada. Já teve momentos, em plena apresentação teatral, eu estar surtado.

5.5.1 Criação e autonomia

Com minha crescente imersão na experiência, perceptível nos momentos em que me


pegava mais admirando do que fazendo as anotações no caderno de campo, foi ficando mais
clara a proposta de Castoriadis (1982), para quem a autonomia se produz na práxis e na
coletividade e, mesmo a autonomia individual, só é possível se construída na relação com o
outro, de onde o sujeito busca elementos para se constituir, até que seja capaz, pela
reflexividade, de criticar tudo o que absorveu e formar uma ideia própria de si mesmo. Aos
poucos fui constatando que criação e autonomia se misturavam em um só processo, assim
como propõe o autor.

Meu primeiro insight a esse respeito aconteceu durante um ensaio, sob condução de
Filipe e que vou transcrever abaixo:

Jaqueline entra em cena dançando a música I can't get no, da banda Rolling Stones e
fala: não sei se nasci de uma pedra ou se uma pedra nasceu de mim; se nasci de Mick Jagger
ou Mick Jagger nasceu de mim. Minha avó era Ernesta Bertoline, do lar. Meu avô Manoel
Gonçalves Lima, mestre de obras. Coloquei meu nome Jackie Bertoline em homenagem a
ela.
Todos entram dançando e ao final jogam pedra nela e ela morre.
Jaqueline sugere saírem correndo: no ocidente as mulheres correm, no oriente é que
elas morrem. As mulheres aqui não caem e morrem.
Filipe: você precisa buscar estratégias para poupar sua energia, fala pausada, mais
pausas, sem as pessoas saberem que está cansada. E, dirigindo-se às outras atrizes: Lídia,
balança esse cabelo lindo! Emílha, solta esse quadril, tem um quadril aí!
Jaqueline referindo-se aos nomes de família: não sei se falo.
Emílha: acho que deve. Essa coisa de família é legal. As pessoas vão lembrar das
suas avós.
Filipe: importante para as pessoas saberem que você escolheu o sobrenome feminino
da família, sua trajetória.
Jaqueline: entrar Mick Jagger faz assim com a peça (movimento ascendente com os
braços). Tá tudo muito assim, morno.
Filipe concorda e acrescenta: e a parte da pedra, da mulher que sai correndo, que não
se deixa atingir...
148

Emílha lê frases criadas por ela, onde aparece a palavra pedra.


Jaqueline acha que está muito grande.
Filipe pede a Jaqueline que espere: vamos construir a partir do material que ela
trouxer. Emílha, é importante você saber a frase final e aí improvisa as outras.
Emílha: atire a primeira prece quem nunca errou.
Em seguida pede ajuda para o trabalho corporal: tô sem saber o que fazer com meu
corpo.
Filipe: vamos mexer esse corpicho antes de ver o texto. Você pediu umas aulinhas
de dança.
57
Filipe conduz Emílha numa “dança pessoal” .
Emílha se solta mais quando mexe o quadril. (No encerramento do dia conta que já
fez dança do ventre na adolescência, “para aprender a ter mais jogo de cintura”).
Filipe propõe uma 'dança pessoal' no escuro!
Emílha: difícil demais!
Filipe: você melhorou demais! Você ficava aqui (mostra os ombros encolhidos,
curvados).
Emílha: é, mas é isso mesmo.
Filipe: é um processo, todos estamos em processo.
Passam a cena mais uma vez. Filipe sugere que ela dance até se ajoelhar no chão, de
cabeça baixa, aí levanta o tronco e faz a fala.
Emílha: eu sou pedra, pedrinha, pedregulho, pedreira….
Filipe: gostei demais!
Emílha: fiquei mais independente.
Filipe: você tem material Emílha! Você já trouxe coisa nova!
Emílha: eu precisava disso tudo por escrito...
Filipe: você vai ter.
Lídia dança com o véu que ela mesmo trouxe. Filipe se esqueceu de trazer o filó que
ela usou num exercício corporal anterior. Lídia traz a memória dela com o filó.
Filipe: você trouxe movimentos que você fez da 1ª vez, no ano passado, na 1ª oficina
que eu dei no Sapos. Dançou com o filó há 7-8 meses atrás - é incrível! Tem uma memória
corporal fantástica!
Lídia: esse aqui tá pequeno.
Filipe pede apenas um pouco mais de delicadeza. Lídia concorda e acha que foi
conseguindo isso mais para o final. Lídia pede a mesma música de antes.
Filipe: a música diferente é para você trabalhar a possibilidade do seu corpo, você
tem isso.
Lídia propõe experimentar entrar em cena com o véu e repete a cena.
Filipe: experimenta o peso, tamanho, textura, tempo que ele cai quando é jogado e
como afeta seu corpo quando cai.

É possível observar aqui um processo construído coletivamente, marcado pelas


referências individuais, aonde os atores e as cenas vão ganhando consistência, segurança e
independência. Jaqueline introduz a leveza e o humor, Emílha apresenta etapas de um
processo que não para quando terminam os ensaios e Lídia, com delicadeza, faz prevalecer o
que entende como o melhor para sua cena.

A compreensão sobre o processo de criação de cada ator ficou ainda mais clara
durante uma entrevista grupal, onde conversamos sobre a experiência deles com o Sapos. À
pergunta da pesquisadora sobre como se dá o processo de criação de cada um deles o que

57
"Dança Pessoal: é a construção de uma metodologia de elaboração, codificação e sistematização das energias
potenciais do ator e a transposição dessa técnica, que é pessoal, para um processo de montagem de um
espetáculo". Cafiero, C. (2012). A Arte de Luís Otávio Burnier: em busca da memória. ILINX-Revista do
LUME, 1(1).
149

surge como resposta conjuga história pessoal relacionada à loucura e à experiência anterior no
teatro com o ineditismo do ato criador:

Jaqueline:

O processo de criação, eu penso assim, é igual ao de todo ator. Você pode tirar
lembranças da sua memória e essa lembrança vai te dar uma emoção, aí você vai e coloca
aquilo na cena, certo? Então, é o processo de criação de todo ator. Eu fiz teatro muitos anos,
depois eu parei. Então, eu fiz escola de teatro, eu tive um aprendizado de teatro, não foi
muito, mas foi o suficiente. Então, você vai lendo Stanislavski, você vai criando, você vai
fazendo esse processo de criação, assim. Você coloca um pouco de você na cena, mas você
sabe que não pode ser você, que tem que ser outra pessoa ali. Então, você empresta seu corpo
pro personagem e este personagem vai pra cena.

Edmundo:

O meu processo de criação é mais assim realístico, né, da realidade absurda do dia-
a-dia. [...]. Cada ator tem a sua individualidade, sua impressão digital, ou melhor, a sua
retina, a sua marca da retina [...]. Então, comparo o meu processo de criação, igual vendo
aquele cara que viajou, que fala da brisa, [que] o destino é a brisa, né [se remete ao
personagem principal do filme Forest Gump]. Eu tava observando ele e pensei, nó é isso
mesmo, né. Eu uso o meu destino pra tá aqui e a brisa pra soltar as palavras. O que for
soltado, o que for cravado no meu destino se torna realidade, se torna texto e esse texto pode
se tornar realidade, pode se tornar material de trabalho. Então, o destino é esse corpo, ele não
pode fugir dele. E a brisa é tudo que a gente tá impregnado, de texto, de lembrança de
palavra, de idiomas. E quando vai criar é como se fosse assim uma revelação, você abre o
corpo e solta os textos. Aí vem o diretor, ou o assistente de direção, vem a Regina, vem os
atores, os amigos, ‘isso é bom, faz isso, vamos fazer como combinado’. É uma criação em
conjunto, aí sai o espetáculo.

Rogério:

O meu ponto de vista sobre o processo de criação, por exemplo, o que eu aprendi
como ator, é porque o ator ele tem que ser muito observador, em qualquer lugar que você tá,
se você for um observador você vê que existe uma certa cena.... Então, (...) se você for um
bom observador, você consegue improvisar em cima daquilo que você viu. Porque o que que
é o ator, o teatro? É a arte da imitação, você tem que saber imitar, observação e imitação.
Então, tudo isso é um processo. Então, quando a gente encena, por exemplo, a gente já
passou por alguns espetáculos e a gente passava através da criação, de uma memória de
alguma coisa que foi vivida pela gente, ou então até mesmo uma criação daquilo que você tá
fazendo. Daí, surge aquele processo que vai... surge do nada e você, aos poucos, você vai
trabalhando aquilo que você já sabe. Então, daí é que nasce um espetáculo.

Emílha:

Eu penso que eu sou muito individual, sabe. Quando eu tenho uma cena pra fazer,
seja no Frog Sound, no Caminho, eu crio na minha casa, no formato e procuro trazer aquele
formato pro conjunto, né, pra cena toda. Eu penso que eu sou individual. (...). Eu tiro
[inspiração] de passagens da minha própria vida, mas observando também. Aí entra
observação, observando também o outro. Mas, eu tiro muito de mim mesma, sabe. (...). Tem
uma coisa que eu faço também, quando é tempo de criação, de apresentação assim, é
perguntar prás pessoas também, (...) o que que fica bom, ou eu falo da minha expressão,
daquilo que eu tô tirando de mim e pergunto o que que a pessoa acha. Eu também faço isso.
Eu procuro explorar de mim tudo que eu tenho, sonhos, vontade, objetivo, né. E também
perguntar pra outra pessoa, pros outros. É isso, não tem muito.
150

Ludmila:

A gente vê até coisa que não quer contar, que é tão... que é tão.... Que a gente vê
uma coisa até legal, assim, no meu caso, que eu não quero nem contar assim, que eu escondo
pra mim, sabe. Uma coisa tão legal que vi, que é ... tão intrínseca, tem tanto a ver com a vida.
Ah, não sei se é isso. Não sei, é uns flashs que dá, assim. No Material Bruto eu senti uma
emoção muito grande. A Juliana me tocou tanto na minha ferida, que ela me fez representar
como eu nunca representei na minha vida. Acho que desde Material Bruto eu nunca fiz nada
tão parecido assim, tão fundo assim, que mexeu com meu sangue, com as minhas ... vísceras,
foi fundo, assim (...). Foi cansativo, mas foi um cansativo legal. Foi cansativo assim,
estimulante, ela não deixava eu ... ela falava ‘vamo, vamo, vamo’ ... Ela me instigou, até que
eu pus pra fora tudo que eu sentia. Tudo que eu queria falar eu pus pra fora, assim sabe? E eu
senti uma leveza depois que eu tinha posto pra fora, como [quando] você vai na psicanálise,
na psicóloga e fala lá no divã, entendeu? E o Material Bruto foi assim, importante, foi a cena
de subir na mesa, a cena de falar [em tcheco]. E eu pedi pro meu pai umas frases em tcheco,
o meu pai passou pra mim por telefone, sabe, me dando um estímulo assim, sabe.

Aos poucos fui percebendo que a cena do ator talvez representasse o ápice do processo
de autonomia, do qual a criação é parte intrínseca. A evolução das observações e o transcorrer
do espetáculo Caminho ilustram isso, com destaque especial para a cena da chuva. Nela, as
atrizes entram no palco representando lavadeiras que carregam baldes e bacias e executam
uma dança-pessoal debaixo de uma chuva fina que cai no palco. Ao longo da temporada
Emílha passa a ser a única a deixar o palco seca e com o balde cheio de água, a ponto de outra
atriz perguntar se ela havia participado da cena. De acordo com a diretora, que acompanhava
tudo da coxia,

Ela roda, ela roda onde a água não tá caindo. Ela roda e na hora que ela vai pro
lugar que tem água ela põe o balde na cabeça... aí ela abaixa... e aí o que acontece é que é
maravilhoso, porque como ela repete o gesto pra fugir da água caindo, ela fez uma partitura e
todo dia, todo dia ela faz igualzinho.

A partitura criada por Emílha encanta a todos, como expresso na admiração de Filipe,
diretor artístico: “Isso é muito lindo. Eles achando a sua solução em cena”. Mais uma vez a
autonomia se manifesta em ato, em cena, nas improvisações e criações que se renovam na e a
partir da práxis da dança-teatro, num processo que não se fecha, sempre parcial (Castoriadis,
1992), como enfatizado pelos diretores

Juliana: cada dia que você vai fazer, [...] é um dia diferente, apesar de ser o mesmo
roteiro. [...] quando o espetáculo tá pronto entre aspas, ele tá vivo, é um organismo que vai
sempre se modificando. [...]. Eu acho que isso é [com] qualquer ator. Tem uma coisa do
teatro que faz isso também, que é aquela hora ali. [...]. E chega uma hora que é deles. Eu falo,
assim, não tem mais nada que a gente possa fazer, agora tá feito. Nós, no sentido da direção,
tá feito.
Filipe: E tem um consentimento nosso, né Ju? A gente fica na coxia... e a cena dos
bastões... Edmundo resolveu fazer o que ele queria fazer. E aí tem o olhar meu pra Ju assim,
eu olho pra Ju, Ju olha pra mim.
Ju: Tem dia que eu só penso assim ‘bastão, não voa na plateia agora não’. [...] Ele
[Edmundo], todo dia [falava assim] ‘hoje o espetáculo vai ser pro fulano’. E então, esse
151

fulano vai alterar a cena. Ao mesmo tempo, pensando na direção desse grupo, eu fico assim,
achando, que o lugar da autonomia é dar esse lugar para o ator.

Sair do lugar para mudar de lugar (Marques, Palombini, Passos, & Onocko-Campos,
2013), como na cena do Caminho em que os diretores dançam todo o tempo de olhos
vendados, até que ao final dois dos atores do elenco entram e os conduzem para fora do palco
enfatizando “uma coisa simbólica, que é os dois diretores se cegarem mesmo (...) e deles
guiarem a gente” (Filipe e Juliana).

Acompanhando os ensaios, foi possível observar que a condução do processo de


criação do coletivo pelos diretores acontecia a partir de pistas que os diretores recolhiam dos
atores, transformando-as ou indicando-as como possibilitadoras de uma cena original. Os
diretores funcionavam como pontes que ligavam e ordenavam estas pistas ou o que emergia
delas como criação, conduzindo-as a uma significação que ganhava sentido ao longo do
processo e se confirmava no encontro com o imaginário social presente nos possíveis
expectadores.

