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Zi Yue

REVISTA DE GRADUAÇÃO DE ESTUDOS SINOLÓGICOS


ano 1 - volume 1, n. 1 - 2020

USP - FFLCH - DLO


Área de Língua e Literatura Chinesas
A 子曰 (Zi Yue): revista de graduação de estudos sinológicos é organizada por estudantes da
área de Língua e Literatura Chinesas do Departamento de Línguas Orientais (DLO) da Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) - Universidade de São Paulo (USP). Publicada
anualmente em versão digital, o periódico aceita trabalhos produzidos durante a graduação de
estudantes de todos os cursos, desde que tenham como temática o mundo chinês, sua história,
literatura, línguas, filosofia, cultura, religiões entre outros. A revista Zi Yue assegura a avaliação
por pares cega. Por fim, enfatiza-se o objetivo da 子曰 (Zi Yue) em constituir um espaço
de pesquisa, debate e divulgação dos trabalhos acadêmicos realizados durante a graduação.

Conselho Editorial
COORDENADORA E DOCENTE RESPONSÁVEL
Profa. Dra. Ho Yeh Chia

EDITORES
Jamilly Brandão Alvino (Pós-Graduação, FFLCH-USP)
John Breno R. de Sousa (Graduação, FFLCH-USP)

REVISÃO DOS ARTIGOS


Leandro Santos Araújo (Graduação, FFLCH-USP)

CAPA, PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO


John Breno R. de Sousa

CALIGRAFIA CAPA
Ho Loung Shung

Zi Yue: revista de graduação de estudos sinológicos


PRIMEIRA PUBLICAÇÃO: MAIO - 2020
PERIODICIDADE: anual
ENDEREÇO: Universidade de São Paulo (USP)
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciencias Humanas (FFLCH)
Edíficio Prof. Antonio Cândido (Letras)
Av. Prof. Luciano Gualberto, 403, sala 17, piso térreo
Cidade Universitária - São Paulo, SP
05508-010
E-MAIL: [email protected]
ENDEREÇO ELETRÔNICO: www.revistas.usp.br/ziyue

Zi Yue: Revista de Graduação de Estudos Sinológicos.


São Paulo: Portal de Revistas da USP: FFLCH,
Universidade de São Paulo, v.1, n. 1, 2020. Online. Anual.
Sumário
Editorial
Ho Yeh Chia e John Breno R. de Sousa ................................................04

Artigos
John M. Hobson e as Origens Chinesas da Revolução Industrial do
Século XVIII
Leonardo V. B. Barbosa ......................................................................... 06

Guerra Sino-Soviética de 1969: a relação entre os conflitos externos da China e


os seus impasses políticos internos
Isabella Santana dos Santos ...................................................................14

A Filosofia Chinesa Publicada no Brasil nos Séculos XX E XXI


John Breno R. de Sousa .........................................................................24

Rito e Reforma: breve comparação entre as tradições bíblicas e o


pensamento confuciano
Pedro Regis Cabral .................................................................................42

A Poesia Chinesa Definida por Ezra Pound: uma busca pela origem
Raquel de Sá ........................................................................................... 55

Diálogos: convidados escrevem


Formas de Vida Incompatíveis
João Vergílio Gallerani Cuter ................................................................65
Zi Yue: revista de graduação de estudos sinológicos. São Paulo: Portal de Revistas da USP, v. 1, n. 1, 2020.

Editorial
Aprender ao ensinar

子曰:“学而时习之,不亦说乎?有朋自远方来,不亦乐乎?人不知而愠,不亦君子乎?”
孔子 《论语》。
[O mestre disse: “Saber colocar em prática o que aprendemos no momento certo
não é uma grande alegria? Receber um amigo que vem nos visitar de um lugar
distante não é um grande prazer? Não nos aborrecermos quando as pessoas não nos
compreendem não é qualidade de um cavalheiro?” (Os Analectos. Tradução nossa)]

A Zi Yue: Revista de Graduação de Estudos Sinológicos surgiu do desejo dos estudantes da


habilitação em Língua e Literatura Chinesas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) de organizar, preservar e divulgar pesquisas de
estudantes de graduação feitas no âmbito das Iniciações Científicas (IC) e de Trabalhos de Graduação
Individuais (TGI). Nosso objetivo é constituir um acervo dos textos disponíveis para consulta para
alunos e professores da Faculdade. Pretende-se também incentivar outros estudantes a se engajarem
na empreitada de compreender melhor o mundo chinês nos seus diversos aspectos e manifestações:
história, literatura, filosofia, artes plásticas, religiões, costumes, formações sociais, línguas e dialetos.
Apesar de o Ocidente vir mantendo contato regular com a China há mais de sete séculos, o mundo
chinês, ainda hoje, parece “exótico” e “misterioso” para muitos de nós. Uma das missões de quem
estuda as línguas, culturas e sociedades chinesas é tornar esse universo inteligível ao público brasileiro
e lusófono, pois, embora existam diversas pesquisas sobre esses temas publicadas em inglês, francês,
alemão e japonês, o conteúdo disponível em português ainda é muito escasso. A despeito de ser uma revista
de graduandos, a Zi Yue tem o objetivo de dar um pequeno passo no sentido de corrigir essa lacuna.
Escolhemos o nome Zi Yue (子曰, “o mestre disse”) por se tratar de uma expressão que
introduz muitas das falas atribuídas a Confúcio n'Os Analectos. “O mestre”, portanto, refere-se a
Confúcio (551 a.C. - 479 a.C.), pensador chinês que refletiu sobre a China, sua sociedade e a respeito
das melhores formas de organizar a vida social. Confúcio viveu numa época em que os Estados chineses
se autodestruíam em conflitos locais. Essa conjuntura tornava imperativa a necessidade de se pensar em
alternativas para que o povo pudesse viver em paz, harmonia e progresso e cada qual entendesse seu papel
na sociedade e seus deveres para com o próximo. Suas reflexões foram tão significativas que viriam a se
tornar, mais tarde, uma ideologia do Estado, influenciando amplamente, não apenas a China, como também
outras sociedades vizinhas. Isso transformou Confúcio num símbolo do mundo chinês até os dias atuais.
Um dos temas privilegiados por Confúcio foi a importância do estudo como um instrumento
na construção de uma sociedade mais humana e mais justa. Por disso decidimos homenageá-
lo, nomeando esta revista com uma expressão emblemática de seus ensinamentos. Ele foi um
educador e um pensador que acreditava que todos deveriam ter acesso à educação e que, através

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Editorial

da educação, todos poderiam ascender a um cargo público e dar sua contribuição à sociedade,
aconselhando os governantes. É esse o caminho que ele vislumbrava para alcançar uma paz duradoura.
Como epígrafe deste texto, há uma famosa citação de Confúcio afirmando que é motivo de grande alegria
a possibilidade de poder colocar em prática aquilo que aprendemos. E esse é justamente um dos propósitos
desta publicação: permitir aos estudantes praticarem o que aprenderam ao divulgarem suas pesquisas na
forma de artigos. Esperamos, assim, que os conhecimentos construídos por colegas de graduação que se
propuseram a estudar o mundo chinês possam ser compartilhados, aproveitados e complementados por outros.
Esta edição divide-se em quatro seções: História, Filosofia, Literatura e a seção especial para
convidados. Na seção de História, o ensaio “John M. Hobson e as origens chinesas da Revolução
Industrial do século XVIII”, de Leonardo Barbosa, procura identificar a influência que inovações
tecnológicas originárias da China antiga tiveram sobre a Revolução Industrial Inglesa; a seguir,
“Guerra Sino-Soviética de 1969: a relação entre os conflitos externos da China e os seus impasses
políticos internos”, escrito por Isabella dos Santos, fala sobre as relações, disputas e conflitos
territoriais, políticos e ideológicos entre a República Popular da China e a União Soviética.
Na seção de Filosofia, John Sousa apresenta e contextualiza as tradições chinesas do Confucionismo e do
Taoismo, além de divulgar um estudo quantitativo sobre as publicações na área de filosofia chinesa no trabalho
“A filosofia chinesa publicada no Brasil nos séculos XX e XXI”. Pedro Regis Cabral compara o conceito
de rito na tradição confuciana e nas tradições bíblicas com ênfase nos princípios do Velho Testamento e na
tradição dos protestantes em “Rito e Reforma: breve comparação entre as tradições bíblicas e o pensamento
confuciano”. Na seção de Literatura, Raquel de Sá, em “A poesia chinesa definida por Ezra Pound: uma
busca pela origem”, reflete sobre as teorias da tradução propostas por Ernest Fenollosa e adotadas por seu
discípulo Ezra Pound. Por fim, na seção especial para convidados, o professor João Vergílio Gallerani Cuter,
do departamento de Filosofia da FFLCH/USP, faz uma leitura filosófica do conto "Sabonete", de Lu Xun,
tomando-o como ponto de partida para uma série de reflexões sobre a linguagem, a literatura e a sociedade.
Sentimo-nos satisfeitos pela diversidade de temas e áreas abordadas pelos autores e
agradecemos a todos que colaboram para que este projeto fosse concretizado. Gostaríamos
que a Zi Yue possa auxiliar os brasileiros a compreender a sociedade chinesa e que seja um
espaço de constantes discussões, debates e reflexões na área da sinologia, mantendo um
registro histórico das pesquisas realizadas pelos estudantes de graduação da nossa Faculdade.

John Breno R. de Sousa


Ho Yeh Chia

Área de Língua e Literatura Chinesas


Departamento de Letras Orientais - FFLCH/ USP

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Zi Yue: revista de graduação de estudos sinológicos. São Paulo: Portal de Revistas da USP, v. 1, n. 1, 2020.

JOHN M. HOBSON E AS ORIGENS CHINESAS


DA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL INGLESA DO SÉCULO XVIII

Leonardo Vinicius Brisola Barbosa1

RESUMO
A Revolução Industrial Inglesa atualmente é vista pela grande maioria dos historiadores e especialistas
como um dos processos mais importantes na história do progresso do desenvolvimento técnico e
tecnológico humano. Contudo, ao longo do século XX, diversos autores divergiram quanto a suposta
originalidade e criatividade desse acontecimento que mudaria o curso da história. Enquanto alguns
autores, como Perry Anderson, destacam o pioneirismo e a genialidade dos empreendedores ingleses no
desenvolvimento da Revolução Industrial, outros, como Andre Gunder Frank, destacam a importância
das inovações oriundas do continente asiático, que na realidade teriam sido assimiladas pela Inglaterra
industrial. A partir da análise da obra The Eastern Origins of Western Civilisation, de John M. Hobson,
este artigo procura identificar e destacar a influência que inovações tecnológicas originárias da China
antiga tiveram sobre a Revolução Industrial Inglesa, uma vez que o autor argumenta que a China Song
(960-1279) teria produzido uma primeira revolução industrial em larga escala já no século XI, e muitas
dessas inovações teriam sido copiadas e transferidas diretamente para a Inglaterra no século XVIII.
PALAVRAS-CHAVE: Revolução Industrial; China antiga; Eurocentrismo; Asiocentrismo.

Introdução
Ao longo do século XX, diferentes correntes historiográficas se debruçaram exaustivamente
sobre os grandes dilemas e questões referentes à Revolução Industrial. Diversos autores debateram
e refutaram calorosamente argumentos quanto à sua relevância para o mundo moderno, quais
condições foram necessárias para propiciar esse ocorrido e qual o motivo de ela ter ocorrido
primeiramente na Inglaterra e não em qualquer outro lugar do mundo. As respostas mais convincentes
para essas questões foram formuladas em consonância ou com as ideias marxistas ou com as
ideias weberianas. Essas ideias, representantes do “padrão” seguido pela historiografia sobre a
Revolução Industrial, apesar de possuírem divergências entre si, partiam todas de um mesmo princípio

1 Mestrando em Humanidades (História) pela Hong Kong University of Science and Technology. E-mail: lvbb@connect.
ust.hk

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BARBOSA, L. John M. Hobson e as origens chinesas da Revolução Industrial do século XVIII, pp. 06-13.

básico resultante de seu contexto geográfico e histórico: o Eurocentrismo (HOBSON, 2004, p. 12).
Dentro desses moldes eurocêntricos, as civilizações modernas europeias, como a inglesa durante
a Revolução Industrial, eram vistas por grande parte dos historiadores da primeira metade do século
XX através de um triunfalismo europeu, que as enxergava como dotadas de uma inventividade e
racionalidade únicas e, assim, justificavam o seu destino iminente ao progresso. Enquanto isso, durante
esse mesmo período, grandes e importantes civilizações dos continentes asiático e africano eram
consideradas apenas como sociedades imitativas, ignorantes, irracionais e passivas (HOBSON, 2004, p. 8).
Os processos de descolonização na África e na Ásia, derivantes da derrocada do poder das potências
imperiais europeias no início da segunda metade do século XX, trouxeram novos questionamentos sobre a
consistência do continente europeu como o centro da história do progresso global. A partir dessas tendências,
nasce um movimento de reabilitação do Oriente na história mundial, conhecido como “asiocentrismo”
ou anti-eurocentrismo. Um dos primeiros autores a popularizar a prática foi Edward W. Said, que, em
sua obra Orientalism: Western Conceptions of the Orient, de 1978, critica essa linha de pensamento que
enxerga uma hegemonia apriorística do continente europeu sobre todos os povos (SAID, 1978, p. 13-41).
A partir das portas abertas por Said, diversos historiadores resolveram revisitar as questões sobre a
Revolução Industrial na Inglaterra, mas, dessa vez, tomaram maiores precauções para não serem eurocêntricos,
além de tentarem entender quais correlações entre Ásia e Europa permitiram a ocorrência desse processo de
desenvolvimento. Essa pesquisa procurará expor algumas das ideias desses revisionistas, com um enfoque
especial aos conceitos de Revolução Industrial Chinesa apresentados por um dos mais recentes e mais
importantes expoentes dessa tendência, John M. Hobson na obra The Eastern Origins of Western Civilisation.
A Revolução Industrial e os “asiocêntricos”
Um dos primeiros historiadores a questionar profundamente a questão sobre a Revolução Industrial e
o Oriente foi Andre Gunder Frank com sua obra ReORIENT: Global Economy in the Asian Age. Publicada
no começo dos anos 90, a obra defende uma história sistêmica do mundo, em que o autor argumenta
que foi apenas a partir do século XX que a Ásia passou a ser economicamente inferior a Europa, tanto
em produção quanto em produtividade. Para isso, Frank defende uma visão em que, até o fim do século
XVII, a Europa estaria muito atrás da Ásia e, por isso, teve que se manter no comércio mundial em
um longo período de déficit comercial. Isso apenas foi possível porque países como Portugal e Espanha
tiveram a sorte de encontrar grandes quantias de minas de prata nas Américas para manter esse comércio
fluindo. Frank entende que a Europa ultrapassou a Ásia economicamente apenas a partir da Revolução

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Zi Yue: revista de graduação de estudos sinológicos. São Paulo: Portal de Revistas da USP, v. 1, n. 1, 2020.

Industrial, mas se questiona sobre os motivos de ela ter acontecido na Europa, e não na Ásia (FRANK,
1998, p. 8). Segundo sua explicação, a abundância e o baixo preço da mão de obra e os altos preços
dos materiais necessários para a industrialização tornavam uma revolução desse teor mais prejudicial
do que lucrativa às sociedades orientais, enquanto que para a Europa a ideia era muito mais atrativa.
Um outro importante autor que escreveu sobre o tema foi Kenneth Pomeranz em The Great
Divergence: China, Europe, and the Making of the Modern World Economy. Publicada no ano 2000,
essa obra, que possui teor mais moderado que a de Frank, argumenta a favor de uma equidade entre
os lugares mais desenvolvidos na Europa e na Ásia em expectativa de vida, consumo e comércio, e
que a Revolução Industrial ocorreu primeiramente na Europa devido principalmente às diferenças
ecológicas, às explorações ultramarinas e à obra da sorte. Assim, ele se opõe a uma gama de autores
que diziam haver ocorrido uma gradual “acumulação de forças” que foi aos poucos criando as bases
econômicas, tecnológicas, sociais e ideológicas para a industrialização. Pomeranz acredita que a época
pré-Revolução Industrial estava cercada de dramáticas limitações ecológicas tanto na Europa quanto
na Ásia (POMERANZ, 2000, p. 3-25). De modo a refutar o argumento de que a Revolução Industrial
se deu na Europa principalmente devido à superioridade de suas instituições e aos níveis comercial e
tecnológico mais avançados, o autor conclui que os fatores principais para esse acontecimento foram
a sorte da Inglaterra em possuir reservas de carvão grandes e facilmente alcançáveis, e ao fato do país
ter consolidado colônias na América do Norte, o que possibilitou um alívio ecológico para a Europa.
O terceiro historiador a ser apresentado é o chinês Roy Bin Wong, autor de China Transformed:
Historical Change and the Limits of European Experience. Em sua obra, Wong argumenta que,
até a Revolução Industrial, a Europa e a China apresentavam dinâmicas econômicas parecidas e que
essa revolução teria acontecido na Europa pelos mesmos motivos apontados por Pomeranz. No
entanto, o autor enfatiza as especificidades da formação dos estados europeus, argumentando que
na Europa os estados tinham que se preocupar em competir com seus vizinhos, eram ameaçados
constantemente com o perigo de desmembramento territorial e que a nobreza precisava manter
seu poder delimitando os poderes da realeza. Enquanto que a China se manteve um império agrário
centralizado, sem grandes nobrezas nem grandes rivais desde o século VI com a dinastia Sui, o que
diminuiu o incentivo ao desenvolvimento de uma revolução industrial (WONG, 1997, p. 17).

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BARBOSA, L. John M. Hobson e as origens chinesas da Revolução Industrial do século XVIII, pp. 06-13.

Hobson e a “Revolução Industrial Chinesa”


John M. Hobson, a partir da inspiração tirada desses autores, publicou em 2006 a obra revisionista The
Eastern Origins of Western Civilisation. Embora possa ser considerado um sucessor mais radicalizado de
Andre Gunder Frank, Hobson argumenta em sua obra que, além da Europa ter ultrapassado economicamente
a Ásia apenas em 1840, esse desenvolvimento ocidental, foi, na realidade, derivado em grande parte dos
avanços técnicos e tecnológicos propiciados pelos próprios países asiáticos. Para o autor, o Ocidente só
chegou ao seu progresso material durante a Revolução Industrial graças à assimilação e apropriação das
ideias, instituições e tecnologias orientais. Ele afirma que através dos árabes, o Oriente, além de transmitir
os conhecimentos gregos há muito esquecidos pelos europeus medievais, também racionalizou diversos
conhecimentos e inventos científicos, produzindo uma Renascença e uma Revolução Industrial anterior
à europeia, que teriam sido ambas claramente apropriadas pelas cidades italianas e pela Inglaterra.
Em sua obra, Hobson condena as visões consideradas por ele “eurocêntricas” da história do
desenvolvimento industrial das sociedades humanas, que veriam os processos ocorridos na Inglaterra do
século XVIII como o “primeiro milagre industrial do mundo” e o divisor de águas que mudaria para sempre
a história das tecnologias2. Para o autor, a China teria passado por um “milagre industrial” de caráter tão
importante e grandioso quanto a Revolução Industrial Inglesa, e que, além disso, ele teria acontecido centenas
de anos antes do processo britânico. Primeiramente, Hobson aponta para evidências que comprovam que
o estado chinês, ainda durante o século VI a.C., já possuía os conhecimentos científicos necessários para
produzir objetos feitos de ferro, e que durante os anos 800 e 1100, sob o império da próspera dinastia Song,
teria ocorrido um crescimento gigantesco na produção de ferro, isso fez a produção chinesa anual saltar
de 13,500 toneladas em 806 para 125,000 toneladas em 1075, enquanto a Inglaterra atingiu uma produção
de apenas 76,000 toneladas anuais só em 1788, setecentos anos mais tarde (HOBSON, 2004, p. 51).
Além disso, apesar de não os nomear, Hobson refuta outros historiadores que propunham que a
produção chinesa de ferro era apenas utilizada para a produção de armamentos e decoração, argumentando
que os baixíssimos preços do ferro, quando comparados com os preços do arroz, permitiram que houvesse
uma verdadeira “revolução” na produção de muitos artigos do dia a dia e da sociedade Song em geral, como
facas, machadinhas, formões, brocas, martelos, marretas, arados, pás, eixos de carrinho de mão, rodas,
ferraduras, tachos, panelas, chaleiras, sinos, correntes, portões, torres de vigia, pontes, molduras e tipos de
impressão, que só passariam a ser vistos pela humanidade novamente na Inglaterra industrial (HOBSON,

2 Hobson menciona principalmente Perry Anderson, Lineages of the Absolutist State (London: Verso, 1979); Alan K.
Smith, Creating a World Economy (Boulder: Westview Press, 1991); e David S. Landes, The Wealth and Poverty of Nations
(London: Little, Brown, 1998).

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Zi Yue: revista de graduação de estudos sinológicos. São Paulo: Portal de Revistas da USP, v. 1, n. 1, 2020.

2004, p. 52). O autor ainda complementa sua argumentação demonstrando a prematuridade da


fundição do aço na China (já no século II AEC.), a substituição do combustível feito de coca pelo
uso do carvão, e as imensas inovações tecnológicas presentes na manufatura têxtil da seda, todas
características marcantes do que pode ser considerado uma revolução industrial (HOBSON, 2004, p. 53).
Outra “falácia eurocêntrica” que Hobson procura superar em sua obra é a da noção de que, embora
se considere que a dinastia Song realmente tenha proporcionado uma revolução industrial ainda no
século XI, esse processo teria se constituído em nada mais do que uma “revolução abortiva”, com um
crescimento extremamente limitado e seguido por estagnação e isolacionismo comercial que
teriam sido causados majoritariamente pela proibição do comércio exterior promovido pela dinastia Ming
em 1434 (ANDERSON, 1979, p. 541-546). Hobson argumenta que a expedição dessa ordem imperial
que proibiu o comércio foi mal interpretada pelos historiadores eurocêntricos e que o espírito mercantil
e o comércio continuaram a fluir normalmente na China Ming. Como evidências, ele primeiramente
aponta para o fato de que se mantinha no império uma política oficial de valorização dos valores
confucionistas, que acabaram privilegiando uma hierarquia oficial que posicionava os mercadores
nos níveis mais baixos do estrato social, portanto, a lei de 1434 servia, na visão de Hobson, para
materializar simbolicamente uma ideia anti-mercantil que compunha a identidade e a legitimidade do
estado confucionista (HOBSON, 2004, p. 62). Contudo, ele afirma que os governantes Ming, por
saberem do valor intrínseco da participação do estado no mercado global, mantiveram propositalmente
um sistema de tributos e “vassalagens” que serviam como uma porta de entrada para o comércio chinês,
disfarçados de presentes e tributações oferecidos ao imperador. Em segundo lugar, o autor apresenta
sólidas evidências de que muitos mercadores chineses conseguiram manter seu comércio extremamente
lucrativo ao burlar e ignorar as novas regras e praticar pirataria tanto com os mercadores europeus de
Portugal, dos Países Baixos e da Espanha, quanto com o mercado asiático do Japão, da Coreia, e do
Sudeste Asiático, tudo sob os olhos propositalmente desatentos das autoridades (HOBSON, 2004, p. 64).
Baseando-se nesse conjunto de argumentos, Hobson propõe não apenas o reconhecimento do que
ele chama de uma “Revolução Industrial Chinesa”, mas também deixa implícito que essa revolução,
diferentemente do que é habitualmente argumentado por historiadores eurocêntricos, teve uma importância
para a história global tão grande quanto, e talvez até maior do que, a Revolução Industrial ocorrida na
Inglaterra do século XVIII, uma vez que foi capaz de manter um legado forte o suficiente para influenciar
em grande parte o desenvolvimento industrial das próprias sociedades europeias seis séculos mais tarde.

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BARBOSA, L. John M. Hobson e as origens chinesas da Revolução Industrial do século XVIII, pp. 06-13.

