21 Museus Colecoes e Patrimonios Narrativas Polifonicas

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MUSEUS, COLEÇÕES

E PATRIMÔNIOS:
NARRATIVAS POLIFÔNICAS
MINISTÉRIO OA CULTURA
INSTITUTO 00 PATRIMÓNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL
DEPARTAMENTO DE Museus E CENTROS CuLTURAIS

COORDENAÇÃO
PRESIDENTE DA REPÚBLICA
Maria Alzira Brum Lemos
Luiz Inácio Lula da Silva
MINISTRO DA CULTURA
CoNSELHO EDITORIAL
Gilberto Passos Gil Moreira
PRESIDENTE DO IPHAN Bertha K. Becker
Luiz Fernando de Almeida Candido Mendes
DIRETOR DE MusEus E CENTROs CuLTURAIS Cristovam Buarque
José do Nascimento Junior lgnacy Sachs
DIRETOR DE PATRIMÓNIO MATERIAL E FISCALIZAÇÃO Jurandir Freire Costa
Dai mo Vieira Filho
Ladislau Dowbor
DIRETORA DE PATRIMÓNIO IMATERIAL Pierre Salama
Márcia Genesia de Sant'Anna
DIRETORA DE PLANEJAMENTO EADMINISTRAÇÃO
EDITORA GARAMOND lrDA.
Maria Emília Nascimento dos Santos
Caixa Postal 16.230 Cep 22.222-970
PROCURADORA-CHEFE
Telefax: (21) 2504-9211
Lúcia Sampaio Alho
[email protected] .br
CooRDENADOR GERAL DE PROMOÇÃO oo PATRIMÓNIO CuLTURAL
Luiz Philippe Peres Torelly www.garamond.com .br

CooRDENADORA GERAL DE PESQUISA, DocuMENTAÇÃO E R EFER~NCIA


Lia Motta

M974
Museus, coleçOes e patrimónios : narrativas polifônicas I Regina Abreu,
Mário de Souza Chagas, Myrian Sepúlveda dos Santos [organizadores) .
- Rio de Janeiro: Garamond , MinCJIPHAN/ DEMU, 2007.
256p.- 16x23cm (Coleçâo Museu , memória e cidadania)

ISBN 97B-B5-7617-136-2
1. Património cultural • Proteção . I. Abreu, Regina . 11. Chagas, Mário de
Souza , 1956·. III. Santos , Myrian Sepúlveda dos . IV. Série.

07-42B9. coo 363.69


CDU 351 .B52
13.11.07 14.11.07 004296

Coleção Museu, Memória e Cidadania


Coordenação: José do Nascimento Junior e Mário de Souza Chagas

Mu se us, Co leções e Patrimóni os: Narrativas Polifô nicas


Organizadores: Regina Abreu, Mário de Souza Chagas
e Myrian Sepúlveda dos Santos
EDITO RAÇÃO
Claudia Maria Pinheiro Storino
A ss1sT~NCIA EDITORIAL
Tatiana Kraichete Martins
REVISÃO E( OPIOESQUE
Carmem Cacciacarro
PROJETO GRÁFICO
Marcia Mattos
DIAGRAMAÇÃO
Garamond
,..,
MUSEUS, COLEÇOES
E PATRIMÔNIOS:
NARRATIVAS POLIFÔNICAS

Organizadores: Regina Abreu,


Mário de Souza Chagas e
Myrian Sepúlveda dos Santos

colesão W C!J 0 [] C!J


MEMÓRIA E CIDADANIA
apResentação
Regina Abreu
Mário de Souza Chagas
Myrian Sepúlveda dos Santos

mÚLtipLaS VOZeS, múltiplas faces, múltiplos saberes, múl-


tiplos afetos e múltiplas ações: tudo isto está presente na antologia Mu-
seus, coleções e patrimônios: narrativas polifônicas.
Publicar esta seleta de algum modo é celebrar encontros que se de-
ram ao longo dos tempos, por meio de congressos, seminários, oficinas,
redes de discussões, grupos de trabalho e muito mais. As narrativas
polifônicas aqui anunciadas valorizam as trocas, intercâmbios, inter-
conexões e inter-relações entre pesquisadores, professores, estudantes
e interessados na matéria da memória e suas múltiplas faces na vida
social contemporânea.
Estão aqui acolhidas comunicações apresentadas em reuniões, gru- 1. Seminário realizado
pelo Ecomuseu da Ilha
pos de trabalho, seminários e congressos bastante distintos, tais como: Grande, por meio de
parceria firmada entre
2sa Reunião Brasileira de Antropologia {RBA), Goiânia {GO), 2006; Con- a Universidade do Es-
tado do Rio de Janeiro
gresso Internacional de Americanistas, Sevilha, 2006; Seminário Uni-
(UERJ) e o Departa-
versidade e Patrimônio, Ilha Grande {RJ), 20051 e 24a Reunião Brasileira mento de Museus
e Centros Culturais
de Antropologia, Recife (PE), 2004. 2 (Demu) do Instituto
do Patrimônio Históri·
Estão aqui também resultados de pesquisas de mestrado e doutorado coe Artístico Nacional
(lphan).
desenvolvidas no âmbito do Programa de Pós-graduação em Memória
2. Vale destacar as
Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), do contribuições de José
Reginaldo Santos
Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto Gonçalves que coor-
de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro denou o GT "Antropo-
logia dos Objetos" na
(UFRJ) e do Programa de Pós-Graduação em Ciêndas Sociais da Univer- 24'. RBA e de Manuel
Ferre1ra Lima Filho que
sidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). coordenou as ativida-
des do GT Permanente
Há ainda resultados de pesquisas desenvolvidas no âmbito de insti- de Patnmônto Cultural
tuições como o Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília; da 25'. RBA.
o Museu de Arqueologia e Etnologia e o Departamento de Antropologia,
ambos da Universidade de São Paulo (USP); a Universidade Católica de
Goiás (UCG); o Museu de Ciências Morfológicas da Universidade Federal
de Minas Gerais (UFMG); o Observatório de Museus e Centros Culturais
que congrega várias 'instituições; o Departamento de Antropologia do
Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (Portugal); a
Universidade de Siena (Itália) e o Goldsmiths College da Universidade
de Londres.
Um dos objetivos da publicação deste terceiro volume da coleção
3. A coleção Museu, Museu, Memória e Cidadania\ foi o de trazer para um público amplo uma
memória e cidadania
foi criada pelo Depar- amostra da produção de conhecimento num campo onde crescem as
tamento de Museus
e Centros Culturais.
pesquisas, a militância, o engajamento e as ações políticas.
O primeiro volume,
As narrativas aqui proferidas são polifónicas não apenas por se-
A escrita do passado
em museus históricos, rem diferentes as concepções de museus e de patrimónios que lhes in-
publicado em 2006, é
de autoria de Myrian formam, mas também por elas mesmas registrarem múltiplas visões
Sepúlveda dos Santos.
O segundo volume, de mundo e abarcarem diferentes olhares e abordagens profissionais
A antropologia dos
objetos, publicado em
e teóricas. Entre os autores que participam desta coletânea há antro-
2007, é de autoria de pólogos, cientistas políticos, sociólogos, arquitetos, educadores, bió-
José Reginaldo Santos
Gonçalves. logos, historiadores e museólogos. Alguns militam no campo dos mu-
seus e dos patrimónios há muitos anos, outros são recém-chegados;
alguns são brasileiros, outros estrangeiros; alguns são professores,
outros estudantes. Esta é a graça: investir numa espécie de miscige-
nação intelectual e sensível; estimular interconexões e intercâmbios
de idéias, saberes e afetos.
É isso o que esta coletânea representa: a expressão de uma rede de
pessoas cujos laços extrapolam as injunções institucionais e acadê-
micas e se constituem em laços de pensamento e amizade. Os organi-
zadores da coletânea há tempos, em parceria, trabalham em dezenas
de projetos, eventos e atividades e, por isso mesmo, já consolidaram
pesquisas em torno do tema dos museus, das memórias, das coleções
e dos patrimónios. Registre-se ainda que vários autores participam
de Grupos de Trabalho em património, tanto na Associação Brasilei-
ra de Antropologia (ABA), quanto na Associação Nacional de Pós-gra-
duação em Ciências Sociais (Anpocs) e na Associação Brasileira de
Museologia (ABM).
Por tudo isso, a coletânea Museus, coleções e patrimônios: narrativas
polifônicas chega em boa hora e marca um momento ritual de celebra-
ção, em que seriedade e consistência convivem com graça e leveza em
textos selecionados e organizados em torno de três grandes eixos: a
linguagem de poder dos museus; museus, patrimônios e diferenças culturais;
as cidades e o patrimônio cultural.
No primeiro eixo, os ensaios giram em torno da relação entre os
museus e a construção de linguagens, especialmente as linguagens com
grande potencial simbólico. O objetivo é explicitar questões relaciona-
das às políticas, às poéticas e às práticas de representação de que os
museus lançam mão, sugerindo que estas instituições estejam cada vez
mais abertas ao debate público e, portanto, a processos de reformula-
ção permanente e a projetas plurais de museus e de sociedades.
O segundo eixo evoca o tema das diferenças culturais tocando em
importantes desafios da contemporaneidade: como trabalhar com
a questão da alteridade nos museus e no contexto patrimonial? Para
onde apontam as políticas públicas na equação: museus-patrimônios-
diferenças culturais? Qual o papel dos museus e das instituições de
patrimônio enquanto espaços de mostras das diferenças culturais na
época da globalização? O que pode advir se os museus abdicam deste
papel? É possível pensar e praticar uma outra museologia?
Por fim, o terceiro eixo aborda a relação entre patrimônio e cidade.
Os estudos aqui apresentados revelam o objeto plural que as cidades
representam. Vistas dos centros ou das periferias, as cidades parecem
lutar contra o tempo, constituindo-se em permanentes embates entre
desenvolvimento e memória, entre progresso e preservação do patri-
mônio cultural. Todavia, do ponto de vista patrimonial, as cidades as-
semelham-se a itens de coleções plenas de simbolismos e significados.
Desvendá-las pode ser uma boa chave para a compreensão de nós mes-
mos, seres fragmentados no contemporâneo das teias, das redes e das
ruas de cidades reais, virtuais e imaginárias.
Entre os três eixos .há uma ligação sutil, à semelhança de um fio
que costura a relação entre os museus e as linguagens políticas e poé-
ticas, que entretece o's desafios do trabalho com a alteridade no campo
dos museus e do patrimônio e que, por fim, borda a relação entre pa-
trimônios e cidades.
Oxalá os leitores aqui se façam interlocutores, apropriem-se desse
rico manancial de pesquisa e pensamento e sobretudo deixem-se levar
e atiçar pela imaginação criadora que nos inspira a todos!
/

SUlll3RIO

II A LINGUAGEM DE PODER DOS MUSEUS

12 A linguagem de poder dos museus


Myrian Sepúlveda dos Santos e Mário de Souza Chagas

20 Universidades, museus e o desafio da educação, valorização


e preservação do patrimônio científico-cultural brasileiro
Maria das Graças Ribeiro

48 Os desafios da preservação da memória da ditadura no Brasil


Joana D'Arc Fernandes Ferraz

68 Os museus cariocas e seus visitantes: uma análise do perfil dos públicos


dos museus do Rio de janeiro e de Niterói
Luciana Sepúlveda Koptcke, Sibele Cazelli eJosé Matias de Lima

95 De armas do fetichismo a patrimônio cultural: as transformações do valor


museográfico do Candomblé em Salvador da Bahia no século XX
Roger Sansi-Roca

IIJ MUSEUS, PATRIMÓNIOS E DIFERENÇAS CULTURAIS

114 Museus, patrimônios e diferenças culturais


Regina Abreu

u6 Antropologia e museus: que tipo de diálogo?


Nélia Dias

138 Tal Antropologia, qual museu?


Regina Abreu

179 A tradução do objeto do "outro"


Tone Helena Pereira Couto

203 Museu dos Escravos, Museu da Abolição: o Museu do Negro


e a arte de colecionar para patrimoniar ·
Andréia Lúcia da Silva Paiva

229 O fetiche do patrimônio


Mariza Veloso
246 As estratégias indígenas de resgate do "patrimônio cultural" local como
meio de reconhecimento político: uma reflexão sobre o impacto das
pesquisas nas terras indígenas
Filippo Lenzi Grillini

262 Antropologia e museus: revitalizando o diálogo


José do Nascimento Junior

275 As CIDADES E O PATRIMÔNIO CULTURAL

276 As cidades e o patrimônio cultural


Vera Dodebei e Claudia Storino

283 Santana de Parnaíba: memória e cotidiano


José Guilherme Cantor Magnani

324 Patrimônio, identidades e metodologias de trabalho: um olhar


museológico sobre a Expedição São Paulo 450 Anos
Maria Cristina Oliveira Bruno

333 A cidade como objeto: ressonâncias patrimoniais


Manuel Ferreira Lima Filho

349 À procura da alma encantadora da cidade


Myrian Sepúlveda dos Santos

362 Demarcando fronteiras urbanas: a transformação de


moradias em patrimônio cultural
Roberta Sampaio Guimarães

381 N oTAS BIOGRÁFICAS


a LinGuaGem de podeR
dos museus
Myrian Sepúlveda do.s Santos
Mário de Souza Chagas

ensar os museus é inseri-los no mundo em que vivemos.


Há algumas características inerentes às instituições
denominadas museus, aos objetos que são expostos, ao
saber minucioso e cuidadoso do colecionador. Os museus, tal como as
universidades, estão hoje associados à cultura e ao conhecimento. Ain-
da assim, guardam certa especificidade. Não é por acaso que alguns dos
objetos expostos inspiram devoção, outros são amados e admirados e
outros mais, disputados a ferro e fogo. Por sua vez, os colecionadores são
especialistas cujo poder de distinguir, classificar, preservar e ordenar a
riqueza material que nos rodeia é indiscutível. Esses são apenas alguns
dos aspectos que se combinam a muitos outros. Neste pequeno espaço
de reflexão, nosso trabalho será o de refletir sobre a relação entre os
museus, suas coleções, seus especialistas e a política.
Os museus lidam com memórias coletivas, ou seja, com representa-
ções consolidadas coletivamente. Eles podem ser compreendidos como
instituições que têm sido cruciais na formação das identidades nacio-
nais. A relação da identidade com o passado ou com a memória desse
passado é complexa. Indivíduos constroem suas identidades mediante o
uso da memória, e esta é indissociável, por exemplo, da linguagem, que
é uma construção social que antecede a existência desses indivíduos. As
memórias coletivas são uma forma de linguagem, são construções cole-·
tivas que antecedem os indivíduos. Quando nascemos já nos deparamos
com o fato de pertencermos a uma determinada nação. Isso não quer

12 {museus, coLeções e patRim8mos: naRRativas pouf8mcas}


dizer que uma língua não seja modificada. Os indivíduos estão recons-
truindo suas identidades tanto pessoais como coletivas a todo momento.
É de ressaltar, portanto, que ao considerarmos os museus como institui-
ções que lidam com a construção da memória, não há como ignorarmos
que eles fazem parte da história, de um processo aberto cujo destino
está em aberto. A política de identidades se faz ao longo de um processo
cujo curso não é possível de ser predeterminado, o que no entanto não
nos impede de procurar compreendê-la e contextualizá-la.
Quando nos remetemos ao passado, lembramos que o já tão famoso
Museu de Alexandria surgiu associado ao estudo, à pesquisa científica,
ao ensino e à biblioteca mais importante da Antigüidade, fundada em 295
a.C. por Ptolomeu I, general do Exército de Alexandre Magno que, após
sua morte, se tornou governador do Egito e da Líbia. O museu, que tinha
um caráter religioso e era dedicado às musas, consolidou-se como uma
resposta à hegemonia anteriormente mantida por Atenas no campo das
artes e da cultura. já neste exemplo o museu se associava claramente ao
conhecimento e ao poder. O complexo ajudou a capital do reino egípcio,
Alexandria, a se legitimar como um dos centros de poder econômico,
político e cultural mais importantes da época. Ptolomeu teve especial
interesse em associar seu reino e dinastia ao conhecimento científico
e cultural erudito e sofisticado. As informações sobre a destruição do
complexo são até hoje desconhecidas pelos historiadores. Sabe-se ape-
nas que ele foi incendiado ou arrasado por inimigos. Do passado ao pre-
sente, saques e vandalismos sobre legados culturais por parte de reinos
e nações em disputa são denunciados reiteradamente. Os impérios são
legitimados por determinadas formas do saber, e a sua destruição re-
quer também a mudança de paradigmas de conhecimento.
Os museus que conhecemos hoje, embora associados por muitos às
grandes coleções da Antigüidade, não são tão antigos; foram criados a
partir dos grandes acontecimentos dos últimos séculos e têm elementos
que podem ser mais bem compreendidos quando pensados como parte
das sociedades modernas, que se constituíram após as grandes trans-
formações econômicas, sociais e políticas do século XVIII. Nesse con-

{mvman sepúLveda dos santos e máRJO de souza cHaGas} 13


texto, um aspecto fundamental a ser compreendido é a relação entre os
museus e a consolidação dos estados nacionais.
O Museu Britânico,. inaugurado em 1753, foi o primeiro museu pú-
blico, secular e nacional do mundo ocidental. A abertura das coleções
ao público pode ser compreendida como parte das grandes mudanças,
como a Revolução Industrial, a urbanização e a expansão do sistema
educacional. Logo após a Revolução Francesa, o Louvre, um palácio real,
foi transformado em museu, abrindo da mesma forma uma das coleções
de objetos de arte mais prestigiadas da antiga aristocracia do Ocidente
para todos os segmentos da população. No Brasil, o Museu Real, mais
tarde denominado Museu Nacional, foi criado em 1818.
O século XIX foi aquele em que as colônias americanas se tornaram
independentes de suas metrópoles européias. Os museus nacionais que
foram criados no Brasil, como nas demais nações americanas, foram
tentativas de legitimação desses novos estados nacionais tanto interna
quanto externamente.
Benedict Andersen, um dos grandes intérpretes da construção mo-
derna do nacionalismo, descreve as nações como comunidades imagi-
nárias. Para ele, todas as comunidades maiores que vilas, onde encon-
tros face a face são raros, são imaginadas. Na era moderna, o compro-
misso com a nação transcendeu em escopo e poder as demais lealdades
que o indivíduo mantinha ao longo da vida. Indivíduos cada vez mais
independentes, autocentrados, traçando trajetórias de vida múltiplas e
plurais, passam a se sentir unidos por imaginários coletivos mais am-
plos. Ele aponta, ainda, a unificação da linguagem e a convergência do
capitalismo e da tecnologia da imprensa como elementos fundamentais
1. Andersen, Bene- na constituição da nação moderna. 1
dict. lmagined Com-
munities. london: A história dos museus modernos está vinculada à constituição dos
Verso, 1996 (1 983).
estados nacionais, à democracia, ao capitalismo, à industrialização, ao
individualismo e à ordenação crescente do tempo e do espaço. À medida
que as instituições religiosas deixaram de ser as principais formulado-
ras da ordem natural e humana, outras instituições ganharam poder
e passaram a exercer a função de explicar a razão do mundo. O saber

14 {museus, coLeções e patRim8mos: naRRatiVas pouf8mcas)


científico passou a ser essencial não só no que diz respeito à origem das
espécies, mas também para ordenar os acontecimentos históricos. Nas
sociedades laicas, as crenças subsistem de forma diferenciada; a ação
humana, e não do poder divino, passa a ser a responsável pelo curso da
história e pela implementação da justiça.
Assim sendo, uma das grandes novidades dos museus modernos foi a
abertura de suas coleções, que antes se destinavam apenas a uma aristo-
cracia ilustrada, a grandes parcelas da população. A democracia foi insta-
lada por meio da participação popular e de políticas públicas. Como não
há um consenso sobre os elementos que a constituem, já que pode ser
compreendida a partir das leis do mercado ou de sua destruição, há no
momento atual um debate acirrado sobre a participação do Estado e do
mercado na gestão dos museus. 2 Diante do fortalecimento das práticas 2. Sobre a relação
entre Estado, mercado
liberais em diversas dimensões da vida contemporânea, instituições cul- e políticas culturais,
ver, entre outros,
turais, como os grandes museus, que foram criados como parte de políti- Ortiz, Renato. A mo-
derna tradição brasi-
cas de fortalecimento dos Estados nacionais, entraram em crise e foram
leira : cultura brasileira
substituídas por instituições diversificadas, voltadas para o atendimento e indústria cultural.
São Paulo: Brasiliense,
do público em seus múltiplos interesses. Essa mudança ocorreu em gran- 1988. García Cancli-
ni, Nestor. Culturas
de parte em razão da burocratização, da ineficiência e, principalmente híbridas: estrategias
para entrar y sal ir de la
na América Latina, da utilização indevida do público para o atendimento modernidad . Buenos
de interesses privados de uma elite predadora. O mercado ganhou força e Aires: Editorial Suda-
mericana, 1992.
passou a ser o principal regulador dos investimentos. Embora, nos países
mais ricos, ele tenha sido capaz de tornar os museus grandes centros de
conhecimento, consumo e lazer, há propostas diferenciadas de desenvol-
vimento nos países que se industrializaram em período posterior e que
continuam à margem das grandes inovações tecnológicas e dos lucros fi-
nanceiros. A retração do Estado e de suas políticas sociais tem recebido
forte oposição tanto em países mais pobres, como de setores menos privi-
legiados dos países mais ricos industrialmente. Em que medida os modelos
presentes nas poderosas democracias liberais serão capazes de resolver os
problemas de desigualdade social e pobreza que atingem a maior parte da
população mundial? As políticas públicas que se relacionam aos museus
não se separam das táticas e estratégias políticas de desenvolvimento.

{mvRian sepúLveda dos santos e máRIO d e souza cHaGas} 15


Portanto, a proposta dos estudos que vêm a seguir é árdua. Eles procu-
ram lidar com as memórias, imagens e identidades construídas, que são
sempre incompletas porque correspondem a uma multiplicidade de expe-
riências vividas por indivíduos e grupos sociais que não de encontram pa-
rados no tempo, mas·em contínua transformação. Além disso, procuram
perceber as tensões e disputas que resultam nas lembranças e esqueci-
mentos que estão presentes em políticas e instituições do patrimônio.
No Brasil, os grandes museus nacionais perceberam já há algum tem-
po a impossibilidade de contarem apenas com subsídios proporcionados
pelo Estado, o que os tornou mais sensíveis às demandas do mercado e
da inclusão social. Ainda assim, eles continuam a enfrentar problemas
relacionados às instituições públicas, que ainda convivem com a inefi-
ciência, a corrupção, o empreguismo e a dificuldade de tornar trans-
parente a utilização de verbas públicas. A diversificação das narrativas
identitárias, embora tenha alcançado um grande impulso após a década
de 1980, ainda é insipiente. Perspectivas mais plurais são fruto de uma
participação política efetiva na esfera pública, o que coincide com a for-
malização dos processos políticos existentes nos sistemas democráticos
atuais. Os museus se depararam com a multiplicidade e diversidade da
sociedade brasileira, reproduzindo muitas vezes discursos autoritários,
conservadores e pouco representativos. Políticas de preservação do pas-
sado, tradições e valores deveriam ser atividades de cunho democrático
e, por isso mesmo, abertas à contínua transformação e negociação de
seus significados.
Luciana Sepúlveda Koptcke, Sibele Cazelli e José Matias de Lima
apresentam os resultados da Pesquisa Perfil-Opinião 2005, realizada no
âmbito do Observatório de Museus e Centros Culturais com o intuito de
analisar o perfil dos públicos dos museus do Rio de Janeiro e de Niterói.
O estudo sobre o público dos museus, embora não seja uma novidade no
Brasil, vem ganhando força e se expandindo. Ele representa uma maior
sensibilidade em relação às demandas da sociedade, que não é mais vista
como um objeto estático. As narrativas atuais dos museus contemporâ-
neos estão sendo construídas a partir de um público múltiplo e diferen-

16 (museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas}


ciado, e não apenas com o objetivo de educar e formar um determinado
público, visto de forma una e indiferenciada.
Outra característica do mundo moderno e que também está intrin-
secamente relacionada aos museus diz respeito ao impacto das novas
tecnologias, principalmente aquelas voltadas para a comunicação e a
informática, em práticas e interações sociais. Há uma tendência a pen-
sarmos as tecnologias como um bem ou um mal. Assim, a técnica é pen-
sada como ferramenta que nos leva ao desenvolvimento ímpar ou como
estratégia responsável pela alienação crescente do homem. Precisamos,
entretanto, perceber que os fenômenos sociais são ambíguos, e que o
bem e o mal nem sempre são aspectos antagónicos. Nesse sentido, pode-
mos nos voltar para a aplicação de novas tecnologias nas práticas desen-
volvidas pelos museus, potencializando seus efeitos positivos de maior
comunicação e integração e procurando minimizar seus efeitos negati-
vos de homogeneização. A informatização do acervo e a divulgação cen-
tralizada por meio da mídia impressa e eletrônica são práticas que vêm
sendo incorporadas e que possibilitam maior acesso e democratização
de um património público. A formação de redes é hoje uma prática que
vem potencializando diversas iniciativas na esfera pública.
Em seu texto sobre museus universitários, Maria das Graças Ribeiro,
nos mostra a importância da constituição de redes, fundamental na su-
peração de deficiências de infra-estrutura. A autora apresenta a expe-
riência desenvolvida na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG),
com a criação da Rede de Museus e Espaços de Ciências e Tecnologia,
segundo ela um modelo real de convergência na diversidade. Através da
comunicação e ação conjunta, diversos espaços de ciências e tecnologia
da UFMG, apesar de possuírem características bem diferenciadas, con-
seguiram fortalecer objetivos comuns como o de produzir e divulgar o
conhecimento científico e tecnológico, revitalizar o ensino formal e não
formal, e priorizar a inclusão social e o exercício da cidadania.
Aspectos como inclusão social e cidadania estão longe de serem uni-
formes. A identidade nacional, enquanto memória ou imaginário coleti-
vo, reproduz um certo ideal de cidadão e uma certa visão de mundo. Os

{mvman sepútveda dos santos e máRIO de souza cHaGas) 17


museus, portanto, têm a difícil tarefa de apresentar para os brasileiros
imagens de quem eles são. Como vimos, as identidades construídas não
são representações simbólicas neutras. Que lugar o Brasil ocupa no ce-
nário global? O Brasil ao surgir foi compreendido como parte de um Oci-
dente precarizado, em constante atraso em relação aos países desenvol-
vidos. Ainda hoje essa é uma versão defendida por muitos. Na década de
1930, entretanto, o Estado fortaleceu a imagem do mestiço e das práticas
culturais regionais, transformando aspectos negativos em positivos. O
caráter ibérico e cordial pensado como sendo inerente à cultura brasi-
leira retirou da nação o peso do atraso. Em décadas recentes, no mundo
global e multicultural, novas identidades se fortalecem.
Em "De armas do fetichismo a patrimônio cultural: Transformações
do valor museográfico do Candomblé em Salvador da Bahia no século
XX", o antropólogo Roger Sansi-Roca analisa a transformação do valor
museográfico de objetos do candomblé em Salvador, Bahia, no século
XX. O candomblé é uma prática central na vida da cidade de Salvador,
considerada contemporaneamente como a capital natural da cultu-
ra afro-brasileira. Entretanto, nem sempre foi assim. Esse estudo nos
mostra como o valor museográfico dos objetos acompanha as trans-
formações sociais e formações de identidades coletivas. Os objetos do
candomblé fizeram parte, no século passado, do Museu de Medicina Le-
gal Estácio de Lima, do gabinete do Instituto Histórico e Geográfico da
Bahia e das coleções policiais. Eram considerados arsenais de feitiçaria;
manifestações de um saber atrasado que deveria ser reprimido e substi-
tuído pelo conhecimento médico; e até mesmo expressão de uma doen-
ça mental. Para o médico Nina Rodrigues, os negros, como raça inferior,
não deveriam ser sujeitos ao Código Penal como os brancos. Os objetos
apreendidos deveriam permanecer sob o controle de médicos e não da
polícia. Este quadro contrasta com os memoriais que, a partir dos anos
90, foram criados nas casas de candomblé mais aristocráticas de Sal-
vador. O Memorial de Mãe Menininha do Gantois mostra vestimentas,
móveis, fotos e objetos pessoais de Menininha, apresentada no lugar em
que morou, como personagem importante a ser celebrada.

18 {museus, coLeções e patRimÔmos: naRRatiVas poufômcas}


O trabalho de Sansi-Roca nos mostra que os objetos, independente-
mente do seu valor material, têm um valor sentimental para determi-
nadas comunidades e, à medida que estas comunidades ganham maior
prestígio em relação a outras, se valorizam. Os museus têm como função
organizar coleções de objetos. Por meio do investimento público e do co-
nhecimento de profissionais especializados, eles selecionam, preservam,
ordenam e expõem objetos ao público. Uma questão que se coloca para
os diretores e organizadores de museus é que essas instituições têm uma
relação de poder em relação ao "outro" que eles representam. Embora
seu poder não seja ilimitado, os museus oficiais são capazes de propor e
consolidar novos significados a partir de uma exposição de objetos.
Joana D'Arc Fernandes Ferraz, ao fazer da memória da ditadura mi-
litar seu objeto, traz à tona essas questões. A partir da pesquisa desen-
volvida, chegamos à conclusão de que a política oficial de preservação
da memória da ditadura no Brasil, através dos monumentos, comemo-
rações, coleções, arquivos e museus, revela uma precária inscrição dos
sujeitos envolvidos. Nas diversas disputas políticas existentes sobre o
passado, as mais recentes estão claramente mais suscetíveis às domina-
ções do presente.
Em suma, a tarefa dos museus está diretamente ligada à construção
de linguagens, memórias coletivas, símbolos para grupos e nações e, en-
quanto tal, torna-se contemporaneamente cada vez mais aberta ao deba-
te público. Quais são as políticas, poéticas e práticas relacionadas à repre-
sentação? A que interesses serve o ponto de vista da instituição que pro-
move a exposição? Estas são as questões do nosso tempo e para as quais
nem sempre temos a melhor resposta. O desafio a ser enfrentado parece
ser o da consideração cuidadosa das discrepâncias entre os interesses dos
idealizadores da exposição, os desejos daqueles que são representados e
as demandas do público em geral. O conjunto de trabalhos apresentados
nesta seção nos mostra que a história não é linear e que avanços e retro-
cessos podem ser esperados das práticas que são hoje desenvolvidas nos
museus. Cabe a nós a reformulação permanente dessa linguagem para
que ela melhor sirva ao mundo que almejamos construir.

{mvRian sepúLveda dos santos e máRio de souza CHaGas} 19


univeRsidades, museus e o
desafio da .educação, vaLORização
e pReseRvação do patRimÓnio
CientífiCO-CULtURaL BRaSILeiRO
Maria das Graças Ribeiro

Uma universidade estará sempre onde o nosso olhar,


cativado pela realidade a que pertencemos,
for capaz de infundir vida nova
e não se distrair da tarefa de tornar real o que,
devendo ser, é ainda mera promessa ...
(fonte desconhecida)

U NIVERSIDADE E SOCIEDADE

a s universidades brasileiras passam por um momento em


que a convergência de olhares reflete diferentes leituras,
expectativas, intenções e projeções, embora todos reconheçam sua pre-
sença indutora do uso do conhecimento como recurso transformador
do homem, da sociedade e do planeta.
A substituição do modelo hegemônico de construção do conheci-
mento por um modelo mais participativo, que leve em conta outros
saberes e outras formas de construí-los, revela as mudanças pelas quais
as universidades vêm passando nas últimas décadas. Aliada à produção,
a difusão do conhecimento aproxima as universidades da comunidade,
tornando a ciência e a cultura motivações comuns para a redução e
queda de velhos muros.

20 {museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas}


Quanto à sua função educativa, num mundo globalizado e num contex-
to nacional em que impera a diversidade cultural e a desigualdade social,
muitas das universidades brasileiras vêm ampliando sua atuação na cons-
trução de competências e consciências, buscando humanizar o conheci-
mento por meio da formação de novos profissionais, mais comprometidos
com a sociedade na qual estão inseridos. Nesse mesmo contexto educacio-
nal tem sido pensada a educação patrimonial, caminho capaz de sensibi-
lizar, de mudar o juízo de valor e incentivar a preservação do patrimônio
nacional, seja ele histórico, artístico, científico, tecnológico ou natural.
Entretanto, a extensão universitária, pelo grande salto quantitativo e
qualitativo dos últimos anos, tem sido reconhecida como uma das mais
importantes funções da universidade. Abrindo novas fronteiras, o "ex-
tensionismo" passou a representar a face integradora entre o ensino, a
pesquisa e a comunidade, com grande ampliação de horizontes tanto
para as universidades quanto para a sociedade.
A reflexão e o diálogo permanentes, a utilização de metodologias par-
ticipativas, o desenvolvimento de ações sinérgicas, a experimentação, o
intercâmbio entre saberes e a geração de novas formas de construção
de conhecimento são conquistas incontestáveis das universidades nas
últimas décadas. O desenvolvimento de ações educativas focalizando o
homem inserido no universo, a implementação de processos de forma-
ção/educação continuada, a concretização da interdisciplinaridade e a
ampliação do caráter interinstitucional de seus projetas, assim como a
busca coletiva de soluções para os problemas do cotidiano da comunida-
de, são também conquistas significativas.
Somam-se a elas o desenvolvimento da análise e da crítica e a rela-
ção dialógica com a sociedade, estabelecendo e/ou reforçando a con-
fiança mútua que tem levado a extensão a revelar uma nova face das
universidades brasileiras, que reconstroem sua identidade institucional
baseadas em sua função social: produzir conhecimento, socializá-lo e
contribuir para melhorar a qualidade de vida da população.
Entretanto, uma das maiores contribuições da extensão universitá-
ria em seu crescimento e expansão foi possibilitar a mudança das re-

{maRia das GRaças RIBeiRo} 21


lações entre universidade e sociedade, apontando caminhos para uma
trajetória de parceria e confiança mútuas.
Nesse contexto, o. papel social das universidades deixa de ter o
tom assistencialista/paternalista - que num dado momento foi útil
-para assumir seu'verdadeiro significado, ou seja, o de formar pro-
fissionais/cidadãos capazes de produzir e/ou utilizar o conhecimento
como principal ferramenta de desenvolvimento, respeitando o direito
a uma vida com qualidade para todos, num contexto de desenvolvi-
mento sustentável.
E assim, com portas, corações e mentes abertos, universidade e so-
ciedade reconhecem a importância, a necessidade e a urgência de cami-
nharem juntas e de aprenderem a construir esse novo caminho ...

MUSEUS UNIVERSITÁRIOS- PARCEIROS NA RELAÇÃO


UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Vencendo longas batalhas e emergindo das sombras da história com


metodologias inovadoras, linguagem atraente e segura, abordagens lú-
dicas e interativas, assim como múltiplas formas de comunicação, os
museus vêm contribuindo para a evolução do conhecimento e para o
rompimento de barreiras, repensando conceitos, renovando modelos
e ressignificando sua prática, tornando-se parceiros fundamentais no
cumprimento do papel científico-educativo-cultural das universidades
e assumindo cada vez mais, de forma consciente, planejada e eficaz, a
interface universidade e sociedade.
Os museus universitários, embora apresentem aspectos semelhan-
tes, detêm características que os diferenciam dos demais, inserindo-se
em um contexto transmuseal. A produção de conhecimento pelos museus
universitários, que além da difusão, permitem evidenciar o processo
de construção do saber, a formação profissional, refletida na interdisci-
plinaridade estrutural e funcional e a reflexão crítica, o debate e as ações
que promovem e/ou levam à compreensão das mudanças socioculturais
da sociedade contemporânea são alguns diferenciais que, por sua vez,

22 (museus, coteções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas}


aumentam sua responsabilidade social, reforçando o seu papel perante
as universidades e a sociedade, ao mesmo tempo em que os tornam cc-
responsáveis pelo desenvolvimento cultural, científico e tecnológico de
que o Brasil tanto precisa quanto vem se empenhando em implantar.
Dentre as ações afirmativas dos museus universitários, a articulação
entre ensino, pesquisa e extensão universitária vem sendo exercida por
muitos de forma tão integrada que os resultados se refletem na intera-
tividade experimentada entre os próprios setores e equipes de traba-
lho, na qualidade dos produtos e serviços gerados, além de induzirem
os órgãos de fomento a repensarem e ampliarem a forma de avaliação e
investimento em projetos oriundos desses museus.
A transdisciplinaridade observada em muitos deles representa um
avanço na forma de produzir e fazer interagir conhecimentos, transfor-
mando tais instituições em referência na produção de saberes.
Incorporar, interpretar e reproduzir a contemporaneidade por meio
de diferentes formas e linguagens também tem feito dos museus institui-
ções atuais, que refletem as bases conceituais sobre as quais estão alicer-
çadas. Apoiadas na expografia ou em outras formas de linguagem, abor-
dagens como materialidade, desmaterialidade e virtualidade são tratadas
com propriedade e naturalidade em museus universitários, que desper-
tam nos visitantes o interesse por novas formas de ver e sentir o mundo.
A utilização de cenários Web vem mostrando, de forma atraente e
cativante, que a tecnologia pode aproximar a cultura, a ciência e as ar-
tes de diferentes tipos de público - principalmente do público jovem -,
muitos deles desmotivados, não preparados ou impossibilitados de aces-
sá-las presencialmente.
Ao longo das últimas décadas, as pesquisas e reflexões teóricas, alia-
das à prática museal, têm contribuído para a evolução conceituai refie-
tida hoje em nossos museus universitários, muitos deles empenhados na
busca de novas formas de tratamento para a memória! o patrimônio, a
história. Com diferentes tipologias e múltiplos enfoques, esses museus
ocupam cada vez mais espaço e ganham visibilidade, à medida que se
reconstroem dentro e fora das universidades.

{maRia das GRaças RIBeiRo} 23


Utilizando metodologias que incorporam e incentivam o diálogo
aberto com o público, os museus universitários assumiram, ao longo dos
últimos anos, um importante papel na educação não formal. Da postura
inicial de apenas "disponibilizar" conteúdos de história, ciência e cul-
tura para escolas do sistema formal de ensino, os museus lentamente
se transformaram, recriaram a linguagem expográfica, ampliaram a
comunicação e as trocas com o público, abriram novas fontes de inves-
tigação, inventaram novas formas de construção do saber e aprenderam
a interagir com a comunidade, passando a atuar com e não apenas para
ela. Por tudo isso, e pela mediação humana exercida pelas apaixonadas
equipes de profissionais e monitores dos museus, o público espontâneo
vem, de forma lenta mas crescente, elegendo os museus como locais
onde o conhecimento e a informação são também para ele!
Camadas da população, distantes das universidades e ainda distantes
dos museus de ciência e cultura, têm buscado eventos promovidos ou dos
quais participam os museus, passando a representar uma nova demanda,
a de cidadãos ávidos por conhecimento, um público que se desinibe len-
tamente, apropriando-se de um novo conhecimento enquanto aguarda
o "próximo evento". Daí o crescimento do número e da abrangência de
eventos locais, regionais e nacionais, como a Semana Nacional de Ciência
e Tecnologia, que a cada ano atinge pontos mais distantes do território
nacional. Assim, por intermédio de eventos que estimulam a itinerân-
cia programada, os museus universitários, principalmente, começam a
ir onde o público está. A Semana Nacional dos Museus, com participação
crescente a cada ano, vem mobilizando mais e mais público e levando os
museus a se articularem e a ocuparem mais espaço na comunidade.
De sua interação mais ampla com o público, de sua inserção na socie-
dade, da compreensão e participação na solução de problemas da comu-
nidade, os museus universitários vêm exercendo importante papel na
inclusão social e na geração de oportunidades de acesso ao conhecimento
para um número maior de pessoas e na inclusão de pessoas com neces-
sidades educacionais especiais às atividades e programas que desenvol-
vem. Dessa forma, além de ampliar sua prática, geram novos modelos

24 {museus, coteções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas)


de cc-construção de conhecimento, ao estabelecerem parcerias com ci-
dadãos que apresentam alguma forma de limitação, embora não sejam
menos capazes que outros.
Com o olhar focalizado na divulgação de conhecimento, mais espe-
cificamente do conhecimento científico e tecnológico (nossa área mais
próxima), poder-se-ia dizer que quase todos os museus de ciências e
tecnologia são universitários e praticamente todos são difusores de co-
nhecimento, buscando utilizar metodologias e linguagens compatíveis
com suas especificidades. No entanto, tem sido cada vez mais evidente
que aqueles que desenvolvem atividades de pesquisa, principalmente os
que de alguma forma associam as pesquisas às ações museológicas, têm
maiores possibilidades de aproximar o público dos métodos e processos
de produção do conhecimento científico e tecnológico, desmistificando
a ciência e esvaziando seu caráter ilusório e mítico, ainda presente em
muitos setores da sociedade.
No entanto, por mais otimistas que sejamos, se levarmos em conta
os nossos 180 milhões de habitantes, reconhecemos que, em relação à
educação científica e à popularização da ciência em nosso país, estamos
apenas iniciando um dos maiores desafios do Brasil no século XXI, e que
para vencê-lo serão necessárias a parceria e a contribuição eficaz das
universidades, dos museus e de toda a sociedade civil organizada.

POTENCIALIDADES X REALIDADE DOS MUSEUS


UNIVERSITÁRIOS BRASILEIROS

Um número significativo de museus universitários desempenha hoje


em nosso país um importante papel integrador entre a universidade e a
sociedade, contribuindo para a construção e a comunicação do conheci-
mento, assim como para o cumprimento da responsabilidade social das
universidades que os abrigam. Eles colhem os frutos de decisões, plane-
jamento e investimentos de longo prazo, que fizeram destas instituições
museais, centros de excelência, modelos referenciais tanto para o nosso
quanto para outros países.

{maRia das GRaças RIBeiRo} 25


Entretanto, "nem com tantos sonhadores em suas equipes" os museus
universitários brasileiros estão isentos de problemas. Grande número
desses museus, carent~ de recursos para fazer avançar suas propostas e
desenvolver suas potencialidades, vivenda uma realidade bastante di-
ferente daquela de muitos de seus pares. Outros mantêm ricos acervos,
das mais diversas fontes e significados, nem sempre tratados e preser-
vados adequadamente; alguns dispõem de espaços privilegiados para o
desenvolvimento de múltiplas atividades envolvendo o público interno
e externo à universidade, sem terem ainda como organizá-los e utilizá-
los corretamente; outros tantos contam com um quadro tão pequeno
de profissionais que, embora comprometidos e dispostos a transformar
tais espaços estáticos em centros dinâmicos de pesquisa, educação e di-
fusão científico-cultural, em locais de intercâmbio e interatividade com
a comunidade, lutam ainda para definir por onde começar.
Ricas ações educativas são desenvolvidas em museus, dentro de pro-
gramas, projetas ou como ati vidades isoladas cujo alcance e impacto dos
resultados extrapolam suas tímidas iniciativas. De um lado esses mu-
seus têm à frente grandes demandas reprimidas de público e, de outro,
a escassez de recursos para explorar suas potencialidades.
O que falta a tantos museus para cumprirem sua missão? Quais são
seus principais entraves? Em pesquisas iniciadas nos últimos anos,
temos nos surpreendido com as respostas, tão precisas, consistentes
e lúcidas, de seus dirigentes e equipes. A grande maioria dos profis-
sionais questionados tem conhecimento das potencialidades a serem
exploradas, da riqueza patrimonial que abrigam, dos problemas e so-
luções para seus espaços museais e do que lhes falta para implementar
suas propostas.
A inexistência de políticas para os museus universitários, com suas
características e especificidades, suas diferentes vinculações político-
administrativas com as próprias universidades, seu quadro deficitário
de pessoal e insuficiência de programas de capacitação das equipes atu-
antes, são alguns dos problemas apontados - quase sempre os mesmos
em diferentes museus, universidades e regiões brasileiras.

26 !museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas}


Entretanto, o maior problema, e que afeta quase todos os museus
universitários brasileiros, é a falta de recursos, que desencadeia uma sé-
rie de conseqüências, como numa reação em cascata: quadro insuficien-
te de profissionais, acarretando sobrecarga de trabalho para os demais;
impossibilidade de planejamento a médio e longo prazos, dificultando o
desenvolvimento de muitos projetos; inadequação de espaços para di-
ferentes funções; falta de um tratamento correto do acervo; dificulda-
des no planejamento e na organização de exposições e reserva técnica;
tratamento inadequado da informação; falta de planejamento de ações
integradas de pesquisa, educação e comunicação; falta de capacitação
do pessoal; falta de planejamento e execução de avaliação do trabalho
de interação com o público, dentre outras.
Assim apresentada, parece aterradora a constatação de tantos proble-
mas. Mas na relação custo-benefício, o que há para ser feito é tão menor
do que o já construído! O alcance social, assim como os resultados a se-
rem alcançados serão quantitativa e qualitativamente tão significativos,
que a falta de investimento só pode ser decorrente do desconhecimento do
patrimônio e das potencialidades dos museus e/ou centros universitários de
ciência e cultura por aqueles que poderiam/deveriam ser seus parceiros.
Esperança e trabalho são expressões que traduzem o momento da mu-
seologia universitária brasileira, ainda um tanto órfã - ou abandonada
- diante de um quadro nacional que começa a mostrar resultados de
esforço, investimento e empenho do Ministério da Cultura, através do
IPHAN, do Ministério da Ciência e Tecnologia, de órgãos estaduais de
apoio, de ONGs e de várias empresas privadas, reforçando a luta antes
solitária de seus profissionais.

ÜS MUSEUS UNIVERSITÁRIOS CRIAM FORMAS


DE ATUAR JUNTOS

A partir de encontros e debates, reflexões e avaliações de seus pon-


tos de convergência, mas sobretudo de sua responsabilidade em rela-
ção ao patrimônio científico, tecnológico e cultural que abrigam, bem

{maRia das GRaças RIBeiRo} 27


como da consciência da falta de uma política de tratamento, investi-
mento e utilização desse acervo, profissionais da área, comprometidos
com a solução para muitos dos problemas enfrentados, passaram a bus-
car alternativas para atuarem em conjunto, de forma inclusiva, otimi-
zando tempo e recursos, implementando ações e inovações. E algumas
delas apresentam resultados que vêm incentivando cada vez mais ins-
tituições a adotarem tais modelos.

Atuação em rede
Focalizando especialmente os museus de ciências e tecnologia, cons-
tata-se que, com uma rica linguagem museográfica e diferentes corren-
tes metodológicas, esses museus vêm contribuindo de forma eficaz para
a educação científica formal e não formal, interagindo com diferentes
tipos de público, representados pela comunidade científica, por univer-
sitários e profissionais de diferentes áreas e pela comunidade em geral.
Além disso, e de modo especial, têm interagido com o público escolar,
sobretudo professores e estudantes de ensino fundamental e médio,
contribuindo para ressignificar o ensino de ciências na escola.
Mas apesar da amplitude e do alcance de suas ações, assim como de
suas potencialidades, os museus universitários - como as universida-
des que os abrigam - enfrentam problemas e limitações. Ao longo dos
últimos anos, esses museus vêm refletindo e avaliando sua atuação e
lutando pela implementação de novos modelos de interação, amplian-
do objetivos e metas. Uma das ações mais promissoras tem sido a atu-
ação em rede.
Diferentes modelos teóricos vêm sendo utilizados para embasar tal
trabalho, dentre eles modelos biológicos, como as inter-relações celula-
res (as interneuronais principalmente) e o modelo sistêmico, interativo
e de cooperação mútua baseado na formação dos organismos. Todos
eles são modelos integradores, indutores de inter-relações, que expres-
sam bem a intencionalidade do trabalho em rede na prática - descen-
tralizado, aberto, transversal e interativo. Desde as redes de comuni-
cação, de cooperação, troca de experiências, construção e difusão de

28 {museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas}


conhecimento, os modelos de rede têm sido adotados com sucesso por
diferentes instituições, setores e áreas, com abrangência local, regio-
nal, nacional e internacional.
Embora outras universidades e instituições brasileiras estejam
adotando o trabalho em rede em diferentes setores, o exemplo apre-
sentado a seguir focaliza a experiência desenvolvida na Universidade
Federal de Minas Gerais, com a criação da Rede de Museus e Espaços de
Ciências e Tecnologia, um modelo real de convergência na diversidade
iniciado em 2001.
Os espaços de ciências e tecnologia que compõem esta rede, apesar
de suas características, trajetórias, acervos, propostas museológicas,
estruturas administrativas próprias, têm em comum a produção e di-
vulgação do conhecimento científico e tecnológico, sua forte atuação na
revitalização do ensino formal de ciências/biologia, na educação cien-
tífica (não formal) da comunidade, além da responsabilidade e do com-
promisso com a inclusão social e o exercício da cidadania.
A Rede de Museus UFMG foi criada com o objetivo de rediscutir o
papel desses museus, centros e espaços de ciências e tecnologia no pla-
no acadêmico da universidade; somar esforços e otimizar recursos na
busca de soluções para problemas comuns; implementar ações de re-
cuperação emergencial de áreas estratégicas desses espaços, visando
melhorar as condições de atendimento ao público externo; investir em
melhorias de suas infra-estruturas, na conservação e proposição de di-
retrizes para socialização de seus acervos, objetivando o cumprimento
de suas atividades-fins; ampliar o intercâmbio com o público, princi-
palmente no sentido de integrar projetos que atendam a estudantes
de ensino fundamental e médio e que capacitem docentes da rede pú-
blica de ensino; definir estratégias e planejar ações conjuntas visando
a melhoria da prática acadêmica da UFMG; implementar atividades de
formação e/ou qualificação profissional; sistematizar a produção de
material informativo, didático e de divulgação das atividades/ações
dos espaços integrantes da rede; ampliar as ações da rede, dentre elas
a integração de outros museus e a criação de uma rede virtual; agir de

(maRia das GRaças RIBeiRo} 29


forma solidária) preservando a identidade, as características e a missão
de cada espaço componente.
Uma das principais metas da Rede, entretanto, é a proposição de
políticas que estimulem e promovam o desenvolvimento da museolo-
gia universitária; ein âmbito local, regional e nacional, especialmente
voltadas para a educação não formal, a difusão científica e a educa-
ção patrimonial, cada espaço museal focalizando prioritariamente sua
área de atuação, sem deixar de interagir com instituições parceiras,
ampliando o seu alcance.
A organização de diferentes espaços museais para atuarem em rede
de comunicação/colaboração/trocas entre si, com outras instituições
parceiras e afins, com a UFMG e com a sociedade foi um grande desafio,
só vencido com a participação e o empenho de todos. Para a implanta-
ção do programa Rede de Museus UFMG, a metodologia adotada privi-
legiou o estabelecimento de metas e estratégias, como a proposição de
etapas, seqüenciais e/ou paralelas, iniciadas pela discussão, pelo diag-
nóstico e pelo planejamento do atendimento às demandas represadas
dos espaços integrantes.
O estabelecimento de prioridades e ações emergenciais, a forma-
ção de uma equipe multidisciplinar de trabalho e o apoio institucional
da Universidade embasaram muitas outras ações da Rede. O programa
de bolsas acadêmicas para monitores e estagiários, tanto para a Rede
como para cada espaço que a integra, inclusive a manutenção de um
número fixo de monitores para cada um dos espaços museais, com in-
tegralização de créditos acadêmicos para estes estudantes, representou
uma importante e estimuladora conquista, que colocou em evidência o
modelo de extensão iniciado na UFMG naquele momento. Além disso, a
implantação de um programa de divulgação da Rede de Museus e seus
integrantes, o oferecimento de cursos, palestras, oficinas e seminários
de capacitação para funcionários, monitores, estagiários e pesquisado-
res dos museus, a utilização de uma metodologia inovadora (semipre-
sencial) em curso de formação de mediadores e técnicos, a participação
dos componentes da Rede em eventos museológicos locais, regionais,

30 {museus, coLeções e patRrm8mos: naRRatrvas pouf8mcas}


nacionais e internacionais, a legitimação da Rede de Museus como foro
de discussão, proposição e implementação de ações referentes ao con-
junto ou a cada um de seus espaços integrantes, o levantamento de de-
mandas e a disponibilização de assessoria/consultaria especializada aos
diferentes espaços, para elaboração e encaminhamento de projetes, pla-
nejamento e solução de problemas e a ação solidária na solução de pro-
blemas gerais ou específicos de cada integrante foram passos decisivos
para a consolidação da Rede, que lentamente foi se tornando referência
para ações semelhantes em outras universidades.
Para a criação da Rede de Museus e Espaços de Ciências e Tecnolo-
gia da UFMG foram fundamentais o apoio da Pró-Reitoria de Extensão
-primeira vinculação institucional da Rede- e os recursos financeiros
da Fundação de Desenvolvimento da Pesquisa da UFMG (FUNDEP), que
permitiram sua oficialização e consolidação, cuja implantação teve
início a partir de um investimento na melhoria da infra-estrutura
dos espaços museais integrantes. A Rede tem se mantido desde então
como um fórum de discussão para os diversos espaços integrantes e
como centro de articulação com a Universidade, com outras institui-
ções e com a sociedade.
Dentre os principais resultados alcançados pela Rede em seus pri-
meiros anos de atuação, merecem destaque o maior aperte de recursos
conquistados, uma vez que diversos projetes foram aprovados por ór-
gãos de fomento não habituais em se tratando de museus, como CNPq,
MCT, BNDES, FAPEMIG, dentre outros, o que possibilitou cumprir gran-
de parte dos objetivos propostos pelo Programa-Rede. E um dos primei-
ros passos nessa direção foi a implantação do programa de identidade
visual, meta visando dar visibilidade à Rede. O curso semipresencial de
formação de monitores e funcionários possibilitou a capacitação de pes-
soal, inclusive de muitas outras instituições museais de Belo Horizonte,
melhorando a qualidade da mediação no diálogo entre museu e público,
entre universidade e sociedade.
O debate permanente sobre a guarda, preservação e uso de seus
acervos (musealizados ou não), a consciência sobre a importância da

(maRia das GRaças RIBeiRO} 31


memória científica e cultural que abrigam, bem como o compromisso
com a educação patrimonial passaram a representar focos de atuação
e de elaboração de propostas comuns pelos diferentes espaços museais
que compõem a Rede,·refletindo amadurecimento e compromisso com o
patrimônio científico e cultural da UFMG.
A retomada de antigos e o desenvolvimento de novos projetas de
pesquisa, bem como a aproximação entre investigação científica e ativi-
dades museológicas, a promoção de seminários, palestras, oficinas para
pesquisadores, técnicos e monitores, num trabalho de educação conti-
nuada e a promoção e participação da Rede em eventos locais, regionais,
nacionais e internacionais de popularização e divulgação científica re-
presentaram passos fundamentais na direção de novas e mais seguras
conquistas, além de garantirem maior visibilidade tanto das pesquisas,
quanto das ações educativas e de inclusão social desenvolvidas pela
Rede de Museus ou por seus espaços individualmente.
A criação de um boletim eletrônico para agilizar a comunicação
efetiva entre os diferentes espaços componentes da Rede contribuiu
efetivamente para estreitar laços e facilitar o seu intercâmbio, experi-
ência a ser expandida.
Outra conquista que merece ser destacada entre os resultados positi-
vos alcançados e que representou um forte incentivo à continuidade foi
o estabelecimento da cooperação interinstitucional com outros espaços
museais brasileiros, viabilizando trocas de idéias, de experiências, de
informações, de materiais, de vagas para estágio e visitas técnicas.
A instalação da sede administrativa da Rede, mesmo que provisoria-
mente na unidade acadêmica de seu coordenador, veio agilizar e poten-
cializar ações que beneficiaram a todos e facilitaram as comunicações
interna e externamente.
O lançamento do catálogo da Rede de Museus e Espaços de Ciências
e Tecnologia da UFMG, a primeira de uma série de publicações, facilitou
a comunicação e a divulgação dos participantes e concluiu uma etapa
avaliada como vitoriosa para o Programa Rede, que também comemo-
rou o aumento significativo do número de visitantes/ano atendidos em

32 {museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas)


seus museus e espaços componentes, aspecto considerado pelas univer-
sidades como indicador de qualidade.
Também foi fundamental para a consolidação e continuidade do Pro-
grama Rede a abertura da UFMG para que políticas institucionais volta-
das para os museus universitários fossem propostas, discutidas e esti-
muladas. As ações integradas das instituições museais que compõem a
Rede têm gerado um grande impacto científico, tecnológico, social e cul-
tural, inclusive na formação de crianças e jovens, na escolha profissional
de muitos estudantes e no estímulo a pesquisadores e professores.
A Rede de Museus e Espaços de Ciências e Tecnologia da UFMG vem
se tornando, ao longo dos últimos anos, uma referência para outros
programas e sistemas de gestão museológica em rede, tendo em vis-
ta que a UFMG foi a primeira instituição federal de ensino superior a
efetivar um sistema de rede entre seus espaços museais e de produção
científica e cultural. Sua implantação fortaleceu sobremaneira os seus
espaços integrantes, estimulando-os na busca de novos caminhos, de
qualidade, de inovação.
Dentro desse contexto inovador encontram-se propostas desafiado-
ras, como a aproximação entre ciência e cultura, com a ampliação da
Rede, a criação da Praça da Ciência, que fará parte do complexo cultural
da Praça da Liberdade, projeto do Governo de Minas Gerais em parceria
com diferentes instituições de ciência e cultura de Belo Horizonte, den-
tre elas a UFMG, o desenvolvimento da proposta de criação de cursos de
museologia na UFMG (graduação e pós-graduação), além do desenvol-
vimento do projeto Ciência na Praça, em parceria com a Secretaria de
Estado de Ciência, Tecnologia e Ensino Superior.
Apesar das muitas dificuldades a serem superadas tanto pela Rede
quanto pelos museus e espaços de ciências e tecnologia que a iniciaram,
é importante destacar que, embora sejam espaços museais diferentes
e com características próprias - como o Centro de Memória da Enge-
nharia, o Centro de Memória da Medicina, o Centro de Referência em
Cartografia Histórica, o Laboratório de História e Educação em Saúde, o
Museu de Ciências Morfológicas, o Museu de História Natural e Jardim

{maRia das GRaças RIBeiRo} 33


Botânico, a Estação Ecológica e o Observatório Astronômico Frei Rosário
-, eles criaram entre si e com a Rede um mecanismo de retroalimenta-
ção que os impulsiona ao crescimento, à busca de qualidade em todas
as suas ações e ao estabelecimento de novas metas a serem alcançadas.
O crescimento da Rede estimula o crescimento individual dos espaços
componentes, cujo desenvolvimento também se reflete no crescimento
da Rede.
E esse modelo foi fundamental para estimular a adesão de novos
espaços e a ampliação da Rede, atualmente Rede de Museus e Espaços
de Ciência e Cultura da UFMG, um projeto de aproximação real entre
ciência e cultura.
Também estão a caminho - e com mais força - antigos projetas,
como a autonomia político-administrativa da Rede e a criação de cur-
sos de museologia na UFMG.
E por estarem, a Rede e as instituições científico-culturais que a
constituem, afinadas com as discussões locais, regionais, nacionais e in-
ternacionais acerca da estrutura e das funções dos museus e centros de
ciência e cultura, crescem a busca de recursos e o compromisso desses
espaços como agentes de promoção social e da cidadania.
E mesmo reconhecendo que ainda existem muitas questões a se-
rem resolvidas, pode-se afirmar que este é um momento ímpar para a
Rede no que diz respeito ao pensamento e estabelecimento de ações que
dêem aos nossos centros e museus de ciência e cultura condições de per-
seguir os objetivos que propõem: produzir e difundir o conhecimento
científico, tecnológico e cultural, reforçando a importância de sua ação
transformadora da sociedade.

A criação do Fórum Permanente de Museus Universitários


Os museus universitários não fogem da grande diversidade estru-
tural, funcional e administrativa que caracteriza o universo museal
brasileiro. No entanto, seus diferentes vínculos com as universidades
têm gerado quadros de desconfortável desigualdade: alguns museus
crescem e se consolidam como instituições de referência na produção e

34 {museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas)


difusão de conhecimento, na contribuição para a melhoria da educação
formal e não formal, na inclusão e promoção social. Outros, entretanto,
vinculados a departamentos ou sem qualquer vínculo institucional for-
mal, embora sejam instituições ativas em suas respectivas áreas de co-
nhecimento e com grandes potencialidades de expansão, convivem com
dificuldades crônicas, como a falta de dotação orçamentária, geradora
de outras tantas limitações. O acesso e a comunicação com esses museus
e/ou centros de ciência e cultura são dificultados muitas vezes por sua
falta de visibilidade interna, evidenciando a inexistência de uma políti-
ca universitária (e nacional) para esses espaços.
Nas últimas décadas, muitos profissionais envidaram esforços para
atrair novos olhares para a museologia universitária brasileira e desper-
tar o interesse e a vontade política de garantir a esses museus oportu-
nidades de crescimento e desenvolvimento, possibilitando-lhes o salto
de qualidade que podem empreender. Refletindo tal empenho, foi rea-
lizado na Universidade Federal de Goiás (Goiânia), em 1992, o I Encon-
tro Nacional de Museus Universitários, reunindo profissionais de quase
todos os estados e de inúmeras universidades brasileiras para discutir
questões relacionadas ao tema principal "O museu universitário hoje".
Os debates revelaram, já àquela época, a preocupação com os museus
universitários e sua missão institucional.
E revelando a consciência dos participantes sobre a importância do
evento para a museologia brasileira, o documento final fez recomenda-
ções especiais referentes à elaboração do perfil dos museus universitá-
rios; à importância da itinerância de exposições entre esses museus; à
celebração de convênios com cursos de museologia, para o desenvolvi-
mento de programas periódicos de capacitação; à busca de incentivos
em programas de financiamento para desenvolvimento de pesquisa nos
museus universitários; à promoção de seminári()S entre esses museus e
os cursos de museologia existentes no País, dentre outras.
E a partir do desejo dos profissionais presentes ou representados
no evento, empenhados em manter a troca de experiências, estimu-
lar a inovação no campo da museologia e implantar novas idéias e an-

{maRia das GRaças RIBeiRo] 35


tigos ideais, foi criado o Fórum Permanente de Museus Universitários
(FPMU). Entretanto, o falecimento acidental de seu primeiro presidente
eleito representou o início de uma série de dificuldades à implantação e
condução do Fórum, apesar da colaboração de muitos profissionais com-
prometidos com a sua continuidade. Ao longo desses anos, embora vá-
rias reuniões tenham sido realizadas, os encontros nacionais ocorreram
sem a periodicidade regular a que inicialmente se havia proposto, uma
vez que as dificuldades financeiras e a falta de estrutura administrati-
va compatível com as necessidades e demandas do Fórum não o permi-
tiram. Entretanto, tais encontros se tornaram momentos especiais de
discussão, reflexão, estímulo e tomada de decisões.
De forma simplificada, o II Encontro de Museus Universitários foi rea-
lizado em São Paulo em 1997, durante a I Semana de Museus da USP. Tendo
como tema central"Os museus universitários e suas principais questões",
os debates giraram em torno de problemas concretos que afetavam os
museus universitários brasileiros. Foram ressaltadas pelos participantes
a importância de se expandir as discussões sobre a realidade institucional
desses museus e a necessidade de ampliar o seu contato com a sociedade,
de estabelecer um ambiente de mais otimismo e esperança, alimentado
pelo intercâmbio entre os diferentes museus universitários, de se pensar
na capacitação do pessoal que atua nesses museus e na urgência de se
estabelecer uma estrutura mínima, capaz de garantir a sobrevivência do
FPMU. Mas, apesar das inúmeras tentativas, os obstáculos permanece-
ram, refletindo a dificuldade de acesso e o quadro de desmobilização que
imperava entre os museus universitários brasileiros naquele momento.
O III Encontro Nacional de Museus Universitários promovido pelo
FPMU foi realizado em Natal (RN), em 2001, tendo como tema principal
"Museus: desafios do milênio". Foram debatidos nesse Encontro a per-
cepção dos museus universitários como instâncias de debate e reflexão
sobre a sua realidade, os museus e sua prática no País e na universidade
brasileira, as ações políticas e estratégicas para os museus universitá-
rios e para as próprias universidades, a importância das questões de-
batidas nos encontros nacionais de museus, a ampliação da interação

36 {museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas}


entre os museus universitários e a comunidade museológica nacional e
internacional, a sociedade em geral e a universidade em particular.
Neste Encontro foram discutidos ainda e retratados em documento,
temas como: o caráter educativo dos museus; seu potencial para gerar, do-
cumentar e comunicar os processos e produtos materiais e imateriais da
natureza e da atividade humana; o papel fundamental dos museus como
geradores de conhecimento; sua importância na geração e articulação de
ações que contribuam para o desenvolvimento integral das sociedades; a
relevância da atuação desses museus em prol da melhoria da qualidade
de vida das populações, especialmente nos países em desenvolvimento.
A importância dos museus universitários como instâncias de elabo-
ração, reflexão e interpretação do trabalho realizado pelas universida-
des nas áreas de ensino, pesquisa e extensão foi enfaticamente discuti-
da, assim como suas potencialidades como centros de pesquisas multi,
inter e transdisciplinares. A ampliação de divisas e a relevância econô-
mica dos museus para as universidades foram vistas como conseqüên-
cia natural de sua capacidade geradora de recursos por intermédio de
produtos e serviços de alta qualidade.
Além disso, apontou-se para a importância que os museus universi-
tários poderão vir a ter, como elementos de mediação não formal entre
a universidade brasileira e a sociedade civil, especialmente no que tan-
ge à construção da imagem pública das universidades. No entanto, ape-
sar da riqueza dos debates, das reflexões e propostas geradas durante
o Encontro, os obstáculos à continuidade da mobilização dos museus
universitários são recorrentes, relacionados principalmente à falta de
estímulo das próprias universidades, às dificuldades de comunicação e
a fatores econômicos.
Encontros e reuniões esporádicas, discussões de temas gerais ou pon-
tuais têm sido promovidos pelo FPMU, alimentando o debate, estimulan-
do iniciativas, propondo e promovendo intercâmbio, ações afirmativas e
integradoras entre museus universitários dos diferentes estados brasilei-
ros, da América Latina, Caribe e Comunidade Européia. Em reunião rea-
lizada durante a V Semana de Museus da USP, em 2005, foram discutidos

{maRia das GRaças RIBeiRo} 37


temas como a criação e a proposta de estatuto da Associação dos Mu-
seus Universitários Brasileiros, como apoiadora do FPMU, com estrutura
administrativa que possibilite ao Fórum caminhar sem a recorrência de
tantas dificuldades e empecilhos. Também foram debatidas formas mais
efetivas (presencial, semipresencial) de ampliar a comunicação entre os
museus universitários, principalmente aqueles de difícil acesso. Outros
temas foram discutidos, como a proposta de organização do próximo En-
contro Nacional, a ser realizado em Belo Horizonte no próximo ano.
O ano de 2006 trouxe momentos e atividades significativas para o
FPMU, como a promoção do IV Encontro de Museus Universitários. Den-
tre os diferentes temas propostos, a definição do tema central- "Museus
universitários: ciência, cultura e promoção social" -levou em conta a luta
do governo brasileiro, das universidades e de outras instituições científi-
co-culturais do setor empresarial e de toda a sociedade civil organizada,
que reconhecem a necessidade e urgência de priorizar a educação e o
conhecimento como principais vetares do desenvolvimento nacional. E
também traduziu o anseio da Comissão Organizadora e de grande parte
da comunidade museológica nacional, diante da possibilidade de discu-
tir, refletir e propor estratégias para o cumprimento da missão dos mu-
seus universitários, de contribuir para o desenvolvimento, a promoção
social e da cidadania, colaborando, de forma concreta e eficaz, para que
nosso país possa cumprir suas metas de desenvolvimento sustentável e
de construção de uma sociedade mais justa e democrática.
A programação desenvolvida, a integração alcançada, o apoio dos
órgãos de fomento, em especial da UFMG, somados aos resultados dos
trabalhos apresentados, revelaram um momento privilegiado de encon-
tro, debates e reflexões, de troca de idéias e experiências, mas sobretu-
do de enriquecimento e ampliação de divisas, uma vez que estiveram
presentes museus universitários vinculados a instituições públicas ou
privadas das regiões Norte, Nordeste, Sul, Sudeste e Centro-Oeste brasi-
leiras, da América Latina e Europa.
A linguagem expográfica utilizada para expor resultados de pesqui-
sa em desenvolvimento sobre os museus universitários evidenciou a me-

38 (museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas}


todologia inclusiva adotada, possibilitando o conhecimento do trabalho,
das potencialidades e dos problemas enfrentados por esses museus nas
diferentes regiões brasileiras. Também foram expostas a Mostra Minas
de Museus e da Rede de Museus e Espaços de Ciências e Tecnologia da
UFMG, apresentando um pouco da museologia de Minas e dos Espaços
de Ciências da UFMG, respectivamente. A exposição itinerante "O ho-
mem do Xingó", além de mostrar resultados de pesquisas arqueológicas
desenvolvidas pelo Museu de Arqueologia do Xingó/Sergipe, contribuiu
para ampliar a integração inter-regional.
Os resultados deste IV Encontro de Museus Universitários, conside-
rados um marco para a museologia universitária brasileira, estão sendo
preparados para publicação pelo FPMU, que se fortaleceu como foro de
debates, articulações, encontros, reflexões e proposição de novas políti-
cas, mantendo dentre seus objetivos o de continuar promovendo a inter-
locução desses museus com seus pares, com os dirigentes políticos, com as
universidades onde estão inseridos e com a sociedade, buscando, através
do diálogo, viabilizar novos caminhos de crescimento em todos os níveis.
Reconhecendo o momento privilegiado para a museologia brasileira,
o FPMU reforçou que, embora os museus universitários ainda estejam
presos a limites institucionais, também se apóia na Política Nacional de
Museus, implementada com sucesso crescente pelo Ministério da Cul-
tura nos últimos cinco anos. Apontou, no entanto, como fundamental a
participação e a contribuição de todos, por meio de ações convergentes,
cooperativas e solidárias. Afinal, todos sabemos que a união faz a força,
mas é preciso transformá-las em qualidade!

EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: NOVO DESAFIO PARA MUSEUS


E CENTROS DE CIÊNCIA E CULTURA

Todos nós que lutamos e nos empenhamos na construção de um


modelo mais justo e solidário de sociedade, na qual o acesso ao conhe-
cimento não seja mais privilégio ou concessão, mas direito de todos, sa-
bemos que só a educação - em todos os níveis e com múltiplos enfoques

{maRia das GRaças RJBeiRo} 39


- será capaz de operar tal transformação. Nesse contexto, a educação
patrimonial assume um papel especial, levando-se em conta o conceito
moderno e ampliado de patrimônio.
Relacionado a monumentos históricos no século XIX, o termo veio
adquirindo novas representações simbólicas, passando a se referir a
patrimônios histórico e cultural, a fragmentos e artefatos, naturais ou
não, a registres de experiências sociais, representações da memória e
da identidade dos povos. Assim, a nova visão de patrimônio, tangível e
intangível, veio despertando também novas formas de convívio com o
patrimônio cultural brasileiro em toda a sua diversidade.
Tendo se estruturado como disciplina nas universidades por volta
dos anos 30 do século XX, a Ecologia trouxe uma visão sistêmica do
mundo, uma nova forma de pensar e de se referir ao patrimônio natu-
ral. O conceito de patrimônio ambiental, principalmente a sua relação
com a qualidade de vida, implantou, nas últimas décadas do século
XX, a idéia de preservação, cujo alcance ultrapassou as referências de
espaço e tempo.
Incorporando a responsabilidade pela preservação ambiental, ga-
nharam importância e reconhecimento os museus de história natural,
estações ecológicas, ecomuseus. As pesquisas e a educação ambiental
implementadas por essas instituições causaram grande impacto social.
Além disso, incentivaram uma nova relação do homem com a natureza,
visando a reversão de impactos negativos, ao mostrarem que antes de
investir na criação de novas espécies por meio da biotecnologia, é fun-
damental aprender a preservar e a conviver com as espécies existentes.
A ecologia humana veio mostrar a singularidade da espécie huma-
na, abordada em um contexto mais amplo - de sociedade plural. E vem
apontando para a importância e a urgência de se desenvolver padrões
sustentáveis de produção e consumo, assumindo o homem a responsabi-
lidade pela preservação e continuidade da evolução no planeta.
Na década de 90 do século XX e início do século XXI, um novo con-
ceito de patrimônio foi colocado e vem revelando a capacidade huma-
na de intervir na vida dos seres que habitam nosso planeta e mudar a

40 {museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas)


sua história. Desvendando o patrimônio genético, desvelam-se pouco a
pouco os mistérios da natureza, desnudando o homem e expondo a sua
mais profunda intimidade. E o que aponta tal avanço científico senão a
necessidade urgente da educação e da formação ética, capazes de levar
o cidadão a usar as novas descobertas apenas para a melhoria da quali-
dade de vida, a sua e a do planeta?
Pequeno e corajoso passo nessa área vem ousando também o Mu-
seu de Ciências Morfológicas da UFMG: criado para atender à demanda
da comunidade, na busca de conhecimento da estrutura e do funciona-
mento do organismo humano, o Museu vem, por meio de um trabalho
de difusão científica e educação continuada, sensibilizando e conscien-
tízando o público sobre a importância da saúde e da vida, nossos prin-
cipais patrimônios. E tanto as exposições (locais e itinerantes) do MCM,
quanto os seus projetas, são dirigidos à pesquisa e à educação para a
saúde e para a vida com qualidade.
Computando resultados quantitativa e qualitativamente surpreen-
dentes, aquela equipe profissional vem desconstruindo mitos, como o de
que a natureza a ser preservada está fora/distante do homem, que, con-
seqüentemente, não reconhece o sentido dessa preservação. Incentivan-
do o despertar para a consciência de si mesmo, o MCM vem mostrando
o quanto é fundamental que o homem se sinta parte da natureza a ser
preservada, que conheça, valorize, respeite e se aproprie de seu próprio
corpo, como patrimônio material necessário à preservação da vida. Só
assim assumirá responsabilidade por si mesmo, deixando de cobrar de
outros as condições básicas para a promoção de sua própria saúde. Tam-
bém é necessário lembrar que o patrimônio humano não se restringe ao
biológico, mas inclui o histórico, social, cultural.
Este museu universitário, que tem o maior atendimento ao público
por metro quadrado no País, tem deixado de atender, por falta de espa-
ço físico e infra-estrutura, uma pequena multidão, dando a conhecer a
crescente demanda da sociedade pelo tema.
Pensamos que a principal contribuição dos museus universitários
nesse momento seja a atuação ampla e irrestrita na ressignificação de

{maRia das GRaças RIBeiRO} 41


conceitos e valores: tendo a vida como centro, é preciso adotar uma
abordagem ecológica da cultura, na qual as relações sociais e a relação
homem-ambiente revelem novos valores, atitudes e comportamentos
de indivíduos e grupos.
Ao nos referirmos, portanto, à educação patrimonial, estamos nos re-
portando a um novo contexto e a um processo mais amplo, contínuo e
multicultural, capaz de abranger toda a nossa diversidade patrimonial. E
quando abordamos a parceria dos museus universitários nesse processo,
estamos revelando o conhecimento de suas potencialidades, reafirman-
do nossa confiança em sua capacidade transformadora (apoiados pelas
universidades) e reconhecendo o seu profundo compromisso social.
O desafio maior é, portanto, equipá-los e deixá-los agir!