“Os diretores foram alfaiates da alma, cerzindo personagens sob medida!... [numa
conexão em que] traços singulares são colocados em evidência, mas ao mesmo tempo
desterritorializados de seu contexto psiquiátrico e, arrastados para longe de si mesmos, são
prolongados até uma vizinhança que lhes permite uma transmutação amplificada, numa
dinâmica que extrapola completamente os dados iniciais e personológicos, fazendo-os
reverberarem com a cultura como um todo e experimentarem variações inusitadas (Pelbart,
2000, 114).

Por vezes, durante o processo de criação do espetáculo Caminho, o que os atores


levavam como proposta quase não demandava a intermediação da direção. Era “o ator
produzindo e se produzindo, criando e se criando ao mesmo tempo num jogo lúdico e
existencialisante, desdobrando uma potência...” (Pelbart, 2000, 114).

Um exemplo disso aconteceu quando Edmundo levou um texto escrito por ele - “A
profecia do amor” - para mostrar para Juliana que, segundo ele, reagiu imediatamente à leitura
“pulando em cima de mim com o maior carinho” dizendo que o texto tinha que entrar e
sugerindo que fosse finalizado com a frase: “somos feitos de carne”. Edmundo prossegue,
ilustrando o papel dessa relação com a direção e com os demais atores no tornar-se ator:

Contracenar com o grupo todo me emociona muito. Eu sou a terracota, você é que
me molda [referindo-se a Juliana]. Agora é Juliana e Filipe. É lógico que não é só Juliana e
Filipe, porque contracenando com os atores a gente recebe uma porrada aqui, outra ali, um
toque aqui, outro ali e a gente vai se moldando, a gente também se automodela, né.

Os atores participavam ativamente da construção do roteiro, sendo que aqueles que já


tinham alguma formação prévia em teatro tinham mais segurança para intervir, criticar e
152

sugerir uma cena ou a mudança de alguma outra, como Edmundo, Viviane e Jaqueline.
Quanto aos demais atores, imagino que se assistissem suas próprias atuações já nos ensaios ou
mesmo nos vídeos que circulam pela internet poderiam identificar a qualidade do que fazem e
o quanto sua autonomia é visível quando estão no palco, o que certamente favoreceria seu
empoderamento.

O processo de criação dos atores é contínuo, não cessa com a estreia do espetáculo. Na
verdade, ganha uma vida própria, numa partitura inacabada, na qual “cada espetáculo é um
vôo” (Juliana), provocando surpresas e inseguranças, inclusive na diretora Juliana quando, ao
substituir uma das atrizes na abertura do Caminho, se depara com a autonomia do próprio
espetáculo:

Caramba! Olha eu e o Filipe fizemos aquela abertura em todos os ensaios. Todo


ensaio geral a gente fez aquela abertura. Eu tinha uma partitura de ação, você tinha outra.
Você tinha uma pedra, eu tinha outra. Eu não consegui fazer a minha partitura! Os meninos
criaram um negócio ali, de uma densidade, que eu só tremia. E eu olhava pra Emílha e falava
‘eu vou com ela’. Naquele dia eu fiquei vendo e pensei assim ‘nossa! A gente, eu e o Felipe,
perdemos essa entrada aí! Eu tenho que jogar com isso aqui. Tá acontecendo uma coisa aqui,
do meu lado agora e eu tenho que ir nisso aqui. E eu abandonei a partitura que eu tinha. [...]
Tem uma estrutura ali [à qual] não pertencemos mais.

O papel da direção durante o processo de criação fica evidente nesta fala da diretora:

Mas, olha que maravilhoso, porque é assim, também tem uma hora, eu não sei se o
Filipe compactua com essa ideia, mas vocês dão pra gente de presente (...) vocês trazem pra
gente. A gente traz algumas propostas, algumas ideias e vocês dão pra gente um monte de
material, um monte de cenas, de boa, vocês vão trazendo isso. São presentes mesmo, um
texto maravilhoso (...), imagens... E aí o que é que acontece? Chega uma hora que é a hora
em que a gente, como direção também desenvolve isso. Como? [...]. Toda criação teatral, tem
um diretor de teatro que chama Peter Brook, [que] fala que toda peça de teatro nasce amorfa,
não tem forma, e que os atores nesse processo colaborativo vão trazendo isso. Quando o Elon
fala que a nossa dramaturgia é aberta é porque é desse lugar. Um traz uma coisa, outro traz
outra. Isso já é dar forma. E aí, depois, eu acho que o lugar da dramaturgia, da construção do
roteiro e da direção é esse. Da direção de trabalhar um por um e de falar ‘aquela hora ali, a
coluna, o quadril, o pé, a luz, o som’. E ao mesmo tempo criar uma cadência, criar um ritmo,
criar um roteiro mesmo, criar uma sequência pra isso que vocês já nos deram. É como
também se a gente tivesse devolvendo pra vocês e aí vocês fazem uma outra coisa. Depois
que menino nasce ainda vira outra coisa!

Quando atores e diretores falam do processo de criação do espetáculo Caminho,


também entra em cena a implicação, enquanto momento de reflexão, problematização e
reconhecimento de si e dos próprios limites e potencialidades, como no comentário feito por
Emílha durante a restituição:

Eu achei muito bom que a Regina colocou de mim no trabalho, eu achei importante
por que é justo a pedra no meu sapato né, que é lidar com o corpo. E eu achei também o meu
lugar, achei bem o meu lugar na peça. Eu tava gostando de fazer, eu achei o meu lugar. Eu
não estava deslocada hora nenhuma, eu achei o meu lugar. Lógico que isso pra um ator,
153

principalmente de teatro, que você tá de frente pra plateia, que você tá ali, ao vivo, você tem
que estar no seu lugar. Eu achei isso.

Ou na fala do diretor artístico Filipe acerca da elucidação sobre o processo de criação


do Sapos, também durante a restituição:

Pra mim esclarece muito como se dá o processo de criação, porque é uma coisa que
meu analista tem me cobrado é eu ter noção do que eu faço, não agir por intuição; aí o olhar
de vocês me ajuda a entender como o processo acontece. Eu acho muito importante, é uma
questão pessoal.

Por fim, no depoimento da diretora geral do Sapos e Afogados aos participantes da


oficina Se delirar, delirou!, conduzida pelos atores do Sapos, podemos observar o desafio de
uma condução que priorize a criação e a reflexividade permanentes e que abra brechas no
instituído para que o instituinte se instale, condição necessária à práxis da autonomia:

Tem um ano que o meu exercício no Sapos e Afogados tem sido de estar no grupo,
no coletivo, mas de permitir que esse trabalho também aconteça com uma certa autonomia.
Eu precisei tomar uma certa distância no sentido de ter outra pessoa, por exemplo, dirigindo
o trabalho com os meninos. Hoje eu cheguei aqui mais cedo e tive notícia dos dois dias que
vocês tiveram de oficina, morrendo de vontade de estar aqui. Sabe mãe [quando] a pessoa
entrega o filho e fala assim, ‘olha! Ele nem chorou, que legal!’... O Felipe falou ‘nossa foi
lindo’, eu falei ‘ah, que bom, [eu] nem queria’. Então, tem ao mesmo tempo esse ciúme, mas
ao mesmo tempo sabendo que o trabalho está na mão de uma pessoa que eu confio muito que
é o Felipe. E hoje, quando eu falo hoje tem um ano, está sendo importante experimentar esse
lugar, que é estar no coletivo, mas também construindo um outro lugar para mim. Chegou
uma hora também que até essa coisa da direção não podia ser só comigo..., que os meninos
estavam me dando sempre a mesma variação sobre o tema. E aí é bom quando traz alguém,
um outro ar mesmo, na condução das oficinas. E então, por exemplo, a gente ficou seis meses
só com o Felipe em sala de ensaio. Eu ficava roendo as unhas do lado de fora, mas é muito
rico. Porque aí eu vou ter uma devolução desse trabalho com esse outro olhar. É muito
importante pra mim e para os meninos também.

Aspectos relacionados à autonomia continuam se anunciando na proposta de uma


“dramaturgia aberta”, que só faz sentido e só é viável porque assenta-se no novo, no coletivo
e na democracia.

Reflexões lúcidas e de muita clareza sobre as relações entre autonomia,


responsabilidade, liberdade, loucura, teatro, cuidado e empoderamento emergiram durante a
reunião de restituição e nas entrevistas com os atores.

O profissionalismo de Edmundo nos convence do compromisso e responsabilidade de


cada um deles com o coletivo quando, em um dos dias do espetáculo comunica à equipe que
estava “num surto de loucura”, que já tinha procurado o Serviço de Urgência Psiquiátrica
(SUP) e o Centro de Referência em Saúde Mental (CERSAM), serviços de urgência em saúde
mental, e que, apesar do médico ter receitado remédios muito fortes para ele, tinha decidido
não toma-los, porque se o fizesse não conseguiria atuar naquele dia e porque, de acordo com
154

ele, “ninguém sabe mais da minha doença do que eu. Tenho 40 anos que eu sou louco. Ele
não sabe mais da minha doença do que eu, não vou tomar isso”. E assegura a todos: “eu não
vou deixar a minha loucura subir no palco”. E assim foi.

O depoimento de Viviane sobre sua participação no Caminho também nos conta sobre
como compromisso, responsabilidade, autonomia e empoderamento caminham juntos:

Foi um trabalho que eu também tive uma responsabilidade grande. Eu faço até uma
espécie de costura no espetáculo, eu acho, porque eu tô presente em várias cenas, contraceno
com quase todos, se não com todos os outros atores, no trabalho e eu fico pensando: ‘e se eu
não der conta? E se me der uma crise e eu não der contar de realizar o espetáculo? O que é
que vai acontecer?’ E extremamente insegura, mas consegui realizar, as pessoas gostaram....
Eu particularmente não fiquei tão satisfeita com meu trabalho. É como se eu pudesse dar
mais, mas eu não dou conta de dar mais, ou não dei conta naquele momento. Mas, dei conta
de realizar, muitas pessoas elogiaram, não sei se pra agradar, ou se realmente gostaram...
Mas, eu acredito tanto na boa vontade, na generosidade das pessoas que foram. Tem o valor
de eu ter realizado de qualquer maneira, de não ter deixado o grupo na mão, ter participado
dos ensaios, das apresentações, ter ido nas oficinas que o Filipe falou pra gente que era
importante a gente aparecer. Eu apareci, dei um jeito de ir lá. Eu acho que é um lugar que me
cabe bem, que eu me sinto muito à vontade, eu não me sinto obrigada a nada – eu não tenho
que vir aqui, eu não tenho que bater ponto, eu não tenho que apresentar. Mas, eu tenho
compromissos também e isso me faz bem porque parece um trabalho, é um trabalho que eu
dou conta de realizar. Hoje sou aposentada por invalidez, então eu realmente não estou apta
para trabalhar, para disputar uma vaga no mercado de trabalho, nem como atriz nem como
nada. Mas, aqui me dá uma sensação de estar fazendo um trabalho e isso é bacana, isso é
legal, isso é uma experiência de autonomia, eu acredito. Eu posso fazer e me sinto alegre em
conviver com essas pessoas, eu sinto que sou querida, que sou respeitada no que eu faço.
Então, eu acho minha história com o Sapos muito bonita, uma história de amor mesmo,
muito legal.

Elon Rabin, depois de algum tempo afastado do Sapos e Afogados, faz seu retorno na
reunião de restituição da pesquisa e abre as reflexões associando a noção de autonomia à de
independência financeira, também construída por cada um e pelo grupo:

Tem muito tempo que eu não falo, né. Tô com vontade de falar. Esse texto aí me deu
vontade de falar. Tem uns três pontos que eu notei. Da autonomia individual e da autonomia
coletiva, achei importante, da capacidade de criticar o próprio comportamento, as próprias
ideias. A autonomia social, eu não entendi muito bem. [...] A nossa autonomia pega [...], mas
na autonomia financeira, que a gente ainda luta, né, tem esse objetivo, da gente ter o nosso
próprio espaço e isso a gente ainda... captação de recurso, né. A gente não está muito
próximo de certos empresários, eu acho que... a gente não tem, não chegou alguém assim
com essa visão, que possa nos ajudar mais nesse sentido. Acho que tem essa pessoa, não sei
se a gente vai encontrar essa pessoa, é um desejo que a gente tem, né.

Edmundo evoca a horizontalização das relações de poder associada ao respeito para


nos dizer que “o que eu entendo por autonomia, autonomia sadia, é você ter o poder na mão e
não machucar ninguém. Aí sim e aí você pode crescer”.

O empoderamento emerge ao trazerem à tona os desafios pessoais, políticos, e sociais


decorrentes da autonomia conquistada por eles, que vão desde o reconhecimento do cuidado e
155

da função de rede de apoio exercida pelo Sapos até a luta contra o estigma, o pertencimento
social, o reconhecimento social do trabalho realizado pelo grupo e a inserção na cidade.

Para Elon Rabin, o fato de terem se desvinculado da rede de saúde mental tem sido
essencial para a desconstrução do estigma social relacionado à loucura, o que poderia ser
fortalecido com o uso das redes sociais (Vasconcelos, 2003):

O outro ponto é que nós, com esse tempo de trajetória, a gente tá desconstruindo
essa imagem de que o louco é incapaz, de que louco é perigoso, improdutivo, é perigoso pra
nossa existência. Então, o fato da gente estar circulando na cidade já contribui, dentro pelo
menos em Belo Horizonte já, pra gente estar desconstruindo, porque nós temos autonomia de
trabalhar desvinculado da rede.
Outras mídias que eu vi [referência ao texto da restituição], eu acho isso inovador,
acho isso importante porque hoje, internet, mídias sociais... a gente deve realmente avançar
nesse sentido porque isso também vai ajudar a desconstruir ainda mais essa imagem que tem
de que louco é perigoso, é incapaz, é improdutivo (Elon Rabin).

