Candido 1943 No Raiar de Clarice
Candido 1943 No Raiar de Clarice
Candido 1943 No Raiar de Clarice
Parece certo que o início de uma verdadeira reforma do pensamento literário tern
de começar pelo forjamento de uma expressão adequada; mas no Brasil notamos um
!alve se pudesse dier, para concluir, que numa literatura, enquanto não se
estabelecer um movimento de pensar efetivamente o material verbal; enquanto não se
pensar da efetividade e da observação para a síntese de ambos, que se processa na
inteli(ncia, - não será possível encará-la do "n(ulo das produç2es feitas para
permanecer. Cnquanto não for pensada convenientemente, uma lín(ua não estará apta
para al(uma coisa de definitivo, nem dará ao a nada mais s6lido do que a literatura
perif$rica, ou seja, a que dá voltas em torno de um problema essencial sem conse(uir
p5r a mão nele. Para que a literatura brasileira se torne (rande, $ preciso que o
pensamento afine a lín(ua e a lín(ua su(ira o pensamento por ela afinado. Dma corrente
dupla, de que saem as obras-primas e sem a qual dificilmente se c*e(a a uma visão
profunda e vasta dentro da literatura.
os romances que se publicam todos os dias entre n6s, podemos dier sem medo
que não encontramos a verdadeira exploração vocabular, a verdadeira aventura da
expressão. Por maiores que sejam, os nossos romancistas se contentam com posiç2es já
adquiridas, pensando naturalmente que o impulso (eneroso que os anima supre a rudea
do material. >aramente $ dado encontrar um escritor que, como o 9s:ald de Andrade
de Joao Miramar , ou o +ário de Andrade de Macunaíma, procura estender o domínio
da palavra sobre re(i2es mais complexas e inexprimíveis, ou faer da ficção uma forma
de con*ecimento do mundo e das ideias. Por isso, tive verdadeiro c*oque ao ler o
romance diferente que $ Perto do coração selvagem , de <larice #ispector, escritora at$
aqui completamente descon*ecida para mim.
<om efeito este romance e uma tentativa impressionante para levar a nossa
lín(ua can*estra a domínios pouco explorados, forçando-a a adaptar-se a um
pensamento c*eio de mist$rio, para o qual sentimos que a ficção não $ um exercício ou
uma aventura afetiva, mas um instrumento real do espírito, capa de nos faer penetrar
em al(uns labirintos mais retorcidos da mente.
E!odos os *omens que estão faendo um (rande nome em arte F ... F faem-no
porque evitam o inesperado; porque se especialiam em p5r as suas obras no mesmo
encaixe que as outras, de modo que o p8blico sabe imediatamente onde tem o nariE -
diia certo crítico de arte a GolHon IorsHte Gunior; e aconsel*ando-o a abandonar as suas
veleidades pessoais para entrar na rotina, acrescentou estas palavras sabiasJ Ee isto $
tanto mais fácil para o sen*or quanta não *a uma ori(inalidade muito acentuada no seu
estiloE0
Assim, na bitola comum da arte, o mel*or para o artista seria sofrear os ímpetos
ori(inais e procurar uma relativa eminncia de uma rotina mediana, mas *onesta e
s6lida. 9 pr6prio =als:ort*H talve possa ser dado como exemplo do que p2e na boca
do seu persona(em.
e não valesse por muito motivos, o livro de <larice #ispector valeria como
tentativa, e $ como tal que devemos jul(á-lo, porque nele a realiação $ nitidamente
inferior ao prop6sito. 9ri(inal, não sei at$ que ponto será. A crítica de influncias me
mete certo medo, pelo que tem de difícil e sobretudo de relativa e pouco concludente.
Cm elação a Perto do coração selvagem, se deixarmos de lado as possíveis fontes
estran(eiras de inspiração, permanece o fato de que, dentro da nossa literatura, $
performance da mel*or qualidade.
A autora 4ao que parece uma jovem estreante7 colocou seriamente o problema do
estilo e da expressão. obretudo desta. entiu que existe uma certa densidade afetiva e
intectual que não $ possível exprimir se não procurarmos quebrar os quadros da rotina e
criar ima(ens novas, novos torneios, associaç2es diferentes das comuns e mais
fundamente sentidas. A descoberta do quotidiano $ uma aventura sempre possível, e o
seu mila(re, uma transfi(uração que abre sempre camin*o para mundos novos. As
telefonistas de Proust, transformadas em divindades fatais; o corvo de Poe; os objetos
de ?offman; o sanduíc*e de ?arpo +arx N são outros tantos meios de protestar contra o
ramerrão mecaniado. <larice #ispector aceita a provocação das coisas sua
sensibilidade e procura criar um mundo partindo das suas pr6prias emoç2es, da sua
C desta maneira que <larice #ispector procura situar o seu romance. 9 seu ritmo
$ um ritmo de procura, de penetração que permite uma tensão psicol6(ica poucas vees
alcançada em nossa literatura contempor"nea. 9s vocábulos são obri(ados a perder o
seu sentido corrente, para se amoldarem as necessidades de uma expressão sutil e tensa,
de tal modo que a lín(ua adquire o mesmo caráter dramático que o entrec*o. A narrativa
se desenvolve a principio em dois planos, alternando a vida atual com a inf"ncia da
prota(onista. A sua existncia presente, alias, possui uma atualidade bastante estran*a, a
ponto de não sabermos se a narrativa se refere a al(o já passado ou em vias de
acontecer. !odos esses processos, que sentimos conscientes e escol*idos, correspondem
a atmosfera do livro, que parece dar menos import"ncia as condiç2es de espaço e tempo
do que a certos problemas- intemporais encarnados pelos persona(ens. 9 tempo
cronol6(ico perde a raão de ser, ante a intemporalidade da ação, que fo(e dele num
ritmo capric*oso de duração interior.