Dos SONHOS ÀS SOLUÇÕES DE MÉDIO E LONGO PRAZO

Focalizando a educação patrimonial em nosso país hoje, embora haja


muito ainda por fazer, muitos passos têm sido dados nessa direção. No
entanto, inúmeras ações estão sendo planejadas para curto, médio e
longo prazo, visando alavancar o processo em âmbito local, regional, es-
tadual e nacional, numa ação em cadeia que se retroalimente. São ações
ainda lentas, mas continuadas, que levarão à formação de uma nova cul-
tura em relação ao patrimônio.
Um passo fundamental, entretanto, é o diálogo com a comunidade,
a compatibilização entre seus interesses e as possibilidades das univer-
sidades. O estabelecimento da parceria exige uma relação de confiança
com clareza de objetivos e metas.
Muitas universidades já estão presentes em determinadas regiões/
comunidades, onde desenvolvem um rico trabalho de pesquisa. No en-
tanto, continuam distantes da comunidade, de seus problemas reais, de
suas demandas, gerando muitas vezes indiferença ou rejeição à postura
hegemônica da universidade em relação ao conhecimento, uma vez que
ele pode ser buscado em outras fontes, acadêmicas ou não. O momento é
de diálogo, interatividade, troca.

42 {museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufé\mcas}


Alguns museus universitários já se encontram nesse estágio: junto
da comunidade, elaboram diagnóstico de risco do patrimônio local, de
diferentes naturezas, propondo programas de cc-participação na con-
servação, educação para o conhecimento, valorização, preservação e
divulgação do patrimônio comunitário.
A ampliação desse modelo poderia ser feita por meio de uma força-
tarefa, em que cada museu em sua área de atuação cumpriria sua missão
de sensibilizar, tornar conhecido o valor e trabalhar em parceria com
as comunidades. E isso, com o concurso de uma ação interministerial,
propiciaria a vinda de recursos de diversas fontes, tornando possível um
movimento nacional, mesmo num país de dimensões continentais. Um
exemplo bem-sucedido de integração nacional em torno de um progra-
ma, com resultados concretos e impacto positivo, é a Semana Nacional
de Ciência e Tecnologia, coordenada pelo Ministério da Ciência e Tec-
nologia, que se tornou um evento capaz de mobilizar milhões de bra-
sileiros. Esse evento é financiado com recursos públicos, mas também
pela iniciativa privada e pelo Terceiro Setor, numa clara demonstração
da importância da intersetorialidade no financiamento de eventos de
interesse da sociedade.
Várias ações mobilizadoras, coordenadas pelo IPHAN, têm repre-
sentado impulsos extraordinários, motivando iniciativas nessa direção,
como: desconto no imposto de renda para empresas que investissem
em educação patrimonial (participação do Ministério da Fazenda); pro-
gramas nas universidades premiando monografias, dissertações e teses
sobre o tema; bolsas especiais para estudantes com projetas de educa-
ção patrimonial (participação do MEC); incentivo à divulgação cientí-
fica relacionada ao patrimônio nacional (participação do MCT, que já
vem ocorrendo); "feiras de ciências", conhecimento e valorização do
patrimônio municipal (participação das prefeituras, do Ministério das
Cidades e do Meio Ambiente) e estadual (participação das Secretarias de
Cultura, de Educação, Superintendências de Museus das Secretarias de
Estado da Cultura e Superintendências Regionais do IPHAN); educação
para a saúde e para a vida com qualidade (participação das universida-

(maRia das GRaças RIBeiRO} 43


des, dos Ministérios da Saúde e Previdência Social); a família como pa-
trimônio social (Ministério da Integração Social); incentivo à formação
de profissionais da área; oferta de cursos semipresenciais de educação
patrimonial, além de outras iniciativas de efeito multiplicador.
Estas são algumàs propostas para discussão e reflexão. Este mara-
vilhoso projeto tornar-se-á referência nacional e internacional sobre a
ação transformadora de um espaço/comunidade por intermédio de um
museu universitário.

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{maRia das GRaças RIBeiRo] 47


os desafios da pReseRvação da
memÓRia da ditaduRa no BRaSIL
Joana D'Arc Fernan~es Ferraz

La memoria es producto de todas las historias, de nuestros ancestros,


tradicíones, ritos, cultura, de una vida en común, de un sentido de identidad
que nos mantiene vinculados socialmente y de un norte más o menos en
común ai cual apuntar.
Nelson Caucoto

1. Entre eles citamos


Elizabeth Jelin,
Manuel Antonio
Garretón, Ludmila
S egundo Maurice Halbwachs (2004, p. 71), "a história não é todo o
passado, mas também não é tudo aquilo que resta do passado".
Ao lado da história escrita há uma história que é viva, composta de diver-
sas memórias, que se perpetuam através do tempo. Complementando a
da Silva Catela,
Alain Touraine, concepção de história de Halbwachs e valorizando a capacidade dos gru-
entre outros.
pos de se locomoverem no espaço e no tempo, Walter Benjamin (1994) lo-
2. Ver Ferraz, Joana
D' Are Fernandes. caliza a história entre o passado e o futuro, fluindo de um lado para outro.
"As memórias politicas
da ditadura militar A memória, também, como fonte da história, se move para frente e para
do Brasil: as disputas
entre o passado e o
trás, constantemente ressignificada à luz das demandas do presente.
futuro", in: Seminário
da Linha de Pesquisa
Muitos estudiosos do tema da memória política da ditadura militar
Memória e Patrimô· na América Latina argumentam que este é o momento de acertar as
nio, em junho
de 2006. contas com o passado, 1 de olhar as falsificações, os esquecimentos e os

48 {museus, coLeções e patRimÔmos: n aRRativas poufômcas}


silêncios que fizeram a nossa história. Por isso, a História serve para nos 3. Temos, então,
a Praça Stuart Angel,
incomodar e nos interrogar sobre os absurdos do passado. a Praça Carlos
lamarca, a Praça
É nesse contexto que devemos questionar a atual política oficial de Herzog, e outras.

preservação da memória da ditadura no Brasil, através dos monumentos, 4. No imaginário


brasileiro, o dia 1°
comemorações, coleções, arquivos, museus, leis e decretos. Essa política de abril é o "Dia da
Mentira" . Como o
de preservação, tal como vem sendo estabelecida hoje pelos veículos ofi-
golpe de Estado foi na
ciais, revela uma precária inscrição dos sujeitos envolvidos. Assim como madrugada do dia
31 de Março, esta
há grande dificuldade no arquivamento dos documentos desse período. data é cercada de
polêmica e ironia .
Os arquivos do período da ditadura dependem muito mais de ações in- Os opositores do
regime ironicamente
dividuais do que de uma política governamental séria de preservação e dizem que o Golpe foi
arquivamentos. Isso fica claro quando verificamos as diferenças entre o no dia 1° deabril, os
defensores dizem que
Arquivo Edgard Leuenrothh (na UNICAMP), por exemplo, e os arquivos foi em 31 de março.
Consideramos que ele
do DOPS custodiados no Arquivo do Estado do Rio de Janeiro (APERJ). Da ocorreu no dia 1° de
abril, porque as tropas
mesma forma, não há um movimento sério, por parte da ação estatal, do General Mourão
Filho se dirigiram para
de criação de um monumento em memória dos mortos e desaparecidos
o Rio de Janeiro na
políticos. 2 Uma ressalva que deve ser feita sobre esse assunto foi quan- madrugada do dia 31
de março, e em 1° de
do, em 1989, o Grupo Tortura Nunca Mais - R] foi convidado pelo então abril chegaram ao Rio,
onde tiveram apoio
prefeito Marcelo Alencar para nomear ruas e praças na Zona Oeste com do General Amaury
Kruel, do 11 Exército
os nomes de pessoas que combateram a ditadura. 3 Mas essa iniciativa foi e da Vila Militar.
bastante modesta, e hoje nem sequer os moradores sabem quem foram 5. Há um aprofunda-
mento deste tema no
aqueles sujeitos que dão nomes às suas ruas. artigo de Carvalho,
No que se refere às comemorações, o 31 de março ou o primeiro de Alessandra y Catela,
Ludmila da Silva,
abriV dia do Golpe Militar, é cercado de manifestações antagônicas. En- "31 de marzo de
1964 en Brasil:
quanto grupos militares de direita o festejam como a vitória da ordem memorias deshilan-
chadas". in: Jelin,
contra a baderna, e o chamam de "revolução democrática", os grupos Elizabeth (comp.).
opositores a execram como a vitória do terror contra uma sociedade Las comemoracíones:
las disputas en las
mais justa, e denominam de golpe de Estado. Como toda memória, que fechas "in-felices·.
Espana: Siglo XXI,
se constrói a partir das demandas do presente e do futuro, o discurso 2002 .

sobre o golpe vem mudando de significado 5 durante esses quarenta anos. 6. Disponível em
httpJ/WWw.ternuma.
As diferentes configurações políticas e econômic~s acirram as disputas com .br/bsb23 5.htm.

e
e levantam outras memórias. Desde 1997, esta data não mais comemo- Acessado em
9 nov. 2007.

rada publicamente nos círculos militares, mas ainda está presente no


site de um grupo de militares de direita. 6

{Joana d'aRc feRnandes feRRaz} 49


Carvalho e Catela (2002, p. 230) assinalam que em 1987 os milita-
res do Rio de janeiro fizeram uma grande festa na sede da Polícia do
Exército, local onde funcionou o DOI-CODI (Destacamento de Operações
de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna), lugar em que
diversas pessoas foram presas, torturadas e mortas na ditadura. Nessa
7. Esta medalha era festa pública, eles entregaram a Medalha do Pacificador/ uma das mais
entregue sempre
no dia 31 de março, importantes condecorações militares, a todos os que colaboraram com
em comemoração
ao aniversário
a ditadura durante seus vinte anos de existência. Nesse mesmo dia, in-
da denominada
pelos militares
tegrantes do Grupo Tortura Nunca Mais, vestidos de preto, fizeram um
de "Revolução protesto no local e decidiram que também fariam uma Medalha para
democrática" .
homenagear as pessoas ou instituições ligadas à defesa dos direitos hu-
8. Compreendemos
o conceito de trauma manos no mundo, na data de aniversário do Golpe, dia P de abril.
como o resultado da
passagem por uma vi - Embora o Estado se comporte como definidor do que pode e deve ser
vência sem experimen-
tá -la, sem ser capaz de preservado, irrompem, na sociedade civil, movimentos de resistência
integrá-la emocional
ou mentalmente, con-
que põem em xeque a memória oficial e levantam discussões impor-
forme assinala Geofrey tantes na esfera pública. Essas discussões funcionam como marcos de
Hartman, inferindo
sobre o conceito de pressão para que o Poder judiciário seja levado a tomar decisões mais
trauma em Freud
(2000, p. 222). justas em relação aos agredidos pela ditadura militar. justiça e memória
complementam-se na medida em que, para a superação do trauma, é
necessária a afirmação de ambas.
O objetivo da preservação da memória política da ditadura mili-
tar do Brasil deve ser, primeiramente, a de superação do trauma 8 que
ainda aflige indivíduos e grupos afetados pelas atrocidades do esta-
do ditatorial. Um passo importante para essa superação é a reparação
moral e jurídica.
Segundo Elizabeth Lira (2004, p. 75):
Lo que l/amamos memoria es el resultado de diferentes sistemas que dependem de diferentes
estructuras cerebrales ai servicio de la sobrevi vencia. Por ello, la mayor parte de esas fun -
ciones tienen que ver con el presente y el futuro y no con el pasado, al revés de lo que parece
entenderse automáticamente cuando mencionamos/a palabra "memoria". Diversos estudios
seíialan, adem ás, que gracias a la memoria es posible el desarrollo de la consciencia del indi-
viduo respecto ai mundo en que vive y de su noción de pertencia social.(...) E/sentido de una
memoria concebida en fun ción dei presente y el futuro, permite recuperar e/significado de

so {museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas po ufômcas)


las diversas formas de sobrevivi r en ese pasado penoso o traumatico ocurrido en un contexto
historico y social determinado.
O processo de redemocratização latino-americano foi um dos fato-
res que colaboraram para uma releitura da memória do período ditato-
rial recente. A partir da década de 1990, inicia-se, em diferentes fóruns
sociais, um questionamento sobre a consolidação das democracias, par-
ticularmente no que se refere à sua extensão para o interior das ins-
tituições. Este é o momento em que as sociedades latino-americanas,
que passaram pelas ditaduras militares recentes, argumentam que não
é possível seguir rumo à democracia sem corrigir os erros do passado.
Segundo argumenta Elizabethjelin (2001, pp. 1-2):
Estas cuestones están apareciendo en el plano intitucional y en distintas instancias y niveles
dei Estado: el Ejecutivo, e/ aparato judicial, las legislaturas nacionales y provinciales, las
comisiones especiales, las Fuerzas Armadas y policiales. (...) El regreso de esas noticias a
las primeras páginas ocurre después de algunos afias de silencio institucional, de intentos
([a/lidos por lo que parece) de construir un futuro democratico sin mirar ai pasado.
Embora, no plano societal, já tenham irrompido, desde a década de
1980, diversas frentes de luta contra a ditadura e com a bandeira dare-
paração moral e jurídica, essas reivindicações tiveram mais espaço nos
meios de comunicação a partir da década de 1990. Muitos grupos orga-
nizados (no Brasil, o Grupo Tortura Nunca Mais; na Argentina, As Mães
da Praça de Maio, entre outros) obtiveram mais legitimidade, exigindo o
reconhecimento oficial da morte ou do desaparecimento e a conseqüen-
te reparação jurídica e moral para as vítimas.
Considerando suas diferenças, poderíamos argumentar que, em
maior ou menor grau, países como Argentina, Brasil, Chile e Uruguai
conseguiram alguns avanços em relação às demandas referentes à repa-
ração jurídica e moral. As questões mais polêmicas referem-se:
1) à abertura dos arquivos secretos da ditadura, que riephum dos países
citados ainda conseguiu;
2) à reparação moral, que inclui o julgamento dos torturadores. Os ou-
tros países citados já conseguiram, com exceção do Brasil;
3) à reparação jurídica, que inclui a indenização para o indivíduo (se ele

(Joana d'aRc feRnandes feRRaz} 51


ainda estiver vivo) e para seus descentes, já foi conseguida por muitos
aqui no Brasil e nos outros países referidos;
4) ao apoio psicológico ao indivíduo e seus familiares, que já está bem
estruturado no Chile ·e na Argentina. No Brasil e no Uruguai caminha de
forma lenta. NO entànto, em todos os países, são muitas vezes grupos e or-
ganizações não estatais que dão apoio psicológico às vítimas da tortura;
5) e, finalmente, ao apoio à reconstrução da vida no plano profissional,
que ainda não existe em nenhum país. As pessoas reconstroem suas vi-
das profissionais sozinhas ou com a ajuda de amigos e parentes.

Outra questão também bastante polêmica nos quatro países citados, .


e que se relaciona diretamente à luta pela punição dos responsáveis, re-
fere-se à Lei de Anistia. Feita propositalmente para permitir uma dupla
leitura, em muitas situações esta lei acaba prejudicando mais que aju-
dando. A Argentina conseguiu a sua anulação, e nos outros países ainda
9. Retornaremos a há uma luta muito grande para que ela também seja anulada. 9
este assunto no final
do artigo. Quanto Embora a memória seja um campo aberto de debates e confrontos,
ao caso brasileiro,
ver artigo de Helio
poderíamos separar as memórias propositalmente esquecidas e silen-
Bicudo, "Revisitando
ciadas das memórias expostas ao público, que trazem o discurso oficial.
a Lei de Anistia",
in: Jornal do Grupo Interessa-nos neste artigo pensar, em primeiro lugar, sobre os significa-
Tortura Nunca Mais
- RJ, ano 19- n. 54, dos do esquecimento, do silêncio10 e do trauma na construção da memó-
setembro/2005.
ria. Em seguida, centraremos nossa análise nas disputas e nos consensos
10. Quando falamos
de silêncio, não esta- quanto à preservação da memória da ditadura brasileira. Finalmente,
mos nos referindo ao
silêncio das vítimas
iremos nos debruçar na análise da forma como as memórias da ditadura
diante do efeito do
trauma do sofrimento
brasileira foram socialmente construídas.
que viveram no regi-
me militar. Estamos
falando do si lêncio ESQUECIMENTO, SILÊNCIO E TRAUMA
que se impôs sobre
essas vftimas a fim de
que elas não pudes-
sem falar do ocorrido.
Esquecimento, silêncio e memória estão imbricados. Quando fala-
mos em esquecimento e silêncio, não estamos nos referindo à reação das
vítimas diante do efeito do trauma que viveram no regime militar, mas
ao esquecimento e ao silêncio politicamente articulados para produzi-
rem nas gerações seguintes o esquecimento e o silêncio sobre as arbitra-

52 {museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas}


riedades do regime ditatorial que permanecem até hoje. Toda memória
revela o que não pode ser esquecido e esquece ou sufoca o que não pode
ser revelado; daí, não haver dúvida de que toda memória é seletiva e de
que essa seleção está relacionada ao uso político que fazemos dela.
Esquecimento e silêncio, embora pareçam iguais, não são. Quando
a sociedade esquece fatos vividos, por exemplo, quando estes não são
renovados nas comemorações, nos lutos, nos monumentos e símbo-
los, não deixa para as gerações seguintes o conhecimento sobre o que
aconteceu. De forma diferente, quando há silêncio, embora não haja
fala sobre o assunto, há um incômodo, um mal-estar. Os grupos silen-
ciados estão potencialmente prontos a falar, e de vez em quando um
escapole uma fala polêmica.
Nessa situação, há conhecimento sobre o assunto, embora limitado
a pequenos grupos. Pollak (1989, p. 6) argumenta que os silêncios estão
ligados às lembranças individuais, que são "zelosamente guardadas em
estruturas de comunicação informais e passam despercebidas pela so-
ciedade englobante". O autor conclui que esses silêncios podem aflorar
e que, conforme "as circunstâncias, ocorre a emergência de certas lem-
branças. (...) A lembrança de guerras ou de grandes convulsões internas
remete sempre ao presente, deformando e reinterpretando o passado".
A memória retém os fatos, os sonhos, as expectativas e os proje-
. tos vinculados ao ideal político da sociedade que se quer manter ou
construir, e expulsa, por meio do esquecimento e do silêncio, os fatos,
sonhos, expectativas e projetos que não quer manter ou construir. O
que foi silenciado e o que foi esquecido sobre a memória do período de
1964 a 1985? Como o esquecimento é construído? Como foi construído
na sociedade brasileira o silêncio acerca dos militantes, das torturas,
das lutas revolucionárias?
Temos a impressão de que a memória oficial das ditaduras recentes
na América Latina parece não ser mais suficiente para dar conta das
questões que o passado nos suscita. Constantemente, silêncios e esque-
cimentos dão lugar a novas memórias, memórias de lutas, de sonhos,
de um outro projeto político, de um outro padrão de política que foi

{Joana d'aRc feRnandes feRRaz} 53


11. Sobre este assunto silenciado e esquecido durante um bom tempo, que hoje vêm à tona.
ver Cecilia Coimbra,
Operação Rio - o mito A construção da memória oficial retirou a função crucial da memória,
das classes perigosas:
um estudo sobre a vio-
que é a sua força política, a sua capacidade de transformação social.
lência urbana, a mldia No Brasil, como foram vinte anos de ditadura, uma geração que
impressa e os discur-
sos de segurança pú- nasceu durante esse período cresceu ouvindo a memória oficial e de-
blica, 278 pp., Editora
Oficina do Autor e teve do passado apenas essa memória, com exceção das pessoas que
lntertexto, Niterói, Rio
de Janeiro, 2001.
ouviam outras memórias nos círculos fechados de suas famílias ou das
12 . São considerados organizações a que pertenciam. Nesses vinte anos, a memória oficial
desaparecidos aqueles
que o Estado, em
- expressa nas comemorações cívicas, nas datas festivas, nos monu-
momento nenhum,
mentos- recolheu do passado os fatos que interessavam para os vence-
reconhece a sua pri-
são ou morte. Este en- dores. No entanto, hoje, os novos atores, as recentes lutas no campo, as
caminhamento serve
para todos os pafses organizações em fóruns nacionais, regionais e mundiais, exigem uma
da América Latina que
passaram por dita- releitura da memória. E os antigos discursos precisam se atualizar, an-
duras recentes . São
considerados mortos
tes de caírem no descrédito.
todos os que têm o Dessa forma, quando se fala hoje sobre o trauma vivido por muitos
Atestado do Óbito
ou de Presunção da cidadãos afetados diretamente pela ditadura, ou por serem parentes
Morte, embora seus
corpos tenham sido destes, observamos muitas vezes um ar de espanto. Alguns, por des-
ou não encontrados.
conhecerem esse lado amargo da história nacional, ouvem com muita
13. O DSI, como é
conhecido este órgão, atenção, sem compreender muito bem o que aconteceu. Outros se ca-
"era um órgão de in-
formações do regime
lam e espantam-se para não se comprometer. Para que não surjam as
militar instalado em incómodas perguntas: "o que você fazia naquela época"? "Onde você
todos os ministérios
civis, que se subordi- estava?" A omissão de um grande número de pessoas, que preferiram
nava hierarquicamen-
te ao Ministro, mas não saber o que estava acontecendo, também é um dos ingredientes da
que permanecia sob
a 'superintendência'
produção do esquecimento.
do SNI" (Fico, 2004,
Os atores que lutaram contra a ditadura brasileira raramente são
p. 125).

14. Helio Bicudo, em


identificados como sobreviventes, tal como são definidos os sobreviven-
"Revisitando a Lei da tes do Holocausto. Como afirma Tzvetan Todorov (2002, p. 192), não é pelo
Anistia" - in: Jornal
do Grupo Tortura fato de o Holocausto e de outros serem únicos em sua singularidade, em
Nunca Mais. de se-
tembro de 2005, p. seus sentidos específicos, que devemos sacralizá-los. Acontecimentos
12- esclarece que
a anistia se refere ao
igualmente perversos devem ser pensados conjuntamente. "A especifici-
"perdão a determi-
nados crimes, tendo
dade não separa um acontecimento dos outros, e sim o liga a eles."
em vista a pacificação A análise das discussões em torno das políticas de preservação da
dos espíritos, agitados
por acontecimentos memória da ditadura por intermédio do depoimento dos atores envolvi-

54 {museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas}


dos nos fornecerá recursos para pensarmos sobre os limites e as possibi- que, engendrando
paixões coletivas.
lidades das políticas de preservação da memória, a fim de que se efetive perturbam a ordem
social, incidindo no
a superação do trauma e leve à inscrição dos atores envolvidos. Direito Penal". Com-
pletamente diferentes
são os crimes conexos,
PRESERVAÇÃO: CONSENSO E DISPUTA que segundo o jurista
"( ... )contemplam
ações de uma ou mais
pessoas objetivando
Superado o trauma inicial - a incapacidade de os atores envolvidos o mesmo resultado" .
Não se pode falar em
terem palavras para expressar a sua dor -, o segundo momento é o de crimes conexos, uma
querer falar, embora, em muitas situações, a fala fique comprometida. vez que "conexão é
nexo, ligação" . Não
Pollak (1989, p. 6) conclui que "o problema que se coloca em longo prazo há ligação entre os
dois crimes. "56 pode
para as memórias clandestinas e inaudíveis é o da sua transmissão in- haver conexidade
se os vários autores
tacta até o dia em que elas possam aproveitar uma ocasião para invadir buscam a mesma fina·

o espaço público e passar do 'não dito' à contestação e à reivindicação." Iidade na prática o ato
delituoso( .. .)" .
A preservação da memória política da ditadura militar também deve 15. Helio Bicudo, em
ter uma função pedagógica, no sentido de ser pensada como uma lição "Revisitando a lei da
Anistia", in: Jornal do
para as próximas gerações, para que nunca mais venham a acontecer Grupo Tortura Nunca
Mais, de setembro de
as atrocidades do passado. Ao olhar o passado com os olhos críticos e 2005, p. 12.

atentos aos erros, poderemos encontrar o sentido da vida em comuni- 16. Estamos acompa-
nhando o caso da se-
dade e da vida nacional. nhora lvanilda Veloso.
Seu marido, ltair José
Essa preservação deve levar em consideração que o significado da Veloso, líder sindical
memória política é o de luta social. Consagrar o patrimônio que tenha e dingente do Comitê
Central do PCB, de-
como função apenas ressaltar a presença do Estado opressor e negli- sapareceu de casa no
dia 22)05/ 1975 e está
genciar as experiências daqueles que se opunham ao regime ou ofuscar até hoje desaparecido.
Sua esposa, Dona
o seu poder político naquela época e hoje, é acentuar apenas o lado frio lvanilda, o procurou
durante estes 31 anos.
da memória, desconectá-la de sua representatividade, de sua luta po-
Não havia nenhum
lítica e das relações sociais que se estabeleceram. É também colaborar documento e nenhu-
ma testemunha que
para a perpetuação do trauma de centenas de indivíduos que foram lhe pudesse ajudar.
Somente no infcio
vítimas do regime militar e cruzar os braços para as centenas de novas do mês de agosto de
2006 é que ela conse-
vítimas que diariamente surgem. guiu um documento
Uma política de preservação da memória do regime militar no Brasil que comprovou a sua
prisão, dando um pas-
deve objetivar olhar para o presente e colaborar para a construção de so importante no que
se refere à reparação
uma sociedade mais justa. Este é também o compromisso histórico da na Justiça.

nação brasileira em relação às pessoas que foram postas à margem da

{Joana d'aRc feRnandes feRRaz} 55


17. Estes grupos são história durante esse período. Olhar para o passado para que possamos
independentes, têm
encaminhamentos olhar para o presente e para o futuro.
políticos diferentes
e seguem critérios
Percebemos que não há um interesse, por parte da elite política con-
de intervenção social servadora, em que os ·conflitos entre a memória oficial (ou de consenso) e
diferentes. Têm em
comum a luta contra não oficial (ou de luta) fiquem explícitos, assim como há uma clara inten-
as opressões do Esta-
do, atrelada ãs lutas ção desse grupo de não mexer muito profundamente nessas questões. A
específicas contra os
efeitos da ditadura,
política de preservação da memória do regime ditatorial brasileiro cami-
tais como a busca dos
corpos dos mortos
nha no sentido de buscar um consenso. Esse consenso é estabelecido pe-
e desaparecidos las elites políticas conservadoras e devidamente promovido pelos meios
políticos, a luta pela
abertura dos arquivos de comunicação. No Brasil, a maior parte dos meios de comunicação de
secretos, a luta contra
a Lei de Anistia, massa está nas mãos dos grupos dominantes que apoiaram a ditadura e
entre outras.
que hoje mudaram de posição e ironicamente defendem a democracia.u
18. Na Argentina, um
dos mais conhecidos é Essa política do consenso não pretende ir fundo nas questões da re-
o das Madres de la Pla-
za de Mayo; no Chile,
paração moral e jurídica. Ela também não pretende expor para toda a
o Movimento Contra sociedade as iniqüidades do regime ditatorial. Movidos por esse ideal
la Tortura 'Sebastián
Acevedo', as Mujeres de consenso, inúmeros filmes, relatos, documentários e seriados tele-
Por La Vida, os HIJOS
entre outros. O movi- visivos sobre a ditadura recente não apontam os culpados, não revelam
mento dos HIJOS, na
Argentina, estendeu-
os nomes dos torturadores, não indicam as continuidades da luta, tais
se para o Chile e já
como a luta de familiares e grupos para encontrar os restos mortais dos
existe a sua divulgação
no Brasil. Em maio desaparecidos 12 políticos e as lutas pela abertura dos arquivos secretos
deste ano, no Seminá-
rio de Integração da da Divisão de Segurança e InformaçõesY
América Latina pro-
movido na UFRJ, diver- O Brasil é o único país da América Latina que ainda não teve julga-
sos integrantes desse
movimento trouxeram
mento dos militares pelos crimes de tortura, assassinato e desapareci-
filmes, cartazes e ca- mento. Esta é uma das maiores lutas dos ex-militantes. A Comissão de
misetas apresentando
suas reivindicações. Reparação do Estado do Rio de Janeiro é um exemplo desse descaso dos
Eles também lideram
um outro movimento, poderes públicos: ela caminha de forma lenta e gradual, tal como cami-
bastante expressivo,
chamado FUNA, que
nha até hoje a anistia. Os funcionários que trabalham nessa Comissão
é um tipo de denúncia
constantemente ficam meses sem receber seus salários, o que os desmo-
contra os ex-tortura-
dores que ocupam biliza e promove uma descontinuidade na luta.
cargos públicos.
Após receberem a A Lei de Anistia é outro exemplo dessa conciliação de interesses. Mal
denúncia de que
determinada pessoa interpretada, ela serviu para anistiar torturadores e torturados/ 4 como
que exerce um cargo
público foi tortu radar,
se os crimes cometidos pelo Estado fossem conexos aos crimes cometi-
dos pelos opositores do regime ditatorial. Segundo o jurista Hélio Bicu-

56 {museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas}


do, "o Brasil, ao promulgar a Lei de Anistia de 1979, deveria sancionar e ou colaborou com
a ditadura, os HIJOS
punir os criminosos do regime". 15 fazem um estudo
profundo da vida da
Paralelamente, estamos presenciando uma imensa pressão de gru- pessoa, buscam de-

pos sociais, principalmente de ex-presos e torturados, pela abertura dos talhes da sua atuação
politica, procuram
arquivos secretos. As querelas em torno da abertura dos arquivos secre- depoimentos de
pessoas que foram
tos merecem um apêndice neste trabalho em razão do entendimento vítimas, enfim, se
certificam que essa
do motivo pelo qual há uma enorme luta dos movimentos em defesa pessoa realmente
colaborou com o re-
dos agredidos pela ditadura, que sequer podem recorrer à justiça por gime e, em seguida,
não terem provas documentais ou testemunhais que comprovem o seu alugam ônibus e se
postam em frente à
envolvimento na luta contra o regime. 16 sua residência, no lo-
cal de trabalho, com
Segundo Carlos Fico (2004, p. 126-127): um megafone na
mão, denunciando
No apagar das luzes do segundo governo de Fernando Henrique Cardoso, o Conselho todas as arbitrarieda-
Nacional de Arquivos (Conarq) foi pego de surpresa: no dia 27 de dezembro de 2002, des que essa pessoa
cometeu. Também
o presidente Fernando Henrique Cardoso assinou o Decreto n• 4.553, que passaria notificam a imprensa
e mandam e-mails
a vigorar 45 dias após a sua publicação, já no governo de Luiz Ignácio Lula da Silva. para todas as pessoas
que colaboram com
O novo decreto não foi discutido com o Conarq, ao contrário do anterior, então sua luta mundialmen-
te. Tornam públicas
revogado. As novas regras são draconianas, especialmente as que estabelecem os
suas perversidades, e
prazos de classificação (período durante o qual o documento fica inacessível). Os sufocam o cotidiano
da pessoa.
documentos reservados tinham prazo de cinco anos e passaram para dez; os con-
19. O Dossiê de mor-
fidenciais subiram de dez para vinte anos; os secretos, de vinte para trinta anos; e tos e desaparecidos
do regime militar de
os ultra-secretos podem permanecer sigilosos para sempre. Além disso, as regras 1998, elaborado pelo
Grupo Tortura Nunca
para desclassificação tornaram-se confusas. Mais- RJ, levou à lo-
calização das ossadas
Na contracorrente desse movimento proposto pela memória do con- de vários militantes.
senso, identificamos a memória da luta, promovida por diversos grupos Os estudos de DNA
promovidos pela
de pressão. O principal grupo de pressão, que concentra um grande nú- UNICAMP levaram ao
recente aparecimento
mero de pessoas atingidas pelo regime ditatorial é o Grupo Tortura Nun- de dois militantes
considerados até
ca Mais, atuante em diversos estados. Este grupo teve seu início no Rio de então desaparecidos
políticos: em maio de
Janeiro, depois se espalhou pelo Brasil.17 Outro grupo de pressão no Rio de
2006, Flavio Molina,
Janeiro é o "Amigos de 68". Grupos de pressão existem em vários países da na vala do Cemitério
de Perus, em SP;
América Latina que passaram por ditaduras militares recentemente. 18 em agosto de 2006,
Luiz José da Cunha,
A emergência da abertura dos arquivos e das indenizações também o Comandante
Crioulo, também
é diariamente cobrada dos governos desses países. Esse fato unifica a na vala do Cemitério
luta dos atores envolvidos. Há constantes encontros, congressos e co- de Perus, em SP.

(Joana d'aRc feRnandes feRRaz} 57


memorações entre esses grupos, no Brasil e fora. Há também uma forte
presença, nesses grupos, de grupos de pressão com repercussões inter-
nacionais, como a Anistia Internacional, a Comissão da Federação de Fa-
miliares e Desaparecidos da América Latina (FEDEFAM), entre outros.
Em função dess'as lutas, das denúncias e de documentos redigidos
por esses grupos, restos mortais de ex-presos e torturados têm apareci-
do.19 Alguns sobreviventes e familiares dos mortos já conseguiram a in-
denização. E, na medida em que alguns conseguem sucesso em sua luta,
outros criam forças até mesmo para sair da clandestinidade. No final do
mês de julho de 2006, o Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro re-
cebeu um e-mail de uma pessoa perguntando como poderia sair da clan-
destinidade. Todos os seus documentos ainda estavam com o cognome
20. Na "Revista de de quando ainda era militante político. Ela revela nesse e-mail que criou
domingo" do jornal
O Globo, há um coragem porque tem acompanhado, pelo site do Grupo Tortura Nunca
depoimento da atriz
Elke Maravilha sobre o
Mais, as vitórias de alguns "companheiros" no que se refere à indeniza-
filme Zuzu Angel, que
ção. Este dado mostra o quanto ainda há pessoas traumatizadas, isoladas,
nos deixou surpresos.
Ela revelou que é uma que sequer conseguem se ver como sujeitos autônomos e cidadãos. 20
apátrida, que foi presa
na ditadura, teve seus Nas comemorações, festas, medalhas, aparecem os diversos senti-
direitos civis cassados
e que nunca quis vol- dos do passado, reforçando alguns, ampliando e mudando outros (Jelin,
tar a ser cidadã.
2002, p. 244). Dessa forma, a memória de consenso caminha no sentido
21. O autor define
como memória em-
inverso à memória de luta e resistência. Assim como há diferenças sig-
blemática a memória
capaz de produzir
nificativas entre a forma como os sujeitos apreendem os sentidos dos
marcos, pois ela eventos, das comemorações, das medalhas promovidas pelo Grupo Tor-
permite um sentido
explicativo para as tura Nunca Mais e pelos militares. Portanto, ao falar sobre as apreensões
memórias individuais
e coletivas. Ela não é acerca do passado, devemos tomar o cuidado de definir, primeiramente,
memória concreta e
substantiva, e nem
como, quando, por que e por quem esse passado é desvelado.
possui um conteúdo
No entanto, há algo que parece fundamental nessas situações: o fato
específico. Representa
e dá sentido a várias das memórias de luta saírem do pequeno círculo restrito dos grupos e
memórias, articulan-
do-as num sentido ganharem o espaço público, o que lhes outorga um sentido de comparti-
maior. Por exemplo,
a memória do golpe lhamento, um imaginário coletivo de apoio e de referência ao sentido da
militar no Brasil é
uma memória
luta, um convite àsua identificação com a luta, dando à "memoria em-
emblemática . blemática21 uma "cierta autenticidad y uma mayor capacidad de convencer",
conforme argumenta Steve]. Stern (2002 , pp. 20-21).

ss {museus, coteções e patRim8mos: n aRRativas pouf8mcas}


CONSTRUÇÕES SOCIAIS DAS MEMÓRIAS

Os silêncios e os não ditos aos poucos cedem lugar para outras me- 22. Compartilhamos
a visão de Daniel
mórias. Fatos incontestáveis são postos em xeque pelos trabalhos da Aarão Reis e outros,
que consideram que
memória. É nessa direção que o golpe de Estado já não pode mais ser o movimento que deu
identificado como uma "revolução democrática", conforme argumenta- origem ao Golpe teve
início em 1961, com
vam os militares. Sem dúvida, uma leitura ainda que modesta da memó- a renú ncia de Jânio
Quadros. Os militares
ria desse período já relaciona os acontecimentos de agosto de 61 com o por ele nomeados não
aceitaram que seu
Golpe de 64. Em agosto de 1961 ocorreu uma tentativa de golpe. Naquele vice, João Goulart. que
naquele momento es-
momento, havia um grande movimento de protesto em todo o País. Se-
tava em visita à China
gundo Daniel Aarão Reis (2004, p. 123): popular, tomasse pos-
se como Presidente, e
Desencadeiam-se em todo o país amplos movimentos sociais populares: campone- ameaçaram um golpe.
Mas seu cunhado,
ses, trabalhadores urbanos, principalmente do setor público e das empresas esta- Leonel Brizola, então
governador do Rio
tais, estudantes e graduados das Forças Armadas. Greves econômicas e políticas,
Grande do Sul, mo-
manifestações, comícios, invasões de terra, nunca se vira, como já se disse, algo bilizou a população
do estado e o coman-
semelhante na história republicana brasileira(...) alegava-se, era preciso reformar dante do III Exército,
a mais poderosa
as bases do sistema econômico e do regime político. Reforma agrária, urbana, ban- unidade do Estado
brasileiro, e resistiram
cária, financeira, universitária , educacional. Reforma das políticas públicas, em ao golpe, formando
a Rede da Legalidade
especial do estatuto dos capitais estrangeiros, que deveriam ser controlados e, no
(Reis, 2004, p. 120).
limite, em certos casos, expropriados. Este fato postergou
o golpe, mas levou a
Esses protestos irão se radicalizar para a luta contra a legalidade, uma lenta organiza-
ção de diversas frentes
até então pronunciada por Leonel Brizola, que em 1961, na tentativa de mobilizadoras do Gol-
pe de 1964, entre elas
salvaguardar o governo João Goulart, promove a Rede da Legalidade.ZZ as Forças Armadas, a
Enquanto as esquerdas caminham para o fim da legalidade, as direitas cúpula da Igreja Cató-
lica e as elites apoiadas
utilizam esse discurso para fazer o Golpe de 1964. pela classe média.

O Golpe e a conseqüente repressão promovida pela institucionali-


zação do Ato Institucional nQ5 em fins de 1968 deixaram um quadro
político desastroso para o País.
Em meados de 1970, todas as organi zações de esquerda estavam praticamente di-
zimadas, ou deci sivamente enfraquecidas, os principais dirigentes mortos, ou nas
prisões ou nos exílios sem fim. Suas forças , dispersas, tenderiam a se reorgani zar
na esteira dos movimentos que tiveram lugar na segunda metade dos anos 1970.
(Reis, 2004 , p. 129)

{Joana d'aRc feRnandes feRRaz} 59


A memória oficial hoje, em vez de exaltar a "revolução democrática,
o fim dos baderneiros e comunistas", busca equiparar a luta dos revolu-
cionários com a dos seus torturadores, em nome da paz e da harmonia.
Exige-se "calma e serenidade", nas palavras do ex-clandestino da déca-
23 . Jornal O Estado da de 70 e ex-ministro Chefe da Casa Civil em 2004. 23
de São Paulo, de
25/1 0/2004. A memória de luta e resistência somente veio à tona depois do pro-
24. "Mas a ditadura cesso de redemocratização do País, a partir de 1985, embora houvesse
militar, não há como
negá-lo, por mais que
diversos movimentos de resistência antes mesmo da instituição da dita-
seja doloroso. foi um
processo de constru-
dura. Ao falarmos da memória desse período, que inclui os esquecimen-
ção histórico-social, tos e os silêncios, devemos tomar alguns cuidados. Uma análise apressa-
não um acidente
de percurso" . da compromete a interpretação dos fatos e do contexto político.
Reis (2004: 134)
Um dos cuidados é o de não acreditarmos numa isenção de setores
25. Sobre os
debates em torno da sociedade civil na construção e condução do Golpe de 64. Setores das
das ações ofensivas,
revolucionárias ou classes média e alta, industriais, religiosos e militares ajudaram a con-
de resistência das
esquerdas, ver o
ceber o golpe de Estado. Este fator é relevante para uma análise mais
artigo do Marcelo crítica, pois responde em parte porque tantos anos de silêncio foram
Ridenti, 2004:
140-150. necessários, por que alguns ateres e acontecimentos foram esquecidos
e por que, ainda hoje, não há, em nenhuma parte deste país, um monu-
mento oficial que represente a luta daqueles que tentaram uma mudan-
ça na vida política, social e cultural da Nação.
Outro cuidado que devemos ter é em relação ao discurso de que a
ditadura é um período de exceção e trevas na vida política brasileira,
conforme assinalam Ridenti (2004, p. 145) e Reis (2004, p. 134). 24 Ao con-
trário, esse período não é uma exceção, mas foi institucionalmente de-
finido. Por isso, os autores argumentam que não houve repressão nos
porões da ditadura, mas em sua sala de visitas.
O terceiro cuidado é o de não estabelecermos uma relação de sintonia
entre a atuação das esquerdas armadas e a resistência no Brasil.Z 5 O sen-
tido do movimento de resistência somente ganha peso a partir da instau-
ração da ditadura. As esquerdas não surgiram para resistir à ditadura. As
esquerdas lutavam por diferentes ideais - socialistas, comunistas, outras
organizações lutavam apenas por reformas políticas e sociais. A partir da
ditadura é que o discurso de resistência começa a ganhar força.

60 {museus, coLeções e patRimÔm os: n aRRativas poufômcasl


No que se refere ao sentido das lutas das esquerdas, outro mito
que foi criado é o que havia uma luta das esquerdas pela democracia.
Não devemos confundir os ideais políticos de hoje com os do passado.
Não fazia parte das propostas das esquerdas a luta pela democracia.
Suas bandeiras de luta eram variadas, conforme assinalamos acima.
Segundo Argelina Cheibub de Figueiredo (2004, p. 34), tanto a esquerda
quanto a direita possuíam uma visão instrumental da democracia. De-
sejavam a democracia para atingir seus objetivos, prescindindo desse
ideal se fosse preciso.
Nietzsche (1983) assinala que a memória revela a dor e o sofrimento.
Tempos de martírio são tempos inscritos na memória. Mas não é somen-
te essa a matéria da memória. Ela também revela os sonhos e os ideais
de uma geração. Ela extrapola o sentido do agora e permite o devaneio
para um tempo em que se sonhava com a possibilidade real de mudar o
rumo do País, de mudar o destino dos muitos que estavam excluídos do
sistema de produção imposto. A memória dos ex-militantes revela uma
dualidade entre sonho e martírio.
Essas memórias são diversas e confrontam-se. As representações dos
grupos esbarram na memória oficial. Essas contendas pela memória nos
levam a pensar sobre as formas como essas memórias entram em disputa
na sociedade. No lugar do debate franco e aberto de idéias, em que os po-
sicionamentos políticos dos sujeitos envolvidos serão esclarecidos para os
diferentes grupos, o ocorre são as "políticas de consenso", que geram as
"memórias de consenso" preconizadas pelos arautos da memória oficial.
A função da memória política é de denunciar, de criticar o que a his-
tória oficial tentou encobrir. Por isso, alguns fatos ficam no universo das
falas privadas, das lembranças e dos esquecimentos. São as falas indizí-
veis, aquelas que não podem ser ditas e que, quando o são, atravessam ca-
minhos escuros e esburacados, desmentem antigas ·"verdades" e incomo-
dam. Este é o estado de alguns esquecimentos e silêncios que irrompem
na sociedade brasileira hoje e que se opõem à memória de consenso.
Do universo das falas não ditas, fazem parte àquelas que fortalecem
a luta dos movimentos organizados. É sintomático o fato de não se argu-

{Joana d'aRc feRnandes feRRaz} 61


mentar que os movimentos revolucionários das décadas de 60 e 70, com
todos os seus impasses, diferenças e orientações, a longo ou curto prazo,
tinham em comum a luta pela mudança no sistema de produção. Havia
uma luta contra o capitalismo, ou seja, havia o interesse desses grupos
no rompimento do sistema econômico daquela época, que é o mesmo de
hoje. Neste momento em que o capitalismo está tão poderoso, atingindo
as subjetividades, as formas de pensar e viver, bem como o caráter e os
sonhos dos indivíduos, parece tentador demais falar que pessoas morre-
ram, foram presas, torturadas, mataram e se mataram para que houves-
se uma mudança no sistema econômico. Não é à toa que essa memória,
que esse fato deva ser esquecido da memória da sociedade. Ele incomoda.
Constrói-se o esquecimento sobre o ideal da luta revolucionária.
Outra fala que não se tornou pública, por ser politicamente peri-
gosa, é a da memória das organizações revolucionárias. É raro vermos
livros didáticos que se aprofundam em relação aos eixos de luta das
organizações políticas e às suas vinculações com o movimento revolu-
cionário internacional. Com todos os percalços e equívocos dessa luta,
suas perspectivas e seus vínculos deveriam ser objeto de conhecimen-
to, a fim de que pudéssemos reconstruir o nosso caminho a partir dos
erros e acertos do passado. Neste momento em que diversas entidades
estão se organizando em fóruns nacionais e mundiais, tomar conheci-
mento dessas questões parece fundamental. Constrói-se o esquecimen-
to sobre a prática revolucionária.
Uma terceira fala politicamente execrada da memória oficial refere-
se à luta contra o autoritarismo do Estado. O autoritarismo, que é fruto
de um Estado descomprometido com o diálogo e com as desigualdades
socioeconômicas e culturais, e vinculado aos interesses das elites eco-
nômicas, age violentamente contra todo movimento contrário aos inte-
resses dessas elites. Suas formas de violência são variadas, desde a cen-
sura até o cassetete e a tortura. Pensar sobre a memória de luta contra
esse autoritarismo é trazer para a arena política as questões relativas à
origem, construção e reprodução da história autoritária dos Estados na
América Latina. Constrói-se o esquecimento contra o poder autoritário.

62 {museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas}


Falar sobre esses esquecimentos e silêncios é trazer para a sociedade
um duplo incômodo. No que se refere ao grupo diretamente atingido,
a transformação desses esquecimentos e silêncios em memória social
reforça a luta pela reparação jurídica e moral, a luta pela abertura dos
arquivos secretos e a exigência de que os torturadores sejam punidos.
Por isso, o contrário do esquecimento não é o silêncio, mas a justiça,
conforme argumenta Yeruschalmi (1998).
No aspecto político, o retorno da luta contra o estado autoritário é bas-
tante perigoso. Revela uma ameaça a um Estado que perdeu quase todas
as suas funções, não controla mais a economia, a cultura, nem a política.
Restou-lhe, unicamente, a sua competência para oprimir, sua força física,
sua capacidade policial, conforme assinala Zygmunt Baumann (1999).
A distância de quatro décadas do início da ditadura foi preponde-
rante para a transformação desses esquecimentos e silêncios em memó-
ria. Este tempo, embora de curta duração, foi suficiente para promover,
naqueles que ficaram profundamente traumatizados, uma vontade de
falar o que era possível. Daí o surgimento de tantas revelações impor-
tantes. Este também é o momento em que a sociedade está aberta para
ouvir. O crescente número de filmes sobre a ditadura, o aparecimento de
biografias de ex-presos, torturados, exilados, o aumento do número de
relatos de tortura e as discussões sobre a abertura dos arquivos da dita-
dura exemplificam essa necessidade de releitura da memória nacional.
A dificuldade da reconstrução dessa outra memória reside na per-
manência dos fatores acima mencionados, aliada a uma luta pelo esque-
cimento cujo principal motivo era a instituição da repressão, que inibiu
a fala de grande parte dos grupos sociais. Essa dificuldade cria também
um silêncio traumático.
Dessa forma, compreendemos que enquanto as questões centrais da
memória política brasileira ficarem escondidas sqh o manto da política
do consenso, a democracia não caminhará rumo·ao seu ideal de justiça
e eqüidade. As mudanças políticas e culturais impelem o fim do esque-
cimento e do silêncio e trazem à tona o passado que incomoda. Por isso,
esse passado que retorna não é o mesmo que passou; é um passado re-

~oana d'aRc feRnandes feRRaz} 63


novado à luz dos problemas enfrentados no presente, das lutas e reivin-
dicações do presente. É o momento em que vêm à tona "esquecimentos"
que foram politicamente provocados para emudecer, enfraquecer a luta
de hoje, silenciar grupos sociais dispostos à superação da situação de
opressão. Como àrgumenta Elizabeth]elin (2001, p. 29):
Pasados que parecían olvidados "definitivamente" reaparecen y cobran nueva vigencia a par-
tir de cambias en los marcos culturales y sociales que impulsan a revisar y dar nuevo sentido
a huellas y restos, a los que no se había dado ningún significado durante décadas o siglas.
A partir do final da década de 90 e nos 2000 temos vivido no Brasil
e na América Latina diferentes frentes contra o "esquecimento" que a
memória oficial tentou silenciar. É expressiva a quantidade de biogra-
fias e filmes sobre a memória desse período que estão sendo exibidos ou
26 . Os filmes são: produzidos. 26 É também expressiva a quantidade de trabalhos acadêmi-
Zuzu Angel (di r.
Sérgio Resende). cos com esta temática. Parece hoje estar incorporada na luta das lide-
Araguaya- a cons-
piração do silêncio
ranças dos movimentos pró-direitos humanos e justiça a memória desse
(dir. Ronaldo Duque). passado de opressão e o discurso de que há uma continuidade entre as
Batismo de sangue
(dir. Helvécio Ratton). iniqüidades do passado ditatorial e a democracia formal de hoje. Há um
Corte seco (di r. Rena-
to Tapajós), Hercules apelo para o fim do esquecimento.
2456 (dir. Silvio Da-
Rin), O balé da utopia
O uso político do esquecimento é colocado em xeque, e irrompe na
(dir. Marcelo Santia-
go), Operação Condor
sociedade uma vontade de saber o que aconteceu. Este parece ser o mo-
(di r. Roberto Mader), mento que estão vivendo todos os países da América Latina que passa-
Vlado, 30 anos depois
(dir. João Batista de ram por ditaduras recentes. Quando gerações que não têm mais a me-
Andrade), Clandesti-
nos (dir. Patrícia Mo- mória pessoal desse período começam a querer saber o que aconteceu,
rán), Os desafinados
(di r. Walter Lima Jr).
ocorre um movimento muito interessante que permite novas interpre-
Tempo de resistência tações sobre a memória. ]elin assinala:
(dir. André Ristum).
Vôo cego rumo ao Sul Las diferencias entre cohortes- entre quienes han vivido la represión em distintos momentos
(dir. Hermano Pena,
este último a ser exi- de sus vidas personales, entre ellos y los muy j óvenes que non tienes memórias personales
bido na TV Cultura),
entre outros.
del período de represión - y las relaciones y diálogos que se establecen entre generaciones y
cohortes producen uma dinâmica societal específica en lo referente a las cuestiones de las
memórias. La información y el conocimiento, los silêncios, sentimientos, ideas e ideologias
son bienes simbólicos que puedem ser transmitidos. Sin embargo, queda siempre y necesaria-
mente abierta la cuestión sobre cuáles serán las nuevas interpretaciones, tanto em el plano
individual como en elgrupal. úelin, 2002, pp. 249-250)

64 {museus, coLeções e patRimÔmos: n aRRativas poufôm cas}


O passado que não foi resolvido volta na figura do trauma para os
indivíduos e também para a sociedade. Os contextos de golpes no Brasil
são um sintoma de uma sociedade autoritária e incapaz de rever o seu
passado. Segundo Nelson Werneck Sodré (1997, p.103), "de 1945 aos nos-
sos dias houve uma sucessão de golpes de Estado: o golpe de 1945, ime-
diatamente após o fim da Guerra; o de 1954, que depõe Getúlio Vargas;
as tentativas de golpe de 1955 e 61; e o golpe de 1964".
E, por fim, há que se considerar que a ditadura ainda não acabou.
Florestan Fernandes (1997, p. 147) argumenta que "a ditadura, como
constelação de um bloco histórico de estratos militares e civis, não se
dissolveu". A atual Constituição é repleta de buracos, considerada por
Fernandes (1997, pp. 146-147) "constituição inacabada":
Ela não responde a necessidades vitais da nação como um todo; não solta as revo -
luções e as reformas capitalistas interrompidas, persistindo à altura dos interesses
estreitos das classes dominantes e das nações capitalistas centrais; n ão atende
à humanização das classes subalternas e dos excluídos (a começar da educação,
das oportunidades de trabalho e nível de vida , à saúde, à hesitação, etc); e reteve
privilégios que deveriam ter sido expurgados da herança constitucional brasileira,
deixando o Estado e o governo como bunkers dos que mandam.
A memória que flui do passado para o presente e do presente para
o passado dirige-se para o futuro. Para que este nos pareça melhor do
que o que vivemos, é fundamental que se faça justiça. Elizabeth jelin
(2002) salienta que "la justicia es, sin duda, la parte más sólida de la
memoria". Pretender um futuro sem mentiras e lacunas talvez seja a
função primordial da memória.
O limite em que as sociedades utilizarão o seu passado depende do
bom senso em pensá-lo para um futuro mais justo. Todorov (2002, p.
207) sinaliza que "a sacralização do passado o priva de toda a eficácia
no presente; mas a assimilação pura e simples do passado ao presente
nos deixa cegos diante dos dois, e por sua vez. provoca injustiça". Fa-
zer justiça significa reparar os erros do passado. Esta reparação pode
se dar em diversos níveis: jurídico, moral, profissional etc. Até mesmo
podemos optar pelo esquecimento, mas esta opção terá de ser negociada

(Joana d'anc fennandes fennaz} 65


pelos grupos sociais e não imposta pelo grupo dominante. É no contexto
dessa negociação com diferentes atores e grupos sociais que podemos
pensar os desafios da preservação

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!Joana d'aRc feRnandes feRRaz} 67


os museus e seus VISitantes:
uma anáLise do peRfiL dos
pÚBLicos qos museus do
RIO de JaneiRO e de niteRÓI
Luciana Sepúlveda Koptcke
Sibele Cazelli
José Matias de Lima

INTRODUÇÃO

1. Programa de servi-
ço e pesquisa sobre os
museus e sua relação
O presente texto apresenta e descreve os resultados da
Pesquisa Perfil-Opinião 2005, realizada no âmbito do Ob-
servatório de Museus e Centros Culturais. 1 Após relembrar, em linhas
gerais, os marcos conceituais que influenciaram a Pesquisa 2005, serão
com a sociedade.
Éfruto da parceria
descritos os seus primeiros resultados, propondo-se, nas considerações
entre o Museu da
finais, algumas linhas de reflexão sobre a operacionalização dos concei-
Vida, a Casa de
Oswaldo Cruz, a Fun- tos de capital cultural e capital social para analisar as práticas de visita aos
dação Oswaldo Cruz,
o Departamento de museus na sociedade urbana do Rio de janeiro.
Museus e Centros
Culturais do Insti-
tuto do Patrimônio
Artístico e Histórico
Algu ns pressupostos sobre cultura, distinção e inclusão social
Nacional, o Museu É comum aproximar a Cultura (a maiúscula assinalando sua univer-
de Astronomia e
Ciências Afins, o MCT salidade), do ponto de vista da Sociologia, como arbitrário cultural do-
e a Escola Nacional de
Ciências Estatlsticas minante, imposto e reconhecido como cultura legítima em suas relações
do Instituto Brasileiro
de Estatlstica e
com os diferentes segmentos sociais ou frações de classe. A cultura é
Geografia .
sempre atributo de um grupo, reunindo os sistemas simbólicos (arte,
religião, língua, ciência etc.) vigentes em determinado espaço-tempo.
A discussão sobre as desigualdades no acesso à Cultura, presente desde
a década de 1960 no campo da Sociologia, sublinha as funções sociais

68 {museus, coLeções e patRim8mos: naRRativas pouf8mcas}


da arte, como de outros campos do universo simbólico, no âmbito de
uma sociedade diferenciada e hierarquizada. As classes sociais encon-
tram-se, no escopo destes estudos, mais ou menos próximas das obras
e espaços legítimos da cultura, estabelecendo uma hierarquia cultural
e social que classifica homens, objetos, práticas, valores, percepções e
juízo de valor do menos ao mais legítimo.
Os sistemas simbólicos são instrumentos de comunicação e conheci-
mento que exercem um poder estruturante e que são sistemas estrutu-
rados. Os símbolos, ao permitirem a participação do sujeito em um sis-
tema, apresentam uma função política de integração social, tornando
possível um consensus acerca do sentido do mundo social: a integração
lógica (pelo entendimento) é a condição da integração moral (pela ade-
são a valores) (Bourdieu, 1969).
As práticas culturais permeiam a existência humana como situa-
ções de construção da identidade social, como processos de partici-
pação no espaço público, como instância de construção do sujeito e,
assim, como os valores culturais, estão relacionadas a outras esferas
da existência humana. Fazem parte do "capital cultural incorporado"
ativado pelo habitus, mas que, segundo o próprio Bourdieu, não define
um molde rígido e instransponível dos comportamentos e atitudes, da
forma de pensar e agir em sociedade. Lahire (2004), sem abandonar a
herança do sociólogo francês, avança buscando analisar as idiossincra-
sias das práticas individuais que desafiam as homologias propostas na
Distinção (Bourdieu, 1979).
No contexto atual, ganham relevância as questões sobre a relação
entre demanda cultural e inserção na sociedade contemporânea. O que
interessa compreender é a que ponto, objetivamente, a prática e o co-
nhecimento de certos elementos da cultura podem trazer benefícios
para a melhoria de vida de indivíduos ou grupos: Estes aspectos têm
levado muitos autores a observar que a promoção da cultura é desen-
volvida por uma rede de instâncias culturais. Os museus, como am-
bientes que possibilitam intensa interação social, vêm ocupando lugar
de destaque nessa rede.

{LUCiana sepúLveda koptcke, siBeLe cazeLLI e JOSé ma tias de uma I 69


Os museus na cultura
O museu moderno afirmou-se como instituição no cenário europeu
pós-revolucionário no final do século XVIII. Acumulou, desde então,
percepções, expectativas e usos sociais diferenciados: espaço públi-
co produtor e reformulador de conhecimento, locus de construção da
memória coletiva, "tecnologia" de instrução e educação, instância de
afirmação de identidades, espaço e prática de distinção cultural. Nos
séculos XIX e XX, sua natureza se diversificou e multiplicaram-se os
campos dos acervos possíveis. Ele desenvolveu novas tecnologias de co-
municação e, no início do século XXI, permanece presente no universo
das práticas de fruição e produção simbólica, captando investimentos
consideráveis (Koptcke, 2005, p. 189).
Atualmente, os museus compartilham financiamentos públicos e
privados com outras instituições (embora de forma particular, segundo
o tipo de museu) e encontram-se inseridos em duas lógicas diferentes
e nem sempre complementares: uma lógica de mercado, da indústria
cultural, e uma lógica de legitimidade social. A segunda dentre estas
se pauta no alargamento da missão dos museus, que afirmam, por meio
de investimentos em ações voltadas para a educação e a mediação cul-
tural, o compromisso com a popularização das ciências e de distintas
expressões da cultura humana. Os museus buscam promover um espa-
ço de discussão sobre conhecimentos, saberes, fazeres, idéias e valores,
de geração a geração e entre variados segmentos sociais, coexistindo
em um dado momento histórico. Estas instituições almejam contribuir
para o desenvolvimento humano e social das comunidades nas quais se
inserem, além da missão precípua de assegurar a preservação e a trans-
missão de aspectos da cultura.
Não obstante a construção do consenso social e político sobre a im-
portância de democratizar o acesso aos bens da cultura legítima, os
dados sobre visitas aos museus (Bourdieu, 1969; Donnat, 1990; Mironer,
2003; Mortara, 2003) reafirmam que o acesso a estas instituições per-
manece restrito. Na abordagem de Bourdieu (1969), a relação que o vi-
sitante de um museu pode estabelecer com a instituição varia também

70 {museus, coLeções e patRJmélmos: naRRativas poufélmcas}


em função da proximidade entre este visitante e o campo de referência,
como por exemplo, as artes plásticas para o museu de artes, as ciências
da terra e da vida ou ainda a tecnologia para os museus de ciência etc. O
museu pode desempenhar, em cada um desses campos, um papel parti-
cular. No campo artístico e no campo histórico, ele seleciona o objeto ou
testemunho legítimo da excelência artística e da história, com impacto
tanto no campo da produção como da recepção cultural. Alguns museus
de ciência, engajados na construção de uma cultura científica mínima
comum, difundem a crença na ciência moderna, mas parecem menos
afeitos a disputas internas no campo da produção da ciência. Os museus
universitários, bem como aqueles vinculados a instituições de pesquisa,
podem servir como espaço pedagógico de circulação restrita aos futuros
especialistas do campo em questão. Por isso, é delicado generalizar para
todos os museus as relações entre produção e recepção cultural observa-
das pelo autor ao analisar os públicos dos museus de arte na Europa.
No entanto, para os museus de todos os campos da cultura, conhe-
cer os visitantes, os usuários, os não-visitantes e as formas de visita
torna-se uma ação estratégica para promover um espaço de escuta,
reflexão e auto-avaliação. É importante construir um conhecimento
capaz de subsidiar tanto as decisões cotidianas de gestão institucional
como a compreensão dos processos de apropriação social da cultura e a
elaboração de políticas públicas para o setor. Ademais, a pesquisa sobre
os públicos e as práticas suscitadas pelos museus torna-se uma peça
estratégica para a negociação de fundos e para a conquista de credibi-
lidade perante a sociedade.

A PESQUISA

No Brasil, observa-se a carência de estudos peri6dicos que ofereçam


subsídio para refletir sobre a evolução das práticas culturais e de lazer
nas quais se inserem as visitas aos museus (Almeida, 2003). A análise
preliminar dos Anuários Estatísticos do Brasil (IBGE) revela a existência
de dados relativos à cultura e à visita a museus desde o primeiro exem-

{Luciana sepúLveda koptcke, SIBeLe cazeLu e JOSé mat1as de uma} 71


plar (1908 - 1912) (Koptcke e Pereira, 2002). Tais dados, cujas condições
de produção permanecem obscuras, provinham de fontes diferencia-
das, sem uma preocupação aparente com esse registro (como eram re-
gistradas as visitas quando não se tratava de contagem de bilheteria?),
impedindo um ·estudo diacrônico da evolução das práticas de visita a
museus e instituições afins.

Questões iniciais de pesquisa


A pesquisa sobre o perfil sociocultural dos visitantes dos museus e as
formas distintas de visita pressupõe que a visita ao museu se situa como
prática cultural socialmente contextualizada. Considerando a contri-
buição dos autores citados anteriormente, foram definidas as questões
que orientam este trabalho. A prática da visita decorre do acúmulo do
capital econômico, social e cultural? Qual dos três tipos é mais relevan-
te para a promoção do acesso aos museus? Essa importância pode variar
em circunstâncias particulares? A prática da visita constitui um tipo
de capital? Em que campo a visita como capital pode trazer vantagens?
(profissional? sociocultural?). Resulta na ampliação da rede social? In-
dica uma projeção da boa vontade cultural, demonstrando adesão aos
valores propostos e legitimados pela instituição? Quais indivíduos ou
grupos se beneficiam da visita a museus como um tipo de capital? Como
descrever os processos de mobilização e conversão da visita a museus
como capital cultural?
Capitais cultural e social encontram-se intimamente imbricados.
Nessa construção e leitura das relações de posicionamento social há de
se observar a quantidade de cada tipo de capital, bem como a natureza
da cultura possuída, o sentido atribuído às práticas e as circunstâncias
de realização. Ela considera os públicos dos museus como um grupo em
construção, podendo ser composto por segmentos sociais diferentes,
segundo um dado período, e focaliza a investigação na situação da vi-
sita aos museus como experiência dinâmica do sujeito social. Uma vez
identificadas, as situações de visita possíveis serão analisadas segundo
as características mais ou menos determinantes e determinadas dos

72 {museus, coLeções e patRim8mos: naRRativas pouf8mcas}


sujeitos que as praticam e as características da instituição visitada.
Ao definir o foco deste estudo, compreende-se a visita ao museu como
uma experiência resultante de contextos pessoal, social e físico (Falk e
Dierking, 1992), ancorada em regras e referências mais ou menos com-
partilhadas entre visitantes, curadores, cientistas e diferentes segmen-
tos da sociedade, passíveis de negociação durante a situação observada.
O significado dessa prática não resulta apenas de atributos do sujeito,
mas se constrói na relação complexa entre diversos fatores.
Pretende-se, neste trabalho, descrever os perfis de visita e dos visi-
tantes, bem como avançar elementos para identificar processos de aces-
so às instituições consideradas no estudo e para analisar as possíveis
configurações da relação entre capital cultural escolar e capital social,
decorrente da socialização familiar ou de outras instâncias de sociali-
zação que operam na determinação das práticas de visita. Segundo cada
museu e a cada visita, qual a importância dos tipos de capital (social e
cultural)? Como se imbricam na construção do sentido da situação de
visita? Quais são as margens de intervenção de outras redes sociais, fora
da família e da escola (como associações, clubes etc.), na determinação
da visita? Qual o impacto das ações propostas pelas políticas culturais
(sugestão de políticas tarifárias, campanhas de informação, gestão par-
ticipativa das instituições) e pelos museus (formas diversificadas do aco-
lhimento nos museus, desenvolvimento de ações de mediação pautadas
pela realização de pesquisas de público, produção de materiais de apoio
à visita etc.) na dinâmica do fluxo de acesso a essas instituições?

Objetivos gerais
Identificar os processos e os contextos promotores de acesso aos mu-
seus para os variados segmentos sociais. Dessa forma, espera-se contri-
buir para a reflexão sobre o papel atual dos museus nos grandes centros
urbanos e para a compreensão dos fatores e situações determinantes
de experiências culturalmente inclusivas (democratização do acesso,
representatividade nos processos institucionalizantes do bem cultural,
discussão e apropriação reflexiva da cultura exposta).

{wc1ana sepúLveda koptcke, smeLe cazeLu e JOSé mat1as de uma} 73


Objetivos específicos
Traçar os perfis dos visitantes em cada um dos museus investigados
em relação ao perfil geral do conjunto dos informantes da pesquisa;
identificar diferentes modalidades de visita para cada uma das insti-
tuições, e entre elas.

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

A Pesquisa Perfil-Opinião 2005 foi um estudo piloto que deverá ser


repetido em outras instituições e de forma periódica. Além da enquete
quantitativa realizada a partir da utilização de um questionário auto-
aplicado, o Observatório de Museus e Centros Culturais prevê, futura-
mente, pesquisas de cunho qualitativo visando aprofundar e investigar
aspectos não contemplados pela pesquisa de tipo survey.

Desenho e validação do questionário da Pesquisa Perfil-Opinião


A primeira fase do trabalho consistiu em validar e aplicar um proto-
colo para a coleta de dados que pudesse ser compartilhado com outras
instituições e que fosse aplicado regularmente, alimentando um banco
de dados comum. A construção do protocolo de pesquisa inspirou-se na
experiência do Observatoire Permanent des Publiques, de Lucien Miro-
ner, pesquisador convidado que participou da oficina de lançamento da
proposta do Observatório, em 2003, na cidade de Petrópolis.
O questionário, composto de questões fechadas ou semi-abertas, foi
escolhido como instrumento de coleta de informações sobre os públi-
cos visitantes de museus. Ele responde à necessidade de se obter infor-
mações dentro de padrões de generalização passíveis de comparabili-
dade sincrônica e diacrônica. Produz dados estatísticos referentes às
práticas reais de visita, ou seja, construídos junto ao público em situ-
ação de visita nos museus considerados no estudo. Tais dados ganham
vigor explicativo quando articulados com outros dados de referência
sobre a população de estudo, bem como com informações oriundas de
outras pesquisas. Procurou-se adequar códigos (para profissões e lo-

74 {museus, coLeções e patRim8mos: naRRativas pouf8mcas}


gradouros, por exemplo) e categorias, utilizando aqueles das pesquisas
desenvolvidas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, a fim
de dialogar com os dados das pesquisas oficiais sobre a realidade social
da população brasileira.
Ele foi concebido para poder ser preenchido tanto pelo visitante
(auto-aplicado), como por um entrevistador. Nesse sentido, especial
atenção foi acordada à sua diagramação, à clareza e à facilidade de
compreensão das questões, ao tempo médio levado pelo visitante para
preenchê-lo, de forma a intervir por menos tempo na experiência de
visita e facilitar a taxa de retorno dos questionários distribuídos. Fruto
do trabalho do GT Questionário, que reuniu profissionais dos 11 museus
participantes do projeto de implantação do Observatório de Museus e
Centros de Culturais, a partir de novembro de 2003, o questionário foi
estruturado em quatro blocos:

Antecedentes e circunstâncias da visita


Neste bloco é sinalizada a existência ou não de visitas anteriores e
são identificadas as fontes de informação na origem da descoberta so-
bre o museu. Observam-se, ainda, os motivos declarados para aquela
visita e o fato de visitar o museu sozinho ou acompanhado. Conhecer
quem acompanha o visitante durante a visita é também um dos pontos
abordados neste bloco do questionário. Também se investiga o tempo de
duração da visita. Estas questões informam sobre o tipo de sociabilida-
de relacionado à visita. Ademais, o contexto social é fator determinante
para compreender os comportamentos, as atitudes e as estratégias de
visita. A análise dessas informações pode indicar, para os profissionais
dos museus, a necessidade de reconsiderar as estratégias de mediação e
as atividades de acolhimento necessárias Uogos, oficinas de curta dura-
ção, material impresso de apoio direcionado etc).·

Conhecendo a opinião do visitante sobre a visita e sobre o museu


O bloco que trata das questões de opinião traz informações sobre a
satisfação do visitante com relação à visita realizada, sobre a avaliação

!LUCiana sepúLveda koptcke, smeLe cazeLLI e JOSé mat1as de uma} 75


que faz dos serviços oferecidos no museu e sobre a intenção de retorno à
instituição nos próximos 12 meses. As informações obtidas podem indi-
car a necessidade de qValiações mais específicas dos serviços e espaços
de visita para os museus participantes do estudo.

Hábitos de visita a museus e a centros culturais


As questões tratadas nesta parte do questionário fazem referência
às práticas anteriores de visita a outros museus. São igualmente investi-
gados os motivos apontados como empecilho para visitar museus.

Conhecendo você (perfil sociocultural do visitante)


O bloco registra informações sobre sexo, escolaridade, idade, renda
domiciliar mensal, ocupação e tipo de atividade remunerada do visi-
tante. Tais variáveis são tradicionalmente utilizadas para analisar os
padrões de acesso aos museus no âmbito da apropriação socialmente
diferenciada da cultura. A organização do questionário em blocos au-
tônomos permite intercalar parte do instrumento em outros protoco-
los de pesquisa.

Universo do estudo
A pesquisa interroga o visitante com 15 anos ou mais de idade, em
situação de visita a um museu, que não participe de visitas organizadas
por escolas, pagante ou não pagante. Foram excluídos da pesquisa os
grupos escolares com visitas agendadas caracterizadas como visitas es-
colares de todas as idades e séries. Trata da prática real de visita, ao con-
trário das pesquisas realizadas nos domicílios ou em situações diversas
em que a visita ao museu é informada, constituindo prática declarada.
A pesquisa piloto foi realizada durante os meses de junho, julho e
agosto de 2005. Onze museus participaram dessa aplicação. O Quadro 1
a seguir apresenta as instituições, a data de fundação, o tipo de acervo,
a tutela correspondente a cada uma das instituições e o quantitativo de
questionários válidos.

76 {museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas)


Quadro 1 - Instituições participantes da Pesquisa Perfil-Opinião 2005 e número de
entrevistas realizadas.

Data de Questionários
Museus Tipo de acervo Tutela
fundação válidos

JNCAER/

História, técnica, Coml\lndoda
Museu Aeroespacial 1973 349
dência áeronáuttcaJ
; - " ,_ MO

Museu Antônio Parreiras 1941 Arte FUNARJ/S EC 161

Museu de Arte
- 1996
,-
Arte SMC·Niterói 393
Contemporânea

Museu de Astronomia
1985 Ciência, técnica MCT 428
e Ciências Afins
'
Museu Casa de Ruí Barbosa 1930 História MINC 384

Museu Histórico Nacional 1922 História IPHAN 293

Museu do lndío 1952


,-
Etnografia FUNAVMJ
- 95

Etnografia,
Museu Nacional 1818 UFRJ 331
hi stória natural
1-

,.Museu do Primeiro Reinado 327


-
196511979 História FU~RJ/SEC
- I-
Museu do Universo
1970/2005 Ciência SMC/RJ 380
Planetário da Cidade

". Museu da Vida 1999 Ciência


COC-FiocruZ/
266
,,. MS

Total 3407

Fonte: Cadastro preenchido pelos museus participantes do Observatório I Pesquisa Perfil -Opinião 2005, OMCC

Seleção dos informantes


Na grande maioria dos museus parceiros, a seleção dos informantes
foi realizada por meio do método de seleção de amostragem sistemática
dos visitantes, tendo sido especificado, para cada museu, o intervalo de
amostragem (ou de seleção) e o ponto de partida. No dimensionamento

{LUCiana sepúLveda koptcke, SIBeLe cazeLLI e JOSé mat1as de uma} 77


da amostra, foi considerado o número médio de visitantes por mês, a
partir do qual se estima o número médio de visitantes esperado durante
o período da pesquisa. A amostra foi dimensionada, de forma indepen-
dente, para fornecer uma estimativa de proporção de algum atributo de
interesse com erro máximo absoluto no valor de 5% e com um grau de
confiança de 95%.
A fase de coleta de dados foi de grande importância na elaboração
da pesquisa. Foi necessário treinar as pessoas responsáveis e criar uma
supervisão para que fosse observada a aleatoriedade na seleção dos vi-
sitantes e proporcionado o apoio, quando necessário, no entendimen-
to dos quesitos indagados no questionário utilizado. Participaram da
pesquisa 2005 11 museus: Museu da Vida, Museu Aeroespacial, Museu
do Universo - Planetário da Cidade, Museu Nacional, Museu Casa de
Rui Barbosa, Museu do Índio, Museu de Astronomia e Ciências Afins,
Museu Histórico Nacional, Museu de Arte Contemporânea de Niterói,
Museu do Primeiro Reinado e Museu Antônio Parreiras, totalizando
cerca de 3.400 questionários válidos.
Após essa fase, foi realizada uma análise dos dados faltantes, ten-
do sido observado um índice de não resposta inferior a 2% em 48% das
variáveis do questionário; apenas 17% das variáveis apresentaram um
percentual de 10% a 15% de respostas em branco.
Um ponto delicado é a classificação dos museus por tema principal
do acervo em instituições museológicas que guardam acervos de na-
tureza diversa. Nessas instituições, o que determinará a sua natureza
temática será o enfoque, dado pelo museu, nas linhas de pesquisa e nas
formas de apresentar o acervo em suas exposições. Pode-se citar o caso
do Museu Aeroespacial, que reúne acervo de natureza histórica, cien-
tífica e tecnológica. Tradicionalmente a instituição era considerada
pelos seus profissionais como um museu de história. Paulatinamente, a
dimensão tecnocientífica começa a ganhar espaço. Precisamente, com
relação ao Museu Aeroespacial, optou-se por incluí-lo entre os museus
de ciência. Seus visitantes, de fato, se comportam e se assemelham
àqueles dos museus de ciência.