As reflexões sobre o estigma social relacionado à loucura e sobre a importância do


pertencimento social e do apoio (Vasconcelos, 2003) propiciado pelo trabalho do Sapos como
forma de lidar com a dor que vem daí são descritas no diálogo que se segue:

Jaqueline: Eu fiz curso, eu fiz Antunes Filho, né, eu fiz Ronaldo Boschi aqui em
Belo Horizonte, Eid Ribeiro. Eu já tinha trabalho com outras pessoas já, na juventude,
quando eu tava mais legal. Depois que eu tive a crise, né, aí eu retornei ao teatro através do
Sapos e Afogados, né. Então pra mim foi uma experiência assim fascinante, né. Eu até
cheguei a chorar! Uma vez sabe, depois da apresentação, nós fomos apresentar lá no
Mercado Distrital do Cruzeiro, aí na volta alguém falou assim, [que] nós somos muito
excluídos da sociedade. Aí eu comecei a chorar, falei, ‘não, mas agora não, agora eu tô
incluída’, no Sapos eu tô incluída na sociedade’. Nossa, meu olho encheu de água.... Não
tava acreditando que eu tava assim num grupo de pessoas legais, sabe? Mesmo que tenha
suas brigas, suas rixas, que eu tava num grupo de pessoas legais. Então eu fiquei feliz com
isso, de tá participando de alguma coisa, porque eu tava muito abandonada, eu tava me
sentindo muito abandonada, muito sozinha, às vezes ficava só dentro de casa, dentro de casa,
dentro de casa. Eu precisava de um grupo, de uma atividade, de algo que me colocasse pra
fora, pra fora, mas em sociedade, que eu pudesse ter amigos, fazer amizade, frequentar as
casas, porque eu fico muito sozinha, eu sou uma pessoa sozinha, né, ainda. Mas, eu achei que
o Sapos e Afogados pra mim foi de grande importância e até hoje eu estou aqui presente.
Rogério: e esse convívio em grupo é bom, porque você cresce ali, junto um com o
outro, sabe. A gente sozinho, pra fazer alguma coisa é muito mais difícil do que quando você
tá em grupo. Quando você tá em grupo, fica mais fácil as coisas. Um ajuda o outro...
Jaqueline: fica mais fácil, mais envolto naquilo, sabe. Eu chorei no Sapos e
Afogados, ninguém me viu chorando. Eu chorava de emoção, de tá pertencendo a alguma
coisa, aquela necessidade, você precisa de pertencer a alguma coisa na sociedade, esse
pertencimento. É o pertencimento, né, de alguma coisa [e] é fora de cena também.
Rogério: fora de cena também. O convívio, sabe, assim. Acho que o convívio em
grupo é uma coisa que enriquece a pessoa, porque quando você tá junto com outras pessoas,
as coisas ficam mais fácil do que [quando] você tá sozinho. Dificilmente você vai conseguir
alguma coisa se você tá em casa deitado, sem fazer nada, sozinho em casa.
Jaqueline: isso é horrível! Isso é horrível!
Ludmila: eu era super antissocial, assim. Antes do Sapos eu não gostava de ficar no
meio das pessoas, de jogar um jogo, misturava com um pouco de timidez.
Rogério: por exemplo, na construção do Caminho, desde que o Filipe entrou que a
gente vem nesse processo, né, a gente passou quase um ano fazendo, pra poder sair aquilo ali.
156

E foi através dos encontros, a cada encontro a gente fazia uma coisa, fazia um jogo teatral,
fazia expressão corporal, isso tudo é bom pra gente, sabe. Melhora a autoestima da gente e a
criatividade, é bom pra cabeça da gente, tudo é importante, ajuda.
Edmundo: estamos aqui entre amigos. Só de tá assentado aqui, me ouvindo falar
essas palavras todas, tô entre amigos. 'Ah, mas não é a mesma coisa'. É a mesma coisa. A
amizade não tá na quantidade, é o tempo e a qualidade. Tamo aqui com qualidade de Sapos e
Afogados, trabalhando em prol da tese de doutorado da Dra. Regina, né, a futura Dra. Regina,
por quê? Porque vale a pena investir, vale a pena investir no doutorado, no mestrado ou então
no PhD. Depois do doutorado tem o PhD., não é isso? Vale a pena investir no sonho e eu
acho que o Sapos e Afogados é um sonho que a gente pode realizar nessa vida. Como ator do
Sapos a gente pode realizar vários sonhos. E se a gente souber comunicar com a diretoria, a
gente pode criar coisas, coisas inesperadas.

A desconstrução do imaginário social em torno da loucura, mencionado por Elon, ou o


pertencimento conquistado por Jaqueline fazem parte de uma “batalha diária” do coletivo,
fazendo frente, por exemplo, à insistência da mídia em apresentá-los, durante o telejornal que
divulgava o espetáculo Caminho, como “pacientes de clínicas particulares” que fazem teatro e
não como um grupo de teatro da cidade. Nessa “batalha” é evidente o esforço da diretora para
deixar claro para os atores, para a equipe de produção e talvez para si mesma, o quanto os
desafios e impasses cotidianos com os quais o Sapos convive são próprios a qualquer grupo
de teatro, como por exemplo, o reconhecimento, a captação de recursos, a insegurança súbita
ao entrar no palco, a interrogação permanente sobre o que é ser ator. Eu, por minha vez, gastei
um bom tempo tentando compreender o que aproxima o Sapos dos demais grupos de teatro,
para concluir que não se trata de comparar experiências, mas de encontrar ou reconhecer as
características, as marcas que o fazem existir e ser maravilhoso. Cada grupo tem sua marca,
seu estilo. E é por seu estilo que o Sapos deve ser reconhecido. E o estilo não está no fato de
serem atores loucos. Isso diz respeito à composição do grupo. O estilo do Sapos está na
improvisação, na construção permanente, na capacidade de sustentar uma construção
realmente em processo. Uma aposta na capacidade de inovar, improvisar. A inovação do ato
criador, que salta do depoimento de Elon e de Edmundo ao falarem sobre a dramaturgia
aberta e a improvisação como um dos aspectos que compõe o nomos do Sapos e Afogados,
conferindo a ele o caráter de uma instituição:

Elon:

A respeito da persona, da nossa identidade, uma característica fundamental que eu


vejo é que quem chega aqui sempre vai se surpreender, porque a gente não trabalha com
dramaturgia pronta. Nós nunca trabalhamos com dramaturgia pronta. Então, isso é uma
característica fundamental que nós temos. E o nosso pioneirismo. Nós somos um grupo que
somos cidadãos em sofrimento mental e que a gente consegue ser produtivo, lidar com a
questão do preconceito aí fora, circular pela cidade e tá construindo uma vida melhor, mais
saudável.

Edmundo:
157

Eu posso tá errado, mas a gente trabalha aqui com improvisação. A gente improvisa,
a Juliana pega, modela, escolhe, faz o molde, encaixa e aí surge o trabalho do Sapos. Então,
eu considero o Sapos como um teatro da improvisação, de atores loucos. Então, eu posso
chamar de teatro da espontaneidade, a pura espontaneidade, porque o louco, quando ele surta,
ele é tão espontâneo que ninguém aguenta ele. Mas, quando ele tá sob remédio, sob
medicação ele [também] é espontâneo. Os normais têm que bater ponto, essas coisas. O louco
não tá nem aí pra isso, ele solta o verbo mesmo, ele fala a verdade mesmo. [...]. É
espontaneidade, não digo que é loucura. O teatro do Sapos e Afogados, o teatro da loucura, é
espontâneo, da improvisação, é espontâneo no seu máximo grau. Se a Juliana Barreto não
tivesse noção do que é a loucura, a loucura no seu mais alto nível teatral, ele seria falso.
Então ele [referindo-se ao Filipe Aredes] tem que ter um pouco de loucura, a Juliana tem que
ter um pouco de loucura. O teatro da espontaneidade louca, o teatro da improvisação
espontânea louca...

Associado ao pertencimento social e às características de rede social de apoio a


interface clínica aparece como inevitável ao trabalho realizado pelo Sapos e Afogados, como
sintetizado por Edmundo, para quem “o Sapos e Afogados é o remédio na dose certa” e como
elucidado por Elon Rabin:

É um trabalho, eu sempre encarei aqui como um trabalho que a gente faz. A questão
é que a gente trabalha as questões pessoais e até questões sociais aqui, mas isso não é o foco,
mas a gente trabalha as questões pessoais e sociais aqui. Aqui não é um ambiente terapêutico
propriamente dito, mas acaba funcionando um pouco como um ambiente terapêutico pra nós,
porque a gente torna a nossa vida melhor quando a gente lida com os outros grupos sociais. E
o laço social que a gente tem aqui, ele é indispensável pra que a gente continue como
coletivo e pra que isso seja um laço social que a gente... junto de outros laços sociais...
Porque a gente chega em certas fases da vida que costumamos perder laços sociais, entra na
nossa história as perdas. A perda profissional, porque você se aposenta; a perda de um ente
querido, que em um ou outro momento você acaba tendo; a perda da juventude muitas das
vezes, que a gente já tá na idade mais avançada... E a gente se adapta a essas perdas, e a gente
procura compreendê-las também e ver de que forma a gente pode seguir em frente. E a gente
tá conseguindo isso aqui, isso é um laço social que a gente não deve deixar perder, a gente
deve valorizá-lo como valoriza a família, como a gente valoriza o de amizade que a gente
tem.

“Remédio na dose certa” também porque não pretende calar o sofrimento ou a solidão
que acompanham a experiência com a loucura, mas, antes fazer dela criação artística.

O tema da solidão surge com Edmundo, durante os ensaios:

Descobri que não temos amigos, só conhecidos. A loucura vem da solidão. Família,
acham que a gente é perigoso, vai matar todo mundo. Aí vem a propaganda, que é a alma do
negócio... A loucura se resume a uma solidão muito grande dentro da gente e um chão muito
árduo pra trilhar.

O tema também foi lembrado pelo grupo no diálogo sobre pertencimento social,
exposto anteriormente. Ludmilla teve oportunidade de compartilhar com o grupo as marcas
que o teatro deixa em seu próprio corpo, como o cansaço, dores, lembranças que retornam ao
sentir o abraço apertado da Viviane ou o gostinho passageiro da presença do irmão na estreia
do Caminho, ressaltando a solidão que não hesita em se fazer presente ao final de cada ensaio
158

ou apresentação. A solidão da existência humana. Os momentos de ensaio, de apresentação,


de cumprimentos da plateia, na verdade são passageiros. Depois de tudo, cada um deles
precisa dar conta de sí. No palco são plenos, mas e depois? Como lidar com o vazio que se
instala?

Elon antevê na solidão o tema para um futuro espetáculo:

Quem que fala que a solidão pode se tornar loucura? Tem uma parte do texto que
fala [refere-se ao texto da restituição]. Será que pode levar? Talvez possa levar. Será que a
solidão pode chegar num ponto extremo de ser insuportável pra pessoa? Até na semana da
saúde teve essa discussão da solidão né, da importância dela na saúde mental58 e nós nunca
trabalhamos esse tema né. Eu acho que é uma discussão que...todo mundo tem momento de
solidão, né.

5.6 Se delirar, delirou! - Empoderamento como consequência natural da conquista da


autonomia

Cada um dos atores, a sua maneira, conta como se “encaixou” no Sapos e Afogados e
de como, ao encontrarem um lugar em que “cabem” também encontraram realização,
autonomia e empoderamento.

Beth Flores, atriz Girino por exemplo, ressalta o acolhimento, o afeto e a escuta que
encontrou no grupo:

Já fiz teatro [...], mas como eu fiz teatro com a Juliana, eu gostei mais de fazer com a
Juliana. Eu tava fazendo [...], mas não tava me sentindo bem, parece que tinha um trem me
incomodando... às vezes falava as coisas pra professora... e ela não dava atenção pra mim,
dava atenção pros outros alunos [...]. Alguma coisa que eu tava fazendo, ela cortava. Eu
ficava toda sem graça, não falava mais nada, e foi me doendo aquilo, falei ‘ah, não vou fazer
isso mais não’. Com a Juliana eu gostei [...] eu falei ‘ô Juliana, queria continuar o teatro com
cê’. Aí eu fui se aproximando devagarzinho, entendeu? [...]. No evento eu pedi a Juliana pra
ficar com ela, ela me aceitou de bom coração, de braços abertos, me apresentou o Filipe, e eu
gostei do Filipe [...]. E eu gostei do teatro da Juliana, Sapos e Afogados, tô adorando,
entendeu? [...] eu encaixei, achei que eu queria fazer esse teatro do Sapos e Afogados e
adorei. Eu encaixei, que eu gostei dos dois demais, eles têm um carinho com os alunos,
conversa com todos, dá atenção pra um, dá atenção pra outro, legal é assim.... Eu tinha medo
de fazer esse negócio de Sapos e Afogados, [pensava] ‘esse teatro não vai dar certo não’. Eu
pensava mesmo, ‘acho que teatro não vai dar certo’. No dia que eu falei com Juliana, ‘hoje eu
posso ir?’ Ela falou ‘vai, mas vai com fé’. E com fé eu vim e tô aqui até hoje. Já falei com
[não consigo identificar os nomes] que ‘aqui eu estou me servindo a mim, meu coração tá
aberto, tenho amigo verdadeiro’.

Viviane deixa entrever como o compromisso pode conviver com a liberdade, no que
ela mesmo nomeia como experiência de autonomia.

58
Referência À V Semana de Saúde Mental e Inclusão Social da UFMG, cujo tema foi Por uma vida menos
solitária.
159

Eu acho que é um lugar que me cabe bem, que eu me sinto muito à vontade, eu não
me sinto obrigada a nada – eu não tenho que vir aqui, eu não tenho que bater ponto, eu não
tenho que apresentar, mas eu tenho compromissos também e isso me faz bem porque parece
um trabalho, é um trabalho que eu dou conta de realizar. Hoje sou aposentada por invalidez,
então eu realmente não estou apta para trabalhar, para disputar uma vaga no mercado de
trabalho, nem como atriz nem como nada, mas aqui me dá uma sensação de estar fazendo um
trabalho e isso é bacana, isso é legal, isso é uma experiência de autonomia, eu acredito. Eu
posso fazer e me sinto alegre em conviver com essas pessoas, eu sinto que sou querida, que
sou respeitada no que eu faço.

Edmundo não tem dúvidas do profissionalismo nem da autonomia presentes no


trabalho que eles fazem: “nós somos atores, nós estamos fazendo um trabalho praticamente
profissional. E o resultado é tão, é melhor ou igual a outros trabalhos de outros grupos
profissionais. Então a autonomia tá aí”.

