Sobre Herberto Sales II

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HERBERTO SALES: O ROMANCE E A BUSCA DE SI

MESMO

Ângela Vilma S. Bispo Oliveira*

RESUMO: O presente artigo pretende estudar o romancista


baiano Herberto Sales nas relações que permeiam e entrecruzam
vida e obra. Trata-se de estabelecer uma visão panorâmica da obra
romanesca do escritor para, a partir daí, encontrarmos o autor
nas particulares do sujeito biográfico; o memorialista, pois que
sua obra ficcional traz cifrados rastros e vivências particulares em
meio a memória de uma coletividade; e, principalmente, o prosador
– homem que, na busca incansável de si mesmo, transforma o que
viveu e o que poderia ter vivido em objeto estético.

PALAVRAS-CHAVE: Ficção, Memória, Autobiografia.

RESUMEN: Este texto pretende estudiar al novelista bahiano


Herberto Sales, en las relaciones que atraviesan su vida y su obra.
Se trata de estabelecer una vision panorámica de la obra novelística
del escritor para, a partir de ese punto, encontrar al autor en las
particularidades del sujeto biográfico; el memorialista, ya que su
obra ficcional trae cifrados rastros y vivencias particulares aliadas
a la memoria de una coletividad; y, principalmente, el prosador
– hombre que, en busca incansable de si mismo, transforma lo que
vivió y lo que podria haber vivido en objeto estético.

PALABRAS-CLAVE: Ficción, Memoria, Autobiografía.

*Mestre em Teoria da Literatura (UFPE)


Doutoranda em Teoria da Literatura (UFPE)
Foi no primeiro livro de memórias que Herberto Sales
101

revelou o quão autobiográficas se faziam a sua relação com o conto,


gênero no qual se firmou utilizando alguns dos instrumentos de
romancista. Disse ele que para fazer um conto bastava-lhe “escrever
um dos mil e um desimportantes episódios” com que ao longo do
tempo vinha compondo a sua autobiografia, permitindo com que
nelas tomassem parte as pessoas que conheceu e que recordava.1
Tal afirmação vem ilustrar as nítidas relações autobiográficas
existentes na obra desse escritor - fato que nós já constatamos na sua
contística, quando percebemos como o conto e o romance, assim
como toda sua obra, estão entrelaçados, revelando a forte ligação
às suas raízes e aos lugares em que viveu.2 É como prolongamento
de estudo que podemos conjecturar o que abarca a obra desse
romancista – sua vida, memória e arte literária se conjugam numa
fronteira movediça e instigante.
Sabe-se o quanto as relações entre a biografia de um escritor
e a narrativa curta se estreitam, haja vista as pulsações individuais
que as cercam; nesse caso, lembramos também a poesia - formas
idiossincráticas em que se denotam com mais evidência as relações
de parentesco entre os acontecimentos existenciais e a literatura. Já o
romance não nos permite, com muita evidência, tal afirmação, pois
que a afluência de vias e percursos, aquela multiplicidade romanesca
que possibilita várias histórias se entrelaçarem e personagens
diversos se delinearem, nos põe num certo distanciamento da voz
autoral, pessoal. O escritor como que se dissemina em diversidade
de vozes e pessoas, desdobrando-se em muitos, em outros, em diversos,
tornando quase que impossível encontrar sua fisionomia, aquela
que costumamos chamar de biográfica. Nos labirintos do espelho
– que é o romance – o escritor e sua imagem se transformam em
fragmentos, onde por instantes pensamos vê-lo e o que detectamos
são outros, ou quiçá ele mesmo, o autor, encarnado numa legião.
Herberto Sales sempre afirmou “escrever com sinceridade”.
Nas entrevistas, constantemente relatou as relações presentes
entre seus livros e sua própria vida. Neles, fatos emergem como
de um sonho: voláteis e presentes, os acontecimentos de sua
existência permeiam a narrativa, seja ela romance, conto, ensaio e
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aquilo que, em falta de um outro nome, chamamos de literatura


infanto-juvenil. Nessa vasta obra, caminhos e descaminhos do
escritor se encontram, e o romancista é mesmo o homem - naquilo
que busca de possível unidade diante do múltiplo e indecifrável de
sua condição; memorialista – pois que não consegue esquecer o seu
passado, sua família, seus mortos; e, principalmente, é o prosador,
porque transforma em material estético o que viveu, perseguindo
a “verdade da alma” nos meandros feéricos daquilo que poderia
ter sido e que não foi.

