Candido 1943 No Raiar de Clarice

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 6

No raiar de Clarice Lispector

Antonio Candido. In: Vários escritos, 1977

Parece certo que o início de uma verdadeira reforma do pensamento literário tern
de começar pelo forjamento de uma expressão adequada; mas no Brasil notamos um

certo conformismo estilístico. As tentativas modernas, que pareceram bravatas tão


arrojadas aos tímidos amantes do erviço de !r"nsito #iterário, $ forçoso convir que
não passaram de uma %imitada amplitude. &entro dela, cada um se exprimiu mais ou
menos saborosamente, conforme o seu talento,' mas nin(u$m aprofundou a expressão
literária. )sto $, nin(u$m disse mais e mel*or do que +ac*ado de Assis e Aluísio
Aevedo. A qualidade que impressionou foi o vi(or, - a desenvoltura com que, par
exemplo, os romancistas do decnio de %/01 lidaram com os vocábulos e as
construç2es, adaptando uns e outros ao seu temperamento literário expansivo. 3uase
nin(u$m, todavia, c*e(ou a dar uma demonstração de verdadeira força mental, não
física ou emocional. 4!alve Ant5nio de Alc"ntara +ac*ado, se não tivesse morrido, -
pensam sem base s6lida os nostál(icos.7 Possive%mente, os 8nicos que fieram al(o
realmente de valor foram +ario de Andrade, com Macunaíma, e 9s:ald de Andrade,
com Mem6rias sentimentais de João Miramar. outro sentido, <iro dos Anjos andou
por perto, assim como =raciliano >amos. 9s demais deram belos exemplos de vi(or e
sensibilidade. ada me a(rada mais do que ler Fogo Morto ou Terras do sem fim, o que
fi repetidas vees. +as a contribuição do pensamento, que fa a verdadeira obra
durável; que distin(ue a confissão de tavro(uin dos (ritos pun(entes de ?elen =race
<arlisle, faendo da primeira uma criação superior do espírito, em contraposição ao
rumor de entran*as dos se(undos %; que distin(ue o vel6rio de #ui(i +urica da
admirável prisão de @itorino Papa->abo, porque o primeiro se enquadra numa visão
(eral da sociedade e da existncia, enquanto esta $ apenas um retal*o de *umidade
transposto pela arte ; - esta contribuição do pensamento, eu a procuro em vão nos

1 Helen Grace Carlisle foi autora de um retumbantebest seller dos ano


Tinta, Mother’s Cry, que apresentava como documento real e deste modo

impressionou todos os que gostam da subliteratura sentimental.

2 Luigi Murica é personagem de Pane e vino, de gna!io "ilone, que ent#o


supervalori!$vamos. Ho%e, eu diria o contr$rio, considerando &osé Lins bem
superior.
mestres do nosso romance atual, aliás semel*antes nisto  maioria dos seu cole(as
norte-americanos e europeus.

!alve se pudesse dier, para concluir, que numa literatura, enquanto não se
estabelecer um movimento de pensar efetivamente o material verbal; enquanto não se
pensar da efetividade e da observação para a síntese de ambos, que se processa na
inteli(ncia, - não será possível encará-la do "n(ulo das produç2es feitas para
permanecer. Cnquanto não for pensada convenientemente, uma lín(ua não estará apta
para al(uma coisa de definitivo, nem dará ao a nada mais s6lido do que a literatura
perif$rica, ou seja, a que dá voltas em torno de um problema essencial sem conse(uir
p5r a mão nele. Para que a literatura brasileira se torne (rande, $ preciso que o
pensamento afine a lín(ua e a lín(ua su(ira o pensamento por ela afinado. Dma corrente
dupla, de que saem as obras-primas e sem a qual dificilmente se c*e(a a uma visão
profunda e vasta dentro da literatura.

os romances que se publicam todos os dias entre n6s, podemos dier sem medo
que não encontramos a verdadeira exploração vocabular, a verdadeira aventura da
expressão. Por maiores que sejam, os nossos romancistas se contentam com posiç2es já
adquiridas, pensando naturalmente que o impulso (eneroso que os anima supre a rudea
do material. >aramente $ dado encontrar um escritor que, como o 9s:ald de Andrade
de Joao Miramar , ou o +ário de Andrade de Macunaíma, procura estender o domínio
da palavra sobre re(i2es mais complexas e inexprimíveis, ou faer da ficção uma forma
de con*ecimento do mundo e das ideias. Por isso, tive verdadeiro c*oque ao ler o
romance diferente que $ Perto do coração selvagem , de <larice #ispector, escritora at$
aqui completamente descon*ecida para mim.

<om efeito este romance e uma tentativa impressionante para levar a nossa
lín(ua can*estra a domínios pouco explorados, forçando-a a adaptar-se a um
pensamento c*eio de mist$rio, para o qual sentimos que a ficção não $ um exercício ou
uma aventura afetiva, mas um instrumento real do espírito, capa de nos faer penetrar
em al(uns labirintos mais retorcidos da mente.