Rogério concentra-se nos efeitos produzidos pelo convívio e no reconhecimento que o


Sapos e Afogados já encontra na cidade:

As vezes a gente aborrece também, tem uma hora que o saco explode mesmo, mas
dá um tempo, depois volta e fica tudo normal. É porque na verdade o convívio entre as
pessoas é uma coisa difícil demais. Na verdade, teatro também é como se fosse uma terapia
pra gente. A gente tá ali, participando, bacana e ajuda também no tratamento, distrai muito a
cabeça da gente. Até porque a gente já é um grupo que faz parte do convívio em Belo
Horizonte, é bem conhecido. Eu participo do Sapos, mas é como se fosse uma atividade mais
lúdica, assim, não tem aquela coisa assim que eu dependo exclusivamente né, porque eu
tenho meu trabalho, né. Pra mim é importante, claro, que eu tô aqui, participando e tudo, é
uma atividade que faz parte da minha vida, né.

Jaqueline fala sobre a possibilidade de autogerir seu dia a dia tanto na família quanto
em relação ao centro de convivência, desde que se aposentou e também ao retomar o teatro no
Sapos e Afogados:

Eu também consegui uma certa autonomia trabalhando no Sapos e Afogados,


entendeu? Quando a gente recebe... e uma certa independência da família. [...]. Eu não tenho
uma autonomia total, porque eu sou dependente da minha mãe, mas eu já tenho uma parte
porque eu tenho minha pensão. A autonomia minha é mais financeira, né. Mas, eu já posso
me gerir também, o meu dia a dia. Toda sexta feira eu venho pra cá, eu já faço meu horário,
meu tempo, então eu já consigo me autogerir, autogestão, entendeu? Porque antes eu ficava
muito dependente do Centro de Convivência, mas agora não, agora eu já tô mais autônoma
em algumas coisas.

Emílha vê no Sapos a possibilidade de realização e de ficar famosa:

É a realização, né. Não sei se é todo mundo que tem esse sentido dentro de si, mas
tem uma coisa que a gente deseja bastante, que eu desejo, que é a realização. Realizar sendo
pessoa na sociedade, né. Os papéis que eu cumpro, de amiga, família, nesses papéis o Sapos
teve importância porque eu posso convidar a pessoa pra ir ver a cena, então é uma realização,
né. É uma realização, esse querer ficar famosa, querer ficar conhecida. [...]. O Sapos tem um
ponto bom pra gente é quando tem cachê pra gente, né. É muito bom.

Ludmila, assim como Jaqueline, destaca que a experiência do Sapos ultrapassa a dos
centros de convivência:
160

Quando cheguei no Sapos [...] eu vi a empolgação do pessoal, vi uma coisa além dos
centros de convivência, uma atividade além [...]. Você se sentir importante, assim, eles se
sentiam inteiros.

Como já foi antecipado no corpo desta tese, a oficina Se delirar delirou! faz parte do
núcleo de formação do Sapos e Afogados e foi inserida na programação do SESC Palladium
no mês de maio de 2016, durante a qual os atores assumiram a condução das aulas para um
público de cerca de dez pessoas da comunidade.

Assim, como no cotidiano do Sapos e Afogados, as pistas para a formação proposta na


oficina vieram da própria história de cada um dos atores que coordenaram os cinco dias de
atividades.

Autônomos e empoderados, conduziram os trabalhos com os dez alunos, dentre os


quais estavam atores, atrizes, psicólogos, estudantes de psicologia e de teatro, artistas e
pessoas interessadas em conhecer o fazer teatral do Sapos e Afogados.

De todo o período de observação participante, foi nesse momento que o


empoderamento de cada um deles ficou mais evidente, ao assumirem a liderança dos
trabalhos, desde o planejamento e produção da proposta do dia, passando pela direção das
cenas e reflexão final sobre elas.

O depoimento da pesquisadora Kelly nos ajuda a ter noção do que transcorreu ali:

Participei apenas um dia dessa oficina. E como não poderia deixar de ser, fiquei
extremamente emocionada com os relatos que ouvi dos atores do grupo sobre seu próprio
adoecimento, com o profissionalismo com que conduziam as atividades da oficina e com o
retorno do público que participou, que demonstrou bastante satisfação com a experiência e
com o aprendizado proporcionado a partir das atividades propostas pelos atores. Percebi
autonomia e empoderamento nesta atividade. Os atores criavam, produziam as cenas e
propunham aos participantes que executassem junto deles.

A autonomia individual percebida no dia-a-dia dos ensaios do Caminho convertia-se


em autonomia coletiva com a evolução dos trabalhos e do próprio espetáculo, transparecendo
para o público como competência, qualidade artística e empoderamento.

Aos poucos o Sapos e Afogados vai construindo sua história, um lugar de


reconhecimento social na cena cultural da cidade, o que só tem sido possível porque lá em
2002 instaurou-se o ato criador, ato instituinte de desligamento da rede de serviços
substitutivos de saúde mental de Belo Horizonte. Desde então, compromisso,
responsabilidade de cada um dos implicados no processo, tem acompanhado a produção da
autonomia e o empoderamento coletivos, e ajudado a lidar com a falta de patrocínio e com o
161

sofrimento mental, que por vezes os acompanha inclusive durante os espetáculos, como
expõem os depoimentos de Rogério e Viviane.

Rogério:

Na verdade, o teatro mexe com o ego da gente, sabe? Você tá ali no palco, você vê
que a plateia tá aquele monte de gente ali na sua frente e você tá ali. Aquilo mexe muito com
o ego da gente. Você se envaidece, ‘que bacana isso, que legal, eu tô fazendo uma coisa
bacana’. Na verdade, o Sapos e Afogados é um grupo que já existe há quase 15 anos. Durante
esse período, não é fácil você ter um grupo de quase 15 anos. Imagina quantas pessoas já
passaram por aqui, quantas não ficaram, quantas vieram acreditando que ia ser uma coisa
diferente, mas não é. Outro dia eu tava falando, as pessoas vem pro Sapos e Afogados
imaginando o seguinte, ‘eu vou ficar famoso e vamos ganhar muito dinheiro’, que na verdade
não é assim. O nosso trabalho é um trabalho de dia-a-dia, é um trabalho que a gente tá
fazendo ali, todo dia. Tá fazendo um projeto, não dá certo, faz outro (...).
A gente já sobrevive a muitos grupos, [como] uma família que tá ali junto e tal.
Porque é uma coisa independente, porque a gente não depende de nenhum apoio de algum
órgão público, a prefeitura não dá vale transporte, não dá nada. Ás vezes, pra gente tomar um
café a gente precisa tirar do bolso e tomar um café, porque patrocínio a gente quase não tem.
Então, a gente é como se fosse um sobrevivente mesmo, somos sobreviventes mesmo, porque
a gente tá ali, trabalhando, estamos em busca e a gente tá indo. Esse ano nós não temos
apresentação? Teve uma apresentação? O ano tá acabando? Mas vamos continuar.

Viviane:

Todas as vezes eu dei conta desse trabalho, mesmo estando numa fase de depressão.
Teve uma época que eu me mantive mais afastada do Sapos, eu nem aparecia por aqui, mas
também não fui cobrada, tive o meu tempo e por sorte não teve espetáculo na época. De
modo que eu nunca furei com o Sapos. Eu posso dizer assim. Um dia eu fiz esse Frog Sound
alucinada, completamente alucinada, no Mercado do Cruzeiro. Eu falei ‘Ju, eu não dou conta
de fazer, eu tô louca, eu tô esquisita.’. Mas, nesse dia o Edmundo também tava muito mal e a
Jaque substituiu o Edmundo. E a Ju falou ‘Vivi, não fura comigo nesse não, por favor. Você
fica, faz, a gente te tira daqui, te deixa em casa depois, mas eu preciso que você faça’. E eu
fiz ele louca, esfuziante e tal e o povo diz que foi ótimo. Eu lembro que eu aprontei, eu
aprontei no Mercado, mas cabe né, cabe no trabalho essa coisa assim, ele abarca tudo, não
tinha texto (...). Eu fiquei contente de realizar aquilo. De fato, fui de carro pra casa e fiquei
bem, com a sensação de ter realizado isso, faz bem pra autoestima, no final das contas, você
ter dado conta. Isso também fortalece, empodera.
162

6 O COMEÇO DO FIM OU O FIM DE UM COMEÇO

Trabalhar para preservar ou ampliar as possibilidades de


autonomia e da ação autônoma, assim como trabalhar para
ajudar a formação de indivíduos que aspiram à autonomia e
para aumentar seu número, já é realizar uma obra política, e
uma obra de efeitos mais importantes e mais duráveis que certos
tipos de agitação superficial e estéril
(Castoriadis, 2004a, p. 171).

As transformações decorrentes de uma pesquisa intervenção como esta, inspirada na


Análise Institucional, definitivamente não se limitam aos campos de pesquisa e seus atores.
Talvez seja a pesquisadora aqui quem mais se impactou no processo.

Redescobri que é possível produzir conhecimento a partir da prática, ou na prática.


Isso sempre foi o que me atraiu, mas, hoje percebo que em algum momento do meu percurso
acadêmico na UFMG abri mão desse “ideal” para tentar perseguir aquele reconhecimento
valorizado na universidade – o de uma ciência rigidamente centrada em metodologias que
valorizam a objetividade, o distanciamento em seus procedimentos e na relação do
pesquisador com seu objeto. Afinal, minha profissão pedia – pede ainda – reconhecimento
social e científico e a universidade exigia “massa crítica”.

Para tanto, tentei substituir a crença na práxis pela crença “científica” e acabei me
perdendo em meio a teorias que não conhecia e acreditava. A sensação de desamparo teórico
foi evidente no tempo em que levei para assumir, finalmente, o fazer humano pleno de
história e materialidade, de sentidos e sensações. Neste momento, me redescobri.

Desde que conclui o mestrado até o início do doutorado, passaram-se exatos dez anos,
nos quais a única certeza que eu tinha era de que não me submeteria a fazer um doutorado só
para ter um título e satisfazer a exigência de “massa crítica”. Nesse meio tempo até tentei
conciliar as diferentes demandas institucionais com as pessoais, buscando o doutorado em
Occupational Science, na Western University, no Canadá, onde fui aceita. Mas, para nossos
órgãos de fomento – CAPES e CNPq – eu não me enquadrava no perfil para obter uma bolsa.
163

Hoje, agradeço muito às Professoras Izabel Friche Passos, minha orientadora, e


Cláudia Mayorga, por me permitirem reencontrar uma “crítica” que possa questionar a
“massa”, ao estudar Foucault, Castoriadis e Martin Baró nas disciplinas ministradas por elas.

Conhecer a pesquisa participativa, em especial a pesquisa intervenção, colocou-se


como possibilidade de associar a produção de conhecimento à minha prática docente, em
especial na supervisão aos alunos, onde se efetiva o encontro com a clínica da Terapia
Ocupacional, com os usuários e com o serviço.

Nesse contexto, autonomia e empoderamento encontram-se em seu potencial de


reflexividade, transformação e resistência, dando sustentação ao diálogo realizado com e entre
as experiências estudadas aqui.

Polissêmicos e passíveis de serem usados para justificar práticas conservadoras e


neoliberais voltadas para a sedução do “meu sucesso só depende de mim e do meu próprio
esforço”, também se articulam enquanto possibilitadores de novos saberes e do protagonismo
dos cidadãos em sofrimento mental.

A concepção de empoderamento em saúde mental predominante em nosso país, tanto


na literatura quanto nos fundamentos das políticas públicas da área, tem sido a que Eduardo
Mourão Vasconcelos vem estudando, inspirada, em especial, no movimento britânico de
usuários de saúde mental e repensada a partir das características socioculturais brasileiras.

Foi esta concepção a eleita neste estudo, da qual se destacaram três estratégias de
empoderamento: a luta contra o estigma, as narrativas pessoais e a militância.

Assim, não foi por coincidência que o desenrolar do processo de pesquisa conduziu a
experiência de construção do programa de rádio Louca Sintonia para o diálogo com a
concepção de empoderamento que também agrega em sua polissemia outros tantos conceitos
fundamentais à Atenção Psicossocial, como os de participação, protagonismo e autonomia.

A característica autonomista do Sapos e Afogados de sustentar uma independência no


vínculo com rede de saúde mental de Belo Horizonte e a natureza do seu processo criativo foi
o que chamou Castoriadis para o diálogo na segunda fase do estudo.

Era muita novidade! Doce ilusão a minha acreditar que no segundo campo, como
havia planejado durante a elaboração do projeto de pesquisa que foi submetido ao
COEP/UFMG, minha participação corresponderia à de um observador participante externo,
164

ou seja, aquele que vem de fora, se insere no campo, faz sua pesquisa e se desliga ao final dos
trabalhos, conciliando um papel ativo no grupo ou instituição com um certo distanciamento
(Lapassade, 2005).

Ali foi possível experimentar o subjetivismo e o objetivismo como duas faces de uma
mesma moeda (Passos, Kastrup, & Escóssia, 2009), uma outra relação possível com a
loucura, que envolvia um cuidado que era mais próximo da solidariedade e do afeto do que da
clínica. Com o Sapos e Afogados, a autonomia se encontra com a criação, na criação e em
criação. Instituido e instituinte confrontam-se a todo momento do/em processo de
institucionalização, desde os questionamentos que antecederam o ato instituinte que
inaugurou o projeto de autonomia da então Companhia Momentânea de Teatro.

Desde então, o projeto vem se construindo e se renovando na reflexividade. Não sem


contradições, impasses e sofrimentos. Nesse percurso, a liderança assumida pela diretora do
coletivo tem destaque e sustenta a existência do coletivo, é ponto de apoio e referência para
cada um dos atores e membros da equipe de produção. Por várias vezes durante a observação
participante e nos momentos de restituição, um contraponto a esta posição pode ser colocado
com a pergunta: onde estão os atores?, que ressoou com mais força em dois momentos
distintos. Primeiro, ao agendarmos a restituição, quando fomos solicitadas a marcar uma
reunião somente com a equipe de produção e outra com os atores, da qual também
participaram alguns membros da equipe de produção. A demanda foi atendida, mas o mesmo
texto, de onze páginas, foi lido em cada um das reuniões e as reflexões da primeira reunião
foram compartilhadas também na reunião com os atores.