As origens chinesas da Revolução Industrial Inglesa


As correntes históricas mais comumente difundidas até o início do século XXI geralmente encaravam
a Revolução Industrial como um processo que aconteceu primeiramente na Inglaterra a partir da segunda
metade do século XVIII, devido em grande parte a motivos endógenos e originais próprios das condições
materiais e intelectuais desse contexto. Dentro desse conjunto de autores consolidados, por um lado temos
historiadores como Phyllis Deane, que já no título de sua obra The First Industrial Revolution (1965),
deixa explícito seu posicionamento quanto ao pioneirismo industrial inglês; por outro lado também temos
obras marxistas como a de Perry Anderson, que em Linhagens do Estado Absolutista (1979), afirma ter
sido a Revolução Industrial “uma gigantesca e espontânea combustão das forças de produção, única em
seu poder e universal em seu alcance” (ANDERSON, 1979, p. 419-420). O que a maioria dessas tradições,
mesmo que distintas em suas interpretações e pensamentos históricos, possui em comum quanto à análise
da Revolução Industrial é que elas acreditam que esse processo consistiu um movimento inédito alcançado
por um individualismo e uma inventividade única dos anglo-saxões da época (HOBSON, 2004, p. 191). É
exatamente contra esses preceitos eurocêntricos que Hobson irá se contrapor duramente em sua exposição.
Primeiramente, Hobson argumenta que o continente europeu não era excepcional, rejeitando a
ideia de que seus governantes e intelectuais possuíam uma espécie de inventividade única, representada
pela desenvolvimento do Iluminismo. Em vez de criar teorias sociológicas e econômicas pensando
exclusivamente no contexto europeu, as elites intelectuais do pensamento iluminista teriam, segundo
Hobson, se especializado em assimilar e refinar as ideias e as teorias econômicas pertencentes à terra da
primeira revolução industrial, isto é, a China antiga. Hobson usa como evidência a grande admiração que
pensadores iluministas ocidentais como Voltaire, Adam Smith, Leibniz e Hume tinham pelos sistemas
político e econômico do grande império oriental, que teria como base uma suposta racionalidade intrínseca
ao pensamento tradicional chinês wú wéi (無為,não-ação), que teria sido até mesmo, mais tarde, assimilado
pelo importante filósofo francês François Quesnay na forma de laissez-faire (HOBSON, 2004, p. 197).
Além de observar as origens chinesas do Iluminismo, Hobson também aponta para as origens
chinesas da “revolução agrícola inglesa”, um conjunto de inovações tecnológicas no campo que
permitiram o aumento da produção alimentícia, e que é tradicionalmente considerada como um dos
precursores cruciais para a Revolução Industrial. Ele aponta para a real natureza de diversas ditas
“inovações tecnológicas” europeias como puras assimilações de técnicas e aparelhos há muitos séculos
já utilizados pelas civilizações chinesas, como o arado de Rotherham, alegadamente adaptado de uma

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Zi Yue: revista de graduação de estudos sinológicos. São Paulo: Portal de Revistas da USP, v. 1, n. 1, 2020.

invenção holandesa do século XVII, mas que já era usada na China dois milênios antes (HOBSON,
2004, p. 202); a peneira giratória, que foi introduzida na Europa por jesuítas franceses em 1720,
mas já utilizada desde o século II AEC pelos chineses (HOBSON, 2004, p. 203); as semeadeiras e
a criação de cavalos-capinadores, ambas descobertas pelo ingleses apenas no século XVIII, mas
que já estavam em voga desde o terceiro século antes da era comum na China (HOBSON, 2004, p.
205); e principalmente as revolucionárias rotações de culturas, praticadas pelos britânicos desde o
século XVIII, mas que já era conhecida pelos chineses desde o século VI (HOBSON, 2004, p. 206).
Ademais, para Hobson, a influência das tecnologias chinesas na Inglaterra não parou simplesmente na
revolução agrícola, mas também penetrou profundamente nas próprias inovações que ficariam mundialmente
conhecidas como “descobertas” próprias do pioneirismo dos britânicos. O autor argumenta que muitas das
novidades do século XVIII, como o uso extensivo de carvão como combustível, a produção de ferro e aço, a
produção em larga escala de tecidos (no caso, da seda) e o próprio motor a vapor foram inventados e praticados
na China entre 2300 e 700 anos antes de serem introduzidos na Inglaterra (HOBSON, 2004, p. 207-217).
A partir de todas as críticas dirigidas à versão eurocêntrica da história da industrialização
na Inglaterra, Hobson procura deixar claro em sua obra que, apesar da Revolução Industrial
Chinesa haver tido uma importância vital para o desenrolar da Revolução Industrial Inglesa, não
se deve menosprezar a importância da segunda como a propagadora das ideias da primeira para
o resto do mundo ocidental, especialmente para os continentes europeu e americano. Em seu ponto
de vista, a sociedade inglesa do final do período moderno não merece o título de “inventiva”,
como é usualmente pregado por estudiosos eurocêntricos, mas sim, o título de uma eficiente
“assimilacionista”, que, partindo das vantagens de um “late developer”, isto é, as vantagens de um
país tecnologicamente atrasado que conseguiu se desenvolver através da aprendizagem de tecnologias
mais avançadas vizinhas, conseguiu, com o mérito da assimilação, produzir sua própria revolução.
Considerações finais
Uma das explicações mais bem aceitas sobre o porquê de a Revolução Industrial ter ocorrido
“primeiro” na Inglaterra nos é fornecida pelo historiador marxista Eric Hobsbawm em sua obra A Era
das Revoluções: um ambiente de absolutismo fraco, o sucesso do projeto imperialista britânico, as
bem-sucedidas guerras contra a Holanda, a ampla oferta de mão de obra gerada pelos cercamentos,
uma classe média burguesa portadora de um capital mediano e um mercado externo substancialmente
ilimitado (HOBSBAWM, 1967, p. 54-89). Contrastando essa visão com a de Hobson, é impossível

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BARBOSA, L. John M. Hobson e as origens chinesas da Revolução Industrial do século XVIII, pp. 06-13.

não notarmos a falta de dois itens primordiais: o assimilacionismo de propriedades intelectuais


chinesas e o extremo atraso técnico-tecnológico de mais de sete séculos presente na Inglaterra.
Apesar de Hobson mencionar muitas vezes “autores eurocêntricos”, que pela falta de referências,
não raramente acabam se parecendo mais com “autores espantalhos”, é incontestável o fato de que ele
está dialogando com uma historiografia que realmente existe e domina ainda hoje grande parte do
conhecimento das ciências humanas. Com a ressalva de certos exageros como apontar as origens do
Iluminismo para tradições confucionistas antigas, Hobson se mostra coerente ao desafiar o senso comum de
uma historiografia que, acostumada a enxergar a Europa como superior à Ásia devido às suas “instituições
superiores”, lida com a Revolução Industrial de forma teleológica, assumindo que as civilizações da
Europa sempre foram o centro do desenvolvimento humano no mundo e que assim seguirão sendo.
Por fim, ao aplicar e atualizar as ideias de grandes autores revisionistas como Said,
Frank, Wong e Pomeranz, Hobson ajuda a manter esse importante debate vivo, e The Eastern
Origins of Western Civilisation, apesar de ser exageradamente radical em alguns momentos,
cumpre seu objetivo principal de explicar a história, nesse caso a Revolução Industrial,
a partir de um ponto de vista mais globalista e, consequentemente, menos eurocêntrico.
Referências bibliográficas

ANDERSON, Perry. Lineages of the Absolutist State. London: Verso, 1979.

DEANE, Phyllis Deane. The First Industrial Revolution. Cambridge: Cambridge University Press, 1965.

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13
Zi Yue: revista de graduação de estudos sinológicos. São Paulo: Portal de Revistas da USP, v. 1, n. 1, 2020.

GUERRA SINO-SOVIÉTICA DE 1969: A RELAÇÃO ENTRE OS CONFLITOS


EXTERNOS DA CHINA E OS SEUS IMPASSES POLÍTICOS INTERNOS

Isabella Santana dos Santos1

RESUMO
Este artigo busca compreender os motivos políticos endógenos que resultaram no conflito sino-
soviético de 1969 e, a partir disso, refletir sobre as relações entre a política interna e as guerras externas
que envolveram a China Maoista, bem como conhecer o papel da guerra externa como solução do
impasse político interno. Para desenvolver o tema proposto, analisa-se como as disputas territoriais e as
divergências ideológicas, culturais e militares entre China e União Soviética influíram no conflito entre
esses dois países. Além disso, também procura-se entender o impacto da Revolução Cultural Chinesa
e da luta de Mao Zedong contra o revisionismo no conflito sino-soviético. Por fim, pretende-se tratar,
brevemente, do papel dos armamentos nucleares e discutir o quanto eles influenciaram na dissuasão
dessa guerra. Ou seja, serão estabelecidas relações entre os conflitos internos e externos buscando
verificar qual o peso de cada um desses fatores para a eclosão da Guerra Sino-Soviética em 1969.
PALAVRAS-CHAVE: Conflito; Sino-Soviético; Política; Fronteiras; China.

Introdução
Tropas chinesas emboscaram e mataram um grupo de soldados russos na fronteira da ilha Zhenbao
em 2 de março de 1969. Em 15 de março, ocorreram novos confrontos em que ambos os países utilizaram
grande poderio militar. Esses conflitos remontam a diversos tratados assinados entre a Rússia e a China desde
o século XVII, dentre eles, encontra-se o tratado de Pequim de 1860, em que as ilhas fluviais ao longo do
rio Ussuri foram designadas como fronteira entre o império russo e o império chinês Qing. Dessa forma, de
acordo com a China, a URSS possuir a propriedade dessas ilhas fazia parte do emblemático expansionismo
russo que forçou a China a ceder territórios. Sendo assim, a China planejou o ataque a Zhenbao como uma
maneira de impedir futuras provocações soviéticas. A URSS, no entanto, interpretou as ações chinesas
como um acirramento do antagonismo entre as duas nações que já vinha aumentando nos últimos anos.

1 Graduanda em História pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
(FFLCH-USP). Contato: [email protected]

14
SANTANA DOS SANTOS, I. Guerra Sino-Soviética de 1969, pp. 14-23.

Após os enfrentamentos, a União Soviética adotou uma estratégia de diplomacia coercitiva em


relação à China, assim sugeriu que poderia usar armas nucleares nos conflitos, especialmente para atingir
instalações nucleares chinesas que estavam em construção. Inicialmente, a China não deu credibilidade às
ameaças nucleares de Moscou, por isso não respondeu as primeiras propostas para realizar negociações.
A percepção de Pequim quanto às ameaças soviéticas mudou drasticamente no verão de 1969, quando
o governo soviético anunciou na imprensa que estava aproximando-se de outros países. A partir desse
momento, Mao Zedong passou a reconhecer a possibilidade de um ataque. Sendo assim, nota-se que há
uma influência da diplomacia e das relações internacionais na condução das negociações dessa guerra, pois
os acordos traçados no plano internacional são relevantes para a mudança de posicionamento da China.
A partir da breve contextualização feita acima, esse artigo buscará analisar os fatores políticos
internos à China Maoista que influenciaram no confronto sino-soviético, como a Revolução Cultural
Chinesa, a luta de Mao Zedong contra o revisionismo de Nikita Khruschev, dentre outros. Apesar disso,
não se pode ignorar que as questões políticas externas, como as disputas territoriais e as divergências
entre a China e a URSS, interferiram de alguma maneira na Guerra Sino-Soviética. Portanto, serão
estabelecidas relações entre os conflitos internos e externos. Além disso, essa apresentação pretende
contribuir para o preenchimento de uma demanda no Brasil, onde há uma grande carência nos
estudos sobre a história da política externa da China durante o regime de Mao Zedong (1949-1976).

Acordos e Tratados sino-russos e sino-soviéticos


Diversos tratados de cooperação foram estabelecidos entre a China e a URSS até meados da década
de 1950. Após a morte de Stálin em 1953, o político Nikita Khruschev buscou o apoio chinês para firmar uma
posição de liderança no governo soviético. Entretanto, a partir da consolidação de Khruschev como dirigente
da União Soviética em 1958, surgiram desentendimentos entre os dois países. A situação piorou quando,
além de apoiar a Índia em um conflito sino-indiano, Moscou negou uma ajuda nuclear a Pequim em 1959.
As tensões aumentaram em 1964, ano em que, segundo o historiador Yang Kuisong2, os
líderes chineses temiam invasões soviéticas e americanas por conta da Guerra do Vietnã. Além
disso, a invasão da Checoslováquia pela URSS foi um fator determinante para a deterioração
das relações sino-soviéticas, pois os dirigentes do Partido Comunista Chinês alimentaram ainda
mais o receio de uma invasão de Moscou. Dessa maneira, China e URSS intensificaram suas

2 Bacharel pela Renmin University, ocupa o cargo de professor na East China Normal University e na Peking Uni-
versity.

15
Zi Yue: revista de graduação de estudos sinológicos. São Paulo: Portal de Revistas da USP, v. 1, n. 1, 2020.

divergências que culminaram no conflito armado nas fronteiras na região da ilha Zhenbao em 19693.
A China possui um vasto território e fronteiras com diversos outros Estados. Dessa forma, nota-se que
o país está inserido em vários conflitos territoriais que influenciam e são intensamente influenciados por fatores
políticos. O estudioso Michael S. Gerson4 argumenta em seu texto que, por muitos anos, a Rússia expandiu
suas fronteiras forçando a adesão chinesa a tratados desiguais5, conceito definido por Lissitzyn e Pugh como:

[treaties that] constrain one party’s exercise of sovereignty in foreign affairs; unreasonably in-
terfere with domestic jurisdiction; depend on the legislative actions of one party; do not create
reciprocal rights and obligations between the parties; and require unequal commitments from the
parties.6 (LISSITZYN; PUGH, 1969, p. 334 apud FINKELSTEIN, 1969, p. 454).

Vários acordos feitos entre China e Rússia por questões territoriais foram considerados
“tratados desiguais”. Por exemplo, no tratado de Nerchinsk, assinado em 1689, o governo chinês
foi coagido pelo Tzar, cedendo 93 mil milhas quadradas para a Rússia. Esse acordo colocou fim a
diversos conflitos entre os dois países na região da Manchúria. O tratado de Kiakhta de 1727, apesar
de não ser considerado um tratado desigual, pois ambos os países assumiram grande número de
compromissos, falhou na delimitação da fronteira oeste entre China e Rússia. O tratado de Aigun
(1859) ocorreu em um contexto de pressão das tropas militares russas sobre a China. Dessa forma,
o Estado chinês cedeu territórios na fronteira na região do rio Amur. O tratado de Pequim (1860) foi
assinado entre a China, a França, a Inglaterra e a Rússia. Esse acordo ratificou as decisões do tratado
de Aigun, fazendo com que a China não conseguisse recuperar os territórios na região do rio Amur.
Dessa maneira, segundo Gerson, o governo chinês preocupava-se com a segurança de
suas fronteiras que eram ameaçadas pelo expansionismo russo, isso gerou tensões nas regiões
fronteiriças entre China e União Soviética e alimentou a rivalidade entre os dois países7. Portanto, os
atritos por questões territoriais são fatores importantes para compreender a ruptura sino-soviética.

3 YANG, Kuisong, . The Sino-Soviet Border Clash of 1969: From Zhenbao Island to Sino-American Rapprochement.
Cold War History, Londres, Frank Cass,v.. 1, n. 1, 2000, p. 21-52.
4 Bacharel em História pela Universidade do Texas, mestre em Relações Internacionais pela Universidade de Chicago
e um dos principais analistas do CNA (Center for Naval Analyses), agência estadunidense que, dentre suas atividades, estuda
políticas militares e de segurança.
5 GERSON, Michael S.. The Sino-Soviet Border Conflict: Deterrence, Escalation, and the Threat of Nuclear War in
1969. Center for Naval Analyses (CNA), Arlington, 2010, p. 10.
6 LISSITZYN; PUGH, 1969, p. 334 apud FINKELSTEIN, 1969, p. 454.
7 GERSON, Michael S.. The Sino-Soviet Border Conflict: Deterrence, Escalation, and the Threat of Nuclear War in
1969. Center for Naval Analyses(CNA), Arlington, 2010, p. 23-27.

16
SANTANA DOS SANTOS, I. Guerra Sino-Soviética de 1969, pp. 14-23.

As divergências entre China e União Soviética


As divergências ideológicas e culturais entre China e URSS também influíram no conflito.
Em relação a essa questão, é importante ressaltar que Gerson parte de documentos e indícios mais
recentes que apontam que a China foi quem iniciou a guerra em 2 de Março de 1969 na fronteira
da ilha Zhenbao como uma forma de mostrar para a URSS que encontraria ampla resistência
caso invadisse seu país8. Entretanto, as diferenças culturais entre os dois Estados fizeram com
que a Rússia entendesse esse evento como um aumento do antagonismo e das hostilidades entre
as nações comunistas. Dessa maneira, a União Soviética adotou uma política cada vez mais
coercitiva em relação a China e outros confrontos ocorreram na fronteira nesse mesmo ano.
Outro ponto a ser destacado são as diferenças entre as estratégias militares utilizadas por
ambos os países. Michael Gerson afirma que, enquanto a União Soviética conduziu à fronteira maior
número de armas e poder nuclear, a China usou um grande contingente humano (tropas)9. Pode-se
perceber que as distintas táticas aplicadas estão atreladas ao desequilíbrio bélico entre os dois Estados.

Soviet forces, by contrast, were motorized, and possessed superior artillery as


well as large numbers of tanks, armored personnel carriers (APCs), airplanes,
and helicopters. Thus, China’s superiority in troop numbers was balanced
by Soviet superiority in equipment and weapons.10 (GERSON, 2010, p.17)


Ademais, observa-se que a “desestalinização”, medida adotada por Nikita Khruschev
que buscava minimizar a herança stalinista na URSS combatendo o culto a personalidade de
Stálin, foi recebida pelos dirigentes do Partido Comunista Chinês de forma muito negativa.
Além disso, a coexistência pacífica, política implementada por Khruschev que defendia que
países socialistas podiam conviver com países capitalistas, permitiu uma reaproximação entre a
URSS e os EUA. Neste contexto, Mao Zedong começou a acusar Khruschev de “revisionista”,
ou seja, Mao acreditava que a URSS estava abandonando as premissas do Marxismo.

Michael Gerson, assim como o cientista político Taylor Fravel11, mostra que os
confrontos entre os dois países não envolviam apenas as disputas por território, mas também

manifestavam as divergências ideológicas apresentadas acima. Afinal, a ilha Zhenbao não

8 Ibidem, p. 24.
9 Ibidem, p. 16-18.
10 GERSON, Michael S.. The Sino-Soviet Border Conflict: Deterrence, Escalation, and the Threat of Nuclear War in
1969. Center for Naval Analyses, 2010, p. 17.
11 Graduado em Ciência Política pela Middlebury College e doutor pela Universidade de Stanford.

17
Zi Yue: revista de graduação de estudos sinológicos. São Paulo: Portal de Revistas da USP, v. 1, n. 1, 2020.

possuía importância estratégica ou econômica, sua relevância era simbólica. “Zhenbao Island,

after all, is a small, uninhabited, strategically meaningless island that is often submerged at

high-water. At best, the island is useful for logging and for fisherman to dry their nets.”12

As agitações dentro da China

Yang Kuisong argumenta acerca do medo que pairava, em 1969, sobre o governo chinês. As

preocupações dos líderes da China estavam relacionadas às agitações internas ligadas à Revolução

Cultural, período em que Mao Zedong buscou afastar a China do modelo soviético de comunismo, o

que gerou intensas disputas políticas dentro do Partido Comunista Chinês e conturbações sociais.

Nota-se que Estados que enfrentam problemas internos, muitas vezes, utilizam a política externa

combinada à repressão interna para garantir a estabilidade de seu governo dentro desses países. Pode-se

observar, por exemplo, que o Partido Comunista combateu intensamente os conflitos instaurados a partir

da Revolução Cultural. Mao Zedong também iniciou estratégias relativas às relações internacionais para

manter a segurança nacional, é dentro desse contexto que ocorre a reaproximação entre EUA e China.

Yang aponta que a aliança aos Estados Unidos foi uma estratégia para combater, primeiramente, o oponente

considerado mais ameaçador, a União Soviética. Segundo o analista, a China enxergava no estreitamento

das relações com os EUA uma forma de pressionar Moscou a seu favor no conflito sino-soviético. 13

Taylor Fravel argumenta que os chefes de Estado tendem a cooperar internacionalmente

para manter a estabilidade política em seus governos. Dessa forma, a concessão de territórios é

uma das ferramentas usadas para fazer alianças com os países vizinhos e conseguir apoio para

reprimir os conflitos internos.14 Na China, por exemplo, a maior parte das disputas territoriais foram

nas fronteiras, regiões em que há grande quantidade de minorias étnicas e o regime encontrava-se

enfraquecido, e um elevado número de concessões foi realizado. A tabela a seguir ilustra essa questão:

12 Ibidem, p. 10.
13 YANG, Kuisong. The Sino-Soviet Border Clash of 1969: From Zhenbao Island to Sino-American Rapprochement.
Cold War History, Londres, Frank Cass, v.. 1, n. 1, 2000, p. 31-34.
14 FRAVEL, M. Taylor. Regime Insecurity and International Cooperation: Explaining China’s Compromises in
Territorial Disputes. International Security, Cambridge, v.. 30, n. 2, 2005, p. 51-55.

18
SANTANA DOS SANTOS, I. Guerra Sino-Soviética de 1969, pp. 14-23.

Disputas Territoriais Chinesas, 1949-2005 (FRAVEL, 2010, p.56-57)


Área disputada Km² Negociações Disputas no território Descrição dos acordos
interno estabelecidos
Hong Kong 1.042 1982-84 1984: JD Território retornou para a
China.
Macao 25 1986-87 1987: JD Território retornou para a
China.
Taiwan 32.260 -- -- Disputa permanece ativa.
Área disputada Km² Negociações Disputas na fronteira Descrição dos acordos
estabelecidos
1956-57 -- Negociações mantiveram-
se após o confronto das
tropas na fronteira.
Fronteira com 1.909 1960 1960: BA China recebeu 18% do
Burma 1960: BT território disputado; Burma
1961: BP recebeu uma rodovia
estratégica, uma mina de
sal, e a principal bacia
hidrográfica na fronteira
norte.
Fronteira com o 2.476* -- 1960: BA China recebeu 6% do
Nepal 1960: BT território disputado e
1963: BP metade do monte Everest;
Nepal ficou com a
maior parte das áreas de
pastagem.
Fronteira com a 125.000 1960 -- China propôs ficar
Índia com 26% do território
disputado; disputa
permanece ativa.
1981-presente 1993: MTA --
1996: CBMs
2005: PriA
Fronteira com a 1.165 1962 1962: BT China recebeu 40% do que
Coreia do Norte 1964: BP foi disputado do lago da
cratera no monte Changbai;
Coreia do Norte ficou com
o que restou.
Fronteira com a 16.808 1962 1962: BT China recebeu 29% do
Mongólia 1964: BP território disputado.
Fronteira com o 8.806** 1962 1962: BT China recebeu 60% do
Paquistão 1964: BP território disputado, mas
transferiu 1.942 km² para o
Paquistão.

19
Zi Yue: revista de graduação de estudos sinológicos. São Paulo: Portal de Revistas da USP, v. 1, n. 1, 2020.

Fronteira com o ~7.381 1963 1963: BT China não recebeu nenhuma


Afeganistão 1965: BP parte do território disputado
do corredor de Wakhan.
~1.000 1964 -- Consenso alcançado para
dividir as ilhas igualmente
de acordo com o princípio
de Thalweg.
1969-78 -- --
Fronteira com a 1987-91 1991: BA China recebeu 52% das
Rússia (orien- 1999: BP ilhas do rio; outras áreas
tal)*** foram divididas igualmente.
Fronteira com o 1.128 1984-presente 1998: MTA China propôs ficar,
Butão oficialmente, com 24%
do território disputado; a
disputa permanece ativa.
Fronteira com o 18 1990-91 1991: BT China recebeu,
Laos 1993: BP oficialmente, 50% do
território disputado.
Fronteira com o 227 1997 -- --
Vietnã 1992-99 1993: PriA China recebeu 50% do
1999: BT território disputado.
Fronteira com a Sem dados 1992-94 1994: BA Acordo afirmou a real linha
Rússia (ociden- 1999: BP de controle.
tal)***’
Fronteira do Ca- 2.420 1992-98 1994: BA China recebeu
zaquistão*** 1997: SA aproximadamente 22% do
1998: SA território disputado.
2002: BP
Fronteira com o 3.656 1992-99 1996: BA China recebeu
Quirguistão*** 1998: SA aproximadamente 32% do
2004: BP território disputado.
Fronteira com o 28.430 1992-2002 1999: BA China recebeu 4% do
Tajiquistão*** 2002: SA território disputado em
Pamir; outros setores foram
divididos igualmente.
Ilhas estratégi- 408 1964 -- --
cas na fronteira 1990-2004 2004: SA O Controle das ilhas
com a Rús- Abagaitu e Hexiazi foi
sia*** dividido igualmente.
Área disputada Km² Negociações Disputas em ilhas no Descrição dos acordos
alto-mar estabelecidos
~5 Sem acordo formal A ilha foi transferida para o
Ilha Cauda do 1957 Vietnã do Norte.
Dragão Branco

20
SANTANA DOS SANTOS, I. Guerra Sino-Soviética de 1969, pp. 14-23.

Ilhas Paracel ~10 -- -- Disputa permanece ativa.


