Nossa Africa - Ensino e Pesquisa - Ebook PDF
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Ensino e Pesquisa
Simoni Mendes de Paula
Sílvio Marcus de Souza Correa
Organizadores
Nossa África
Ensino e Pesquisa
E-book
OI OS
EDITORA
2016
© Dos autores – 2016
Editoração: Oikos
Capa: Sílvio Marcus de Souza Correa
Revisão: Carlos A. Dreher
Arte-final: Jair de Oliveira Carlos
Parte I
Conexão Sul: contributo africano para o modernismo sul-brasileiro ..... 15
Sílvio Marcus de Souza Correa
Afinal, África é patrimônio de quem? Descolonizar o conhecimento
como proposta curricular .................................................................... 31
Hector Guerra Hernandez
O “equilíbrio das histórias”: reflexões em torno de experiências
de ensino e pesquisa em História das Áfricas ....................................... 41
Claudia Mortari
Da desconstrução dos estereótipos às peculiaridades da construção
nacional nos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) ... 54
Marçal de Menezes Paredes
Uma mirada insular ao continente africano: a África no PPGH/UFSC .... 68
Sílvio Marcus de Souza Correa
Os estudos africanos na Universidade Federal do Rio Grande do Sul ... 82
José Rivair Macedo
Como ensinar o que não se conhece? Reflexões sobre o ensino de
História da África nas universidades estaduais do Paraná .................... 93
Ana Paula Wagner
Nossa África .................................................................................... 104
Marina de Mello e Souza
Parte II
A História da África a partir dos arquivos do Ministério das
Relações Exteriores do Brasil e do Ministério dos Negócios
Estrangeiros de Portugal: os casos de Angola e de Moçambique ........ 117
Tiago João José Alves
Exotismo e Sensualidade Africana: Raça, Nação e Império
na 1ª Exposição Colonial Portuguesa de 1934 ................................... 131
Mateus Silva Skolaude
A produção histórica a partir dos arquivos coloniais portugueses ....... 146
Simoni Mendes de Paula
A obra História Geral das Guerras Angolanas como fonte
documental: aspectos contextuais e aportes metodológicos ................ 157
Priscila Maria Weber
“Saudações das nossas colônias”: o cartão postal como fonte
para os estudos de colonialismo em África ........................................ 168
Ana Carolina Schveitzer
Por uma perspectiva mais endógena das sociedades africanas ............ 182
Rafael Antunes do Canto
Sudão do Sul, Orientalismo, Tolstoi. Um caldo de digressões
sobre História, fontes e o ofício do historiador ................................... 194
Gabriel Cabeda Egger Moellwald
Parte III
A África em caricaturas nos periódicos ilustrados e satíricos
da Primeira República Portuguesa .................................................... 207
Diego Schibelinski
A África e os africanos na literatura colonial infanto-juvenil .............. 213
Lara Lucena Zacchi
Caçadores de troféus, produtores de imagens: fotografias e
imaginário colonial em Moçambique ................................................ 222
Ruben Souza
6
Nossa África: ensino e pesquisa
E pluribus unum
7
Apresentação
8
Nossa África: ensino e pesquisa
9
Apresentação
10
Nossa África: ensino e pesquisa
gia, mas sem se deixar seduzir por ela. Pierre Chaunu tinha razão ao aler-
tar que l’épistémologie est une tentation qu’il faut résolument savoir écarter.
O quarto capítulo segue a senda aberta pelos antecedentes e visa a
desconstrução de estereótipos. Com base na sua experiência no ensino e na
pesquisa em História da África nos cursos de graduação e pós-graduação
da PUCRS, o autor ressalta algumas dificuldades em lidar com a diversida-
de quando um conjunto de países africanos (PALOP) vem a ser objeto de
estudos. No quinto capítulo, uma retrospectiva dos estudos africanos no
Rio Grande do Sul destaca a emergência de um campo do saber multidisci-
plinar. No capítulo seguinte, o autor propõe histórias sem centro, sem peri-
ferias. Inspirado nas “ilhas de história” (Marshall Sahlins), relativiza as per-
cepções do tempo, dos acontecimentos e da própria historicidade para mi-
rar a história de um continente a partir de uma ilha. Por analogia, aborda o
insulamento no qual alguns historiadores laboram.
No sétimo capítulo, a situação do ensino de História da África no
interior do Paraná foi abordada, assim como o desafio para atender uma
demanda por temáticas africanas na formação de profissionais do ensino.
No capítulo seguinte, a autora pleiteia por uma equiparação das histórias
de uma e de outra margem do Atlântico. A paridade proposta demonstra o
quanto o ensino da história pode contribuir para superar o alheamento que
se operou no Brasil em relação à África.
Nos seis capítulos da segunda parte do livro foram abordadas dife-
rentes fontes para a pesquisa em história da África, bem como as vanta-
gens e desvantagens em pesquisar nos “arquivos coloniais”, notadamente
em Lisboa. Alguns trabalhos trouxeram a questão do “arquivo colonial”,
outros a da “biblioteca colonial”, a fim de discutir sobre as fontes para a
pesquisa histórica. Matérias de jornais e de revistas ilustradas, documen-
tos oficiais, correspondências diplomáticas, fotografias, cartões postais e
bibliografia em língua estrangeira serviram de base para as reflexões so-
bre a pesquisa em História da África. Seus autores representam uma nova
geração de pesquisadores e cujos trabalhos acadêmicos, em nível de mes-
trado ou doutorado, fazem parte de uma historiografia regional da “nos-
sa África”.
Na última parte do livro, temos quatro trabalhos de acadêmicos do
curso de História da UFSC e que provêm de pesquisas realizadas em nível
de iniciação científica. De fotografias a bandas desenhadas e caricaturas, o
imaginário metropolitano e o circuito social das imagens foram abordados
para tratar a História da África durante o colonialismo.
11
Apresentação
12
Nossa África: ensino e pesquisa
Parte I
13
14
Nossa África: ensino e pesquisa
1
Professor do departamento de história da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
2
Ver editorial Sul, Revista do Círculo de Arte Moderna, N. 1, Ano I, Florianópolis, janeiro de 1948.
3
Ainda em 1948, o grupo de teatro experimental do C.A.M. preparava a montagem de “Um
taciturno”, de Roger Martin du Gard. Uma tragédia burguesa que abordava a homossexuali-
dade.
15
CORREA, S. M. de S. • Conexão Sul: contributo africano para o modernismo sul-brasileiro
4
Segundo o IBGE, atualmente, a região da “Grande Florianópolis” conta com mais de 1 milhão
de moradores.
5
LOHN, Reinaldo Lindolfo. Limites da utopia: cidade e modernização no Brasil desenvolvi-
mentista (Florianópolis, década de 1950). Rev. Bras. Hist. São Paulo, 2007, v. 27, n. 53, p. 315.
6
Ver dossiê Salim Miguel, Revista Litteris, n. 8, Ano III, Setembro de 2011.
7
MIGUEL, Salim. Cartas d’África e alguma poesia. Rio de Janeiro: Topbooks, 2005, p. 153-154.
8
Segundo Antônio Jacinto, em carta (Luanda, 24/09/1952) para Salim Miguel, Augusto dos
Santos Abranches foi quem lhe apresentou a Revista Sul. Ver MIGUEL, S. Op. cit., p. 17.
16
Nossa África: ensino e pesquisa
9
MALHEIROS, Eglê. “A Ilha e a Ponte”, Sul, Revista do Círculo de Arte Moderna, n. 30, ano X,
Florianópolis, dezembro 1957, p. 3.
17
CORREA, S. M. de S. • Conexão Sul: contributo africano para o modernismo sul-brasileiro
10
MACEDO, Tânia C. Revista Sul (Uma ponte com a África). In: SOARES, Iaponam (Org.).
Salim Miguel, literatura e coerência. Florianópolis: Lunardelli, 1991, p. 73-78.
11
Sobre a colaboração de escritores angolanos para a revista Sul, ver: SANTIL, Juliana M. «Ce
métis qui nous trouble». Les représentations du Brésil dans l’imaginaire politique angolais:
l’empreinte de la colonialité sur le savoir. Bordeaux, Université Montesquieu – Bordeaux IV/
Centre d’études d’Afrique noire, 2006, p. 394-410.
12
MIGUEL, Salim. Cartas d’África e alguma poesia. Rio de Janeiro: Topbooks, 2005, p. 42-43.
18
Nossa África: ensino e pesquisa
19
CORREA, S. M. de S. • Conexão Sul: contributo africano para o modernismo sul-brasileiro
13
Sul. Revista do C.A.M., ano IX, n. 26, Florianópolis, fevereiro de 1956, p. 59.
14
MACEY, David. Frantz Fanon. Une vie. Paris: La découverte, 2013, p. 412.
15
O terceiro número da revista Sul foi dedicado à poesia de Cruz e Souza.
16
A menção honrosa recebida pela artista catarinense foi concedida durante o VI Salão de Artes
Plásticas Francisco Lisboa, realizado em Porto Alegre. Ver Notas e Comentários, Sul, Revista
do Círculo de Arte Moderna, n. 23, Ano VII, Florianópolis, dezembro de 1954, p. 79.
17
Pereira, Francisco J. “Operário na construção”, Sul, Revista do Círculo de Arte Moderna, n.
29, Ano X, Florianópolis, junho 1957, p. 36-38.
20
Nossa África: ensino e pesquisa
18
Apesar da publicação de contos e poemas anticoloniais desde a primeira colaboração de escri-
tores africanos, Aníbal Nunes Pires afirmou que “por questões de princípios, a revista Sul, não
cogita, terminantemente, de questões político-partidárias e de religião.” Ver editorial Sul, Re-
vista do Círculo de Arte Moderna, n. 1, Ano I, Florianópolis, janeiro de 1948.
19
MALHEIROS, Eglê. “Escritoras de Portugal”. Sul, Revista do Círculo de Arte Moderna, n. 1,
Ano IV, Florianópolis, janeiro de 1948, p. 38.
20
Ver RAMPINELLI, Waldir José. As duas faces da moeda. As contribuições de JK e Gilberto
Freyre ao colonialismo português. Florianópolis: Editora da UFSC, 2004, p. 42; D’AVILA,
Jerry. Hotel Trópico: Brazil and the Challenge of African colonization: 1950-1980. Duke Uni-
versity Press, 2010, p. 27.
21
O Tratado de Amizade e Consulta, de 1953, era uma forma de controle da política externa
brasileira em relação à África. Ver RAMPINELLI, Op. cit., p. 48.
22
MIGUEL, S., 2005, p. 144.
23
Idem, p.10.
21
CORREA, S. M. de S. • Conexão Sul: contributo africano para o modernismo sul-brasileiro
24
Depois de uma curta estadia em Florianópolis, Agostinho Silva se instalou em Salvador da
Bahia, onde fundaria o Centro de Estudos Africanos e Orientais (CEAO) em 1959, primeira
experiência institucional dos estudos africanos no Brasil. OLIVEIRA JR. Gilson B. Agostinho
Silva e o Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO). A primeira experiência institucional dos
estudos africanos no Brasil. Dissertação (Mestrado), USP/FFLCH, São Paulo, 2010.
25
Carta de Agostinho da Silva a Salim Miguel, datada de 02/05/1988. Os poemas referidos por
Agostinho da Silva eram, provavelmente, aqueles três publicados no número 24 (Maio de
1955), p. 44.
26
Ver também os depoimentos de A. Jacinto e Viriato da Cruz: LABAN, Michel. Angola. Encon-
tro com escritores. Lisboa: Fundação Eng. Antonio de Almeida, 1991.
27
Carta de A. Jacinto para Salim Miguel (Luanda, 24/09/1952). Sobre o trabalho de A. Jacinto
na revista Mensagem, ver: SILVA, Fabio M. “A Mensagem poética de António Jacinto”, Na-
vegações, Porto Alegre, v. 6, n. 1, jan./jun. 2013, p. 85-90.
28
Carta de Domingos Ribeiro Silveira para Salim Miguel (Lourenço Marques, 25/02/1957).
22
Nossa África: ensino e pesquisa
Antônio Jacinto afirmava que o interesse pela revista tinha a ver com
seu caráter juvenil e de solidariedade para com os novos de todo mundo.
“Os problemas da juventude são idênticos em toda parte”.31
Outro correspondente de Luanda informou que a revista Sul era “bas-
tante lida, discutida e apreciada no nosso grupo de jovens”.32 De Lourenço
Marques, Domingos Ribeiro Silveira endossava as palavras de Salim Mi-
guel numa carta em que afirmava a necessidade juvenil de aprender através
da literatura e enfatizava que a revista Elo “vive da boa vontade de jovens
não só de Moçambique como de Portugal e do Brasil.”33
A circulação da revista Sul no incipiente meio artístico e literário luso-
africano dependia das remessas de Florianópolis e do engajamento dos corres-
pondentes na África. Algumas informações sobre as operações podem ser
extraídas das missivas. Se números da revista Sul eram enviados a título de
doação, outros eram vendidos. Em suas cartas, os correspondentes da Sul
comentavam sobre as possibilidades de assinaturas, de remessas e de permutas.
Pela correspondência de José Graça com Salim Miguel, sabe-se que
Antonio Jacinto distribuía alguns números da Sul aos amigos em Luanda.
Também arranjava assinantes para ela. No final de 1953, Antônio Jacinto
29
SABINO, L. Grupo Sul: o Modernismo em Santa Catarina. Florianópolis, FCC, 1982.
30
MIRANDA, Nuno. “Correspondência para os diretores da Sul”, Revista Sul, n. 11, Ano III,
Florianópolis, 1950.
31
Carta de A. Jacinto para Salim Miguel (Luanda, 24/09/1952).
32
Carta de José Graça para Salim Miguel (Luanda, 08/03/1957).
33
Carta de Domingos Ribeiro Silveira para Salim Miguel (Lourenço Marques, 25/02/1957).
23
CORREA, S. M. de S. • Conexão Sul: contributo africano para o modernismo sul-brasileiro
34
Carta de A. Jacinto para Salim Miguel (Luanda, 27/12/1953).
35
Carta de Augusto dos Santos Abranches para Salim Miguel (Nampula, 03/12/1954)
36
Ver rubrica notas de agradecimento, Sul, Revista do Círculo de Arte Moderna, n. 26, Ano IX,
Florianópolis, fevereiro de 1956.
24
Nossa África: ensino e pesquisa
37
MALHEIROS, Eglê. “Revolução”, Sul, Revista do Círculo de Arte Moderna, n. 13, Ano IV,
Florianópolis, abril de 1953, p. 33.
38
MARTINS, Tomaz. “Junto ao Mar”, O Estado de Santa Catarina, (página literária), Florianó-
polis, 5 de março de 1950; Barbosa, Jorge. “Poema do Mar”, O Estado de Santa Catarina,
(página literária), Florianópolis, 3 de janeiro de 1950.
39
Ver rubrica notícias, Sul, Revista do Círculo de Arte Moderna, n. 9, Ano, II, Florianópolis,
agosto de 1949.
25
CORREA, S. M. de S. • Conexão Sul: contributo africano para o modernismo sul-brasileiro
40
Desde meados de 1955, Manuel F. de M. Coutinho era o representante da revista Sul em
Lourenço Marques e colaborou também com a revista com alguns poemas.
41
Ver Notas & Comentários, Sul, Revista do Círculo de Arte Moderna, n. 28, Ano IX, Florianó-
polis, dezembro de 1956, p. 78.
42
GRAÇA, J. (Luandino Vieira). “O Homem e a Terra”, Sul, Revista do Círculo de Arte Moder-
na, Ano X, n. 30, Florianópolis, dezembro 1957, p. 119-121.
43
CABRAL, Alexandre. “Kandot era o boy do Senhor Hiebler”, Sul, Revista do A. C. M., Ano
IX, n. 27, Florianópolis, maio de 1956, p. 66-74.
44
Carta de Augusto dos Santos Abranches para Salim Miguel (Nampula, 05/05/1952).
45
Carta de A. Jacinto para Salim Miguel (Luanda, 09/10/1955).
26
Nossa África: ensino e pesquisa
46
TRIGO, Salvato. A poética da “Geração Mensagem”. Porto: Brasília, 1979, 71.
47
Carta de José Graça a Salim Miguel (Luanda, 10/01/1957).
48
Idem.
49
Carta de M. F. de M. Coutinho para Salim Miguel (Quelimane, 23/06/1958).
27
CORREA, S. M. de S. • Conexão Sul: contributo africano para o modernismo sul-brasileiro
50
MACEDO, T. C. O modernismo brasileiro e as literaturas africanas de língua portuguesa. Ecos
(Porto Alegre), Cáceres, 2005, p. 40-44; MACEDO, Tânia. A Revista Sul e o diálogo literário
Brasil-Angola. In: Angola e Brasil – estudos comparados. São Paulo: Arte & Ciência, 2002.
51
Sul. Revista do C.A.M., Ano VI, n. 19, Florianópolis, maio de 1953, p. 25.
52
Sul. Revista do C.A.M., Ano VIII, n. 25, Florianópolis, agosto de 1955, p. 24.
53
Sul. Revista do C.A.M., Ano V, n. 17, Florianópolis, outubro de 1952, p. 25.
54
Sul. Revista do C.A.M., Ano VI, n. 21, Florianópolis, dezembro de 1953, p. 28. O poema
“Hora” foi publicado com a data de 8/07/1951, juntamente com o poema “Sombra” (27/12/
1952), sendo a autora de ambos natural do Lobito, apresentada aos leitores da Sul como poe-
tisa do “Movimento” [dos Novos Intelectuais de Angola].
55
Sul. Revista do C.A.M., Ano V, n. 18, Florianópolis, dezembro de 1952, p. 28.
56
Sul. Revista do C.A.M., Ano VIII, n. 25, Florianópolis, agosto de 1955, p. 23.
28
Nossa África: ensino e pesquisa
Considerações finais
No penúltimo número da revista Sul, depois de 10 anos de circula-
ção, a poetisa Eglê Malheiros alertou para o perigo do “mofo acadêmico se
infiltrando em nossas páginas”. Isso porque, segundo ela, os escritores se
acomodavam, os acadêmicos não discutiam mais, nem criticavam mais.60
Afinal, aquele grupo de jovens que, em 1948, fundou a revista Sul para
reagir à “pasmaceira provinciana”, tinha, talvez, perdido um pouco de fô-
lego.61 Na avaliação de Eglê Malheiros, a colaboração estrangeira – inclusi-
ve, africana – era de assaz importância para evitar o marasmo e o confor-
mismo daquele grupo em torno da revista Sul.
Porém, a contribuição de africanos ou de portugueses radicados em
África ou no Brasil se arrefeceu ao longo dos anos. Apenas Augusto dos
Santos Abranches, radicado em São Paulo desde 1955, colaborava de for-
ma regular com a revista. A contribuição africana à revista de uma van-
guarda artística sul-brasileira faz parte de uma história pouco conhecida
das relações afro-luso-brasileiras.
Nas páginas da revista Sul, poemas, contos, desenhos e gravuras apre-
sentaram uma África moderna. Diferentemente daquela África residual que
a etnografia e os estudos linguísticos buscavam encontrar ainda no início
57
Sul. Revista do C.A.M., Ano VI, n. 19, Florianópolis, maio de 1953, p. 22.
58
Sul. Revista do C.A.M., Ano V, n. 17, Florianópolis, outubro de 1952, p. 26.
59
Sul. Revista do C.A.M., Ano VI, n. 20, Florianópolis, agosto de 1953, p. 24. O poema “Dia a
Dia” trazia a data de 22/11/1949, mas ao ser publicado na revista Sul, Noêmia de Souza já
tinha deixado Moçambique e, desde 1951, vivia em Lisboa.
60
Ver editorial Sul, Revista do Círculo de Arte Moderna, n. 29, Ano X, Florianópolis, junho
1957.
61
Ver editorial Sul, Revista do Círculo de Arte Moderna, n. 30, Ano X, Florianópolis, dezembro
1957.
29
CORREA, S. M. de S. • Conexão Sul: contributo africano para o modernismo sul-brasileiro
62
Apud RODRIGUES, José Honório. Brasil e África: outro horizonte. 2. ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1964, p. 215.
30
Nossa África: ensino e pesquisa
1
Professor Adjunto de História da África do Departamento de História da Universidade Federal
do Paraná – UFPR. E-mail: [email protected].
2
Deve-se destacar que em 2008, através da Lei 11.654/2008, ampliou-se a Lei n. 10.639/2003
ao incluir a história e a cultura das populações indígenas nos currículos.
3
Embora discorde completamente da definição em singular e maiúscula de uma realidade mui-
to mais complexas e diversa, neste texto e por questões de ordem espacial, usarei a designação
singular.
31
HERNANDEZ, H. G. • Afinal, África é patrimônio de quem?
32
Nossa África: ensino e pesquisa
devia ser a chave desta definição para tornar uma problemática ampla, di-
versa e sobretudo complexa em um simples recorte fácil de digerir? O desfe-
cho desse breve contratempo ficou inconcluso. No entanto, ficou o inco-
modo, não em relação à colega, mas, sim, em relação a este aspecto muitas
vezes velado porque aceito no senso comum do fazer histórico, que é sobre-
por um aspecto inicialmente “inofensivo” porque metodológico: um recor-
te historiográfico e consequentemente um tipo específico de tempo históri-
co, a uma problemática epistêmica.
Outro aspecto que reforça esta sensação de enquadramento um tanto
forçado e, ao mesmo tempo, de isolamento, é a falta sistemática de diálogo
com as outras disciplinas que conformam o currículo do curso, tanto as que
estão configuradas desde uma perspectiva historiográfica como América e
Brasil ou mesmo Moderna e Contemporânea, quanto as de ordem epistê-
mica como é o caso das diversas teorias da história. No primeiro caso, as
duas primeiras são configuradas desde uma perspectiva espacial, e as duas
últimas, desde uma perspectiva construída sob a base de uma temporalida-
de específica. No entanto, sabemos que os processos históricos das duas
primeiras estão imbricados nos processos africanos por distantes que este-
jam localizados no mapa. Do mesmo modo, sabemos que é possível traba-
lhar as temáticas moderna e contemporânea no continente africano, preci-
samente porque as temporalidades do continente percorrem paralela e si-
multaneamente as outras temporalidades. Para o caso das disciplinas de
ordem epistêmica, além da Escola dos Annales e da Nova História Social
inglesa, ambas entendidas como escolas de pensamento histórico referen-
ciais para nossa formação – e em ambas África aparece como um apêndi-
ce –, agrega-se apenas a história cultural e a critica pós-moderna, simples-
mente omitindo décadas de crítica oriunda do Sul global.
É neste sentido que parece apontar a crítica de Chakrabarty quando
afirma que:
[...] a Europa funciona como um referente silencioso no conhecimento his-
tórico em si torna-se óbvia de uma forma altamente comum. Pelo menos
dois sintomas cotidianos de subalternidade das histórias não-ocidentais, ter-
ceiro-mundistas. historiadores do Terceiro Mundo sentem uma necessidade
de se referir às obras da história da Europa; os historiadores da Europa não
sentem a obrigação de corresponder. Se é um Edward Thompson, Le Roy
Ladurie um George Duby um Carlo Ginzburg um Lawrence Stone, um Ro-
bert Darnton ou uma Davies Natalie – para citar apenas alguns nomes ao
acaso de nosso mundo contemporâneo – os “grandes” e os modelos do his-
toriador são sempre, pelo menos, culturalmente “europeus”. “Eles” produ-
zir o seu trabalho em relativa ignorância das histórias não-ocidentais, e isso
33
HERNANDEZ, H. G. • Afinal, África é patrimônio de quem?
4
CHAKRABARTY, Dipesh. “La poscolonialidad y el artilugio de la Historia: ¿Quién habla en
nombre de los pasados “indios”? In: DUBE, Saurabh (Ed.). Pasados Poscoloniales. Colección de
ensayos sobre la nueva historia y etnografía de la India. CEAA – Colegio de México, 1999, p. 624.
5
RICHARD, Nelly. “Globalización académica, estudios culturales y crítica latinoamericana”.
In: MATO, Daniel: Cultura, política y sociedad Perspectivas latinoamericanas. CLACSO, Argenti-
na. 2005, p. 458.