Tudo o que quero é ser realmente eu mesmo. Tenho de


voltar de mim mesmo, para em mim mesmo ficar.3
Sou um habitante do passado, estrangeiro em terras do
presente e do futuro.4
Literatura não é apenas o que é feito com arte literária.
É, também, o que se faz com a verdade da alma.5
Nos restos perdidos de mim busco o outro que não fui
e que não sou.6

“Um homem em busca de si mesmo, indisfarçável e puro”,


assim o definiu Austregésilo de Athayde,7 quando da publicação
da trilogia herbertiana de memórias. Depois de uma constante
perseguição de si na obra ficcional, Herberto Sales resolve pôr
termo em suas confissões, existenciais e factuais, nos três volumes
memorialísticos de sua bibliografia. Neles, o homem assina
deliberadamente a confissão, permeada muitas vezes da literariedade
que a deixa suspensa e da verdade crua que a desestabiliza. Na
obsessão pela sinceridade, mostra-se assim como é, e dele, do
homem Herberto Sales, podemos endossar aquela definição que
o mesmo fez a respeito de um outro escritor, amigo seu.

... Era um homem inteiro em suas duas metades:


nas suas antipatias e nas suas simpatias. Um raro
ser humano fiel a si mesmo nos seus extremos. Não
brincava em serviço nos seus ódios. E dava plantão
em sua gratidão.8
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Como reiterou Cid Seixas, “Herberto xinga com raiva e


beija com amor” e “não abraça quando brigar devia, pois que,
“assim como o escritor, o homem não é invernizado por fora”.9
Essa personalidade forte vai influenciar a divulgação da obra,
explicando talvez o silêncio atual que desce sobre sua literatura e
seu nome. O homem e o escritor pagam um preço “alto” por dizer
“certas verdades”, sendo legado, pela mídia e mercados editoriais,
a um esquecimento que nos perturba, motivando-nos ao trabalho
amoroso e justo de “dizê-lo”, “contá-lo”. Essa é uma reação natural
do leitor que se encontra na memória do outro, na literatura que
promove o reencontro “com o que temos em nós de mais profundo
e verdadeiro”, como bem assinalou Herberto,10 sendo que nela,
na obra que lemos, “nos identificamos em nossas convicções mais
profundas, em nossas dúvidas e inquietações”.11 Assim, nessa
relação crítica, que também permeia o autobiográfico, nos situamos
como seres que se ficcionalizam, adentrando como personagens da
narrativa que se encontra em permanente construção.
Como leitores, o escritor escolhido por nós se transforma
num ser especial, pois que é muito difícil separar a obra, que
nos identificamos, do autor que a escreveu. Estamos, quase todo
o tempo, buscando a pessoa em meio a escrita; sabemos que o
homem é o arquiteto dos vestígios, diluindo suas pegadas nas
fronteiras, seja do sonho, seja da palavra materializada. Por mais
que o autor tente se esconder entre as páginas, intuímos que sua
história pessoal de alguma maneira se espraia e flui, evanescente
ou cristalizada. Simulacro que encena a própria alteridade,12 a
literatura aqui funciona como enigmática busca do autor. A
variante da crítica como história policial, proposta pelo argentino
Ricardo Piglia, situando o crítico como “decifrador de oráculos”
e o escritor como “o delinqüente que apaga suas pegadas e cifra
seus crimes”,13 nos possibilitará a investigação de Herberto Sales,
que, nas interfaces do romance, busca a si mesmo e se esconde.
Sua presença persiste, não atrás do texto - como bem assinalou
Roland Barthes - mas perdido no meio dele.14 A vida do autor
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torna-se a composição da ausência, rastro que não autentica sua