Ilhas Spratly ~5 -- -- Disputa permanece ativa.
Ilhas Senkaku ~7 -- -- Disputa permanece ativa.
NOTAS: BA (acordo de fronteira), BP (protocolo de fronteira), BT (tratado de fronteira), CBMs
(medida de construção de confiança), MTA (acordo de manutenção de paz), JD (declaração conjunta),
PriA (acordo de princípios), e SA (acordo suplementar).
*Dado exclui a disputa pelo monte Everest; **Dado exclui a disputa pelo K2; *** Território também
disputado com a União Soviética.
Fonte: Traduzido de Regime Insecurity and International Cooperation 15

Entretanto, verifica-se que, apesar das tentativas de negociação, os conflitos sino-soviéticos não foram

resolvidos diplomaticamente, e isso gerou uma guerra que usou amplamente as forças militares dos dois países.

Embora houvesse influência das disputas territoriais e das divergências ideológicas e culturais no conflito

sino-soviético, os fatores políticos internos são as motivações mais significativas. A posição de Mao Zedong

contra o revisionismo soviético não favorecia uma aproximação com a URSS, pois poderia desestabilizar sua

liderança dentro do Partido Comunista apoiada pela ala mais radical. Além disso, a China enfrentou grande

instabilidade durante a Revolução Cultural e a criação de um inimigo externo foi útil para alimentar um discurso

de unidade nacional, agregando as regiões de fronteira em que o governo não era aceito pelas minorias étnicas.

Os líderes do Partido Comunista Chinês, por exemplo, afirmavam que, além do

elevado número de soldados, os chineses possuíam uma grande integridade moral que os faria

vencer a guerra. Ou seja, observa-se como o confronto foi usado para unificar os chineses

através de uma característica, a superioridade do seu caráter, como mostra o excerto abaixo:

Chinese statements in the 1960s continued these themes. In 1966, the Liberation Army News
declared that China ‘cannot rely purely on weapons, equipment, and techniques’ in its military
strategy. ‘The most important factor,’ the article contended, ‘is man’s courage, consciousness,
spirit of sacrifice, and ability to withstand tough tests.’ Such attributes create a ‘moral atom
bomb’ that can be used to ‘defeat strong enemies at home and abroad.’16 (GERSON, 2010, p.18)


Ao que se refere a dissuasão da guerra, as armas nucleares tiveram pouca influência sobre a decisão
da China de atacar os soviéticos em 2 de março e manter as tensões posteriormente. Este caso indica
que podem haver desentendimentos e confrontos entre países que possuem arsenais nucleares sem que

15 FRAVEL, M. Taylor. Regime Insecurity and International Cooperation: Explaining China’s Compromises in Territo-
rial Disputes. International Security, Cambridge, v.. 30, n. 2, 2005, p. 56-57.
16 GERSON, Michael S.. The Sino-Soviet Border Conflict: Deterrence, Escalation, and the Threat of Nuclear War in
1969. Center for Naval Analyses (CNA), Arlington, 2010, p.18.

21
Zi Yue: revista de graduação de estudos sinológicos. São Paulo: Portal de Revistas da USP, v. 1, n. 1, 2020.

o equilíbrio nuclear seja levado em conta. Portanto, a política internacional teve um papel central para
a resolução do conflito sino-soviético. No início da década de 1960, a China não dava credibilidade às
ameaças nucleares soviéticas, mas a aproximação da URSS a outros países fez com que Pequim começasse
a reconhecer a possibilidade de um ataque e aceitasse as negociações, assim como apresenta o trecho:

As this study has shown, Beijing’s perception of the credibility of Soviet nuclear threats chan-
ged when Chinese leaders learned that Moscow had been approaching foreign governments.
This shift suggests that diplomatic overtures, as well as more traditional military posturing, can
affect an opponent’s perception of threat credibility. Overtures to foreign governments appear
to add a new dimension of credibility, since an adversary is likely to reason that a state would
not raise such issues with others if it were not committed to carrying out its threats. (Ibidem, p.
59.)

Ademais, Gerson afirma que as experiências nucleares menores, às vezes, podem ser
mais relevantes do que a Guerra Fria no que diz respeito a implementação de políticas relativas
aos desafios nucleares.17 O conflito entre China e URSS, nessa perspectiva, é importante, pois
envolveu Estados com poderes nucleares assimétricos, além de culturas e estratég ias muito distintas.

Considerações Finais
Por meio das análises realizadas, é possível inferir a grande relevância que a política interna de um
país, especificamente da China, possui sobre as relações que serão estabelecidas com outras nações e como
as alianças ou contendas externas impactam sobre a política doméstica, o que revela uma certa dialética.
O conflito sino-soviético, a reaproximação chinesa com os EUA e as repressões realizadas pelo governo
chinês por conta das agitações causadas pela Revolução Cultural, ilustram que Mao Zedong e os outros
líderes do Partido Comunista Chinês buscaram traçar estratégias, ligadas tanto às relações internacionais
quanto às questões internas, que favorecessem a manutenção do poder que possuíam sobre a China.
Por fim, nota-se que havia uma gama de fatores que influenciaram a ruptura entre China e URSS
nos anos 1960, tais como, disputas territoriais, divergências ideológicas e culturais, dentre outros.
Porém, verificou-se que os motivos políticos de ordem interna contribuíram de forma predominante
para o confronto sino-soviético, as tensões internas acumuladas pela Revolução Cultural e a posição
política assumida por Mao Zedong dentro do Partido Comunista Chinês foram centrais para que
os conflitos não fossem resolvidos através da diplomacia e culminassem em uma guerra em 1969.

17 Ibidem, p. 53.

22
SANTANA DOS SANTOS, I. Guerra Sino-Soviética de 1969, pp. 14-23.

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23
Zi Yue: revista de graduação de estudos sinológicos. São Paulo: Portal de Revistas da USP, v. 1, n. 1, 2020.

A FILOSOFIA CHINESA PUBLICADA NO BRASIL NOS SÉCULOS XX E XXI

John Breno Rodrigues de Sousa1

RESUMO
O presente texto se propõe a apresentar um estudo quantitativo das obras de filosofia chinesa publicadas
no Brasil durante os séculos XX e XXI, a partir da realização de uma pesquisa historiográfica, com ênfase
em autores como Confúcio, Sunzi e Laozi. Para a elaboração do estudo, utilizou-se uma catalogação das
publicações de filosofia chinesa feita no decorrer de um ano em um projeto de Iniciação Científica. A
pesquisa se deu por meio dos bancos de dados das bibliotecas e acervos públicos e privados, tal catalogação
partiu da metodologia de D’Hulst (2001) que procura, tendo em vista o trabalho de tradução, responder às
seguintes questões: “Quem? O quê? Onde? Quem ajuda? Por quê? De que forma? Quando? Para quem?”.
Foram encontradas duzentas e vinte e cinco (225) publicações no período citado: um trabalho realizado por
cento e quatorze (114) casas editoriais e se verificou que a frequência das publicações seguiu as tendências
do mercado editorial brasileiro. O artigo divide-se em três seções principais, a primeira seção, intitulada
“A filosofia chinesa”, subdivide-se em outras cinco subseções: em “os três ensinamentos”, explica-se o
conceito que norteou o escopo da pesquisa; a seguir, apresenta-se “uma breve contextualização da História
chinesa”, a qual é preservada e exaltada pelos filósofos chineses; em seguida, serão fornecidas breves
introduções sobre a biografia dos autores citados, suas principais ideias e objetivos, tal como o contexto de
sua produção. A partir desse ponto, a segunda seção do artigo descreverá o início “[d]a ponte tradutológica
entre a China e o ocidente”, portanto, se trata da História da tradução dos cânones chineses; e, por fim, será
apresentado os dados do catálogo de obras de “filosofia chinesa publicadas no Brasil nos séculos XX e XXI”.
PALAVRAS-CHAVE: Filosofia Chinesa; Confucionismo; Taoismo; A Arte da Guerra; Editoração Brasileira

1 Bacharel em Letras com habilitação português-chinês pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH)
da Universidade de São Paulo (USP). O presente artigo foi fruto de um trabalho de Iniciação Científica desenvolvido no
Departamento de Jornalismo e Editoração da Escola de Comunicações e Artes da USP sob orientação do prof. Dr. Thiago Mio Salla.
E-mail para contato: [email protected]

24
SOUSA, J. A filosofia chinesa publicada no Brasil nos séculos XX e XXI , pp. 24-41.

1.A filosofia chinesa


1.1 Os três ensinamentos
O tema da atual pesquisa, “A filosofia chinesa publicada no Brasil nos séculos XX e XXI”,
enfrenta, primeiramente, uma problemática metodológica: qual o alcance do termo “filosofia”, sendo
que há uma “tendência prevalente na China antiga, de tornar indistintas as linhas de demarcação
entre política, ética e religião” (POCESKI, 2013, p. 84)? Inclusive em termos contemporâneos
ocidentais a linha de distinção entre filosofia e religião é tênue e gera uma extensa bibliografia.
Dessa forma, quando se observa a sociedade chinesa, na qual as concepções dos limites entre as
duas áreas muitas vezes se confundem, torna-se essencial, antes de tudo, que se entenda essa relação.
Se se pesquisar sobre publicações de filosofia chinesa nos bancos de dados bibliográficos,
não é raro encontrar títulos que tratam sobre religiões. Isso ocorre porque as tradições milenares da
China, embora originalmente fossem ideias de como organizar o indivíduo na sociedade, no decorrer
da História ganharam leituras religiosas e, por vezes, subtradições. Tal fato gerou um problema
metodológico para a pesquisa: o que deve ser entendido, aqui, como filosofia chinesa nessa pesquisa?
Qual a intersecção entre religião e filosofia no que toca à China antiga? Quais “obras de religião”
devem ser observadas, quais não e por quê? Não é o foco, porém, realizar uma discussão profunda
sobre os conceitos de filosofia e religião, mas uma dissertação histórica, sobre a compreensão chinesa
de suas tradições de pensamento, para fins metodológicos. Com isso em vista, pode-se iniciar uma
pequena dissertação sobre o principal objeto de estudo do presente trabalho, isto é, o pensamento chinês.
A China possui três tradições dominantes, que influenciaram suas crenças e valores e que se
sustentaram até os dias atuais. Essas tradições são denominadas pelos chineses como os “três ensinamentos”,
“três tradições” ou “três religiões” (traduções possíveis para o vocábulo chinês), termo que engloba o
budismo, confucionismo2 e taoismo, sendo que cada uma delas tem uma história longa e importante na
China e interage com as outras duas tradições. A partir dessa interação entre as tradições, não havia uma
delimitação conceitual de “filosofia”, “religião”, “ética” e “política”. Havia os “três ensinamentos”, e eles,
com base na História e rituais tradicionais chineses, influenciavam esses diversos aspectos do cotidiano.

2 Agradeço a Amilton Reis que me alertou de que “Apesar de registrar ‘confucionismo’, os dicionários dão
preferência a confucianismo, que deriva do adjetivo ‘confuciano’, pelo mesmo processo regular observado em Lutero
> luterano > luteranismo; nas formas derivadas do nome, como Mao > maoísmo e Tao > taoismo, o sufixo -ismo
liga-se diretamente à raiz; o -n- intercalado em ‘confucionismo’ não tem, portanto, justificativa do ponto de vista
morfológico.” Entretanto, por considerar que o termo “confucionismo” tem uma forte consolidação na língua portuguesa
e é o termo encontrado nas bases de dados e nas obras pesquisadas, optou-se, neste artigo, pelo uso deste termo.

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Zi Yue: revista de graduação de estudos sinológicos. São Paulo: Portal de Revistas da USP, v. 1, n. 1, 2020.

A expressão san-jiao(三教) é entendida por alguns dos modernos estudiosos chineses como
“três religiões”, embora a maioria deles interprete como “três ensinamentos” ou “três tradições”.
Sob a ótica dos pilares do saber/cultura da China, podemos considerá-los como ensinamentos
filosóficos e religiosos. [...] Durante sua longa história, cada um dos três ensinamentos
filosóficos e religiosos desenvolveu sofisticados sistemas de doutrinas, cânones de escritos
sagrados, injunções morais sobre conduta cotidiana, instituições distintas e uma diversidade
de cerimônias e práticas rituais. Além disso, nos casos do budismo e do taoismo, encontramos
ordens monásticas bem desenvolvidas abertas a homens e mulheres (POCESKI, 2013, p. 8).

No que se refere às publicações sobre o pensamento chinês no Brasil, a maioria delas tratam desses
“três ensinamentos” (desde traduções e comentários até releituras ou projetos inspirados nos cânones dessas
tradições). E, por isso, o conceito de “três ensinamentos” foi utilizado, neste trabalho, para definir o escopo
de filosofia chinesa, quando houve dúvida se se tratava de uma obra filosófica ou religiosa. E.g., durante a
catalogação foram encontradas obras que pareciam de ter um conteúdo espiritualista, no entanto o tema era o
taoismo. Em virtude do taoismo ser uma tradição que compõe um dos “três ensinamentos”, e estes tenderem a
mesclar, o que o ocidente contemporâneo chama de religião e filosofia, aquelas obras foram aceitas no catálogo.
Entretanto, deve-se pontuar que apesar de o budismo pertencer aos “três ensinamentos”, trata-se de
uma tradição de origem não-chinesa (vinda da Índia). E a catalogação das obras desse segmento exigiria outra
metodologia para diferenciar o “conteúdo religioso” do “conteúdo filosófico”, pois as produções referentes
ao budismo tendem a não apenas ser de caráter religioso, como também possuem uma quantidade alta de
publicações, o que requisitaria um tempo mais longo de pesquisa e isso dificultaria muito essa primeira fase.
Posto isso, no catálogo registrou-se as obras que compõem os “três ensinamentos”, aquelas que
tratavam do confucionismo e do taoismo, excluindo o budismo. Contudo, adicionou-se ao catálogo a obra A
arte da guerra, de Sunzi, por ela ter uma presença forte no mercado editorial brasileiro, como será mostrado,
e seu autor pertence ao mesmo período de Confúcio e Laozi, fundadores das duas tradições selecionadas.
Enfatiza-se ainda que na concepção chinesa, na qual os “três ensinamentos” são concomitantes e
complementares, o confucionismo serve, principalmente, para reger a ordem externa de relações entre os
homens, enquanto o taoismo e o budismo servem, sobretudo, para a ordem interna, a espiritual. É um fato
que mesmo sendo uma concepção filosófica, o confucionismo ganhou um status religioso e de filosofia
de Estado, e o taoismo foi dividido desde cedo em duas vertentes: o taoismo filosófico e o religioso.

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SOUSA, J. A filosofia chinesa publicada no Brasil nos séculos XX e XXI , pp. 24-41.

1.2 Breve contextualização da História chinesa


Graças ao fato de a História da China ser preservada por suas tradições cabe aqui uma pequena
contextualização. Chang (2007) disserta sobre a História da China antiga que passa pela Cosmogonia
(o mito da criação), os heróis e os reis lendários (os Três Soberanos e os Cinco Imperadores): O mito
de criação do “País do Meio”3 conta que o mundo era um ovo opaco, e Pángǔ (盘古) nasceu dentro
dele; por dezoito mil anos este ovo foi chocado com o Yīn (阴), Yáng (阳) e Pángǔ dentro dele, até que
ele se choca: do Yáng, a parte clara, surge o Céu; do Yīn, a parte escura, nasce a Terra. Todos os dias
Pángǔ se tornava mais alto, o Céu ia mais para o alto, e a Terra mais para baixo. Quando Pángǔ morreu

a sua respiração se tornou os ventos e as nuvens; sua voz, o trovão; seu olho esquerdo, o
sol; seu olho direito, a lua; de seus quatro membros e cinco torsos, os quatro polos e as
cinco montanhas; seu sangue, os rios; seus tendões, as características geográficas; seus
músculos, os solos no campo; seu cabelo e barba, estrelas e planetas; sua pele e pelos,
a grama e as árvores; seus dentes e ossos, bronzes e jades; sua essência e medula, pérolas e
joias; seu suor, a chuva e os lagos; e os vários vermes e seu corpo, tocados pelo vento,
se tornaram os plebeus de cabelos pretos. (Ma Su, s.d., apud CHANG, 2007, p. 66-67).

Depois do mito da criação, a cultura chinesa conta com os heróis dos quais, segundo Chang (2007),
destacam-se Suìrén ( 燧人), inventor do fogo; Fúxī (伏羲), inventor do ritual de casamento e da caça; e
Shénnóng (神农), inventor da agricultura e da medicina. Quanto a Fúxī, ele foi o criador de um “sistema de
desenho místico” (CHANG, 1962, p. 2.), conhecido como os oito trigramas (八卦, bāguà), tais trigramas
são significativos, de acordo com Chang (1962, p.2), não só por ser uma forma ancestral de chinês escrito
(ainda não pictográfica), mas também por englobar um pensamento filosófico singular. A edição do Livro das
Mutações4 (易经, Yìjīng), com reunião dos trigramas, será atribuída a Confúcio. Suìrén, Fúxī e Shénnóng
são tão importantes que eles recebem o título de Sān Huáng (三皇 , “os Três Soberanos”) na História chinesa.
Após os Três Soberanos e as suas invenções que marcam a história humana (na China),
Chang (2007) conta a história dos Cinco Imperadores (五帝, Wǔ Dì) e as marcas das instituições
na China: o primeiro foi o Imperador Amarelo a quem é creditada a instituição de regras, calendários
sofisticados e a escrita; o segundo imperador foi Zhuan Xu a quem é associada a separação do Céu e
da Terra, assim o céu se tornou inacessível à maioria que não poderia contratar um “curandeiro
tribal”, marcando estratificação social e os mecanismos de acumulação da riqueza; e os últimos
três imperadores são Yao, Shun e Yu, segundo a lenda, eles se tornaram imperadores não por
3 “País do Meio” [em mandarim 中国 (Zhōngguó)] é tradução literal do nome da China.
4 No Brasil, o título mais comum é I ching.

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Zi Yue: revista de graduação de estudos sinológicos. São Paulo: Portal de Revistas da USP, v. 1, n. 1, 2020.

hereditariedade, mas por suas virtudes, por isso serão exaltados por filósofos como Confúcio.
A história dinástica na China antiga começa com as chamadas “três dinastias”: Xia, Shang e Zhou.
Este último período é marcado por uma confederação frágil de clãs que apoiavam um rei. A dinastia Zhou
(1122-256 AEC) terá uma importância especial, pois foi neste período que viveram personalidades como
Confúcio, Laozi e Sunzi. Ela foi responsável por criar uma estabilidade política de longa duração e que seria
saudada como a grande era da Antiguidade a ser copiada, principalmente em relação aos seus primeiros reis.
Segundo Poceski (2013, p.16), os êxitos do início da Dinastia Zhou foi a existência de “governantes
paradigmáticos, que estabeleceram um Estado estável e forte, com uma cultura florescente que, ao longo
dos séculos foi celebrada como um modelo glorioso a ser seguido pelas gerações posteriores de governantes
e autoridades chinesas.” Todavia, com a perda do poder político da Dinastia Zhou e após ser saqueada em
771 AEC, a história da dinastia divide-se em dois períodos: A era da Primavera e Outono e a Era dos
Estados Combatentes; na primeira com a fragmentação do poder político, os estados vassalos buscam
cada vez mais poder, sendo o poder dos Zhou relegados a meras figuras decorativas, com uma autoridade
ritual, mas sem poder real para mediar os conflitos “estaduais”; na segunda, os conflitos ficam ainda mais
violentos e daí deriva seu nome, nessa era os estados já haviam desenvolvido instituições burocráticas
e grandes exércitos. Nesse contexto de conflitos, surgiu um grande avanço econômico e tecnológico,
além ser um período bem rico intelectualmente com a “formação” de várias escolas de pensamento que
buscavam pensar e discutir ações para a crise. Por fim, em 221 AEC, o grande estado de Qin, conhecido
por ser militarista e autoritário, consegue se sair vencedor e reunir a China num estado imperial.
1.3 Confucionismo
O confucionismo remete a Confúcio (551-479AEC), tradução em língua portuguesa do nome
Kǒngfūzǐ (孔夫子), ou “Mestre Kong”, sendo Kong o nome do seu clã. Segundo Sinedino (CONFUCIO,
2012, p.15) o pai de Confúcio era um homem que descendia da nobreza da dinastia Shang, contudo,
devido aos costumes sucessórios, não tinha posses, além de seu status de pessoa livre (garantido
pelo sangue nobre numa era abertamente escravista) e seu acesso à educação. E Confúcio estava nas
mesmas condições que seu pai, tendo que trabalhar como professor particular de Ritos (categoria
que possuirá uma importância inigualável na ideologia confuciana e compreende a um misto de
regras de etiqueta e de leis tradicionais seguidas pela aristocracia). Ele ficou famoso no estado de Lu
onde tinha boas relações com a nobreza, tornando-se um funcionário do duque de Lu, mas teve uma
breve carreira política fracassada por seus ideais legitimistas. Seus ideais se baseavam na legitimidade

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SOUSA, J. A filosofia chinesa publicada no Brasil nos séculos XX e XXI , pp. 24-41.

histórica da autoridade do duque de Lu, e Confúcio pregava contra nobres com títulos inferiores que
exerciam mais poder que um nobre com título superior5 , o que entrou em conflito com aristocratas
do estado de Lu que de fato detinham o poder; por isso Confúcio partiu em exílio semivoluntário
procurando serviço nas cortes dos estados vizinhos. Lembrando que nessa época (Era da Primavera e
Outono da dinastia Zhou), a China passava por rápidas transformações e uma situação de guerra civil.
Confúcio morreu como um homem respeitado, deixando um legado de muitos discípulos, mas não
viu em vida seu ideal ser posto em prática: ele acreditava que os homens capazes não deveriam assumir
o governo6 , mas deveriam se colocar à disposição das instituições já existentes, pois um rei cercado por
homens éticos e competentes se tornaria um bom rei, sendo que tais homens capazes deveriam vir de
todas as camadas sociais, que a educação deveria ser de todos, e todos deveriam ter a oportunidade de
alcançar uma posição como funcionário público. Para o filósofo, primeiro seria necessário tentar colocar
os ideais bons de governo em ação, caso não fosse possível, dever-se-iam elaborar obras de referência
para os “homens nobres futuros”. De acordo com Poceski (2013, p. 52), “O objetivo principal de Confúcio
era restabelecer o ‘caminho eterno’ (Tao), que foi revelado e seguido pelos antigos sábios, os quais
reproduziam as normas e desígnios do Céu e traziam a harmonia perfeita entre Céu e a humanidade.”
Para Confúcio, a criação da sociedade boa e harmoniosa tratava da codificação de costumes
e práticas comuns, uma sociedade já caminharia melhor se o filho servisse ao pai; a mulher servisse
ao marido, e o súdito servisse ao soberano, sendo que a outra parte deveria retribuir a servidão com
benevolência. Tal ideia denominada de piedade filial seria correspondente a “dar ao outro o que
é do outro”, por exemplo, o pai deveria dar ao filho aquilo que é do filho: alimentação, vestuário,
educação; e o filho por sua vez deveria retribuir ao pai aquilo que é do pai: respeito e obediência.
Por fim, é preciso esclarecer que o confucionismo se tornou uma “filosofia de estado” duas
dinastias depois da Zhou, na chamada dinastia Han (206 AEC- 220 EC14), a “Escola dos Eruditos”7
ganha um status privilegiado passando a ser o estudo obrigatório nas escolas e o conteúdo das provas para
concursos públicos até a dinastia Qing (1644-1911). Weber (2006, p. 171) afirma não existir na China uma

5 Observa-se que na época a China era uma “confederação” de clãs reunidos sob uma autoridade central (a daquele
rei que fala com o Céu), mas a influência do rei enfraqueceu e em todos os estratos sociais houve disputas internas para
conquistar mais poder. Talvez tal situação possa ser melhor compreendida se comparada com o Feudalismo europeu, no qual
havia um rei e vassalos, imagine-se que a influência do rei tenha diminuído e que os vassalos começaram a guerrear entre
si, um vassalo tomando território do outro vassalo. Ressalta-se ainda que Confúcio acreditava que as pessoas comuns, por
mérito, poderiam subir de status, mas que dever-se-ia respeitar a legitimidade daqueles que estavam em cargos superiores.
6 Novamente, salienta-se que tal princípio confuciano se baseia na legitimidade, os reis
possuiriam a legitimidade de estar em tais cargos, tentar tirar os reis de seus cargos seria um “golpe”,
todavia os reis poderiam perder a legitimidade de governar e, assim, poderiam ser substituídos.
7 Nome dado em chinês para a escola de pensamento confuciana.