34
Nossa África: ensino e pesquisa
por um período pré e outro pós, com o devido “durante” colonial no meio,
herança dessa modernidade euronorteamericana.
6
CHACKRABARTY, 1999, p. 623.
7
COMAROFF, Jean; COMAROFF, John. Teorias desde el sur. O cómo los países centrales evolu-
cionaron hacia África. Argentina: Siglo XXI, 2013, p. 18.
8
MIGNOLO, Walter. “El pensamiento decolonial: desprendimiento y apertura. Un manifies-
to”. In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramón. El giro decolonial: reflexiones
para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre Edi-
tores, 2007, p. 25-46.
35
HERNANDEZ, H. G. • Afinal, África é patrimônio de quem?
9
MAMDANI, Mahmood. “Introdução: Reflexión a través del callejón sin salida africano.”. In:
Ciudadano y Súbdito. África contemporanea y el legado del colonialismo tardío. México: Siglo
XXI, 1996, p. 5.
10
MUDIMBE, Valentin. A invenção da Africa. Gnose, filosofia e ordem do conhecimento. Portu-
gal: Edições Pedago, 2013, p. 10.
36
Nossa África: ensino e pesquisa
11
DUSSEL, Enrique. 1492: El encubrimiento del otro, hacia el origen del mito de la modernidad. La
Paz: Editora Plural, 1994.
12
GUHA, Ranahit. Las voces de la Historia y otros estudios subalternos. Barcelona: Editorial Crítica,
2002, p. 16.
13
DAS, Veena; POOLE, Deborah. “El estado y sus márgenes. Etnografías comparadas”. Cua-
dernos de Antropología Social, n. 27, 2008, p. 19.
37
HERNANDEZ, H. G. • Afinal, África é patrimônio de quem?
38
Nossa África: ensino e pesquisa
Considerações finais
Autores e autoras oriundos/as de um “sul global” que optaram por
produzir diferentes possibilidades heurísticas e metodológicas, movidos/as
por uma desconfiança frente a um discurso desgastadamente eurocentrado
(pós-moderno) que anunciara décadas atrás o colapso das pretensões uni-
versalizantes do próprio modelo ocidental dominante e seu legado de trans-
cendência e finalismos históricos. Esta situação supostamente abriria as pos-
sibilidades para uma crítica pluriversal que tendiam a revalorizar as mar-
gens construídas historicamente em torno deste modelo. Esta desconfiança
se fundou precisamente em torno deste discurso sobre descentramentos,
pois, ao invés de promover a inclusão de outros saberes e conhecimentos,
tem transformado essa crise paradigmática em uma nova e grande narrati-
va, incapaz de desafiar as estruturas de poder existentes, nem as hierarquias
e violências que continua reproduzindo.
14
E como o autor mesmo esclarecerá o uso desta definição um tanto comprida e complexa: Aún
a riesgo de sonar ridículo, preferimos utilizar una frase extensa como ésta para caracterizar la actual
estructura heterárquica (múltiples jerarquías de poder enredadas entre sí de maneras históricamente com-
plejas) del sistema-mundo, antes que la limitada caracterización de una sola jerarquía llamada “sistema-
mundo capitalista”. GROSFOGUEL, Ramón. “Las múltiples caras de la islamofobia”. In: De
Raíz Diversa, v. 1, n. 1, 2014, p. 84.
15
Sobre a ideia de indisciplina na teorização, vide RICHARD, Nelly. “Intersectando Latinoa-
mérica con el Latinoamericanismo: Discurso académico y crítica cultural”. In: MENDIETA,
Eduardo; CASTRO-GOMEZ, Santiago. Teorías sin disciplina (latinoamericanismo, poscoloni-
alidad y globalización en debate). Duke, 1998.
16
Sob o termo “pós-colonial” poderíamos aceitar que inicialmente estariam reunidos um con-
junto de estudos socioculturais e históricos que vão desde a crítica do colonialismo europeu na
década de 40 e 50, passando pela teoria do imperialismo dos 70, até as confrontações temáti-
cas sobre os fenômenos da diáspora, migração e racismo dos anos 80 e 90. Para Mignolo, o
termo pós-colonial seria uma expressão no mínimo ambígua, perigosa e confusa. Ambígua,
porque abrange e homogeniza diversas histórias coloniais e processos de descolonização, lo-
calizados em diversos espaços e tempos. Perigosa, porque esconde a potencialidade discursiva
de constituir-se como uma oposição à hierarquia estabelecida na circulação e distribuição de
conhecimento. Mas confusa, também, porque cria a ideia de excepcionalidade, sobretudo por-
que com categorias como “hibridização”, “mestiçagem”, entre tantas outras, sugere-se a ideia
de descontinuidade entre a configuração colonial do objeto de estudo e a posição pós-colonial
do lugar da teoria. Vide MIGNOLO, Walter. “Herencias coloniales y teorías postcoloniales”.
In: GONZÁLES STEPHAN, Beatriz, Cultura y Tercer Mundo: Cambios en el Saber Académi-
co, Cap. IV. Venezuela: Nueva Sociedad, 1996, p. 99.
39
HERNANDEZ, H. G. • Afinal, África é patrimônio de quem?
40
Nossa África: ensino e pesquisa
1
Professora Adjunta de História da África do Departamento de História da FAED/UDESC e
membro do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (NEAB/UDESC). E-mail:
[email protected]
2
Entrevista concedida por Chinua Achebe em 2007 ao escritor nigeriano Helon Habila, publica-
da pela The Africa Report e Sable Mag. Disponível em: <http://www.theafricareport.com/West-
Africa/an-interview-with-late-nigerian-author-chinua-achebe-by-helon-habila.html>.
3
O sistema de educação brasileiro é regulamentado pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDB) promulgada sob o número 9.394/1996. A Lei 10.639/03 alterou um dos arti-
gos da LDB e que foi modificada novamente pela Lei 11.645/08, que institui a obrigatoriedade
do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena. Ao longo do texto, no entanto,
optamos por citar a Lei 10.639/03 por sua importância histórica e política relacionada ao
Movimento Negro.
41
MORTARI, C. • O “equilíbrio das histórias”: reflexões em torno de experiências de ensino...
4
No Curso de História da FAED/UDESC existem duas disciplinas obrigatórias de História da
África (I e II). A primeira se refere ao período que vai do século XV ao XIX, e a segunda relativa
ao século XX. Por sua vez, a experiência na pós-graduação se refere às Disciplinas Optativas:
Ensino de História da África e da Cultura Afro-Brasileira – no Mestrado Profissional em Histó-
ria (ProfHistória) e Multiculturalismo, Cotidiano e História – no Mestrado em História (PPGH).
A disciplina de História da África I foi incluída como obrigatória no currículo do Curso de
História da UDESC/FAED no ano de 1995 e História da África II como optativa no mesmo
ano. Em 2003, com nova alteração curricular, ambas as disciplinas passam a ser obrigatórias.
5
Tais reflexões são provenientes do desenvolvimento do projeto de pesquisa intitulado “Modos de
ser, ver e viver: o mundo Ibo a partir da escrita de Chinua Achebe (África Ocidental, séc. XX)”.
O objetivo consiste em, a partir das obras literárias do escritor nigeriano (O Mundo se Despeda-
ça, 1958; A Flecha de Deus, 1964; A Paz Dura Pouco, 1960), descortinar os modos de ser, ver e
viver no mundo Ibo (Nigéria) no contexto do colonialismo e do processo de independência.
6
A Lei n. 10.639/2003 se constitui de uma alteração na Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDB). Esta, em 2008, foi, novamente, modificada pela Lei 11.645, de 10 de março, que
acrescentou a obrigatoriedade da inclusão de temáticas relativas a história das populações indíge-
nas brasileiras. No entanto, optamos por manter a referência à primeira com o objetivo de reconhe-
cer a luta dos movimentos sociais, em especial o Movimento Negro, na sua implementação.
7
CARDOSO, P. J. F. Reflexões avulsas sobre os significados da Lei 10.639/03. Políticas da Cor
Revista Eletrônica, Rio de Janeiro, v. 21, 2005.
42
Nossa África: ensino e pesquisa
8
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensi-
no de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana de 2004, p. 10.
9
Sobre esta questão, sugerimos a leitura do artigo de ABREU, Martha e MATTOS, Hebe. “Em
torno das ‘Diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para
o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana’”: uma conversa com historiadores.
Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 21, n. 41, janeiro-junho de 2008, p. 5-20. Neste, as autoras
apresentam uma discussão pertinente no que diz respeito à compreensão das características
das diretrizes numa perspectiva historiográfica.
10
Idem, p. 10.
11
As questões introduzidas pelo parecer abrangem um amplo público: professores, administra-
dores e todos os envolvidos na elaboração, execução e avaliação de programas de interesse
educacional. E, evidentemente, as famílias dos estudantes, eles próprios e todos os cidadãos
comprometidos com a educação. Idem, p. 10.
12
A exemplo de inúmeros Cursos de Qualificação de Professores(as) oferecidos pelos NEAB no
Brasil, através de ações de extensão, e aqui cabe uma referência particular a nossa própria
experiência no NEAB.
43
MORTARI, C. • O “equilíbrio das histórias”: reflexões em torno de experiências de ensino...
13
No que diz respeito ao Ensino Superior no Estado de Santa Catarina, a pesquisa coordenada
pelo Professor Dr. Paulino de Jesus Francisco Cardoso que objetiva mapear a formação dos
professores que lecionam História e Cultura da África e os conteúdos/conhecimentos sobre
esse componente curricular, aplicados nos cursos de formação em ensino superior de licen-
ciatura e bacharelado em História das universidades (públicas, comunitárias e particulares) do
estado de Santa Catarina tem apontado resultados e discussões em relação à temática. Sobre
isso ver, também: HECK, Mariana. Identidades e Multiculturalismo: um estudo acerca do Ensino
de História das Áfricas nas Universidades Públicas de Santa Catarina (2011-2012). 2013, 84 f.
Monografia (Graduação em Bacharelado e Licenciatura em História) – Universidade do Estado
de Santa Catarina, Florianópolis, 2013; OLIVA, Anderson Ribeiro. A África não está em nós –
a história africana no imaginário de estudantes do Recôncavo Baiano. Fronteiras, Dourados, v.
11, n. 20, p. 73-91, jul./dez. 2009. OLIVA, Anderson Ribeiro. A história africana nas escolas
brasileiras. Entre o prescrito e o vivido, da legislação educacional aos olhares dos especialistas
(1995-2006). História, São Paulo, v. 28, n. 2, 2009, p. 143-172.
14
Diretrizes, 2004, p. 17.
44
Nossa África: ensino e pesquisa
15
MATTOS, 2008, p. 16.
16
OLIVA, 2009, p. 157.
17
Idem, p. 157.
18
M´BOKOLO. Elikia. África negra. História e civilizações até o século XVIII. Lisboa: Vulgata,
2003.
45
MORTARI, C. • O “equilíbrio das histórias”: reflexões em torno de experiências de ensino...
19
ANTONACCI, Maria Antonieta. Memórias ancoradas em corpos negros. São Paulo: EDUC, 2013.
MORTARI, Claudia. O ensino de História das Áfricas e a Historiografia: alguns apontamen-
tos. In: MORTARI, Claudia (Org.). Introdução aos Estudos Africanos e da Diáspora. Florianópo-
lis: IOESC, 2015.
20
M´BOKOLO, 2003.
21
Idem.
46
Nossa África: ensino e pesquisa
uma questão a ser discutida em sala de aula visando apontar que os própri-
os primados temporais possuem uma história e, portanto, precisam ser pro-
blematizados e discutidos.
Embora as questões colocadas até agora tenham se constituído de
questões pertinentes para se pensar a prática do ensino de História das Áfri-
cas, uma questão central permanece como pano de fundo e de certa forma
pautada na legislação brasileira: a tentativa de construção de uma identida-
de negra africana para todo o continente.
Bem, hoje pensamos que esta última concepção possui suas limita-
ções, pois, como coloca Appiah:
Se nos fosse possível viajar pelas muitas culturas da África naqueles anos –
desde os pequenos grupos de caçador-coletores bosquímanos, com seus ins-
trumentos da Idade da Pedra, até os reinos haussás, ricos em metais traba-
lhados –, teríamos sentido, em cada lugar, impulsos, ideias e formas de vida
profundamente diferentes. Falar de uma identidade africana no século XIX
– se identidade é uma coalescência de estilos de conduta, hábitos de pensa-
mento e padrões de avaliação mutuamente correspondentes (ainda que às
vezes conflitantes), em suma, um tipo coerente de psicologia social humana
–, equivalia a dar a um nada etéreo um local de habitação e um nome.22
22
APPIAH, Kwame Anthony. A Casa de Meu Pai. A África na Filosofia da Cultura. Rio de
Janeiro: Contraponto, 1997, p. 243.
23
Idem, p. 19.
24
FANON, Frantz. Os Condenados da Terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
25
MORTARI, 2015.
47
MORTARI, C. • O “equilíbrio das histórias”: reflexões em torno de experiências de ensino...
tas outras, duas questões que nos parecem centrais e que se apresentam nas
experiências apontadas até o momento.
A primeira delas, diz respeito a existência de uma visão racializada26 e
essencializada das populações africanas, construída e fundamentada pelo
uso da categoria negro, acionada tanto no sentido de inferiorização quanto
de positivação.27 Aliás, os estereótipos e preconceitos que recaem sobre as
sociedades e culturas africanas (e afro-brasileiras) são, paradoxalmente,
muito antigos e contemporâneo.28
A segunda está relacionada, especificamente, à expansão das pesqui-
sas e dos estudos no Brasil acerca da História da África. Em que pese a
existência de diferentes perspectivas de análise e a sua inegável contribui-
ção para a produção e a difusão do conhecimento, ainda há muito que se
produzir no sentido da ampliação e incorporação dos documentos históri-
cos utilizados. Mormente, estes são relativos a escritos europeus, viajantes,
administradores coloniais, religiosos, etc, que em diferentes momentos (em
especial do século XV ao XX) estiveram no continente africano e estabele-
ceram contatos com as populações locais.
Pensamos que a permanência de uma visão racialista e a produção
do conhecimento histórico a partir da perspectiva da presença ou das repre-
sentações europeias sobre e em África são provenientes de uma concepção
eurocêntrica/colonial/moderna sobre o mundo.29 Importante apontar que
esta visão colonial/racial, está presente não somente nos escritos de inte-
lectuais quanto de uma posição do movimento social. O eurocentrismo e o
colonialismo são faces de uma mesma moeda. O primeiro é uma lógica
fundamental para a reprodução da colonialidade do saber, que pressupõe,
entre outras questões, o controle da subjetividade e do conhecimento. “Da
perspectiva epistemológica, o saber e as histórias locais europeias foram
vistas como projetos globais, [...] que situam a Europa como ponto de refe-
rência e de chegada”.30 Modernidade e colonialidade acabaram projetando
26
APPIAH, 1997.
27
Expressos através dos diferentes veículos de informação, salta aos olhos os inúmeros estereó-
tipos e preconceitos vinculados ao continente africano. Por outro lado, uma visão positivada
acaba caindo em construções idealizadas acerca das diversas sociedades africanas, numa es-
sencialização e homogeneização da cultura e na dicotomia entre opressores e oprimidos.
28
AZEVEDO, Amailton Magno. Imagens da África: entre a violência discursiva e a produção
da memória. Revista Eletrônica do Tempo Presente, Ano 3, n. 3, 2013.
29
MIGNOLO, Walter D. Histórias locais/Projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e pen-
samento liminar. Belo Horizonte: UFMG, 2003.
30
Idem, 2003, p. 41.
48
Nossa África: ensino e pesquisa
31
ANTONACCI, 2013.
32
Não se trata de um recorte geográfico, mas, sim, de saberes, viveres, ideias de sujeitos subalter-
nizados pelo pensamento eurocêntrico/colonial/moderno. MIGNOLO, 2003; ANTONAC-
CI, 2013.
33
ANTONACCI, 2013, p. 248. Aliás, os autores decoloniais (MIGNOLO, QUIJANO, DUS-
SEL) partem do princípio de que, assim como para Habermans a modernidade é um projeto
inacabado, a descolonização também o é.
34
DUSSEL, Enrique. Hacia una Filosofía Política Crítica. Bilbao, España: Desclée de Brouwer,
2001; MIGNOLO, 2003; HOUNTONDJI, Paulin J. “Conhecimento de África, conhecimen-
to de Africanos: Duas perspectivas sobre os Estudos Africanos”. In: Revista Crítica de Ciências
Sociais. Centro de Estudos Sociais. Laboratório Associado da Universidade de Coimbra, Mar-
ço, 2008, p. 149-160.
35
GROSFOGUEL, Ramón. Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos pós-
coloniais: Transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade global. Revista Crítica de
Ciências Sociais [Online], 80 | URL : http://rccs.revues.org/697 ; DOI : 10.4000/rccs.697, 2008.
49
MORTARI, C. • O “equilíbrio das histórias”: reflexões em torno de experiências de ensino...
36
Estas reflexões têm por base principalmente o diálogo com autores do campo dos estudos pós-
coloniais e decoloniais. GROSFOGUEL, Ramón. “The Implications of Subaltern Epistemo-
logies for Global Capitalism: Transmodernity, Border Thinking and Global Coloniality”. In:
ROBINSON, William e APPLEBAUM, Richard (Orgs.). Critical Globalization Studies. Lon-
don: Routledge, 2005. MBEMBE, Achille. Formas africanas de auto-inscrição. Revista Estudos
Afro-Asiáticos, Ano 23, n. 1, 2001, p. 171-209. MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Por-
tugal: Antígona Editores, 2014; MIGNOLO, 2003; MUDIMBE, V. Y. A Ideia de África. Man-
gualbe: Edições Pedago, 2014.
37
“É aqui que reside a pertinência da distinção entre ‘colonialismo’ e ‘colonialidade’. A coloni-
alidade permite-nos compreender a continuidade das formas coloniais de dominação após o
fim das administrações coloniais, produzidas pelas culturas coloniais e pelas estruturas do
sistema-mundo capitalista moderno/colonial. A expressão ‘colonialidade do poder’ designa
um processo fundamental de estruturação do sistema-mundo moderno/colonial, que articula
os lugares periféricos da divisão internacional do trabalho com a hierarquia étnico-racial glo-
bal e com a inscrição de migrantes do Terceiro Mundo na hierarquia étnico-racial das cidades
metropolitanas globais”. GROSFOGUEL, 2008, p.18.
38
MIGNOLO, 2003.
39
Em especial no que diz respeito à Disciplina de África II, que compreende o contexto histórico
do colonialismo e movimentos de independência nas Áfricas. Além disso, essas reflexões resul-
taram na elaboração de um novo projeto de pesquisa como colocado no início deste artigo.
40
Em especial “O Mundo se Despedaça” (“Things fall apart”, publicado em 1958), sua obra
mais conhecida, foi publicada em 1958, quando ele tinha 28 anos, e traduzida para mais de
cinquenta línguas.
50
Nossa África: ensino e pesquisa
como evidência histórica, apontar os modos de ser, ver e viver no mundo Ibo
(Nigéria) no contexto do colonialismo. Entre as muitas questões que são pro-
blematizadas em sala a partir da sua obra, algumas nos parecem centrais.
Como o escritor vai evidenciar as ações e visões de mundo dos seus diferentes
personagens? Como compreender as dinâmicas sociais, os contatos entre
nativos e europeus no contexto? Como as populações nativas locais interpre-
taram e construíram a sua visão acerca da presença europeia na região? O
que o autor e a sua escrita nos permite desvendar do processo histórico? Para
além disso, partimos do princípio, consoante com Chalhoub, de que as obras
de Chinua Achebe estão profundamente informadas por sua visão e seus
sentidos da história. Ele era um observador arguto das transformações so-
ciais advindas do contato com os europeus. Quais eram seus interlocutores?
Quais tradições culturais eram instituídas e reproduzidas na sua obra?
Chinua Achebe (seu nome britânico era Albert Chinualumogu Ache-
be), escritor africano da Nigéria, nasceu na aldeia de Ogidi, em Igboland, na
década de 1930, trinta anos antes da Nigéria se libertar do domínio colonial
britânico. Tem, ao longo de sua carreira cerca de trinta livros (romances, con-
tos, ensaios e poesia). De forma geral, as narrativas das obras elencadas para
a análise em nossa pesquisa versam acerca da inferiorização que o ocidente
imprimiu às sociedades e culturas africanas, os efeitos da colonização do
continente pelos europeus, mas também uma crítica aberta à política nigeria-
na no contexto da independência. Além disso, trazem marcas da tradição
oral, os vocábulos, os provérbios Igbo da região onde nasceu. Em 1944, Achebe
ingressou na University College of Ibadan, onde estudou Teologia, História
e Língua e Literatura Inglesas. Como um sujeito diaspórico, viveu entre a
Nigéria e os Estados Unidos. Foi professor catedrático de Estudos Africanos
na Universidade de Connecticut, nos Estados Unidos, tendo também recebi-
do o título de doutor Honoris Causa de várias universidades de todo o mundo.
Ao longo de sua vida viajou pelo continente africano e pela América e tor-
nou-se uma figura central do movimento literário nigeriano. Trata-se de um
escritor conhecido por ter uma voz crítica e que se recusa à “vitimização
africana” e, ao mesmo tempo, à colonialidade ocidental. Para Achebe, preo-
cupado com assuntos sociais e políticos que vão acontecendo, sobretudo em
África, a literatura tem o papel de permitir “chegar à vida das pessoas para
quem escrevo: eu conto o que acontece nas vidas delas, os problemas que elas
têm e com que políticas elas têm de lidar nos países onde vivem”.41
41
ACHEBE, 2007.
51
MORTARI, C. • O “equilíbrio das histórias”: reflexões em torno de experiências de ensino...
42
CHALHOUB, Sidney; PEREIRA, Leonardo Affonso de M. Apresentação. In: CHALHOUB,
Sidney; PEREIRA, Leonardo Affonso de M. (Orgs.). A história contada: capítulos de História
social da Literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 09.
43
Idem, p. 07.
44
Idem, p. 08.
45
WALSH, Catherine. Interculturalidade Crítica e Pedagogia Decolonial: in-surgir, re-existir e
re-viver. Educação intercultural na América Latina: entre concepções, tensões e propostas. Rio de
Janeiro, v. 7, p. 12-43, 2009, p. 23.
46
GROSFOGUEL, 2009, p. 407.
52
Nossa África: ensino e pesquisa
47
EUSTÁQUIO, Victor. Desafios epistemológicos em Estudos Africanos: Da colonialidade do
poder às epistemologias descoloniais. Lisboa: ISCTE-IUL, 2011, p. 01. https://
www.academia.edu/3523733/Desafios_epistemol%C3%B3gicos_em_Estudos_Africanos.
53
Da desconstrução dos estereótipos
às peculiaridades da construção nacional
nos Países Africanos de Língua Oficial
Portuguesa (PALOP)
Marçal de Menezes Paredes1
1
Professor Adjunto, Coordenador do Programa de Pós-Graduação em História, Escola de Hu-
manidades, PUCRS; e-mail: [email protected].
54
Nossa África: ensino e pesquisa
2
FAGE, John. A Evolução da historiografia da África. In: KI-ZERBO (Org.). História Geral da
África. V. 1. São Paulo: Ática/Unesco, 1982, p .1-22.
3
Veja-se, por exemplo, ZAMPARONI, V. Os estudos africanos no Brasil: veredas. Rev. Educ.
Pública, Cuiabá, v. 4, n. 5, jan./jun. 1995; ZAMPARONI, V. África e os estudos africanos no
Brasil: passado e futuro. Ciência e Cultura, v. 59, n. 2, São Paulo, abr./jun., 2007.
55
PAREDES, M. de M. • Da desconstrução dos estereótipos às peculiaridades da construção...
4
FAGE, John. A Evolução da historiografia da África. In: KI-ZERBO (Org.). História Geral da
África. V 1. São Paulo: Ática; Unesco, 1982, p. 1-22.
56
Nossa África: ensino e pesquisa
5
MORAIS FARIAS, Paulo Fernando. Afrocentrismo. Entre uma contranarrativa histórica uni-
versalista e o relativismo cultural. Afro-Ásia. 29/30, 2003, p. 317-343.