O segundo momento foi quando as pesquisadoras foram convidadas a se tornarem


Sapônicas, o que permitiu o acesso ao termo de compromisso a ser assinado com o coletivo.

A pesquisa intervenção nos ensina também que o compromisso e a responsabilidade


do pesquisador não se esgotam com o fim da pesquisa. No nosso caso se intensificaram, em
relação aos dois campos, por meio de novos problemas suscitados pelo estudo.

O potencial empoderador do Louca Sintonia e os efeitos analisadores e instuintes que


a experiência tem produzido no serviço, na universidade e na formação dos alunos do curso
de Terapia Ocupacional ficaram evidentes ao longo do estudo, apesar dos muitos
atravessamentos institucionais que acompanharam a construção do programa no período
165

estudado. Cultivar a reflexividade é essencial e ao mesmo tempo o maior desafio nesse


emaranhado de atravessamentos e transversalidades.

No Sapos e Afogados foi possível observar que a autonomia individual se produz em


ato e no ato criador, traduzindo-se em autonomia coletiva a cada espetácul o que entra em
cena. Essa práxis autonomista, porque essencialmente criadora, confere nomeação e um novo
lugar social que confronta o estigma social relacionado à loucura, além de se reverter em
apoio social, afeto e solidariedade. Como disse Viviane: “realmente, é o empoderamento, né,
assim, ‘eu tô atriz, tô em cartaz”.

A pesquisa-intervenção produziu seus efeitos na organização e funcionamento do


Sapos e Afogados, em especial ao colocar em cena, de forma dialética, o lugar central e
estruturador ocupado pela direção geral do coletivo e, ao mesmo tempo, o exercício do
distanciamento que permitiu a chegada do novo diretor artístico e a construção de um
organograma mais participativo para o coletivo. Características de uma fase do seu processo
de institucionalização em que caminha para a profissionalização, o que tem demandado e
demandará reposicionamentos entre todos os que constroem o coletivo.

Pensar o indivíduo autônomo é considerar que uma outra relação é estabelecida entre
sua psique e a sociedade, “entre a instância reflexiva e as outras instâncias psíquicas”, o que
permite ao indivíduo refletir sobre si mesmo, sobre o porquê de seus pensamentos e atos e
“escapar à servidão da repetição” (Castoriadis, 1992, p.140), deixando de ser

Puro produto de sua psique, de sua história, e da instituição que o formou. Em outras
palavras, a formação de uma instância reflexiva e deliberante, da verdadeira subjetividade,
libera a imaginação radical do ser humano singular, como fonte de criação e alteração. [...]
Ser autônomo implica que psiquicamente investimos a liberdade e a intenção da verdade
(Castoriadis, 1992, p.141).

Por outro lado, a liberdade efetiva pressuposta pela conquista da reflexividade não é
possível fora do “oceano social-histórico” (Castoriadis, 1992, p.142), uma vez que não é
possível ser livre sozinho, em nenhuma sociedade. Ao mesmo tempo em que a interiorização
da instituição social é condição para existência do indivíduo autônomo, também é preciso que
a liberdade e a intenção da verdade já façam parte das significações imaginárias sociais, que
uma “auto-alteração da instituição social” abra caminho para a interrogação. “É preciso que a
instituição se torne tal que permita seu questionamento pela coletividade, que a faz ser, e
pelos indivíduos que a ela pertencem. A encarnação concreta da instituição, porém, são os
indivíduos que se locomovem, falam e agem” (Castoriadis, 1992, p.142).
166

A ideia contida aqui traz à tona as duas experiências estudadas: a oficina de rádio e o
Sapos e Afogados. Até que ponto a dimensão instituinte do dispositivo da oficina de rádio
conseguirá cumprir a função de interrogar, questionar as significações instituídas acerca da
loucura no âmbito do CCSP e da rede de saúde mental de BH e da própria cidade? Os sujeitos
envolvidos nela têm a liberdade e a intenção de verdade? Ou mais, foram formados (paideia)
para isso? Como formá-los para isso ? O espaço para a “interrogação sem limites” está dado
por alguma das instituições às quais estão submetidos (loucura, Reforma Psiquiátrica ,
universidade)?

Este é um espaço que precisa ser construído, reconstruído e permanentemente


sustentado pelos que estão envolvidos na proposta, desde os usuários até a equipe e a gestão,
abrindo espaço também para a própria comunidade vizinha que frequenta o local. É preciso
resgatar a autonomia como “germe”, presente na implementação inicial da política de saúde
mental e que parece ter sucumbido à acomodação na qual todos se colocaram após a conquista
democrática que deu início ao processo. A chance para a conquista da autonomia está em
“instituições, que interiorizadas pelos indivíduos, facilitem ao máximo seu acesso à
autonomia individual e à sua possibilidade de participação efetiva em todo poder explícito
existente na sociedade” (Castoriadis, 1992, p.148).

O mesmo pode ser pensado a respeito da história recente do Brasil, que certamente
tem atravessado o cotidiano das práticas de saúde mental. Após o Partido dos Trabalhadores
assumir a presidência e instituir políticas sociais mais democráticas e participativas, instalou-
se uma heteronomia tal que desconsiderou o fato de que mesmo os “projetos mais
amadurecidamente refletidos podem ser num instante deitados por terra pelo que acontece”
(Castoriadis, 1992, p.146).

Quanto ao Sapos e Afogados, me parece que o momento em que nasce como


instituição coincide com seu desligamento da rede de saúde mental. Este movimento, além de
fazer surgir o coletivo, que se sustenta até hoje, provocou também, de acordo com a diretora
Juliana, um reposicionamento da rede municipal de saúde mental de Belo Horizonte, em
relação ao fazer teatro59, fazendo parecer que o ato teve um efeito analisador sobre a rede de
saúde mental. Colocou em cheque uma das dimensões instituídas da política de saúde mental
do município, que restringia o fazer teatral dos usuários ao interior dos serviços substitutivos.

59
Deixo claro aqui que essa constatação é feita somente a partir do ponto de vista de um dos lados que
protagonizou esse processo, uma vez que extrapolaria os limites deste estudo procurar os representantes da rede
de saúde mental de Belo Horizonte para acrescentarem informações a respeito.
167

Negar a dimensão instituinte da sociedade e imputar a origem e o “fundamento da


instituição e das significações a uma fonte extra-social” (Castoriadis, 1992, p.130), como
Deus, os heróis, a tradição, é a maior defesa que a sociedade instituída encontra para fazer
frente às ameaças à sua estabilidade e autoperpetuação. Quando as defesas contra o instituinte
fracassam, entra em cena o poder explícito exercido por alguma “dimensão da instituição da
sociedade encarregada dessa função essencial: restabelecer a ordem, garantir a vida e a
operação da sociedade contra todos e contra tudo o que, atual ou potencialmente, a coloca em
perigo” (Castoriadis, 1992, p.130).

Ato criador, criação política, que coloca em cena um projeto de autonomia que,
exatamente por ser projeto, não pode ser demonstrado, mas deve ser postulado, aceito e
passível de ser interrogado e racionalmente argumentado em suas implicações ou
consequências. Fazer arte (criação) e fazer política andam de braços dados com a autonomia.

Nessa perspectiva, é necessário abrir ao máximo o caminho à manifestação do


instituinte – mas da mesma forma introduzir o máximo possível de reflexividade na atividade
instituinte explícita, bem como no exercício do poder explícito.... Torna-se imperativo, então,
formar instituições tornando essa reflexividade coletiva efetivamente possível e
instrumentando-a concretamente (as consequências disso são inumeráveis). E, do mesmo
modo, torna-se imperativo dar a todos os indivíduos não só a possibilidade efetiva máxima de
participação em todo poder explícito, mas também a esfera mais extensa possível da vida
individual autônoma. (Castoriadis, 1992, p.147)

Isso confere a uma política da autonomia um conteúdo, desde sempre parcial, mas
também impõe limitações e traz para o centro a educação, a paideia (a formação, sempre
social), dos cidadãos “que interiorizaram a necessidade da lei e ao mesmo tempo a
possibilidade de questioná-la (...), que interiorizaram também a interrogação, a reflexividade e
a capacidade de deliberar, a liberdade e a responsabilidade” (Castoriadis, 1992, p.148).

Algumas das perguntas essenciais para as quais qualquer sociedade busca respostas,
segundo Castoriadis (1982), coincidem com aquelas que o Sapos tem se feito: “quem somos
nós, como coletividade? Quem somos nós uns para os outros? Que queremos, que desejamos,
o que nos falta?” (Castoriadis, 1982, p.177). São uma forma metafórica de pensar a busca por
uma identidade, por uma maior elucidação acerca da relação com o mundo, necessidades e
desejos, uma vez que não se trata de buscar na linguagem, definições diretas para cada uma
das questões. A proposição do autor a esse respeito é de que “é no fazer de cada coletividade
que surge como sentido encarnado a resposta a essas perguntas” (Castoriadis, 1982, p.177).
Sua vida e atividade, manifestas nas formas de fazer, nos seus objetos, nos seus fins, nos
instrumentos usados para tal, vão indicar “uma maneira cada vez mais específica de captar o
168

mundo, de definir-se como necessidade, de se estabelecer em relação aos outros seres


humanos” (Castoriadis, 1982, p.178).

É por meio das significações sociais imaginárias que estas perguntas são respondidas,
materializando “a instituição que coloca a coletividade como existente” (Castoriadis, 1982,
p.178) ao lhe conferir um nome que, mais do que designar, conota, imprime qualidade,
propriedade, compreensão, cumprindo uma função de identificação. Ser um usuário de saúde
mental que faz teatro dentro de um serviço substitutivo, apesar do avanço que isso representa,
não impede que venha à tona toda a significação social imaginária presente na instituição
loucura, aparente em expressões do tipo: “eles não são atores! ” ou “eles vão surtar! ”, vindas
de profissionais da saúde mental e “Não queremos aplausos garantidos! ”, ouvidas dos
próprios atores. O rompimento com a rede e a criação do coletivo autônomo confere àqueles
antes nomeados como usuários, um novo nome – ator ou atriz. A instituição da loucura
convive agora com outra, o teatro, que passa a antecedê-la e a prevalecer sobre ela. Isso não
resolve o problema da relação que a sociedade estabelece com a loucura, mas produz efeitos
analisadores, convocando à reflexividade aqueles que se permitem assistir aos espetáculos do
coletivo, ou são surpreendidos por um dos espetáculos na rua. A reação dos espectadores,
observada após cada sessão do espetáculo Caminho, demonstrou isso: pessoas que saíram
chorando sem entender o porquê da emoção; pessoas que não entenderam nada e que foram
embora com uma interrogação estampada na testa; outros que se surpreenderam porque
esperavam ver um espetáculo como os teatrinhos da época de colégio e, por fim, aqueles que
deixaram de assistir ao espetáculo também porque imaginavam que encontrariam esse mesmo
tipo de teatro. Estes preferiram se manter na segurança ilusória do instituído.

A conclusão de Castoriadis apresentada na epígrafe deste capítulo me conforta de


alguma maneira e reafirma a importância de se investir na formação política dos usuários da
oficina de rádio. Me conforta porque em determinado momento do meu processo de
capacitação me peguei questionando o sentido de se estudar autonomia em uma pesquisa de
doutorado, que pressuponho, deva contribuir de alguma forma para questões importantes da
sociedade. É que o desenrolar do meu doutorado, no período de 2013 a 2017, coincidiu com
um momento de efervescência política no país, no qual ocorreu o desencadeamento e
aprovação do processo de impeachment da presidenta do Brasil, Dilma Roussef, reeleita em
2014, após o que a direita neoliberal reassumiu o país tomando de assalto o poder explícito,
por meio do qual passaram a jogar por terra direitos sociais, com uma agilidade e um
autoritarismo tais que só coube à sociedade constatar, boquiaberta, o quanto se aquietou,
169

estabilizou, acostumou na lógica instituída a partir de 2002, com o governo Lula. É bem
verdade que movimentos sociais voltaram às ruas, como resposta à provocação neoliberal,
que acabou por cumprir uma dolorosa função instituinte. O que me parece e que não me deixa
desanimar de todo, é que no período de 2002 a 2013, o projeto então instituído, parece ter
contribuído para “a formação de indivíduos que aspiram à autonomia” (Castoriadis, 2004a, p.
171) apesar de, contraditoriamente, não ter sustentado a reflexividade necessária ao exercício
da autonomia, da política, da democracia. Agora, mais que nunca, a proposta de uma
formação política para os usuários da saúde mental, que já despontava como necessária à
construção e ao exercício da autonomia deles, se impõe como urgência, uma vez que estarão
entre os mais afetados pela nova lógica da gestão do país, que já coloca como um de seus
projetos, por exemplo, a desconstrução do SUS.

Para o Sapos e Afogados, imerso num processo de institucionalização a proposição de


Castoriadis funciona como um alerta para a importância de se preservar a participação e a
reflexividade permanentes no processo de criação artística e de administração coletiva do
grupo, porque como já foi dito anteriormente, “projetos mais amadurecidamente refletidos
podem ser num instante deitados por terra pelo que acontece” (Castoriadis, 1992, p.146).

O desenrolar da pesquisa evidenciou, na primeira fase, questões e atravessamentos


acadêmicos relacionados à atividade docente, limites que apontaram para a necessidade de ser
rever o formato da experiência da oficina de rádio visando a expandir seu potencial
empoderador, por meio de um estágio curricular ou de um projeto de extensão, podem trazer
um caráter mais contínuo ao processo.