78 {museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufôn1cas}


RESULTADOS

O perfil socioeconômico dos visitantes dos museus apresenta signifi-


cado de interesse para analisar o sentido dos museus em nossa sociedade
quando toma como parâmetro a população de referência, cuja definição
afetará, por conseguinte, a essência das análises possíveis. Assim, por
exemplo, o nível de escolaridade e a cor ou raça dos sujeitos da pesquisa
podem variar em função das subpopulações de referência. As estimati-
vas obtidas na Pesquisa Nacional por Amostra Domiciliar (PNAD) para
a Região Metropolitana do Rio de janeiro podem diferir dos resultados
de outras pesquisas domiciliares que dependem, essencialmente, do de-
senho amostral e de sua área geográfica de abrangência. Os resultados
desta pesquisa foram comparados, considerando algumas variáveis de
interesse, com as estimativas obtidas no âmbito da Região Metropolita-
na do Rio de janeiro (PNAD 2004).
Os visitantes residem em sua maior parte no município do Rio de
janeiro. O local de residência declarado pelo visitante foi agrupado por
Área de Planejamento, conforme indica a Tabela 1. Na AP2, correspon-
dente às regiões administrativas de Botafogo, Copacabana, Lagoa, Vila
Isabel, Tijuca e Rocinha, residem 38,3% dos visitantes dos museus e
30,4% na AP3, que integra as regiões administrativas de Ramos, Penha,
Inhaúma, Méier, Irajá, Madureira, Ilha do Governador, Anchieta e Pa-
vuna. É importante sinalizar que os visitantes tendem a freqüentar os
museus mais próximos de seu local de residência. Os moradores da AP3
são encontrados em maior número no Museu da Vida (50%), no Museu
de Astronomia e Ciências Afins (41%) e no Museu Aeroespacial (38%).
No caso deste museu, situado na zona oeste da cidade, observa-se a
quase ausência (2%) de visitantes da AP2, sendo a APS (Bangu, Campo
Grande, Santa Cruz, Guaratiba e Realengo) o seg'undo local de proce-
dência dos visitantes (31%).

{Luciana sepúLveda koptcke, SIBeLe cazeLu e JOSé mat1as de uma} 79


Tabela 1- Distribuição percentual dos visitantes residentes no município do
Rio de Janeiro, por Área de Planejamento (AP), segundo os museus considerados
no estudo*.

Área de Planejamento
Museus
AP1 A P2 AP3 AP4 APS

Museu da Vida - 21.2% 50.~% - \3,2%

Museu de A st ro nomia
16.4% 21,0% 41 ,3% - -
e Ci ência s Afins
~ -
1-
Museu do lndio - 7.9,5% 10,3%
-
7,7% -
M useu Casa de Rui Barbosa - 57,8% 18,6% 16,5% -

Museu do Universo
,_ Planetário da Cidade - 58,7% 19,3% 17,8% -
~

M useu Nacional - 32,8% 34,9% - 13.3%


,_ ~

Museu do Primeiro Reinado 20,3% 34,8% 27,5% - -


Muse u Aeroespacial - - 38,8% 19.4% 31,5%
1- - 1--
Museu Histórico Nacionil - 44,2% 32,1% 10,3% -
* Não foram considerados o Museu de Arte Contemporânea e o Museu Antônio Parreiras localizados em Niterói.
Fonte: Pesquisa Perf il-Opinião 2005, OMCC.

Sexo : pod e variar segundo o mu seu


A distribuição do público de visitantes dos museus considerados
no estudo segundo o sexo reflete o comportamento observado para a
população residente na Região Metropolitana do Rio de janeiro, con-
forme indicam os resultados obtidos na PNAD 2004 . Todavia, alguns
museus são mais visitados por mulheres, como o Museu da Vida (75%)
e o Museu Casa de Rui Barbosa (66%), enquanto a presença masculina
prevalece entre os visitantes do Museu Aeroespacial (68%) e do Museu
Nacional (51%).

80 {museus, coteções e patRim8mos: naRRativas pouf8mcas}


A presença masculina ou a feminina acentua-se nos diferentes mu-
seus segundo o tema tratado por cada instituição. Na França, Mironer
revelou nas pesquisas do Observatoire Permanent des Publics (Mironer,
2002), que determinados museus atraem maior percentual de público
feminino, como os de Artes Plásticas, mas também os de História Natu-
ral e Ciências, freqüentados principalmente em família com crianças.
Já os museus temáticos sobre carros, os militares ou sobre aviação são
tipicamente masculinos. Alguns museus, como os históricos ou de sítio,
foram considerados "neutros" por suscitarem um interesse análogo em
homens ou mulheres. Os resultados da pesquisa Perfil-Opinião sugerem
uma relação entre o sexo e temas de interesse definidos social e cultu-
ralmente, como no caso do Museu Aeroespacial, mas também relacio-
nam a presença feminina ao perfil prioritário da visita familiar ou em
grupos organizados, como no caso do Museu da Vida. O Museu Nacional
contradiz ligeiramente o esperado (prevalência feminina em museus de
História Natural), enquanto o Museu Casa de Rui Barbosa, histórico e
biográfico, suscita estudos complementares que esclareçam o sentido
da maioria de visitantes do sexo feminino.

Adultos e jovens de cor branca são a maioria entre os visitantes


dos museus investigados
A população de visitantes dos museus é composta, principalmente,
por adultos, na faixa entre 30 a 39 anos (26,4%) e 40 a 49 anos (22,3%). Os
jovens, na faixa dos 15 aos 29 anos, representam 36,6% dos visitantes,
com distribuição homogênea nas faixas de 15 a 19 (11%); 20 a 24 (12,7%)
e 25 a 29 anos (12,9%). Nota-se a presença, ainda discreta, de visitantes
com idade superior a 50 anos (14,7%), considerando-se a soma dos per-
centuais observados nas faixas 50 a 59 e 60 anos ou mais (valor inferior
ao observado na população residente na Região Metropolitana do Rio de
janeiro (31%), PNAD 2004).
Segundo dados dessa mesma pesquisa, 57,9% da população residen-
te na Região Metropolitana do Rio de Janeiro declara-se de cor branca,

{LUCiana sepúLveda koptcke, SIBeLe cazeLu e JOSé matJas de uma} 81


conforme indicado no Gráfico 1. Nos museus, a presença de brancos é
ainda maior: 67,4% dos visitantes declararam-se de cor branca. O Mu-
seu do Índio (52,7%),, o Museu de Astronomia e Ciências Afins (48%) e
o Museu da Vida (46%) são os que recebem uma maior proporção de
visitantes não brancos.

Gráfico 1: Distribuição dos visitantes por cor ou raça declarada

67,4% • Total 11 PNAD 2004 -RM/RJ

1,5% 0,2% 0,9% 0,1%

Branco Preto Pardo Amarelo Indígena

Um público altamente escolarizado


Os visitantes dos museus possuem nível de escolaridade bastante
elevado. Conforme indicam os resultados do Gráfico 2, 47,5% declara-
ram ter concluído o ensino superior. Cabe lembrar que o nível médio de
anos de estudo da população da Região Metropolitana do Rio de Janei-
ro é de 8,3 anos, correspondendo ao ensino fundamental. Nos museus
considerados no estudo, o maior percentual de visitantes com nível de
escolaridade até o ensino fundamental é de 6,6%, no Museu Aeroespa-
cial. Por outro lado, o maior percentual de visitantes que cursaram o
ensino superior se encontra no Museu do Universo-Planetário da Cidade
(61,3%), seguido pelos Museus de Arte: Museu de Arte Contemporânea
de Niterói (57,3%) e Museu Antônio Parreiras (54,4%).

82 {museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcasl


Gráfico 2: Distribuição percentual dos visitantes por nível de escolaridade

l c PNAD 2004-RM/RJ • Total

47,5%

31,2%

Até Funda mental Completo Ensino Médio Superior Incompleto Superior em diante

Ocupação e renda média domiciliar


Três quartos dos visitantes dos museus considerados no estudo de-
clararam exercer atividade remunerada. Dentre estes, 62,4% são empre-
gados do setor público ou privado, 13,5% são autônomos ou trabalhado-
res por conta própria e 10,2% são profissionais liberais. Os bolsistas ou
estagiários remunerados (5,7%), assim como os empresários (5,5%), es-
tão pouco presentes nos museus considerados no estudo. Dentre aque-
les que declararam não exercer atividade remunerada, mais da metade
(53,4%) estuda. Os aposentados e pensionistas constituem um público
potencial que merece maior atenção (17,9%).
Com relação à renda mensal domiciliar, cerca da metade dos visitan-
tes (48,8%) participantes da pesquisa declarou renda domiciliar mensal
superior a R$ 2.000,00. Na Região Metropolitana do Rio de janeiro, ape-
nas 7,24% das famílias informaram renda mensal s'uperior R$ 2.000,00.
Por outro lado, 59,09% da população residente na região metropolitana
do Rio de janeiro declarou renda familiar mensal de até R$ 500,00. Nota-
se, entretanto, que a renda declarada varia segundo o museu visitado. O

{LUCiana sepúLveda koptcke, smeLe cazeLLI e JOSé mat1as de uma} 83


Museu da Vida (20,9%) e o Museu de Astronomia e Ciências Afins (15,2%)
são aqueles que mais receberam visitantes com renda domiciliar mensal
de até R$ 500,00, enquanto o Museu do Universo Planetário da Cidade e
o Museu de Arte Contemporânea de Niterói registraram os percentuais
mais elevados de visitantes com renda domiciliar mensal acima de R$
2.000,00, respectivamente 64,8% e 57,5%, conforme indicam os resulta-
dos apresentado no Gráfico 3 subseqüente.

Gráfico 3: Distribuição percentual por classes de renda domiciliar mensal

• Total • PNAD 200 4 -RM/RJ


S9,1%

3S,O%

Até SOO reais Mais de SOO a 2.000 MaiS de 2.000 a Acima de 4.000 reais N~o soube informar
reais 4.000 reais

Fontes de informação: o "boca a boca" é a principal fonte de


informação sobre os museus
Com relação às fontes de conhecimento sobre o museu, os visi-
tantes podiam citar várias respostas. No geral, as fontes mais citadas
(53,3%) foram as referentes à recomendação de outras pessoas, con-
forme indicam os resultados apresentados no Gráfico 4. Em seguida
ficaram as mídias de comunicação de massa, como a TV ou os jornais
e revistas (33,9%). Foi registrado um percentual de19% de declarações
referentes à descoberta do museu ao passar em frente a ele (a pé ou
de automóvel). Entre os 11 museus participantes da pesquisa, a fon-
te de informação mais citada variou: no Museu de Arte Contemporâ-
nea, a TV foi a fonte mais citada (43,5%), seguida das mídias impressas
(34,3%). No Museu de Astronomia e Ciências Afins (33,3%) e no Museu

84 (museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas}


da Vida (29,1%), a recomendação de professores foi a principal fonte.
No Museu Nacional (33%), a recomendação de familiares prevaleceu e
no Museu Aeroespacial (26,2%) foi a recomendação dos amigos. Cabe
notar que no Museu do Primeiro Reinado (36,9%) e no Museu Histórico
Nacional (35%) mais de um terço dos visitantes declarou ter desco-
berto o museu ao passar em frente à instituição, de carro ou a pé. O
Museu Aeroespacial apresenta o menor percentual de recomendações
feitas por professores (8%). No Museu do Índio, as recomendações de
familiares (12,6%) e de professores (9,5%) expressam valores baixos
se comparados com os demais e, em especial, com o Museu Nacional,
onde a recomendação familiar foi citada por 33% dos visitantes e a
recomendação de professores por 29,4%.

Gráfico 4: Distribuição percentual dos visitantes, por fonte de informação


sobre o museu

19,9% 19,9%
r-- 18,6% ~

- 18,0%
-
15,9%
14,8% -
r-

Professores Amigos Familiares Passando em Jornais e TV


frente Revistas

Para a maioria, é a primeira vez ...


A maioria dos visitantes (64,4%) declarou ser a sua primeira visita
àquele museu. O percentual de primeira visita va~ia entre os museus
considerados no estudo, conforme indicado no Gráfico 5:no Museu Casa
de Rui Barbosa, a taxa chega a 84,4% de novos visitantes, enquanto no
Museu Nacional o resultado se inverte: 64,8% dos visitantes já o haviam
visitado. Pesquisas anteriores, no Brasil e em outros países, também

{LUCJana sepúLveda koptcke, smeLe cazeLLJ e JOSé mat1as de uma} 85


encontraram a prevalência de novos visitantes nos museus, sugerindo
uma relação motivada pelo prazer da novidade, pela "curiosidade", afei-
ta às descobertas e à abertura cultural.

Gráfico 5: Distribuição percentual dos visitantes que declararam visitar os


museus pela primeira vez, segundo os museus considerados no estudo

84,4%
- 79,1%
73,3%
-
r-- 70,2%
64,4%
69,0%
r-- - 65,8%
- 60,8% r--
56,8% - 57,8%
r--
r--
49,5%
-
35,2%
-

Total MV MAST MI FCRB M.U MN MPR MAP MAC MA MH

Há quanto tempo conhece este museu?


A grande maioria dos visitantes entrevistados nos museus conside-
rados no estudo conhecia o museu há mais de um ano (70%). Dentre os
11 museus participantes do estudo, seis receberam mais de 50% de vi-
sitantes com conhecimento prévio do museu superior há mais de cinco
anos. Esta notoriedade antiga varia entre os museus. O Museu Nacional é
conhecido há mais de cinco anos por 82,6% dos seus visitantes, segui-
do pelo Museu do Universo - Planetário da Cidade, com 74%. O Museu
do Índio (17,6%), seguido pelo Museu da Vida (32,3%) e pelo Museu de
Astronomia e Ciências Afins (33,2%) são aqueles com menor percentual
de visitantes que declararam conhecer o museu há mais de cinco anos.
O interesse em identificar a quanto tempo uma instituição é conhecida
pelos seus visitantes se refere à compreensão da relação entre notorie-

86 {museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas}


dade e prática de visita. Por outro lado, os museus fazem parte da vida
das cidades onde se situam e a notoriedade indica o conhecimento dos
habitantes sobre o museu antes mesmo de tê-lo visitado.

Visitas para matar a curiosidade e conhecer coisas novas


Quando interrogados sobre os motivos para a visita, 73,7% dos visi-
tantes declararam que visitavam para conhecer o museu, conforme indi-
cam os resultados apresentados no Gráfico 6. Alargar os horizontes, conhe-
cer coisas novas (64,9%), foi o segundo motivo mais citado, seguido pelo
interesse pelos assuntos expostos (62,1%). Cabe ainda sinalizar que para
60,5% dos visitantes a diversão conta entre os motivos para a visita e que
43,3% visitam também para acompanhar outras pessoas. Os motivos para
a visita também variam conforme a instituição. Por exemplo, a diversão
é mais esperada entre os visitantes do Museu do Universo - Planetário
da Cidade (76,6%) e menos presente entre os do Museu de Astronomia e
Ciências Afins (50,5%) e do Museu do Primeiro Reinado (51,4%). Os visi-
tantes declararam mais de um motivo para a visita, indicando que a ida
ao museu resulta de interesses diversificados.

Gráfico 6: Distribuição percentual dos visitantes por motivo


declarado para a visita

73,7%
-
,--
62,1% -64,9% 60,5%

43,3%

Conhecer o Museu Interesse pelos Alargar horizontes Divertir-se Acompanhar outras


assuntos I · pessoas
exposições

{LUCiana sepúLveda koptcke, smeLe cazeLu e JOSé mat1as de uma} 87


Os visitantes vêm acompanhados
Poucos declararam visitar sozinhos (13,5%), sustentando que a visita
a museus é uma prática de sociabilidade. Apenas dois museus, entre os
participantes da pesquisa, apresentaram mais de 20% de visitas desa-
companhas: o Museu Antônio Parreiras (22,5%) e o Museu do Primeiro
Reinado (21,2%), seguidos pelo Museu Casa de Rui Barbosa (19,6%). En-
tre aqueles que não visitaram sozinhos, 43,6% o fizeram exclusivamente
com os familiares. Já, 26,6% visitaram apenas na companhia de amigos
ou namorados. Um outro grupo visitou em conjunto com familiares e
amigos, e ainda 11,4% chegaram aos museus em grupos organizados.
Nota-se, ao considerar as visitas exclusivamente em família e as que
mesclam familiares e amigos, que 61% das visitas acontecem em famí-
lia. O contexto social da saída ao museu varia entre as instituições. O
Museu Nacional e o Museu do Universo são os mais visitados por grupos
exclusivamente familiares, enquanto no Museu da Vida grande parte dos
visitantes declarou vir em grupo organizado (42,3%). As visitas entre ami-
gos foram mais citadas no Museu do Primeiro Reinado (41,3%).

Fatores que dificultam a visita


Os visitantes participantes da pesquisa, conforme indica o Gráfico
7, foram enfáticos ao afirmar que a falta de divulgação é um fator que
dificulta a visita aos museus (72,4%). O segundo motivo mais citado foi
a violência urbana (53,3%). Custos da visita (39,9%) e dificuldades de
transporte (38,6%) foram mencionados por cerca de 40% dos visitantes.
Os motivos apresentados diferem segundo o tipo de museu. Os custos de
uma visita foram mais citados no Museu da Vida (50,4%), no Museu do
Índio (47,3%) e no Museu de Astronomia e Ciências Afins (43,9%), tanto
nos pagantes como naqueles que não cobram ingresso. A falta de di-
vulgação foi mais deplorada no Museu do Primeiro Reinado (78,9%), no
Museu de Astronomia e Ciências Afins (76,8%) e no Museu Aeroespacial
(74,9%), enquanto entre os visitantes do Museu do Universo - Planetário
da Cidade (43,5%) e do Museu de Arte Contemporânea (42,4%) a dificul-
dade de estacionamento se fez mais presente que nos demais.

88 {museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas}


Gráfico 7: Distribuição percentual das citações dos visitantes quanto
aos fatores que dificultam a visita a museus

72.4%
.---

52,3%
r--

39,9% 38,6%
r--- 36,3%
- 34,7%
r--- 32.4%

Falta de Violência Custos de Dificuldade Custo do Dificuldade de Dias e horários de


divulgação/ urbana uma visi ta de tra nsporte/ ingresso estacionamento fu ncionamento
informação acesso

Quase todos pensam em retornar para uma próxima visita nos


próximos 12 meses ...
A grande maioria dos visitantes, 81,8%, declarou ter intenção de retor-
nar àquele museu nos próximos 12 meses. Voltar ao museu para mos-
trar a instituição para outra pessoa foi o motivo partilhado por 74,9% dos
visitantes. Conhecer uma nova exposição foi citado por 70,5%. Rever o que
mais gostou, assistir a um espetáculo, participar de atividade e complementar
ou aprofundar uma visita são motivos considerados por um pouco mais
de 60% dos visitantes. Trazer os filhos é um bom motivo de retorno para
45,3%, e uma visita estudiosa, para pesquisar, poderá trazer 42% de visi-
tantes de volta ao museu nos próximos 12 meses.

CoNSIDERAÇÕES

Lembrando ser este texto um primeiro exercício na construção de


um diálogo com as referências conceituais sobre a dimensão social do
acesso à cultura ou da dimensão simbólica da inclusão/exclusão social,
não se pretendia esgotar as questões de pesquisa lançadas na sua intro-

(Lucrana sepúLveda koptcke, smeLe cazeLu e JOSé matras de uma} 89


dução, mas propor um itinerário ou uma agenda de reflexão a partir de
um espaço de interlocução entre pesquisas similares e seus instrumen-
tos de análise (marcos .conceituais), principalmente com o trabalho de
pierre bourdieu. sobre· os museus de arte europeus, referência para a
discussão sobre a apropriação socialmente estratificada dos museus.
Como primeiro passo na construção desse diálogo, pode-se afirmar
que a leitura preliminar dos resultados da pesquisa piloto perfil-opinião
2005 sugere que o acesso aos museus decorre do acúmulo dos capitais
cultural e social. Na pesquisa sobre os museus de arte na europa, bour-
dieu identificou a escolaridade dos públicos como a variável explicativa
mais determinante do acesso aos museus. Dentre os visitantes então in-
quiridos, 55% possuíam o nível do bacharelado, equivalente, no brasil,
ao certificado de conclusão do ensino médio. Ao analisar o impacto de
outras variáveis, como classe etária, profissão, renda ou local de resi-
dência, o sociólogo encontrava sempre a relação entre estas e o nível de
escolaridade. Os museus franceses recebiam, nos anos 1960, um público
visitante relativamente jovem no seu conjunto, entre o qual37% tinham
entre 15 e 24 anos, enquanto na frança apenas 18% da população se en-
contrava nessa faixa etária.
Encontrou-se, na pesquisa 2005, pouco mais de um terço de visitan-
tes jovens (36,6% entre 15 e 29 anos), a grande maioria (95,2%) concluiu
o ensino médio e pelo menos 71,2% estavam cursando ou concluíram
o ensino superior, resultados inversos aos encontrados na população
da região metropolitana do rio de janeiro, onde apenas 23% estavam
cursando ou já concluíram o ensino superior (pnad, 2004). É interes-
sante perceber, embora se deva considerar o lapso de tempo trans-
corrido entre as pesquisas acima citadas (anos de 1960 e 2005) bem
como a realidade social, cultural e econômica das sociedades estuda-
das (França e Brasil), que os museus da pesquisa atraíram o público
jovem provavelmente em decorrência da proximidade temporal com
os anos de estudo formal. Cabe ainda lembrar que 75% dos visitantes
da pesquisa Perfil-Opinião declararam exercer atividade remunerada
e que mais de 50% daqueles que não exerciam atividade remunerada

90 {museus, coLeções e patRimÔmos: naimatJvas poufômcas}


eram estudantes. Note-se, ainda, que a maioria das visitas é realiza-
da em grupos, determinando a dimensão social desta prática. Nesse
sentido, a visita a museus pode ser percebida como mais proveitosa
ou significativa para sujeitos que integram algum tipo de rede social
(profissional ou de amizade) ou que, no caso de jovens pais, mobilizam
esforços para a educação de seus filhos, sugerindo uma possível con-
versão da visita, enquanto informação, significado cultural ou adesão
emblemática a determinados valores, em pretexto para estabelecer,
manter ou aprofundar a relação com membros de um dado grupo
social. O caminho inverso (reconversão de capital social em capital
cultural) também pode ocorrer, quando há o alargamento do capital
cultural incorporado (novos conhecimentos, atualização da informa-
ção a partir de fontes consideradas cultas e cultivadas) por intermédio
de relações sociais que valorizam e promovem o hábito de visita ao
museu, por exemplo.
Foram encontradas diferenças, ainda que sutis, entre o perfil dos
visitantes segundo os diversos museus participantes do estudo e alguns
dos aspectos da forma de visita e dos motivos, percepções e intenções decla-
radas. Propõe-se que os dados sejam analisados de forma a afinar a com-
preensão das diferenças no perfil e no comportamento dos visitantes.
Por exemplo, ao considerar o que Bourdieu colocou como proximidade
ou distanciamento do visitante com relação ao campo cultural/temá-
tico do museu, indicador da relação promotora entre capital cultural e
prática de visita, pode-se averiguar a implicação da visita reincidente
(versus "primovisitante"), do percurso escolar, da natureza da profissão
do visitante, da existência do hábito de visitar museus sobre os temas
de visita do museu em questão, no acesso e na forma de visitar o mu-
seu. Os resultados encontrados nesta pesquisa salientaram uma prática
"curiosa", afeita à descoberta de outras instituiçõ'es e exposições, com
motivações voltadas para o desejo de abertura cultural, em que a gran-
de maioria dos visitantes visitava aquele museu pela primeira vez. As
instituições participantes da pesquisa parecem encontrar dificuldades
para fazer retornar o público.

{Luciana sepúLveda koptcke, smeLe cazeLu e JOSé matias de uma} 91


Com relação à localização da instituição, percebe-se o jogo entre
oferta e procura, entre estímulo e possibilidade de acesso, tanto física
e financeira como simbólica, pois a cidade é socialmente segmentada e
apropriada, e a localização da instituição implica a proximidade física
a determinado grupo social ou a sua inclusão em certo "itinerário cul-
tural". Os públicos dos museus cariocas e do Museu de Arte Contempo-
rânea de Niterói declaram residir principalmente nos bairros da Tijuca,
Vila Isabel, Botafogo, Lagoa e Copacabana, bastante próximos de três
dos 11 museus participantes, porém um pouco mais afastados de qua-
tro destes, que se situam na APl (região do Centro do Rio, Portuária,
Santa Teresa, São Cristóvão, por exemplo). Cabe observar que os bairros
da APl vêm diminuindo seu caráter residencial ao longo do século XX.
Assim, os museus do Centro e os da Zona Sul recebem prioritariamente
visitantes da AP2, bairros com alta densidade residencial e nível elevado
de escolaridade e renda, enquanto os museus da Zona Norte (Museu da
Vida, MAST) acolhem, em maior proporção, visitantes que residem em
bairros da Zona Norte (AP3).
Em sua pesquisa sobre os museus de arte, o sociólogo francês suge-
riu que a forma de visitar (com mediação humana ou não) e o contexto
social da visita (em grupo, em família ou sozinho) pareciam se relacio-
nar com a classe social, em que aqueles que visitaram sozinhos eram
os indivíduos com maior nível de escolaridade e renda, relacionado às
profissões das classes superiores. Sem exatamente trabalhar com o con-
ceito de classe social, é interessante aprofundar a análise das relações
entre o contexto social da visita (com quem visita) e o capital cultural
(escolaridade, conhecimento de outros museus, existência de visitas
prévias). Também seguindo indicações da pesquisa dos anos 1960, pode
ser esclarecedor perceber quais visitantes preferem encontrar nos mu-
seus um guia, um conferencista ou contar apenas com painéis e etique-
tas, relacionando perfil de visitante e projeto museográfico, serviços e
estratégias de mediação cultural. Cabe ainda averiguar o impacto dos
investimentos dos museus junto ao sistema formal de ensino, propondo
observar se uma relação privilegiada com as escolas aumenta ou diver-

92 {museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas}


sifica socialmente o acesso à instituição. As questões acima levantadas
apresentam perspectivas interessantes de aprofundamento e continui-
dade para esta pesquisa.
Os resultados da pesquisa Perfil-Opinião que vimos sumariamente
descritos, contribuem para estabelecer um espaço de reflexão sobre
a dinâmica de acesso aos museus e revelam a necessidade de pesqui-
sas contínuas, tanto quantitativas como qualitativas, que contribuam
para a compreensão da complexidade dos processos sociais da apro-
priação da cultura.

RefeRênciaS BIBLIOGRáfiCaS

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(Luciana sepúLveda koptcke, smeLe cazeLu e JOSé ma tias de uma} 93


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94 {museus, coteções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas)


de aRmas do fetiCHismo
I\
a patRimOniO CULtURaL:
as tRansfoRmações do vaLoR
museoGRáfico do candomBLé em
saLvadoR da BaHia no sécuLo xx1
Roger Sansi-Roca

S alvador da Bahia se sente como a capital natural da cultu-


ra afro-brasileira, a "Roma negra", como dizia Mãe Aninha.
O candomblé e seus objetos são uma parte central da vida da cidade.
Claro que, em um tempo, essa centralidade foi dissimulada, escondida e
perseguida, e agora é predicada com orgulho, exibida, alardeada.
Esse processo, do recalque à publicidade, não pode ser simplesmente
explicado como o triunfo final de uma cultura resistente sobre a opres-
são da cultura dominante. A história é bem mais complexa, envolvendo 1. Este artigo é resul-
tado da minha pes-
trocas e negociações entre diversos grupos sociais, que culminam com quisa de campo em
Salvador, Bahia, entre
a formação do que hoje é a "cultura afro-brasileira" de Salvador. Quan- 1999 e 2003. Devo
agradecer profun-
do falo de formação, não estou questionando a "cultura afro-brasileira"
damente a ajuda do
como uma tradição inventada ou uma comunidade imaginária. Ao con- Museu Afro-Brasileiro
do CEAO-UFBA, a
trário, estou afirmando a presença inegável, no Brasil atual, de uma rea- Fu ndaçáo Pierre Ver-
gere especialmente
lidade social formada historicamente, uma instituiÇão social no sentido ao Dr. Ordep Serra,
que me facilitaram o
mais amplo, com seus espaços, discursos, sujeitos e objetos. acesso a grande parte
Neste artigo, vou tentar explicar essa formação histórica desde a dos documentos que
cito aqui.
perspectiva dos objetos, essencialmente por intermédio dos objetos e
espaços museográficos. O ponto que acho central nesse processo de mu-

{ROGeR sansi-ROCa} 95
seificação da cultura afro-brasileira em Salvador é o momento da in-
corporação, por parte de uma elite de casas de candomblé, dos valores
e instituições da cultura e dos museus. Isto é: essa elite de casa de can-
domblé aprendeu a se· definir em termos de cultura e como instituição
cultural, e a negociar o seu lugar na sociedade brasileira por intermédio
das instituições da cultura.
Os museus são, e sempre foram, de fato, areias da construção dessa
relação entre o candomblé e o mundo da cultura oficial tanto no nível
nacional como internacional. Nesse sentido, gostaria de estender a pro-
2. "As in the colonial
examples evokeo by posta de ]ames Clifford, de ver os museus como "zonas de contato"2 nas
Pratt, negotiations of
borders and centers
quais os museólogos e os assim chamados "nativos" negociam sua rela-
are historically struc-
ção. Às vezes o contato é amigável e construtivo, outras vezes é hostil
tured in dominance.
To the extent that e polêmico; mas ainda assim os museus podem ser vistos como espaços
museums understand
themselves to be in- de produção de culturas. O discurso dominante na teoria crítica nas úl-
teracting with specific
communities across timas décadas tem descrito os museus como instituições de controle so-
such borders, rather
than simply eoucating
cial e imposição de ideologias hegemônicas (Vergo, 1989; Sherman and
and edifying a public, Rogoff, 1994; Marstine, 2006). 3 Mas poderíamos dizer que os museus não
they begin to opera te
consciously and at são só espacos de dominação, mas também fóruns de discussão de valo-
times self-critically in
contact histories" (Cii - res culturais (Karp and Lavine, 1991; Thomas, 1999).
fford 1997, p. 204) .
E poderíamos ir mais longe. Os museus poderiam ser ferramentas de
3. Por exemplo, "mu-
seums both sustain construção da cultura como tal, isto é, dentro deles alguns tipos de ob-
and construct master
narratives that achieve
jetos e os discursos a eles associados viram "cultura" e "arte". Eles não
an internal unity by são só cenários de negociação entre culturas, ou fóruns, mas também
imposing one cultural
tendency as the most oficinas onde construímos os valores da própria "cultura", a cultura
prominent manifes-
tation of a historical como instituição pela qual definimos o valor do próprio e do alheio.
period" (Sherman
and Rogoff, 1994:
Poderíamos dizer também que esse valor não é necessariamente re-
xi); "though museum
duzível à imposição das relações de poder, um valor de troca alienado
workers commonly
naturalize their poli- ou um desejo projetado. A revalorização do objeto como "cultura" pode
cies and procedures as
professional practice, não ser só um resultado da perspectiva etnocêntrica do curador. Pode
the decisions these
workers make reflect ser também o resultado de uma história de trocas entre produtores,
underlying value
systems that are en-
curadores e o público do museu, que produz ainda uma nova revalori-
codeo in institutional zação desses objetos. Os museus podem ajudar a construir certos valo-
narratives" (Marstine,
2006, p. 5). res sociais, incluindo os que chamamos "culturais" (Myers, 2001). Nesse

96 {museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcasj


sentido, os objetos ali mostrados não são apenas representações de cul-
tura, mas também modelos para a reprodução da cultura, modelos para
a prática. Eles informam não só sobre o que é a cultura, mas também
sobre o que deveria ser.
Neste artigo vamos ver como a apresentação museográfica do can-
domblé afetou sua presença pública durante o século passado, das cole-
ções policiais até os memoriais dos terreiros. Não vou somente descrever
as apresentações do candomblé através do tempo, mas também argumen-
tar que essas imagens museais têm resultado nas mudanças na imagem
pública do candomblé, e em como essa imagem é negociada na Bahia.
Vamos começar pelas coleções mais antigas, o Museu de Medicina Legal
Estácio de Lima e a coleção do Instituto Geográfico e Histórico, consti-
tuídas no início do século. A seguir, vamos apresentar o caso do Museu
Afro-Brasileiro, criado nos anos 1980, que já apresenta esses objetos como
"culturais". Finalmente, vamos falar sobre os "Museum no temple", as co-
leções mostradas nos terreiros, particularmente o museu do Ilê Axé Opô
Afonjá. Em todos os casos, vamos dar atenção especial às transformações
de valor em alguns objetos em particular, suas histórias e trajetórias.

UM GABINIETE DE CURIOSIDADES:
O INSTITUTO GEOGRÁFICO E HISTÓRICO

É importante assinalar que o candomblé sempre foi parte das co-


leções museográficas nessa cidade, desde os seus inícios. Um dos pri-
meiros museus da Bahia, a coleção do Instituto Histórico e Geográfico
da Bahia,já recolhia objetos de candomblé. A máxima do Instituto His-
tórico e Geográfico do Brasil, como lembra Lilia Moritz (1993, p. 137), é
"Coletar para bem guardar. Guardar para bem servir". Colecionar do-
cumentos e objetos, construir arquivos e museus, era um dos objetivos
principais dos institutos. Manter um registro .do passado era também
uma forma de manter e legitimar os direitos de propriedade e a própria
versão da história das elites locais. Assim, o Instituto Histórico e Geo-
gráfico da Bahia é fundado em 1894, com a clara função de escrever uma

{ROGeR SaTISI-ROCa) 97
história local que priorizasse o rol da aristocracia local e a importância
da província dentro do Brasil.
A coleção do IHGB é essencialmente um gabinete de curiosidades.
4. Em 1919, o Dr. Muitos dos objetos da coleção estão agora perdidos, mas podemos achar
Álvaro Reis doou
"1 pilão de Oxalá, 1 referência a eles no jornal do Instituto, que faz referência às doações rece-
santo africano, 1 iché
de Xangô". O Coronel
bidas. Essas doações incluem medalhas comemorativas, coleções de ar-
Arthur Athayde doou mas, selos, pinturas, lembranças de guerra, minerais, bandeiras, restos
"Aros, rosanas, talhas,
moringas, feitiços, da aristocracia dos fazendeiros da província ... Todos esses objetos foram
pedras, roupas,
enfeites de plumas acumulados progressivamente, e sem uma intenção didática precisa;
de várias qualidades,
orações escriptas
são resultado de histórias particulares e eventos, suvenires e raridades.
etc. etc." (Revista do
Instituto Geographi-
Entre essas raridades, encontram-se os objetos do candomblé.
co e Historico, n. A origem da maioria desses objetos é incerta. Ainda assim, temos
45, ano XVI, 1919,
p.282) . Em 1926, o algumas provas de que vários são resultado de apreensões policiais. Nas
Profesor Bernardino
Madureira doou "3 relações de doações ao IHGB constam os nomes de oficiais da polícia,4 e
ata baques e santos:
(Oxalá, Oxum, Oledê),
nos jornais da época várias notícias fazem referência a expedições po-
"aprehendidos pela liciais que deixam os "arsenais de feitiçaria" (A Tarde 20 mai. 1920), os
polícia" (Revista do
IGH, n. 52, 1926, p. "apetrechos bélicos" (A Tarde 3 out. 1922) do candomblé no IHGB. Uma
415). Em 1927, o
Dr. Aristides Mendes placa no Instituto indica que muitos desses objetos foram doados por
deu 3 ata baques e
1 agogô (Revista do
um oficial da polícia, Pedro Gordilho. Gordilho é "Pedrinho Gordo" da
IGH, n. 53, 1927). Em
1934, o Dr. Federico
Tenda dos milagres de Jorge Amado, segundo a legenda grande flagelo do
Ferreira Bandeira deu candomblé nos anos 1920.
7 "idolos"do pai-de-
santo Severiano. da O objetivo dessas expedições, teoricamente, era perseguir a "falsa
Fazenda Engenho
Madruga, em São medicina": acabar com as traças do fetichismo negro para permitir o
Francisco do Conde
(Revista do IGH, n.60,
desenvolvimento de uma sociedade moderna. Mas os objetos recolhidos
1934, p.577) . Em
pela polícia nem sempre correspondem ao que poderíamos considerar
1937, o Capitão Han-
nequim Dan tas deu como provas de "falsa medicina" - como remédios ou folhas; são outros
atabaques proceden-
tes do "Candomblé tipos de objetos. Por exemplo, a cadeira do pai de santo ]ubiabá, que ain-
da Mata Escura"
(Revista do IGH, n. da se encontra lá: pelos jornais da época, sabemos que em 5 de outubro
62, 1936).
de 1921, a polícia entrou no terreiro de ]ubiabá em companhia de um
jornalista. A invasão foi claramente preparada para dar uma lição ao
então famoso pai-de-santo. O jornalista explica graficamente como os
policiais se apropriaram da cadeira de ]ubiabá justo no momento em que
ele ia cair em transe, sentado, rodeado por seus "acólitos":

98 {museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas}


Dava vontade de rir. A multidão que ali mal respirava, com a maior contrição, incli-
nava as cabeças, ficando nessa incômoda posição até que o feiticeiro solenemente
tomou assento. (...) Nesse ponto, o subdelegado entrou na sala, fazendo valer a sua
posição de autoridade e interrompendo a ridícula comédia. Un raio que tivesse caído
na casa, não provocaria tamanho susto.( ...) jubiabá estava assentado na sua cadeira
dourada, rodeado dos seus acólitos paramentados como ele. Preparava-se, de olhos
fechados fingindo-se possuído pelo espírito, a receitar as pessoas doentes que, cre-
dulamente, o procuravam.( ...) A polícia tratou de apreender a cadeira do explorador
e as musangas e ídolos de pau que formavam os deuses do culto, remetendo toda
aquela extravagante coleção para o posto policial."( A Tarde, 07.10.1921)
É interessante apontar a importância que os policiais dão à cadeira.
É lógico se apropriar da cadeira de um criminoso? É verdade que Jubiabá
foi acusado de praticar "falsa medicina" - e portanto é lógico pensar
que seriam requestadas folhas e objetos de curandeirismo -, mas por
que a cadeira? De fato, ela tem uma importância própria no candom-
blé: pode ser literalmente um assento do poder (Axé) do pai-de-santo.
Podemos suspeitar que os policiais tivessem familiaridade com o can-
domblé e suas práticas - e reconhecem os elementos centrais do ritual
com facilidade -, ainda que nesse reconhecimento eles contradigam os
princípios supostamente racionais da colheita de provas do crime. São
as armas místicas da feitiçaria, e não as provas da falsa medicina, o que
eles procuram. Essas armas são atabaques, contas e otás (pedras) - ele-
mentos sem dúvida centrais no candomblé, mas que dificilmente seriam
identificados como "armas" por pessoas que não estivessem familiariza-
das com o culto. Isso é normal, dado que os policiais vinham das mes-
mas camadas sociais que os praticantes de candomblé: alguns inclusive
eram iniciados. O mesmo Pedro Gordilho, contam as legendas da Bahia,
teria sido amante e ogã de uma mãe-de-santo (Lühning, 1996).
O resultado, paradoxal, é que, perseguindo as·práÚcas da feitiçaria,
os policiais reconhecem o seu valor; não o negam- não vêem a feitiçaria
como uma forma de falsa consciência, mas como u~a técnica efetiva
(Maggie, 1992). Nesse sentido, a luta pelo "progresso" e a "modernidade"
continha notáveis ambigüidades.

{ROGeR sanSI-ROCa} 99
Do CRIME À PATOLOGIA: O MUSEU ESTÁCIO DE LIMA

Contra essas ambigüidades, essas corrupções do projeto de moder-


nidade, é que lutava Raymundo Nina Rodrigues, médico legista, etnó-
grafo pioneiro e fundador de uma outra coleção, que com o tempo será
o Museu de Medicina Legal da Bahia. Rodrigues combatia as repressões
policiais ao candomblé, argumentando que os negros, como raça infe-
rior, não podiam ser sujeitos ao código penal como os brancos. Nina Ro-
drigues defendia que o candomblé era uma expressão de doença mental
e que, portanto, cabia aos médicos, e não à polícia, controlá-lo (Rodri-
gues, 1906). Assim, Nina Rodrigues é o primeiro a ver o candomblé como
objeto de pesquisa científica, e seus objetos como sintomas de doença e
degeneração racial, não como armas de um crime. O que é importante
sublinhar também é que Nina Rodrigues vê o candomblé como uma sub-
sistência africana, como uma prática que vem de fora do Brasil, inaugu-
rando assim a escola de Estudos Afro-Brasileiros da Bahia, que procurou
traçar na África a origem das práticas religiosas que a partir daí serão
definidas como afro-brasileiras.
Entre outras atividades, Rodrigues formou uma coleção de Medicina
Legal na qual se exibiam objetos de candomblé, classificados como obje-
to de "Antropologia cultural", ao lado de objetos de Anatomia patológica
e Antropologia médica. Ao lado dos objetos de candomblé, havia objetos
de interesse para especialistas em autopsia, como uma coleção de mos-
cas necrófilas, e objetos de análise frenológica- incluindo as cabeças de
criminosos famosos, como o profeta Antonio Conselheiro (Lima, 1979).
Depois da morte de Nina Rodrigues, seus discípulos continuaram e
ampliaram a coleção. A partir de 1926, Estácio de Lima dirigiu o Museu
de Medicina Legal. Ele acrescentou à coleção objetos criminológicos
como armas homicidas e fetos humanos disformes e objetos de crime,
como drogas. Além disso, também mostrou as cabeças dos famosos can-
gaceiros Lampião e seu bando. Também foram acolhidos objetos de can-
domblé, alguns comprados por Estácio da Lima, outros provavelmente
fruto da colheita da polícia - ainda que isso seja objeto de discussão.

100 {museus, coLeções e patRJm8mos: naRRativas pouf8mcas}


Um grupo de intelectuais associados a casas de candomblé, consti-
tuídos na Sociedade de Proteção e Defesa dos Cultos Afro-brasileiros,
denunciou o Museu de Medicina Legal em 1996 por "ameaça à moral
pública", 5 argüindo que obras de arte sacra negra não deveriam ser S. "Ameaça para a
moral pública" . Pro-
mostradas como objetos de interesse criminológico e patológico, num cesso n. 27007049-5,
9/1 0/96. Agradeço
discurso racista e perverso. Eles argumentavam, aliás, que a maioria profundamente ao Dr.
desses objetos fora recolhida em uma época de repressão policial. Eles Ordep Serra ter-me
permitido o acesso a
pediam que esses objetos fossem mostrados com dignidade, como arte esse processo.

sacra negra. A Sociedade e o museu chegaram a um acordo parcial, e 6. Processo n.


27007049-5,
agora a coleção afro-brasileira do Museu de Medicina Legal se encontra 9/10/96.

no Museu da Cidade.
O interessante do caso é que o coletivo de defesa da cultura negra
não pede o retorno das peças de candomblé às casas de onde eles vêm
- dentre outras razões porque não têm nenhuma notícia sobre a ori-
gem das peças. Mas, além disso, eles concordam com a legitimidade
da instituição museográfica como um lugar onde essas peças podem
ser mostradas. Eles só não concordam com o tipo de museu: não vêem
essas peças como objetos de análise médico-legal, mas como obras de
arte sacra negra - a serem mostradas em um museu de arte, de forma
"condigna". Os valores do museu, a arte e a cultura, valores perfeita-
mente modernos, ocidentais, foram assumidos pelos membros do can-
domblé como legítimos.
Mas havia uma exceção: o atá, ou pedra sagrada do candomblé. No
relatório do processo, o otá é citado como uma peça que não pode ser
mostrada, sendo a sua exibição um sacrilégio. 6 O otá não é uma obra de
arte ou artefato: seu poder imanente tem de ser respeitado; tem que ser
escondido, e não mostrado. Seguindo esse argumento, o caráter "sagra-
do" do otá não é transformado pelo museu. Assim, ainda que os repre-
sentantes do candomblé tenham apropriado os valores culturais repre-
sentados pelo museu e reconheçam que a maioria dos seus objetos de
culto tem um valor cultural, ainda existem objetos que ficam fora dessas
considerações museológica, e as dinâmicas de invisibilidade e segredo
do candomblé ainda estão presentes neles.

(ROGeR sanst-Roca} 101


Mas, finalmente, o que aconteceu com esse otá? Se era um objeto
sagrado, poderíamos esperar que ele voltasse a um terreiro, ou simples-
mente fosse "desconsagrado", como acontece com os assentos dos filhos-
de-santo depois da morte. Mas não foi assim: ele ficou no porão do Mu-
seu. Por quê? O valor' do otá não é apenas resultado do ritual genérico
de consagração, mas da sua história particular (Sansi, 2005). E aquela
pedra tem uma história longa e complexa. Não sabemos que formas de
entidade podem ainda estar presentes na pedra e, desse jeito, é difícil
recontextualizá-la dentro de um templo. O que aconteceu com a pessoa
que fez o seu Orixá com esse otá? Ninguém sabe. Ainda que fosse pos-
sível identificar os Orixás da pedra através dos búzios, outra coisa se-
ria tomar conta dela, construir um altar para ela, fazer as obrigações ...
Assim, a pedra fica numa situação de indeterminaçao latente, entre o
museu e o templo: no porão.
Vamos voltar a esse caso depois. Mas o ponto central a considerar
agora é a reivindicação de que os objetos de candomblé devem ser va-
lorizados como arte e cultura, não como armas de crime ou sintomas
patológicos. Essa nova forma de ver esses objetos foi formulada no con-
texto de outras instituições, como o Museu Afro-Brasileiro.

0 ETERNO PRESENTE ETNOGRÁFICO DA ÁFRICA-BAHIA:


o MusEu AFRO-BRASILEIRO

Os enfrentamentos entre o Museu Estácio de Lima e a Sociedade de


Proteção e Defesa dos Cultos Afro-brasileiros é uma mostra de um confli-
to mais generalizado, que tem tido lugar na Bahia nos últimos cinqüenta
anos, entre uma velha casta de intelectuais e homens de ciência que
saem da escola de Medicina e uma nova cultura que emerge da aliança
de artistas, cientistas sociais e elites do candomblé baiano depois dos
anos trinta, quando um novo discurso modernista percebe na herança
africana uma parte essencial da cultura brasileira. Artistas, pintores,
escritores, etnólogos vão começar a visitar as casas de candomblé não só
para estudar a doença, mas para admirar a beleza, a cultura.

102 (museus, coLeções e patRim8mos: naRRativas pouf8mcas}


A partir dos anos cinqüenta, foram criadas instituições de promoção
dessa cultura afro-brasileira, como o Centro de Estudos Afro-orientais da
UFBA. O CEAO foi criado não só como um centro de pesquisa, mas também
como um instrumento político de relações internacionais, nacionais e até
locais (Santos, 2000). Seu objetivo era construir uma rede de trocas entre
a comunidade universitária local e internacional e o povo Salvador.
O Museu Afro-brasileiro foi projetado no início dos anos setenta den-
tro do CEAO. Nessa época foi projetado um museu "composto de coleções
de natureza etnológica e artística sobre as culturas africanas e sobre os
principais setores de influência africana na vida e na cultura do Brasil".7 7. Termo de Convênio
Ministério das Rela-
Além disso, o museu deveria incentivar "a criação artística de temática ções Exteriores/Mi-
nistério da Educação/
afro-brasileira, mediante subvenções ou concursos de natureza literá- UFBaJPrefeitura Mu-
ria, musical, teatro e dança". 8 nicipal de Salvador,
citado em Santos,
Um dos intelectuais mais implicados no projeto foi o fotógrafo e et- 2000, p.128.

nólogo francês Pierre Verger. Figura idolatrada da etnografia afro-brasi- B.ldem.

9. Carta de Verger
lianista, Verger era um fotógrafo errante até que descobriu a Bahia nos
ao Departamento de
anos 1940, seguindo suas leituras de Jorge Amado. Sua paixão pelo can- Cultura do ltamaraty
(MRE), 9/7/1975.
domblé transformou-se em pesquisa etnográfica, não só na Bahia, mas
essencialmente na África, em Benin e na Nigéria. Verger tem uma visão
radicalmente diferente da de Nina Rodrigues: para ele, o candomblé é
arte e cultura, não patologia. Ainda assim, Rodrigues e Verger compar-
tilham a convicção de que o candomblé da tradição Nago-Ketu, essen-
cialmente aquele praticado pelos terreiros da Casa Branca e do Ilé Axé
Opô Afonjá, é o mais puro, o mais africano e o mais interessante como
objeto de pesquisa. Assim, Verger vai procurar na África as origens desse
candomblé africano, e no trajeto vai virar um "mensageiro dos deuses", o
contato entre as tradições dos Orixás e Vodus na África e na Bahia.
Verger foi comissionado pelo Itamaraty para comprar peças para o
museu em Benin em 1975. Depois de três meses Iá, ele voltou com 251
itens. Comprou alguns objetos de arte antigos, mas a maioria fora feita
por encomenda por artesões em Porto Novo e Abomey. Ele pediu cópias
de obras de arte, como a escultura de Gu do Museu do Homem em Paris.
Verger observa com satisfação que o custo da cópia é apenas $50;9 o total

{ROGeR sanSI-ROCa} 103


10. Carta de Verger custou apenas $2,987.10 O conjunto, informa Verger, sendo modesto por
ao Departamento de
Cultura do ltamaraty causa da falta de tempo e recursos, e ainda assim "representativo".U No
(MRE), 9f7/1975.
projeto inicial, esperava-se poder incorporar peças afro-brasileiras de
11 . Carta deVerger
ao Departamento de coleções de todo o país, ·mas isso nunca aconteceu. 12 Além dos problemas
Cultura do ltamaraty
(MRE), 20f7/1975.
em concretizar a coleção, o novo museu gerou outros conflitos. O museu
12 . Manuscrito para
tinha de ocupar o antigo prédio da Faculdade de Medicina, no terreiro
um projeto do Museu
Afro, arquivo da Fun-
de Jesus, na época em estado de ruína. Essa ocupação foi imediatamente
dação Pierre Verger. rejeitada pela classe médica. Raymundo de Almeida Gouveia, represen-
13. "IBHM conta tante do IBHM, declarou: "Considero que haverá verdadeira profanação
instalação de Museu
na ex-Faculdade de sobretudo se amanhã, como será possível, o Museu do Negro servirá de
Medicina".ln: Tribu-
na da Bahia, OB de abrigo às práticas do candomblé, hoje já sofisticado e adulterado por
ago.1974.
aproveitadores e improvisados etnólogos". 13
14. "Des nombreux
ambassadeurs de A Escola de Medicina procurou reocupar a antiga sede, gerando um
pays africains étaient
également présents,
conflito que adiou por cinco anos a inauguração do museu. Finalmente,
ainsi quedes person-
quando inaugurado em 7 de janeiro de 1982, praticamente só contava
nalités i/lustres de la
communauté loca/e com as coleções a portadas por Verger. A inauguração foi prestigiada por
et des représentants
des plus traditionnels representantes de autoridades locais, embaixadores africanos e lideran-
'"terreiros de candom-
blés" et des entités ças do candomblé. 14 Nas palavras de um representante do Congo: "esse
culturelles telles que
"afochés" et "blocos·
museu materializa vividamente as conexões culturais e históricas entre
afro-bahiannais, a África e o Brasil".15
confirmant, ains1: les
buts que /e Musée se Mas que conexões? Isso não ficava muito claro para alguns, como
propose primordiale-
ment, c'est à dire, la Jorge Amado, que opinava que o museu não refletia muito a história do
participation effective
de plus en plus gran-
Brasil: não fazia referência à escravidão:
de de la communauté
O Museu como está se reduz aos aspectos etnográficos, religiosos e artísticos. Falta a
bahianaise dans
toutes ses activités et parte histórica ... Toda a história da escravidão e da luta contra a escravidão que ne-
/e renforcement des
relations culturelles cessariamente tem que ser parte do Museu, parte essencial, inexiste. Não vi sequer
du Brési/ avec /es pays
africains". Editorial, em qualquer das estantes o grande livro de Pierre Verger sobre o tráfico. Nenhum
Afro-Asia 14, 1983.
documento, nenhuma peça ... Nada que recorde os quilombos, os heróis negros, a
15. "Cemusée
matérialise de façon
saga de Palmares. Nada que fale da revolta dos malês. (Amado, 1982)
vivante les liens his-
No museu não faltava história, mas também do "Brasil, ou seja, de tudo
toriques et culturels
qui unissent /e Brési/ à que represente expressão do sincretismo. Ainda é um Museu muito mais
I'Afrique·. idem.
africano do que brasileiro, pois não conta com essa África que ali vemos,
na riqueza da sua criação, como ela se fez Brasil; não conta como os negros

104 {museus, coteções e patRim8mos: naRRativas pouf8mcas}


exercendo e impondo a mistura das raças, sangues e culturas, se fizeram
mestiços brasileiros" (Amado, 1982).
Amado criticava o obscurecimento do processo histórico que conec-
tava os negros brasileiros hoje com o passado africano. As origens afri-
canas eram apresentadas no museu como um passado arqueológico, dis-
tante e misterioso. Na mostra, os objetos eram identificados muito ge-
nericamente: sua autoria era raramente reconhecida (apesar de Verger
ter dado os nomes dos autores de todas as peças), sem data de produção,
e eram apresentados muito vagamente, como tendo um "uso ritual". Em
uma entrevista em 1978, o então diretor do Museu (ainda em projeto),
Souza Castro falou nesses termos sobre as esculturas que Verger enco-
mendara quatro anos antes:
A autoria dessas peças, também, não se pode determinar, porque o trabalho de es-
cultura ou de entalhes nas sociedades tradicionais, pode-se di zer, é uma atividade
quase sempre transmitida de pai para filho, famíla de artesãos, que, em geral, não
se preocupam com a individualização dos seus trabalhos. 16
Sem duvida, Souza Castro sabia que essas peças tinham sido feitas 16. Jornal da Bahia,
Salvador 13/1/1978.
especificamente para o museu, por artesões identificados. Mas o argu-
17. É preciso dizer,
mento dele não é uma simples mistificação, mas a aplicação do discurso porém, que no ano
2000 o Museu Afro·
arqueológico/etnológico sobre o objeto, baseado na noção de "autentici- Brasileiro foi remede·
lado. Seguindo um
dade". Os objetos do museu têm de ser antigos, arcanos e únicos. Quem é projeto da museóloga
o autor não importa, porque as sociedades africanas não dariam impor- Salum (1997), a nova
exposição começa
tância ao autor individual; eles são produtos coletivos de uma cultura. com um mapa do
tráfico de escravos;
Esses argumentos são evidentemente falsos, mas também têm uma im- os materiais estão
mais bem explicados,
portância política: podemos entender a "aura" benjaminiana que Souza e os nomes dos au-
Castro dá aos objetos como uma forma de defender o seu valor como tores das peças são
mostrados, seguindo
patrimônio cultural numa situação em que a definição da cultura afro- a documentação
de Verger.
brasileira como "cultura" ainda era sujeita a polêmica. 17
É interessante assinalar também que o museu contou com muitas
doações de mães e pais-de-santo. Por exemplo, a Mãe Cacho de Muritiba
doou as roupas de Ogum, seu pai-de-santo, dizendo:
Torna-se pública a cultura afro-brasileira que estava oculta e que de hoje em diante
precisa ser conhecida. Quanto aos orixás expostos na entrada do Museu, estão intei-

{ROGeR sansi-ROCa) 105


18. Nota do arquivo ramente integrados nos princípios religiosos. Nós doamos uma das últimas roupas
do Museu Afro-Sra-
siletro. do Ogum do meu pai-Ogum Meregê-Manoel Cerqueira Amorim.' 8
19. Memorial Mae É interessante esse reconhecimento do valor da cultura como um
Menminha do Gan-
tois. Fundaçao Cultu- tornar-se público. Todas as mães-de-santo que doaram roupas especifi-
ral do Estado Rio de
Janeiro, 1992.
caram a quem pertenCiam e a sua genealogia espiritual. Esse é um ponto
20 . "Em setembro
importante para entender a formação dos memoriais nos terreiros.
de 1980, em Lagos,
N1géria, a ialorixá Ma-
ria Stella de Azevedo Ü MUSEU NO TEMPLO: CULTURA E PATRIMÔNIO NOS TERREIROS
Santos sentiu a neces·
sidade de preservar a
cultura iorubana atra-
vés de uma das suas Nos anos noventa, começaram a ser projetados memoriais nas casas
dimensões básicas: a
religiosa. Pensou em
de candomblé mais aristocráticas de Salvador, como a Gantois e o Opo
criar um museu do Afonjá. O Memorial de Mãe Menininha do Gantois mostra suas roupas,
Ilê Axé Opô Afonjá
a fim de dotar essa contas, fotos de Menininha com pessoas importantes, até o seu bastão,
comunidade de uma
dimensao histórico- mais duas imagens de São Jorge e Santa Escolástica. Fica no espaço onde
cultural explicitada
e continuada no tra-
ela morou. 19 Muitas pessoas importantes da cultura e da política baiana,
balho de gerações.
Propôs, em outubro
incluindo Antonio Carlos Magalhães, sempre tiveram uma ótima rela-
de 1980, à sociedade ção com o Gantois.
civil Cruz Santa do Axé
Opô Afonjá, a criação A identificação do Gantois com a mãe-de-santo é importante. Pode-
de uma commisão
para estruturar o mos ver também a identificação da história da casa com as mães-de-san-
Museu, o que não
ocorreu por diversos
to no museu do Ilê Axé Opô Afonjá, o Ilê Ohum Lailai, a "Casa das coisas
motivos" (Campos antigas" em ioruba. Esse Museu foi projetado por Mãe Stella, ela quando
1999, p. 170 ).

21 . Campos, 19g9,
voltou da África "com o fim de dotar essa comunidade de uma dimensão
p. 171 histórico-cultural explicitada e continuada no trabalho das gerações". 20
O museu do Opô Afonjá apresenta esse terreiro como o local da cul-
tura africana no Brasil, onde as imanências são preservadas:
Ressaltar a presença forte e íntegra da religião e da cultura ioruba nesta casa(...)
como as imanências, essências preservadas e cuidadas transcendem as dimensões
contingentes, circunstanciais: perseguições policiais, distorçoes ambientais e inte-
reses individuais. Não é um museu de candomblé (... ) mas sim um depoimento, um
museu do Ilê Axé Opô Afonjá, sobre a cultura e religião ioruba, da qual o Axé aqui
no Brasil é depositário e mantenedor.U
O Ilê Ohum Lailai explica essencialmente a história do Opô Afonjá
através das histórias de vida das mães-de-santo da casa, com seus objetos

106 (museus, coteções e patRimÔmos: naRRatrvas poufômcas}


e roupas, explicando os êxitos das respectivas "rainhas". No centro tem
um espaço reservado para a atual mãe-de-santo Stella, explicando as
mudanças que ela trouxe para a Casa. A mudança fundamental: a nega-
ção do sincretismo. Os santinhos católicos, que tinham recebido culto
no terreiro antes dela, são ali mostrados como demonstração de respei-
to, mas também, de fato, como objetos dessacralizados. Eles são só lem-
branças do passado. Depois que Stella rejeitou o sincretismo nos anos oi-
tenta, esses santinhos tinham ficado escondidos num porão. A rejeição
do sincretismo foi muito polêmica, inclusive dentro do terreiro: muitas
filhas-de-santo eram tão católicas como o candomblé, e sempre faziam
rezas para os santos antes das festas. Passada a polêmica, no ano 2000,
os santinhos foram colocados no museu. Nos termos de Stella: "não pre-
cisamos mais colocar imagens de santos católicos para legitimar nossos
rituais. O sincretismo faz parte de passado". ("Inaguração do museu Ilê
Ohum Lailai", Correio da Bahia, 23 abr. 2000).
No Ilê Ohum Lailai as essências são explicadas através da vida e
da trajetória individual das mães-de-santo da casa. Os objetos, apetre-
chos, cadeiras, ou "tronos", suas roupas, são o elemento central da ex-
posição. Mais que um museu de arte ou etnografia, o Ilê Ohum Lailai
é o museu de uma dinastia real. O espaço central da casa é dedicado
à mãe-de-santo atual, louvando os principais êxitos do seu "reinado".
O principal é a rejeição do sincretismo, mostrada graficamente com a
exibição dos santos que antigamente eram objeto de culto, agora mos-
trados apenas como lembrança dos tempos antigos. A rejeição do sin-
cretismo é a apoteose de Mãe Stella.
Em definitivo, o museu do Opô Afonjá explica a cultura ioruba "pura"
como a história de uma linhagem aristocrática de mães-de-santo, mos-
trando lembranças e relíquias das rainhas do candomblé. Nos termos de
Anette Weiner (1991), são "possessões inalienáveis", objetos que segu-
ram a história e a continuidade objetificada de.um valor.
De alguma forma, voltamos no início: como as coleções do Institu-
to Histórico e Geográfico, esse museu é um quarto dos troféus e das
lembranças de uma certa autodesignada aristocracia. Dessa vez, po-

(ROGeR S3llSI-ROCa} 107


rém, essa aristocracia não está formada pelos filhos dos senhores de
engenho, mas pelas mães-de-santo, as sacerdotisas negras. Acho que
essa analogia não é de fato forçada. A cultura do candomblé e a política
do candomblé em Salvador nascem no ocaso do sistema escravista no
Brasil. O nascimento ·do candomblé de fato é perfeitamente contempo-
râneo à aparição dos institutos históricos. O bacharel e a mãe-de-santo
aparecem no mesmo tempo, no ocaso do senhor de engenho. Podemos
ver as duas instituições como tentativas de renegociar os discursos so-
bre o poder e a autoridade, as práticas de reprodução do valor, de tran-
sição de possessões inalienáveis na Bahia - tentativas inevitavelmente
marcadas pelo aristocratismo e paternalismo da sociedade tradicional
baiana. Acho que não seria excessivo declarar a modernidade das duas
- ainda que radicalmente diferentes (Palmié, 2003). No fim, parece que
a modernidade do candomblé na Bahia triunfou acima dos institutos
históricos, cujas coleções caem no esquecimento, enquanto políticos,
intelectuais e artistas do mundo inteiro rendem homenagem às rai-
nhas da cultura afro-brasileira.
Mas ainda assim o que é realmente valioso do terreiro, os assentos
onde reside o axé da casa, não é mostrado -porque não pode ser mostra-
do. O que é mostrado, por outro lado, tem a ver com as mães-de-santo,
que são a ligação, a mediação entre o valor secreto dos assentos e o valor
público da cultura afro-brasileira. Mas esse ponto precisa de uma argu-
mentação mais demorada.

CONCLUSÕES: POSSESSÕES INALIENÁVEIS E VALOR CULTURAL

O discurso museográfico do patrimônio como história objetificada


não é necessariamente exclusivo do Ocidente moderno. Além do cará-
ter exemplar e educativo dos objetos museográficos, e da sua condição
de "fetiches", sob a perspectiva crítica do marxismo ou da psicanálise,
os museus podem ter um significado mais fundamental. Eles não são
apenas instituições onde certos discursos são impostos. São também
lugares que guardam valores essenciais, valores de "origem", "posses-

108 (museus, coLeções e patRimÔmos: naRRatNas poufômcas}


sões inalienáveis", nos termos de Weiner. Sua função didática ou repre-
sentativa tem sido sobreposta à sua função original: guardar tesouros.
O primeiro museu, ou templo às musas, foi construído pelo general ro-
mano Fúlvio no ano 189 a.C. com tesouros roubados dos bárbaros em
campanha militar. O museu, desde as suas origems, tem sido um espaço
sagrado (separado) onde se expõe um tesouro para maravilhar o públi-
co, uma mostra de riqueza, poder, troféus e curiosidades.
O que têm em comum todos esses objetos? A aura, como fala Ben-
jamin. Eles são resultantes de um evento único: armas dos bárbaros
derrotados, signo da vitória do general. O estigma da relíquia do santo
é signo do martírio. As jóias da coroa britânica, para usar o exemplo
de Malinowski, têm valor porque elas pela cabeça dos reis, não por sua
beleza. As roupas e as cadeiras de famosas mães-de-santo são impor-
tantes porque vêm delas: são indícios da pessoa, como Gell (1998) fala-
ria, partes da "pessoa distribuída". O valor deles resulta de um evento
que faz desses objetos coisas especiais, famosas. Isso é verdade também
para as obras de arte, que de alguma forma são resultado do evento
único da criação artística.
Mas nem sempre as "possessões inalienáveis" têm sido mostradas
em público. Nem sempre têm existido museus como lugares onde todo
mundo tem direito a olhar. No caso do candomblé, sempre existem te-
souros e lembranças, mas esses objetos nunca foram mostrados para a
apreciação pública, nem dentro de uma narrativa cultural. Somente nos
últimos anos as lideranças do candomblé têm começado a ver o valor
museológico de suas relíquias. Eles têm começado a ver esses objetos
não apenas como índices de um passado particular, mas como símbolos
da cultura afro-brasileira.
Essa transformação tem sido o resultado de um processo de produção
da cultura afro-brasileira, um processo longo e cheio de contradições.
Inicialmente, os objetos de candomblé eram mostrados como armas de
crime em coleções policiais. Já nesse momento não era muito evidente
se a polícia reconhecia ou não o poder mágico desses objetos. A missão
de cientistas racistas como Nina Rodrigues era precisamente eliminar

(RoGeR sansi-Roca} 109


essa ambigüidade e mostrar esses objetos claramente como sintomas de
doença. Mas, com o passar do tempo, uma nova visão da cultura afro-
brasileira ia emergir em Salvador e no Brasil, e passaria a ver nesses
objetos obras de arte e não apenas doença. O Museu Afro-brasileiro pro-
moveu essa nova visao da cultura afro-brasileira, mas o projeto não foi
livre de contradições. Primeiro pela oposição da antiga elite médica, que
não aceitava a nova visão cultural do candomblé. Depois, pelas contra-
dições dentro desse mesmo discurso cultural, que valorizava a "pureza"
africana, negando a historicidade da cultura afro-brasileira. Mas o que
é mais interessante nesse processo, nos últimos vinte anos, é como ele
foi apropriado pelas elites do candomblé. Como as grandes casas de Sal-
vador começaram a construir os próprios museus, assumindo para si o
discurso da "pureza africana" da cultura afro-brasileira.
Mas esses símbolos públicos da cultura afro-brasileira não são os ob-
jetos centrais do culto. Os objetos dos peji, os altares, os atá, os fundamen-
tos do culto, não são mostrados em público. Quando esses fundamentos
foram mostrados em museus como resultado de perseguição policial,
como no caso do Estácio de Lima, os representantes do novo candomblé
cultural pediram, e conseguiram, que esse otá fosse retirado da visão
pública. O que aconteceu com ele,jé é outra questão.

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112 {museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas}


1\
museus, patRimonios e
difeRenças CULtURaiS
Regina Abreu

O s seis textos reunidos aqui tocam numa questão central .


para os estudos antropológicos. Como os museus e as ins-
tituições de patrimônio vêm trabalhando com o tema da alteridade?
Uma vez entendido que o conceito de cultura e, por extensão, o de diver-
sidade cultural formulados no contexto dos estudos antropológicos des-
lizaram do campo propriamente acadêmico para serem apropriados por
políticas públicas e por instituições do campo da memória, como tem
se dado, na sociedade contemporânea, esse processo de identificação,
registro e preservação da chamada memória do outro? O que tem sido
considerado "digno" de ser preservado? Para onde apontam as políticas
públicas na equação "museus, patrimônios e diferenças culturais"? Qual
o papel dos museus e das instituições de patrimônio enquanto espaços
de mostras das diferenças culturais na época da globalização?
Comecemos pelos museus. O diálogo entre a Antropologia e os mu-
seus é antigo. Mas, se a Antropologia foi gestada e ganhou maturidade
nos museus, a relação entre esses dois campos de estudos é no mínimo
complexa. É o que nos aponta o texto de Nelia Dias, que abre este conjunto
de artigos sobre "Museus, patrimônios e diferenças culturais". A antro-
póloga portuguesa sinaliza para alguns impasses e questões dos museus
etnográficos no contemporâneo. Tomando como estudo de caso o recém
inaugurado Museu do Quai Branly em Paris, ela indaga sobre o perigo
da progressiva estetização de alguns museus etnográficos. Reunindo
objetos de várias procedências, muitos deles retirados de antigos mu-

114 (museus, coLeções e patRim8mos: naRRatrvas pouf8mcasl


seus etnográficos, como o Museu do Homem e o Museu de Artes e Tra-
dições Populares, o Museu do Quai Branly tendeu a enfatizar o aspecto
artístico dos objetos em detrimento de suas informações propriamente
etnográficas. Tal processo vem colocando novas questões para antro-
pólogos que refletem sobre o tema da diversidade cultural nos museus.
Estarão esses museus apagando os traços da diversidade cultural em
prol de uma hipertrofia das chamadas "qualidades artísticas" dos ob-
jetos coletados em outras culturas? Como enfatizar o tema da arte de
forma unificada em culturas onde esse conceito é absolutamente exter-
no e anacrônico? Correrão, esses museus, o perigo do etnocentrismo? E,
afinal, indaga Nélia, "qual o papel do museu enquanto espaço de mostra
das diferenças culturais na época da globalização"? O que acontecerá se
os museus abdicarem desse papel? A uniformização das culturas?
Em seguida, em meu próprio artigo, "Tal Antropologia, qual mu-
seu?", procuro refletir sobre a relação entre museus e Antropologia
numa abordagem histórica. Como veio se dando essa relação ao longo
do tempo no Brasil? Dos primeiros museus de ciência do final do sécu-
lo XIX, quando a Antropologia figurava no contexto de hegemonia das
Ciências Naturais, aos museus etnográficos contemporâneos criados
como expressões de movimentos populares, o que mudou? Por um lado,
pode-se mesmo dizer que a Antropologia nasceu nos museus, como, ali-
ás, boa parte da produção científica gestada no século XIX, num con-
texto de museus e ciências enciclopedistas, generalistas, evolucionistas.
Não podemos esquecer que o surgimento das universidades como cen-
tros produtores e difusores de conhecimento é bem posterior. Por outro
lado, o relacionamento entre a Antropologia e os museus deu origem a
uma modalidade específica de museus: os museus etnográficos. 1 Nestes, 1. Para a história dos
museus etnográficos
desde o início, os antropólogos praticaram o colecionamento de outras e das práticas de
colecionamento, ver
culturas, formando coleções de estudos e arquivando testemunhos do o artigo que escrevi,
intitulado "Museus
que se convencionou chamar de cultura material dos outros povos. Não
etnográficos e práti-
houve, na história da Antropologia, antropólogo que não trouxesse de cas de colecionamen-
to: antropofagia dos
sua pesquisa de campo objetos coletados em outras culturas. Alguns sentidos" . (Abreu,
2005).
chegaram a formar coleções particulares, outros coletaram para mu-

[ReGina aBReu} 115


seus já existentes, outros chegaram mesmo a fundar museus etnográ-
ficos, como é o caso de Darcy Ribeiro, um dos precursores do Museu
do Índio e também foço do artigo de Ione Couto na presente coletânea.
Não foram poucos os ·antropólogos que trabalharam em museus como
pesquisadores, mas também como curadores de exposições, como Franz
Boas, Georges Henri Riviêre, Paul Rivet e Lévi-Strauss. No Brasil, três
dos mais importantes e antigos museus deram origem a conceituados
cursos de Antropologia, formando gerações de pesquisadores - o Museu
Nacional no Rio de Janeiro, o Museu Paraense Emílio Goeldi, em Belém e
2. A esse respeito, o Museu Paulista, em São Paulo. 2
ver Schwarcz, Lilia .
O espetáculo das A contribuição dos antropólogos aos museus foi diversa e variada.
raças . Cientistas,
instituições e questão
Pode-se ainda dizer que a trajetória dos museus etnográficos vem se-
racial no Brasil de guindo a mesma trajetória da Antropologia. Num primeiro momento,
1870- 1930. São
Paulo: Cia. das Letras, os artefatos da cultura material dos povos exóticos e distantes eram
1993.
testemunhos e documentos comprobatórios das teses evolucionistas no
estudo das culturas humanas. Outros momentos se seguiram, em que
os objetos coletados passaram a enfatizar aspectos das teorias funcio-
nalistas ou difusionistas. E também, à medida que a sociedade ocidental
moderna avançava em suas fronteiras, os objetos iam sendo usados para
expressar as teses sobre o contato, a assimilação, a mestiçagem cultural.
O século XX foi palco de uma proliferação de museus etnográficos onde
os objetos se constituíram como intermediários entre diferentes mun-
dos e culturas. Muitos antropólogos conceberam exposições a partir de
suas teses. Algumas experiências foram notáveis nesse sentido, como o
projeto do Museu do Homem, no qual se procurou dar mostras de todo
o conhecimento humano em sua diversidade. A idéia de que seria possí-
vel viajar por todas as culturas do mundo foi o que moveu esse grande
empreendimento, onde ambientações de culturas dos mais diversos po-
vos foram montadas e exibidas durante muitos anos, até a sua recente
desmontagem, já no início do século XXI. Observa-se neste caso a ênfase
numa noção universalista e humanista de cultura, em que o que impor-
tava era a tradução de uma cultura nos termos da outra para a formação
de um grande mosaico das culturas humanas.