57
PAREDES, M. de M. • Da desconstrução dos estereótipos às peculiaridades da construção...
6
ZELEZA, Paul Tiyambe. “The invention of African Identities and Languages. The Discoursi-
ve and Developmental Implications”. In: Selected Proceedings of the 36th Conference on African
Linguistics. Edited by Olaoba Aransanyinand Michael Pemberton. Somerville, MA: Cascadilla
Proceding Project, 2006. Acesso em: dez. 2013.
7
Merece aqui menção a importância do trabalho realizado, por várias décadas, da professora
Margareth Bakos neste sentido. Através de seu trabalho na pesquisa e nas orientações, o Pro-
grama de Pós-Graduação em História da PUCRS conta com um número bastante significativo
de mestres e doutores, dissertações e teses, que tematizaram os diferentes aspectos da história
do negro no Rio Grande do Sul e no Brasil.
58
Nossa África: ensino e pesquisa
do, o foco específico das sociedades africanas é algo ainda recente, como
disse. Vale grifar que o PPGH/PUCRS tem seu enquadramento na história
das sociedades ibéricas e americanas. O estudo das sociedades africanas aca-
ba por ter, com isso, um componente limitador, circunscrevendo-se “apenas”
à história dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa.
Atente-se para este “apenas” entre aspas.8 Ora, é evidente que o re-
corte dos PALOP apresenta uma dupla recusa. Primeiro a recusa de um
retrato unívoco sobre o continente africano. Afinal, chama a atenção para
o fio condutor da Língua Oficial Portuguesa – e, com isso, marca (mesmo
que implicitamente) a diferença entre alguns projetos coloniais europeus,
grifando eventualmente o conflito entre eles (lembre-se, aqui, do impacto
do Ultimatum Britânico em Portugal na questão do Mapa Cor-de-Rosa que
ligaria Angola a Moçambique, em choque com o projeto colonial inglês
entre o Cairo, no Egito, e a Cidade do Cabo, na África do Sul9). Trata-se de
perceber, no mesmo sentido, que esta disputa europeia irá ter importantes
consequências para os povos africanos. Seja porque a competição europeia
por colônias na África inseria-se no jogo de disputas entre nacionalismos
europeus10 seja pela invasão militar, pelo domínio político e pela explora-
ção econômica que lhes foram próprias.11 A produção de relatos de viagem,
8
Obviamente, para os objetivos deste ensaio, serão apenas comentadas algumas características
(necessariamente parciais e seletivas no escopo mais geral dos PALOP). Não é este o lugar
adequado, e nem há espaço suficiente para fazer uma exposição, mesmo que sumária, do pa-
norama geral dos nacionalismos em Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné Bissau e São
Tomé e Príncipe. Ainda outra necessária prevenção deve ficar aqui marcada. Obviamente que a
noção de PALOP contém, na própria sigla, a noção de Língua Oficial Portuguesa. Contudo,
creio ter este enquadramento um menor custo político e epistêmico, até porque não exclui os
casos de outras línguas oficiais nestes países (o que é fato), nem tampouco prescinde do caráter
estratégico e até mesmo utilitário de aproveitarmos a partilha da língua (em reuso, reciclagem e
ressignificação em diferentes escalas nacionais) para acessarmos fontes e pontos de vista idiossin-
cráticos com maior acessibilidade (na disponibilidade destas para aulas de graduação e pós-gra-
duação, por exemplo). Mais uma ressalva: diante da variabilidade de casos a seguir expostos, vale
dizer que tudo o que ficar expresso a seguir tem apenas o estatuto de notas esparsas, convidando
para futuros estudos de caso. Para uma leitura panorâmica, sugere-se CHABAL, Patrick. A His-
tory of PostColonial Lusoophone Africa. Indiana: Indiana University Press, 2002.
9
Fica fácil de perceber este elemento conflitual da scramble for Africa ao se comparar os mapas
relativos aos projetos coloniais britânico, português, francês e belga. Para isto, veja-se
M’BOKOLO, Elikia. História da África Negra. Salvador: EDUFBA; São Paulo: Casa das Áfri-
cas, 2011, p. 346-347.
10
Para os desdobramentos desta leitura (que é destoando do bordão “imperialista” de vista eco-
nômico), veja-se M’BOKOLO, Elikia. História da África Negra. Salvador: EDUFBA; São Pau-
lo: Casa das Áfricas, 2011, p. 350-351.
11
Não custa lembrar aqui as diferenças entre os 1º, 2º e 3º impérios portugueses na África. Veja-
se, a este respeito, por exemplo, ALEXANDRE, Valentim (Coord.). O império africano (séculos
XIX-XX). Lisboa: Colibri, 2000.
59
PAREDES, M. de M. • Da desconstrução dos estereótipos às peculiaridades da construção...
12
Veja-se, por exemplo, a matéria sobre os 150 anos deste “feito” nas páginas do Diário de
Notícias, de Lisboa: http://150anos.dn.pt/2014/07/30/1895-prisao-de-gungunhana/.
13
Ou conforme afirma Augusto Nascimento: “No tocante aos são-tomenses, as práticas coloniais
não passaram, senão esporadicamente, pela imposição do indigenato”. NASCIMENTO, Au-
gusto. Atlas da Lusofonia. São Tomé e Príncipe. Lisboa: Prefácio, 2008, p. 35. Sabe-se, contudo, o
quão forte foi sua concretização seja em Angola ou Moçambique. Veja-se, para o caso angolano,
WHEELER, Douglas; PELISSIER, René. História de Angola. Lisboa: Tinta da China, 2009.
14
NETO, Sérgio. Colónia Mártir, colónia modelo. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coim-
bra/CEIS20, 2009.
15
CASTELO, Cláudia. “A Casa dos Estudantes do Império: lugar de memória anticolonial”. In:
7º Congresso Ibérico de Estudos Africanos, 9, Lisboa, 2010 – 50 anos das independências africanas:
desafios para a modernidade: actas [Em linha]. Lisboa: CEA, 2010. Disponível em: http://
hdl.handle.net/10071/224.
60
Nossa África: ensino e pesquisa
16
Sendo a “indigenização” dos cabo-verdianos própria de sua condição de contratados em São
Tomé. Cf. NASCIMENTO, Augusto. O fim do caminhu longi. Midelo: Ilhéu Editores, 2007.
17
MATOS, Regiane. “A dinâmica das relações no norte de Moçambique no final do século XIX
e início do século XX”. Revista História (São Paulo), n. 171, jul./dez., 2015, p. 383-419; BOUE-
NE, Felizardo. “Moçambique: Islã e cultura tradicional” In: GONÇALVES, António Custó-
dio (Org.). 2003. O Islão na África Subsariana. Papers of VI Colóquio Internacional “Identida-
des, Poderes e Etnicidades. O Islão na África Subsariana”, 2004, at FLUP – Porto. 2003.
Disponível em: http://www.africanos.eu/ceaup/index.php?p=k&type=B&pub=14&s=2.
18
BITTENCOURT, Marcelo. Nacionalismo, estado e guerra em Angola. In: FERRERAS, Nor-
berto (Org.). A questão nacional e as tradições nacional-estatistas no Brasil, América Latina e
África. Rio de Janeiro: FGV, 2015, p. 231-255 e BITTENCOURT, Marcelo. “Fissuras na luta
de libertação angolana”. Métis. História e cultura. V. 10, n. 19, 2011, p. 237-255.
19
SEMEDO, Rui Jorge. O Estado da Guiné Bissau e os desafios político-institucionais. Tensões
mundiais. V. 7, n. 13, 2011; DUARTE SILVA, António. Guiné-Bissau: a causa do nacionalismo
e a fundação do PAIGC. Cadernos de Estudos Africanos. n. 9/10, 2006; SOUSA, Julião Soares. “O
Fenómeno tribal, o tribalismo e a construção da identidade nacional no discurso de Amílcar
Cabral”. In: TORGAL, L. R.; PIMENTA, F. T.; SOUSA, J. S. (Orgs.). Comunidades Imaginadas.
Nação e Nacionalismos em África. Coimbra: Imprensa da Universidade, 2008, p. 161-172.
61
PAREDES, M. de M. • Da desconstrução dos estereótipos às peculiaridades da construção...
bate nos últimos vinte ou trinta anos. Querelas acadêmicas entre teses pri-
mordialistas e modernistas, etnosimbolistas e construtivistas, pós-colonia-
listas ou seus críticos, fazem parte da história do campo acadêmico.20 Con-
tudo, quando se olha para o caso da construção das nações na África21,
tem-se a sensação de um enorme desequilíbrio: primeiro, porque o número
de textos disponíveis sobre o tema é relativamente reduzido; segundo, por-
que a maioria dos autores geralmente trabalha o tema das identidades nacio-
nais ou num viés claramente político ou sob uma visão francamente gene-
ralista; e terceiro, o grau destes fatores atrás apontados fica mais ainda exa-
cerbado quando se pesquisa a história dos países africanos com língua ofi-
cial portuguesa (ainda que, nos últimos anos, tenham sido publicados bons
e interessantes trabalhos).
Dentre as demarcações contemporâneas do debate, interessa-me, aqui,
chamar a atenção para alguns rumos aliciantes do debate. Patrick Chabal,
por exemplo, nega a relação causal direta entre a modernidade e a constru-
ção do nacionalismo africano. Ao contrário deste postulado modernista –
em que concordam diferentes autores como Eric Hobsbawm, Hans Kohn
ou Elie Kedourie, entre outros –, a perspectiva de Chabal afirma pratica-
mente o oposto. Tendo em vista o caso africano, a relação é inversa à euro-
peia: o nacionalismo na África é considerado como o promotor da moder-
nização das sociedades (e não seu resultado, como no caso europeu).22 Esta
consideração é da mais alta valência na medida em que descortina o caráter
de promoção de novos parâmetros de organização social inseridos no con-
texto pós-independência. Assim, as “novas” nações africanas teriam mais
um apelo ao futuro a ser construído que um passado a ser preservado.23 É
20
Veja-se, por rexemplo, DELANNOI, Gil; TAGUIEFF, Pierre-André. Théories du nationalisme.
Nation, nationalité, ethnicité Sous. Paris: Kimé, 1992; ÖZKIRIMLI, U. Theories of nationa-
lism: a critical introduction. New York: St. Martin Press, 2000; BALAKRISHNAN, Gl. (Org.).
Um mapa da questão nacional. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000.
21
Neste ponto, retomo brevemente alguns argumentos utilizados em PAREDES, Marçal de M.
“A construção da identidade nacional moçambicana no pós-Independência: sua complexidade e al-
guns problemas de pesquisa”. Anos 90, dezembro, 2014, p. 131-161.
22
Chabal, Patrick. “Imagined Modernities: community, nation and state in postocolonial Africa” In:
TORGAL, L.R.; PIMENTA, F. T.; SOUSA, J. S. Comunidades Imaginadas. Nação e nacionalismos
em África. Coimbra: Imprensa da Univ. de Coimbra/CEIS20, 2008, p. 41-48. Veja-se, do mesmo
autor, A History of Postcolonial Lusophone Africa. Indianápolis: Indiana University Press, 2002.
23
Sabe-se, obviamente, do postulado teórico-político de Amilcar Cabral ou mesmo de Julius
Nyerere que, de maneiras distintas, buscavam uma recuperação ou uma reafricanização da
própria África. Vale dizer que um projeto tal só é possível a partir da sensação de perda da
própria tradição a ser recuperada. Sobre esta questão ver, entre outros, HOBSBAWM, E. &
RANGER, T. A invenção das Tradições. Rio de janeiro: Paz e Terra, 2008.
62
Nossa África: ensino e pesquisa
24
SCHUBIN, Wladimir. The Hot Cold War. The USSR in Southern Africa. London: Pluto Press,
2008 & Scottsville: University of KwaZulu-Natal Press, 2008.
25
SAUL, John S. A Flawed Freedom. Rethinking Southern African Liberation. London: Pluto-
Press, 2014; SILVA, Sérgio Vieira da. Política e poder na África Austral (1974-1989). Lisboa:
Escolar Editora, 2013; ROCHA, Edmundo. Angola. Contribuição ao estudo da gênese do
nacionalismo moderno angolano (período 1950-1964). Lisboa: Dinalivro, 2009; LOPES,
José Vicente. Cabo Verde – Os bastidores da Independência. Praia/Mindelo: Instituto Ca-
mões/Centro Cultural Português, 1996.
63
PAREDES, M. de M. • Da desconstrução dos estereótipos às peculiaridades da construção...
64
Nossa África: ensino e pesquisa
26
MAXWELL, K. O Império Derrotado: revolução e democracia em Portugal. São Paulo: Com-
panhia das Letras, 2006.
27
Veja-se a entevista de Otelo Saraiva de Carvalho à Deutsche Welle em http://www.dw.com/
pt/otelo-aconselhou-fidel-castro-a-avan%C3%A7ar-rumo-a-angola/a-17507318.
28
WOOLLACOTT, John. “A luta pela libertação nacional na Guiné-Bissau e a revolução em
Portugal”. Análise Social, v. XIX (77-78-79), 1983-3º, 4º, 5º, 1131-1155.
65
PAREDES, M. de M. • Da desconstrução dos estereótipos às peculiaridades da construção...
mobilizado nelas. É muito difícil, a não ser por arroubos românticos e/ou
historicistas, estabelecer indelevelmente um fio condutor único ligando ge-
rações, ideias, projetos políticos e contextos distintos.
Diferentemente da divisão angolana, em Moçambique coube à FRE-
LIMO a centralidade na organização, promoção e proclamação da inde-
pendência nacional. Formada em 1962 na Tanzânia, através da agregação
de três movimentos de luta anticolonial já existentes – a UNAMO (União
Africana de Moçambique), a MANU (Mozambique African Nation Union) e
a UDENAMO (União Democrática Nacional de Moçambique) – esta gran-
de Frente de Libertação29 tinha um caráter nacionalista amplo e contava
com apoio internacional dos seus vizinhos ao norte do país (Malaui, Zâm-
bia, Zimbábue e Tanzânia). Seu ideário era marcado por um forte antisala-
zarismo, sendo sua proximidade com o Bloco Soviético ainda de caráter
estratégico no âmbito do anticolonialismo.30 Fato é, contudo, que a FRE-
LIMO, enquanto frente política ampla, e sob a liderança de Eduardo Mon-
dlane, não se teria proclamado marxista-leninista durante a luta pela inde-
pendência de Moçambique.31 Este postulado será, contudo, modificado no
imediato contexto pós-independência, já vinculado a políticas de constru-
ção nacional identitária.
De maneira algo particular, o caso moçambicano diferencia-se da
construção do nacionalismo pela via do “socialismo africano” tal como
proposto, inclusive, pelos movimentos oriundos dos países que deram su-
porte à formação da FRELIMO (Malaui, Zimbábue, Tanzânia). Veja-se,
entre outros, a distinção clara ao projeto de Julius Nyerere. Se o tanzaniano
promotor da Ujamaa apelava para uma leitura das culturas negras tradicio-
nais como fonte do socialismo africano (anterior e independente do viés
soviético), o moçambicano, por sua vez, buscou aplicar o modelo do mar-
xismo-leninismo – ao menos desde 1977 no III Congresso da Frelimo32 – às
condições moçambicanas. Basta agregarmos a este quadro a lembrança das
particularidades e das opções do vizinho Kenneth Kaunda, na Zâmbia, e
seu Humanismo Africano, ou mesmo o pendor pan-africano do Dr. Has-
tings Kazumu Banta, no Malaui, com forte influência de Kwame Nkru-
29
ENDERS, A. História da África Lusófona. Mira-Sintra: Mem Martins, 1997.
30
VIEIRA, S. Participei, por isso testemunho. Maputo: Ndira, 2011.
31
MALOA, J. M. “O lugar do marxismo em Moçambique: 1975-1994”. Revista Espaço Acadêmi-
co, n.122, julho de 2011. Acesso em: 10 mar. 2014.
32
MACHEL, Samora. O Partido e as Classes Trabalhadoras Moçambicanas na edificação da Democracia
Popular. Relatório do Comité Central no 3° Congresso da FRELIMO. Maputo: Avante, 1978.
66
Nossa África: ensino e pesquisa
67
Uma mirada insular
ao continente africano:
a África no PPGH/UFSC
Sílvio Marcus de Souza Correa1
1
Professor do departamento de história da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
68
Nossa África: ensino e pesquisa
A metáfora insular
Estudar a História da África pressupõe uma revisão dos postulados
epistemológicos da disciplina. Uma “mirada insular” pode contribuir para
isso? A experiência insular não favorece por si uma outra perspectiva his-
toriográfica. Do iluminismo luso-brasileiro, um primeiro bosquejo histórico
da África saiu da lavra de João da Silva Feijó. Ele chegou em Cabo Verde em
1783. Nos primeiros anos do seu período insular, o naturalista se indispôs
com autoridades políticas e clericais, o que dificultou a sua missão científica.
Chegou a ocupar o cargo de Secretário do Governo da Capitania de Cabo
Verde. Apesar das funções burocráticas, prosseguiu com suas pesquisas.4 Ao
retornar para Lisboa, dedicou-se a escrever e publicar o seu “Ensaio econô-
mico sobre as Ilhas de Cabo Verde” (1797). Mas o naturalista tinha também
o intuito de fornecer um “plano à história filosófica” das Ilhas de Cabo Ver-
de. Partes do seu plano à história filosófica foi publicado no jornal carioca O
Patriota em 1814.
2
HARTOG, F. Marshal Sahlins et l’anthropologie de l’histoire. In: Annales, v. 38, 1983, p. 1.261.
3
Ver HARTOG, François. Régimes d’historicité. Présentisme et expériences du temps. Paris: Edi-
tions du Seuil, 2003, p. 33-51.
4
CORREA, Sílvio M. de S. Primeiras contribuições do pensamento ilustrado brasileiro a uma
História da África. Revista Eletrônica do Tempo Presente, Ano III, n. 3, set., 2013.
69
CORREA, S. M. de S. • Uma mirada insular ao continente africano: a África no PPGH/UFSC
A ilha do esquecimento
Em termos historiográficos, a metáfora da ilha serve para pensar ou-
tras formas de historicidades. Também experiências insulares que foram
tratadas como periféricas ou menores podem ser contempladas por um apor-
te que leve em conta outras temporalidades. Inclusive, a história de muitas
ilhas é incontornável para o estudo da formação do mundo atlântico.
Essas ilhas viabilizaram novas histórias. No entanto, muitas delas
caíram no esquecimento, assim como as relações do Brasil com a África.
Através da prática docente, posso constatar ainda os efeitos da alheação
cultural e os resquícios do processo de desafricanização que se operou no
Brasil desde o século XIX.5
O esmaecimento das relações afro-brasileiras no século XIX teve um
impacto na historiografia nacional. Francisco Adolfo de Varnhagen che-
gou a fazer
votos para que chegue um dia em que as cores de tal modo se combinem que
venham a desaparecer totalmente no nosso povo os característicos da origem
africana e, por conseguinte, a acusação da procedência de uma geração, cujos
troncos no Brasil vieram conduzidos em ferros do continente fronteiro.6
5
RODRIGUES, José Honório. Brasil e África: outro horizonte. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1964, p. 203.
6
VARNHAGEN, Francisco. História [coletânea de textos organizada por Nilo Odália]. São Paulo:
Ática, 1979, p. 73.
70
Nossa África: ensino e pesquisa
7
CORREA, Sílvio M. de S. A “Partilha da África” pela imprensa teuto-brasileira. Cadernos de
Pesquisa do CDHIS, Uberlândia, v. 23, n. 2, jul./dez. 2010.
8
Homero situou a ilha dos lotófagos no norte da África, onde a ingestão da flor de lótus provo-
cava amnésia, uma suspensão do tempo.
71
CORREA, S. M. de S. • Uma mirada insular ao continente africano: a África no PPGH/UFSC
9
Sobre o intercâmbio luso-afro-brasileiro na revista Sul, ver o artigo Conexão Sul: contributo
africano para o modernismo sul-brasileiro no presente e-book.
10
O livro “Negro em terra de Branco” é um primeiro exemplo do esforço de alguns pesquisado-
res em abordar algumas questões que até então eram pouco tratadas pela historiografia regio-
nal. PEDRO, Joana M. et al. Negro em terra de Branco. Escravidão e Preconceito em Santa
Catarina, Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988.
72
Nossa África: ensino e pesquisa
11
DELGADO, Andrea F.; MAMIGONIAN, Beatriz G. Santa Afro Catarina: acervo digital e
Educação Patrimonial. Esboços – Revista do Programa de Pós-Graduação em História da UFSC;
v. 21, n. 31, 2014, p. 86-108.
12
Para ficar em dois exemplos: CORREA, Sílvio M. de S. A imagem do negro no relato de
viagem de Alvise Cadamosto. POLITEIA: Hist. e Soc., Vitória da Conquista, v. 2, n. 1, p. 99-
129, 2002; CORREA, Sílvio M. de S. A antropografia na África equatorial: etno-história e
realidade do(s) discurso(s) sobre o real. Revista Afro-Ásia, 37, p. 9-41, 2008.
73
CORREA, S. M. de S. • Uma mirada insular ao continente africano: a África no PPGH/UFSC
13
CORREA, Sílvio M. de S. Potabilizar a água do Atlântico. Do desafio de uma comunidade
alemã entre o mar e o deserto do Namib. In: CORREA, Sílvio M. de S.; NODARI, Eunice S.
(Orgs.). Migrações e Natureza. São Leopoldo: Oikos, 2013, p.119-144.; CORREA, Sílvio M. de
S. Imigração e privatização dos recursos naturais na África durante o colonialismo alemão
(1884-1914). In: NODARI, Eunice S.; KLUG, J. (Orgs.). História Ambiental e Migrações. São
Leopoldo: Oikos, 2012, p. 15-34.
14
CORREA, Silvio M. de S. (Org.). Bioses Africanas no Brasil: notas de história ambiental,
Coleção África-Brasil, v. 19. Itajaí: Casa Aberta Editora, 2012.
15
Para ficar em dois exemplos: MÜTZENBERG, Bruno. O emergente preservacionismo transimpe-
rial durante o colonialismo na África: a Conferência Internacional para a Proteção da Vida Selva-
gem (Londres, 1900). Dissertação (Mestrado em História), PPGH/UFSC, Florianópolis, 2015;
PAULA, Simoni M. O colonialismo espelhado nas águas do Cunene (1884-1975). Tese (Doutorado
em História), PPGH/UFSC, Florianópolis, 2016.
16
SCHVEITZER, Ana Carolina. Imagens e Império: mulheres africanas sob as lentes coloniais
alemãs. Dissertação (Mestrado em História), PPGH/UFSC, Florianópolis, 2016; CRUZ, Te-
reza Almeida. Um Estudo comparado das relações ambientais de mulheres da floresta do Vale do
Guaporé (Brasil) e do Mayombe (Angola) – 1980-2010. Tese (Doutorado em História), PPGH/
UFSC, Florianópolis, 2012.
74
Nossa África: ensino e pesquisa
17
https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/74785.
18
Ver por exemplo: DJALO, Mamadu. Relações Sul-Sul: a cooperação Brasil-Guiné-Bissau na edu-
cação superior no período de 1990-2011 Tese (Doutorado em Sociologia), Universidade Federal
de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em
Sociologia, Florianópolis, 2014; ATALIBA, Lucas S. África como fronteira do capitalismo global no
século XXI: uma análise da implicação sistêmica acerca da projeção da China na região. Disser-
tação (Mestrado em Relações Internacionais), Universidade Federal de Santa Catarina, Centro
Sócio Econômico, Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais, Florianópolis, 2015;
FERNANDES, Joel Aló. A consolidação da União Africana e o desenvolvimento sustentável: novos
horizontes da integração econômica para viabilizar o mercado comum da África. Tese (Douto-
rado em Direito), Universidade Federal de Santa Catarina, Programa de Pós-Graduação em
Direito, 2012.