Na segunda fase do estudo a construção histórica do coletivo e o papel desempenhado


pela diretora nesse percurso se destacaram. Parecem haver particularidades na hierarquia no
campo do teatro que, não necessariamente, comprometem o caráter participativo da
experiência, o que merece um maior aprofundamento para se fazer compreender. Ao enfatizar
o processo histórico do Sapos e Afogados pelo olhar da diretora, a voz dos atores a esse
respeito ficou em segundo plano. Eles apareceram mais ao se discutir o processo de criação –
em ato -, o que talvez aponte exatamente para a peculiaridade do fazer teatral e para a
hierarquia mencionada anteriormente. O prosseguimento do trabalho de pesquisa nos ajudará
a esclarecer esse aspecto, por meio da construção de narrativas dos atores sobre o coletivo,
sobre seu processo de criação e sobre a relação com a loucura.
170

Ao concluir esta tese a única certeza que me resta é de que seus resultados e reflexões
são parciais. Espero que meus parceiros no estudo me acompanhem nessa perceção e que os
leitores deste trabalho sintam-se provocados a interrogar suas práticas.
171

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Psicologia Social e Saúde: da dimensão cultural à político-institucional (pp. 398-423).


Florianópolis: Edições do Bosque.
181

APÊNDICE A – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

Você está sendo convidado (a) a participar do projeto de pesquisa “Experiências autonomistas em saúde
mental: possibilidades de empoderamento” de responsabilidade das pesquisadoras Izabel Christina Friche
Passos e Regina Céli Fonseca Ribeiro, aluna de doutorado dela. Você tem total liberdade de escolher entre
participar ou não deste estudo.
Nosso objetivo é estudar as possibilidades e desafios de produção de autonomia e empoderamento em
experiências como as da oficina de rádio do Centro de Convivência São Paulo e a do Sapos e Afogados.
A pesquisadora Regina Céli Fonseca Ribeiro, será observadora participante, ou seja, vai participar e
observar a experiência em que você está envolvido, fará anotações sobre o que observou, para depois analisá-las
junto com os participantes que se interessarem. Os resultados finais farão parte da tese de doutorado da
pesquisadora e poderão ser apresentados em eventos da área e publicados em artigos científicos. Em nenhum
momento você será identificado. Seu nome só será revelado caso você deseje e autorize.
Como o estudo estará integrado ao seu cotidiano no lugar frequentado, os riscos que por ventura
existirem serão mínimos e eventuais. Mesmo assim, se você se sentir constrangido ou incomodado em participar
da pesquisa pode se desligar dela a qualquer momento. Caso você precise de algum tipo de assistência durante a
pesquisa, você será atendido no Centro de Referência em Saúde Mental ao qual está referenciado. A
pesquisadora responsável e a doutoranda Regina Céli Fonseca Ribeiro são responsáveis por indenizar eventuais
danos decorrentes desta pesquisa. Você não receberá nenhum pagamento para participar deste estudo, mas, se for
preciso, receberá de volta algum valor que tenha sido gasto para participar da pesquisa. Você vai assinar duas
vias deste TCLE – uma ficará com você e a outra será arquivada pela pesquisadora.
Qualquer dúvida que surgir poderá ser esclarecida a qualquer momento pelas responsáveis pela
pesquisa, e caso tenha dúvidas sobre aspectos éticos dessa pesquisa entre em contato com os Comitês de Ética
em Pesquisa COEP/UFMG e CEP/PBH.
Espera-se que através desta pesquisa seja possível contribuir para a melhor compreensão sobre o
processo de construção de autonomia e empoderamento pelos usuários de saúde mental e assim, ajudar a
fortalecer a Reforma Psiquiátrica brasileira, em especial, em Belo Horizonte.
Agradecemos sinceramente a sua colaboração.
Cordialmente,
____________________________________ __________________________
Profª Izabel Christina Friche Passos Regina Céli Fonseca Ribeiro
Doutoranda em Psicologia/UFMG
Departamento de Psicologia/FAFICH/UFMG
Fone: [email protected]
Fone: [email protected]

COEP/UFMG – Comitê de Ética em Pesquisa – UFMG - Av. Antônio Carlos, 6627, Unidade Administrativa II –
2º andar / Sala: 2005 - Telefone: (31) 3409-4592- e-mail: [email protected]

CEP/PBH - Comitê de Ética em Pesquisa – SMSA/PBH – Fone: 3277-5309 - Avenida Afonso Pena, 2336 - 9º
andar, Bairro Funcionários. Belo Horizonte – MG-Cep 30130-007
_________________________________________________________________________________
CONSENTIMENTO PARA PARTICIPAÇÃO EM PESQUISA
Eu, __________________________________________, declaro que entendi os objetivos, riscos e benefícios de
minha participação na pesquisa e concordo em participar como voluntário do projeto de pesquisa “Experiências
autonomistas em saúde mental: possibilidades de empoderamento”.
_______________________
Assinatura do voluntário Belo Horizonte, ____ de ______________de 201_.
__________________________________________________________________________________________
CONSENTIMENTO PARA PARTICIPAÇÃO EM PESQUISA PELO TUTOR/RESPONSÁVEL
LEGAL
Eu, __________________________________________, declaro que entendi os objetivos, riscos e benefícios da
participação, nesta pesquisa, de ____________________________________________, pelo qual sou
responsável legal, e concordo que o mesmo participe como voluntário.
_______________________________
Assinatura do tutor/responsável legal Belo Horizonte, ____ de ______________de 201_.
182

APÊNDICE B – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido - Autorização para divulgação do


nome

Eu,_________________________________________________, aceito ter meu nome divulgado nos


resultados finais que farão parte da tese de doutorado intitulada: “Experiências autonomistas em
saúde mental: possibilidades de empoderamento”, que também poderão ser apresentados em
eventos da área e publicados em artigos científicos. Entendo, depois de refletir sobre o assunto com os
participantes do Sapos e Afogados que, sendo ator de um coletivo de teatro, não há porque omitir meu
nome dos resultados da pesquisa, porque esta é uma forma de dar visibilidade ao meu trabalho de ator,
ao trabalho do Sapos e Afogados e de ser coerente com meu compromisso e do coletivo como um
todo, com a militância na saúde mental e com a desconstrução do estigma social relacionado à loucura.

Belo Horizonte, 07 de abril de 2017

Participante da pesquisa Pesquisadora: Regina Céli Fonseca Ribeiro


Doutoranda em Psicologia/UFMG
Fone: [email protected]

COEP/UFMG – Comitê de Ética em Pesquisa – UFMG - Av. Antônio Carlos, 6627, Unidade Administrativa II–
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APÊNDICE C – Texto da restituição apresentado ao Núcleo de Pesquisa e Criação Sapos e


Afogados60

A Chegada ao Sapos – orientação – 1º contato

Originalmente, a proposta do meu projeto era estudar a autonomia e o empoderamento


de usuários que frequentam uma oficina de rádio desenvolvida no CCSP, durante uma
disciplina do curso de Terapia Ocupacional da UFMG em parceria com a Rádio UFMG. Mas,
questões acerca de como uma oficina de rádio, inserida e vinculada a estruturas instituídas
como a universidade e o serviço, poderia abrir caminho para a produção de autonomia e
empoderamento e de como levar às últimas consequências a participação dos usuários na
construção do programa de rádio, considerando os atravessamentos representados pelo
processo ensino-aprendizagem, também inerente a essa prática, apontaram para a necessidade
de conhecer outra experiência autonomista já mais amadurecida e desenvolvida fora dos
serviços, na tentativa de construir um diálogo sobre a conquista de autonomia e
empoderamento em experiências que envolvem cidadãos em sofrimento mental dentro e fora
do âmbito da assistência, bem como sobre os limites destas experiências.

O Sapos e Afogados foi pensado então, por apresentar essas características – composto
por cidadãos em sofrimento mental e estar desvinculado da assistência.

No primeiro encontro com Juliana e Filipe fui muito bem recebida por ambos. Juliana
repetiu o que já havia me falado pelo telefone sobre o exercício de reflexão sobre a própria
identidade que tem sido feito pelo coletivo e que minha chegada seria importante para eles
poderem pensar sobre o próprio trabalho. Filipe se entusiasma ao saber que um dos marcos
teóricos do meu projeto passa pela Análise Institucional. Em 26/01/2016 o termo de
compromisso foi assinado por Juliana e eu fui convidada a participar da primeira reunião do
ano, no dia 27/02. O cronograma da minha pesquisa previa que as observações seriam
iniciadas em agosto, mas achamos que talvez eu pudesse frequentar algumas reuniões da
equipe antes.

Nessa primeira reunião estava presente a equipe de produção: Juliana (diretora), Filipe
(diretor artístico), Luciana-Japa Crazy, Priscila e Poliana.

60
Este texto foi lido integralmente para a equipe de produção e para os atores e seguido de várias horas de
conversa, cujo conteúdo foi apresentado ao longo da tese.
184

A identidade do grupo, sua presença nas redes sociais são o centro da discussão. A
particularidade de cada ferramenta ou mídia é apresentada por Priscila e cada membro da
equipe assume a responsabilidade por uma delas, da forma que se segue: Facebook com Japa
Crazy, Instagram com Juliana, Twitter com Filipe e o Portfólio no You Tube e Flickr com
Priscila. Priscila dá dicas para o uso de cada uma das mídias, do alcance de cada uma. A
apresentação sobre o Facebook foi a mais completa e, no meu ponto de vista, coloca na mesa
o momento atual do coletivo, manifestado por Juliana nos contatos iniciais: a identidade do
Sapos e Afogados.

O objetivo da nossa página é construir uma relação mais próxima com o nosso
público.
PERSONA: É importante lembrar que devemos imprimir a personalidade do grupo
no facebook. Ali na nossa página, independente de quem está postando, quem está falando
não é a Juliana, a Priscila, A Poli, a Cacá, a Anne ou o Filipe, é o Sapos e Afogados.
Para isso devemos construir a persona do Sapos. Essa persona tem uma linguagem e
um modo próprio de se comunicar nas redes sociais, essas características devem ser
respeitadas e estarem sempre coerentes em todos os posts, ainda que os temas mudem muito,
uma vez que isso facilita a identificação e consolida a nossa imagem. (Priscila)

O material continua apresentando dicas de uso da ferramenta, trazendo mais


informações sobre a “persona” do Sapos e Afogados:

O Sapos é um grupo de referência, importante e militante na luta antimanicomial,


não podemos esquecer o cunho político que estamos imersos, reportagens, notícias, trabalhos
em geral sobre o assunto podem e devem ser divulgados na nossa página.
[...] Falar de saúde mental pode ser muito pesado, mas o Sapos vem justamente para
lidar com o tema de uma forma leve e colorida, então podemos falar sobre papo sério, mas
sem pesar ainda mais o bagulho! (Priscila)

Parece-me que o Instagram e o Twiter também são mídias que privilegiarão o


relacionamento mais íntimo com seus seguidores, mas respeitando também a identidade do
Sapos. O You Tube e o Flickr vão divulgar o portifólio do Sapos e Afogados e,
consequentemente, postará apenas produções profissionais.

No momento dessa primeira reunião a captação de recursos para o espetáculo


“Caminho” junto ao SESC Palladium estava sendo negociada, com boa expectativa. Um
musicista, André Geraldo, foi convidado para fazer a trilha sonora, e sua esposa, Amanda, que
é historiadora foi convidada a trabalhar a história do Sapos a partir do acervo existente e de
registros que serão feitos de agora em diante.

Começo a pensar que ao trabalharem a identidade ou persona do Sapos, um caminho


inevitável talvez seja a passagem do lugar de instituinte para o de instituído, inerente a toda
instituição e o Sapos tem se configurado como uma instituição. Quando Priscila diz que não
185

são as pessoas que falam, mas o Sapos, já há um indicativo do que estou falando. Talvez uma
pergunta sobre a qual devo me debruçar na análise seja: que tipo de instituição é o Sapos e
Afogados?

Sou apresentada para a equipe. Falo brevemente sobre meu projeto. Juliana considera
que devo começar as observações agora, porque assim poderei acompanhar o processo de
criação atual. No segundo semestre não sabe se terei esta oportunidade. Concordo e me
disponho a começar a observação, introduzindo a presença de Kelly como pesquisadora
participante no meu estudo, a partir da próxima semana. A princípio vou observar os ensaios
com Filipe na sexta-feira, participar das reuniões da equipe de produção e observar os ensaios
com Juliana no sábado. Kelly estará presente aos sábados. Uma reflexão sobre a questão ética
desta pesquisa em contraposição ao que comumente encontramos em outras pesquisas
acadêmicas e nas exigências da legislação que rege pesquisas envolvendo humanos, será
importante. Se considerarmos a legislação vigente, que desconsidera as particularidades das
pesquisas das áreas humana e social, o procedimento metodológico seguido aqui foi
subvertido desde já, uma vez que aqui, o respeito ao sujeito da pesquisa não está garantido
pela assinatura prévia do TCLE antes de se iniciar os procedimentos de pesquisa, mas
exatamente após a entrada no campo e a melhor compreensão, por todos os envolvidos, do
que seja uma observação participante, em ato. Sei que posso me deparar com um não em
relação à autorização de utilização dos dados coletados durante a observação, vindo de
qualquer um dos ‘sujeitos’ da pesquisa, mas esse é o objetivo da restituição nesse tipo de
pesquisa: submeter e discutir com os interessados o que foi levantado. Assim, o “contrato” de
participação na pesquisa, é construído e reconstruído a cada encontro no campo e a cada
momento de restituição.

O que anotar? Como anotar?

Estas são perguntas importantes para o meu processo de acompanhamento da criação


deste espetáculo. Pego novamente meu diário de bordo, minhas anotações e percebo que elas
diminuem drasticamente durante o passar dos dias, dos encontros com o grupo. As anotações
diminuem não por diminuir o "assunto" mas justamente porque “as afetações são tão intensas,
a cada dia, que vai ficando cada vez mais difícil anotar, racionalizar, registrar, a não ser pelo
viés do afeto, do corpo que vibra, do coração que sente e bate mais sensível e forte a cada
experiência, a cada encontro” (Kelly).

Cadê eles?
186

Já tinha recebido alguns de seus participantes e assistido sua atuação em espaços de


ensino na UFMG – Edmundo, Juliana, Lydia, Ludmila – e vinha convivendo com Emílha, já
há algum tempo, nas atividades do Programa de Extensão em Atenção à Saúde Mental
(PASME) na UFMG. Conhecia pouco do Sapos e Afogados quando cheguei e não procurei
muitas informações além das que me pareceram necessárias para justificar a inclusão do
coletivo como um dos campos da minha pesquisa – o fato de serem um coletivo autônomo,
cujos atores são cidadãos em sofrimento mental, desvinculado dos serviços de saúde mental
de Belo Horizonte. Minha intenção era buscar alguma informação à medida em que me
parecessem necessárias, mas não posso deixar de dizer que fui para a primeira reunião com os
objetivos do meu projeto em mente:

· Objetivo geral: Analisar as possibilidades e os desafios de produção real de


autonomia e empoderamento em experiências de caráter autonomista no campo
da saúde mental.