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Zi Yue: revista de graduação de estudos sinológicos. São Paulo: Portal de Revistas da USP, v. 1, n. 1, 2020.

intelectualidade independente, sem a chancela do Estado, que consiga se opor à cultura confucionista,
logo o confucionismo na China era a ética do “homem distinto”. Confúcio tinha um conhecimento muito
profundo das obras chinesas e deixou um legado de obras que, depois da chancela dele, o estado tornou
obrigatórias em concursos públicos, assim “os cinco clássicos confucianos” são: o livro das canções
(Shijing), uma antologia de versos da fase inicial da Dinastia Zhou durante os períodos primavera e
Outono; o livro das mutações (Yijing), um manual de adivinhação desde a Dinastia Zhou, com acréscimos
da Dinastia Han; o Livro dos Documentos (Shujing), uma coleção cronológica de discursos, proclamações
e histórias acerca de antigos governantes dos períodos pré-Zhou e Zhou; os Anais de Primavera e Outono
(Chunqiu), uma crônica do estado de Lu até a época de Confúcio; e os Três [textos sobre] Rituais (Sanli),
discussões sobre rituais tradicionais e instituições governamentais, dos períodos dos Estados Combatentes
e Han. Observa-se ainda a existência do Livro da Música (Yueling), o qual em certo momento foi
conhecido como o sexto clássico, porém foi perdido antes do período Han (POCESKI, 2013, p. 47).
Na Idade Média, foram adicionadas aos cânones confucianos obras que não foram escritas ou editadas
por Confúcio, mas que tratavam sobre o seu pensamento, tais obras são denominadas os Quatro Livros,
Sìshū (四书): “Os analectos de Confúcio”, “Mêncio”, “Grande Conhecimento” e “Doutrina no Meio”.
1.4 Taoismo
Ao lado do confucionismo, o segundo ensinamento que influenciou o pensamento chinês
por milênios foi o taoismo, termo que deriva de Tao (道, dào8)e significa “Caminho” ou “Curso”
(POCESKI, 2013, p.76), mais especificamente dentre os seus significados inclui-se “a força impessoal
criativa do universo que é perpétua e gera o ying e yang, a partir do que emergem as miríades das
coisas”. Observa-se que o Tao possui acepções diferentes a depender da tradição em que se insere e,
no contexto confuciano, se baseava nos padrões adequados de comportamento humano, como os
rituais e as ações do cotidiano, para que se sigam os desígnios do Céu; é um termo tão importante
que também está presente no vocabulário budista. Poceski (2013, p. 77) compara que “o domínio
fundamental do taoismo é o mundo da natureza, que engloba outras dimensões sobrenaturais ou
transcendentais, em contraste com o principal objetivo do confucionismo, que era o contexto social”.
Quando academicamente tentou-se estudar o taoismo, percebeu-se a diferença entre o taoismo dos
mestres, ou o taoismo “filosófico”, um taoismo primitivo dos textos literários de Laozi e Zhuangzi, e um
taoismo “religioso” posterior. Apesar da importância de Zhuangzi, Lǎozǐ (老子), autor de Dàodéjīng
(道德经), é visto como o fundador e o principal nome do taoismo. Laozi compartilha com Confúcio o fato
8 Pronúncia oficial em pinyin.

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SOUSA, J. A filosofia chinesa publicada no Brasil nos séculos XX e XXI , pp. 24-41.

de ser um shi, um membro da baixa nobreza que não possuía bens econômicos, mas possuía bens culturais
e educacionais. Laozi significa “velho mestre”, mas sua biografia é um pouco questionável. A compilação
mais antiga que apresenta as possíveis biografias de Laozi data da dinastia Han e foi feita por Sima Qian.
Nela, Sima Qian (apud LAOZI, 2016, p. XXXII) cita três pessoas que poderiam ser o Laozi
histórico: um funcionário da biblioteca da corte de Zhou, mais velho que Confúcio, chamado Li
Er; um outro, contemporâneo do Mestre, que compilou ideias taoistas, chamado de Lao Laizi;
e o Cronista-Mor Dan, ativo cerca de um século após a morte do grande intelectual confuciano.
Cada uma das biografias suscita uma característica da obra de Laozi, de acordo com Sinedino
(LAOZI, 2016, p. XXXIII), “em sua narrativa, o Grande Cronista [Sima Qian] fala de Li Er e dos
Ritos; de Lao Laizi e das técnicas de longevidade; e do Cronista-Mor Dan e das técnicas esotéricas”.
Poceski (2013, p. 80) afirma que a obra de Laozi é vista como um clássico de filosofia e religião,
devido a suas fortes conotações místicas. Mas também pode ser lido como uma obra política
(como a obra de Confúcio), um ensaio de estratégia militar, ou guia para atingir a longevidade.
É interessante notar que o taoismo é uma filosofia/ religião baseada em textos/escritos literários,
e acredita-se que divindades celestiais teriam revelado a realidade e os mecanismos do Tao.
Por fim, explica-se que, dentre as principais características, o taoismo é baseado na crença da
wúwéi (无为), ou seja, não-ação, sendo assim o bom governante é aquele que interfere o menos
possível na vida de seus súditos; na crítica a uma sociedade movida por ritos; no incentivo de que as
pessoas se afastem do mundo (lembrando que no confucionismo prega-se que as pessoas vivam em
sociedade seguindo diversos ritos e tradições); e nas técnicas para alcançar a longevidade (diz-se que
Laozi teria vivido cerca de duzentos anos), vários taoístas morreram envenenados procurando o elixir
da eternidade, e as práticas de exercícios físicos como o tàijíquán (太极拳), ou tai chi chuan, são
exemplos dessa busca pelo bem-estar e longevidade. De acordo com Poceski (2013, p. 121), o cânone
de textos taoístas usado hoje foi compilado em 1445, na dinastia Ming, e reúne cerca de 1500 títulos.
1.5 A arte da guerra chinesa
Apesar de não fazer parte dos “Três Ensinamentos”, uma obra que não poderia deixar de ser comentada
é A Arte da Guerra de Sunzi (孙子兵法, Sūnzǐ Bīngfǎ), seja por sua influência no pensamento chinês, seja
por sua rentabilidade editorial no ocidente. Durante o enfraquecimento da dinastia Zhou, houve um momento
de tensão social e de guerra civil entre os estados que compunham a “confederação” na época. Se o clima
social inspirou ideias em vários pensadores como Confúcio e Laozi, também inspirou ideias em estrategistas

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Zi Yue: revista de graduação de estudos sinológicos. São Paulo: Portal de Revistas da USP, v. 1, n. 1, 2020.

militares que precisavam ganhar as batalhas para seus governantes. Assim surge o tratado de Sunzi.
De acordo com Sun (2006), Sunzi teria nascido em 540 AEC no estado de Qi (região onde hoje
se encontra a província de Shandong) e, em 517 AEC, teria saído de seu estado e ido para o estado
de Wu (mais ao sul da China, englobando a região onde hoje se encontra Shanghai). Sawyer (2006)
aponta que a posição oficial dele no exército é questionável, mas que se costuma aceitar que ele foi um
estrategista, possivelmente tenha sido um general. Como prova de sua existência costuma ser apontada
uma passagem dos Registros Históricos (史记, Shǐjì) de Sima Qian (historiador da China antiga já citado)
na qual Sunzi, após falar de suas teorias ao rei, é desafiado a prová-las na prática. Para a demonstração,
Sunzi solicita ao rei suas concubinas como cobaias, ele dá uma instrução militar a elas e , por elas
zombarem dele não seguindo as ordens militares, ele manda decapitar as duas concubinas favoritas do rei,
conseguindo a obediência militar das outras concubinas, provando sua capacidade de treinar um exército.
Com a popularização dessa obra no ocidente, há tradutores como Cleary (1998), o qual
defende que A Arte da Guerra é um livro de inspiração taoísta com várias referências ao Dao De Jing
e ao Livro das Mutações (duas obras chinesas igualmente populares no meio editorial). Entretanto,
apesar de as obras e escolas chinesas de pensamento se interinfluenciarem, se for considerada
a data atribuída ao nascimento de Sunzi, que é quase a mesma à atribuída a Confúcio, e partindo do
pressuposto de que Confúcio geralmente é considerado mais velho do que Laozi, logo, a afirmação de
que A Arte da Guerra pertence às obras taoístas é possivelmente muito forte e uma tática de vendas
(como uma obra poderia ter várias referências ao Dao De Jing antes deste haver sido escrito?).
Observa-se ainda que a compilação e edição do Livro das Mutações é atribuída a Confúcio, e
que tal livro inclusive faz parte do cânone confuciano. Ressalta-se também que A Arte da Guerra é
um livro de estratégias militares, feita por um homem que trabalhava com a guerra em um contexto
de guerra civil, embora se tente relacionar a ideia de “vencer uma guerra com o mínimo de esforço”
de Sunzi, com a de não-ação de Laozi, talvez deva ser lembrado que Sunzi pensava num contexto de
campo de batalha, enquanto Laozi pensava em como reestruturar uma sociedade em decadência.
É interessante notar ainda que tradicionalmente A Arte da Guerra possui treze capítulos, entretanto
há edições recentes que dizem haver recuperado um décimo quarto capítulo perdido (um capítulo
adicional). Além disso, com o sucesso da obra de Sunzi, uma obra atribuída a seu suposto neto Sun Pin
ganhou evidência. Sawyer (2006) explica que embora Sun Pin seja considerado pela tradição como o
neto de Sunzi, cem anos separam o nascimento dos dois, e que mais provavelmente eles tenham um

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SOUSA, J. A filosofia chinesa publicada no Brasil nos séculos XX e XXI , pp. 24-41.

parentesco de bisneto ou tataraneto. Há ainda possibilidade de eles serem apenas pessoas do mesmo clã.
2. A ponte tradutológica entre a China e o ocidente
Sobre o intercâmbio cultural ocidente e a China, o pesquisador Peter Buker (2009) apresenta dados
importantes, como o fato de a Europa haver tido grande interesse na China, como demonstrado “pelas
muitas traduções de Marco Polo, pela descrição da China feita pelo frade agostiniano Juan González de
Mendoza, e pela história da queda da dinastia Ming escrita pelo jesuíta italiano Martino Martini” (BUKER;
HSIA, 2009, p. 28). Esta última, por exemplo, “foi traduzida nove vezes. Graças a suas traduções para
o holandês e o inglês, a obra de Martini foi usada como inspiração para obras de dramaturgia por Joost
van Vondel (Zungchin, 1667) e Elkanah Settle (A conquista da China, 1676)” (Idem, p. 148). Segundo
Hsia (2009, p. 47), a missão católica jesuíta na China foi estabelecida em 1583 por Michele Ruggieri e
Matteo Ricci, tendo alcançado o apogeu aproximadamente em 1700. Destacam-se, nesse período, em
torno de 450 obras compostas e publicadas em chinês pelos europeus. “Desse total, perto de 120 textos
tratam da ciência, tecnologia e geografia europeias; outros 330 são textos religiosos” (Idem, p. 47).
Apesar do número surpreendente de obras vertidas ao chinês, Hsia (2009) afirma que apenas
cinquenta e nove padres estavam envolvidos nas publicações, e as traduções foram feitas por apenas
dezoito padres, dos quais oito eram italianos, cinco portugueses, três franceses e dois belgas (Idem,
p. 53). Observa-se ainda que os jesuítas portugueses representaram a maior força de europeus em
solo chinês durante o período de 1583 a 1723, contando com um total de 129 padres, entretanto,
dos dezessete que publicaram textos, apenas cinco traduziram. Abrindo espaço para a dominação
francesa no século XVIII. Contudo, com o fim da Companhia de Jesus o número de traduções
já havia caído e a primeira edição dos clássicos chineses chega à Europa por tradutores belgas.
O segundo período, de 1680 à dissolução da Companhia de Jesus, foi caracterizado por uma
queda significativa na produção de títulos chineses, pelo estreitamento dos temas (concentrando-se em
obras catequizadoras e devocionais), por mais publicações na linguagem coloquial e pela tradução de
um pequeno corpo de textos cristãos para o manchu, a língua da dinastia Qing. Também foi significativa
nesse segundo período a transmissão de textos e da cultura chinesa para a Europa. Começando com a
tradução dos Quatro Livros Confucianos (O grande ensinamento, A doutrina do meio, Os analectos e
Mêncio), sob editoria do belga Philippe Couplet (Confucius, 1687), jesuítas franceses, alemães e austríacos
continuaram a incrementar o corpus de Sinica ao longo do século XVIII. Se 1580-1680 foi o século europeu
para a China, os cem anos seguintes representaram o século chinês para a Europa (Idem, pp. 54-55).

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Zi Yue: revista de graduação de estudos sinológicos. São Paulo: Portal de Revistas da USP, v. 1, n. 1, 2020.

Os primeiros textos transmitidos da civilização chinesa que os ocidentais têm hoje são considerados
o 书经 (Shūjīng), Livro dos Documentos (ou Livro da História); 诗经 (Shījīng), Livro das Canções; e
o 易经 (Yìjīng), Livro das Mutações (Idem, p. 85). Desta forma, o cânone confuciano e a linguagem do
final da dinastia Zhou foram mantidos pela dinastia Han criando a linguagem literária da China pelos
dois mil anos seguintes, sendo os termos “chinês clássico” e “chinês literário” sinônimos (Idem, p. 87).
Tais usos da língua ainda podem ser encontrados em prefácios de trabalhos acadêmicos e na poesia.
3. As publicações de filosofia chinesa no Brasil dos séculos XX e XXI
Serão apresentados aqui os dados quantitativos das obras de filosofia chinesa
publicadas no Brasil durante os séculos XX e XXI até 2017, dividindo-se em quatro áreas:
1) livros que tratam de Confúcio; que são títulos (traduções) de autoria de Confúcio; ou
que compõem o cânone confuciano, como a obra 易经 (Yìjīng, I ching ou O livro das mutações);
2) livros que tratam de Laozi; que são traduções das obras de Laozi; que tratam
do taoismo ou que se debruçam sobre autores relacionados a Laozi, como Zhuangzi;
3) livros que tratam de Sunzi; que são traduções das obras de Sunzi; que tentam se relacionar
com esse autor de alguma forma, como as atribuídas a um possível descendente de Sunzi, Sun Pin;
4) por fim, livros que não se encaixam nas definições acima e que versam
sobre o pensamento chinês, asiático, podendo ser genericamente classificados
como obras de “pensamento chinês”, tendo essa categoria a particularidade de ser
majoritariamente composta por autores vivos no momento da publicação de seus livros.
Tendo em vista tais classificações, encontraram-se os seguintes resultados:

Tabela 1- Publicações de filosofia chinesa separadas por data de primeira edição 8

“Escola” Confucionismo 9 Taoismo Sunzi Pensamento TOTAL POR


Chinês PERÍODO
Data da primei-
ra edição
Século XVI- 1 0 0 0 1
XVII

8 Observa-se que o foco da nossa pesquisa são os séculos XX e XXI e que as publicações de datas anteriores estão cita-
das apenas a título de curiosidade. Na coluna relativa às obras de Confúcio, tem-se a publicação de dois livros em Macau entre
1970-1989.
9 Descontando-se os quatro livros que não pertencem ao nosso foco de busca, o número total de obras confucianas é de
79

34
SOUSA, J. A filosofia chinesa publicada no Brasil nos séculos XX e XXI , pp. 24-41.

Tabela 1- Publicações de filosofia chinesa separadas por data de primeira edição 8

Século XVI- 1 0 0 0 1
II-XIX (1899)
1900-1929 0 0 0 0 0
1930-1949 2 0 0 2 4
1950-1969 3 1 1 0 5
1970-1989 20 12 4 4 40
1990-1999 15 13 9 4 41
2000-2005 20 10 17 2 50
2006-2010 13 7 39 2 61
2011- 2017 9 3 14 0 26
TOTAL POR 83 46 84 14 --
“ESCOLA”:
Total de obras 10: 228
Tabela 2 - Obras publicadas por editoras

Posição Editora TOTAL Confucionismo Taoismo Sunzi Pensamento


chinês
1º Record 16 4 4 7 1

2º Pensamento 12 7 3 2 0

3º Cultrix 9 3 4 1 1

4º Madras 9 4 1 4 0

5º M. Books (Makron 9 0 0 9 0
Books)
6º Círculo do Livro 6 3 3 0 0

7º Tecnoprint 6 4 1 0 1

8º Martins Fontes 5 2 2 1 0

9º Nova Era 5 4 1 0 0

10º Universo dos Livros 5 1 0 4 0

10 Descontando-se as quatro obras que não foram publicadas entre os séculos XX e XXI ou no Brasil, o total é 224.

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Zi Yue: revista de graduação de estudos sinológicos. São Paulo: Portal de Revistas da USP, v. 1, n. 1, 2020.

Tabela 3 - Obras confucianas

Analectos 8

Confúcio 22

I ching 51

Comentários inespecíficos 2

Tabela 4 - Obras taoístas

Dao De Jing 22

Laozi 4

Tao 13

Taoismo 3

Zhuangzi 4

Tabela 5 - Publicações sobre Sunzi

A arte da guerra 40

Comentários, análises, 44
obras inspiradas em

Dentro do catálogo notou-se uma variação considerável de edições que correspondem à mesma
obra; e.g., o 易经 (Yijing, geralmente publicado como I ching) no qual pode ser encontrada a variação
de uma versão com obras de setenta páginas (como a edição da Editora Rideel, 2009) e outra versão que
alcança quinhentas e vinte e oito páginas (como a edição da Martins Fontes, 2007). Tal variação é existente
também entre os títulos e a grafia dos nomes dos autores, como a obra Dao De Jing. Pode-se considerar que
a “liberdade” de interpretação dos títulos tenha atendido mais a critérios comerciais do que a relação com

36
SOUSA, J. A filosofia chinesa publicada no Brasil nos séculos XX e XXI , pp. 24-41.

a obra; e.g., A arte da guerra para empresas e negócios: configurações estratégicas (São Paulo: Saraiva,
2005), A arte da guerra para concursos (Rio de Janeiro: Campus, 2007), A arte da guerra, plus, Estratégia
para gerentes de vendas: estratégia para gerenciar a força de vendas (São Paulo: M. Books, 2009).
Destacam-se aqui as diferentes visões que existem entre os tradutores e, consequentemente, da posição
deles em relação aos conteúdos traduzidos, como também se entende que é possível a leitura de tais textos,
em conformidade com uma cosmovisão ocidental, de forma mais inclinada para a filosofia ou religião.
Analisando os dados encontrados, o primeiro elemento que se percebe é o fato de não
haverem traduções de obras de filosofia chinesa até a década de 1930. A primeira que se pôde
recolher foi A sabedoria de Confúcio (1938) publicada pela Livraria José Olympio Editora, é
interessante notar que foi publicada numa coleção de textos orientais chamada Coleção Rubayat e
que o texto consistia numa tradução de uma obra em inglês organizada por Lin Yutang; a segunda
obra localizada apresenta o título de Philosophia de Confúcio (1939), foi feita por Inácio Raposo
e publicada pela Companhia Brasil Editora. Lin Yutang também teve traduzidos os títulos A
Importância do Viver (Rio Grande do Sul: Globo, 1941) e A sabedoria da China e da Índia: uma
antologia dos tesouros das duas grandes literaturas orientais (Rio de Janeiro: Pongetti, 1945).
Pode-se pensar que há uma relação entre a expansão do mercado editorial na década de 1930 e as
publicações de filosofia chinesa. É observável que a Revolução de 1930 teve como consequências sociais a
aceleração e a expansão do ensino secundário, fazendo com que este alcançasse, na década de 1940, o dobro
de alunos até então: 170 mil, e, no final da Segunda Guerra, 250 mil (HALLEWELL, 2012, p. 408). Segundo
Cândido (2006, p. 219) a década de 1930 “foi um eixo e um catalisador: um eixo em torno do qual girou de
certo modo a cultura brasileira, catalisando elementos dispersos para dispô-los numa configuração nova”,
dentre os elementos que Cândido ainda destaca da Revolução de 1930 estão a difusão e “normalização”
de aspirações e inovações dos movimentos de vanguarda da década de 1920 e um alargamento da
participação em setores da cultura como o livro e o rádio, também foi importante a radicalização ideológica
dos intelectuais, o que rendeu diversos debates e estudos na forma de livros. Nas palavras de Hallewell:

De um modo geral, os anos de 1920 foram um período de pouca significação para a história do
comércio livreiro no Rio de Janeiro. Não se registrou nenhuma evolução real entre a morte de
Francisco Alves, em 1917, e a Revolução de 1930. No entanto, a revolução constituiu um marco
tão fundamental para esta nossa história – e, de fato, para a história do Brasil em geral – quanto
a chegada da família real, em 1808, o foi para o país (HALLEWELL, 2012, pp. 462-463).