75
CORREA, S. M. de S. • Uma mirada insular ao continente africano: a África no PPGH/UFSC
Um laboratório insular
Desde 2013, o Laboratório de Estudos em História da África (LEHAf)
tem realizado atividades de pesquisa e de extensão. Além do seu coordena-
dor, a equipe do LEHAf é composta por estudantes de graduação e de pós-
graduação. No último biênio (2015/16), integrantes do LEHAf foram auto-
res de duas dissertações e de uma tese junto ao PPGH. Em termos de publi-
cação sobre História da África, a equipe do LEHAf tem contribuído com
uma produção regular de artigos, capítulos de livros, teses e dissertações.21
Destaca-se, nessa produção, uma nova abordagem historiográfica que incor-
pora questões ambientais e de gênero para o estudo do colonialismo na África.
Cabe ressaltar que o PPGH da UFSC tem por área de concentração
História Cultural. Como professor credenciado junto ao PPGH, tenho
trabalhado com a História da África a partir de temas como migrações e
ambiente, desporto e lazer, visualidade e imaginário colonial.
Dentro da linha de pesquisa “Migrações, construções socioculturais e
meio ambiente”, alguns projetos financiados pelo CNPq propiciaram uma
abordagem em história ambiental sobre os recursos naturais no continente
africano durante o colonialismo alemão. Pesquisas em arquivos europeus e
africanos foram realizadas, e resultados parciais, apresentados em eventos
internacionais e publicados sob a forma de artigos em revistas ou de capítu-
los de livros.22
19
Para mais informações: http://kadila.com.br.
20
http://lehaf.paginas.ufsc.br.
21
http://lehaf.paginas.ufsc.br/publicacoes-2/.
22
CORREA, Sílvio M. de S. Imigração e privatização dos recursos naturais na África durante o
colonialismo alemão (1884-1914). In: NODARI, Eunice S. (Org.). História Ambiental e Migra-
ções. São Leopoldo: Oikos, 2012, p. 15-34; CORREA, Sílvio M. de S. Cultura e Natureza na
“África Alemã”. Tempos históricos. Dossiê de História Ambiental. Revista do Programa de Pós-
Graduação em História da Unioeste, v. 15, 2011; CORREA, Sílvio M. de S. Caça e preservação
da vida selvagem na África Colonial. Esboços. Revista do Programa de Pós-Graduação em História
da UFSC. Dossiê História Ambiental, Florianópolis, v. 18, n. 25, ago. 2011; CORREA, Sílvio
M. de S. Ou temos uma colônia ou um jardim zoológico. Sociedade e Ambiente na África Alemã.
I Encontro Internacional de Estudos Africanos – UFF – Rio de Janeiro (BR), 16 a 19 de maio
de 2011; CORREA, Sílvio M. de S. Caça esportiva e preservacionismo na África colonial. XI Con-
76
Nossa África: ensino e pesquisa
gresso Luso Afro Brasileiro de Ciências Sociais. UFBA – SALVADOR (BR), 07 a 10 de agosto
de 2011; CORREA, Sílvio M. de S. Immigration, Colonisation and its Environmental impacts in
“(sub)tropical Germanies”. Environmental Change and Migration in Historical
Perspective, Rachel Carson Center, Munich, August 4-6, 2011.
23
SCHVEITZER, A. C. A liga feminina e a imigração de mulheres na colonização alemã da
África (1884-1914). In: RAMOS, Eloísa H. Capovilla et al. A história da imigração e sua(s) escrita(s).
São Leopoldo: Oikos, 2012, p. 314-321.
24
PAULA, Simoni Mendes de; SCHVEITZER, Ana Carolina. Trabalho feminino nas colônias
alemãs da África. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 2, jul./dez., 2015, p. 75-91.
25
SOUZA, Kennya. As guerras anglo-bôeres através das caricaturas da revista ilustrada Punch (1881-
1902). TCC (Graduação em História), Universidade Federal de Santa Catarina. Centro de
Filosofia e Ciências Humanas, 2015; CORREA, Sílvio M. de S. Nem Brancos, nem Negros. A
representação dos “Amarelos” nas caricaturas do jornal Echos d’Afrique noire. Contra/Rela-
tos Desde el Sur. 2015, v. 12, p. 47-59.
77
CORREA, S. M. de S. • Uma mirada insular ao continente africano: a África no PPGH/UFSC
26
Ver por exemplo: SANTOS, Eric A. Memórias de Hóquei em Patins nas narrativas de Francisco
Velasco: Colonização e desporto em Moçambique. TCC (Graduação em História), Universi-
dade Federal de Santa Catarina. Centro de Filosofia e Ciências Humanas, 2015; CORREA,
Sílvio Marcus de Souza . As corridas de cavalos na colônia alemã do sudoeste africano (1884-
1914). Cadernos de Estudos Africanos, v. 1, p. 2-18, 2013; CORREA, Sílvio M. de S. Sociabilidades
numa pequena cidade portuária do sudoeste africano (1884-1914). Revista Urbana (Dossiê Ci-
dades e Sociabilidades), Unicamp, v. 4, n. 5, 2012; CORREA, Sílvio M. de S. Colonialismo,
Germanismo e Sociedade de Ginástica no Sudoeste Africano. Recorde: Revista de História do
Esporte, v. 5, n. 2, jul./dez., 2012, p. 1-20.
27
CORREA, Sílvio M. de S. Uma chave para a África. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, v.
22, p. 1.778-1.780; CORREA, Sílvio M. de S. Le médicament qui devait sauver l’Afrique (Book
Review), Bulletin canadien d’histoire de la médecine, p. 428-431; CORREA, Sílvio M. de
S. O “combate” às doenças tropicais na imprensa colonial alemã. História, Ciência & Saúde.
Manguinhos, Rio de Janeiro: FIOCRUZ, v. 19, fev., 2013.
28
CORREA, Sílvio M. de S. A “Partilha do Gorila” entre ciência e literatura de alhures e sabe-
res locais. História. Questões e Debates, v. 62, 2015, p. 107-132; CORREA, Sílvio M. de S. As
partes do gorila e a “partilha da África”. In: África: histórias conectadas. Niterói: Editora da
UFF, 2015, p. 133-146.
78
Nossa África: ensino e pesquisa
Considerações finais
A “África” que se faz no PPGH da UFSC tem uma dimensão insular
quando comparada às outras “Áfricas” produzidas em outros Programas
de Pós-Graduação nas universidades do sudeste e do nordeste. Acontece
que uma ilha pode ser bem mais que uma ilha.29 Assim, a “nossa África” é
também resultado de conexões nacionais e internacionais como a rede
multidisciplinar da qual se referiu o professor Rivair Macedo.30
Se uma historiografia regional e lusófona preferiu vincular a história
insular de Santa Catarina mais com o arquipélago dos Açores e menos com
as ilhas de Cabo Verde, Bioko, Corisco, São Tomé e Príncipe, uma nova his-
toriografia pode repensar essas ilhas de história. Quanto ao continente afri-
cano, a mirada insular pode descobrir temporalidades e histórias ocultadas
por uma história afro-brasileira acometida de um presentismo negro.31
A mirada insular pode lograr ainda uma leitura do mundo atlântico
como um palimpsesto. Ao “Atlântico negro” que integra as diversas traje-
tórias da diáspora africana, sobrepõe-se um espaço intercontinental marca-
do também por outras trajetórias e outras diásporas.
Atento à historiografia de outros países, destaco a imigração de famí-
lias bôeres que deixaram a África do Sul em busca de novas terras na Ar-
gentina, no México ou nos EUA.32 O mesmo vale para italianos com expe-
riência colonial na Etiópia e que procuraram uma nova vida em Buenos
Aires nos anos 30. A capital portenha também acolheu “negros” do Cabo
Verde que – com passaporte português – procuravam novas oportunidades.
Da “diáspora branca” vale ainda lembrar dos alemães deportados da Na-
29
GINZBURG, Carlo. Nenhuma ilha é uma ilha. Quatro visões da literatura inglesa. São Paulo:
Cia. das Letras, 2004. O historiador italiano demonstrou a complexidade e a dimensão não-
insular da literatura inglesa quinhentista e o quanto uma ilha fictícia como a da Utopia de
Thomas Morus pode revelar muito sobre uma realidade insular, isto é, da Grã-Bretanha e
mais: da Europa continental do século XVI.
30
Sobre essa rede multidisciplinar, ver a contribuição do professor Rivair Macedo no presente
livro.
31
CORREA, Sílvio Marcus de Souza. Presentismo Negro: um tópico subjacente na história
afro-brasileira, Anos 90. Porto Alegre, v. 14, n. 27, jul. 2008, p. 257-285.
32
CHINGOTTO, Mario R. “La migración bóer en la Patagonia”, Boletín del Centro Naval, n. 690,
1972, p. 11-22; DU TOIT, Brian. Colonia Boer: An Afrikaner Settlement in Chubut, Argentina.
New York: Edwin Mellen Press, 1995; PINEAU, Marisa. “Los sudafricanos miraron al Atlánti-
co. La migración Boer a Argentina”, II RIHA, 1996, p. 273-277. Sobre a diáspora africânder
para México e EUA, ver ainda DU TOIT, Brian: “Boer Settlers in the Southwest”. Southwes-
tern Studies, n. 101, Series El Paso, Texas: Texas Western Press, 1995.
79
CORREA, S. M. de S. • Uma mirada insular ao continente africano: a África no PPGH/UFSC
33
CORREA, Sílvio M. de S. Diáspora Branca na África Austral. E-Hum. Revista Científica das
áreas de História, Letras, Educação e Serviço Social do Centro Universitário de Belo Horizon-
te, v. 8, n. 2, ago./dez., 2015, p. 77-88.
80
Nossa África: ensino e pesquisa
81
Os estudos africanos na Universidade
Federal do Rio Grande do Sul
José Rivair Macedo1
1
Professor titular do Departamento de História – UFRGS; docente permanente do PPG em
História – UFRGS; Coordenador do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros, Indígenas e Africanos,
NEAB-UFRGS; Coordenador da Rede Multidisciplinar de Estudos Africanos – ILEA-UFRGS;
Pesquisador nível 1D do CNPQ, com o projeto de pesquisa: “Portugueses e africanos no contexto
da abertura do Atlântico (2013-2017).
2
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Uma outra cidade: o mundo dos excluídos no final do século XIX.
Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional; IDEM. Visões do cárcere. Porto Alegre: Zouk, 2009.
82
Nossa África: ensino e pesquisa
3
Paulo Staud MOREIRA. Entre o deboche e a rapina: os cenários sociais da criminalidade popular
em Porto Alegre no século XIX, 1993; Eduardo Henrique de O. KERSTING. Negros e
modernidade urbana em Porto Alegre: a Colônia Africana (1890-1920), 1998; Hilton COSTA.
Horizontes raciais: a idéia de raça no pensamento social brasileiro, 2001; Silmei de Sant’Anna
PETIZ, Buscando a liberdade: as fugas de escravos da Província de São Pedro para o além-
fronteira – 1815-1851, 2001; Gabriel Santos BERUTE. Dos escravos que partem para os portos do
sul: características do tráfico negreiro do Rio Grande de São Pedro do Sul, c. 1790 – c.1825,
2006; Ricardo DE LORENZO. “E Aqui Enloqueceo” – a alienação mental na Porto Alegre
escravista (c.1843-c.1872), 2007.
4
VISENTINI, Paulo G. F. A África moderna: um continente em mudança (1960-2010). Porto
Alegre: Leitura XXI, 2010; IDEM. As revoluções africanas: Angola, Moçambique e Etiópia. São
Paulo: Editora da UNESP, 2012; VISENTINI, Paulo G. F.; RIBEIRO, Luiz Dario Teixeira;
PEREIRA, Analúcia Danilevicz. Breve História da África. Porto Alegre: Leitura XXI, 2007.
83
MACEDO, J. R. • Os estudos africanos na Universidade Federal do Rio Grande do Sul
5
As formas de inserção dos estudantes africanos nas universidades brasileiras constituíram o
objeto de estudo da Dissertação de Mestrado em Sociologia do jovem pesquisador guineense
Frederico Mattos Alves Cabral, vice-coordenador da Rede Multidisciplinar de Estudos Africanos
do ILEA/UFRGS, defendida em 2015 sob orientação da professora Clarissa Eckert Baeta Neves,
com o título: “Os estudantes africanos nas Instituições de Ensino Superior brasileiras: o Programa
de Estudante Convênio de Graduação (PEC-PG)”. No momento, encontram-se regularmente
matriculados no PPG de História da UFRGS três pós-graduandos africanos: o angolano Joaquim
Miguel Bondo e os moçambicanos Jorge Fernando Jairoce e Lurdes Cossa.
84
Nossa África: ensino e pesquisa
85
MACEDO, J. R. • Os estudos africanos na Universidade Federal do Rio Grande do Sul
86
Nossa África: ensino e pesquisa
87
MACEDO, J. R. • Os estudos africanos na Universidade Federal do Rio Grande do Sul
88
Nossa África: ensino e pesquisa
89
MACEDO, J. R. • Os estudos africanos na Universidade Federal do Rio Grande do Sul
90
Nossa África: ensino e pesquisa
91
MACEDO, J. R. • Os estudos africanos na Universidade Federal do Rio Grande do Sul
***
92
Nossa África: ensino e pesquisa
1
Departamento de História da Universidade Estadual do Centro-Oeste, campus Irati. E-mail:
[email protected].
2
BRASIL. Lei n. 10.639 de 9 de janeiro de 2003. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 10 jan.
2003.
3
Nota do GT de História da África da Anpuh Nacional e da Associação Brasileira de Estudos
Africanos (ABE-África) sobre a proposta da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para o
Ensino de História. 26 de Fevereiro de 2016. Disponível em: <http://site.anpuh.org/index.php/
93
WAGNER, A. P. • Como ensinar o que não se conhece?
bncc-historia/item/3322-nota-do-gt-de-historia-da-africa-da-anpuh-nacional-e-da-associacao-
brasileira-de-estudos-africanos-abe-africa-sobre-a-proposta-da-base-nacional-comum-curricular-
bncc-para-o-ensino-de-historia>. Acesso em: 8 maio 2016.
4
Nota do GT de História da África da Anpuh Nacional e da Associação Brasileira de Estudos
Africanos (ABE-África) sobre a proposta da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para o
Ensino de História. 26 de Fevereiro de 2016. Disponível em: <http://site.anpuh.org/index.php/
bncc-historia/item/3322-nota-do-gt-de-historia-da-africa-da-anpuh-nacional-e-da-associacao-
brasileira-de-estudos-africanos-abe-africa-sobre-a-proposta-da-base-nacional-comum-curricular-
bncc-para-o-ensino-de-historia>. Acesso em: 8 maio 2016, p. 1.
5
Nota do GT de História da África da Anpuh Nacional e da Associação Brasileira de Estudos
Africanos (ABE-África) sobre a proposta da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para o
Ensino de História. 26 de Fevereiro de 2016. Disponível em: <http://site.anpuh.org/index.php/
bncc-historia/item/3322-nota-do-gt-de-historia-da-africa-da-anpuh-nacional-e-da-associacao-
brasileira-de-estudos-africanos-abe-africa-sobre-a-proposta-da-base-nacional-comum-curricular-
bncc-para-o-ensino-de-historia>. Acesso em: 8 maio 2016, p. 3.
94
Nossa África: ensino e pesquisa
6
Conforme Alves e Barbosa, observou-se que a “Lei 10.639 implicou em duas mudanças: na Esco-
la – que a História da África esteja presente nos currículos e que o seu conteúdo seja ministrado;
e, nas Universidades que possam ser ofertadas além de disciplinas sobre o conteúdo, pesquisas e
cursos de extensão e formação continuada abordando as questões étnico-raciais”. ALVES, Mar-
cia Albuquerque; BARBOSA, Vilma de Lurdes. Universidade e a escola: diálogo necessário so-
bre a questão étnico-racial. In: Anais do XVI Encontro Estadual de História: Poder, Memória e Resistên-
cia: 50 anos do golpe de 1964, Campina Grande, 2014, v. 1, p. 774-775.
7
ALVES, Marcia Albuquerque; BARBOSA, Vilma de Lurdes. Universidade e a escola: diálogo
necessário sobre a questão étnico-racial. In: Anais do XVI Encontro Estadual de História: Poder,
Memória e Resistência: 50 anos do golpe de 1964, Campina Grande, 2014, v. 1, p. 774.
95
WAGNER, A. P. • Como ensinar o que não se conhece?
8
Sobre alguns resultados desta investigação, ver: CARDOSO, Paulino de Jesus Francisco; PA-
CHECO, Ana Julia; CARVALHO, Carol Lima de. História da África no Ensino Superior de
Santa Catarina: uma aproximação. Revista Tempo, Espaço, Linguagem. V. 5, n. 3, set./-dez.,
2014, p. 139.
9
CARDOSO, Paulino de Jesus Francisco; PACHECO, Ana Julia; CARVALHO, Carol Lima
de. História da África no Ensino Superior de Santa Catarina: uma aproximação. Revista Tem-
po, Espaço, Linguagem. V. 5, n. 3, set./dez., 2014, p. 139.
10
BAZIEWCZ, Danylo. O ensino da História da África nas universidades estaduais paranaenses. 2015.
Iniciação Científica (Relatório Final). Universidade Estadual do Centro-Oeste.
96
Nossa África: ensino e pesquisa
A realidade paranaense e as
condições favoráveis da UNICENTRO
Ao todo, existem sete universidades estaduais no Paraná, são elas:
Universidade Estadual de Maringá (UEM), Universidade Estadual de Lon-
drina (UEL) e Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), criadas no
final dos anos 1960, a Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICEN-
TRO) e a Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), funda-
das nos anos 1990, e a Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR) e
Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP), ambas com surgimento
na última década. A maior parte destas instituições resultaram da incorpo-
ração de faculdades estaduais já existentes e que funcionavam em separa-
do. De forma abrangente, elas são multicampi e uma delas é multirregional,
como o caso da UNESPAR.
Como referido acima, interessou-nos sobretudo identificar os cursos
de graduação em História que tinham a habilitação na área de licenciatura,
a qual, em linhas gerais, prepara o acadêmico para atuar como professor na
Educação Básica (Ensino Fundamental ou Médio). A primeira constata-
ção realizada após o levantamento inicial, através da consulta dos sites das
sete universidades, é que todas elas possuem o curso de Licenciatura em
História, em pelo menos um dos seus campi.
Na busca por sistematizar os dados, construímos uma tipologia em
torno de três situações gerais. Em um primeiro grupo, agregamos os cursos
que têm a disciplina de História da África em sua grade curricular. No se-
gundo grupo, colocamos os cursos que não têm História da África, mas em
que consta uma outra disciplina com aproximações temáticas, como por
exemplo, “História e cultura afro-brasileira”.11 E, por fim, no terceiro gru-
po, os cursos que não têm a disciplina História da África, nem algo similar.
Considero que a situação geral das universidades estaduais do Para-
ná é relativamente positiva. Em apenas dois casos, UNIOESTE, campus de
Marechal Cândido Rondom, e UNESPAR, campus de Paranaguá, embora
exista o curso de Licenciatura, não consta na grade curricular nenhuma
disciplina de História da África, ou algo correlato como “História e Cultu-
11
Embora saibamos que existem diferenças profundas entre uma disciplina intitulada “História
da África” e outra denominada “História e cultura afro-brasileira”, não podemos deixar de
identificar um certo esforço das universidades em contemplarem em seus currículos acadêmi-
cos, nem que minimamente, os debates em torno das questões referentes às sociedades africa-
nas. Por esta razão, fizemos a distinção deste grupo em particular.
97
WAGNER, A. P. • Como ensinar o que não se conhece?
12
Para esta reflexão, entende-se por disciplina optativa aquela em que o acadêmico tem a livre
escolha para se matricular, ao contrário de uma disciplina obrigatória. O outro ponto impor-
tante a ser considerado é que para esse tipo de disciplina se efetivar, depende da oferta desta
pelos professores do departamento ao qual o aluno está vinculado.
13
Disciplina História da África, 68 C/H.
14
Disciplina História da África e da Cultura Afro-Brasileira, 102 C/H.
15
Disciplina Tópicos Temáticos em História Africana e Afro-Brasileira, 68 C/H.
16
Disciplina História da África, 136 C/H.
17
Disciplina História da África e Disciplina História e Cultura Afro-brasileira. No site, não constam
informações sobre a carga horária.
18
Disciplina História da África, 60 C/H.
19
Disciplina Tópicos Especiais em História da África I e Tópicos Especiais em História da África II, 68
C/H.
20
Disciplina História da África, 72 C/H.
98
Nossa África: ensino e pesquisa
21
UNESPAR. Atualização do projeto de implementação do Curso de Licenciatura Plena em História, do
Curso de História da Fecilcam. Campo Mourão, 2010.
22
BAZIEWCZ, Danylo. O ensino da História da África nas universidades estaduais paranaenses. 2015.
Iniciação Científica (Relatório Final). Universidade Estadual do Centro-Oeste.
23
Como já referido anteriormente, a longa greve vivida por todas as universidades estaduais do
Paraná no primeiro trimestre de 2015 trouxe algumas lacunas para o desenvolvimento da
pesquisa do acadêmico Danylo Baziewcz. Após o levantamento de informações a partir de
sites, foram solicitados esclarecimentos adicionais aos Chefes dos Departamentos dos Cursos
de História, por meio de mensagens eletrônicas. Requeria-se, sobretudo, os planos de ensino e
os nomes dos professores responsáveis pela disciplina. Todavia, foram diminutos os retornos
obtidos.
24
Plataforma Lattes é uma plataforma virtual criada e mantida pelo CNPq, pela qual integra as
bases de dados de currículos, grupos de pesquisa e instituições, em um único sistema de infor-
mações, das áreas de Ciência e Tecnologia, atuando no Brasil. Foi criada para facilitar as
ações de planejamento, gestão e operacionalização do fomento à pesquisa, tanto do CNPq
quanto de outras agências de fomento à pesquisa, tanto federais quanto estaduais, e de institui-
ções de ensino e pesquisa.
99
WAGNER, A. P. • Como ensinar o que não se conhece?
25
Nota do GT de História da África da Anpuh Nacional e da Associação Brasileira de Estudos
Africanos (ABE-África) sobre a proposta da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para
o Ensino de História. 26 de Fevereiro de 2016. Disponível em: <http://site.anpuh.org/
index.php/bncc-historia/item/3322-nota-do-gt-de-historia-da-africa-da-anpuh-nacional-e-da-
associacao-brasileira-de-estudos-africanos-abe-africa-sobre-a-proposta-da-base-nacional-co-
mum-curricular-bncc-para-o-ensino-de-historia>. Acesso em: 8 maio 2016, p. 1.
26
Para a historiografia contemporânea do continente africano, ver: KI-ZERBO, Joseph (Coord.).
História geral da África I: Metodologia e pré-história da África. 3. ed. São Paulo: Cortez/Brasí-
lia: UNESCO, 2011; MENDONÇA, Maria Gusmão de. Histórias da África. São Paulo: LCTE
Editora, 2008; SERRANO, Carlos; WALDMAN, Maurício. Memória D´África: a temática afri-
cana em sala de aula. São Paulo: Cortez, 2007.
27
UNICENTRO. Projeto Pedagógico do Curso de História da Unicentro – campus de Irati, Irati-PR,
2010.
100
Nossa África: ensino e pesquisa
28
COUTO, Mia. Terra Sonâmbula. Lisboa: Editorial Caminho, 1992.
29
NETO, Agostinho. Poemas de Angola. Rio de Janeiro: Codecri, 1976.
30
Nesta disciplina, os acadêmicos tiveram a oportunidade de tomar contato com a música e a
trajetória de Fela Kuti, com o filme “O Herói” (coprodução angolana, francesa e portuguesa),
com a poesia de Agostinho Neto, com a pluralidade de máscaras referentes às culturas africa-
nas e com uma publicação fartamente ilustrada com joias da África Oriental (Joyas del África
Oriental. Editora: Kumbi Saleh, art tribal, 2006).
101
WAGNER, A. P. • Como ensinar o que não se conhece?
