Dissertação - Michelle Oliveira

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

MICHELLE SANTOS SENA DE OLIVEIRA

Efeitos do apagamento da exceção na contemporaneidade

Belo Horizonte
2017
MICHELLE SANTOS SENA DE OLIVEIRA

Efeitos do apagamento da exceção na contemporaneidade

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Psicologia da Faculdade de
Filosofia e Ciências Humanas da Universidade
Federal de Minas Gerais como parte dos requisitos
para a obtenção do título de Mestre em Psicologia.

Área de concentração:
Estudos Psicanalíticos

Linha de pesquisa:
Conceitos Fundamentais em Psicanálise e
Investigações no Campo Clínico e Cultural

Orientador:
Prof. Dr. Antônio Márcio Ribeiro Teixeira

Belo Horizonte
2017
AGRADECIMENTOS

Ao Prof. Dr. Antônio Márcio Ribeiro Teixeira, pelo acolhimento do meu projeto de
pesquisa e pela orientação precisa e atenciosa.
Ao Prof. Dr. Gilson de Paulo Moreira Iannini, pelo rigor da sua leitura, por suas
contribuições no exame de qualificação, e também por aceitar o convite para compor a banca
examinadora.
À Prof.ª Dr.ª Ludmilla Féres Faria, pelas ricas interlocuções que me colocaram a
trabalho na elaboração do projeto de pesquisa dessa dissertação, e por aceitar o convite para
compor a banca examinadora.
Ao Prof. Dr. Guilherme Massara Rocha, por aceitar o convite para compor a banca
examinadora.
Aos colegas de mestrado, em especial Cristiane Barreto, Maíra Moreira, Luciano
Pacheco, Samir Honorato, Marcela Rêda, Júlia Carvalho e Thaís Britto, companheiros
indispensáveis que compartilharam o riso que deu o tom de leveza a esse percurso.
À Mariana Clark, que, além da cuidadosa revisão do texto, me transmitiu algo de seu
encanto pela escrita.
Ao Henrique, meu parceiro na vida, que faz seu apoio e seu amor presentes
cotidianamente.
Aos meus pais, pelo afeto e pela aposta nas minhas escolhas.
Aos meus irmãos, pela amizade.
À minha família e aos meus amigos, pela presença carinhosa.
À Cristina Drummond, pela escuta.
RESUMO

Oliveira, M. S. S. (2017). Efeitos do apagamento da exceção na contemporaneidade.


Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal
de Minas Gerais, Belo Horizonte.

O presente estudo tem como objetivo elucidar os caminhos e os efeitos do apagamento da


exceção na contemporaneidade sob o viés de uma leitura psicanalítica. Apoiados na constatação
da predominância de práticas avaliativas que incidem nos diversos domínios da vida
contemporânea nos enveredamos na investigação da secularização do mundo que repercute na
atual forma de laço social, esta que não se fundamenta em uma exceção. O regime político da
Antiguidade se baseava em uma exceção que não se submetia às leis que prescrevia. Na
modernidade ocorre o apagamento desta função de exceção, apagamento este promovido pelo
desenvolvimento da ciência moderna e do capitalismo. Uma nova forma de organização do
discurso é proposta e é orientada pelo saber do cientista utilitário. Do discurso do mestre antigo
ao discurso do mestre moderno, universitário e capitalista, o saber obtido pelo cálculo da
utilidade e do valor passa a orientar as decisões políticas e individuais, antes orientadas pela
tradição. Diante dessa realidade, a administração burocrática se direciona aos sujeitos visando
homogeneizá-los e submetê-los ao ideal de transparência moderno, garantido pelo saber
extraído e decodificado pelos instrumentos de avaliação. O reino da norma e do contrato ocupa
o lugar do antigo reino da lei. No mundo moderno não há atividade ou sujeito que não esteja
submetido ao imperativo do tudo-saber. A psicanálise recolhe os efeitos desse laço social
contemporâneo, mas, de forma distinta do discurso dominante, oferece um outro destino ao
íntimo, ao que é opaco do sinthoma e ao que do gozo não pode ser contabilizado e
homogeneizado.

Palavras-chave: Psicanálise. Secularização. Modernidade. Capitalismo. Utilitarismo.


ABSTRACT

Oliveira, M. S. S. (2017). Effects of the erasing of exception on contemporaneity. Master's


Thesis, Psychology Post-graduation Program, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo
Horizonte.

The present study aims to elucidate the paths and effects of the erasing of exception on
contemporaneity through a psychoanalytical perspective. Based on the acknowledgment of the
predominance of evaluation practices that influence many areas on contemporaneous life, we
engage on the investigation of the secularization of the world that impacts on the current social
bond formation, that is not substantiated on an exception. The politics regime of Antiquity was
based on an exception that was not subjected to the laws prescribed by itself. The erasing of
this exception function occurs in modernity, caused by the development of modern science and
capitalism. A new discourse organization is proposed and it is guided by the knowledge of the
utilitarian scientist. From the ancient master’s discourse to the modern master’s discourse,
academic and capitalist, the knowledge obtained by the measure of the utility and of the value
starts orienting political and individual decisions, previously guided by tradition. Before this
reality, the bureaucratic administration directs toward the subjects, striving to homogenize and
subordinate them to the modern ideal of transparency, guaranteed by the knowledge extracted
and decoded by the evaluation apparatus. The realm of norm and contract supersedes the ancient
realm of law. In the modern world, there is no activity nor subject that is not submitted to the
behest of the all-knowing. Psychoanalysis gathers the effects from this contemporary social
bond, nonetheless, in a distinct form from the dominant discourse, offers another destiny to
intimacy, to the opaque of the sinthome and to that of jouissance that can not be accounted for,
neither homogenized.

Keywords: Psychoanalysis. Secularization. Modernity. Capitalism. Utilitarianism.


LISTA DE FIGURAS

Figura 1. Lugares do discurso ................................................................................................ 48


Figura 2. Discurso do mestre ................................................................................................. 49
Figura 3. Discurso da histérica ............................................................................................... 55
Figura 4. Discurso universitário ............................................................................................. 58
Figura 5. Outra leitura dos lugares do discurso ..................................................................... 60
Figura 6. Discurso capitalista.................................................................................................. 64
Figura 7. Parte esquerda e superior da tábua da sexuação ..................................................... 72
Figura 8. Discurso do analista ................................................................................................ 94
Figura 9. Matema da transferência.......................................................................................... 95
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 8

2 O APAGAMENTO DA EXCEÇÃO NA MODERNIDADE ........................................... 13

2.1 A Revolução Francesa: o questionamento da exceção .................................................. 14

2.2 O saber científico e a Universidade ................................................................................. 18

2.3 O utilitarismo e a racionalização da política .................................................................. 25

2.4 Efeitos da modernidade no desejo e na ordem social .................................................... 32

3 DO MESTRE ANTIGO AO MESTRE MODERNO ....................................................... 38

3.1 A inconsistência do Outro e o mais-de-gozar ................................................................. 40

3.2 O discurso do mestre e a função de exceção ................................................................... 47

3.3 O discurso da ciência e a ruína do mestre ...................................................................... 53

3.4 O discurso universitário e o apagamento da exceção .................................................... 58

3.5 O mestre moderno: universitário e capitalista............................................................... 62

4 A PSICANÁLISE NA ERA DO HOMEM SEM QUALIDADES .................................. 69

4.1 O reino da norma e o apagamento da exceção ............................................................... 69

4.2 Avaliação e vigilância: instrumentos da norma ............................................................. 79

4.3 A psicanálise contra a utilidade....................................................................................... 91

5 CONCLUSÃO.................................................................................................................... 101

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 106


8

1 INTRODUÇÃO

Atualmente a tecnologia e a ciência invadem a vida cotidiana por meio de instrumentos


que guiam as tomadas de decisões em diferentes contextos. O saber proveniente dos gadgets,
dispositivos eletrônicos e aplicativos que contabilizam e interpretam dados, assim como o que
resulta dos questionários de avaliação, é utilizado a fim de orientar as diversas atividades
presentes na rotina de um sujeito na contemporaneidade.
No âmbito da vida pessoal existem gadgets que fornecem orientações sobre como se
alimentar, como se exercitar, como cuidar dos filhos, como se organizar financeiramente, como
cuidar de uma gestação, etc. No ambiente de trabalho evidenciamos que instrumentos de
avaliação são utilizados cada vez mais para conduzir as decisões, para verificar a efetividade
das ações e para avaliar o trabalho e a produtividade dos empregados. A performance acadêmica
também está imersa nessa prática de avaliação, pois as atividades de pesquisadores são
analisadas por quantidade e assim classificadas, sendo os critérios qualitativos muitas vezes
desconsiderados.
A vigilância e o monitoramento por câmeras, cada dia mais presentes na atualidade, são
instrumentos utilizados para coletar dados e imagens que, após interpretados estatisticamente,
orientam uma política de segurança que invade desde a casa dos indivíduos até as ruas da
cidade. Para além destes exemplos, no contexto social percebemos que dados extraídos de
instrumentos estatísticos conduzem as decisões e as políticas públicas nos mais diversos setores
do governo.
Tudo e todos estão sendo incessantemente observados e avaliados. O Olho absoluto1,
que coloca todos os indivíduos sob supervisão, se fundamenta no ideal cientificista de
transparência e na política preventiva e securitária (Wajcman, 2011). A política contemporânea
se serve da constante fabricação dos gadgets e dos diversos instrumentos avaliativos. Em seu
texto “A era do homem sem qualidades”, Miller (2006) indica que os gadgets são “objetos
nascidos do simbólico” (p. 11), porém comportam no seu íntimo algo da ordem do cálculo. A
ciência e a tecnologia produzem esses instrumentos que operam pela quantificação,
classificação e comparação ao que é considerado a média, e os sujeitos contemporâneos se
orientam, cada vez mais, pelo saber calculável oriundo desses objetos.

1
No original: “El Ojo Absoluto” (Wajcman, 2011).
9

Práticas de constante vigilância e classificação, tanto sobre o corpo dos sujeitos quanto
sobre suas atividades, são colocadas em uso na intenção de assegurar desde a saúde até a
efetividade de uma produção acadêmica ou laborativa. Através do saber obtido e interpretado
pelos instrumentos de avaliação, por uma classificação e contabilização minuciosas, se segue a
promessa tecnológica de controle e de uma boa administração dos mais diversos setores que
permeiam as relações humanas. O imperativo de “tudo-saber” (Lacan, 1969-1970/1992, p. 32)
orienta a vida moderna.
Para Lacan (1972-1973/1985), o discurso científico fabrica os novos objetos, os
gadgets, e isto modifica as formas de laço social. Sendo assim, a partir dos avanços da ciência
e do capitalismo que resultam nesta produção de instrumentos de avaliação e vigilância,
buscamos investigar como surge essa nova forma de laço social, na qual o saber proveniente
destes objetos ocupa a posição de comando.
Já em 1967, Lacan (1967/2003a) anunciava uma mudança na civilização: a entrada em
uma era “planetária” (p. 360), efeito do progresso da ciência nas estruturas sociais.
Considerando a função civilizatória de controlar o gozo, ideia já desenvolvida por Freud, o
autor salienta que a filosofia e a religião não seriam mais os revestimentos dessa função e que
ela passaria a se apresentar de forma “nua” (Lacan, 1967/2003a, p. 362). Com essa mudança,
podemos pensar que o controle das pulsões, que era promovido pela religião e pelas leis
fundadas no significante-mestre, parece ter sido substituído pelo saber científico e pelo valor
do mercado capitalista.
Na mesma direção de nossa investigação, Jean-Claude Milner (2005), em seu livro La
politique des choses2, sustenta que nos dias de hoje as decisões são guiadas pelo saber extraído
das práticas de avaliação. Para o autor, este fato é uma continuação de um sonho do século XIX,
de que “o governo das coisas substitua as miseráveis decisões humanas” (p. 19, tradução
nossa3). É ressaltado que o objetivo das práticas de avaliação é a “domesticação generalizada”
(Milner, 2005, p. 12, tradução nossa4) ao saber e que sua ideologia serve a diferentes
instituições. Na atualidade, a avaliação é a “palavra de ordem” (Milner, 2005, p. 10, tradução
nossa5).
A prática avaliativa e classificatória orienta a ética contemporânea e, assim, propõe um
novo laço social guiado pelo saber racional. O desenvolvimento dessa forma de orientação

2
A política das coisas.
3
No original: “Que le gouvernement des choses se substitue aux misérables décisions humaines”.
4
No original: “domestication généralisée”.
5
No original: “mot d’ordre”.
10

social é correlacionado ao utilitarismo por Jean-Claude Milner e Jacques-Alain Miller (2006)


no livro Você quer mesmo ser avaliado?. A teoria utilitarista de Jeremy Bentham é um dos
principais temas que orientam este estudo, pois essa teoria propõe o controle baseado no saber,
a partir de uma classificação exaustiva e da tentativa de contabilização do gozo.
Nos Seminários A ética da psicanálise (1959-1960/2008a) e Mais, ainda (1972-
1973/1985), Lacan aborda o utilitarismo interessado em sua forma de articular o simbólico e o
real. O pensamento utilitarista, iniciado com Bentham, surge historicamente na mesma época
que a Revolução Francesa. Esse dado histórico não passa despercebido por Lacan (1959-
1960/2008a), que ressalta sua implementação na mesma época de “um declínio radical da
função do mestre” (p. 23). O autor sustenta que pouco antes desse declínio, “na trilha de uma
certa revolução afetando as relações inter-humanas, ergueu-se o pensamento dito utilitarista,
que está longe de ser a pura e simples banalidade que se supõe” (Lacan, 1959-1960/2008a, p.
23).
A Revolução Francesa representa os questionamentos da figura de exceção e do saber
fundado na garantia divina promovidos pelo movimento de secularização do mundo. Esse
contexto nos orienta em nossa investigação, já que a Revolução foi o marco histórico da
modernidade e da expansão da racionalidade, para além do desenvolvimento da ciência, como
forma de crítica às crenças, aos conhecimentos e aos poderes até então estabelecidos.
Para reforçar a articulação entre o utilitarismo e o contexto da Revolução Francesa nos
valemos de uma preciosa interpretação de Foucault (2015) que coloca Bentham, pai da teoria
utilitarista, como complemento de Rousseau, um dos mais importantes pensadores que
influenciaram a Revolução. Rousseau (1762/2014) articula toda a divisão administrativa do
poder de forma a sustentar seu axioma igualitário e não possibilitar que ninguém assuma um
lugar de exceção. No Contrato Social (Rousseau, 1762/2014) não há espaço para a decisão do
mestre e todas as normas devem ser explicitadas. Para Foucault (2015), o sonho dos
revolucionários, a transparência total do contrato, se complementa com o poder onividente, um
poder saber sobre tudo, materializado no panóptico de Bentham, modelo no qual a teoria
utilitarista se apresenta de forma mais pura.
A mudança que se inicia na modernidade ressoa na sociedade ocidental com o
questionamento da lógica religiosa que sustentava sua organização, propiciando a constituição
de um saber laico. O estabelecimento de uma sociedade igualitária e contratual só parece ter
sido possível com o uso da racionalidade, o “tudo-saber” fornecido pelo utilitarismo e a
instalação do mercado capitalista. Consideramos importante investigar como ocorre essa
11

secularização do mundo a fim de entender como a racionalidade moderna proporciona a


produção de um saber que não se fundamenta na exceção.
Essa mudança na forma de organização social pode ser relacionada ao que Lacan sugere
como “uma modificação no lugar do saber” (1969-1970/1992, p. 32), pois o significante-mestre
(S1) que ocupava o lugar de agente no discurso do mestre é substituído pelo saber (S2) no
discurso universitário. Sendo assim, nos propomos a elucidar o caminho histórico que propicia
a conquista da posição de agente do discurso pelo saber ao mesmo tempo em que rechaça a
exceção. Consideramos também pertinente realizar uma leitura do movimento da modernidade
que provoca a substituição do discurso fundado na lei por um discurso fundado no contrato, a
partir da modificação do lugar do saber indicada por Lacan.
Com os avanços da ciência e do capitalismo, torna-se evidente que as práticas
classificatórias e avaliativas estabelecem o que é o normal a partir de uma média, um valor
calculável, e servem como base dos orientadores da vida contemporânea. Dessa maneira, temos
a intenção de abordar como ocorre a mudança da sustentação do laço social: de seu alicerce em
leis, fundadas no significante-mestre, à sua sustentação pelo saber calculável e demonstrável
que é proveniente dos objetos de avaliação e dos gadgets. Também nos indagamos como a
transformação do lugar de agente do discurso modifica as formas de estabelecimento das
relações sociais.
Se o que verificamos atualmente nas práticas de avaliação e classificação pode ser
considerado “a lógica própria de todo controle a partir do saber” (Miller & Milner, 2006, p. 29),
o discurso contemporâneo evidencia como o utilitarismo está presente e deve orientar nossa
investigação. Situamos como nossa hipótese a substituição do discurso do mestre antigo por um
discurso do mestre moderno que comporta o saber científico e utilitário na sua posição de
agente, promovendo a supressão da exceção. Em contraposição à função de exceção fundadora
do discurso do mestre, a administração do cientista utilitário parece se exercer através do saber
extraído da classificação e avaliação dos indivíduos.
Sabemos que o sujeito e seu inconsciente são marcados pelos discursos que orientam o
laço social, pois são os discursos que estabelecem limites e modelos para a satisfação pulsional.
Nessa perspectiva, Jeferson Machado Pinto (2009) enfatiza que:

Exatamente por se constituir como discurso do Outro, como sede dos valores e dos comandos de uma
determinada cultura, o inconsciente se revela como um laço social diferente em cada momento da
civilização. Em cada momento simbólico podemos ter produções discursivas diferentes, as quais
determinam posições subjetivas diferentes. Decorrentemente, tratar das questões do sujeito significa,
também, a possibilidade de ler os efeitos e as características do controle social concretamente presente
(pp. 3-4).
12

A partir das concepções freudianas e lacanianas, podemos sublinhar que determinada


ética de uma civilização tem efeitos sobre os sintomas que serão apresentados pelos sujeitos de
uma época. Dessa forma, julgamos ser necessário situar a posição da psicanálise frente aos
discursos dominantes na atualidade. A importância que devemos dar a isto é destacada por
Lacan (1953/1998d) ao ressaltar que deve renunciar à prática da psicanálise todo analista que
“não conseguir alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época" (p. 322).
Diante da atualidade e da presença maciça da vigilância e da avaliação, promovidas por
meio de um discurso utilitário associado à lógica contratual, nos orientamos na elucidação de
seu caminho histórico e de seus efeitos no laço social. Consideramos necessário questionar as
possíveis consequências do apagamento da exceção como fundamento do discurso que
comanda a sociedade atual. A partir de uma reflexão sobre a seriedade dos efeitos possíveis de
um discurso fundamentado no apagamento da exceção, nos interessa realizar uma leitura
psicanalítica sobre a secularização do mundo que desemboca no ideal de transparência e de
utilidade máxima, presentes na atualidade sob a forma da gestão administrativa e da avaliação.
13

2 O APAGAMENTO DA EXCEÇÃO NA MODERNIDADE

A modernidade é caracterizada pela secularização do mundo e pelo distanciamento do


saber tradicional, suportado por uma exceção, que organizava a estrutura social de forma
hierárquica. O questionamento do saber antigo ocorre com base em fundamentos racionais
decorrentes do novo pensamento científico e filosófico. O que Max Weber (1920/2004), em seu
livro A ética protestante e o “espírito” do capitalismo, chamou de “desencantamento do
mundo” exemplifica esta destituição da exceção fundada na religião pelas vias da racionalidade.
Historicamente, a Revolução Francesa marca o questionamento dos princípios que
sustentavam o poder na garantia divina, alicerçado em seus significantes fundamentais -
Liberdade, Igualdade, Fraternidade, Autonomia. É evidente a influência da burguesia neste
processo, já que o desenvolvimento do mercado capitalista também apresenta efeitos na forma
de organização social. A Revolução Francesa propõe a igualdade dos cidadãos perante a lei, o
que, desde então, define o fundamento do direito (Miller, 2005a). Assim sendo, Jacques-Alain
Miller (2005a), em seu livro O sobrinho de Lacan, sustenta que a supressão da exceção pode
ser considerada a maior conquista desse movimento.
Na modernidade, simultaneamente ao apagamento da exceção ocorre a modificação na
forma de pensamento e a orientação por um saber derivado da racionalidade. O modelo da
ciência moderna, o saber racional, passa, de certa forma, a guiar a ordenação social do mundo,
produzindo efeitos na política e nos sujeitos. Com a finalidade de explorar como o apagamento
da exceção divina se conecta à mudança na forma de tratamento do saber, nos orientamos por
uma indicação de Lacan (1968-1969/2008c) em O Seminário, livro 16: de um Outro ao outro:

A Revolução, com R maiúsculo, talvez não se tenha percebido cedo bastante que ela está ligada a algo de
novo, que aponta para o lado de uma certa função do saber e que o torna, para dizer a verdade, pouco
manejável da maneira tradicional (p. 231).

Éric Laurent (1992), em seu texto “Lacan y los discursos”, salienta que a Revolução
Francesa pode ser entendida como o início de uma série que produz efeitos nos sujeitos e no
social. O autor indica que a leitura de Lacan sobre esses acontecimentos históricos expõe a
forma com que a política pode ser elevada a um sintoma do discurso do mestre, uma resposta
ao Outro de sua época.
14

Sendo assim, primeiramente, temos a intenção de esclarecer como a secularização do


mundo, essa modificação do pensamento que se fundamenta na racionalidade em detrimento
da garantia divina, relaciona-se com diversas remodelações sociais, em diferentes âmbitos.
Posteriormente, elucidaremos quais são as alterações que essa nova forma de
pensamento provoca e quais seus efeitos na Universidade, esta que ocupa o lugar de saber por
excelência na atualidade. A Universidade recebe os efeitos da secularização do mundo e, antes
regida pela Igreja, passa a ser orientada pela burguesia e pelo saber científico. Em seguida, a
partir de uma indicação de Lacan (1959-1960/2008a), em O Seminário, livro 7: a ética da
psicanálise, iremos nos direcionar à investigação do utilitarismo enquanto movimento que
participa desta transformação social e propõe um novo manejo do saber no âmbito da política
como tentativa de suprimir a exceção.
Adiante, como conclusão deste capítulo, nos orientaremos pela leitura de Lacan (1960-
1961/2010) sobre a tragédia de Claudel, em O Seminário, livro 8: a transferência, na intenção
de demonstrar como a questão moderna se apresenta na relação do sujeito com o Outro da
tradição e como ilustra o apagamento da exceção e suas consequências no nível do desejo.

2.1 A Revolução Francesa: o questionamento da exceção

De acordo com Ian Mackenzie (2011), em seu livro Política: conceitos chave em
filosofia, a modificação na ordem política, econômica e social do mundo ocorre pela
transformação da orientação presente desde a Antiguidade, na qual a ordem política era
determinada hierarquicamente e com base em fundamentos religiosos. Segundo o autor,
podemos simplificar a história da Era Moderna a partir de três núcleos: o nascimento do
capitalismo, o surgimento da ciência moderna e a modificação na forma de reflexão filosófica.
Na modernidade “essas ocorrências se conjugaram para subverter a ideia de que a ordem
política tinha de vir de cima [...], as pessoas começaram a rebelar-se e a derrubar as ordens
estabelecidas que promovessem e sustentassem aquelas formas de ordem política” (Mackenzie,
2011, p. 30).
Sendo assim, é importante ressaltar que após o questionamento da ordem antiga surgem
novas questões sobre como a política deveria ser conduzida para que uma anarquia fosse evitada
e quais novas formas de condução seriam possíveis. O século XVIII, na Europa, é marcado por
15

ser o cerne das produções que buscam uma reformulação da organização social e que
questionam o poder fundado na garantia divina.
O Iluminismo foi o movimento que caracterizou este momento, baseado no uso da razão
como combate ao poder absolutista e seu domínio nos níveis da educação, da cultura e da
economia. A França foi o centro do pensamento iluminista e seus ideais de liberdade, igualdade
e fraternidade influenciaram o movimento da Revolução Francesa. É importante lembrar que a
burguesia teve um grande interesse neste movimento, pois, apesar de possuir boas condições
financeiras, não podia participar das decisões políticas e econômicas, que eram estabelecidas
pelo governo absolutista.
De acordo com Sartre (1965/1994), em sua conferência “O que é um intelectual?”, a
burguesia, durante sua conquista do poder político e econômico, também passa a ser a detentora
do saber, substituindo a Igreja, que se ocupava dessas funções. O autor ressalta que o
movimento de expansão da burguesia traz consigo o surgimento de especialistas que propõem
construir um saber prático em consonância com o capitalismo. Esse saber prático seria diferente
do saber antigo, pois “nenhuma adaptação da ideologia sagrada poderia satisfazer a burguesia,
que só tinha interesse na dessacralização de todos os setores práticos” (Sartre, 1965/1994, p.
19, itálicos do autor).
Dessa forma, podemos entender que o surgimento de um saber laico vai constituir a
ideologia burguesa, baseado no uso da razão, a partir do pensamento dos “especialistas do saber
prático: homens da lei (Montesquieu), homens de letras (Voltaire, Diderot, Rousseau),
matemáticos (D’Alambert), um intendente-geral (Helvétius), médicos, etc.” (Sartre, 1965/1994,
p. 19).
A partir das ideias dos principais pensadores iluministas, percebemos que uma
originalidade do pensamento se instala quando ocorre a busca por uma visão de mundo diferente
da que existia até então6. De acordo com Brehier (1930/1977), em seu livro História da
Filosofia, o pensamento filosófico do início do século XVIII é marcado pela modificação
advinda da mecânica celeste de Newton e da metafísica de Locke. Segundo Koyré (2011), em
seu livro Estudos de História do Pensamento Científico:

Quando os historiadores da ciência moderna procuram definir sua essência e sua estrutura, na maioria dos
casos insistem em seu caráter empírico e concreto, em oposição ao caráter abstrato e livresco da ciência
clássica e medieval. A observação e a experiência conduzindo a uma vitoriosa ofensiva contra a tradição
e a autoridade: tal é a imagem, também tradicional, que habitualmente nos é transmitida, da revolução
intelectual do século XVII, da qual a ciência moderna é, ao mesmo tempo, a raiz e o fruto (p. 301).

6
Aos interessados nos pormenores do desenvolvimento da filosofia iluminista, indicamos a leitura do livro
História da Filosofia: tomo II de Émile Brehier (1930/1977).
16

Nesse sentido, compreendemos que o uso da racionalidade enquanto método serve aos
pensadores do Século das Luzes e propicia o questionamento do poder da Igreja. Segundo Sartre
(1965/1994), todo o desenvolvimento da ciência e da técnica, que é baseado na razão, serve
para destituir os saberes não racionais que mantinham as tradições e a organização social da
época.
Koyré (2011) ressalta que o método de Descartes, o método da dúvida, guiou a
formulação dos princípios que orientaram o desenvolvimento da ciência moderna. De acordo
com Jean-Claude Milner (1996), em seu livro A obra clara: Lacan, a ciência, a filosofia, o que
é evidenciado pela elaboração cartesiana é que ela propicia, a partir da dúvida enquanto método,
aquilo “que o nascimento da ciência moderna requer do pensamento” (pp. 32-33). O que
Descartes propõe, ao ordenar seu método a partir de uma argumentação matematizada, é a
disjunção das qualidades, pois,

com efeito, no momento em que ele é enunciado como certo, ele está disjunto, por hipótese, de toda
qualidade, sendo estas então, coletiva e distributivamente, revogáveis como dúvida. O próprio
pensamento mediante o qual o definimos é estritamente qualquer; ele é o mínimo comum de todo
pensamento possível, visto que todo pensamento, seja qual for (verdadeiro ou falso, empírico ou não,
razoável ou absurdo, afirmado, ou negado, ou posto em dúvida), pode dar-me o ensejo para concluir que
existo (Milner, 1996, p. 33).

A certeza do sujeito cartesiano referencia-se na garantia divina, mas somente enquanto


sua fiadora, pois Deus garante que o sujeito cartesiano “pensa, logo existe”. Ao colocar todo o
saber fundado na tradição como passível de ser questionado pelo uso da dúvida metódica,
Descartes retira Deus do lugar de garantidor dos atributos e qualidades do saber que resultam
de seu método. Este fato é salientado por Lacan (1964/2008b) ao dizer que “Descartes inaugura
as bases de partida de uma ciência com a qual Deus nada tem a ver” (p. 221).
Para além da vertente filosófica, a economia política desenvolvida nesta época, baseada
em Quesnay e Adam Smith, também se esforçou em buscar a liberdade econômica, com base
em leis determinadas pela razão, a fim de impedir a condução da economia conforme os
caprichos do governo. É notório o esforço de pensamento que busca retirar a garantia da
ordenação política de seu fundamento na exceção divina, porém, considerando a direção de
nossa investigação, não entraremos nos pormenores do desenvolvimento do pensamento dos
filósofos do século XVIII.
É importante realçar, a partir da análise de Sartre (1965/1994), que a burguesia
influencia diretamente a construção de um saber que sustente uma inovação na forma de
organização social. Esta nova organização instaura o princípio da igualdade entre os homens
17

em contraposição à diferença antes estabelecida entre os governantes e governados, o que serve


para que o homem burguês desqualifique a nobreza e possa ter uma posição social que não
necessite da validação da tradição. O princípio igualitário é nomeado como “humanismo
burguês” (Sartre, 1965/1994, p. 21, itálico do autor) e propõe uma falsa universalidade que se
utiliza das leis científicas baseadas na razão para constituir sua ideologia que visa o lucro e a
utilidade.
A importância deste momento para a elucidação do contexto anterior à Revolução
Francesa é destacada pela utilização da racionalidade como prática que tem a finalidade de
“melhorar, pela ciência, a vida humana” (Brehier, 1930/1977, p. 179). No curso do
desenvolvimento do pensamento racionalista, o pensamento kantiano também introduz a crítica
como forma de banir “a ideia de que religião, direito, constituição política dependem de
condições históricas e geográficas inelutáveis que o homem devia aceitar passivamente”
(Brehier, 1930/1977, p. 222). De acordo com Brehier (1930/1977), o pensamento de Kant
intenta justificar pelo uso da razão a ciência, o direito, a religião, a moral e a arte, e traz “um
sopro de liberdade, uma fé na renovação possível do homem pelo uso da liberdade, coisas que
lhe explicam o bem conhecido entusiasmo ante os começos da Revolução Francesa” (p. 222).
O lema da Revolução Francesa: “Liberdade, Igualdade e Fraternidade” tem suas raízes
no pensamento de Rousseau (1762/2014), que aqui nos interessa com a finalidade de entender
como o seu Contrato Social pôde instaurar uma forma racional de autoridade e de governo. O
que nos interessa salientar, a partir da referência à Revolução Francesa e ao contexto filosófico
da modernidade, é que o questionamento racional da autoridade do governo propicia uma nova
forma de organização social, esta que se baseia na igualdade entre os indivíduos. É a respeito
dessa transformação essencial, da substituição da exceção pela equidade, que o pensamento de
Rousseau nos orienta nessa investigação.
O Contrato Social de Rousseau (1762/2014) propõe a regulação da ordem social,
situando a vontade geral do povo enquanto o próprio poder soberano. Para que este contrato
fosse possível, toda a divisão administrativa do poder e dos representantes do povo soberano é
articulada à necessidade da criação de mecanismos de controle que assegurem a equivalência
entre todos os indivíduos e a prevalência da vontade soberana do povo em detrimento dos
interesses pessoais.
Não sendo de nosso interesse uma análise das inconsistências internas que se verificam
na obra do autor, visamos evidenciar o ponto em que o governo fundado na tradição é
substituído por um governo que propõe a igualdade enquanto seu fundamento. O Contrato
Social (Rousseau, 1762/2014) é estabelecido a partir da igualdade entre os parceiros, pois não
18

existe um que esteja em posição de exceção, fora dessa equivalência. Para o funcionamento da
lógica contratual, é necessário que tudo esteja visível e explicitado.
De acordo com Fernando Lizárraga (2015), em seu texto “El vínculo igualitário en el
contratualismo: La mirada ralwsiana sobre Rousseau”7, o pensamento de Rousseau, enquanto
princípio que sustenta os ideais da Revolução Francesa, marca o discurso teórico político da
modernidade a partir de seu “axioma da igualdade primordial entre as pessoas” (p. 51, tradução
nossa8).
Após essa elaboração, podemos perceber como o desenvolvimento do pensamento
científico e filosófico moderno foi seguido por modificações políticas e sociais e a organização
social, que era fundada na exceção, passa a se referenciar por um ideal igualitário que necessita
de novos mecanismos para se sustentar. Dessa forma, propomos, a seguir, uma leitura sobre as
modificações provenientes do processo de secularização e do surgimento do capitalismo na
estrutura e na organização da Universidade. A Universidade recolhe os efeitos dessa
modificação social e passa a se orientar pela racionalidade, em detrimento da garantia divina,
proporcionando a organização do novo saber que irá sustentar a forma moderna de organização
social.

2.2 O saber científico e a Universidade

Nem se cogita, por ora, de que se detenha o mercado do saber. Vocês mesmos é que agirão para
que ele se estabeleça mais e mais. A unidade de valor, esse papelzinho que pretendem conceder a vocês,
é isso. É o sinal daquilo em que o saber se transformará cada vez mais, nesse mercado chamado
Universidade (Lacan, 1968-1969/2008c, p. 42).

O trecho acima proferido por Lacan em 1968-1969 nos soa familiar nos dias de hoje. O
mercado chamado Universidade continua em plena expansão. Este mercado só pôde ser
possível a partir de uma modificação no funcionamento do social, que remodelou o estatuto do
saber, o transformando em mercadoria. Assim como a destituição do saber antigo é efeito da
conjuntura histórica que resultou na Revolução Francesa, percebemos como esta também teve
efeitos na forma de tratamento do saber na Universidade.

7
O vínculo igualitário no contratualismo: uma visão rawlsiana sobre Rousseau.
8
No original: “axioma de la igualdad inicial entre las personas”.
19

Em seu texto “De l’Université comme foule”9, Jean-Claude Milner (2011) realiza uma
leitura de como as mudanças históricas influenciaram a Universidade e o lugar do saber. O autor
indica que a palavra Universidade foi originalmente utilizada para designar uma comunidade,
enquanto um sujeito jurídico único, sentido que perdurou da Idade Média até a Época Clássica.
Porém, no século XVIII, passou a ser utilizada para designar especificamente as instituições de
ensino.
Ao se referir à raiz da palavra Universidade, Milner (2011) destaca que o múltiplo é seu
ponto de partida para chegar a uma unicidade. Desta raiz, a palavra se desdobra no sentido de
evidenciar como a Universidade é o lugar, por excelência, da tentativa de fazer um universal a
partir da multiplicidade de saberes. O saber adquirido por um universitário é legitimado
enquanto parte de um saber universal e, assim, o universal é posto enquanto acessível a todos e
“cada doutor, pelo título que a ele foi conferido, proclama a universalidade potencial de um
saber” (Milner, 2011, p. 102, tradução nossa10).
Refletindo sobre as raízes históricas da Universidade, Régine Pernoud (1997), em seu
livro Luz sobre a Idade Média, nos dá um panorama sobre este desenvolvimento. As
Universidades surgiram na Idade Média ligadas à Igreja católica, sendo que sua organização e
sua orientação de ensino eram definidas pela própria estrutura da Igreja. Nessa época, a
Universidade não se submetia à interferência do Estado e sua administração era realizada pelos
estudantes e professores, que constituíam um corpo social. É importante ressaltar, a partir da
leitura de Milner (2011), que, na Idade Média, a Igreja católica romana utilizou-se da
Universidade enquanto um espaço de formação, uma “máquina de procriação artificial” (p. 109,
tradução nossa11), onde seriam formados candidatos ao sacerdócio.
A Universidade também recolhe efeitos da secularização do mundo e da substituição da
garantia divina pelo uso da razão como instrumento. Assim como outros diversos campos da
vida social, a Universidade passa a não mais se referenciar na religião enquanto seu apoio e o
saber da ciência é o que assume este lugar. Segundo Milner (2011), a evolução da ciência
moderna se apresentou como uma tentativa de anular o sujeito, pois, enquanto instrumento, o
cientista poderia ser fonte de erro e, com a intenção de ser a ciência cada vez mais exata, o
cálculo passa a ser utilizado como seu método principal. O deslocamento do referencial da
Universidade, da religião para a ciência, do fundamento da garantia divina para o fundamento
da razão e do cálculo, é o que possibilita que a Universidade seja o lugar da ciência moderna.