· Objetivos específicos: analisar duas experiências de caráter autonomista no


campo da saúde mental: uma oficina de rádio e um grupo de teatro; analisar os
atravessamentos institucionais e de poder nas duas experiências; identificar a
capacidade autogestiva dessas experiências; analisar a implicação dos
diferentes atores envolvidos na construção destas experiências, em especial da
própria pesquisadora; contribuir para o debate sobre o empoderamento e
autonomia na Reforma Psiquiátrica brasileira; contribuir para o debate sobre o
empoderamento e autonomia no âmbito das políticas públicas de saúde mental;
contribuir para o debate acerca da formação em saúde mental.

Junto desses objetivos também trouxe comigo, fresca na memória, toda a constatação
teórica de que a participação dos usuários da saúde mental na produção de conhecimento
científico ainda é muito pequena no Brasil, que a construção da autonomia, do
empoderamento e a horizontalização das relações no campo da saúde mental continua sendo
um desafio cotidiano, experimentado semanalmente na oficina de rádio do CCSP.

Assim, a primeira questão que me ocorreu ao participar da primeira reunião no Sapos


e Afogados foi: Cadê eles? Onde estão os atores? A reunião é só com os profissionais e
estagiários?
187

Aos poucos fui entendendo mais sobre o modo de funcionar do Sapos, fiquei sabendo
que havia um ator que participava das reuniões de produção, mas que não estava presente há
algum tempo, O Elon Rabin, que os demais atores participam de diferentes momentos da
produção que acontecem fora dessa reunião, como a aquisição de materiais para os
espetáculos e a discussão sobre a questão financeira do coletivo. Além disso, fui
compreendendo um pouco mais sobre os diferentes momentos e espaços de um grupo de
teatro, como a produção, a criação e o espetáculo em si; que atores de grupos de teatro não
costumam participar da produção, o que os protege, de certa forma, do stress inerente a essa
atividade e que no Sapos, em especial, isso é importante devido à fragilidade emocional dos
atores. As dificuldades ou o sofrimento mental de cada um dos atores não é negado porque
deixou-se o vínculo com a assistência, mas também não é o ponto de partida das relações.
Parece tudo muito contraditório porque o ponto de partida para a criação e existência do
coletivo é exatamente o fato de todos serem loucos. A experiência do Sapos teve origem
dentro de dispositivos substitutivos ao manicômio vinculados à rede de saúde mental de BH,
um dos critérios para atuar no Sapos é ser louco/diagnosticado. Mas, por outro lado, no
cotidiano do coletivo, o ponto de partida para as relações não é o diagnóstico, que por sua vez
também não é negado. É o diagnóstico entre parênteses do Baságlia.

No meu primeiro encontro com os atores, me apresento e falo um pouco sobre meu
projeto. Edmundo fala comigo: “nós somos uteis e não somos uteis. Você vai ver que somos
bons artistas, tanto no serviço como fora”. Os ensaios começam sempre com uma roda em que
todos os presentes participam, meditam em pé, trocam ideias e de onde pode surgir um tema
ou “palavra do dia” que inspira toda a dança e movimentos. Algumas vezes Juliana joga um
aroma em todos nós, que depois fiquei sabendo ser um chá. As primeiras palavras sobre o
espetáculo veem de Juliana: “travessia, dança e pedras”. Edmundo completa: ‘caminho
repleto de cruz, caminho repleto de morte, caminho repleto de amor”. E Juliana continua:
“quando falamos de travessia, estamos falando desse movimento. A palavra do dia é cisco”.
Passam para a meditação em pé, com a leitura do texto Voltar à Terra, do livro “Meditação
andando - guia para a paz interior”, de Thich Nhat Hanh:

Juliana continua chamando todos a se concentrar no espaço e sons ao redor enquanto


caminham. "Aceitar barulhos, água, trovão, chão rangendo, som. Quem é esse que caminha?
Qual história ele traz? E a gente vai caminhando com as pedras." Nesse dia a sala estava
muito quente, chovia muito e goteiras começaram a cair.”
188

Luciana é solicitada a pensar na limpeza do movimento, quando tiver a partitura


pensar em um pas de deux com duas mulheres e com dois homens.

O grupo é chamado a ensaiar o prólogo do espetáculo, onde todos começam de costas


para o público e com pedras na mão. Luciana sugere que imaginem o que estão mostrando
para o público ao se movimentar de costas para ele. Depois, em duplas, a proposta é tentar
perceber o que “muda no meu caminho quando estou com outra pessoa, quando meu corpo
leva o corpo do outro e quando o outro leva meu corpo”.

Juliana conta que algumas imagens que trouxe hoje foram inspiradas em oficinas dos
atores com Filipe observadas por ela, outras ela trouxe como provocação.

Edmundo sugere uma imagem em que Ludmila desamarra a pedra que Vivi arrasta
amarrada no pé e saiam juntas.

Juliana pede que tragam “fotos antigas, que dizem da nossa travessia, dessa trajetória”
inspirada em postagens de Jaqueline no Facebook, que depois foram retiradas por ela mesmo.
Para Vivi pergunta “que mulher é essa? Como podemos transformar? ”

Nesse primeiro dia de observação não soube o que dizer na roda final. Eram muitas
informações. Talvez a questão principal fosse exatamente o que observar ou como observar.
Precisava de um tempo para processar o que vi.

No segundo encontro sou apresentada a eles novamente, por Filipe. Participo da roda
inicial e do aquecimento. Eles se apresentam para mim e seguem mostrando fotos que
trouxeram para o ensaio, documentos de identidade ou contando de sua cidade de origem, da
origem dos nomes de família, do início da experiência com o teatro. Conversam um pouco
sobre a herança paterna e materna presente nos sobrenomes. Filipe os convida para o trabalho
corporal, vocal e de construção do roteiro. Edmundo acha que precisa ter um texto, “será que
vai ter uma pedra no meio do caminho? A pedra é menos que o mundo, mas incomoda”.

Durante o intervalo Rogério me pergunta como é a pesquisa - explico o projeto, meu


estudo sobre autonomia e empoderamento, a oficina de rádio e a sugestão para que eu
observasse outra experiência autonomista. Daí cheguei ao Sapos e Afogados e vou fazer uma
observação participante, anotar, escrever um texto sobre o que observei, mostrar prá eles
verem se concordam, escrever, observar. Vivi chega e escuta, depois a Cida chega também.
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O momento inicial é de preparação, provocação e aquecimento. Parece um ritual, de


respeito ao trabalho que vai começar. Normalmente acontece em roda e é o início do processo
de concentração, um voltar-se para dentro, antes da entrega ao personagem, ou melhor, ao ato
em si. É um tempo de meditação, “meditação em pé”, que pode ser conduzida a partir de
algum texto ou mantra ou ainda de uma proposta de palavra para o dia.

Ensaio – trabalho corporal – vocal – criação

Durante o ensaio acontecem trabalhos corporais e vocais de onde surgem os


argumentos para as cenas do espetáculo. Aos poucos vou entendendo como se dá o processo
de criação. Parece começar aí. Nos movimentos inspirados pela palavra do dia ou pelos textos
produzidos entre um ensaio e outro ou ainda pelas conversas em torno das fotos trazidas.

Mas, não entendo nada de teatro. E as perguntas que me veem giram em torno do
porquê dessa peça, qual o nome dela, Caminho ou Caminhos? Como as cenas vão se tornar
uma peça? A princípio eu procurava por uma peça de teatro com um roteiro pré-estabelecido a
ser seguido. Me pregaram uma peça! É um espetáculo de dança-teatro. A proposta do
espetáculo não estava pronta, ela seria construída coletivamente entre os atores e todos os
participantes do coletivo.

Imagens vão surgindo e compondo o que todos ali chamam de partitura, termo que
para mim, até então, era sinônimo de texto musical. Assim como não entendo nada do texto
musical, também não conseguia entender como aquelas “imagens” corporais se tornariam
cenas e ganhariam sentido, até perceber que a costura entre cada cena se dava pelo olhar dos
diretores e dos próprios atores, num movimento contínuo. A construção é coletiva, numa
relação de muita confiança entre todos e sempre a partir das deixas ou de sutilezas trazidas
pelos atores. O que é da ordem do delírio atravessa as cenas, mas não se cristaliza como
“doença”, traduzindo-se em ato criativo capaz de produzir encantamentos em quem assiste.

Momento final de feedbacks e encerramento dos trabalhos do dia

Nesse momento o coletivo avalia a produção do dia. Os diretores, com admiração e


afeto, dão suas dicas, fazem suas críticas, mas antes de tudo, elogiam sempre. E
posteriormente, pudemos observar como esta postura faz diferença na segurança que os atores
adquirem para entrar em cena. Eles mesmos reconhecem o quanto é cuidadosa e respeitosa
essa relação, produzindo saúde, prazer e, para alguns, reconhecimento profissional.
190

Essa questão, do reconhecimento profissional é uma das que me chama atenção, em


especial, a partir de questionamentos feitos por Ludmila em um dos encontros, onde se
pergunta o que é ser ator, expressando sua posição quanto ao fato de não se sentir atriz,
referindo-se à Vivi, Jaqueline, que têm formação teatral anterior ao Sapos. Em uma das rodas
de conversa anteriores aos ensaios Edmundo também traz uma fala nessa direção: “descobri
que não temos amigos, só conhecidos. A loucura vem da solidão. Família, acham que a gente
é perigoso, vai matar todo mundo. Aí vem a propaganda, que é a alma do negócio... A loucura
se resume a uma solidão muito grande dentro da gente e um chão muito árduo prá trilhar. Eu
nunca vi um amigo que curou, que trabalha. O Sapos não conta, porque é alternativa. Juliana
chama atenção para o trabalho que fazem no Sapos e os desdobramentos dele. 'A oficina que
vocês dão no Freud Cidadão vai ser aqui no Galpão porque o pessoal aqui tem interesse na
forma como vocês ensinam. Não posso falar de outro lugar, posso falar dessa parceria com o
Cine Horto. Edmundo continua: “achava que na cidade ia ter um lugar onde todos iam poder
falar, trocar o que têm em comum, o que é teatro, é assim, é assado, quem é a favor, quem é
contra o teatro, as tribos podem falar. Juliana lembra ao Edmundo que outro lugar onde ele
pode fazer isso é no Espaço Luiz Estrela.

Fico impactada com isso porque desde o início me chamou muito a atenção a
capacidade de entrega às cenas propostas para ela, e de transmitir quase de imediato, uma
interpretação tão verdadeira que me fazia esquecer que estava no campo teatral, o que para
mim deveria ser o parâmetro para qualificar um bom ator/atriz profissional. Essa impressão
também é transmitida pelos demais atores, o que me traz à tona depoimentos comuns em
entrevistas com atores sobre a realização de 'laboratórios' antes de se entregarem a um
personagem. O que me parece é que o Sapos é o laboratório, ou seja, o processo de criação
parece se dar a partir da própria experiência dos atores com a loucura, ou da capacidade que
essa experiência traz (ou seria privilégio? Ou necessidade?) de criar a própria realidade. Em
um dos dias de trabalho sob condução de Japa Crazy, onde experimentaram a técnica de
improvisação chamada Viewpoints, pude observar como os atores se entregaram aos
comandos dela gradualmente, construindo improvisações. Ainda não consegui encontrar a
palavra que melhor descreve esses momentos: entrega, concentração, envolvimento. É
maciço! É um dom da psicose, ao se colar no Outro como objeto? Eles se transportam de tal
forma para o que está sendo conduzido, a proposta é incorporada por eles de tal forma que
fazem parecer cenas ensaiadas inúmeras vezes e não uma improvisação. São experts na arte
de criar, mesmo que isso às vezes traga algum tipo de sofrimento associado.
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Autonomia em ato

Durante os ensaios, é possível observar o processo de criação do coletivo, que


acontece a partir de pistas que os diretores recolhem dos atores e transformam ou indicam
como possibilitadoras de uma cena original. Os atores também criam ou sugerem
concretamente, a partir de suas experiências ou desejos. Aqueles que já têm alguma formação
no teatro, prévia ao Sapos, parecem ter mais segurança para intervir, criticar e sugerir uma
cena ou mudança de alguma outra, como Edmundo, Vivi e Jac. Os demais são tão criativos
quanto, mas parecem ainda submetidos à direção; não percebem o quanto eles ganham
'autonomia' durante a representação. Basta assistir suas atuações nos ensaios ou nos vídeos
que circulam pela internet para identificar a qualidade do que fazem.

Os diretores parecem pontes que ligam as pistas, ordenam as pistas ou o que emerge
delas como criação, conduzindo a um sentindo: Dos Delírios ao Dê Lírios.

E é nesse processo de criação que parece emergir uma autonomia, que me parece
semelhante ao processo de produção de autonomia proposto por Castoriadis.

Este autor trabalha com a ideia de que a autonomia se produz na práxis e na


coletividade. Ele confere à autonomia um caráter individual e outro coletivo. Mas, mesmo a
autonomia individual só é possível se for construída na relação com o outro, de onde o sujeito
vai buscar elementos para se constituir, até que seja capaz, pela reflexividade, de formar uma
ideia própria de si mesmo.

Meu primeiro insight a esse respeito aconteceu no ensaio do dia 18/03, sob condução
de Filipe e que vou transcrever abaixo:

Jac dançando Rolling Stones (I can't get no): 'não sei se nasci de uma pedra ou se uma
pedra nasceu de mim; se nasci de Mick Jagger ou Mick Jagger nasceu de mim'. Minha avó era
Ernesta Bertolini, do lar. Meu avô Manoel Gonçalves Lima, mestre de obras. Coloquei meu
nome Jac Bertolini em homenagem a ela'. Todos entram dançando e ao final jogam pedra
nela. Jaqueline sugere sairem correndo: 'no ocidente as mulheres correm, no oriente é que elas
morrem. As mulheres aqui não caem e morrem'. Cansada.