116 {museus, coLeções e patRimÔmos: naRRatiVas poufômcas}


De qualquer modo, o importante a assinalar é que as práticas de 3. Mário de Souza
Chagas assim des-
colecionamento dos antropólogos expressavam as teorias antropoló- creve o encontro de
Darcy com Rondon:
gicas e os conceitos com os quais se trabalhava. O artigo de Ione Couto "O encontro pessoal
com Rondon ocorreu
procura apresentar um dos mais importantes antropólogos brasileiros
em 1947 no Rio de
e sua prática museológica. Darcy Ribeiro, além de ter sido um etnó- Janeiro. Na ocasião,
o jovem Darcy foi in-
logo e precursor do Museu do Índio, foi ele mesmo um colecionador, troduzido ao gabinete
do velho positivista
organizando a coleção de objetos dos índios Urubu, um dos motivos pelo coronel Amllcar,
seu fiel assistente e
inspiradores para a criação do museu. Ione Couto nos revela que Darcy, biógrafo. Além de ler
recém-formado em Antropologia pela Escola Livre de Sociologia e Polí- em voz alta a carta-
passaporte de Baldus,
tica de São Paulo, teria sido contratado para a Seção de Estudos do Ser- Amílcar submeteu
Darcy a uma série de
viço de Proteção ao Índio (SPI) em 1947 pelo Marechal Cândido Rondon, perguntas. Rondon a
tudo ouviria calado,
que naquele momento presidia o Conselho Nacional de Proteção aos aprumado e rígido,
mas- segundo o
Índios - CNPI, "sendo figura de importância nacional, cujo prestígio já
testemunho de Darcy
estava estabelecido desde sua atuação, a partir de 1907, na s•. Comissão -'fez cara de que
gostou'. Mesmo gos-
de Linhas Telegráficas do Mato Grosso, comissão esta que posterior- tando do que ouvira,
o velho general não
mente levaria seu nome e ficaria conhecida como Comissão Rondon". 3 deixaria de comentar
'que os antropólogos
Na ocasião, a Seção de Estudos onde Darcy foi trabalhar já previa em pareciam interessados
seus estatutos a criação de um museu visando divulgar a cultura indí- nos índios como
carcaças para analisar
gena. Darcy Ribeiro "era o responsável pelo levantamento da cultura e descrever suas
teses' . Ao que Darcy,
material, da estrutura sócio-organizacional e religiosa dos grupos in- alinhando-se ao ideal
baldusiano, teria con-
dígenas. No exercício dessas atividades, Darcy Ribeiro coletou, para o firmado o seu vínculo

ainda inexistente Museu do Índio, várias coleções etnográficas e em com uma antropolo-
gia solidária e 'in teres-
especial a coleção Urubu, formada por 164 objetos, recolhidos entre os sada nos índios como
pessoas' . A essa altura
anos de 1949 e 1950". Ione nos mostra como a escolha do grupo, bem o velho indigenista já
deveria estar seduzido
como a posterior seleção dos objetos para a formação da coleção, se pelo jovem etnólogo"
(Chagas, Mário.
prendeu a diferentes fatores relacionados àquela conjuntura política A imaginação museal.
e intelectual. Um deles pode ser atribuído à influência da escola alemã Tese de doutoramen-
to apresentada ao
de Antropologia, especialmente de Herbert Baldus, que havia sido pro- PPCIS da UERJ, 2003,
mimeo).
fessor de Darcy Ribeiro na disciplina Etnologia ~r~sileira, e de Harold
Schultz, funcionário do SPI e um dos primeiros cinegrafistas da ins-
tituição. Além disso, os Urubu haviam sido pacificados recentemente
(1928) por agentes do SPI e ainda não tinham sido estudados. O conjun-
to dos objetos coletados por Darcy Ribeiro é descrito por ele como de

{ReGma aaReu) 117


rara beleza e grande valor etnográfico. Naquela ocasião, Darcy privile-
giava objetos que considerava como tesouros do passado, portadores
de memória e identidade do grupo, fontes de autenticidade cultural. A
noção de uma .pureza ancestral parece marcar vários etnólogos do pe-
ríodo, e Darcy Ribeúo não escapa a essa busca romântica de um passa-
do onde os Urubu estavam livres das contaminações que os acelerados
processos de mudança provocados pelo contato com o mundo civiliza-
do pareciam apresentar. A idéia de efetivar a criação do Museu do Índio
impunha-se para ele como uma maneira de exibir a rara beleza de um
universo indígena em vias de desaparecimento. A concepção de museu
de Darcy Ribeiro era a de um instrumento político de luta a favor dos
povos indígenas. Num contexto social em que, ao menos no senso co-
mum, predominava a visão de que os índios brasileiros eram atrasados
e culturalmente pobres, ele levanta a bandeira "por um museu contra o
preconceito". Em artigo sobre o museu e em uma entrevista, ele mesmo
explica a expressão que cunhou:
4. Entrevista con· O Museu do Índio foi o primeiro museu do mundo projetado para lutar contra o
cedida à equipe do
Museu do Índio em preconceito, o preconceito contra o índio, que descrevia o índio como antropófago,
1995, citada por Cha-
gas, op. cit., p. 223 .
canibal, preguiçoso, violento, mau e ruim e feio. Então essa era a imagem que se
Chagas cita ainda na
tinha dos índios. O museu foi feito para combater essa imagem. 4
mesma página, em
nota de pé de página No dia 19 de abril de 1953, como parte das comemorações oficiais
(366), que Darcy,
um pouco depois do Dia do Índio, por sua iniciativa, o Museu do índio foi inaugurado, no
de criado o museu,
teria escrito um artigo âmbito da Seção de Estudos do SPI, com respaldo na ancestralidade e
para ser publicado na
revista Américas, da
na respeitabilidade do velho Rondon. Darcy Ribeiro seria seu primeiro
União Pan·Americana, diretor.5 Segundo Mário Chagas:
intitulado "Museu do
fndio: um museu em O surgimento do Museu do Índio no cenário museal brasileiro veio acompanhado
luta contra o precon·
ceita" . de um significativo diferencial em relação às instituições nacionais congêneres.
5. Descrições porme- Pela primeira vez, aparecia uma unidade museal que assumia explicitamente e sem
norizadas estão no
texto "A imaginação reservas o seu papel político, social e educacional. Desse modo, surgia no Brasil,
museal", p. 213-218.
com amparo numa política pública de Estado, um museu moderno em termos
ln: Chagas, Mário,
op. cit. museográficos, mas, ao mesmo tempo, desalinhado com o discurso museológico
das oligarquias e que se colocava claramente, ou melhor, apai xonadamente, a
favor de uma "causa".

118 {museus, coLeções e patRimÔmos: naRRatiVas poufômcas)


Segundo a museóloga Marília Duarte Nunes, citada por Chagas, "a cau-
sa indígena era a própria razão da existência do Museu, que tinha entre
seus objetivos 'combater preconceitos ou estereótipos contra o índio"'.
Uma observação importante que se deve fazer no caso dos museus
etnográficos brasileiros e que se expressa emblematicamente no pro-
cesso de criação do Museu do Índio acompanha o argumento de Marisa
Peirano, relacionado a certas características dos estudos antropológicos
no caso brasileiro. Segundo essa autora, houve no Brasil uma tendência
em privilegiar nos estudos antropológicos os outros "de dentro". Ou
seja, enquanto em outros países, notadamente na Europa e nos Estados
Unidos, os antropólogos tenderam, ao menos num primeiro momento,
a estudar culturas estrangeiras, no Brasil, os primeiros antropólogos
dedicaram-se a estudos de sociedades indígenas em território nacio-
nal. O mesmo se pode afirmar com relação aos museus etnográficos.
Enquanto em diversos países estes museus apresentavam exposições
e colecionavam objetos de culturas estrangeiras, no Brasil houve uma
tendência de privilegiar os "outros" internos ao território nacional. E,
nesse sentido, os povos indígenas representaram os "outros por exce-
lência", nossa alteridade radical. 6
A intenção de Darcy Ribeiro com o Museu do Índio, como ele mesmo 6. Peirano, Mariza
G. S. "Antropologia
explicita em artigo de 1955 para a revista Américas Uá citado), consistia no Brasil: alteridade
contextualizada" . ln:
em sublinhar as semelhanças entre "os índios" e "nós", "apresentando-os Miceli, Sergio (org.).
O que ler na ciência
como seres humanos movidos pelos mesmos impulsos fundamentais, sus- social brasileira (1970-
cetíveis dos mesmos defeitos e qualidades inerentes à natureza humana e 1995): Antropologia
v. 1, São Paulo: Suma-
capazes dos mesmos anseios de liberdade, de progresso e de felicidade". ré/Anpocs; Brasília :
Capes, 1999. pp.
Mário Chagas chama a atenção: 225-266.

A criação do museu foi precedida de uma pesquisa de opinião pública na qual duas

questões tinham centralidade no conjunto das preocupações dos que planejavam


a sua organização: 11 - Qual é a representação mental que o público comum tem
dos índios? 2'- Que procura e que encontra o visitante nos museus tradicionais de
etnologia? O resultado dessa pesquisa que procurou ouvir, sobretudo, "crianças,
jovens, estudantes e populares", sublinhou a existência de representações men-
tais que descreviam os povos indígenas como "seres congenitamente inferiores",

{ReGma asReu} 119


"como povos embrutecidos" e "preguiçosos", sem "qualquer qualidade humana",
sem "refinamento estético" e outras imagens depreciativas. Paralelamente a essas
representações apareciam também aquelas que descreviam esses mesmos povos
como seres viventes de um mundo idílico, repleto de aventuras e portadores das
mais "excelsas qualidade de nobreza, altruísmo, sobriedade e outras". Essas duas
modalidades de representação, segundo o pai inaugurador do museu, estavam
ancoradas em preconceitos que assumiam a "aparência de verdade inconteste."
Darcy investigou também as imagens dos índios veiculadas pelos
meios de comunicação de massa, concluindo que "a mais viva imagem
do índio para muitas crianças brasileiras era a detestável caricatura dos
peles-vermelhas norte-americanos explorada nos filmes de far-west".
Considerando os museus como dispositivos formadores de opinião, ele
atribuía parte da responsabilidade por tamanha deformação aos mu-
seus tradicionais de etnologia. Esses museus, segundo o antropólogo,
apresentavam os "índios como povos exóticos", como "fósseis vivos da
espécie humana".
A proposta de Darcy era, portanto, apresentar uma narrativa huma-
nista e contemporânea da alteridade, na qual os índios aparecem como
indivíduos vivos, portadores de culturas diversificadas, contrariando a
visão evolucionista que os colocava no passado. Darcy se opõe à visão
do índio genérico e romantizado, e vê o museu como um lugar propício
para apresentar suas diferenças:
Mostrar que a expressão genérica "índio" tem muito conteúdo, sendo impossível,
por exemplo, falar de uma música ou de uma arte indígena genérica, porque mui-
tas tribos diferem tanto umas das outras, como os chineses dos brasileiros. Nesta
ocasião se indica, também, que o mais saliente traço comum destes povos, decorre
do fato de que todos tiveram de enfrentar os invasores europeus, defender seus
territórios, suas vidas e suas famílias, da fúria com que foram perseguidos (Ribeiro,
1955 citado por Chagas, 2003, p. 226).

Mas, se a Antropologia foi gestada e ganhou maturidade nos museus,


a relação entre estes dois campos de estudos é no mínimo complexa. É o
que nos aponta o artigo de Andréia Paiva. Resultado de uma etnografia
sobre o Museu do Negro da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. O

120 {museus, coLeções e patRim8mos: naRRativas pouf8mcas}


artigo trata de um tipo de museu (podemos considerar como etnográfi-
co?) criado não por antropólogos ou por agentes do Estado, mas por um
segmento da sociedade civil. O interessante neste caso é como certas
categorias produzidas no âmbito acadêmico são reapropriadas e ressig-
nificadas. Aqui a diferença é assumida pelo próprio grupo, que se auto-
identifica como "negro" e "faz o seu museu". A autora aponta como a
construção da diferença "ser negro" pode assumir diferentes conotações
ao longo do tempo. Se, num primeiro momento, tratava-se de manter
viva e atualizar a memória de ex-escravos, em períodos mais recentes o
museu passou a expressar narrativas relacionadas ao movimento negro
contemporâneo, indo inclusive de encontro às narrativas anteriores. Se,
na primeira fase, a família imperial brasileira, notadamente a Princesa
Isabel, era cultuada como grande libertadora dos negros escravizados,
na segunda fase, esta narrativa é contestada. Já não se tratava de cul-
tuar os "brancos libertadores", mas sim de apontar para o processo de
conquista dos próprios "negros" da alforria. Em outras palavras, eram os
"negros" os grandes sujeitos da construção de suas próprias histórias e é
este aspecto que o museu passa a afirmar com suas exposições, práticas
de colecionamento e comemorações. Na primeira narrativa, o foco prin-
cipal do museu centrava-se na resistência ao preconceito contra uma
ampla parcela da população recém-saída do cativeiro. Na segunda, tra-
ta-se de uma memória afirmativa que procura sublinhar a positividade
do sinal diacrítico - "ser negro" é um valor em si mesmo.
Os demais artigos tratam do tema mais amplo do patrimônio. O pri-
meiro, de autoria de Marisa Velloso, focaliza um dos perigos das atuais
políticas de patrimônio centradas no tema do intangível. Inversamente
ao caso dos museus etnográficos, a política do patrimônio intangível,
colocada em prática no Brasil desde o início deste século, vem enfatizan-
do objetos pouco palpáveis, como o próprio nome ihdica: rituais, festas,
processos de saber-fazer. A autora indaga se não .e staríamos correndo o
risco de objetificar o intangível e transformar os bens patrimonializados
em mercadorias. Num contexto de mercantilização crescente, corolário
do próprio modo de produção capitalista, este parece ser, segundo a au-

{ReGma aaReu} 121


tora, um risco importante para os que lidam com as políticas e práticas
de patrimonialização. Ao receberem um selo das agências governamen-
tais, os bens culturais seriam valorizados pelo capital, que passaria a
comercializá-los. Desse modo, o grande mosaico da diversidade das cul-
turas no Brasil poderia servir mais para exacerbar diferenças e disputas
entre os grupos sociais do que para fomentar a paz e o entendimento
entre os indivíduos. Partindo de uma bibliografia de inspiração marxis-
ta, a autora entende que todo o processo de patrimonialização implica
necessariamente em atribuir marcas de distinção a aspectos e elemen-
tos culturais. O conceito de fetichismo criado por Marx para explicar o
processo de produção capitalista das mercadorias é por ela reapropria-
do. O fetichismo sinaliza a ilusão da consciência humana que se origina
na economia mercantil e atribui às coisas características que têm sua
origem nas relações entre as pessoas no processo de produção. A autora
alerta que tomar o patrimônio intangível apenas por suas formas obje-
tivadas, transformadas em objetos ou produtos (e não como referências
culturais) poderia estar criando uma nova forma de fetichismo.
O artigo de Fillipo Grillini é especialmente instigante por apontar al-
gumas das reapropriações contemporâneas do conceito de cultura e da
noção de diversidade cultural por aqueles que constituíram o outro por
excelência nos estudos antropológicos brasileiros: os povos indígenas.
Grillini sinaliza que, pela Constituição Brasileira, promulgada em 1988,
"Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza mate-
rial e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores
de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos for-
madores da sociedade brasileira" (Título VIII, Capítulo 3, Seção II, art.
216). Assim a jurisdição brasileira, reconhece oficialmente um vínculo
entre patrimônio cultural e grupos sociais (indígenas, quilombolas, e
outros.), e garante que "O poder público, com a colaboração da comuni-
dade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio
de inventários, registres, vigilância, tombamento e desapropriação, e de
outras formas de acautelamento e preservação" (Título VIII, Capítulo 3,
Seção II, art.216, § 1°).

122 (museus, coLeções e patRim8nws: naRRativas pouf8mcasl


Desse modo, Grillini assinala que, em um contexto político nacional e
internacional que favorece e estimula a proteção e a defesa do patrimô-
nio cultural, sobretudo dos grupos considerados "desfavorecidos", os po-
vos indígenas mobilizam-se pela valorização de suas próprias culturas. O
trabalho dos primeiros antropólogos, como Darcy Ribeiro, na "luta con-
tra o preconceito" com relação às sociedades indígenas teria gerado efei-
tos importantes no imaginário social, e o que era considerado negativo,
símbolo de atraso e selvageria, passaria cada vez mais a ser valorizado
como ícones distintos de culturas raras e singulares. Os povos indígenas
não precisariam mais dissimular traços e características de suas cultu-
ras e organizações sociais. Pelo contrário, devem reafirmá-las.
Grillini observa, a partir de uma pesquisa de campo com os índios
Xacriabá no norte de Minas Gerais, que políticas de fomento à diversida-
de cultural podem gerar conseqüências imprevisíveis. Mobilizados pe-
las possibilidades de apoio governamental, este grupo indígena conhe-
cido como um grupo "mestiçado", onde diferentes influências culturais
da região, incluindo as de um catolicismo popular, já se faziam sentir,
decide então "reaprender a ser índio". Ou seja, estratégias impensadas
são disparadas. Os líderes deixam o cabelo crescer, começam a se pintar,
realizam festas "consideradas indígenas" e afastam-se das romarias e
festas religiosas católicas de que antes participavam. Esse processo de
· "reaprender a ser índio" é ativado a partir de um imaginário entroniza-
do por eles do que significaria "ser verdadeiramente um povo indígena".
Grillini destaca que, enquanto atores sociais, os Xacriabá tenderiam a
se apropriar de uma idéia de cultura essencialista, evolucionista, clas-
sificatória e etnocêntrica. Idéia compartilhada pela FUNAI e difundida
pela mídia. Idéia com a qual foi escrito o Estatuto do Índio, hoje a lei mais
importante da jurisprudência brasileira relativa aos povos indígenas.
O autor nos leva a pensar que as políticas de patrimonialização das
diferenças culturais também estariam contribuindo para a invenção
dessas diferenças. Citando o conceito de "cota identitária" forjado por
Bruce Albert (1997, p.198), o autor chama a atenção para um fenômeno
que estaria ocorrendo no contexto da aprovação de projetos por agên-

{ReGma asReu} 123


cias de financiamento relacionadas ao patrimônio cultural. Haveria
uma tendência a privilegiar uma suposta "tradicionalidade" dos grupos
indígenas segundo o imaginário culturalista e ecologista dos financia-
dores de projetes. Segundo os critérios da "cota identitária", os grupos
sociais teriam diferentes possibilidades de obter os financiamentos para
os projetes apresentados. Nesse sentido, muito mais do que fomentar
uma política de apresentação das diversidades culturais, essas agên-
cias estariam fomentando uma política de guerra entre as culturas.
No Brasil, os preconceitos e estereótipos relativos a uma suposta tradi-
cionalidade tenderiam a premiar os povos amazônicos, que moram em
condições de relativo isolamento, com relativa estabilidade em relação
a seus costumes e crenças, em comparação aos povos indígenas do Nor-
deste ou de regiões do interior do Sudeste, que têm uma experiência de
séculos de contato com os brancos e que por isso foram definidos pelos
administradores regionais como "misturados".
A análise de Grillini é polêmica, mas nos leva a refletir. Se os antro-
pólogos se dedicam há anos a disseminar a noção de diversidade cul-
tural, é preciso refletir sobre o que se está entendendo por cultura e
diversidade. No caso dos museus e das instituições de patrimônio, toda
a atenção é pouca, para que não sejam cristalizadas visões distorcidas
que condenam os grupos sociais a se transformarem em fósseis vivos de
imagens idealizadas e equivocadas de si mesmos. A noção de diversida-
de cultural deve implicar, antes de mais nada, a abertura para a plàsti-
cidade, a mestiçagem, enfim, a devoração do outro.

RefeRênciaS BIBLIOGRáfiCaS

ABREU, Regina. "Museus etnográficos e práticas de colecionamento:


antropofagia dos sentidos". ln: CHAGAS, Mário (org.) Museus:
Antropofagia da memória e do patrimônio. Revista do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional, n• 31. Rio de Janeiro: Iphan, 2005, pp.
101-125.

124 {museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas}


CHAGAS, Mário. A imaginação museal. Tese de doutoramento apresentada
ao Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais (PPCIS) da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro- UERJ, 2003, mimeo.

PEIRANO, Mariza G. S. "Antropologia no Brasil: alteridade


contextualizada". ln: Miceli, Sergio (org.). O que ler na ciência social
brasileira (1970-1995): Antropologia v. 1, São Paulo: Sumaré/Anpocs;
Brasília: Capes, 1999. pp. 225-266.

SCHWARCZ, Lilia. O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e


questão racial no Brasil de 1870- 1930. São Paulo: Cia. das Letras, 1993.

{ReGina asReu} 125


antRopoLOGia e museus:
que tipo de diáLoGo?
Nélia Dias1

1. Meus agradecimen-
tos ao Departamento
dos Museus do lphan,
a Regina Abreu e
Manuel Ferreira Filho,
a relação entre a disciplina antropológica e a instituição mu-
seu tem sido pautada por sucessivos momentos de apro-
ximação, distanciamento, ruptura e reaproximação. 2 Em suma, ela se
revestiu, desde o início da Antropologia enquanto saber disciplinar em
pelo amável convite meados do século XIX, de um carácter problemático.
para participar do
simpósio "Antropolo- Por um lado, os museus etnográficos parecem estar num estado
gia e museus: revitali-
zando o diálogo", na de crise permanente que se manifesta nos países europeus através da
24" Reunião Brasileira
de Antropologia, em sua renovação ou transformação radical. São numerosos os debates,
Goiânia, em julho de
2006.
as mesas-redondas e os colóquios dedicados ao presente e ao futuro
2. Sobre as relações
dessas instituições. Que fazer com os museus de etnografia? Qual o
entre Antropologia e
papel que o museu pode desempenhar na paisagem conceptual da in-
museus, ver o artigo
clássico de William vestigação antropológica contemporânea? E, mais propriamente, qual
Sturtevant. "Does An-
thropology need Mu- o papel do museu enquanto espaço de mostra das diferenças culturais
seums?". ln: Procee-
dmgs of the Bio/ogical na época da globalização?
Society of Washing-
ton. Washington:
Por outro lado, a Antropologia parece também estar num estado
Biological Society of permanente de questionamento em torno do seu objeto de estudo e das
Washington, 1969, p.
82; Jean Jamin. "Faut- suas fronteiras disciplinares. Nessa perspectiva, a relação entre Antro-
il brOier les musées
d'ethnographie?", pologia e museus só pode se revestir de contornos problemáticos, e ten-
1n: Gradhiva 24, pp.
65-69, 1998 e Mary
tar revitalizar o diálogo constitui uma tarefa algo hercúlea. São dois os
Bouquet, Academic
aspectos que pretendo desenvolver neste texto: em primeiro lugar ten-
Anthropology and
the Museum. Back to tarei examinar alguns dos fatores que contribuíram para o fosso entre a
the Future. Nevv York/
Oxford: Berghahn Antropologia e os museus. Em segundo lugar tenciono esclarecer aquilo
Books, 2001.
que parece ser, à primeira vista, algo paradoxal: o fato de os museus

126 (museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas}


em geral, e os museus etnográficos em particular, estarem em grande
expansão e evidenciarem até mesmo um certo dinamismo. Em outras
palavras, se temos crise, ela não remete tanto para a instituição em si,
como veremos adiante, mas antes diz essencialmente respeito à relação
entre Antropologia e museus.

CRISE DO MUSEU DE ETNOGRAFIA?

Há mais de vinte anos que o tema da crise dos museus de etnografia 3. Para um panorama
dos debates em torno
é objeto de colóquios, seminários e publicações um pouco por toda a da crise dos museus
de etnografia. ver
Europa. 3 Em nossos dias, os termos do debate não evoluíram sensível- Nélia Dias. "Does
Anthropology need
mente, mas se colocam de outra forma e revestem-se de uma manifesta
Museums?". Teach1ng
atualidade com a construção dos novos museus e a renovação dos an- Ethnographic Mu-
seology in Portugal.
tigos. Ora, a questão que podemos colocar é a seguinte: até que ponto Thirty years la ter. ln:
Mary, Bouquet. Aca-
a crise diz respeito ao museu, à Antropologia ou à relação entre ambos? demic Anthropology
and the Museum.
De uma certa forma, as críticas recentes lançadas contra os museus Back to rhe Future.
de etnografia fazem lembrar as objeções levantadas nos anos 1960 con- op. crt. •p 92-104.

tra os museus de arte moderna. Nessa altura, um conjunto de práticas


heterogêneas, escapando às categorias tradicionais ou aceites sobre o
que era considerado a arte moderna, apareceram nos USA e na Euro-
pa, tais como a arte minimalista, a arte povera, a land art, a body art,
para citar alguns exemplos. Essas correntes artísticas, que recorriam
a elementos naturais, efêmeros e em alguns dos casos a formas extre-
mamente volumosas, para não dizer intransportáveis, obrigaram a re-
pensar o museu enquanto espaço físico que pressupõe um certo tipo de
obras e a partir daí define os limites de uma obra de museu.
Encontramos um questionamento semelhante no campo dos mu-
seus etnográficos com a extensão da noção de objeto etnográfico e a
fluidez das fronteiras entre objeto de arte e objeto 'etnográfico. Desse
ponto de vista, algumas das questões colocadas pelos museus de etno-
grafia dos nossos dias também apresentam afinidades com as questões
colocadas pelos museus de história da arte por volta dos anos 1980 em
torno do estatuto do objeto - obra de arte ou objeto portador de in-

(néua d1as} 127


formação. Ao atribuírem um lugar considerável às artes visuais, para-
lelamente às artes gráficas e às artes decorativas, os museus de arte
contribuíram para a ~xtensão e o questionamento da noção de arte,
abrindo assim caminho para uma abordagem em termos de história
cultural. Essas transformações no seio dos museus de arte foram acom-
panhadas de mudanças no campo da história da arte ou pelo menos
do que tradicionalmente era concebido como arte. A história da arte
identifica-se cada vez mais com a história das imagens, tendo atenção
à maneira como elas são fabricadas, vistas, comentadas, reproduzidas
e ao seu significado cultural. Aliás, a escolha do termo "imagem" (en-
tendida no sentido lato do termo) em detrimento de "arte" coincide
com o alargamento do domínio de investigação e com a mudança de .
perspectiva teórica e metodológica.
4. George W. Sto- Os museus etnográficos foram quase sempre objeto de crítica por
cking. 1985. ""Essays
on Museums and parte dos antropólogos (ver o célebre texto de Franz Boas, "On the Li-
Material Culture". ln:
Objects and Others.
mitations of the Comparative Method of Anthropology") e dos conser-
Essays on Museums vadores. Até que ponto esta situação se prende ao fato de os museus
and Material Culture .
Madison-Wisconsin : serem, segundo os termos de George W. Stocking, "institutions in which
The University of
Wisconsin Press, p.4. the forces ofhistorical inertia (or 'culturallag') are profoundly, perhaps ines-
capably, implicated"?4
Desde a sua fundação, nos finais do século XVIII, os museus estive-
ram estreitamente ligados a saberes disciplinares. Em primeiro lugar à
História Natural e à História da Arte, em seguida, ou seja, por volta de
1820-1830, à História, à Arqueologia e à Anatomia e, finalmente, a partir
de 1850 à Geologia, à Paleontologia e à Etnografia. Os objetos materiais
concebidos como evidências desempenharam um papel central na con-
solidação e institucionalização dos novos campos de investigação. Se o
século XIX é por excelência o século dos museus e dos museus ligados a
campos disciplinares, essa instituição não é apenas um mero espaço de
vulgarização do saber. Pelo contrário, o museu é pensado como um es-
paço de construção do saber, e os objetos nele contidos são instrumentos
de conhecimento que participam ativamente na produção do saber ao
nível dos conceitos, dos temas de estudo e das ferramentas metodológi-

128 {museus, coLeções e patRim8mos: naRRativas pouf8mcas}


cas. 5 Isso porque os objetos, concebidos como testemunhos, contribuem 5. Sobre o papel
dos museus na
para a verificação da prova- existência de antigas civilizações, de povos institucionalização
da Antropologia, ver
primitivos. Como mostrou brilhantemente Carlo Ginzburg, a emergên- Nélia Dias. Le musée
d'ethnographie du
cia daquilo que seriam posteriormente chamadas as Ciências Humanas
Trocadéro (1878-
está estreitamente ligada ao paradigma ou modelo epistemológico indi- 7908) . Anthropologie
et muséologie en
ciário.6No caso específico das novas disciplinas- a Geologia, a Paleonto- France. Paris: Éditions
du Centre National
logia e a Etnografia-, elas vão influenciar as práticas museológicas e por de la Recherche
Scientifique, 1991;
sua vez vão ser modeladas por essas mesmas práticas. Nesse panorama Glenn Penny. Objects
das Ciências Humanas, duas apenas escapam ao paradigma indiciário of Culture. Ethnology
and Ethnographic
e, portanto, ao museu enquanto espaço de visualização do saber e de Museums in Imperial
Germany. Chapei
administração da prova - a Sociologia e a Psicologia . Hill & London: The
University of North
Enquanto instituições destinadas ao exercício classificatório, os Carolina Press, 2002.;

museus foram denominados consoante o conteúdo das suas colecções Andrew Zimmerman.
Anthropology and
- históricas, artísticas, etnográficas e arqueológicas. Este modelo, que Antihumanism in
Imperial Germany.
emergiu no século XIX e à luz do qual os museus foram designados em Chicago and London:
The University of Chi-
função dos saberes disciplinares - museus de arte, de história, de et- cago Press, 2001 .

nografia, de arqueologia -, perpetuou-se até os anos 1960. Os ecomu- 6. Cario Ginzburg.


"Traces" . ln: Mythes,
seus, cuja hora de glória se situa na Europa nos anos 1970, constituem emblemes, traces.
Morphologie et
uma das primeiras rupturas com o paradigma disciplinar devido à tô-
Histoire . Paris: Flam-
nica posta, por um lado, na abordagem pluridisciplinar e, por outro, na marion, 1989.

extensão da noção de objeto de museu. Ao abarcarem o território, as


práticas, os saberes, as crenças, em suma, o patrimônio tanto natural
como cultural, os ecomuseus abriram caminho para o questionamento
em torno das relações entre uma instituição museológica e uma disci-
plina. A partir dos anos 1980, surgem novas designações, baseadas em
conceitos - museus de sociedade, museus de civilização, museus das ci-
vilizações, museus das culturas - que testemunham ou dão testemunho
do progressivo abandono do laço ancestral entre o museu e um saber
acadêmico. São vários os exemplos de museus rebatizados ou criados
com novos nomes. É designadamente o caso do Musée des Civilisations
de l'Europe et de la Méditerranée, em Marselha, que vai abrir as portas
em 2007, ou do Musée des Cultures, na Basiléia. No contexto francês,
alguns museus etnográficos abandonaram o termo etnografia, como é o

{néua d1as} 129


caso do recente Musée du Quai Branly, que foi inaugurado em junho de
2006, como se esta designação fosse obsoleta, visto remeter a um modelo
museológico forjado no ~éculo XIX.
O século XIX corresponde ao museum period, segundo a terminologia
de William Sturtevànt, e nesse período os museus desempenharam um
lugar central na emergência e no desenvolvimento da disciplina antro-
pológica. Contudo, a relação entre a instituição museu e o saber antro-
pológico estiveram longe de ser pacíficas. As negociações constantes en-
tre o que deveria ser incluído no museu e aquilo que deveria ser excluído
suscitaram disputas e controvérsias. Assim, entre os vários problemas
colocados, encontramos a questão da inclusão de objetos europeus nos
museus de etnografia dita exótica. Da mesma forma, até que ponto ob-
jetos provenientes de antigas civilizações do México e do Peru faziam
ou não parte das coleções etnográficas foi igualmente uma das questões
levantadas àquela altura, paralelamente à questão relativa ao estatuto
desses objetos - artefatos ou objetos de arte. A exclusão de coleções pro-
venientes do Extremo Oriente nos museus etnográficos levantou polê-
mica devido às suas implicações epistemológicas- qual a fronteira entre
objetos etnográficos e objetos de antigüidade?
Ao longo do século XX, a base metodológica e epistemológica que
serviu de fundamento para a constituição dos museus começou a ficar
cada vez mais fragilizada, para não dizer suplantada, pelas equipes de
investigação, centros e laboratórios de pesquisa, pela formação dos de-
partamentos universitários que romperam todos os laços com a insti-
tuição museu. A interrogação colocada por William Sturtevant em 1968,
"Does anthropology need museums?", abriu, por assim dizer, caminho
à interrogação crescente e ao mal-estar instalado entre a disciplina an-
tropológica e os museus. Apesar da sua defesa ardente da utilidade dos
museus para o estudo da cultura material, Sturtevant sublinhava que a
Antropologia, enquanto disciplina universitária, se afastava progressi-
vamente das práticas de recolha e exposição de objetos que caracteri-
zaram a sua emergência no século XIX. Assim, o declínio do movimento
museológico situar-se-ia, segundo este autor, nos princípios do século

130 (museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas)


XX, e estaria associado à profissionalização da disciplina e à importân-
cia crescente do trabalho de campo.
Encontramos uma interrogação semelhante em Claude Lévi-Strauss,
que já em 1954 sublinhava a estagnação da museologia etnográfica.
Para este autor, "A missão de conservatório de objectos dos museus et-
nográficos é susceptível de se prolongar, não de se desenvolver e ainda
menos de se renovar".
Nos anos 1980, o desenvolvimento da antropologia da arte e dos es-
tudos de cultura material permitiram repensar noutros termos as rela-
ções entre objetos e saber antropológico. A esse desenvolvimento não foi
alheia a emergência de novos campos disciplinares, tais como os cultural
studies e os museum studies. E, a partir dos anos 1990, o aprofundamento
de um trabalho rico e considerável sobre as coleções, sobre a prática de
colecionar e sobre as poéticas e políticas dos museus e das exposições
teve, por sua vez, nítidas incidências sobre os museus etnográficos.
Contrariamente aos outros museus, os museus de etnografia, em ra-
zão de sua estreita associação com a prática colonial, são confrontados
com problemas que lhes são específicos. A era pós-colonial impõe um
novo olhar sobre esse tipo de museu: questionam-se os modos de reco-
lha e apropriação dos objetos à luz das relações coloniais. A autoridade
dos antropólogos é posta em questão no seio da instituição museal. Os
povos representados nos museus querem ter uma voz na maneira como
suas culturas são dadas a ver nos espaços de exposição. Ou seja, assiste-
se nos dias de hoje a um questionamento em torno de pelo menos três
aspectos: a autenticidade do objeto, a autoridade do discurso e a inalie-
nabilidade das coleções.
A partir do momento em que se considera que os modos de apresen-
tação dos objetos no espaço do museu são tributários de convenções cul-
turais próprias a cada época e que eles determinam o estatuto do objeto,
a questão de saber a que campo disciplinar remete o objeto - arte e/ou
artefato - perde a sua relevância. Se é verdade que qualquer objeto se
pode transformar em objeto de museu, é, no entanto, a própria noção
de objeto de museu que conhece uma extensão considerável nos últimos

{néua d1as} 131


anos. Uma das características do museu enquanto médium é de justamen-
te estetizar tudo aquilo que está exposto, mesmo que os objetos em expo-
sição não sejam todos objetos de arte. Nesse sentido, e como argumenta
Barbara Kirshen~latt-Gimblett, todos os museus são museus de arte. 7 Ali-
ás, tornou-se uma prática corrente os museus etnográficos exporem suas
"obras-primas" e os museus de arte explicarem o contexto de produção
das peças expostas (ver a seção Egípcia no Museu do Louvre).

CRISE DA ANTROPOLOGIA?

7. Barbara Kirshen- Até que ponto a crise dos museus etnográficos está relacionada com
blatt-Gimblett. "The
Museum as Catalyst" . a crise da Antropologia? O fosso entre os museus etnográficos e a Antro-
ln: Museum 2000 -
Confirmation or Chal-
pologia não é de forma alguma recente. Grosso modo, a partir dos anos
/enge? Stockholm : 1950, os antropólogos debruçaram-se sobre temas -parentesco, práticas
Riksutstallningar
- Svenska, Museifore- rituais, saberes orais, sistemas simbólicos - que não requeriam de forma
ningen, 2000.
alguma o estudo dos objetos materiais. Tal é, em todo o caso, a explicação
8 . Maurice Godelier.
"Un musée pour les avançada por Maurice Godelier para tornar compreensível o estado de
cultures" . ln: Sciences
humaines, dez . 1998, abandono do Museu do Homem em Paris. 8 O mesmo se passou na Antro-
n° 23, p. 19.
pologia de origem britânica: o estudo da cultura material divorciou-se da
antropologia social, com a conseqüente divisão de trabalho entre os peri-
tos que estudavam os artefatos e os especialistas que analisavam a socie-
dade ou a cultura, ou seja, que elucidavam os contextos socioculturais.
Ao circunscreverem o estudo dos objetos materiais à dimensão fun-
cional e simbólica, os antropólogos abandonaram a abordagem estéti-
ca desses mesmos objetos. Uma das consequências dessa limitação da
abordagem antropológica dos anos 1950 em diante vai repercutir na
emergência paralela de uma perspectiva estética sobre os objetos não
ocidentais, em termos de universalidade das expressões artísticas. Esta
perspectiva, liderada pelos historiadores de arte e pouco receptiva à di-
mensão contextuai dos objetos, engloba aspectos negligenciados pelos
antropólogos, tais como a exploração da forma interna, a atenção pres-
tada ao artefato enquanto tal e o relacionar de um estilo com o outro.
Noutras palavras, o corte entre Antropologia e museu remete a um ou-

132 {museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas)


tro fosso, o que se estabelece entre a abordagem formal dos objetos e a
perspectiva em termos de contexto. Desse ponto de vista, o surgimento
de museus de arte não ocidental e sobretudo a transformação de mu-
seus etnográficos em museus de arte é testemunho desse fosso entre
abordagem antropológica e perspectiva estética. A controvérsia entre
os partidários de uma concepção universal do belo e os defensores da
necessidade de conhecer o contexto dos objetos e os critérios de beleza
dos povos que produziram os objetos, longe de ter desaparecido, ganhou
acuidade na França com a criação do Musée du Quai Branly9•
Se desde o século XIX a Antropologia se revestiu de um caráter pro- 9. Sobre a polêmica
em torno deste
fundamente interdisciplinar, é contudo nos nossos dias que esse caráter museu, ver Nélia
Dias. Ethnographie,
se acentuou, a ponto de Stocking designar a Antropologia de "boundless arts, arts premiers:

discipline". 10 Com efeito, assistimos, por um lado, à explosão das frontei- la question des dé-
signations. Arquivos
ras do discurso etnográfico e ao conseqüente apagamento dos limites do Centro Cultural
Calouste Gulbenkian,
entre etnografia e história cultural e cultural criticism. Por outro lado, as XLV. pp. 3-13, 2003.

fronteiras do objeto de conhecimento em Antropologia modificaram-se 10. GeorgeW.


Stocking. Delimiting
consideravelmente com a incorporação das sociedades ditas complexas Anthropology: Occa-
sionallnquines and
e a integração das sociedade chamadas primitivas no processo de globa- Reflections. Mad1son:
University of Wiscon-
lização. Um terceiro aspecto a reter prende-se a um problema de defini- sin Press, 2001.
ção conceptual: quais as fronteiras que delimitam uma cultura?

(RISE NAS RELAÇÕES ENTRE ANTROPOLOGIA E MUSEUS?

E se a crise fosse exclusivamente uma crise nas relações entre a An-


tropologia e os museus? Ou seja, se a crise se prendesse ao fato de o
museu ter deixado de ser um espaço de construção do conhecimento e
de já não se satisfazer com o papel de lugar de ilustração e divulgação
do saber? Quais então as novas funções e os novos desafios colocados a
essas instituições?
A designação relativamente recente de museum anthropology revela, de
uma certa maneira, a ambigüidade do relacionamento entre essas duas
esferas. O museum anthropology é sinônimo de museologia antropológica
ou de antropologia dos museus? Como sublinhou Flora Kaplan, "museum

{néua dias} 133


11 . Flora Kaplan . anthropology may be defined either as anthropology practiced in museums or
1996. "Museum
Anthropology", in: as the anthropology of museums".n Esta ambigüidade é reveladora do mal-
D. Levinson and M.
Ember. Encyclopaed1a
estar entre a Antropologia e os museus e se - tal é a minha hipótese - os
of Cultural Anthropo- antropólogos souberam encontrar no museu um novo e rico objeto de in-
logy. New York: Henry
Holt and Co, p. 813, vestigação, os museus; por seu lado, não conseguiram ainda captar atra-
1996.
vés de temáticas e domínios de investigação a atenção dos antropólogos.
12 . Daniel J. Sher-
man and lrit Rogoff. Os antropólogos olham a instituição museu do exterior, como um
Museum Culture.
Histories, Discourses, terreno de investigação susceptível de ser apreendido como uma cul-
Spectac/es. Minne-
apolis: University of
tura, para retomarmos a expressão museum culture forjada por Daniel
Minnesota Press,
Sherman e Irit RogoffY Nessa perspectiva, qualquer museu, indepen-
1994.
dentemente da sua natureza, pode ser objeto de análise antropológica;
assim, a metodologia da etnografia permitiu aos antropólogos conduzir
investigações em museus de ciência (ver o trabalho de Sharon Macdo-
nald em torno do Science Museum em Londres). Em outras palavras,
se a Antropologia soube encontrar nos museus (etnográficos ou não)
um futuro domínio de investigação aplicando conceitos (cultura), me-
todologias e instrumentos de análise, o mesmo não se passou com os
museus etnográficos. Estas instituições deveriam, pelas problemáticas
apresentadas -problemáticas essas específicas à museologia -, suscitar
a atenção dos antropólogos. Temos exemplos bastante reveladores da
maneira como certas exposições permitiram reabrir debates teóricos
e dar origem a toda uma série de publicações, como foi o caso da expo-
sição Art/Artifact. African Art in Anthropology collections, organizada por
Susan Vogel no Museum for African Art em 1988 e centrada em torno
das releituras diversas dos objetos ao longo dos séculos. Os museus etno-
gráficos poderiam encarar uma démarche idêntica, com vitrines expon-
do a pluralidade das interpretações em torno de um mesmo objeto ou
de um conjunto de objetos, variando segundo os períodos históricos e a
pertença cultural. Da mesma maneira, uma interrogação sobre como a
instituição museu (na origem uma instituição ocidental) foi transporta-
da para outras culturas e como as culturas não ocidentais assimilaram
esse instrumento poderia também ser matéria de investigação. Em ou-
tras palavras, poder-se-ia abrir um novo campo para os museus etno-

134 {museus, cOLeções e patRJm8mos: naRRatrvas pouf8nrcas}


gráficos, o da etno-museologia, como Jacques Galinier sugeriu, ou seja,
"uma reflexão e uma investigação comparativas sobre as concepções e
os destinos dos museus segundo as várias culturas"P

ÜBSERVAÇÕES CONCLUSIVAS

Em nossos dias, podemos ter museus e/ou exposições quase sem ob- 13. Jacques Galinier
e Antoine! te Molinié.
jetos. A própria noção de objeto de museu é assim questionada; o objeto "Le Crépuscule des
lieux. Mort et re-
de museu não implica forçosamente materialidade do objeto, podendo naissance du musée

incluir tudo que é suscetível de ser exposto: vídeos, performances, re- d'anthropologie". ln:
Gradhiva, 24, pp. 93-
gistros sonoros e outros elementos. Nos dias de hoje, alguns museus de 102, 1998.

etnografia, como é o caso do Museu de Etnografia de Neuchâtel sob a di- 14. Sobre as transfor-
mações da instituição
reção de Jacques Hainard, não se limitam a analisar e a expor os objetos museu, ver Elaine H.
Gurian. "What is the
não europeus como meros testemunhos ou documentos. Pelo contrário, Object of this Exerci-
se? A meandering ex-
esses objetos constituem o ponto de partida para uma reflexão sobre o ploration of the many
meanings of objec1s
funcionamento da cultura, sendo neste caso o objeto um objeto cultural
in museums". ln:
e não tanto um objeto testemunho. A partir do momento em que o ob- Daeda/us (summer),
pp.163-184, 1999.
jeto material deixa de ser central para o museu, é a própria instituição
museu que se torna problemática. 14
De instituição ligada a diversos saberes disciplinares, o museu tran-
formou-se num campo disciplinar autônomo, os museum studies, e insti-
tucionalizado (com a criação de revistas especializadas, de departamen-
tos universitários e de séries editoriais). Talvez o diálogo que tentamos
restabelecer passe não tanto entre a Antropologia e os museus, mas sim
entre a Antropologia e a Museologia.

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{néua dias} 137


taL antRopoLOGia, quaL museu? 1
Regina Abreu

APRESENTAÇÃO

O diálogo da Antropologia com os museus é antigo. Pode-


se mesmo dizer que a Antropologia nasceu nos museus e
com eles sempre conviveu de formas variadas. Entretanto, refletir sobre
esses laços implica indagar sobre o cruzamento e as interfaces entre
duas áreas de conhecimento e pesquisa com percursos próprios. Muitas
1. Este artigo foi mudanças se fizeram sentir. A Antropologia que praticamos hoje tem
apresentado em um
seminário do Museu poucos pontos em comum com a Antropologia que se praticava no sé-
de Arqueologia e
Etnologia da USP,
culo XIX, assim como os museus contemporâneos em nada se asseme-
na Mesa-Redonda lham às casas de sábios do século XVIII. Evidentemente, que seria uma
"História dos museus
na interface com a tarefa irrealizável cartografar mudanças e permanências de tão longo
Antropologia", em
12 de junho de 2007 . período. Não é essa minha intenção. Mas, considero fundamental partir
Agradeço aos organi-
zadores do Seminário,
da compreensão de que a Antropologia se faz no plural, assim como os
em especial à prof" .
Dra Marília Xavier
museus só existem no plural. Em seus movimentos de disputas internas,
Koury, pela oportu- essas duas áreas expressam diferentes percepções e pontos de vista. Al-
nidade.
guns se sobressaem e afirmam-se por certos períodos. Outros são ofus-
cados ou perdem a potência e o poder explicativo.
A história do diálogo entre a Antropologia e os museus é portan-
to uma história de lutas e embates na confluência de três movimen-

138 {museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas}


tos distintos: da Antropologia, dos museus e da relação entre as duas
áreas. No espaço deste artigo, procurarei salientar algumas tendên-
cias ou canais por onde esse diálogo vem se processando, abstraindo
as inúmeras particularidades da trajetória de cada uma dessas áreas
e concentrando-me em algumas questões e impasses importantes que
as atravessam. Sei que corro o risco da simplificação, mas também en-
tendo que essa é a única maneira de começar a circunscrever alguns
temas recorrentes que caracterizam a relação da Antropologia com os
museus. No decorrer do trabalho farei referência a alguns exemplos
emblemáticos ou "bons para pensar".
O tema torna-se mais complexo se incluirmos outras variáveis. Como
os antropólogos vêm conceituando a noção de cultura ao longo do tem-
po? Como ela vem se transformando? Esse tema nos leva a uma questão
fundamental na Antropologia: a relação entre a diversidade no plano da
cultura e a igualdade no plano da humanidade. Se todos somos iguais
e diferentes ao mesmo tempo, dependendo do foco da análise, teremos
uma Antropologia relativista ou romântica (ênfase na noção de diferen-
ça) ou uma Antropologia humanista ou universalista {ênfase na noção de
igualdade entre os homens). Esse é um vetor que não deve ser subestima-
do sobretudo na história da aproximação entre Antropologia e museus.
Deixando de lado certas particularidades, proponho agrupar as di-
versas antropologias (ou construções de alteridades) em três chaves que
me parecem centrais na história da relação entre Antropologia e mu-
seus: "antropologias reflexivas e museus de ciência"; "antropologias da
ação e museus como instrumentos de políticas públicas"; "antropologias
nativas e museus como estratégias de movimentos sociais".
Adianto que, com essa tipologia, poderei agrupar vertentes e abor-
dagens teóricas que não raro partiram de tradições ou campos de pen-
samento diferentes, mas quero reiterar os pontos em comum que vêm
fundamentando relações singulares com os museus, espécies de mode-
los paradigmáticos que são encontrados: em primeiro lugar, os museus
etnográficos enquanto lugares essencialmente de produção e difusão de
conhecimento científico; em segundo lugar, os museus etnográficos que

(ReGma aoReul 139


foram criados com o intuito de subsidiar e instrumentalizar políticas
públicas no âmbito estatal; em terceiro lugar, os museus etnográficos
que partem de iniciativas dos movimentos sociais ou da articulação en-
tre aqueles a quem chamamos de "nativos" e os antropólogos. Evidente-
mente, que muitas dessas experiências museológicas se interpenetram e
configuram possibilidades sempre abertas a mudanças e permanências.
Este artigo não pretende ser conclusivo; pelo contrário, nele apre-
sento alguns resultados parciais de uma pesquisa em andamento, que
muito particularmente se refere ao diálogo entre a Antropologia e os
museus na França e no Brasil, a circulação internacional do pensamento
na área dos museus etnográficos e o papel seminal da experiência do
Museu do Homem de Paris.

ANTROPOLOGIA REFLEXIVA E MUSEUS DE CIÊNCIA

Os museus antecedem a Antropologia como área de conhecimento


e campo reflexivo. Nos livros dedicados às histórias dos museus, é co-
mum encontrarmos sua origem associada aos gregos, que os conside-
ravam "templos das musas", lugar de inspiração e imaginação poética.
No Ocidente, o museu somente foi associado ao saber muitos anos mais
tarde, já na Renascença, quando os sábios ligados às cortes européias
reuniam suas coleções de relíquias para fins de estudo. Nesse período,
as coleções dos museus pertenciam às casas nobres e não eram destina-
das ao público em geral. Um marco importante na história dos museus
ocorreu quando, após a Revolução Francesa, em 1793, o governo repu-
blicano decidiu abrir a Galeria do Louvre para a visitação pública, isto
é, para os cidadãos em geral.
Durante o final do século XVIII e início do século XIX, constituíram-
se os chamados museus de ciência, ou museus enciclopédicos, voltados
para a produção de pesquisa científica por parte de especialistas forma-
dos para esse fim. Por outro lado, desenvolveu-se a idéia de que os museus
eram lugares também destinados a um público amplo, que podia e devia
se ilustrar com visitas periódicas a essas casas de memória e saber.

140 {museus, coLeções e patRim8mos: naRRativas pouf8mcas}


O movimento iluminista e universalista da ciência e as novas for-
mas de governo produzidas a partir do evento da Revolução Francesa
geraram um modelo de instituição que em linhas gerais perdurou até
os nossos dias. Essa modalidade de museu pode ser definida como uma
instituição com pesquisadores que produzem conhecimento, praticam
o colecionamento, divulgam o que é produzido e exibem suas coleções
para um público amplo. Sua função é também pedagógica. Desde então,
os museus têm sido importantes aliados nos processos civilizatórios nos
diversos contextos nacionais. Os rituais de freqüentar as exposições pas-
saram a ser concebidos como rituais importantes nos quais diferentes
segmentos de população vão gradativamente entrando em contato com
os novos conhecimentos produzidos pelos especialistas das diferentes
áreas, a famosa difusão ou popularização do conhecimento científico.
Observemos que uma das definições de museu divulgada pelo ICOM
traz em seu bojo esses aspectos: produção de conhecimento, prática de
colecionamento, preservação, difusão, exibição, educação.
Um museu é uma instituição permanente, sem fins lucrativos, a serviço da sociedade
e do seu desenvolvimento, aberta ao público e que adquire, conserva, pesquisa, co-
munica e exibe evidências materiais do homem e do seu ambiente para os propósitos
de estudo, educação e entretenimento. (!COM, 1974)
Por seu turno, a Antropologia surgiu como área de conhecimento
num contexto em que predominavam as Ciências Naturais e uma visão
positivista nas práticas científicas. Afirmar um estudo científico consis-
tia em trabalhar com provas, testemunhos, documentos, evidências em-
píricas. Para a Antropologia em seus primórdios, estudar povos exóti-
cos, pouco conhecidos, implicava formar coleções de estudo. Os primei-
ros antropólogos dedicaram-se a colecionar as culturas que estudavam,
como observou ]ames Clifford, pois os objetos retirados de seus contex-
tos de origem representavam as provas vivas e materiais da existência
de culturas distantes e pouco conhecidas que .passavam a constituir o
objeto de estudo dos antropólogos.
Em artigo anterior, refleti sobre o papel dos grandes museus de ci-
ência no Brasil enquanto lugares privilegiados desses estudos num pe-

{ReGma asReu} 141


2. Abreu, Regina . ríodo em que as poucas universidades existentes ainda não haviam in-
"Museus etnográficos
e práticas de colecio- corporado essas novas esferas do conhecimento. 2 Nessa perspectiva, os
namento: antropofa·
gia dos sentidos". ln:
museus de ciência abrigavam coleções de objetos de diferentes culturas.
Revista do Patrimônto .
Mas, por trás de cada objeto havia um cientista que coletava, observa-
Rio de Janeiro: IPHAN,
2005 . va, classificava, descrevia e, por fim, exibia suas coleções. As exposições
configuravam-se como o resultado das pesquisas. O olhar do pesquisa-
dor sobre uma cultura era o olhar dominante. O "outro" era visto apenas
como objeto de pesquisa, um "outro construído", um "objeto de conhe-
cimento". Nesse contexto, e legitimados por uma vertente teórica evo-
lucionista, nas primeiras pesquisas antropológicas geradas nos museus,
não encontramos as vozes dos povos estudados, estes se configuravam
como "outros passivos" de um discurso científico.
Os casos mais extremos desse processo eram a exposição de índios
em carne e osso, da mesma forma que os botânicos exibiam suas plantas
ou os zoólogos suas espécies animais. Na esteira das grandes exposições
internacionais, o Museu Nacional, por exemplo, em 1882, protagonizou a
primeira grande Exposição Nacional, onde índios botocudos do interior
do Espírito Santo e de Minas Gerais foram exibidos ao lado de objetos in-
dígenas e pinturas retratando índios de diferentes procedências no País.
Por esse período, havia sido criada (1876) no Museu Nacional a se-
ção de Antropologia, Zoologia Geral e Aplicada, Anatomia Comparada
e Paleontologia Animal, marco dos estudos de Antropologia no Brasil.
A criação dessa seção era conseqüência da influência exercida, na se-
gunda metade do século XIX, pela Sociedade de Antropologia de Paris,
sendo o homem primitivo o principal centro de interesse.
Além do Museu Nacional, os primeiros antropólogos brasileiros traba-
lhavam também em outros grandes museus fundados no século XIX, como
o Museu Paraense Emílio Goeldi (1866) e o Museu Paulista (1894). Nesses
museus predominava o caráter enciclopédico das pesquisas sob a hege-
monia das Ciências Naturais. A criação no Museu Nacional de uma seção
de Antropologia ao lado de Zoologia Geral e Aplicada, Anatomia Compara-
da e Paleontologia Animal nos fornece uma idéia de como a Antropologia
estava mesclada com outras especialidades das Ciências Naturais.

142 {museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas)


Os novos pesquisadores eram em grande parte naturalistas. As pes-
quisas eram pautadas por questões de antropologia física, baseadas so-
bretudo em modelos de craniometria. O primeiro curso de Antropologia
oferecido no País foi ministrado em 1877 por João Batista Lacerda e tinha
como programa a análise da anatomia humana. Os estudos de Antro-
pologia Física levaram à prática do colecionamento de ossos humanos,
sobretudo de crânios. Batista Lacerda comentou, em artigo publicado
na revista do Museu Nacional, sua satisfação em poder levar adiante um
trabalho sobre os botocudos, uma vez que já conseguira reunir 11 cé-
rebros de "espécies dessa tribo". 3 Lacerda se inseria no amplo debate 3. Citado em
Schwarcz, Ulia.
evolucionista que procurava encontrar em culturas afastadas exemplos Op cit., p. 74.

de estágios mais atrasados que comprovassem uma "infância da civi- 4. Schwarcz, Lilia.
Op cit., p. 87.
lização". A prática de colecionar vestígios de outros povos iniciou-se,
5. Curt Nimuendajú
portanto, no Brasil como uma prática ligada à Antropologia Física, com emigrou para o
Brasil em 1903, aos
a proliferação da coleta de ossos humanos entre os nativos. Nessa pri- 20 anos de idade, e
aqui viveu até a sua
meira fase da Antropologia, o ideal de todo antropólogo era organizar
morte, em 1945.
uma "coleção sistematicamente e cientificamente classificada", como Participou de dezenas
de expedições cienti-
dizia o naturalista Emílio Goeldi. 4 ficas e relacionou~se
com diversos povos
Outro fator determinante nas práticas de colecionamento nos pri- indígenas. Como
assinalou Grupioni,
meiros anos da Antropologia eram as políticas de museus estrangeiros, "seu trabalho abarcou
que fomentaram grandes expedições científicas ao Brasil para coletar domínios do indige-
nismo, da lingüfstica,
acervos de povos indígenas. Apreender o exótico era, antes de tudo, da etnografia e do
colecionamento". Ver:
salvar o que irremediavelmente iria se perder, daí a significação de re- Grupioni, luiz Doni-
sete Benzi. Coleções e
líquia ou de testemunho expressa pelo recolhimento de artefatos pro- expedições vigiadas.
São Paulo: Hucitec,
duzidos por esses povos. 1998, p. 2 50.
O personagem emblemático desse período é Curt Nimuendajú, que
se tornou a maior autoridade no campo da etnologia indígena durante
toda a primeira metade do século, mantendo relações com praticamen-
te todas as instituições e órgãos importantes de ·seu tempo. Sua vida e
obra se relacionam diretamente com a emergência da etnologia como
disciplina no Brasil e a institucionalização do indigenismo nacional,
ocorridos no início do século, chegando a ser considerado o "pai da
etnologia brasileira". 5

{ReGma asReu} 143


Até os anos 1960, a tônica nos museus etnográficos era a prática de
colecionamento de grupos exóticos e radicalmente diferentes dos oci-
dentais. Nos mus·eus brasileiros, essa prática só foi levemente alterada
pela busca de artefatos· dos sertanejos, considerados nossos ancestrais
por excelência, espécíe de degrau do primitivismo para o mundo civili-
zado numa visão evolutiva da cultura.
Exposições que enalteciam a fábula das três raças tiveram lugar em
museus etnográficos, especialmente no Museu Nacional, e levaram tam-
bém à coleta de objetos dos grupos afro-brasileiros. Ainda durante a pri-
meira metade do século XX, o etnólogo Édison Carneiro, especialista em
estudos afro-brasileiros chegou a organizar vitrines com os principais
orixás do candomblé, novidade para uma época em que apenas se inicia-
vam os estudos das contribuições dos negros no Brasil.
Em meados do século XX, os grandes museus científicos perderam
a hegemonia na pesquisa etnográfica ou foram redimensionados. A ins-
titucionalização das Ciências Sociais nas universidades e o surgimento
de novos modelos de museus etnográficos, como o Museu do Homem
em Paris, deslocaram para outros planos a relação entre a Antropologia
e os museus. As coleções de estudo, antes primordiais para a pesquisa
etnográfica, foram ressignificadas. A introdução de novos paradigmas
na pesquisa antropológica conduziu os estudos da cultura e as cons-
truções de alteridade para aspectos imateriais e simbólicos, em que
não era mais tão importante reunir objetos e documentos de cultura
material. Para as novas vertentes do conhecimento antropológico, os
antropólogos deviam produzir seus próprios documentos, com diários
de campo, registres de observações participantes e pesquisas de cam-
po qualitativas. Esses deslocamentos físicos, teóricos e metodológicos,
sobretudo da Antropologia Cultural, levaram muitos antropólogos a
passarem ao largo do colecionamento e da cultura material. Muitos
chegaram ao ponto de nem mesmo freqüentar museus etnográficos. O
caso do Museu Nacional é exemplar. Com um curso de pós-graduação
em Antropologia Social funcionando desde os anos setenta, muitos são
os relatos de alunos que jamais tiveram a curiosidade de entrar no pré-

144 {museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas}


dio das exposições ou das reservas técnicas, freqüentando apenas as
salas de aula e as bibliotecas.

"ANTROPOLOGIA DA AÇÃO" E MUSEUS COMO


INSTRUMENTOS DE POLÍTICAS SOCIAIS

A partir de um determinado momento da história da Antropologia,


alguns antropólogos começaram a se sensibilizar com as questões so-
ciais enfrentadas pelos grupos estudados. Alguns artigos começaram
a ser produzidos, paralelos aos estudos principais desses antropólogos,
como o artigo de Herbert Baldus, "A necessidade do trabalho indianista
no Brasil", publicado em 1939 na Revista do Arquivo Municipal5(57), ou o
artigo de Egon Schaden, "As culturas indígenas e a civilização", publi-
cado em 1955 nos Anais do r Congresso Brasileiro de Sociologia. 6 En- 6. Citado por Peirano,
Marisa, op. cit.
quanto Baldus se dedicava ao estudo dos índios Tapirapé, Schaden era
7. Marisa Peirano
estudioso da cultura guarani. Esses dois artigos expressavam uma pre- considera que a
conceituação teórica
ocupação crescente dos antropólogos com o inter-relacionamento dos proposta por Roberto
Cardoso de Oliveira
grupos estudados com outros grupos, e especialmente com a sociedade sobre a "Antropologia
nacional. Como salientou Marisa Peirano, "hoje uma literatura consi- da Ação", que surgiu
como bricolagem de
derável é herdeira direta das preocupações indigenistas que por muito preocupações indige-
nistas e inspiração te-
tempo, eram geralmente explicitadas somente em artigos publicados à órica sociológica, re-
velando uma situação
parte da obra principal dos antropólogos." na qual dois grupos
são dialeticamente
Darcy Ribeiro centrou suas preocupações na direção do indigenismo unidos por seus in·
e Roberto Cardoso de Oliveira cunhou a expressão "fricção interétni- teresses opostos, fo1
uma inovação impor-
ca" para se referir aos estudos que focalizavam a situação dos índios tante da Antropologia
feita no Brasil.
com a sociedade nacional. Nascia assim uma espécie de "Antropologia
da Ação",? em que o antropólogo se colocava ao lado do grupo estudado
e engajado com suas questões. Particularmente o tema do contato dos
índios com os não índios revestiu-se de uma preoc'upação central.
Para Darcy Ribeiro, o "problema indígena" tornou-se um dos princi-
pais focos de análise e de atuação política. Nesse contexto, atuando na
Seção de Estudos do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), ele idealizou a
criação do Museu do Índio, cujo lema era "um museu contra o precon-

{ReGma aBReu} 145


8. As bases da política ceito". 8 O projeto do Museu do Índio já vinha sendo gestado na Seção de
indigenista brasileira
foram lançadas Estudos do SPI desde a sua criação em 1942. Mas foi somente em 1952,
durante o Governo
de Nilo Peçanha
ano em que Darcy Ribeiro assumiu a chefia da Seção, que a idéia do
(1909-1910), coma
criação, em 191 O, do
museu foi ganhando corpo.9 Em janeiro de 1953, o projeto de adapta-
Serviço de Proteçáo ção do prédio da rua·Mata Machado para a função de museu, feito pelo
ao lndio, que teve
em Cândido Rondon arquiteto Aldary Toledo, já estava concluído, com o desejo de represen-
seu pai fundador, seu
primeiro di reter e seu tar, de acordo com os termos do relatório, "uma inovação na técnica da
grande ideólogo. Foi
durante os governos
museologia do Brasil". Assim, no dia 19 de abril de 1953, como parte das
de Getúlio Vargas comemorações oficiais do "Dia do índio", foi inaugurado o Museu do
(1930-1945 e 1951 -
1954) e Eurico Gaspar Índio. Durante a cerimônia de inauguração da Instituição, cuja direção
Outra (1946-1951)
que a política indige- ficaria a cargo de Darcy Ribeiro, estiveram presentes Candido Rondon,
nista do SPI ganhou
visibilidade, densida-
o diretor do SPI José Maria da Gama Malcher e o diretor do Museu Pau-
de e enraizamento na
vida social brasileira
lista, o etnólogo Herbert Baldus.
(ver Chagas, Mário. Em artigo escrito na Revista da Unesco em 1955, Darcy discorre sobre o
A imagmação museal.
Tese de doutorado recém-criado museu, associando-o a uma nova orientação da etnologia,
UERJ, 2003, p. 212).
que "deveria descartar os antigos preconceitos e se interessar sobretu-
do pelos problemas humanos da população focalizada". Ele se contrapu-
nha à visão evolucionista que estudava os chamados povos primitivos
como "fósseis da espécie humana" e "cujo único interesse consistia em
oferecer um exemplo das condições arcaicas que teria conhecido a nos-
sa sociedade". Darcy opunha o novo museu do índio aos "tradicionais
museus de etnologia". Almejava, com seu novo museu, inspirar "o sen-
timento de solidariedade com os povos de um destino trágico e estimu-
lar a compreensão de suas criações artísticas". O Museu do Índio criado
pelo Serviço de Proteção aos Índios teria como propósito "despertar a
simpatia face aos índios, apresentados como seres humanos que, dentro
dos limites de suas culturas e dos recursos de seu ambiente trouxeram
soluções próprias a problemas humanos universais". A idéia era subli-
nhar o que os índios poderiam oferecer "de mais característico em suas
vidas cotidianas, em suas lutas pela existência, no comportamento que
adotavam em família, em suas atitudes com relação às crianças, na ale-
gria de viver e na busca da beleza, que [seriam] características que se
[exprimiriam] em todas as suas obras". 10

146 {museus, coLeções e patRim8mos: naRRativas pouf8mcas}


Darcy reforçava o objetivo de utilizar o museu como instrumento 9. Quando assumiu a
chefia da Seção de Es-
de luta, "combatendo os preconceitos mais correntes", como "a con- tudos do SPI, Darcy RI-
beiro procurou incen-
vicção de que os índios (eram) incapazes de executar qualquer traba- tivar as atividades de
pesquisa, reorganizar
lho delicado, que eles (eram) seres inferiores de nascimento, que eles
e atualizar a biblioteca
(eram) inaptos à civilização ou (eram naturalmente acometidos) de e o arquivo cine-fo-
tográfico, ampliar o
uma preguiça invencível". setor de registro sono-
gráfico, incrementar
O antropólogo fornecia alguns exemplos de como poderia combater o intercâmbio com
instituições nacionais
o preconceito contra os índios: alguns guias especialmente treinados e internacionais e for-
evidenciariam para os visitantes o virtuosismo dos objetos executados talecer o conta to com
antigos aliados. como
(peneiras, cestas, cerâmicas). O guia levaria os visitantes a concluir que Oracy Nogueira, Egon
Schaden, Eduardo
o desejo de perfeição que se exprimia em todas as atividades dos indí- Gaivão, Herbert Bal-
dus e outros. No final
genas freqüentemente transformava os objetos do cotidiano (arco, fle- do ano de 1952, em
seu relatório anual,
cha, vaso) em obras de arte. Darcy sublinhava a preocupação estética
Darcy fazia referência
dos indígenas como demonstração da riqueza de suas culturas. Assim, à previsão de criação
de um museu "do-
afirmava ter se preocupado em colocar em vitrines especiais esculturas tado de instalações
modernas" e infor-
de argila de grande beleza estética e coleções de ornamentos plumários mava que o que até
então existia era "um
que considerava esplêndidos pela combinação de cores e pela habilidade simples depósito onde
técnica dos artesãos que os confeccionaram. li o material etnográfico
colhido em dez anos
Levando os visitantes a observar um outro painel, que abrigava ma- de atividades do SE
era meramente con-
chados de pedra, o guia explicaria que a alimentação da maior parte servado". (Chagas,
Mário, idem, p. 214)
dos índios do Brasil se baseava na cultura da mandioca e do milho e
10. Ribeiro, Darcy. "Le
que por esse motivo eles precisavam abrir largas clareiras nas florestas. Musée de l'lndien,
Rio de Janeiro": ln:
O guia deveria falar dos esforços extenuantes necessários às derruba- Museum. v. VIII. n' I.
das de árvores com os machados de pedra. Assim, todos seriam levados Paris: UNESCO, 1955,
pp.B-10.
a concluir que a "famosa preguiça" dos índios seria muito mais uma 11. Para maiores de-
"reação à dominação estrangeira ou uma repugnância natural a exe- talhes sobre a relação
de Darcy com a arte,
cutar trabalhos nos quais os índios não (encontravam) nenhuma satis- especialmente arte
plumária, ver a disser-
fação de ordem emocional". tação de Mestrado de

o museu deveria privilegiar informações sobre as condições de vida lone Couto produzida
no âmbito do Progra-

dos povos indígenas na sociedade brasileira, os graves problemas sociais ma de Pós-Graduação


em Memóna Sooal,
e o fato de os índios não terem a propriedade de suas terras asseguradas. Rio de Janeiro, 2005.

Darcy propunha que a exposição fugisse da tendência a mostrar os ob-


jetos indígenas como exóticos para se fixar na idéia de que esses objetos

(ReGina asReu} 147


integrariam o elenco de soluções encontradas pelos indígenas para os
problemas com que se defrontavam diante das necessidades de subsis-
tência em florestas tropicais ou regiões áridas.
Por fim, a exposição deveria trazer painéis ilustrativos das contribui-
ções dos indígenas à sociedade brasileira, como, por exemplo, os instru-
mentos e culturas agrícolas que se expandiram, como o milho, a man-
dioca, o tabaco. Darcy finalizava dizendo que diante das contribuições
indígenas, ó visitante deveria perceber nos índios as mesmas qualidades
essenciais que veria em si próprio, ou seja, as qualidades inerentes a qual-
quer ser humano que tem direito à liberdade e à busca da felicidade.
O surgimento do Museu do índio, em 1953, pode ser visto como o
marco de uma museologia engajada no contexto antropológico brasi-
leiro. O museu era visto como instrumento de luta para a afirmação de
um lugar para os povos indígenas. Além disso, percebe-se uma visão
antropológica humanista e universalista, em que a ênfase estaria mais
nos aspectos de igualdade entre os povos e de pertencimento das etnias
indígenas ao conjunto da humanidade do que propriamente em suas
diferenças culturais. É interessante perceber como, nessa modalidade
de museu, o tema da arte era colocado em evidência. A estetização das
culturas indígenas serviria para atribuir um valor positivo aos objetos
que os arautos do cientificismo evolucionista haviam relegado ao lugar
de "fósseis" de estágios inferiores de evolução humana. Darcy propunha
a inversão do sinal diacrítico na apresentação das contribuições cultu-
rais, especialmente da cultura material indígena.
Esse movimento de valorização pela arte dos povos ditos primiti-
vos estava na ordem do dia nos anos 1940-50. André Breton e os pinto-
res surrealistas chamavam a atenção para o valor estético de objetos
confeccionados nas chamadas sociedades tradicionais. Na Europa, pin-
tores modernos colecionavam objetos recolhidos em viagens a lugares
longínquos. Desde a década de 1920, quando novas correntes artísticas
explodiram com vigor na Europa (fovismo, expressionismo, cubismo,
dadaísmo, purismo, construtivismo) e entraram na América Latina, os
conceitos de arte (belas-artes, artes decorativas, utilitárias) e as pró-

148 {museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas)


prias fronteiras entre as diversas linguagens artísticas (pintura, escul-
tura, arquitetura) foram questionados Y
Por outro lado, o fim da Segunda Guerra havia lançado novos desa- 12. A esse respeito,
ver: Lynton, Norbert.
fios para o mundo intelectual, notadamente os antropólogos. A criação Arte Moderna. En·
ciclopédia das artes
da UNESCO, em 1945, com o objetivo de construir a paz entre os povos plásticas em todos
os tempos. Rio de
por intermédio do estímulo ao encontro das culturas foi um divisor de Janeiro: José Olympio,
águas nesse sentido. Projetos de pesquisa sobre a noção de cultura e a 1966, e Mascelani,
Maria Ângela "A Casa
idéia de diversidade cultural foram postos em prática. A UNESCO, con- do Pontal e suas cole-
ções de arte popula r
gregando 171 países, com sede em Paris, centrava sua atuação em proje- brasileira". ln: Revista
do Património, n. 28,
tes de educação, ciência e cultura. De acordo com Ângela Mascelani: Rio de Janeiro/8rasllia:
A arte, tomada como linguagem universal, desempenhava papel importante- de- IPHAN, 1999.

13. Mascelani, Maria


nominador comum através do qual os homens podiam se entender e reforçar seus
Ângela, op. cit., pp.
elos. A difusão dessas idéias - do homem universal - tocava o meio artístico e 131-132.

intelectual que delas compartilhava na maior parte dos países do Ocidente. Tal
concepção favorecia uma visão menos rígida sobre os conceitos de arte e estimulava
a percepção de novas formas expressivas. (...) Éjustamente essa maleabilidade das
fronteiras que vai possibilitar que se olhe de maneira diferente para a atividade
criativa em geral, permitindo a identificação do caráter artístico em obras que não
obedeciam aos grandes estilos reconhecidos, como é o caso das obras feitas pelos
artistas populares. 13
Desse modo, além do campo da Antropologia, o campo da arte es-
tava se renovando, com a valorização da chamada "arte primitiva" ou
"arte naif".
Darcy Ribeiro era contemporâneo de uma geração de artistas bra-
sileiros que, como seus pares na Europa, buscavam inspiração na pro-
dução artística das etnias indígenas ou dos segmentos populares, como
Cândido Portinari, Di Cavalcanti e Augusto Rodrigues, este último res-
ponsável pela descoberta do ceramista Vitalino Pereira dos Santos, o
mestre Vitalino (1909-1963), cuja obra, como assinàla Ângela Mascelani,
"viria a chamar a atenção para uma peculiar criação, em barro, existen-
te em várias partes do país". É importante assinalar que, em 1947, logo
seis anos antes da inauguração do Museu do Índio, Augusto Rodrigues
havia organizado no Rio de janeiro a primeira exposição da arte popular

{ReGma asReu} 149


pernambucana. Essa exposição se tornou referencial para todos aque-
les que passaram a trabalhar com a chamada arte popular, valorizando
14. Mascelani, "obras produzidas em meios periféricos e surgidas em comunidades em
Maria Ângela,
op. cit. pp. 133 . que (prevaleciam) os modos de vida e culturas tradicionais". 14
Foi ainda no contexto dos anos 1940-50 que se consolidou em Paris,
como grande novidade, o projeto do Museu do Homem. Antropologia
universalista e humanismo conjugavam-se num museu cujo objetivo
era mostrar a unidade da espécie humana em sua diversidade cultural.
O homem era o centro desse megaempreendimento, que conjugou es-
forços de antropólogos como Paul Rivet, Alfred Métraux, Marcel Mauss
e Claude Lévi-Strauss. A perspectiva iluminista da paz entre os homens
representava o fio condutor da proposta de um museu onde os antro-
pólogos deveriam mostrar as diferentes culturas em relação umas com
as outras. De forma bem diversa dos museus enciclopédicos, onde cada
cultura era estudada e exibida em separado, fruto de sólidas pesquisas
de estudiosos dedicados unicamente a cada uma delas, no Museu do
Homem o objetivo era conjugar pesquisas e exposições de culturas que
se relacionavam umas com as outras. A idéia da relação, da troca, do
intercâmbio das culturas predominava numa intenção clara de enfati-
zar a unidade do homem num contexto em que as diferenças culturais
enriqueciam o conteúdo da humanidade. Um dos conceitos fundado -
res dessa modalidade universalista de museu antropológico era, pois,
o conceito de humanidade.
O antropólogo Paul Rivet (1876-1958), contemporâneo e amigo de pais
fundadores da Antropologia Cultural como Franz Boas e Marcel Mauss,
membro do Instituto de Etnologia desde 1925, professor da cadeira de
Antropologia do Museu Nacional de História Natural da França desde
1928, havia assumido desde 1928,juntamente com Georges Henri Rivie-
re, a tarefa de reorganizar inteiramente o velho museu de Etnografia
do Trocadero. Assim, em 1938, os dois haviam transformado esse velho
museu no Museu do Homem. Os princípios norteadores eram aqueles
formulados por Boas, de uma Antropologia que buscava contextualizar
os objetos atribuindo a eles uma visão etnográfica. O objetivo era divul-

150 {museus, coteções e patRimônws: naRRatiVas poufômcas)


gar uma etnologia progressista, atenta aos fatos da língua e da cultura e,
fundamentalmente, atingir um público amplo. O Museu do Homem de-
veria expor os objetos, mostrando como a cultura era produzida, como
o homem representava um elemento transformador da natureza, do
mundo à sua volta e de si próprio. 15 O foco do museu concentrava-se na
cultura material das sociedades não ocidentais.
Paul Rivet e os antropólogos envolvidos com o Museu do Homem 15. Ver: Lauriére,
Christine. Paul Rivet
também estavam articulados com a proposta da criação da UNESCO. (1876-1958) : le
savant et le politique.
A tragédia da Segunda Guerra Mundial provocou nessa geração de Tese de Doutorado

pensadores uma reflexão importante sobre o papel dos intelectuais na apresentada à École
des Hautes Études
construção da paz mundial. Diversos combates centrados na luta contra en Sciences Sociales,
2006.
o fascismo e o racismo foram travados por essa geração de antropólo-
16. Rivet. Paul. "Mu-
gos, que conjugavam pesquisa e ação, ciência e militância. No final da sées de l'homme et
comprehension inter·
guerra, o Museu do Homem iria assumir-se como veículo estratégico no nationale" . ln : Revista
Museum . Paris: UNES-
combate a todas as formas de racismo e na afirmação do conceito antro- CO. 1948.

pológico (leia-se boasiano) de cultura.