9
“A Universidade como multidão”.
10
No original: “Chaque docte, par le titre qui lui a été conféré, proclame l’universalité potentielle d’un savoir”.
11
No original: “machine de procréation artificielle”.
20

De acordo com Koyré (2011), a constituição da ciência moderna traz a necessidade da


ordenação do conhecimento pela via de um tratamento quantitativo do saber. Para isso, a
matemática é o que serve como o modelo teórico, este que possibilita à ciência moderna
substituir o antigo modelo qualitativo.

O que significa que a ciência moderna se constitui substituindo o mundo qualitativo ou, mais
exatamente, misto, do senso comum (e da ciência aristotélica), por um mundo arquimediano de geometria
tornado real ou - o que é exatamente a mesma coisa - substituindo o mundo do mais ou menos, o que é o
da nossa vida quotidiana, por um Universo de medida e de precisão. Com efeito, essa substituição exclui
automaticamente do Universo tudo o que não pode ser submetido à medida exata (Koyré, 2011, p. 303).

Nessa perspectiva, Koyré (2011) ressalta a criação galileana de relógios de precisão para
que a medida tenha a exatidão necessária ao desenvolvimento de uma ciência matematizada,
retirando, assim, a possibilidade de qualquer garantia que não seja fundamentada no que pode
ser calculado. Para Milner (2011), o desenvolvimento da “ciência galileana acelera a
secularização, já que ela coloca fora de questão a criação” (p. 104, tradução nossa12).
Em “O aturdito”, Lacan (1973/2003d) indica que a matemática é a linguagem que
permite a instalação do discurso científico por ser a “ciência sem consciência” (p. 452). E,
segundo Antônio Teixeira (2016), em seu texto “O saber como mercadoria na Universidade”,
a matematização é o que outorga à ciência moderna propor uma equivalência universal dos
conteúdos, dissolvendo suas particularidades e qualidades, além de permitir que a ciência seja
o instrumento de secularização da Universidade.

Ao dissolver o objeto de suas qualidades sensíveis, para dele reter somente o que se deixa
formalizar em equações literais, a ciência moderna vem oferecer justamente o instrumento necessário à
universalização do saber. Sua equivalência universal se expressa em linguagem matemática. E do
momento em que desse Universo nada se excetua, a ciência terminaria por recusar a exceção divina que
sustentava a Universidade, em sua fundação clerical, dando-lhe a forma secularizada do saber moderno
que não mais necessitaria, como diria Laplace, da hipótese de Deus. O acordo parecia se realizar: a ciência
progredia no seio da Universidade, que por sua vez se legitimava como lugar do saber apoiado sobre o
progresso da ciência (Teixeira, 2016, p. 1).

Para Milner (2011), a influência da ciência moderna modifica as relações presentes na


transmissão do saber na Universidade, sendo que o mestre único é trocado por um professor
substituível, a palavra do mestre perde importância e o título do professor é o que passa a
sustentar este lugar. O antigo discípulo do mestre é substituído pelo estudante e ocorre uma
desvalorização da relação com o mestre, pois esta se torna mais impessoal.

12
No original: “la science galiléenne accélère la sécularisation, puisqu’elle place hors champ la question de la
création”.
21

De qualquer modo, a emergência do cientista galileano acelera o declínio do mestre e aumenta


o poder do professor. Deve-se ir ao extremo: onde há um mestre e uma palavra mestre, cessa a
Universidade, a menos que simplesmente, ela não comece; onde a Universidade reina, o mestre e a palavra
se calam (Milner, 2011, p. 104, tradução nossa13).

Dessa forma, a ciência galileana passa a ser o centro de referência do saber e, então,
juntamente ao processo de secularização, reestrutura a organização da Universidade. De acordo
com Milner (2011), a ciência galileana traça um ponto de ordenação a todos os saberes,
tornando possível que o Saber seja único e universal. Para tal, é necessário que se considerem
indiferentes os objetos e os sujeitos desse saber. Diante disso, ressalta que o saber científico se
pretende universal e absoluto, ao anular seu objeto e seu sujeito, e que “o Saber absoluto é o
ideal da Universidade, é o Um para o qual os universitários tendem, todos unidos” (Milner,
2011, p. 106, tradução nossa14).
Um outro aspecto ressaltado por Milner (2011) é o domínio da Universidade pela
burguesia, esta que não fazia uso do recurso à tradição ou à herança para seu desenvolvimento
e que, assim como a Igreja, necessitava de uma “máquina de procriação artificial” (p. 109,
tradução nossa15). A burguesia passa a utilizar-se da Universidade com esta mesma finalidade.
As diferenças entre a Igreja e a burguesia são patentes, porém uma característica comum às
duas é que “desejam sempre ser mais numerosas do que realmente são” (Milner, 2011, p. 110,
tradução nossa16). Este movimento de tomada de poder pela burguesia é relacionado à condição
necessária para que o reino do saber enquanto mercadoria se instale.
O domínio da burguesia com relação à Universidade é importante pelo fato de que
somente pela transformação do saber em mercadoria é possível que o saber se torne universal.
Sobre isso, Lacan (1968-1969/2008c) salienta que a ciência “reduz todos os saberes a um único
mercado” (p. 40). O psicanalista ressalta que houve primeiramente a necessidade da existência
de um mercado, com o desenvolvimento do capitalismo, para que o saber pudesse se tornar uma
mercadoria e surgisse um “mercado do saber” (Lacan, 1968-1969/2008c, p. 39).
Segundo Teixeira (2016), após a emergência do saber científico, este que desqualifica a
particularidade do objeto e do sujeito de sua investigação, ocorre a demanda de “retorno dos
saberes múltiplos dispostos na pluralidade de seus conteúdos” (p. 1). Essa demanda pelo retorno
dos saberes múltiplos, que não sejam afastados de seu conteúdo, é exemplificada por Milner

13
No original: “En tout état de cause, l’émergence du savant galiléen accélère le déclin du maître et la montée en
puissance du professeur. Il faut aller à l’extrême: là où il y a un maître et une parole de maître, l’Université cesse,
à moins que tout simplement, elle ne commence pas; là où l’Université règne, le maître et la parole se taisent”.
14
No original: “Le Savoir absolu est l’idéal de l’Université, le Un vers quoi les universitaires tendent, tous unis”.
15
No original: “machine de procréation artificielle”.
16
No original: “désirent être toujours plus nombreuses qu’elles ne sont”.
22

(2011) ao se referir ao discurso do Reitorado de Heidegger. Neste discurso, Heidegger


(1933/2009) propõe que a Universidade deveria promover o saber em correspondência com
sentido e conteúdo próprios, estes referidos à história do povo alemão. É ressaltado que a
Universidade “não tem que se submeter a essa entidade exterior que é o Saber absoluto”
(Milner, 2011, p. 108, tradução nossa17), este entendido como universal e indiferente ao seu
conteúdo.
A possibilidade de que estes saberes múltiplos sejam incluídos na Universidade ocorre
pela transformação do saber em mercadoria, pois essa transformação possibilita que sua
particularidade, apesar de existir, continue sendo desconsiderada. Isso é possível, pois existe,
“para além da unidade formal do cálculo científico, outro modo de unidade indiferente ao
conteúdo que Marx localiza como o conceito de forma de equivalência geral” (Teixeira, 2016,
p. 1).
O princípio de equivalência geral é fundamentado no valor de troca e desconsidera o
valor de uso, este que é referido à perspectiva qualitativa dos objetos. Para elucidar essa questão,
sem a intenção de investigar toda a estrutura do capitalismo e da teoria marxista, nos valemos
das elaborações de Georg Lukács (1923/2003), em seu livro História e Consciência de Classe.
O autor nos indica que o desenvolvimento do capitalismo moderno acaba por objetificar as
relações entre os homens e, dessa forma, pelo uso da racionalidade e da objetividade, tenta
ocultar a particularidade dessas relações. A partir da essência e da estrutura da forma mercantil,
as relações entre os homens tomam um caráter de coisa. Dessa forma, o autor salienta que essa
dominação da forma mercadoria é possível por se basear no valor de troca, este que é
quantitativo e calculável, tornando os objetos passíveis de serem convertidos em um valor que
possibilite a troca. O valor de uso, este que é incalculável e que se refere à utilidade e às
qualidades físicas do objeto, acaba por ser apagado pelo desenvolvimento do capitalismo
moderno.
Isto posto, podemos relacionar o que Lukács (1923/2003) percebe como efeito do
capitalismo, a reificação das relações entre os homens, com a mudança que sofre o estatuto do
saber no âmbito da Universidade moderna. Assim como a Universidade passa a desconsiderar
o sujeito do cientista por ser fonte de erro, no mundo do trabalho “as propriedades e
particularidades humanas do trabalhador aparecem cada vez mais como simples fontes do erro”
(Lukács, 1923/2003, p. 203, itálicos do autor). Na intenção de ocultar todo o caráter qualitativo

17
No original: “n’a plus à se soumettre à cette entité extérieure qu’est le Savoir absolu”.
23

e particular das relações, dos homens e das coisas, o cálculo se torna a base de toda a
objetificação presente no desenvolvimento do capitalismo moderno.
Fazendo referência à Max Weber, Lukács (1923/2003) salienta que o capitalismo
moderno tem como base fundamental o cálculo e que a possibilidade de utilização deste método
pelo Estado só pode ocorrer a partir do momento em que o sistema político também passa a se
referenciar na racionalidade. O autor salienta a passagem de um Estado baseado na tradição
para um Estado burocrático, fundamentado na sistematização racional e na administração, e
“essa necessidade de sistematização, de abandono do empirismo, da tradição, da dependência
material, foi uma necessidade do cálculo exato” (Lukács, 1923/2003, p. 217). A estrutura
fundamental do cálculo racional tem como princípio a tentativa de excluir toda interferência do
“arbítrio individual” (Lukács, 1923/2003, p. 218).
Sem pretender uma ampla discussão filosófica sobre ciência e cientificismo, nos
interessa remeter ao cientificismo como conceito que esclarece que a racionalidade, o método
científico moderno, passa a ser aplicado em outros meios, para além da ciência. O cientificismo
é “a ideia de que o espírito e os métodos da ciência deveriam ser estendidos a todos os domínios
intelectuais e morais da vida, sem exceções” (Lalande, 1926/1988, p. 960, tradução nossa18).
É a partir do final do século XVIII, por influência da Revolução Francesa, que a forma
científica do saber moderno, baseada no cálculo, se torna o princípio que deve guiar o Estado,
segundo Lukács (1923/2003). A estruturação de um novo modelo de governo é necessária a
partir do momento em que a autoridade fundada na exceção não mais assegura a organização
social. É importante verificar como a ciência moderna e o cálculo racional passam a ser
utilizados como fundamento do governo moderno, este que preza pela igualdade entre os
indivíduos.
Quanto ao desenvolvimento das formas modernas de governo, seguimos a observação
de Lacan (1959-1960/2008a) sobre a ocorrência “de um declínio radical da função do mestre”
(p. 23) na mesma época da instalação da teoria utilitarista por Jeremy Bentham19. Corroborando
com a conexão entre o utilitarismo e esse momento histórico pós-revolucionário, Sartre
(1965/1994) localiza que a ideologia dominante da burguesia propõe a construção do
pensamento científico baseado na racionalidade, instalando a utilidade enquanto sua meta,

18
No original: “l’idée que l’esprit et le méthodes scientifiques doivent être étendues à tous les domaines de la vie
intellectuelle et morale sans exception”.
19
Jeremy Bentham (1748-1832), considerado o pai da teoria utilitarista, tinha formação em Direito e se dedicou
ao estudo da ciência do Direito e suas relações com a economia e a filosofia. Participou de um grupo de pensadores
ingleses, chamado de radicais filosóficos, que se interessava pelas reformas políticas e sociais na Inglaterra.
24

visando a técnica e a prática. Essa meta utilitária burguesa não seria “o que é útil a esse ou
aquele grupo social, mas o que é útil sem especificação nem limites” (Sartre, 1965/1994, p. 27).
A relação entre o utilitarismo e a racionalidade moderna também é realçada por Noberto
Bobbio (1960-1961/1995) em seu livro O Positivismo Jurídico: Lições da filosofia do direito.
Jeremy Bentham, também chamado de “o ‘Newton da legislação’” (Bobbio, 1960-1961/1995,
p. 91), desenvolve a teoria utilitarista com a finalidade de criar uma ética baseada na
racionalidade. A ética utilitarista visa ser uma ética objetiva, fundamentada em um “princípio
objetivamente estabelecido e cientificamente verificado, do qual se pode deduzir todas as regras
para o comportamento humano, que passam assim a ter o mesmo valor das leis descobertas
pelas ciências matemáticas e naturais” (Bobbio, 1960-1961/1995, p. 92).
Ainda sobre essa perspectiva pós-revolucionária, Foucault (2015), em seu livro
Microfísica do Poder, retoma o pensamento de Rousseau, seu axioma de igualdade e seu ideal
de transparência, e o conecta à teoria utilitarista de Bentham. Para o autor, o panóptico20 seria
o complemento do Contrato Social (Rousseau, 1762/2014). Então, salienta que o sonho dos
revolucionários, fundamentados na lógica contratual, é o

de uma sociedade transparente, ao mesmo tempo visível e legível em cada uma de suas partes; que não
haja mais nela zonas obscuras, zonas reguladas pelos privilégios do poder real, pelas prerrogativas de tal
ou tal corpo ou pela desordem; que cada um, do lugar que ocupa, possa ver o conjunto da sociedade; que
os corações se comuniquem uns com os outros, que os olhares não encontrem mais obstáculos, que a
opinião reine, a de cada um sobre cada um. [...]
Ele [Bentham] faz funcionar o projeto de uma visibilidade universal, que agiria em proveito de
um poder rigoroso e meticuloso. Sendo assim, ao grande tema rousseauniano − que de certa forma
representa o lirismo da Revolução − articula−se a ideia técnica do exercício de um poder ‘omni-vidente’,
que é a obsessão de Bentham; os dois se complementam e o todo funciona: o lirismo de Rousseau e a
obsessão de Bentham (Foucault, 2015, pp. 326-327).

Para que o regime igualitário do Contrato Social funcione é necessário submeter todos
os indivíduos, sem exceção, a um controle onividente, aqui relacionado ao panóptico de
Bentham. Com o apagamento da exceção na modernidade, o utilitarismo fornece um novo
modelo de organização social, uma tentativa de racionalizar o Estado e de manter o axioma da
igualdade entre os indivíduos.
Na teoria utilitarista, que será explicitada a seguir, se propõe a administração de
qualquer instituição por meio de uma objetificação e classificação minuciosas, aqui

20
O Panóptico foi concebido por Bentham, no século XVIII, como um dispositivo de vigilância como modelo de
arquitetura para as prisões, sendo também ampliado para outras instituições escolares, assistenciais e de trabalho.
A vigilância a partir de uma torre central permitiria que um vigilante pudesse observar a todos os encarcerados
(presos, trabalhadores, estudantes ou pacientes) sem que estes pudessem saber se estavam ou não sendo vistos. O
modelo levava em consideração o máximo de utilidade para as questões econômicas, de segurança e preventivas
(Bentham, 1787/2008).
25

relacionadas ao ideal de transparência, fundamental para que o regime moderno, que não
suporta a exceção, possa subsistir. O cálculo e a utilidade garantem a legitimidade dessa
administração fundamentada no saber racional.
Lacan recomenda que o utilitarismo deva ser considerado em toda sua importância,
“longe de ser a pura e simples banalidade que se supõe” (1959-1960/2008a, p. 23). Como foi
exposto, a teoria utilitarista está intimamente conectada à racionalidade moderna e ao
capitalismo. Sendo assim, continuaremos nossa investigação sobre essa teoria a fim de
compreender os mecanismos que sustentam um regime sem exceção.

2.3 O utilitarismo e a racionalização da política

O utilitarismo, no início do século XIX, se propôs a solucionar o “problema da partilha


dos bens” (Lacan,1968-1969/2008c, p. 186), este que é fundamental em todas as formações
humanas. Após a Revolução Francesa, o fundamento divino não se encontra mais na posição
de garantia da ordenação social e, consequentemente, ocorre a orientação pela perspectiva
utilitária, esta que propõe o útil como a “única instância de legitimação” (Miller, 2008, p. 117),
pois “foraclui toda garantia natural ou divina” (Miller, 2008, p. 117).
Foucault (1973/2013), em seu livro A verdade e as formas jurídicas, salienta que a
modificação das leis ocorrida no século XIX teve influência direta do pensamento de Bentham
e outros legisladores21. A partir desse momento histórico, as leis não devem mais se remeter a
uma ordem divina, religiosa ou moral, mas devem “simplesmente representar o que é útil para
a sociedade” (Foucault, 1973/2013, p. 82). A teoria utilitarista de Bentham responde aos efeitos
da secularização do mundo e do apagamento da exceção, portanto, consideramos necessário
refletir sobre as especificidades desse pensamento a fim de elucidar essa questão.
Como já evidenciamos, Lacan (1959-1960/2008a), em O Seminário, livro 7: a ética da
psicanalise, conecta o surgimento da teoria utilitarista com o momento histórico do declínio da
função do mestre e, para abordá-la, inicia uma reflexão sobre o prazer enquanto constituinte da
relação do homem com sua realidade.

21
A reelaboração teórica das leis do século XIX “pode ser encontrada em Beccaria, Bentham, Brissot e em outros
legisladores que são os autores do 1o e do 2o Código Penal francês da época revolucionária” (Foucault, 1973/2013,
p. 82).
26

Na Antiguidade, o prazer guiava o pensamento, este podendo ser qualificado de


hedonista. Pela impossibilidade de se verificar a veracidade dos prazeres, a via encontrada para
abordar essa questão pelos pensadores da época foi distinguir “os verdadeiros e falsos bens que
o prazer indica” (Lacan, 1959-1960/2008a, p. 265). Lacan (1959-1960/2008a) salienta que
nessa moral tradicional há uma tentativa de fazer com que o prazer seja visto como um bem. O
prazer correspondia à uma relação com a natureza e “o ascetismo do prazer mal precisava ser
acentuado, na medida em que a moral se baseava na ideia de que existia um bem em algum
lugar e de que era nesse bem que residia a lei” (Lacan, 1968-1969/2008c, p. 109). Nesse sentido,
“a questão do bem é desde o início articulada em sua relação com a Lei” (Lacan, 1959-
1960/2008a, p. 265) e é essa medida do bem, guiada pelo prazer, que orientava as relações entre
os homens.
O princípio do prazer tem sua importância reconhecida na teoria freudiana. No que se
refere a esse princípio, Lacan (1959-1960/2008a) aponta uma ambiguidade: ao mesmo tempo
em que busca uma regulação homeostática ao evitar qualquer excesso, ocorre o retorno do além
do princípio do prazer. Sendo assim, é ressaltado que o “emprego do bem se resume nisto, que,
em suma, ele nos mantém afastados de nosso gozo” (Lacan, 1959-1960/2008a, p. 222), o bem
seria um modo de controle do excesso pulsional. Para exemplificar isto, o psicanalista retoma
o mandamento do amor ao próximo como marca da tentativa de extrair prazer de um bem que,
no entanto, manifesta o distanciamento com relação ao próprio gozo.
De acordo com Lacan (1968-1969/2008c), o que sustentava a antiga ideologia do prazer
se encontra ultrapassado na modernidade, pois “a felicidade tornou-se um fator de política”
(Lacan, 1959-1960/2008a, p. 342). A questão do bem “deixou de ser uma questão abstrata para
se tornar objeto de um cálculo político” (Teixeira, 1999, p. 167). Segundo Teixeira (1999),
“trata-se do aparecimento, via Iluminismo, do discurso utilitário que substitui, em nome da
ciência, a promessa teológica de uma felicidade abstrata pelo cálculo político do máximo de
felicidade efetiva ao maior número [de pessoas]” (pp. 167-168).
Com relação à modernidade, Lacan (1968-1969/2008c) destaca que “certamente houve
um deslocamento radical com respeito ao prazer” (p. 110) e aborda esse deslocamento na sua
relação com os meios de produção capitalista. Nesse sentido, a questão da necessidade e do
desejo é retomada na relação do homem com o bem, de acordo com o que Marx desenvolve
sobre as “relações do homem com o objeto de sua produção” (Lacan, 1959-1960/2008a, p. 270).
Assim, abordando a questão “no nível dos bens” (Lacan, 1959-1960/2008a, p. 270),
Lacan a exemplifica com o uso que se pode fazer de um objeto, por exemplo, um pedaço de
pano, que pode ser transformado em uma roupa. O psicanalista afirma que o pano tem a
27

especificidade de ser uma fabricação do homem e de estar inserido na linguagem, pois está
“sujeito à moda, à antiguidade, à novidade” (Lacan, 1959-1960/2008a, p. 272). O valor de um
objeto depende do lugar prescrito a ele pela linguagem e “é como significante que o que quer
que seja se articula” (Lacan, 1959-1960/2008a, p. 272). Ao redor do objeto, da produção
humana, “se organiza toda uma dialética de rivalidade e partilha, na qual vão-se constituir as
necessidades” (Lacan, 1959-1960/2008a, p. 272). A articulação dos bens no nível significante
indica que “o problema dos bens se coloca no interior do que é a estrutura” (Lacan, 1959-
1960/2008a, p. 272).

A longa elaboração histórica do problema do bem é centrada, no final das contas, na noção de
como são criados os bens, dado que se organizam, não a partir de necessidades pretensamente naturais e
predeterminadas, mas enquanto fornecem matéria para uma repartição, em relação à qual se articula a
dialética do bem, na medida em que ela adquire seu sentido efetivo para o homem. (Lacan, 1959-
1960/2008a, p. 273).

As produções dos homens, sua relação com a satisfação de suas necessidades e com o
desejo, marcam a “encruzilhada do utilitarismo” (Lacan, 1959-1960/2008a, p. 273).
Diferentemente da moral antiga, a teoria utilitarista propõe que “o bem não está no nível do uso
do pano. O bem está no nível disto - o sujeito pode dele dispor” (Lacan, 1959-1960/2008a, p.
273). As necessidades dos homens passam a ser regidas pela máxima da utilidade. O
utilitarismo realiza “uma abordagem da questão do bem e do valor de uso inteiramente inserida
no nível do significante” (Teixeira, 1999, p. 171).
Lacan (1959-1960/2008a) aborda o tema do utilitarismo com base na obra de Jeremy
Bentham e ressalta que essa teoria introduz uma estrutura de ficção que tem como objetivo
tratar o real pelo simbólico. Bentham “é o homem que aborda a questão no nível do significante”
(Lacan, 1959-1960/2008a, p. 273). Em sua Teoria das ficções22 (Bentham, 1932/2002), ele
aborda a questão da partilha dos bens e do bem pela via do significante, orientando-se por uma
classificação utilitária.
Jeremy Bentham (1787/2008), considerado o pai do utilitarismo, desenvolveu o projeto
do panóptico como a materialização da sua teoria. A vigilância a partir de uma torre central é o
elemento chave da construção do panóptico. A arquitetura circular do edifício proporciona que
todos os pontos sejam visíveis pelo olhar onividente, a transparência é total. No panóptico tudo
é calculado, classificado enquanto sua serventia, e nada deve ser desperdiçado. Este modelo
arquitetônico governado pela lei da máxima utilidade é o exemplo de como se pode fazer uma

22
No original: “Theory of fictions”.
28

política através dos cálculos dos prazeres e do comando pelo saber. É um método que se propõe
a servir a diversas instituições, tais como prisões, escolas, fábricas, hospitais, etc.
Jacques-Alain Miller (2008), em seu texto “A máquina panóptica de Jeremy Bentham”,
destaca que o panóptico “é o modelo do mundo utilitarista: tudo nele é só artifício, nada de
natural, nada de contingente, nada que tenha o existir como única razão de ser, nada de
indiferente” (Miller, 2008, p. 93). O panóptico e a teoria utilitarista propõem uma tentativa de
eliminar o acaso. “A razão calculante encontra aqui seu império” (Miller, 2008, p. 93). Tudo
deve ser medido, planejado e calculado, tudo deve ter seu sentido declarado.
De acordo com Miller (2008), o cálculo utilitarista “é o postulado necessário para
racionalização da política” (p. 115) e “é o símbolo de uma justiça perfeita, que poderia medir
os danos e as reparações” (p. 115). Tal justiça se organiza a partir da ideia de que o homem é
submisso ao prazer e à dor, estes que são homogêneos e “são, um para o outro, como o positivo
para o negativo” (Miller, 2008, p. 115). O utilitarismo, em harmonia com o regime moderno,
dispensando a exceção divina e prezando pela igualdade, propõe uma administração alicerçada
no saber que provém do cálculo dos prazeres e da utilidade.
Bentham (1776/1988), em seu livro A Fragment on Government23, salienta o axioma
fundamental da teoria utilitarista: “o máximo de felicidade do maior número de pessoas é a
medida do certo e do errado” (p. 3, itálicos do autor, tradução nossa24), o que pode ser entendido
como o cálculo da felicidade enquanto uma medida que serve a todos e qualquer um. Sendo
assim, “nesse nível de homogeneidade, a lei da utilidade, como que implicando sua repartição
pela maioria, se impõe por si mesma como uma forma que, efetivamente, inova” (Lacan, 1959-
1960/2008a, p. 234).

As leis são apenas um dispositivo de linguagem, dominando em nome do útil o prazer e a dor.
[...] Imaginar uma lei natural, regular a lei positiva sobre direitos e deveres que lhe preexistissem,
é supor enunciados sem enunciação – salvo se se refere esta a um providencial emissor divino. Se não há
natureza legisladora, se o útil é única instância de legitimação, então é da lei, de sua enunciação efetiva,
humana, quer dizer, de um ato de linguagem, que nascem os direitos e os deveres. A legislação é de parte
a parte fenômeno de discurso - efeito de discurso (Miller, 2008, p. 117).

O utilitarismo, ao situar o bem na esfera da utilidade e oferecer a felicidade ao maior


número de pessoas, opera no nível do axioma de igualdade proposto pelo Contrato Social
(Rousseau, 1762/2014) e pela orientação política pós-revolucionária. Essa questão é realçada
por Lacan (1959-1960/2008a) ao dizer que o utilitarismo se relaciona com “o poderio

23
Um fragmento sobre o governo.
24
No original: “the greatest happiness of the greatest number that is the mesure of right and wrong”.
29

uniformizador de uma certa lei de igualdade, a que se formula na noção de vontade geral” (p.
234). De acordo com Teixeira (1999), “o utilitarismo pode ser visto como o discurso que soube
finalmente instituir, no lugar ausente do Pai, um princípio de organização coletiva fundado
sobre a equivalência imaginária do outro” (p. 175). Segundo Bentham (1776/1988):

O fim ao qual me refiro é a Felicidade: e essa tendência em qualquer ato é o que nós determinamos como
sua utilidade. […]
Da utilidade, então, podemos denominar um princípio que servirá para dirigir e governar, e tais
estratégias deverão ser empregadas nas diversas instituições ou combinação de instituições que compõem
a matéria dessa ciência: é somente esse princípio, ao colocar seu carimbo nos diversos nomes dados a
essas combinações, que poderá garantir satisfação e limpar qualquer arranjo que possa ser feito delas.
Governado dessa maneira por um princípio que é reconhecido por toda humanidade, o mesmo
acordo deverá servir com pouca variação para a jurisprudência de qualquer país (p. 26, itálicos do autor,
tradução nossa25).

A partir deste fragmento, é facilmente notável como a teoria das ficções de Bentham
desconsidera a particularidade dos contextos e dos indivíduos, servindo a todos os homens,
instituições e governos. Nesse sentido, podemos entender que a medida do certo e do errado é
assegurada pelo princípio da utilidade e não por uma referência a uma garantia externa e divina.
Para Foucault (2015), Bentham desperta o interesse após a Revolução, pois ele entrega uma
“fórmula, aplicável a muitos domínios diferentes, de um ‘poder exercendo-se por
transparências’. […] O panopticon é mais ou menos a forma do ‘castelo’ (torre cercada de
muralhas), utilizada paradoxalmente para criar um espaço de legibilidade detalhada” (p. 329,
itálico do autor). Nesse sentido, é importante ressaltar que

não se tem nesse caso uma força que seria dada por inteiro a alguém e que este alguém exerceria isolada
e totalmente sobre os outros; é uma máquina que circunscreve todo mundo, tanto aqueles que exercem o
poder quanto aqueles sobre os quais o poder se exerce. Isto me parece uma característica das sociedades
que se instauram no século XIX. O poder não é substancialmente identificado com um indivíduo que o
possuiria ou que o exerceria devido a seu nascimento; ele se torna uma maquinaria de que ninguém é
titular (Foucault, 2015, p. 332).

O que é expresso no panóptico e na teoria utilitarista está em consonância com o axioma


igualitário pós-revolucionário, pois é patente como o poder se encontra despersonalizado neste
sistema. Segundo Foucault (2015), Bentham submete todos à vigilância, pois

25
No original: “The end I mean is Happiness: and this tendency in any act is what we style its utility. […]
From utility then we may denominate a principle, that may serve to preside over and govern, as it were, such
arrangement as shall be made of the several institutions or combinations of institutions that compose the matter of
this science: and it is this principle, that by putting its stamp upon the several names given to those combinations,
can alone render satisfactory and clear any arrangement that can be made of them.
Governed in this manner by a principle that is recognized by all men, the same arrangement that would serve
for the jurisprudence of any one country, would serve with little variation for that of any other.”
30

ele não pode confiar em ninguém à medida que ninguém pode ou deve ser aquilo que o rei era no antigo
sistema, isto é, fonte de poder e justiça. A teoria da monarquia o exigia. Era preciso confiar no rei. Por
sua própria existência, desejada por Deus, ele era fonte de justiça, de lei, de poder. Em sua pessoa o poder
só podia ser bom; um mau rei equivalia a um acidente da história ou a um castigo do soberano
absolutamente bom, Deus. Já não se pode confiar em ninguém se o poder é organizado como uma máquina
funcionando de acordo com engrenagens complexas, em que é o lugar de cada um que é determinante,
não sua natureza. Se a máquina fosse de tal forma que alguém estivesse fora dela ou só tivesse a
responsabilidade de sua gestão, o poder se identificaria a um homem e se voltaria a um poder tipo
monárquico. No panopticon, cada um, de acordo com seu lugar, é vigiado por todos ou por alguns outros;
trata-se de um aparelho de desconfiança total e circulante, pois não existe ponto absoluto. A perfeição da
vigilância é uma soma de malevolências (p. 334, itálico do autor).

O que o utilitarismo demonstra, diferentemente de um poder fundado em uma figura de


exceção, é que não há exceção: todos são iguais e devem ser vigiados. Além do mecanismo de
vigilância panóptico, Bentham utiliza “a linguagem como poder de legislação” (Miller, 2008,
p. 119). O utilitarismo se esforça por dominar o mundo simbolicamente e Miller (2008) indica
que “o mundo, nesse lugar, será de cabo a rabo dominado. Não há detalhes de que o discurso
não se encarregue” (p. 92). A tentativa utilitarista é de submeter toda a natureza à utilidade,
criando “um mundo sem dejetos” (Miller, 2008, p. 96) por meio da classificação excessiva, isto
é, “para o utilitarista, o discurso e o real são reversíveis, sem resto” (Miller, 2008, p. 105).
O tema do utilitarismo é retomado por Lacan (1972-1973/1985) em O Seminário, livro
20: mais, ainda. O autor introduz novamente a questão da distribuição de gozo enquanto
essência das leis e destaca que há uma oposição fundamental entre o gozo e o útil, sendo que
“o gozo é aquilo que não serve para nada” (Lacan, 1972-1973/1985, p. 11). A utilização da
linguagem enquanto aparelho que coordena o gozo é o que o utilitarismo apresenta: que as
palavras servem “para que haja o devido gozo. Só que – equívoco entre o dever e a dívida – o
gozo devido é de se traduzir pelo gozo que não se deve” (Lacan, 1972-1973/1985, p. 80, itálicos
do autor). Bentham demonstra como a linguagem opera enquanto utensílio da organização
social, na ordenação e distribuição do gozo, e propõe a máxima da utilidade como o que irá
regular o valor de uso dos objetos e as necessidades dos homens.
Ao considerar o uso dos objetos pelo viés de um sistema significante que valoriza
somente sua utilidade, Bentham (1776/1988) propõe calcular e classificar o valor de uso nos
moldes do valor de troca. Porém, para Lacan (1959-1960/2008a), é necessário lembrar que “há
no início outra coisa além de seu valor de uso – há sua utilização de gozo” (p. 273). Na mesma
lógica capitalista, o utilitarismo intenta suprimir a existência da “utilização de gozo”, esta
qualitativa e inclassificável, e propõe uma orientação da organização social pela via da
necessidade. Para Lacan (1959-1960/2008a),
31

as necessidades do homem se alojam no útil. É a parte tomada do que, no texto simbólico, pode ser de
alguma utilidade. Nesse estádio não há problema – o máximo de utilidade para a maioria, tal é a lei
segundo a qual, nesse nível, o problema da função dos bens se organiza (p. 273).

“O âmbito do bem é o nascimento do poder” (Lacan, 1959-1960/2008a. p. 274). A


função dos bens, sua produção e repartição são retomadas por Lacan (1959-1960/2008a) como
a via histórica das relações de poder que Freud já havia indicado: “dispor de seus bens é ter o
direito de privar os outros de seus bens” (p. 274). Segundo o psicanalista, “a dimensão do bem
levanta uma muralha poderosa na via de nosso desejo” (Lacan, 1959-1960/2008a. p. 274) e o
que se destaca é “a distância que há da organização dos desejos à organização da necessidade”
(Lacan, 1959-1960/2008a. p. 269).

O serviço dos bens tem exigências, [...] a passagem da exigência de felicidade para o plano
político tem consequências. O movimento no qual o mundo em que vivemos é arrastado promovendo até
suas últimas consequências o ordenamento universal do serviço dos bens implica uma amputação,
sacrifícios, ou seja, esse estilo de puritanismo na relação com o desejo que se instaurou historicamente.
O ordenamento do serviço dos bens no plano universal não resolve, no entanto, o problema da relação
atual de cada homem, nesse curto espaço de tempo entre seu nascimento e sua morte, com seu próprio
desejo - não se trata da felicidade das futuras gerações (Lacan, 1959-1960/2008a, p. 356).

Essa orientação do mundo a partir da utilidade dos bens, “rejeitando tudo o que concerne
à relação do homem com o desejo” (Lacan, 1959-1960/2008a, p. 372), é localizada enquanto
uma “perspectiva pós-revolucionária” (Lacan, 1959-1960/2008a, p. 372). Esta forma de
orientação moderna faz com que o desejo não seja levado em consideração, pois é no nível da
necessidade que a questão se coloca.
A classificação utilitarista e seu cálculo dos prazeres se fundamentam na redução do
“desejo à dimensão da necessidade” (Teixeira, 1999, p. 178). É possível resumir assim: “a
solução utilitária consiste, grosso modo, em esvaziar as coisas de seu valor pessoal,
padronizando-as conforme a medida contingente do interesse segundo a matéria que elas
fornecem à partilha social como valor de uso”. (Teixeira, 1999, p. 178, itálicos do autor). Esse
movimento de organização somente é possível a partir da ideia de um Estado universal, pois

ou bem eles deixam a entender que os valores propriamente estatais do Estado desaparecerão, [...] , ou
bem eles introduzem um termo como o de Estado universal concreto, o que não quer dizer nada além de
supor que as coisas mudarão no nível molecular, no nível da relação que constitui a posição do homem
diante dos bens uma vez que até agora seu desejo aí não se encontra (Lacan, 1959-1960/2008a, p. 372).