37
Zi Yue: revista de graduação de estudos sinológicos. São Paulo: Portal de Revistas da USP, v. 1, n. 1, 2020.

Em números, o produto industrial brasileiro deu um salto de 50% entre 1930-1937; tendo o
crescimento da edição de livros, com base nos dados de São Paulo, um aumento de 600% entre 1930-
1936 (Idem, pp. 464-465). O recorte feito entre 1950-1969 no nosso catálogo não apresenta dados muito
significativos, mas o crescimento para quarenta obras publicadas entre 1970-1989, período que abrange
tempos conturbados na ordem política (com fases de forte repressão, censura mais branda e abertura política)
e econômica (com o “milagre econômico” e as diversas crises enfrentadas pelo país). Segundo Hallewell
(2012, p. 629), “para a indústria e o comércio do livro, o resultado líquido das políticas do novo regime
militar, no período de 1964-1973, foi uma notável expansão.”. A produção de primeiras edições de livros no
Brasil na década de 1970 passou de 2981 em 1971 para 7680 em 1973, caindo para 4164 em 1974 (Idem, p
904). O crescimento da indústria segue nos últimos anos do século XX, atingindo 10871 primeiras edições
de títulos em 1991 e 18305 títulos no ano de 2000, caindo a seguir para 13340 no ano de 2003 (Idem, p. 936).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conforme foi observado, a essência do pensamento chinês é definida a partir dos três
ensinamentos, que mesclam teoria filosófica e práticas religiosas, sendo interpretadas pelos ocidentais
ora como obras filosóficas, ora como obras religiosas. Ao contrário do que ocorre no Ocidente com a
busca de uma verdade única e suprema, na China os três ensinamentos conviveram harmonicamente
sendo vistos como complementares, apesar de, por vezes, um ser a negação do outro. Nesse sentido,
tais obras podem ser enquadradas na concepção ocidental de filosofia pela proximidade com o
saber e o estudo do homem e seu mundo, sendo Confúcio e Laozi vistos como grandes sábios
antigos e venerados por isso; mas também podem ser tomadas como textos religiosos por toda a
codificação de ritos do confucionismo, e no caso do taoismo por sua visão esotérica do mundo.
O final do levantamento catalogou duzentos e vinte e cinco livros de pensamento chinês
publicadas no Brasil durante os séculos XX e XXI. Observando quatro obras lançadas entre 1930- 1949;
cinco entre 1950-1969; trinta e oito entre 1970-1989; quarenta e uma entre 1990-1999; 68 cinquenta
entre 2000-2005; sessenta e uma entre 2006-2010; e, vinte e seis de 2011 até o presente momento.
Oitenta desses títulos fazem parte do conjunto de textos confucionistas; quarenta e seis são obras
taoístas (Laozi); oitenta e quatro tratam d’A Arte da Guerra, de Sunzi; e quinze produções de outros
autores podem ser incluídas, genericamente, como livros de pensamento chinês, por não pertencerem
a nenhum dos três grandes segmentos acima encontrados. Destaca-se ainda que tais publicações foram

38
SOUSA, J. A filosofia chinesa publicada no Brasil nos séculos XX e XXI , pp. 24-41.

publicadas por cento e quatorze casas editoriais, em especial as editoras Record e Pensamento, a primeira
editou dezesseis obras, e a segunda, doze; além de Cultrix, Madras e M. Books, com nove livros cada.
Dentre as conclusões (ainda parciais) que podem ser obtidas a partir dos resultados encontrados,
tem-se o fato de as publicações de pensamento chinês no Brasil terem seguido as tendências de
expansão do mercado editorial brasileiro. Se a primeira obra encontrada data de 1938 (trata-se de um
livro lançado pela Livraria José Olympio Editora), ao longo dos vinte anos seguintes, houve apenas
quatro obras publicadas. Durante os anos da ditadura militar e reabertura assim como houve um forte
crescimento do mercado editorial, também se detectou um aumento expressivo da publicação de obras
de filosofia chinesa: passou-se de cinco para quarenta títulos ao longo do intervalo entre 1950 e 1989.
Já entre 2006 e 2010, tem-se o auge da edição no Brasil de títulos de filosofia chinesa, quando houve
sessenta e uma obras publicadas, com destaque para as trinta e nove edições de A Arte da Guerra, de
Sunzi, livro que apresenta o maior total de publicações (oitenta e quatro). Assim nota-se a expansão, a
partir dos anos 2000, do interesse em filosofia chinesa, com um especial modismo pela obra de Sunzi.
Destaca-se ainda que as publicações confucionistas, entre os anos de 1970 a 1989, quando a
maior parte das obras de filosofia chinesa lançadas pertencia a esse segmento (vinte obras) contra doze
obras taoístas e quatro de Sunzi, foram fortemente infladas pelas diferentes publicações do livro I ching
que correspondem a 51 de 83 obras editadas em tal período. Tal fato demonstra o interesse maior do
mercado pelo que possa ser vendido como religião chinesa ou esoterismo. Em tempos recentes, as trinta
e nove publicações de A Arte da Guerra em seis anos (2005-2010) podem ser explicadas pelo interesse
na economia chinesa e aprendizagem das técnicas de liderança que a obra de Sunzi pode proporcionar.
Em termos editoriais, pode-se entender o investimento da principal editora de obras de filosofia
chinesa, a Record, devido ao tamanho de seu mercado e sua busca por publicar livros de sucesso; sua
edição de A arte da guerra superou quarenta reedições desde sua primeira publicação na década de
1980. Quanto à editora Pensamento, observa-se seu interesse em publicar ocultismo e espiritualismo,
inferindo-se assim o viés editorial que as obras chinesas ganham nessa casa. A subsidiária da editora
Pensamento, a editora Cultrix, não parece ter um viés claro de editoração que direcione a publicação
de suas obras ao contrário da editora Madras e da M. Books: a primeira tem um interesse por
obras “holísticas” e espirituais, e a segunda apresenta um claro viés administrativo/econômico.

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Zi Yue: revista de graduação de estudos sinológicos. São Paulo: Portal de Revistas da USP, v. 1, n. 1, 2020.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Fronteira; Brasília: INL – Instituto Nacional do Livro,1995.
BUENO, André. “As dificuldades de Tradução: um ensaio sobre o Sunzi bingfa 孙子兵法e o contexto
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[Tradução Roger Maioli dos Santos] São Paulo: Editora UNESP, 2009.
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português de Claudia Berliner]. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
______. Os analectos. Tradução comentários e notas de Giorgio Sinedino. São Paulo: Editora Unesp,
2012.
______. Os analectos. Tradução comentários e notas de Giorgio Sinedino. São Paulo: Folha de São
Paulo, 2015.

40
SOUSA, J. A filosofia chinesa publicada no Brasil nos séculos XX e XXI , pp. 24-41.

D’HULST, Lieven. “Why and how to write translation histories”. In: MILTON, John (org.). Crop, vol.
6, Número especial: Emerging Wiews on Translation History in Brazil, 2001, pp. 21-32. Disponível em:
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______. Introdução. IN: SUN-TZU; SUN-PIN. A arte da Guerra. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p.1-
49.

41
Zi Yue: revista de graduação de estudos sinológicos. São Paulo: Portal de Revistas da USP, v. 1, n. 1, 2020.

RITO E REFORMA: BREVE COMPARAÇÃO ENTRE AS TRADIÇÕES


BÍBLICAS E O PENSAMENTO CONFUCIANO

Pedro Regis Cabral1

RESUMO
Neste artigo comparamos brevemente o conceito de rito (禮) segundo a tradição chinesa confuciana e
as tradições bíblicas (em especial a tradição profética do Velho Testamento e a tradição protestante).
Demonstramos que, segundo os confucianos, o ritual deve estar ligado a uma atitude sincera e
à moral para que mereça o nome de “rito”; por outro lado, a tradição protestante e o movimento
profético tendem a ver o rito com desconfiança, como má religião em potencial, se não em essência.
Apontamos que, nos textos antigos chineses, o rito está ligado à noção de ordem social, a qual deve
refletir a ordem natural do cosmos. Por fim, especulamos como poderia ser formulada uma defesa
confuciana do rito e como se daria sua crítica a uma atitude antirritualista. Para tanto, vamos nos valer
dos clássicos chineses como O Livro dos Ritos2, além de tradutores e comentadores contemporâneos.
PALAVRAS-CHAVE: Rito; Confucionismo; Reforma Protestante; O Livro dos Ritos.

O rito e as tradições Bíblicas

O “desencantamento” aparece, segundo Weber, primeiramente, na tradição profética de Israel.


Diz o Senhor através do profeta:

Aborreço, desprezo as vossas festas, e não me deleito nas vossas assembleias solenes.
Ainda que me ofereçais holocaustos, juntamente com as vossas ofertas de cereais, não me
agradarei deles; nem atentarei para as ofertas pacíficas de vossos animais cevados. Afasta
de mim o estrépito dos teus cânticos, porque não ouvirei as melodias das tuas liras. Corra,
porém, a justiça como as águas, e a retidão como o ribeiro perene (BÍBLICA, s.d., online).3

Para Amós, Joel, Isaías, Jeremias et alli, o ritual, o sacrifício, a mágica do sacerdote são exemplos
de má religião, espaço para a hipocrisia e são vazios. Os profetas, portanto, “desmagificaram” o mundo,

sendo a mágica um método ritual de coerção do sagrado para certos fins. Os sacrifícios deveriam apaziguar
Deus, e Ele faria chover e manteria as pragas longe dos campos. Haveria, antes do movimento profético,
um sistema ético relativamente menos claro, no qual a norma social era expressa, em parte, por meio de
1 Doutorando em Filosofia e Estudos da Religião na Universidade de Macau.
E-mail: [email protected].
2 Traduzido para o português como “Cerimonial” pelo sinólogo Pe. Joaquim Angélico de Jesus Guerra. Usarei o cad-
erno XIX, sobretudo.
3 BÍBLICA, Almeida Revisada Imprensa Bíblia. Amós 5: 21-24. BÍBLIA ONLINE , s.d. Disponível em: <https://www.
bibliaonline.com.br/aa/am/5>. Acesso em: 09 nov. 2018.

42
CABRAL, P..Rito e reforma: breve comparação entre as tradições bíblicas e o pensamento confuciano , pp. 42-54.

interdições e tabus. Até certo ponto, o código sacerdotal do Levítico se enquadra aqui, daí a tensão entre
os sacerdotes e os profetas. Jesus continua esta tradição profética contra o ritual vazio e a má religião:

Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! porque dais o dízimo da hortelã, do endro


e do cominho, e tendes omitido o que há de mais importante na lei, a saber, a justiça, a
misericórdia e a fé; estas coisas, porém, devíeis fazer, sem omitir aquelas. Guias
cegos! que coais um mosquito, e engolis um camelo (BÍBLICA, s.d., online).4

“Serpentes!” “Raça de víboras! “Condenados!” Todo o cuidado ritual, o preciosismo


da cerimônia convivendo com o escândalo da falta de compaixão. É bem conhecida a ira de
Jesus contra os fariseus. Muitos episódios n’Os Evangelhos poderiam ilustrar este ponto.
Os protestantes recuperaram com mais entusiasmo que os católicos esta herança de crítica
ao ritual vazio: Lutero, ao reafirmar a caducidade da Lei de Moisés e o calvinista iconoclasta
combateram a figura do padre “mago”, que faz o pecado desaparecer através do aparato ritual. Os
sacramentos agora eram inúteis para a salvação. Em A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo:

O desencantamento do mundo: a eliminação da magia como meio de salvação, não foi


realizado na piedade católica com as mesmas consequências que na religiosidade puritana (e,
antes dela, somente na judaica). O católico tinha a sua disposição a graça sacramental de sua
Igreja como meio de compensar a própria insuficiência: o padre era um mago que operava o
milagre da transubstanciação e em cujas mãos estava depositado o poder das chaves. Podia-
se recorrer a ele em arrependimento e penitência, que ele ministrava expiação, esperança
da graça, certeza do perdão e dessa forma ensejava a descarga daquela tensão enorme, na
qual era destino inescapável e implacável do calvinista de viver (WEBER, 2004, p. 106).

Livres do suposto vazio da cerimônia, os protestantes iniciam a ascese intramundana. Se as

ordens monásticas foram banidas, cada cristão deveria ser um “monge” e se dedicar inteiramente

ao serviço e expansão do Reino de Deus. Só a Deus a glória. Talvez sob a influência da teologia

paulina5, o trabalho ganhou extraordinário peso. Para Lutero cada cristão teria sua “vocação” ou

ofício da parte de Deus. Para certo tipo de calvinista, vivendo no que Weber chamou “era heroica”

do capitalismo, o sucesso no trabalho e enriquecimento eram sinais de sua própria eleição divina.

Ainda sobre o antirritualismo protestante, Mary Douglas afirma que:

4 BÍBLICA, Almeida Revisada Imprensa. Mateus 23:23-24. BÍBLIA ONLINE, s.d., Disponível em: <https://www.
bibliaonline.com.br/aa/mt/23>. Acesso em: 09 nov. 2018.
5 “...se alguém não quer trabalhar, também não coma.” Almeida Revisada Imprensa Bíblica Brasileira II, Tessaloni-
censes 3: 10. Disponível em: <https://www.bibliaonline.com.br/aa/2ts/3>. Acesso em: 09/11/2018.

43
Zi Yue: revista de graduação de estudos sinológicos. São Paulo: Portal de Revistas da USP, v. 1, n. 1, 2020.

A longa história do Protestantismo testemunha a necessidade de uma observação contínua


da tendência da forma ritual a se consolidar e substituir os sentimentos religiosos. De
onda em onda, a Reforma continuou a denunciar, violentamente, a incrustação do ritual.
Desde que existe o Cristianismo, não será nunca hora de parar de repetir a parábola do
Fariseu e do Publicano, de parar de dizer que as formas externas podem se tornar vazias e
de ridicularizar as verdades de que se dizem portadoras. A cada novo século, tornamo-
nos herdeiros de uma longa e vigorosa tradição anti-ritualista (DOUGLAS, 2012, p. 79).

Em Natural Symbols Douglas menciona certa “rejeição explícita


dos rituais enquanto tais” e diz que “estamos testemunhando uma revolta
contra o formalismo, até mesmo contra a forma”6 (DOUGLAS, 2007, p. 1).
Não sabemos até que ponto o público brasileiro estaria incluído no “nós” de Mary
Douglas. Mas vivemos, de qualquer forma, no mesmo mundo secularizado e avesso
às formas simbólicas como se tais necessariamente excluíssem qualquer sinceridade.

Rito e confucionismo

Do ponto de vista protestante o rito é inútil, uma “superstition”, como colocaria o puritano. O processo
de “desmagificação”, contudo, teria efeitos ainda mais amplos se considerarmos este fenômeno sob a ótica
confuciana. O caractere que é geralmente traduzido do chinês às línguas ocidentais como “rito” (禮) tem um
alcance semântico comparativamente maior do que os termos usados em sua tradução. Em nossa pesquisa
encontramos as seguintes possíveis acepções, traduções e definições para a palavra-conceito “rito” (禮):
1. Atos de culto e rituais interpessoais de cortesia e diplomacia (SELIGMAN, WELLER,
PUETT, SIMON, 2008, p. 3);
2. “Cerimonial” (GUERRA, 1988);
3. “Civilização” (LEYS, 2005, p. 123, 124, 197, 201);
4. “Comportamento conforme a norma revelada pelo Céu” (HO, 2006, p. 176);
5. “Exteriorização dos sentimentos sinceros” (HO, 2006, p. 174);
6. “Misto de regras de etiqueta, de leis tradicionais seguidas pela aristocracia” (SINEDINO,
2012, p. XXIV)7;
7. “Ordem cósmica refletida na ordem social” (HU ; CHEN, 2012, p. 169.);
8. “Ritos são um meio para satisfação”8 (XUNZI, 1963, p. 89).
Quanto às formas nas quais o “rito” se manifesta, Ho Yeh Chia explica:

6 Tradução nossa.
7 In: CONFÚCIO. Os Analectos. Tradução, comentários e notas Giorgio Sinedino. São Paulo: Editora Unesp, 2012.
8 故礼者养也。

44
CABRAL, P..Rito e reforma: breve comparação entre as tradições bíblicas e o pensamento confuciano , pp. 42-54.

a maior e mais perfeita realização da virtude de socialidade e da justiça é a execução do rito.


Esta execução pode ser realizada por diversas formas, por exemplo: pela literatura; pela música;
pela pintura, ou seja, pela criação artística em geral; pelos sacrifícios ao Céu e aos pais ou aos
ancestrais; pela forma adequada no cumprimento dos deveres, tais como no servir aos pais,
no educar os filhos, no exercício da política pelos governantes etc; no convívio social; no
trato das relações entre marido e mulher, entre irmãos, entre amigos; etc (HO, 2006, p. 178).

O ritual para católicos e a tradição sacerdotal israelita têm relação com perdão de pecados
e salvação. Para os confucianos, o rito tem um raio de ação comparativamente mais amplo.
Inclui, segundo o Livro dos Ritos, ordenamento social. Os confucianos seriam neste ponto muito
modernos. Teriam, em adição à dimensão religiosa do rito, um entendimento descritivo ou científico
dos seus efeitos na esfera da sociedade: o rito como instrumento para a política. N’Os analectos

Se conseguimos governar o país observando o ritual e demonstrando deferência,


nada há mais para ser dito. Se não conseguimos governar o país observando o ritual
e demonstrando deferência, qual a utilidade do ritual?9 (CONFÚCIO, 2005, p. 18).

O rito deveria ensinar o indivíduo a se colocar diante da sociedade. Observamos que o conceito
aparece relacionado à música n’Os Analectos10. A música e ritos organizam o interior do indivíduo e
lhe ensinam seu lugar e seus deveres. Segundo o Livro da Piedade Filial, “música” e “ritos” podem,
respectivamente, mudar os costumes e manter a ordem: “Para mudar os costumes e a tradição, não há
nada como a música; para tranquilizar os líderes e ordenar o povo, não há nada como os ritos”11. No
entanto, não serviria uma música qualquer. Por isso Confúcio faz distinção entre má música e “yǎyuè”
(雅乐), literalmente “música elegante”. Como cada instrumento na música ritual tem seu lugar e tempo
próprios, cada indivíduo tem seu lugar definido na família e na sociedade. N’Os analectos, o mestre diz:
“Quem não compreende os ritos é incapaz de ocupar o seu lugar”12 (CONFÚCIO, 2005, p. 114). Segundo
o Livro dos Ritos, ou Cerimonial (conforme a tradução do sinólogo Pe. Joaquim Angélico de Jesus
Guerra), as notas musicais correspondem à hierarquia e a certos aspectos da sociedade: “As cerimônias, a
música, a legislação e os castigos têm o mesmo fim em vista: São maneiras de uniformizar os sentimentos
do povo e fazer conhecer a sua maneira de governo” (GUERRA, 1988, p. 255). O rito (cerimônia) e
a música como formas de governo13. Em seguida, ainda no caderno XIX (A) de Cerimonial, seção 4:
9 4.13.
10 Cf. Os Analetos de Confúcio: 3.3, 8.8, 11.1, 13.3, 16.2, 16.5 e 17.11.
11 移風易俗,莫善於樂。安上治民,莫善於禮, capítulo 12. Tradução para o inglês por Feng Xin-ming: “for chang-
ing the customs and traditions there is nothing better than music; for making the rulers at ease and the people orderly there is
nothing better than etiquette”. In: ZENG ZI. Xiao Jing – The Classic of Xiao. English translation and commentary by Feng
Xin-ming (May 2007, revised February and May 2008). Disponível em: <http://www.tsoidug.org/>. Acesso em: 09 out. 2018.
12 20.3.
13 禮樂刑政,其極一也;所以同民心而出治道也。

45
Zi Yue: revista de graduação de estudos sinológicos. São Paulo: Portal de Revistas da USP, v. 1, n. 1, 2020.

A música e a administração pública andam ligadas uma com a outra: A nota Koq [宮] representa
o Monarca; a nota Shyão [商] representa os funcionários; a nota Cawk [角] representa o
povo; a nota Tyh [徵] representa o trabalho; a nota Yuh [羽] representa as coisas. Quando os
cinco sons ou notas não andam desafinados, não há vozes destemperadas ou discordantes.
Desafinada a nota Koq, é o excesso, é o príncipe altivo. Desafinada a nota Shyão, há um
desvio, são os cargos públicos mal cumpridos. Desafinada a nota Cawk, o som é triste, é o
povo descontente. A desafinação da nota Tyh, dá um som lamentoso, sinal de opressão
no trabalho. Desafinada a nota Yuh é sinal de insegurança, por falta de abastecimentos.
Quando todas as notas desafinam, prejudicam-se umas às outras. É o que se chama
desenfreamento. Nesse caso, a ruína do Estado está por pouco (GUERRA, 1988, p. 255).14

Em seguida, na seção 11:

A música é para unir; as cerimônias para distinguir. A união produz o amor mútuo; a
distinção leva ao respeito mútuo. Se a música se excede, haverá desvairamento; se é
o cerimonial que se impõem, haverá desunião. A função das cerimônias e da música é
uniformizar os sentimentos, e compor as maneiras e o exterior (GUERRA, 1988, p. 259).15

Na seção 14: “A verdadeira música revela a harmonia entre o céu e a terra. As


cerimónias autênticas revelam os limites entre o céu e a terra”16 (GUERRA, 1988, p. 260).
Aqui a harmonia social se confunde com a harmonia musical.
Ainda o Livro dos Ritos: “O céu acima, a terra embaixo; todas as coisas no universo são
diferentes entre si; o rito é estabelecido com base nestas diferenças”17 (HU; CHEN, 2012, p. 171). E
em outro trecho: “O rito simboliza a ordem entre o céu e a terra”18 (HU; CHEN, 2012, p. 169).
As relações sociais, como já foi dito, devem refletir a ordem natural, cósmica, e os ritos são a
encarnação simbólica desta ordem. No Yijing (易经), conhecido frequentemente pela grafia “I-Ching”:
Havendo o céu e a terra, há todas as coisas; havendo todas as coisas, há o homem e a mulher;
havendo o homem e a mulher, há o esposo e a esposa; havendo esposa e esposo, há pais e filhos;
havendo pais e filhos, há o monarca e súditos; havendo monarca e súditos, há em cima e embaixo;
havendo em cima e embaixo, os ritos podem ser implementados (ZHOU, 2012, p. 378).19

Em O Cerimonial, seção 22, caderno XIX (A), tradução de Pe. Guerra:

O Céu (Deus) é nobre, e o mundo (terra) humilde. Por aí assentam o Soberano e os vassalos.
A ordem entre baixos e altos, com os nobres e os humildes nos seus lugares; bem como o

14 聲音之道,與政通矣。宮為君,商為臣,角為民,徵為事,羽為物。五者不亂,則
無怗懘之音矣。宮亂則荒,其君驕。商亂則陂,其官壞。角亂則憂,其民怨。徵亂則哀,
其事勤。羽亂則危,其財匱。五者皆亂,迭相陵,謂之慢。如此,則國之滅亡無日矣。
15 樂者為同,禮者為異。同則相親,異則相敬,樂勝則流,禮勝則離。合情飾貌者禮樂之事也。
16 樂者,天地之和也;禮者,天地之序也。
17 天高地下,萬物散殊,而禮制行矣。
18 禮者,天地之序也。
19 有天地然后有万物,有万物然后有男女,有男女然后有夫妇,有夫妇然后有父子,有父子然后有君臣,有
君臣然后有上下,有上下然后礼义有所错。

46
CABRAL, P..Rito e reforma: breve comparação entre as tradições bíblicas e o pensamento confuciano , pp. 42-54.

movimento e o repoiso a seus tempos, aponta às diferenças entre o que é pequeno e o que é grande e
importante. Daí o agrupamento por espécies, e a distinção das coisas pelos seus géneros. De facto
a natureza e os destinos não são os mesmos. Os modelos que vem do céu, na terra se revelam.
E assim, as cerimônias estão a dizer a diferença do céu e da terra. (GUERRA, 1988, p. 264).20

É, mais uma vez, harmonia e ordem social refletindo a harmonia e a ordem cósmicas. O rito aqui não tem
relação com a expiação de pecados e salvação da alma. Há, contudo, clara dimensão religiosa como a própria
constituição do ideograma “rito” (禮) aponta. O radical à esquerda (示) é, um altar; à direita, uma taça com
ramos (曲) sobre um recipiente (豆), os quais são oferecidos à divindade (LI, 2008, p. 4; HO, 2006, p. 175).
O entendimento confuciano a respeito do rito, mais descritivo ou científico em relação
às tradições bíblicas mencionadas, é levado a um novo nível em Xunzi (荀子, 312 — ? a.C.)21.

Por tanto, o Céu e a terra produzem o cavalheiro, e o cavalheiro traz ordem ao Céu
e à terra. O cavalheiro forma uma tríade com o Céu e a terra; ele é o controlador
de todas as coisas, o pai e a mãe do povo. Sem o cavalheiro, o Céu e a terra
não terão ordem e princípios rituais não terão unidade22 (XUNZI, 1963, p. 44).

Seguindo a tradução de Watson e a leitura de Seligman, Weller, Puett e Simon, é o junzi, é “o


cavalheiro”, quem dá ao mundo padrões de ordem. Os ritos foram criados pelos reis santos da antiguidade
chinesa com vista a certos fins23. São, portanto, um artifício humano, um ato de criação do cavalheiro,
não necessariamente refletindo uma ordem já dada e observável, como ensina o Livro dos Ritos24.
Há, observa-se aqui, um entendimento materialista, possivelmente
agnóstico em relação aos ritos, aos fenômenos naturais e à religião:

Você ora por chuva e chove. Por quê? Por nenhuma razão em particular, digo eu. É exatamente como
se você não tivesse orado por chuva e chovesse de qualquer forma. O sol e a lua sofrem um eclipse
e você tenta salvá-los; ocorre uma seca e você ora por chuva; você consulta as artes de divinação
antes de tomar uma decisão sobre uma questão importante. Mas não se pode realmente obter nada
por meio de tais cerimônias. Elas são feitas meramente como ornamentos. Portanto, o cavalheiro
as considera como ornamentos, mas o povo comum as considera sobrenaturais. Feliz aquele que
as considera ornamentos; infeliz aquele que as considera sobrenaturais25 (XUNZI, 1963, p. 85).