Em 1948, no primeiro volume da Revista Museum da UNESCO, Paul
Rivet escreveu um artigo intitulado "Museus do Homem e Compreen-
são Internacional". Nesse artigo, Rivet propunha que a experiência do
Museu do Homem se difundisse para todas as nações do Ocidente como
instrumentos na luta contra o fascismo e o racismo. Para ele, a equação
que unia a Antropologia e a instituição museológica era o único meca-
nismo capaz fazer frente ao obscurantismo que havia levado à Segunda
Guerra e que ainda assombrava o Ocidente.
Nenhuma ciência pode rivalizar com a ciência do homem ou etnologia no sentido de
fazer triunfar a compreensão internacional entre os povos e as nações. Nenhum ins-
trumento tem maior eficácia que os museus consagrados à Antropologia, pois esses
museus dispõem de condições para difundir noções que são a base para a paz entre
os povos. O nome que nós damos a esses museus, "mu~e~s do homem", exprimem
por si só seus objetivos, que são a um só tempo culturais, educativos e morais.' 6
Paul Rivet pregava, assim, que se fundassem por toda a parte "mu-
seus do homem", que classificava como "museus para a paz". A Antropo-
logia detinha papel decisivo nessa cruzada, pois por meio do conceito

{ReGma aaReu} 151


antropológico de cultura e da noção de diversidade cultural a humani-
dade poderia compreender que suas diferenças e particularidades nada
mais eram do que expressões variadas de uma mesma unidade: a uni-
dade da espécie .humana. Por meio do conhecimento de culturas dife-
rentes, os indivídtios.aprenderiam a respeitar e a admirar as diferenças
entre sua cultura e a de outros povos.
Rivet se contrapunha aos museus como "centros reservados unica-
mente para uma elite de intelectuais e de pesquisadores", ou seja, museus
voltados apenas para a produção científica. Os "museus do homem" de-
veriam "ser acessíveis a todos os trabalhadores - intelectuais e manuais
-em horários em que estes estivessem disponíveis, ou seja, após o jantar".
Somente desse modo, voltados para um público amplo, os museus antro-
pológicos cumpririam suas extraordinárias vocações para a difusão cul-
tural. Esse projeto incluía a propagação para as massas populares do que
ele julgava "as noções indispensáveis para a felicidade da humanidade
inteira", pois "ainda que o racismo tenha sido o grande derrotado na últi-
ma guerra", os povos, segundo ele, viviam o temor do seu ressurgimento
esporádico, ainda que "sob formas menos brutais que o hitlerismo".
As medidas de discriminação racial, que (sobreviviam) aqui e ali, ou (tendiam) a
renascer, os comportamentos colonialistas de certas nações, as tendências anti-
semitas que (brotavam) com tanta facilidade por todo o lado (eram, na sua visão,)
provas de que o racismo condenado tantas vezes pelos homens de boa vontade ainda
(encontrava-se) latente.
Paul Rivet acreditava que, divulgando as novas concepções da ciên-
cia antropológica, as massas populares compreenderiam que o racismo
era desprovido de "base científica" e que a ciência o condenava definiti-
vamente. Cabia ao Museu do Homem demonstrar o caráter mestiçado de
toda a humanidade e a impropriedade da noção de raça, uma vez que já
não se encontraria mais nenhum agrupamento populacional que assim
pudesse ser chamado. O Museu do Homem e seus congêneres espalhados
por diferentes países deveriam exibir os tipos humanos constitutivos da
população mundial, focalizando as múltiplas misturas que teriam dado
origem aos homens modernos.

152 {museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas}


Desde a época quaternária superior, os tipos humanos que povoavam a Europa Ociden-
tal eram oriundos da raça negra (tipo negróide de Grimaldi), da raça amarela (tipo de
Chancelade), da raça branca (tipo de Cro-Magnon) que fizeram cruzamentos entre si,
como fizeram cruzamentos posteriormente com os invasores neolíticos, isto é, os ho-
mens que introduziram na Europa a técnica da pedra polida, a cerâmica, a agricultura,
os animais domésticos e as plantas cultivadas. Essas populações mestiçaram-se com
os invasores bárbaros, depois com os conquistadores romanos, que eram eles mesmos
mestiçados, e, posteriormente mestiçaram-se com os invasores bárbaros e assim por
diante.( ...) Na Ásia oriental, no quaternário superior, freqüentavam-se os negróides,
os mongolóides e homens apresentando características do homem de Cro-Magnon.
Na América, esse quadro não é diferente. Os índios pré-colombianos são descendentes
de emigrantes vindos da Ásia do Nordeste e da Oceania, mongolóides e negróides, e a
esse substrato veio a agregar-se, depois da conquista, o elemento branco.
Se, do ponto de vista da Antropologia Biológica, a demonstração da
evidência da mestiçagem deveria ser enfatizada, do ponto de vista da
Antropologia Cultural, Paul Rivet entendia que os "museus do homem"
(ou o que ele também chamava de "novos museus de etnologia") deviam
"demonstrar com clareza que todos os povos da terra, quaisquer que
(fossem) as cores de suas peles ou de seus cabelos, contribuíram para o
progresso da civilização e que (a) cultura européia (era) em grande par-
te resultante de contribuições vindas de todos os continentes, de todas
as latitudes, de todas as longitudes."
Rivet considerava pedagogicamente necessário que o homem do
chamado Velho Mundo, que teria se apropriado magnificamente de
muitos elementos culturais considerados exóticos, conhecesse a ori-
gem desses elementos e compreendesse o quanto era devedor dos po-
vos do Novo Mundo, pois "o seu orgulho o conduzia frequentemente a
considerá-los como inferiores". Citava exemplos dessas contribuições
do Novo Mundo para o Velho Mundo, entre elaso'mllho, a mandioca, a
batata doce, a batata, o cacau, a vagem, a pimenta, o fumo, o tomate, o
abacaxi, a coca, a borracha.
O Museu do Homem e seus congêneres espalhados pelo mundo te-
riam, pois, uma função eminentemente pedagógica, de conhecimento

(ReGma aaReu} 153


mútuo entre as culturas para o entendimento e a colaboração entre
elas. Por fim, ele chamava a atenção para a necessidade de evidenciar
nesses museus "a maravilhosa ascensão de nossa espécie". Cuidadoso,
buscando fugir aos estereótipos evolucionistas, Rivet não abria mão de
pensar o humano como uma espécie com percurso próprio. Para ele, era
preciso que os visitantes compreendessem que o ser humano enquanto
espécie havia alcançado conquistas importantes para a sobrevivência
de toda a humanidade. Essa compreensão elevaria a auto-estima dos in-
divíduos, funcionando como um "imenso hino de fé e de esperança que
se propagaria e amplificaria no curso dos anos, seguindo todo o per-
curso que a humanidade (teria) percorrido". A execução desse hino nos
museus sensibilizaria os visitantes para entender a eficácia dos esforços
empreendidos por toda a humanidade para uma construção ascenden-
te, animando os indivíduos nas horas de dúvida ou tristeza.
É interessante observar como Rivet conciliava a Antropologia Cultu-
ral com a Antropologia Biológica e como seu pensamento estava marca-
do pelos propósitos de contribuir para a construção de uma via pacífica
de compreensão entre os povos. O museu que ele propunha de maneira
alguma era eurocêntrico, hipervalorizando as conquistas da chamada
civilização ocidental. Pelo contrário, num estilo boasiano de Antropolo-
gia, com fortes pitadas de difusionismo, o sentido do museu antropoló-
gico consistia em valorizar as contribuições de todas as culturas para o
projeto do humano, da humanidade. Essa via não abolia a preocupação
com os ideais de progresso e de enunciação do percurso da espécie hu-
mana. Aqui o estudo e a exibição das culturas em suas particularidades
deviam vir combinados com a demonstração de uma relação permanen-
te entre as culturas, de uma mestiçagem dinâmica entre as populações
e de uma marcha comum de toda a humanidade.
Em resumo, o estudo do homem pode e deve, por intermédio de nossos museus,
demonstrar que os agrupamentos humanos atuais são o resultado de múltiplas
mestiçagens, e que será inútil procurar em suas composições um argumento em
favor de um racismo. Ele pode e deve provar a solidariedade de todos os povos
da terra, exaltar e fortificar o sentimento de interações culturais que, no curso

154 {museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas)


dos anos, são produzidos entre diversos continentes; ele pode e deve estimular a
confiança do homem no seu destino e provar que é na via da compreensão inter-
nacional e da solidariedade humana que os homens podem caminhar confiantes
num futuro melhor.
Museus para o combate aos preconceitos e para a construção de so-
lidariedades, esse parecia ser o lema do fundador e diretor do Museu
do Homem no final dos anos quarenta e início dos anos cinqüenta. Esse
também parecia ser o lema que inspirou Darcy Ribeiro a fundar o Museu
do Índio. Os museus de cunho antropológico eram pensados como ins-
trumentos de políticas públicas e práticas sociais. Vinculados a institui-
ções estatais e de pesquisa, tanto o Museu do Homem quanto o Museu
do Índio foram idealizados para atingir um público amplo, disseminan-
do informações capazes de modificar mentalidades arraigadas de pre-
conceitos e discriminações. No caso do Museu do Homem, a intenção era
fortalecer a idéia da mestiçagem e valorizar as diferentes contribuições
culturais para o progresso da humanidade. No caso do Museu do Índio,
o objetivo era fortalecer as etnias indígenas numa perspectiva também
humanitária. Por diversas vezes, Darcy Ribeiro utilizou a expressão
"humanidade índia" para se referir aos índios no Brasil. Para atingir
seus objetivos, ele propunha um museu estetizado. Os objetos indíge-
nas chamariam a atenção pelo belo, pela elaboração estética complexa
que os envolveria. Darcy queria combater os preconceitos específicos no
Brasil da época, que qualificavam as culturas indígenas brasileiras como
inferiores com relação a suas congêneres da América Latina. Não eram
poucos os intelectuais que no contexto das aquisições humanas enalte-
ciam as contribuições notáveis dos incas, astecas e maias, considerando
poucas e frágeis as contribuições dos índios brasileiros. Darcy estava,
pois, irmanado a Paul Rivet nos mesmos ideais de uma Antropologia hu-
manista e universalista, mas seus objetivos com o Mtiseu do Índio eram
mais específicos, voltados para a construção positiva da relação da so-
ciedade brasileira com as etnias indígenas.
O Museu do Índio estabeleceu desde o início relações com o Mu-
seu do Homem. No Relatório de Atividades do Museu do Índio de 1954,

{ReGina asReu} 155


mereceram destaque a recepção a Paul Rivet, que veio ao Brasil repre-
sentando o Instituto de Etnologia Francesa, e a conferência do professor
Alfred Metraux, do Departamento de Ciências Sociais da UNESCO.
A proposta de criação de museus do homem no Brasil encontrou boa
17. Durante os anos acolhida em Darcy Ribeiro e também em Gilberto Freyre. Gilberto Freyre
de 1920!1930, Paul
Rivet e Franz Boas (1900-1987), como Paul Rivet, era também um admirador de Franz Boas. 17
nutriram forte relação
epistolar. Analisando
Em 1922, havia concluído a dissertação de mestrado na Universidade de
essa correspondência.
Colúmbia, sob orientação do eminente antropólogo, intitulada Social Life
Christine Lauriére si-
naliza que os dois ho- in Brazil in the Middle of the 19th Century. No mesmo ano embarcou para a
mens partilhavam de
uma mesma concep- Europa em viagem de estudos, percorrendo alguns museus de Antropo-
ção de engajamento
científico. Travaram, logia sob orientação de Franz Boas.
em comum, muitos
combates e dialo-
Paris e agora Berlim - nos seus museus etnológicos e etnográficos - como aqui
garam sobre muitos se diz - ou do Homem, isto é, antropológicos, tenho cumprido meu programa de
projetas. Franz Boas
morreu em 1942, em estudos, a seu modo pós-graduado e segundo sugestões do europeu Boas. Pois na
Columbia, justamente
num jantar oferecido Europa, pedi a orientação do grande Boas para esses conta tos com museus vivos
em homenagem a
Paul Rivet, onde se
como são os da Alemanha, os ingleses e franceses. Boas, como antropólogo, é um
encontrava também
entusiasta de museus desse gênero. Pensa que neles se pode aprender mais do que
Claude Lévi-Strauss.
na época ainda um em simples conferências abstratas em puras salas de aula. Esses três museus - o
jovem etnólogo pou-
co conhecido. Ver: de Paris, o de Oxford, o de Berlim- pedem dias seguidos de estudos panorâmicos.
Lauriére, Christine,
op. cit. Panorâmico sem se considerar o que pode ser realizado em qualquer deles como
18. Freyre, Gilberto. estudo especializado.••
Tempo morto e outros
tempos: trechos de
Gilberto Freyre alimentava o sonho da criação de um museu do ho-
um diário de adoles-
cência e primeira mo-
mem no Brasil, "especializado na apresentação sistemática, didática,
cidade, 1915-1930. cientificamente orientada, de material antropológico relativo à gente
Rio de Janeiro: José
Olympio, 1975, p. 88, brasileira - aos seus físicos, às suas etnias, às suas culturas (entrando
citado por Chagas,
Mário. A imaginação aqui uma reorientação dos nossos estudos antropológicos sob inspira-
musea/. Op. cit.
p.148.
ção de Boas, de Wissler, de Kroeber) - nas suas várias expressões re-
19. Freyre, Gilberto. gionais." Ainda em 1922, ele comentava em seu diário que, se pudesse,
Op. cit., citado por
Chagas, Mário. Op.cit.
quando voltasse ao Brasil, organizaria um museu antropológico segun-
do a orientação de Franz Boas.19
Anos mais tarde, quando, com o fim do Estado Novo em 1945, foi elei-
to deputado federal pela União Democrática Nacional (UDN) para o pe-
ríodo de 1946-1950, ele propôs a criação do Instituto Joaquim Nabuco de

156 {museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas)


Pesquisas Sociais, aproveitando o centenário de nascimento de Joaquim
Nabuco. No discurso de defesa do projeto, referiu-se longamente aos mu-
seus que conhecera no exterior e à importância desses órgãos no âmbito
da pesquisa, do desenvolvimento social e da defesa dos valores regionais.
Com essas referências, procurou justificar a inclusão no corpo do Institu-
to Joaquim Nabuco de um museu de Antropologia, "um museu de etno-
grafia matuta e sertaneja, de arte popular, de indústria caseira". 20
O foco do Museu do Homem do Nordeste deveria ser a cultura regio- 20 . Biblioteca Virtual
Gilberto Freyre (http://
nal. Freyre enumerou em seu projeto os objetos que deveriam constar prossiga .bvgf.fgf.org .
br). Fonte: Freyre, Gil-
no museu: berto. "Necessidade
de institutos de pes-
Será obra de maior interesse científico e prático a de reunir-se, com critério cientí-
quisa social no Brasil" .
fico, o material mais relacionado com a vida e com o trabalho das nossas populações Discurso proferido
na Câmara Federal,
regionais. Tipos de habitação, de redes de dormir, de redes de pesca, de barcos Rio de Janeiro, em 4
dez. 1948, citado por
como os do Rio São Francisco - cuja figura de barqueiro reclama estudo especial Chagas, Mário, op
cit., p. 167.
-de brinquedos de menino, de mamulengo, de louça, de trajo, de chapéu, de alper-
21 .1dem. Citado por
cata, de faca, de cachimbo, de tecido, de bordado, de renda chamada da terra ou Chagas, Mário, op.
cit., p. 168.
do Ceará, receitas de remédios, alimentos, doces, bebidas, crendices, superstições,
tudo isso tem interesse científico, artístico, cultural, social, prático. Enganam-se
os reformadores de gabinete que vêem em tudo isso apenas divertimento para os
olhos dos turistas ou dos antiquários."
O Museu do Homem do Nordeste, preconizado por Gilberto Freyre
em seu discurso de 1947, só foi aberto ao público em 1964, com a denomi-
nação de Museu de Antropologia. Até essa data, o Instituto Joaquim Na-
buco de Pesquisas Sociais priorizou a consolidação de suas práticas de
documentação, preservação, divulgação científica e promoção cultural.
O Museu surgiu como um desdobramento das atividades do Instituto,
sob a supervisão de Gilberto Freyre, a direção de Mauro Mota e contan-
do com os antropólogos René Ribeiro e Waldemar Valente na equipe de
organização museal. Em 1978, o Museu de Antropolbgia foi fundido com
dois outros museus pernambucanos, o Museu de Arte Popular e o Museu
do Açúcar, dando origem finalmente ao Museu do Homem do Nordeste.
É interessante observar como a tradição dos museus de arte popular foi
caminhando lado a lado com os novos museus antropológicos. O Museu

(ReGma asReu) 157


de Arte Popular de Pernambuco tinha sido criado por iniciativa do pin-
tor Abelardo Rodrigues em 1953, no contexto de valorização, por parte
dos artistas moderno~, da arte produzida pelos segmentos populares.
Contava com obras deVitalino, Zé Caboclo, Zé Rodrigues, Porfírio Faus-
tino, Severino de Tra'cunhaem, além de coleções de imagens, brinquedos
populares em madeira, couro, pano e palha, de ex-votos. O Museu do
Açúcar tinha sido criado pelo Instituto do Açúcar e do Álcool em 1961
e contava em seu acervo com representações dos processos tecnológi-
cos de plantio, corte, colheita, transporte e manufatura do açúcar em
épocas distintas, além de requintadas coleções de alfaias referentes às
famílias tradicionais de Pernambuco. 22
Mário Chagas destaca que, em um folheto denominado "Sugestões
22 . Para a história em torno do Museu de Antropologia do Instituto Joaquim Nabuco de Pes-
em detalhes da
criação do Museu quisas Sociais", Freyre sistematizou seu projeto de museu. Este deveria
do Homem do Nor-
deste, ver: Chagas,
reunir, "sob critério antropológico, documentação quanto possível signi-
Mário. A Imaginação
ficativa acerca do passado, da vida e da cultura de uma região tradicio-
Museal, op. cit., pág.
173-178 nalmente agrária do Brasil como a que se estende da Bahia ao Amazonas".
23 . Ribeiro, Darcy, Em outras palavras, tratava-se de um Museu de Antropologia regional.
1997a, p. 466, citado
por Chagas, Mário. Passados mais de vinte anos da criação do Museu do Índio, Darcy
Op. cit., pág. 239.
Ribeiro também se viu envolvido com um projeto de criação de um "mu-
seu do homem". Em 1976, ele foi convidado a colaborar num projeto da
Universidade Federal de Minas Gerais para criar um Museu do Homem
de Minas Gerais. O plano diretor desse museu seria "a coleta, o estudo, a
exposição e a difusão de expressões culturais "das populações que vive-
ram ou vivem no território brasileiro, especialmente em Minas Gerais,
situando-as no contexto geral da evolução do homem". 23 Para Darcy, o
museu teria a mesma função político-pedagógica do Museu do Índio,
devendo também ser instrumento no combate ao preconceito e na afir-
mação de uma sociedade mais criativa e solidária.
Reconstituir os caminhos milenares pelos quais nos viemos construindo como
rebento derradeiro de uma romanidade, de uma negritude e de uma indianidade
mestiçadas na raça e na cultura, primeiro na Ibéria e depois na África e, fin a lmente,
no Aquém-mar. Reconstituição que se fará não para afirmar passadas glórias al heias

158 {museus, coteções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas}


de que fomos as vítimas, mas para nos tornarmos capazes, amanhã, de expressar 24. Ribeiro. Darcy,
in: Fundaçào de
melhor que nossas matrizes, as potencialidades humanas comuns pela criação de Desenvolvimento da
Pesquisa (Fundep).
uma sociedade afinal mais criativa e mais solidária.2' Projeto do Museu do
Homem (Arquivo Fun-
Como observou Mário Chagas, a proposta conceituai do Museu do
dação Darcy Ribeiro).
Homem de Minas Gerais constituía uma forma de musealização do li- Belo Horizonte, 1978,
citado por Chagas,
vro Oprocesso civilizatório, de Darcy Ribeiro, cuja primeira edição data de MMio. Op. cit., pág,
241.
1968. O projeto consistia em exibir "a grande aventura luso-brasileira de
25 . Ci tado por Cha-
criar uma civilização tropical e mestiça". Os oito circuitos de exposição gas, Mário, op. ot.,
p. 242.
eram assim descritos:
26. Sobre a relação
1. O fenômeno humano e o surgimento do homo sapiens; 2. A evolução cultural entre museus e Antro~
pologia, é importante
do homem e suas sucessivas revoluções: agrícola, urbana, do regadio, metalúr- também levar em

gica, pastoril, mercantil, industrial, termonuclear; 2. O homem americano: suas conta a fundação,
em 1968, no Rio de
origens, seus níveis de desenvolvimento evolutivo e suas civilizações; 4. O índio Janeiro, do Museu
de Folclore Édison
brasileiro: seus graus de desenvolvimento, suas línguas e culturas; S. A civilização Carneiro como um
dos resultados do
brasileira: suas matrizes lusitanas e africanas e seus ciclos civilizatórios; 6. A civi- movimento folclo-
rista. em especial da
lização do ouro: Minas Gerais o contexto histórico, a expressão barroca nas artes
Campanha de Defesa
e na economia industrial moderna. 7. O Brasil no mundo e 8. A cultura caipira e a do Folclore Brasileiro,
que congregou dife-
tecnologia da vida rural. 25 rentes intelectuais e
teve forte atuação de
O Museu do Homem de Minas Gerais não chegou a se efetivar, mas 194 7 a 1964. Outras
iniciativas museológi-
seu projeto, acalentado nos anos 1970, representava a permanência do cas, como a formação
paradigma do Museu do Homem enquanto idéia-força que congregava da Coleção de Arte
Popular de Jacques
o tema da diversidade das culturas humanas com a unidade da espécie Van de Beuque du-
rante os anos 40, até
humana, que pretendia por intermédio dos museus afirmar diferen- sua morte nos anos
90, também têm
tes processos civilizatórios e contribuir para a solidariedade entre os relação di reta com as
novas tendências da
povos e a paz mundial. Além disso, assim como o Museu do Índio e o arte e da Antropolo-
Museu do Homem do Nordeste, o projeto do Museu do Homem de Minas gia, particularmente
nos contextos de fu n-
Gerais representou mais um exemplo de iniciativas vinculadas a ins- dação da UNESCO e
das "antropologias da
tituições estatais, protagonizadas por antropólogos renomados, com ação" que animaram
os antropólogos do
claros objetivos de intervenção social e política na construção de novas pós-guerra.
mentalidades na luta contra o preconceito, o racismo, a intolerância e
na afirmação e valorização da mestiçagem como via para o desenvolvi-
mento nacional e regional. 26

(ReGma asReu} 159


ANTROPOLOGIAS E MUSEUS NATIVOS COMO
ESTRATÉGIAS DE MOVIMENTOS SOCIAIS

No início dos anos 1990, uma surpresa insinuou-se no horizonte das


experiências mtiseoiógicas vinculadas ao campo da Antropologia. Ou-
via-se dizer que um pequeno museu havia sido criado em Benjamim
Constant, cidade de aproximadamente 12 mil habitantes localizada
na confluência dos rios Javari e Solimões, na região do Alto Solimões,
Amazonas, próximo à fronteira do Brasil com o Peru e a Colômbia, por
índios ticuna. Como explicar esse fenômeno? Se os estudos sobre me-
mória social apontavam que o "museu" era sobretudo uma instituição
ocidental, produto das sociedades letradas que há muito haviam per-
dido o sentido espontâneo da memória, uma instituição destinada a
arquivar, catalogar, classificar, lembrar o que a memória dos moder-
nos teimava em esquecer, como explicar que um agrupamento humano
fundado em relações tradicionais, onde se esperava uma memória cole-
tiva coesa, fosse precisar de um museu? Não diziam os clássicos que nas
sociedades tradicionais a memória permearia o próprio tecido social,
sendo essas sociedades sociedades-memória por excelência? Para que
os índios iriam querer museus, contrariando todas as expectativas da
literatura antropológica?

O museu Máguta
O pequeno museu, instalado numa casa de arquitetura simples, com
varandas ao redor, cinco salas de exposição e uma pequena biblioteca,
foi criado no bojo da luta pela demarcação de terras. Algumas lideran-
ças ticuna perceberam que seu direito à terra dependia, em grande par-
te, de serem reconhecidos como índios pela sociedade brasileira. Muitas
vezes, eles eram identificados como "caboclos" pela população local. Do
ponto de vista das lideranças indígenas, era preciso fortalecer a iden-
tidade ticuna, muitas vezes escondida pelos próprios índios e negada
sempre pela população regional. A idéia da criação do museu surgiu
como um instrumento de luta, num momento crítico de mobilização po-

160 (museus, coLeções e patRim8mos: naRRativas pouf8mcas}


lítica, quando os ticuna estavam mobilizados na luta pela defesa de seu
território, confrontando-se até mesmo com grupos armados. Em março
de 1988, pistoleiros atacaram um grupo de índios no igarapé do Capace-
te, matando 14 deles, entre homens, mulheres e crianças, ferindo 23 e
deixando dez desaparecidos, num massacre que teve ampla repercussão
nacional e internacional. 27
A idéia de criação de um museu surgia como uma estratégia de or- 27. Oliveira Filho e
Lima, 1988, citado
ganização da memória e de revigoramento da identidade étnica. Com por Freire, 2003,
p. 220.
o apoio de ONGs, destacadamente da CGT (Confederação Geral dos Tra-
balhadores), algumas lideranças indígenas se converteram subitamente
em profissionais de museu, aprendendo algumas técnicas de museologia
e museografia. Para a formação do acervo, essas lideranças mobiliza-
ram 95 aldeias, com uma população de 28 mil índios, nos municípios de
Benjamin Constant, Tabatinga, São Paulo de Olivença, Amaturá, Santo
Antonio do Içá, Tocantins,Jutaí e Beruri. O principal trabalho consistiu,
de um lado, em recuperar antigas tradições e técnicas artesanais em
desaparecimento e, de outro lado, em estimular os artistas indígenas
especializados em diferentes artes (confecção de máscaras rituais, es-
culturas de madeira e de cocos de palmeira, pinturas de painéis deco-
rativos de entrecasca, fabricação de colares, cestos, redes e bolsas). Para
a recuperação das antigas tradições de artefatos ticuna foram consul-
tadas fotografias antigas e registres feitos, em 1929, pelo etnólogo Curt
Nimuendajú. Em seguida, foram realizadas entrevistas com os anciãos
das aldeias e, com a colaboração destes, oficinas com os mais jovens,
que reaprendiam a confeccionar os antigos artefatos. Durante três anos,
de 1998 a 1991, os índios participaram ativamente da organização do
acervo com a assessoria da antropóloga Jussara Gomes Gruber. A defi-
nição dos objetos, o levantamento de dados sobre as peças, a seleção
dos objetos para a exposição, o desenho das ilustrações, tudo isso foi
realizado pelos próprios índios, sob a liderança. de Constantino Ramos
Lopes Cupeatücü, índio ticuna que havia escapado do massacre do Capa-
cete com um ferimento à bala e tornara-se responsável, depois de algum
treinamento, pela guarda do acervo e por sua dinamização.

{ReGma aaReu} 161


A experiência de criação do Museu Máguta estava longe de consti-
tuir um evento cultural pacificado. No entender de Freire, essa singela
instituição nas mãos das lideranças indígenas adquiriu um "potencial
explosivo" na luta pela·auto-afirmação da identidade étnica dos ticuna
e no confronto cóm madeireiros, políticos e latifundiários da região. No
dia e na hora da inauguração do Museu Máguta, o prefeito de Benjamin
Constant "convocou uma concorrida manifestação de rua, carregada de
hostilidade, contra a demarcação das terras indígenas, em frente ao mu-
seu", provocando o cancelamento da solenidade e seu adiamento. O mu-
seu só foi inaugurado três semanas depois, em dezembro de 1991, devido
28. Dados citados por à ampla repercussão na imprensa e aos protestos de instituições como a
Freire, 2003, op. cit.
Universidade do Amazonas e o Conselho de Reitores das Universidades
Brasileiras (CRUB) e à intervenção do Comando Militar da Amazônia. 28
Na época em que foi fundado, o Museu Máguta representou uma
grande novidade no panorama dos museus do País. Se, outrora, os gru-
pos indígenas eram representados nos museus etnográficos a partir
de práticas de colecionamento de etnólogos-colecionadores, o Museu
Máguta teve desde seu início uma proposta de auto-representação in-
dígena. Tratava-se de um lugar de construção e afirmação de uma iden-
tidade étnica na primeira pessoa, ou seja, implementada pelo próprio
grupo interessado. A participação dos índios no processo de constitui-
ção das coleções e montagem da exposição, bem como as responsabi-
lidades que eles próprios assumiram na administração e dinamização
do museu configuraram um dos aspectos da singularidade dessa expe-
riência. Segundo Jussara Gruber, antropóloga envolvida no processo de
constituição do museu:
Os objetos escolhidos foram os que têm para os ticuna maior significação cultural
e afetiva. Essas particularidades, portanto, fazem dessa iniciativa um instrumento
de autogestão da cultura, opondo-se às concepções mais tradicionais de museus
etnográficos, onde os objetos são coletados e apresentados sob a ótica da sociedade
dominante, predominando, muitas vezes, o interesse pessoal ou a curiosidade de um
de seus produtores. Por outro lado, é um museu que não se afirma em princípios de
poder e autoridade, de luxo ou consumo. Sua força reside muito mais numa profunda

162 {museus, coLeções e patRimônws: naRRativas poufômcas}


e persistente vontade dos índios de se tornarem visíveis como índios ticunas, de
se comunicarem com os membros de outras sociedades e conquistarem o espaço
social e cultural a que têm direito.'•
Com o trabalho do museu, os índios ticuna passaram a ser mais res- 29 . Gruber, Jussara
"Museu Máguta". in:
peitados e valorizados na região e mais conhecidos no País, e até inter- Piracema - Revista de
Arte e Cultura . n. 2
nacionalmente. Em 1995, o museu sofreu nova ameaça por parte dos ma- • ano 2, RJ, Funarte,
deireiros, que queriam incendiá-lo. Entretanto, estes não encontravam 1994.

30 . Gruber. J. 1995.
mais apoio junto à população local. Segundo Jussara Gruber: citado por Freire,
O trabalho educativo do museu- através de um programa de interação com ases- 2003 .

colas da cidade, que tem por finalidade aproximar as novas gerações da cultura e da
história dos ticuna - vem cumprindo a importante função social de promover uma
maior harmonia nas relações interétnicas na região, colaborando para que sejam
desfeitas, gradativamente, as idéias preconceituosas e discriminatórias a respeito
das populações indígenas. 30
Em 1995, o museu foi premiado como "museu-símbolo" pelo Inter-
national Council of Museums (ICOM), realizado em julho do mesmo ano
em Stavanger (Noruega). No mesmo ano obteve o prêmio Rodrigo Melo
franco de Andrade, concedido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (IPHAN), por sua contribuição para a preservação da
memória cultural brasileira.
Desde o início, o ticuna Constantino Ramos Lopes Cupeatücü desta-
cou-se nas atividades de coordenação e colecionamento de objetos para
o museu. Guardando as devidas proporções, Constantino representou
para o colecionamento ticuna no final do século XX o mesmo que Curt
Nimuendajú representou no início do século em termos de objetivo de
coleta de artefatos e estudo da cultura material. Entretanto, enquanto o
primeiro procurava representar sua própria cultura, o segundo integra-
va uma visão de Antropologia e uma prática de colecionamento que re-
tirava os objetos de seus contextos de origem para enviá-los aos grandes
museus etnográficos, onde diferentes culturas. deveriam ser exibidas
em conjuntos-síntese da diversidade cultural da humanidade. O museu
ticuna emergiu como uma experiência articulada aos próprios índios
que, talvez pela primeira vez na história do Brasil, realizavam uma ex-

{ReGma asReu} 163


periência museológica na primeira pessoa. Diversamente do padrão dos
museus etnográficos do País, este se constituiu como um museu enga-
jado, articulado com as lutas do grupo ticuna. Convidado a participar
do Seminário Patrimônio Cultural: Coleções, Narrativas e Memória So-
cial, organizado no Programa de Pós-Graduação em Memória Social da
UNIRIO, Constantino relatou sua experiência no museu e no Centro de
Documentação e Pesquisa do Alto Solimões. A partir desse depoimento
percebemos a relação estreita da sua prática de colecionamento com os
objetivos das lutas do grupo ticuna.
Tudo começou com a luta pela demarcação de terras e pela conquista dos direitos
à educação e à saúde. Nós morávamos na terra, mas vivíamos como os animais que
podem ser mortos a qualquer momento, pois cada pedaço de terra tinha um patrão.
Começamos a nos reunir para discutir o que fazer e procurar quem nos ajudasse.
No princípio, por volta dos anos 1972 e 1973, os mais velhos diziam que havia uma
proteção para os índios, que era o Serviço de Proteção ao índio, mas não havia nada
de concreto para nós. A luta dos índios ticuna começou pela demarcação das terras
e depois por educação e saúde. A educação na região era pouca e de má qualidade.
Mais tarde, foram aparecendo mais pessoas não-índias interessadas em ajudar. Por
volta de 1975, a PUC do Rio Grande do Sul se instalou em Benjamin Constante fez
um curso de extensão direto de Porto Alegre. A educação melhorou um pouquinho.
De 1980 a 1983, eu fiz o curso de extensão com o pessoal da PUC. Eles tinham tam-
bém o curso de formação para professores leigos rurais que eu fiz em 1985. Quando
voltei, um mês depois, comecei a dar aulas para os meus próprios parentes e entrei
no curso de agentes de saúde. Em 1986, os caciques e os professores começaram a
discutir a questão da criação de um museu. Algumas pessoas que estavam com a
gente como a antropóloga]ussara Gomes Gruber, que chegou como aluna do curso
de extensão, e após um estágio com os ticuna passou a se dedicar ao trabalho de
apoio aos índios, estimularam a criação de uma organização de caciques e, mais
tarde, dos professores e agentes de saúde. Então foram criadas três organizações:
CGPT (Conselho Geral dos Professores Ticunas), CGTT (Conselho Geral da Tribo
Ticuna) e depois a OSPTS (Organização de Saúde do Povo Ticuna do Alto Solimões).
Em 1986, foi criado o Centro Máguta que gerou a discussão sobre o museu. Na época,
na região do Alto Solimões, os índios não tinham mais direito nem mesmo de falar

164 {museus, coLeções e patRJmônws: naRRativas poufômcas}


a própria língua que era proibida na escola. A intenção da criação do museu era 31 . A entrevista
de Constantino foi
que os índios não perdessem tudo o que tinham, já que mesmo suas armas como realizada em maio
de 2001 e editada
a zarabatana não sabiam mais fabricar, além de serem obrigados pelos patrões por mim. Agradeço a
colaboração de José
a plantar mandioca e fabricar farinha para ser vendida em Benjamin Constant,
Ribamar Bessa Freire e
Tabatinga e Letícia na Colômbia. A idéia de criar o museu foi para preservar a arte da equipe do Núcleo
Pró· lndio da UERJ
e a língua ticunas, assim como o mito e a história.J' pela viabilização da
participação de Cons-
Constantino revela seu processo de entronização à linguagem mu- tantino no Seminário
e no curso Memória e
seológica, de como foi se convertendo pouco a pouco num coletor de Patrimõnio, coorde·
artefatos do seu próprio grupo: nado por mim e pelo
Prof. Mário Chagas no
No final de 1988, saí da aldeia para trabalhar como professor na cidade de Benjamin Mestrado em Memó-
ria Social da UNI RIO.
Constant. Mas, então, a Jussara me chamou para que eu assumisse o museu. Ela
me explicou o que eu iria fazer, o prédio onde eu ia trabalhar e me ensinou sobre
o que era museu. Ela me mostrou uns livros que tinham fotos de exposições. Com
a orientação dela entendi o que era museu e saí para fazer reuniões na aldeia e
explicar para eles o que era museu, explica r que precisava das zarabatanas, da iga-
çaba, da arte em geral, de tudo o que ia ser colocado dentro do museu. Os parentes
me perguntavam o porque disso e eu respondia que era para o museu, que a gente
tinha uma casa onde seriam colocados tudo o que eu estava pedindo. A antropó-
loga]ussara tinha trabalhado no Museu Nacional, então ela tinha fotografias dos
pentes que os índios faziam, dos colares de dentes que os antigos faziam, de uma
agulha que servia para os antigos tecerem panos de algodão. Ela me passou essas
fotografias e eu mostrei para os parentes, procurando quem fi zesse aqueles objetos
para colocar no museu. Eu dizia que iria colocar o nome de quem fizesse coisas
bonitas no museu, o nome em português e na língua ticuna, o nome da aldeia e a
idade de quem doou. Eles perguntavam: "Por que você quer isso?" E eu ex plicava
que era para a informação, porque cada peça teria o nome da pessoa que fez e o
número do registro - coisas que eu aprendi. Isso durou três anos, de 1989 a 1994.
Consegui coletar do meu próprio povo 380 peças, dessas foram escolhidas as mais
bonitas e 170 ficaram na exposição.
A iniciação de Constantino na linguagem museológica reflete uma
tendência de aproximação dos povos indígenas dos costumes e hábitos
do Ocidente. É interessante notar que o museu chegou para eles jun-
tamente com a chegada da escola - modelo de educação da sociedade

(ReGma aBReu} 165


ocidental moderna. Mas a adesão dos índios ao museu e ao processo
de colecionamento indica a eficácia dessa instituição e seus processos
com as necessidades de. construção e afirmação de uma identidade ét-
nica. Com a prática do colecionamento, tornava-se mais fácil objetificar
para si mesmo e pàra· o grupo uma cultura que foi sendo modificada e,
principalmente, expoliada por madeireiros, latifundiários e políticos. O
museu se inscrevia numa ação de resistência ou até mesmo de re-exis-
tência. Por meio do colecionamento de seus próprios artefatos, mitos
e tradições, os ticuna inventavam uma nova maneira de existir, com
maior visibilidade, exibindo a si mesmos para não desaparecerem como
cultura singular e para não serem trucidados por grupos fortes econô-
mica e politicamente. No relato sobre a sua experiência no museu, Cons-
tantino explicita as tensões e ao mesmo tempo as vitórias advindas no
processo. Com o museu aberto para os ticuna, para a população pobre
da região e também para turistas, ficava cada vez mais difícil ocultar ou
apagar a sua existência enquanto grupo cultural e socialmente específi-
co. Desse modo, o museu ticuna voltava-se para o presente e não para as
lembranças do passado. Ao contrário, das experiências dos grandes mu-
seus etnográficos do século XIX e início do século XX, o Museu Máguta
não estava interessado em fazer a memória do que não mais existia. Sua
intenção era afirmar a existência dos artefatos e recolocá-los na vida
cotidiana usando como instrumento o processo museológico. Museali-
zar para não apagar, para não esquecer. Musealizar para que o grupo
pudesse ser visto, olhado, estudado. Ao contrário dos objetos deposita-
dos nos grandes museus etnográficos, que serviam como testemunhos
de um mundo fadado ao desaparecimento, a proposta do museu Máguta
emergia como uma proposta ativa de vida e construção de auto-esti-
ma para um grupo indígena que acreditava poder construir um futuro
como grupo, com uma identidade própria e peculiar.
A nossa intenção com o museu era mostrar a arte ticuna e com a biblioteca querí-
amos chamar os alunos para dentro do museu, aproximar os índios dos brancos.
Isso a gente só conseguiu uns três anos depois da abertura do museu. Durante esse
tempo tivemos muitos problemas, pois a população tinha raiva e o próprio prefeito

166 {museus, coLeções e patRim8mos: naRRatrvas pouf8mcas)


tinha certeza de que a entidade era uma entidade de denúncia, por isso queria
acabar com ela. A coisa melhorou com a chegada dos turistas. Fizemos contato
com as agências de turismo de Letícia e começamos a receber uma média de trinta
a cinqüenta turistas. Como é uma cidade pequena, a principal avenida é a que dá
acesso ao museu. Então, eles começaram a ver que o museu atraía os turistas. De-
pois começamos a fazer palestras nos colégios estaduais e municipais. A coisa foi
crescendo e, em 1994,já tínhamos alunos visitando o museu, onde dizíamos o que
era o museu, mesmo assim alguns alunos diziam que estávamos falando grego pra
eles, pois lá as pessoas não fazem idéia de que existem museus como o Nacional e
o Imperial, assim como os de ciências. Os alunos se aproximaram e a biblioteca foi
muito utilizadas por eles. Isso durou até 1997.
Constantino relata que em 1997 houve algumas divergências entre
alguns dos não-índios que apoiavam a causa ticuna e, por esse motivo,
a antropóloga jussara Gruber e ele deixaram o museu para se dedicar a
outras atividades.
O Museu Máguta foi escolhido como museu-símbolo do Brasil para representar o
Brasil na Conferência Mundial na Noruega que aconteceu de 1 a 7 de julho de 1995.
Nosso trabalho foi reconhecido e, no final do ano recebemos o segundo troféu. Hoje
nós continuamos mostrando o trabalho, mas eu não faço mais parte do museu, eu
saí em 1997 após alguns conflitos internos. Hoje, eu faço parte de outra organiza-
ção, a OGPT (Organização Geral dos Professores Ticuna), onde eu sou secretário
e coordeno um curso de formação que foi premiado aqui no Rio de janeiro e pela
Fundação Getúlio Vargas. A situação do Museu Máguta é muito complexa. Depois
que ele foi escolhido "museu-símbolo", houve uma divisão entre alguns assessores
dos índios ticuna. Eu acabei ficando na ONG dos Professores, continuo trabalhando
com a questão da memória junto aos professores indígenas e dentro das escolas. Não
estou mais dentro do museu, mas dentro das escolas ticuna, quem sabe, de repente,
criamos de novo um outro museu?!
O Museu Máguta constituiu uma experiência nova no panorama dos
museus etnográficos. A experiência de um mus.e u sobre índios, criado
na confluência de um diálogo entre índios e antropólogos, merece ser
registrada como um momento importante, de passagem para um novo
estilo de museu etnográfico e de prática de colecionamento. O falar so-

{ReGma asReu} 167


bre o "outro" é substituído por uma narrativa que mescla a construção
da alteridade com a auto-representação e a construção de si, que identi-
fico como "alteridade mínima".
32 . Faulhaber, Prisci la A relação dos ticuria com seus artefatos vem sendo estudada por
O etnógrafo e seus
"outros": informantes antropólogos em experiências que relacionam as práticas de coleciona-
ou detentores de
conhecimento espe-
mento de Curt Nimuendaju com as práticas de colecionamento dos pró-
cializado? , mimeo,
prios ticuna. Nesse sentido, é expressivo o trabalho de Priscila Faulhaber,
2004.
comparando os dois tipos de acervos e as representações sobre eles. 32

A exposição sobre (e dos) wajãpi no Museu do Índio


O fenômeno do Museu Máguta como primeira experiência de auto-
representação dos "nativos" sobre si mesmos não se deu de forma iso-
lada. Os anos 1990 expressaram diversos posicionamentos dos movi-
mentos sociais com relação às instituições de património e de museus.
Em diversas ocasiões, populações representadas em grandes museus
reivindicaram o repatriamento de seus objetos. Muitas dessas popula-
ções começaram a freqüentar instituições patrimoniais e a reivindicar a
afirmação de outros olhares sobre si próprios. Esses movimentos engen-
draram não apenas a criação de museus étnicos ou de expressões locais
ligadas a movimentos sociais, mas provocaram mudanças nos quadros
de instituições estatais consolidadas.
Desse modo, uma experiência particular, no Museu do Índio no início
de 2000, expressa que uma nova configuração entre museus e Antropo-
logia estava em curso. O diretor da instituição, o antropólogo José Carlos
Levinho, estabeleceu uma política de exposições que, segundo ele, se in-
seria "numa política do museu voltada para quatro metas principais".
Em primeiro lugar, realizar exposições que focalizassem culturas indígenas par-
ticulares, questionando a visão que perdurou por muito tempo dentro e fora da
instituição a respeito da representação de um índio brasileiro genérico. Em segundo
lugar, realizar exposições assinadas por antropólogos que trabalhassem com grupos
indígenas específicos, valorizando as curadorias, ou seja, valorizando a adoção de
um ponto de vista particular, nomeando o sujeito do conhecimento, a perspectiva
a partir da qual cada cultura é construída. Em terceiro lugar, estimular a partici-

168 {museus, coLeções e patRJm8mos: naRRativas pouf8mcas}


pação dos próprios grupos cujas culturas eram representadas no museu, de modo a
favorecer o intercâmbio entre esses grupos, os curadores da exposição e os técnicos
do museu e de modo que as exposições apresentassem resultados também para os 33. Jornal Museu
ao Vivo (n. 20, ano
índios. E, em quarto lugar, inserir a exposição num contexto de modernização da XII, fev. 200 1 a jan.
2002), Rio de Janeiro:
instituição, utilizando sofisticadas técnicas museográficas e visando conferir a Museu do lndio,
2002 .
essas culturas particulares o mesmo status de outras exposições em museus das
chamadas "altas culturas". 33
Essa política trazia uma preocupação absolutamente nova, ou pelo
menos rara, para um grande museu etnográfico: incluir a participação
dos índios na montagem de uma exposição. Para realizar a primeira ex-
periência da nova política de exposições, o diretor do Museu do Índio
convidou a antropóloga Do minique Gallois, professora-doutora do Depar-
tamento de Antropologia e coordenadora do Núcleo de História Indígena
e do Indigenismo da Universidade de São Paulo. Dominique Gallois traba-
lha com os índios wajãpi há mais de vinte anos, sendo também assessora
de uma importante ONG dedicada a programas de intervenção nas áreas
de educação e controle territorial, o Centro de Trabalho Indigenista.
Os wajãpi moram no Amapá e vivem numa terra demarcada, a Ter-
ra Indígena Wajãpi, com 604 mil hectares. Cada grupo wajãpi mora em
uma aldeia separada. Alguns moram muito longe, outros moram perto.
É um total de 13 aldeias, e a população vem aumentando sensivelmente.
No mesmo ano em que começou a demarcação da terra, 1994, os wajãpi
criaram uma organização não governamental, a APINA (Conselho das
Aldeias Wajãpi). Por intermédio dessa ONG, eles vêm promovendo proje-
tas de desenvolvimento sustentável ligados ao artesanato e ao garimpo,
com substâncias não poluentes, além da produção e venda de produtos
agrícolas, como o cupuaçu, a copaíba e a castanha.
O processo de idealização e montagem da exposição no Museu do
Índio envolveu várias etapas e foi uma vivência rica; resultado do in-
tercâmbio de experiências, conhecimentos e tradições culturais entre
o
a curadora, os técnicos do museu e os índios. Desde início, todos fir-
maram o compromisso de incorporar o ponto de vista dos wajãpi sobre
sua própria cultura. Esse procedimento implicava a abertura para alte-

{ReGma aBReu} 169


rações de diversas ordens, até mesmo na abordagem estética da própria
museografia concebida pelo setor.
A participação dos índios se deu em todos os momentos, tendo início
com a confecção dos objetos para a exposição. Dominique Gallois explica:
Os waiãpi se mobilizaram para produzir a coleção de mais de 300 objetos e todos
os materiais necessários para a casa que seria construída no Rio. Com apoio dos
jovens que dirigem o Conselho das Aldeias- APINA, os produtores comunicavam-
se através da radiofonia, circulavam listas, preocupados com os prazos e com a
qualidade dos objetos.
foi a primeira vez que um grupo indígena da Amazônia participou tão intensamente
e, sobretudo, coletivamente, da preparação de uma exposição. Eles se organizaram
para que todos os diferentes grupos locais da área pudessem colaborar com o evento.
Foi assim que eles fizeram a lista dos objetos, distribuindo tarefas entre todos. Du-
rante três meses, trabalharam muito em todas as aldeias, selecionando as melhores
peças, transportando tudo desde lugares muito distantes. Depois, escolheram as
pessoas que viriam para orientar a montagem da mostra e os músicos que iriam
tocar suas flautas na festa de abertura.'
Sobre a participação dos waiãpi na mostra, devemos destacar al-
guns aspectos importantes. Em primeiro lugar, essa participação não
se deu de forma isolada, mas organizada, já que a troca com o museu
foi mediada pela ONG APINA - criada a partir de trocas de informa-
ções entre os índios, a antropóloga e outros grupos e entidades. Cabe
lembrar que faz parte do processo de luta e afirmação dos grupos indí-
genas a criação de entidades próprias para a defesa de seus interesses.
Os índios não se colocam mais como objetos da tutela de organismos
estatais, mas falam em seu próprio nome de maneira organizada. Este
é um dado novo, importante de ser levado em consideração por museus
e instituições congêneres.
Em segundo lugar, a antropóloga tinha um trabalho anterior com
esse grupo, o que a levou a conjugar múltiplos interesses na confecção
da exposição. De um lado, era importante confeccionar os objetos a se-
rem expostos. Mas, de outro lado, era importante estimular a participa-
ção coletiva dos índios na reflexão e apropriação de diferentes aspectos

170 {museus, coLeções e patRimÔmos: naRRatiVas poufômcas}


de sua própria cultura. Por exemplo, alguns objetos em cerâmica, antes
confeccionados tradicionalmente pelos waiãpi, não eram mais produzi-
dos, tendo em vista certas facilidades de aquisição no comércio, como
as panelas de alumínio - grande sucesso entre as índias. Espingardas
industrializadas já há muito passaram a fazer parte do acervo de obje-
tos waiãpi; pentes de material orgânico foram preteridos por pentes de
plástico (em geral vermelhos); suas vestimentas, antes confeccionadas
por eles mesmos, com algodão nativo e tingido com sementes, deram
lugar à aquisição de tecidos industrializados. Aproveitando o motivo
da exposição, a curadora da mostra e as lideranças indígenas estimula-
ram, em oficinas, a produção dos objetos tradicionais. Em alguns casos,
como o da confecção de um vaso de cerâmica, foi preciso a consulta a
índios mais velhos, pois os mais jovens já haviam perdido o conheci-
mento da técnica. Então, nesse sentido, a exposição provocou um outro
movimento, que foi além dela e cujos efeitos provavelmente ainda de-
vem se fazer sentir nas aldeias.
A curadora da mostra teve também o cuidado para que todas as aldeias
waiãpi fossem contempladas, integrando-as coletivamente na produção
da mostra. Sua preocupação era de que o museu adquirisse peças de to-
das as aldeias, para não gerar conflitos internos ao grupo e estimulá-los
a produzir seus próprios objetos, valorizando-os. Todos os objetos foram
comprados em duplicata, visando produzir uma coleção para o acervo do
museu e uma outra para a exposição, visando a sua itinerância.
Além do processo de confecção dos objetos, os índios waiãpi partici-
param da montagem da exposição. Eles foram chamados ao museu em
algumas ocasiões, nas quais puderam expressar seus pontos de vista so-
bre a exposição. Assistiram aos vídeos produzidos pela equipe da mostra
e externaram suas opiniões ao diretor do Museu. Eles chamaram a aten-
ção para o fato de que o museu não poderia exibir nenhuma imagem
de pessoas que já tivessem falecido, pois, no entender deles, isso seria
prejudicial aos espíritos dos waiãpi.
Ao chegarem numa sala onde estavam expostas varas compridas
confeccionadas para a "festa de empurrar o céu", algumas índias disse-

{ReGina asReu} 171


ram que seria necessário pintar um círculo em vermelho ao redor de-
las, pois do contrário não atingiriam o objetivo de "empurrar e conter
o mundo de cimà".
Mas a participação mais ativa se deu na montagem da casa waiãpi.
Matapi, Noé, Mata e Emyra foram os índios designados para irem ao Rio
de janeiro montar ajurá, uma casa tradicional dos índios waiãpi. O deta-
lhe importante é que eles nunca tinham ido ao Rio. O processo de monta-
gem dessa casa, com 5,5 metros de altura, 5 metros de largura e 9 metros
de comprimento, foi muito rico em termos de relações interculturais, no
que se refere aos funcionários do museu que colaboraram com eles.
Além disso, o próprio processo de confecção da casa mostrou uma ri-
queza de tecnologias arquitetônicas. A arquiteta Catherine Gallois, con-
sultora da mostra, acompanhou o processo. Palhas, troncos e cipós uti-
lizados foram trazidos do Amapá por um caminhão. Os waiãpi cortaram
os troncos de palmeira ao meio e trançando-os para fazer a parte de
cima, onde fica a área íntima da família, com espaço para o fogo e para
as redes. Bem adaptada às condições climáticas da Floresta Amazônica,
a jurá protege contra as chuvas constantes sem deixar de ser arejada.
Ainda assim, o processo de construção da jurá no museu foi bem
diferente do mesmo processo na aldeia. Na aldeia, é o dono da casa que
a constrói sozinho com a ajuda da família, e as mulheres ajudam a car-
regar o material. Enquanto na aldeia o waiãpi pode levar até um ano
para construir a jurá,- tendo ainda de dividir o seu tempo entre outras
atividades, como a roça, a caça e a pesca -, no Museu do Índio a am-
bientação ficou pronta em uma semana, tanto por causa da dedicação
dos quatro índios que vieram apenas para esse fim como por causa da
disponibilidade da matéria-prima.
Nesse processo, aconteceram algumas situações inusitadas, como
índios posando para fotos com funcionários do museu, dando entre-
vista para a televisão, conversando com estudantes, provando da comi-
da da cantina do museu e passeando pela cidade. O que se passou em
uma semana no Rio de Janeiro certamente foi uma experiência muito
rica, que afetou todas as partes envolvidas: os índios, os funcionários

172 {museus, coLeções e patRim8mos: naRRativas pouf8mcas}


do museu, os visitantes e todos os que entraram em contato com esses
índios por algum motivo.
O entrecruzamento de pontos de vista diferenciados - o da curado-
ra, da equipe do museu, dos próprios índios -gerou como resultado final
uma exposição onde a construção da alteridade waiãpi é também um
processo de construção de identidades e de subjetividades. Em outras
palavras, trata-se de um processo onde os diversos sujeitos são perma-
nentemente afetados entre si, transformando-se mutuamente.

O Museu da Maré
Mas o movimento de mudanças na relação entre Antropologia e mu-
seus abarcava também outros agrupamentos sociais. Assim, no início
do século XXI, um pequeno museu instalado na Favela da Maré, no Rio
de Janeiro, chamava a atenção do Ministro da Cultura, que fez questão
de participar de sua inauguração em maio de 2006. O museu trazia uma
curiosa linguagem antropológica, sendo dividido em 12 tempos, como
os meses do ano: tempo da água, da resistência, da casa, da festa, da
brincadeira, do medo, do futuro ...
Moradores da Maré organizados numa associação civil expressavam
o ponto de vista daqueles que viviam numa comunidade de baixa renda
e que foram os protagonistas de incansáveis lutas para se manter no es-
paço de uma cidade plena de conflitos e exclusões. O museu era funda-
mentalmente criado para fomentar a auto-estima dos trabalhadores que
habitavam o lado considerado feio e violento da cidade. Contar a história
da Maré, trabalhar com o público escolar (são várias escolas públicas
no Complexo da Maré) para mudar a imagem do bairro para os próprios
moradores, propiciar a reflexão sobre as tensas relações entre a favela e a
cidade, mas ao mesmo tempo lembrar com alegria e nostalgia das festas,
dos batizados, das redes de amigos e familiares que se teceram ao longo
do tempo, estes têm sido alguns dos objetivos do Museu da Maré.
O grande ícone é a casa de palafitas, símbolo maior da resistência
e da insistência do próprio homem em sobreviver nas condições mais
adversas.

(ReGma aBReu} 173


Um pequeno barraco de madeira sustentado por estacas. Ícone de uma paisagem
inexistente no presente, imagem simbólica do passado. Surpresa nos causa pelo
equilíbrio, pela estabilidade, pela centralidade que ocupa no espaço onde está.
Âncora da lembrança. Sua cor é azul. Não o azul monótono e frio das paredes lisas.
É um azul de muitos· tons, roubado da cor das águas, do céu e da vida, mutável
conforme a luminosidade dos dias, os anúncios de tempestades, os fluxos do mar e
os dramas da existência.
O espaço é escasso. Uma pequena varanda é o que restou como porção do mundo
exterior. A porta se abre em duas, primeiro para olhar quem chega, depois para
convidar a entrar. Por dentro, a vida é rosa. As paredes, de evidente estrutura,
selada por taboas criam um cenário de móveis e objetos. Num único cômodo se
escreve a vida, dividida em ambientes que propõem o alimento e o repouso. Aqui
os objetos falam, feitos de metal, argila, madeira, tecido, papel, couro, eles têm
vida. Isso nos assusta na medida em que nos damos conta da reflexão ali proposta,
num convite para vermos adiante dos olhos. Esses objetos nos falam porque são
portadores de vidas.
Na parede, a lamparina, velhas fotos retocadas, um calendário antigo. Quadros, mui-
tos quadros, do Sagrado Coração, São Jorge, Menino Jesus de Praga, Nossa Senhora
da Conceição, todos acima da velha cama patente, geralmente preterida pela rede
dependurada sob o travessão. Ao lado, um guarda-roupa, vestidos de chita, saias,
blusas, calças e camisas usados, com suas marcas e cheiros. Sobre o guarda-roupa há
malas de couro e papelão, malas surradas, corroídas por inúmeras viagens, depósitos
de lembrança, denunciando que quem vive ali está constantemente de passagem.
Há um criado mudo. Num barraco, sim! Duas gavetas que podem ser abertas, porque
aqui, os objetos dialogam e podem ser tocados. E ao abrir se encontra mais vida:
grampos de cabelo embrulhados num tosco papel, bijuterias descoloradas pelo
tempo, orações já muito recitadas e antigas notas de dinheiro, que não compram
mais nada, somente o passado.
Um velho rádio emudecido que foi do "Seu Carlos", uma velha Bíblia com as marcas
do sebo e uma imagenzinha de Nossa Senhora Aparecida dão conta das conexões
necessárias nesse ambiente dedicado aos sonhos e à fé.
No outro espaço da casa somos devorados. Um velho fogão a gás, da marca "cosmo-
polita", um paneleiro arrumado, com panelas brilhantes e areadas, bule e pratos

174 (museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas}


de ágata, garfos, colheres e facas desgastados pelo uso, despertam um apetite da
alma. Um pote de cerâmica sobre a aba do fogão nos alerta que ali ainda se cozinha
com banha. Sobre o fogão uma prateleira, singelamente forrada por um papel cor-
tado de forma decorativa, com a geometria dos balões. Ao lado, uma mesa revela
que às vezes se substitui o gás pelo querosene, o fogareiro 'jacaré". Como não há
geladeira, a água geladinha verte do filtro e da moringa. E ali somos devorados pelo
pensamento, do alimento ganho com o trabalho do dia a dia, dos dias em que não
há nada para comer, nos devora a percepção da fome.
O pequeno lugar ainda encontra espaço para uma mesa cercada por três cadeiras,

todas diferentes entre si, acabam por assim formar um conjunto interessante. Ali é
um lugar de encontro, de celebração, ali se encontram as individualidades que vivem
na casa. Na mesa se expõem as angústias, nela se conversa e se silencia. Podemos ver
a família, os amigos, os vizinhos, tomando o café da tarde, passando no coador de
pano, com um pedaço de pão; a avó fazendo o "capitão", misturando o feijão cozido
com carne seca e a farinha crua de mandioca; os pais alegres no dia do batizado
servindo o macarrão com galinha.
O telhado é pesado, de telhas de barro tipo francesas, em duas águas, de acabamento
irregular. Não protege tão bem do sol e das chuvas, tem frestas e goteiras. As telhas,
o vento pode arrancar e expor os medos.
Essa casa é de todos e de ninguém. Um barraco de madeira, razão de ser e centro da
história de vida de milhares. É mais que um lugar, é um lugar de memória! (texto
de um dos di retores do Museu, Antonio Carlos Pinto Vieira)
O Museu da Maré emerge assim como estratégia de um movimento
social contemporâneo, em que os cidadãos se apropriam de instrumen-
tos antes ligados a políticas públicas, construindo novas possibilidades
para suas próprias vidas. O discurso antropológico, antes restrito às
academias e aos museus de ciência, é absorvido e reinterpretado por
segmentos populacionais que lutam em defesa de novos projetos sociais.
Os novos usos dos museus e, em particular dos museus etnográficos ou
antropológicos, merecem ser estudados, pois configuram novidades in-
teressantes para os impasses e questões do mundo contemporâneo.

{ReGma aBReu} 175


INDAGAÇÕES PARA FUTUROS DESDOBRAMENTOS

Em 2007, o tema ofictal dos museus foi definido pelo ICOM: "A relação
dos museus com o patrimônio universal". Não é por acaso que o princi-
pal organismo de àglutinação dos museus traga o tema do Patrimônio
Universal. Os museus, e muito especialmente os museus antropológi-
cos, vivem da conjugação entre o singular e o universal. Se, de um lado,
podem ser considerados patrimônios etnográficos relacionados a gru-
pos culturais específicos, por outro lado, eles congregam patrimônios
abrangentes. Podem ser locais, regionais, nacionais e universais. Todas
essas dimensões combinam-se nos museus. Resulta dessas combinações
a riqueza das instituições museológicas.
Por outro lado, novas experiências museológicas protagonizadas
por movimentos sociais vêm representando uma novidade interessante
e plena de possibilidades. Contudo, precisamos mais do que nunca fi-
car atentos. Num contexto mundial em que a lógica de mercado tende
a lançar as culturas e os povos em regras competitivas na busca de fi-
nanciamentos, subsídios, prêmios, distinções de vários tipos, parece-me
crucial refletir sobre a atuação e o pensamento de intelectuais como
Paul Rivet, Darcy Ribeiro e Gilberto Freyre. Particularmente importante
me parece o papel que esses intelectuais atribuíam ao Estado enquanto
instância fomentadora do encontro e do relacionamento entre as cul-
turas. Idealizando instituições museológicas de grande porte, formu-
lando políticas públicas, esses intelectuais viam as diferentes culturas
como expressões do humano. E essas instituições como o lugar de troca
e reconhecimento da igualdade na diferença. Ainda podemos e devemos
crer que as culturas expressam a unidade fundamental da espécie hu-
mana e que o destino não apenas da humanidade, mas da própria vida,
depende do entendimento e da colaboração entre elas.

176 {museus, coLeções e patRim8mos: naRRativas pouf8mcas}


RefeRênciaS BIBLIOGRáfiCaS

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178 {museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas}


a tRadução do OBJeto do "outRo"
Ione Helena Pereira Couto1

INTRODUÇÃO

a intenção deste texto é recuperar algumas categorias do


pensamento que estariam relacionadas à prática de reco-
lhimento de objetos destinados a coleções museológicas. Para tanto,
uma coleção etnográfica pertencente ao Museu do Índio, recolhida
1. Museóloga do Ser-
viço de Museologia
do Museu do lndio
(RJ) e doutoranda do
Programa de Pós-Gra-
duação em Memória
Social da Universidade
pelo etnólogo Darcy Ribeiro durante duas expedições ao povo indíge- Federal do Estado
do Rio de Janeiro
na urubu, localizado no Maranhão, foi selecionada com o propósito de - UNI RIO.

ilustrar tal prática e verificar quais os conceitos que foram utilizados


para justificar tal procedimento.
A escolha deste conjunto de objetos está relacionada a vários fa-
tores. Inicialmente por terem sido coletados antes da criação do Mu-
seu do Índio, servindo posteriormente para sustentar os discursos de
surgimento daquela instituição. Um segundo fator está relacionado ao
coletor, Darcy Ribeiro, fundador do Museu do Índio e etnólogo respon-
sável pela política indigenista do Serviço de Proteção aos Índios (SPI),
órgão ao qual o Museu do Índio se encontrava vinculado. Uma terceira
razão para aquela escolha está relacionada ao período de coleta daque-
les objetos, isto é, a década de 1950, marcada historicamente pela ins-
titucionalização da disciplina antropológica em solo brasileiro, com a

{10ne HeLena peReiRa couto} 179


introdução de novos conceitos que passaram então a serem debatidos,
assimilados e difundidos. No interior desse contexto, conceitos como o
de cultura, arte e patrimônio passam a ser evocados com o objetivo de
sustentar as práticas de colecionamento.
Ao recuperar a história do recolhimento daqueles objetos, acabo
também por recuperar a história do Museu do Índio e conseqüentemen-
te as categorias de pensamento utilizadas por Darcy Ribeiro para dar
forma e conteúdo a ambos, mostrando que a associação entre colecio-
nador, coleção e instituição é extremamente promissora, pois, no posto
de narrador, Darcy Ribeiro criou um fluxo de imagens que circulou atri-
buindo à coleção e ao Museu do Índio novos valores e simbolismo.
Entendo que é importante colocar que, como museóloga atuando no
Serviço de Museologia daquela instituição, o contato com as coleções
etnográficas sempre me suscitou questões relacionadas a seus antece-
dentes históricos, sua composição e sua função, e foram estas ques-
tões, associadas às linhas metodológicas fornecidas pelas Ciências So-
ciais, que me possibilitaram refletir, utilizando para isso uma coleção.
Ao colocar aquela coleção em destaque, buscando o entendimento das
relações que estiveram na base da sua coleta, classificação e exibição,
acabamos por recuperar a trajetória de Darcy Ribeiro como etnólogo e,
com ela, toda uma série de outros eventos a ele relacionados. Isto é, as
mudanças ocorridas na disciplina antropológica que possibilitaram a
definição de suas fronteiras, visto que o tipo de recolhimento promo-
vido por Darcy Ribeiro estava respaldado pelo discurso antropológico
da época em questão, na qual o surgimento do Museu do Índio é fruto
daquele movimento.
Para executar essa tarefa separei o texto em dois momentos: o pri-
meiro, quando recupero parte da história social e política pela qual
passou a disciplina antropológica no justo momento em que se torna
disciplina universitária, iniciando seu afastamento das práticas de re-
colhimento e exibição de objetos que tanto caracterizaram o seu sur-
gimento; o segundo, quando procuro, com esses objetos que, esvazia-
dos do seu caracter funcional, foram subjetivados pela posse imposta

180 {museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas}


por Darcy Ribeiro, acabaram recebendo um lugar na história, patri-
monializados pelo Museu do Índio, graças às ações aplicadas sobre eles
ao longo da história.

0 ESPAÇO DE TRADUÇÃO

Em 1977 o Museu do Índio foi despejado do seu espaço original, um


casarão da rua Mata Machado, no Maracanã. A justificativa era a desa-
propriação do terreno para a construção de uma linha do Metrô. Assim
como os discursos antropológicos que marcaram a década de 1950, que
preconizavam a extinção dos povos indígenas, fato que não se concreti-
zou, a linha do Metrô também não.
Em 1978,já instalado em seu atual endereço, em outro casarão loca-
lizado na rua das Palmeiras, 55, em Botafogo, o Museu do Índio abre sua
nova exposição. O mobiliário, especialmente elaborado para a inaugu-
ração em 19 de abril de 1953, foi adaptado ao novo espaço, um novo cir-
cuito de visitação foi criado. Assim como as sociedades indígenas, toda a
museografia foi adaptada à nova realidade.
Mas o Museu do Índio não nasce com a abertura da exposição em
1953, sua história é anterior. O início remonta a 1942, quando um novo
regimento interno do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) cria, em seu
âmbito, a Seção de Estudos (SE), responsável por documentar todos os
aspectos das culturas indígenas por meio de pesquisas etnográficas, le-
vantamento lingüístico e registras fotográficos, cinematográficos e so-
noros, além de organizar os arquivos existentes e estabelecer critérios
de proteção das populações indígenas com base em estudos científicos.
A Seção de Estudos do SPI tinha também como objetivo a criação de um
museu na sede do SPI, para divulgação da cultura indígena.
Foi no âmbito da SE que, em 1947, Darcy Ribeiro foi contratado para
promover os estudos científicos que cabia à Seção. Formado em Antro-
pologia pela Escola Livre de Sociologia e Política (ELSP) em São Paulo,
Darcy Ribeiro fora preparado durante seu curso universitário para exer-
cer a atividade de etnólogo, isto é, os alunos daquele centro eram incen-

(10ne HeLena peReiRa couto} 181


tivados a pensar sobre a metodologia e a técnica de pesquisa pratican-
do-a. O momento ao qual estamos nos referindo é o período de institu-
cionalização tarito da disciplina sociológica quanto da antropológica no
Brasil, isto é, o momento em que a Antropologia se desliga da Sociologia,
à qual até então estava associada, para se tornar uma disciplina cien-
tífica cujo conjunto de métodos formava um corpo de proposições, por
meio de conceitos preestabelecidos, em que o estudo do homem era seu
principal objetivo. Conceitos como área cultural e diversidade cultural
ampliaram o campo de pesquisa, redefiniram objetos e criaram outros,
e as maiores oportunidades para a prática daquele corpo teórico se con-
centrava na etnologia indígena, e em especial nas pesquisas de campo.
É nesse contexto que Darcy Ribeiro é contratado para trabalhar na
SE pelo Marechal Rondon, que naquele momento presidia o Conselho
Nacional de Proteção aos Índios (CNPI), sendo figura de importância
nacional, cujo prestígio já estava estabelecido desde a sua atuação, a
partir de 1907, na Comissão de Linhas Telegráficas do Mato Grosso, co-
missão esta que posteriormente levaria seu nome e ficaria conhecida
como Comissão Rondon.
Na Sessão de Estudos do SPI, as ati vidades de pesquisa que necessita-
vam de "idas ao campo" foram incrementadas, e coube a Darcy Ribeiro
executá-las. Ele era o responsável pelo levantamento da cultura mate-
rial, da estrutura sócio-organizacional e religiosa dos grupos indígenas.
No exercício dessas atividades, ele coletou, para o ainda inexistente Mu-
seu do Índio, várias coleções etnográficas e em especial a coleção Urubu,
formada por 164 objetos recolhidos entre os anos de 1949 e 1950.
A escolha daquele povo indígena por parte de Darcy Ribeiro foi uma
decisão política e não simplesmente técnica. Os grupos de língua tupi,
caso do povo urubu, eram os que mais atraíam os pesquisadores naquele
período em razão da influência que a escola alemã exercia na condução
da disciplina antropológica brasileira. Vários pesquisadores alemães
atuaram no País. Curt Nimuendajú, por exemplo, reconhecido como
um dos primeiros etnólogos que atuaram no Brasil na fase "heróica" da
disciplina, entre as décadas de 1920 e 1930, conseguiu reunir em torno

182 {museus, coteções e patRimÔnws: naRRatiVas pouf6mcas}


de si diversos seguidores, tornando-os seus "herdeiros". Outros alemães
encontravam-se atuando em posições-chave na condução daquela dis-
ciplina, como é o caso de Herbert Baldus, professor de Darcy Ribeiro
na disciplina Etnologia Brasileira e seu grande incentivador, e Harold
Schultz, funcionário do SPI e um dos primeiros cinegrafistas daquela
instituição. Somou-se a esses fatos a atuação da corrente culturalista,
introduzida no Brasil via Estados Unidos, cujo principal expoente era o
também alemão Franz Boas.
Além dessa "tendência" pela qual a Antropologia brasileira estava
sendo conduzida, a escolha de Darcy Ribeiro por aquele grupo significava
um divisor de águas entre a Antropologia e a Sociologia. A melhor ilus-
tração desse momento são os estudos realizados por Florestan Fernandes
sobre os tupinambá, uma sociedade extinta que Florestan estudou por
meio da documentação deixada por cronistas e viajantes do século XVI,
utilizando-se para isso das lentes sociológicas, isto é, lançando mão de
um instrumental próprio, oriundo da Sociologia, para aplicá-lo àquela
sociedade. Em Darcy Ribeiro o modus operandí passava por uma prática
social que se operacionalizava por meio de intervenções políticas no SPI.
Um terceiro motivo que levou Darcy Ribeiro à escolha daquele gru-
po foi a sua convicção de que os urubu eram remanescentes tupinambá
que haviam se afastado do litoral para fugir da perseguição dos por-
tugueses. Some-se a isso terem sido os urubu pacificados em 1928 por
agentes do SPI, e que até o contato com Darcy Ribeiro não mais haviam
recebido atenção do órgão.

OS OBJETOS DO " OUTRO "

O ato de rotular e descrever objetos em listas é uma das atividades


da disciplina museológica. É a primeira tentativa de regular a existên-
cia do objeto que foi subtraído do seu contexto·original. Nessa trans-
ferência, o objeto perde sua presença, desloca sua temporalidade para
a espacialidade de um repertório fixo, imposto pela classificação, em
que um dos resultados é a perda de parte de sua história. No museu, o

(wne HeLena peReiRa couto) 183


processo de classificação tem privilegiado a lógica sincrônica da coleção
do ponto de vista do conjunto dos objetos do museu, em detrimento da
lógica diacrônica do objeto. Em outras palavras, no deslocamento para
o museu, o objeto é de·scontextualizado com relação à sua origem e re-
ordenado sob novas lógicas e critérios.
Descrever os objetos em listas foi uma das primeiras práticas taxo-
nômicas de que se tem notícia nas civilizações alfabetizadas, figurando
como o procedimento mais elementar nas operações cognitivas. Jack
2. Goody, Jack. The Goody2 (2000) informa que a história documentada dos primeiros sécu-
domestication of the
savage mind. Cam- los das culturas escritas mostra que as listas surgiram com formas tex-
bridge: Cambridge
University Press,
tuais, sobre panos, pedra, madeira ou qualquer outro material sólido,
2000.
com diferentes objetivos. Serviam para nomear as coisas ou como listas
administrativas, para controlar pessoas, animais, objetos ou eventos.
Ao chegarem à SE, as peças recolhidas por Darcy Ribeiro foram clas-
sificadas e inseridas em categorias materiais, tornando-se uma coleção
formada por armas, objetos plumários, adornos de materiais ecléticos,
objetos tecidos, cestaria e implementas de madeira. Respectivamente,
foram 18 adornos de materiais ecléticos, que compreendem pentes e
pulseiras, colares e sobrecintos de sementes, dentes e ossos; 36 objetos
plumários, que compreendem pulseiras, diademas, cinto, braçadeiras,
colares e aros; seis objetos tecidos, que incluem redes, novelos, tipóias
e fuso; 39 armas, entre arcos, flechas, lanças e bordunas, três objetos
rituais e mágicos, como cachimbos e pedras explosivas; seis trançados,
como peneira,jamaxins e cestos de conformação variada; e por último,
na categoria de utensílios de madeira, uma vassoura. Após serem classi-
ficados, esses objetos permaneceram na sede da SE, visto que não há re-
gistro de terem sido exibidos antes da inauguração do Museu do Índio.
Mas como contextualizar os objetos nesse novo momento? Quais as
categorias de pensamento que foram acionadas para lhes fornecer um
novo status? E quais foram as justificativas para o seu recolhimento?
No século XIX, quando os objetos eram encaminhados para os mu-
seus, especialmente europeus, por viajantes, naturalistas ou missioná-
rios, a categoria utilizada para a sua classificação era a de "primitivos"

184 (museus, coLeções e patRim8mos: naRRativas pouf8mcas}


ou "exóticos". Serviram como elemento de erudição e consolidação de
conhecimentos enciclopédicos, conjuntos sem uniformidade em orien-
tação e conteúdo. Com o surgimento e a consolidação da teoria bioló-
gica da evolução das espécies em 1860, com a publicação de A origem
das espécies por Darwin, categorias como "primitivismo" em oposição
a "civilização" passaram a ser questionadas, visto que os desníveis so-
ciais entre as sociedades humanas já não se explicavam por estágios do
menor para o maior. Isto é, a crença de que um fator, ou fatores, colocou
determinados grupos em estágios avançados - entenda-se "civilizados"
- e outros em estágios supostamente iniciais ou intermediários - "pri-
mitivos" - de desenvolvimento humano começou a perder força. Nes-
se novo contexto, os objetos "primitivos" foram então reclassificados
como objetos "culturais" ou "artísticos".
Inseridos nessa nova ordem científica, eles passaram a ser vistos
como "objetos etnográficos" ou de "arte primitiva". Para tanto, estraté-
gias epistemológicas foram adotadas. Valores estéticos, políticos, cultu-
rais e históricos foram acionados a fim de formalizar a transvalorização
de cada objeto. São categorias de pensamento incorporadas aos objetos
que os transformaram, fazendo que eles adquirissem novos valores. Para
autores como James Clifford, essas novas categorias, ou apropriações,
ocorrem em todas as sociedades motivadas pela vontade de juntar, pos-
suir, classificar e avaliar. No entanto, não necessariamente se associam
àquela idéia de acumular. Esta idéia, nas sociedades tradicionais, se ex-
pressa na idéia de "distribuir", enquanto a idéia de preservar encontra
seu oposto na idéia de "evitar a decadência natural e histórica".
A esse processo de transformação do objeto etnográfico, possuidor de
forte conteúdo cultural e grande poder artístico, James Clifford definiu
como "sistema de arte e cultura". Isto é, sistema constituído pelas rela-
ções de poder e de subjetividade que envolvem o colecionador e o objeto,
baseado em elementos culturais, históricos, estéticos e políticos que, reu-
nidos subjetivamente, permitem apresentar o "outro". Tal qualidade dá
a esse sistema uma permanente possibilidade de rearranjos, visto que os
elementos que o compõem estão em constante processo de mudança.