De acordo com Lacan (1960-1961/2010), a moral utilitarista “tem um papel


fundamental no reconhecimento dos objetos constituídos naquilo que se pode chamar o
mercado dos objetos. São objetos que podem servir a todos” (p. 301). Nesse sentido, a escolha
32

utilitarista “por uma concepção estritamente homogênea dos indivíduos que entram no cálculo
utilitário não poderia se realizar senão a partir do sujeito constituído pela ciência moderna,
destituído como tal de toda prerrogativa” (Teixeira, 1999, p. 169)
Como verificamos, a teoria utilitarista tem relação íntima com a racionalidade moderna
que é transportada para diversos âmbitos sociais. E, para além do apagamento do desejo na
vertente utilitária, a ciência moderna também tem efeitos sobre o desejo. Segundo Marie Hélène
Brousse (1999), em seu livro Los quatro discursos y el Otro de la modernidad26, a ciência
moderna tende a excluir a particularidade do cientista do saber que será produzido e, como
resultado, acaba por manipular o saber de forma a excluir “a verdade como resultado do desejo”
(p. 170, tradução nossa27). Dessa forma, pretendemos elucidar a leitura lacaniana dos efeitos da
racionalidade moderna, do avanço da ciência e do capitalismo sobre o desejo.

2.4 Efeitos da modernidade no desejo e na ordem social

Certamente é sensível em toda parte, existem em nossa época todos os elementos de uma
dramaturgia, que deve nos permitir colocar em seu nível o drama daquilo com que temos de lidar quando
se trata do desejo (Lacan, 1960-1961/2010, p. 335).

A leitura da tragédia moderna é realizada por Lacan (1960-1961/2010) a fim de elucidar


as modificações na organização do social e seus efeitos no nível do desejo. A tragédia em
questão se trata da trilogia de Claudel – L’Otage, Le Pain dur e Le Père humilié-, que se
desenrola no contexto do final da Revolução Francesa. Segundo Brousse (1999), o fato da
tragédia se passar nesse contexto de restauração após a Revolução merece toda a importância.
Como analisamos, as transformações do saber produzido com o avanço da ciência
moderna junto à secularização do mundo trazem consigo a destituição da garantia do poder no
fundamento divino. Este fato é notado por Lacan (1969-1970/1992), em seu Seminário 17: o
avesso da psicanálise, ao propor que o discurso da ciência rechaça o discurso mítico.
Nesse sentido, podemos realizar uma leitura da intenção de Lacan ao tratar a tragédia
moderna em oposição à tragédia clássica, na qual o Édipo está situado. Na tragédia clássica do
mito de Édipo, o pai não era castrado. Considerando que o Édipo foi o sonho de Freud, assim
como Lacan (1969-1970/1992) nos diz, a referência à tragédia moderna traz consigo a evidência

26
Os quatro discursos e o Outro da modernidade.
27
No original: “ la verdad como resultado del deseo”.
33

da castração do pai, o que pode ser entendido como a forma com que Lacan pensa “a mudança
da função paterna na modernidade” (Brousse, 1999, p. 59, tradução nossa28).
O que é importante ressaltar na abordagem de Lacan da tragédia claudeliana é que o
autor a utiliza na intenção de demonstrar como a mudança da função paterna traz consequências
ao campo do desejo e realiza uma “diferenciação entre pai e saber” (Brousse, 1999, p. 60,
tradução nossa29). Sendo assim, com a intenção de evidenciar essas mudanças no campo da
psicanálise, iremos privilegiar alguns pontos principais da leitura lacaniana desta obra de
Claudel, uma vez que não consideramos possível trazer ao texto todas as suas minúcias. Para
tal, nos valemos da leitura realizada por Brousse (1999), no livro já aludido, e por Antônio
Teixeira (1999) em seu livro O topos ético da psicanálise.
A leitura de Teixeira (1999) sobre o que a condição trágica da obra de Claudel apresenta
à Lacan é referida à conexão entre a dissolução dos valores que orientavam o mundo e a
emergência da ciência moderna. Como já vislumbramos neste capítulo, o desenvolvimento da
ciência e do capitalismo provoca mudanças sociais e políticas. A orientação da ciência pela
referência matemática ocorre por esta ser uma linguagem que possibilita o distanciamento de
todo sentido possível e a eliminação da subjetividade do próprio cientista.

De tudo isso se conclui que se o progresso da ciência moderna conduz à eliminação de Deus, seu
ateísmo testemunha menos uma atitude de contestação teológica do que sua necessidade constitutiva de
elidir tudo que evoque a relação do sujeito com o desejo do Outro, enquanto causa fundadora do seu
desejo (Teixeira, 1999, p. 136).

Para o autor, a mutação que podemos perceber na obra de Claudel se refere à influência
da ciência moderna, pois esta determina o destino de forma contingente, diferente da tragédia
antiga, na qual o destino tinha uma finalidade conectada à tradição.
A abordagem da tragédia claudeliana por Lacan (1960-1961/2010) se inicia pela peça
L’Otage e os primeiros pontos abordados são o seu contexto, o qual se verifica na restauração
dos poderes após a Revolução Francesa, e “o constrangimento exercido pelo Imperador sobre
a pessoa do Papa” (p. 337). Sendo assim, para que a vida do Papa fosse resguardada é proposto
que Sygne, que era apaixonada por seu primo Georges e se dedicava a cuidar da terra herdada
de seus pais, se case com Toussaint de Turelure. Turelure era filho dos empregados da família
de Sygne, família em cujo extermínio ele colabora. Após a Revolução, ele se tornou rico e
poderoso, o novo soberano. Sygne é orientada a renunciar “ao amor, ao nome, à causa e à honra”

28
No original: “el cambio de la función paterna en la modernidad”.
29
No original: “diferenciación entre padre y saber”.
34

(Brousse, 1999, p. 61, tradução nossa30) e se casar com Turelure. Ela aceita, e vive um
casamento infeliz. O que é bem assinalado por Lacan é

a degradação das figuras paternas, porque o Papa está fugindo, o Rei foi guilhotinado, e Turelure é o novo
soberano no sentido que reduz tudo: o sangue, a honra, o filho, o amor, a um caso de interesse pelo
dinheiro, ou seja, é um mestre capitalista (Brousse, 1999, p. 62, tradução nossa31).

Segundo Teixeira (1999), a fraqueza do Papa, enquanto o que faz Sygne renunciar ao
amor e à sua tradição familiar, está relacionada com a exclusão de Deus promovida pela ciência
moderna. A constatação de que o Pai não é todo e de que há uma falta no Pai é o que caracteriza
a questão moderna. Para o autor, isso já estava evidenciado na forma com que Lacan trata de
Hamlet enquanto o homem moderno, este que sabe sobre a falta paterna. Sendo assim,

a razão pela qual o saber acerca do gozo sinaliza sua transmutação encontra-se ligada, ao que nos parece,
ao desaparecimento progressivo da função paterna como vetor da dívida simbólica, na medida em que o
Pai, no lugar de fazer exceção ao saber do sujeito, passa a ser interrogado (Teixeira, 1999, p. 140).

O ponto final desta primeira peça é o que nos interessa no tocante à sua diferença radical
com a tragédia antiga, pois Sygne “se sacrifica em um atentado ao receber o disparo fatal
destinado ao marido odiado, ou seja, o cúmulo do sacrifício!” (Brousse, 1999, p. 61, tradução
nossa32). Nessa tragédia moderna, a heroína não se identifica com seu destino e esse é o fato
essencial dessa passagem. Sygne “deve renunciar àquilo que é seu próprio ser – ao pacto que a
liga, desde sempre, à sua própria família, já que se trata de casar-se com o exterminador dessa
família” (Lacan, 1960-1961/2010, p. 341). De acordo com Brousse (1999),

aqui temos uma heroína que se identifica totalmente com a negação: com a negação de si mesma, com a
negação do social, com a negação ao pai claramente. Se identifica com um não, além do terror e da
lástima, significa dizer, com um ‘não’ que vai além de todas as barreiras: a barreira do bem, a barreira da
morte, a barreira da angústia e a barreira da compaixão (p. 63, tradução nossa33).

Dessa forma, o ato de negação de Sygne demonstra que seu desejo está ligado a uma
negatividade radical e que

30
No original: “al amor, al nombre, a la causa y al honor”.
31
No original: “La degradación de las figuras paternas, porque el Papa está huyendo, el Rey ha sido guillotinado,
y Turelure es el nuevo amo en el sentido que reduce todo: la sangre, el honor, el hijo, el amor, a un caso de interés
por el dinero, es decir, es un amo capitalista”.
32
No original: “se sacrifice en un atentado al recibir el disparo fatal destinado al marido odiado, o sea, el colmo
del sacrificio!”.
33
No original: “aqui tenemos una heroína que se identifica totalmente con la negación: com la negación de sí
misma, con la negación de lo social, con la negación al padre claramente. Se identifica con un no, más allá del
terror y de la lástima, es decir, con un “no” que va más allá de todas las barreras: la barrera del bien, la barrera de
la muerte, la barrera de la angustia y la barrera de la compasión”.
35

nada pode deter esse desejo decidido de não seguir relacionado com uma função paterna tipo edípica, tipo
freudiana, tipo lei e proibição. Quando a função paterna não se identifica mais com a versão freudiana,
isso é o que acontece com o desejo (Brousse, 1999, p. 63, tradução nossa34).

O que pode ser considerada a marca dessa leitura lacaniana da obra de Claudel é que o
Nome-do-Pai, na sua vertente freudiana, asseguraria a transmissão de um nome e um destino.
Podemos perceber que nessa tragédia moderna o Nome-do-Pai não mais assegura esse destino,
já que Sygne aceita o casamento e recusa a vida.
A sabedoria, a herança e a tradição da família acabam sendo refutadas por Sygne. É a
partir desse ponto que elucidaremos o que Brousse (1999) chama de uma separação entre pai e
saber, verificada na obra de Claudel. Retomando a questão cartesiana da dúvida metódica, esta
que mantém Deus somente enquanto o que a assegura, mas não interfere no saber que resulta
desse procedimento, verificamos que “ela não admite nenhuma sabedoria para além do saber
fundado sobre a evidência matemática” (Teixeira, 1999, p. 141). Todo o saber deve ser
desligado da tradição, deve ser questionado e ser resultado de métodos racionais.
A partir da obra de Claudel, verificamos, como Teixeira (1999) afirma, o
questionamento e a destituição do saber antigo através do uso da razão, e sua sucessão por uma
orientação política contratual, fundada na utilidade e no capital. Dessa forma, o autor sinaliza a
substituição do poder fundado na garantia divina por relações baseadas no contrato, troca
expressa na cena em que Pensée, neta de Sygne, sugere que advogados irão substituir o lugar
dos reis que foram destituídos de seu poder.
Sabemos que o pensamento de Rousseau caracteriza o estabelecimento moderno das
relações contratuais, nas quais não há a possibilidade de existência de uma figura de autoridade
como exceção. Dessa forma, podemos relacioná-lo ao discurso da ciência, este que “sempre se
afirmou, por sua parte, ao modo de uma recusa sistemática de toda relação de exceção, nela
compreendido o próprio sujeito que deste discurso emerge como puro efeito” (Teixeira, 1999,
p. 142). Assim, podemos entender a mudança de orientação do desejo de Sygne, de sua
referência à tradição familiar para uma pura negatividade, como efeito desse movimento pós-
revolucionário, pois

a guilhotina se torna então a grande igualizadora da Razão científica, da qual ela é o traçado materializado.
Ela é o instrumento que mostra ao povo que o rei é um homem como qualquer outro e que ninguém se

34
No original: “nada puede detener este deseo decidido de no seguir relacionado con una función paterna tipo
edípica, tipo freudiana, tipo Ley y prohibición. Cuando la función paterna no se identifica más con la versión
freudiana, eso es lo que sucede con el deseo”.
36

encontra acima das Leis escritas. Mas a liberdade que resta neste reino da vontade universal, onde o lugar
de exceção do Pai se apaga, é a liberdade de desejar em vão (Teixeira, 1999, pp. 150-151).

Assim, nos valendo do pensamento utilitarista, que foi previamente elucidado,


percebemos que nas trilhas dessa Revolução a utilidade é o que advém como finalidade, esta
que substitui o destino proposto pelo saber antigo e divino, que foi questionado e degradado.
Sendo assim,

aquilo que, na ciência moderna, se nos apresentava como um sujeito vazio de um desejo sem causa,
relacionado a um universo contingente e matematizado, realiza-se, sob o Iluminismo, ao modo do sujeito
abstrato de uma vontade universal, referido a um mundo inteiramente submetido à contingência do
interesse. Diante da substituição do homem singular pelo cidadão calculável do Contrato Social, a certeza
que triunfa é a certeza do sujeito universal, do sujeito racional enquanto único fim em si mesmo, com
relação ao qual todas as coisas podem ser consideradas segundo sua utilidade (Teixeira, 1999, p. 145).

Nesse sentido, a instância do útil será utilizada enquanto guia da organização social,
pois o saber da tradição e a autoridade divina não mais a orientam. Todavia, guiado pela
utilidade e extraído de formalizações matemáticas, esse saber é subvertido, pois, diferentemente
do saber antigo da tradição, o saber da ciência moderna passa a ser substituível e deslocável.
Ressaltando a perspectiva da orientação utilitária e capitalista no contexto pós-
revolucionário, outra cena dessa peça é evocada por Teixeira (1999) ao indicar que o filho de
Sygne, Louis de Coûfontaine, “reduz o crucifixo cuidadosamente conservado por sua mãe a
uma peça de bronze, vendendo-a ao preço de quatro francos por quilo a seu futuro sogro” (p.
178). Fica novamente realçado como a dimensão da necessidade introduzida pelo utilitarismo
reduz o significado pessoal dos objetos ao que pode ser mensurável enquanto utilidade e valor.
Como Lacan (1960-1961/2010) aponta:

Os utilitaristas têm inteira razão quando dizem que cada vez que lidamos com algo que pode ser trocado
com nossos semelhantes, a regra é sua utilidade - não para nós, mas a sua possibilidade de uso, a utilidade
para todos e para o maior número (p. 301).

O que é importante ressaltar, após a verificação da castração do mestre apontada pela


abordagem lacaniana da Revolução Francesa, do utilitarismo e da tragédia de Claudel, é que há
uma modificação na forma de tratamento da estrutura simbólica, esta que organiza o laço social.
Segundo Brousse (1999), ao verificar que o Nome-do-Pai não opera na tragédia moderna da
forma como fazia na tragédia antiga, Lacan propõe a sua pluralização, pois verifica seu uso
enquanto uma suplência, um semblante.
Essa mudança na estrutura do laço social, referida à destituição da exceção, pode ser
lida a partir do significante do Outro barrado - S (A/) -, proposto por Lacan (1960/1998f). No
37

texto “O outro que não existe e seus comitês de ética”, Éric Laurent e Jacques-Alain Miller
(1998), a partir desse matema, sustentam a inexistência do Outro, verificam a ruína do reino
Nome-do-Pai e a consequente pluralização dos Nomes-do-Pai. De acordo com os autores, o
reino do Nome-do-Pai, referido ao Édipo freudiano, demonstrava a existência do Outro
enquanto uma exceção. Com a pluralização dos Nomes-do-Pai, na modernidade, ocorre a
verificação que o Outro não existe e que é sua estrutura de semblante que garante a ordenação
social.
O Outro barrado denota a abertura do campo do saber pela incidência do discurso da
ciência moderna, a falta de consistência do Outro que inaugura o universo dos discursos. Essa
modificação na ordem social também foi assinalada por Lacan (1967/2003a), em seu texto
“Alocução sobre as psicoses das crianças”, ao indicar a entrada da civilização em uma era
“planetária” (p. 360), quando o Império se substituiria pelos imperialismos a partir do efeito do
progresso da ciência nas estruturas sociais. Com respeito aos imperialismos, podemos entender
com Laurent e Miller (1998) que à medida em que o Outro da tradição é destituído e sua função
de semblante é desvelada, o que resta aos sujeitos é debater e buscar um consenso. Para os
autores, “a inexistência do Outro implica e explica a promoção do laço social no vazio que ela
abre” (Laurent & Miller, 2008, p. 9). Sendo assim, Laurent e Miller (2013) sustentam que Lacan
propôs os quatro discursos como as formas de laço social que substituem esse lugar do Outro
não barrado, a partir do momento em que é verificada a sua estrutura de semblante.
Para Miller (2005a), os discursos formalizados por Lacan nos mostram que mesmo
quando Um, o Nome-do-Pai, não opera da forma antiga, seu lugar de agente no discurso
permanece. Todos os quatro discursos comportam no lugar de agente algo que opera ocupando
a posição de semblante do Um. Segundo Miller (2005a), os discursos de Lacan “esclarecem os
dados de estrutura que constituem a dimensão política” (p. 210) e “permitem ordenar e decifrar
algumas tensões que percorrem o mundo contemporâneo” (p. 212).
A partir dessas indicações, pretendemos, no próximo capítulo, nos endereçar à análise
dos quatro discursos e do discurso capitalista na obra lacaniana. Para tal, nos direcionaremos à
leitura do Seminário, livro 16: de um Outro ao outro (Lacan, 1968-1969/2008c), o “ateliê dos
quatro discursos” (Miller, 2007, p. 15). Neste seminário visamos investigar como Lacan
formula a inconsistência do Outro e o mais-de-gozar em sua relação com os avanços da
modernidade. Nosso objetivo é esclarecer como a transformação da ordem social a partir das
mudanças conduzidas pela ciência, pela filosofia e pelo capitalismo modernos, evidenciadas
nesse capítulo, pode ser lida tendo como base as fórmulas discursivas de Lacan (1969-
1970/1992, 1972).
38

3 DO MESTRE ANTIGO AO MESTRE MODERNO

O fator de que se trata é o problema mais intenso de nossa época, na medida em que ela foi a
primeira a sentir o novo questionamento de todas as estruturas sociais pelo progresso da ciência (Lacan,
1967/2003a, p. 360).

Esse dito de Lacan, proferido em 1967, nos orienta na elaboração deste capítulo. O autor
indica que devemos considerar a importância dos efeitos dos avanços científicos no nível da
subjetividade e do funcionamento do social.
No que se refere à Revolução Francesa e seus efeitos, verificados não somente na
Universidade, mas também na organização social, enfatizamos a destituição da autoridade,
fundada na exceção, e da figura do mestre na transmissão do saber da tradição. A partir da
leitura lacaniana da tragédia de Claudel, destacamos a incidência do discurso da ciência na
modernidade, provocando o seu afastamento dos valores da tradição e da autoridade e também
o apagamento do desejo ao ser reduzido à dimensão de necessidade. Como resultado,
constatamos que, rechaçando o discurso mítico, a modernidade se orienta a partir do utilitarismo
e do capitalismo.
Os efeitos da ciência, fundada na lógica matemática, em conjunção com os avanços do
capitalismo, são trabalhados no desenvolvimento dos quatro discursos de Lacan em O
Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise (1969-1970/1992) e no seminário que o precede,
O Seminário, livro 16: de um Outro ao outro (1968-1969/2008c).
Segundo Marcele Marini (1991), em seu livro Lacan: a trajetória de seu ensino, a
proposição dos quatro discursos está diretamente ligada aos acontecimentos de 1968 na França.
É importante retomar o contexto social desses seminários, pois o movimento estudantil de maio
de 1968 gerou protestos ao questionar o setor educacional, estabeleceu uma aliança com os
operários e foi considerado a maior greve geral da Europa. Esse movimento é marcado pela
denúncia da “colisão do saber e do poder; num sentido mais profundo ainda, questiona-se o
próprio saber, recusando com violência todo sistema teórico totalizante” (Marini, 1991, p. 82).
O início do movimento estudantil foi marcado pelos conflitos com as autoridades
universitárias. Houve uma repressão violenta do governo, o que levou partidos políticos e os
sindicatos a convocarem uma greve geral. Esse fato pode nos indicar como a ciência e o
capitalismo têm uma relação íntima, oferecendo como exemplo a união da revolta estudantil e
dos movimentos trabalhistas.
39

Apoiado nesse contexto, Lacan (1968-1969/2008c) nos dá uma primeira ideia de como
a ciência, juntamente ao capitalismo, induziu à criação de um mercado dos saberes ao “trazer
essa unidade de valor que permite sondar o que acontece com sua troca” (p. 19). Como veremos
adiante, Lacan, tanto no Seminário 16 quanto no Seminário 17, desenvolve a sua tese sobre as
mutações no laço social promovidas pela instalação do discurso da ciência e do capitalismo, e
o faz sem aderir à contestação do discurso dominante promovida pelo movimento de maio de
1968. O autor, inclusive, tece críticas à forma revolucionária que esse movimento assume, ao
questionar o discurso dominante, e indica o modo como as revoluções podem terminar
estabelecendo outras formas de dominação que comportam, também, efeitos mortíferos.
Sérgio Laia (2009), em “Análise e interpretação de uma efusão coletiva: os discursos, a
ação lacaniana a partir de maio de 68 e suas consequências”, indica que não é somente a
proximidade dos acontecimentos de maio de 1968 que marca o Seminário 17, mas também a
própria interpretação de Lacan sobre esses acontecimentos. De acordo com o autor, esse
seminário se aproxima de uma “‘apresentação de pacientes’, na qual estes foram substituídos
pelos acontecimentos político-sociais daquela época” (Laia, 2009, p. 2).
Podemos entender que a ordenação dos laços sociais a partir dos matemas dos quatro
discursos permite abordar tanto a clínica quanto a política e os acontecimentos sociais. O
estabelecimento desses matemas tem por intenção servir como fórmulas operatórias que
permitam ler os laços sociais, entendidos aqui como efeitos de linguagem, isto é, efeitos
discursivos.
Segundo Laurent (1992), o movimento de produção dos quatro discursos tem, para
Lacan, a intenção de verificar como o gozo se apresenta no mundo contemporâneo. Para o autor,
Lacan elucida a inconsistência do Outro ao longo de seu Seminário 17 e, partindo dos três
impossíveis localizados por Freud (1937/1996) - governar, educar e analisar -, demonstra haver
algo que escapa à ordenação em cada um dos discursos. Sendo assim, “governar, educar e
psicanalisar são desafios, de fato, mas ao dizê-los impossíveis só fazemos garantir
prematuramente que sejam reais” (Lacan, 1970/2003g, p. 444). A construção dos discursos se
refere às formas de dominação e domesticação, aos modos de tratamento do gozo, a partir do
que ocupa o lugar de semblante de mestre.
Primeiramente, iniciaremos a investigação a respeito do tratamento lógico que Lacan
(1968-1969/2008c) propõe sobre o Outro enquanto inconsistente e sobre o objeto a, realizado
no Seminário 16, que foi necessário para o estabelecimento dos discursos. Posteriormente,
seguiremos na elaboração dos quatro discursos, no Seminário 17 (Lacan, 1969-1970/1992), e
na elucidação da função de exceção no discurso do mestre. Continuaremos o estudo sobre o
40

modo como a ciência, juntamente com o capitalismo, implicou a emergência de um discurso do


mestre moderno que suprime a exceção e modifica o lugar do saber. Finalizando, abordaremos
a leitura de Lacan sobre os efeitos das modificações nos laços sociais apresentadas nas fórmulas
do discurso universitário e do discurso capitalista.

3.1 A inconsistência do Outro e o mais-de-gozar

O Seminário 16 de Lacan (1968-1969/2008c) pode ser considerado o “ateliê dos quatro


discursos” (Miller, 2007, p. 15). Isto se deve ao tratamento lógico que Lacan realiza do objeto
a, enquanto mais-de-gozar, e do Outro enquanto inconsistente. Essas duas elaborações lógicas
possibilitaram a formulação dos quatro discursos e foram desenvolvidas por Lacan fazendo
referência ao progresso da ciência e do capitalismo.
Em seu texto “Uma leitura do Seminário, livro 16: De um Outro ao outro”, Miller (2007)
destaca que uma primeira leitura da incompletude do Outro havia sido realizada por Lacan pela
via do significante. Diferente dessa abordagem, nesse seminário, Lacan (1968-1969/2008c)
aborda o Outro ressaltando sua inconsistência. A importância desse deslocamento no ensino de
Lacan, da incompletude à inconsistência, ocorre pela afirmação de que “hoje no campo do
Outro não há possibilidade de consistência do discurso” (Miller, 2007, p. 13).
A ordenação discursiva é abordada por Lacan (1968-1969/2008c) na forma de “uma
ordem simbólica” (p. 286), pois ele não considera que exista “a” ordem simbólica, uma única
ordem, e sim diversas ordenações possíveis. Nessa sequência, Lacan (1968-1969/2008c) afirma
que “toda evocação da falta supõe instituída uma ordem simbólica” (p. 286). E ele continua:
“O que é uma ordem simbólica? É mais do que apenas uma lei, é também uma acumulação,
ainda por cima numerada. É uma ordenação” (Lacan, 1968-1969/2008c, p. 286).
Nesse sentido, o psicanalista salienta que a contagem é fundamental na organização
social, pois “aquele que sabe contar pode repartir; ele distribui e, por definição, quem distribui
é justo. Todos os impérios são justos” (Lacan, 1968-1969/2008c, p. 288). O que fica destacado
é a maneira como o significante faz parte dos mecanismos de poder.
Lacan (1968-1969/2008c) irá desenvolver o conceito de mais-de-gozar fazendo
referência ao conceito marxista de mais-valia. Antes de elucidarmos o caminho percorrido pelo
psicanalista nessa elaboração, devemos nos lembrar que anteriormente o objeto a foi referido a
um objeto que depende da extração no corpo e também a uma “perda independente do
41

significante” (Miller, 2012, p. 20). Na elaboração do mais-de-gozar, Lacan introduz a lógica


“no lugar da biologia” (Miller, 2007, p. 12). Sabemos que essa abordagem pela forma do mais-
de-gozar não esgota o que é da ordem do gozo, mas, aqui, ela é importante para esclarecer como
o gozo está inserido na estrutura discursiva. Essa nova abordagem do gozo trata do modo como
esse elemento funciona ao ser inserido na linguagem, em relação ao S1 e S2. Sendo assim, Miller
(2007) levanta o seguinte questionamento:

Em que medida falar do gozo a partir do elemento mais-de-gozar é um artifício? O argumento para dizer
que não é um artifício ou que não se esgota em seu status de artifício, é que isso já teria aparecido na
história. […]
Contudo, ele [Lacan] diz que apareceu na história e que só emergiu em seu discurso porque a
virada na história já havia sido feita. O saber já havia tomado um caminho tal que podia desembocar no
discurso analítico. Foi essa virada que pôs o objeto a ao nosso alcance. O que foi essa virada na história?
Lacan visa principalmente a história do saber, o que Marx soube fazer da mais-valia (pp. 37-38).

Para entendermos o conceito de mais-valia é necessário evocar o princípio da


equivalência geral na teoria marxista, já abordado no primeiro capítulo. Esse princípio propõe
um tratamento quantitativo e calculável dos objetos, pois é esse valor, resultado do cálculo, que
permite a troca de mercadorias (Lukács, 1923/2003). Para que esse princípio possa organizar
as trocas no mercado, o valor de uso, a parte qualitativa da mercadoria, deve ser desconsiderado.
Segundo Lukács (1923/2003), o princípio do capitalismo moderno é a “racionalização
baseada no cálculo, na possibilidade do cálculo” (p. 202, itálicos do autor). A introdução dessa
racionalização no mercado de trabalho incide nos homens, pois “essa mecanização racional
penetra até na ‘alma’ do trabalhador” (Lukács, 1923/2003, p. 202). Ocorre o tratamento do
homem, enquanto força de trabalho, a partir do mecanismo calculador do valor de troca. Dessa
forma, a força de trabalho é tomada enquanto uma mercadoria da qual o homem é o
“proprietário” (Lukács, 1923/2003, p. 209), e realiza-se uma objetificação do homem, um
“tornar-se mercadoria” (Lukács, 1923/2003, p. 209).
Não pretendemos esgotar o conceito marxista de mais-valia, porém seguiremos algumas
indicações de Lacan sobre a maneira como o referido conceito orienta a construção do mais-
de-gozar. De acordo com o psicanalista,

Marx parte da função do mercado. Sua novidade é o lugar em que ele situa o trabalho nesse mercado. Não
se trata de o trabalho ser novo, mas de ele ser comprado, de haver um mercado de trabalho. É isso que
permite a Marx demonstrar o que há de inaugural em seu discurso, e que se chama mais-valia (Lacan,
1968-1969/2008c, p. 17).

A mais-valia fica demonstrada no lucro, resultado final da operação mercantil, que


expõe a diferença entre o valor total do custo de produção de uma mercadoria e o seu valor de
42

venda. A mais-valia é fruto do trabalho remunerado com “seu preço verdadeiro, tal como a
função do valor de troca o define no mercado” (Lacan, 1968-1969/2008c, p. 37). Entretanto,
fica evidente que “existe um valor não remunerado naquilo que aparece como fruto do trabalho,
porque o preço verdadeiro desse fruto está em seu valor de uso” (Lacan, 1968-1969/2008c, p.
37).
O lucro do capitalista é indício da exploração do trabalhador. Lacan (1969-1970/1992)
esclarece que o segredo dessa operação é a “redução do próprio trabalhador a ser apenas valor”
(p. 84). Ao aceitar ter sua força de trabalho reduzida ao valor de troca, o trabalhador consente
com sua exploração e renuncia a uma parte de seu trabalho, esta que não será remunerada.
A partir dessas orientações, o psicanalista evidencia que no início desse processo está a
renúncia do trabalhador e que o que advém como mais-valia, o acúmulo de capital, é “de uma
natureza essencialmente transformada” (Lacan, 1969-1970/1992, p. 84). Dessa forma, o
psicanalista indica que a renúncia do trabalhador, o que não é remunerado, é o que possibilita
que a mais-valia possa ser obtida.
O estabelecimento das transações comerciais pelo valor de troca passa a impressão de
que o capitalista “paga, por razões contábeis que têm a ver com a transformação do mais-de-
gozar em mais-valia” (Lacan, 1969-1970/1992, p. 86). Porém, com o conceito de mais-valia
Marx denuncia a “espoliação do gozo” (Lacan, 1969-1970/1992, p. 84). Essa apropriação do
capitalista, na forma da acumulação de capital, é apontada por Lacan ao dizer: “o rico tem uma
propriedade. Ele compra, compra tudo, em suma – enfim, ele compra muito. Mas queria que
vocês meditassem sobre o seguinte - ele não paga” (1969-1970/1992, p. 86). O psicanalista
realça a conexão entre a acumulação de capital e o trabalho não remunerado, entre a mais-valia
do capitalista e a renúncia do trabalhador.
Lacan (1968-1969/2008c) acentua que foi necessária, primeiramente, a “absolutização
do mercado” (Lacan, 1968-1969/2008c, p. 37), a “homogeneização dos saberes no mercado”
(Lacan, 1968-1969/2008c, p. 40), isto é, o estabelecimento de um mercado que estipula os
preços e institui o valor significante do trabalho para que a mais-valia pudesse se constituir
enquanto seu produto. Para o psicanalista, “desde o momento em que o mercado define como
mercadoria um objeto qualquer do trabalho humano, esse objeto carrega em si algo da mais-
valia” (Lacan, 1968-1969/2008c, p. 19). Como Cláudio Oliveira (2008) salienta em seu texto
“O chiste, a mais-valia e o mais-de-gozar - ou o Capitalismo como piada”:

Ao vender sua força de trabalho para o mercado, o trabalhador vende algo que será pago, mas também
algo que não será pago jamais. […] Com a alma vendida, o trabalhador já se mostra dividido pela operação
de troca. Algo dele, incomensurável, ‘a alma’, agora pertence ao mercado. Ele não goza mais disso. A
43

rigor, ele nunca gozou. Mas ao perdê-lo, ele pode agora partir em busca da sua reconquista. É essa perda
que engendrará o mais-de-gozar (pp. 59-60).

Como Lacan ressalta (1969-1970/1992) é somente através da perda, engendrada pela


“própria entrada no discurso” (p. 83), que pode surgir o “objeto a que anexamos ao mais-de-
gozar” (p. 83). O que ele extrai da concepção marxista e aplica na sua leitura psicanalítica é que
a linguagem marca o gozo e, ao mesmo tempo, o significante “tanto introduz uma perda de
gozo, quanto produz um suplemento de gozo” (Miller, 2012, p. 32).
Há um resto, uma perda de gozo, resultante da entrada do sujeito na linguagem, pois
existe um limite do que pode ser representado pelo significante. É somente por essa falha interna
à própria estrutura significante que o sujeito, marcado pela falta, parte em busca da reparação
do gozo perdido. O mais-de-gozar é o suplemento de gozo buscado pelo sujeito como reparação,
“é uma função da renúncia ao gozo sob o efeito do discurso” (Lacan, 1968-1969/2008c, p. 19).
Freud (1930/2010c) já havia constatado como a renúncia ao gozo é constitutiva do sujeito e é o
alicerce da repetição, a busca da satisfação perdida. Como Lacan (1968-1969/2008c) indica, a
psicanálise é

um discurso que articula essa renúncia, e que faz evidenciar-se nela o que chamarei de função do mais-
de-gozar. É essa a essência do discurso analítico.
Essa função aparece em decorrência do discurso. Ela demonstra, na renúncia ao gozo, um efeito
do próprio discurso (p. 17).

A psicanálise articula a função do significante, a “relação primitiva entre o saber e o


gozo” (Lacan, 1969-1970/1992, p. 17). Avançando em sua elaboração sobre os efeitos do
discurso, Lacan (1968-1969/2008c) se vale da aposta de Pascal, pois o jogo, “na medida em
que essa é uma prática definida por comportar um certo número de lances que têm lugar dentro
de certas regras” (p. 115), extrai “de maneira mais pura o que acontece com nossas relações
com o significante” (p. 115). A renúncia ao gozo é formalizada na aposta e “tudo repousa na
observação simples de que o que se aposta no início está perdido” (Lacan, 1968-1969/2008c,
p. 124).

É essa a essência do jogo, no que ele comporta de ‘logificável’, porque ele se submete a regras.
Ali onde a questão do atrativo do lucro deformava, refratava, desviava as articulações dos teóricos,
somente essa purificação inicial permitiu enunciar corretamente como funcionar para fazer, em todos os
momentos, a partilha correta do que se encontra ali centralmente em jogo, em jogo perdido.
[...] Se há uma atividade cujo ponto de partida se baseia na assunção da perda, é justamente a
nossa [dos analistas], na medida em que, na própria abordagem de qualquer regra, isto é, de uma
concatenação significante, trata-se de um efeito de perda (Lacan, 1968-1969/2008c, p. 124).
44

Na aposta, “a própria vida reduz-se aí, em sua totalidade, a um elemento de valor.


Estranha maneira de inaugurar o mercado do gozo no campo do discurso” (Lacan, 1968-
1969/2008c, p. 18). A utilização da aposta de Pascal serve para colocar em relevo justamente o
modo como o mais-de-gozar é incluído na aposta, como o gozo pode se inserir no discurso
enquanto significante. Devemos considerar que a aposta, bem como “todas as demonstrações
que se sucedem em Lacan, elas tem [sic] sempre o mesmo princípio: colocar em destaque o
caráter avaliável, quer dizer significante, do gozo” (Miller, 2005-2006, p. 18).
Segundo Pierre-Gilles Guèguen (2007-2008), em “A gênese do ‘Outro que não existe’”,
o que está em jogo na aposta de Pascal é apostar ou não na existência de Deus, e “resumindo o
que diz Pascal, […] já que não podemos conhecer Deus, temos que apostar! Temos que jogar,
como se dizia na época, ‘cara ou coroa’” (p. 2).