20 天尊地卑,君臣定矣。卑高已陳,貴賤位矣。動靜有常,小大殊矣。方以類聚,物以群分,則性命不同矣。
在天成象,在地成形;如此,則禮者天地之別也。
21 XUNZI. Hsün Tzu Basic Writings. Traduzido por Burton Watson. Nova Iorque e Londres: Columbia University
Press, 1963, p. 1, 2. Data de nascimento aproximada.
22 故天地生君子,君子理天地;君子者,天地之参也,万物之总也,民之父母也。无君子则天地不理,礼义无
统。
23 先王惡其亂也,故制禮義以分之, “Os reis antigos odiaram tal desordem e portanto estabeleceram princípios rituais”.
XUNZI. Hsün Tzu Basic Writings. Traduzido por Burton Watson. Nova Iorque e Londres: Columbia University Press, 1963, p. 89.
24 “Quem conhece bem o céu e a terra, esse é que pode promover as cerimônias e a música.”. GUERRA, Joaquim
Angélico de Jesus. O Cerimonial (Ley~ky) 2, seção 18, caderno XIX A. Macau: Jesuítas Portugueses, 1988, p. 262.
25 Traduzimos do inglês de Watson. Texto original: “雩而雨,何也?曰:無佗也,猶不雩而雨也。日月食而救之,
天旱而雩,卜筮然後決大事,非以為得求也,以文之也。故君子以為文,而百姓以為神。以為文則吉,以為神則凶也”.

47
Zi Yue: revista de graduação de estudos sinológicos. São Paulo: Portal de Revistas da USP, v. 1, n. 1, 2020.

Vê-se que os ritos chegaram a ser racionalizados e esvaziados de seu conteúdo mais claramente
religioso, místico já no século terceiro antes de Cristo. Todavia, esta não é a única posição
confuciana possível e Xunzi é considerado um confuciano heterodoxo por oposição a Mêncio26.
Jiang Qing, por exemplo, um expoente do “novo confucionismo”, considera que a religiosidade do
confucionismo, diferentemente do que defende Li Zehou27, não é a padronização, sistematização
e racionalização de antigas cerimônias de feitiçaria. “É, pelo contrário, a crença na divindade
contida nas práticas religiosas antigas que Confúcio preservou no processo de estudo dos clássicos,
o ‘Céu’ pessoal das três primeiras dinastias que preservou e fez disto o fundamento do rito”28.

Rito e Moral

Outro aspecto do conceito de rito conforme os chineses o entendem é o seu caráter moral, o que
soa paradoxal a ouvidos ocidentais. Cabral (2017) investigou como a sensibilidade cultural de brasileiros
(22 alunos de mandarim) e chineses (29 estudantes universitários) pode afetar o ensino de mandarim
como segunda língua. O questionário aplicado perguntava, entre outras questões, se concordariam ou
não, e em que grau, com as afirmações seguintes (abaixo tabelas com os resultados comparados dos dois
grupos; os números apresentados nos gráficos são o número absoluto de entrevistados e o percentual):

26 O pensamento de Mêncio a respeito do rito já foi bem trabalhado e exposto na tese de doutorado de Ho Yeh Chia.
Não o comentaremos aqui.
27 “它的一个基本特征,是原始巫术礼仪基础上的晚期氏族统治体系的规范化和系统化”, ou: “Uma
característica peculiar sua [do rito de Zhou] é a sistematização e padronização do fundamento ritual mágico original
feitas posteriormente pela classe de governantes de clãs ”. LI, Zehou (李泽厚). 中国古代思想史论 (Sobre a História do
Pensamento Antigo Chinês). Pequim: 生活·读书·新知三联书店 (Shenghuo dushu xinzhi sanlianshudian), 2008, p. 2.
28 “而是相反,孔子在经学系统中保存了巫术的神灵信仰,保存了三代人格神的“天”,并以之作为“礼”
的基础。” JIANG, Qing (蒋庆). 追求人类社会的最高理想:中和之魅——蒋庆先生谈儒家的宗教性问题, Gui Yang,
2004. Disponível em: <http://www.confucius2000.com/confucius/zqlrshdzglxzhzmjqtzj.htm>. Acesso em: 28/06/2014.

48
CABRAL, P..Rito e reforma: breve comparação entre as tradições bíblicas e o pensamento confuciano , pp. 42-54.

Gráfico 1: Às vezes precisamos mentir para sermos educados e gentis com os outros.29

Observa-se que não há grande diferença aqui: precisamos mentir para fins de educação
(polidez, cortesia).

29 有时候为了避免不礼貌和不温柔的言行,我们需要撒谎。In: CABRAL, Pedro Regis. 中国巴西


文化差异对汉语二语教学的影响——以谦虚文化、等级关系和性别文化为例 (A influência de diferenças
culturais entre Brasil e China no ensino de chinês como segunda língua: o caso da cultura da modéstia,
relações hierárquicas e relações entre os sexos). Tese (mestrado em ensino de chinês como segunda língua) –
Faculdade de Língua e Cultura Chinesa, Universidade de Estudo Estrangeiros de Cantão, Cantão, 2017, p.24.

49
Zi Yue: revista de graduação de estudos sinológicos. São Paulo: Portal de Revistas da USP, v. 1, n. 1, 2020.

Gráfico 2: A etiqueta social (polidez, cortesia, educação) não tem necessariamente relação com a
moral. 30

Aqui podemos observar com clareza que chineses tendem mais que brasileiros a ver a educação
(polidez, cortesia) como um requisito moral.

30 礼貌跟道德没有必然的关系。CABRAL, Pedro Regis. 中国巴西文化差异对汉语二语教学的影响


——以谦虚文化、等级关系和性别文化为例 (A influência de diferenças culturais entre Brasil e
China no ensino de chinês como segunda língua: o caso da cultura da modéstia, relações hierárquicas
e relações entre os sexos). Tese (mestrado em ensino de chinês como segunda língua) – Faculdade
de Língua e Cultura Chinesa, Universidade de Estudo Estrangeiros de Cantão, Cantão, 2017, p. 25.

50
CABRAL, P..Rito e reforma: breve comparação entre as tradições bíblicas e o pensamento confuciano , pp. 42-54.

Gráfico 3: Agir insinceramente é faltar com a educação (polidez, cortesia).31

Os chineses insistem: não há educação (polidez, cortesia) sem sinceridade (gráfico 3). Se a educação
(polidez, cortesia) implica em moral (gráfico 2), conclui-se que ser sincero é ser moral e que, paradoxalmente,
mentiras ditas no intuito de evitar descortesias (gráfico 1) não são, no fim, “insinceras”, mas antes uma
tentativa sincera de não ferir o orgulho de outra pessoa em um contexto em que respostas totalmente
factuais não são necessariamente esperadas. “Mentiras brancas” são “mentiras sinceras”. Talvez morais.

31 不真诚的言行很不礼貌。In: CABRAL, Pedro Regis. 中国巴西文化差异对汉语二语教学的影响


——以谦虚文化、等级关系和性别文化为例 (A influência de diferenças culturais entre Brasil e
China no ensino de chinês como segunda língua: o caso da cultura da modéstia, relações hierárquicas
e relações entre os sexos). Tese (mestrado em ensino de chinês como segunda língua) – Faculdade
de Língua e Cultura Chinesa, Universidade de Estudo Estrangeiros de Cantão, Cantão, 2017, p. 26.

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Zi Yue: revista de graduação de estudos sinológicos. São Paulo: Portal de Revistas da USP, v. 1, n. 1, 2020.

O termo moderno chinês para educação (no sentido de polidez, cortesia) é constituído por dois

caracteres: “禮貌” (lǐmào), o primeiro sendo precisamente “禮”, ou “rito”, o conceito do qual estamos
tratando aqui. O termo moderno para polidez não é idêntico ao conceito antigo de rito, como apontamos
em nossa tese de mestrado, mas tem sua origem nele32 e há certa correspondência entre ambos, uma vez
que se referem às formas, gestos, atitudes e palavras esperadas nas relações interpessoais. Observa-se
que, para o espanto do ocidental, tanto a polidez como o rito estão intimamente associados a uma atitude
sincera e não apenas às tais formas exteriores convencionalmente esperadas em relações interpessoais.
Aqui, ressaltamos, não basta afirmar, como certos protestantes o poderiam fazer, que os chineses estão
errados uma vez que os rituais podem ser feitos de forma insincera. O conceito chinês de rito não é somente
descritivo: é também um ideal. Ele deve ser compreendido em seu próprio contexto33. Ho Yeh Chia disserta
sobre o caráter ético do rito34 e esclarece que desde a antiguidade havia clara diferença entre “rito” e
“cerimônia”, esta enfatizando as formas exteriores, aquele enfatizando a expressão de sentimentos reais.35

Considerações finais

1. O rito, segundo as tradições bíblicas, está associado à relação do crente, ou da comunidade


de crentes, com Deus. No caso hebreu, estava associado, conforme a tradição sacerdotal,
à eficácia mágica e perdão de pecados, e os profetas criticando seu uso desprovido de
sinceridade e ética. No caso dos cristãos, está associado à salvação da alma e perdão de
pecados, protestantes do tipo não-conformista o criticando como um desvio da sã doutrina.
2. Em adição à natureza religiosa do rito, confucianos enfatizaram
por séculos a sua função na organização social e fixação de papéis.
3. O rito pode ser usado para determinados fins políticos.
4. O rito representa e reflete a ordem cósmica na ordem social.
32 CABRAL, Pedro Regis. 中国巴西文化差异对汉语二语教学的影响——以谦虚文化、等级关系和性别文化
为例 (A influência de diferenças culturais entre Brasil e China no ensino de chinês como segunda língua: o caso da
cultura da modéstia, relações hierárquicas e relações entre os sexos). Tese (mestrado em ensino de chinês como segunda
língua) – Faculdade de Língua e Cultura Chinesa, Universidade de Estudo Estrangeiros de Cantão, Cantão, 2017, p. 12.
33 Não queremos aqui fazer qualquer juízo de caráter moral (se é que isso é possível aqui). Mesmo no nosso contexto
ocidental brasileiro não somos obrigados, por um dever de natureza moral, a falar sentenças factuais todo o tempo. Se
perguntados por alguém com quem não temos grande familiaridade se estamos “bem”, podemos perfeitamente “faltar
com a sinceridade” e dizer que “sim”. É perfeitamente aceitável e desejável para não se começar um diálogo inoportuno
para ambas as partes. Em outras palavras, não há, está claro, nenhuma espectativa de afirmações factuais neste contexto.
34 HO, Yeh Chia. O Resgate do Coração Perdido: Virtude e Justiça na Educação Menciana.
Tese (doutorado em educação) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, 2006, p. 174
35 緣人情而制禮,依人性而作儀。

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CABRAL, P..Rito e reforma: breve comparação entre as tradições bíblicas e o pensamento confuciano , pp. 42-54.

5. O rito, segundo a concepção confuciana, é moral. É um ideal a ser atingido.


6. Deve expressar o sentimento real de quem o pratica. “Patentear sinceridade e rejeitar
tudo o que é hipocrisia, é a função do Cerimonial”36 (GUERRA, 1988, p. 305).
Mary Douglas traz reflexões que estão em concordância com uma concepção
confuciana de rito ao ressaltar o seu caráter organizador da experiência. Os ritos são ordem.

O estabelecimento de linhas e fronteiras simbólicas é uma forma de trazer ordem à experiência.


Tais símbolos não-verbais são capazes de criar estruturas de significado nas quais indivíduos
podem se relacionar uns com os outros e compreender seu propósito último. O aprendizado e a
própria percepção dependem de classificação e distinção. Fronteiras simbólicas são necessárias
até mesmo para a organização privada da experiência. Mas rituais públicos que performam essa
função são também necessários para a organização da sociedade37 (DOUGLAS, 2007, p. 53).

Entendido dessa forma, não haveria razão para simplesmente condenar o ritual como
vazio, insincero e mal em essência. Ainda Mary Douglas: “não é lógico desprezar todo ritual,
toda ação simbólica por si mesmos. Usar a palavra ritual para significar símbolos vazios de
conformidade é seriamente incapacitante para a sociologia da religião” 38
(DOUGLAS, 2007, p. 3).
O católico Chesterton ridicularizava o quaker que se recusava à
“cortesia” de tirar o chapéu a uma moça (superstition)39. Suspeitamos que
Confúcio teria sido ainda mais enfático em condenar nosso antirritualismo.

Referências bibliográficas

CABRAL, Pedro Regis. 中国巴西文化差异对汉语二语教学的影响——以谦虚文化、


等级关系和性别文化为例 (A influência de diferenças culturais entre Brasil e China no ensino
de chinês como segunda língua: o caso da cultura da modéstia, relações hierárquicas e relações
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CONFÚCIO. Os Analectos. Tradução, comentários e notas Giorgio Sinedino. São Paulo:
36 著誠去偽,禮之經也。
37 Tradução nossa.
38 Tradução nossa.
39 No ensaio “Christmas” em All Things Considered. Em Disponível em: <http://www.personal.reading.ac.uk/~sp-
solley/GKC/Christmas%28GKC%29.html>. Acesso em: 26/12/2017.

53
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54
SÁ, Raquel de. A Poesia Chinesa Definida por Ezra Pound:Uma Procura Pela Origem, pp. 55-64.

A POESIA CHINESA DEFINIDA POR EZRA POUND:


UMA PROCURA PELA ORIGEM

Raquel de Sá1

RESUMO
O presente texto apresenta uma reflexão a respeito de uma possível “zona de contato” entre as teorias de
tradução poética definidas por Ernest Fenollosa e seu discípulo Ezra Pound, e a literatura em língua chinesa
por eles traduzida. Elaborado por Mary Louise Pratt (1991), estudiosa de literatura espanhola, o conceito
de zonas de contato considera a literatura como um espaço social em que diferentes culturas encontram-se,
confrontam-se ou mesmo se atracam (“grapple”) a partir de relações de poder, geralmente, muito assimétricas.
Ao verificarmos a ausência do reconhecimento deste contato por parte das teorias poéticas dos autores
supracitados, sobretudo em relação aos questionamentos levantados por sua crítica, passa a ser admitido,
cada vez mais, por diversos estudiosos, inclusive de literatura americana, a importância de dialogar e absorver
conhecimentos produzidos por outras áreas, como a sinologia, a filologia, a linguística etc. Quanto a isto,
torna-se possível produzir um distanciamento crítico e histórico em relação aos preceitos formulados pelo
modernismo literário americano, junto a uma reflexão mais ampla sobre o fenômeno da linguagem. A partir
deste cenário, também pretende-se esboçar uma metodologia capaz de detectar formulações e referências
teóricas, de tradução e linguagem, em Pound, que, quando omitidas, asseguram uma noção de equivalência
entre o texto traduzido e o original chinês, e que igualmente ofuscam a análise das zonas de contato.
PALAVRAS-CHAVE: Ezra Pound; Shi Jing; Língua Chinesa; Tradução; Zonas de contato.

Quando pensamos nos problemas que envolvem a tradução de uma língua para outra, podemos
refletir se a superioridade do tradutor está no “produto final”, isto é, no seu estilo e desenvoltura poética,
ou se está na fonte, na sua profunda penetração na mente e na arte do autor de partida que forneceu o
material inicial para a tradução (KENNEDY, 1958, p. 24). Entretanto, antes de nos aproximarmos destas
questões, também poderíamos sondá-las de outro ponto de vista: o da relação existente entre o “produto

1 Raquel de Sá é graduanda no Departamento de Artes Visuais da Escola de Comunicação e Artes da Uni-


versidade de São Paulo. A formulação do projeto de Iniciação Científica foi auxiliada pelos encontros do grupo
de estudos “China Antiga: Literatura e Filosofia”, orientado pela Prof.ª Dr.ª Ho Yeh Chia (Departamento de Let-
ras Orientais – FFLCH/USP) e pelo Prof.º Dr.º João Vergílio Gallerani Cuter (Departamento de Filosofia – FFLCH/
USP), e pelas disciplinas “Língua Chinesa” I e II, ministradas pela Prof.ª Dr.ª Ho Yeh Chia, no ano letivo de 2018.
E-mail para contato: [email protected]

55
Zi Yue: revista de graduação de estudos sinológicos. São Paulo: Portal de Revistas da USP, v. 1, n. 1, 2020.

final” e a fonte. Dito de outro modo, de investigarmos a compreensão que se fez do texto de partida
e da intenção que, conjuntamente, mobilizaram a tradução, a fim de, por extensão, identificarmos os
métodos implícitos ou explícitos utilizados pelo tradutor, bem como suas implicações para o sentido final.
Quando pensamos na teoria de tradução da poesia chinesa do filósofo americano Ernest Fenollosa
(1853 – 1908), e na produção poética e tradutológica de língua chinesa de seu discípulo e conterrâneo
Ezra Pound (1885 – 1972), talvez a última perspectiva possa nos trazer novas compreensões quanto ao
curioso fenômeno que separa a contribuição de ambos, primeiro, no campo da literatura e arte ocidentais,
e, segundo, no campo da sinologia. Apesar dos dois haverem sido direta e indiretamente2 questionados
pelo último sobre a consistência de seus argumentos, em especial devido sua aproximação efetiva com a
língua e poesia chinesas, como explicar a falta de absorção dos conhecimentos do último pelo primeiro?
Ou mesmo sua resistência? Sobre isso, surgem de tempos em tempos análises que voltam a questionar esta
distância, tanto para sustentá-la3, quanto para questioná-la4, sob o justo pretexto de ser exatamente o objeto
2 A primeira edição do livro Chinese Characters: their origin, etymology, history, classification and signification. A
through study from Chinese Documents, traduzida para o inglês por L. Davrout S.J., do jesuíta francês L. Wieger S.J., apareceu
pela primeira vez em 1915. Anterior às principais publicações de Pound, e até hoje fonte para estudiosos, a obra traz conceitos
formulados por filólogos chineses de categorias de significação dos caracteres chineses. Uma das categorias citadas, baseada
em seu uso, é denominada “false borrowing” (假借, jiǎjiè ), isto é, em que a pictografia do caractere não se relaciona com
o sentido atribuído, por tratar-se ora de uma associação arbitrária, feita por convenção para designar um objeto que tem
um nome na língua falada mas nenhum caractere específico, ou por se tratar de um erro de copistas que não fora corrigido
com o passar do tempo, tornando-se oficial. “Not a few characters were thus given artificial meanings, besides their own
meaning and their different meanings [...]. Other characters, either names of lost things, or useless doubles, first disappeared
and then appeared again with a meaning quite new and in absolute contrast with their composition” (WIEGER, 1965, p. 11).
3 Segundo artigo recente, o argumento que justifica a teoria poética e de tradução de Fenollosa, desenvolvida no seu hoje
famoso The Chinese Written Character as a Medium for Poetry, escrito no início do século XX, contra as críticas pronunciadas
por seus “detratores” (identificados como os “eruditos sinólogos”), sugere que esta só pode ser entendida sob a ótica da
“linguagem poética” (DANTAS, 2013, p. 47), pois: “Por fim, não podemos esquecer que o próprio destino do texto manuscrito
original nos diz muito sobre como ele deve ser lido. Basta sabermos que, de posse do material deixado pelo marido Ernest, a
viúva Mary Fenollosa preferiu confiá-lo não a eruditos ou sinólogos, mas a um jovem poeta, hoje mundialmente conhecido como
Ezra Pound.” (DANTAS, AMORIM, 2013, p. 48) Mobiliza-se, neste caso, uma associação direta que equaciona a compreensão
de uma teoria de tradução com a face poeta do tradutor – que explica, em Pound, a causa de sua posterior fama como tradutor
da poesia clássica chinesa. Segundo outro autor, Giorgio Sica, referindo-se a recepção do livro Cathay (1915) – “traduções
chinesas, em boa parte atribuídas a Li Po, [...] efetuadas com base nas anotações, às vezes obscuras, às vezes imprecisas, de
Fenollosa” (SICA, 2017, p. 150) e publicadas postumamente por Pound -, este entendia que “Embora sua leitura “criativa”
dos ideogramas tenha provocado o repúdio dos sinólogos, Pound nos legou, com toda essa precariedade, aquela que George
Steiner definiu sua “obra mais inspirada [...] e o trabalho que chega mais perto da justificação de todo programa imagista”,
contribuindo de maneira fundamental para a renovação do verso inglês” (SICA, 2017, p. 151). E ainda: “Se os sinólogos, por
um compreensível espírito de casta, não apreciaram Cathay, a recepção do mundo poético foi calorosa” (SICA, 2017, p. 151).
4 A fim de verificarmos os argumentos de um dos “detratores” mencionados no artigo de Dantas (2013, p. 47), o texto de
Yu-Kuang Chu, reconhecido pelo seu trabalho no campo de estudos interculturais, ao tratar das inter-relações entre linguagem e
pensamento em chinês, nos apresenta sucintamente algumas características da gramática chinesa, para explicar, como objetivo
principal do artigo, conceitos da linguística determinista, “de que a estrutura da linguagem influenciou os processos mentais,
embora se pudesse defender a tese contrária”, bem como “a maneira que as concepções ocidentais que conseguiram se impor
na China moderna levaram às diversas reformas que estão atualmente ocorrendo na língua” (CHU, 1977, p. 234). Assim como
Fenollosa identifica que a ausência do verbo “ser” na sentença chinesa implica uma maneira de compreender a natureza e, por
conseguinte, de estar mais aproximada dela - “We do not say a tree “greens itself,” but “the tree is green”; not that “monkeys
bring forth live young,” but that “the monkey is a mammal.” (FENOLLOSA, 1920, p. 369) -, sugerindo que esta aproximação
se dê através do aspecto pictográfico do ideograma, Yu-Kuang Chu, por sua vez, ao explicar a recepção arbitrária dos caracteres

56
SÁ, Raquel de. A Poesia Chinesa Definida por Ezra Pound:Uma Procura Pela Origem, pp. 55-64.

da obra de Fenollosa e Pound a língua, a filosofia, a poesia e a arte chinesas. Logo, o que permite que estas
contribuições permaneçam tão distantes, sem chance de frontalmente se encontrar, contradizer, combater, e
após produzir novos desdobramentos em seus respectivos campos do conhecimento? Do lado da literatura
e da arte, para uma compreensão mais plausível da língua e da cultura da qual se apropria, de forma a
revisitar criticamente os critérios que legitimaram os procedimentos de tradução da poesia ocidental, e,
do lado da sinologia, a resposta do pra quê e o porquê fora a língua chinesa a escolhida para figurar na
renovação da literatura americana do início do século XX, de maneira que explique uma apropriação por
vezes considerada redutora e/ou equivocada, e que perdura até nossos dias5; como nos diz Kennedy: “If
this was a new principle in Fenollosa’s time, he must be given credit for its forceful presentation, but it is
hard to see why it was necessary to shore it up with questionable Chinese props” (KENNEDY, 1958, p. 27).
Assim, diferente do que nos diz George A. Kennedy sobre The Great Digest (1928) de Pound
quando “Undoubtly this is fine poetry. Undoubtedly this is bad translation. Pound has the practice, but
not the learning. He is to be saluted as a poet, but not as a translator” (1958, p. 36), ou mesmo distante
de defendermos arbitrariamente uma correspondência necessária à prática de tradutor junto à de poeta,
compreendemos o caso como um problema de alteridade, sempre complexo, uma vez que traduzir
necessariamente implica defrontar-se para depois transformar uma diferença: linguística, cultural, social,
política, histórica, geográfica, tudo ao mesmo tempo. Diferente de como costumamos conceber a tradução,
muitas vezes de forma utilitarista e transmissora de uma informação objetiva, podemos, ao contrário,
identificar uma série de escolhas realizadas pelo tradutor que interpretam a diferença: a partir da escolha de
palavras isoladamente, modifica-se também o conjunto linguístico maior que ela participa, que, na esteira
histórica, foram aderindo acréscimos de conteúdo — e, portanto, contribuições de sentido — , através da

chineses (que na sua totalidade, possui menos de 4% de origem pictográfica, segundo o dicionário etimológico compilado em
100 d.C.) pelo leitor de língua chinesa, nos apresenta, além de outras variáveis advindas da linguística moderna para entender
a relação entre linguagem e realidade, e da inconsistência prática da qualidade pictórica identificada por Fenollosa, o autor não
deixa de mencionar a dimensão artística e visual da escrita chinesa: “Essa qualidade pictórica dos caracteres chineses levou
Fenollosa (que escrevia no alvorecer do século) a afirmar que ela muito contribuiu para a imagética visual da poesia chinesa.
Admitia-se que, ao ver o símbolo da “lua”, o leitor chinês não somente obtinha uma ideia da linha, mas como também via
uma lua crescente. Tal concepção está hoje desacreditada, simplesmente por não ser verdadeira. Quase todos os caracteres
pictográficos modificaram tão drasticamente suas formas que já não são imagens picturais. O leitor chinês simplesmente os
considera como símbolos convencionalizados de ideias. É ainda certo, entretanto, que os chineses tratam os caracteres escritos
como desenhos artísticos. Talvez não seja coincidência que a arte chinesa sobressaia no campo visual” (CHU, 1977, p. 240).
5 Segundo Michelle Yeh tem argumentado, “Although it is well known that Pound’s translation is a particularly free,
often ingenious rendition of the Chinese... what neither he nor Eliot could have foreseen was how powerful and lasting this
translation would be in shaping poets’ and translators’ perceptions of Chinese poetry” (YEH, 1994, p. 139 apud WILLIAMS,
2006-2007, p. 23). Cf. Yeh, Michelle. Anthology of Modern Chinese Poetry. New Haven: Yale UP, 1994. Robert Kern
similarmente argumenta: “to the extent that any translation deviates from [Pound’s] conventions, it runs the risk of violating
our sense of what Chinese poetry has in fact come to be” (KERN, 1996, p. 181 apud WILLIAMS, 2006-2007, p. 23) Cf.
Kern, Robert. Orientalism, Modernism and the American Poem. Nova Iorque: Press Syndicate of the U of Cambridge, 1996.