passagem, tampouco legitima acontecimentos vividos, mas que, ao
tempo em que flutua e se dissipa, permanece como uma sombra.
E é essa sombra que perseguimos ao revisitarmos seus diários,
documentos, entrevistas dadas, e, principalmente, em meio a seu
romance. Perscrutando aquelas “verdades da alma” – enviesadas e
perversas – que coabitam os enredos e artifícios literários, notamos
que sua figura se impõe e a relação que temos com ela é tão espessa
quanto a tentativa de totalizá-la. É assim que entramos no reino
do romanesco, configurando as formas enigmáticas e múltiplas das
leituras que empreendemos sobre o mundo.
Numa entrevista, ao ser questionado sobre a sua relação
com o garimpo, projeto do primeiro livro (Cascalho – 1944), e se o
mesmo acreditava na feitura romanesca a partir de uma pesquisa
deliberada ou, ao contrário, a partir de uma experiência natural,
espontânea, de fatos vividos e assistidos, Herberto Sales afirmou
que “cada pessoa que tem que escrever um romance”, na verdade,
de alguma maneira, ela “já traz dentro de si os romances que tinha
de escrever”. Esses romances surgem a partir de circunstâncias que
envolvem o escritor, configurando-se como uma “superposição,
uma sedimentação de vivências”.15 Explicando, com tal afirmação,
a gênese de Cascalho, dela nos apropriamos para agregá-la à gênese
de todos os seus outros romances, tão bem contados por ele na
sua trilogia memorialística.
É imperioso dizermos aqui, mais uma vez, que a obra de
Herberto Sales, em temas e formas, acompanhou seus percursos
biográficos. De Cascalho (1944) a A Prostituta (1996) – último romance
-, visualizamos aqueles caminhos por ele percorridos. Nascida de
uma relação visceral com a vida, tal obra vem confirmar a posição
do escritor diante de uma época, de sua existência e de sua criação
literária. Nesta se insere, sim, o autor que a escreveu, munido de
uma identidade particular, a despeito de tal identidade ser quase
sempre - em sua narrativa, como em todas as narrativas - uma
procura constante e, possivelmente, sem solução. Muito mais,
nessa literatura se insere, sim, o homem, seus personagens são todos
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nós, impressos nos abismos da perplexidade e da mais compassiva


ironia, pois que é a tessitura humana que a perpassa.
Pouco sabemos de nós – e vivemos. É o que nos sugerem as
entrelinhas da prosa herbertiana, que, dizendo passado e presente,
possibilita-nos visualizarmos os caminhos do homem, do prosador
e do memorialista, confirmando a certeza de que a obra literária
traz a vida do escritor, mas ultrapassa-a, vai além. Essa mobilidade
do eu, que se mostra e se esconde, e que faz da biografia uma
encenação é o que mais nos interessa. Aqui Herberto Sales dá a mão
a Mnemosyne, a deusa da memória, e canta o que foi, mas também
o que poderia ter sido. Ou melhor, o que poderá ainda acontecer.
Nesse tríplice caminho, presente, passado e futuro se encontram
eivados de possibilidades, iluminados pela ficção.
Encontrar Herberto Sales, o andaraiense que viveu e
testemunhou uma época, e que buscou retratá-la num romance
comprometido com a denúncia social, nas linhas e entrelinhas de
Cascalho, livro de 1944, totalmente reescrito em 1951, torna-se tarefa
instigante quando, debruçados sobre sua obra, percebemos nele já
nítidos aqueles “sinais particulares” que irão marcar a sua dicção
literária - não obstante a tentativa de desaparecimento - a partir de
romances tão aparentemente distintos entre si. Nesse livro, escrito
quando o autor tinha 24 anos, vimos a história centrada na sua
terra natal, Andaraí, na qual histórias de garimpos e garimpeiros
são contadas a partir da motivação do autor em denunciar as
mazelas ali presenciadas. O depoimento humano-social ganha
realces de crônica regionalista, onde a denúncia perpassada pelas
páginas, na voz de um narrador aparentemente distante, perfaz-se
num tom não planfetário, permitindo assim que as desigualdades
sociais ali expostas ganhem notoridade nas variadas perspectivas
estabelecidas pelo narrador. O autor quer esconder-se e ao mesmo
tempo dizer-se, pois que sua vida está lá, inscrita na mobilidade e
no desaparecimento, em meio àquela vida de garimpeiros:

... Todos três estavam agora curvados sobre a pedra


que Zé de Peixoto tinha na mão. Dizer da ansiedade,
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do alvoroço e do atordoamento deles, é impossível.


(...). (grifo nosso) 16
... Encontram-se como que encurralados no âmago da
gruna – seres insignificantes ao lado das grandes rochas
úmidas e escuras, sobre as quais vêem projetadas
suas próprias sombras. (...). (grifo nosso)17

Em 1961, com a publicação de Além dos Marimbus, segundo


romance, encontramos o mesmo e outro Herberto – vemos os
seus “sinais particulares”, porém a estrutura é distinta de Cascalho.
Nesse romance, escrito sobre a exploração madeireira de sua terra,
percebemos exacerbada a preocupação com a forma artística, já
prenunciada em Cascalho. Se este se fazia nos moldes memorialísticos
dos contadores de histórias nordestinos, Além dos Marimbus nasce
de um rigor visual na forma, apesar de não abandonar o cerne
memorialístico. Nesses dois livros, o autor está escondido na voz
de um narrador aparentemente distante, “disfarçado” na terceira
pessoa do discurso indireto livre.