A epistemologia de Pascal é mais complexa, pois, segundo ele, Deus está em qualquer lugar e
em lugar nenhum, seu lugar não está designado. O Outro não é somente incompleto como em Descartes,
e dependente de uma base suposta. O Outro de Pascal é inconsistente, em todo lugar e em lugar nenhum,
ele não existe, é por isto que ele deve ser objeto de aposta. É a aposta que faz existir o Outro e não o saber;
é o ato do sujeito, sua crença. Já podemos aí perceber porque Lacan desenvolveu um interesse tão
particular em Pascal à medida que começava a considerar que o Outro era não só incompleto como
também inconsistente. Isto é, que não existe Outro universal (Guèguen, 2007-2008, p. 3).

É a partir do Outro inconsistente que Lacan (1968-1969/2008c) propõe um tratamento


lógico do campo da linguagem. Na aposta o sujeito perde algo do gozo e parte em busca de sua
reparação pelo mais-de-gozar. A partir da leitura de Miller (2012), entendemos que essa leitura
lógica do aparelho significante implica em evidenciar “uma perda totalmente significantizada”
(p. 31), isto é, se evidencia a perda do gozo proveniente da estrutura da linguagem e, ao mesmo
tempo, o tratamento significante dessa perda pelo mais-de-gozar. Ao conectar a renúncia
primordial ao gozo à instauração da linguagem, dando lugar ao campo do gozo, Lacan retira a
autonomia outrora concedida ao simbólico. Diferentemente da leitura lacaniana de uma
mortificação do gozo pelo significante, nesse momento de seu ensino “o significante é aparelho
de gozo” (Miller, 2012, p. 31). Isso pode ser “retraduzido nos termos de ‘o que se veicula na
cadeia significante é o gozo’” (Miller, 2012, p. 31). Nessa direção, Lacan (1968-1969/2008c)
destaca:

O discurso detém os meios de gozar, na medida em que implica o sujeito. Não haveria nenhuma razão de
sujeito, no sentido em que falamos razão de Estado, se não houvesse no mercado do Outro, o correlato de
que se estabelece um mais-de-gozar que é captado por alguns.
Demonstrar que o mais-de-gozar decorre da enunciação, demonstrar que ele é produzido pelo
discurso e aparece como um efeito, sem dúvida exigiria um discurso muito aprofundado (p. 18).
45

Existe, para o psicanalista, uma ligação fundamental entre o gozo e o campo do discurso,
no qual estão ordenados os preços em seus mercados. Para elucidar isso, Lacan retoma a questão
da sublimação pela obra de arte, aquela que Freud

se obriga a não poder apreendê-la senão como um valor comercial. É uma coisa que tem um preço, sem
dúvida um preço à parte, mas que, a partir do momento em que entra no mercado, não é tão distinguível
de qualquer outro preço.
A ênfase a depositar aí é que esse preço, ela o recebe de uma relação privilegiada de valor com
o que isolo e distingo em meu discurso como o gozo - sendo gozo o termo que só se institui por sua
evacuação do campo do Outro [...] (Lacan, 1968-1969/2008c, p. 240).

Do exposto inferimos que o psicanalista introduz as duas vertentes do gozo: o gozo


excluído da linguagem, um a-menos necessário à instauração do discurso, e o suplemento de
gozo incluído no discurso, um a-mais como mais-de-gozar.
Lacan (1968-1969/2008c) menciona a emergência de um mercado que submete todas
as mercadorias a uma unidade de valor. Esse tratamento significante dos objetos oriundos da
renúncia ao gozo só foi possível pela “absolutização do mercado do saber” (Lacan, 1968-
1969/2008c, p. 46), esta que “já era então o verdadeiro nome da globalização, a absolutização
do mercado. Quer dizer: nada de limites ao que se pode comprar e vender” (Miller, 2005-2006,
p. 60).
É necessário destacar que, assim como na elaboração do conceito do mais-de-gozar, a
relação com o capitalismo não foi desconsiderada por Lacan na utilização da aposta de Pascal,
já que “Pascal é um senhor e, como todos sabem, um pioneiro do capitalismo. As referências
são a máquina de calcular e, depois, o coletivo” (1968-1969/2008c, p. 380). O psicanalista ainda
evidencia que o pensamento de Pascal, a partir da sua “regra da partição”35 (Lacan, 1968-
1969/2008c, p. 114), constituiu a base do cálculo das probabilidades. Na mesma direção,
Guèguen (2007-2008) assinala que a aposta de Pascal torna evidente a vertente do cálculo e da
probabilidade, esta relacionada com a forma de tratamento da ordenação significante a partir da
ruptura provocada pela ciência moderna.
Verificamos que o saber moderno se tornou disjunto da figura de exceção do mestre. O
saber da tradição foi questionado e substituído pelo saber oriundo do discurso científico, este
que não tem mestre. Entendemos que o tratamento racional do saber, no mesmo movimento

35
“A regra da partição [règle des partis] foi elaborada por Pascal a partir de sua correspondência com Fermat,
como uma forma de solucionar com rapidez o problema dos pontos num jogo de dados interrompido, a fim de
dividir equitativamente o dinheiro das apostas, conforme as possibilidades iguais de ganho de cada jogador, caso
a partida prosseguisse até o fim. Foi a base histórica do cálculo das probabilidades. (N.T.)” (Lacan, 1969-
1970/2008c, p. 114)
46

que expõe a inconsistência do Outro, propõe “um manejo propriamente significante desse
buraco no Outro” (Miller, 2005-2006, p. 93).
A racionalidade moderna apresenta sua tentativa de tratar a inconsistência do Outro
reduzindo o mundo ao contável. O avanço da modernidade institui os mercados nos quais tudo
é calculado e ordenado pelo valor. Nesse sentido, Lacan (1968-1969/2008c) relaciona a ordem
simbólica moderna com os empórios, “lojas em que tudo é bem organizado” (p. 287), e observa
que sua diretriz provém dos significantes extraídos do cálculo. É notório que o laço social
moderno se fundamenta em um saber quantificável, demonstrável e verificável, baseado em
princípios utilitários e capitalistas. De acordo com Teixeira (1999),

em vez de se apoiar sobre o privilégio do mestre, o capitalista é um negociador qualquer que compra, em
termos de unidade de equivalência por um tempo determinado, a força de trabalho de um outro indivíduo
livre e igual a ele aos olhos da lei, salvo que privado dos meios de produção. São pois dois indivíduos em
princípio iguais, ligados pelo contrato pontual do regime utilitário em função da medida universal do
interesse. Não é sem ironia que Marx se refere a esta esfera de troca da força de trabalho como um
verdadeiro paraíso dos direitos do homem: ‘Só reinam a liberdade, a igualdade, a propriedade e Bentham!’
(p. 186).

Como evidenciamos no primeiro capítulo, a teoria das ficções de Bentham se


desenvolve na intenção, levada ao extremo, de ordenar simbolicamente o mundo, o que é
relacionado a um declínio do mestre por Lacan (1959-1960/2008a). De acordo com Miller
(2005-2006), em seu seminário Iluminações profanas,

o diagnóstico de Lacan, já na Ética da psicanálise, é que há uma potência que se desenvolve e que não é
dominável. É que nela, o mestre está decaído, há ali um poder que não tem mestre, é o que ele chama,
uma vez, creio eu, o frenesi de nossa ciência (p. 92).

Fazendo referência ao livro O homem sem qualidades, de Robert Musil (1978/2015)36,


Miller expõe o modo como o homem moderno, submetido ao império significante, totalmente
calculável, seria o “homem-estatístico, e que se sabe enquanto tal, ou seja, ninguém, puro
cálculo de mestre invisível” (2005-2006, p. 98). O que é evidente é que nesse progresso do
saber “nós temos uma potência técnica formidável, a qual demonstra tudo, todos os dias, que
ela é emancipada deste poder. É um martelo sem mestre” (Miller, 2005-2006, p. 102). Dessa
maneira,

36
“Este escritor profético que é Roberto Musil percebeu muito bem, por ocasião da profunda reflexão que ele
produziu sobre o pensamento estatístico, que o conduziu a intitular seu grande romance ‘O homem sem
qualidades’. O homem sem qualidades é aquele cujo destino é o de não ter mais nenhuma outra qualidade senão a
de ser marcado pelo número 1 e, a este título, de poder entrar na quantidade. O segredo do título de Musil é que o
homem sem qualidades é o homem quantitativo” (Miller, 2006, p. 2).
47

o mínimo que podemos dizer é que ele [Lacan] via com exatidão no que chamamos rapidamente de
política.
Ele via com exatidão isso que se organizava pelas vias obscuras da promoção do mercado que
se tornou absoluto, isto é, caso global - quando isso incarna é global - onde tudo se compra e tudo se
vende entre todos (Miller, 2005-2006, p. 62).

Verificamos como Lacan (1968-1969/2008c) destaca a influência do capitalismo e da


racionalidade moderna na sua abordagem do Outro inconsistente e do mais-de-gozar. O
psicanalista nos fornece a estrutura lógica da entrada do sujeito na linguagem, incluindo aí o
gozo. Essa estrutura será a base da sua formalização do discurso do mestre, também
caracterizado como discurso do inconsciente. Em suas elaborações, Lacan (1968-1969/2008c)
expõe como o discurso moderno sugere coordenar os modos de gozo, oferecendo um
suplemento de gozo, o mais-de-gozar, através da orientação pelo valor definido no mercado
capitalista.
Todo esse desenvolvimento conceitual será a sustentação da estruturação dos quatro
discursos e do discurso capitalista, fórmulas lacanianas que, a partir de uma ordenação entre
significante-mestre, saber, objeto a e sujeito barrado, explicitam as possibilidades de ordenação
simbólica. É nesse caminho que prosseguiremos a nossa pesquisa na intenção de elucidar, pela
via dos discursos, uma leitura dos laços sociais na contemporaneidade.

3.2 O discurso do mestre e a função de exceção

Lacan (1969-1970/1992), em seu Seminário 17, realiza a elaboração da estrutura dos


quatro discursos, estes que independem das palavras, mas são efeitos de linguagem. Como
Lacan (1968-1969/2008c) já havia colocado no quadro em sua primeira aula do seminário que
precedeu a este, “a essência da teoria psicanalítica é um discurso sem palavra” (p. 11). A
estrutura que interessa à psicanálise deriva da relação de um significante com outro significante,
o que, como efeito de linguagem, tem como consequência a “emergência disso que chamamos
sujeito” (Lacan, 1969-1970/1992, p. 11). O que interessa ao psicanalista é isolar a estrutura
formal, para além de todo conteúdo, do próprio sujeito enquanto efeito de discurso.
A realidade se estrutura como um discurso a partir de um ordenamento simbólico, indica
Lacan (1969-1970/1992). A linguagem sustenta o laço social entre os homens e seus efeitos
ficam demonstrados na estrutura discursiva. Como abordado anteriormente, é verificado que a
48

entrada de um sujeito no discurso condiciona uma perda de gozo e, consequentemente, o coloca


em busca de sua reparação.
Em sua conferência Du discours psychanalytique37, Lacan (1972) sustenta que a
linguagem, essa marca que diferencia os homens dos animais, é o que possibilita a emergência
de um mestre. Para que esse discurso do mestre funcione basta que a linguagem exista, pois ela,
por sua estrutura, introduz no mundo o significante-mestre (S1), que faz aparecer um saber (S2)
que lhe obedeça.
Lacan (1969-1970/1992) estabelece os quatro discursos, a saber, do mestre, da histérica,
do universitário e do analista. Os discursos apresentam uma estrutura algébrica e são compostos
pelos mesmos termos em uma ordem determinada – S1, o significante mestre; S2, o saber; a, o
mais-de-gozar; $, o sujeito –, porém alocados em posições diferentes:

Figura 1. Lugares do discurso38

Em seu seminário Un esfuerzo de poesía39, Miller (2016) aborda os discursos enquanto


laços sociais que implicam uma relação de dominação entre os dois termos da linha superior do
discurso, o agente e o outro. Se X domina Y, o que interessa é que se saiba qual é o termo
dominante e o qual é o termo dominado em cada estrutura discursiva. O estabelecimento de
mais de um discurso propõe que há uma ordem simbólica, dentre várias possíveis, e o que Lacan
apresenta são quatro fórmulas de laço social em seus quatro discursos.
No desenvolvimento dos quatro discursos, Lacan (1969-1970/1992) ressalta que há uma
função na ordenação dos termos em seus esquemas “quadrípodes”, mas “não é obrigatório que
isto sempre passe por ali, e que gire no mesmo sentido” (p. 199). O que é considerado como
função dos discursos está relacionado com a matemática e com “algo que entra no real” (Lacan,
1969-1970/1992, p. 199). Referindo-se ao logaritmo como exemplo, Lacan destaca que há uma
fórmula, uma regra que começa a existir e a ser aplicada no mundo. O psicanalista sublinha que

37
Do discurso psicanalítico.
38
Fonte: Lacan, 1970/2003g, p. 447.
39
Um esforço de poesia.
49

não é por acaso que iniciará a abordagem dos quatro discursos pelo discurso do mestre, e sim
por razões históricas, pois esse discurso constitui o ponto de partida para os outros três.

Figura 2. Discurso do mestre40

Na sua construção do discurso do mestre, ele evoca a formalização hegeliana da dialética


do senhor e do escravo, pois o mestre comanda o escravo. Esse discurso tem no lugar de agente
o S1, sendo este “a função de significante sobre a qual se apoia a essência do mestre” (Lacan,
1969-1970/1991, p. 20, tradução nossa41), enquanto o S2, o saber, está localizado ao lado do
Outro do mestre, o escravo.
O lugar de agente, ocupado pelo S1 no discurso do mestre, é onde se localiza a lei, o que
domina o saber e o escravo. O que emerge como verdade da relação significante, que se inscreve
na parte inferior desse discurso, é o sujeito dividido, sujeito que interessa à psicanálise. Ao
estabelecer em sua parte inferior a impossibilidade de acesso ao gozo pelo sujeito, ao mesmo
tempo que inclui o gozo no laço social, na sua forma do mais-de-gozar, o discurso do mestre
expõe a sua função civilizatória. De acordo com Teixeira (1999),

a realidade social constituída por um discurso resulta, por sua vez, de um princípio partilhado de subtração
de gozo do qual este discurso se anima. Se pois, por definição, um discurso funda um laço social na
proporção em que ele determina um modo comum de extração do gozo, sua subsistência depende de que
haja sempre um excesso de gozo a ser subtraído. O discurso do mestre seria assim sua forma canônica,
no sentido em que ele reproduz a divisão constitutiva do sujeito pelo significante mestre, com a extração
contínua de um mais gozar (p. 183, itálicos do autor).

A psicanálise nos apresenta como o regime pulsional dos sujeitos está no cerne de todas
as regulamentações e ordenações simbólicas de uma civilização. O uso da linguagem,
fundamental para constituir as leis e os discursos que organizam uma sociedade, é relacionado
à questão do pai por Freud e Lacan.
Freud (1913/2012), em “Totem e Tabu”, através da análise de mitos e formações
culturais, sustenta a ideia de que a lei é o que torna possível a civilização. A passagem do

40
Fonte: Lacan, 1969-1970/1992, p. 12.
41
No original: “La fonction de signifiant sur quoi s’appuie l’essence du maître”.
50

homem da natureza ao homem da cultura é apresentada a partir da instauração de uma lei


universal - não matarás - consequente do assassinato do pai primevo. O psicanalista relaciona
os efeitos de ambivalência afetiva, decorrentes da fundação do social, com a estrutura da vida
afetiva dos sujeitos, indicando que tal ambivalência, “a coexistência de amor e ódio ao mesmo
objeto, está na raiz de importantes instituições culturais” (Freud, 1913/2012, p. 238). Dessa
forma, percebe “como uma surpresa que também esses problemas da vida psíquica dos povos
permitam uma solução a partir de um único ponto concreto, que é a relação com o pai” (Freud,
1913/2012, p. 238). A trajetória da função paterna em Freud, do pai vivo e tirano ao pai morto,
evidencia a incorporação da lei simbólica necessária à entrada dos homens na cultura. O
complexo de Édipo é uma demonstração da crença na autoridade da lei, do funcionamento da
lei simbólica.
A função de transmissão dessa lei é localizada na família, por Freud, em “O mal-estar
na civilização” (1930/2010c), e por Lacan (1938/2003b) em “Complexos familiares na
formação do indivíduo”. Porém, nesse texto, Lacan (1938/2003b) apontava certo
“afrouxamento dos laços de família” (p. 66), que seria causado pelo “declínio social da imago
paterna” (pp. 66-67) ocorrido na modernidade. Para o autor, esse declínio da imago do pai
estaria relacionado a “um grande número de efeitos psicológicos” (Lacan, 1938/2003b, p. 66).
Em seu texto “Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia”, Lacan
(1950/1998e) reintroduz essa posição sobre a mudança na estrutura familiar, do patriarcado
para o matriarcado, e propõe que “a autoridade reservada ao pai, único traço subsistente de sua
estrutura original, mostra-se, de fato, cada vez mais instável ou obsoleta” (p. 135).
Podemos relacionar essas proposições lacanianas a respeito da obsolescência da
autoridade paterna com a questão freudiana da crença nessa autoridade presente na reedição
edípica de cada sujeito. A partir dessa relação, poderíamos supor que a lei teria menos eficácia
para os sujeitos e, com efeito, para a organização da sociedade. No entanto, devemos considerar
o desenvolvimento lacaniano da noção de lei e sua relação com a função paterna, para além dos
textos do início de seu ensino.
Sobre essa questão, em seu texto “Nossa arqueologia crítica da obra de Lacan: Lacan e
as ciências sociais”, Markos Zafiropoulos (2009) nos adverte sobre o risco de interpretar o
declínio paterno, indicado nos textos citados, desconsiderando a influência da obra de
Durkheim e da sua teoria sobre a contração familiar nesse período do ensino lacaniano. A
propósito, o autor também sustenta que essa noção do declínio do pai enquanto chefe de família
é frequentemente utilizada de forma equivocada para responder ao mal-estar da cultura atual e
aos novos sintomas que se apresentam na clínica.
51

Devemos considerar que a partir de 1951 Lacan muda de referencial teórico no que
concerne “mais precisamente à análise da família, à questão do pai e de um modo mais geral,
às leis constitutivas do inconsciente, que ele desloca agora do registro da família para o das leis
da fala e da linguagem” (Zafiropoulos, 2009, p. 5). O autor nos indica que Lacan introduz a
noção estruturalista de Nome-do-Pai, referenciada pelos estudos de Lévi-Strauss, como sendo
a função “de um ‘significante flutuante’ ou ainda de um significante de exceção que permite ao
pensamento simbólico se exercer” (Zafiropoulos, 2009, p. 9). Conforme nos orienta Lacan
(1957-1958/1998c), em seu texto “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da
psicose”:

É justamente isso que a atribuição da procriação ao pai só pode ser efeito de um significante puro, de um
reconhecimento, não do pai real, mas daquilo que a religião nos ensinou a invocar como o Nome-do-Pai.
Não há certamente necessidade alguma de um significante para seu pai, não mais que para estar
morto, porém, sem significante, ninguém jamais saberá nada sobre um ou sobre o outro desses estados de
ser. […]
Com efeito, como não haveria Freud de reconhecê-la, quando a necessidade de sua reflexão o
levara a ligar o aparecimento do significante do Pai, como autor da Lei, à morte, ou até mesmo ao
assassinato do Pai? - assim mostrando que, se esse assassinato é o momento fecundo da dívida através da
qual o sujeito se liga à vida e à Lei, o Pai simbólico, como aquele que significa essa Lei, é realmente o
Pai morto (pp. 562-563).

A partir dessa abordagem estruturalista do Nome-do-Pai, Lacan faz “prevalecer as leis


do simbólico e da linguagem sobre as da família” (Zafiropoulos, 2009, p. 10), e endossa, mesmo
que sem expor claramente, “a teoria de Lévi-Strauss que diz respeito ao significante de exceção
que permite ao pensamento simbólico se exercer: o significante zero ou o Nome-do-Pai, em
Lacan” (Zafiropoulos, 2009, p. 10).
Nesse sentido, podemos entender o discurso do mestre como o discurso do inconsciente,
pois a constituição do sujeito depende da operação desse significante de exceção, S1, referido
ao Nome-do-Pai. Em sua abordagem estrutural, Lacan (1971/2009), em O Seminário, livro 18:
de um discurso que não fosse semblante, esclarece que “o discurso do inconsciente é uma
emergência, é a emergência de uma certa função do significante” (p. 21). Dessa forma, ele
demonstra que o inconsciente “é estruturado como uma linguagem [...], já que linguagem é a
estrutura” (Lacan, 1966/2003e, p. 228), e que “um sujeito só pode ser produto da articulação
significante” (Lacan, 1971/2009, p. 18).
A partir do texto “Psicologia das massas e análise do eu” (Freud, 1921/2011), Laurent
(1992) expressa que Freud realiza uma leitura do inconsciente nos moldes de uma organização
social governada pelo ideal, este que para ser estabelecido necessita da renúncia ao gozo.
Entendemos que o pai morto, ou o Nome-do-Pai, ocupa o lugar do ideal e sustenta o
52

estabelecimento da lei. A função de exceção desse S1, sua lei, é sustentada pela renúncia ao
gozo.
Essa organização social, o discurso que governa, é escrita na forma do discurso do
mestre por Lacan (1969-1970/1992). O significante-mestre, S1, pode ser relacionado com o que
Lacan (1960/1998f) propõe ao introduzir o significante do Outro barrado como representante
de uma falta estrutural no Outro da linguagem. Ao estabelecer que essa falta é necessária para
o funcionamento da ordem simbólica, o autor ressalta que é nesse ponto que o pai morto do
mito freudiano deve ser localizado (Lacan, 1969-1970/1992). Somente pela sua falta é que o
ordenamento significante pode acontecer e o sujeito pode ser representado, sendo necessária a
existência dessa função de exceção.
Lacan (1969-1970/1992) atribui especial valor ao lugar dominante nesse discurso, o
lugar de agente ocupado pelo S1, pois é o único lugar onde a lei pode ser situada. Segundo o
psicanalista, “se o discurso do mestre constitui o lastro, a estrutura, o ponto forte em torno do
qual se ordenam diversas civilizações, é porque seu motor, afinal, é de uma ordem muito
diferente da violência” (Lacan, 1971/2009, p. 25).
No nível da civilização, podemos abordar a função de exceção no nível da decisão
política nos servindo da análise realizada por Newton Bignotto (1999) em “A solidão do
legislador”. Fazendo referência a Sólon, legislador da Grécia antiga, o autor destaca a condição
de exceção necessária para a fundação das leis. Sólon é chamado para restabelecer a ordem em
uma cidade e, após realizar a sua tarefa, deixando um código de leis, renuncia ao seu posto de
poder. A função do legislador como uma figura de exceção, que após cumprir a sua função
deixa o lugar de poder vazio, é vista por Bignotto (1999) como a própria fundação da
democracia.
Dessa forma, podemos refletir sobre a fundação do universal a partir de uma exceção,
correlacionando-a ao mito de “Totem e Tabu” (Freud, 1913/2012). Verificamos a necessidade
do pai morto, enquanto exceção, para que a lei funcione e os irmãos sejam incluídos em uma
sociedade regulada por leis. Em “A fundação violenta do universal”, Antônio Teixeira (2015)
ressalta que “para que se possa instituir um conjunto de regras que se aplique a todos os
membros de uma comunidade, é necessário que desse Universal se separe um elemento que a
ele não se submete” (p. 1). Sendo assim, o autor reitera que é necessário um gesto de exclusão,
de negação, para que se funde o conjunto do universal.
O lugar do agente no discurso do mestre, o S1, está marcado por essa condição de
exceção. Para Lacan (1969-1970/1992), o significante-mestre, ao representar um sujeito para
53

outro significante, só pode fazê-lo por estar fora da cadeia, por ser um significante
insignificante. Segundo o psicanalista, o mito edípico

não poderia ter outro sentido a não ser aquele ao qual o reduzi, o de um enunciado possível. Não poderia
haver ato fora de um campo já tão completamente articulado que aí a lei não tivesse seu lugar. Não há
outro ato a não ser o ato que se refere aos efeitos dessa articulação significante e que comporta toda a sua
problemática - com, por um lado, o que comporta, ou melhor, o que é, de queda da própria existência do
que quer que possa ser articulado como sujeito, e, por outro lado, o que ali preexiste como função
legisladora (Lacan, 1969-1970/1992, p. 132).

A função legisladora é necessária para que algo possa ser articulado no nível do
significante. Do mito à estrutura, o que Lacan (1969-1970/1992) propõe é uma leitura dos
efeitos do significante-mestre na constituição do sujeito, pois é a linguagem que torna possível
a desnaturalização dos homens, a entrada no nível da cultura. Assim, entendemos a função de
exceção do significante-mestre como necessária à fundação do sujeito e da cultura, como o
lugar do pai morto no mito freudiano.
Segundo Miller (2007), “o mestre nada mais é do que aquilo que denominamos
inconsciente” (p. 28). Sendo assim, ele é inscrito como S1, logicamente colocado em um lugar
onde o saber (S2) está disjunto, isto é, no lugar do escravo. A relação do saber com o gozo é
explicitada, pois o que pode ser extraído como produção dessa relação entre S1 e S2, da
ordenação significante, é sempre em forma de a, o gozo em sua forma significante.
Em “Uma fantasia”, Miller (2005b) relaciona a estrutura do discurso do mestre com o
discurso de uma civilização, que seria a da Antiguidade. Na Antiguidade o lugar da exceção era
estruturante da organização social e, tal como elucidamos no capítulo anterior, a influência da
racionalidade, da ciência moderna e do capitalismo, provoca uma modificação que instaura um
regime igualitário que não admite a exceção. Dessa maneira, nos interessa compreender como
os efeitos dessas ocorrências históricas que sustentam uma nova forma de laço social, sem
referência à exceção, são elaborados na leitura lacaniana dos discursos.

3.3 O discurso da ciência e a ruína do mestre

A racionalidade enquanto método do pensamento moderno propicia o questionamento


do saber e do poder até então existentes. Além da organização social, a própria posição do
sujeito também é modificada pela ciência moderna. Tais proposições permitem Lacan (1969-
1970/1992) reafirmar que os avanços da ciência conduziram a uma necessidade de modificação
54

do discurso que orienta a sociedade. O que leva Miller (2010) a observar de forma contundente
que:

O mestre é estatuariamente cego! Manda sem querer saber mais nada. […] O despotismo ilustrado (bonita
ideia!) nunca pôde esconder que as Luzes gangrenavam o discurso do mestre. Em outras palavras, o
mestre é a ignorância sempre e em todos os discursos. Para poder sustentar o significante mestre há que
permanecer na ignorância e não querer saber nada mais (p. 90, tradução nossa42).

O mestre antigo comandava a partir do saber da tradição. Esse saber antigo não era
colocado em questão, pois se baseava na garantia divina. Em conformidade com essa ideia,
Teixeira (1999) afirma que, diferentemente das formas de saber antigas, que conservavam a
relação do mestre com a estrutura do pai, o método cartesiano propõe “um questionamento
epistêmico radical de toda figura de exceção fundada sobre dogmas provenientes de uma figura
de ascendência” (p. 140).
O desenvolvimento da ciência levou o cientista a não mais se referenciar a essa exceção
divina e a “se contentar em aplicar mecanicamente as regras formais que o determinismo da
ciência matematizada autoriza, sem se perguntar pela legitimidade de seu procedimento”
(Teixeira, 2012, p. 220). Assim, a autoridade, a tradição e a religião não mais sustentam o saber
e o poder, estes se tornam independentes da figura estruturante de exceção do mestre.
Segundo Antônio Teixeira (2012), esse modelo científico, baseado em uma concepção
mecanicista do universo, pode ser tomado como modelo de orientação política na modernidade.
Com os avanços da ciência, a teoria do direito e da política também se modificam e passam a
se referenciar por esse novo modelo, no qual o saber demonstrável ocupa o antigo lugar da
exceção. Ocorre, então, o apagamento do fundamento de exceção que garantia o lugar do
mestre. O que Lacan (1973/2003c) introduz em sua “Nota italiana” é que a ciência traz a ruína
do mestre:

O cientista produz o saber a partir do semblante de se fazer sujeito dele. Condição necessária, mas não
suficiente. Se ele não seduzir o mestre, ocultando-lhe que nisso está sua ruína, esse saber permanecerá
enterrado como esteve durante vinte séculos […] (p. 312).

Na ordenação dos discursos de Lacan (1969-1970/1992), a partir de um primeiro giro


discursivo o que aparece é o discurso da histérica. Nesse discurso podemos observar que existe

42
No original: “¡El amo es estatutariamente ciego! Manda sin querer saber nada más. […]
El despotismo ilustrado (¡bonita idea!) nunca pudo esconder que las Luces gangrenaban el discurso del amo. En
otras palabras, el amo es la ignorancia siempre y en todos los discursos. Para poder sostener el significante amo
hay que permanecer en la ignorancia y no querer saber nada más”.
55

um sujeito barrado no lugar de agente que se direciona ao S1, o que indica o questionamento do
mestre. O que resulta como produto dessa operação é um saber, S2.

Figura 3. Discurso da histérica43

Sobre esse discurso, Lacan (1969-1970/1992) evidencia que ele “conduz ao saber” (p.
22) e que a histérica seria “industriosa” (p. 34). Nesse sentido, “industriosa” estaria referido ao
que esse discurso propõe que se fabrique; nesse caso “um homem que seria movido pelo desejo
de saber” (Lacan, 1969-1970/1992, p. 34). Assim como o mestre colocava o escravo a produzir,
a histérica questiona o mestre, S1, e o coloca a trabalho na produção de um novo saber, S2. O
psicanalista aponta um certo parentesco entre o discurso filosófico e esse discurso da histérica,
“já que parece ter sido o discurso filosófico que motivou no senhor o desejo de saber” (Lacan,
1969-1970/1992, p. 34). E indica que o posicionamento do sujeito enquanto agente do discurso
teve “resultados muito surpreendentes, sendo o primeiro deles a ciência” (Lacan, 1969-
1970/1992, p. 187).
É importante assinalar que existem pontos de convergência e de discordância entre o
discurso científico e o discurso da histérica. Como Lacan (1973/2003h) ressaltou: esses
discursos “têm quase a mesma estrutura” (p. 522, itálico do autor). O impulso científico parte
do sujeito como agente, que realiza o questionamento do saber tradicional do mestre produzindo
um novo saber, o que é considerado o ponto de convergência com o discurso da histérica.
No entanto, há uma discordância entre ambos os discursos no que se refere à sua relação
com a causa. Pierre Naveau (1987), em seu texto “Discurso de la ciencia y discurso de la
histérica”44, desdobra a diferença entre o sujeito da ciência e a histérica. Enquanto que para a
histérica o seu desejo de saber está vinculado ao que é sua verdade, o objeto a, para o sujeito
da ciência essa causa não funciona da mesma maneira. Para a histérica, a causa é a verdade de
seu sintoma, da qual ela quer saber. No discurso da ciência o lugar de verdade estaria vazio,
pois a ciência “da verdade como causa, ela não quer-saber-nada” (Lacan, 1966/1998b, p. 889).

43
Fonte: Lacan, 1969-1970/1992, p. 29.
44
“Discurso da ciência e discurso da histérica”.
56

O sujeito da ciência é caracterizado como “o sujeito cartesiano, ou seja, o sujeito que


fez a experiência do esgotamento do saber. É um sujeito vazio, um sujeito esvaziado de todo
conteúdo de saber” (Naveau, 1987, p. 39, tradução nossa45). Na mesma direção de nossa
exposição sobre os efeitos da ciência moderna no apagamento do desejo, realizada a partir da
referência à tragédia claudeliana, Lacan (1970/2003g) indica que “a ciência é uma ideologia da
supressão do sujeito” (p. 436). Sendo assim,

desde o momento em que se trata do desejo do sujeito da ciência, como a causa do desejo não vem ocupar
o lugar da verdade, este, permanece vazio. Dito de outra maneira, a verdade não é o que causa o desejo
do pesquisador (cientista). Sua preocupação (no sentido heideggeriano do termo) não é se deparar com a
verdade.
Uma produção de saber sucede outra e esta se torna velha em relação à nova produção. A ciência
esquece a história da produção do saber. Somente a última aquisição do saber possui um valor de troca
na comunicação científica. Este é o ponto nodal que estou enfatizando: a operação da ciência não aponta
para desmascarar a verdade (Naveau, 1987, p. 40, tradução nossa46).

Em “Radiofonia”, Lacan (1970/2003g) ressalta que a ciência posiciona o sujeito nesse


lugar de agente. É o discurso científico moderno que propicia aos sujeitos o questionamento do
mestre da tradição e, a partir desses questionamentos, o que se produz é um novo saber, S2.
Como já evidenciamos, o recurso à matemática possibilitou a emergência desse discurso que
rechaça a exceção, a sua verdade, e a produção de um novo tratamento simbólico do
conhecimento. Sobre a ciência, Lacan (1969-1970/1992) indica o que

esse discurso tem de natureza afim à da matemática, onde A representa a si mesmo, sem precisar do
discurso mítico para dar-lhe suas relações. É por aí que a matemática representa o saber do mestre como
constituído com base em outras leis que não as do saber mítico.
Em suma, o saber do mestre se produz como um saber inteiramente autônomo do saber mítico,
e isto é o que se chama de ciência (p. 94).

A invenção de um novo discurso, não referenciado à tradição, é o ponto chave do


desenvolvimento científico. Nessa perspectiva, Naveau (1987) sublinha que

o saber novo de que se trata se constitui pela articulação simbólica que o sujeito da ciência inventa. Pode
ser, por exemplo, uma equação matemática ou uma correlação estatística. Tratando-se precisamente desta
articulação simbólica, cabe fazer uma pontuação sobre a questão do sentido. Desde o momento em que
se permanece no marco do discurso da ciência e se situa no ponto preciso no qual o produto do desejo do
sujeito é legível na articulação simbólica por ele inventada, se torna evidente que um desejo dessa classe

45
No original: “el sujeto cartesiano, es decir el sujeto que ha hecho la experiencia del agotamiento del saber. Es
un sujeto vacío, un sujeto vaciado de todo contenido de saber”.
46
No original: “desde el momento en que se trata del deseo del sujeto de la ciencia, como la causa del desejo no
viene a ocupar el lugar de la verdad, éste permanece vacío. Dicho de otra manera, la verdad no es lo que causa el
deseo del investigador. Su preocupación (en el sentido heideggeriano del término) no es enfrentarse con la verdad.
Una producción de saber sucede a otra y ésta vuelve caduca a aquélla. La ciencia olvida la historia de la producción
del saber. Sólo la última adquisición del saber posee un valor de cambio en la comunicación científica. Este es el
punto nodal que estoy enfatizando: la operación de la ciencia no apunta a poner al desnudo la verdad”.
57

não é interpretável no sentido da interpretação analítica, onde não é possível dar um sentido a uma
equação matemática ou a uma correlação estatística. Enquanto tal, uma fórmula se situa mais do lado do
que não tem sentido (p. 38, itálicos do autor, tradução nossa47).