Filipe: vc falou que é fumante... - Jac: atrapalha, né - você precisa buscar estratégias
para poupar sua energia, fala pausada, mais pausas, sem as pessoas saberem que está cansada.
Lídia, balança esse cabelo lindo! Emilha, solta esse quadril, tem um quadril aí!
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Jac: não sei se falo. Emilha: acho que deve. Essa coisa de família é legal. As pessoas
vão lembrar das suas avós. Filipe: importante para as pessoas saberem que você escolheu o
sobrenome feminino da família, sua trajetória.

Jac: entrar Mick Jagger faz assim com a peça (movimento ascendente com os braços),
tá tudo muito assim, morno.

Filipe: e a parte da pedra, da mulher que sai correndo, que não se deixa atingir.

Emilha: traz frases com pedra e lê - Jac: acha que está muito grande - Filipe: pede a
ela que espere, porque “vamos construir a partir do material que ela trouxer”. Emilha, é
importante você saber a frase final e aí improvisa as outras.

Emilha: 'atire a primeira prece quem nunca errou'. Pede ajuda para o trabalho
corporal; 'tô sem saber o que fazer com meu corpo'.

Filipe: vamos mexer esse corpicho antes de ver o texto. Você pediu umas aulinhas de
dança. Filipe conduz Emilha numa dança pessoal.

Observo que Emilha se solta mais quando mexe o quadril.

Filipe propõe uma 'Dança pessoal' no escuro! Emilha: difícil demais!' Filipe: você
melhorou demais! Você ficava aqui (mostra os ombros encolhidos, curvados). Emilha: é, mas
é isso mesmo. Filipe: é um processo, todos estamos em processo. Passam a cena mais uma
vez - Filipe sugere que ela dance até se ajoelhar no chão, de cabeça baixa, aí levanta o tronco
e faz a fala - Emilha pergunta se a música vai ser essa. Filipe: tem uma pessoa fazendo a
trilha. Ele tem essas referências, mas não sei como vai ser. Vai entreagr no início de abril.
Emilha: eu sou pedra, pedrinha, pedregulho, pedreira...... Filipe: gostei demais! Emilha:
fiquei mais independente

Filipe: amanhã a gente apresenta prá Ju o que a gente construiu até aqui. Você tem
material Emilha, você já trouxe coisa nova - Emilha: eu precisava disso tudo por escrito -
Filipe: você vai ter.

Lídia : dança com o véu que ela mesmo trouxe - Filipe vai trazer o filó - tem a
memória dela com o filó - Lidia: esse aqui tá pequeno - Filipe pede apenas um pouco mais de
delicadeza - Lidia concorda e acha que foi conseguindo isso mais para o final - Filipe troca a
música - você trouxe movimentos que você fez da 1ª vez, no ano passado, na 1ª oficina que eu
dei no Sapos, dançou com o filó há 7-8 meses atrás - é incrível, tem uma memória corporal
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fantástica - Lidia pede a mesma música - Filipe: a música diferente é para você trabalhar a
possibilidade do seu corpo, você tem isso - Lidia quer experimentar entrar com o véu -
Filipe: experimenta o peso, tamanho, textura, tempo que ele cai quando é jogado e como afeta
seu corpo quando cai.

Observo aqui um processo construído coletivamente, marcado pelas referências


individuais, onde os atores e as cenas vão ganhando consistência, segurança e independência.
A cena do ator talvez seja o ápice do processo de autonomia.

A princípio, o discurso do outro é que define a existência do sujeito, fala pelo sujeito,
define para ele o que é a realidade e por onde passa seu desejo. O sujeito então, se apropria do
discurso do Outro e o ressignifica, de acordo com sua própria verdade, que está sempre
relacionada a uma verdade que o ultrapassa, porque está enraizada na sociedade e na história.

Autonomia individual e autonomia social são dois lados de uma mesma moeda;
separá-las apenas nos ajuda a compreender a constituição da autonomia, uma vez que uma
sociedade autônoma é formada por sujeitos autônomos e são eles que constroem o projeto,
político e coletivo, de uma sociedade autônoma (Souza, 2000; Passos, 2006). “A autonomia é
um trabalho intersubjetivo, coletivo e social que resulta da possibilidade de construção de
instituições que favoreçam a autonomia da própria sociedade” (Afonso, 2011, p.459). A
autonomia social pode ser vista em uma sociedade que é capaz de auto instituir, de forma
explícita e consciente, suas próprias leis e seus modos de funcionar, com liberdade e
reflexividade (Castoriadis, 1998; Souza, 2000), sendo essas últimas "objetos e objetivos de
sua atividade instituinte" (Castoriadis, 1998, p.7). Isso só é possível numa sociedade
autônoma, cujos sujeitos autônomos podem questionar suas instituições e, em uma atividade
instituinte, produzir novos sujeitos autônomos. (Castoriadis, 1993, 1998)
Um “indivíduo autônomo" não significa um santo nem significa um homem
perfeito; significa simplesmente um homem capaz de criticar seu pensamento, suas próprias
ideias. A autonomia consiste em controlar os desejos e saber que os tem. Quando falamos de
autonomia refere-se a algo que é análogo à capacidade de criticar seu próprio pensamento, a
faculdade de refletir, de retornar sobre o que alguém pensou e ser capaz de dizer: "penso isso
porque me convence". Tais indivíduos não podem existir se a sociedade não os produz; ou
seja, se não os ensina a serem verdadeiramente livres no sentido descrito, uma vez que
somente tais indivíduos podem configurar uma sociedade autônoma. Está aí a ideia geral
(Castoriadis, 1993, p. 6-7, tradução da autora).
A autonomia coletiva pressupõe uma sociedade onde se depreende a existência de
garantias político-institucionais e o acesso a informação suficiente e confiável que conduza à
possibilidade efetiva de participação em processos decisórios, em igualdade de condições.
(Souza, 2000).

Cuidado, acolhimento, solidariedade, compartilhamento – sobre as relações no Sapos e Afogados

“Em discussão teórica com Regina, no dia 13/05, sexta-feira, ainda de ressaca após o
afastamento da presidenta do nosso país de forma abrupta e incoerente, discutíamos sobre a
autonomia, questão central do trabalho de doutorado da Regina e de como observávamos
estes aspectos em nossas observações e convivência com o grupo. Relatei uma situação que
vivenciei nos bastidores do espetáculo, no dia 08/05, quando levei um própolis sem álcool e
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um chá de hortelã para alguns atores que apresentaram início de gripe no dia anterior.
Edmundo interessou-se por tomar o própolis e eu disse a ele que própolis era um anti-
inflamatório natural. Imediatamente ele disse que não podia tomar anti-inflamatórios porque
era alérgico. Eu e Luciana Mendes informamos a ele que não se tratava de um medicamento
alopático e sim de um produto natural, feito por abelhas. Ele foi indagado se queria ou não
fazer o uso, mas ao final aceitou. Entretanto, no meio da apresentação, quando eu coordenava
os bastidores junto a equipe do grupo, ele me chama discretamente em um local mais
reservado e me diz nervoso que sua boca estava inchada por causa do própolis. Peço para ver
com calma em um local mais iluminado e vejo que não há inchaço. Imediatamente informo
isso a ele e peço para ele se acalmar porque parecia estar tudo bem. Ele diz não saber se
conseguiria finalizar o espetáculo. Eu o encorajo e digo que sim. Ele iria conseguir. Ele confia
em minha fala. Pede desculpas e diz que a culpa não é minha. Que ele tomou porque quis.
Naquele dia, Edmundo estava aparentemente mais agitado. Disse que havia passado a noite no
SUP e que não estava muito bem. Comunico ao Filipe e no fim da peça, que ele fez até o
final, comunico também a Juliana e a Lu Mendes o ocorrido. Naquele momento acredito ter
conseguido vivenciar plenamente a sensação da doença estar em parênteses, como nos disse
Basaglia. Eu não me "preocupei" com o diagnóstico de esquizofrenia paranóide e sim com o
ator que devia finalizar o espetáculo maravilhosamente, como havia feito o tempo todo”
(Kelly).

Parceria, coparticipação

“Esta foi uma questão discutida entre mim e Regina algumas vezes. A maneira como
nós fomos convidadas a participar da construção e execução deste espetáculo. Viramos
sapônicas. Lembro a citação de Deleuze e Guatarri no Anti-édipo quando eles dizem que se
misturaram tanto que já não era possível dizer quem era quem. Fomos absorvidas pela equipe.
Participamos. Fomos contra-regras. Auxiliamos nos camarins, com o figurino, com os
convidados, com o lanche, com a organização dos objetos cênicos, com a organização dos
bastidores, com as orientações dos atores, os "puta-merda" , seguimos religiosamente. Nos
misturamos a tal ponto que ocorreu duas vezes, uma com Regina e uma comigo, a sensação
de estarmos "sozinhas" nos bastidores em determinados momentos. Da minha parte posso
dizer que no último dia do espetáculo eu fiquei realmente sozinha atrás do palco. Tive o
auxílio da Poliana e do Filipe no momento em que teríamos que produzir a chuva, com
195

exceção desse momento, coordenei todas as outras ações. Fomos convidadas a entrar no palco
e receber os aplausos do público. Fizemos parceria. Participamos” (Kelly).

O colocar a doença entre parênteses é outro aspecto que será importante retomar por
nós, porque parece ser o que marca as relações. O ponto de partida não é o diagnostico ou o
transtorno mental.

Episódio da água no palco traz de volta a questão do cuidado no coletivo Sapos e


Afogados, que já apareceu anteriormente quando da reflexão sobre a participação dos atores
nas reuniões da produção. Sem dúvida, a forma que o técnico apresenta o problema
provocaria medo em qualquer pessoa. A preocupação demonstrada por todos nós em relação
aos atores e à forma como receberiam ou seriam afetados por aquela informação seria a
mesma se não fossem atores diagnosticados? Depois de passado o momento inicial, de
providenciada a solução para o problema, de ver a resposta e a forma como cada um dos
atores lidou com a questão, como responderíamos à questão: Há necessidade de protegê-los
de determinadas preocupações?

Oficina Se delirar delirou!

“Participei apenas um dia dessa oficina. E como não poderia deixar de ser, fiquei
extremamente emocionada com os relatos que ouvi dos atores do grupo, sobre seu próprio
adoecimento, pelo profissionalismo pelo qual conduziam as atividades da oficina e pelo
retorno do público que participou que demonstrou bastante satisfação com a experiência e
com o aprendizado proporcionado a partir das atividades propostas pelos atores. Percebi
autonomia e empoderamento nesta atividade. Os atores criavam, produziam as cenas e
propunham aos participantes que executavam junto deles. Edmundo relatou emocionadamente
a sensação terrível que vivenciou em aguardar na fila do eletrochoque para ser o próximo a
receber esta intervenção, quando esteve internado em hospital psiquiátrico. Rogério disse que
estava na faculdade, era professor quando teve o primeiro surto de esquizofrenia e de como
sua vida se transformou a partir deste episódio e de como se viu impedido de realizar suas
atividades e também a solidão. Alessandra diz que ficou sete anos sem sair do próprio quarto,
com quadro de desnutrição absoluto. Vivi diz de sua vida "normal" e de ter ocupado cargo de
gestão na política de Belo Horizonte antes do surto psicótico que acredita ter tido após a
morte de um filho. Todos ressaltam como a experiência com o grupo de teatro Sapos e
Afogados os trouxe de volta a possibilidade de viver de forma mais leve, mais alegre, mais
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comprometida com a criatividade e a potência. "Hoje eu sou uma louca feliz" é o que diz
Alessandra ao final de sua fala” (Kelly).

Empoderamento
Estratégia que permite que as mulheres, e outros grupos marginalizados, aumentem
seu poder, isto é, que tenham acesso ao uso e controle dos recursos materiais e simbólicos,
ganhem influência e participem na mudança social. Isto inclui também um processo no qual
as pessoas tomem consciência de seus próprios direitos, capacidades e interesses, e de como
estes se relacionam com os interesses de outras pessoas, com o objetivo de participar desde
uma posição mais sólida na tomada de decisões e estar em condições de influir nelas
(Murguialday, Armiño & Eizagirre, 2000, p.2, tradução da autora)

A concepção de autonomia, inspirada na construção de Castoriadis encontra-se com a


noção de empoderamento, por meio da reflexividade e participação que conduz processos
políticos emancipatórios. A autonomia se constrói numa práxis coletiva e envolve uma
reflexividade que pode gerar uma postura decidida dos sujeitos em direção à transformação
das relações de poder o que tornaria possível considerar que a autonomia empodera.
Entendemos então, que sujeitos empoderados são sujeitos autônomos, que reassumem o poder
sobre sua própria vida e sobre as decisões e escolhas inerentes a ela e necessárias a uma
mudança social.

Pressupõe horizontalização nas relações de poder, exercício de poder com o outro,


espaços dialógicos de co-gestão e escuta, numa

perspectiva positiva dos sujeitos e de suas potencialidades, onde eles deixam o lugar
de objetos da intervenção para assumir o de sujeitos da sua própria história, em detrimento da
ênfase nas limitações relacionadas a um provável diagnóstico ou deficiência, exigindo do
profissional uma disposição ao trabalho em parceria com os usuários, numa relação não
hierarquizada e na qual abre mão do poder supostamente conferido pelo conhecimento
técnico e científico, para reconhecer o saber advindo das experiências culturais e de
sofrimento psíquico dos usuários.

O que empodera? É preciso o aval de um curso profissional para se autorizar atriz? Me


recordo do mesmo tipo de colocação que o Pacífico fez comigo, quando sugiro uma formação
para os usuários da rádio. " Mas o que eles estão fazendo é formação! O pessoal da rádio lá, a
visita ao estúdio, o uso dos equipamentos. Na prática." É práxis! Na práxis se conhece e se
produz conhecimento. Talvez o Pacífico estivesse falando dele mesmo: um historiador que faz
rádio. Mas o que foi determinante para que se autorizasse nesse lugar? O que será
determinante para que cada ator do Sapos se autorize nesse lugar? Um diploma? Ou talvez ela
se apropriar do que sabe, perceber que quando atua se apropria de forma tão intensa do que
sabe, seja com relação ao teatro ou à própria experiência de vida, que isso já faz dela uma
atriz.

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