{10ne HeLena peReiRa couto} 185


Foi durante .a década de 1950 que, no Brasil, conceitos como arte e
cultura estavam sendo debatidos, assimilados e difundidos. Sendo os
locais para sua disseminação as instituições antropológicas modernas,
isto é, as faculdades e centros de difusão de conhecimento antropoló-
gico, como os museus etnográficos. Atuando em uma Seção de Estudos
e oriundo de uma dessas instituições, Darcy Ribeiro não se encontrava
indiferente a tais debates. Esses conceitos tinham como base, por meio
de comparações e recolhimentos, revelar o modo de viver do homem.
Foi com base nesses conceitos que ele promoveu a coleta de objetos que
compõem a coleção urubu.
Os relatos deixados por Darcy Ribeiro nos orientam naquela direção.
Para ele, aqueles objetos estavam carregados de autenticidade cultural,
eram tesouros salvos de passados remexidos, portadores de memória
e identidade grupal e com forte apelo visual. Estando ele diante de um
grupo cujas raízes culturais estavam em processo de mudança, era ne-
cessário transformar aqueles objetos, a princípio funcionais, em objetos
portadores de conteúdo cultural e artístico, que transmitissem o conhe-
3. Ribeiro. Darcy. cimento de uma realidade singular diante do olhar do espectador. Para
Diários índios: os Uru-
bu-Kaapor. São Paulo: que essa operação fosse efetivada, Darcy Ribeiro deixou relatos de como
Cia. das Letras, 1996,
p. 118.
os objetos foram coletados do contexto social e cultural em que se en-
contravam inseridos. Inicialmente, ele os classificou e, posteriormente,
exibiu-os, e para isso criou o Museu do Índio.
Comprei hoje um parelho de arco e flechas muito bonito e uma rica coleção plumá-
ria. Inclusive um colar de festa de nominação, arranjado em torno de uma canela
de gavião real, que tocam como flauta . foi feito pelo falecido capitão Maíra, um dos
melhores artistas urubu em plumas. É realmente maravilhoso. Também digno de
nota é o tembetá que Passarinho, meu amigo duplamente viúvo, me vendeu. Mas
tolice descrever coisas tão delicadas e belas, são para se ver.3
O futuro museu do SPI dependia apenas de um local. Do ponto de
vista jurídico, ele já estava estabelecido no estatuto de criação da SE.
Antes da criação da SE, os objetos recolhidos eram encaminhados ao
Museu Nacional, o que deixou o SPI desprovido de elementos de cultu-
ra material dos povos que assistiu antes de 1942. Recolher objetos era

186 {museus, coLeções e patRimÔniOs: nanRatiVas poufômcas)


garantir ao SPI um conjunto documental que ainda não possuía, visto
que fotos, filmes e documentos administrativos sempre foram mantidos
em seu poder. Adicionar àquele conjunto os objetos de cultura material
inseriria o SPI no conjunto de instituições científicas, diversificando em
parte sua função assistencialista.
As pesquisas realizadas a partir de 1947 não apenas redimensio-
nariam a política indigenista que vinha sendo aplicada pelo SPI, mas
também colocaria aquele Serviço em pé de igualdade com outras ins-
tituições congêneres, que tinham a temática indígena como objeto de
estudo. As pesquisas promovidas pelo SPI não só passariam a revelar
os aspectos sociais, econômicos, políticos, lingüísticos e mitológicos dos
povos indígenas, como permitiriam que os objetos de cultura material
se tornassem fonte de pesquisa e fruição. Também serviriam como su-
porte material para futuros projetos museográficos, nos quais cada eta-
pa de renovação das teorias antropológicas pudesse ser exibida.
Transferidos do seu ambiente original, os objetos urubu perderam sua
função. Deixaram de exercer, como elemento de intermediação, a comu-
nicação entre seu povo e as entidades míticas. Transformaram-se em se-
mióforos, destituídos de valor de uso, apenas dotados de singularidade. A
transferência implica um novo status, deixam de ser "primitivos" ou "exó-
ticos" e passam a ser tratados como objetos etnográficos, devidamente
· protegidos, conservados, documentados, retirados do circuito econômico
e, quando necessário, expostos ao olhar do público. Passam a "represen-
tar" os urubu, que se tornam por sua vez "eternizados" por meio dos obje-
tos e assim saem da história e entram na memória. Esse mesmo processo
ocorre com aqueles que os coletou, pois os inscreve tanto na memória 4. Pomian, Krzstof.
"Coleção". ln: ENCI-
como na história da instituição responsável pela salvaguarda dos objetos. CLOPÉDIA Einaudi.
v. 1. Título do v.1:
Paradoxalmente, os objetos continuam estabelecendo a relação entre o Memória e história.
Lisboa: Imprensa
visível e o invisível, na qualidade de objetos de coleção, óride: "Todos, sem
NacionaVCasa da
exceção, desempenham a função de intermediário~ entre os espectadores Moeda, 1997. p 67.

e um mundo invisível de que falam os mitos, os contos e as histórias". 4


Como objetos de fruição estética ou cultural que revelaram a existên-
cia de sociedades distantes, eles deixam de revelar sua significação por

{wne HeLena peReiRa couto) 187


estarem descontextualizados. Aprisionados em reservas técnicas ou nas
vitrines das exposições, perdem sua aura, ou seja, deixam de fulgurar
aqueles instantes únicos em que o espírito se ilumina: o encontro com as
imagens do passado, que atualizam o presente; não conseguem promover
nos olhos dos observadores o mesmo êxtase experimentado pelo povo que
os elaborou, razão de sua existência e da história que os fundamenta.
Essa mesma oposição entre visível e invisível pode se aplicada aos
objetos no interior do grupo que os produz. Se não vejamos: a mitolo-
gia urubu tem como herói cultural Maíra, civilizador urubu responsável
pela criação do mundo, dos homens e dos bens materiais. Em razão des-
sas características, Maíra é concebido não apenas como criatura inter-
mediária entre a natureza divina e humana. Ele é um ser vivo atuante.
Sua atuação pode ser vista ou observada através das grandes hecatom-
bes da natureza, como as grandes chuvas, raios, trovões e doenças, jus-
tificados pelas brigas entre um Maíra pai e outro filho, que duplica esse
herói criador, sendo que o primeiro se encontra no plano terrestre e o
segundo no plano astral. Mas os urubu não evocam Maíra para resolver
seus problemas terrestres. A ele cabe apenas regular a ordem cósmica,
tanto na atualidade como no tempo primordial.
Partindo dessa premissa, podemos contextualizar os objetos urubu,
no interior do seu grupo, como portadores de elementos invisíveis que
vivem além das fronteiras que separa o concreto do não concreto. No
plano concreto, eles reabilitam o herói criador, tornando-o visível, au-
xiliando a manutenção da unidade social, o orgulho grupal e protegen-
5. Pomian, Krzstof. do seu herói do esquecimento. Assim sendo, mesmo não buscando uma
Op. cit. p. 68.
semelhança com o seu criador, eles possibilitam aos urubu participarem
da aventura mística de Maíra, pela força ativa que possuem. Sobre isso
informa discorre Pomian:
A linguagem engendra então o invisível, porque o seu próprio funcionamento, num
mundo onde aparecem fantasmas, onde se morre e acontecem mudanças, impõe
a convicção de o que se vê é apenas uma parte do que existe. A oposição entre o
invisível e o visível é antes de mais a que existe entre aquilo de que se fala e aquilo
que se percebe, entre o universo do discurso e o mundo da visão.5

188 {museus, coLeções e patRrmômos: naRRatrvas poufômcasj


Por serem considerados objetos de comunicação entre o visível e o
invisível, possuem um valor que os habilita a realizar a comunicação
entre estes dois mundos. Para tanto, são retirados temporariamente do
circuito econômico, expostos ao olhar de seus respectivos habitantes
em ocasiões especiais. Esse é o caso dos "patuás", caixas de madeira la-
vrada onde são depositados os adornos plumários que serão utilizados
em ocasiões festivas. Nessas ocasiões, principalmente durante a festa
da nominação, os adornos plumários como braçadeiras, colares mascu-
linos, femininos e infantis, cintos, tembetá e diademas, que em outras
ocasiões são vistos apenas por seus proprietários, são expostos ao olhar
de todos os participantes, prestando-se assim à comunicação entre es-
ses dois universos. Sobre esse grupo de objeto, comenta Darcy Ribeiro: 6. Ribeiro, Darcy. Op.
cit. p.114.
Na roça nova, vi a pandora de um índio cheia de coisas belíssimas. Vi colares e bra-
7. Idem, p. 385.
celetes de suas esposas mortas, seus colares de penas de arara e flauta de perna de
gavião real, que serviu na nominação dos filhos e outros adornos que ele mesmo
mostrou com uma vaidade preciosa.•
E continua: "fizemos Diwá abrir seu patuá, o que por certo não lhe
agradou muito, pois imaginou que eu desejaria levar comigo seus tesou-
ros, no que aliás andou muito acertado". 7
Um segundo grupo de peças que se presta à comunicação entre o
visível e o invisível, por apresentarem características protetoras ou de
qualidade para o seu portador, é o dos amuletos. Talvez seja essa a razão
de, entre os urubu, não só os homens como também os animais portarem
determinados adornos. Assim, ao nascerem, meninos e meninas recebem
adornos, como colares, que os habilitam a um bom destino, quando mu-
lheres, e a serem bons caçadores, quando homens. Também os cachorros
são providos desses "amuletos", confeccionados com fragmentos de os-
sos ou madeira, para se tornarem bons farejadores. Em todos os casos,
provendo seus portadores da memória de Maíra e de suas qualidades.
Um terceiro grupo de peças que se presta à exibição do oculto, do au-
sente, são as armas, especialmente as flechas, que mesmo fazendo parte
das atividades econômicas, para a obtenção de alimentos e de pássaros
para a confecção dos adornos, servem também como elemento de troca

{10ne HeLena peReiRa couto} 189


entre os urubu e os povos indígenas da região. A esse respeito, comenta
Darcy Ribeiro: "É incrível o número de arcos e flechas que tem saído da-
qui. Não só para Belém e para o Rio, mas também para armar os índios
e caboclos de todo o rio". 8
A história de contato não deixa dúvidas a esse respeito: informa que
8. Ribeiro, Darcy. Op. os urubu eram considerados o grupo mais guerreiro da região. Suas ha-
cit. p. 103.
bilidades em alcançar o inimigo, seu conhecimento do meio ambiente,
9. Potlatch: Festa
cerimonial, de caráter somados à qualidade do fabrico das armas, conferiram-lhes o status de
sagrado, que ocorre
entre alguns grupos índios mais temidos da região. Tal desempenho era atribuído às armas,
nativos da Costa
Noroeste do Pacifico,
que asseguravam suas vitórias sobre os inimigos. Assim como as outras
na qual, ao final da
categorias de objetos já mencionadas, as armas foram presenteadas por
cerimônia, há distri-
buiçào de "presentes" Maíra, que as entregou somente para os urubu, provendo-as de algu-
aos convidados.
Aquele que os receber mas qualidades: atingirem seu alvo independentemente da direção que
deverá, no próximo
cerimonial, distribuir tomassem; aqueles por elas atingidos não conseguiriam arrancá-las do
tanto ou maior núme-
rode bens.
corpo, pois elas jamais se partiam ou soltavam.
As flechas, na grande maioria, apresentam pontas de metal, confec-
cionadas com lâminas de facas, terçados, machados e enxadas em desu-
so, demonstrando a grande habilidade dos urubu no seu fabrico, assim
como apontando na direção dos primeiros contatos. Desconhecedores
da metalurgia, para a obtenção de metal, eles trocavam facas, macha-
dos, enxadas e outros elementos com que poderiam obter o metal por
bens de consumo como alimentos ou objetos Também adquiriam o metal
mediantes saques à população da região. As flechas utilizadas durante o
ritual de nominação, sempre em grandes quantidades, ao final da festa
eram lançadas ao chão para que os convidados as levassem como lem-
brança- uma espécie de "Potlactch"9 -,visto que na próxima, o "dono da
festa" deveria distribuir uma quantidade ainda maior daquele objeto.

(OLECIONISMO X DESAPARECIMENTO

Recolher objetos tem por fim resgatá-los do desaparecimento, o que


não se aplica aos povos que os produziu. Colecionar objetos etnográficos
é impedir que, em virtude de perdas técnicas e humanas inevitáveis, os

190 {museus, coteções e patRimÔm os: naRRativas poufômcas}


objetos já não possam ser confeccionados. Mas recolher envolve uma
seleção, visto que não podemos recolher tudo. Devemos recolher aquilo
que seja mais significativo, que evoque melhor as memórias, que seja
tradicional. Para Darcy Ribeiro, recolher era promover um saque. No
caso urubu, um grupo debilitado por doenças, remexido pelo contato,
atraído pelo novo e assediado por um colonialismo interno que o pró-
prio Darcy Ribeiro representava, a noção de saque tinha contornos mais
problemáticos ainda. A esse respeito, comenta Darcy Ribeiro:
Iniciei, hoje, o saqueio dos artefatos dos índios. Havia deixado esse trabalho infeliz
para o fim, mas acabo de trocar dúzias de flechas , muitos arcos e, sobretudo, muita
plumária por umas faquinhas, miçangas, tesouras, canivetes, pedaços de ferro para
flechas e outras bobagens que eles adoram. Levarão anos para refazer a coleção,
precisarão abater milhares de pássaros diferentes, ir arrancando cuidadosamente
as penas e as conservando a todo o custo para aos poucos, refazerem seus tesouros,
até que venha outros surrupiá-los. 10
Saqueadas da esfera privada, os objetos eram lançados em um domí- 10. Ribe~ro, Darcy.
Op. cit. p. 259.
nio público, impondo-lhes uma morte funcional e um renascimento de
significados, tornando-se patrimônio cultural. Tal ação, partindo de um
etnólogo, era considerada legítima, visto que uma pesquisa etnográfica
envolve o recolhimento de cultura material. Pelos objetos era oferecido
um pagamento simbólico, sem qualquer relação com o seu valor real na
economia indígena. Darcy Ribeiro tinha consciência de que a retirada
daquele conjunto de peças representava um golpe severo para a comu-
nidade, visto que refazer os objetos ou, em suas palavras, "tesouros" de-
mandava a obtenção de uma quantidade razoável de matéria-prima, um
esforço coletivo que talvez impedisse que cerimônias e rituais fossem
realizados ou tivessem de ser adiados por falta dos elementos simbólicos
que os objetos representavam.
A problemática da retirada de objetos do seu co'ntexto original não
pára aí. Darcy Ribeiro trocou "bobagens" por objetos etnográficos, ou
seja, praticou um escambo, no qual valor do objeto é desprezado em
nome de uma igualdade manifestada pela reciprocidade. A esse respeito
Nicho las Thomas adverte: "(...) exchange is always, in first instance, a poli-

lwne HeLena peReiRa couto} 191


tical process, one in which wider relationships are expressed and negotiated in
a personal encounter" ["as trocas são sempre, em primeira instância, um
11. Thomas, Nicholas. procedimento político no qual relações maiores são expressas e nego-
Entangled Objects:
Exchange, material,
ciadas em um encontro pessoal"]. 11
culture, and Colonia·
lism in the Pacific. p.7
As trocas entre às sociedades, particularmente entre as de cultura
12. Kopytoff, lgor. "La
simples, com as ocidentais refletem um caráter político, em que as re-
biografia cultural de
lações de poder são negociadas. O intercâmbio de objetos de uma socie-
las cosas: la mercanti-
lización como proce- dade para outra é um bom exemplo e um efeito dessa relação. Há casos
so". Tradução: Argélia
Castillo Cano. ln: em que os objetos etnográficos chegaram aos museus acompanhados da
APPADURAI, ARJUN
(org.) La vida social de relação de custo de cada peça. Temos como exemplo as listas de objetos
las cosas: perspectiva
cultural de las mer-
e seus respectivos valores, encontradas na documentação deixada por
cancias. México. D.F. : Curt Nimuendajú e que hoje fazem parte do arquivo histórico do Museu
Grijalbo, 1991.
de Astronomia e Ciências Afins, referente ao contrato estabelecido entre
ele e o Museu Etnográfico de Berlim para a aquisição de coleções dos
povos indígenas brasileiros.
Tais dados, na maioria das vezes, são ignorados na documentação do
objeto, mas refletem de modo geral as propriedades das relações de tro-
ca baseadas em desigualdades e assimetrias nos direitos sobre pessoas,
grupos e seus produtos. No caso da coleção urubu, os objetos adquiridos
por Darcy Ribeiro serviram como mercadorias cujo valor monetário foi
estipulado por seu detentor e cuja contrapartida oferecida teve um va-
lor equivalente dentro daquele contexto imediato. Isso se deve à forma
como cada sociedade procede à mercantilização de seus produtos, que se
diferencia conforme seu sistema social, os fatores que as estimulam ou a
controlam e as premissas culturais e ideológicas que permitem o seu fun-
cionamento. No momento em que o objeto é trocado, no posto de mer-
cadoria, e entra para uma coleção, ele deixa de ser mercadoria para se
singularizar, adquirindo assim um novo status, que na visão de Kopytoffl 2
faz dele um objeto "terminal," porque foi desativado como mercadoria.
Todo esse processo de mudança de status não é simples, em razão das
diferenças culturais dos envolvidos e de suas escalas de valores, visto
que a situação envolve não apenas o intercâmbio de objetos, mas uma
moralidade própria. O incómodo sentido por Darcy Ribeiro no processo

192 (museus, coLeções e patRim8mos: naRRativas pouf8mcas)


de troca estava baseado na noção de moralidade que ele possuía, e que
o fez se sentir imoral diante do valor que "pagou" pelas peças. Naquele
momento, para ele, a contrapartida oferecida não tinha para ele valor
algum, eram "bobagens" que só serviriam para interferir na maneira
"tradicional" que os índios tinham de elaborar seus objetos.
O que consolava o etnólogo Darcy Ribeiro a respeito do saque prati- 13. Ribeiro, Darcy.
Op. cit. p. 259.
cado era a idéia da preservação dos objetos. Sua aflição foi em parte apla-
cada pela certeza de que aqueles objetos estavam sendo encaminhados a
um museu, local que de alguma forma se assemelhava aos "patúas", por
ser hermético, construído com material resistente, retirando os objetos
do circuito econômico, reservando-os do olhar. Sobre o assunto, ele co-
menta: "Só me consola saber que vão para um museu"P
Transferidos para um museu colares, cestos, cachimbos, cintos, pul-
seiras, brincos, flechas ... a lista bem que poderia ser maior, mas nos res-
tringiremos a esses itens, pois o que nos interessa é que a transferência
os tornará um patrimônio. Mas de quem? Dos urubu ou do Museu do
Índio? Essa é mais uma categoria problemática.
Da Revolução Francesa até os dias de hoje, a noção de patrimônio
vem sofrendo mudanças promovidas pelos sistemas ideológicos ociden-
tais, que nos últimos duzentos anos construíram para ele narrativas
associadas a outros conceitos oriundos de diversas áreas do conheci-
mento. Fala-se de patrimônio cultural, intangível, ecológico, biológico,
econômico, financeiro, intelectual etc. Tais narrativas são construções
modernas, facilmente identificáveis por meio da análise do processo
histórico pelo qual passou a sociedade ocidental.
Atualmente, mais uma vez com o auxílio de conceitos e categorias
oriundos da disciplina antropológica, os cientistas sociais oferecem no-
vas contribuições à noção de patrimônio, estendendo-o ao sistema de
pensamento das sociedades tradicionais. Como categoria de pensamen-
to, o "patrimônio" obtém abrangência universal, aplicável sobre todas
as coletividades humanas, uma vez que expressa sentimentos que estão
relacionados à vida social e mental dos indivíduos. Com base nessa as-
sertiva, o antropólogo José Reginaldo Gonçalves buscou identificar, nas

{IOne HeLena peReiRa couto} 193


sociedades tradicionais, a noção de patrimônio, por meio dos contornos
semânticos que essa noção carrega.
Para aquele autor a ,noção de patrimônio é percebida de forma bem
diferente nas duas esferas em questão. No Ocidente, o "patrimônio" é
associado ao indivíduo, que possui e retém, seja ele pessoa, estado ou na-
ção.Já nas sociedades de cultura simples essa noção estaria associada ao
coletivo e manifestar-se-ia por meio das práticas sociais que englobam
a vida econômica, política e religiosa. Suas conclusões foram tiradas a
partir dos estudos deixados por Marcel Mauss, em sua obra Ensaio sobre
a dádiva, onde Mauss observa que nas sociedades tradicionais os bens
materiais não podem ser analisados como elementos independentes de
seu proprietário, visto que são portadores de significados que se encon-
tram relacionados à vida religiosa e social do grupo. Mauss classificou
essa dependência como "fato social total", por entender que cada objeto
retém de seu proprietário a moral, a religião, a psique, a estética e a po-
lítica, que somados ou reunidos constituem um patrimônio.
Se analisarmos dentro desse conceito de patrimônio, os saques ou
coletas realizados por Darcy Ribeiro entre os urubu, ou mesmo todos
14. Gonçalves, José os recolhimentos efetuados junto a outros povos indígenas, não apenas
Reginaldo Santos.
"O patri mónio como diminuíram o volume de objetos em circulação no grupo, mas também
categoria de pensa-
mento". ln: ABREU,
significaram o desprovimento de seu detentor de uma parte significa-
Regina; CHAGAS,
Mário (Org.). Memó-
tiva do seu "eu", visto que colares, cestos, cachimbos, cintos, pulseiras,
ria e patrimônio. Rio brincos, flechas constituem um patrimônio dos índios, pois possuem
de Janeiro: DP&A,
2003. p. 27. um valor moral que "constrói, forma pessoas"/4 dando a elas uma iden-
15. Ribeiro, Darcy. tidade. As palavras de Darcy Ribeiro, extraídas de Diários índios, acaba
Op. cit. p. 130.
por corroborar a colocação acima:
Acresce que cada artefato retrata tão fielmente quem os fez, como a caligrafia de
uma carta nos retrata. Denuncia-se deste modo qualquer desleixo, assim como res-
salta à vista de todos o primor de uma "factura" que pode orgulhar seu artesão. 15
A justificativa de uma incorporação legítima como parte de uma
pesquisa ou para exibição era a contribuição que o etnólogo dava para
a construção, intencional, de uma tradição cultural, preservando-a
como patrimônio nos moldes ocidentais. Uma atitude unilateral pela

194 {museus, coteções e patmm8mos: naRRativas pouf8mcas)


qual preservar e conservar não equivalia a mantê-los em seu meio ori-
ginal, já que a noção ocidental de patrimônio necessariamente se asso-
cia à de posse. Para tanto, o objeto era "saqueado" de seu legítimo dono
para ser protegido de novos "saques" por donos ilegítimos, sendo para
isso colocados em vitrines, monitorados por meio da documentação e
de uma parafernália de equipamentos, o que nos leva a concluir que
os objetos de museu contam a história da apropriação praticada pelo
Ocidente. Como patrimônio do Museu do Índio, eles serão ativados para
representar vários temas, não apenas aqueles envolvidos com a reali-
dade cultural dos urubu. Os objetos poderão ser convocados a falar, por
exemplo, da arte plumária dos índios do Brasil para exemplificar mo-
dos de trançados, para falar sobre influência dos adornos indígenas na
moda brasileira, sem que o processo pelo quais passam ou passaram os
urubu em sua relação de contato com a sociedade envolvente seja sus-
citado, sem que uma explicação mais aprofundada de seu modo de vida
seja colocada. Como patrimônio do Museu do Índio, os objetos urubu,
reunidos ao conjunto da coleção etnográfica, arquivística e audiovisual,
podem servir para a obtenção de recursos para projetos institucionais,
quando mais uma vez a história de seus antigos detentores desaparece e
a história evocada passa a ser a da instituição e da sua importância para
a sociedade nacional como detentora de um "patrimônio" coletivo que
merece ser preservado e acolhido por todos.

CoNSIDERAÇÕEs FINAIS

Reunir as fontes históricas escritas e os objetos, fonte secundária de


informação, possibilita uma análise que os recontextualiza, iluminando
a história social da qual indivíduos e objetos participam. A pesquisa com
coleções pode ser realizada por vários caminhos. Neste texto o itinerário
percorrido foi o referencial, isto é, os objetos que possuem uma estreita
relação com os dados documentais. Objetos históricos, testemunhos do
pensamento antropológico e da história do indigenismo brasileiro, pos-
sibilitaram que uma análise diacrônica das relações de contato entre os

{wne HeLena peReiRa couto} 195


urubu e o etnólogo Darcy Ribeiro fosse realizada. Assim, a meta foi identi-
ficar o campo intelectual no qual Darcy Ribeiro se encontrava inserido e,
a partir daí, estabelecer as bases que o orientaram na seleção dos objetos
que hoje fazem parte da coleção Urubu depositada no Museu do Índio.
Com esse objetivo em vista, elementos da trajetória profissional de
Darcy Ribeiro foram sumariamente levantados tendo em vista o objetivo
do texto, associados à trajetória da disciplina antropológica e à institu-
cionalização da Antropologia no Brasil. Dessa forma, foi possível levantar
as categorias do pensamento utilizadas por Darcy Ribeiro para dar forma
e conteúdo ao seu recolhimento. Nesse sentido ele se assemelha à figura
do narrador, tão bem definida por Walter Benjamin, cuja função é in-
formar e explicar acontecimentos de forma compreensível, difundindo
experiências pessoais para que estas sejam apropriadas pelos ouvintes.
É importante colocar que, contraditoriamente ao que preconiza o
discurso preservacionista dos museus, dos 164 objetos recolhidos por
Darcy Ribeiro ao Museu do Índio restam apenas 110. Os motivos dessa
16. Ribeiro, Darcye redução do número de objetos registrado no Livro de Tombo da insti-
Berta G. Arte plumária
dos lndios Kaapor. Rio tuição, levantados no último inventário, são desconhecidos. O próprio
de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1957.
Darcy Ribeiro informa, na publicação Arte plumáría dos índios Kaapor, 16
17. Idem . p. 22 que a coleção encaminhada ao Museu do Índio reunia mais de duzentos
objetos afirma:
A coleção Raimundo Lopes, do Museu Nacional, que consta de 200 espécimes, obti-
dos em 1930, dos índios que afluíam à ilha de Canindessu , no rio Guru pi, onde dera
a pacificação dois anos antes; a coleção Darcy Ribeiro, do Museu do Índio, colhida
nas próprias aldeias, que é um pouco mais numerosa. 17
O próprio Livro de Tombo, aberto pelo museólogo Geraldo Pitaguary
somente em 1949, portanto antes mesmo da existência do Museu do Ín-
dio, apresenta muitas falhas com relação à origem geográfica das peças,
etnia, doador e data de entrada do objeto na instituição. Problemas de-
correntes, talvez, do fato de terem sido registrados muitos anos depois
de sua incorporação. Com base documental registrada no arquivo ins-
titucional, as peças em tela deram entrada na SE, respectivamente, nas
datas de 30 de abril de 1950 e 5 de janeiro de 1952.

196 {museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas)


Diante de tal fato, nada justifica que porções valiosas da diversidade
humana desapareçam como presenças vivas e ativas em conseqüência
dos recolhimentos, ganhando um interesse especial demostrado por um
protecionismo exagerado e zeloso praticado pelos museus, que tornam
aqueles artefatos "fósseis" representantes de grupos humanos em plena
existência e vitalidade, visto que o povo urubu se encontra, hoje, em
plena atividade social. Em resumo, as peças recolhidas por Darcy Ribei-
ro ao Museu do Índio inscrevem-se entre as coleções mais importantes
daquela instituição. Parte foi perdida sem registro histórico provavel-
mente em decorrência dos infortúnios administrativos pelos quais pas-
sou a instituição, o que demonstra que a preservação resulta da nature-
za da própria história.

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202 {museus, coLeções e patRim8mos: naRRativas pouf8mcas)


museu dos escRavos, museu
da aBOLição: o museu do
neGRO e a aRte de COLeCIOllaR
paRa patRimoniaR 1
Andréa Lúcia da Silva Paiva

INTRODUÇÃO

O Museu do Negro encontra-se localizado na Igreja de Nos-


sa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos,
no Rio de janeiro, sob os cuidados da Trissecular Irmandade de Nossa
Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos.
No século XVII, a união das confrarias de Nossa Senhora do Ro- 1. Este texto foi
apresentado na 30°
sário e de São Benedito, ambas constituídas por negros alforriados, Encontro Anual da
ANPOCS, de 24 a 28
ladinos e escravos, teria dado origem à Irmandade de Nossa Senho- de outubro de 2006.
ra do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos. No início do século Seminário Temático
(SD 06- "Memória
XVIII, por meio de doações, os escravos construíram a sua igreja na social e patrimônio:
desafios contempo-
Rua Uruguaiana, antiga Rua da Vala, visando o culto aos padroeiros e râneos". Agradeço
aos coordenadores,
o enterro de seus mortos. Prof'. Regina Abreu,
Prof. José Reginaldo
Ao buscar obter uma visão histórica da relação entre senhores Santos Gonçalves e
e escravos e a religiosidade do negro no Brasil, é exposto, no Museu Prof. Manuel Ferreira
Lima Filho, e aos par-
do Negro, um acervo de peças de origem escrava que guarda parte ticipantes do ST pelas
sugestões que vêm
importante de "memórias". Ele reúne desde instrumentos da escra- contribuindo para
o desenvolvimento
vidão, como móveis, documentos, estandartes, livros, fotografias de das questões apre-
homens que tiveram destaque na campanha abolicionista, até objetos sentadas.

de devoção religiosa.

{andRéa LÚCia da SILva de paiva} 203


O objetivo deste trabalho é descrever alguns traços da organização
do Museu do Negro priorizando as representações dos objetos, bem
como algumas outras ações dos seus organizadores com o tema propos-
to pelo museu - ~'Para preservação da história do negro".
Dessa forma, tratàremos de algumas coleções que compõem o espaço
desse museu, utilizando como metodologia de trabalho as observações
realizadas em idas ao campo (2005 e 2006), os depoimentos de organiza-
dores do museu e coletas de documentações no Instituto do Património
Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e na Biblioteca Nacional do Rio
de Janeiro. Procuro explorar a noção de colecionamento a fim de nos
permitir estender o estudo sobre o "património" enquanto categoria de
"memória", "propriedade" e "apropriação".

ESPAÇO, RELIGIOSIDADE E ETNICIDADE:


A IGREJA DOS HOMENS PRETOS

2. Segundo Alvim A Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens
(1997, p. 200), após
o incêndio, os altares, Pretos encontra-se localizada no centro do Rio de Janeiro e foi constru-
as tribunas, o coro
e os pilares foram
ída no início do século XVIII. Apresentando um pavimento comprido e
"reconstruidos em
concreto aparente, e
estreito, reconstruída após um incêndio em 1967 que descaracterizou o
as tribunas da Capela- seu interior recoberto de ouro, a igreja apresenta hoje paredes e tetos
Mar, guarnecidas com
treliças em madeira". pintados de branco.
Venho percebendo a
existência do termo Ao entrar na igreja logo se percebem duas enormes imagens dos san-
"pobreza" para de-
signar a igreja antes tos padroeiros: do lado esquerdo está a imagem de Nossa Senhora do Ro-
e após o incêndio em
algumas bibliografias
sário e à direita a imagem de São Benedito. Cada santo apresenta um altar,
(Soares, 2000; Alvim, forrado sempre por um pano branco e de renda. Abaixo de cada altar há
1967; Mauricio,
1947) e nos comen- jarros de flores e uma grande cesta de palha onde os fiéis depositam ali-
tários de alguns fiéis;
em geral, cometam a mentos, que simbolizam suas doações e agradecimentos a esses santos.
pobreza existente na
ornamentação do seu A igreja apresenta ainda em seu interior, à esquerda, as imagens de
interior em compa-
ração com as demais
Nossa Senhora das Dores e de São Sebastião e, à direita, as imagens de
1grejas do Rio de
Janeiro e a valorizam
Nossa Senhora das Cabeças, Nossa Senhora da Luz e Nossa Senhora Apa-
pela sua "importância recida. Na parte externa, seu corpo central é ladeado por duas torres
história", com vere-
mos mais adiante. sineiras e por uma fachada, alterada no século XIX. 2

204 {museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas)


Situada na rua Uruguaiana, a igreja ocupa uma posição estratégia, 3. Venho observando
que muitos camelôs
num ponto de convergência entre ruas e redes de transporte coletivo e chegam a freqüentar
a igreja entre os
camelôs. Os pedestres em passagem por essa rua podem observar arte- horários das missas,
às 12h00min e às
sãos, bicheiros e artistas de rua, que buscam o divertimento do público 16h00min. O traba-
com suas brincadeiras. Na porta da igreja, tanto quanto em suas late- lho de Mafra (2005),
ao descrever o coti-
rais, além do serviço de moto-táxi, o observador também se depara com diano dos camelôs no
Centro, explicitando
pedintes, engraxates, ciganas, baianas que jogam búzios e vendedores as situações viven-
ciadas por eles nas
que, em pequenas barraquinhas improvisadas de madeira ou papelão, três possibilidades de

vendem velas ao lado de crianças, cachorros e alguns moradores de exercício dessa ocu-
pação (na "pista", no
rua. Notei que a maioria destes trabalhadores é composta de mulhe- camelôdromo e nas
barracas), torna-se
res negras de classe baixa. Em alguns momentos, ao passar em frente à uma importante refe-
rência para a pesqui-
igreja, o pedestre pode se surpreender com alguns devotos que vendem sa, visto que a autora
atribui um destaque à
medalhas de santos a qualquer preço, "o preço da sua devoção" (como rua Uruguaiana.
certa vez ouvi), para ajudar a igreja. Esse espaço da rua Uruguaiana se 4. Em ida ao campo
em 12 de março, foi
apresenta, assim, como uma categoria física e simbólica e, como tal, de
feita uma conferência
importância fundamental na vida dos devotos. 3 pelos "irmãos" no
salão nobre da igreja.
Apresentando ainda em sua estrutura física dois bares, um salão de A reunião tratava
da criação de um
barbearia e uma loja de artesanato onde são vendidos, sobretudo, ima- novo estatuto que
permitiria às mulheres
gens de santos e bonecas de pano, é nessa igreja setecentista que tam- o direito de ocupar
bém está localizado o Museu do Negro. Tanto o museu quanto a igreja papéis até então mas-
culinos, como o cargo
estão sob os cuidados da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São de provedor, mudan-
do uma "tradição
Benedito dos Homens Pretos, criada em 1640. de 370 anos", como
afirmavam. Para esta
Seus membros são homens, mulheres e crianças de diversas faixas descrição cabe um
estudo detalhado
etárias. Observo entre eles a denominação da Irmandade como uma
sobre o termo de
organização que reúne "brancos", "negros" e "mestiços". Em campo, compromisso anterior
desta Irmandade,
podemos perceber a existência de papéis sociais e simbólicos bem dis- que data do século
XVII, e o termo atual,
tintos entre eles, e o uso da categoria "irmão" na nominação ou refe- criado em 2006. Vale
destacar na tese a
rência a alguns membros: aos homens cabem os cargos de procurador, discussão entre os
provedor, tesoureiro, escrivão e irmão; às mulheres, os cargos de juí- "irmãos" a respeito
dessa mudança, arti-
zas, zeladoras e irmãs. culando os conceitos
de "tradição" e "mo-
Essa divisão de trabalho por gênero parece funcionar como um dernidade" .

dispositivo capaz de estabelecer uma dependência recíproca entre os


sexos. 4 Essa diferenciação também se faz pela vestimenta: ao homem

{andRéa LÚcia da SILva de pa1va} zos


cabe o uso de meia, sapatos e terno negro, sobre o qual é "jogada" uma
vestimenta branca denominada ôpa. As mulheres, por sua vez, apresen-
tam distinções de cores em suas vestimentas: segundo algumas expli-
cações, a cor preta ou azul-marinho (esta última não é muito comum
entre as devotas) são' para as mulheres casadas, viúvas, mães solteiras.
A vestimenta de cor branca é usada pelas mulheres virgens, também
denominadas de "puras", por nunca terem tido relações sexuais. Inde-
pendente da cor da roupa, a mulher deve utilizar a murça, um pequeno
pedaço de pano branco que tem como finalidade cobrir o ombro fe-
minino. Completam o uniforme feminino: meia-calça, sapatos altos e
fechados, que devem ser da mesma cor da vestimenta. Sobre a ôpa e a
murça podemos ver medalhas e demais símbolos religiosos que demar-
cam a ocupação simbólica desses indivíduos, que parecem se posicio-
nar como guardiões de uma história.
No século XIX a Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito
5. Segundo fontes dos Homens Pretos foi por duas vezes sede do Senado da Câmara (entre
históricas, às vésperas
do Dia do Fico, em 9 1809 e 1822 e de 1822 a 1825), como também espaço de alguns momentos
de janeiro de 1822,
um membro da
políticos. 5 Segundo dados obtidos no Guia de roteiro do Rio Antigo (Seara,
Irmandade denomi-
2004), os negros da igreja tiveram ainda um papel igualmente impor-
nado José Clemente
Pereira teria deixado tante na construção de um movimento festivo e cultural, o carnaval,
um abaixo-assinado,
com oito mil nomes. e na segunda metade do século XVIII os membros da confraria teriam
pedindo ao Prínci-
pe-regente que não obtido a licença para realizar festividades, realizando assim festas em
retornasse a Lisboa
como queria
homenagem à Corte do Rei Congo:
a Corte Portuguesa. Elegiam, uma vez por ano, um rei e uma rainha , que desfilavam em cortejo públ ico
A irmandade dos Ho-
mens Pretos também acompanhados de sua corte, formada por dançarinos e músicos que tocavam ca-
participou da luta
abolicionista. xambu, pandeiros e ganzás. Qualquer semelhança com o a tua! carnaval não é mera
coincidência. (Seara, 2004, p. 92)
Segundo determinadas narrativas, o culto a Nossa Senhora do Ro-
sário pelos denominados "homens pretos" passou a existir nos sécu-
los XV e XVI em Portugal. Adotada como padroeira de vários grupos,
como o dos marinheiros, em quase todas as cidades se criaram igre-
jas dedicadas a ela (Scarano, 1978). Os escravos de procedência banto,
principalmente os de Angola e do Congo, são apontados pelo antro-

206 (museus, coLeções e patRJmÔmos: naRRativas poufômcas}


pólogo Arthur Ramos (Vainfas e Santos, 2000, p. 47) como os mais re-
ceptivos à devoção do rosário, visto que já haviam tido contato com a
devoção à "Senhora do Rosário" no continente africano, pois esta já
havia sido levada para a África pelos colonizadores portugueses e pe-
los missionários. No Brasil, a devoção ao rosário foi introduzida pelos
missionários, e a devoção à Santa teve grande penetração entre os es-
cravos, sendo várias as irmandades de negros consagradas a essa santa
na América Portuguesa.
Os negros tinham também como patronos Santa Ifigênia, São Bene-
dito, Santo Antônio de Catagerona, São Gonçalo, Santo Onofre, os quais
eram pretos ou pardos e, por isso, "gozavam" de uma singular populari-
dade (Scarano, 1978; Karasch, 1987; Soares, 2000).
Dentre as associações de pretos, a de Nossa Senhora do Rosário foi 6. A expressão "ho-
mem preto" é muito
a mais notória. Desde o século XIV existiam numerosos conventos de utilizada nos estudos
sobre as irmandades
ordem dominicana na Península Ibérica e teriam sido os dominicanos no século XVIII.

os fundadores das irmandades do Rosário, que assim se difundiam ra- Segundo Quintão
(2002), nesse século
pidamente. Em Lisboa, o convento dominicano tornou-se famoso por também era emprega-
da freqüentemente a
causa de uma imagem da Virgem à qual se atribuíam milagres. Logo expressão "irmandade
dos pardos", "irman-
começaram a surgir irmandades e, entre as dedicadas à Virgem, a de dade dos crioulos"
e "irmandade dos
Nossa Senhora do Rosário foi das mais importantes, rivalizando em nú- homens pretos". Em
mero com as irmandades do Santíssimo Sacramento e das Almas, ainda conversa em campo
com um membro da
mais populares. A irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos Irmandade, este expli-
cava que o termo res-
surgiu em Portugal a partir de uma transformação gradativa, a partir tringia a participação
de "pessoas brancas"
das irmandades de brancos. na congregação e

Os escravos, que se autodenominavam "homens negros cativos", que, embora existam


"pessoas de diversas
eram considerados seres à parte na sociedade escravocrata e encontra- cores" na Irmandade,
não se pode retirar
vam nas irmandades "uma ocasião de agir como criaturas humanas, de essa expressão do seu
nome por ser uma
saber lutar pelo seu grupo" (Scarano, 1978, p.2). Foi por meio de suas "herança histórica".
Usando as palavras
irmandades, sobretudo a do Rosário, que os "homens pretos"6 procu- desse "irmão": "É
raram adquirir status social a fim de ocuparem uma posição dentro de aquilo que era antes.
Étradição".
uma sociedade escravocrata. Quanto ao histórico da Irmandade de São
Benedito, trata-se de uma outra agremiação religiosa que reunia os ne-
gros, e teria surgido no século XVII.

{andRéa LÚCia da SILva de paiVa} 207


CONTEXTUALIZANDO IDENTIDADES: "M USEU DO N EGRO " ,
"MusEu Dos EscRAvos" E"MusEu DA ABoLiçÃo"

O Museu do Negro tem sua história intimamente ligada às confrarias


de negros surgidas no século XVII no Brasil, mas já existentes anterior-
mente na Europa medieval. As confrarias, como vimos, eram associa-
ções religiosas de negros (também existiam as de brancos e de pardos)
nas quais eles se reuniam em torno de um santo de cor, e na dedicação
dos fiéis a esse santo, que era permeada não só pela devoção, mas tam-
bém por sentimentos de afinidade étnica.
A principal finalidade das confrarias negras era libertar os escra-
vos. Elas também garantiam sepultura e enterro adequados aos negros
e assistência médico-hospitalar. Muitos negros libertos doavam grandes
somas para essas associações religiosas, rendendo graças por sua liber-
tação, e assim as confrarias acumulavam meios para alforriar os escra-
vos. Além disso, uma prática comum das confrarias era a construção das
mais belas igrejas em homenagem a seus santos padroeiros.
Segundo a museóloga do Museu do Negro, no início do século, por
meio de doações, os escravos construíram sua igreja na Rua Uruguaiana
para culto aos padroeiros e para enterrar seus mortos. No subterrâneo
dessa igreja, local onde os membros das confrarias se encontravam para
fazer reuniões e coletas para alforriar os escravos, havia uma grande
quantidade de instrumentos de tortura armazenados. Esses instrumen-
tos eram deixados na igreja pelos escravos que fugiam e iam buscar au-
xílio nas confrarias. Cria-se, assim, já nessa época, a idéia de se montar
um museu com a finalidade de preservar essas peças, não deixando as-
sim que se perdesse uma parte importante da história do negro no Bra-
sil, e num contexto urbano.
A idealização do museu desponta por intermédio dos instrumentos
de tortura. Surge assim um desejo de preservar a cultura e a história
mostrando, por meio das exposições de instrumentos que revelam os
maus-tratos e as torturas aos quais os escravos eram submetidos, a
opressão sofrida pelo negro diante da exploração do "homem branco".

208 (museus, coLeções e patRimÔmos: naRRatrvas poufômcas}


Entretanto, a idéia de se fazer um museu do negro surge, provavelmente, 7. Yolando Guerra
foi membro da
do Marechal]oão Baptista de Mattos, provedor da Irmandade e diretor Irmandade de Nossa
Senhora do Rosário
da igreja. Mais adiante, dois anos após o incêndio de 1967, a reforma foi e São Benedito dos
Homens Pretos.
concluída. Nesse contexto, é um membro da Irmandade, o Sr. Yolando Segundo explicação
Guerra, 7 quem assume a direção do museu. fornecida pela mu-
seóloga, teria sido
Em pesquisa no IPHAN e na Biblioteca Nacional do Rio de janeiro, este "irmão" quem,
após o incêndio, "er-
descobri documentações nas quais o museu é denominado "Museu da gueu" o museu. Esta
narrativa nos conduz
Abolição" ou "Museu da Escravatura", não se referindo à nomenclatura à hipótese de que a
atual, de "Museu do Negro". Uma das reportagens de um jornal, possi- definição por "Mu-
seu do Negro" teria
velmente publicado na década de 1960, traz como manchete "Aberto o surgido nessa época
por intermédio desse
Museu da Abolição em homenagem ao 13 de Maio", e fala sobre a iniciati- devoto.

va da Irmandade de franquear a visita ao museu, à missa solene, às cole-


ções de documentos e às peças relacionadas à Campanha Abolicionista:
Decidiu a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos
franquear à visitação pública do Museu da Abolição e mandar rezar missa, hoje, em
intenção às almas dos escravos e dos abolicionistas, associando-se às comemorações
do n • aniversário da Lei Áurea. A Igreja do Rosário, na Rua Uruguaiana, é o único
templo brasileiro construído inteiramente por iniciativa de escravos. Na parte
superior, foi instalado o Museu da Abolição onde estão guardados importantes e
valiosos documentos relacionados com a Campanha Abolicionista, como as cópias
autênticas de vários decretos que foram extinguindo gradualmente a escravidão
no Brasil. Estandartes, fotografias e exemplares dos instrumentos de suplício são
parte do valioso documentário reunido sob o auspício da Irmandade. (IPHAN- Pasta
2786 Cx 738 - Inventário- RJ: Museu: Diversos: A - Ill)
Em uma manchete de jornal, não datado e sem referência de fonte,
observa-se a denominação de "Museu dos Escravos". Trazendo o título
"Obras de arte e documentos valiosos fazem parte do Museu dos Escra-
vos", o texto fala sobre as coleções de objetos presentes nesse museu:
Esteve em exposição, como parte das comemorações de' Semana da Abolição da
Escravatura o Museu dos Escravos que o professor Armando Viana, com muito
capricho e desvelo vem a muito organizando, na Igreja de Nossa Senhora do Ro-
sário, antiga igreja dos Pretinhos. Ali são encontrados verdadeiras obras de arte
e peças e documentos de um valor inestimável. A partir do momento em que são

{andRéa LÚCia da SILVa de pa1va} 209


transportadas as portas das salas que compreendem o museu, sentimo-nos como
que transportado àquele tempo e penetramos a tosos os seus mistérios, glórias e
tristezas. Ao lado de peças, de raro valor em cristal, bronze parcelaria e madeira,
figuram instrumentos de tortura que eram aplicados aos escravos, emblemas e
estandartes dos diversos centros abolicionistas tais como o de]osé do Patrocínio e
Joaquim Nabuco. Em várias ocasiões em que tem sido feitas escavações por motivo
de obras tanto na igreja como nos prédios das imediações, são encontradas várias
ossadas de escravos, pois ali existiu e outros templos um cemitério onde eram en-
terrados de preferência os negros. Embora pareça inverossímil há apenas 12 anos
foram também encontradas dentro da igreja sobre o forro ou em baixo do coro,
caixas de jacarandá, verdadeiras obras de randá, verdadeiras obras de arte, com
inscrições, acusando os ossos de senhores de alta linhagem. Esses ossos foram junta-
dos a tantos outros já encontrados e deportados num urna comum que foi colocada
em um dos altares da igreja. As urnas estão no museu em formação. Lindas estátuas
representando trabalho de grande habilidade dos escravos colocados em frascos
e também uma original caravela, cópia fiel de um navio negreiro que conduziu o
próprio escravo que a reproduziu. (Texto de Helena Pernambuco - IPHAN - Pasta
2786 Cx 738- Inventário- Rj: Museu: Diversos: A -III)
Ao ser interrogada sobre as nomeações atribuídas ao museu, a se-
cretária afirmava que a definição de museu deveria estar ligada ao de
colecionamento: "O que é museu?" Um museu surge quando alguém co-
meça a reunir peças". A esta resposta devemos também somar outras
interrogações ("quem?", "quando?", "como?" e "por que se coleciona?)
como forma de compreender a identidade deste museu.
Através das questões que envolvem o conceito de colecionamento
podemos perceber outras questões: que idéias e valores são atribuídos
ao patrimônio cultural pelos segmentos sociais? Qual o lugar do bem pa-
trimonial na memória coletiva local? Por que determinados objetos são
escolhidos e colecionados? Qual é a visibilidade dos objetos colecionados e
do próprio colecionador presentes no Museu do Negro? A utilidade des-
tas questões estaria em trazer para a Antropologia uma discussão sobre o
museu como um espaço que se faz patrimônio diante também do culto ao
sagrado: a devoção, atitude religiosa muito presente no Museu do Negro.

210 {museus, coLeções e patRimÔmos: naRRatrvas poufômcas}


Logo na entrada deste museu, encontram-se santinhos da Escrava 8. Vale destacar que
os objetos e o próprio
Anastácia, que são distribuídos gratuitamente. A entrada consiste de espaço físico do
museu são móveis,
um pequeno portal localizado na lateral direita da Igreja. Ocupando um por este apresentar
uma caracterlstica
pequeno espaço, o Museu do Negro apresenta três grandes espaços: a
constante de troca e
sala de entrada; uma pequena sala lateral à esquerda desta primeira e a arrumação pelos seus
organizadores. Em
sala Yolando Guerra. 8 ida ao campo, em ou-
tubro de 2006. pude
Quanto aos objetos que compõem o museu, em sua primeira sala, o que perceber uma mudan-
ça no museu. Parece
se vê, à esquerda, são quadros da igreja que mostram tanto a sua constru- ter se oficializado em
ção quanto as cenas do incêndio de 1967, na noite do dia 26 de março. Os um corredor ondejá
havia objetos e pintu·
carros de bombeiros e as várias partes da igreja, como a capela-mar, são ras sobre os costumes
e a vida social do ne-
destaques contidos em um enorme quadro que traz como informação a gro. Na entrada desse
corredor foi colocada,
seguinte escrita: "Incêndio que marcou a existência do Museu do Negro". recentemente, uma
placa em madeira
Ao lado deste quadro há uma foto da lateral queimada. Abaixo desses
com a escrita: ''Museu
quadros podemos visualizar quatro peças que "sofreram" a ação do in- do Negro- Entrada".

cêndio, dentre elas, os castiçais e lustres.9 Há um armário que contém pe- 9. Segundo um dos
informantes, que
ças de rostos e vestimentas de negros do Brasil, Senegal, Angola e Nigéria. trabalha há 40 anos
como porteiro da
Objetos como algemas de ferro (para pernas e mãos) e algemaduras de igreja, apenas uma
"cruz fot salva". Ele
castigos infantis ocupam espaço ao lado de uma pintura do artista Jean comentou que as
imagens de Nossa
Baptiste Debret: trata-se de uma sinhá que aparece batendo com uma Senhora do Rosário
palmatória na mão estendida de um menino escravo, que se encontra ajo- (à esquerda do altar)
e de São Bendito (à
elhado e vestido de branco. Abaixo, a classificação do objeto no museu: direita) foram trazidas
de Portugal após o
Palmatória: castigo preferido na disciplina de negros e moleques, era comum ser incêndio de 1967.

aplicado pelas sinhás nos escravos que chamados de "ganhadores", executavam


biscates na cidade, tendo a obrigação de entregar uma "féria" (quantia) diária ou
semana. Quando isto não acontecia, era submetido a seções de palmatória, chicote
e tronco. Sob gritos de lamentos de dor.
Dentre os instrumentos usados durante a escravidão (para castigar,
torturar e dificultar a fuga de escravos), encontra-se registrado, em um
pequeno texto explicativo, a seguinte observação "aquisição de emprés-
timo": "Bengala de Umbigo do século XIX, uma peça flexível, em tecido
bovino, usado para espancar cães danados e castigar negros malcria-
dos". Curiosamente, o texto menciona que tal objeto teria pertencido a
um médico que, "num sentido humanista, nunca espancou ninguém".

{andRéa LÚCia da SILva de pa1va} 211


Do lado direito o cenário é composto por duas bandeiras abolicionistas
originais, fotografias e recortes de jornais sobre "Os abolicionistas de ho-
mens" que tiveram destaque na campanha abolicionista, tais como: Luis
Gama, José do Patrocínio, Joaquim Nabuco, Castro Alves, André Rebou-
ças e Cruz e Souza. Segundo fontes obtidas no Museu do Negro, em 1967,
quando ocorre o incêndio, muitas peças do museu foram destruídas.
No museu, podemos observar diversas imagens de Nossa Senhora do
Rosário e São Benedito, tanto em forma de esculturas (pequenas e gran-
des) quanto de "santinhos", que percorrem os três espaços do museu.
Na segunda sala encontram-se uma enorme cruz e um texto expli-
cativo: "cruz confeccionada com a madeira dos escombros para rezar a
Primeira Missa, em abril, após o incêndio de 1967". Ao lado desta, pode-
mos visualizar quadros de negros escravos e sua relação com o tambor
em festividades e na capoeira. Acima destes quadros se encontram os
dizeres: "Para preservação da História do Negro". Houve uma época em
que a entrada para esse museu era feita por esse espaço.
A terceira sala recebe o nome em homenagem ao "irmão" Yolando
Guerra, que assumiu a direção do museu em 1969, dois anos após o in-
cêndio. Nessa sala podemos notar uma listagem com nomes de pintores
que doaram quadros ao Museu do Negro, bem como participaram do
incentivo à arte, formando um total de 21 pessoas.
É nesse espaço que podemos ver: a representação de rostos negros,
vestimentas afro-brasileiras; o estandarte da Irmandade de Nossa Se-
nhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos, criada em 1640 (se-
melhante ao que é carregado em procissão por um membro feminino
da Irmandade, que deve utilizar vestimenta branca). A murça, o peque-
no tecido branco utilizado pelas mulheres da Irmandade, também está
representado. Ao seu lado, há uma cópia de um diploma, assinado em
30/03/2004 pelo provedor de Nossa Senhora do Rosário e pela museóloga
(ambos da Irmandade), que são conferidos às irmãs pelo Museu do Negro
em homenagem ao uso dessa vestimenta, há 123 anos, "nas festas em lou-
vor ao nosso padroeiro São Benedito". Abaixo, temos a ôpa, a vestimenta
masculina de cor branca e comprida utilizada por cima do terno preto.

212 (museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas}


Como diz o provedor de Nossa Senhora do Rosário: "Não é uma vestimen- 10. Entrevista reali-
zada em 15 de dez.
ta africana, mas dos cristãos da Europa, de Portugal. É coisa antiga". 10 2005, no gabinete do
Provedor - Igreja Nos-
O museu apresenta recortes de jornal sobre alguns temas, como o da sa Senhora do Rosário

cidadania, um recorte de apoio à iniciativa da Ação Afirmativa, ao lado e São Benedito dos
Homens Pretos.
de imagens de negros (a maioria crianças sorrindo). Há também imagens
de artistas negros brasileiros representados pelo quadro da atriz Ruth
de Souza, que chegou a doar ao museu quatro troféus de sua "famosa
coleção" em 3 de outubro de 2000. Somam-se ao colecionamento fotos
do artista negro Grande Otelo em cenas do filme Macunaíma, cujo acervo
pertence à família Prata. Do lado esquerdo, podemos ver fotografias de al-
guns políticos, como Benedita da Silva e Abdias Nascimento (ainda como
senadores), do deputado José Miguel (autor da Lei n. 598 de 13/12/1983,
que instituiu o movimento Zumbi dos Palmares, e da Lei n. 675 de 5/12/
1983, que dispõe sobre a "Quinzena de Feira da Cultura Afro-brasileira",
a ser realizada anualmente no mês de novembro), finalizando com uma
homenagem a Zumbi. Há fotos também do pastor evangélico e ativista
negro norte-americano Martin Luther KingJr (1929-1968).
Duas esculturas representam o corpo da Princesa Isabel ao lado de
seu esposo Conde D'Eu. Segundo fontes históricas, seus ossos teriam sido
guardados nessa igreja antes de serem encaminhados ao Museu Impe-
rial de Petrópolis. Há fotografias dos membros da Irmandade de Nossa
· Senhora do Rosário e de São Benedito recebendo a princesa e seu esposo,
após retornarem de Paris. Na maioria das fotos, podemos notar a Irman-
dade desfilando ao centro, tendo ao lado (ou atrás) a Guarda Imperial.
Mas o destaque maior, atribuído pela museóloga, parece estar na fi-
gura de João Batista de Mattos. Em algumas visitas ao museu, ela fazia
questão de narrar a importância desse juiz da Irmandade, que teria ob-
tido recursos e iniciativa para a reconstrução da igreja após o incêndio,
como mostra os dizeres escritos por ela ao lado de' um dos quadros de
Mattos, dentre eles um doado pela Irmandade em 5 de abril de 1987:
Neste painel sobre o glorioso exército brasileiro faremos homenagem a João Ba-
tista de Mattos que percorreu todos os escalões da vida militar, atingindo o posto
máximo de Marechal. Foi brilhante na tropa e no gabinete de estudos. Foi bacharel

{andRéa LÚCia da SILva de paiVa} 213


em direito, economista, escritor e membro de diversas academias de Letras, fale-
ceu como Presidente do Instituto Histórico Militar. Netos de escravos serviam a
irmandade chegando êljuiz de São Benedito e depois de Nossa Senhora do Rosário.
Posto que exercia quando houve um incêndio na igreja. Com humildade, conseguira
com poder de vontàde e em tempo recorde o levantamento do novo templo, tendo
no escrivão Manoel Campos dos Santos seu grande esteio. Com os bordados de
Marechal no ombro, com a lei no dedo, com os louros na frente e com a fé no cora-
ção, dizendo-se feliz de ser filho de escravos, Mattos, como os primeiros soldados
colonizados, deu o exemplo de ter também liberto com a espada servindo a Pátria
e com a Cruz servindo a Deus.
Além dos quadros, há documentos como o certificado de conclusão
do Colégio Pedro II, o requerimento solicitando a inscrição para prestar
exames na Escola Militar e a caderneta de serviço pré-militar no Colégio
Pedro II. Todas essas fontes são do Arquivo Histórico do Exército. Junto
aos objetos pessoais de Mattos, encontra-se também a sua ficha de ins-
crição como membro da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São
Benedito dos Homens Pretos.
Um outro espaço que separa o museu (ou o estende) por uma porta
de vidro é um acervo onde se encontra a museóloga, denominado de
"sala de restauração" e "biblioteca", onde há prateleiras com livros e
documentos sobre a escravidão. Qualquer retirada ou apreço não pode
ser feito sem permissão da museóloga, que afirma ainda estar "arru-
mando". O museu encontra-se aberto à visitação pública, exceto aos
sábados e domingos.
Dentre os objetos presentes no Museu do Negro, uma escultura da
Mãe-África, de autoria não revelada, parece ser a mediadora entre uma
memória passada e o presente. Trata-se de uma estátua de bronze: uma
negra sorridente, segurando uma criança nas costas. Não há referên-
cia quanto ao artista ou colecionador e o deslocamento dessa peça até
o museu. A escultura parece revelar a origem da nação mundial, como
bem diz seus dizeres: "África Mãe, oásis, ventre fértil que o mundo às
vezes reconhece, outra vez se recusa a pensar, que foi lá que a história
começou desde que o mundo é mundo", que ao mesmo tempo se apre-

214 {museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas}


senta como uma discussão no "presente". Parece haver nas descrições de
alguns objetos no Museu do Negro uma tese universalista, defendida por
muitos "irmãos" da Irmandade, sobre a origem social e cultural brasilei-
ra: a Mãe-África valorizada como berço da origem da nação brasileira.
Além das imagens de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito no
Museu do Negro, a devoção neste espaço parece estar também na figura
da Escrava Anastácia, uma negra de olhos azuis que carrega uma más-
cara de ferro na boca. Esta escrava é retratada em um enorme busto e
em cinco quadros, alguns em preto e branco e outros coloridos. Dentre
ele, a pintura de uma negra, grávida, seminua, ajoelhada diante da ima-
gem da escrava em sentido de oração, torna-se uma obra interessante,
dentre as muitas que ali se encontram, no sentido de saber de que for-
ma houve o seu deslocamento, por quem e por que ela teve a "licença"
para ser exibida, visualizada naquele "espaço de celebrações".
Observa-se pedidos dos fiéis e agradecimentos que são depositados
em moedas e notas de 1 real diante da imagem da escrava. Segundo a le-
genda em um dos quadros, temos a seguinte informação sobre a escrava:
"Símbolo do suplício da escravidão negra. De origem desconhecida, seu
pôster veio da coleção do patrimônio do Estado do Rio de Janeiro para
enriquecer o acervo do Museu do Negro". Ao lado dessa figura, encon-
tram-se duas grandes representações de Zumbi, (1655-1695), classificado
como "líder negro da heróica resistência do Quilombo de Palmares". Flo-
res são colocadas diante dessas imagens.
O museu parece retratar, até o momento, memórias que teriam a
função de articular o passado e o presente, tornando-as seletivas nas
narrativas dos indivíduos. A memória de uma irmandade negra traz a
importância de manter, como parte do acervo de obras raras, objetos de
uma "memória escrava" ligada à exploração do negro e à sua devoção
religiosa ao catolicismo.
Quando o colecionamento é exposto ao olhar interpretativo é porque
existe uma finalidade de mediação entre ele e o expositor. Certo ajus-
tamento em torno do eu e do grupo para quem a memória é ressignifi-
cada. Nesse caso, os agentes que fazem essa mediação são membros da

{andRéa LÚCia da SILva de paiVa} 215


Irmandade, que agem de forma a "manter viva", como muitos afirmam,
a história de seus ancestrais. A forma de colecionamento (seleção e clas-
sificação) pelos "irmãos~· justifica, assim, sua prática patrimonial, que
parece sintetizar e problematizar a articulação dos objetos do museu com
o tema proposto -' "Pa'ra preservação da história do negro".

No MUSEU DO NEGRO, A ARTE DE COLECIONAR:


PONTOS PARA UMA DISCUSSÃO

11 . Alguns autores É difícil determinar, na Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e


estão preocupados
em fazer uma história São Benedito dos Homens Pretos, a data de fundação de cada uma das
da Antropologia por
meio das coleçôes.
classificações do museu: "museu da escravidão", "museu da abolição" e
Destaco aqui os traba -
"museu do negro". Pensar em por que se coleciona talvez seja uma das
lhos de Jacknis (2002,
1985) e Stocking Jr. possíveis respostas para essa questão, visto que o colecionamento tra-
(2002), que vêem os
museus como insti- duz de certa forma o processo de formação da categoria "patrimônio",
tuições desenvolvidas
para a coleção, pre- pois os grupos humanos, ao exercerem a ação de colecionar objetos ma-
servação, exibição, es-
tudo e interpretação
teriais, buscam, por meio deles, exercer uma subjetividade em oposição
dos objetos materiais. a um determinado "outro". O resultado desse processo é a formação do
Os objetos da cultura
material são os obje- patrimônio (Gonçalves, 2003).
tos dos outros.
Assumindo essa perspectiva, as noções de "coleção" e "patrimônio"
12. Santos (2005)
compara as relações devem ser analisadas levando em consideração os processos históricos,
raciais a partir da
análise de narrativas econômicos e políticos de produção que os tornam universais e possí-
existentes em dois
museus: o Museu
veis, pois, como já afirmara ]acknis (2002), todo colecionamento é um
Nacional de Belas
ato de reprodução de criação.U
Artes (MNBA), criado
em 1937 no governo Podemos, assim, ampliar esta discussão e afirmar, em conjunto com
do Getúlio Vargas, e o
Museu da República . a frase acima, que o museu também é constituído em relação às relações
No primeiro há uma
narrativa silenciada sociais e culturais do contexto nacional em que está inserido. A respeito
do negro, visto que a
coleção desse museu
dessa questão, a socióloga Mirian Sepúlveda (2005) nos aponta:
pode ser considerada Antes de analisar os conflitos e disputas que ocorrem nas diversas representações
"uma coleção pro-
duzida por artistas de negros presentes em museus brasileiros, são necessá rios esclarecimento sobre
europeus e brasileiros,
brancos, fortemente a escrita da memória nacional." (Santos, 2005, p. 37)
influenciados pelos
artistas europeus neo-
Sendo assim, a autora aponta três pressupostos básicos presentes na
clássicos, os produto-
relação entre memória e história: o primeiro seria a relação entre pas-

216 {museus, coLeções e patRimÔnws: naRRativas poufômcas)


sado e presente como "via de mão dupla", visto que o passado é cons-
truído pelo presente, assim como também o constrói; o segundo estaria
em ver a história como resultado de relações de poder; o terceiro está
em compreender que tanto a história quanto a memória são múltiplas e
complexas, uma vez que são resultantes de diferentes narrativas.
Nessa relação entre memória e história presente no museu, não esta-
mos nos confrontando com uma história, mas com diversas narrativas
da história. Por memória apontaríamos o seu caráter social e, na relação
entre passado e presente, segundo a tese do sociólogo francês Maurice
Halbwachs (1994, 1990), não a veríamos como um vestígio simples do res de obras culturais
voltadas para atender
passado, como também não a veremos como uma reminiscência de fa- aos interesses de uma
elite que se instalou
tos passados. Pelo contrário. A memória seria uma reconstrução e uma no Brasil a partir da
chegada de Dom
representação do passado elaborado no presente. No caso brasileiro, no João VI". No segundo
que diz respeito à história do negro, somos fortemente marcados pela museu o negro é basi-
camente representado
imagem da escravidão, que favoreceu o surgimento da_imagem de ex- quando se fala de
cultura popular. como
clusão e discriminação do negro brasileiro. Os contextos da escravidão e samba, carnaval e
futebol. Segundo a
da abolição fazem parte de diferentes narrativas, as quais, embora pro- autora, isso torna a
duzidas em diferentes contextos históricos, coexistem no presente na imagem do negro
estereotipada, pois
denominação atual de Museu do Negro, uma nomenclatura talvez de "o reconhecimento
de que os negros são
síntese sobre a trajetória do negro no Brasil. bons em samba e
futebol caminha a par
Podemos observar assim que os nomes atribuídos ao museu na da idéia de que não
são bons como politi-
igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pre- cas, empresários, in-
tos estão inseridos nas etapas de acontecimentos históricos nacionais, dustriais, advogados,
médicos, engenheiros
onde cada um dessas classificações traz diversas memórias associadas e demais profissões
de prestígios. Se é
à questão das relações raciais no Brasil. É nesse contexto também que importante reconhe-
cer a contribuição da
venho observando a existência de três narrativas no Museu do Negro, cultura dos negros ou
que denomino de narrativas históricas (ligadas à exibição de objetos de afro-descendentes é
igualmente impor-
torturas, assim como a uma relação do negro com a monarquia, com tante não restringir o
negro a apenas um
destaque para a relação da Irmandade com os 'membros da Família determinado tipo de
prática social ou ma-
Real, sobretudo com a figura da Princesa Isabel como "Redentora"); nifestação cultural"
(Santos, 2005, pp.
narrativas igualitárias (relacionadas a um discurso do negro diante dós 51-52).
movimentos sociais, assim como à ascensão do negro); e narrativas mo-
dernas (que se fazem presentes nas negociações entre o Museu do Ne-

(andRéa LÚCia da SILva de pa1va} 217


gro e instituições como o IPHAN e a Petrobrás, por exemplo, a fim de
se enquadrar como fonte gerenciadora de preservação, distribuição e
obtenção de lucros).
Entretanto, é fundamental chamar a atenção para o fato de que essas
narrativas não são excludentes (por exemplo, na terceira narrativa o foco
está na construção da cultura negra e esta narrativa também está pre-
sente em outras narrativas). Também não podemos dizer que essas nar-
rativas se tornam um enquadramento harmonioso entre seus integran-
tes. Esta última questão pode ser vista de acordo com alguns exemplos
em campo: uma senhora idosa, membro da Irmandade, contou-me que
certa vez, na festa do 13 de maio, que foi escolhida para levar um objeto,
durante a missa, e entregá-lo na mão de uma representante da Famí-
lia Real: "Fui lá ... Me senti igualzinha uma escravinha ... Quando cheguei
bem perto dela, mirei bem para aquele rosto branco e falei, batendo o pé:
'toma sinhá"'. Assim como essa ação, existem "irmãos" que não concor-
dam com a abordagem da Princesa Isabel como Redentora e questionam o
destaque dado a ela no museu e nas narrativas e ações de alguns irmãos.
Por tal, o Museu do Negro apresenta-se como lócus, por onde circu-
lam as narrativas. Essas narrativas vêm se firmando como instrumen-
to de observação nesse espaço estratégico que é esse museu. Podemos
perceber entre elas a noção de trançado como uma categoria cultural
e religiosa que pode ser observada em alguns objetos no museu, tais
como: o culto à Escrava Anastácia; em algumas festividades (como a do
13 de maio) e nas ações cotidianas de alguns membros da Irmandade
e visitantes, ao colocarem constantemente flores e guimbas de cigarro
sobre alguns objetos, revelando assim uma relação entre pureza e impuro
(aquilo que deve ser mantido em segredo, que é obscuro e se revela um
trançado de ações conflituosas).
Sem dúvida, essas três narrativas nos colocam a questão de que o
campo museal é um campo de tensão e, por isso mesmo, nele há espaço
para múltiplas e diferentes práticas, abordagens e enfoques. A forma de
observar essas questões se encontra nas próprias práticas do coleciona-
mento, visto que a própria coleção, como afirma Gonçalves:

218 {museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas}


[Pressupõe] situações sociais, relações sociais de produção, circulação e consumo de
objetos, assim como diversos sistemas de idéias e valores e sistemas de classificação
que as norteiam. Em algumas sociedades colecionam determinados objetos mate-
riais com o propósito de redistribuí-los ou mesmo de destruí-los; no ocidente mo-
derno, o colecionamento está fortemente associado à acumulação. (zoosb, p. 11)
Quando o colecionamento visa uma exposição pública em museus, tais
objetos, que se encontram descontextualizados, necessitam ser classifi-
cados. A importância de se ter uma consciência histórica torna-se funda-
mental para situar aquilo que está sendo editado e selecionado (Clifford,
1988a, 1988b, 1997; Gonçalves, zoosa , zoosb, 2003, 1996a, s/d). Os museus
representam uma "zona de contato" que é definida como um espaço dos
encontros coloniais, o espaço no qual povos- geograficamente e histori-
camente separados - entram em contato e estabelecem relaçõesP
Pomian (1997) em seu discurso sobre coleções busca fazer uma gene- 13 . Conceito empre-
gado por Mary Lou-
alogia universal sobre elas. Segundo afirma, todo museu é um exercício ise Pratt em seu livro
Imperial Eyes; travei
de classificação, e a idéia de colecionamento é central. Por coleciona- and transculturation
mento, o autor compreende: (apud, Clifford,
1997: 238).
Qualquer conjunto de objetos naturais e artificiais, mantidos temporária ou defi-
nitivamente fora do circuito das atividades econômicas, sujeitos a uma proteção
especial e expostos ao olhar do público., acumulam-se com efeitos nas tumbas e nos
templos, no palácio dos reis e nas residências de particulares. (Pomian, 1997, p.SS)
Para ele, ainda:
Todas as coleções estudadas cumprem uma mesma função, a de permitir aos objetos
que as compõem desempenhar o papel de intermediários entre os expectadores,
quaisquer que eles sejam, e os habitantes de um mundo ao quais aqueles são ex-
teriores (se os espectadores são invisíveis, trata-se do mundo visível e vice-versa)
[e] quando se fala de coleções, supõe-se tacitamente que essa é formada por certo
número de objetos. (Pomian, 1997, p.67)
Se a função é a principal característica que se exprime nos objetos ob-
serváveis que definem a coleção, quando submet.idas a uma proteção es-
pecial, em locais fechados ou arranjados, elas estão submetidas ao olhar.
Enquanto arte a ser contemplada, os objetos passam a desempenhar
funções. Se alguns deles se tornam mais importantes que outros é por-

{andRéa LÚCia da SILva de pa1va} 219


que há mediações de ordem social (incluindo aqui também a bibliográ-
fica) e simbólica. Sem esses objetos não conseguiríamos observar essas
ordens estruturais que .p ercorrem a noção de espaço e tempo.
O conceito de "propriedade" se refere a algo que é herdado, funda-
14. Vale ressa ltar mental para os estudbs sobre as coleções. A partir do momento que em
que o discurso do
patrimônio empre- que se coleciona, pesquisa e documenta para patrimoniar, como faz
gado pelos palses
ocidentais resulta
a museóloga, é possível pensar a noção de patrimônio como algo que
no surgimento de internalizamos conforme aprendemos usá-lo para determinados fins.
diversas categorias
de museus onde é Nesta ação, o Museu do Negro atua em sua totalidade como um "espaço
possível observar um
processo de nego- de celebrações", que na forma de museu, biblioteca etc. tende à rituali-
ciação pelos agentes
dominantes para a
zação e permanece graças à criação de uma dimensão simbólica. Essas
construção de discur-
manifestações que visam a memória pretendem "parar" o tempo e "evi-
sos que atendam às
demandas sociais de tar" o esquecimento, fixar um estado de coisas, imortalizar a morte e
cada época (Ciifford,
1998a, 1997, 1994; materializar o imaterial para guardar o máximo de sentido num míni-
Thomas, 1991; Jack-
nis, 1985, Jordanova, mo de sinais (Nora, 1993), pois a noção de perda está muito associada à
1989, Gonçalves,
sld). Os discursos se
noção de "esquecimento". Há uma idéia de que com a "perda" podemos
constituem a partir esquecer nossas experiências (Gonçalves, 1996a).
de algumas noções,
tais como "civili- Como forma metodológica, devemos nos perguntar sobre tais con-
zação", "cultura",
"autenticidade", ceitos ("perda", "patrimônio", "propriedade", "valor", "coleção", "esque-
"monumentalidade",
"excepcionalidade" e
cimento", "memória") do ponto de vista do "nativo" e do pesquisador.H
"tradição".
No Museu do Negro o colecionamento parece atuar como lugar de
memórias ("individual" e "coletiva"). Constituído a partir da "vontade
de memória" de uma organização (a Irmandade), a coleção dispõe assim
de determinadas funções: ela é a mediadora entre os interesses indivi-
duais e o interesse da coletividade, uma vez que o museu simboliza as
memórias dos negros escravos, as memórias dos negros que obtiveram
um reconhecimento ou ascensão na política e em movimentos sociais,
as memórias históricas do espaço no qual está situado, assim como as
memórias simbólicas (as narrativas e rituais que percorrem a imagem
da Escrava Anastácia, de São Benedito, do Marechal Mattos e do líder
Zumbi quanto às festividades religiosas).
O fato de a museóloga colecionar objetos da história dos escravos
africanos por meio das fotos e documentações sobre a Irmandade dos

220 {museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcasl


Homens Pretos onde possui uma vivência como integrante e descenden- 15. A museóloga,
desde que se tornou
te da quinta geração, tanto quanto o cuidado em registrar, por meio de diretora do museu,
contrata os serviços
fotografias, 15 as atividades realizadas no museu e na igreja- festivida- de um "fotógrafo-

des, missas de compromisso, as missas diárias de quinta-feira e as missas investigador", que


tem como função
comemorativas (dias santos ou aniversários de membros da Irmandade) registrar as atividades
no templo.
- nos fazem pensar que:
16. Segundo Gonçal-
The photograph as souvenir is a logical extension of the pressed flower, the preservation of ves (2005', pp. 5-6),
o acesso que o patri-
an instant in time through a reduction of physícal dimension and a corresponding increase mónio possibilita, por
exemplo, ao passado
in significance supplied by means of narrative. The silence of the photograph, its promise of "não depende in-
teiramente de um
visual intimacy at the expense of the other senses [.. .]. (Stewart: 1984, 138)
trabalho consciente
A descrição do Museu do Negro por meio da variedade e dos frag- de construção no
presente, mas, em
mentos de seus objetos {fotografias, imagens, quadros, esculturas, ar- parte, do acaso".
Se por um lado
tefatos e documentos), que são selecionados em uma coleção16 e estão construímos intencio-
nalmente o passado.
sujeitos ao "detalhamento" do observador, nos desperta para um mo- este, por sua vez,
saico de memórias que percorre rotas dos tempos presente e passado. Com incontrolavelmente
se insinua em nossas
base nessa questão, partindo de uma perspectiva antropológica, Kir- práticas e represen -
tações. lJesse modo,
shenblatt-Gimblett (1991, p. 388) nos indica que talvez não devêssemos o "trabalho de cons-
trução de identidades
falar em "ethnographic object", mas de "ethnographic fragment", que e memórias coletivas
não está evidente-
consistiria no detalhamento das ações que conduzem os objetos a frag-
mente condenado ao
mentações, pois os objetos etnográficos, ao passarem por um processo sucesso. Ele ooderá
de vários modos, não
de detalhamento, são reclassificados em sua exibição. ]ames Clifford já se realizar".

apontava que o colecionamento "parece um processo dividido contra


si mesmo, articulado por uma permanente tensão entre totalização e
fragmentação" (Gonçalves, 1999, p. 11).
O trabalho de colecionamento realizado no Museu do Negro parece
estar baseado em uma visualidade externa (aquela que é colocada à mos-
tra) e outra interna (que ainda está sob os cuidados e a seleção particular
dos guardiões da memória, e por isso não é vista, mas age como mediadora
em conjunto com aquilo que é exposto). Falar sobre colecionamento é
discursar sobre as expectativas diversas das ações humanas: a coleção
assume diversas dimensões. Ela pode ser analisada como material et-
nográfico, material artístico ou material histórico, por exemplos, o que
nos permite revelar todo um conjunto de práticas sociais e culturais que

{andRéa LÚcia da SILva de paiVa} 221


a constituíram. Não se trata, portanto, de uma simples reunião de obje-
tos. A coleção pode revelar aspectos das relações entre o colecionador,
os demais indivíduos e segmentos sociais e institucionais. Ela é produto
de trocas, negociações e disputas para se manter "património".
Mas o conceito de propriedade também tem a ver com a imagem
de guardiã da memória, o que nos remete à discussão sobre memória
individual e coletiva. Para esta discussão, Rosaldo (1989), ao analisar as
fronteiras entre as narrativas históricas e antropológicas, aponta que o
conceito de cultura deve ser estudado como processo por meio do qual
os indivíduos compreendem suas vidas:
Not only men and womem of affairs but also ordinary people tell themselves stories about
who they are, what they care about, and how they hope to realize their aspirations. Such
stories significantly shape human conduct be ignored by social analysis. (Rosaldo, 1989,
pp. 129-130)
No museu, o papel de guardiã da memória parece desempenhado,
em determinados casos, pela museóloga, acompanhada de sua secretá-
ria, e, em outros, os demais membros da Irmandade e os fiéis também se
tornam "narradores" dessa memória ao selecionarem aquilo que vêem e
contribuírem para o acervo do museu por meio da doação de obras. Em
campo, presenciei a entrega de umas pinturas, à museóloga, por uma
moça de cor branca que se tornara membro da Irmandade em 2005. Esta
jovem doou quadros pintados por seu padrasto senegalês.
A história do artista era narrada pela jovem e selecionada pela mu-
seóloga. Se a moça trazia os objetos como doações do artista e afirmava
que este gostava de pintar traços dos rostos de africanos, a museóloga,
por sua vez, remetia-se às lembranças, nas décadas de 1960 e 70, da
presença de africanos de diversas nacionalidades, inclusive de sene-
galeses, como visitantes ou como membros da Irmandade no Rio de
Janeiro. Tão logo ela se dirigiu ao quadro do capitão, suspirou e res-
pondeu que "esta época é que era boa. O salão da igreja lotava. Era
aqui" (apontava para uma porta ao lado do museu, que se encontrava
inativa), "em dias de festa, isso aqui lotava", dizia. Imediatamente, a
museóloga tratou de fazer molduras para as oito gravuras em xilogra-

222 {museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas}


fia e pendurá-las na Sala Yolando Guerra. Após alguns meses, entre as
gravuras, foi redigido por ela um texto informativo, com os dizeres:
"Rostos Negros. Autoria do artista senegalês Symphonen Bartelemy
Oudiane". Este acontecimento se tornou para mim um exercício para
compreender a dinâmica das seleções nesse museu: o que é recebido
como objeto; a narrativa de quem o entrega e de quem o recebe; e, por
fim, a narrativa que é exposta ao olhar de quem visita o museu. A este
fato nós também atribuímos um princípio da memória apontado pelos
autores aqui citados: "A memória é seletiva. Nem tudo fica gravado. Nem
tudo fica registrado" (Pollak, 1992, p. 203).
Talvez, o intuito de reabrir o museu após o incêndio, as doações, em-
préstimos e ações para o inventário no IPHAN (que vem sendo realizado
pela museóloga) resida no medo da "perda", uma vez que qualquer pa-
trimônio é sempre construído a partir de uma ruína. É preciso "salvar"
algo para que não deixe de existir. Mas até que ponto a "ruína" também
serve para pensarmos a importância do objeto, que é deslocado de um
lugar para outro, doado, emprestado, para se manter uma exposição, um
colecionamento temporário? O colecionamento de um objeto, tão bem
quanto sua etnografia, é uma forma de mediação entre o "visível" e o
"invisível" que também nos coloca diante de uma outra noção: a cultura
como propriedade subjetiva e coletiva.