Há uma diferença essencial entre o saber antigo, “já constituído, já acumulado”


(Naveau, 1987, p. 39, tradução nossa48), e esse novo saber produzido a partir de um
questionamento direcionado ao que sustentava esse saber antigo. Cabe ressaltar que, diante do
avanço científico, ocorre uma nova mudança, uma nova configuração discursiva. Nas trilhas da
Revolução Francesa, a racionalidade científica modifica a ordem social e, como Lacan diz,
“tudo o que pode suceder de novo e que chamamos de revolucionário […] só pode consistir
num deslocamento do discurso” (1971/2009, p. 25).
Localizando esse deslocamento de discurso, Lacan (1969-1970/1991) verifica que “um
verdadeiro mestre, vimos isso em geral até uma época recente, e se vê cada vez menos, um
verdadeiro mestre não deseja saber absolutamente nada – ele deseja que as coisas andem” (pp.
23-24, tradução nossa49). Sendo assim, o que ocorre é uma “modificação no lugar de saber”
(Lacan, 1969-1970/1992, p. 32) e a instauração de um “discurso do mestre pervertido” (Lacan,
1969-1970/1992, p. 194), do mestre interessado em saber.
Sobre essa modificação essencial no laço social promovida pela modernidade, Brousse
(1999) observa que devemos considerar esse interesse do mestre pelo saber de forma diferente
de um desejo de saber, pois, diversamente da histérica, que deseja saber, o que está indicado
sobre a ciência é que o lugar de causa, em seu discurso, estaria vazio.
Tais proposições nos permitem verificar que na modernidade ocorre a instalação do
discurso da ciência no lugar do discurso do mestre e que esse mestre moderno se afirma pela
produção de um novo saber disjunto da tradição. O que acontece no desenvolvimento histórico
resulta no giro de discurso que posiciona o saber, S2, como o agente do discurso. Para Lacan,
esse mestre moderno

não tem a estrutura do antigo, no sentido de que este último se instala no lugar indicado sob esse M
[discurso do mestre]. Ele se instala no da esquerda, encabeçado pelo U [discurso universitário]. Eu lhes

47
No original: “el saber nuevo de que se trata está constituido por la articulación simbólica que el sujeto de la
ciencia inventa. Puede ser, por ejemplo, una ecuación matemática o una correlación estadística. Tratándose
precisamente de esta articulación simbólica, cabe hacer una puntualización acerca de la cuestión del sentido. Desde
el momento en que se permanece en el marco del discurso de la ciencia y se sitúa uno en el punto preciso en que
el producto del deseo del sujeto de la ciencia es legible en la articulación simbólica por él inventada, se torna
evidente que un deseo de esta clase no es interpretable en el sentido de la interpretación psicoanalítica, donde no
es posible dar un sentido a una ecuación matemática o a una correlación estadística. En cuanto tal, una fórmula se
sitúa más bien del lado de lo que no tiene sentido”.
48
No original: “ya constituido, ya acumulado”.
49
No original: “Un vrai maître, nous l’avons vu en général jusqu’à une époque récente, et cela se voit de moins en
moins, un vrai maître ne désire rien savoir du tout - il désire que ça marche”.
58

direi porquê. O que ocupa ali o lugar que provisoriamente chamaremos de dominante é isto, S 2, que se
especifica por ser, não saber-de-tudo, nós não chegamos aí, mas tudo-saber (Lacan, 1969-1970/1992, p.
32).

3.4 O discurso universitário e o apagamento da exceção

O giro do discurso do mestre para o discurso universitário, enquanto resultante dos


avanços científicos no laço social, demonstra que o saber, S2, passa a ocupar o lugar de agente
do discurso. Como elucidamos anteriormente, foi necessária uma modificação discursiva que
provocou a produção de um novo saber. Para tal, foi imprescindível a influência da matemática,
pois dessa maneira o S2, o saber, poderia ocupar o lugar de agente sem a necessidade de
referência ao discurso mítico. Dessa forma, o saber se tornou independente daquilo que, ou de
quem, o enuncia.

Figura 4. Discurso universitário50

Essa nova forma discursiva se apresenta no modo do discurso universitário, no qual o


novo saber, S2, ocupa o lugar antes ocupado pelo S1 no discurso do mestre. Entendemos que
com esse novo posicionamento do S2 o fundamento da exceção não opera da mesma forma.
Segundo Marie Hélène Brousse (2015), em uma entrevista intitulada “La paz es un sueño; la
guerra, una pesadilla”51, o que marca esse deslocamento de discurso é a apresentação do fim do
reino do significante-mestre, o S1. Sendo assim, o império do Um, sustentado pela exceção, é
substituído pelo Um contável do discurso matemático.
Para Lacan (1969-1970/1992), o discurso da ciência é um discurso que se afirma sem a
necessidade de algo externo a ele, pois é um “discurso seguro de si” (Lacan, 1968-1969/2008c,

50
Fonte: Lacan. 1969-1970/1992, p. 29.
51
“A paz é um sonho; a guerra, um pesadelo”.
59

p. 13). Esse novo saber da ciência, S2, é “um saber onde a necessidade é formal e que se articula
pela necessidade da escritura” (Brousse, 1999, p. 168, tradução nossa52). A ciência moderna
modifica o manejo do saber de forma a excluir sua relação com a verdade enquanto causa de
desejo.

Lacan diz: a verdade se transforma em único atributo do saber. A que se refere Lacan aqui,
como entender isso? Se refere à lógica contemporânea e ao fato de fazer do verdadeiro ou falso um
elemento que funciona como simples atributo dos enunciados (Brousse, 1999, p. 168, itálicos da autora,
tradução nossa53).

Dessa forma, é explicitado que a ciência manipula o significante e que “o discurso da


ciência é uma manipulação de cifra que se sustenta em reduzir a verdade a um jogo de valores,
rechaçando de certa maneira todo o poder dinâmico do saber, isto é, dialético” (Brousse, 1999,
p. 169, tradução nossa54). O discurso da ciência expõe a tentativa de uma redução simbólica,
uma combinatória que propõe o rechaço do discurso mítico, pois a verdade já não está referida
a uma garantia externa ao saber, mas é interna a ele próprio e dependente de suas deduções.
A diferença fundamental que se instala na mutação do discurso do mestre antigo ao
discurso do mestre modernizado é que o saber, S2, ao ser colocado no lugar de agente, “não é o
mesmo saber” (Lacan, 1969-1970/1992, p. 36). Esse giro discursivo que coloca o novo saber
no posto de comando ocorre pela “introdução do mundo novo no horizonte, das puras verdades
numéricas do que é contável” (Lacan, 1969-1970/1992, p. 84). Cabe aqui, novamente, assinalar
como o novo saber, fundamentado na racionalidade científica, passa a orientar o mundo
moderno e capitalista.

O próprio ideal de uma formalização onde tudo é conta - a própria energia nada mais é do que o
que conta, aquilo que, se vocês manipularem as fórmulas de uma certa maneira, dará sempre o mesmo
total - não estará aqui o deslizamento, o quarto de giro? Este é o que faz com que se instaure, no lugar do
senhor, uma articulação eminentemente nova do saber, completamente redutível formalmente, e que surja,
no lugar do escravo, não uma coisa que iria se inserir de algum modo na ordem desse saber, mas que é
antes seu produto (Lacan, 1969-1970/1992, p. 84).

No discurso antigo, escravo é aquele que possuía o saber e trabalhava para produzir o a.
Nessa nova articulação do saber enquanto agente, o a está no lugar do outro, mas, como já
explicitamos, o mais-de-gozar é, antes de tudo, um produto da inserção do sujeito na ordem

52
No original: “un saber donde la necesidad es formal, y que es articulado por necesidades de la escritura”.
53
No original: “Lacan dice: la verdad se convierte en único atributo del saber. ¿A que se refiere Lacan aquí, como
entender eso? Se refiere a la lógica contemporánea y al hecho de hacer de verdadero o falso un elemento que
funciona como simple atributo de los enunciados”.
54
No original: “el discurso de la ciência es uma manipulación de cifra que se sostiene de reducir la verdad a um
juego de valores, rechazando de cierta manera todo el poder dinámico del saber, es decir, dialéctico”.
60

discursiva. O que Lacan (1969-1970/1992) ressalta é que nessa posição “o mais-de-gozar não
é mais-de-gozar, ele se inscreve simplesmente como valor a registrar ou deduzir de uma
totalidade do que se acumula – o que se acumula de uma natureza essencialmente transformada.
O trabalhador é apenas unidade de valor” (p. 84).

Figura 5. Outra leitura dos lugares do discurso55

O proletário, ao ser explorado, “foi despojado de sua função de saber” (Lacan, 1969-
1970/1992, p. 157). O proletário, diferentemente do escravo, não possui o saber, mas é o saber
enquanto mestre moderno que comanda o seu trabalho. Podemos retomar a noção capitalista de
reificação, já desenvolvida anteriormente, que demonstra a destituição das qualidades em prol
do que pode ser contabilizado como mais-valia e inclui nesse processo o próprio homem
enquanto mercadoria.
Nesse discurso do mestre moderno, o discurso universitário, o lugar ocupado pelo a é
denominado “a estudante” (Lacan, 1969-1970/1992, p. 110). O “a estudante” está no lugar do
que trabalha a serviço do mestre, ele deve produzir algo, porém acaba sendo, ele mesmo, o
produto, já que “o estudante se sente astudado” (Lacan, 1969-1970/1992, p. 111, itálico do
autor), pois lhe é requisitado que constitua “o sujeito da ciência com sua própria pele” (Lacan,
1969-1970/1992, p. 111). Principalmente no que concerne às ciências humanas, Lacan (1969-
1970/1992) ressalta que o homem é tomado como sua matéria, como “húmus” (p. 111). E na
sociedade capitalista, os “que substituem o antigo escravo [...] são eles próprios produtos, como
se diz, consumíveis tanto quanto os outros” (Lacan, 1969-1970/1992, p. 33).
O estudante é “astudado porque, como todo trabalhador – [...] – ele tem que produzir
alguma coisa” (Lacan, 1969-1970/1992, p. 111, itálico do autor). O saber do mestre moderno
coloca os estudantes e trabalhadores nessa posição destituída de saber e recruta-os para
produzir. O saber do mestre etiqueta-os enquanto “unidades de valor, créditos” (Lacan, 1969-
1970/1992, p. 194). Em conformidade com o capitalismo, o que ocorre “é o enfoque no nível
da produção – da produção do sistema universitário. Uma certa produção é esperada de vocês”
(Lacan, 1969-1970/1992, p. 195). Esse mandamento do mestre que incita à produção é referido,

55
Fonte: Lacan, 1969-1970/1992, p. 179.
61

novamente, pelo psicanalista à nova relação com a verdade, agora formalizada nesse discurso,
pois “comporta o fato de substituir no plano da verdade o puro e simples mandamento, o do
mestre” (Lacan, 1969-1970/1992, p. 111). Como bem diz Lacan (1969-1970/1992), “não há
mais necessidade de que ali haja alguém” (p. 111).
No que se refere à importância do posicionamento do S1 como verdade no discurso
universitário, Lacan (1969-1970/1992) ressalta os efeitos dessa “nova tirania do saber” (p. 32).
O psicanalista frisa que “precisamente por este signo, pelo fato de o signo do mestre ocupar
esse lugar toda pergunta sobre a verdade é, falando propriamente, esmagada, silenciada”
(Lacan, 1969-1970/1992, p. 110). Rechaçando o discurso mítico, a verdade é tratada
formalmente. O saber, nesse discurso, se torna impessoal e anônimo, ele está disjunto da
qualidade, baseando-se somente no que pode ser deduzido quantitativamente.
Reforçando essa ideia, podemos retomar os efeitos da secularização do mundo
evidenciados no primeiro capítulo. A palavra do mestre antigo perde seu valor e o saber
calculável será a referência do mundo moderno. O axioma da igualdade entre as pessoas
necessita de mecanismos baseados nesse novo saber científico para se sustentar.
Essas elaborações se verificam pelas indicações lacanianas a respeito dos efeitos do
apagamento da exceção. O S1 posicionado enquanto verdade do discurso do mestre moderno,
universitário, ordena: “Vai, continua. Não pára. Continua a saber sempre mais” (Lacan, 1969-
1970/1992, p. 110, itálicos do autor). Novamente, como fez em seu Seminário 16, o autor
salienta que é impossível deter o desenvolvimento desse discurso.

Esse significante mestre do discurso da ciência que Lacan chega a resumir como um novo
imperativo categórico - é um termo seu - ‘continua a saber’ como o imperativo superegóico da ciência, o
imperativo em posição de S1, pois não há limite no saber científico (Brousse, 1999, p. 172, tradução
nossa56).

O mandamento de “tudo-saber”, veiculado pelo S1, é promovido pela ciência, esta que
nos faz “renunciar a ela [verdade] dando-nos somente seu imperativo” (Lacan, 1969-
1970/1992, p. 115). Ao refletir sobre a estrutura do discurso universitário, verificamos que o S2
não permite que a exceção apareça. O que não impede, como Lacan (1969-1970/1992) indica,
que a verdade (S1) possa retornar de forma totalmente diversa de sua função estruturante no
discurso do mestre.

56
No original: “Ese significante amo del discurso de la ciencia que Lacan llega a resumir como un nuevo
imperativo categórico - es un término suyo-, “continua sabiendo” como el imperativo superyoico de la ciencia, el
imperativo en posición de S1, pues no hay limite en el saber cienífico”.
62

Sobre essa questão do surgimento da verdade nesse discurso modernizado, Lacan (1969-
1970/1992) faz algumas referências apontando o quanto isso pode ser catastrófico. De acordo
com o psicanalista, “todo discurso se apresenta prenhe de consequências, só que obscuras”
(Lacan, 1968-1969/2008c, p. 33) e novas consequências se apresentam a partir do discurso
universitário. Diante disso, ele observa que “essa elevação do mestre ao saber foi que permitiu
a realização dos mestres mais absolutos que jamais se havia conhecido desde os primórdios da
história” (Lacan, 1968-1969/2006, p. 396, tradução nossa57).
A esse respeito, Brousse (1999) expõe sua interpretação de que há no campo da ciência
um Outro que faz uma gestão da população de forma racional e científica, sendo possível ser
relacionado com o nazismo enquanto Outro tirânico e segregativo, produto e consequência do
discurso científico.
Nessa mesma direção, outra interpretação dos efeitos da gestão administrativa, racional
e científica, é realizada por Teixeira (2012) com referência ao filme Laranja mecânica, de
Stanley Kubrick. É explicitado que o modelo político puramente burocrático, que se propõe à
aplicação das regras de forma automática na tentativa de suprimir a exceção, faz vigorar um
Estado sem poder decisório e realiza a gestão pelo saber, provocando efeitos segregativos.
A burocracia seria a forma dessa gestão administrativa que tenta suprimir a exceção no
modelo do discurso universitário, no qual o saber esconde o S1, que ocupa o lugar da verdade
inacessível ao sujeito. Nesse ponto, Miller (2005a) adverte que, “quando a norma se torna
totalitária se paga com um retorno do mestre” (p. 214). Esse retorno catastrófico do mestre,
após a tentativa de suprimir essa verdade no regime burocrático, é apresentado por Miller
(2005a) no exemplo da suspensão da Constituição da República de Weimar realizada por Hitler.
Sobre o discurso do mestre moderno, Lacan (1969-1970/1992) questiona: “como é que
esse discurso, que se escuta tão maravilhosamente bem, pode ter mantido a sua denominação?”
(p. 178). Ele responde ao seu próprio questionamento da seguinte maneira: “Isto é provado pelo
fato de que, explorados ou não, os trabalhadores trabalhem” (Lacan, 1969-1970/1992, p. 178),
pois “jamais se honrou tanto o trabalho, desde que a humanidade existe. E mesmo, está fora de
cogitação que não se trabalhe” (Lacan, 1969-1970/1992, p. 178).

3.5 O mestre moderno: universitário e capitalista

57
No original: “cette élévation du maître au savoir a permis la réalisation des maîtres les plus absolus qu'on ait
jamais connu depuis les débuts de l'histoire”.
63

Miller (2010), em seu seminário El banquete de los analistas58, salienta que,


diferentemente da leitura realizada por Freud, calcada na repressão da era vitoriana, o
capitalismo engendra uma nova ordenação na qual reina certa permissividade. Essa repressão
verificada por Freud pode ser representada pelo discurso do mestre antigo que, ao impor a sua
faceta civilizatória, rompe o acesso do sujeito ao gozo. Porém, a partir dos giros discursivos o
sujeito passa a ter acesso ao mais-de-gozar. Diz o autor:

Enquanto se manteve [o discurso do mestre], limitou o crescimento do impasse que está no coração da
civilização, roubando do escravo o fruto de seu trabalho. Lacan indicava, a respeito do discurso do mestre,
que o objeto a não satisfazia o sujeito, nada além de sustentar a realidade no fantasma. E isto sem dúvida
traz uma satisfação, um gozo ao sujeito, mas somente ao nível da realidade do fantasma. Ao mesmo tempo
há algo que se preserva e o que funciona no coração da cultura, esse circuito de movimento perpétuo, se
distribui e enquadra pelo discurso do mestre. O limite foi levantado com a emergência do capitalismo,
coisa que Lacan apresentou simplesmente invertendo as duas primeiras letras (Miller, 2010, p. 308, itálico
do autor, tradução nossa59).

Para tal ocorrência, houve a necessidade de uma mutação do mestre e “foi preciso que
ele ultrapassasse certos limites. Em poucas palavras, isso acontece àquilo cuja mutação tentei
apontar-lhes. […] Falo dessa mutação capital, também ela, que confere ao discurso do mestre
seu estilo capitalista” (Lacan, 1969-1970/1992, p. 178).
Essa primeira mutação do mestre, efeito da ciência moderna, instala o saber na posição
de agente do discurso e produz, a partir da manipulação do novo saber, as condições para o
estilo capitalista. Como foi abordado no primeiro capítulo, o mundo é afetado pela
racionalidade e pela reificação, decorrentes da ciência e do capitalismo, e o saber se torna
objetificável em seu aspecto quantitativo e matematizável. Ocorre a redução

dos saberes a um único mercado. É essa a referência nodal quanto ao que estamos interrogando. É a partir
dela que podemos conceber que também existe alguma coisa que, embora remunerada por seu verdadeiro
valor de saber, segundo as normas que se constituem do mercado da ciência, é obtida de graça. Foi a isso
que chamei o mais-de-gozar (Lacan, 1968-1969/2008c, p. 40).

Nesse sentido, podemos entender que o novo saber, disjunto de uma garantia externa a
ele, proporciona uma nova forma de extrair o mais-de-gozar, a mais-valia. O saber, “sob sua

58
O banquete dos analistas
59
No original: “Mientras se mantuvo, limitó el crecimiento del impasse que está en el corazón de la civilización,
robando al esclavo el fruto de su trabajo. Lacan indicaba respecto del discurso del amo que el objeto a no satisfacía
al sujeto más que sosteniendo la realidad en el fantasma. Y esto sin duda aporta una satisfacción, un goce al sujeto,
pero soloa nivel de la realidad del fantasma. Al mismo tiempo hay algo que se preserva y lo que funciona en el
corazón de la cultura, ese circuito de movimiento perpetuo, se distribuye y enmarca por el discurso del amo. El
límite se levantó con la emergencia del capitalismo, cosa que Lacan presentó simplemente invirtiendo las dos
primeras letras”.
64

forma científica” (Lacan, 1968-1969/2008c, p. 39), influencia a transformação do homem, do


trabalhador, em mercadoria. No mundo reificado, o homem não tem qualidades, mas tem o seu
valor.

O saber, embora há pouco eu tenha parecido começar meu discurso por ele, não é o trabalho. Às
vezes equivale ao trabalho, mas também pode nos ser dado sem ele. O saber, em última instância, é o que
chamamos de valor. O valor às vezes se encarna no dinheiro, mas o saber também vale dinheiro, e cada
vez mais (Lacan, 1968-1969/2008c, p. 39).

Essa mutação do mestre para seu estilo capitalista é referida ao momento histórico em
que, “a partir de certo dia, o mais-de-gozar se conta, se contabiliza, se totaliza. Aí começa o que
se chama de acumulação de capital” (Lacan, 1969-1970/1992, p. 189).
Lacan (1972) propõe uma escrita para o discurso do mestre capitalista, um discurso
astucioso que substitui o antigo discurso do mestre. Na produção desse novo discurso, o
psicanalista, também astucioso, se vale de um artifício, da inversão do sujeito barrado e do S1
na estrutura original do discurso do mestre.

Figura 6. Discurso capitalista60

A conjunção entre o capitalismo e o discurso universitário pode ser entendida como um


“afinamento do que acontece com as condições da ciência” (Lacan, 1968-1969/2008c, p. 164).
Os dois discursos rechaçam o que está no lugar da verdade, o S1, promovendo uma gestão
administrativa pelo saber e pelo valor. A função da ciência, o seu uso, adquire uma nova posição
na organização social em decorrência da sua conjunção com o capitalismo:

O capitalismo reina porque está estreitamente ligado à ascensão da função da ciência. Mas até esse poder,
esse poder camuflado, esse poder secreto e, também cabe dizer, anárquico - ou seja, dividido contra si
mesmo, sem a menor dúvida-, por seu aparelhamento com a ascensão da ciência, está agora mais
atrapalhado com isso do que um peixe com uma maçã, porque, de todo modo, do lado da ciência, acontece
alguma coisa que vai além da sua capacidade de controle (Lacan, 1968-1969/2008c, p. 233).

A verdade rechaçada nesse discurso modernizado propõe uma administração igualitária,


sem mestre. Podemos entender o que é introduzido como poder anárquico no sentido de que,

60
Fonte: Lacan, 1972.
65

“torna-se muito mais difícil, segundo Lacan, localizar e nomear efetivamente o mestre ou
senhor moderno” (Laia, 2009, p. 10). O que fica explicitado a partir dos questionamentos
lacanianos a seguir:

O que há de chocante, e que não parece ser visto, é que a partir daquele momento o significante-mestre,
por terem sido dissipadas as nuvens da impotência, aparece como mais inatacável, justamente na sua
impossibilidade. Onde está ele? Como nomeá-lo? Como discerni-lo, a não ser, evidentemente por seus
efeitos mortíferos? Denunciar o imperialismo? Mas como pará-lo, esse mecanismo tão pequeno?
O que cabe agora ao discurso universitário? Não pode haver chance de que em outro lugar a
coisa se altere um pouco. Como? (Lacan, 1969-1970/1992, p. 189).

Nesse discurso moderno, o significante-mestre é mantido no lugar da verdade e o sujeito


não pode ter acesso a ele. O tratamento do gozo pela via do valor tenta impor um outro
funcionamento do social ao suprimir a exceção. Ao mesmo tempo, o sujeito pode acessar o
mais-de-gozar em sua forma mercadoria, porém orientado no nível da necessidade, deslocado
da sua relação com o desejo.
A decisão do mestre antigo é substituída pelo manejo do saber e do valor. Isso indica
que “há uma espécie de esvaziamento da impotência do mestre” (Laia, 2009, p. 10). O que Laia
(2009) propõe é que essa dominação pela via do saber não é perceptível como uma dominação
pelos sujeitos no mundo contemporâneo e, “uma vez que, neste mundo, os senhores não são
propriamente evidentes em suas manifestações, Lacan ensina a procurá-los sobretudo a partir
de ‘seus efeitos mortíferos’ e suas mutações” (p. 6).
Com o fim de respaldar esta leitura, podemos nos valer de nossa elaboração sobre o
estabelecimento de uma organização igualitária e contratual após o apagamento da exceção.
Nesse regime moderno, o lugar de mestre não pode ser ocupado e não há um fundamento que
garanta a exceção, pois todos são iguais. Sobre o mestre capitalista, Miller assinala:

[...] indico que lembra a metáfora de Adam Smith da mão invisível. Adam Smith, primeiro doutrinário do
capitalismo, com sua obra sobre a riqueza das nações, se entusiasmava mostrando que se fosse deixado
que cada um fizesse, produzisse, dirigisse o que queria, em um sistema liberal na perspectiva do laisser
faire, laisser passer (deixar fazer, deixar passar), que traduz bem a posição do S/ [sujeito barrado] no
lugar do mestre-, a mão invisível do capitalismo atuaria de tal modo, que tudo se ajustaria de maneira
apropriada. Então no interior do liberalismo esta mão invisível estabelece os equilíbrios convenientes
muito melhor do que qualquer organização consciente de si mesma; é, pois, uma espécie de providência
interior que assegura na ação o efeito Papai Noel, se me permitem (Miller, 2010, p. 308, itálicos do autor,
tradução nossa61).

61
No original: “indico que recuerda la metáfora de Adam Smith de la mano invisible. Adam Smith, primer
doctrinario del capitalismo, con su obra sobre la riqueza de las naciones, se entusiasmaba mostrando que si se
dejaba a cada uno hacer, producir, dirigir lo que quería, en un sistema liberal- desde la perspectiva del laisser faire,
laisser passer (dejar hacer, dejar pasar), que traduce bastante bien la posición de S/ en el lugar del amo-, la mano
invisible del capitalismo actuaría de modo tal, que todo se ajustaría de manera apropiada. Entonces en el interior
del liberalismo esta mano invisible establece los equilibrios convenientes mucho mejor que cualquier organización
66

Entendemos que o mestre moderno capitalista, a mão-invisível do mercado, que


comanda a partir do cálculo do valor, se fundamenta no tratamento formal da verdade pela
racionalidade científica. Nessa direção, Lacan (1972) ressalta que o caminho da ciência é o de
produzir um discurso a partir de ordenações significantes cada vez mais puras, fórmulas cada
vez mais distanciadas de um significado, referência que também podemos estender ao
capitalismo. Para Laurent (1992), “o discurso capitalista é ordenado em uma nova referência
ao saber” (p. 44, tradução nossa62), esta referida à ciência.
A partir desse saber puro, baseado em fórmulas lógicas e matemáticas, a ciência e o
capitalismo criam novos objetos. Laurent (1992) considera que o sentido dos objetos
produzidos não importa à ciência, o que lhe importa é que se produza. A subtração realizada
pela ciência, subtração de gozo, é devolvida nos objetos, “em um mais-de-gozo pelo qual, agora
com fonógrafos, vídeos e gravadores, se possa […] coletivizar e fascinar” (Laurent, 1992, p.
44, tradução nossa63). O discurso do mestre moderno propõe coletivizar os homens a partir do
saber e dos objetos que orientam o gozo, já que não dispõe da exceção para fundar o conjunto
do “todos-iguais”.

A ciência anima o discurso capitalista, esse discurso que produz tantos objetos, produzidos por
essas ondas: televisão, gravador, o olho se nutre com uma quantidade jamais vista antes. O que mascara
é que com isso se distrai: com isso, o mestre distrai os escravos (Laurent, 1992, p. 41, tradução nossa64).

Sobre essa distração, Lacan (1971-1972/2011) ressalta que tanto o discurso capitalista
quanto o discurso universitário são discursos bem-feitos, pois “vocês são ainda mais
engambelados. De toda forma, vocês sequer pensam nisso” (p. 61). Elucidando o mecanismo
de distração desses discursos, Lacan (1969-1970/1992) retoma o desenvolvimento da
matemática para elucidar que a ciência surge daí e que “toda a evolução da matemática grega
nos prova que o que sobe ao zênite é a manipulação do número como tal” (p. 168).
A ciência, a partir da lógica formal, trata do significante reduzido ao máximo em seu
sentido, isto é, o significante enquanto número, e produz objetos a partir de uma verdade
formalizada. Esses objetos, incluídos no mercado e produzidos pela ciência objetificada, são

consciente de sí misma; es, pues, una suerte de Providencia interior que asegura en la acción el efecto Papá Noel,
si me permiten”.
62
No original: “el discurso capitalista es ordenado em una nueva referencia al saber”.
63
No original: “en un más de goce, por el cual ahora, con fonógrafos y videos y magnetófonos, se pueda [...]
colectivizar y fascinar”.
64
No original: “La ciencia anima el discurso capitalista, este discurso que produce tantos objetos, producidos por
esas ondas: televisión, magnetófono; el ojo se nutre con una cantidad jamás antes vista. Lo que se enmascara es
que con esto se distrae: con esto, el amo distrae a los esclavos”.
67

chamados por Lacan (1969-1970/1992) de “gadgets” (p. 157, itálico do autor) e de “latusas”
(p. 171, itálico do autor), e são

pequenos objetos a que vão encontrar ao sair, no pavimento de todas as esquinas, atrás de todas as vitrines,
na proliferação desses objetos feitos para causar o desejo de vocês, na medida em que agora é a ciência
que o governa, pensem neles como latusas (Lacan, 1969-1970/1992, p. 172).

Os sujeitos são animados pelos gadgets e latusas e o espaço onde essas fabricações da
ciência se multiplicam é chamado de “aletosfera” (Lacan, 1969-1970-1992, p. 171).

A aletosfera, é bonito dizer. Isto porque supomos que o que chamei de verdade formalizada tem
já suficiente status de verdade no nível onde ela opera, onde ela opercebe [sic]. Mas no nível do operado,
do que deambula, a verdade não é de modo algum desvelada (Lacan, 1969-1970/1992, p. 171).

Nesse sentido, o psicanalista demonstra novamente como a exceção continua rechaçada


desse discurso. Verificamos como os discursos capitalista e universitário funcionam bem
juntos, já que mantêm o S1 no lugar da verdade, verdade que continua sendo tratada de forma
puramente lógica na produção de novos objetos de satisfação. É necessário recordar que a
ciência, assim como o utilitarismo, modifica a relação do homem com o bem e os bens,
transforma sua antiga orientação pela via do desejo em orientação pela via da necessidade, esta
referida à sua verdade formalizada e tratada quantitativamente.
Na mesma direção, Jorge Alemán (2012), em uma entrevista intitulada “Una de las
maneras de sustraerse a la técnica, es la política”65, indica como a impossibilidade é tratada pela
técnica moderna. Resultado da transformação da ciência no mundo capitalista, a técnica visa
produzir tecnologias e instrumentos pela “integração de todos os saberes a serviço de destruir
a impossibilidade, a serviço de produzir um novo tipo de realidade onde o impossível não tenha
lugar” (p. 1, tradução nossa66). Sobre os efeitos do discurso capitalista, Teixeira (1999) observa:

Trata-se, por conseguinte, de um discurso definido, como propõe Lacan, pelo repúdio da castração, na
medida em que dele se produz um sujeito que, ao se acreditar completo, deixa de lado a questão do amor:
‘Amizade e negócios não se misturam’, ilustra bem o velho adágio mercantil. Diversamente pois dos
outros discursos, que podem sofrer uma rotação em virtude do ponto de impasse que orienta o
reposicionamento subjetivo, o funcionamento do discurso capitalista reproduz o que se chama, em Teoria
dos grafos, um ciclo hamiltoniano. Ele se engendra como um circuito destinado a girar sobre si mesmo,
sem nenhuma disjunção que se marque como ponto limite que o sujeito deve atravessar para poder dele
sair (p. 187, itálicos do autor).

65
“Uma das formas de evitar a técnica, é a política”.
66
No original: “la integración de todos esos saberes al servicio de destruir la imposibilidad, al servicio de producir
un nuevo tipo de realidad donde lo imposible no tenga lugar”.
68

Então, nos orientamos pelos enunciados de Lacan (1974a), em sua conferência “A


Terceira”, na qual ele se pergunta se seremos animados pelos gadgets e introduz o futuro da
psicanálise enquanto dependente do que advirá desse real da civilização contemporânea. Nesse
sentido, o autor destaca que isso “parece pouco provável. Não conseguiremos realmente fazer
com que o gadget não seja um sintoma, pois ele o é, por enquanto, com toda a evidência”
(Lacan, 1974a, p. 19, itálico do autor).
A elucidação do apagamento da exceção e da consequente instituição do saber científico
na posição de comando do discurso do mestre moderno nos impulsiona a refletir sobre seus
impactos na contemporaneidade. Dessa forma, continuaremos nossa elaboração visando uma
análise da organização social contemporânea a partir das noções de lei e norma. Também
investigaremos como a dominação pelo saber científico pode ser apreendida no mundo
contemporâneo através da organização política de comitês de ética e das práticas de avaliação
e vigilância. Além disso, pretendemos situar a posição da psicanálise em relação ao discurso do
mestre moderno, que não é mais o seu avesso.
69

4 A PSICANÁLISE NA ERA DO HOMEM SEM QUALIDADES

Verificamos que Lacan atualiza a psicanálise de acordo com as modificações sociais


que percebe em sua época. A passagem do reino da lei, do Nome-do-Pai, para o reino dos
Nomes-do-Pai e do laço social sustentado pelos discursos é índice dessa percepção lacaniana.
Para além disso, Lacan (1968-1969/2008c) propõe uma nova forma de pensar o gozo a partir
do seu conceito de mais-de-gozar, evidenciando as consequências do modo de tratamento do
gozo pelo discurso contemporâneo, influenciado pela ciência e pelo capitalismo.
As modificações iniciadas na modernidade tomam outros formatos com a expansão da
globalização, entendida por Lacan (1968-1969/2008c) como “absolutização do mercado do
saber” (p. 46). Nesse mercado do saber ocorre a “homogeneização dos saberes” (Lacan, 1968-
1969/2008c, p. 40) em torno de um valor quantitativo em prol de uma destituição das qualidades
dos saberes, dos objetos e dos próprios sujeitos.
Após realizarmos a leitura lacaniana da modificação do laço social pela via do conceito
de mais-de-gozar, dos quatro discursos e do discurso capitalista, nos propomos a continuar essa
elaboração a partir de autores contemporâneos que tratam da emergência das práticas de
avaliação e vigilância decorrentes desse processo.
Neste capítulo, primeiramente, abordaremos as noções de lei e norma a fim de elucidar
a passagem do discurso do mestre para os discursos universitário e capitalista. Verificaremos
como a norma propõe a homogeneização calcada no contrato e na igualdade, em concordância
com os princípios que orientam a modernidade, e indica uma forma de tratamento da exceção
que pretende apagá-la. Posteriormente, apresentaremos a avaliação e a vigilância como
instrumentos contemporâneos a serviço do discurso dominante e utilitário. Finalizando,
realizaremos uma leitura da psicanálise em contraponto ao discurso do mestre moderno e
utilitário, fundamentado na norma e instrumentado pela avaliação.