Um desconhecido cruzava agora aquelas paragens:


Jenner. De casaco e culote de brim cáqui, chapéu de
abas largas, e coturnos, conservava-se atento à mata que
se descortinava além dos marimbus. (...).18
* * *
... E nessa personagem central [Jenner] talvez haja
também um pouco de mim, por conta das reminiscências
da minha viagem às matas. (...).19

Com Dados Biográficos do Finado Marcelino (1965), é outro o


narrador que se pronuncia. A partir desse livro ficamos mais
próximos do escritor, do homem e do memorialista Herberto
Sales. Com a pretensa finalidade de contar a vida e a morte de um
tio com o qual conviveu na época de sua adolescência, quando
de Andaraí se transportou para estudar em Salvador, o narrador,
entabulado na primeira pessoa do discurso, se posiciona, delineando
a sua própria memória biográfica. A riqueza do “disfarce”, e da
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possível confissão do escritor, vem confirmar o entrelaçamento


desse romance com os anteriores e, também, com as obras que
virão depois. Nesse amalgamar de existências, percebemos a
reiteração temática, estilística, a migração de personagens, todo o
diálogo possível que nos ajudará a compreender a obra, o homem,
o escritor. Funcionando como um divisor de águas, Dados Biográficos
do Finado Marcelino nos traz o Herberto citadino, mas enraizado
ainda à terra, alvo de suas reminiscências e presença decisiva em
sua formação humana.

Andava pelos treze anos quando conheci meu tio


Marcelino: era a primeira vez que eu ia a Salvador.
Três dias antes deixara Andaraí, minha terra natal,
em companhia de um comprador de diamantes, o
Sr. Gumercindo, velho amigo de meu pai. A viagem
enchera-me o coração de alvoroço. Com tamanha
alegria eu partira – e mamãe chorava tanto ao abraçar-
me! – que os abalos da separação logo se diluíram na
idéia daquela experiência nova e fascinante: ia conhecer
a Capital. (...).20

É, a seguir, com o intuito de fazer um romance sobre seus


antepassados que o escritor inicia as primeiras anotações que
irão desaguar num livro publicado oito anos após a idealização
- Os Pareceres do Tempo (1984). É importante situá-lo aqui,
cronologicamente, a fim de percebemos como a história pessoal
de Herberto se posiciona diante do fazer literário - história de
uma vida recorrendo aos enviesados caminhos da verossimilhança,
naquilo que abarca como possibilidades desentranhadas. Na
verdade, Os Pareceres do Tempo requeria algo maior de seu autor, e
ficou à espreita da melhor oportunidade de urdidura. E antes disso
acontecer, Herberto escreveu e publicou dois livros que bem dirão
das circunstâncias por ele vividas nas épocas datadas: 1976 e 1983,
respectivamente O Fruto do Vosso Ventre e Einstein, O Minigênio. Ele,
Herberto Sales, era diretor do Instituto Nacional do Livro e, por
isso, vivenciador do burocratismo que desumaniza as relações
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entre os homens. Nas reuniões que participava, vivia a anotar


tolices para compor os dois romances. O Dicionário das Idéias Feitas
flaubertiano de alguma maneira está inscrito nessa crítica atroz
que Herberto faz às instituições sociais e seu jargão tecnocrático.
É aqui que o riso, tão presente nesse escritor-contista, começa a
pulsar. Lembremos que em estudo anterior nosso,21 descobrimos
que o contista Herberto Sales nasceu no intervalo após a publicação
de Dados Biográficos do Finado Marcelino e antes da aparição de O Fruto
do Vosso Ventre. No livro de contos, Histórias Ordinárias (1966), já
começamos a visualizar a mordacidade dessa crítica social com os
contos Conselho e Ordem de Pagamento. Contos que anunciaram os
romances seguintes. Riso que desabrocha cruel e positivo, pois que
somado à sátira e à piedade - humor intuindo uma ternura pela
nossa triste e engraçada condição humana.
A publicação seguinte é mesmo Os Pareceres do Tempo. Romance
que compõe, a partir de alusões, a genealógica história do autor, ao
restituir, ficcionalmente, dois personagens de sua família, Policarpo
Golfão e Liberata. Confidenciou ele no livro de memórias:

... O meu Policarpo só tem que ver é com o meu


antepassado Policarpo. Assim mesmo em linhas gerais
de origem. Porque, enquanto o meu antepassado
gastou todo o dinheiro que tinha, apostando a alma
no baralho, e para isso indo de canoa São Francisco
abaixo São Francisco acima em busca de parceiros, o
Policarpo do romance é o desbravador romântico de
Cuia d’Água. (...)22

Para fazer este “romance de família”, Herberto foi em busca


de uma linguagem antiga e criou um cronista com a aparência
de um estilo oitocentista, situando a história no Brasil colonial.
Afirmou o escritor que aqui “a História foi apenas um prego”
onde pendurou o seu romance,23 sugerindo com tal declaração
a intencionalidade visceral do escritor - o resgate de sua história
pessoal, ainda que o romance se desvincule por si mesmo da
intenção do autor e nos deixe ver e refletir a história nacional,
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através das complexas relações que determinaram nossa formação.


Assim, as fronteiras entre o imaginário e o real, entre a história e
a literatura estão vinculadas aos meandros da verossimilhança, aos
desejos de representação, aliadas ao lirismo de um terceiro olho,
que tudo vê:

Finalmente, ainda com o sol alto, entreviu Policarpo


o acampamento, através da discreta folhagem dumas
árvores. Havia uma clareira, onde os índios moviam-
se lentos e descuidados, entregues aos seus quefazeres
índios deles: ralavam mandioca, com mandioca faziam
cauim, que bebiam, e farinha, que comiam. Três índias
entreteciam cipós sentadas, acalentando no regaço uns
balainhos que iam nascendo. Um índio soprava uma
flauta de bambu; da flauta escorria uma música triste,
que ia pingando tristeza em tudo. Era uma cena tão
pura e essencial, tão embebida na essencialidade das
coisas, com a mata rodeando calada e toda em verdor os
índios, que parecia um começo de mundo: um mundo
começando com um sopro de flauta.24

Em 1986, com A Porta de Chifre, Herberto Sales traz de volta


a crítica mordaz à sociedade robotizada, iniciada com os contos
de Histórias Ordinárias e, principalmente, com O Fruto do Vosso
Ventre, romance que ele intitulou como marco do seu “apocalipse
particular”. 25 Disfarçado em “relato anticientífico”, A Porta
de Chifre nos mostra uma Amazônia devastada em virtude das
irresponsabilidades humanas. O futuro se instala com crueldade
(a história é situada no ano de 2352, começando exatamente no
dia do aniversário do autor, 21 de setembro) e o resultado é o pior
possível. O Herberto cruel, “castigador”, como bem o definiu
Antonio Olinto,26 aqui é mordaz e, ao mesmo tempo, humano,
terno, piedoso, com tão frágeis destinos.
Se o escritor, de 1988 a 1991, dá uma pausa nos romances
a fim de escrever a trilogia memorialística, podemos encontrar,
entre o primeiro livro de memórias, Subsidiário – Confissões, Memórias
110

e Histórias (1988) e o segundo, Andanças por umas Lembranças (1991),


um pequeno romance intitulado Na Relva da tua Lembrança (1988),
escrito quase que paralelamente ao primeiro livro de memórias.
Nesse romance, em tudo diferente dos anteriores, o escritor
quebra com o classicismo de sua escritura, tentando, como ele
mesmo afirmou, “captar na escrita não a forma, mas a emoção”,27
desfazendo propositalmente de tudo o que sabia fazer e fazia:

Vírgulas, travessões, em geral toda a parafernália


diacrítica, e também todo o material convencional de
apoio escritural romanesco, os calços dos advérbios, os
parafusos das conjunções, os andaimes marcadinhos da
marcação das personagens, peguei tudo e joguei para o
ar e no ar fiz desaparecer tudo, (...).28

Nesse romance, corrosivo e ao mesmo tempo lírico, a poesia


se instala para “segurar a barra dos parricidas”,29 filhos desnaturados
que resolvem matar os pais a fim de se verem livres destas “inúteis”
criaturas. Narrado em primeira pessoa, o narrador é um velho
que presencia tais acontecimentos do mais fundo de sua solidão.
Escrito quando o autor tanto refletia sobre a dor de envelhecer,
Na Relva da tua Lembrança apresenta-se como uma doce e trágica
alegoria dos destinos humanos. Nele, os vestígios do escritor são
evidentes - cenas, palavras e concepções dialogam com obras
anteriores, tornando-se nítida a sua voz, que já é outra e a mesma,
encenação que nos desestabiliza à medida em que nos promove o
encontro com o autor. O narrador inicia a história dizendo que o
que ali vai contar “pouco importa saber em que lugar se passou”,
e no segundo parágrafo, situa-se sentado numa pedra, “na beira
do rio” - já conhecida do leitor herbertiano - , pedra que virava
navio infâncias afora:

A pedra onde eu costumava me sentar ficava num desses


trechos de areia. Muitas vezes imaginava que ela era
um barco ancorado ali, e que eu era o comandante do
barco. Não estava mais em idade de imaginar coisas
111

assim, ter esses pensamentos de menino. Mas o menino


que a gente um dia foi não há meio de largar a gente:
fica escondido na memória da gente, fundo e escuro
poço sem fundo, onde ele, o menino que a gente foi,
de vez em quando vem à tona e fica boiando, como
uma flor.30

No livro infanto-juvenil do autor, O menino perdido (1984),


num capítulo intitulado “O castelo que virava navio”, lá está a
mesma pedra:
Fui direto ao areal, onde havia uma pedra muito grande,
uma pedra enorme, que era o castelo de brinquedo do
menino. (...)
Às vezes, a pedra deixava de ser um castelo. E virava
um navio, que ia navegando no mar de areia, rompendo
as ondas de areia. Ao leme ia o menino, comandante
que fazia o seu navio apitar, apitando com um canudo
de mamão. Sim. O menino costumava estar ali, no seu
castelo ou no seu navio. Mas agora não estava. Tinha
de procurá-lo em outro lugar. (...).31

Não obstante a localização afetiva, nostálgica, vimos, até


aqui, que a preocupação localista inicial do escritor torna-se, com
o decorrer de sua escritura, diluída, tendo Andaraí, terra natal,
explicitamente ambientada nos dois primeiros romances, Cascalho
e Além dos Marimbus, se transformado, a partir daí, simbolicamente,
no “mundo todo”, adquirindo um teor universalizante. Herberto
Sales deixou sua terra e fixou residência no Rio de Janeiro, em
decorrência do sucesso que envolveu o primeiro romance. Foi
assim que outros ambientes surgiram, seguindo a trajetória do
escritor. As origens telúricas cederam lugar às preocupações com
o homem citadino, emergindo a crítica às instituições sociais
na figura caricata do ser robotizado e desumano, possuidor da
linguagem uniforme. Porém, como já dissemos, detalhes de suas
origens permanecem diluídos no cerne de sua literatura. Sentimos
o quanto a terra continua presente em si, pois que faz parte de
sua história pessoal, juntamente com o seu passado, sua família,
112

seus mortos. Entretanto, estava faltando um regresso explícito a


Andaraí - regresso intenso a si mesmo -, ocorrido no nono romance
do escritor, Rio dos Morcegos (1993).
Tradução féerico-literária de uma cidade (Andaraí em tupi-
guarani significa, etimologicamente, rio dos morcegos), esse romance
é uma busca proustiana do autor nos lugares que sonhou e viveu
as duas fases mais intensas: a infância e a juventude. Andaraí
surge feericamente iluminada pelas dolorosas perguntas de um
adolescente que se debruça o tempo todo sobre si mesmo e o
mundo, entranhado nas complexas perseguições de um sentido
para a vida. Fatos emergem de uma neblina poética e, de quando
em quando, o diálogo com Cascalho e outros livros, assim como
com os três volumes de memórias do escritor, se avultam. Porém,
aqui o que importa é outra coisa: não mais a denúncia social de
Cascalho, pois que, em Rio dos Morcegos, Andaraí surge disfarçada
naquele desdobramento sutil e invisível existente entre as fendas de
uma cidade e o homem, e que envolve as nuanças psicológicas de
deciframento do eu. Percebemos, assim, nesse romance, como uma
biografia autoral se encena, se ficcionaliza, e os mistérios da vida e
da morte são pontos que nos empurram à busca dos enigmáticos
abismos de uma individualidade.