CoNSIDERAÇõEs FINAis

A importância de um estudo sobre "coleção" é a capacidade para


pensarmos sistemas classificatórios. Nesse sentido, observar o contexto
no qual as coleções foram produzidas, levando em conta as noções de
cultura e autenticidade que estão em jogo, torna-se fundamental. O pro-
cesso de transformação do objeto e suas sucessivas reclassificações ocor-
rem em meio a um sistema ramificado de símbolos e valores que, por sua
vez, são também "mutantes". Em outras palavras, as coleções não apenas
criam novas taxonomias, mas o fazem em diálogo com sistemas classi-
ficatórios nos quais estão imersas, formulados em outras instituições,

{andRéa LÚcia da SILva de paiVa} 223


grupos e assim por diante. Assim, o objeto possui uma biografia, uma
trajetória que se inicia antes mesmo de adquirir certo estatuto dentro da
coleção e que se traça em diálogo com um contexto mais amplo.
Podemos ver .o Museu do Negro como um exercício de classificação,
e as idéias de coleeionamento são centrais para compreendermos as re-
lações sociais e culturais que o vêm constituindo.
Sendo assim, é preciso identificar os valores e significados atribuí-
dos ao Museu do Negro pelos segmentos sociais envolvidos; analisar as
ações de memória da comunidade local, como o colecionamento, para
compreender o processo de institucionalização de um acervo particu-
lar; analisar a memória da comunidade local a fim de observar as práti-
cas de construção e consolidação de um sentimento de reconhecimento
e pertencimento, assim como analisar o conjunto de representações que
compõem os discursos no Museu do Negro.
Em pesquisa de campo durante as festas de Nossa Senhora do Rosá-
rio e São Benedito dos Homens Pretos, em outubro de 2005, era freqüen-
te a utilização da palavra "devoção" como "património" por parte dos
provedores da Irmandade em seus discursos aos fiéis ao término das
missas. Portanto, o lugar do bem patrimonial na memória coletiva local,
por parte dessa organização, perpassa a noção de religiosidade: a idéia
de "dever ação". Há, assim, uma troca entre vivos e mortos, bem como
trocas entre homens e divindades. Ao partirmos do pressuposto de que
os patrimónios são "fatos sociais totais", podemos assim reconhecer que
qualquer objeto ou modo de vida pode se transformar em "património
cultural", e esse processo de transformação (social e simbólica) é opera-
do por diversos agentes e instituições em determinado tempo e espaço
(Mauss, 2003; Gonçalves, 2005a, 2005b, 2003, 1999, 1996, s/d).
O fato é que em cada classificação dada ao Museu do Negro não deixa
de haver a coleção como "propriedade", seja esta individual e/ou cole-
tiva, dos objetos a serem exibidos. A "propriedade" e a "apropriação"
nas ações do museu parecem estar ligadas a uma forte devoção religiosa
cuja memória dos ancestrais parece determinar a escolha dos santos e
selecionar as imagens que devem ser reveladas para os visitantes.

224 {museus, coLeções e patRim8mos: naRRativas pouf8mcas}


Por fim, o Museu do Negro nos coloca diante de algumas reflexões,
em que a pergunta de Stocking ]r. (2002) - "Does anthropology need mu-
seums?" - é ainda extremamente atual para a teorização, visto que são
esses espaços que nos permitem ampliar os limites desta disciplina, ao
nos colocarem diante de classificações dos olhares, sensações e narrativas
sobre as diversas formas de representação de uma cultura. A coleção
é um processo contínuo. As coleções em um museu nos fazem sempre
pensar em suas próprias classificações, assim como contribuem para
pensarmos o museu e seu percurso na Antropologia como um espaço de
interrogações sobre os objetos.

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228 (museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas)


o feticHe do patRimÔnio
Mariza Veloso1

e ste artigo trata do risco de se transformar o patrimônio cul-


tural, ou bem patrimonial, em uma mercadoria como outra
qualquer, ou simplesmente em puro fetiche, onde o patrimônio cultu-
ral, com suas complexas redes de práticas e significados, transforma-se
em mero produto, ou objeto "coisificado", ou fetichizado.
A motivação para tal reflexão se deve à necessidade de suscitar no- 1. Antropóloga,
socióloga, professora
vos debates e construir uma permanente indagação sobre questões e do Departamento
de Sociologia da
temáticas relativas ao patrimônio cultural diante das engrenagens da UnB e do Instituto
Rio Branco - M.R.E.
sociedade contemporânea. - Brasllia-DF. E-mail:
O chamado capitalismo tardio, marcado pela internacionalização do [email protected]

capital e flexibilidade do trabalho, dentre outras conseqüências, provo-


cou uma profunda mercantilização da cultura, introduzindo a noção de
que o consumo cultural promove a distinção social.
O patrimônio cultural, tanto o material quanto o imaterial, ex-
traem sua singularidade por expressarem "marcas de distinção"
que, por sua vez, remetem a situações específicas vividas por uma
determinada comunidade, como, por exemplo, os brincantes de um
determinado bumba-meu-boi, os participantes de um grupo de roda
de samba no Recôncavo Baiano ou outras manifestações populares
da cultura brasileira.
o patrimônio cultural deve ser entendido como um campo de lutas
onde diversos atores comparecem, construindo um discurso que sele-
dona, apropria - e expropria - práticas e objetos.

lmaRJza vewso} 229


É preciso advertir, desde logo, que não se advoga aqui a tese de que
os valores estéticos, históricos ou outros presentes nas manifestações
patrimoniais sejam compartilhados de modo homogêneo por uma de-
terminada coletividade.·
De modo geral; são' muitos os atores presentes neste campo de lutas,
como o próprio IPHAN, ONGs culturais, poder político local, associações
comunitárias etc. No âmbito desta reflexão é preciso enfatizar dois regis-
tras teórico-empíricos. O primeiro refere-se ao fato de que o património
cultural, a par de sua existência real, constitui uma formação discursiva
(Foucault, 1972) que adquiriu solidez ao longo da modernidade ocidental.
O segundo, é enfatizar a importância definitiva da ampliação da idéia de
património cultural, que deixou de incorporar só os bens materiais, es-
pecialmente os chamados de "pedra e cal," mas também assimilou prá-
ticas culturais expressivas da diversidade cultural brasileira- constituí-
das por manifestações históricas e estéticas genuínas, vivas, concretas e
provindas dos diferentes grupos que compõem a sociedade brasileira.
Um dos eixos de argumentação deste artigo aponta para a singularida-
de do bem patrimonial, que possui uma densidade histórica específica.
Entretanto é inegável que o património cultural, em qualquer de
suas variantes- material, imaterial, histórico artístico, natural, arqui-
tetónico etc. -, sempre expressa valores coletivos corporificados em ma-
nifestações concretas.
Assim, falar de património cultural é mais complexo do que pode
parecer à primeira vista, precisamente porque ele é fruto de relações
sociais definidas, historicamente situadas, e ao mesmo tempo é corpo-
rificado em alguma manifestação concreta, seja conceitualmente defi-
nida como material ou imaterial. Contudo, o património cultural corre
o risco de ser reificado, corre o risco de tornar-se um fetiche.
Portanto, tornar o património um fetiche, considerar apenas o seu
produto objetivado, é um risco palpável diante da sociedade de consumo
e da "modernidade líquida" (Bauman, 2001) onde o fragmento, a aparên-
cia e o individualismo imperam.

230 !museus, coLeções e patRim8mos: naRRativas pouf8mcas}


Já tem sido deveras tematizado sobre a sociedade atual a associação
entre individualismo e mercado, além da predominância da prática do
consumo, da privatização da vida pública e da reificação das relações
sociais, transformadas em relações entre coisas.
Diante desse quadro, podemos nos perguntar: como fica estabeleci-
do o lugar do patrimônio no mercado de bens simbólicos existente na
sociedade contemporânea brasileira?
É diante da ameaça de transformar o patrimônio em fetiche que tra-
ta este breve artigo. O perigo que se corre é o de transformar os bens
culturais em meros objetos de consumo, em transformar o patrimônio
material em expressão de uma história rasa; ou ainda, transformar as
manifestações culturais do patrimônio imaterial em fetiche, ou seja,
privilegiar o produto, transformado em objeto de consumo, como qual-
quer outra mercadoria que circula na sociedade atual.
Enfatiza-se que as manifestações patrimoniais não podem se trans-
formar em mero objeto de consumo, muito embora, como qualquer
outro produto, também percorram a trilha de sua própria alienação.
Ocorre que o processo de "coisificação" ou "objetificação" que envolve
os bens patrimoniais passa, necessariamente, por duas dimensões ine-
xoráveis e que lhes conferem uma aura singular - a dimensão coletiva e
a dimensão da história ou da memória.
Por outro lado, pode-se correr um outro risco, qual seja, o de tratar o
patrimônio como se fosse uma idéia abstrata a pairar sobre as consciên-
cias individuais, o que resultaria numa percepção atomizada e estática
dos indivíduos - seres apartados de sua consciência coletiva.
É preciso, ainda, não perder de vista que o patrimônio cultu-
ral coloca em circulação bens culturais de extrema valia no mercado
de bens simbólicos. Portanto, a produção, a valorização e a apropriação
de tais bens se remetem sempre ao campo das luta's simbólicas que ocor-
rem no interior de toda sociedade ou mesmo de um grupo social.
O patrimônio cultural, quando bem compreendido, expressa dife-
rentes representações coletivas, as quais estabelecem múltiplas cone-

{maRiza vewso} 231


xões entre si, e em situações de pesquisa o que sobressai é a transforma-
ção do informante em intérprete de seu próprio patrimônio.
O que importà destacar é que, quando se trata de patrimônio cul-
tural, seja material ou imaterial, se está também falando de valores
e de interesses coleti~os, que por sua própria especificidade não são
fixos nem imutáveis.
Valores e interesses não existem a esmo, nem constituem vagas abs-
trações, mas estão associados a práticas sociais concretas e são constru-
ídos e vividos no interior da vida social, com seus conflitos, contradi-
ções, consensos e hierarquias.
O importante a destacar é a intrínseca relação existente entre pa-
trimônio cultural e experiência coletiva, ou seja, os saberes e fazeres
tradicionais e genuínos são conhecimentos compartilhados que fazem
parte do repertório cultural comum de um determinado grupo. Em ou-
tras palavras, é fundamental que se vincule - sempre - a pulsação do
patrimônio cultural à dinâmica da experiência coletiva.
Vale dizer que o conceito de experiência coletiva foi primeira-
mente utilizado por Walter Benjamin em um artigo intitulado "Expe-
riência e pobreza", em que o autor discute a relação entre a experi-
ência coletiva significativa - no sentido de uma vivência - e a capa-
cidade narrativa.
Nesse sentido, o que se espera é que os próprios produtores cultu-
rais, ou os "nativos de cidades históricas", sejam capazes de construir
suas próprias narrativas a respeito dos bens patrimoniais, como as ca-
sas, praças, palácios, igrejas etc., como também sobre as manifestações
culturais singulares, a exemplo do artesanato, das danças dramáticas
ou das comidas típicas.

Ü CONCEITO DE FETICHE

A idéia de fetiche ou feitiço é antiga e aparece em diversos campos


disciplinares. Uma "teoria do fetichismo" foi elaborada por diversos
autores, dentre os quais se destacam Karl Marx (1818 - 1883), com o

232 {museus, coLeções e patRimÔmos: naRRatiVas poufômcas}


fetichismo da mercadoria; Sigmund Freud (1856 - 1939), com o fetichis-
mo sexual; e ainda muitos antropólogos que estudaram o fetichismo na
magia e na religião, sendo os mais clássicos James G. Frazer (1954 -1941)
e Edward Tylor (1832- 1917)
Apesar da abordagem multidisciplinar (sem aprofundar na temáti-
ca), parece haver uma idéia comum entre os autores citados, qual seja,
a suposição de um deslocamento simbólico- de um ser para outro, de uma
"coisa" para "outra" - ou ainda um deslocamento de um fato a outro;
dos produtores para o produto, ou alguma manifestação de um passado
significativo para um presentismo vazio.
Pensar sobre o fetiche em quaisquer de suas abordagens - da merca-
doria, da sexualidade, da religião, da moda, ou mesmo do poder- numa
sociedade de consumo como a atual, requer atenção redobrada, pois,
para além do império do consumo, movimentamo-nos em cenários de
muitos simulacros da sociedade moderna, como os cenários e espetácu-
los produzidos pela atividade turística, os parques temáticos etc.
A teoria marxista do fetichismo, segundo Rubin (1987, p. 22) "con-
siste em Marx ter visto entre as coisas relevantes a ilusão da consciên-
cia humana, que se origina da economia mercantil e atribui às coisas
características que têm sua origem nas relações entre as pessoas no
processo de produção".
Ainda segundo o mesmo autor, "o que na realidade é uma relação
entre pessoas aparece como uma relação entre coisas, no contexto do
fetichismo da mercadoria" (p. 23).
Um ponto essencial na teoria fetichista, da perspectiva da economia
política marxista, é que Marx não mostrou apenas que as relações hu-
manas eram encobertas por relações entre coisas, mas também, que na
economia mercantil, as relações sociais de produção assumem a forma
de coisas e não se expressam a não ser através de' coisas.
Segundo ainda a interpretação marxista: "Existe uma estreita rela-
ção e correspondência entre o processo de produção de bens materiais e
a forma social em que esta é levada a cabo, isto é, a totalidade das rela-
ções de produção entre os homens" (Rubin, 1987, p. 35).

{maRiza vewso} 233


Contrariamente ao avassalador processo do consumismo e individu-
alismo que aciona valores e práticas sociais predominantes na socieda-
de contemporânea, as manifestações do patrimônio imaterial- celebra-
ções, rituais, conjunto de·saberes e fazeres, dentre outras- corporificam
sentidos e valores colet'ivos que ensejam sentimentos de pertencimento
dos indivíduos a um determinado grupo. Felizmente, os documentos e
reflexões produzidos pelo IPHAN, por acadêmicos e outros atores so-
ciais, advertem sobre a necessidade de se pautar as ações de valorização
do patrimônio imaterial a partir do conceito de "referência cultural".
Tais reflexões ressaltam especialmente que o patrimônio ima-
terial efetivamente não pode abrir mão do conceito de "referência
cultural", pois é ele que informa a prática do registro patrimonial,
uma vez que ainda remete ao processo de produção, às relações so-
ciais entre os produtores e igualmente ao repertório simbólico de um
determinado grupo social.

pATRIMÔNIO IMATERIAL: O CONCEITO DE REFERÊNCIA CULTURAL

2 . O património ima- Como desvencilhar-se das armadilhas da mercantilização desvaira-


terial foi oficialmente
instituído pelo Decre- da que hoje reina na produção cultural e artística da sociedade contem-
to n• 3.551, assinado
pelo Presidente da
porânea? Como tratar da própria dinâmica relativa à produção e repro-
República em agosto
de 2000. Tal decreto
dução do patrimônio imaterial?
estabelece procedi- Conforme já explicitado, um dos caminhos que instaura e constitui
mentos que foram
normatizados pelo o patrimônio imaterial é o conceito de referência cultura/.2 Tal conceito
IPHAN, designado
como o órgão repre- derivou de intensa discussão e produção de múltiplos documentos, fru-
sentante do Estado
responsável pelo re-
to do trabalho obstinado do corpo técnico do IPHAN e de especialistas e
gistro de determinada acadêmicos identificados com a temática do patrimônio cultural.
manifestação cultural,
considerada um bem Sua importância deriva do fato de que seu foco recai sobre os pro-
patrimonial que ocu-
pa lugar legítimo no dutores dos bens culturais e não sobre o produto. Além disso, reforça o
repertório da cultura
brasileira .
caráter simbólico e político do processo de produção e apropriação do
patrimônio cultural. Segundo Londres (INRC/ IPHAN/MINC, 2000):
Quando se fala em "referências culturais", se pressupõem sujeitos para os quais
essas referências façam sentido (referências para quem?). Essa perspectiva

234 {museus, coteções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas}


veio deslocar o foco do bem - que em geral se impõem por sua monumentalidade,
por sua riqueza, por seu "peso" material e simbólico- para a dinâmica de atribui-
ção de sentidos e valores. Ou seja, para o fato de que os bens culturais não valem
por si mesmos, não têm um valor intrínseco. O valor lhes é sempre atribuído por
sujeitos particulares e em função de determinados critérios e interesses histori-
camente condicionados.
A identificação e valorização do patrimônio cultural, especialmen-
te daquele designado como imaterial, pode ensejar o fortalecimento do
espaço público, espaço privilegiado onde múltiplos grupos sociais e suas
manifestações culturais e identitárias podem ser reconhecidos como
representações legítimas da cultura brasileira.
A idéia de referência cultural, além de permitir a ênfase nos laços so-
ciais entre os indivíduos, reforça a possibilidade de formação de grupos
- cantadores, dançarinos, artesãos - e, o que é mais importante, reforça
o diálogo entre diferentes sujeitos e entre diferentes gerações.
O próprio conceito de referência cultural traz em seu âmago a idéia
de que as referências culturais se encontram no bojo de um universo de
significações que é compartilhado, o que permite a coesão e a comuni-
cação entre diferentes sujeitos (Londres - INRC/IPHAN/MINC, 2006).
Em suma, o conceito de referência cultural ressalta o processo de
produção e reprodução de um determinado grupo social, e aponta para
a existência de um universo simbólico compartilhado.
Tal perspectiva pode afastar qualquer "agência" (de modo geral, o
pesquisador) de cair no erro de focalizar sua atenção unicamente nos
resultados produzidos, nos produtos, nos objetos finais ou nos eventos
onde ocorrem as manifestações patrimoniais, o que permite ainda des-
mistificar a noção abstrata de comunidade.
Para que o conceito de referência cultural seja de fato operaciona-
lizável e eficaz, é preciso vinculá-lo indubitavehnerite ao processo de
produção e reprodução social de um grupo específico, ou de uma "co-
munidade real", o que por sua vez traz à tona o conceito de conflito
entre indivíduos e grupos, de suas lutas de poder e, por fim, até mesmo
a discussão sobre desenvolvimento sustentável.

{maRiza vewso} 235


Nesse sentido, mister se faz encorajar pesquisas que relacionem
a designação ou nomeação do património cultural aos conflitos sociais
e políticos presentes em cada paisagem social.
Outro ponto que se impõe à reflexão se refere às possíveis relações
entre património cult~ral e poder local. É preciso indagar de que modo
o património imaterial está sendo apropriado, seja pelo grupo produtor
de tais manifestações culturais, seja pelas elites locais.
Numa curiosa reversão ideológica, o património cultural, normalmen-
te associado à história e à tradição, cada vez mais adquire um valor positi-
vo,justamente no momento "agudo" da modernidade e da globalização.
É muito louvável a valorização e o reconhecimento do património
cultural, ao mesmo tempo ancorado na tradição e considerado índice
de modernidade. Contudo, o perigo reside na apropriação "politiqueira",
patrimonialista, privatista do património cultural, o que consiste em
negar sua característica mais poderosa e fonte de força e legitimidade,
qual seja, o de ser resultado de uma produção coletiva.
Enfatiza-se que a relação entre poder local e património cultural
deve ser cada vez mais pesquisada no Brasil, pois mesmo com o processo
de democratização e modernização da sociedade brasileira o poder local
e sua capacidade de manipulação da tradição, da memória coletiva e da
identidade local não podem jamais ser desprezados.

0 DESAFIO DO FETICHE

Conforme já explicitado, assiste-se na sociedade contemporânea a um


intenso processo de mercantilização da cultura. Nas últimas décadas, in-
crementou-se o consumo cultural de massa, o que por um lado permitiu o
acesso mais igualitário aos equipamentos culturais por parte de diferen-
tes grupos sociais e, por outro lado, "maquiou", ou pelo menos simplificou
ou banalizou, as manifestações culturais com o verniz do consumo.
Conforme já dito, o perigo que se corre é tomar o património ima-
terial apenas pelas suas formas objetivadas, transformadas em objetos
ou produtos.

236 (museus, coLeções e patRimÔmos: naRRatiVas poufômcas}


O que o conceito e mesmo a prática relativa ao patrimônio imaterial
traz de mais fecundo é sua relação visceral com a vida social e cotidiana
dos grupos sociais, que são os sujeitos desse processo porque portado-
res dos conhecimentos, dos saberes, fazeres e da memória dos lugares,
como as rendeiras, doceiras, paneleiras e artesãos em geral.
Sempre que as manifestações do patrimônio imaterial se transformam
em mercadorias, em entretenimento para o consumo, em espetaculariza-
ção, a ênfase é posta no fetiche, o que sobressai é a relação entre coisas, en-
tre mercadorias, e não as relações sociais entre os indivíduos produtores.
É preciso, portanto, não espetacularizar ou coisificar o patrimônio,
seja material ou imaterial, e um dos procedimentos indispensáveis é
não perder de vista o sentido que determinada manifestação cultural
possui para o grupo que a produz.
Nos diversos documentos que o IPHAN produziu sobre o patrimônio
cultural, encontra-se a preocupação com esta temática.
Assim, segundo Arantes (2000):
Nosso primeiro desafio foi tornar viável a identificação e a documentação, dentro
dos temas destacados, de conjuntos de referências ou bens culturais, que fossem sig-
nificativos para grupos sociais específicos. O segundo foi manter a associação desses
bens aos conjuntos (sistemas) e aos contextos que lhe dão sentido. E, finalmente,
evitar a produção de um tipo de registro que congelasse o processo social formador
desses bens, como se eles fossem objeto sem história. (!PHAN, Mine., 2000, p. 24)
O patrimônio cultural possui uma densidade simbólica diferenciada
que deriva sua singularidade por ser o resultado de atividades coletivas
e públicas. No entanto, não se pode esquecer que também o patrimônio
revela e vela valores e interesses, sendo, sobretudo, um campo de lutas.
É nesse sentido que Arantes chama a atenção para o risco de o INRC
ignorar eventuais reflexos provocados pela sua própria ação:
O INRC deverá ter efeitos sobre o processo social e .Político pelo qual se forma,
legitima-se e dá-se publicidade ao patrimônio cultural, com conseqüências para a
formação e a reconfiguração, das identidades dos grupos e categorias sociais envol-
vidas. A reflexividade do inventário poderá, assim, criar impactos sobre estratégias
políticas e de mercado associados ao patrimônio nos meios sociais envolvidos. Essa

{maRIZa vewso} 237


possibilidade coloca um alerta sobre o processo de escolha dos objetos que deverão
ser aí incluídos nos repertórios culturais a serem inventariados e as conseqüências
políticas dessa decisão. (Arantes, INRC. Mine., 2000)
O patrimônio çultural pode ainda ser interpretado como "fato social
total" (Mauss, 1984}, pois é uma arena onde se descortinam diversas di-
mensões, como a simbólica, a política e a econômica.
É por esta mesma razão que é preciso observar o poder econômi-
co e político que hoje possuem os grandes conglomerados de empresas
turísticas e a vinculação que cada vez mais procuram ter com o patri-
mônio. No entanto, eles o consideram simplesmente como um "agrega-
dor de valor", o que gera a tentativa de transformação do patrimônio
em pura mercadoria.
Outra questão impo_rtante em relação ao patrimônio cultural, e já
3. Gentrificação ou antes debatida pelos mais diferentes especialistas, diz respeito ao pro-
gentrification significa
o enobrecimento e a cesso de "gentrificação" (gentrification) 3 e a atual concorrência entre as
renovação de áreas
urbanas degradadas,
cidades, visando o incremento das atividades turísticas.
especialmente os
centros históricos.
Assim como o patrimônio imaterial não deve ser confundido com
a cultura popular, ou folclor~, o processo de gentrificação não neces-
sariamente preserva e qualifica o patrimônio material, e não promove
necessariamente o desenvolvimento
, sustentável ou promove o desen-
volvimento da cidadania (Santana, 2003).
Análises já realizadas em diversos trabalhos acadêmicos indicam
que o processo de gentrificação também expulsa os grupos tradicio-
nais do lugar, dissolve a trama social e simbólica da "comunidade real"
e constrói cenários urbanos adversos à constituição do espaço público
- onde, segundo Hanna Arendt (2004), os mais diferentes sujeitos po-
dem falar e agir em público, isto é, perante outros e, no caso do Brasil,
deve-se acrescentar que no espaço público a diversidade cultural pode
se tornar "visível e dizível" {Foucault, 1972).
Além da indústria do turismo, dos processos de gentrificação, da
mercantilização desenfreada, outros fetiches rondam o patrimônio cul-
tural. Assim, outro fetiche que contamina o campo semântico do patri-
mônio cultural diz respeito ao "colecionismo", o fetiche dos coleciona-

238 {museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas}


dores, que insistem em reter o objeto e transformá-lo em "coisa sagrada"
e privada, sem a possibilidade de acesso e fruição do público.
Igualmente é preciso não reificar a categoria "interpretação do na-
tivo" ou "representação dos nativos". A idéia de representação do nati-
vo é cara à Antropologia, especialmente em sua vertente etnográfica.
No entanto, é preciso, em cada situação específica, situar quem são os
nativos, não só em sua constituição interna, como também qualificar o
"lugar de fala" de cada um.
Mais do que situar sociológica e historicamente aqueles que com-
põem o "grupo dos nativos", é importante, sobremodo, situar tal grupo
em suas conexões externas, isto é, o relacionamento de conflito ou de
consenso perante outros grupos sociais, inclusive com os poderes locais,
estaduais e federais, especi.almente com o IPHAN.
Outro perigo é o fetiche da idéia de comunidade. Conforme Bau-
mann (2001), uma das conseqüências da "modernidade líquida" é a ên-
fase na noção de comunidade, uma vez que a idéia de sociedade como
uma totalidade histórica concreta - idéia cara à "modernidade sólida"
- está em franco declínio.
Baumann cita E. Hobsbawn em suas análises sobre o século XX -
contidas no livro A era dos impérios -, nas quais o autor afirma: "nunca se
falou tanto em comunidade e nunca foi tão difícil encontrar comunida-
des reais" (2001, p. 27).
É comum, no discurso sobre patrimônio imaterial, o estabelecimento
da relação entre as práticas culturais a ele concernentes e a comunidade.
A comunidade, muitas vezes, aparece como uma realidade abstrata,
neutra, mas não se conhece ou se discute sua dinâmica singular. A exis-
tência da comunidade é apenas postulada; no plano discursivo aparece
como uma "comunidade imaginada", numa metáfora com a idéia de na-
ção, onde se pressupõe que os laços sociais entre os indivíduos são sóli-
dos, duradouros e no seio do qual se encontra aconchego e segurança.
Uma das tendências da chamada sociedade pós-industrial, pós-ide-
ológica e pós-política, é tornar um conjunto de idéias como entidades
neutras, autogestadas, anteriores e impermeáveis a qualquer experiên-

{maRiza vewso} 239


cia histórica. Nesse conjunto de idéias se destacam algumas, tais como:
mercado, comunidade, tecnologia, multiculturalismo. Tais idéias são re-
feridas para descrever a ~ociedade contemporânea e, conforme dito, são
tomadas como reC;llidades dadas.
Zizek (1999), filósofo contemporâneo, tem endereçado críticas con-
tundentes à sociedade de consumo e às ideologias do multiculturalismo
e da globalização, como específicas do capitalismo tardio.
Segundo esse autor, "nas condições sociais do capitalismo tardio,
a materialidade mesma do Ciberespaço gera automaticamente a ilusão
de um espaço abstrato, com intercâmbio "livre de fricção", no qual se
apaga a particularidade da posição social dos participantes" (Zizek,
1999, p. 24).
A disseminação das tecnologias da informação, do mercado, do con-
sumo e da mercantilização da cultura ocorrem de modo paralelo à na-
turalização desses conceitos e dessas práticas.
Conforme ainda Zizek, para a disseminação indiscriminada dessas
práticas "é fundamental o apagamento da distinção entre 'cultura' e
'natureza' a contraface da 'naturalização da cultura' (o mercado, a co-
munidade, considerados como organismos vivos, são a 'culturalização
da natureza'), a vida mesma é concebida como um conjunto de dados
que se auto-reproduzem".
Esta naturalização da Internet (World Wide Web), do mercado e da comunidade,
oculta o conjunto de relações de poder (de decisões políticas de condições institucio-
nais que requerem os "organismos" como a Internet, ou o mercado, ou o capitalismo
para prosperar. (1999, p. 32)
Assim, o momento histórico atual requer uma vigilância crítica, se-
vera, a fim de se evitar o fetichismo da comunidade, quando esta é de-
finida como um todo orgânico, fundado no consenso "natural" entre
as partes e no fetiche do mercado, quando este é definido como uma
realidade autônoma e auto-regulada.
Outro ponto que merece reflexão diz respeito ao fato de que o pa-
trimônio cultural exibe um dos paradoxos mais contundentes dos
tempos atuais, uma vez que necessariamente se associa à tradição,

240 {museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas}


à história, à modernidade sólida, e ao mesmo tempo necessita sinto-
nizar-se com a pós-modernidade e, mais do que isso, com a agenda
contemporânea.
Diante das novas engrenagens avassaladoras da sociedade de con-
sumo, que passa seu rolo compressor sobre o relevo da história, e tendo
em vista que as idéias relativas ao patrimônio cultural e às práticas de
preservação são descendentes diretas da modernidade, carregando e
ao mesmo tempo produzindo novas tradições. Dessa forma, torna-se
imperativo problematizar a noção de tradição. Quem a definiu? A par-
tir de que lugar? Com que legitimidade? Como se constituem os proces-
sos de sua transmissão?
Especialmente em relação ao patrimônio imaterial, uma das formas
de evitar as armadilhas do fetichismo, do individualismo e do consu-
mismo é localizar a ênfase nos processos de transmissão da tradição,
dos saberes-fazeres, das rezas, das danças, das práticas alimentares, e
não simplesmente no produto.
Isto porque, apesar de as práticas patrimoniais serem igualmente
apropriadas pela sociedade de consumo, elas possuem valores simbóli-
cos que expressam uma densidade e uma profundidade que lhes permi-
tem transcender a condição de uma mercadoria como outra qualquer.
Tal fato é possível porque as manifestações do patrimônio cultural,
seja material ou imaterial, só fazem sentido quando evidenciam seu
próprio sentido e estão associadas às referências culturais concretas
advindas de um universo simbólico compartilhado coletivamente.
A tradição cultural é fruto de uma tessitura muito complexa, que
os indivíduos tecem a partir de elementos da história, da memória
e do cotidiano.
E, dessa forma, a produção social do patrimônio cultural incide so-
bre a reprodução social dos grupos produtores de tais manifestações, o
que em muitos casos tem gerado desenvolvimento sustentável para os
grupos produtores, como por exemplo para as mulheres produtoras de
panelas de barro no Espírito Santo, as chamadas "paneleiras", que foram
objeto do primeiro registro de patrimônio imaterial.

(maRIZa VeLOSO} 241


O que parece garantir a densidade simbólica do patrimônio cultural
é que ele está ancorado na profundidade das reações sociais que tecem
a armadura das manifestações patrimoniais, como por exemplo as fes-
tas populares, as romarias, as festas juninas, o samba de roda baiano, a
dança da catira em Minas Gerais e Goiás.
O que garante ainda tal singularidade simbólica é que tais manifes-
tações culturais estão enraizadas em um repertório social vivenciado
coletivamente, o que proporciona a atribuição de sentido à vida social
de modo visceral e não apenas artificial.
A atribuição de sentido às práticas culturais permite associar ele-
mentos e acontecimentos da realidade social concreta, permitindo aos
sujeitos sociais construir o próprio sentido da sua identidade social.
No documento diretriz - "Como ler o INRC - Inventário Nacional de
Referência Cultural"- encontra-se definida a idéia de sentido patrimo-
nial como um dos sustentáculos necessários para o registro como patri-
mônio imaterial. Conforme o próprio documento:
O trabalho cultural de construção de sentidos e sobre - significações baseado no

concreto e com elementos do concreto - pois não é inerente à natureza de tais


objetos, práticas e lugares o fato de serem associados à identidade- confere refle-
xivamente a essas realidades o que se poderia chamar de sentido patrimonial, ou
seja, elas passam a integrar um repertório diferenciado de distâncias com que se
constroem as fronteiras simbólicas e com que se configuram as imagens de si e de
outrem. É este o seu valor como ingrediente da construção de identidades, ou seja,
de tradições e de territórios. (IPHAN/MINC, 2003)

CoNcLusÃo

A reflexão aqui proposta se dirigiu à dinâmica cultural contemporâ-


nea, a qual tem experimentado um conjunto vasto de transformações que,
por sua vez, apontam tanto para promissoras alternativas e novas possi-
bilidades de valorização da cultura, quanto para uma brutal reificação e
instrumentalização da cultura, visando ampliar a sociedade de consumo
e, por decorrência, o incremento do desenvolvimento do capitalismo.

24 2 {museus, coLeções e patRim8mos: naRRativas pouf8mcas)


O que se procurou enfatizar é que o patrimônio cultural não pode se
transformar em "consumo para entretenimento" ou em negócio (busi-
ness), ou tão-somente em mercadoria de consumo cultural.
Enfim, o patrimônio cultural não pode reduzir seu valor, seu senti-
do patrimonial, aos objetos produzidos - sejam artefatos ou rituais. Em
suma, é preciso evitar a armadilha do fetiche, a partir da qual se perso-
nalizam relações entre coisas e se naturalizam relações sociais.
Concluindo, pode-se afirmar que a riqueza do patrimônio cultural
consiste em seu poder de reforçar a idéia de pertencimento ao todo
coletivo, e de reforçar a identidade social dos mais diferentes grupos,
trazendo para o espaço público múltiplas manifestações culturais,
afastando, assim, com a força simbólica de sua constituição, todos os
fetiches e simulacros.

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{maRiza vewso} 245


as estRatéGias IndíGenas de
ResGate do "patRim8nio
cuLtuRaL". tocaL como meio de
ReconHecimento poLÍtico: uma
RefLexão soBRe o Impacto das
pesquisas nas teRRas IndíGenas
Filippo Lenzi Grillini

1. Lenzi Grillini, 2006,


NVivere nella FunaiH,
La demarcazione
e sta comunicação é fruto de várias experiências de pesqui-
sa desenvolvidas no Brasil entre os anos 2000 e 2004, e em
particular das atividades de estudo relativas à minha tese de doutorado
defendida em Siena na Itália. 1
dei/e Terre lndigene in
Brasile e i/ ruo/o degli
Minhas experiências de pesquisas se desenvolveram no norte do es-
antropologi: ii caso
Xacriabá, ("Morar na
tado de Minas Gerais, no Brasil centro-oriental, e tiveram como objeto
Funai", A demarcãà principal de estudo os índios "misturados" que moram principalmente
das Terras lndigenas
no Brasil e o papel dos naquela região e no Nordeste do país.
Antropologos: o caso
Xacriabá), Universida- O povo indígena, objeto privilegiado da minha pesquisa de campo,
de de Siena, Siena.
são os xacriabá.
É preciso salientar que o termo "misturados", que utilizei para defi-
nir estes povos indígenas caracterizados pelo alto nível de mistura ét-
nica, é um termo já utilizado por João Pacheco de Oliveira (1999a). A de-
finição originariamente era utilizada pelos administradores coloniais
das regiões do Nordeste do País.
Esses povos são também definidos como "emergentes" ou "ressurgi-
dos", para salientar os processos de emergência étnica dos quais foram
protagonistas nos últimos cinqüenta anos. De fato, em 1950, os povos in-

246 {museus, coLeções e patRrmÔmos: naRRativas poufômcas}


dígenas oficialmente reconhecidos não passavam de dez; quarenta anos
depois, essa lista chegava a 23 grupos (Oliveira, 1999a, p. 13). Porém os ín-
dios mesmos preferem utilizar o termo "resistentes" para salientar sua
resistência às ameaças contínuas da sociedade, ameaças que terminam
com descaracterização total da organização social e cultural, em favor
de uma completa assimilação pela sociedade envolvente.
O povo indígena xacriabá mora em duas terras indígenas no norte
de Minas Gerais, perto da divisa com o estado de Bahia. O grupo, que
hoje consta de 7.000 índios, passou por um longo e difícil processo an-
tes de ter as terras demarcadas e oficialmente homologadas pelo Go-
verno Federal brasileiro. Ao longo desse processo, como ainda hoje, por
outros motivos, os índios redescobriram e resgataram alguns traços
culturais diferenciais do grupo.
Entre os anos 1960 e 1980, durante o processo pela demarcação das
terras (que aconteceu somente em 1988, depois da morte de três índios
assassinados por fazendeiros locais), muitos foram os questionamentos
feitos pelos brancos a respeito da identidade indígena das pessoas que
a estavam revindicando. Provavelmente a atitude fortemente cultura-
lista desses brancos (em particular funcionários da FUNAI e antropó-
logos enviados à região pelo mesmo órgão) se deva ao fato de as breves
pesquisas que foram desenvolvidas sobre os índios terem tido como
principal enfoque sobretudo danças, rituais, práticas religiosas e cos-
tumes, considerados como típicos e diferenciais em relação ao mundo
dos brancos e à sociedade envolvente.
Assim, os índios assim compreenderam que era necessário dar maior
visibilidade a alguns traços culturais diacríticos, ou seja, diferenciais.
Na tese de mestrado de Ana Flavia Moreira Santos (1997), primeiro
trabalho de pesquisa sobre a comunidade xacriabá, a antropóloga salien-
ta que desde o momento em que os funcionários da.FUNAI começaram a
indagar mais intensamente sobre o grupo, o cacique xacriabá começou
a deixar crescer os cabelos e foi reapresentada, em público, uma dança
que faz parte do "toré", um conjunto ritual associado ao uso do tabaco
e à ingestão da infusão de entrecasca de jurema (Mimosa Nígra), do qual

{fiLlppo Lenzi GRILLini} 247


participam muitos povos indígenas do Nordeste. Os índios começaram
a dançar o toré em todas as ocasiões públicas em que brancos externos
ao grupo estava:m presentes. Portanto, pode-se afirmar que essas re-
descobertas no âmbito cultural são fruto de um processo político cuja
finalidade era a dar visibilidade à diferença étnica do grupo. No plano
analítico, o "toré" pode ser interpretado como um ritual caracterizado
por uma clara conotação política, que é ativado "em todas as ocasiões
nas quais é necessário demarcar as fronteiras entre 'índios' e 'brancos"'
(Oliveira, 1999a, p. 26).
O toré, em algumas ocasiões, chegou a ser considerado o traço dia-
crítico marcante da identidade indígena dos povos do Nordeste; tanto
que, no passado, alguns grupos foram reconhecidos oficialmente so-
mente depois de terem dançado o toré na frente dos funcionários da
FUNAI (Barbosa, 2004; Grünewald, 2004).
Observando e analisando as metodologias de ação e as políticas de-
senvolvidas pelos funcionários da FUNAI e pelos administradores e polí-
ticos brasileiros, parece claro que em todas essas ações é forte a influência
de uma postura teórica segundo a qual as fronteiras étnicas coincidem
com as diferenças culturais. Mas é importante salientar que os antropó-
logos, já desde os últimos anos da década de 1960, começaram a propor
teorias que se posicionam de maneira completamente diferente a res-
peito da relação entre cultura e etnia. A contribuição teórica oferecida
por Frederick Barth (1969) é particularmente importante. O antropólogo
norueguês esclarece como as diferenças culturais não são nem a causa
do nascimento das fronteiras étnicas, nem uma característica primária
destas, mas, ao contrário, são resultado da emergência de identidades
étnicas diferenciadas. Conforme o pensamento de Barth, a manutenção
das fronteiras entre os grupos étnicos não depende da permanência de
uma cultura comun no interior da comunidade. O fundamental para ele,
nos processos de emergência étnica e na manutenção das fronteiras, são
essencialmente os elementos e as dinâmicas de origem social.
Os estudos de Barth sobre a etnicidade e suas críticas contundentes
à concepção tradicional que concebia o grupo étnico como unidade cul-

248 {museus, coteções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas}


tural distinta ofereceram uma contribuição fundamentai para a análise
dos processos de etnogênese.
Abner Cohen (1974) leva esse discurso "anticulturalista" ainda mais
longe, evidenciando as motivações políticas e instrumentais que estão
por trás da emergência dos grupos étnicos. Estes últimos são analisa-
dos por ele como "grupos de interesse" que escolhem a "estrada" étnica
para alcançar objetivos políticos.
Embora, no interior do debate antropológico relativo à "etnicidade",
estas posições teóricas fossem extremamente conhecidas, na prática, os
responsáveis pela realização das políticas indigenistas nacionais conti-
nuaram levando em consideração somente os traços culturais suposta-
mente diferenciais para definir e individualizar um grupo indígena.
Assim, os próprios índios, como resposta às pesquisas e investiga-
ções dos brancos que tiveram como alvo e objeto específicos todos os
indicadores mais visíveis da diferença cultural entre índios e brancos,
começaram a utilizar e a reinterpretar essas mesmas lógicas.
Impõe-se, assim, a idéia de que somente é tipicamente indígena o
que é essencialmente "diacrítico", ou seja, diferencial em contraposição
à sociedade envolvente.
O conceito-base era de que a cultura indígena, enquanto "pré-co-
lombiana", tem de ser necessariamente diferente daquela da sociedade
nacional.
Sem dúvida é preciso refletir sobre o conceito de "cultura" e sobre
como ele vem sendo interpretado pelos atores sociais.
Aqui é forte a influência da idéia de cultura essencialmente "evolu-
cionista", "classificatória" e "etnocêntrica", uma idéia compartilhada no
interior da FUNAI e difundida pela mídia. Conforme Pacheco de Olivei-
ra (1985, p. 27) essa idéia de cultura é a mesma com a qual foi pensado e
escrito o Estatuto do Índio, ainda hoje a lei mais importante na jurispru-
dência brasileira em relação aos povos indígenas.
Hoje, os xacriabá, quando falam de cultura, se referem exclusiva-
mente aos âmbitos principais das esferas religiosas, às danças, aos ri-
tuais e aos costumes (como, por exemplo, a maneira de vestir ou a culi-

{flLippO LenzJ GRILLilll} 249


nária). Dificilmente, ao falar da cultura do seu povo, um índio xacriabá
se refere às esferas sociais ou políticas (como, por exemplo, divisões dos
papéis de gênero no interior da família, estratégias tradicionais de re-
solução dos conflitos, organização política). Talvez, uma razão para essa
exclusão seja o fato de que estas últimas são mais difíceis de serem exi-
bidas e apresentadas em público.
Em todas as situações analisadas, a cultura parece ser considerada
pelos índios como algo bem definido e afastado em relação a todas as
dinâmicas da sociedade xacriabá como um todo.
Esta interpretação do conceito de cultura compartilhada pelos xa-
criabá parece evocar um conceito ainda mais redutivo do que a famosa
definição de Tylor (1920, p. 1): "o complexo que inclui conhecimento,
crenças, arte, morais, leis, costumes e outras aptidões e hábitos ad-
quiridos pelo homem como membro da sociedade". Esta também, em-
bora tenha se tornado célebre, talvez por ter sido uma das primeiras
tentativas de definir o conceito, sem dúvida não é das definições mais
abrangentes. Ao contrário, foi muito criticada como definição e supe-
rada por outras mais comprensivas.
Quando os xacriabá se referem à cultura, limitando-se a indicar um
conjunto de práticas reconhecidas como "tradicionais", parecem estar
em sintonia com um conceito de cultura ainda mais redutivo do que
aquele formulado por Tylor.
No passado, mostrar e dar visibilidade a todos esses tratos cultu-
rais teve essencialmente uma função política, na luta dos índios pelo
reconhecimento e pela demarcação da terra indígena. Hoje também os
fins são prevalentemente políticos, mas são essencialmente funcionais
a outras revindicações (ter acesso a projetas e programas de desenvolvi-
mento de organizações estaduais ou não governamentais e defender os
próprios direitos jurídicos e de cidadania).
Há que se lembrar também que a Constituição de 1988 decreta
que: "Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza
material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, por-
tadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes

250 (museus, coLeções e patRimÔnws: naRRativas poufômcas}


grupos formadores da sociedade brasileira" (Título VIII, Capítulo 3,
Seção II, art.216).
Assim, a jurisdição brasileira reconhece oficialmente um vínculo
entre patrimônio cultural e grupos sociais (indígenas, quilombolas e
outros) e garante que "o poder público, com a colaboração da comuni-
dade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio
de inventários, registras, vigilância, tombamento e desapropriação, e de
outras formas de acautelamento e preservação" (Título VIII, Capítulo 3,
Seção II, art.216, § P).
Assim, em um contexto político nacional e internacional que favorece
a proteção e a defesa do patrimônio cultural, sobretudo dos grupos des-
favorecidos, os índios se ativam e atuam na obra de resgate e valorização
do que durante muitos anos foi discriminado pela sociedade envolvente.
Ressalte-se que hoje em dia os índios não precisam mais dissimular
traços e características da sua organização social e da sua cultura. Em
particular os grupos que vivem e viveram em situações de contato com
os brancos, hoje reafirmam com grande decisão suas diferenças étnicas.
Essa reafirmação do patrimônio cultural e, de forma mais geral, da
cultura indígena, tem também uma clara função política, que se explica
em vários níveis: talvez o primeiro deles seja a ostentação de uma dife-
rença cultural como tentativa de se fazer aceitar como grupo diferencia-
do, sem ter de esconder a própria diversidade. Os outros níveis incluem a
reafirmação da própria identidade étnica e a reconquista de um posição
política que lhes permita ser respeitados no interior dos processos de
negociações com o Estado e governo na luta por seu próprios direitos.
Nesse processo, todo o poder do imaginário culturarista e dos bran-
cos (pesquisadores, jornalistas, administradores, funcionários da FU-
NAI) tem um papel imRortante.
É necessário lembrar que muitos jovens xacriabá, por ocasião do
"Magistério Indígena", curso de formação para professores indígenas
incluído no Programa de Implantação das Escolas Indígenas de Minas
Gerais (PIEI), ativado desde 1996 e destinado a todos os povos indígenas
do estado de Minas Gerais, tiveram muitos contatos com outros índios.

{fiLippO Lenz i GRILLinl) 251


É interessante salientar que muitos xacriabá, ao escrever os memoriais
finais com as impressões e avaliações sobre a experiência vivenciada
durante o curso, salientaram e descreveram com admiração todos os
traços culturais e as tradições do povo indígena maxakalí (também in-
cluído no programa educativo).
Os maxakalí compartilham uma língua tradicional (diferentemente
dos xacriabá), têm cabelos compridos e apresentam características fisio-
nômicas tipicamente indígenas.
Os xacriabá falavam Gom admiração dos maxakalí:
"Gostei de conhecer os outros (ndios, e entre eles os mais interessantes foram os maxakal(,
que têm uma cultura completa, não como os xacriabá que por causa dos não (ndios perderam
muito da sua cultura". (Depoimento de um professor xacriabá, Relato Sobre o Curso
Indígena, Parque do Rio Doce, memorial, 1999).
Através de um processo de imitação e reinterpretação, os xacriabá
redescobriram ou reinventaram nos últimos anos alguns traços cultu-
rais que eles mesmos consideram "tipicamente indígenas". Assim, mui-
tos jovens começaram a usar brincos feitos de osso de boi ou pulseiras
feitas de peças da carapaça de tatu, ou ainda cocares cheios de plumas
multicores, embora nem seus pais nem seus avós os tivessem utilizado.
Muitos jovens aprenderam esses usos nas reuniões políticas dos povos
indígenas e nos encontros com outros índios, organizados no âmbito do
Projeto Estadual de Educação Indígena. Estas são ocasiões de trocar ex-
periências e de conhecer o 'jeito de ser indígena" dos outros povos.
A pesquisa de campo nas terras indígenas do grupo forneceu mui-
tos outros dados e exemplos etnográficos, que salientam o processo
de exibição de características diacríticas supostamente indígenas. Por
exemplo, hoje em dia, os xacriabá, em todas as ocasiões de encontros
com instituições não indígenas, representam danças derivadas do ri-
tual do "toré". Isso não acontece somente na ocasião do "Dia do Índio",
quando a maioria dos xacriabá, com os corpos pintados com uma tinta
extraída do jenipapo, participam das celebrações na frente de jornalis-
tas e autoridades, mas também em muitas outras ocasiões. Por exem-
plo, se eles começam um programa de parceria com uma universidade

252 {museus, coLeções e patRJmÔmos: naRRativas poufômcas}


brasileira, no dia do encontro com reitores e pró-reitores (à diferença
do que acontecia no passado), ao chegarem na universidade, eles tiram
as camisetas, pegam as maracas, as vezes vestem cocares, e começam
a dançar e cantar.
As letras das canções são às vezes em português, às vezes na língua
xacriabá, que faz parte originariamente do tronco linguístico macro-jê,
família Jê. Esta língua não é falada na realidade, mas um jovem profes-
sor está redescobrindo algumas palavras através de diálogos e troca de
informações com alguns idosos da reserva, e através dos sonhos.
Sobre o uso da língua ou, na verdade, de algumas palavras de uma
suposta língua tradicional, é preciso prestar atenção. Só alguns xacria-
bá, na maioria jovens, conhecem estas palavras que são usadas princi-
palmente nas canções durante as danças, tendo assim, ainda uma vez,
uma função política, em todas as ocasiões nas quais é necessário demar-
car as fronteiras entre índios e brancos (Oliveira, 1999a, p. 26).
Mas além dessa função, que pode ser explicada também pelo con-
ceito "para ser verdadeiros índios, é preciso ter uma língua indígena",
o uso dessa língua tem outro significado importante para os xacriabá.
Alguns dos meus entrevistados que conhecem várias palavras da lín-
gua, salientavam a importância de ter um idioma indígena, para com-
partilhar um código secreto pelo qual dialogar entre se, sem que os
brancos possam entender.
Essa vontade e necessidade de defesa contra os representantes da so-
ciedade envolvente remonta ao período de luta pela terra, etapa funda-
mental e dramática da história xacriabá, quando os fazendeiros locais
mataram três índios.
O mesmo "toré" é um ritual secreto em que os índios, em "terrei-
ros" escondidos no interior da reserva, dançam, tomam a infusão de
jurema, mas sobretudo entram em contato com a entidade protetora
do povo xacriabá: a "onça cabocla" - uma onça que às vezes assume o
aspecto de uma moça chamada "Yayá". Na ocasião do ritual do toré,
alguns xacriabá entram em contato com a "onça cabocla". Conforme as
narrativas dos índios, "Yayá" tem uma função simbólica de conselheira

{f1uppo Lenzi GRILLini} 253


comunitária, que oferece ajuda sobretudo nas situações e ocasiões em
que os xacriabá se sentem ameaçados pelos fazendeiros.
Mas, como vimos antes, em ocasiões públicas, fora do ritual secre-
to, algumas partes da dança do "toré" são representadas na frente
dos brancos.
Assim como acontece em relação à língua indígena, existe uma con-
tínua tentativa de balanceamento e de busca de um equilíbrio entre o
lado secreto dos rituais e as partes a serem exibidas e apresentadas na
frente dos "não índios".
Entre o grupo indígena, esses assuntos são ao centro dos debates
comunitários, onde se enfrentam os defensores dos segredos e outros
índios favoráveis a uma abertura maior.
É preciso salientar que as duas estratégias opostas (apresentar as
características diferenciais da cultura para serem reconhecidos na pró-
pria diferença sociocultural, ou esconder os próprios segredos pois re-
presentam armas estratégicas fundamentais contra os brancos) têm em
comum o fato de serem ambas conotáveis como políticas.
Com certeza, nos últimos anos, no contexto indígena (e não só neste),
a importância de dar visibilidade às diferenças culturais cresceu nota-
velmente. De fato, a FUNAI perdeu muita influência, ficando responsável
somente pela questão fundiária, e não pelas políticas educativas e sanitá-
rias nas reservas indígenas, como acontecia no passado. Com a perda da
influência do órgão tutelar federal, muitos projetas nas terras indígenas
são financiados e promovidos hoje em dia por ONGs brasileiras ou inter-
nacionais. Estas organizações não têm mecanismos de financiamento fi-
xos como os estaduais, mas dependem de lógicas diferentes.
Bruce Albert (1997, p. 198), em um ensaio dedicado aos movimentos
indígenas ati vos na Amazônia Brasileira, define "cota identitária" como o
grau de suposta "tradicionalidade" de cada grupo indígena, segundo o
imaginário culturalista e ecologista dos financiadores dos projetas.
Esses preconceitos e estereótipos relativos a uma suposta tradicio-
nalidade tendem a premiar os povos amazônicos que moram em con-
dições de relativo isolamento, em comparação com os grupos do Nor-

254 {museus, coLeções e patRim8mos: naRRatiVas pouf8mcas)


deste, que têm uma experiência de séculos de contato com os brancos
e que, por isso, historicamente foram definidos pelos administradores
regionais como "misturados". Os primeiros não só moram no grande
"pulmão verde" do mundo, como também parecem mais "tradicionais",
apresentando um número maior de indicadores culturais de diferencia-
ção; assim, para eles é mais fácil obter financiamentos oferecidos pelos
financiadores residentes nas metrópoles brasileiras, européias ou nor-
te-americanas, pois têm uma quantidade maior de traços culturais dife-
renciais em relação à população envolvente.
A esse processo os índios não assistem como espectadores passivos,
mas se mobilizam para ter a visibilidade necessária para obter financia-
mentos úteis para realizar projetes de desenvolvimento e ter garantidos
os próprios direitos constitucionais. Os representantes das comunida-
des indígenas, (não só os xacriabá) hoje em dia, sabem muito bem que é
muito mais fácil ter direito não só a financiamentos para projetes de de-
senvolvimento sustentável, mas também obter o respeito dos próprios
direitos constitucionais se nos folders das ONGs ou nas exposições foto-
gráficas forem mostradas fotos de índios com cabelos compridos, corpos
pintados e grandes cocares na cabeça.
À luz desse processo de busca de visibilidade e de exibição de dife-
renças culturais difundido no mundo todo, e não apenas no contexto in-
dígena, é preciso refletir sobre a influência que os pesquisadores podem
ter em relação a essas dinâmicas. Hoje em dia é necessário compreender
o poder e a influência que os pesquisadores (bem como os operadores
das ONGs e os jornalistas autores de reportagens sobre o contexto indí-
gena) têm nas dinâmicas relativas à promoção de traços culturais con-
sideráveis tradicionais.
É preciso refletir sobre o alvo do nosso olhar: concentrar a atenção
na dança do toré ou em uma procissão ou romaria càtólica tem um peso
diferente para as comunidades, assim como focalizar a as pinturas cor-
porais (que a maioria dos xacriabá fazem desde os três anos de idade),
em vez da arte da improvisação poética (repentismo) tem também con-
seqüências e efeitos político-culturais diferentes.

{fiuppo Lenzi GRILLim) 255


Os índios observam para onde o antropólogo dirige a sua atenção e
agem para se fazer reconhecer como tais.
É importante lembr.ar que não é possível nem correto analiticamen-
te desconhecer que os índios têm o direito de querer resgatar e promo-
ver alguns de seus tràços culturais, bem como reconhecer nesse proces-
so a criatividade vital dos povos indígenas que, com um orgulho sem-
pre maior, se afirmam como comunidades que compartilham projetas
identitários comuns e não aceitam ser considerados descendentes ou
remanescentes indígenas, mas se sentem índios depois de séculos sen-
do obrigados a negar, a esconder ou esquecer a própria ancestralidade
nativa. Assim, os índios "misturados" recriam continuamente a própria
comunidade e a própria identidade étnica.
No processo como um todo, algumas escolhas importantes são
efetuadas: as principais concernem ao âmbito do patrimônio cultu-
ral. Seleções que tendem a rejeitar todos os traços e manifestações
culturais que não são exclusivamente indígenas (como o repentismo
ou as procissões católicas difusas em muitas regiões do Brasil), apesar
de essas práticas serem fortemente difundidas no interior da comuni-
dade indígena.
Assim as escolhas serão sobre todos os traços culturais diferenciais,
2. Pode ser interes- porque estes e apenas estes representam as supostas características ti-
sante citar um breve
exemplo relativo à picamente indígenas. Partindo de uma simples reflexão (o repentismo
pesquisa de campo:
durante a festa de
não é considerado uma manifestação cultural tipicamente indígena,
Santa Cruz, um
e o catolicismo é difundido no Brasil todo), os xacriabá não valorizam
importante ritual
católico organizado o repentismo ou alguns deles chegam ao ponto de se envergonhar de
todo ano nas terras
indigenas xacriabá, participar de romarias católicas tradicionais. 2 Mas a religião católica é
um professor indlgena
me confidenciou que,
majoritária na comunidade indígena, e a religiosidade católica é parte
na opinião dele, estas
festas não são con-
integrante da cultura e da organização social xacriabá.
sideráveis indígenas, Nesse processo, tem um papel importante o peso da influência de
porqua a "verdadeira"
religião dos lndios é uma imagem exótica do índio, ainda enraizada no imaginário ocidental,
uma outra.
segundo a qual o indígena eaquele "indivíduo nu que apenas lê o grande
livro da natureza, que se deloca livremente pela floresta e carrega consi-
go marcas de uma cultura exótica e rudimentar, que remete à origem da

256 (museus, coLeções e patRim8mos: naRRativas pouf8mcasl


história da humanidade", de acordo com a descrição desse estereótipo
feita por Pacheco de Oliveira (1999b, p. 174).
Por fim, recordamos que Bourdieu (1977) salientava o processo pelo
qual os grupos que são objeto de preconceitos freqüentemente os interio-
rizam. À luz das dinâmicas ativas neste contexto sociocultural, os antro-
pólogos têm de levar em consideração duas problemáticas acima de tudo.
Primeiramente, ao realizar pesquisas em terras indígenas, é preciso
ter o maior cuidado em não fortalecer os preconceitos ou estereótipos
culturalistas, sobretudo aqueles que contribuem para a cristalização da
imagem exótica do índio "genérico". Tendo esse cuidado, e com consciên-
cia da responsabilidade política que as pesquisas em contexto indígena
implicam, é preciso focar a atenção nos vários processos e dinâmicas ati-
vos na comunidade indígena, observando por exemplo as diferentes pos-
turas de jovens e idosos a respeito do resgate cultural. De fato, o processo
de reconstrução identitária e cultural tem várias fases históricas e muda
ao passar das gerações. Tomando sempre em consideração o quanto hoje
é importante para os xacriabá buscar estratégias de resgate cultural que
visem alcançar o respeito de seus próprios direitos constitucionais, é
preciso ouvir aprofundadamente todas as vozes presentes nos contex-
tos indígenas. Existem de fato narrativas polifônicas a respeito desse
"discurso identitário": índios que recusam a idéia de se conformar às
imagens exóticas e estereotipadas, indígenas que ressaltam várias ma-
nifestações e traços culturais para fins políticos e, outros ainda, que es-
tão redescobrindo e tentando resgatar um patrimônio cultural que por
muitos anos foram forçados a esquecer ou esconder. Todas essas vozes
têm de ser escutadas, e os pesquisadores que trabalham em um contexto
indígena têm a responsabilidade de dar visibilidade a todas elas.
O segundo desafio, mais ambicioso, aos antropólogos, consiste em
assumir a responsabilidade de difundir fora da academia conceitos cen-
trais para as disciplinas e fundamentais para .fornecer contribuições
úteis a quem desenvolve as políticas indigenistas brasileiras. Assim, o
conceito de que as fronteiras étnicas não são identificáveis apenas por
meio de uma lista de traços culturais diferenciais já bastante conhecido

{fiLippo Lenzi GRILLini} 257


no interior da comunidade antropológica poderá se afirmar definitiva-
mente também no âmbito da mídia, da política indigenista brasileira e
da opinião pública em geral.
O desafio é muito difícil e reflete, por exemplo, sobre todas as difi-
culdades que os antropólogos encontram na interação com o sistema
jurídico-administrativo, como salientou, por exemplo, Clifford (1988)
em seu famoso ensaio sobre os mashpee. Todavia, a autoridade intelec-
tual que a Antropologia tem no Brasil e o compromisso social mantido
através do tempo ao lado dos povos indígenas podem abrir perspetivas
de esperança no sentido de mudar a opinião pública sobre questões cen-
trais para a Antropologia. Tais questões, relativas à definição de cultura
e etnia, fazem parte das temáticas a respeito das quais os antropólogos
são considerados os maiores especialistas. Já o fato que o Senado Fede-
ral brasileiro, em junho 2002, ter aprovado o texto da Convenção 169 da
OIT (Organização Internacional do Trabalho) representa um importante
sinal positivo. Nesse texto, decreta-se que: "A consciência de identidade
indígena dos povos tribais deverá ser considerada como critério funda-
mental para determinar os grupos a que se aplicam as disposições da
presente Convenção" (Convenção 169, aprovada pela OIT em 7 de junho
de 1989, Parte 1, artigo 1). Com a aprovação desse texto, a lei brasileira
de fato reconhece o pertencimento dos indivíduos aos povos indígenas
baseando-se e confiando somente na auto-identificação indígena.
Assim, desde junho 2002, com a aprovação da Convenção, acaba a
prática dos "laudos de reconhecimento étnico" cujo objetivo era definir
a identidade étnica dos grupos indígenas.
A adoção legal do princípio da auto-identificação desqualifica qual-
quer acusação em torno da simulação de etnicidade, fazendo recair
sobre o próprio grupo a eleição dos critérios e das pessoas que lhe cor-
respondem. A influência das contribuições teóricas de Barth na ado-
ção deste principio é importante: o antropólogo norueguês foi um dos
primeiros a salientar a importância da self-ascription, a auto-identifica-
ção, na análise da etnicidade. Sem dúvida, no estudo dos processos de
etnogênese as categorias lógicas, as percepsões e definições interna#'

zss {museus, coteções e patRim8mos: naRRativas pouf8mcas}


aos grupos são extremamente importantes do ponto de vista analítico, 3. Para citar um
exemplo: na opinião
eurístico e político. Julgar as identidades étnicas e as étnias apenas de Cohen (1974),
a comunidade dos
pelo exterior não permite conhecer em profundidade as dinâmicas e "brokers", de Lon-
dres, poderia ser
os processos étnicos. 3 considerada como
Estas premissas permitem esperar que muitos preconceitos e estere- um grupo étnico. Os
"brokers" da "city"
ótipos ainda difundidos sejam subtituídos por um conhecimento verda- londrina de fato se
conhecem entre si,
deiro do mundo indígena contemporâneo. compartilham a mes·
ma gíria e o mesmo
No caso de estudo analisado, por exemplo, é preciso salientar que os sotaque. respeitam

xacriabá têm uma história de mestiçagem que é própria desse povo e as mesmas regras
sociais e padrões
dotada de características únicas. Não faz sentido, nem é correto esque- de comportamento
simbólicos. Todavia, o
cer e cancelar essa história. A mestiçagem é, sem dúvida, uma caracte- que é criticável nesse
interessante exemplo
rística central do caminho percorrido pela maioria dos povos indígenas citado por Cohen é
que a essa comuni·
do Nordeste, caracterizados por muitos anos de contato com a socie- dade falta um fator
dade envolvente. Mas é evidente que cada grupo, de maneira única e essencial para ser
considerada "étnica":
particular, reinterpretou e reinterpreta a mistura, criando e recriando a reivindicação de
uma identidade étni-
com orgulho a própria identidade sociocultural e étnica. Somente se os ca, a self-ascription
ressaltada por Barth
índios tiverem a liberdade de recriar essa identidade sem ter por obri- (1969)

gaçãô apresentar todas as características típicas da "imagem do índio


genérico" será possível chegar a uma forma de verdadeiro diálogo entre
índios e sociedade envolvente. Um diálogo que tenha bases sólidas acer-
ca do respeito às diferenças recíprocas.
Hoje, os xacriabá e, em particular, as crianças que moram nas terras
indígenas começam a se definir não mais somente como "índios", mas
como "xacriabá", diferentemente do que acontecia na geração de seus
pais. Este é sem dúvida um pequeno sinal do quanto está presente no
interior da comunidade indígena um sentimento identitário caracteri-
zado pela unicidade da história desse povo, refletindo sobretudo no fato
de que os avós dessas crianças tiveram grandes dificuldades em se defi-
nir como índios diante dos brancos.
Mas é sobretudo fora das reservas, na mídia, no mundo político e
intelectual, que tem de se impor o conceito de que os índios de hoje não
têm de apresentar e mostrar necessariamente todas as características
de uma "indianidade típica e estereotipada".

{f1uppo Lenzi GRILLim} 259


Se isso não acontecer, o risco maior será o de se chegar à homologa-
ção dessa imagem do "índio genérico"; uma imagem que empobrece a
complexidade, a variedade e a riqueza oferecidas por cada povo indíge-
na e que conforma a um único padrão o seu patrimônio cultural.

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(fruppo Lenzr GRILLmr} 261


antRopoLOGia e museus:
ReVItaLIZando O diáLOGO
José do NascimentoJupíor

rimeiramente quero agradecer a possibilidade de parti-


cipar de uma mesa-redonda para reflexão sobre o tema
"Antropologia e museus: revitalizando o diálogo" no âm-
bito da 25 1 • Reunião Brasileira de Antropologia, organizada pela Associa-
ção Brasileira de Antropologia (ABA). Com essa participação, acendo em
mim a memória de um outro momento, retorno a uma antiga relação.
A última vez, até onde me lembro de ter participado de uma discussão
como essa num fórum tão especializado como esse, foi na 22 1 • Reunião
da ABA, em 2000, na cidade de Brasília. Na ocasião, foram convidados e
participaram da mesa de debates José Carlos Levinho, diretor do Mu-
seu do índio /Funai; Luiz Fernando Dias Duarte, então diretor do Museu
Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro; Paula Monteiro, en-
tão diretora do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de
São Paulo; Lúcia Hussak Van Velthem, pesquisadora do Museu Paraense
Emílio Goeldi; e Cornélia Eckert, professora da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul. A mesa foi coordenada por mim, que à época dirigia o
Museu Antropológico do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre.
Não é demais lembrar que o tema daquele Fórum foi "Os Museus etno-
gráficos no contexto da Antropologia contemporânea" e sua finalidade
foi debater o papel atual dos museus etnográficos como espaços de pes-
quisa, formação e difusão de conhecimentos antropológicos, compreen-
dendo-os como lugares realizadores de um "inventário das diferenças",
colocando em pauta a reflexão da espetacularidade, da imaginação,

262 {museus, coteções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas}


da tradução cultural e da ampliação dos horizontes de entendimento
e comunicação. Nesta direção, valia pensar a relativização dos saberes
técnicos e o reconhecimento da autonomia que os diferentes públicos
têm na reinterpretação daquilo que o museu comunica. Pretendia-se,
ao estabelecer esse foco de análise, possibilitar o intercâmbio entre as
diferentes instituições museológicas na área da Etnografia/Antropolo-
gia e contribuir para a reflexão sobre os papéis dessas instituições no
contexto da Antropologia contemporânea.
Para além disso, aquela mesa significava também mais uma tentati-
va de reposicionamento do tema dos museus no âmbito das reuniões da
Associação Brasileira de Antropologia, tema esse que após a institucio-
nalização da Antropologia nas universidades passou a ser bastante peri-
férico. A Antropologia no Brasil, como se sabe, nasceu nos museus. Com
a criação e o desenvolvimento das universidades, a relação das ciências
sociais com os museus ficou, no mínimo, secundarizada. Um movimen-
to de reaproximação pode ser percebido, como indica José Reginaldo
Santos Gonçalves (1995), depois dos anos 80 do século XX.
A relação estreita entre museus e Antropologia foi apontada por Li-
lia M. Schwarcz (1993), ao examinar o que denomina "era dos museus"
no Brasil, que se estenderia dos anos 70 do século XIX até os anos 30 do
século XX. Nesse largo período, segundo a autora, museus como o Na-
cional, o Paulista e o Paraense Emílio Goeldi, teriam desenvolvido uma
expressiva produção de conhecimento no campo da etnografia, a partir
do paradigma classificatório e evolucionista das ciências naturais.
Registre-se de passagem que o Museu Nacional da Quinta da Boa Vista,
um dos museus estudados por Li lia M. Schwarcz, completou, em junho de
2006, 188 anos de existência ininterrupta, enquanto a Universidade Federal
do Rio de janeiro, onde hoje está abrigado, completará 70 anos em 2007.