4.1 O reino da norma e o apagamento da exceção

A leitura realizada por Jean-Claude Milner (2002), em seu texto “Les Pouvoirs: d’un
modèle à l’autre”67, assinala que o modelo atual de governo não é mais o clássico, fundado na

67
Os poderes: de um modelo ao outro
70

lei e em seus limites. O regime clássico, apresentado no modelo do discurso do mestre, é


baseado na lei e tem como necessidade uma exceção fundadora. Esse modelo clássico tem como
princípio o mínimo de poderes e comporta limites e regras que são referenciados a uma exceção.
De acordo com Jacques-Alain Miller e Jean-Claude Milner (2006), no livro Você quer
mesmo ser avaliado?, o Estado antigo não se organiza a partir do postulado de igualdade entre
os indivíduos, pois é necessário entre eles um terceiro em função de exceção. Porém, a forma
atual de administração do Estado, a democracia moderna, ao propor uma equivalência entre os
sujeitos, se torna o “lugar geométrico do contrato. Ou melhor, dos contratos, já que a força da
norma contratual está em poder ser multiplicada de maneira ilimitada” (Miller & Milner, 2006,
p. 6).
O modelo moderno de governo, ao propor que tudo deve ser dito e explicitado, pode ser
localizado na fórmula do discurso universitário, baseado no regime do “tudo-saber”. Segundo
Miller (2005a), o modelo moderno é a pura administração comandada pelo saber, que se esforça
para apagar a exceção. Milner (2002) sustenta que a democracia moderna também pulveriza a
exceção ao multiplicar os poderes e as regras que passam a ser distribuídos entre diversas partes
da sociedade. A exceção transformada em regra é enfraquecida e não sustenta a função de limite
exterior, como fazia no antigo regime, não é mais o suporte para a resolução dos conflitos entre
regras contraditórias (Milner, 2002).
O reino da lei e do Nome-do-Pai, representado pelo discurso do mestre, ordenava
simbolicamente o mundo a partir de uma exceção. Com a modernidade e a pluralização dos
Nomes-do-Pai, esse discurso é substituído pelo discurso universitário, que fundamenta uma
ordenação social igualitária, não permitindo a existência de uma exceção. A partir do momento
que a exceção é apagada, perde-se o limite, e a referência passa a ser o saber expresso no
contrato. O reino antigo do mínimo de poderes é substituído pelo reino do saber ilimitado.
A noção de homogeneidade do corpo social e suas relações estreitas com o conceito de
igualdade da modernidade são temas trabalhados por Newton Bignotto (2012) em seu texto
“Homogeneidade e Exceção”. Referenciando-se ao mundo antigo, o autor aponta que “a ideia
de homogeneidade do corpo social pareceria uma extravagância para muitos pensadores do
passado” (Bignotto, 2012, p. 64). Com o exemplo dos gregos, ressalta que a democracia não
era sinônimo de igualdade, pois nem todos podiam “reivindicar a condição de cidadãos”
(Bignotto, 2012, p. 64). Há na Antiguidade a primazia da diferença na composição do corpo
social. Retomando o pensamento de Aristóteles, ele assinala que a homogeneidade, ou a
igualdade entre os homens, era concebida somente como “uma tese biológica, referente ao
homem como ser da natureza e não como uma política ou ética” (Bignotto, 2012, p. 65).
71

Para exemplificar a diferença constitutiva da organização social na Antiguidade,


Bignotto (2012) resgata a posição do legislador, este que, para os gregos, não poderia viver sob
as leis que criou. Como já verificamos, isso demonstra como “a exceção permanece sempre
fora da vida política. Ela define o lugar da sua criação” (Bignotto, 2012, p. 65). Neste sentido,
um estado de exceção seria “uma tentativa de trazer, para a história, o legislador, que, no mundo
antigo, ficava fora do mundo dos homens” (Bignotto, 2012, p. 66).
Pelo curso da história, podemos entender que o início da modernidade era, ainda,
marcado pela diferença, pois no regime monárquico os reis se instalam em uma posição de
soberania, “colocando Deus como princípio da lei” (Bignotto, 2012, p. 66). Este modelo de
soberania, calcado em uma exceção, é questionado no decorrer da modernidade, quando a ideia
de que “o poder deveria originar-se do povo passou a ser considerada” (Bignotto, 2012, p. 66).
Como elucidamos no primeiro capítulo, o pensamento de Rousseau demarca a origem do
axioma de igualdade e do estabelecimento de um contrato para regular as relações sem a
necessidade de uma exceção. No entanto, Bignotto (2012) salienta que é necessário demarcar a
importância do conceito de liberdade no pensamento de Rousseau. O contrato impõe seu
domínio “sobre os indivíduos, mas apenas no tocante aos assuntos que dizem respeito ao
interesse comum” (Bignotto, 2012, p. 68). O contrato não impõe regulações à vida privada e,
então, está “assegurada a liberdade de seus membros, os indivíduos são livres para viver como
quiserem, desde que não atropelem a liberdade dos outros” (Bignotto, 2012, p. 68). Localizando
a importância do conceito de liberdade para Rousseau, é advertido que “não faz sentido a
aproximação, feita por alguns intérpretes, entre o pensamento do Genebrino e os regimes
autoritários de nosso tempo” (Bignotto, 2012, p. 68).
Nesse sentido, Bignotto (2012) nos oferece uma primeira interpretação da mudança que
ocorre na forma de pertencimento do indivíduo, de um tratamento moderno da questão da
igualdade entre os homens. A partir da instalação de um Estado moderno laico, não
fundamentado em uma exceção, concretiza-se no século XIX a afirmação de uma “igualdade
de direitos entre os membros de um mesmo Estado” (Bignotto, 2012, p. 68). Logo, a
identificação dos indivíduos passa a acontecer pelo pertencimento à uma mesma nação. O autor
destaca a eclosão do racismo como consequência dessa homogeneização do corpo social, pois
ao nomear os indivíduos que constituem uma nação, preservando uma identidade comum entre
eles, ocorre a recusa dos que não participam do mesmo grupo identitário. Sendo assim, para
proteger um Estado e uma identidade da nação,
72

para preservar a homogeneidade (que passa a ser pensada como um dado concreto da realidade), vale tudo
- essa é a lógica do estado de exceção - mesmo designar um ‘inimigo objetivo’, que pode e deve ser
aniquilado. Noções de raça e destino dos povos saem das brumas do preconceito para ocupar o centro da
cena política. A história do século passado está recheada de exemplos que nos mostram a tragédia que
decorre desse encontro nefasto (Bignotto, 2012, p. 73).

Todavia, considerando os efeitos do capitalismo na forma de pertencimento dos


indivíduos, para além da homogeneidade calcada na ideia de nação, Bignotto (2012) propõe
uma segunda interpretação. Para o autor, a homogeneidade é buscada, na atualidade, por
caminhos não convencionais. O discurso capitalista, ao sugerir a identificação do sujeito ao
consumidor, continua a buscar a homogeneidade “como luta pela igualdade, principalmente
pela igualdade de consumo” (Bignotto, 2012, p. 73). Alguns slogans da atualidade - Enjoy life68,
Impossible is nothing69 , Think different!70, Have it your way!71 - são bons exemplos de como a
ideia de liberdade pode camuflar a tentativa de homogeneização. Sendo assim,

pensar sobre nós mesmos como consumidores é uma nova espécie de identificação pré-política, que
substitui os laços formais de pertencimento a um corpo político, instituído pelas mãos dos homens, por
uma identidade abstrata, baseada no suposto direito ao consumo das coisas (Bignotto, 2012, p. 73).

Para elucidar a questão moderna do funcionamento da exceção e a consequente tentativa


de suprimi-la, visando uma leitura psicanalítica, nos valemos da interpretação de Miller (2005a)
referenciada ao lado esquerdo da tábua da sexuação. Lacan (1972-1973/1985), ao propor a
tábua da sexuação, realiza uma leitura lógica do Édipo e faz coexistir “a simultaneidade, ou
melhor, a sincronia - todos, de um lado, e de outro, um, pelo menos um” (Miller, 2005a, p. 208).

Figura 7. Parte esquerda e superior da tábua da sexuação72

Os termos devem ser entendidos enquanto quantificadores existenciais (∃ ×) e


universais (∀ ×). A barra que está inscrita sobre alguns termos significa a negação. O termo ×
representa o sujeito, e Φ o falo. Dessa forma, no lado esquerdo da tábua, na primeira linha,
existe um que não é submetido à castração e, na segunda linha, todos são submetidos à

68
Coca Cola
69
Adidas
70
Apple
71
Burger King
72
Fonte: Lacan, 1972-1973/1985, p. 105.
73

castração. Segundo Lacan (1972-1973/1985), “o todo repousa, portanto, aqui, na exceção


colocada, como termo, sobre aquilo que, esse Φ×, o nega integralmente” (p. 107). O que indica
que há uma exceção, entendida aqui como a figura do pai primevo, que escapa à castração e
constitui o conjunto dos filhos.
O regime edípico é o regime do “todos-iguais” fundado pela exceção paterna. Após a
morte do Pai, este continua em posição de exceção, e nenhum dos filhos pode ocupar este lugar,
ou seja, o lugar da exceção deve continuar existindo, porém vazio. A exceção funda e mantém
o conjunto dos filhos, todos-iguais. Sendo assim, na sincronia entre as duas fórmulas, Miller
(2005a) propõe: “Todos parecidos, um diferente” (p. 208). Entretanto, o autor salienta que no
curso dos tempos há um outro manejo da relação com a exceção que está fora da sincronia, pois

se o ‘para todos’ da primeira fórmula é verdadeiro, então ele deve valer também para o ‘um’ distinguido
pela segunda. A lei é a mesma para todos. É o que define, pelo menos depois da Revolução Francesa, a
essência do direito. A conquista foi suprimir a exceção. Eles tentaram por pouco tempo mantê-la, para
finalmente cortar-lhe o pescoço. Pouco importa o detalhe. Depois, todos se puseram a cortar o pescoço
uns dos outros para ficarem iguais (Miller, 2005a, p. 209).

Nesse sentido, a lógica do “para-todos” é o que caracteriza o modelo moderno de


governo, na forma de uma administração, e expõe “ódio à exceção que caracteriza o reino da
razão” (Miller, 2005a, p. 214) ao não suportar o um que seja diferente. Desdobrando essa
articulação lógica, em seu seminário De la naturaleza de los semblantes73, Miller (2001) se vale
do pensamento de Carl Schmitt e Hans Kelsen.
Carl Schmitt74 foi quem percebeu a “lógica que opera na admissão do mestre” (Miller,
2001, p. 58, tradução nossa75). Seu pensamento exemplifica a linha superior do lado esquerdo
da tábua da sexuação, “existe ao menos um que não é como todos” (Miller, 2001, p. 59, itálicos
do autor, tradução nossa76). C. Schmitt é o teórico do decisionismo, da teoria de que uma
decisão deve ser tomada em uma situação excepcional. Logo, existe um soberano que não está
submetido às leis, a quem é solicitado a ordenar quando algo não funciona, ele “é aquele que
decide sobre o estado de exceção” (Schmitt, 1922, citado por Miller, 2001, p. 59, tradução
nossa77).

73
A natureza dos semblantes.
74
Carl Schmitt (1988-1985) foi um jurista alemão e foi professor de Direito nas Universidades de Colonia, Bonn
e Berlim. “Enquanto consultor jurídico do Reich, Carl Schmitt auxiliou praticamente com todos os presidentes,
desde Ebert a Hitler. No ano de 1933, já então filiado ao Partido Nacional-Socialista, elaborou o documento
jurídico que foi a base de sustentação do golpe de Estado executado por Hiltler” (Lopes. 2015). Principais obras:
Teologia política (1922), La dictadura (1921) e O conceito do político (1932).
75
No original: “lógica que opera en la admisión del amo”.
76
No original: “existe al menos uno que no es como todos”.
77
No original: “soberano es aquel que decide sobre el estado de excepción”.
74

Para exemplificar a linha inferior do lado esquerdo da tábua, Miller (2005a) aponta o
pensamento de Kelsen, este que “é partidário do ‘para todos’. Ele concebe que o ‘para todos’ é
o que permite ao grupo se sustentar. Daí ele extrai a consequência de que o Estado conveniente
é aquele que, segundo a fórmula, administra, mas não governa” (p. 210). Kelsen78 foi promotor
do normativismo e “partidário do todos como um só homem, do todos iguais, da norma” (Miller,
2001, p. 58, itálicos do autor, tradução nossa79). É importante assinalar que neste normativismo
a exceção não é considerada enquanto mantenedora do grupo “todos-iguais”. Na administração
não há espaço para a decisão calcada na exceção.
Não são aqui desconsideradas as consequências que podem surgir ao levar a teoria da
decisão de C. Schmitt às últimas consequências, convocando a exceção para uma ordenação e
esta permanecendo no poder, como no caso da República de Weimar à qual já nos referimos no
capítulo anterior80. Ao mesmo tempo, a regulação pela via normativa do “para-todos” também
deve ser questionada.

O antiexcepcionalismo é sempre um erro. ‘Não será feita uma exceção para você’ - eis o que diz
a voz do ‘para todos’. Isso se assenta na idéia, falsa, de que todos os casos são iguais. Isso instaura o reino
do Uniano, como o chama Lacan, no qual a gente se ferra, porque se conseguiu fazer com que todos os
casos fossem iguais. Nesse momento, tudo está em ordem, as máquinas falam às máquinas (Miller, 2005a,
p. 215, itálico do autor).

Sobre as diferenças e riscos dessas duas concepções, deve ser enfatizado que

o debate é atual, já que assistimos ao torneio que opõe [...] os defensores do Estado da pura administração
e os que estão convencidos de que existe em política outra coisa além da administração, que é da ordem
da soberania.
A ideologia liberal pretenderia despolitizar o grupo humano, ela pensa poder neutralizar a relação
intersubjetiva. Eu digo: estabeleçam um regime administrativo puro e vocês verão o retorno do Mestre,
de um verdadeiro Mestre. É de fato perigoso procurar apagar a soberania pela administração (Miller,
2005a, p. 211).

78
Hans Kelsen (1881-1973) “foi um jurista e filósofo austríaco sendo um dos teóricos mais importantes e influentes
do século XX. Publicou cerca de quatrocentos livros e artigos, com especial destaque para a Teoria Pura do Direito
ou Reine Rechtslehre. Recebeu o título de doutor em 1906. Em 1911 recebeu o título de livre docente e publicou
o seu primeiro trabalho intitulado ‘Problemas fundamentais da teoria do Direito do Estado’. Em 1919 tornou-se
professor de Direito Público na Universidade de Viena, sendo considerado o principal representante da chamada
Escola Normativista do Direito. Kelsen era judeu e fora perseguido pelo nazismo razão pela qual emigrou para os
Estados Unidos, e onde também exerceu o magistério na Universidade de Berkeley, vindo a falecer nesta cidade
da Califórnia. Sofrera duras críticas ideológicas particularmente dos militantes da doutrina comunista. Em 2011
foi lançada versão em língua portuguesa da ‘Autobiografia de Hans Kelsen’, pela editora Forense Universitária,
do Rio de Janeiro” (Leite, 2013).
79
No original: “partidário del todos como un solo hombre, del todos iguales, de la norma”.
80
Aqui, não é desconsiderada a posição política de Carl Schmitt na Alemanha nazista, pois “ele extraiu,
evidentemente, as piores consequências, uma certa simpatia por um certo indivíduo de bigode que expulsou a
República de Weimar, […], e logo Carl Schmitt reconheceu nele alguém capaz de encarnar a soberania na situação
excepcional” (Miller, 2005a, pp. 213-214).
75

Nesse sentido, retomamos o seguinte apontamento de Lacan (1967/2003a) a respeito de


tal homogeneização da sociedade:

Os homens estão enveredando por uma época que chamamos planetária, na qual se informarão por algo
que surge da destruição de uma antiga ordem social, que eu simbolizaria pelo Império, tal como sua
sombra perfilou-se por muito tempo numa grande civilização, para ser substituída por algo bem diverso
e que de modo algum tem o mesmo sentido - os imperialismos, cuja questão é a seguinte: como fazer para
que massas humanas fadadas ao mesmo espaço, não apenas geográfico, mas também, ocasionalmente,
familiar, se mantenham separadas? (pp. 360-361).

Éric Laurent (2007), em seu texto “Psicanálise e política”, salienta que a leitura de Lacan
sobre o regime administrativo e burocrático denuncia “a miragem desse ‘Estado universal
homogêneo’, contrapondo-o aos efeitos de heterogeneidade, de segregação, de separação” (p.
162). O que se opõe à homogeneização é, precisamente, “o problema de como tratar a
heterogeneidade dos modos de gozo particulares” (Laurent, 2007, p. 173). Isto posto,
verificamos que o problema ao qual o autor se refere é ao que do gozo não pode ser
contabilizado e homogeneizado pelo significante. E, na continuidade de sua elaboração,
apresenta o pensamento de Lacan (1967/2003f) em seu texto “Proposição de 9 de outubro de
1967 sobre o psicanalista da Escola”, ao se referir aos campos de concentração “como
consequência do remanejamento dos grupos sociais pela ciência, e, nominalmente, da
universalização que ela ali introduz. Nosso futuro de mercados comuns encontrará seu
equilíbrio numa ampliação cada vez mais dura dos processos de segregação” (p. 263).
A mudança do reino da lei, fundado na exceção, para o reino da norma, fundado no
antiexcepcionalismo, é explorada por Miller (2005a). É assinalado que no desenvolvimento da
modernidade ocorre a tentativa de suprimir o significante-mestre, pois verificou-se como “ele
é perigoso, porque seduz, arrasta as mulheres, os jovens, as massas” (Miller, 2005a, p. 116). No
esforço de controlar e de prevenir as “intensidades incontroláveis” (Miller, 2005a, p. 116) que
o significante-mestre pode criar, realiza-se a invenção de um “significante legal” que é “uma
soma de saber que convoca seus especialistas, que formam uma elite, mandatária de todos”
(Miller, 2005a, p. 116).
Conforme verificamos no primeiro capítulo, na modernidade ocorre o tratamento das
leis e do Estado com base na racionalidade a fim de sustentar seu axioma igualitário. A
orientação política pelo cálculo permite o apagamento do lugar da exceção e do mestre e, então,
no lugar da decisão de um mestre, a decisão é calculada pelo coletivo. Corroborando com essa
ideia, Francis Wolff (1996), em seu texto “Nascimento da razão, origem da crise”, expõe que
76

a administração racional da prova em matéria matemática resulta também da possibilidade, para qualquer
um que tenha apreendido, de transmitir a um interlocutor possível o conjunto do corpus do saber, dos
primeiros princípios às últimas consequências. Tampouco aí existe Mestre. A própria idéia de que os
enunciados matemáticos são demonstráveis está fundada precisamente na transmissibilidade indefinida
do saber e na substitutibilidade indefinida dos sábios, pura função sem sujeito, lugar vazio do Mestre (p.
73).

Marilena Chauí (2010), em seu texto “O enigma da democracia, segundo Lefort”,


salienta que o poder visto como lugar vazio sustenta a invenção democrática moderna e provém
de um contexto de esfacelamento do poder pelos “efeitos concretos da divisão social” (p. 2) e
pelo “surgimento de um sujeito político desprovido de corpo, o povo, desfazendo a identidade
entre o poder, o saber e a lei” (p. 2). Isso nos remete à interpretação que Miller (2005a) realiza
sobre este conceito de democracia como lugar vazio estabelecido por Claude Lefort (2011) 81,
pois

designar a democracia como lugar vazio é uma ficção reguladora que ordena essa história. Em termos
lacanianos, é designar o sujeito da democracia como sujeito barrado, sujeito vazio, o sujeito sem
qualidade, pura variável lógica.
Isso supõe uma extirpação dos dados de fato, das determinações, das particularidades. Cada um
conta como um. Esse é o valor da fórmula: ‘um homem, uma voz’ (Miller, 2005a, p. 120).

Nessa direção, é oportuno lembrar das incidências da ciência moderna e do capitalismo


no estabelecimento de uma nova forma de organização social, pois promovem um processo de
desqualificação do sujeito, visando um tratamento que desconsidere as particularidades. Sobre
essa forma moderna de poder, podemos nos reportar ao conceito de biopoder desenvolvido por
Foucault. Na construção desse conceito, Foucault (1976/1999) demonstra que, na modernidade,
o objeto da política passa ser “a vida, muito mais do que o direito” (p. 136). O controle político
da vida e dos corpos dos indivíduos é realizado por meio de estatísticas que fundamentam
políticas de saúde e de controle da criminalidade.
Percebemos que, mesmo sendo fruto das ressonâncias do pensamento de Rousseau e da
Revolução Francesa, a forma moderna de poder não conserva a liberdade dos indivíduos como
território intocável pela política. O que G. Giorgi e F. Rodríguez (2007), no “Prólogo” do livro
Ensayos sobre biopolítica. Excesos de vida82, esclarecem é que “a partir do umbral do
biológico, nessa zona entre o biológico e o social, que as tecnologias modernas intervêm e

81
“Claude Lefort, filósofo da interrogação e da indeterminação, é o pensador por excelência da democracia,
situando-se à distância da concepção liberal — que a toma por um regime político entre outros — e da crítica
marxista — que a reduz à expressão política dos interesses da burguesia. Essa dupla distância tem sua raiz, de um
lado, na distinção entre a política e o político, e, de outro, na crítica da ‘boa sociedade’ e do ‘poder incorporado’ ”
(Chauí, 2010, p. 1).
82
Ensaios sobre biopolítica. Excessos de vida.
77

colonizam de um modo novo o que o mundo clássico reservava para a esfera do doméstico e
do privado” (p. 10, tradução nossa83), e indicam que “o corpo e a vida, o corpo como instância
do ser vivente do homem, se tornam matéria política: dessa matéria está feito o ‘indivíduo
moderno’ de Foucault” (p. 10, tradução nossa84). O que é ressaltado por Foucault (1976/1999),
em seu livro História da Sexualidade I: A vontade de saber, é que:

Uma outra conseqüência desse desenvolvimento do biopoder é a importância crescente assumida pela
atuação da norma, à expensas do sistema jurídico da lei. [...] um poder que tem a tarefa de se encarregar
da vida terá necessidade de mecanismos contínuos, reguladores e corretivos. Já não se trata de pôr a morte
em ação no campo da soberania, mas de distribuir os vivos em um domínio de valor e utilidade. Um poder
dessa natureza tem de qualificar, medir, avaliar, hierarquizar, mais do que se manifestar em seu fausto
mortífero; não tem que traçar a linha que separa os súditos obedientes dos inimigos do soberano, mas
opera distribuições em torno da norma. Não quero dizer que a lei se apague ou que as instituições de
justiça tendam a desaparecer; mas que a lei funciona cada vez mais como norma, e que a instituição
judiciária se integra cada vez mais num contínuo de aparelhos (médicos, administrativos, etc.) cujas
funções são reguladoras. Uma sociedade normalizadora é o efeito histórico de uma tecnologia de poder
centrada na vida (p. 135).

Nesse sentido, Miller (2006) ressalta que o imaginário que envolvia os significantes-
mestres foi, a partir do século XVIII, dissolvido e orientado em direção “à simplificação do
significante mestre” (Miller, 2006, p. 5). Sendo assim, seu “esqueleto aparece: é o número 1”
(Miller, 2006, p. 5). Desde a Revolução Industrial já pode se perceber a utilização da estatística
como meio de decifrar um saber que estaria inscrito no social e de propor um direcionamento
político. A administração igualitária se utiliza do número e da estatística para estabelecer o
reino da norma.
A partir de seu raciocínio, Miller (2006) considera o importante papel que exerceu o
utilitarismo neste processo, pois seus teóricos e discípulos criaram mecanismos estatísticos para
coletar e tratar os dados. Assim, relembra que Bentham considerava importante uma
identificação numérica dos indivíduos, pois ele “foi o primeiro a dizer: ´Seria preciso que cada
um tivesse um número que ele conservaria do nascimento até a morte, para que nos
encontremos’. Isso levou à carteira de identidade” (Miller, 2006, p. 4). Há no utilitarismo uma
necessidade de que todos sejam identificáveis, todos devem portar um nome, um registro ou
um número (Miller, 2008).

83
No original: “a partir del umbral de lo biológico, en esa zona entre lo biológico y lo social, que las tecnologías
modernas intervienen y colonizan, de un modo nuevo, aquello que el mundo clásico reservaba a la esfera de lo
doméstico y de lo privado -la esfera del oikos-. El cuerpo y la vida, el cuerpo como instanciación del ser viviente
del hombre, se tornan materia política”.
84
No original: “El cuerpo y la vida, el cuerpo como instanciación del ser viviente del hombre, se tornan materia
política: de esa materia está hecho el «individuo moderno» de Foucault”.
78

No mundo estatístico, a média é o ideal. Para o autor, devemos recordar que “isto não
surge de nenhuma prescrição, de nenhum comando, são números que lhes dão um ideal por si
mesmos, o ideal da norma, distinto da lei” (Miller, 2006, p. 7). Enquanto a lei é estabelecida
pela exceção que a ela não se submete, “a norma - é muito mais doce - é invisível - vem de vós,
da combinação de suas decisões individuais, e depois isso se desenvolve imperceptivelmente e
não podemos mais nos opor” (Miller, 2006, p. 7). E, se referindo ao livro O homem sem
qualidades de Robert Musil (1978/2015), Miller (2006) enfatiza:

Um crescimento em potência dos valores médios dos valores medianos cumpre-se irresistivelmente, e nós
vamos viver o triunfo dos valores medianos. É uma versão da morte do absoluto, a substituição do
absoluto pela média, quer dizer, pelo cálculo estatístico, de tal sorte que Musil pode falar do verdadeiro
suplantado pelo provável. […]
A psicanálise apareceu na época do homem sem qualidades e nós não saímos dessa época. Nós
temos entrado nela, mais do que nunca, decididamente. Nenhuma Aufklärung nos protege, uma vez que
o reino do cálculo, que avança com números e medidas no domínio do psiquismo, pode se fundamentar,
igualmente bem, no espírito das luzes. Sem preconceitos! (p. 9, itálico do autor).

A média orienta as decisões que são tomadas pela administração moderna e, para Miller
(2005a), “há a convicção de que existe apenas administração em nossos dias” (p. 213). Nesse
reino da administração as decisões são tomadas por um coletivo orientado pelo cálculo,
mantendo o ideal igualitário entre os indivíduos. Dessa maneira, ocorre que o governo, na
atualidade, dispõe de “comissões de especialistas que definirão o bem comum” (Miller, 2001,
p. 59, tradução nossa85).
O dispositivo da avaliação é o que orienta as decisões tomadas pelas comissões de
especialistas da administração moderna. A avaliação se propõe a obter um saber demonstrável,
“um saber transparente e comunicável ao Outro” (Miller, 2006, p. 13). Logo, é apresentada a
tentativa de estabelecer uma relação de confiança entre os indivíduos e os coletivos, fundada
no saber transparente da prática avaliativa.

Eis um Outro. Um Outro ao qual é preciso informar, ao qual é preciso transmitir um saber que
constantemente se inflaciona. […] É um espaço onde os coletivos são sujeitos que devem continuamente
demonstrar, sob o olhar do Outro, que somos confiáveis, exatamente demonstrar para dar confiança. Eles
chamam isso de ‘a lógica da demonstração’ (Miller, 2006, p. 13).

Incluído nessa lógica do imperativo de “tudo-saber”, o próprio coletivo deve ser


submetido à autoavaliação. É necessário um “saber sobre a atividade” (Miller, 2006, p. 14),
toda atividade deve ser transformada em um saber demonstrável. Por conseguinte, podemos
relacionar esta forma de laço social que provém de um saber, calculável e verificável, ao

85
No original: “comisiones de expertos que definirán el bien común”.
79

utilitarismo e ao discurso universitário, pois o saber comanda e ocupa o lugar do agente. Existe
neste mecanismo avaliativo de “tudo-saber” uma relação com a lógica capitalista, pois

esta avaliação, a elaboração do saber de si da atividade, tem ele [sic] própria um custo. Ela custa, e ao
mesmo tempo distribuiu [sic] recursos ao coletivo onde ela se implanta, e deve ela própria, justificar sua
existência em termos de custo-benefício. Eles são obrigados a notar que o primeiro efeito da implantação
da avaliação num coletivo é desorganizá-lo e empobrecê-lo, e devem acrescentar: ‘a avaliação deve
difundir uma cultura econômica, para que suas vantagens sejam identificadas e superiores ao custo
financeiro que ela engendra’ (Miller, 2006, p. 14).

O modelo da administração burocrática é evocado por Lacan (1969-1970/1992) ao se


referir ao discurso universitário e seu imperativo de “tudo-saber”. A tentativa de subjetivar um
coletivo pelo uso do saber é “um sonho burocrático” (Miller, 2006, p. 14). A passagem do
discurso do mestre antigo para o discurso do mestre moderno, universitário e capitalista, é
evidente nesta nova forma de laço social que tenta se garantir pelo manejo do saber
demonstrável em contraposição às prescrições da exceção, nunca demonstráveis ou calculáveis.

4.2 Avaliação e vigilância: instrumentos da norma

Em seu livro La politique des choses86, Jean-Claude Milner (2005) realiza uma leitura
da avaliação como a “palavra de ordem” (p. 10, tradução nossa87) da atualidade e expõe que
sua intenção seria a “domesticação generalizada” (p. 12, tradução nossa88) engendrada pelo
saber. A ideologia dessa prática é efeito da reificação e da racionalidade, orientadas pelo
capitalismo e pela ciência moderna. A avaliação, técnica que se pretende científica, é um
instrumento da democracia moderna que invade a vida dos homens. Há a tentativa de tornar os
indivíduos “coisas avaliáveis” (Milner, 2005, p. 17, tradução nossa89) e, ao mesmo tempo, há a
promessa de que os objetos, as coisas, irão governar.

O que está em jogo é a política. A expansão da avaliação, seu caráter aparentemente irresistível,
não é compreendido mesmo diante da promessa da qual ela é portadora: graças a ela, acreditamos, as
coisas poderão enfim governar. Governar a si mesmas e governar os homens. Que o governo das coisas
substitua as miseráveis decisões humanas, isso foi um sonho do século XIX. Isso ainda dura. Tanto em
sua versão de esquerda quanto de direita, no ponto de bifurcação entre utopia social e tecnocracia, o
governo das coisas conheceu bem as variantes e as legitimações. Quer as ciências da natureza, quer a
ideologia do progresso técnico, quer a planificação, ou a pura e simples classificação administrativa e

86
A política das coisas.
87
No original: “mot d’ordre”.
88
No original: “domestication généralisée”.
89
No original: “choses évaluables”.
80

contável. Sem falar das variantes mistas. Contudo, o movimento é sempre fundamentalmente o mesmo:
as coisas decidem no lugar dos homens (Milner, 2005, pp. 19-20, tradução nossa90).

Tratando o homem como um objeto mensurável para, assim, estabelecer uma igualdade
demonstrável, a administração esconde que “os seres falantes são incomensuráveis e
insubstituíveis, essa incomensurabilidade faz a substância de suas liberdades” (Milner, 2005, p.
26, tradução nossa91). Milner (2005) salienta que, na Revolução Francesa, a questão da
incomensurabilidade dos homens foi tratada pela ideia de liberdade, que mantinha uma
igualdade formal entre os homens. Essa igualdade formal significa que os homens eram “livres
e iguais em direitos” (Milner, 2005, tradução nossa92) e “a palavra ‘direito’ é necessária e
suficiente para impedir que ‘livres e iguais’ não sejam contraditórios” (Milner, 2005, p. 26,
tradução nossa93). Entretanto, no lugar da antiga igualdade formal, a democracia
contemporânea, chamada pelo autor de “democracia verbal”, persegue a “igualdade
substancial” (Milner, 2005, p. 26, tradução nossa94).

Querendo a igualdade substancial, ela mergulha os seres falantes no espaço do comensurável e


do substituível. Querendo o comensurável e o substituível, ela não cessa de inventar maneiras de alcançar,
entre estas, a avaliação é certamente uma das mais indolores e eficazes. Graças às medições que ela
permite, os mestres da democracia verbal podem se vangloriar de ter enfim estabelecido a igualdade sobre
as bases sólidas. Com o benefício suplementar que as desigualdades, quando há necessidade delas, não
serão mais que uma forma derivada e suportável de igualdade. Desde que os indivíduos sejam requisitados
a não opor nenhum segredo à avaliação, nós teremos expandido o reino da igualdade até os confins onde
o incomensurável pareça irredutível. O íntimo se reabsorve de perfis e tipos, que são todos de classe de
equivalência. Consequência inevitável: as liberdades passam a lucros e perdas e, com elas, o direito ao
secreto que foi seu suporte material. Quanto a igualdade de seres falantes, ela se torna, pelo contrário,
igualdade de grãos de areia que são indefinidamente substituíveis por serem indistinguíveis entre si. A
avaliação inicia a transformação dos homens em coisas, ela anuncia a próxima realização, e, eu diria mais,
ela a instala (Milner, 2005, pp. 26-27, tradução nossa95).

90
No original: “Il y va de la politique. L’expansion de l’évaluation, son caractère apparemment irrésistible, ne se
comprennent bien qu’au regard de la promesse dont elle est porteuse: grâce à elle, croit-on, les choses pourront
enfin gouverner. Se gouverner elle-mêmes et gouverner les hommes. Que le gouvernement des choses se substitue
aux misérables décisions humaines, ce fut un rêve du XIXs. Il dure encore. Dans sa version de gauche et dans sa
version de droite, au point de bifurcation entre utopie sociale et technocratie, le gouvernement des choses a connu
bien des variantes et bien des légitimations. Tantôt les sciences de la nature, tantôt l’idéologie du progrès technique,
tantôt la planification, tantôt la pure et simple mise en ordre administrative ou comptable. Sans parler des variantes
mixtes. Toutefois le mouvement est toujours fondamentalement le même: les choses décident à la place des
hommes”.
91
No original: “les etrês parlants son incommensurables et insubstituables; cette incommensurabilité fait la
substance de leurs libertés”.
92
No original: “Libres et égaux en droits”.
93
No original: “le mot ‘droits’ est nécessaire et suffisant à empêcher que ‘libres et égaux’ ne soit contradictoire”.
94
No original: “l’égalité substantielle”.
95
No original: “Voulant l’égalité substantielle, elle plonge les êtres parlants dans l’espace du commensurable et
du substituable. Voulant le commensurable et le substituable, elle ne cesse d’inventer des manières d’y parvenir;
parmi celles-ci, l’évaluation est sûrement l’une des plus indolores et l’une des plus efficaces.Grâce aux étalonnages
qu’elle permet, les maîtres de la démocratie verbale peuvent se flatter d’avoir enfinr établi l’égalité sur des bases
solides. Avec le bénéfice supplémentaire que les inégalités, quand on en a besoin, ne seront plus qu’une forme
dérivée et supportable de l’égalité. Puisque les individus sont requis de ne plus opposer aucun secret à l’évaluation,
on aura étendu le règne de l’égalité à des confins oú l’incommensurable paraissait irréductible; l’intime se résorbe
81

Na contemporaneidade, a ideia de homem passa a ser estabelecida pelo ideal da “boa


igualdade, a moderna, aquela que abole passivamente as liberdades” (Milner, 2005, pp. 29-30,
tradução nossa96). Isto posto, a dignidade de um homem é definida pela avaliação, pois “o
homem avaliado é mais homem que os outros porque ele é mais assimilável pelas coisas”
(Milner, 2005, p. 29, tradução nossa97).

Mais as coisas governam, mais os homens se humanizam. Mais os homens se humanizam, mais
eles se igualam. Mais eles se igualam, mais eles ficam parecidos com as coisas e se dissolvem na massa
indistinta onde se abole a diferença entre coisas que governam e coisas governadas. Mais a distinção se
abole entre governantes e governados, mais a palavra democracia se consolida. Mediante essa arte das
reviravoltas, tudo está no lugar para que a avaliação se apresente como um humanismo democrático de
um novo tipo (Milner, 2005, p. 30, tradução nossa98).