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Zi Yue: revista de graduação de estudos sinológicos. São Paulo: Portal de Revistas da USP, v. 1, n. 1, 2020.

inter-relação ininterrupta entre linguagem e realidade, ou, se preferirmos, sociedade. Desta forma, tendo
de lidar com a linguagem — e sendo a linguagem com seu conteúdo uma unidade, como uma fruta e
sua pele, (BENJAMIN, 1923, p. 79) — , a tradução concomitantemente lida com a construção histórica
de seus sentidos. Como nos diz Walter Benjamin, em seu famoso The Task of the Translator de 1923:

For just as the tenor and the significance of the great works of literature undergo a complete
transformation over the centuries, the mother tongue of the translator is transformed as
well. While a poet’s word endure in his own language, even the greatest translation is
destined to become part of the growth of its own language and eventually be absorbed by its
renewal. Translation is far removed from being the sterile equation of two dead languages
that of all literary forms it is the one charged with the special mission of watching over
the maturing process of the original language and the birth pangs of its own (1923, p. 78).

Não sendo o escopo deste texto desenvolver a teoria benjaminiana da tradução (e


algumas das impossibilidades prescritas pelo autor), aproveitamos sua visão quanto ao aspecto
histórico da língua, que a tradução é capaz de “zelar”6 quando se propõe a analisar uma língua
e seu processo de amadurecimento no que diz respeito, especialmente, ao seu conteúdo.
Desta maneira, além de considerarmos o discurso que aclama a obra de Fenollosa e de Pound,
julgamos importante, para nos aproximarmos destas questões, compreender a obra de tradução de Pound
quando comparada à sua origem: o chinês clássico e seu conteúdo histórico (métrica, rima, gramática,
sintaxe, sonoridade etc.). A fim de reestabelecermos a ordem de ocorrência destas manifestações7 e,
assim, neutralizar noções de equivalência e transparência8 que poderiam existir quando experienciamos
uma tradução, permitindo que delineemos as implicações de sentido do método de tradução de Pound.
Com uma análise comparativa a outros métodos de tradução da mesma obra de poesia clássica chinesa,
realizada por outros tradutores ocidentais influentes (e as respectivas áreas do conhecimento a que se

6 Tradução nossa de parte da citação de Benjamin supramencionada.


7 Para Walter Benjamin, o significado da tradução só pode ser exprimido completamente quando em
conexão ao seu original, sendo esta uma das características exclusivas à tradução: “It is plausible that no translation,
however good it may be, can have any significance as regards the original. We may call this connection a natural
one, or, more specifically, a vital connection. Just as the manifestations of life are intimately connected with the
phenomenon of life without being of importance to it, a translation issues from the original – not much from its life
as from its afterlife. For a translation comes later than the original, and since the important works of literature never
find their chosen translator at the time of their origin, their translation marks their stage of continued life” (1923, p. 76).
8 Na história da teoria de tradução, poderíamos pensar no conceito, definido por Lawrence Venuti, como “autonomy
of translation”, isto é, “the textual features and operations or strategies that distinguish it from the foreign text and from texts
initially written in the translating language. These complicated features and strategies are what prevent translating from being
unmediated or transparent communication; they both enable and set up obstacles to cross-cultural understanding by working
over the foreign text” (VENUTI, 2002, p. 5). Na medida em que as relações da autonomia da tradução com o texto original
mudam, também podemos pensar na categoria de “equivalência”: “Equivalence has been understood as “accuracy,” “adequacy,”
“correctness,” “correspondece,” “fidelity,” or “identity”; it is a variable notion of how the translation is connected to the foreign
text” (VENUTI, 2002, p.5). A importância de compreender estas categorias, segundo o autor, é que “Yet without some sense
of distinctive features and strategies, translation never emerges as an object of study in its own right” (VENUTI, 2002, p.5).

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SÁ, Raquel de. A Poesia Chinesa Definida por Ezra Pound:Uma Procura Pela Origem, pp. 55-64.

dedicaram), procuraremos identificar diferentes motivações e métodos de compreensão e adaptação


(inevitáveis) realizados na “vida continuada”9 do texto chinês de partida, que Pound utilizou em seu
The Classic Anthology Defined By Conficius (1954), o 诗经 (Shījīng) — poemas compilados durante
a dinastia Zhou 週 (zhōu, 1046 a.C. – 256 a.C.) e geralmente traduzido como “Livro das Odes”.
Acreditamos que, desta forma, não poderemos (pelo menos a princípio) detectar o motivo que anima
o apoio e a manutenção dos distanciamentos entre as implicações estruturais da linguagem, produzidas
por outras áreas do conhecimento, e a teoria poética de Fenollosa-Pound, mas medir esta distância pela
comparação entre diferentes criações literárias e seu original: transformando a efetividade prática das
primeiras em falar transparentemente pelo segundo em uma preocupação teórica10, nos lançando a
uma interpretação da relação entre eles, e não mais do “outro” do qual não compreendemos a língua.
Análises deste tipo, isto é, que ultrapassam o repertório referenciado pela obra traduzida,
para realizar comparações e relações com contextos mais abrangentes, como, por exemplo, o
fenômeno mais amplo da inter-relação entre linguagem e realidade, ou mesmo as interpretações
ideológicas contidas na leitura de algo vasto e complexo como a cultura de um povo (e as
consequências deste imaginário para os indivíduos identificados por ela), não só são possíveis,
como podemos dizer que se trata de uma preocupação pertinente ao próprio estudo literário.
Ao considerarmos a literatura como um fenômeno não exclusivo em si mesmo, mas exposto
e produzido através do contato de seus a(u)tores com seu contexto social, econômico, político,
linguístico e social, a estudiosa de língua espanhola, Mary Louise Pratt, propõe que consideremos
conjuntamente o caminho inverso: da literatura como agente em seu contexto. Inseparáveis um do
outro, literatura e contexto (ou se preferirmos, linguagem e conteúdo), torna-se incontornável não
considerar como os reflexos de relações de poder assimétricas existentes numa sociedade, podem
proporcionalmente ressurgir na influência de manifestações literárias sobre a realidade; neste sentido,
é fácil pensar nos autores autorizados a realizar contribuições e transformações efetivas no conteúdo
de um sistema linguístico. Entretanto, ao se interessar pelos sentidos elaborados por autores que
tiveram seu poder de atuação na sociedade corrompido, e que, portanto, não puderam ser considerados
quando das mudanças contextuais em que estão inseridos, Pratt formula o conceito de “contact zones”:

I use this term to refer to social spaces where cultures meet, clash, and grapple with each
other, often in contexts of highly asymmetrical relations of power, such as colonialism,
slavery, or their aftermaths as they are lived out in many parts of the world today.

9 Tradução nossa de parte da citação de Benjamin supramencionada na nota 7.


10 Como nos diz Lawrence Venuti, “a translation theory always rests on particular assumptions about language use,
even if they are no more than fragmentary hypotheses that remain implict or anacknowledged” (VENUTI, 2004, p.6).

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Zi Yue: revista de graduação de estudos sinológicos. São Paulo: Portal de Revistas da USP, v. 1, n. 1, 2020.

Eventually I will use the term to reconsider the models of community that many of
us rely on in teaching and theorizing and that are under challenge today (1991, p.34).

Através das “zonas de contato”, Pratt formula um conceito capaz de não só proporcionar
circunscritamente uma equidade social na contribuição do sistema linguístico, e, por conseguinte, uma
intervenção momentânea e mais equilibrada na realidade, mas, sobretudo através da análise literária,
propõe uma alternativa à reprodução e à manutenção de um discurso convencionado — segundo a autora,
“atualmente posto em causa”11 — , ao deslocar a seguridade de sua efetividade prática enquanto narrador
exclusivo da realidade social, para compreendê-lo como apenas um dos muitos pontos de vista possíveis
numa zona (espacial e virtual) de contato. Desta forma, as diferentes leituras de uma obra literária
relacionam-se com as posições igualmente diferentes dos leitores nesta zona (PRATT, 1991, p. 37). Ao
relativizar a efetividade prática outorgada pelo discurso social dominante, através da identificação de seus
princípios ideológicos e teóricos, Pratt consegue tornar seus reflexos na sociedade identificáveis, e também
as circunstâncias de desigualdade que permitiram que certas contribuições de conteúdo fossem por ela
abafadas. Em relação ao estudo de caso realizado pela autora no ensaio “Arts of the Contact Zone”, Pratt
analisa um manuscrito peruano, datado da cidade de Cuzco do ano de 1613 (quase quarenta anos após a
queda do império Inca pelos espanhóis), assinado por um nome inconfundivelmente andino e indígena:
Felipe Guaman Poma de Ayala. Escrito numa mistura de quechua e um “expressivo espanhol agramatical”,
o manuscrito endereçava-se ao rei Felipe III da Espanha. O que chama a atenção da autora é que a carta
é gigante, com 1.200 páginas: quase 800 páginas de texto escrito e 400 com ilustrações (desenhos com
linhas) com legenda, intitulada: A Primeira Nova Crônica e Bom Governo12 (PRATT, 1991, p. 33-4).
Refletindo sobre os reflexos contextuais do escrito, Pratt compreende que, de certa forma, o manuscrito
funcionou, já que um texto extraordinário fora escrito, a considerar o esforço de um autor andino que vivia
num império que não possuía sistema de escrita. Por outro lado, não foi bem sucedido, já que a carta nunca
chegou a seu endereço. Sendo isto também parte de sua história literária, e, como nos aponta a autora,
consequência de dinâmicas assimétricas numa zona de contato, a contribuição de Guaman Poma nos chega
hoje não só como um relato de seu contexto, mas, quando visto através de sua perspectiva própria, torna-se
capaz de relativizar o ponto de vista do colonizador quando hoje interpretamos sua contribuição linguística:

11 Tradução nossa de parte da citação de Pratt supramencionada.


12 Título traduzido neste artigo para o português da versão em inglês descrita no texto de
Pratt, “The First New Chronicle and Good Government” (PRATT, 1991, p. 34). Supomos que o
título original estivesse escrito na mesma mistura de espanhol e quechua mencionada anteriormente.

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Guaman Poma’s New Chronicle ends with a revisionist account of the Spanish conquest, which,
he argues, should have been a peaceful encounter of equals with the potential for benifiting
both, but for the mindless greed of the Spanish. He parodies Spanish history. Following contact
with the Incas, he writes, “In all Castille, there was a great commotion. All day and at night in
their dreams the Spaniards were saying ‘Yndias, yndias, oro, plata, oro, plata del Piru” (“Indies,
Indies, gold, silver, gold, silver from Peru”) (p. 372 do manuscrito apud PRATT, 1991, p. 35).

De forma semelhante, poderíamos considerar contribuições linguísticas diferentes da de Pound


para compreendermos a poesia chinesa, a fim de inserirmos mais pontos de vista neste cenário e propor,
assim, uma zona de contato. Em seu artigo Decolonizing Cathay: Teaching the Scandals of Translation
Through Angel Island Poetry (2006), John R. Williams aponta a importância de considerarmos a obra
poética de imigrantes chineses nos Estados Unidos — anteriores, contemporâneos e conterrâneos a
Pound —, com a mesma autoridade para compreendermos a “poesia chinesa” ou a “língua chinesa”,
através de lentes muito mais próximas e familiarizadas com o objeto de estudo em questão.
Assim, quando partimos apenas da obra de Pound ou Fenollosa, dificilmente concebemos
que contemporaneamente a eles haviam imigrantes chineses nos Estados Unidos que, inclusive,
produziam poesia em chinês. Somadas às circunstâncias desta produção, também não costumamos
traçar a distância entre o discurso elevado de Fenollosa e Pound sobre a cultura chinesa com o
primeiro ato de exclusão xenofóbica e racista nos Estados Unidos, em 188213, voltado exclusivamente
para deter a entrada de chineses no país. E quanto a isto, quando lemos as traduções de Pound, não
costumamos visualizar a situação política da China da época, que, após duas derrotas nas Guerras do
Ópio, vira suas defesas enfraquecidas contra as cada vez mais violentas investidas colonialistas por
parte de países da Europa, em especial Inglaterra e Estados Unidos e, depois, Japão, ocasionando
a saída desesperada de várias pessoas em busca de melhores oportunidades de vida pra si e sua
família. E, ainda, mal conseguimos relacionar a presença e influência da poesia chinesa nas obras
mais importantes de Pound, com uma preocupação com a condição de vida dos indivíduos asiáticos
imigrantes nos Estados Unidos, considerando, inclusive, que na juventude do poeta em Hailey, Idaho,
houvera a presença de um serviçal chinês empregado por sua família (WILLIAMS, 2006, p. 25).

Ao iniciar uma análise comparativa entre poemas de imigrantes chineses14 e a poesia de Pound,
13 “The Exclusion Act of 1882 heralded a change in the nation’s immigration pattern. Free and unrestricted
immigration was replaced by restrictions and racism. For the first time in American history, members of a specific ethnic
group were refused entry and admittance to the naturalization process. Only government officials, merchants, students,
teachers, visitors, as well as those claiming U.S. citizenship were admitted” (LAI, H. M.; LIM, G.; YUNG, J., 1991, p. 12).
14 Os poemas foram realizados por ocasião de seu aprisionamento desumano em estações de imigração e
registrados nas paredes de uma destas, o porto de Angel Island (São Francisco, Califórnia), entre as décadas de 1910
e 1940, e descobertas por acaso apenas nos anos 1970 por um guarda florestal. Cf., sobretudo o relato proferido

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Zi Yue: revista de graduação de estudos sinológicos. São Paulo: Portal de Revistas da USP, v. 1, n. 1, 2020.

Williams faz uma importante descoberta: os poetas de Angel Island parafraseavam uma série de referências
a Confúcio, lendas e mitologias chinesas, e inclusive a estrutura dos poemas clássicos originais em chinês,
que advinham da mesma tradição daqueles traduzidos por Pound em Cathay. Desta forma, poderíamos dizer
que ambos os casos se apropriaram da mesma tradição cultural e suas imagens para produzir suas poesias:
em Pound, através da tradução, em alguns casos aproveitava-se da temática de batalha de alguns poemas
chineses para falar da experiência da primeira guerra mundial15; já os poetas de Angel Island partiam da
sua falta de prática em poesia e literatura para gravar, nas paredes dos dormitórios de Angel Island em
São Francisco, relatos de racismo, maus-tratos, tortura e sofrimentos lá ocorridos: “looseness in rhythm
only means that these particular Chinese-language poems more closely resembles the free-verse forms
of Pound’s translations than did the actual Chinese poems he was reading” (WILLIAMS, 2006, p. 24).
Ao levar estas semelhanças para a aula de literatura de língua inglesa, Williams pergunta
aos seus alunos: por que os tradutores de Angel Island não optaram por uma tradução imagista?
O que a tradução poundiana poderia fazer em relação ao conteúdo de poemas que dispunham
de tais testemunhos? Diferente de Pound, os tradutores de Angel Island preocuparam-se com
a precisão do relato das condições de subsistência dos indivíduos lá presos, não se detiveram
em explicar, através de notas de rodapé, metáforas compreensíveis apenas à luz das referências
tradicionais chinesas, esclarecendo, por conseguinte, as invenções que surgiram a partir delas,
bem como as expressões para designar uma realidade antes não prevista pela língua16, além do
cruzamento com documentos e relatos sobre a vida das pessoas durante e após o encarceramento.
Assim, concluindo, poderíamos dizer que a contribuição de Pound diz respeito a uma definição
de “poesia chinesa”, que, prevista pela teoria poética imagista, se apresenta como um locus da interação
cultural entre Oriente-Ocidente (WILLIAMS, 2006, p. 26). Entretanto, enquanto não compreendida como
uma teoria de tradução, e, portanto, quando não esclarecidas as interpretações ideológicas da linguagem
e do “outro” implícitas, corremos o risco de igualmente cercear a extensão de sua obra de seu contexto
mais amplo e imediato, ao separarmos as definições do autor de “poesia chinesa” de manifestações

por uma das pesquisadoras do caso, Judy Yung, na aula “Chinese Immigration and Poetry at Angel Island and Ellis
Island”, em 2014, ministrada na The Murphy Institute: Center for Labor, Community and Policy Studies, a respeito
da continuidade da pesquisa e da segunda edição do livro, lançado em 2014, Island: Poetry and History of Chinese
Immigrants on Angel Island, disponível online: << https://aaari.info/15-03-06yung/>>. Acesso em 04 de fevereiro de 2019.
15 Cf. o poema “Song of the Bowmen of Shu” In: POUND, E. Translations. New York: New Directions, 1963.
(WILLIAMS, 2006, p. 24). Além disso, sobre uma análise desta utilização de Pound dos poemas chineses, Cf., sobretudo:
WILLIAMS, J.R. Modernist Scandals: Ezra Pound’s Translations of ‘the’ Chinese Poem. Orient and Orientalisms in
US-American Poetry and Poetics. Ed. Sabine Sielke and Christian Kloeckner. Frankfurt: Peter Lang, 2009. p. 145-65.
16 Cf., as análises dos poemas realizadas por Judy Yung na referência supracitada, disponível online:
https://aaari.info/15-03-06yung/
Acesso em 04 de fevereiro de 2019.

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SÁ, Raquel de. A Poesia Chinesa Definida por Ezra Pound:Uma Procura Pela Origem, pp. 55-64.

mais amplas da poesia escrita em língua chinesa — justamente para melhor compreendermos o que faz
Pound com objeto do qual se apropria, a considerar a influência de sua obra sobre o imaginário ocidental.
Como nos diz Williams ao final de seu texto, sobre a relação entre linguagem e realidade:
“To teach the scandals of translation then is to teach the construction of reality” (WILLIAMS, 2006, p.
28). Ao não reproduzirmos as definições de Pound para compreendermos a língua chinesa, também não
nos limitamos à realidade que elas nos dão a conhecer. Daí, a poesia que escapa à sua teoria, a tradução
poética que também se diferencia dela, e a análise dos sentidos que não são preservados na passagem
de uma língua e outra, podem nos apresentar outras realidades. Compará-las, e propor um confronto
numa zona de contato, não só relativiza o discurso canônico, expõe seus mecanismos de significação,
compõe mais faces do fenômeno da língua chinesa, mas também pode nos auxiliar no importante
esforço de esboçar novos possíveis desdobramentos em campos do conhecimento antes distanciados.

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SICA. G. O vazio e a beleza - de Van Gogh a Rilke: como o Ocidente encontrou o Japão. Tradução:

63
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64
CUTER, J.V.G. Formas de vida incompatíveis, pp. 65-74.

FORMAS DE VIDA INCOMPATÍVEIS

João Vergílio Gallerani Cuter


Departamento de Filosofia
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Universidade de São Paulo

Filosofia e literatura se interpenetram. São raros os grandes filósofos que não deram à expressão de
suas ideias um acabamento literário refinado, que não tiveram uma preocupação tão grande quanto a de
qualquer literato com o estilo. Um texto de Platão, Agostinho, Hume, Nietzsche, Heidegger, Wittgenstein,
Quine ou Cavell é imediatamente identificável por suas escolhas vocabulares, construções sintáticas,
figuras de linguagem e articulações argumentativas características. É igualmente difícil imaginar uma
obra literária destituída de preocupações filosóficas. Quando essas preocupações tendem a zero, a obra
tende à frivolidade, à insignificância. Por isso a filosofia tem um interesse tão grande para o literato, e a
literatura, para o filósofo. São duas famílias cujos membros se frequentam, fazem empréstimos, trocas
e por vezes se casam, dando à luz indivíduos híbridos, pertencentes tanto a uma família quanto à outra.
Em 1924, quando Lu Xun escreve o conto “Sabonete”, Wittgenstein tinha acabado de publicar
o Tractatus Logico-Philosophicus e estava alfabetizando crianças no interior da Áustria. Sua fama
estava restrita a um punhado de filósofos ingleses — basicamente, Russell, Moore e Ramsey — que
haviam lido seu livro. As Investigações Filosóficas, principal expressão de sua filosofia madura, só serão
publicadas postumamente, em 1953, quase duas décadas após a morte de Lu Xun. Seria completamente
insensato alegar qualquer influência do filósofo austríaco sobre o escritor chinês. Mesmo assim, tomarei
aquele conto como ocasião para desenvolver algumas reflexões de caráter wittgensteiniano no mesmo
espírito com que um crítico literário poderia usar as ideias de um filósofo contemporâneo para explorar
o sentido de uma obra literária mais antiga. Um texto é um organismo vivo, que só vai se constituindo
aos poucos, pelas diferentes leituras são feitas dele, e isso faz com que ele vá se impregnando de
todos os outros textos que participaram da formação de seus leitores. É este o lugar de que escrevo: o
de um leitor de Wittgenstein que se debruça sobre um conto de Lu Xun e busca nele elementos para
explorar uma filosofia que, para o próprio autor do conto, era completamente desconhecida. Começarei
por uma descrição dos pontos que me interessam no enredo. Mais adiante, direi de que modo me
parece que esse conto pode iluminar problemas que foram centrais para a filosofia de Wittgenstein.

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* * *
A história é contada por um narrador que sabe muito, mas não tudo a respeito dos personagens.
Trata-se de um desses narradores que nos fazem ver muitas coisas, obrigando-nos a entrever outras
tantas nos silêncios, insuficiências e tensões da narrativa. A maior parte da história se passa num final
de tarde na residência de um casal de meia idade que tem um filho de 14 anos e duas filhas mais novas.
A mulher está brincando com a filha mais velha, quando seu marido, Siming, chega e lhe entrega um
presente comprado na cidade. O narrador não usa a palavra “sabonete”. Descreve um embrulho pequeno,
retangular, do qual emana uma fragrância indefinível. O papel é verde, e vem lacrado com um selo
dourado e brilhante no qual se distinguem “desenhos minúsculos”. A mulher desembrulha o presente
muito devagar, e o narrador nos faz sentir cada uma das surpresas que ela vai tendo: com o papel de
fora, o de dentro, que a princípio parece ser verde, mas na verdade é translúcido, e finalmente com o
sabonete, que solta um odor forte quando fica completamente descoberto. Ao mesmo tempo que examina
o presente, a esposa de Siming sente-se examinada. Lembra-se da sujeira acumulada atrás da orelha,
que o marido, postado logo atrás dela, muito provavelmente está vendo. Deixa escapar a inquietação
num murmúrio, culpando os métodos tradicionais de banho — “vagens de acácia não limpam muito
bem...”, reconhece ela. A filha mais nova entra correndo, a outra filha quer ver o presente, mas a mulher as
afasta, guardando o sabonete cuidadosamente reembrulhado no alto do armário, fora do alcance das filhas.
O marido, então, chama pelo filho, e lhe faz uma pergunta inusitada: O que quer dizer “èdúfù” (惡毒
婦)? Ao contrário da primeira cena, em que tínhamos um objeto incialmente sem nome, entra em jogo agora
uma expressão linguística da qual Siming afirma desconhecer o significado. O efeito é desconcertante,
pois o significado da expressão chinesa é perfeitamente conhecido pelo leitor. O filho de Siming não faz
outra coisa senão repetir o que o leitor já sabe ao dizer que a expressão chinesa “惡毒婦” quer dizer
“mulher malvada”. Apesar de óbvia, a resposta deixa o pai furioso. “Acha que eu não sei chinês?”, diz ele.
“Acha que eu sou mulher? Quero saber o que significa “惡毒婦” em língua estrangeira!”. A obviedade
do sentido se dissolve, pois o leitor, como o filho de Siming, não consegue imaginar qual possa ser o
sentido daquela expressão numa “língua estrangeira” que, no instante seguinte, uma admoestação permite
identificar precisamente. “É para isso que eu lhe pago escola com ensino de inglês?”, pergunta o pai ao filho.
A incapacidade do filho desencadeia uma longa série de comentários mais ou menos
contraditórios feitos por Siming na presença da esposa — comentários nascidos de uma mistura de
modos de pensar incompatíveis que marcam esse personagem de Lu Xun e o transformam numa
espécie de símbolo da transição pela qual a China está passando nas primeiras décadas do século XX.