E!odos os *omens que estão faendo um (rande nome em arte F ... F faem-no
porque evitam o inesperado; porque se especialiam em p5r as suas obras no mesmo
encaixe que as outras, de modo que o p8blico sabe imediatamente onde tem o nariE -
diia certo crítico de arte a GolHon IorsHte Gunior; e aconsel*ando-o a abandonar as suas
veleidades pessoais para entrar na rotina, acrescentou estas palavras sabiasJ Ee isto $
tanto mais fácil para o sen*or quanta não *a uma ori(inalidade muito acentuada no seu
estiloE0

Assim, na bitola comum da arte, o mel*or para o artista seria sofrear os ímpetos
ori(inais e procurar uma relativa eminncia de uma rotina mediana, mas *onesta e
s6lida. 9 pr6prio =als:ort*H talve possa ser dado como exemplo do que p2e na boca
do seu persona(em.

o entanto, mesmo na craveira ordinária do talento, *á quem procure uma via


mais acentuadamente sua, preferindo o risco da aposta  comodidade do ramerrão. K o
caso de <larice #ispector, que nos deu um romance de tom mais ou emons raro em
nossa literatura moderna, já qualificada de Lin(enuamente naturalistaM por um crítico de
valor, em frase que me parece exa( erada. Poder-se-ia dier com mais justea que os
escritores brasileiros se contentam em (eral com processos já usados, e que apenas um
ou outro se arrisca a tentativas mas ousadas.

e não valesse por muito motivos, o livro de <larice #ispector valeria como
tentativa, e $ como tal que devemos jul(á-lo, porque nele a realiação $ nitidamente
inferior ao prop6sito. 9ri(inal, não sei at$ que ponto será. A crítica de influncias me
mete certo medo, pelo que tem de difícil e sobretudo de relativa e pouco concludente.
Cm elação a Perto do coração selvagem, se deixarmos de lado as possíveis fontes
estran(eiras de inspiração, permanece o fato de que, dentro da nossa literatura, $
performance da mel*or qualidade.

A autora 4ao que parece uma jovem estreante7 colocou seriamente o problema do
estilo e da expressão. obretudo desta. entiu que existe uma certa densidade afetiva e
intectual que não $ possível exprimir se não procurarmos quebrar os quadros da rotina e
criar ima(ens novas, novos torneios, associaç2es diferentes das comuns e mais
fundamente sentidas. A descoberta do quotidiano $ uma aventura sempre possível, e o
seu mila(re, uma transfi(uração que abre sempre camin*o para mundos novos. As
telefonistas de Proust, transformadas em divindades fatais; o corvo de Poe; os objetos
de ?offman; o sanduíc*e de ?arpo +arx N são outros tantos meios de protestar contra o
ramerrão mecaniado. <larice #ispector aceita a provocação das coisas  sua
sensibilidade e procura criar um mundo partindo das suas pr6prias emoç2es, da sua

' Trata(se do personagem central do romance de &o)n Gal*ort)+,The Man


of Property, primeiro da trilogia The Forsyto Saga.
pr6pria capacidade de interpretação. Para ela, como para outros, a meta $,
evidentemente, buscar o sentido da vida, penetrar no mist$rio que cerca o *omem.
<omo os outros, ela nada conse(ue, a não ser esse timbre que revela as obras de
exceção e que $ a mel*or marca do espírito sobre a resistncia das coisas.

Anti(amente, c*amavam-se de análise as romances mais ou menos psicol6(icos,


que procuravam estudar as paix2es - as famosas paixões da literatura clássica, -
dissecando os estados de alma e procurando revelar o mecanismo do espirito. ?oje o
nome conv$m a um numero bem menor de obras. 9s romances são mais universalistas,
e as delimitaç2es que as classificavam perderam muito como sentido e como jurisdição.
Aos livros que procuram esclarecer mais a essncia do que a existncia, mais o ser do
que o estar, com um tempo mais acentuadamente psicol6(ico, talve seja mel*or
c*amar romances de aproximação. 9 seu campo ainda e a alma, são ainda as paixões.
9s seus processos e a sua indiscriminação repelem, todavia, a ideia de análise. ão antes
uma tentativa de esclarecimento atrav$s da identificação do escritor com o problema,
mais do que urna relação bilateral de sujeito-objeto.

C desta maneira que <larice #ispector procura situar o seu romance. 9 seu ritmo
$ um ritmo de procura, de penetração que permite uma tensão psicol6(ica poucas vees
alcançada em nossa literatura contempor"nea. 9s vocábulos são obri(ados a perder o
seu sentido corrente, para se amoldarem as necessidades de uma expressão sutil e tensa,
de tal modo que a lín(ua adquire o mesmo caráter dramático que o entrec*o. A narrativa
se desenvolve a principio em dois planos, alternando a vida atual com a inf"ncia da
prota(onista. A sua existncia presente, alias, possui uma atualidade bastante estran*a, a
ponto de não sabermos se a narrativa se refere a al(o já passado ou em vias de
acontecer. !odos esses processos, que sentimos conscientes e escol*idos, correspondem
a atmosfera do livro, que parece dar menos import"ncia as condiç2es de espaço e tempo
do que a certos problemas- intemporais encarnados pelos persona(ens. 9 tempo
cronol6(ico perde a raão de ser, ante a intemporalidade da ação, que fo(e dele num
ritmo capric*oso de duração interior.