31
Nota do GT de História da África da Anpuh Nacional e da Associação Brasileira de Estudos
Africanos (ABE-África) sobre a proposta da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para
o Ensino de História. 26 de Fevereiro de 2016. Disponível em: <http://site.anpuh.org/
index.php/bncc-historia/item/3322-nota-do-gt-de-historia-da-africa-da-anpuh-nacional-e-da-
associacao-brasileira-de-estudos-africanos-abe-africa-sobre-a-proposta-da-base-nacional-co-
mum-curricular-bncc-para-o-ensino-de-historia>. Acesso em: 8 maio 2016, p. 4.
32
ALVES, Marcia Albuquerque; BARBOSA, Vilma de Lurdes. Universidade e a escola: diálogo
necessário sobre a questão étnico-racial. In: Anais do XVI Encontro Estadual de História: Poder,
Memória e Resistência: 50 anos do golpe de 1964, Campina Grande, 2014, v. 1, p. 773-774.
102
Nossa África: ensino e pesquisa
33
MATTOS, Hebe Maria. O ensino de história e a luta contra a discriminação racial no Brasil.
In: ABREU, Martha; SOIHET, Rachel (Orgs.). Ensino de História: conceitos, temáticas e meto-
dologias. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003, p. 134-135.
103
Nossa África
Marina de Mello e Souza1
1
Departamento de História – FFLCH – USP. E-mail: [email protected].
104
Nossa África: ensino e pesquisa
associado ao escravo e ao africano, pois este foi visto pelo pensamento oci-
dental, desde a antiguidade até muito recentemente, como um ser inferior
em uma escala linear de evolução, que não teria produzido sociedades civi-
lizadas, pensamento abstrato, criações artísticas sofisticadas. Entretanto, o
eurocentrismo cuidadosamente construído durante séculos pelos pensado-
res do mundo ocidental está sendo cada vez mais questionado, à medida
que são veiculadas outras formas de pensamento e de expressão, outras
histórias que não a construída a partir da Europa.
Com o amparo dessas renovações epistemológicas e o estímulo dado
pelas mudanças ocorridas na sociedade brasileira principalmente a partir
da década de 1980, quando teve fim a ditadura militar e a censura, pelo
menos em alguns setores da sociedade mudou a postura relativa ao conti-
nente africano, ao seu papel no nosso passado, sem falar no que se refere à
sua importância para a nossa economia e política atuais. Hoje são cada vez
mais reconhecidas as Áfricas que trazemos em nós, assim como aumenta
nosso interesse pelas Áfricas que não nos dizem respeito diretamente, o que
é atestado pelo imenso crescimento Brasil afora de estudos sobre o conti-
nente que abordam os mais diversos temas, espaços e tempos.
É significativo que apenas com a promulgação da lei que tornou obri-
gatório o ensino de História da África, dos afrodescendentes, e num aden-
do posterior, dos indígenas brasileiros, esses temas tenham entrado no rol
das preocupações acadêmicas, pouco a pouco e com bastante dificuldade
abrindo espaços em um sistema educacional voltado para a reprodução dos
valores dominantes. Até recentemente não se buscava o conhecimento acerca
das culturas e histórias de grande parte de nossos ancestrais africanos, por-
que havia a intenção de eliminar esse aspecto da nossa formação, primeiro
por meio das teorias evolucionistas de branqueamento, depois pela ideia de
que no Brasil vigorava uma democracia racial, portanto não fazia sentido
voltar a atenção para temas relacionados a características específicas das
comunidades negras, o que criaria uma segregação considerada inexisten-
te. Mas como não havia como ignorar a presença de matrizes africanas em
uma grande quantidade de manifestações culturais brasileiras, algumas ve-
zes elas foram abordadas por antropólogos que pesquisavam manifestações
culturais geralmente entendidas como folclóricas, ou seja, reminiscências
de um passado que teimavam em persistir entre as camadas consideradas
menos educadas (considerando-se educação o ensino formal) e que não
possuíam riquezas econômicas. A única área de estudos que sempre consi-
derou a presença africana entre nós foi a das chamadas religiões afro-brasi-
105
SOUZA, M. de M. e • Nossa África
2
Exemplo ainda anterior de interesse pelo continente africano é descrito por SILVA, Alberto da
Costa e, Notícias da África, em Revista de História da Biblioteca Nacional, 19/9/2007,
www.revistadehistoria.com.br/secao/capa/noticias-da-africa, consulta feita em: 8/5/2016, no
qual dá notícia de um artigo de José Bonifácio de Andrada e Silva, que, no início do século
XIX, entendeu o percurso do rio Níger a partir de conversas com africanos, antes de viajantes
europeus terem-no trazido a público.
3
Sobre os estudos africanistas no início dos anos 1960 e a interrupção neles provocada pelo
governo militar, ver a tese de doutorado de PEREIRA, Márcia Guerra, História da África, uma
disciplina em construção, 2012, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Programa de
Pós-Graduação em Educação: história, política e sociedade.
106
Nossa África: ensino e pesquisa
4
Vale mencionar a trilogia de Antonio OLINTO, A Casa da Água, 1969; O rei de Keto, 1980 e
Trono de vidro, 1987.
107
SOUZA, M. de M. e • Nossa África
5
ANDRADE, Mario de. Os Congos, em Danças dramáticas do Brasil, tomo 2, Belo Horizonte:
Itatiaia; Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1982, p. 9-105.
108
Nossa África: ensino e pesquisa
6
O sentido que então dei ao termo africanidade foi de algo que, elaborado em solo americano,
remetia a matrizes africanas; seriam características africanas de algo que acontece fora da África,
diferente de algo realmente africano. Ver SOUZA, Marina de Mello e, Reis negros no Brasil escravis-
ta. História da festa de coroação de rei congo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, p. 347.
7
Ver a esse respeito a síntese sobre o assunto feita por SLENES, Robert W., “Eu venho de muito
longe, eu venho cavando”: jongueiros cumba na senzala centro africana, em LARA, Sílvia;
PACHECO, Gustavo (Orgs.). Memória do jongo. As gravações históricas de Stanley J. Stein.
Vassouras, 1949. Rio de Janeiro: Folha Seca, 2007, p. 109-156.
109
SOUZA, M. de M. e • Nossa África
8
Sobre o tema: SOUZA, Marina de Mello e, Batalhas rituais centro-africanas e o catolicismo
negro no Brasil, em Experiências e interpretações do sagrado, em HUFF JUNIOR, Arnaldo Érico;
RODRIGUES, Elisa (Orgs.). São Paulo: Paulinas, p. 207-223, 2012 e Batalhas e batalhas...,
Revista de História da Biblioteca Nacional, http://www.revistadehistoria.com.br/secao/dossie-
imigracao-italiana/batalhas-e-batalhas, consulta feita em 8/5/2016; e FROMONT, Cécile, The
Art of Conversion. Christian Visual Culture in the Kingdom of Kongo. Chapell Hill: University of
North Carolina Press, 2014.
110
Nossa África: ensino e pesquisa
9
REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil. A história do levante dos malês em 1835. Edição
revista e ampliada. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
111
SOUZA, M. de M. e • Nossa África
10
Ver entre outros SCHWARTZ, Stuart, Repensando Palmares. Resistência escrava na colônia,
em Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru: Sagrado Coração, 2001; THORNTON, John K., Angola
e as origens de Palmares, em GOMES, Flávio (Org.). Mocambos de Palmares, histórias e fontes
(séculos XVI-XIX). Rio de Janeiro: 7Letras, FAPERJ, 2010; ALENCASTRO, Luiz Felipe de,
História geral das guerras sul-atlânticas: o episódio de Palmares, em GOMES, Flávio (Org.).
Mocambos de Palmares, histórias e fontes (séculos XVI-XIX). Rio de Janeiro: 7Letras, FAPERJ, 2010;
SOUZA, Marina de Mello e, Kilombo em Angola: jagas, ambundos, portugueses e as circulações
atlânticas, em PAIVA, Eduardo França; SANTOS, Vanicléia Silva (Orgs.). África e o Brasil no
mundo moderno. São Paulo: Annablume, 2012.
11
Em agosto de 1951, a revista O Cruzeiro publicou uma série de fotorreportagens de Pierre
Verger, com texto de Gilberto Freyre, intitulada “Acontece que são baianos”, na qual eram
apresentados aspectos da vida de comunidades, conhecidas como de brasileiros, na Nigéria e
no Benim.
112
Nossa África: ensino e pesquisa
12
Ver entre outros, apenas as pesquisas feitas por brasileiros: CUNHA, Manuela Carneiro da,
Negros estrangeiros. Os escravos libertos e sua volta à África. 2. ed., revisada e ampliada. São
Paulo: Companhia das Letras, 2012; CUNHA, Mariano Carneiro da, Da senzala ao sobrado, a
arquitetura brasileira na Nigéria e na República Popular do Benim. São Paulo: Nobel-EDUSP,
1985; AMÓS, Alcione Meira, Os que voltaram: a história dos retornados afro-brasileiros na
África Ocidental no século XIX. Belo Horizonte: Tradição Planalto, 2007; GURÁN, Milton,
“Agudás”: os brasileiros do Benim. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000; SILVA, Angela Fileno
da, “Amanhã é dia de santos”: circularidades atlânticas e a comunidade brasileira na Costa da
Mina. São Paulo: Alameda – FAPESP, 2014; SILVA, Angela Fileno da. Vozes de Lagos: brasi-
leiros em tempos do império britânico. Tese (Doutorado em História Social), USP, 2016; SOU-
ZA, Mônica Lima e. Entre margens: o retorno à África de libertos no Brasil, 1830-1870. Tese
(Doutorado em História Social), UFF, 2008.
113
Parte II
116
Nossa África: ensino e pesquisa
Notas introdutórias
Esse ensaio pretende apresentar os contributos e as possibilidades dos
arquivos do Ministério das Relações Exteriores do Brasil (MRE) e do Mi-
nistério dos Negócios Estrangeiros de Portugal (MNE) para a pesquisa his-
toriográfica em História da África. Como é impossível discutir todo o acer-
vo documental, darei maior enfoque naquilo que foi de interesse no meu
trabalho de doutoramento. Mesmo assim, vou apresentar uma visão geral
dos fundos e das coleções existentes, e das condições de acesso e de traba-
lho nesses arquivos.2
Minha pesquisa de doutorado analisa a política africana do Brasil
para a guerra colonial em Angola e Moçambique entre 1964 e 1975, levan-
tando os diagnósticos e os prognósticos da ditadura civil-militar brasileira
para esse conflito. Meu interesse, portanto, tem sido o levantamento dos
apontamentos, das caracterizações e das deliberações dos governos brasi-
leiros para uma guerra que envolveu o governo de Portugal durante as dé-
cadas de 1960 e de 1970.
Do lado de cá do Atlântico, o golpe civil-militar de 1964 levou ao
poder uma coalisão conservadora, antirreformista e anticomunista que per-
1
Doutorando em História pela Universidade Federal de Santa Catarina, bolsista da CAPES,
doutorando sanduíche pelo Instituto de História Contemporânea, Universidade Nova de Lis-
boa, sem bolsa. Participa do Laboratório de Estudos em História da África (LEHAF). E-mail:
[email protected].
2
Também realizei pesquisas no Arquivo Nacional da Torre do Tombo e na Casa Comum da
Fundação Mário Soares, porém, nesse ensaio não vou discorrer sobre esses dois arquivos.
117
ALVES, T. J. J. • A História da África a partir dos arquivos do MRE do Brasil e MNE de Portugal
3
Ver: DZIDZIENYO, Anani. Triangular Mirrors and Moving Colonialisms. In: Etnográfica,
v. VI (1), 2002, p. 127-140.
118
Nossa África: ensino e pesquisa
119
ALVES, T. J. J. • A História da África a partir dos arquivos do MRE do Brasil e MNE de Portugal
4
Naquela altura essa era a equipe que cuidava do funcionamento do Arquivo: Elias dos Santos
Silva Filho, César Alfredo Sebata, Clóvis Aguiar, Rodolfo Castro, Felipe Reis, Ana Paula e
Guilherme Cassimiro.
5
PENNA FILHO, Pio. LESSA; Antônio Carlos Moraes. O Itamaraty e a África: as origens da
política africana do Brasil. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 39, janeiro-junho de 2007, p.
58-59.
6
FERREIRA, Walace. Revisitando a África na Política Externa Brasileira: distanciamentos e
aproximações da “independência” à “década de 1980”. Universitas Relaçõoes Internacionais, Bra-
sília, v. 11, n. 1, jan./jun., 2013, p. 58-59.
7
Bezerra de Menezes, Álvaro Lins, Oswaldo Aranha, Affonso Arinos, San Tiago Dantas, Gil-
berto Amado, José Honório Rodrigues, Adolpho Justo Bezerra de Menezes, Tristão de Athay-
de e Eduardo Portella, entre outros, passaram a defender a retomada da comunicação com o
120
Nossa África: ensino e pesquisa
continente africano. Esses personagens não chegaram a criar um bloco, mas suas opiniões
foram escutadas pela opinião pública e pelo poder estatal. Em 1957, na Divisão Política do
Itamaraty (DPo), Sérgio Corrêa do Lago elaborou um memorando que deu ênfase na aproxi-
mação do Brasil com a África e com a Ásia. O memorando sugeriu dois encaminhamentos – a
realização de uma missão para a África e a Ásia, por seguinte, a elaboração de um relatório que
pudesse ampliar o conhecimento do Brasil sobre essas regiões. A visitação e a coleta de dados
e informações, na ótica de Corrêa do Lago, ampliariam as capacidades de elaboração e execu-
ção de uma política para a África e para a Ásia.
8
QUADROS, Jânio. Nova Política Externa do Brasil. Revista Brasileira de Política Internacional,
ano IV, n. 16. Rio de Janeiro, 1961, p. 7-8. Disponível em: <http://brasilrepublicano.com.br/
fontes/31.pdf>.
121
ALVES, T. J. J. • A História da África a partir dos arquivos do MRE do Brasil e MNE de Portugal
9
Decreto n. 50.245, de 28 de janeiro de 1961, estabeleceu o Consulado Geral do Brasil em
Luanda, substituindo o Vice-Consulado Honorário do Brasil. O Decreto n. 50.247, de 28 de
Janeiro de 1961, criou o Consulado Geral do Brasil em Lourenço Marques, substituindo o
Consulado Honorário. O ministro das Relações Exteriores era Horácio Lafer.
Por meio do Decreto n. 50.848, de 24 de Junho de 1961, o Brasil também estabeleceu o Consu-
lado Honorário de Nova Lisboa, província de Angola. Em 24 de Junho de 1961, por meio do
Decreto n. 50.846, o governo brasileiro ainda criou o Consulado Honorário em Quelimane,
província de Moçambique. Esses, sim, foram criados durante o governo de Jânio Quadros.
Vale salientar que o Consulado Honorário do Brasil em Lourenço Marques fora criado durante
o governo do Presidente Getúlio Vargas, pelo Decreto n. 34.209, de 13 de outubro de 1953.
Ver: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1960-1969/decreto-50245-28-janeiro-1961-
389761-publicacaooriginal-1-pe.html>. <http://legis.senado.gov.br/legislacao/
ListaPublicacoes.action?id=180727&tipoDocumento=DEC&tipoTexto=PUB>.
122
Nossa África: ensino e pesquisa
10
AEO/11/920(42)(88) 431.(a)(88) Secretaria de Estado das Relações Exteriores, Memoran-
dum para o Secretário Geral. Secreto, 13 de março de 1969.
11
ANTUNES, José Freire. O fator africano: 1890-1990. Lisboa: Bertrand Editora, 1990, p. 52-55.
12
Em Angola: Movimento pela Libertação de Angola (MPLA), Frente Nacional de Libertação
de Angola (FNLA), União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA), Frente
de Unidade Angolana (FUA). Em Moçambique: Frente de Libertação de Moçambique (FRE-
LIMO).
123
ALVES, T. J. J. • A História da África a partir dos arquivos do MRE do Brasil e MNE de Portugal
13
DAF/600(88q) Secretaria de Estado das Relações Exteriores, telegrama do Consulado-Geral
em Lourenço Marques, Situação interna de Moçambique, Confidencial, 19 e 20 de novembro
de 1969.
124
Nossa África: ensino e pesquisa
O Arquivo Histórico-Diplomático do
Ministério dos Negócios Estrangeiros
Entre 1926 e 1975 o problema colonial transformou-se numa fatali-
dade para a sociedade portuguesa, a política externa subordinou-se à polí-
tica colonial.15 As colônias portuguesas se tornaram o centro dos debates
promovidos pela diplomacia portuguesa. A guerra colonial aprofundou essa
canalização, redobrando as preocupações lusitanas.
O risco de perder as colônias assombrava o imaginário das autorida-
des do Estado Novo Português. O Presidente do Conselho de Ministros,
Oliveira Salazar, ecoava a tese de que Portugal sem colônias se limitaria a
ser uma nação turística, à sombra da Espanha. Dentro do MNE, os “africa-
nistas” colocavam o problema em termos trágicos: a soberania econômica
e política de Portugal exigia o domínio colonial, do contrário, o país deixa-
ria de ser uma nação independente no contexto peninsular e europeu. O
grupo dos “africanistas” hegemonizou os postos-chave do MNE e as prin-
cipais embaixadas portuguesas mundo afora.16
Por esses motivos, há diversos fundos que podem interessar aos in-
vestigadores em História da África. Neles estão reunidos os documentos
produzidos pelas legações/embaixadas, consulados, representações e mis-
sões do Ministério dos Negócios Estrangeiros, documentos da Comissão
Interministerial do Café e do Gabinete dos Negócios Políticos do Fundo
do Ministério do Ultramar. Junto funciona também a Biblioteca do Minis-
tério dos Negócios Estrangeiros, reunindo títulos nas áreas de direito, polí-
14
Ver o artigo: PENNA FILHO, Pio. A pesquisa histórica no Itamaraty. Revista Brasileira de
Política Internacional, Brasília, v. 42, n. 2, p. 117-144, jul./dez. 1999. Disponível em: <http://
www.scielo.br/pdf/rbpi/v42n2/v42n2a07>.
No texto, Pio Penna Filho discute os prazos de acesso aos documentos impostos pela lei fede-
ral. Mesmo com a aprovação de uma nova Lei de Acesso à Informação (Lei n. 12.527, de 18
de novembro de 2011), muitos documentos do Itamaraty não puderam ser acessados.
15
MARTINS, Fernando. A questão colonial na política externa portuguesa: 1926-1975. In.
ALEXANRE, Valentim (Coord.). O Império Africano: séculos XIX e XX. Lisboa: Edições Co-
libri, 2008, p. 144-145.
16
OLIVEIRA, Pedro Aires. O corpo diplomático e o regime autoritário (1926-1974). Análise
Social, v. XLI (178), 2006, p.162.
125
ALVES, T. J. J. • A História da África a partir dos arquivos do MRE do Brasil e MNE de Portugal
17
No Arquivo Nacional da Torre do Tombo, os documentos que envolvem indivíduos vivos não
podem ser acessados, apenas os próprios citados podem acessá-los. O fundo Marcelo Caetano
precisa passar pelo crivo dos familiares do ex-presidente do Conselho de Ministros. Quando a
família autoriza, o investigador pode manuseá-lo.
18
No Itamaraty, é preciso solicitar aos funcionários o tema desejado ou apontar o código temá-
tico, não há um índice sobre os fundos e as coleções.
19
Equipe que estava em serviço durante a minha passagem pelo Arquivo: Dolores Fernandes,
Isabel Coelho, Alice Barreiro, Antonio Baião, Anabela Isidro, Manoela Bernardo, Manuel
Múrias, Margarida Lages.
20
Comemorações Centenárias – Nota oficiosa publicada nos jornais de 27 de Março – Discursos
de Salazar, v. III, p. 44-46, 1938.
126
Nossa África: ensino e pesquisa
21
MACHADO DOS SANTOS, Luiz Cláudio. As relações Brasil-Portugal: do tratado de amizade
e consulta ao processo de descolonização lusa na África (1953-1975). 2011, 333 f. Tese (Dou-
torado em História). Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2011, p. 11.
22
PIMENTEL, Irene Flunser. A história da PIDE. Lisboa: Círculo de Leitores, 2016, p.126.
23
Os seguintes documentos atestam isso, PIDE: PEA, n. 481-CI(2), Seção Central, Secreto. Po-
lícia Internacional e de Defesa do Estado, 20 de março de 1964.
127
ALVES, T. J. J. • A História da África a partir dos arquivos do MRE do Brasil e MNE de Portugal
24
Por exemplo, representantes do Secretariado Nacional da Informação de Portugal eram mui-
tas vezes escolhidos para realizarem esses périplos.
128
Nossa África: ensino e pesquisa
Considerações finais
Os arquivos são fundamentais para a pesquisa histórica. Dão ao his-
toriador múltiplas possibilidades para seu percurso e para a produção de
25
TEIXEIRA, Nuno Severiano. Breve ensaio sobre a política externa portuguesa. Relações
Internacionais, Lisboa, n. 28, p. 51-60, dez. 2010. Disponível em: <http://www.ipri.pt/publi-
cacoes/revista_ri/artigo_rri.php?ida=421>. Acesso em: 10 dez. 2016, p. 52.
129
ALVES, T. J. J. • A História da África a partir dos arquivos do MRE do Brasil e MNE de Portugal
130
Nossa África: ensino e pesquisa
1
Doutor em História pela PUC-RS (CAPES), faz parte do grupo de pesquisa: Nação, Naciona-
lismo e Identidade Nacional: Demarcações da História nas Matrizes Ibéricas, Americanas e
Africanas, coordenado pelo Prof. Dr. Marçal de Menezes Paredes. Investiga temas relaciona-
dos: a identidade cultural e nacional; raça; racismo; multiculturalismo e as relações luso-brasi-
leiras, luso-africanas e afro-brasileiras. Contato: [email protected]
2
Para a formatação deste artigo, nos instrumentalizamos de fontes inventariadas durante o está-
gio de doutoramento sanduíche realizado em Portugal e vinculado ao Centro de Estudos Inter-
disciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra, entre setembro 2014 e fevereiro de
2015. O material foi reunido a partir de um levantamento feito em “Boletim Geral das Colóni-
as”; “Álbum Comemorativo da Primeira Exposição Colonial Portuguesa”; “Álbum fotográfi-
co da I Exposição Colonial Portuguesa”; “Anais dos Trabalhos do 1º Congresso Nacional de
Antropologia Colonial”; “Civilização - Grande Magazine Mensal”; “Trabalhos da Sociedade
Portuguesa de Antropologia e Etnologia”; “Boletim especial da Sociedade Luso-Africana do
Rio de Janeiro”. Além dos Jornais: “O Século”; “Comércio do Porto”; “O Comércio do Porto-
colonial” e o “Jornal de Notícias”. As instituições percorridas foram as Bibliotecas Nacional
de Portugal; Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e das Faculdades de Le-
tras da Universidade de Lisboa; Coimbra e Porto.
131
SKOLAUDE, M. S. • Exotismo e Sensualidade Africana: Raça, Nação e Império...
3
THOMAZ, Omar Ribeiro. Ecos do Atlântico Sul: representações sobre o terceiro império portu-
guês. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/Fapesp, 2002, p. 59-60.
4
MATOS, Patrícia Ferraz de. As Côres do Império: Representações Raciais no Império Colonial
Português. Imprensa de Ciências Sociais. Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lis-
boa, 2. ed., 2012, p. 63.
132
Nossa África: ensino e pesquisa
5
MATOS, 2012, p. 162.
133
SKOLAUDE, M. S. • Exotismo e Sensualidade Africana: Raça, Nação e Império...
6
VICENTE, Filipa Lowndes. “Rosita” e o império como objecto de desejo. 2013, p. 1. Disponível
em: <http://www.publico.pt/cultura/jornal/rosita-e-o-imperio-como-objecto-de-desejo-
26985718#/0>.
7
MATOS, 2012, p. 168-173.
134
Nossa África: ensino e pesquisa
8
THOMAZ, 2002, p. 218-219.
135
SKOLAUDE, M. S. • Exotismo e Sensualidade Africana: Raça, Nação e Império...
9
VICENTE, 2013, p. 1-2.
10
THOMAZ, 2002, p. 223.
11
Idem, p. 221.
136
Nossa África: ensino e pesquisa
12
MATOS, 2012, p. 200-202.