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Não sabemos ao certo a idade de Siming. A se julgar pela idade dos filhos, deve ter por volta de 40 anos.
Como a ação se passa no início dos anos 20, podemos concluir que Siming chegou à idade adulta no final da
dinastia Qing, mais ou menos no período em que o imperador Guangxu tentou implementar uma série de
reformas no sistema educacional chinês. A China vinha de uma série de derrotas militares dramáticas ao longo
da segunda metade do século XIX, que levaram o país à ruína. Isso motivou um esforço de modernização
que tinha como um dos seus pilares a mudança no sistema de educação tradicional, até então baseado no
estudo dos clássicos e completamente refratário à cultura ocidental. Em 1898, aconselhado por um grupo de
intelectuais, o Imperador Guangxu resolve reformar radicalmente o sistema abolindo os exames públicos e
incentivando estudos técnicos e científicos, mas a reforma é abortada por um grupo político apoiado pela tia
do imperador, Cixi, que passa a exercer o poder de fato. O Imperador será mantido em prisão domiciliar até
a morte. No entanto, a reforma será gradualmente implementada pela própria Cixi nos dez anos seguintes.
Os Exames Imperiais, por exemplo, são abolidos em 1905. É nesse clima de mudança cultural profunda
que Siming se formou, e são as contradições dessa época que ele a um só tempo expressa e simboliza.
Ofendido em inglês por jovens insolentes numa loja que vende produtos ocidentais, ele se arrepende
de ter apoiado, na juventude, a reforma do ensino proposta pelo Imperador Guangxu. Deslocado num
mundo em que até mesmo seu modo de tomar banho se tornou ridiculamente ultrapassado, Siming se
arrepende de estar pagando para que o filho estude numa escola bilíngue. Só ficam falando em liberdade
e democracia, diz ele. “Não ensinam nada de sólido”. O filho nem sequer é capaz de dizer que insulto
lhe foi dirigido. A reação de Siming, no entanto, está limitada por uma consciência oscilante da completa
inadequação do ambiente cultural em que ele próprio se formou. Ao dizer que “não ensinam nada de
sólido” nas escolas, ele se volta contra a pregação dos valores democráticos, mas igualmente contra
a ineficiência na obtenção de resultados práticos. O filho deveria estar falando inglês para ajudá-lo a
enfrentar sua própria inadequação à contemporaneidade, e no entanto mostra-se incapaz de decifrar o
que jovens de sua idade lhe disseram na perfumaria. “Aposto que só lhe enfiaram os clássicos goela
abaixo...”, ele arremata, retomando velhos bordões reformistas da época do Imperador Guangxu.
A mesma posição hesitante e limítrofe se repete quando ele resolve expandir sua raiva para o campo
da educação feminina. Suas duas filhas devem ou não ir para a escola? Devem ou não se ocidentalizar?
Siming lembra-se que criticava o avô quando este dizia que mulheres não devem estudar — e é fácil
entrever ali o mesmo entusiasta das reformas de Guangxu em confronto com uma geração mais velha,
cujo apego às tradições havia condenado a China à derrota e à humilhação. A uma esposa que presta muito

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pouca atenção a seu discurso enraivecido, ele declara reconhecer que seu avô tinha razão. Não gastará
dinheiro com a educação das filhas. A decadência moral das mulheres parece-lhe, afinal, a mais perigosa
ameaça sofrida pelo país. As moças que andam pela rua com cabelo curto, à moda ocidental, são “piores
que bandidos”, diz ele. No entanto, o que ele acaba de fazer, senão presentear a própria esposa com um
produto ocidental típico — um sabonete, em substituição às velhas vagens de acácia? O que indica a
atitude cautelosa da esposa, pondo o sabonete num lugar inalcançável, senão que ela adorou o presente
e não pensa de modo algum em compartilhar aquele perfume indescritível com as crianças da casa? Ela
ouve com atenção o recado prático dado pelo marido, e não dá muita trela ao discurso reacionário que a
ofensa sofrida põe em sua boca. Só podemos imaginar que o lugar daquele sabonete estava pronto naquela
casa, ainda que seu dono tivesse uma ideia muito imprecisa da natureza exata do objeto oferecido à esposa.
Ao mesmo tempo, a audição passiva da intenção declarada de não pôr as filhas na escola,
delata a posição igualmente ambígua da esposa —uma mulher saída do mesmo universo em
transição em que o marido se formou. Ela talvez não ligue muito para o conteúdo das palavras de
Siming, pois compreende que elas são a mera tradução apressada do orgulho ferido de um homem
de meia idade, mas seria difícil entrever naquele silêncio resignado qualquer tipo de revolta interior
e oculta contra a ideia de fazer das filhas um espelho daquilo que ela mesma se tornou — uma
mulher que se contenta com o reinado doméstico e completamente destituída dos meios financeiros
para afirmar algo tão simples quanto o desejo de substituir vagens de acácia por um sabonete.
Não se trata de modo algum de uma mulher fraca, como a continuidade do conto irá nos mostrar.
Siming não sabia comprar sabonetes. Estava aí a raiz do tal xingamento que lhe foi lançado
na cara. Não tinha ideia de quanto custavam, em primeiro lugar, e se surpreende ao ver produtos
semelhantes custando até dez vezes o preço de outro. Pede para o vendedor lhe mostrar todos, e
não atina um modo de se decidir entre eles. Queria abrir as embalagens, examinar mais de perto
as qualidades de cada um, já que os “minúsculos desenhos” alfabéticos impressos nos rótulos e
selos nada lhe diziam. Fica zangado diante da negativa, e sua zanga começa a atrair a curiosidade
e a pilhéria dos circunstantes. Provavelmente inflado pela audiência, o vendedor torna-se cada
vez mais insolente, e um adolescente desfere a ofensa inalcançável, que o paralisa: “èdúfù!”.
O filho de Siming se desespera para encontrar palavra de som semelhante em seu dicionário de
inglês. Pateticamente, o pai pede ao filho que procure a palavra na “seção de insultos”, presumindo talvez
que dicionários de língua estrangeira devessem estar organizados, como os chineses, por radicais ou algo

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semelhante. O universo ocidental é tão distante para Siming, que até mesmo a ordem alfabética lhe é
completamente estranha. A observação gera um efeito cômico que sublinha o fosso existente entre o mundo
no qual aquele homem foi educado e o mundo no qual ele deve educar seus filhos. Numa reviravolta típica,
porém, um episódio antecedente ao enigmático insulto irá nos mostrar o quanto Siming já está envolvido nas
malhas de uma forma de vida que ele não consegue compreender completamente, de tal modo que seu discurso
arcaico é apenas uma das últimas partes de si que ainda não se inseriram no novo mundo que o circunda.
Para estabelecer um contraste com a insolência dos jovens que o destrataram, Siming lembra-se
de uma jovem que mendigava na calçada. Apesar de faminta, dava todo o alimento que conseguia para
a avó. Um exemplo de respeito aos mais velhos, de apego aos valores e virtudes tradicionais. “Uma
neta com verdadeira piedade filial”, ele suspira, acionando um dos lados de sua identidade cindida.
“Fiquei por ali um bom tempo”, diz ele, “mas ninguém deu nenhuma moeda à menina. Pelo contrário...
Caçoavam dela! Um deles chegou a dizer que, após um banho com água e sabão, ela não ficaria nada
mal.” A esposa percebe rapidamente a conexão entre a cena na calçada e a iniciativa de lhe comprar um
sabonete, e lança a pergunta fulminante: “Você deu dinheiro à menina?” Siming, desconcertado, responde
que só tinha moedas muito pequenas no bolso. “Não eram dignas dela...”, completa, constrangido.
A esposa se retira em silêncio e vai fazer o jantar. Siming caminha em silêncio para o quintal, ciente
de que sua máscara havia caído. Que máscara é essa? Do ponto de vista da esposa, o presente recebido ficou
envolto em significações desagradáveis. Ela se sente suja como a mendiga, e reconhecida enquanto tal pelo
marido, que lhe teria comprado o presente na esperança de que, usando o sabonete, ela ficasse mais atraente
do que é. Além disso, a resposta de Sming deixou claro de que lado ele estava naquela cena. Se estivesse
indignado com as piadas, se valorizasse sinceramente a atitude da moça como exemplo de “piedade filial”,
ele teria dado a ela algum dinheiro. Uma moeda que fosse. Enfrentaria o sarcasmo das pessoas com um gesto
simples, e possivelmente teria feito com que todos se calassem. Mas ele não fez isso, e a esposa percebe
imediatamente que, no mínimo, ele se identificou com os outros homens que, zombando, deixavam escapar
uma expressão de desejo pelo corpo da jovem. “Após um banho com água e sabão, ela até que não ficaria mal...”
A mulher não teria dado maior atenção ao relato do desrespeito das pessoas para com uma mendiga,
não estivesse esse relato pessoalmente vinculado a ela — aos desejos do marido por outra mulher e
às motivações que ele teve para lhe trazer o presente. A esposa move-se, no fundo, na mesma teia de
ambiguidades que o marido. Ela também se sente uma estrangeira na nova ordem. Toma banho com vagens
de acácia, e nunca tinha visto um sabonete até aquela tarde. Se teve estudo, não passou das primeiras

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letras. Foi muito provavelmente criada por um pai que pensava como o avô de Siming no tocante à
necessidade ou mesmo conveniência do estudo para as mulheres. Há um contraste vivo, no conto, entre
seu mutismo diante das opiniões do marido e sua rapidez ao desvendar a situação embaraçosa escondida
por trás do incidente com a mendiga. Ela não é uma tola. É uma mulher inteligente e muito forte. Enfrenta
o marido com palavras duras e diretas: “Não sei por que não foi atrás daquela neta piedosa! Já comprou
um sabonete. Só falta comprar outro. É para ela que você comprou esse sabonete. Vá até lá e a esfregue!!!
Vocês, homens, quando não estão amaldiçoando meninas estudantes, estão elogiando meninas mendigas!”
Siming, em comparação, é um pouco atoleimado. O filho em pouco tempo desvenda o segredo por
trás da expressão “èdúfù!”. É simplesmente o modo como o pai havia ouvido a expressão “old fool” (“velho
idiota”). O jovem não diz nada. Sabe que o comportamento do pai na loja fizera jus à expressão, e que a
revelação de seu sentido literal seria, por isso, constrangedor. Poupa-o. No entanto, a visita inesperada de
dois amigos de Siming durante o jantar irá reforçar essa impressão no leitor. Os dois chegam agitados, pois
precisam urgentemente inscrever um ensaio e um poema num torneio promovido por uma liga literária
local. Um dos amigos, Daotong, traz o ensaio já escrito, no qual defende a edição de um decreto “que
promova os clássicos confucianos e o culto da mãe de Mêncio para preservar o caráter nacional”. Ainda
falta, porém, a poesia. Siming sugere que inscrevam uma poesia que tenha como título “A filha piedosa”, e
reconta aos dois amigos a cena que presenciou naquela tarde. Quando reproduz o comentário obsceno que
ouviu alguém fazer — “se esfregar um sabonete no corpo, até que ela não é de se jogar fora” — um dos
amigos começa a rir compulsivamente, para desespero de Siming, que sabe que a mulher está ouvindo tudo.
Ao voltar para a sala, Siming encontra o sabonete posto bem no centro da mesa, e a esposa
imóvel na cadeira, senhora da situação. No dia seguinte, quando o marido se levantar, ela já estará
esfregando a nuca com ele. A partir daquele dia, o cheiro do sabonete não deixaria mais a casa. No
começo, aquele mesmo cheiro, lembrando olivas. Depois, um outro, rescendendo a sândalo.
Essa é a história.
* * *
É curioso o papel desempenhado pelos nomes (ou pela ausência de nomes) nos contos de
Lu Xun. O caso mais famoso talvez seja o de Ah-Q, um miserável que insiste em transformar
derrotas muito reais em vitórias éticas imaginárias. Ninguém sabe seu nome. Ele não tem nome.
Ninguém sabe qual é sua família ou sua cidade de origem. Condenado à morte, após uma série de
infortúnios, ele assina sua confissão fazendo um círculo no papel. No último momento, porém,

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sua mão escorrega e ele acaba desenhando uma letra Q, e fica conhecido a partir daí como o
“Quezinho”. O nome de Ah-Q efetua, por isso, uma completa desnominalização do personagem:
não é seu sobrenome, nem seu prenome, não corresponde a nenhum ideograma e, na escala
alfabética ocidental, está aquém de qualquer nome, está aquém de qualquer sílaba — é uma só letra.
O “Sabonete” é um conto cujo título designa uma coisa que é minuciosamente apresentada ao
leitor nas linhas iniciais do conto... sem nome algum. O efeito literário da passagem é claro: o texto
transporta o leitor para a perspectiva de alguém que jamais usou ou desembrulhou, ou simplesmente pegou
nas mãos uma barra de sabonete. O nome claramente já é conhecido de Siming e de sua esposa, que
provavelmente seriam capazes de produzir uma descrição aproximada de um sabonete. Falta-lhes, sem
dúvida, conhecimento de trato. Mas a distância entre o casal e aquele objeto é ainda maior que a existente
entre uma descrição genérica e o conhecimento de trato. Num primeiro momento, a mulher não é capaz de
perceber que está ganhando um sabonete, pois não consegue ler o rótulo do produto. Os símbolos escritos,
porém, são apenas uma parte daquilo que o casal não consegue “ler” no produto. É o próprio objeto que
não se deixa ler facilmente. Ambos sabem, por certo, para que serve um sabonete, onde é comprado, suas
vantagens em relação à vagem de acácia e coisas do tipo. Não se trata de um “algo” indeterminado, mas
de um produto usado pelos ocidentais no banho, que pode ter diversos perfumes e limpa bem melhor a
sujeira do corpo que os equivalentes cosméticos locais. Falta-lhes, além do conhecimento de trato que
estão tendo naquela hora, uma certa familiaridade prática com o objeto. Não há lugar definido para ele na
casa (a mulher o põe em cima do armário da pia, depois em cima da mesa da sala), não se sabe muito bem
como abri-lo (rasga-se a embalagem? ou só o lacre? conserva-se o papel manteiga que o envolve?), não se
sabe muito bem como usá-lo (aplica-se diretamente ao corpo, como as vagens? junto com a água, antes,
ou depois dela?), ou mesmo comprá-lo (pode-se pedir ao vendedor que abra o produto para um exame
prévio?). Não faria sentido perguntar, naquele contexto, qual o sabonete preferido da mulher — pergunta
perfeitamente natural entre usuárias mais experientes, que escolherão entre o odor de olivas e o de sândalo.
Um sabonete é um sabonete e suas circunstâncias “rituais” de uso. Fora daí, não é objeto de
toilette, nem objeto verde perfumado, nem objeto, nem nada. Assim como há uma sintaxe do som,
há também uma sintaxe do objeto, e podemos dizer que o casal do conto de Lu Xun domina apenas
parte dessa sintaxe. Essa sintaxe do objeto vai muito além dele próprio. Uma suposta união do nome
a um objeto não nos daria base suficiente para articular um som significativo, que dirá uma sentença
dotada de sentido. A sintaxe do nome amplia a sintaxe do objeto, dando-lhe corrência no plano de

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nossas trocas linguísticas. Vou à loja e peço por um sabonete. O vendedor me faz algumas perguntas
e me traz quatro ou cinco tipos diferentes. Escolho um deles, pago, digo muito obrigado e vou-me
embora. Temos aqui duas sintaxes entretecidas — a do nome e a do objeto. É isso que o sabonete
do conto de Lu Xun exemplifica. Quando não dominamos essa ordem sintática, ou não a dominamos
completamente, o que temos é a exclusão linguística total ou parcial, o afastamento da comunidade
dos falantes que qualquer um de nós sentiria se fosse posto no meio de uma conferência sobre a
química dos sabonetes, por exemplo. Poderíamos tentar uma integração precária, mas mais cedo ou
mais tarde patentearíamos nossas insuficiências e o melhor seria nos retirarmos do diálogo. Qualquer
tentativa de mantê-lo seria vista como uma tolice — um erro sintático, para usar os termos que escolhi.
É curioso que, em determinadas épocas da história, somos postos diante daquilo que poderíamos
chamar de “revoluções sintáticas”. A sintaxe está sempre mudando, e essas mudanças são na maioria das
vezes graduais. Mas há também mudanças bruscas, ocasionadas por fatores como guerras, revoluções
políticas e econômicas, novas tecnologias, e assim por diante. Nesse cenário, costumes adotados
irrestritamente durante séculos podem desaparecer completamente no espaço de poucos anos, quase sem
deixar vestígios. A situação da China na passagem do século XIX para o século XX é exemplar. Há uma
revolução completa na política, na economia e, acima de tudo, nos valores e costumes tradicionais. No
espaço de poucos anos, hábitos seculares, como o uso da trança simples e o costume de enfaixar os pés
das mulheres, são completamente abandonados e vistos, pelas novas gerações, como algo ridículo, a ser
ultrapassado. Siming é um homem cindido entre dois universos vivenciais: o da China tradicional, em
que nasceu e foi educado, e o da China que almeja abandonar completamente esse passado e se inserir
no mundo. São jovens nascidos nessa nova China que dirigem a Siming o insulto que ele não consegue
compreender. Sabe que foi ridicularizado, e desconfia que o motivo está ligado ao modo como se portou
diante do vendedor. “Devo ter parecido muito detalhista”, ele diz. Na verdade, o que ele revela é seu
pertencimento a uma outra forma de vida — uma forma de vida na qual aqueles jovens não se reconhecem
e da qual querem se livrar a qualquer custo. Reconhecem imediatamente nele um representante da
velha ordem e passam a falar em inglês entre si, tendo certeza absoluta de que não serão entendidos.
Um insulto é um jogo de linguagem entre outros. Trata-se de um uso regrado de palavras, com
uma sintaxe muito própria, na qual cabem gradações, ajustes à situação, ao interlocutor, a outras coisas
ditas anteriormente, cálculos do que se dirá ou se fará depois, tudo isso colocado em linhas de oposição
normativa muito claras. Há insultos mais ou menos adequados, mais ou menos justos, mais ou menos

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oportunos, mais ou menos inteligentes, e assim por diante. O jovem que chama Siming de “velho
idiota” tem, talvez, um certo prazer sádico na humilhação de um personagem a seus olhos detestável,
e os jovens que assistem à humilhação talvez compartilhem o mesmo prazer. Mas claramente não se
trata ali de mero destempero verbal motivado por uma explosão emocional. Não imaginamos o insulto
berrado aos ouvidos de seu alvo. É antes num tom de voz comedido — talvez mesmo num sussurro
— que tendemos a imaginá-lo. Pois, quem o faz, pretende estar embasando a ofensa numa avaliação
perfeitamente justa da pessoa ofendida, com base num comportamento objetivamente observado. “Esse
homem não sabe, por acaso, que ninguém desembrulha um sabonete antes de comprá-lo? Que velho
idiota!”. Essa dimensão normativa do insulto, porém, só está acessível aos colegas do adolescente e,
possivelmente, ao balconista da loja. Insultando Siming em inglês, o jovem o colocou fora de seu círculo
de interlocuções. Acreditava ter razões para dizer o que dizia, e acreditava que tanto seus colegas quanto
o balconista reconheceriam essas razões como válidas, mas não reconhecia naquele homem ultrapassado
uma instância adequada de avaliação de seu insulto. Ele é, para todos eles, um estrangeiro, nascido num
outro país, num outro tempo, numa outra forma de vida. Mesmo quando fala em chinês, fala uma língua
que nenhum deles compreende, na qual nenhum deles teria condições de manter uma interlocução racional.
Siming está longe de ser um ignorante. Tem um círculo de amigos um pouco antiquados, é verdade,
mas no qual, de todo modo, a educação formal é um pressuposto. Escrevem ensaios e poesias, participam
de certames literários, têm ideias a respeito de como salvar a China e sua cultura milenar. Seria um engano
achar que todos pensam o mesmo a respeito de todos os assuntos, ou mesmo a respeito da maioria deles.
Discordam, discutem, argumentam, apresentam razões a favor ou contra uma determinada ideia. Estão
reunidos, naquele final de tarde, exatamente com esse propósito: chegar a um acordo sobre o ensaio e a
poesia a serem encaminhadas ao certame. Será conveniente aprovar a moção em favor de um culto à mãe
de Mêncio? Seria a mendiga um bom exemplo de piedade filial? Será esse um bom tema para a poesia?
Todos ali falam a mesma língua, mas isso não implica num compartilhamento irrestrito de opiniões. É
muito provável que naquele, como em qualquer círculo desse tipo, as discussões e divergências ocorram
com frequência. Mas, para que essas discussões ocorram, é preciso que uma série de outras coisas estejam
fora de discussão. É preciso que nem tudo seja suscetível de uma argumentação contrária e que, num
número imenso de casos, a mera tentativa de argumentar seja considerada uma infração sintática. É isso
que faz deles uma comunidade de falantes, e não meramente o uso do mesmo código escrito ou falado.
É isso que torna igualmente possível o desentendimento entre Siming e sua esposa. Eles só se

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desentenderam porque se entendem perfeitamente a respeito de quase tudo. Discordam a respeito de


algumas coisas, mas não de todas. São capazes de se insultar genuinamente, de sentir vergonha diante da
denúncia de um erro ou de uma hipocrisia, de avaliar em seus próprios termos o que o outro está dizendo.
É o contrário disso que acontece com os jovens da perfumaria. Siming sente-se insultado, é claro, e quem
o insultou quis também produzir esse efeito. Mas o produziu sem nenhuma esperança de que o comentário
tivesse contundência pelo reconhecimento de sua justeza, como acontece quando a esposa dirige a Siming
palavras mais duras. Ela clama por reconhecimento do marido. Os jovens só querem marcar seu desprezo
e sua distância de alguém em quem eles, no fundo, não reconhecem a capacidade da interlocução racional.
É possível que eles se enganem. Siming e a mulher estão condenados a aprender a linguagem dos
novos tempos, nem que seja aos trancos e barrancos. O mundo em volta lhes vai enfiando sua sintaxe
goela abaixo. A sintaxe do sabonete está incompleta, como vimos, mas falta muito pouco para ela se
completar. O sabonete torna-se item constante naquela casa, e depois de seis meses a mulher já começa
a escolher diferentes tipos de sabonetes. Não sabemos se as filhas de Siming irão estudar inglês, mas
sabemos desde logo que não esfregarão mais o corpo com vagens de acácia. Cortarão os cabelos curtos
e usarão saias, como todas as outras meninas de sua idade. Siming e a esposa provavelmente jamais
se tornarão fluentes no novo idioma da China pós-imperial. Serão como velhos imigrantes dentro de
seu próprio país, chegados de um passado que vai tomando cada vez mais as feições de uma figura
histórica endurecida, que podemos estudar nos livros de história, mas não vivenciar no dia a dia.

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