apoio para compreender Goana, persona(em central. Ali descobrimos que a menina e
diferenteJ porque, a tia não sabe nem ela pr6pria. 9 que se sabe $ justamente o que ela
di a tiaJ ECu posso tudoE. &iante de Goana não *á barreiras nem empecil*os que a
façam desviar do seu destino; este, quase uma missão, consiste em procurar acercar-se
cada ve mais do Eselva(em coração da vidaE. 9 coração selva(em pode ser um c$u e
pode ser um inferno. <omo nunca o atin(imos, e sempre um inferno especial, onde o
suplício máximo fosse o de !"ntalo; e com efeito este romance $ uma variação sobre o
suplício de !"ntalo. Goana passeia pela vida e sofre, sempre obcecada por al(o que não
atin(e. +ove-se perenemente entre aquelas Eformas vãs e as aparnciasE, de que o
poeta jul(ou se ter libertado; e, como ele, apenas entreve a ona má(ica onde tudo se
transmuda e a convenção dos sentidos cede lu(ar visão essencial da vida. Leu posso
tudoM. A pobre Goana nada pode, como todos n6s. +as possui uma virtude que nem a
todos $ dadaJ recusar violentamente a lição das aparncias e lutar por um estado
inefável, onde a suprema felicidade $ o supremo poder, porque no coração selva(em da
vida pode-se o que se quer, quando se sabe querer.
Cm pequena, Goana recusava admitir que as (alin*as fossem somente o que l*e
diiam que elas eram, e que ela pr6pria via que eram. <omo todos os de sua estirpe,
insatisfeitos e obstinados aventureiros dentro do pr6prio eu N Goana reputava bem
despreíveis os ar(umentos dos sentidos, aos quais sobrepun*a a visão má(ica da
existncia. 9 seu drama $ do de !"ntalo, sempre pensando tocar o alvo e sentindo-o
sempre fu(itivo. <om a diferença que para !"ntalo isso era a pr6pria raão de ser da
vida e, portanto, a sua (l6ria, a sua esplndida unicidade. Onica. Goana pode ser
considerada uma pessoa má no sentido em que se(ue a $tica da unicidade. LCu posso
tudoM. !udo para ela $ possível desde que si(nifique a realidade do seu eu. 9s outros
nada valem e não importam. )mporta o seu corpo, que ela mira amorosamente na
ban*eira; a sua alma, que ela sente latejar no escuro do mundo. Cm torno dela, o
silncio, porque ela $ a 8nica e, portanto, s6. Acima dela, o coração selva(em da vida,
do qual apenas se aproximam os solitários, que encontram a suprema felicidade no
supremo anta(onismo com o mundo.
diante o livro deixa de ser o casulo da prota(onista para entrar por outros destinos a
dentro. 9 seu esplndido isolamento, a sua força de exceção, que aterroria a tia, se v
obri(ada a medir forças com a vida e sofrer as limitaç2es que esta imp2e. Goana perde
al(o da supremacia que os que nela interferem para buscar de novo a solidão. Dma
constatação se imp2e e ela a sente fatalJ os outros vivem mais do que ela, porque são
capaes de se esquecerem. a sua conscincia a(uçada existe uma friea incompatível
com o fluxo normal da existncia, e $ por isto que ela cede o marido tão facilmente e
recon*ece a autenticidade maior da mul*er-da-vo e de #ídia. @italmente, $ uma fraca.
+as sua frente se abrem as campinas que os outros não veem; abre-se uma noção de
plenitude pela auto-realiação, que vai l*e permitir 4quandoQ7 a vitalidade definitiva de
um cavalo novo, perto do coração selva(em da vida.
&este estofo são feitas as (randes obras. 9 livro de <larice #ispector certamente
não o $, mas poucos como ele tm, ultimamente, permitido respirar numa atmosfera que
se aproxima da (randea. C isto, em boa parte, porque a sua autora soube criar o estilo
conveniente para que tin*a a dier. oube transformar em valores as palavras nas quais
muitos não veem mais do que sons ou sinais. A intensidade com que sabe escrever e a
rara capacidade da vida interior poderão faer desta jovem escritora um dos valores
mais s6lidos e, sobretudo, mais ori(inais da nossa literatura, porque esta primeira
experincia já $ uma nobre realiação.
4%/R07