13
O uso da escala constitui-se enquanto uma perspectiva de natureza metodológica que permite
uma reflexão historiográfica a partir de diferentes níveis, desde o mais local até o mais global.
REVEL, Jacques. Micro-história, macro-história: o que as variações de escala ajudam a pensar
em um mundo globalizado. Revista Brasileira de Educação, v. 15, n. 45, set./dez. 2010, p. 434-444.
14
Boletim da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro. Número Especial Comemorativo da
Exposição Colonial Portuguesa realizada no Porto – 1934. Caderno Panorama, n. 9, abril-
junho de 1934.
137
SKOLAUDE, M. S. • Exotismo e Sensualidade Africana: Raça, Nação e Império...
15
Sobre o posicionamento ambivalente da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro em rela-
ção à política do Estado Novo Português, ver SKOLAUDE, Mateus Silva. Raça e nação em
disputa: Instituto Luso-Brasileiro de Alta Cultura, 1ª Exposição Colonial Portuguesa e o 1º
Congresso Afro-Brasileiro (1934-1937). Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filoso-
fia e Ciências Humanas, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. 2016, p. 135-
148.
16
Boletim da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro. Número Especial Comemorativo da
Exposição Colonial Portuguesa realizada no Porto – 1934. Caderno Panorama, n. 9, abril-
junho de 1934, p. 118.
17
Maj. Dr. Raúl Manso Preto (Governador do Timor); Cel. José Ricardo Cabral (Governador
Geral de Moçambique); Gen. João Caveiro Lopes (Governador do Estado da Índia); Cap.
Amadeu de Figueiredo (Governador de Cabo Verde); Cap. Ricardo Vaz Monteiro (Governa-
dor de São Tomé); Maj. Luiz de Carvalho Viegas (Governador da Guiné); Cel. Eduardo Fer-
reira Viana (Governador Geral de Angola); Cel. Bernardo de Miranda (Governador de Ma-
cau) (p. 72).
18
FERREIRA, Cel. Antônio Vicente. Alguns aspectos da política indígena de Angola. (p. 57-64);
ALMEIDA, Gen. João de. Notas à margem sobre a descoberta do Brasil. (p. 65-66); MARTINS,
Gen. Luis Augusto Ferreira. Mais fumo (p. 67-72); MARTINS, Cel. Eduardo de Azambuja. A
instrução militar em Moçambique (p. 73-74); SALDANHA, Dr. Joaquim. O sul de Moçambique
entre o índio e os Libombos (p. 75-79); HESPANA, Cap. Jaime Rebelo. Colonização do Planalto de
Benguela (p. 80-82); MOURA, Maj. Jacinto José do Nascimento. General Henrique de Carvalho
(p. 83-86); BRAGA, Paulo (jornalista). A cidade portuguesa de Lourenço Marques: A grande rea-
lização (p. 89-93); SEIXAS, Manuel de (escritor e publicista). A obra colonizadora dos portugue-
ses (p. 95); TEXEIRA, Luis (jornalista). África. (p. 111-112); ESPIRITO SANTO, Salustino
Graça do. (Eng. Agrônomo) O Aspecto agrícola de S. Tomé (p. 113-116); MIRANDA, António
Augusto de. A Magistratura Judicial das Colónias Portuguesas. (p. 116-117); COSTA, Ten. Mário.
População europeia de Lourenço Marques: A tal descolonização... (p. 123-126); ARCHER, D. Ma-
ria (escritora e publicista). Singularidades de um país distante: Caçadas em Angola (p. 127-132);
TEIXEIRA, Ten. Augusto César de Justino. Timor (p. 133-137); LIMA, Rodrigo de Abreu
(Antigo deputado) Dois palpitantes temas coloniais (p. 143-146).
138
Nossa África: ensino e pesquisa
139
SKOLAUDE, M. S. • Exotismo e Sensualidade Africana: Raça, Nação e Império...
19
KNAUSS, Paulo. O desafio de fazer história com imagens: arte e cultura visual. In: ArtCultu-
ra, v. 8, n. 12, 2006, p. 97-115.
20
TAGG, John. El peso de la representación. Barcelona: Editorial Gustavo Gilli, 2005, p. 86.
21
VICENTE, Filipa Lowndes. O império da visão: Histórias de um livro. In: VICENTE, Filipa
Lowndes. O Império da Visão – Fotografia no contexto colonial português (1860-1960). Lisboa:
Edições 70, 2014, p. 29.
22
ALVÃO, Domingos. Álbum fotográfico da I Exposição Colonial Portuguesa. Porto, 1934.
140
Nossa África: ensino e pesquisa
23
Revista Civilização, Grande Magazine Mensal – Número 69 – Junho de 1934, p. 32
141
SKOLAUDE, M. S. • Exotismo e Sensualidade Africana: Raça, Nação e Império...
142
Nossa África: ensino e pesquisa
143
SKOLAUDE, M. S. • Exotismo e Sensualidade Africana: Raça, Nação e Império...
24
MORAIS, Isabel. “Little Black” at the 1934 Exposicao Colonial Portuguesa. In: T. J. Boisseau
and A. M. Markwyn. Gendering the Fair: Histories of Women and Gender at World Fairs.
University of Illinois Press, 2010, p. 22-23.
25
MORAIS, 2010, p. 26.
144
Nossa África: ensino e pesquisa
26
MORAIS, 2010, p. 31.
27
“Este conceito foi ‘inventado’ com base em pressupostos históricos e numa imagem essencia-
lista da personalidade do povo português, além de ter servido a interesses político-ideológicos
conjunturais durantes o Estado Novo, ajudou a perpetuar uma imagem mítica da identidade
cultural portuguesa, concedendo-lhe a autoridade ‘científica’ de que até aí não dispunha. A
influência do lusotropicalismo ter-se-á alargado, progressivamente, do campo cultural para o
campo político, e deste para o das mentalidades”. CASTELO, Cláudia. O modo português de
estar no mundo: O luso tropicalismo e a ideologia colonial portuguesa (1933-1961). Coleção:
Biblioteca das Ciências do Homem/História/17, 2. ed., 2011, p. 14.
145
A produção histórica a partir dos
arquivos coloniais portugueses1
Simoni Mendes de Paula2
1
Este artigo é parte dos resultados de uma pesquisa realizada em Lisboa, durante o Doutorado
Sanduíche, com financiamento da Bolsa Capes/PDSE, Processo – 99999.004707/2014-
01.004707/2014-01.
2
Doutora em História Cultural pela Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail:
[email protected].
3
VALENTIM, Cristina Sá. O(s) pó(s) do arquivo: Uma etnografia em arquivo colonial numa
pesquisa pós-colonial. In: IV Colóquio Internacional de Doutorandos/as do CES, 2013, p. 4.
146
Nossa África: ensino e pesquisa
147
PAULA, S. M. de • A produção história a partir dos arquivos coloniais portugueses
até um espaço físico, muitas vezes situado em outros países como é o caso
dos pesquisadores brasileiros que necessitam de documentos sobre o colo-
nialismo na África, para a realização de sua pesquisa?
A conclusão mais óbvia é de que nem todos os documentos estão
disponíveis on-line. Isto não deixa de ser verdade, porém, é provável que
para a maioria dos historiadores, a digitalização das fontes não seria um
motivo real para afastá-los de vez dos arquivos. Essa proximidade do histo-
riador com o arquivo talvez esteja relacionada à colocação da historiadora
Eide Azevedo Abreu de que manusear um documento é como “[...] pegar
com as mãos o próprio tempo. Essa substância tão impalpável como que
adquiria presença material, com cor, textura, cheiro”.4
Via de regra, o próprio prédio que abriga os arquivos, e isso pode ser
constatado nos dois arquivos que serão analisados mais a frente, torna-se
uma descoberta a parte para o historiador. Geralmente, trata-se de um pré-
dio histórico, que em outros momentos abrigou alguma sede administrati-
va ou construções privadas de um período remoto. O assoalho, a ilumina-
ção, o mobiliário e o cheiro do passado são lembranças que ajudam a com-
por esses lugares, além, é claro, de sua representatividade histórica, o que
acaba transformando-o em lugar de memória.
Pierre Nora, em seus trabalhos sobre a memória e os lugares de me-
mória, afirma que é o efeito material, simbólico e funcional que transforma
determinados locais em lugares de memória. Para o caso dos arquivos his-
tóricos, um local a princípio puramente material, seria a imaginação do
pesquisador que vai torná-lo um lugar de memória, que “[...] o investe de
uma aura simbólica”.5
Da mesma forma, pensando o simbolismo e em como o historiador dá
sentido aos documentos encontrados nos arquivos, Arlette Farges, em seu O
Sabor do Arquivo, afirma: “Nele [no arquivo], tudo se focaliza em alguns ins-
tantes de vida de personagens comuns, raramente visitados pela história, a
não ser que um dia decidam se unir em massa e constituir aquilo que mais
tarde se chamará história. O arquivo não escreve páginas de história.”6 Ou
4
ABREU, Eide Sandra Azevedo. Os encantos do arquivo e os trabalhos do historiador. Refle-
xões a partir da Coleção Marquês de Valença. Anais do Museu Paulista. São Paulo. v. 19, n. 1,
jan./jun. 2011, p. 250.
5
NORA, P. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Revista do Projeto História. São
Paulo, n. 10, dez. 1993, p. 21.
6
FARGE, Arlette. O Sabor do Arquivo. São Paulo: Edusp, 2009, p. 14.
148
Nossa África: ensino e pesquisa
7
STOLER, Ann Laura. Colonial Archives and the Arts of Governance. Archival Science, n. 2, p.
87-109, 2002, p. 89.
149
PAULA, S. M. de • A produção história a partir dos arquivos coloniais portugueses
[...] we are just now critically reflecting on the making of documents and how we
choose to use them, on archives not as sites of knowledge retrieval but of knowledge
production, as monuments of states as well as sites of state ethnography. This is not a
rejection of colonial archives as sources of the past. Rather, it signals a more sustained
engagement with those archives as cultural artifacts of fact production, of taxonomies
in the making, and of disparate notions of what made up colonial authority.8
8
STOLER, 2002, p. 90.
9
VALENTIM, Cristina Sá. O(s) pó(s) do arquivo: Uma etnografia em arquivo colonial numa
pesquisa pós-colonial. In: IV Colóquio Internacional de Doutorandos/as do CES, 2013, p. 2.
10
Ibidem, p. 4.
150
Nossa África: ensino e pesquisa
11
Disponível em: <http://www2.iict.pt/?idc=223&idi=12414>. Acesso em: 05 maio 2016.
12
O Ministério das Colónias passou a se chamar Ministério do Ultramar durante o Estado Novo,
quando as colônias passaram a ser denominadas províncias ultramarinas.
13
Carta aberta: o Arquivo Histórico Ultramarino, a democracia e o conhecimento. Disponível
em: <https://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/carta-aberta-o-arquivo-historico-ultrama-
rino-a-democracia-e-o-conhecimento-1629251>. Acesso em: 05 maio 2016.
14
Ibidem.
151
PAULA, S. M. de • A produção história a partir dos arquivos coloniais portugueses
15
Disponível em: <http://www2.iict.pt/?idc=223&idi=12415>. Acesso em: 05 maio 2016.
16
Disponível em: <http://www2.iict.pt/?idc=82>. Acesso em: 05 maio 2016.
152
Nossa África: ensino e pesquisa
153
PAULA, S. M. de • A produção história a partir dos arquivos coloniais portugueses
dade de realizar sua pesquisa nas antigas colônias, desde que o profissional
saiba interpretar e problematizar as fontes lá encontradas.
17
SANTOS, Maria Emília Madeira. Das travessias científicas à exploração regional em África: uma
opção da sociedade de geografia de Lisboa. Centro de Estudos de História e Cartografia Anti-
ga. Ministério do Planeamento e da Administração do Território. Secretaria de Estado da
Ciência e Tecnologia. Instituto de Investigação Científica Tropical. Lisboa, 1991, p. 6.
18
Disponível em: <http://www.socgeografialisboa.pt/historia/instalacoes>. Acesso em: 05 maio
2016.
154
Nossa África: ensino e pesquisa
19
Disponível em: <http://www.socgeografialisboa.pt/publicacoes/2009/03/27/o-boletim-da-
sociedade-de-geografia-de-lisboa>. Acesso em: 05 maio 2016.
20
STOLER, Ann Laura, 2002, p. 101.
155
PAULA, S. M. de • A produção história a partir dos arquivos coloniais portugueses
Considerações finais
Essas reflexões sobre o arquivo colonial apontam para um processo
de colonialismo da produção de documentos dessa temática histórica, de-
monstrando que a produção documental e a própria organização dela nos
arquivos refletem a experiência colonial, mantendo viva, de uma forma
mascarada, a condição de subalternidade que esses povos sofreram durante
todo o período de submissão colonial.
Assim, a condição do historiador é de um duplo trabalho, tendo que
analisar uma situação histórica de submissão, utilizando-se da lente do co-
lonizador, fazendo com que seja necessário, não apenas historicizar o obje-
to de pesquisa, mas também desconstruir o documento e, a partir disso,
analisar as questões da forma mais coerente e isenta possível.
156
Nossa África: ensino e pesquisa
1
Doutoranda em História na PUCRS – Bolsista CAPES.
E-mail: [email protected]
157
WEBER, P. M. • A obra História Geral das Guerras Angolanas como fonte documental
primeira desse trabalho. Isso quer dizer que o modo como os manuscritos
da História Geral das Guerras Angolanas2 chegaram até as bibliotecas de Évo-
ra e Paris serão investigados, bem como a forma como essas obras são copia-
das e anotadas. Longe de nos posicionarmos acerca da originalidade das
mesmas, inferiremos apenas argumentando que há características que pos-
sibilitam concluir diferenças na reprodução dos tomos.
Seguimos explanando aspectos relacionados ao contexto de escrita
da obra HGGA, com o embarque de Cadornega rumo à África, bem como
as agruras vividas por ele e por sua família durante a inquisição. A mãe do
soldado mente que possui filhos que morreram meninos ao Santo Oficio,
enquanto ambos estão destacados em cargos administrativos em Luanda,
casados, se relacionando com cristãos-novos e holandeses, integrando o
comércio de escravos e possuindo acesso a documentação administrativa,
item que possibilitou Cadornega observar a substituição do oficialato em
Angola. Consequentemente, como ele não desejava regressar a Portugal, o
mote para a escrita da obra HGGA ocorre em virtude do soldado necessi-
tar narrar aos Bragança, casa dinástica recém-restaurada em Portugal, os
anos de fidelidade junto à coroa, ou os serviços prestados em Angola.
Por fim, concluímos nosso texto refletindo com o auxílio de algumas
obras de cunho teórico-metodológico. Observamos os diferentes contextos
de escrita que compõem uma obra e que são capazes de complementar a
realidade empírica através de suas interpretações e imaginações. Uma obra
é crítica e transformadora, desconstruindo e reconstruindo, trazendo ao
mundo variações, modificações significativas, algo que anteriormente não
existia. A concepção puramente documental da historiografia é uma ficção
heurística, de modo que nenhuma descrição é pura: no momento em que
foi concebida, ela serviu para corroborar algum propósito.
2
Utilizaremos durante o texto para designar a obra História Geral das Guerras Angolanas a sigla
“HGGA”.
158
Nossa África: ensino e pesquisa
3
CADORNEGA, Antônio de Oliveira de, 1972, tomo I, p. XV.
Os Qualificadores deveriam ser clérigos, egressos de universidades e com reconhecidas quali-
dades intelectuais, haja vista que sua função era justamente vistoriar os livros que viriam para
a Igreja. Assim, entendemos que a função do Qualificador era aprovar e censurar livros, com o
intuito de proteger a população de influências capazes de exaurir alguma perturbação ao cato-
licismo. Eram, por assim dizer, representantes incontestes dos Inquisidores em terras distantes dos tribu-
nais [...]. BONFIM SOUZA, Grayce. Para remédio das almas: comissários, qualificadores e notá-
rios da inquisição portuguesa na Bahia (1692-1804). Tese (Doutorado em História Social),
UFBA, 2009, p. 82.
4
Essas informações são observadas por DELGADO, José Matias. In: CADORNEGA, Antônio
de Oliveira. História Geral das Guerras Angolanas. Lisboa: Agência Geral das Colônias, 1972,
tomo I, p. XVI.
5
Sobre as iluminuras em guache, talvez Oliveira de Cadornega, ou ainda algum copista, as
tenha inserido, visto que essa técnica a base de água é de fácil execução, tonando-se popular em
Europa desde o século XVI.
A consulta dos termos técnicos, tais como “iluminuras” e “guache”, bem como a utilização e
difusão destes, foram realizadas através de catálogos da British Library, não havendo nenhum
objetivo em aprofundá-los, mas, sim, observar a possibilidade de aplicação dos mesmos no
contexto supracitado. BROWN, Michelle. Glossary of Manuscript Terms. Adaptado de Un-
derstanding Illuminated Manuscripts: A Guide to Technical Terms. 1994. Disponível em: <http://
prodigi.bl.uk/illcat/GlossI.asp>. Acesso em: 12 nov. 2012.
6
Segundo catálogo de manuscritos da Academia de Ciências de Lisboa, o volume encontra-se
no Museu Britânico com a seguinte numeração: códice 15183. ACADEMIA DE CIÊNCIAS
DE LISBOA. Catálogo de Manuscritos – Série Vermelha, Publicações do II Centenário da
Academia de Ciências de Lisboa, Lisboa, 1978, p. 31.
159
WEBER, P. M. • A obra História Geral das Guerras Angolanas como fonte documental
7
GARRIDO, Luiz. O Visconde de Paiva Manso. Typographia da Academia Real das Sciencias de
Lisboa, 1877, p. 17. Embora as elogiosas descrições, é possível extrair dessa obra dados inte-
ressantes sobre o autor, tais como sua formação como advogado e o não exercício da função,
bem como sua ligação com a Academia Real das Sciencias.
8
PAIVA MANSO, Levy Maria Jordão de. História do Congo. Typographia da Academia Real
das Sciencias de Lisboa, 1877, p. 272.
9
BRASIO, Antonio. Monumenta Missionária Africana. Lisboa: A.G.U. 1952, v. 7, p. 138-139.
“No documento, Cadornega diz que Luanda ficava distante cerca de 40 léguas e que Massangano tinha
um grande número de pobres enfermos, além de viúvas necessitadas que não estavam sendo atendidas
pela Misericórdia de Luanda. Na carta, ele reitera a lealdade dos habitantes de Massangano à Coroa
portuguesa e seu exclusivo interesse em prover caridade àqueles indivíduos.”
OLIVEIRA, Ingrid Silva de. Misericórdias africanas no século XVII: a Misericórdia de Mas-
sangano. In: África: passado e presente: II Encontro de estudos africanos da UFF. Niterói: Edito-
ra UFF, 2010, p. 61.
10
DELGADO, José Matias. In: CADORNEGA, António de Oliveira. História Geral das Guerras
Angolanas. Lisboa: Agência Geral das Colônias, 1972, tomo I, p. XVIII.
11
Localização na Biblioteca Nacional de Paris: Catalogue des manuscrits espagnols et des ma-
nuscrits portugais, par Alfred Morel-Fatio. Imprimerie nationale, Paris: 1892. XVIIIe siècle –
Papier. 3 volumes, 261, 241 et 191 feuillets. Peintures. 370 × 240 mm. Manuscrit en portugais.
Bibliothèque nationale de France. Département des manuscrits.
160
Nossa África: ensino e pesquisa
12
Pedro César de Menezes é enfocado de forma demorada na obra HGGA, pois segundo Cador-
nega o governador teria participado da odisseia dos portugueses contra a usurpação holandesa. Já
Salvador Correia de Sá e Benevides é descrito como agente principal da reconquista de Angola,
pondo fim à estada holandesa. CADORNEGA, Antônio de Oliveira. 1972, tomo I e II.
13
Por ora, cabe mencionar apenas descrições sucintas a respeito dos conteúdos dos tomos, visto
que prolixas informações em nada contribuiriam para com o expor dos pressupostos primei-
ros desse trabalho.
14
Dom João II foi proclamado rei de Portugal como Dom João IV.
15
Os textos das Ordenações enumeravam competências tidas como naturais ou essências da
realeza e proclamavam a origem real de toda jurisdição. In: HESPANHA, António Manuel.
Poder e instituições na Europa do Antigo Regime. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1984,
p. 62. A primeira edição data de 1604. A que ora temos acesso é a seguinte: Ordenações
Filipinas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,1885.
161
WEBER, P. M. • A obra História Geral das Guerras Angolanas como fonte documental
16
Utilizamos para averiguar essa informação outro texto de Oliveira de Cadornega, que não a
obra “História Geral das Guerras Angolanas”. Desta vez, a obra “Descrição de Vila Viçosa”,
dedicada ao Conde de Ericeira, traz informações complementares sobre a aquisição de cargos
pelo autor. CADORNEGA, António de Oliveira de. Descrição de Vila Viçosa. Lisboa: Imprensa
Nacional, Casa da Moeda, 1982, p. 9.
17
CADORNEGA, António de Oliveira de. História Geral das Guerras Angolanas. Lisboa: Agência
Geral das Colônias, 1972, tomo I, p. 6.
18
CADORNEGA, António de Oliveira, 1972, tomo I, p. 7.
19
CUNHA, Mafalda Soares da. “O provimento de ofícios menores nas terras senhoriais. A Casa
de Bragança nos séculos XVI-XVII”. In: STUMPF, R.; CHATURVEDULA, N. (Orgs.). Car-
gos e ofícios nas monarquias ibéricas: provimento, controlo e venalidade (séculos XVII e XVIII),
Lisboa, CHAM, 2012, p. 21.
162
Nossa África: ensino e pesquisa
fossem feitas na mão do rei, por outro lado, o rendimento desses ofícios
representava cerca de 20% dos recursos dos Bragança, quando em 1626 a
casa da Áustria ainda estava no poder.20
Assim, a força motriz para a negociação da disponibilização do ofí-
cio de soldado para Cadornega atuar na África deu-se em virtude de um
cristão-novo, assim como muitos, necessitar oportunidade de sobrevivên-
cia apartada dos encalços da inquisição e, por parte não apenas dos Bra-
gança que lucraram com a transação, mas da casa da Áustria que permitia
o afrouxamento de alguns ofícios quando necessitava de mão de obra em
alguma colônia. No caso, com os avanços flamengos, a situação em Angola
se fazia emergencial.
A fidelidade da família de Oliveira de Cadornega aos Bragança é justi-
ficada através das menções às gerações que foram agraciadas com cargos,
secundarizando o fato de estes serem uma negociata que visava ganhos. As-
sim, os feitos bélicos de Portugal e a ascensão do soldado em Angola, que ora
possui, para parafrasear o padre António Vieira, um grossíssimo cabedal,21 são
expostos na obra como que para elucidar a dedicação do soldado aos Bra-
gança, que mesmo recém se estabilizando na administração de Portugal, ti-
veram contadas a seus reais pés esta história das guerras angolanas.22
Para além disso, as mortes e degredos de seus familiares também são
subsumidos, visto que seu pai morrera pobre, pois perdeu tudo na ocasião
de um saque pelos flamengos na costa de Angola, quando de sua viagem de
regresso a Portugal, após uma longa estada de trabalhos como oficial maior
da fazenda real em Buenos Aires.23 Sobre seu irmão, Manuel de Cadorne-
ga, sabe-se que embarcara juntamente com António de Cadornega para
Angola, assentando praça de soldado e vivendo, pelo menos até 1680, em
Vila da Vitória de Massangano.
20
CUNHA, Mafalda Soares da, 2012, p. 26.
21
VIEIRA, Padre Antônio – Obras escolhidas. Lisboa: Livraria Sá da Costa, v. VI, p. 174.
Por todos os reinos e províncias da Europa está espalhado grande número de mercadores portugueses,
homens de grossíssimos cabedais, que trazem em suas mãos a maior parte do comércio do mundo. [...]
E porque são duas as causas que desnaturalizaram deste reino os homens de negócio – ou as culpas de
que estão sendo acusados na Inquisição ou o receio do estilo com que as cousas da fé se tratam em
Portugal
22
CADORNEGA, António de Oliveira de. História Geral das Guerras Angolanas. Lisboa: Agência
Geral das Colônias, 1972, tomo I, p. 1.