... Pedras do meu caminho. Por toda parte, inumeráveis


e gerais, as pedras que me viram nascer, com os seus
opacos olhos de pedra. O horizonte montanhoso,
pedras bloqueando meus passos. A serra com os seus
morros altos era um desafio, um enigma: muralha de
rumos e ventos. Aonde ir? Que havia além da serra,
minha prisão de pedras? Grandes pedras mudas me
espreitavam: os gigantes de pedras dos meus medos
infantis, das minhas incertezas de adolescentes. Pedras.
(...)32

Essa busca de si prossegue ainda no penúltimo romance,


Rebanho do Ódio (1995) livro-exorcismo, como o próprio autor
proclama nas primeiras páginas, à maneira de uma indicação inicial
113

para o leitor:

A quem me vai ler, quero aqui lembrar que uma vida


longa (muito longa) faz sofrer a gente: os amigos vão
morrendo, os afetos apodrecendo. De repente, só
resta mesmo de cada um de nós a gente: nós sozinhos,
somente nós, cercados de mágoas que magoam a gente.
E então é preciso exorcizá-las, se queremos entrar de
coração aliviado e limpo na eternidade.

A história se desenrola em São Pedro da Aldeia-(RJ) e se


debruça sobre as complexas relações familiares, quando nelas
estão envolvidas questões de fortuna e herança, ódio e mágoa.
Entretanto, o livro poderia estar muito bem situado em Andaraí,
ou, como disse o autor, em qualquer lugar, desde que nesse lugar
o ódio assuma “uma forma diferente”, “insinuando semelhança
(ou identidade) entre uma impressão presente e uma lembrança
aparentemente morta do passado”.33 Percebemos que os fatos
narrados, nesse romance, são pura ficção, mas os sentimentos que
perpassam pelas páginas são fortes o suficiente para revelarem
os desvãos biográficos de uma alma,34 as tristezas de um homem
em perplexidade com a velhice, com o tempo e com as pessoas
se desmascarando sem ilusões.35 Ficam, no ar e nas entrelinhas,
a ressoar as palavras acima do escritor, confidenciando ao leitor
sentimentos de sua história pessoal, de seu passado mais íntimo.
Com A Prostituta, em 1996, Herberto Sales se despede,
deliberadamente, do romance. Esse livro é a história da prostituta
Maria Corumba, remanescente criada pelo escritor, da família de Os
Corumbas, em homenagem ao romance de Amando Fontes que muito
o impressionou, quando de sua leitura em Andaraí. Na verdade, a
partir da criação do personagem, diz Herberto estar, muito mais,
voltando à juventude, quando foi estudar em Salvador e ligou-se à
boemia, em detrimento dos estudos. Nessa fase tão intensa, tinha
o autor uma forte ligação com as prostitutas, e, resolvendo falar
dessa fase, não poderia deixar de lado aquelas que ele denominou
“irmãzinhas” e que fizeram parte de sua mocidade:
114

A Prostituta sempre foi o livro que quis escrever.


Quando era estudante, tive uma vivência enorme com
prostitutas. Eu saía da pensão na quinta-feira e ficava
dois, três dias na casa de uma delas. Era viciante, uma
coisa extraordinária. Elas eram gente boa, maravilhosa,
simples. (...) Eu queria falar da minha experiência
como estudante e falar sobre mim sem elas não seria
interessante.(...).36

Aliando vida e obra, mais uma vez, com esse livro Herberto
Sales se despede do romance. Nas orelhas de A Prostituta, no texto-
confissão “O romancista, para as despedidas”, o autor afirma ser
esse livro, “de modo absoluto”, “a liberação de lembranças obscuras
de sua vida, nas saudades machadeanas de si mesmo, numa hora em
que em si mesmo se recolhe, invocando a misericórdia de Deus”.
Nessa confissão, o autor se despede, deixando para nós, leitores,
as interrogações do que foi e do que é uma vida, nas entrelinhas
ficcionais do que aconteceu ou poderia ter acontecido - literatura
como tentativa de fixar-se enquanto individualidade, somada ao
enigmático sortilégio de poder também ser outro a fim de negar a
desintegração do ser, a morte. Não é à toa que o autor, nas páginas
iniciais desse último romance, confessa a sua múltipla condição
humana, situada entre as diversas “verdades da alma”:

Sabe-se que cada homem é um ser múltiplo, e cada


estado de alma seu é uma realidade à parte, sem
perder no conjunto a sua totalidade anímica. Ou a sua
unicidade intrínseca. Eu sou o mesmo romancista (a
mesma alma) em cada um dos entre si tão diferentes
romances que escrevi.