Nessa perspectiva, a avaliação toma o homem como objeto que pode ser calculado e
medido por inteiro, física e psiquicamente. A reificação do mundo moderno se apresenta
claramente no modelo da avaliação. De acordo com Miller e Milner (2006), a avaliação propõe
que tudo pode ser calculado e substituível, não há objeto que seja impossível de medir.
A partir de uma crítica à emenda Accoyer99, Agnès Aflalo (2012) realiza uma leitura da
avaliação, no que diz respeito ao tratamento da saúde mental, em seu livro O assassinato
frustrado da psicanálise. A partir do cálculo e das estatísticas, a política de saúde institui a
felicidade enquanto seu objeto e inaugura um mercado do corpo e da alma dos homens. Ainda
enquanto observação sobre a referida emenda, Miller e Milner (2006) salientam que se torna
evidente o progresso do reino da técnica sobre a vida humana. Para além da esfera da saúde, os
outros setores da nossa sociedade são invadidos por essa cultura da avaliação que “é dominante.
Sob a alegação de atender a imperativos relacionados a orçamentos, ela busca governar os seres

en profils et types, qui sont autant de classes d’équivalence. Conséquence inévitable: les libertés passent aux profits
et pertes, et avec elles le droit au secret qui en était le support matériel. Quant à l’égalité d’êtres parlants, c’est bien
plutôt l’égalité des grains de sable, indéfiniment substituables, parce qu’indiscernables. L’évaluation amorce la
transformation des hommes en choses; elle en annonce l’achèvement prochain; que dis-je, elle l’installe”.
96
No original: “la bonne égalité, la moderne, celle qui abolit passivement les libertés”.
97
No original: “l’homme évalué est plus homme que les autres parce qu’il est plus assimilable aux choses”
98
No original: “Plus les choses gouvernent, plus les hommes s’humanisent. Plus les hommes s’humanisent, plus
ils s’égalisent. Plus ils s’égalisent, plus ils deviennent semblables à des choses, plus ils se fondent dans la masse
indistincte où s’abolit la distinction entre choses qui gouvernent et choses gouvernées. Plus la distinction s’abolit
entre gouvernants et gouvernés, plus le mot de démocratie se consolide. Moyennant cet art des retournements, tout
est en place pour que l’évaluation se présent comme un humanisme démocratique de type nouveau”.
99
“A ‘emenda Accoyer’ foi votada no dia 8 de outubro de 2003. Pretendia impor a regulamentação do exercício
das psicoterapias, mas sem acordo prévio. Era, assim, uma ameaça ao futuro da psicanálise. De fato, alguns dias
depois, um amplo debate público, conduzido por Jacques-Alain Miller, manifestou grande inquietação em diversos
locais da França. Esse debate teve, em seguida, muitas fases de intensa mobilização” (Aflalo, 2012, p. 15). Para
maiores informações sobre a emenda Accoyer consultar Aflalo (2012) e Miller e Milner (2006).
82

humanos como produtos industriais. […] A avaliação é um dos nomes do mal-estar


contemporâneo” (Aflalo, 2012, p. 37).
Nesse sentido, não há novidade na utilização do saber pelo discurso dominante. O saber
sempre esteve “a serviço do mestre da cidade e, quando este muda, o saber que o serve
consequentemente muda” (Aflalo, 2012, p. 135). A modificação no manejo desse saber, que
garante a governança do mestre moderno, é referida à modificação nos discursos proposta por
Lacan e à “laicização da universidade” (Aflalo, 2012, p. 135). É ressaltado que a ideologia da
avaliação se associou muito bem com as democracias que são “dominadas pelo capitalismo e
pela ciência” (Aflalo, 2012, p. 135).
A secularização do mundo e a consequente forma de tratamento do saber pela via da
linguagem matemática propõem a tentativa de destituir esse saber das suas qualidades e do
sentido, ao mesmo tempo em que “a mundialização [globalização] reforça a ilusão de que seria
possível totalizar o saber e que esse valeria para todos” (Aflalo, 2012, p. 136).

Com efeito, quanto mais a linguagem dos matemáticos é reduzida, como vimos, a simples letras
(a, b, c, d etc.) desprovidas de sentido, mais as matemáticas se deixam de perguntar se o que é calculado
existe ou não. Essas pequenas letras garantem a vocação universal da ciência e fazem esquecer que tal
linguagem permanece um discurso, ou seja, um laço social entre o matemático e cada um dos que são
afetados pela ciência. O advento do discurso da ciência favoreceu o apagamento de todas as
singularidades do poder: antes dele, o mestre era encarnado; depois, tende a se desencarnar. A ciência
tende a libertar-se do corpo vivo e só visa à matéria que o significante pode agarrar (Aflalo, 2012, p. 137).

A avaliação se desenvolve a partir do surgimento do discurso da ciência e do


capitalismo. Porém, cabe assinalar que há uma diferença entre a ciência e o modo com que a
avaliação se apropria desta. Como elucidamos no capítulo anterior, o discurso da ciência, ao
questionar o mestre antigo, produz um novo saber que passa a ser utilizado na direção da
ordenação social, formalizada na estrutura do discurso universitário. Esse novo saber é tomado
enquanto o que passa a organizar a sociedade e instituir os valores no mercado capitalista. Sendo
assim, a ideia de que a avaliação é uma prática científica se baseia na produção de um novo
saber pelo uso do cálculo, mas “não é porque há cálculo que há ciência” (Miller & Milner, 2006,
p. 16). No mundo contemporâneo, capitalista, a avaliação é a forma que faz equivaler o saber e
o valor, e, assim, “a avaliação se impõe e seduz o mestre moderno” (Aflalo, 2012, p. 138).
Miller e Milner (2006) frisam que a prática da avaliação se apresenta “em nome da
ciência” (p. 16), porém “a avaliação não é uma ciência, mas uma arte de gerenciamento” (p.
16). E, de acordo com Milner (2005), mesmo não tendo um estatuto propriamente científico, é
a avaliação que decidirá o que será considerado científico ou não.
83

A gestão administrativa contemporânea é baseada nas leis do mercado e no ideal


científico proposto pela avaliação, que tem sua base no saber constituído por significantes
reduzidos ao máximo em seu sentido e que se aproximam do ideal do número. Como já vimos,
o desenvolvimento do capitalismo impõe um movimento intenso de quantificação do mundo,
expresso na ideia da reificação. A avaliação somente considera o valor de troca, o que pode ser
quantificado, em detrimento do valor de uso, que não é mensurável.

O discurso capitalista também tem uma vocação universal que decorre de seu uso do significante
reduzido ao número. Do mesmo modo, é apenas quando reduzido ao seu elemento contável sem sentido
que o significante monetário adquire sua dimensão universal. O apagamento da singularidade do
significante é um formidável fator de aceleração da propagação desse discurso, pois nenhum mestre pode
mais frear sua cavalgada e rivalizar com ele num espaço-tempo cada vez mais mundializado [globalizado]
(Aflalo, 2012, p. 137).

Investigando o início das práticas de avaliação, Aflalo (2012) aponta que o controle de
qualidade “nasce nos Estados Unidos antes da guerra, em decorrência da vontade de suprimir
os defeitos mais do que os produtos defeituosos” (Aflalo, 2012, p. 142). Ocorre, em sua
implementação, uma discordância com a organização verticalizada da produção sustentada pelo
taylorismo100.

O controle de qualidade total define, portanto, uma nova política econômica industrial
horizontalizada. A ‘democracia’ participativa e remunerada torna obsoleto o modelo vertical do
taylorismo, marcadamente paternalista e autoritário. Na passagem do primeiro sistema para o segundo, a
inclusão do avaliador não é notada. Quase não se percebe porque o exercício de seu poder implica, via
técnicas de motivação do grupo, a obtenção da confiança de cada um. O saber que assessora essa política
é estabelecido pela contínua transformação de toda informação em cálculo, inclusive as decisões a serem
tomadas em cada etapa de sua produção, sem o que não se conformaria a pretensão à dignidade de um
saber científico. Esse saber mascara o poder nas mãos do avaliador. Desde então, o uso dos cálculos se
põe a apagar, de maneira ininterrupta, o ideal do homem de qualidade, em prol dos cálculos do homem
sem qualidade (Aflalo, 2012, p. 145, itálicos da autora).

Na instalação do controle de qualidade, instaura-se uma busca do “controle do fator


humano” que “tem como alvo o permanente controle da qualidade humana. Eis instalada no
coração da avaliação a caça à falha humana” (Aflalo, 2012, p. 146). A avaliação, utilizando-se
de questionários, reduz o sentido ao que é numérico e propõe instituir sobre os indivíduos um
controle de qualidade que é quantificável.

100
O taylorismo é um sistema de organização da produção industrial que busca a máxima produtividade no menor
tempo a partir da divisão de tarefas. Foi criado nos Estados Unidos, no final do século XIX, pelo engenheiro
mecânico Frederick Winslow Taylor (1856-1915). De acordo com Japiassú e Marcondes (2008), a importância
desta teoria na história do trabalho diz respeito ao momento em que “a divisão do trabalho atinge seu grau máximo
com a taylorização, isto é, com a repartição altamente racional do ´trabalho em cadeia’, tentando englobar todos
os fatores necessários a uma produtividade ótima”.
84

A abjeção, porém, é obter seu consentimento com deixar-se reduzir ao estado de ser sem
qualidades, calculável e mensurável como um objeto. O gozo mobilizado pela avaliação divide o sujeito.
Assim, seja qual for o modelo empregado (avaliar, fazer-se avaliar ou avaliar a si mesmo), trata-se, para
o avaliador - mesmo que ele próprio seja avaliado - de extrair o consentimento do sujeito com fazer-se
tratar como um objeto (Aflalo, 2012, p. 142).

De acordo com Miller e Milner (2006), a avaliação é uma prática que necessita do
consentimento do sujeito que a ela se submete e propõe que o sujeito “se incrimine, que ele
denuncie por si mesmo suas tendências criminosas, seu pequeno gozo imbecil” (p. 25). O
sujeito que consente com essa prática ganha, ao ser avaliado, um pertencimento, pois “a
operação da avaliação faz um ser passar de seu estado de ser único ao estado de um-entre-
outros” (Miller & Milner, 2006, p. 25). Deve ser observado que a avaliação propõe “com uma
pureza que talvez jamais tenha sido atingida na história, a marcação primordial significante do
ser humano, que é a matriz da socialização” (Miller & Milner, 2006, p. 26).

Então, formalmente, a avaliação reproduz o momento mítico no qual o significante advém ao


homem e no qual uma parte do gozo, o famoso ‘mais-de-gozar’, se perde. […]
A sedução do discurso da avaliação deve-se ao fato de que ele reproduz para cada um, esse
momento natal onde a marcação do homem pelo significante se realiza, onde o sujeito natural, entre aspas,
encontra-se barrado pelo significante e, em seguida, dotado do significante que o representa, S 1. É a
própria essência do discurso do mestre (Miller & Milner, 2006, pp. 25-26).

Porém, diferente do discurso do mestre, que não permite a simetria entre o sujeito e o
Outro do qual provém o S1, a avaliação só se realiza a partir de uma lógica contratual, na qual
há a simetria entre os sujeitos, avaliadores e avaliados.

Toda avaliação é um contrato de confiança. O contrato está aqui: ‘Elaboremos juntos o método
da sua avaliação’. Quando o significante do Outro se coloca como a lei, vocês podem se revoltar contra,
mas quando vocês são levados ao contrato de confiança- [...] -, quando se consegue comprometer o sujeito
no processo de sua própria exclusão, cegando-o assim sobre o que se subtrai dele, aí estamos na abjeção.
[...] A avaliação visa a isso, a essa auto-condenação do sujeito. É a lógica própria de todo controle
a partir do saber. A avaliação é Le zéro et l’infinit na versão light (Miller & Milner, 2006, p. 29, itálicos
dos autores)101.

A avaliação nada mais é que “a injunção eterna da burocracia, o saber em posição de


mestre” (Miller & Milner, 2006, p. 25). Esse laço social contemporâneo, baseado na avaliação,

101
O Zero e o Infinito (Le zéro et l’infinit) - romance escrito pelo autor húngaro Arthur Koestler, publicado em
1941. De acordo com Coutinho (2013) este livro “compõe um retrato agudo do totalitarismo” e realiza a análise
dos “dois lados do comunismo com conhecimento de causa”. O que é evidenciado nesta crítica do romance é: “Eis
a perdição de Nicolas Rubashov, o prisioneiro de ‘O Zero e o Infinito’. Sim, ele começou por acreditar na revolução
e foi um dos mais importantes dirigentes bolcheviques. Até o dia em que deixou se usar a primeira pessoa do
plural-- ‘nós, o partido’; ‘nós, o Estado’; ‘nós, o povo’ -- e começou a escutar a primeira pessoa do singular: o
solitário e insubornável ‘eu’. O primeiro grande crime de Rubashov é, literalmente, um crime gramatical. Mas é
mais do que isso: é um crime religioso. Rubashov deixou de ter ‘fé’ na sua ‘religião secular’. E como diria o
filósofo, para quem provou o fruto da árvore do conhecimento, o paraíso está perdido” (Coutinho, 2013).
85

é relacionado ao utilitarismo de Bentham por Miller e Milner (2006). Como outrora abordamos,
propondo a felicidade para o maior número de pessoas, o utilitarismo calcula o bem e os bens
a partir de sua utilidade, a partir de um ciframento do gozo. A associação da avaliação com o
utilitarismo ocorre com base no fundamento de que a avaliação “é a lógica própria de todo
controle a partir do saber” (Miller & Milner, 2006, p. 29). Os autores a relacionam com o que
“Lacan chama ‘a virada do gozo em contabilidade’” (Miller & Milner, 2006, p. 25), o que os
remete às práticas utilitárias de contabilização e classificação.
O tratamento utilitarista do homem a partir do que pode ser contabilizado é evidenciado
por Lacan (1948/1998a) pela “promoção do eu” (p. 124, itálico do autor) que ocorre na
contemporaneidade e que leva “a realizar cada vez mais o homem como indivíduo” (p. 124).
Para o psicanalista, o mundo moderno está engajado “num projeto técnico em escala da espécie”
(Lacan, 1948/1998a, p. 124). Esse tratamento técnico das relações entre os homens, “uma
psicotécnica que já se revela prenhe de aplicações cada vez mais precisas” (Lacan, 1948/1998a,
p. 124), levanta a questão: “de saber se o conflito entre o Senhor e Escravo encontrará sua
solução num serviço autômato” (Lacan, 1948/1998a, p. 124).
O saber técnico proveniente do ideal científico e utilitário orienta a administração
contemporânea que preza pela normatividade. Nesse sentido, Antônio Teixeira (2002), em seu
texto “Do bom uso da besteira na experiência psicanalítica”, nos indica que “com o declínio
moderno da função do mestre, o posto de comando da divisão social dos bens se verá ocupado
pelo cientista utilitário” (p. 273). O discurso do mestre é substituído pelo discurso universitário,
a administração burocrática que comporta o saber do cientista utilitário na sua posição de
agente. Sem a garantia da exceção, o contrato deve ser sustentado pelo saber demonstrável da
avaliação.

Se nos fiarmos nos fatos, desde o momento em que há contrato, há avaliação. Há avaliação a
posteriori para verificar se o contrato foi bem respeitado, mas há também avaliação a priori, porque é
preciso avaliar se o parceiro com o qual se quer fazer o contrato é como supomos que seja (Miller &
Milner, 2006, p. 5, itálicos dos autores).

Nesse sentido, Milner (2005) destaca que na sociedade moderna, no reino da avaliação,
ocorre o “desaparecimento dos mestres” (p. 59, tradução nossa102). É ressaltado que, “em nome
do controle, cada um se torna servo do outro” (Milner, 2005, p. 59, tradução nossa103) e que,
“no mundo da expertise e da avaliação, não há nada além de domesticados, de servos” (Milner,

102
No original: “la disparition des maîtres”.
103
No original: “au nom du contrôle, chacun devient le valet de l’autre”.
86

2005, p. 59, tradução nossa104). Aqui, podemos relembrar que, no discurso do mestre moderno,
todos se tornam “a estudantes” e trabalhadores.
Miller e Milner (2006) ressaltam que a democracia contemporânea, o laço social
fundado no contrato, ao supor uma equivalência entre os sujeitos se relaciona com o ideal de
transparência e coloca tudo e todos sob vigilância e fiscalização contínuas. Em seu texto “A
ordem simbólica no século XXI”, Éric Laurent (2011-2012) expõe que, atualmente, “há um
invasivo chamado à segurança e seu corolário: a instalação de uma sociedade de vigilância com
seu panóptico louco” (p. 37). A orientação moderna igualitária se direciona por uma
administração utilitária e, sustentando seu ideal de transparência, evidencia que “é lógico que
um espaço em que apenas se reconhece a dimensão do útil se transforme em uma cultura de
vigilância permanente” (Laurent, 2006, p. 5, tradução nossa105). Para elucidar essa questão,
devemos recordar a indissociabilidade entre a vigilância e a máxima utilitária presentes no
panóptico de Bentham.
Como já evidenciamos no primeiro capítulo, o panóptico está intimamente relacionado
à uma lógica contratual, sua vigilância não exclui nenhum indivíduo, não existe um que esteja
em posição de exceção. Na mesma lógica da vigilância panóptica, a avaliação não deixa espaço
para a exceção, não existe um que não seja submetido a ela. Os próprios avaliadores devem ser
avaliados. Assim como o utilitarismo propõe que todo indivíduo deve ser registrado, Miller e
Milner (2006) sustentam que o importante da avaliação é que um ser seja avaliado, que a
avaliação designe um saber sobre ele, que ele seja “mensurado, marcado, carimbado” (p. 21).
Nas aproximações entre a avaliação, a vigilância e a lógica contratual é evidente que o
imperativo de transparência se impõe a todos os sujeitos no mundo contemporâneo. A
vigilância, a quantificação e o cálculo invadem a vida e pretendem não deixar espaço para o
íntimo. Gérard Wajcman (2011), em seu livro El Ojo Absoluto106, trata das questões da
vigilância na atualidade. O olhar onipresente da vigilância se propõe a ver tudo e ordena que
“não devemos deixar nenhum ângulo morto na sociedade. Esta é colocada, pois, sob o que
poderíamos chamar de uma vigilância de segurança” (Wajcman, 2011, p. 97, itálicos do autor,
tradução nossa107).

104
No original: “dans le monde de l’expertise et de l’évaluation, il n’y a que des domestiques, des valets”.
105
No original: “es lógico que un espacio en el que solo se reconoce la dimensión de lo útil se transforme en una
cultura de vigilancia permanente”.
106
O Olho Absoluto.
107
No original: “aquello puede venir de todas partes y no importa quién. No debemos dejar ningún ángulo muerto
en la sociedad. Ésta queda colocada, pues, bajo lo que podríamos llamar una vigilancia de seguridad”.
87

O imperativo de transparência orienta o mundo contemporâneo por meio de “um olhar


que vê, um olhar que vigia, um olhar que controla, existe um olhar que explora, que observa,
um olhar que calcula, um olhar que ausculta, um olhar que desnuda, um olhar que registra o
corpo” (Wajcman, 2011, p. 21, tradução nossa108). Há uma “política geral do olhar” (Wajcman,
2011, p. 76, tradução nossa109) que se propõe a penetrar nos corpos e a tornar visível qualquer
segredo. Essa política está referida ao modelo da biopolítica, pois “o reinado do olhar não se
limita a instaurar procedimentos de vigilância da vida civil, mas que, com eles, se chega à vida
privada e à intimidade dos corpos” (Wajcman, 2011, p. 134, tradução nossa110).
A vigilância é um instrumento que “consiste em captar imagens, transmiti-las, e logo
analisá-las a fim de definir uma resposta” (Wajcman, 2011, p. 150, tradução nossa111). Dessa
forma, a ideia é transformar a imagem em uma mensagem que possa ser lida, em uma
informação, em um saber. A vigilância é tomada enquanto uma “máquina de tratar informação”
(Wajcman, 2011, p. 150, tradução nossa112) e como um sistema que indica qual decisão tomar,
partindo de uma “noção cognitivista que supõe que tomar uma decisão é algo possível de ser
modelizado - partindo de dados digitalizados em um algoritmo, em uma fórmula matemática,
ou seja, universal” (Wajcman, 2011, p. 150, tradução nossa113).
Deste modo, verificamos como o “tudo-saber”, imperativo da administração contratual
e utilitária, inclui a vigilância como uma de suas estratégias. Como a avaliação, a vigilância
incide sobre os indivíduos na busca de extrair um saber que possa ser visto e decodificado. A
decifração do saber ocorre através da estatística e se estende aos diversos domínios da vida
social. A média é o ideal desse mundo quantitativo que dispensa a particularidade e constrói
um saber decifrável, comparável e transmissível. Segundo Miller (2006),

não se trata senão disso: dominar os excessos, as emoções, a singularidade da experiência por meio de
um pequeno aparelho de saber ultra-reduzido e cujo produto é transformá-los em homens sem qualidades,
um homem quantitativo, na esperança de reduzi-los, o que é impossível, ao significante mestre (p. 13).

De acordo com Wajcman (2011), o ideal da vigilância – “tudo-ver” - reduz o sujeito ao


que é da ordem do contável, do previsível, e acaba deixando escapar o mais íntimo de cada um,

108
No original: “la mirada que mira, la mirada que vigila, la mirada que controla, está la mirada que explora, que
observa, la mirada que calcula, la mirada que ausculta, la mirada que desnuda, la mirada que registra el cuerpo, la
mirada que excava en el cuerpo”.
109
No original: “política general de la mirada”.
110
No original: “el reinado de la mirada no se limita a instaurar procedimientos de vigilancia de la vida civil, sino
que, con ellos, se llega también a la vida privada y a la intimidad de los cuerpos”.
111
No original: “consiste en captar imágenes, transmitirlas, y luego analizarlas a fin de definir una respuesta”.
112
No original: “máquina a su vez de tratar información”.
113
No original: “noción cognitivista que supone que tomar una decisión es algo pasible de ser modelizado -
partiendo de datos digitalizados en un algoritmo, en una fórmula matemática, es decir, universal”.
88

tornando o próprio sujeito invisível. Nesse mesmo sentido, Aflalo (2012) evidencia que a
avaliação, com seu saber extraído pelo cálculo, tenta afastar, “primeiro, o obstáculo ao gozo
singular do vivente” (p. 138).

Hoje, sabe-se que classificar, contar, excluir procede de uma lógica que leva ao pior. Pois só há
gozo do vivente - Lacan o notou em sua formalização do objeto a- e a singularidade do gozo é pouco
propícia à classificação, que se acomoda melhor junto ao morto do que ao vivo. Classificar e contar visam
ao mesmo objetivo: excluir o objeto a do vivente. Como isso é impossível, começa-se por negligenciar a
diferença entre o morto e o vivo. Depois, nega-se a opacidade do objeto a e ele acaba se igualando a todo
o ser. É tão somente uma parte do vivente a ser extirpada, rejeitando-se o próprio ser humano para
satisfazer à fabricação de classes ‘preocupantes e perigosas’ (Aflalo, 2012, p. 134, itálicos da autora).

Há uma servidão, voluntária ou forçada, dos sujeitos à vigilância e à avaliação propostas


pelo mestre moderno, que marcam a vida com um saber dotado de valor, este que pode e deve
ser comparado. Retomando a lógica própria da avaliação - a marcação de um sujeito por um
significante -, visamos elucidar como ocorre essa nova forma de laço social sustentada por um
saber extraído do cálculo.
Segundo Miller (2006), o modelo de formação de um coletivo através da identificação,
isolado por Freud (1921/2011) em “Psicologia das massas e análise do eu”, não é o mesmo do
modelo contemporâneo. No discurso da avaliação realiza-se a inédita tentativa de “dar ao
coletivo sua unidade, através do saber, S2” (Miller, 2006, p. 14). Na identificação proposta pela
avaliação, a função do líder, da exceção, não existe. Tenta-se “obter a subjetivação do coletivo
unicamente por meio de saber, e de um saber homogêneo. A função do mais-um, ou do menos-
um, é estritamente impensável nesse caso” (Miller, 2006, p. 14).
Ram Mandil (2011), em seu texto “A psicanálise e os modos contemporâneos de
identificação”, assinala que a partir do momento em que é verificada a inconsistência do Outro,
o modo de identificação dos sujeitos também se transforma.

Se o Outro já não se apresenta de forma consistente e unitária, se já não é possível extrair dele
um significante com sentido estável sobre o qual apoiar a identificação, devemos dirigir nossa atenção
para a pluralização dos significantes S1, na perspectiva do enxame (essaim), significantes que não
necessariamente decorrem da tradição mas que, enquanto semblantes, seriam capazes de operar como um
complemento simbólico, ainda que desaparelhados de um Outro consistente (Mandil, 2011, p. 4, itálico
do autor).

Nesse sentido, Éric Laurent e Jacques-Alain Miller (2013), no livro El Otro que no existe
y sus comités de ética114, propõem que o matema da identificação proposto por Lacan, I(A), é
substituído por I(A/). O que está em jogo nessa mudança na forma de identificação é que

114
O Outro que não existe e seus comitês de ética
89

anteriormente o sujeito poderia extrair um S1 do campo do Outro consistente (A) na forma de


uma metáfora, como exposto no discurso do mestre. Na atualidade, com a inconsistência do
Outro (A/) ocorrem “identificações débeis” (Laurent & Miller, 2013, p. 60, tradução nossa115)
e inconsistentes. Os autores salientam que a “tentativa de fazer uma língua comum do discurso
universitário qualificado como politicamente correto mascara a grande heterogeneidade da
comunidade” (Laurent & Miller, 2013, p. 60, tradução nossa116). Laurent (2007) indica que
ocorre uma “desconstrução do laço social, promovida pela ascensão do objeto pequeno a ao
zênite de nossa civilização” (p. 173), o que é relacionado com a incidência do discurso
capitalista. Esse laço social não se sustenta de forma sólida e revela que “o mundo não tem mais
necessidade de centro, pode funcionar fora do regime do um” (Laurent, 2007, p. 174).

Constatamos que a civilização não se concebe mais como una. Ela é o lugar do múltiplo das
comunidades. A garantia que essas comunidades têm de um reconhecimento mútuo repousa sobre
algumas regras comuns. Trata menos de passar por pertencimentos significantes como aquele da
nacionalidade do que por uma comunidade de discurso mais profunda, proveniente do que podemos
chamar de modo de gozo. [...]
Assim, o sonho que se impõe para organizar esse espaço conforme a imagem da contabilidade
informática é a criação de uma linguagem de avaliação, cientificista, ou seja, que não é propriamente
científica, mas uma derivação política da ciência que visa recriar um universal sem limites (Laurent, 2007,
pp. 174-175).

É importante ressaltar que o modo contemporâneo de identificação tem relação com o


modo de gozo do discurso capitalista. Consequentemente,

a maior identificação que se propõe é com o consumidor, e há uma missão universal paródica que é a de
satisfazê-lo. Existe inclusive um imperativo: Deves satisfazer o consumidor. O produtor deve satisfazer
os consumidores. Vemos que o gozo não se situa a partir do significante-mestre, na vertente de sua
negativização, mas na vertente do mais-de-gozo como tampão da castração. Para quem os professam, os
verdadeiros Direitos do Homem hoje são os direitos ao mais-de-gozo. Tens direito ao mais-de-gozo
mesmo quando não te serve para nada, o que faz com que tentem difundir celulares em lugares onde não
existem redes (Mais tarde lhes servirão) (Laurent & Miller, 2013, p. 79, itálicos dos autores, tradução
nossa117).

Na mesma direção, Miller e Milner (2006) apontam que a Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão de 1789, fruto da Revolução Francesa, marcava um limite com relação à

115
No original: “identificaciones débiles”.
116
No original: “el intento de lengua común del discurso universitario calificado de políticamente correcto
enmascara la gran heterogeneidad de la comunidad”.
117
No original: “La mayor identificación que se propone es con el consumidor, y hay una misión universal paródica
que es la de satisfacerlo. Existe incluso un imperativo: Debes satisfacer al consumidor. El productor debe satisfacer
a los consumidores. Vemos que el goce no se sitúa a partir del significante amo, en la vertiente de su negativización,
sino en la vertiente del plus de goce como tapón de la castración. Para quienes los profesan, los verdaderos
Derechos del Hombre hoy son los derechos al plus de goce. Tienes derecho al plus de gozar aun cuando no te sirva
para nada, lo que hace que se intenten difundir teléfonos móviles en lugares donde no hay redes (Más tarde les
servirán) ”.
90

Lei. Porém, o tratamento da igualdade entre os homens na forma moderna dos Direitos
Humanos se orienta pelo ilimitado, “direitos ilimitados, contratos ilimitados, procedimentos de
avaliação ilimitados” (Miller & Milner, 2006, p. 6).
Corroborando com essa interpretação, Miller (2016) assinala que não há que se ter
nostalgia dos tempos antigos, onde o lugar da exceção, hoje vazio, era ocupado por um Outro
consistente. Entretanto, considerando os efeitos segregativos do discurso moderno, é necessário
se orientar pela seguinte observação:

quanto mais o significante é ‘desafetivizado’, como dizem os outros, mais o significante se purifica, mais
avança sob a forma pura do direito, da democracia igualitária, da globalização do mercado – cada um
conta como um, o mundo conta como um – e correlativamente, logicamente – e não porque existiriam
conspiradores ou agitadores -, mais aumenta a paixão, se intensifica o ódio, se multiplicam os
integralismos, se amplia a destruição, são perpetrados massacres sem precedentes, sobrevêm catástrofes
inéditas (Miller, 2005a, p. 121).

Logo, na mesma lógica da ciência moderna, o uso “desafetivizado” do significante


acaba por esvaziar o desejo do sujeito moderno.
Nesse sentido, Laurent e Miller (2013) propõem que ao ser verificada a inconsistência
do Outro na modernidade, a função de laço, antes promovida pelo Outro consistente, é
substituída pelo “discurso como princípio do laço social” (p. 80, tradução nossa118). Enquanto
princípio desse laço social, o semblante ocupa o lugar de agente dos discursos propostos por
Lacan. No reino do Outro inconsistente, verificamos que, diferente de uma identificação
propiciada por um S1 extraído de uma exceção, de um líder, ocorrem novas formas de
identificação, como por meio do saber (S2) do discurso igualitário da avaliação ou por meio do
sujeito barrado, sujeito sempre em falta, o significante consumidor produzido pelo discurso
capitalista.
Na lição de 19 de março de 1974 do Seminário 21: Os não-tolos erram119 - homófono
à Os Nomes-do-Pai-, Lacan (1974b) verifica a substituição do Nome-do-Pai por um laço social
que tem o “poder do ‘nomear para’, ao ponto que, depois de tudo, se restitui com ele uma ordem,
uma ordem que é de ferro” (p. 154, tradução nossa120). O autor assinala que, mesmo após ter
sido rechaçado, o Nome-do-Pai retorna no real ao modo de uma “degeneração catastrófica”
(Lacan, 1974b, p. 158, tradução nossa121). Nesse sentido, em “Falar com seu sintoma, falar com
seu corpo”, Éric Laurent (2012) propõe que

118
No original: “ocupa su lugar el discurso como principio del lazo social”.
119
No original: Le non-dupes errent - homófono à Les Noms-du-Père.
120
No original: “pouvoir du nommer-à, au point qu’après tout, s’en restitue un ordre, un ordre qui est de fer”.
121
No original: “dégénérescence catastrophique”.
91

por um lado, as normas nem sempre conseguem fazer com que os corpos, por sua inscrição forçada, se
insiram em usos padronizados, nessa máquina infernal na qual o significante-mestre instala suas
disciplinas de fazer marcas identificatórias (marquage) e de educação. Os corpos são muito mais deixados
por sua própria conta, marcando-se febrilmente com signos que não chegam a lhes dar consistência. Por
outro lado, a agitação do real pode ser lida como uma das consequências da ‘ascensão ao zênite’ do objeto
a. A apresentação da exigência de gozo em primeiro plano submete os corpos a uma ‘lei de ferro’ cujas
consequências é preciso acompanhar (p. 1, itálico do autor).

O que Aflalo (2012) indica é que cada vez mais o Estado administrativo utiliza-se do
discurso da avaliação, este que invade a vida contemporânea produzindo efeitos nos sujeitos.
E, “nesse contexto, a psicanálise é mais do nunca indispensável para acolher os sintomas e
analisar o mal-estar contemporâneo produzido por esse discurso” (Aflalo, 2012, p. 147).
Contrária à tentativa de igualar os sujeitos, não dispensando as suas particularidades, “a
psicanálise só se endereça ao sujeitos tomados um por um, dando assim lugar à singularidade
dos que desejam se orientar sobre o que torna o sintoma opaco” (Aflalo, 2012, p. 147).

4.3 A psicanálise contra a utilidade

O surgimento da psicanálise está intimamente conectado à ciência. Freud, a partir dos


sintomas não explicáveis pela ciência de sua época, constata o funcionamento do inconsciente
e, em consequência, elabora a teoria psicanalítica. Devemos considerar essa relação próxima
entre Freud e a ciência, pois ele realizou um grande esforço para que a psicanálise fosse aceita
e reconhecida como científica pela sociedade de sua época.
Freud (1933/2010b), no texto “Acerca de uma visão de mundo”- ou A Questão de uma
Weltanschauung122-, trata da psicanálise em sua relação com os sistemas de pensamento
articulados pela ciência, pela religião e pela filosofia. Para o autor, uma Weltanschauung é o
que assegura respostas às diversas questões levantadas pela existência e pelo mundo externo,
trazendo segurança e conforto aos sujeitos. Salientando o recente início das descobertas
científicas de sua época e admitindo seu lento progresso, Freud (1933/2010b) sustentava que a
ciência não tinha a pretensão de criar um sistema de ilusões ou de fornecer um sistema de

122
“Weltanschauung, que se compõe das palavras Welt, ‘mundo’, e Anschauung, ‘contemplação, concepção’ (do
verbo anschauen, ‘olhar, contemplar’); tendo se tornado um termo filosófico difundido, às vezes nem é traduzido,
como atestam as versões estrangeiras do título deste capítulo (N.T.)”. (Freud, 1933/2010b, p. 322)
92

pensamento no qual houvesse resposta para todas as questões, ao contrário da religião e da


filosofia.
Freud (1933/2010b) propõe que a psicanálise se apoiaria na Weltanschauung da ciência,
não tendo necessidade de criar uma nova. O autor considera que a psicanálise, assim como a
ciência, não pretende constituir um sistema fechado de pensamento e salienta seu caráter de
incompletude ao recusar o emprego de ilusões para consolo à insatisfação dos homens diante
da falta de uma verdade que justifique a existência. Todavia, como elucidamos no decorrer
deste trabalho, os avanços da ciência, em conexão com a lógica matemática, o utilitarismo e o
capitalismo, apresentam um resultado diferente do que Freud esperava.
Uma nova leitura da relação entre a psicanálise e a ciência é realizada por Lacan
(1966/1998b) em seu texto “A Ciência e a Verdade”. O autor destaca que a psicanálise é
derivada da ciência, porém a subverte. Já evidenciamos que a ciência forclui a questão da
verdade, esta que para a psicanálise tem todo seu valor. Com Freud, a psicanálise advém da
ciência, mas ao instituir a verdade inconsciente como sua causa não pode mais se situar dentro
do modelo científico.
A psicanálise se ocupa da lógica do singular como forma de abordar sua causa em sua
precisão e rigor. É a partir do mal-estar dos sujeitos que a psicanálise se propõe a apreender
algo de seu objeto, o inconsciente. A própria realidade do seu objeto coloca em seu cerne a
impossibilidade, bem como a singularidade do modo de gozo de cada um. A psicanálise se
oferece para escutar o que não funciona de acordo com o discurso estabelecido e, com sua
escuta, localiza algo que resta na relação de cada sujeito com a linguagem. Nesse sentido,
Antônio Teixeira (2001), em seu texto “A leila e a norma”, ressalta que

foi preciso esperar Freud para vermos surgir uma escuta capaz de abrigar essa verdade exilada, que fala
fora da lei que rege o discurso humano. Pois é da psicanálise, como sabemos, que se desprende uma escuta
que vai se deter não sobre o sentido que comumente se entende, mas sobre os efeitos de perturbação do
sentido que se desviam da comunicação. Somente ela pode trazer à luz a verdade singular do desejo que
permanece, como um resto por dizer, para além daquilo que pode ser dito em conformidade com a lei do
discurso (p. 57).

Na atualidade, percebemos que a ciência, por meio de suas práticas de vigilância e de


avaliação, opera utilitariamente. Ao tentar responder ao mal-estar dos sujeitos, o discurso
moderno, universitário e capitalista, se propõe a homogeneizar o corpo social, desconsiderando
a particularidade dos sujeitos por meio de um saber que obture esse mal-estar e que seja
universal. Sobre a ciência e sua relação com o saber, Lacan (1973/2003c) nos diz:

Existe saber no real. Ainda que, este, não seja o analista que tem de alojá-lo, mas sim o cientista.
93

O analista aloja um outro saber, num outro lugar, mas que deve levar em conta o saber no real.
O cientista produz o saber a partir do semblante de se fazer sujeito dele. Condição necessária, mas não
suficiente (p. 312).