23
DEMARET, Mathieu Mogo. Portugueses e africanos em Angola no século XVII: problemas
de representação e de comunicação a partir da obra História Geral das Guerras Angolanas. In:
Representações de África e dos africanos na História e Cultura – Séculos XV a XXI. Ponta Delgada:
Centro de História do Além-mar, Universidade de Nova Lisboa, 2011, p. 109.
163
WEBER, P. M. • A obra História Geral das Guerras Angolanas como fonte documental
Das irmãs não se têm maiores detalhes, apenas que uma delas foi jul-
gada e condenada ao degredo da comarca em que vivia, ou seja, Vila Viçosa,
e que a outra faleceu.24 A mãe, Antónia Simões Correia, foi cruelmente tor-
turada e morta, conforme se pode observar em processo disponível junto ao
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, onde ela menciona possivelmente
como um ato de proteção, que tem filhos que morreram meninos.
Ella declara, Antónia Simões Correia, ser cristã nova, não sabe em quanta parte.
Que é viúva de António de Cadornega, cristão-velho, de quem teve filhos que morre-
ram meninos, e Violante de Azevedo, solteira, de mais de 25 anos; e Francisca de
Azevedo que faleceu a quatro anos, sendo solteira. Que sabe ler e escrever.25
24
Processo disponível junto ao Arquivo Nacional da Torre do Tombo. N. 9.939, folha 38, ima-
gem 75, de 13 de Janeiro de 1662. Disponível em: <http://digitarq.dgarq.gov.pt/
viewer?id=2301963>. Acesso em: 06 out. 2012.
25
DEMARET, Mathieu Mogo, 2011, p. 79.
26
COELHO, Antonio Borges. Inquisição de Évora: dos primórdios a 1668. Lisboa, Caminho, 1987,
p. 72.
27
CADORNEGA, António de Oliveira de. História Geral das Guerras Angolanas. Lisboa: Agência
Geral das Colônias, 1972, tomo I, p. 6.
164
Nossa África: ensino e pesquisa
28
CERTEAU, Michel. História e Psicanálise: Entre ciência e ficção. Belo Horizonte: Autêntica,
2011, p. 132. Os pensamentos, entre as múltiplas instituições, experiências e doutrinas, desvenda-se de
forma não explicita, mas que constitui um principio organizador de uma cultura. Há, portanto, uma
espécie de ordem. Contudo, ela sempre escapa, porque a linguagem, tradutora primeira do pensamento,
fala à revelia das vozes que a enunciam.
29
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. 2. ed.
São Paulo: Martins Fontes, 1981, p. 238-248.
30
POCOCK, John Greville Agard. Linguagens do ideário político. São Paulo: EDUSP, 2003, p. 37.
165
WEBER, P. M. • A obra História Geral das Guerras Angolanas como fonte documental
o que nela pode ser dito, mas também pode ser modificada pelo que nela é
dito.31
Isso quer dizer que uma obra é capaz de complementar a realidade
empírica através, justamente, de suas interpretações e imaginações. Uma
obra é crítica e transformadora, desconstruindo e reconstruindo, trazendo
ao mundo variações, modificações significativas, algo que anteriormente
não existia. A concepção puramente documental da historiografia é uma
ficção heurística, de modo que nenhuma descrição é pura: no momento em
que foi concebida, ela serviu para corroborar algum propósito. Por outro
lado, a falta de um corpus documental é o mesmo que subsumir o arcabouço
advindo de linguagens proporcionado pelo documento, ou seja, idiomas,
retóricas, maneiras de falar sobre política, jogos de linguagens distinguíveis
como vocabulários, regras, precondições, implicações e estilos, itens com-
plexos e chaves para o historiador dissecar o contexto pretendido como
estudo.32
Segundo Marçal de Menezes Paredes, é próprio do olhar histórico cha-
mar atenção para as historicidades dos significados, para fazer aparecer as diferentes
maneiras como a experiência, em distintos momentos, foi apreendida.33 Analisar
essas historicidades através da condição de transitoriedade de significados
é uma condição fundamental da própria história como disciplina, sendo
um antídoto para a imobilidade teórico-conceitual.34
Há, com isso, importância em sopesar os contextos de produção de
cada obra, para somente então conseguirmos interpretar, com seus vocabu-
lários e sintaxes, os sons de suas línguas mais que as palavras pronunciadas,
dando tom aos discursos e aos contextos que os tornaram possíveis,35 des-
mitificando uma obra escrita enquanto fonte de proposições descritivas: o
constante desafio do historiador, nesse caso, reside em interpretar os códi-
gos, regras, sistemas implícitos nas práticas de escrever, na seleção do que é
lembrado e posto em palavras.
31
POCOCK, John Greville Agard, 2003, p. 64.
32
POCOCK, John Greville Agard, 2003, p. 35.
33
PAREDES, Marçal de Menezes (Org.). Portugal, Brasil, África: história, identidades e frontei-
ras. Porto Alegre: Oikos, 2012, p. 149.
34
LACAPRA, Dominck. Repensar la historia intelectual y ler textos. In: PALTI, Elias José
(Org.). Giro linguístico e História Intelectual. Buenos Aires: Prometeu, 2011, p. 241, apud PARE-
DES, Marçal de Menezes (Org.), 2012.
35
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. 2. ed.
São Paulo: Martins Fontes, 1981, p. 121.
166
Nossa África: ensino e pesquisa
36
POCOCK, John Greville Agard. Linguagens do ideário político. São Paulo: EDUSP, 2003, p. 56.
37
FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Lisboa: Vega, 2006, p. 34.
167
“Saudações das nossas colônias”:
o cartão postal como fonte para os estudos
de colonialismo em África
Ana Carolina Schveitzer1
1
Mestre em História pela Universidade Federal de Santa Catarina.
E-mail: [email protected]
168
Nossa África: ensino e pesquisa
2
Escusado é lembrar que a experiência colonial alemã durou três décadas. Teve início oficial-
mente a partir da Conferência de Berlim (1884-1885) e encerrou-se com o início das Primeira
Guerra Mundial, quando tropas francesas, britânicas e sul-africanas invadiram as então colô-
nias alemãs.
3
FABRIS, Annateresa. Fotografia: usos e funções no século XIX, São Paulo: EDUSP, 1991,
p. 33-35.
169
SCHVEITZER, A. C. • “Saudações das nossas colônias”: o cartão postal como fonte para os estudos...
4
Deutsch-Sudwestafrikanische Zeitung, 20 de fevereiro de 1902; Luderitzbuchter Zeitung, 4 de março
de 1909.
5
VICENTE. Filipa Lowndes. Fotografia e colonialismo: para lá do visível. In: JERÓNIMO,
Miguel Bandeira. O império colonial em questão (sécs. XIX-XX): Poderes, saberes e instituições.
Lisboa: Edições 70, 2012, p. 439.
170
Nossa África: ensino e pesquisa
6
Como a partir de 1914 esta região tornou-se protetorado da União Sul-Africana, posteriormen-
te britânico, o termo “Deutsch” (alemão) foi obliterado do nome, designando a região apenas
como Sudoeste Africano.
171
SCHVEITZER, A. C. • “Saudações das nossas colônias”: o cartão postal como fonte para os estudos...
172
Nossa África: ensino e pesquisa
173
SCHVEITZER, A. C. • “Saudações das nossas colônias”: o cartão postal como fonte para os estudos...
8
KNAUSS, Paulo. O desafio de fazer história com imagens: arte e cultura visual. ArtCultura
(UFU), v. 8, p. 97-119, 2006.
9
NARANJO, Juan (Org.). Fotografía, antropología y colonialismo (1845-2006). Barcelona: Editorial
Gustavo Gili, 2006.
174
Nossa África: ensino e pesquisa
10
SCHVEITZER, Ana Carolina. Imagens do Império: mulheres africanas pelas lentes coloniais
alemãs (1884-1914). 2016. 155 f. Dissertação (Mestrado em História), Programa de Pós-Gra-
duação em História, Departamento de História, Universidade Federal de Santa Catarina, Flo-
rianópolis, 2016.
175
SCHVEITZER, A. C. • “Saudações das nossas colônias”: o cartão postal como fonte para os estudos...
11
KOSSOY, B. Fotografia & História. 5. ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2014, v. 1. 180p.; KOS-
SOY, B. Os tempos da fotografia. O efêmero e o perpétuo. 3. ed. São Paulo: Ateliê Editorial,
2014, v. 1. 175p.; KOSSOY, B. Realidades e ficções na trama fotográfica. 4. ed. São Paulo: Ateliê
Editorial, 2009, v. 01. 156p.; FABRIS, A. (org.). Fotografia: usos e funções no século XIX. São
Paulo: EDUSP, 1991; FABRIS, A. Identidades virtuais: uma leitura do retrato fotográfico. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2004, 204p.; MAUAD, Ana M. Poses e Flagrantes: ensaios sobre
história e fotografias. Niterói: EDUFF, 2008, v. 1. 261p.; MAUAD, Ana M. Sob o signo da ima-
gem: A produção da fotografia e o controle dos códigos de representação social, da classe
dominante, na cidade do Rio de Janeiro. Niterói: LABHOI/UFF, 2002, v. 1. 465p.; MAUAD,
Ana M. Como nascem as imagens? Um estudo de história visual. História. Questões e Debates, v.
61, p. 105-131, 2014; MAUAD, Ana M. Fotografia pública e cultura do visual, em perspectiva
histórica. Revista Brasileira de História da Mídia, v. 2, p. 11-20, 2013; PAIVA, E. F. História &
imagens. 2. ed. 2. reimpr. Belo Horizonte: Autêntica, 2015, v. 1, 120p.
12
Cabe lembrar apenas que a imagem fotográfica foi reproduzida em outros suportes além do
postal, como, por exemplo, nos livros de literatura colonial e nas revistas ilustradas.
176
Nossa África: ensino e pesquisa
13
MENESES, Ulpiano Bezerra de. História e Cultura visual: reflexões cautelares”. In: XII Jor-
nada de História Cultural: História, Cultura e Imagem, 2015, Porto Alegre. Conferência. Porto
Alegre: Anpuh-RS, 2015.
14
Delcampe. Disponível em: <http://www.delcampe.net/>. Acesso em: maio 2016.
177
SCHVEITZER, A. C. • “Saudações das nossas colônias”: o cartão postal como fonte para os estudos...
15
AK Ansichtskarte. Disponível em: <ak-ansichtskarten.de>. Acesso em: maio de 2016;
Ansichtskarten Center. Disponível em: <ansichtskarten-center.de>. Acesso em: maio 2016.
16
MOREAU, Daniele. Edmond Fortier – Viagem a Timbuktu: fotografias da África do Oeste em
1906. São Paulo: Literart, 2015, 465p.
178
Nossa África: ensino e pesquisa
17
FARIA, Paulo Fernando de Morais. Prefácio. In: MOREAU, Daniele. Edmond Fortier viagem a
Timbuktu: fotografias da África do Oeste em 1906. São Paulo: Literart, 2015, p. 12-14.
18
Atualmente, para identificar a cor, emprega-se o termo “Schwarze” e não mais “Neger”. Embora
possua especificidades, pode-se comparar essa discussão acerca da mudança de termo com o
uso dos termos “negro” e “preto” no Brasil.
19
Digitale Sammlungen Köln. Kolonialismus und afrikanische Diaspora auf Bildpostkarten. Dis-
ponível em: <http://www.ub.uni-koeln.de/cdm/search/collection/kolonial>. Acesso em: jan.
2016.
179
SCHVEITZER, A. C. • “Saudações das nossas colônias”: o cartão postal como fonte para os estudos...
Considerações finais
Nos apontamentos discutidos neste texto, atentou-se para a compre-
ensão do postal como fonte de pesquisa histórica sobre o colonialismo a
partir de uma perspectiva que o analise como um artefato, um objeto do
passado. Pensar o postal como um objeto, ou seja um suporte para ima-
gem, significa atentar para a interação, a relação entre sujeito e objeto. Sig-
nifica também identificar os sujeitos que atuaram para a construção de um
conhecimento visual produzido em contexto colonial. Tentar esboçar os
180
Nossa África: ensino e pesquisa
181
Por uma perspectiva mais endógena
das sociedades africanas
Rafael Antunes do Canto1
1
Doutorando na UFRGS. Financiamento: CAPES. E-mail: [email protected]
2
O debate acerca das diferentes visões utilizadas em pesquisas sobre o continente africano estão
alicerçadas em discussões de longa data. Simplificando a discussão, a visão interna busca en-
tender e agregar às pesquisas acadêmicas a produção a partir de pensadores nascidos, criados
no continente ou que se disponham a entender as suas dinâmicas internas. As outras visões
consideram em grande medida pesquisas feitas a partir de um interlocutor que analisa o conti-
nente, sem levar em conta suas dinâmicas internas. Essa crítica tem sido vigorosa principal-
mente por intelectuais provenientes do continente e que vivem, viveram ou atuam em universi-
dades fora da África.
182
Nossa África: ensino e pesquisa
183
DO CANTO, R. A. • Por uma perspectiva mais endógena das sociedades africanas
3
MUDIMBE, Valentin. A invenção da África. Mangualde: Editora Pedago Ltda., 2013.
184
Nossa África: ensino e pesquisa
4
MBEMBE, Achille. As formas africanas de Auto-inscrição. Revista de Estudos Afroasiáticos, ano
23, n. 1, 2001, p. 171-209.
5
HOUNTOUNDJI, Paulin (Org.). O antigo e o moderno na produção do saber na África contemporâ-
nea. Mangualde: Edições Pedago, 2012.
6
BÂ, Amadou Hampâté. A tradição viva. História Geral da África, v. I, Brasília: UNESCO, 2010.
7
Para acessar os oito volumes da História Geral da África – Unesco, buscar o site do Ministério da
Educação. http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_%20content&view=article&id=16146.
185
DO CANTO, R. A. • Por uma perspectiva mais endógena das sociedades africanas
8
APPIAH, Kwame Anthony. Na casa de meu pai: A África na filosofia da cultura. Rio de Janeiro:
Contraponto, 1997.
186
Nossa África: ensino e pesquisa
palmente no Brasil. Como país que mais recebeu levas de escravizados vin-
dos do continente africano e que até hoje carrega na relação de classes as
marcas da herança escravista mal resolvida nas diferenças sociais, acredito
ser sempre necessário especificar minha posição e meu lugar de fala como
pesquisador e professor, fortalecendo a importância dessas pesquisas para
ajudar a minimizar as mazelas da escravidão na sociedade brasileira atual.
Além disso, acredito ser importante apresentar ou demonstrar a li-
nha que separa as pesquisas ligadas à afrodescendência e os estudos das
sociedades africanas, principalmente levando em conta que certos proble-
mas existem apenas na sociedade brasileira, não sendo necessário analisá-
los em relação às sociedades africanas, ainda mais do passado. Dito isso,
seja em palestra, ou na introdução de um texto, penso que ser branco não é
um limitador para minha pesquisa. Estudando sociedades africanas negras
do passado, posso, a partir de um intenso mergulho tanto em documentos
como outros tipos de fontes históricas, aproximar-me das sociedades pes-
quisadas. Preciso levar sempre em conta, é claro, a perspectiva do conheci-
mento endógeno, ou proveniente da própria África. Parafraseando Jean Co-
pans,9 não é possível que um antropólogo ou pesquisador possa conhecer
uma determinada sociedade sem buscar ao menos entender sua língua. Não
seria aceitável que um pesquisador que estudasse a sociedade francesa não
buscasse entender francês. Contudo, é permitido que todo e qualquer pes-
quisador que busque conhecer as sociedades africanas leia apenas as lín-
guas europeias que tratam do assunto.
O que está em questão aqui não é apenas um essencialismo ou algum
tipo de Pan-africanismo que obrigue a que determinadas pesquisas sejam
feitas apenas por aqueles que vivem, ou viveram alguma herança de deter-
minada sociedade. Não é isso, de forma alguma. O que se pretende, e que
deve buscar o pesquisador que se aprofunda em determinado assunto acer-
ca do continente africano, é validar seus saberes, seus conhecimentos, a
partir de uma lógica que faça sentido aos sujeitos de quem está se falando.
É de alguma forma dar voz àqueles de quem a pesquisa trata, para que, a
partir deles, possa ser visto um entendimento de mundo que traga alguma
significação para seus presentes e passados. Minha pesquisa trata dos Bija-
gós, populações que vivem nas ilhas da costa ocidental que possui o mesmo
nome. Apesar de buscar um passado, do qual grande parte dos Bijagós de
9
COPANS, Jean. A longa marcha da modernidade africana. Lisboa: Edições Pedago, 2014.
187
DO CANTO, R. A. • Por uma perspectiva mais endógena das sociedades africanas
hoje não se reconheça, acredito ser necessário que, quando minha tese esti-
ver pronta e disponível, as populações das quais eu trato possam ter acesso
a ela. E mesmo que não a leiam, pois talvez não seja possível, que saibam
que aquele trabalho buscou de alguma maneira retratar suas heranças a
partir de uma perspectiva que levasse em conta suas visões de mundo
atuais, suas formas de dar significado a sua vida, a seu passado e não ape-
nas uma visão do mundo de quem produziu o trabalho.
10
CARVALHO, José Jorge de. Encontro de saberes na Universidade: Bases para um diálogo inte-
repistêmico. Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de inclusão no ensino superior e na
pesquisa – Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia (CNPq), Universidade de Brasília –
UNB. Coord. Geral José Jorge de Carvalho, 2014.
188
Nossa África: ensino e pesquisa
11
Esse entendimento acerca dos saberes tradicionais ou saber-fazer está ancorado em pesquisas
maiores nas universidades brasileiras fortalecidas por indicativos da UNESCO. O projeto “En-
contro dos Saberes”, já está em sua quarta edição, e, de acordo com José Jorge de Carvalho, as
disciplinas ministradas nas universidades que aderiram ao projeto são um sucesso, deixando
sempre uma imensa lista de espera para a matrícula. As universidades envolvidas são UNB,
UFMG, UFPA, UECE, UFJF e UFSB no Brasil. Além dessas, a Pontifícia Universidad Jave-
riana do Colombia também participa do grupo. São diversos os cursos e as disciplinas que
aderiram ao projeto, desde as áreas da Antropologia, Farmácia, Arquitetura, Engenharia, Edu-
cação Ambiental, Artes Cênicas, Música, sendo que, dependendo da universidade as discipli-
nas podem ser ministradas na Graduação ou mesmo no Pós-Graduação.
12
ALMADA, A. A. de. Tratado Breve dos Rios de Guiné do Cabo Verde [ed. do Ms. da Biblio-
teca Pública Municipal do Porto, datado de 1594], ed. António Brásio, Lisboa: Editorial
L.I.A.M., 1964. COELHO, Francisco de Lemos. Discripção da Costa de Guiné e situação de todos
os portos, e rios della; e roteyro para se poderem navegar todos seus rios, 1684: BNL, Cód. 454.
Pub. por Damião PERES, Duas Descrições Seiscentistas da Guiné de Francisco de Lemos Coelho, 2.
ed. Lisboa: Academia Portuguesa da História, 1990, p. 89-25 (doravante cit. como Discripção
(1684).
189
DO CANTO, R. A. • Por uma perspectiva mais endógena das sociedades africanas
de. Para que eu possa entender as comunidades Bijagós e suas diversas cul-
turas marítimas, posso e devo buscar entender, como os Kru, os Muxiluan-
das, os Vili, os Nhomincas, os Bubi e todos os outros povos marítimos da
costa ocidental visualizavam e entendiam os Bijagós, se é que isso ocorria.
Não é tarefa fácil. Contudo, vai ser a partir dessa busca que poderei visua-
lizar uma nova História de África. Caso eu não empreenda essa tentativa,
vamos continuar analisando a vida desses marítimos a partir das mesmas
três ou quatro referências escritas que possuímos, de como eles eram hábeis
marinheiros e grandes saqueadores do mar. Acredito ser muito mais rico
do que ficar analisando apenas os textos que tenho em mãos e que prova-
velmente não significam nada ou quase nada para essas sociedades que me
proponha analisar, buscar tencionar esses sujeitos com as representações
do passado que nós possuímos deles. Se existe algo a ser falado acerca dos
Bijagós no período em que busco empreender minha pesquisa, e acredito
plenamente que há, é preciso que eu ultrapasse o limite dos documentos
escritos. Talvez não consiga, mas sabemos que a pesquisa rica é essa, que
busca ultrapassar os limites possíveis.
Caso eu pretendesse uma dissertação de mestrado, talvez pudesse me
manter nesse nível, analisando e estudando os textos que por muitos já
foram estudados e que muitas vezes ainda têm muito a dizer. Mas quando
me proponha a uma tese de doutoramento, vejo-me obrigado a buscar mais.
Caso esse mais, não seja possível, que fique registrado em minha escrita o
limite que pude alcançar, para que outros que venham posteriormente pos-
sam, quem sabe como mais recursos que eu, continuar do ponto onde pa-
rei. Mas que esse ponto seja em África, e não nas linhas dos relatos euro-
peus acerca do continente. As dinâmicas a que me proponho falar aqui têm
a ver com a inter-relação que existia entre esses povos antes ou durante a
chegada dos europeus. Essas dinâmicas podem e devem nos apresentar as
trocas de tecnologias que aconteciam ou não entre os diversos grupos de
marítimos que transitavam na costa ocidental, dos quais os Bijagós eram
apenas um dos grupos. Esses enlaces que por vezes tornavam-se tão impor-
tantes quando estudamos outros grupos ou sociedades em outros continen-
tes parecem quase sem importância quando estudamos sociedades africa-
nas, tamanha é a dificuldade de atingi-las. Acredito que nesse espaço geo-
gráfico, principalmente o marítimo e fluvial em que empreendo minhas
pesquisas, analisar os povos circundantes da sociedade que pretendo estu-
dar torna-se tão importante quanto a própria sociedade estudada. A rique-
za do saber fazer em termos de construção de embarcações, de técnicas de
190
Nossa África: ensino e pesquisa
13
Apud HOUNTOUNDJI, Paulin (Org.). O antigo e o moderno na produção do saber na África
Contemporânea. Mangualde: Edições Pedago, 2012.
191
DO CANTO, R. A. • Por uma perspectiva mais endógena das sociedades africanas
192
Nossa África: ensino e pesquisa
Considerações finais
Refletir sobre as sociedades africanas a partir de uma visão endóge-
na, que perseguimos, causa algum desconforto para alguns pesquisadores
que consideram que o conhecimento histórico não pode ser produzido a
partir de determinadas lógicas e fontes. Entretanto, grande parte do conhe-
cimento histórico que foi produzido sobre o continente africano não res-
ponde às realidades das populações analisadas, principalmente por partir
de uma visão externa dessas. É um conhecimento válido, contudo apenas
como forma de entender aquele espaço no tempo, sem qualquer preocupa-
ção de agência dos sujeitos estudados. Acreditamos que o investimento em
buscar entender as dinâmicas internas dos povos africanos possa ajudar a
minimizar ou entender melhor os danos que a construção do mundo mo-
derno causaram ao continente, considerando que todos, inclusive os pró-
prios africanos, em especial suas elites, participaram dessa construção. Essa
perspectiva que propomos não tem nada de inovador se nos referirmos a
outros espaços do mundo. Contudo em relação às sociedades africanas, ela
acaba por esmorecer principalmente pelas dificuldades de pesquisa que es-
sas sociedades impõem.
193
Sudão do Sul, Orientalismo, Tolstoi
Um caldo de digressões sobre História,
fontes e o ofício do historiador
Gabriel Cabeda Egger Moellwald1
1
Mestre em História pela UFRGS com financiamento CAPES. E-mail: [email protected]
2
Documentos oficiais, relatos, estudos etnográficos, científicos, geográficos, botânicos, obras
que pretendessem englobar esses conhecimentos, etc.
3
“Ocidental” e não mais somente “europeu”, pois o autor inclui também norte-americanos
entre seu objeto de estudo.
194
Nossa África: ensino e pesquisa
4
SAID, E. Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente. São Paulo: Companhia das Le-
tras, 2001, p. 261.
5
SAID, 2001, p. 15.