NOTAS
115

1
SALES, Herberto. Subsidiário - confissões, memórias e histórias,
p. 491.

2
VILMA, Ângela. A tessitura humana da palavra – Herberto Sales,
Contista.

3
SALES, Herberto. Op. Cit., p. 430.

4
SALES, Herberto. Subsidiário 3 - Eu de mim, com cada um de
mim, p. 307.

5
Idem, p. 198.
6
Idem, p. 274.

7
ATHAYDE, Austregésilo de. Herberto Sales, perfil de um
homem. In: Subsidiário 3, p. 116.

8
SALES, Herberto. Subsidiário 2 - Andanças por umas lembranças
., p. 218.

9
SEIXAS, Cid. O riso da metralhadora. Do Cascalho ao Diamante.
In: Triste Bahia, Oh QuãoDessemelhante, p. 117.

10
SALES, Herberto. Subsidiário - Confissões, memórias e histórias
p. 67. Assim definiu o “bom escritor”: “O bom escritor é o que
nos seus livros nos leva a um reencontro com o que temos em nós
de mais profundo e verdadeiro”.

11
SALES, Herberto. Subsidiário 2, p. 139.

12
ISER, Wolfgang. O fictício e o imaginário.

13
PIGLIA, Ricardo. O laboratório do escritor, p. 72.
116

14
BARTHES, Roland. O prazer do texto, p. 38.

SALES, Herberto. O depoimento. In: LEAL, Eneida. Eu,


15

Herberto Sales, pp. 11-14

16
SALES, Herberto. Cascalho, p. 116.

17
Idem, p. 292.

18
SALES, Herberto. Além dos marimbus, p. 8.
19
SALES, Herberto. Subsidiário - confissões, memórias e histórias,
p. 111.
20
SALES, Herberto. Dados biográficos do finado Marcelino, p.
7.

21
VILMA, Ângela. Op. Cit.

22
SALES, Herberto. Subsidiário – Confissões, memórias e
histórias, p. 391.

23
Idem, p. 391.

24
SALES, Herberto. Os pareceres do tempo, p. 365-366.

25
SALES, Herberto. Subsidiário – confissões, memórias e histórias,
p. 457.

26
In: SALES, Herberto. Subsidiário 3 - Eu de mim com cada um
de mim.

27
SALES, Herberto. Subsidiário 2, Andanças por umas lembranças,
p. 121.

28
Idem.
117

29
Idem, p. 118.

30
SALES, Herberto. Na relva da tua lembrança, p. 7-8.

31
SALES, Herberto. O menino perdido, p. 11-13.

32
SALES, Herberto. Rio dos morcegos, p. 27.

33
SALES, Herberto. Rebanho do ódio. Palavras do autor impressas
nas páginas iniciais do romance, à maneira de pórtico.
34
GUIMARÃES, Márcia. Herberto Sales: O ódio sob a ótica
amarga. In: A Tarde Cultural, 30-09-95.

35
SALES, Herberto. Subsidiário – confissões, memórias e
histórias, p. 290. Afirmou desconsoladamente o autor: “(...) Estou
envelhecendo. E a velhice é feita de desilusões. De desilusões
filosóficas, que levam à descoberta da verdade humana. Ou da
verdade sem ilusões.”

SALES, Herberto. Entrevista concedida a Marielson Carvalho.


36

A Tarde Cultural. Salvador, 20-09-1997.

REFERÊNCIAS

BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva,


1999.

CARVALHO, Marielson. Herberto Sales (entrevista). In: A Tarde


Cultural. Salvador, 20-09-1997.

GUIMARÃES, Márcia. Herberto Sales – O ódio sob a ótica


amarga. Sobre as salinas do litoral fluminense, uma história de
herança, intriga e solidão. In: A Tarde Cultural. Salvador, 30-09-
118

1995.

ISER, Wolfgang. O fictício e o imaginário. Perspectivas de uma


antropologia literária. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1996.

PIGLIA, Ricardo. O laboratório do escritor. São Paulo: Iluminuras,


1994.

SALES, Herberto. Além dos marimbus. São Paulo: Círculo do


Livro, s/d.

______. Cascalho. São Paulo: Círculo do Livro, s/d.

______. Dados biográficos do finado Marcelino. Rio de Janeiro:


Civilização Brasileira, 1974.

______. Eu, Herberto Sales – Entrevista concedida a Eneida Leal.


Rio de Janeiro: Cátedra, 1978.

______. Na relva da tua lembrança. Rio de Janeiro: Rocco,


1988.

______. O menino perdido. São Paulo: Cia Editora Nacional,


1984.

______. Os pareceres do tempo (Edição revista pelo autor). Rio


de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997.

______. Rebanho do Ódio. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,


1995.

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