!alve devamos procurar no capitulo c*amado E9 ban*oE o mel*or ponto de

apoio para compreender Goana, persona(em central. Ali descobrimos que a menina e
diferenteJ porque, a tia não sabe nem ela pr6pria. 9 que se sabe $ justamente o que ela
di a tiaJ ECu posso tudoE. &iante de Goana não *á barreiras nem empecil*os que a
façam desviar do seu destino; este, quase uma missão, consiste em procurar acercar-se
cada ve mais do Eselva(em coração da vidaE. 9 coração selva(em pode ser um c$u e
pode ser um inferno. <omo nunca o atin(imos, e sempre um inferno especial, onde o
suplício máximo fosse o de !"ntalo; e com efeito este romance $ uma variação sobre o
suplício de !"ntalo. Goana passeia pela vida e sofre, sempre obcecada por al(o que não
atin(e. +ove-se perenemente entre aquelas Eformas vãs e as aparnciasE, de que o
poeta jul(ou se ter libertado; e, como ele, apenas entreve a ona má(ica onde tudo se
transmuda e a convenção dos sentidos cede lu(ar  visão essencial da vida. Leu posso
tudoM. A pobre Goana nada pode, como todos n6s. +as possui uma virtude que nem a
todos $ dadaJ recusar violentamente a lição das aparncias e lutar por um estado
inefável, onde a suprema felicidade $ o supremo poder, porque no coração selva(em da
vida pode-se o que se quer, quando se sabe querer.

Cm pequena, Goana recusava admitir que as (alin*as fossem somente o que l*e
diiam que elas eram, e que ela pr6pria via que eram. <omo todos os de sua estirpe,
insatisfeitos e obstinados aventureiros dentro do pr6prio eu N Goana reputava bem
despreíveis os ar(umentos dos sentidos, aos quais sobrepun*a a visão má(ica da
existncia. 9 seu drama $ do de !"ntalo, sempre pensando tocar o alvo e sentindo-o
sempre fu(itivo. <om a diferença que para !"ntalo isso era a pr6pria raão de ser da
vida e, portanto, a sua (l6ria, a sua esplndida unicidade. Onica. Goana pode ser
considerada uma pessoa má no sentido em que se(ue a $tica da unicidade. LCu posso
tudoM. !udo para ela $ possível desde que si(nifique a realidade do seu eu. 9s outros
nada valem e não importam. )mporta o seu corpo, que ela mira amorosamente na

ban*eira; a sua alma, que ela sente latejar no escuro do mundo. Cm torno dela, o
silncio, porque ela $ a 8nica e, portanto, s6. Acima dela, o coração selva(em da vida,
do qual apenas se aproximam os solitários, que encontram a suprema felicidade no
supremo anta(onismo com o mundo.

+as, como a vida, o romance de <larice #ispector $ um romance de relação. K


impossível a (l6ria apenas entrevista do isolamento, porque a ela s6 tm acesso os
anormais, que são os desadaptados por excelncia. Portanto, Goana vive em contato com
os seus semel*antes, e antes de mais nin(u$m com o seu marido. &e certo ponto em

diante o livro deixa de ser o casulo da prota(onista para entrar por outros destinos a
dentro. 9 seu esplndido isolamento, a sua força de exceção, que aterroria a tia, se v
obri(ada a medir forças com a vida e sofrer as limitaç2es que esta imp2e. Goana perde
al(o da supremacia que os que nela interferem para buscar de novo a solidão. Dma
constatação se imp2e e ela a sente fatalJ os outros vivem mais do que ela, porque são
capaes de se esquecerem. a sua conscincia a(uçada existe uma friea incompatível
com o fluxo normal da existncia, e $ por isto que ela cede o marido tão facilmente e
recon*ece a autenticidade maior da mul*er-da-vo e de #ídia. @italmente, $ uma fraca.
+as  sua frente se abrem as campinas que os outros não veem; abre-se uma noção de
plenitude pela auto-realiação, que vai l*e permitir 4quandoQ7 a vitalidade definitiva de
um cavalo novo, perto do coração selva(em da vida.

&este estofo são feitas as (randes obras. 9 livro de <larice #ispector certamente
não o $, mas poucos como ele tm, ultimamente, permitido respirar numa atmosfera que
se aproxima da (randea. C isto, em boa parte, porque a sua autora soube criar o estilo
conveniente para que tin*a a dier. oube transformar em valores as palavras nas quais
muitos não veem mais do que sons ou sinais. A intensidade com que sabe escrever e a
rara capacidade da vida interior poderão faer desta jovem escritora um dos valores
mais s6lidos e, sobretudo, mais ori(inais da nossa literatura, porque esta primeira
experincia já $ uma nobre realiação.

4%/R07

Você também pode gostar