6
CARDOSO, C. Os desafios da pesquisa em Ciências Sociais e o papel das organizações acadêmicas
regionais em África. Lisboa: CEsA, 2011, p. 313.
195
MOELLWALD, G. C. E. • Sudão do Sul, Orientalismo, Tolstoi
***
Todo trabalho historiográfico pressupõe necessariamente a existên-
cia de fontes, independentemente de quão metódico o trabalho. Para o his-
toriador que opte por se debruçar em África, o “africanista”, mimetizando
o “orientalista” de Said, sua primeira tarefa será uma profunda análise crí-
tica das fontes que escolher. E para isso – para o mínimo sucesso dessa
leitura crítica das fontes – servem muito as obras de Said, Mudimbe e tan-
tos outros críticos do olhar ocidental sobre o mundo não ocidental. Será
possível, então, o desenvolvimento de um “orientalismo” ou “africanismo”
em outros termos, passado agora, mesmo que recentemente, o período co-
lonial europeu? O quanto das características dessas fontes “coloniais” de-
nunciadas por Said e Mudimbe persistem hoje, a reproduzir, quem sabe,
algo de “neocolonial”, para usar termo cunhado pelo libertador ganês
Kwame Nkrumah8, em pleno período pós-colonial?
A escrita deste artigo parte do princípio de que é possível a produção
de obras, sejam quais forem, originadas de qualquer lugar sobre qualquer
outro. Para tanto, defendemos a ideia do universalismo do pensamento e
do pressuposto da honestidade: no caso da obra historiográfica, que seus
objetivos sejam claros e que haja abertura para que eventuais partes obscu-
ras possam ser posteriormente encontradas. Em consonância com essa cren-
ça na possibilidade de uma obra sobre o “outro”, defendemos também a
ideia de que o texto histórico é, por essência, um gênero literário, a concen-
trar no autor os pressupostos intrínsecos à sua existência no espaço-tempo.
Ou seja, não há nada de absoluto em História, por mais que tente o autor
ou o coletivo de autores. E, ao se configurar como uma forma textual, não
há como imaginar uma obra historiográfica sem pensar as subjetividades
da escrita. Por último, mantendo a crítica a toda forma de colonialismo,
seja através da violência “necropolítica”9 das forças colonizadoras, seja
7
E aqui cabe outro conceito desenvolvido por Mudimbe: o “paradigma da diferença”, no qual a
África servia como oposição fundamental para produzir a imagem europeia do outro e de si
mesma. Essa e outras reflexões podem ser encontradas em MUDIMBE, 2013.
8
Em sua obra de 1965, Neocolonialismo: última etapa do imperialismo, Kwame Nkrumah elabora
sobre as novas formas de dominação e exploração por parte dos países hegemônicos nos países
menos desenvolvidos (NKRUMAH, 1967).
9
“Necropolítica” é um termo cunhado pelo intelectual camaronês Achille Mbembe, baseado na
ideia de biopoder de Foucault, para designar o tipo de relação de poder calcado pela sua mais
196
Nossa África: ensino e pesquisa
197
MOELLWALD, G. C. E. • Sudão do Sul, Orientalismo, Tolstoi
***
Iniciamos esse texto com uma breve apresentação dos conceitos de
“orientalismo” de Said e “biblioteca colonial” de Mudimbe aplicados na
análise de fontes históricas. Ambos os termos remetem a um período do
tempo que compreende a ascensão, o auge e a queda do colonialismo euro-
peu, por sua vez inserido numa mais longa história do capitalismo mundial.
E aqui aventamos nossas próximas questões: o que acontece com as fontes
e obras produzidas após o fim do colonialismo europeu em África, termi-
nado o período de descolonização do continente? As obras de Said e Mu-
dimbe, além das de centenas de outros autores, alguns fortuitos o suficiente
para ostentarem em seus currículos o título de “pós-coloniais”, são, em si,
produtos desse período. Críticos ferrenhos das estruturas coloniais, esses
autores produziram um arcabouço de obras filosóficas tratando da questão
colonial, de seus aspectos no continente descolonizado e do que resultou
daquele período. Poucos se debruçaram especificamente no ramo da Histó-
ria, antes produzindo obras muito mais ricas e densas com a ajuda secun-
dária de análises historiográficas.
A obra História Geral da África10 é, quem sabe, o caso mais notório de
uma tentativa de desenvolver uma nova interpretação histórica do conti-
nente africano a partir de um olhar que partisse de dentro. Esse colossal
trabalho envolvendo centenas de colaboradores de diversos países acabou
por resultar em nove tomos tratando de uma miríade de assuntos relaciona-
dos à convivência humana ao longo do tempo nesse amplo, diverso territó-
rio. Simultaneamente, centros acadêmicos, agências e órgãos públicos in-
ternacionais continuaram a produzir seus relatórios, pesquisas e estudos
sobre África.
Com o desenvolvimento acelerado das tecnologias de informação e a
inserção na sociedade de controle11 contemporânea de territórios antes con-
siderados remotos, agências de notícias passaram a registrar em tom jorna-
10
KI-ZERBO, 2010
11
“Sociedade de controle” é uma expressão cunhado por Gilles Deleuze expandindo o conceito
de “sociedade disciplinar” de Foucault. De acordo com Deleuze (1992), essa expansão do
controle social teria começado após a Segunda Guerra Mundial, com o uso de inovações
tecnológicas para o controle da sociedade sendo a principal característica dessa nova forma de
poder sobre os corpos.
198
Nossa África: ensino e pesquisa
12
EGGER-MOELLWALD, 2015.
199
MOELLWALD, G. C. E. • Sudão do Sul, Orientalismo, Tolstoi
13
LeRICHE, 2014.
200
Nossa África: ensino e pesquisa
14
Sudan’s People Liberation Movement/Army, grupo “rebelde” sul-sudanês formado em 1983 e prin-
cipal protagonista da região na segunda guerra civil sudanesa de 1983 a 2005. Após a paz e a
formação do Sudão do Sul enquanto país independente, o SPLM/A assumiu o governo. O
que fora movimento armado e entidade política durante a guerra tornou-se o Estado, executi-
vo, legislativo, judiciário e militar.
15
MADUT-AROP, 2006.
201
MOELLWALD, G. C. E. • Sudão do Sul, Orientalismo, Tolstoi
sua evocação no presente. Podemos traçar uma cronologia dos fatos, mas
não poderemos jamais responder às questões subjacentes a eles com firme-
za plena. Podemos apenas supor, e, se nos despirmos da vontade de produ-
zir uma História derradeira, isso basta.
***
Liev Tolstoi, famoso escritor russo de Guerra e Paz, concatenando sua
história com a beleza do texto literário, nos traz uma reflexão interessante
acerca da possibilidade (ou impossibilidade) de interpretarmos a História.
Colocando em questão as causas que levaram ao desencadeamento da guerra
franco-russa no contexto napoleônico, Tolstoi passa a enumerar várias de-
las para depois chegar à conclusão de que “para nós, a posteridade, que não
somos historiadores nem entusiastas dos métodos de pesquisa, e que por
isso contemplamos o acontecimento com um bom-senso desnuviado, as
suas causas se apresentam numa quantidade inumerável”.16 O autor segue,
apresentando as ações de figuras centrais do conflito e o desenrolar de even-
tos marcantes para afirmar que “todas essas causas – bilhões de causas –
coincidiram para produzir o que ocorreu. E por consequência, nada foi a
causa exclusiva do acontecimento”.17
A obra de Tolstoi, lançada em 1869, no prenúncio da expansão im-
perialista europeia, e em um período no qual a análise histórica se restrin-
gia aos movimentos dos “grandes homens” e às interpretações das causas e
consequências de guerras e tratados diplomáticos, expõe uma visão revolu-
cionária do “acontecer histórico”. Para o autor, “a pessoa vive para si de
forma consciente, mas serve de instrumento inconsciente para a realização
dos objetivos históricos. Um ato executado é irreversível, e sua ação coinci-
de no tempo com milhões de ações de outras pessoas, recebe um significa-
do histórico”.18 Sobre os “grandes homens”, Tolstoi arrebata:
O rei é escravo da história.
A história, ou seja, a vida inconsciente, comum, a vida de colmeia da huma-
nidade, usa todos os minutos do rei para si mesma, como um instrumento
para alcançar seus objetivos.19
16
TOLSTOI, 2013, p. 1.265.
17
Idem, p. 1.266.
18
Idem, p. 1.268.
19
Idem, p. 1.268.
202
Nossa África: ensino e pesquisa
Referências
203
MOELLWALD, G. C. E. • Sudão do Sul, Orientalismo, Tolstoi
204
Nossa África: ensino e pesquisa
Parte III
205
206
Nossa África: ensino e pesquisa
Introdução
As ideologias de dominação que sustentaram os regimes coloniais
impostos por algumas potências europeias ao continente africano, princi-
palmente após a segunda metade do século XIX, possuíam alicerces que
extrapolaram a barreira do material, adentrando o plano do simbólico. Mais
do que dominar por meio da força, foi preciso promover a construção de
“verdades” que, ao criarem um imaginário acerca do Outro e do lugar que
este deveria ocupar, legitimavam as relações sociais assimétricas geradas
pela estrutura social colonial. Contudo, tanto as identidades, quanto os ide-
ais de alteridade – assim como a vasta gama de “verdades” que estas cate-
gorias produzem – são produtos históricos de um processo em frequente
construção e reformulação. Mais especificamente com relação ao caso por-
tuguês, algumas autoras como Fillipa L. Vicente2 e Leonor P. Martins3 cha-
mam atenção para a importância que a imprensa – especialmente a im-
prensa ilustrada – pode ter assumido no processo de formulação, difusão e
consolidação de um imaginário social colonial.
Tendo isto em mente, este trabalho tem como objetivo localizar e
identificar de que maneira as colônias portuguesas em África foram repre-
sentadas em caricaturas vinculadas na imprensa ilustrada metropolitana.
Para responder a tal pergunta, foram analisados cinco periódicos ilus-
trados satíricos publicados entre os anos de 1910 e 1926: O Zé, O Thalassa, O
1
Aluno de graduação do curso de História da Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail:
[email protected]
2
VICENTE, Fellipa L. (Org.). O Império da Visão: fotografias no contexto colonial português
(1860-1960). Lisboa: Edições 70, 2014.
3
MARTINS, Leonor Pires. O Império de Papel: imagens do colonialismo português na imprensa
periódica ilustrada (1875-1940). Lisboa: Edições 70, 2014.
207
SCHIBELINSKI, D. • A África em caricaturas nos periódicos ilustrados e satíricos...
4
LUSTOSA, Isabel (Org.). Imprensa, humor e caricatura: a questão dos estereótipos culturais.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.
5
OLÍMPIO, Ana Filipa P. M. Uma caricatura de país. 2013, 180f. Dissertação (Mestrado em
Desenho), Faculdade de Belas Artes, Universidade de Lisboa, Lisboa, 2013.
6
Aqueles de tendência política monarquista ou antirrepublicanos.
7
ALEXANDRE, Valentim. Portugal em África (1825-1974): uma perspectiva global. Penélo-
pe: Fazer e desfazer História. N. 11. Lisboa: Editora Cosmos e Cooperativa Penélope, 1993.
p. 53-66.
208
Nossa África: ensino e pesquisa
ricas tem-se uma representação do Outro e do lugar que este deveria ocupar
na ordem colonial, reproduzindo assim, certas relações sociais enquadra-
das na lógica da estrutura social colonial daquele período (ver figura 1).8
8
Evocando Camões. O século Cômico, Lisboa, 23/06/1919, p. 4. N. 1.123 – XXII ano.
9
Os bichos... O Zé, Lisboa, 26/03/1912, p. 4. N. 72 (194) – 4º ano.
209
SCHIBELINSKI, D. • A África em caricaturas nos periódicos ilustrados e satíricos...
Figura 2: Os bichos
210
Nossa África: ensino e pesquisa
10
Sobre a mudança destes estereótipos ver: CUNHA, Luis M. de Jesus. A imagem do negro na
banda desenhada do Estado Novo: algumas propostas exploratórias. Cadernos do Noroeste/
Centro de Ciências Históricas e Sociais da Universidade do Minho – V. 8:1 (1995). Minho,
1995, p. 89-112.
11
ALEXANDRE, Valentim. A África no imaginário político português (século XIX- XX). Pené-
lope: Fazer e desfazer História. N. 15. Lisboa: Editora Cosmos e Cooperativa Penélope, 1995.
p. 39-52.
12
FERREIRA, Jonatas & HAMLIN, Cynthia. Mulheres, negros e outros monstros: um ensaio
sobre corpos não civilizados. Revista de Estudos Feministas/ Centro de Filosofia e Ciências Hu-
manas. V. 18, n. 3. Florianópolis: UFSC, set.-dez. 2010, p. 811-835.
13
O fado da menina Angola. Papagaio Real, Lisboa, 28/04/1914, p. 9. N. 04 – 1º ano.
211
SCHIBELINSKI, D. • A África em caricaturas nos periódicos ilustrados e satíricos...
Considerações finais
Se, pouco a pouco, as representações do negro durante a Primeira
Republica vão se afastando de alguns clichês, isso não significa que elas
passam a fazer alusão ao negro de maneira positiva e livre de estereótipos.
Novas formas de ver e representar o Outro mantêm em seus corpos marca-
dores de inferiorização que serão transmitidos através da imprensa ilustra-
da que, por meio de seu “humor”, flexibiliza e autoriza a criação destes
estereótipos, reproduzindo e naturalizando o racismo vigente.
Como se pode observar, através do traço de republicanos e monar-
quistas, doçura e intriga, ingenuidade e lascívia, enfim, clichês e preconcei-
tos amalgamaram-se na representação do caráter africano nas caricaturas
do período. Seja sob uma visão infantilizada ou sobre uma identificação
feminina, as colônias africanas foram representadas como uma entidade
sob tutela, sem capacidade de autodeterminação. Além do mais, ao recor-
rer à figura infantil ou feminina para representar a alteridade africana, as
caricaturas estavam também contribuindo para a autoimagem dos coloni-
zadores portugueses.
212
Nossa África: ensino e pesquisa
A África e os africanos na
literatura colonial infanto-juvenil1
Lara Lucena Zacchi2
1
Trabalho apresentado em forma de banner, na I Jornada de Estudos em História da África, em
junho de 2016.
2
Graduanda no curso de História pela Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail:
[email protected]
3
REIS FILHO, L. A África que Tintim viu: Metáforas da Superioridade Européia, Estereótipos
Raciais e Destruição das Culturas Nativas em uma Desventura Belga. Estudos em Comunica-
ção/Communication Studies , v. 6, p. 353, 2009.
213
ZACCHI, L. L. • A África e os africanos na literatura colonial infanto-juvenil
4
PINTO, Alberto Oliveira. A retórica do discurso colonial em Tintim no Congo, de Hergé.
Revista Scripta250608finalgrafica. pmd, v. 12, 2008, p. 57-79.
5
PINTO, Alberto Oliveira, 2008, p. 84.
214
Nossa África: ensino e pesquisa
215
ZACCHI, L. L. • A África e os africanos na literatura colonial infanto-juvenil
6
PINTO, Alberto Oliveira, 2008, p. 89.
7
M’BOKOLO, Elikia. África central: o tempo dos massacres. In: FERRO, Marc (Org.). O livro
negro do colonialismo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.
216
Nossa África: ensino e pesquisa
217
ZACCHI, L. L. • A África e os africanos na literatura colonial infanto-juvenil
9
BLANCHARD, Pascal et al. Zoo humains et exhibitions coloniales. 150 ans d’inventions de l’Autre.
Paris: La découverte, 2011, p. 10.
10
BLANCHARD, Pascal et al., 2011, p. 168.
218
Nossa África: ensino e pesquisa
11
PINTO, Alberto Oliveira, 2008, p. 84.
219
ZACCHI, L. L. • A África e os africanos na literatura colonial infanto-juvenil
13
HUNT, Nancy Rose. “Tintin and the interruptions of Congolese comics.” Images and Empires:
Visuality in Colonial and Postcolonial Africa. 2002, p. 93-96.
220
Nossa África: ensino e pesquisa
Referências
BLANCHARD, Pascal et al. Zoo humains et exhibitions coloniales. 150 ans d’inventions
de l’Autre. Paris: La découverte, 2011.
CORREA, S. M. S. A caça na África colonial e a questão da conservação de espécies ani-
mais. 2011. (Apresentação de Trabalho/Conferência ou palestra).
GIRARG, Eudes. Une relecture de Tintin au Congo. In: GIRARG, Eudes. Études,
Juillet, 2012.
HERGÉ. Tintin au Congo. Casterman, 1995.
HUNT, Nancy Rose. “Tintin and the interruptions of Congolese comics.” Images
and Empires: Visuality in Colonial and Postcolonial Africa. 2002, p. 90-123.
JABOUNE; PINCHON. Frimousset Directeur de Jardin Zoologique. 1933.
M’BOKOLO, Elikia. África central: o tempo dos massacres. In: FERRO, Marc
(Org.). O livro negro do colonialismo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.
PINTO, Alberto Oliveira. “A retórica do discurso colonial em Tintim no Congo, de
Hergé.” Revista Scripta250608finalgrafica. pmd 12. 2008, p. 57-79.
REIS FILHO, L. A África que Tintim viu: Metáforas da Superioridade Européia,
Estereótipos Raciais e Destruição das Culturas Nativas em uma Desventura Belga.
Estudos em Comunicação/Communication Studies , v. 6, p. 349-368, 2009.
REIS FILHO, L. O Imperialismo e a Representação do Congo em Tintim na Áfri-
ca. Revista eletrônica história em reflexão (UFGD), v. 2, p. 1-25, n. 11, 2008.
221
Caçadores de troféus, produtores de imagens:
fotografia e imaginário colonial
em Moçambique1
Ruben Souza2
Introdução
Na segunda metade do século XIX, as expedições de europeus pelo
continente africano se multiplicaram sobremaneira, como, no caso portu-
guês, as expedições de Hermenegildo Capelo, Roberto Ivens e Serpa Pin-
to.3 Tais relatos auxiliaram na composição de um imaginário metropolita-
no sobre o que seria o continente africano. Para dar um outro exemplo,
Joseph Conrad, em seu livro Coração das Trevas, constrói uma narrativa já
estudada da África em suas representações e alegorias.4 Ainda no século
XIX, haviam alguns residentes de Lourenço Marques que escreviam sobre
suas empreitadas, e Diocleciano Fernandes das Neves foi um dos que viveu
no atual território de Moçambique nas décadas precedentes a ocupação
colonial efetiva e relatou suas experiências relativas a uma atividade funda-
mental na porção oriental da África: a caça.5 Neves começa o seu Livro
Primeiro pontuando a situação dos que viviam em Lourenço Marques, por
volta de 1860, e da caótica situação em que se encontravam, devido as “cor-
1
O presente trabalho foi apresentado em formato de pôster na Primeira Jornada de Estudos em
História da África. no dia 3 de Junho de 2016, em uma versão mais objetiva, sob o título “Caça,
troféu e fotografia no imaginário colonial”.
2
Bolsista do Laboratório de Estudos em História da África (LEHAf), vinculado ao Departa-
mento de História da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail:
[email protected]
3
Capelo e Ivens publicaram seus relatos principalmente em De Benguella às terras de Iácca, de
1881, e De Angola à contra-costa, em 1886. A empreitada de Serpa Pinto foi publicada em 1881
em dois volumes, sob o título Como eu atravessei África.
4
Edward W. Said, em Cultura e Imperialismo, empreende um estudo da relação entre o imperialis-
mo formal e as manifestações literárias, que fornecem elementos para um imaginário metropo-
litano nem sempre verossímil, porém fundamental para entender o processo de assimilação do
projeto colonial, portanto, imperial.
5
NEVES, Diocleciano Fernandes das. Itinerário de uma viagem à caça dos elephantes. Lisboa: Typo-
graphia Universal, 1878.
222
Nossa África: ensino e pesquisa
6
NEVES, p. 3-4.
7
Segundo Gabriela dos Santos, o Reino de Gaza se mostrou um desafio, e uma força política
fundamental na região, revelando-se peça-chave também em diplomacias europeias em dispu-
ta na região, como Portugal e a Grã-Bretanha.
8
Alguns trabalhos fundamentais são produzidos analisando este processo de clandestinidade
em que os caçadores africanos foram colocados, na África Oriental em geral. Para o caso de
Moçambique, ver COELHO, Marcos Vinícius Santos Dias. A caça e os caçadores no sul de Moçam-
bique sob o domínio do colonialismo – c. 1895-1930, Campinas. Para a África Oriental Britânica
(atual Quênia), ver STEINHART, Edward I. Black poachers, white hunters: a social history of
hunting in colonial Kenya.
9
Relatório sobre o Regulamento de Caça. 16.06.1906. Arquivo Histórico de Moçambique. Cumpre
salientar que a colônia inglesa do Quénia serviu de base para a regulamentação do exercício de
caça em Moçambique. Considerada por muitos um paraíso de caça, tinha uma legislação tida
como eficiente para o exercício da prática comercial/esportiva. “Estas considerações tão verdadei-
ras, são aceitas por todos os países civilizados...”.
223
SOUZA, R. • Caçadores de troféus, produtores de imagens: fotografia e imaginário colonial...
O fetiche da encenação
Milhares de fotografias de caça circularam pelo império português
nas três primeiras décadas do século XX, na forma de álbuns fotográficos,
matérias em periódicos ilustrados, cartões postais e fotografias particulares
colecionadas em arquivos. O afã pela visualidade também compõe uma
perspectiva de transformação do continente africano, por intermédio do
colonialismo, no melhor estilo L’Afrique qui disparaît, a célebre coleção de
cartões-postais de Casimir Zagourski, fotógrafo que registrou aspectos do
Congo belga e adjacências, como Ruanda, Quênia, Tchad, etc.10 Nas foto-
grafias de caça publicadas nos Álbuns Fotográficos e Descritivos da Colónia de
Moçambique, de José dos Santos Rufino, nas matérias publicadas em perió-
dicos portugueses como Illustração Portugueza, e nas fotografias do Arquivo
Fotográfico da Companhia de Moçambique (companhia concessionária que
administrou a região de Manica e Sofala até a década de 1940), existe uma
cultura visual que permite inferir um imaginário colonial que condicionava
10
A série de postais com fotografias de Zagourski foi composta com o objetivo de congelar à
eternidade o exótico, o primevo, antes que o progresso da marcha civilizacional transformasse
a África em um continente “assimilado”.
224
Nossa África: ensino e pesquisa
11
LYNCH, Michael; WOOLGAR, Steve (Orgs.). Representation in scientific practice. Cambridge:
MIT Press, 1990.
225
SOUZA, R. • Caçadores de troféus, produtores de imagens: fotografia e imaginário colonial...
12
Roland Barthes, em A câmara clara, emprega os termos operator, spectrum e spectator para iden-
tificar os elementos presentes na fotografia, o fotógrafo, o fotografado e o espectador.
13
Linda Kalof e Amy Fitzgerald analisam a organização do troféu de caça dentro do ambiente
fotográfico. KALOF; FITZGERALD. Reading the trophy.
226
Nossa África: ensino e pesquisa
227
SOUZA, R. • Caçadores de troféus, produtores de imagens: fotografia e imaginário colonial...
Referências
BARTHES, Roland. A câmara clara. Notas sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1984.
CAPELO, Hermenegildo; IVENS, Roberto. De Benguella às terras de Iácca. Lisboa:
Imprensa Nacional, 1881.
COELHO, Marcos Vinícius Santos Dias. Maphisa & Sportsmen: a caça e os caçado-
res no sul de Moçambique sob o domínio do colonialismo – c. 1895-1930. Campi-
nas: [Tese de Doutorado], 2015.
CORREA, Sílvio M. de S. Caça e preservação da vida selvagem na África Colonial.
Esboços. Revista do Programa de Pós-Graduação em História da UFSC. Esboços.
Florianópolis, v. 18, n. 25, ago. 2011.
KALOF, Linda; FITZGERALD, Amy. Reading the trophy: exploring the display
of dead animals in hunting magazines. Visual Studies, v. 18, n. 2, 2003, p. 112-122.
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