Comentando o enunciado lacaniano, em seu texto “Em psicanálise não há saber no real”,
Miquel Bassols (2014) salienta que o cientista realiza a operação de incluir um saber no real,
utilizando-se do significante para representar algo até então irrepresentável e, no mesmo
momento dessa operação, inventa esse saber que até então era inexistente. Esse movimento do
pensamento científico é “pura e simplesmente, delirante” (Bassols, 2014, p. 2), pois “nem os
corpos celestes, nem a célula tem saber algum de sujeito, por muito que o cientista se os atribua,
nos dois sentidos da expressão: que o cientista lhes atribua esse saber de sujeito ou que ele
mesmo se atribua ser o sujeito desse saber” (Bassols, 2014, p. 2). Na mesma direção, Miller
(2010) elucida que:

Cabe agregar que a ciência - já que devemos lhe dar um lugar-, o saber científico posto a trabalhar pelo
sujeito liberal, está em vias de modificar a realidade natural do mundo em sua profundidade e
embasamento. Ainda não se animam a avançar, mas estamos a ponto (não se sabe se será esta geração ou
a seguinte) de dominar, transformar, colocar de cabeça para baixo a reprodução mesma da espécie. Como
estamos à beira de catástrofes, pouco importa se a psicanálise será transmitida para outras gerações. E o
que Lacan formula exatamente, ainda que não o levem a sério, é que a psicanálise tem que estar em
condições de ir contra a ciência ali onde, a partir do saber científico, se apresenta uma volatilização do
real. Em outras palavras, a partir do conhecimento do saber inscrito no real, que começou com Galileu (é
dizer que quando um corpo cai podem ser feitos um monte de cálculos e constituir uma física matemática),
uma vez que foi revelado ao sujeito liberal a ideia de saber no real, este não permanece imutável (p. 309,
tradução nossa123).

A psicanálise não propõe instituir um saber no real como a ciência, pois “o analista, por
sua vez, aloja o Outro saber, o saber do inconsciente, em Outro lugar, o lugar do Outro que só
existe pela transferência” (Bassols, 2014, p. 2). Nesse sentido, Aflalo (2012) assinala que

por sua vez, o saber suposto do psicanalista é singular. Ele nada sabe sobre o analisante que o procura, ao
passo que este lhe atribui um saber a respeito do que causa seu mal-estar. Por mais inconsciente que seja,
o saber extraído da experiência analítica se constrói no tempo da sessão analítica. Esse saber vale apenas
para esse analisante e, portanto, não pode ser ensinado na universidade. [...] Trata-se, pois, de uma
experiência que modifica o sujeito. A universidade outorga diplomas, não propõe experiências subjetivas
semelhantes a essa (p. 35).

123
No original: “Cabe agregar que la ciencia - ya que debemos darle un lugar -, el saber científico puesto a trabajar
por el sujeto liberal, está en vías de modificar la realidad natural del mundo en su trasfondo. Todavía no se animan
a avanzar, pero estamos a punto (no se sabe si será esta generación o la siguiente) de dominar, transformar, poner
patas arriba la reproducción misma de la especie. Como estamos al borde de las catástrofes, poco importa si se
trasmite el psicoanálisis a otras generaciones. Y lo que formula exactamente Lacan, aunque no se lo toma en serio,
es que el psicoanálisis tiene que estar en condiciones de ir contra la ciencia allí donde a partir del saber científico
se presenta una volatilización de lo real. En otras palabras, a partir del conocimiento del saber inscripto en lo real,
que empezó Galileo (es decir que cuando un cuerpo cae se pueden hacer al respecto un montón de cálculos y
construir una física matemática), una vez que se le reveló al sujeto liberal la idea del saber en lo real, este no
permanece inmutable”.
94

A psicanálise não impõe um saber homogeneizante e não é uma prática pedagógica que
supõe um saber que possa ser ensinado e que sirva para todos, mas se orienta por um saber que
irá surgir sob transferência. Em seu seminário, O saber do psicanalista, Lacan (1971-1972)
indica que o saber inconsciente é “o saber não sabido de que se trata na psicanálise, é um saber
que se articula, exatamente, estruturado como uma linguagem” (p. 17). E, como Lacan
(1973/2003d) aponta, o inconsciente é “estruturado como uma linguagem” (p. 452) e “é na
análise que ele se ordena como discurso” (p. 452). Retomando a fórmula do discurso da
histérica, o analisante seria aquele que ao se colocar enquanto sujeito dividido se dirige a um
S1 e produz um novo saber, um S2. Esse saber não é imposto ao sujeito, é um saber que irá
surgir sob transferência. A experiência analítica

dá ao outro, como sujeito, o lugar dominante no discurso da histérica, histeriza seu discurso, faz dele um
sujeito a quem se solicita que abandone qualquer referência que não seja a das quatro paredes que o
envolvem, e que produza significantes que constituam a associação livre soberana [...] (Lacan, 1969-
1970/1992 p. 35).

Ao contrário da avaliação, que marca o sujeito com um significante para que ele seja
incluído em um coletivo, na psicanálise “há, antes de tudo, uma destituição do significante
mestre. Esta não existe somente no final de uma análise, está em seu começo, porque o discurso
analítico implica que deixemos nossa identidade na porta” (Miller, 2016, p. 64, tradução
nossa124).

Figura 8. Discurso do analista125

Podemos entender que o discurso analítico, ao situar o objeto a enquanto o que comanda
este discurso em direção ao sujeito barrado, leva em consideração o gozo, o que não pode ser
significantizado e nem incluído no discurso, enquanto seu objeto primordial. É a partir desse

124
No original: “hay, ante todo, una destitución del significante amo. No la hay sólo al final de un análisis, está al
comienzo, porque el discurso analítico se conlleva que dejemos nuestra identidad en la puerta”.
125
Fonte: Lacan, 1969-1970/1992, p. 29.
95

lugar que o analista opera, já que ele “tem que representar aqui, de algum modo, o efeito de
rechaço do discurso, ou seja, o do objeto a” (Lacan, 1969-1970/1992, p. 45).
Graciela Brodsky (2008) esclarece que o analista, enquanto objeto a, é “produto de seu
próprio inconsciente” (p. 63) e ele ocupa esse lugar de agente no discurso a partir do que extraiu
em sua própria análise e isso fornece a “garantia real que o analista encontra na sua própria
análise, no objeto que ele é” (p. 63). A autora ainda assinala que o analista, ao ocupar esse lugar,
permite que seja tomado pelo analisante como “objeto de amor, de ódio, de crença, de
desconfiança, a lista é extensa” (Brodsky, 2008, p. 64). Nesse sentido, rechaçado do discurso e
êxtimo ao sujeito, o objeto a aparece no campo do Outro, no analista.
Diferente do analista como objeto a, a função do analista é instituída por Lacan
(1967/2003f) como uma posição referida a um significante-qualquer, pois é no decorrer da
análise que se verifica, “por acaso” (p. 254), qual significante fez com que o analisante
estabelecesse a suposição de saber no analista.

Figura 9. Matema da transferência126

Nesse sentido, o S pode ser entendido como o significante do analisante que se dirige a
um analista por um Sq, um significante qualquer que particulariza o analista. O que é produzido
nessa operação é um sujeito (s) e sua articulação significante (S1, S2, ...Sn). Como Teixeira
(1999) salienta, “vê-se claramente que o analista aí se define apenas pela determinação de um
significante qualquer ao qual ele se presta” (p. 191).
A suposição de saber é indicada por Lacan (1953/1998d), em seu escrito “Função e
campo da fala e da linguagem”, como uma ilusão “pela qual o sujeito crê que sua verdade já
está dada em nós [analistas], que a conhecemos de antemão” (p. 309), mas o que fica explicitado
neste matema é que o saber está do lado do sujeito. Por meio da suposição de saber, o analisante
é convidado a associar livremente e “o desejo do analista é o sujeito suposto saber, já que é
precisamente a partir dele que o analisante se lança e relança na associação livre” (Miller, 2010.
p. 265, tradução nossa127). O sujeito, então, coloca o analista na posição de quem sabe sobre
sua verdade, mas é ocupando o lugar de a que o analista deve operar, sem se identificar com o

126
Fonte: Lacan, 1967/2003f, p. 253.
127
No original: “el deseo del analista es el sujeto supuesto saber, ya que es precisamente a partir de lo que el
analizante se lanza y relanza en la asociación libre”.
96

lugar de mestre, o qual a ocupa em seu discurso. Referindo-se à linha superior do discurso do
analista, na qual a se dirige ao sujeito barrado, Miller (2010) salienta que há

um laço que não se funda em uma identificação do lado do analisante (que somente é tal enquanto se
propõe a trabalhar suas identificações e se desprende delas, e que, por ser sujeito da palavra na experiência
analítica, inverte a captura pela identificação) nem em na identificação do lado do analista, que somente
opera como tal a partir de um lugar que não é identificável - às vezes se oferece às identificações, porém
sem que faça adesão à nenhuma (p. 261, tradução nossa128).

Esse ponto é reafirmado por Teixeira (1999) ao afirmar que “mestre e pai quanto a seu
lugar, agalma e dejeto quanto a sua função, o analista deve ser dupe (tolo) de uma identificação
à qual ele se presta com o único intuito de permitir ao sujeito desconstruí-la” (p. 195, itálico do
autor).
A psicanálise propõe a desconstrução das identificações e a construção de um saber
novo pelo analisante. Nessa perspectiva, entendemos que a posição do analista é contrária à
posição da avaliação, esta que propõe marcar o sujeito com uma identificação (S1) a partir de
um saber (S2) que sirva para todos. O desejo do analista é “o desejo de que saibas, de que você,
analisante, elabore um saber e chegue a saber” (Miller, 2010, p. 265, tradução nossa129), todavia,
considera o real do gozo que está aí incluído e que não pode ser significantizado. É justamente
por reconhecer o gozo, o que faz limite ao sentido, mas não deixa de ter efeitos diferentes em
cada sujeito, que a psicanálise propõe um funcionamento fora da norma.

Se há algo que se deve dar lugar em psicanálise, é que todos os casos sejam diferentes, e que é
muito melhor funcionar com este axioma […]. Não é o mesmo hoje, ontem e amanhã, e fulano nunca é
igual a ciclano. Evidentemente é mais cansativo, mas me pergunto se não é muito mais interessante. Creio
que é melhor romper a cabeça para saber como fazer circular um pouco de desejo em tudo isto; e só há
uma maneira de fazê-lo: escapando do para todos, ao menos um ou ao mais um, ao que isto chama
inevitavelmente (Miller, 2001, p. 64, itálicos do autor, tradução nossa130).

Isso nos remete à “insistência de Freud em nos recomendar que abordemos cada novo
caso como se não tivéssemos aprendido coisa alguma com suas primeiras decifrações” (Lacan,
1967/2003f, p. 254). Em Lacan elucidado: palestras no Brasil, Miller (1997) assinala que a

128
No original: “un lazo que no se gunda en una identificación del lado del analizante (que solo es en tal en tanto
que pone a trabajar sus identificaciones y se desprende de ellas y que, por ser sujeto de la palabra en la experiencia
analítica, invierte la captura por la identificación) ni en la identificación del lado del analista, quien solo opera en
tanto tal desde un lugar donde nos es identificable - a veces se oferece a las identificaciones, pero sin que se le
adhiera ninguna”.
129
No original: “el deseo de que sepas, de que tú, analizante, elabores un saber y llegues a saber”.
130
No original: “Si hay algo a lo que se le debe hacer lugar em el psicoanálisis, es a que todos os casos son
diferentes, y que es mucho mejor funcionar con este axioma […]. No es lo mismo hoy, ayer e mañana, y fulano
nunca es igual a mengano. Por supuesto es más cansador, pero me pregunto si no es mucho más interesante.Creo
que es mejor romperse la cabeza para saber cómo hacer circular un poco de deseo en todo esto; y solo hay una
manera de hacerlo: escapando do al para todos, al menos uno o al más uno, al que esto llama inevitablemente”.
97

douta “ignorância tem função operativa na experiência analítica” (p. 232). O analista não
desconsidera o saber clínico que possui, mas, “voluntariamente, apaga até certo ponto seu saber
para dar lugar ao novo que ocorrerá” (Miller, 1997, p. 232).
Elucidando outros pontos de disjunção da psicanálise com relação ao discurso científico
e utilitário da avaliação, podemos nos remeter ao que Miller (2005a) propõe como “cientismo”:
“uma ideologia que recobre o discurso da ciência com o significante-mestre do progresso” (p.
114). Dessa forma, é exposto que a psicanálise não compartilha desse significante-mestre e não
se compromete a estabelecer um saber que visa o progresso. Assim, o autor aponta que Freud
introduz o conceito de repetição como algo que não está na mesma direção do progresso, mas,
ao contrário, como uma “objeção ao ideal do progresso” (Miller, 2005a, p. 115). Para Miller
(2005a), esse conceito pode ser considerado “um contra significante-mestre” (p. 115).
O conceito de repetição de Freud está colocado em relação ao gozo, ao que não é
incluído no discurso, pois “a repetição se funda em um retorno do gozo” (Lacan, 1969-
1970/1992, p. 47). Segundo Lacan (1969-1970/1992), o que Freud articula “é que, nessa mesma
repetição, produz-se algo que é defeito, fracasso” (p. 48). Esse fracasso da repetição diz respeito
à pulsão de morte, que é sempre antiprogressista. Lacan insiste que é o “instinto de morte, ou
seja, o caráter radical da repetição, essa repetição que insiste e que caracteriza perfeitamente a
realidade psíquica do ser inscrito na linguagem” (Lacan, 1969-1970/1992, p. 183).
Contrapondo-se ao utilitarismo do discurso do mestre moderno, Lacan (1972-
1973/1985) enuncia que “o gozo é aquilo que não serve para nada” (p. 11). Miller (2005a)
sublinha que ao formular o conceito de gozo dessa maneira, Lacan realiza “a objeção mais forte
à ideia de utilidade direta” (p. 114). Refutando o ideal político de homeostase e bem-estar, é
ressaltado que “o gozo entendido como ‘mais-de-gozar’ não faz bem, não se inscreve na
harmonia das funções vitais, perturba a homeostase” (Miller, 2005a, p. 114).
A ciência se propõe a desvendar um saber no real e, em seu desenvolvimento utilitário,
tenta significantizar algo do gozo dos sujeitos e inserir o próprio gozo dentro de um
funcionamento utilitário, servindo a um bem comum: a felicidade do maior número. Porém, é
verificado, segundo Éric Laurent (2016), que a psicanálise “enuncia que - no final da história
ou não - é impossível a satisfação final, a reconciliação entre o sujeito e o gozo. O sujeito
continua dividido por isso que ele não domina” (p. 107, tradução nossa131). Nesse sentido,
Aflalo (2012) demarca que o real com o qual a psicanálise “se ocupa é o gozo do sujeito. O

131
No original: “enuncia que - fin de la historia o no - es imposible la satisfacción final, la reconciliación entre el
sujeto y el goce. El sujeto sigue estando dividido por eso que él no domina”.
98

sujeito pode encontrar alguma lógica em seu gozo, mas este não pode ser dito, nem escrito; não
é, portanto, nem objetivável, nem mensurável” (p. 36).
No que diz respeito à administração igualitária contemporânea, Miller (2016) salienta
que a psicanálise demonstra que o laço social não deixa de ser dominante, mesmo quando se
propõe igualitário, pois há sempre algo que ocupa a posição de comando em um discurso. Fica
demarcado que essa diferença, a impossibilidade de uma igualdade, está inscrita desde o
nascimento de um sujeito, pois este é sempre “representado por um significante mestre, um
significante do Outro” (Miller, 2016, p. 167, tradução nossa132) e o que se isola na análise é “o
discurso que precede o sujeito” (Miller, 2016, p. 211, tradução nossa133).
Além disso, Miller (2016) ressalta que a prática da psicanálise não é uma prática
igualitária, ela supõe uma diferença radical entre o analista e o analisando, e não impõe medidas
para mensurar um analista. O psicanalista salienta que o tempo lógico vai na contramão de uma
prática fundada na igualdade, ele reforça o caráter aberto à novidade, que inclui a diferença, e
o caráter imprevisível da prática analítica. Nesse sentido, afirma: “É mais tranquilizador quando
esta [análise] tem uma duração fixa, porque assim as pessoas acreditam ter assegurada uma
regra que evita o capricho, e que mede o analista com a mesma vara” (Miller, 2016, p. 65,
tradução nossa134).
A psicanálise não se presta à medida nos termos da utilidade, pois a utilidade de uma
sessão de análise não pode ser definida da mesma maneira para todos os sujeitos e não há um
saber universal para tal. Miller (2016) sustenta que “não sabemos para o que serve uma sessão”
(p. 160, tradução nossa135) e esse não saber implica a criação de uma “autobionarração” (p. 160,
tradução nossa136) construída pelo sujeito ao narrar sua história, sua ficção.
Ao narrar sua ficção, o sujeito endereça seu íntimo à escuta do analista. A psicanálise
oferece um outro destino para o íntimo, diferente do discurso do mestre moderno. Pois, como
Lacan (1964/2008b) reforça, “a rememorialização da biografia, tudo isso só marcha até um
certo limite, que se chama o real” (p. 55). No limite do sentido, a psicanálise assegura um lugar
ao íntimo e reconhece que há uma indeterminação essencial em cada sujeito, que não se insere
no sistema significante.

132
No original: “representado por un significante amo, un significante del Otro”.
133
No original: “el discurso que precede al sujeto”.
134
No original: “Es más tranquilizador cuando ésta tiene una duración fija, porque así la gente cree tener asegurada
una regla que evita el capricho, y que mide al analista con la misma vara”.
135
No original: “no sabemos para qué sirve una sesión”.
136
No original: “autobionarración”.
99

Como indicou Antônio Teixeira (comunicação pessoal, 02 de dezembro de 2016), “o


inconsciente freudiano se encontra precisamente referido ao íntimo que desconhece a repartição
pronominal entre o Ich, o Du e o Er, permanecendo indeterminado ao pronome neutro como
Das Es”. Na mesma perspectiva, Jean-Claude Milner (2013) salienta “a multiplicidade exterior
e a multiplicidade interior que persiste no mais íntimo de cada um e cuja portavoz é a lingua. O
inconsciente freudiano, o que é depois de tudo, senão o descobrimento de que o ser falante não
é nunca um, nem sequer quando dorme?” (p. 15, tradução nossa137).
Essa indeterminação radical que compõe o íntimo de cada sujeito pode ser relacionada
ao objeto a, que não se inscreve totalmente no discurso, mas resulta dele, e também ao que
Lacan (1959-1960/2008a) elabora com a noção de das Ding. A Coisa está em uma posição de
“exterioridade íntima, uma extimidade” (Lacan, 1959-1960/2008a, p. 169) e designa um ponto
de opacidade no mais íntimo de cada sujeito.
Em direção à uma clínica do gozo, Lacan (1975-1976/2007) enfatiza que, para além do
sintoma, como formação do inconsciente e estruturado como uma linguagem, há o sinthoma,
núcleo opaco de gozo do sujeito que não pode ser lido pela via do sentido. Isso pode ser
relacionado com o que Éric Laurent (2005) propõe como duas vertentes da linguagem na
análise: uma pública e outra privada. A vertente pública é o que se compartilha e para tal é
necessária a identificação que inscreve o sujeito “no espaço comum a preço de uma
mortificação” (Laurent, 2005, p. 57). A vertente privada se refere à evocação de “uma
experiência de gozo” (Laurent, 2005, p. 58) e “a língua privada, nesse sentido, vivifica”
(Laurent, 2005, p. 58).
Segundo Éric Laurent (2010), a descrição lacaniana do final de análise seria:
“destituição do sujeito suposto saber, desejo decidido, entrelaçamento do dever e do destino,
desser” (p. 4). No caminho em direção ao indeterminado, o sujeito deve extrair de sua
linguagem privada seu saber-fazer com seu gozo, com o que não é referido ao sentido, para
“reencontrar um lugar no Outro” (Laurent, 2005, p. 58). Essa construção de um novo lugar para
seu íntimo implica que “o caminho rumo ao exterior passa pelo mais interior” (Laurent, 2005,
p. 58). No percurso de uma análise a desconstrução das identificações caminha da linguagem
pública à privada, do sintoma ao sinthoma, em direção ao mais íntimo e êxtimo, ao gozo opaco
que não se presta ao sentido.

137
No original: “A la multitud exterior y a la multitud interior que persiste en lo más íntimo de cada uno y cuyo
portavoz es la lengua. El inconsciente freudiano, qué es después de todo, sino el descubrimiento de que el ser
hablante no es nunca uno, ni siquiera cuando duerme?”.
100

O opaco do gozo pode ser relacionado ao estilo próprio do sujeito, o seu modo singular
de gozo. Em seu livro Estilo e Verdade em Jacques Lacan, Gilson Iannini (2013) elucida a
subversão lacaniana da frase de Buffon, citada na abertura dos Escritos, - “o estilo é o próprio
homem” (Leclerc, 1753/2014, p. 338, tradução nossa138). O autor salienta que, contrariamente
à referida frase, devemos situar “o estilo do lado do objeto – e não do Homem” (Iannini, 2013,
p. 299). Considerando a opacidade do objeto, podemos entender que o estilo não se encontra
situado do lado da identificação, mas sim do lado do des-ser e do indeterminado. Para Iannini
(2013), “o estilo mostra o que não se deixa dizer” (p. 304).
A psicanálise, não orientada por um ideal de transparência, considera que o mais íntimo
do sujeito é opaco. Como Miller (2000) bem salienta, não há como atravessar o gozo opaco,
então, o que a análise propõe é a possibilidade do “estabelecimento de uma outra relação
subjetiva com a pulsão” (p. 199). Essa nova relação subjetiva aponta um saber-fazer com seu
íntimo, o que não significa dele “se curar. Não é deixá-lo para trás. Ao contrário, é estar
enroscado e saber haver-se aí” (Miller, 2000, p. 199). Esse saber haver-se aí “não é um saber,
no sentido de um saber articulado. É um conhecer, no sentido de saber se virar com” (Miller,
2000, p. 205) que vai “mais-além das prescrições do simbólico” (Miller, 2000, p. 207).
O saber se haver com o seu íntimo e, ao mesmo tempo, êxtimo, pode ser relacionado ao
que Freud (1930/2010c) desenvolve como a solução única que cada sujeito deve inventar,
concernente à economia libidinal, para alcançar a felicidade. Não existe um modelo que se
aplique a todos, pois cada sujeito é singularmente afetado pela linguagem e deve lidar com o
que resta de indeterminado. Assim, a finalidade de uma análise “não é deixar de ter sintoma -
esta seria a perspectiva terapêutica - mas, sim, ao contrário, amar o sintoma como se ama a
própria imagem, e até mesmo amá-lo em vez de sua imagem” (Miller, 2000, p. 200). Para a
psicanálise, não é o cálculo da utilidade que promove a felicidade, mas a invenção de um estilo
por cada sujeito. É saber fazer do mais íntimo e opaco, seu estilo.

138
No original: “el estilo es el hombre mismo”.
101

5 CONCLUSÃO

A constante submissão dos sujeitos às práticas avaliativas na contemporaneidade foi o


que nos instigou no percurso desta dissertação. A servidão, voluntária ou não, a um saber
quantificável extraído pelos objetos se propaga desde o início da modernidade e, a cada instante,
mais se refina.
A modernidade marca o início da secularização do mundo. Esse processo se caracteriza,
essencialmente, pelo questionamento do mestre antigo que orientava o mundo e as decisões
políticas, fundamentado em uma posição de exceção e em um saber da tradição. O mestre tinha
seu lugar sustentado pela garantia divina e ele não necessitava saber, suas decisões não
precisavam ser racionais e demonstráveis. No lugar do saber da tradição, é proposto o uso da
razão. A partir desse momento histórico, todos devem ser iguais perante a lei e o lugar de
exceção não deve ser ocupado por ninguém. O desenvolvimento da ciência moderna, alicerçado
na racionalidade e na matemática, participa ativamente do processo de apagamento da exceção
através da substituição do saber antigo por um novo saber, que necessita ser verificado e que
não pode mais ser suportado por uma exceção.
A substituição do saber antigo pela racionalidade científica ressoa na política. A
Revolução Francesa é o marco do questionamento de exceção que sustentava o poder político.
O seu desenvolvimento ocorre na direção de uma sociedade que preza pela igualdade e que não
admite a diferença entre os indivíduos no nível das decisões políticas. No estabelecimento de
relações cada vez mais contratuais, o pensamento de Rousseau (1762/2014) e seu Contrato
social servem como orientação política para um mundo sem exceção. Para assegurar o contrato
são necessários mecanismos que garantam a equivalência entre os parceiros. No contrato tudo
deve ser visível e explicitado, o saber antigo da exceção divina não tem mais espaço ou função.
O nascimento do capitalismo e a influência da classe burguesa têm grande participação
na secularização do mundo, aliados ao desenvolvimento da ciência moderna. A organização
social fundada, agora, em um saber racional proporciona à classe burguesa um lugar na política.
Ao mesmo tempo, a Universidade, antes referenciada à Igreja, passa a se orientar pela ciência
moderna e a ser dominada pela burguesia. A Universidade se torna um dos instrumentos da
burguesia, que, pela promoção do saber científico e matematizável, estabelece um mercado do
saber. O saber, antes fundado na palavra do mestre, se torna mais uma das mercadorias no
mercado capitalista.
102

O valor calculável avança sobre todos os domínios da vida, para além do saber da
Universidade. O processo de instalação do capitalismo propõe a reificação, o tratamento que
objetifica os homens e as coisas, destituindo suas qualidades. O princípio capitalista de
equivalência geral desconsidera o valor de uso, sempre qualitativo, a favor do valor de troca,
sempre calculável. Esse princípio da equivalência geral é utilizado pela organização política,
baseada no modelo contratual, para garantir, via cálculo, a equivalência entre os homens.
No lugar da exceção, o cálculo racional passa a orientar a política na modernidade.
Nesse momento histórico “de um declínio radical da função do mestre” (Lacan, 1959-
1960/2008a, p. 23), surge a teoria utilitarista de Jeremy Bentham. Submetendo todos os
elementos possíveis da vida ao cálculo da utilidade, essa teoria plantea um modelo de
organização política que sirva a diversas instituições, para além da sua materialização
panóptica. Com seu lema - a felicidade para o maior número - o utilitarismo extrai, pelo cálculo,
a medida da felicidade. O cálculo dos prazeres propõe uma dominação pelo simbólico: tudo
deve ter valor significante para que possa ser calculado. E, assim como no contrato, tudo deve
ser visível e estar classificado.
Há um dito de Foucault (1973/2013) que representa bem como a secularização do
mundo se desdobra na modernidade, pois indica que o direito e suas leis devem “simplesmente
representar o que é útil para a sociedade” (Foucault, 1973/2013, p. 82). Em sincronia com o
ideal de transparência moderno, proposto pelo contrato e que sustenta a equivalência entre os
homens, o utilitarismo apresenta suas práticas classificatórias e avaliativas que permitem a
sustentação desse ideal. Nesse sentido, o utilitarismo propõe um modelo de organização que
não suporta a exceção, todos são iguais e devem, igualmente, ser vigiados e classificados.
Servindo-se do cálculo e da simbolização minuciosa, apaga toda particularidade e, no lugar de
um poder fundado na figura de exceção, o utilitarismo constrói uma legislação sem mestre. A
partir do cálculo dos prazeres, a teoria utilitarista propõe uma orientação quantitativa da
repartição dos bens e reduz o “desejo à dimensão da necessidade” (Teixeira, 1999, p. 178).
Nesse sentido, nos enveredamos pela investigação dos efeitos do apagamento da
exceção na modernidade em direção à verificação da inexistência e da inconsistência do Outro.
A partir da trilogia de Claudel, verificamos que Lacan salienta como o advento do discurso da
ciência apaga o discurso mítico que sustentava a organização social. Com o desaparecimento
do discurso da tradição, o destino do homem moderno não é mais assegurado pela tradição e
pelo Nome-do-Pai, mas é referenciado à utilidade e ao capital. Como observamos, a orientação
social moderna - científica, utilitária e capitalista - promove o apagamento da dimensão do
desejo e sua substituição pela dimensão da necessidade.
103

Na continuidade dessa investigação, realizamos uma leitura dos efeitos do apagamento


da exceção e do discurso mítico pela via dos discursos propostos por Lacan. O tratamento
lacaniano da inconsistência do Outro se apoia na pluralização dos Nomes-do-Pai e fomenta
novas ordenações discursivas que não são ordenadas pela exceção, pelo S1.
Na mesma direção, Lacan (1968-1969/2008c) aborda o objeto a na forma do mais-de-
gozar, exemplificando como o gozo é incluído no discurso, no campo do Outro. Evidenciando
a ruptura causada pela ciência moderna e sua matematização no mundo moderno, juntamente
com a influência do capitalismo, Lacan realiza sua leitura de como o manejo do gozo, pela via
do significante calculável, opera no tratamento da inconsistência do Outro. Como não há um
Outro consistente, uma exceção que assegure a ordenação social, a ciência e o mercado
assumem a gestão dos valores que irão regular e distribuir o gozo na sociedade. O novo saber
que orienta a modernidade não é o saber da tradição, mas o saber que calcula o valor de troca
dos objetos e dos homens.
No nível dos discursos, a operação lacaniana demonstra como há uma mudança
influenciada pela ciência moderna e pelo capitalismo. É evidenciada a passagem do discurso
do mestre antigo ao discurso do mestre moderno, um “mestre pervertido” (Lacan, 1969-
1970/1992, p. 194). Do mestre antigo que, ocupando o lugar de exceção, se apoiava no saber
do escravo, ao mestre moderno, que tem como imperativo “tudo-saber” (Lacan, 1969-
1970/1992, p. 32).
Nesse giro discursivo, fica evidente que o tratamento do significante-mestre (S1) passa
a ser realizado de forma a escondê-lo, concedendo-o a posição de verdade do discurso. O uso
da matemática é essencial para o posicionamento do saber (S2) no lugar de agente desse discurso
moderno, pois somente pela via do cálculo o saber pode ser demonstrável e não necessitar de
sua garantia em um discurso mítico. A função da exceção e do discurso mítico não é mais
suportada pela organização social moderna e o saber, demonstrável e calculável, é o que
comanda esse discurso. O S1, verdade desse discurso, apresenta seu imperativo: “Vai, continua.
Não pára. Continua a saber sempre mais” (Lacan, 1969-1970/1992, p. 110, itálicos do autor).
Uma outra versão do mestre moderno se apresenta no discurso capitalista, no qual há
uma inversão dos termos do lado esquerdo do discurso com relação ao antigo discurso do
mestre. As condições de sua emergência foram propiciadas pela objetificação do mundo
realizada pela ciência moderna que, em conjunção com o capitalismo, inicia o processo de
reificação, a redução de todos os elementos ao seu aspecto quantitativo e calculável. O próprio
saber, “sob sua forma científica” (Lacan, 1968-1969/2008c, p. 39), se torna mercadoria. O saber
incide sobre o gozo, incluindo-o no discurso sob a forma do mais-de-gozar, e o gozo passa a
104

ser contabilizado. Tal qual o discurso universitário, o discurso capitalista rechaça a exceção, o
significante-mestre (S1), localizando-o enquanto sua verdade.
Após o apagamento da exceção no mundo moderno, torna-se difícil localizar o mestre.
No lugar do mestre estão a mão invisível do mercado e as novas comissões de especialistas.
Rechaçando a exceção, os coletivos orientam suas decisões pelo saber dito científico e pelo
valor calculável extraídos pelos gadgets, instrumentos de avaliação e de vigilância.
No reino do mestre moderno, o coletivo universitário e capitalista, ocorre o manejo do
saber e do valor de forma a conservar uma homogeneidade entre os indivíduos. A passagem do
reino da lei, no qual o significante-mestre ocupava o lugar de exceção, para o reino da norma,
no qual a exceção é suprimida e o saber comanda, se mantém pelo imperativo de “tudo-saber”.
No reino do contrato, não existe espaço para o furo da lei e para o opaco do gozo, é a
transparência sobre tudo e todos que o assegura. A igualdade entre os cidadãos é necessária
para a administração moderna e “como mostrou Tocqueville, a modernidade se definia, antes
de mais nada, pelo avanço da igualdade em todas as formas” (Bignotto, 2012, p. 68). O
estabelecimento do regime democrático do “todos-iguais” não permite que a exceção tenha
lugar.
A gestão administrativa na atualidade é fundamentada pela lógica contratual e exige a
avaliação enquanto atividade indispensável para o seu funcionamento. Sem a garantia da
exceção, são necessárias a avaliação e a vigilância constantes, estratégias do regime da norma
que preservam o ideal de transparência e permitem a equivalência e a homogeneização dos
sujeitos. O lugar de comando do discurso do mestre moderno está ocupado pelo saber do
“cientista utilitário” (Teixeira, 2002, p. 273) que avalia constantemente a si mesmo e os outros.
A ideologia da prática avaliativa orienta-se pela “domesticação generalizada” (Milner,
2005, p. 12, tradução nossa139) ao saber e se compromete a demonstrar a igualdade dos homens
em substância calculável. Quanto mais avaliável e calculável, mais homem. O imperativo
moderno de “tudo-saber” se impõe a todos. É necessário consentir com sua objetificação, com
sua avaliação, é necessário ser transparente, a si mesmo e aos outros. É necessário deixar-se
marcar com o saber extraído da avaliação. É o progresso do reino do “todos-iguais”, da “era do
homem sem qualidades” (Miller, 2006, p. 1).
A partir do momento em que o Outro não existe, se torna evidente a modificação nas
formas de identificação dos sujeitos. Se antes, no reino da lei, a identificação era propiciada
pelo S1, por um líder, pela exceção, no reino da norma a identificação é oferecida por um S2

139
No original: “domestication généralisée”.
105

extraído da avaliação. Os significantes da tradição não orientam mais e ocorrem “identificações


débeis” (Laurent & Miller, 2013, p. 60, tradução nossa140) e inconsistentes.
As múltiplas identificações possíveis são determinadas, na contemporaneidade, pelo
politicamente correto estabelecido por um coletivo de “especialistas que definirão o bem
comum” (Miller, 2001, p. 59, tradução nossa141). No mundo moderno as exceções são incluídas
e passam a serem prescritas pelo discurso normativo. Como bem salientam Laurent e Miller, a
“tentativa de fazer uma língua comum do discurso universitário qualificado de politicamente
correto mascara a grande heterogeneidade da comunidade” (p. 60, tradução nossa142). E,
mascarando essa heterogeneidade, propõe: para cada exceção, uma nova norma. Nesse sentido,
é importante retomar o que Laurent (2012) indica:

Por um lado, as normas nem sempre conseguem fazer com que os corpos, por sua inscrição forçada, se
insiram em usos padronizados, nessa máquina infernal na qual o significante-mestre instala suas
disciplinas de fazer marcas identificatórias (marquage) e de educação. Os corpos são muito mais deixados
por sua própria conta, marcando-se febrilmente com signos que não chegam a lhes dar consistência. Por
outro lado, a agitação do real pode ser lida como uma das consequências da "ascensão ao zênite" do objeto
a. A apresentação da exigência de gozo em primeiro plano submete os corpos a uma ‘lei de ferro’ cujas
consequências é preciso acompanhar (p. 1, itálico do autor).

A psicanálise se oferece para escutar esses efeitos e, de forma diferente do discurso do


mestre moderno, dá lugar ao que do sintoma é opaco, ao que do gozo não se pode contabilizar
ou significantizar. Na contramão do discurso utilitário e de seu ideal de transparência, a
psicanálise se orienta pelo saber que não está explicitado e que não é calculável, mas que é
inconsciente e surge sob transferência. O saber do inconsciente não é transparente e a relação
analítica é impossível de ser contratualizada.
Não há uma direção da cura, entendida enquanto erradicação do sintoma, como o
discurso do mestre moderno pode sugerir. Levando em consideração o que não pode se tornar
transparente à linguagem e não pode ser erradicado da experiência humana, a psicanálise
oferece um outro destino para o íntimo, visando a construção de um estilo através do que é mais
íntimo e êxtimo, do opaco do sinthoma.

140
No original: “identificaciones débiles”.
141
No original: “expertos que definirán el bien común”.
142
No original: “el intento de lengua común del discurso universitario calificado de políticamente correcto
enmascara la gran heterogeneidad de la comunidad”.
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