A MEMÓRIA E OS OBJETOS DA MEMÓRIA

A memória e o esquecimento são indissociáveis. Esse par sempre esteve


no centro das preocupações dos seres humanos, quer como capacidade {ou

{José do nascimento JUmOR) 263


incapacidade) de o indivíduo absorver, reter, lembrar; quer como prática
social de salvaguardar (ou descartar) por intermédio de uma instituição.
Ao acionar a memória que nos remete ao tema somos levados à obra
Confissões, onde Santo Agostinho (1973, p. 200) escreve:
Chego aos campos e vastos palácios da memória, onde estão tesouros de inumeráveis
imagens trazidas por percepções de toda espécie. Aí está também escondido tudo
o que pensamos, quer aumentando quer diminuindo ou até variando de qualquer
modo os objetos que os sentidos atingiram. Enfim jaz aí tudo o que se lhes entregou
e depôs, se é que o esquecimento ainda o não absorveu e sepultou.
A memória está vinculada à nossa consciência da existência de tem-
po e espaço- passado, presente e futuro-, onde criamos identidades e
referências e nos situamos no mundo; é ela que nos possibilita o exercí-
cio individual e coletivo do sentimento de pertencimento. Ao falarmos
em memória, estamos falando também em afetos, sensações, percep-
ções e experiências.
O acesso a essa memória das memórias leva-nos também ao que Hi-
pócrates, para alguns o pai da Medicina, dizia: "A vida é breve, a arte é
longa, a ocasião é fugidia, a experiência é traidora e o julgamento é difí-
cil". Com esse aforismo, ele registra o significado da experiência prática
ao longo do tempo. Um tempo relativo, uma vez que a vida é breve e a
arte da medicina exige longo tempo de aprendizado; um aprendizado
que nem sempre tem ocasião propícia. Além disso, mesmo quando a oca-
sião é propícia, a experiência pode escapulir pelos dedos, e o julgamento
(ou a compreensão), que é difícil, pode não acontecer. É o combinado
de tudo isso, que em termos ideais, daria sentido a um bom médico. Em
qualquer hipótese, no entanto, a memória está no centro do aprendiza-
do de qualquer saber-fazer, e ela mesma, assim como em qualquer sa-
ber-fazer, pode ser treinada e aprimorada.
Acionar a memória das memórias também nos remete aos objetos de
arte. Ao falar do papel dos objetos de arte e da ação humana, Hannah
Arendt (1987, p. 181) nos diz:
Nesta permanência, a estabilidade do artifício humano, que jamais pode ser abso-
luta por ser o mundo habitado e usado por mortais, adquire representação própria.

264 {museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas}


Nada como a obra de arte demonstra com tamanha clareza e pureza a simples du-
rabilidade deste mundo das coisas; nada revela de forma tão espetacular que este
mundo feito de coisas é o lar não mortal dos seres mortais.
Em todo e qualquer processo criativo, a memória está presente. Não
há arte sem memória, não há ciência sem memória, não há tecnologia
sem memória, sem memória o novo não existe. Toda criação humana,
toda produção cultural (tangível ou intangível) depende da memória,
que por sua vez tem uma extraordinária capacidade de deslizamento.
De outro modo: a relação do humano com a natureza está ancorada na
memória cultural e produz memória cultural. É com base nessas me-
mórias que os objetos são produzidos. E como a memória tem extraor-
dinária capacidade de deslizamento, ela também pode descansar sobre
os objetos que se vinculam a sentimentos, experiências, pensamentos,
acontecimentos ordinários e extraordinários.
Por serem resultado da criação humana e participarem da vida so-
cial, os objetos detêm a capacidade de dizer e guardar coisas, de ancorar
memórias, sentidos, significados. A esse respeito diz Ecléa Bosi:
Se a mobilidade e a contingência acompanham nossas relações, há algo que de-
sejamos que permaneça imóvel, ao menos na velhice: o conjunto dos objetos que
nos rodeiam. Nesse conjunto amamos a disposição tácita, mas eloqüente ... Mais
que uma sensação estética ou de utilidade, eles nos dão um assentimento à nossa
posição no mundo, à nossa identidade; e os que estiverem sempre conosco falam à
nossa alma em sua língua natal. O arranjo da sala, cujas cadeiras preparam o círculo
das conversas amigas, como a cama prepara o descanso e a mesa de cabeceira os
derradeiros instantes do dia, o ritual antes do sono.
A ordem desse espaço povoado nos une e nos separa da sociedade e é um elo fami-

liar com o passado.


Quanto mais votados ao uso cotidiano, mais expressivos são os objetos: os metais
se arredondam, se ovalam, os cabos de madeira brilham pelo ~ontato com as mãos,
tudo perde as arestas e se abranda ..
São estes os objetos que Violette Morin chama de objetos biográficos, pois enve-
lhecem com o possuidor e se incorporam à sua vida: o relógio da família, o álbum
de fotografias, a medalha do esportista, a máscara do etnólogo, o mapa-múndi do

(José do nasCimento JUniOR} 265


viajante ... Cada um desses objetos representa uma experiência vivida, uma aventura
afetiva do morador. (...)
Cada uma dessas coisas tem nome: os tecidos bordados com faces, olhos, figuras
animais e humanas, as casas, as paredes, decoradas.
Tudo fala, o teto, o fogo, as esculturas, as pinturas.
Os pratos e as colheres blasonadas com o totem do clã são animados e, feéricos: são
réplicas dos instrumentos inesgotáveis que os espíritos deram aos ancestrais. (...)
A casa onde se desenvolve uma criança é povoada de coisas preciosas, que não têm
preço. (BOSI, 2003, pp. 25-27)
Se a relação com os objetos é a constitutiva de nossa identidade des-
de os primeiros momentos de vida, em um mundo onde a linguagem
escrita acaba por nos afastar dessa relação, os museus têm o papel de
nos devolver ao mundo dos objetos, essa desnaturalização de um mundo
letrado para um mundo objetal.
Ao abordar as articulações e exclusões relativas aos projetos in-
dividuais e coletivos, Gilberto Velho (1994) aponta para a necessidade
de problematizar as biografias e trajetórias individuais em sociedades
complexas. Segundo Velho, os indivíduos modernos vivem como seus
antepassados, vinculados à cultura e às tradições particulares, mas es-
tão hoje num momento sem precedentes, sendo influenciados por siste-
mas de valores heterogêneos.
Convém sublinhar que os objetos, além de serem biográficos, têm
eles mesmos a sua própria biografia Qulien & Rosselin, 2005). O registro
desses diferentes níveis biográficos é uma das funções dos profissionais
que trabalham na documentação dos museus, nas tarefas de musealizar
e contar a história dos objetos e seus contextos.
Atualmente, observa-se uma tentativa de desqualificação da deno-
minada "cultura material", colocando-a como algo ligado a referências
conservadoras e elitistas em contraposição a uma suposta versão popu-
lar que estaria expressa na chamada "cultura imaterial". Essa tentativa,
além de implicar um retorno à velha discussão cultura de elite versus
cultura popular, opera como se o imaterial pudesse prescindir de al-
gum suporte material, como se nas manifestações religiosas as imagens

266 {museus, coLeções e patRimÔnws: naRRativas poufômcas}


não fossem relevantes. Nos estudos sobre religião, como afirma Marc
Augé (1996), em Deus como objeto, devemos considerar a relação símbo-
los-corpos-materiais-palavras; em outros termos, até Ogum precisa de um
cavalo (Chagas & Nascimento ]r, 2006).
Os estudos clássicos da Antropologia, passando por Marcel Mauss e
Bronislaw Malinowski, há muito tempo levam em conta a indissociabi-
lidade entre corpo e espírito, entre natureza e cultura, discussões supe-
radas no início do século XIX. A capacidade de simbolização é uma das
características distintivas do ser humano, assim como a capacidade de
transformar a natureza, dar significado, nomear. Vivemos, como afirma
Charles Baudelaire, em uma floresta de símbolos.
Nessa direção, a museologia como ciência 1 interpretativa, que estuda 1. Sobre a discussão
da museologia como
a musealidade de todos os fazeres humanos passíveis de serem museali- ciência, ver Deloche
(2002).
zados, é também a ciência da memória que se constitui na relação com os
2. Sobre a
objetos. Por esse caminho, os museus 2 podem ser compreendidos como conceituação de
museu, ver Rico
espaços de representação social da relação do homem com o seu entorno, (2003), Poulot (2005,

das sociabilidades, do confronto de significados, dos conflitos sociais e 2006) e Mairesse &
Desvallées (2007).
suas diferenças, da diversidade. Os museus são sem dúvida o espaço da
representação do "poder simbólico" das sociedades (Bourdieu, 2000).

Ü DESAFIO DOS MUSEUS

De templo das musas, na antiga Grécia, os museus passam, na socie-


dade contemporânea, a ocupar o papel de mediadores culturais.
Inicio explorando duas definições conceituais de museu: o museu
como fenômeno cultural, ou seja, como expressão e representação da
cultura Ocidental, é muito recente. Corroboro essa afirmação com a
indicação de que 90% dos museus no mundo foram criados depois da
Segunda Guerra Mundial. Portanto, a tarefa de re'fletir e ampliar a re-
lação com essa instituição cultural também é um fenômeno recente.
Como afirma Mário Chagas (1996), o museu "é espaço de trocas, de re-
lação e de preservação de documentos, que só possuem sentido se para
eles houver um uso social".

(José do nascimento JUniOR} 267


A partir dessa definição, podemos dizer que um dos desafios dos mu-
seus é não se contentarem em ser espaços acabados, restritos a quatro
paredes, e sim serem processos culturais com relevantes papéis sociais.
Por este caminho, podemos então pensar novos paradigmas da museolo-
gia, uma vez que ametodologia tradicional tende a pensar o museu como
gabinete de curiosidades ou, no máximo, como expositor de belas-artes.
Pensar os museus nos marcos de uma museologia crítica 3 e construir
3. Sobre o conceito um museu dialógico significa deixar cada vez mais em aberto as possi-
de museologia
crítica, ver Mestre bilidades de interpretação do público em relação ao que está exposto,
& Cardona (2006) e
Lorente & Almazan
criando assim um espaço para o pensamento crítico e criativo, capaz
(2003). de motivar os visitantes. Essa perspectiva aponta para a necessidade de
se repensar o conceito de museu e as possibilidades cognitivas de seu
espaço e para a busca de novas técnicas museográficas e expositivas, em
interlocução com as Ciências Humanas e Sociais, o que poderá contri-
buir para o rompimento com a pasteurização ou mesmo com a espeta-
cularização das exposições, onde os cenários são mais valorizados que
os públicos, que os objetos expostos e que os discursos museológicos.
O que está em questão na proposta de um museu dialógico é a refle-
xão sobre essas instituições num momento de crise da memória, a par-
tir do "dilema de Hermes" (referência), da tradução, da interpretação,
das construções da alteridade, da compreensão do "outro". Trata-se de
um dilema de como transformar os museus em "espaços de mediação
cultural", "da fusão de horizontes". Essas são tarefas que desafiam as
instituições museais a trabalhar criativamente para a construção de
uma nova visão, na qual o espaço constitua a dialética entre o interior e
o exterior, no sentido bachelariano de uma "imaginação poética".
Mudanças na linguagem também implicam outra noção de espaço e
tempo. Submeter a ação expositiva de um museu, por exemplo, à lógica
da cultura de massa significa pensar o sucesso (ou insucesso) de uma
exposição pela quantidade de público e não pelas questões que ela nos
coloca. Nesse sentido, valorizar a qualidade das relações dos indivíduos
com as exposições implica a valorização do tempo vivenciado no museu,
não como o tempo fugidio da sociedade do capital, "na qual tudo que é

268 (museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas}


sólido desmancha no ar", como nos diz Marshal Berman parafraseando
Marx, e sim como o tempo do flâneur, como o tempo de um passante pelo
museu, sem noção de relógio; apenas com a noção do tempo da memó-
ria, relativizado pelo olhar poético do que está exposto, ou seja, o tempo
de cada um de nós.
Essas mudanças colocam os profissionais do campo museológico
diante de um desafio: lidar com uma nova musealidade, criando um es-
pírito museal que leve os museus a refletir suas práticas e aponte ações
que estabeleçam uma nova forma de abordar o fato museal.

A DÁDIVA MUSEAL

Dar, receber e retribuir. Esses três modos de ação comparecem nos


estudos de Marcel Mauss sobre a dádiva. Como se sabe, o gesto de dar
- no quadro social em que a dádiva se insere - não está diretamente
relacionado com a vontade de receber. Quem dá, não dá para receber; dá
para que o outro, de algum modo, também dê.
A dádiva, "fenômeno social total", não é compra, não é venda, não
é ação do Estado, não decorre de obrigação fiscal e não é produzida
por coação moral ou violência física e simbólica. Presente também nas
sociedades complexas, ela circula entre amigos, vizinhos, parentes,
desconhecidos, conterrâneos e estrangeiros e contribui para o fortale-
cimento dos laços sociais.
Nos museus, o fenômeno da dádiva também pode ser observado: seja
como modo de aquisição ou doação de bens culturais para a formação de
coleções; seja como doação de bens, serviços ou prestígio para as asso-
ciações e sociedades de amigos de museus. Ainda que existam casos em
que se pode visualizar o desejo do contradom e de projeção na memória
do futuro, também existem casos de doação serri preocupação com a
retribuição. Diversos mitos de heróis civilizadores apresentam narra-
tivas que se sustentam em gestos dadivosos: doação do sol, da lua, do
fogo, da arte, do alfabeto. Essas narrativas, ao serem colocadas em ação,
atualizam, na contramão dos paradigmas do mercado econômico, a im-

{José do nasCimento JUniOR} 269


portância do gesto doador. Nas sociedades ocidentais, o dom tem hoje
o papel central na manutenção das redes sociais, dos indivíduos num
espaço identitário e de referenciais simbólicos partilhados.
Pensar a dádiva no ·museu e pensar a sua dimensão de ponte entre
o passado, o presente e o futuro constitui efetivamente um desafio.
Pode-se dizer que monumentos e documentos, suportes de informação
e memória preservados nos museus são ofertados como patrimônio às
gerações futuras não com o desejo de receber delas alguma coisa, mas
para que elas também ofertem e se ofertem. Mais do que a coisa em si,
interessa preservar o processo que garante a preservação das coisas.
Vale sublinhar - como sugere Maurice Godelier - que "o enigma do
dom" também está presente nos objetos que guardamos e preservamos,
objetos que assumem um significado simbólico, quase "sagrado". Este
me parece ser o espaço privilegiado dos museus no jogo social do dom e
do contradom; nos museus encontram-se objetos e até mesmo presen-
tes que foram retirados da esfera das trocas concretas e que não podem
mais ser presenteados.
Cada geração, _como é bem sabido, se vê desafiada a se reapropriar do
patrimônio, a redimensionar e ressignificar o museu. Desse ritual, pelo
menos desde o século XVIII, o mundo ocidental não tem podido fugir. Em
outras palavras: a qualidade de vida cultural e social de cada geração de-
pende da sua capacidade antropofágica, da sua capacidade de apropriar-
se daquilo que foi produzido em outros tempos e em outros espaços.
Essa capacidade não é particular de um povo ou de uma sociedade.
As três epígrafes utilizadas por Peter Burke na abertura de seu livro
Hibridismo cultural sinalizam nessa mesma direção:
1' . epígrafe- "Todas as culturas são o resultado de uma mixórdia"
-Claude Lévi-Strauss;
2' . epígrafe- "A história de todas as culturas é a história do empréstimo cultural"
-Edward Said;
3' . epígrafe- "Hoje, todas as culturas são culturas de fronteira"- Nestor Canclini.
Mixórdia, empréstimo e fronteira. Esses três termos que servem para
dizer - sem dizer tudo - o que é a cultura, também servem para dizer

270 {museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas}


- sem dizer tudo - o que é o museu. É isso. Museu também é mixórdia,
empréstimo e fronteira, ao que se pode acrescentar: antropofagia.
A articulação do campo museal 4 permite que antigos sonhos e 4. Sobre a composi-
ção do campo museal,
projetos museológicos possam ser desenvolvidos. Os resultados des- ver Poli, 2006.

sas parcerias institucionais - como de resto boa parte do trabalho no 5. Nesse sentido,
poderíamos falar
território dos museus e do patrimônio - tem muito de dádiva. Digo numa "cidadania
institucional", que
dádiva, digo dívida realimentada, mas não digo sacrifício. O sacrifício compreende, como
tende à anulação da dádiva. sugere Edmund Lea-
ch, a instituição não
Existem, como é sabido, diferentes acepções, definições e imagens apenas como "parte
de acordos usuais",
associadas ao termo museu. Os museus podem ser concebidos como "ga- mas também como
"as pessoas que estão
binetes de curiosidade", "universidades do objeto", "templos", "fóruns", envolvidas nestes
acordos, os recursos e
"teatros de memória", "laboratórios", "centros de convivência" etc. En-
os processos técnicos
tre as várias acepções e entendimentos possíveis, eu gostaria de desta- que empregam nas
suas atuações, as 're-
car um: o do museu como um espaço privílegiado da res publica. gras do jogo', e as 'es-
crituras miticas' que
Na sociedade brasileira contemporânea os museus particulares ou dão justificação à exis-
tência da instituição e
públicos, 5 municipais, estaduais ou federais, são (ou devem ser) espaços à sua perpetuação" .
privilegiados dares publica. Não estou falando da república como alguma Pensar o museu na sua
dimensão institucional
coisa perdida num passado qualquer, estou falando da república como é compreendê-lo

um desafio atualizado para os nossos~~yseus. Pensá-los por este prisma


como metáfora da so-
ciedade, como espaço
de sociabilidade, de
significa também compreendê-los como lugar de direito e cidadania, mediação de diversos
sistemas simbólicos,
como lugar de inclusão cultural, de resistênç.ta e combate aos precon-
ou seja, como espaço
ceitos de toda ordem, sejam eles religiosos, raciais, sexuais ou sociais. de poder e diSputas
ideológicas. Como
Essa condição de espaço de comunicação a serviço da "política dos indica Lévi-Strauss:
"Nada se assemelha
significados" favorece a compreensão da polifonia museológica. mais ao pensamento
mítico que a ideolog1a
Um museu res publica - como sugere Mário de Andrade - não é desti- política . Em nossas
nado aos príncipes e suas coleções, aos curadores e especialistas e suas sociedades contem-
porâneas talvez esta
ilustrações, aos detentores do poder econômico ou aos diretores de ins- se tenha limitado a
substituir aquele" .
tituições; o museu res publica destina-se aos cidadãos e faz parte da sua
função social o exercício do direito à memória, à história e à educação.
Sem dúvida, o campo museal é campo de tensão e, por isso mesmo, nele
há espaço para múltiplas e diferentes práticas, abordagens e enfoques.
Em 1999, recebi uma carta de Claude Lévi-Strauss na qual ele agrade-
ce a iniciativa do Museu Antropológico do Rio Grande do Sul que, através

úosé do nascimento JUniORI 271


de um seminário que comemorava seus 90 anos, sublinhou a dimensão
"antropoética" de sua obra. Nessa carta, Lévi-Strauss destaca ainda o
seu interesse em"manter os elos entre o sensível e o inteligível", aspec-
tos que "os pensadores e os artistas da Idade Média e da Resnascença
souberam unir", assim como muitos "povos sem escrita", entre os quais
os "ameríndios". Para Lévi-Srauss, Paul Valéry compreendia a importân-
cia desses elos e por isso mesmo afirmava: "a poesia é o lugar de pontos
eqüidistantes entre o puro sensível e o puro inteligível". Esse pensamen-
to também pode ser aplicado aos museus e ao patrimônio: elos e lugares
que ancoram a relação entre o sensível e o inteligível. O museu é espaço
de antropofagia e, como tal, envolve doação, recepção e retribuição; ar-
ticula o material e o imaterial.
Essa reflexão aponta para um novo caminho de relação entre a Antro-
6. Sobre o conceito de pologia, os museus e a Museologia. Um caminho que certamente estará
Sociomuseologia, ver
Moutinho, 1993. em diálogo com as experiências e reflexões do que em Portugal se chama
Sociomuseologia6 e também com o que na Itália se denomina de Antro-
pologia museal, ou seja, uma Antropologia que leva em conta o potencial
dos museus para valorizar diálogos, encontros, identidades e diferenças.

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274 {museus, coLeções e patRimélmos: naRRativas poufélmcas}


as cidades e o
/\.
patRiffiOlliO CULtURaL
Vera Dodebei
Claudia M. P. Storino

a s cidades são espaços urbanos reais, como nos mostram as


imagens de satélite que hoje habitam nossos computadores,
mas são, sobretudo, espaços imaginados por cada um de nós na revolu-
ção criadora da nossa memória. A cidade excede a representação que
cada pessoa faz dela e, como afirma Henry-Pierre Jeudy, se oferece e se
retrai segundo a maneira como é apreendida. Tomando-a como uma
paisagem ou por um enquadramento fotográfico circunstancial, cons-
truímos sua imagem a partir da tensão entre o que vemos e o que ima-
ginamos, entre o visível e o invisível.
Considerando as cidades como itens de uma coleção, ainda que de
natureza virtual, a exemplo daquela que a UNESCO criou e denominou
de Memória do Mundo, podemos discutir quais são os critérios escolhi-
dos para a patrimonialização de um conjunto de edificações, quem os
determina e que implicações existiriam para os moradores quando da
transformação de um objeto em patrimônio.
Oconceito de patrimônio da humanidade é formado por uma coleção
de bens patrimoniais de natureza material e imaterial de todas as par-
tes do nosso planeta. Essa coleção, disponível na rede mundial de com-
putadores, pretende representar uma síntese dos feitos da humanidade
e pauta-se na análise dos critérios de seleção arbitrados para a escolha
dos itens da coleção: representar uma obra de arte do gênio criativo do
homem; exibir o importante intercâmbio dos valores humanos, sobre
um período temporal ou dentro de uma área cultural do mundo, em ar-

276 (museus, coLeções e patRrmômos: naRRatrvas poufômcas}


quitetura ou tecnologia, artes monumentais, planejamento e paisagis-
mo de cidades; possuir um testemunho único ou ao menos excepcional
de uma tradição cultural ou de uma civilização existente ou extinta;
ser um exemplo excepcional de um tipo de edifício, construção arqui-
tetônica ou tecnológica que possa significar um testemunho da história
da humanidade; ser um exemplo excepcional de uma colonização, no
uso da terra e do mar, e que possa ser representativa de uma cultura
ou culturas, ou de uma interação com o meio ambiente, especialmente
quando este se torna vulnerável aos impactos de mudanças irreversí-
veis; ser direta ou tangencialmente associado a eventos ou tradições,
idéias, crenças, com trabalhos artísticos e literários de extraordinária
significação universal (em conjunto com outros); conter fenômenos na-
turais ou áreas de excepcional beleza natural e importância estética;
ser um exemplo excepcional que represente os principais estágios da
história do planeta, incluindo registras de vida, processos de evolução
geológica, geomórfica ou fisiográfica; ser um exemplo excepcional que
represente o contínuo processo de evolução do globo, dos mares, costas,
ecossistemas e comunidades de plantas e de animais; e conter os mais
importantes e significantes habitats para a conservação da diversidade
biológica. Proteção, administração, autenticidade e integridade de pro-
priedades são também importantes fatos a considerar, assim como as
relações do homem com a paisagem, chamadas de paisagens culturais.
Uma primeira leitura desses critérios nos indica claramente o con-
ceito clássico de coleção pelos adjetivos: raros, excepcionais, geniais,
únicos, memoráveis, importantes, significantes, autênticos. Observando
os objetos, percebemos que o desejo de colecionar abarca seres huma-
nos, animais, plantas, paisagens, construções. Fazem parte também da
coleção fenômenos, propriedades, valores, criações artísticas, históri-
cas e tecnológicas, tradições, crenças e idéias. Várias questões poderiam
ser colocadas em relação a esses critérios de seleção. De que se compõe,
afinal, a memória do mundo? Quem seleciona os objetos que, isolados,
deverão representar a totalidade da sua classe conceitual? Por que um
feito, uma paisagem, uma comunidade, uma música, um livro é mais

{veRa dodese1 e CLaudia m. p. stoRmo} 277


significativo para representar todos os outros da sua categoria? Patri-
moniar toda uma cidade, por exemplo, significa terem sido nela identi-
ficadas as qualidades n,ecessárias para transformá-la em índice cultural
de várias outras.cidades que, por diversas razões, não resistiram à força
transformadora do tempo.
Manuel Ferreira Lima Filho apresenta, em seu artigo "A cidade como
objeto: ressonâncias patrimoniais", a discussão sobre o valor patrimo-
nial atribuído às cidades e a contribuição que a Antropologia pode ofe-
recer ao entendimento do processo de legitimação do tombamento feito
pelo Estado. Manuel percorre o tema das cidades sob o olhar do antro-
pólogo que observa pessoas, transita pelos becos das ruas, e descreve a
pesquisa realizada sobre o imaginário dos habitantes de Goiânia acerca
do tombamento do Núcleo Pioneiro da cidade, juntamente com edifícios
públicos e componentes art déco.
A partir de depoimentos de moradores mais antigos, o antropólogo
considera que o processo de tombamento colocou em pauta o patrimônio
cultural da cidade e indagações sobre os significados desse tombamento
nas representações sociais que os pioneiros e habitantes da cidade tinham
sobre ela. O rito do tombamento foi tomado como fato social, o que moti-
vou a equipe a pesquisar sobre a produção simbólica e os significados das
narrativas. Afirma, o antropólogo, que se buscou fazer uma antropologia
na cidade, a partir do método etnográfico e da exploração dos conceitos
de memória, tradição, identidade, ritos e patrimônio cultural.
Uma das importantes contribuições desse relato é a percepção da
transformação da cidade tombada em coleção patrimonial: cidade/na-
ção, cidade/região, cidade/bairro, cidade/rua e cidade/sujeito. Enfatiza
o autor que esses pares estruturantes da cidade passam a ser, dessa for-
ma, uma estratégia metodológica a equacionar também a cidade com o
objeto. Nação, região, bairro, rua são planos que se rebatem no sujeito.
Então, a cidade patrimonial pode ser vista como um objeto metoními-
co: um artefato, uma coleção, um fato museal ou mesmo um fato social.
Manuel conclui seu texto com a observação: "A cidade patrimonial só
tem legitimidade ou sentido se todas essas equações forem considera-

278 (museus, coteções e patRim8mos: naRRativas pouf8mcas)


das, caso contrário ela será apenas um artifício do Estado pós-moder-
no, uma interpretação parcial e redutora como um único olhar sobre
um objeto, uma coleção ou um fato museal, ou até quem sabe o som de
uma viola de uma corda só".
Outra importante contribuição antropológica ao estudo da cidade
patrimonial nos é oferecida por José Guilherme Cantor Magnani, com
a comunicação intitulada "Santana de Parnaíba: memória e cotidiano".
O fio condutor do relato é a descrição da aplicação de uma estratégia de
pesquisa cuja metodologia poderia ainda ser de interesse para trabalhos
similares de levantamento, identificação e análise de questões específi-
cas relativas ao patrimônio em áreas urbanas. A cidade de Santana de
Parnaíba surge como vila colonial por volta de 1620 e é um dos pontos de
partida mais importantes das bandeiras, em virtude de sua localização
estratégica às margens do Rio Tietê e da antiga rota de penetração para
os sertões de Mato Grosso e Goiás.
A representação simbólica da cidade por seus moradores sustenta
quatro hipóteses de trabalho:
a) a política de preservação e/ou revitalização do patrimônio cultural
deve contar com o respaldo e a participação de usuários, proprietários
e demais pessoas envolvidas com a questão do patrimônio;
b) para formular e implementar uma política assim entendida, im-
põe-se conhecer os valores, interesses e opiniões dos habitantes, pois
contrariamente a uma idéia bastante difundida, a população de uma
cidade como Santana de Parnaíba, ainda que pequena em termos nu-
méricos, não é homogénea nem do ponto de vista de sua composição
social, nem no que diz respeito às percepções acerca da cidade, do pa-
trimônio e da intervenção do Estado;
c) tais percepções não necessariamente concordam com os critérios
que norteiam a prática dos órgãos de preservação~ resultando daí, mui-
tas vezes, um antagonismo entre a ação preservacionista institucional
e as expectativas da população;
d) não se trata, por certo, de abandonar os tradicionais critérios téc-
nicos (valor histórico, artístico, arquitetônico e outros) adotados pelo

{veRa dodeae1 e cLaudia m . p. stoRmo} 279


órgão, em face de outra escala de valores, a dos usuários, mas de en-
contrar formas capazes de articulá-los com os valores, tradições e as-
pirações da população:
Vê-se na proposta de José Guilherme a importância da opinião dos
moradores quando o' assunto é patrimônio. Utilizando recortes da pes-
quisa etnográfica para compreender a população de modo a não gene-
ralizar as falas sem o conhecimento de onde elas se constroem - "de
dentro", "de fora", "estrangeiros", "profissionais" -, o autor constata a
importância da construção de um museu ou, como ele aponta:
Um centro de memória poderia dar continuidade a essa tarefa através de uma pes-
quisa histórica mais ampla, não apenas por meio da coleta de dados em instituições
e arquivos, mas também com levantamentos de informações, documentos e objetos
em poder dos próprios parnaibanos: seria preciso mostrar que os fragmentos que
constituem sua memória fazem parte de processos mais amplos, responsáveis pelo
que Santana de Parnaíba foi e conserva hoje, em seus costumes, casas, ruas, edifí-
cios e dinâmica de suas redes sociais.
Patrimônio como valor de coleção, em contrapartida ao conceito de
patrimônio como qualidade de vida, é o tema que Roberta Sampaio Gui-
marães nos apresenta com a comunicação "Demarcando fronteiras urba-
nas: a transformação de moradias em patrimônio cultural". Roberta dis-
cute a criação das Áreas de Proteção do Ambiente Cultural (APACs) e das
Áreas de Proteção Ambiental (APAs) na cidade do Rio de Janeiro e aponta
os questionamentos feitos pela sociedade sobre a política patrimonial,
entre eles: os valores enunciados como justificativa para a preservação
das casas e prédios de apartamentos; os critérios para a listagem dos
imóveis; a decretação das áreas pela prefeitura sem discussão prévia com
os setores sociais interessados e sem a aprovação de uma lei pela Câmara
dos Vereadores; sua incompatibilidade com as legislações urbanísticas
dos bairros; e a interferência no direito de propriedade dos imóveis.
As tensões entre a noção de tombamento e preservação são aponta-
das pela autora com o aumento dos projetos de criação de novas áreas
de proteção patrimonial, quando ambiente e cultura passam a con-
trapor valores arquitetônicos e históricos a valores afetivos e comu-

280 (museus, coLeções e patnrmômos: nannatrvas poufômcas}


nitários. Valendo-se de um relato minucioso sobre as discussões que
abarcaram estas questões, Roberta apresenta a complexidade política,
social, econômica e sentimental inerente ao processo de patrimoniali-
zação urbana, com a representação dos discursos veiculados na mídia e
simbolizados pelos pares: casas antigas/casas velhas; espigões/prédios
modernos; progresso/destruição, preservação da cidade/engessamento
da cidade; adensamento populacional/crescimento urbano; manuten-
ção da vizinhança/elitismo de vizinhança. Segundo a autora, "a partir
dos usos desses termos, ficaram explicitados os pontos de conflito do
processo de preservação e como ele interferiu diretamente na configu-
ração de espaços físicos e simbólicos, catalisando uma guerra urbana
de representações e lugares".
Myrian Sepúlveda dos Santos, em "À procura da alma encantadora
da cidade", discute o papel dos museus de cidade e pergunta o que é
um museu da cidade. Seria aquele que articula a memória local com a
nacional, ou aquele que responde aos diversos problemas enfrentados
pela população de complexas megalópoles? A articulação entre os dois
objetos- cidade e museu- tem por base seu ponto de vista de cientista
social, em que ela afirma a opção de priorizar a análise das relações so-
ciais inerentes às cidades modernas.
A cidade, para Myrian, poderia estar contemplada em um museu que
· pudesse organizar e comunicar ao público sua complexidade cotidiana;
que pudesse estranhar a própria cidade que representa e, assim, provo-
car o mesmo sentimento de estranhamento em seu público. Baseando-
se em Walter Benjamin e na figura do fiâneur, que caminha pelas ruas em
ritmo próprio, observando a tudo e indiferente aos estímulos crescentes
da cidade, e que representa o indivíduo que ainda tem capacidade de
estranhar o que vê, que não foi subjugado nem pela cidade grande, nem
pela economia de mercado, nem pela burguesia, elà sugere que os mu-
seus de cidade poderiam adotar essa postura.
De que outro modo o museu poderia reforçar o sentimento de iden-
tidade entre a cidade e seus moradores se, como afirma a autora, o rit-
mo acelerado da vida também torna o trabalho da memória, a fiâneurie,

{veRa dodeBei e cLaudia m. p. stoRmo} 281


através do tempo praticamente impossível? Conclui a autora que a "alma
da cidade" tem de ser procurada entre seus moradores e que os museus
da modernidade podem servir ao público como elemento catalisador do
sentimento nacionalista, de pertencimento local, além de propiciar um
espaço de lazer, informação e educação.
Esse pensamento sobre a "alma da cidade" pode ter permeado a con-
cepção do projeto de aquisição de "objetos museais" apresentada naco-
municação de Maria Cristina Oliveira Bruno, sob o título "Patrimônio,
identidades e metodologias de trabalho: um olhar museológico sobre a
Expedição São Paulo 450 anos". A autora prioriza a discussão sobre as
estratégias metodológicas, em especial a proposição da expedição como
meio eficiente para a observação e o registro das diversas manifestações
da categoria patrimônio cultural, tendo como estudo de caso museoló-
gico a Expedição São Paulo 450 Anos e sua conexão com a implantação
do programa museológico do Museu da Cidade de São Paulo.
Ainda que o sentido de aquisição implique o de colecionamento, a
experiência metodológica descrita procura identificar os novos contor-
nos que a categoria patrimônio tem assumido na cidade de São Paulo
e quais desenhos desses contornos deveriam ser musealizados. Maria
Cristina revela também que, da mesma forma, foi possível verificar os
caminhos que têm sido trilhados para a construção das legitimações
sociais e identitárias e como esses processos poderiam interagir com a
constituição de um museu de cidade.
Os estudos sobre as cidades, ou o olhar que lançamos sobre elas des-
de a sua constituição como espaços complexos de organização da vida
social, revelam o objeto plural que elas representam. Vista do centro
ou da periferia, a cidade luta contra o tempo, resiste aos embates entre
desenvolvimento e memória. Mas, do ponto de vista do seu valor patri-
monial, que é o que nos interessa neste momento, as cidades são itens de
uma coleção simbólica, constituída por atributos que fazem delas índi-
ces de representação de uma classe geral de objetos. Parece também ter
sido este o fio condutor da coleção dos discursos que se organizam aqui
sob o título "As cidades e o patrimônio cultural".

282 (museus, COLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas}


santana de paRnaíBa:
memÓRia e cotidiano
José Guilherme Cantor Magnani

INTRODUÇÃO

As chamadas cidades históricas não são apenas cenários de antigos


acontecimentos e que ainda conservam, no traçado e casario, as marcas da
época; é preciso reconhecer que a vida, aí, continua. As relações entre os atuais
atores com esses cenários, contudo, nem sempre são levadas na devida conta
pelos órgãos de preservação. Esta omissão pode ser percebida em algumas
premissas que orientam a prática preservacionista. A primeira é a suposição de
que os critérios com os quais se selecionam e classificam os bens culturais são
universais e que são compartilhados de forma homogênea por todos os usuários.
A outra é considerar estes últimos como meros obstáculos à preservação já
que na maior parte das vezes a relação usuários/ órgãos preservacionistas
é conflitante, seja no que diz respeito aos critérios de escolha, seja com respeito
à intervenção do Estado através do mecanismo de tombamento.

a ssim começava o relatório final de um projeto intitulado


"Santana de Parnaíba: memória e cotidiano" que coordenei
como parte de uma consultaria prestada ao CONDEPHAAT (Conselho
de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e Turístico
1. O texto que segue é
uma parte rerelabora-
da desse relatório; da
pesquisa de campo,
por mim coordenada,
participaram Naira L
M. Morgado, Carmen
do Estado de São Paulo) em 1984. 1 Cidade pequena; Santana de Parnaí- Lúcia M. V. de Olivei-
ra. Celina Kuniyosh
ba contava com um acervo arquitetônico de interesse, sob proteção de e da elaboração do
relatório participaram
tombamento em nível estadual e federal,Z mas apresentava problemas Naira I. M. Morgado e
Carmen Lúcia M. V. de
de relacionamento com os técnicos do órgão, oferecendo dificuldades Oliveira.
para a fiscalização e implementação de algumas medidas previstas pe-

(José GUILHeRme cantoR maGnam) 283


2. Segundo informa- las políticas de preservação. Para diagnosticar esses problemas, surgiu
ções contidas no site
da Prefeitura. são 209 então a idéia de uma pesquisa em moldes antropológicos. 3
as edificações tom-
badas em 1982 pelo
Era, por conseguinte, uma pesquisa encomendada, com propósitos
CONDEPHAAT. Mas
práticos, destinada a oferecer subsídios às ações daquele órgão, e as
antes, em 1958, a
residência bandeirista conclusões a que se chegou têm como base e fonte a situação da época.
urbana, construída
na segunda metade A pergunta que agora se coloca é: qual o interesse em retomar esse re-
do século XVII, onde
atualmente funciona
lato, já que se trata de um trabalho datado, antigo? Relendo-o, contudo,
o Museu Histórico e
Pedagógico Casa do
após todo esse tempo, percebe-se como fio condutor a aplicação de uma
Anhangüera e o so- estratégia de pesquisa cuja metodologia pode ainda ser de interesse
brado construído no
século XVII I onde está para trabalhos similares - de levantamento, identificação e análise de
instalada a Casa da
Cultura, foram tom - questões específicas relativas ao patrimônio em áreas urbanas.
bados pelo IPHAN .
Esquematicamente, foram três as etapas da estratégia então segui-
3. Cabe observa r
que o presidente do da: uma fase inicial, exploratória, em seguida a organização dos primei-
órgão, à epoca, era o
antropólogo Antonio
ros dados numa grade classificatória e, finalmente, a fase de observação
Augusto Arantes. de campo, mais intensiva.
À pesquisa, então. Antes, porém, uma rápida caracterização da pró-
pria cidade, apresentação das hipóteses e procedimentos.

A cidade
Surgida no primeiro século de povoamento, em 1580, Santana de
Parnaíba se destaca como vila colonial por volta de 1620, como um dos
pontos de partida mais importantes das bandeiras em virtude de sua
localização estratégica às margens do Rio Tietê e da antiga rota de pe-
netração nos sertões de Mato Grosso e Goiás. Essa primeira atividade de
significado econômico mais amplo se manteve durante quase um sécu-
lo, propiciando o desenvolvimento de um comércio que fez da vila uma
importante pousada, bem como centro de oferta de tropas de muares
para o transporte de cargas.
No século XVII, com a abertura de três novas vias de comunicação
ligando São Paulo, respectivamente, a Sorocaba, Itu e Jundiaí, sem pas-
sar por Parnaíba, o dinamismo inicial que fizera do comércio parnaiba-
no um importante rival do paulistano se reduziu, entrando a vila num

284 {museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas}


longo processo de estagnação, revitalizada por momentos apenas pon-
tuais de desenvolvimento. Foi assim com o ciclo da cana-de-açúcar na
segunda metade do século XVIII, com o café em meados do século XIX e
com a inauguração da represa Edgar de Souza, em 1901, pela São Paulo
Trarriway Light e Power Co. Ltd. Cabe destacar que as edificações mais
significativas de Parnaíba surgiram em função desses momentos de de-
senvolvimento, e ·sua permanência até hoje se deveu muito mais ao re-
duzido dinamismo da economia local do que propriamente a interesses
voltados para a sua preservação.
Com a melhoria das condições da estrada SP-312 e a abertura de
duas importantes vias de penetração para o interior, as rodovias
Anhanguera e Castelo Branco, Parnaíba passou novamente por um
momento de desenvolvimento que, especialmente nas últimas déca-
das, trouxe conseqüências profundas para a dinâmica do município.
Verificaram-se reflexos na ocupação do seu território, com a instala-
ção de indústrias ao longo das duas rodovias, a partir da descentra-
lização do parque industrial de São Paulo, ao lado de um acentuado
incremento populacional.
Ocorreu também um processo de especulação imobiliária gerado
pela facilidade de acesso, com loteamentos próximos ao centro, expul-
sando os pequenos sitiantes e destinados, particularmente, a chácaras
· e casas de veraneio. Na área leste do município, principalmente, proces-
sou-se uma ocupação determinada pela instalação de indústrias com
todas as características que, em casos semelhantes, têm levado à apari-
ção de vilas autônomas com relação ao centro, que é o núcleo orgânico
de toda a área municipal.
Portanto, Parnaíba apresentava, à época da pesquisa, contornos di-
ferenciados: traços de cidade industrial, de cidade-dormitório e devera-
neio coexistiam com as características de cidade de interior que ainda
mantinha um patrimônio cultural diferenciado, produto de quatro sé-
culos de existência. Foi justamente essa conjunção de características que
constituiu o ponto partida para as hipóteses que nortearam a pesquisa.

{José GUILHeRme cantoR maGnam} 285


Hipóteses e procedimentos
O projeto Santana de Parnaíba: Memória e Cotidiano tinha por pro-
posta realizar uma pesquisa cujo propósito era o levantamento e a pos-
terior interpretação das representações dos moradores acerca de suas
tradições, sua cidàde e da própria ação ali desenvolvida pelos órgãos
de preservação. As hipóteses de trabalho iniciais, de caráter bastante
pragmático, postulavam que:
a) A política de preservação e/ou revitalização do patrimônio cultural
deve contar com o respaldo e a participação de usuários, proprietários e
demais pessoas envolvidas com a questão do patrimônio;
b) Para formular e implementar uma política assim entendida, impõe-se
conhecer os valores, interesses e opiniões dos habitantes, pois contra-
riamente a uma idéia bastante difundida, a população de uma cidade
como Santana de Parnaíba, ainda que pequena em termos numéricos,
não é homogênea nem do ponto de vista de sua composição social, nem
no que diz respeito às percepções acerca da cidade, do patrimônio e da
intervenção do Estado;
c) Tais percepções não necessariamente concordam com os critérios
que norteiam a prática dos órgãos de preservação, resultando daí, mui-
tas vezes, um antagonismo entre a ação preservacionista institucional e
as expectativas da população;
d) Não se trata, por certo, de abandonar os tradicionais critérios téc-
nicos (valor histórico, artístico, arquitetônico e outros) adotados pelo
órgão em face de outra escala de valores, a dos usuários, mas de encon-
trar formas capazes de articulá-los com os valores, tradições e aspira-
ções da população.

Para além dessas preocupações mais diretamente ligadas ao tema da


preservação (ou previamente a elas), estava colocada uma questão mais
geral, sobre o próprio caráter de comunidade de Santana de Parnaíba.
Para tanto, a Escola de Chicago e, mais perto de nós, as pesquisas realiza-
das na Escola Livre de Sociologia e Política, conhecidas como "estudos de
comunidade", ofereciam uma bibliografia de referência. Posteriormente,

286 {museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas}


ao retomar esse tema em sala de aula, o texto de George Marcus (1991)
sobre etnografias da modernidade permitiu ampliar a reflexão. Este au-
tor afirma que é preciso repensar a noção clássica de comunidade, tal
como foi estabelecida e utilizada no contexto do que denomina a "etno-
grafia realista", em oposição a uma "etnografia modernista". Nessa linha,
afirma, é preciso repensar o conceito de comunidade que, "no sentido
clássico de valores, identidade e, portanto, cultura compartilhados foi
baseado literalmente no conceito de localidade, de modo a definir uma
referência básica que orientasse a etnografia" (Marcus, 1991, p. 204).
Articulando ambas as linhas, a da crítica à "solidez e homogenei-
dade", supostamente atributos da forma de vida comunitária, e as difi-
culdades de relação entre os moradores da cidade e as políticas de pre-
servação, o que estava em pauta, no caso de Santana de Parnaíba, era a
existência ou não de representações uniformes e compartilhadas entre
seus moradores sobre o património de sua cidade.
Na primeira fase, definida como exploratória, o primeiro passo foi
proceder a um levantamento inicial das opiniões dos habitantes de San-
tana de Parnaíba sobre a cidade, mais em busca de pistas do que de um
discurso articulado. Para tanto, as experiências anteriores, a partir do
escritório do CONDEPHAAT que funcionava na Casa do Anhanguera,
possibilitaram contatos mais próximos com alguns moradores, entre
eles a diretora da escola, o organizador das atividades culturais da cida-
de e responsável pela Casa do Anhanguera, sede também da Secretaria
Municipal de Turismo, uma bibliotecária, uma ex-funcionária da Secre-
taria Municipal da Promoção Social e moradora de um bairro fora do
centro histórico, com estreitos laços com a população.
Por intermédio dessas pessoas, contatadas ainda em razão de vín-
culos institucionais, foi possível obter indicações de algumas dezenas
de moradores com os quais poderíamos "conversar· a respeito da cida-
de": tal foi a primeira via de acesso, que abriu a possibilidade de ampliar
os contatos necessários para a identificação de outros grupos nomea-
dos com categorias nativas. Logo a vinculação dos pesquisadores com
o CONDEPHAAT começou a passar despercebida, pois o que importava

úosé GUILHeRme cantoR maGnam} 287


na construção da relação era a indicação por parte de pessoas conheci-
das. Algumas aproximações foram feitas diretamente, acompanhadas
por alguns de nossos &presentadores, o que dava à conversa o caráter
de visita de cortesia. Aos poucos, porém, foi possível prescindir dessa
ajuda: a presença dos pesquisadores já fazia parte do cotidiano, e dizer
que queríamos "conversar sobre a cidade", "saber como era a vida em
Parnaíba", bastava para iniciar as entrevistas.
Esta etapa foi encerrada com um duplo resultado: de um lado, um
4 . Partiu-se de um panorama dos temas mais comentados pelos entrevistados, geralmente
recorte já dado, a
área tombada . Esta idosos, membros das famílias tradicionais, com muito tempo para con-
área corresponde
ao espaço de for-
versar: a vida de antanho em Santana de Paranaíba, a importância das
mação da cidade festas, a desconfiança em relação aos novos moradores, a valorização
- atual "centro
histórico" - , então das antigas famílias; e, de outro, a identificação das demais categorias
com funções de
setor residencial, de moradores. A partir dos dados da fase exploratória começou a segun-
pequeno comércio,
serviços públicos.
da, denominada classíficatóría, pois permitiu organizar, agrupando-os,
Para efeitos de numa mesma grade, os diferentes protagonistas - os "de dentro" e os
comparação, elege-
mos um bairro pró- "de fora"; os do centro histórico versus os da Vila Nova, 4 os estrangeiros,
ximo ao centro, Vila
Nova, resultante da os artistas, os funcionários - e seus discursos sobre o patrimônio e a
recente expansão
urbana em direção
cidade, suas apreciações sobre os demais atores sociais etc. Foi quando
ao oeste.
se pôde comprovar, não a homogeneidade e o clima de consenso e con-
vivência, mas, ao contrário, as opiniões divergentes, os conflitos etc.
A terceira etapa, de observação, foi também sugerida e planejada a
partir de dois conjuntos de pistas, colhidas na fase inicial: em primeiro
lugar, a recorrência de alusões às festas que eram realizadas "antiga-
mente" e as constantes comparações com as atuais; e também a percep-
ção, por parte dos vários segmentos da população, de dois espaços clara-
mente diferenciados: o da casa (privado) e o público. É neste último que
se realizam eventos festivos tradicionais, sagrados e profanos, que não
só mobilizam o conjunto da população como também oferecem algumas
"marcas registradas" da cidade para os turistas: o Carnaval, a festa de
Corpus Chrístí, a festa da Padroeira e outros.
As festas - eventos públicos valorizados pelos parnaibanos, realizados
no espaço do patrimônio edificado - apareceram assim como momentos

288 (museus, coteções e patRimÔmos: naRRatiVas poufômcas}


privilegiados para aprofundar as conclusões da primeira etapa da pes-
quisa e dar continuidade ao trabalho. Tratou-se, então, de identificar as
relações existentes entre ambos, de forma a colocar a questão específica
da preservação e revitalização do patrimônio arquitetônico e histórico
em consonância e em correlação com um aspecto vivo e atual do patri-
mônio cultural, que é o ciclo de festas. Impunha-se, por conseguinte, le-
vantar o calendário completo das festas, inclusive as já desaparecidas e
as de menor expressão, para em seguida observar com mais detalhe a
dinâmica particular de cada uma (mecanismos, participantes, formas de
organização), obter depoimentos sobre a maneira como essas festas eram
realizadas em outros tempos e, finalmente, avaliar a sua vitalidade.

A PESQUISA

Os moradores
Delimitada a área da pesquisa- o Centro Histórico, recorte já dado
através do tombamento, e o bairro Vila Nova, fora do perímetro tomba-
do, como contraponto, -buscou-se trabalhar a partir da hipótese acerca
da heterogeneidade dessa população e suas opiniões a respeito do pa-
trimônio. Para tanto foi preciso montar a rede dos diversos segmentos
em função dos significados que atribuem ao cotidiano, à história, ao pa-
trimônio. Com base nos primeiros contatos e entrevistas, foi estabele-
cido o corte inicial que divide essa população: ser "de dentro", ou seja,
ser parnaibano e ter pelo menos três gerações nascidas em Santana de
Parnaíba; e ser "de fora", grupo que, por sua vez, se subdivide a partir
de alguns critérios, como a auto-imagem, a relação que se tem com a
cidade, as razões pelas quais esses novos moradores aí se fixaram: são os
estrangeiros, os artistas e os profissionais.

Centro histórico: os "de dentro"


A maioria das indicações remeteu a antigos moradores sob o pretexto
de que eles teriam muito a contar sobre a cidade. O contato foi facilitado
por sua disponibilidade: a maioria era de aposentados e não costuma-

úosé GUILHeRme cantoR maGnam) 289


vam se ocupar de outras atividades. Partiu-se de uma questão genérica,
o interesse em conhecer melhor Parnaíba, para daí solicitar que con-
tassem alguma coisa a respeito. Paulatinamente foi-se percebendo que,
para os moradores mais velhos, falar de Parnaíba significava recuperar
uma memória afetivà ancorada nas relações familiares, na experiência
das festas e nos círculos de amizade. Aos poucos eles iam revelando o co-
S. Todos os nomes tidiano da cidade, os vínculos entre os grupos e as regras de conivência,
dos informantes são
fictícios. e construindo uma certa imagem da cidade: auto-suficiente, solidária e
cheia de alegria, Parnaíba era a cidade de poucas famílias e muitas fes-
tas, que aglutinavam essas celebrações e pontilhavam seu cotidiano:
Gosto de Parnaíba, aqui eu me criei, minha mãe, minha avó, aqui eu estudei, aprendi
a trabalhar, fiz de tudo, carpi, lenhei, cuidei de galinheiro, porco, faço bordado,
crochê, flor ...5 (D. Lúcia)
Antigamente era tudo coisa da terra, carros de boi trazendo coisa do sítio, mas a vida
era assim mais alegre, forjada aqui mesmo, tinha teatro, cinema, as festas. (Jair)
Naquele tempo era gostoso, as fest as, tinha muita festa. , de rua, de igreja, era muito
bonito, barraca , cada barraca tinha seu grupo uniformizado. Cada grupo tinha um
uniforme diferente, então tinha 5, 6 barracas, eram 5, 6 grupos assim uniformizados,
e cada um escolhia o uniforme, a cor, o modelo como queria, então um escondia do
outro, não queria que o outro soubesse, assim quando chegava no dia era pra ser
tudo surpresa( ... ) (D. Estela)
Orgulhosos de sua história, remontavam ao passado valorizando suas
características de gente da terra, enraizados, dignos descendentes dos
fundadores da cidade: uma cidade que manteve seu traçado ao longo do
tempo, carregando a tradição dos doces, dos bordados, transmitida de
geração em geração. No entanto, nas últimas décadas a melhoria de con-
dições de acesso ao município e a instalação de indústrias ao longo das ro-
dovias, gerando um acentuado incremento populacional, fez que o pacato
universo parnaibano passasse por transformações muito significativas.
O parnaibano é bandeirante, minha mulher é dos Bueno, bandeirante. (Lico)
Antigamente era tudo família, não podia falar mal de ninguém que era como mexer
num vespeiro, agora tá cheio de gente esquisita, foi lá por 1960 que veio essa haia-
nada prás indústrias, não parou mais de chegar gente de fora. (Lico)

290 {museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas}


Esse sentimento em relação à população que veio de fora, consti-
tuindo os novos bairros que se formaram a partir da década de 1960, se
mostrou mais acentuado quando se manifestavam acerca da possibili-
dade de morar nesses locais, palco de transformações que para muitos
representou uma descaracterização violenta da cidade naquilo que para
eles é o mais significativo - um certo estilo de vida:
Deus me livre! Vila Nova só tem gente de fora, gente desconhecida, tem poucos
moradores antigos. (D. Estela)
A cidade não tinha tanta gente como hoje, porque o meio de vida era o botequim ou
a roça, o sítio, essa gente morava tudo nos terrenos fora, nos sítios, sabe? Só vinha na
cidade de Sábado e Domingo prá assistir a missa. Vinha Sábado, pousava; Domingo
de tarde ia embora pro sítio outra vez prá trabalhar lá. As casas aqui, elas davam
prá gente morar nas casas, prá não ficar fechada, porque casa fechada estraga né,
então eles davam prá uma pessoa ... Oh! Você fica morando lá, toma conta de minha
casa. É só vinha aos sábados e domingos. Prá não estragar as casas, eles davam prás
pessoas morar, ninguém alugava casas. (Sr. Antônio)
Em síntese, era esse o discurso dominante expresso pelos mais ve-
lhos para caracterizar os "de dentro", ou seja, todos os parnaibanos na-
tivos, independentemente da faixa etária ou condição socioeconômica.
A família era o elemento que balizava o cotidiano, as festas, a cidade.
Havia, entretanto, nesse discurso, algumas particularidades em vir-
tude do efeito de comparação com outras cidades, reveladas nos depoi-
mentos daqueles que durante algumas décadas viveram fora, e pelos jo-
vens, estes com possibilidades de acesso constante a São Paulo, Barueri e
Osasco. No que diz respeito aos velhos que saíram e voltaram, a ausência
durante alguns anos era justificada em razão das difíceis condições de
vida e trabalho que a cidade oferecia até o começo da década de 1960,
quando teve início um pequeno surto industrial.
O período anterior à instalação de indústrias no município foi mar-
cado por um mercado de trabalho restrito, sendo o comércio e o traba-
lho rural as grandes opções, além da instalação da Light que, no início
do século, incorporou uma pequena parte dessa população. Portanto,
a opção de sobrevivência, na maioria das vezes, só era possível fora da

{José GUILHeRme cantoR maGnam) 291


cidade, o que obrigou muitos a saírem e a voltarem somente mais tar-
de, quando aposentados.
O retorno representava o restabelecimento da identidade perdida
nas grandes metrópoles, invocando-se, agora, a posição de descenden-
tes das famílias fundàdoras de Parnaíba. Recuperar, na velhice, a Par-
naíba das três ruas onde passaram a infância e a juventude, através da
comparação com as grandes cidades, representava reaver sua cidade,
que, apesar de alterada, não perdeu a "calma, o sossego e a tranqüilida-
de". Algumas das alterações eram por eles sentidas e percebidas tanto
em razão da presença e atuação de alguns dos "de fora", como também
dos órgãos de preservação.
A cidade enfeiou, agora estão dando uma ajeitada, estão começando uma retomada.
Hoje eles são incapazes de derrubar uma casa, o patrimônio não deixa mais, agora todo
mundo que faz casa já faz com arco e tudo. O colonial, né. O Paul foi o pioneiro aqui em
matéria de conservar o antigo. Essa coisa de antigüidade, ele é uma pessoa empenhada,
é uma coisa mais de cultura, é essa gente que veio de fora que conserva. (0. Marta)
Para os jovens, a cidade não oferecia muitas opções de lazer, traba-
lho e consumo, razão pela qual uma grande parte estudava e/ou traba-
lhava em Osasco, Barueri e São Paulo. No entanto, mesmo não tendo vi-
vendado a história anterior, são descendentes de famílias tradicionais e
valorizavam na mesma medida o eixo fundamental revelado pelos mais
velhos. Gostam de Paranaíba porque ela é de seus pais, avós, bisavós, que
fundaram a cidade e da qual eles "continuam donos". Gostam do estilo,
do "jeito" dela, em comparação com outras cidades; quanto ao patrimô-
nio edificado, referem-se apenas à fachada.
Eu gosto do tipo de Parnaíba, é pequena, eu gosto do jeito como ela é, não é igual a
Osasco, que tem tudo feio; aqui não; é casinha perto de casinha, principalmente as
casas coloniais. (Luciana)
Esses jovens, diferentemente dos mais velhos, possuíam uma rela-
ção dinâmica com a cidade, centrada no presente: freqüentavam locais
públicos, como o clube, a sorveteria, os barzinhos. A praça era o espaço
de vivência desde a infância, onde se encontravam para brincar, até a
adolescência, quando, nos fins de semana, ao entardecer, se reuniam

292 {museus, coLeções e patRimômos: naRRativas poufômcas}


para conversar, namorar, combinar os programas para a noite. A turma
era uma caracterização determinante nas relações. Em geral, um grupo
não se relaciona com outro.
A turma se encontra prá conversar, vai ao clube, às vezes a gente sai prá ir ao cinema,
lanchonete em São Paulo, mas não é sempre, na maioria das vezes a gente fica aqui.
Aqui tem várias panelinhas. (Luciana)
O centro era importante, o local onde realizavam as atividades sociais,
em que "todos se conhecem". Entretanto, essa familiaridade também
pode representar alguns problemas, particularmente no que diz respeito
ao controle que sofrem diante da vigilância exercida pelos mais velhos.
Aqui tem muito velho, as velhas são muito fofoqueiras, elas não têm o que fazer,
então ficam atrás da janela vendo e depois saem contando prá cidade toda. (Célia)
Durante o tempo da pesquisa de campo, foi possível constatar, seja
através das conversas com eles, assim como pela observação dos eventos,
a ausência desses jovens nos eventos socioculturais patrocinados na ci-
dade, em particular os do Museu, geralmente promovidos pelos artistas:
Aqui a cultura é pouca, ninguém dá muito valor prá essas coisas históricas, turista
é que dá, a gente tá acostumado, não liga, essa exposição de pintura no Museu é só
prá elite, o pessoal não tem cultura prá isso. (Célia)
Assim, tanto os velhos que saíram e voltaram, como os jovens, ti-
nham - diferentemente dos parnaibanos que nunca deixaram a cidade
- uma outra visão, além da história familiar, para construir a imagem:
a comparação com outros centros urbanos. Os melhoramentos mais rei-
vindicados por eles referiam-se a transporte, escolas, trabalho e lazer;
com ressalvas, pois isso poderia significar mudanças indesejáveis:
Eu não gostaria que tivesse muita mudança, ia chegar muita gente, ia estragar.
(Lucia na)

Centro histórico: os "de fora"


Artistas
Os "artistas" foram se fixando em Parnaíba pouco pouco, princi- a
palmente em vista da possibilidade de residir em uma cidade pequena,
tranqüila e ao mesmo tempo próxima da capital.

{José GUILHeRme cantoR maGnam) 293


Eram basicamente artistas plásticos, que à época da pesquisa resi-
diam na cidade há pelo menos três anos, dependendo de outra ati vidade
para sua manutenção: professores de P e z· graus, alguns funcionários
públicos e profissionais· liberais. A relação com alguns deles foi bastan-
te próxima, especialmente com Henrique, professor, artista plástico e
organizador de alguns eventos na cidade, como a feira de arte para a
promoção do artesanato local. Sua casa, localizada no largo da Matriz,
ponto de encontro do grupo, passou também a ser passagem obrigatória
em nossas visitas a Parnaíba, pois era lá que se comentavam os aconte-
cimentos da semana. E nas conversas foi se revelando a visão que esse
segmento tinha da cidade e dos parnaibanos:
Parnaíba é uma cidade tranqüila, gostosa de se morar, calma, todo mundo seco-
nhece. É uma cidade bonita, de valor histórico. (Dan ilo)
Mudou pouca coisa aqui, o pessoal é bem tradicional, as mudanças se operam lenta-
mente. Eu acho que é uma contradição, porque eles querem as mudanças, mas têm
receio e eles não gostam que as mudanças partam de fora. (Cleide)
Segundo a perspectiva desse grupo, a tendência da cidade era de se
transformar em dormitório, totalmente isolada, mas dependente de São
Paulo. Essa tendência só não se concretizou completamente, segundo
eles, devido à ação do próprio grupo, que criou alternativas: feiras de
arte, exposições na Caso do Anhanguera e o teatro.
Até abrir a Castelo dizem que Parnaíba era uma coisa especial, tinha seresta. São
Paulo era longe ainda e o pessoal vivia prá dentro da cidade. (Henrique)
Comentando sobre sua inserção na sociedade local, eles explicita-
vam a imagem que formam do parnaibano.
O nosso grupo é diferente, é um grupo meio assim à parte, até botaram um apelido
aqui em casa: "Arca de Noé", porque tinha tudo quanto era bicho. (Henrique)
Parnaibano é acomodado, não faz nada , é só o pessoal de fora que faz as coisas
aqui. (Danilo)
Alguns integrantes desse grupo cobravam uma atitude mais enérgi-
ca dos órgãos do patrimônio e se colocavam como os únicos preocupa-
dos com a preservação.
Tá cheio de construção aqui que não tem nada a ver... Para a população daqui tanto

294 {museus, coteções e patRrmômos: naRRatrvas poufômcas)


faz se encher de prédio, ninguém tá nem aí, eles não querem é que mexam com
eles, querem sossego. (Danilo)
O pessoal daqui não sabe o valor das coisas, tem mania de modernização. (Cristina)
Acho que uma coisa que assustou o parnaibano foi essa posição do CONDEPHAAT e
do SPHAN de que "vocês têm uma coisa valorosa na mão e vocês não percebem isso".
Eu acho que isso assustou, assustou numa boa, né? De repente, ele olhou prá parede
dele e falou: - 'Meu Deus! O que foi que eu fiz! Eu arranquei minha janela e botei
uma vidraça e agora o pessoal veio falar que eu joguei fora'. Eu acho que assustou,
de repente ele não compreendeu bem o que aconteceu, porque quando surgiram as
vidraças era muito mais bonito, mais cômodo, mais transado e aí trocaram tudo,
agora vem o pessoal falar que não era bem assim ... (Henrique)
Assim também a existência de vários grupos e o lugar de cada um na
dinâmica social foi se explicitando:
Existem duas colocações aqui, a do pessoal daqui que chama a gente de estranho
- e sempre vai ser assim, mesmo se você morar 80 anos aqui - porque você não é
parnaibano. O pessoal que é daqui tem esse sentimento fortíssimo de ser daqui. E
tem o pessoal de fora mesmo- porque tem os de fora que são de dentro e que somos
nós - que fala mal do pessoal daqui de dentro, tipo assim "quem faz as coisas aqui
somos nós que viemos de fora". Acho que essa colocação é falta de compreensão,
porque tem essa característica do parnaibano, essa morosidade que existe, devido,
eu acho, aos 400 anos da cidade, numa cidade que manteve a população estável
durante praticamente 200 anos. (Henrique)
Mas o que definiu a inter-relação entre os grupos e a imagem que
os artistas fazem dos vários grupos, está associado à apropriação que
cada qual faz da cidade, ligada aqui, de um lado, à vida social e, de
outro, à apropriação de bem cultural, autônomo, isolado das relações
sociais. Particularmente significativo foi o depoimento de Henrique a
esse respeito:
Eu acho o seguinte: o pessoal de fora, que a gente tem ol:iservado, eles vêm muito
assim pela beleza da cidade, certo? O arquitetônico da. cidade é que conta, não se
preocupam em nada com as pessoas. Então eles vêm morar numa cidade colonial,
prá esses não conta o parnaibano, não participa da vida deles. E aí o pessoal de fora
sabe o que tem valor, compra a casa pela casa, só existe a casa. Aí valoriza, restaura,

{José GUILHeRme cantoR maGnam} 295


arruma e dane-se o social. A gente até comentava, há uns dois anos atrás, que eles
vão colocar um portão e cobrar entrada prá ver a cidade que eles compraram. E o
parnaibano só critica, mas não interfere. ( Henrique)
Sentindo-se de certa forma "de dentro", percebiam as transforma-
ções que esse fato acàrretava e, ao mesmo tempo, a impossibilidade de
conter esse processo:
O que a gente queria que continuasse aqui é essa comunidade, todo mundo amigo.
E isso é difícil porque o pessoal de fora não percebe isso, então vai quebrando, vai
dificultando e você vai vendo casas fechadas, casas fechadas, tudo bem, acho que
todo mundo tem o direito de comprar casa, mas é esse esfriamento do pessoal que
fica ruim ... (Henrique)
Conforme foi possível observar tanto na casa de Henrique como nos
verníssages do Museu, era rara a presença de parnaibanos. Assim, ape-
sar de se colocarem como "de dentro", eles acabavam por constituir um
grupo fechado, mantendo, entretanto, uma preocupação ampla com a
cidade, que engloba patrimônio e prática social. A partir dos depoimen-
tos desse grupo, novos recortes se delinearam: os "parnaibanos", "os de
fora, de dentro" e os "de fora mesmo". Assim as transformações por que
a cidade vinha passando eram percebidas e expressas pela posição que
cada grupo ocupava nesse processo.
Os parnaibanos, fechados, conservadores, assistiam às mudanças
que implicavam a destruição de seu universo, mas não interferiam,
eram passivos. Os "de fora mesmo" só estavam interessados na cidade
como cenário, alheios à vida social e ao que ela representa para os de-
mais. Os "de fora, mas de dentro", os artistas, tentavam, de alguma for-
ma, recuperar o universo parnaibano e divulgá-lo, valorizando alguns
de seus aspectos através das atividades artísticas. Sentiam-se parnai-
banos, já que se colocavam como agentes culturais da cidade e, dife-
rentemente dos "de fora mesmo", estabeleceram vínculos pessoais e de
trabalho em Parnaíba. Tinham como projeto para a cidade aproveitar
o patrimônio edificado como elemento potencial de atuação turística
para a divulgação de seus trabalhos e tornar a cidade conhecida como
"cidade dos artistas".

296 {museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas}


Estrangeiros
Os estrangeiros - franceses, espanhóis e alemães - eram os "de fora
mesmo". Pessoas de alta renda, que compraram casas antigas na cidade e
transformaram-nas em residências luxuosas. Boa parte dessas casas era
utilizada apenas nos finais de semana. Esse grupo aliava os atributos de
cidade do interior às características de cidade histórica para descrevê-la:
Gostosa, tranqüila, 20:30 da noite não tem ninguém na rua, só cachorro. (Paul)
Sempre vem gente de São Paulo aqui e todos querem mudar prá cá por causa do
charme dessas casas antigas, né? (Cinira)
Com relação aos parnaibanos, o discurso era semelhante ao dos ar-
tistas:
Não sabem o valor da cidade, não sabem mesmo. Precisava esclarecer, orientar; eles
têm orgulho de serem parnaibanos daqui mesmo. (Paul)
E, às vezes, mais agressivos:
O pessoal daqui não dá, veja a diferença de Parati, Ouro Preto ... não tem o menor
senso de proporção, é um horror... o pessoal daqui é inculto, grosseiro, não entende
nada. (Pablo)
Também eles se colocavam como modelo para a cidade, na qualidade de interessados
na a preservação:
Nós servimos de exemplo aqui, depois que restauramos nossas casas é que o pessoal
viu que era possível, que ficava bonito, que valia a pena ... A minha casa deu muito
trabalho para restaurar, destelhei onze casas aí no sítio e troquei com eles por telhas
novas, troquei móveis antigos por de fórmica, trouxe coisas da Bahia, Minas, Rio de
janeiro, madeira do Paraná para fazer o assoalho ... (Paul)
Para esse grupo a preservação era encarada de forma privada, não
existindo uma preocupação com o conjunto, com o patrimônio da ci-
dade: preservar se restringia a restaurar suas próprias casas. Mesmo
valorizando esse aspecto de cidade pequena onde todos se conhecem,
pôde-se observar que se relacionavam apenas dehtro de seu grupo e
com amigos de São Paulo, já que a maior parte deles manteve víncu-
los pessoais e de trabalho na Capital. Quando vieram para Parnaíba, ti-
nham uma proposta definida: comprar as casas antigas, restaurá-las,
apostando numa intervenção do Estado que impedisse o crescimento da

{José GUILHeRme cantoR maGnam) 297


cidade, principalmente no que diz respeito à proibição de formação de
novos bairros para a população de baixa renda.
O Estado precisária fazer uma intervenção definitiva em Parnaíba. Considerá-la
monumento paulista, cuidar do núcleo de 5 km á volta dele, impedindo indústrias,
tudo ... (Pablo)
Esse projeto parece que já fracassou, dado o crescimento espacial e
populacional que a cidade vinha tendo em função de ocupação indus-
trial nas rodovias próximas. A preocupação era a de ter um retorno do
capital investido, do sonho frustrado da "Paraty Paulista ..."
Parnaíba não tem mais jeito, nós colocamos milhões aqui e agora não dá mais, daqui
a três anos vai ser igual a Barueri. (Pablo)

Os profissionais
Eram professores, donas de casa, comerciantes, integrados portanto
ao cotidiano da cidade, mas sem constituir um grupo fechado, como os
artistas e os estrangeiros. Foi a partir do discurso dessas pessoas que se
pôde delimitar os diferentes grupos e precisar melhor o que era ser "par-
naibano" e o que era ser "de fora" nessa cidade. Essas pessoas manifesta-
ram logo no começo dos depoimentos suas dificuldades de adaptação:
A vida foi difícil prá gente no começo, mais difícil ainda foi a recepção aqui. O povo aqui
não encara você assim como uma pessoa que tá vindo fazer o bem, ele olha meio des-
confiado .... levou um ano prá uma daqui me cumprimentar. (Virgínia- professora)
É muito diferente se você vem só prá passear, aí tudo bem, sorrisos, cafezinhos etc.
Agora, quando você diz que veio pra ficar, aí muda tudo .... no começo foi horrível,
eles são muito fechados, sofri muito, ficou uma marca. (Letícia - dona de casa, casada
com parnaibano, há cinco anos em Parnaíba)
Na verdade, foi através do discurso dessas pessoas que se estabeleceu o
eixo que organiza a formação dos grupos e seus discursos, independente-
mente de faixa etária ou de condições socioeconômicas: o corte mais preciso
e ao mesmo tempo mais amplo se resumia em ser "de fora" ou "de dentro".
... uma das primeiras reuniões aqui na escola, uma das professores aqui da cidade me
olhou e disse:- 'mais uma forasteira na cidade .. .'. Eles são só entre a família deles,
só se for parente .... é assim aqui ; porque eu nasci aqui, meu avô, meu bisavô, meu

298 (museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas}


tataravô, a família toda, desde os primeiros, porque eu sou fulana de tal, o nome,
o nome é muito importante aqui... se você conseguir penetrar em uma família,
sinta-se vitoriosa. (Terezinha)
Parnaibano é acomodado, não participa, não tem iniciativa, eles não brigam pelo
que é deles, pelo direito deles. (Letícia)
Os parnaibanos em termos de cultura, eles não valorizam a cidade. Eu acho que
quem dá mais valor prá essas coisas de Parnaíba, para as construções daqui, são as
pessoas de fora ou as pessoas daqui que saíram quando pequenas e foram educadas
em outro lugar e voltaram para cá aí sim. Eles gostam porque têm, porque é deles,
porque pertenceram aos antepassados deles. (Virgínia)
Colocavam o parnaibano numa atitude permanente de reserva e
desconfiança para com os de fora. Na verdade, esse comportamento ex-
pressava uma atitude de resistência dos "de dentro" à invasão de seu
universo próprio, apoiada na estrutura familiar.
O parnaibano é desconfiado, meu marido fala que aqui até as janelas são fechadas.
Eles não abrem as janelas, espiam pelas frestas, eles têm esse costume, parece que
estão preocupados se você vai trazer alguma coisa ruim prá eles ... Eles são fechados,
foi muito difícil fazer amizade, e olha que eu estou aqui há quantos anos? E não sei
se essas amizades que eu consegui são sólidas. (Letícia)
Além disso, os depoimentos mostravam a existência de regras de
comportamento para a entrada no mundo parnaibano e a presença de
um forte controle social.
Eu acho que tem um código mesmo, têm regras que você tem que cumprir para ser
aceita ... eu não gostava de Carnaval, "Corpus Christi", essas coisas, mas aqui você tem
que gostar, tem que se envolver, senão fica de fora. (Virgínia)
Se uma pessoa de fora- quer dizer... mesmo que more aqui, né- faz alguma coisinha,
eles caem matando. Agora, quando é um deles, aí você não pode falar nada que eles
mudam de assunto, como se dissessem: -"você é de fora, não tem que se meter", e
todos são parentes. (Cinira)
A explicação para todo esse comportamento,.segundo a visão dessas
pessoas, reafirmando os depoimentos dos artistas, vinha do fato de a ci-
dade ter 400 anos e do forte sentimento de pertencimento e de "donos"
da cidade que os parnaibanos têm:

{José GUILHeRme cantoR maGnam} 299


Eu atribuo isso ao processo de formação da cidade. Em Conchas, minha cidade, é as-
sim: são todos imigrantes, além do caboclo, é claro. Lá tem de todo tipo: o caboclo, o
italiano e o português, que plantam nas terras e, na cidade, o comércio com os sírios.
E lá há um entrosamento entre as raças, todo mundo é imigrante, todo mundo veio de
longe, então a cidade é para nós mesmos. Vamos fazer, vamos construir, vamos fazer
o progresso dessa terra. Aqui não, aqui quem mandava eram os senhores da terra,
os chefes políticos e tinha os escravos, então eu acho que por haver essa diferença
social, Santana do Parnaíba é assim. Eles são os herdeiros, são os donos da terra ...
Em síntese, como já foi dito, esses moradores não constituíam um
grupo fechado dentro da cidade, tal como os artistas e os estrangeiros.
Por isso mesmo, eram eles que sentiam e caracterizavam mais profunda-
mente o "ser de fora": "tem sempre uma parede de vidro, você olha mas
não chega perto" - era a queixa. Contudo, mesmo entre os "de fora" - ar-
tistas, estrangeiros e profissionais - não se estabelecia um discurso ho-
mogêneo,já que tanto a inserção de cada grupo na sociedade parnaibana
quanto as representações que estes elaboram eram diferenciadas. O que
os unificava era justamente a característica de serem todos qualificados
pelos parnaibanos como sendo "de fora", ainda que houvesse gradações
de um grupo para outro na participação no mundo "de dentro".

Vila Nova: os "de dentro"


A pesquisa de campo em Vila Nova foi desenvolvida paralelamente à
do Centro Histórico, com o objetivo de servir de contraponto àquele. E
também aqui era o ser "de dentro" ou "de fora" que explicava a forma-
ção dos grupos e das diferentes representações que elaboravam sobre o
patrimônio, a preservação e a cidade. Os "de dentro" eram parnaibanos
que, por problemas de herança aliados à especulação imobiliária, foram
"expulsos" do centro. Os "de fora" eram pessoas oriundas da área rural
e urbana das cidades vizinhas e de São Paulo. No geral eram trabalhado-
res sem ou com pequena qualificação profissional.
Conversar com esses parnaibanos sobre a cidade significava recupe-
rar fragmentos de sua história, trazidos à memória quando descreviam
o cotidiano, as festas, a vida na cidade:

300 (museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas}


Antes o pessoal não precisava de nada, era mais animado. A cidade era muito melhor
que agora. No tempo do padre Bruno e Anacleto tinha muita festa. Começava na
Sexta-feira. Tinha pau de sebo, ovo na colher, corrida, tinha muita coisa, congada,
Antigamente a banda ia na casa dos festeiros chamando para a missa. Tinha bastante
festeiro. A gente morava no sítio, se pintava com essas bandeirinhas de festa que
a gente guardava, molhava e passava no rosto. Ficava parecendo um macaco. (D.
Cecília - parnaibana, mais ou menos 60 anos, há 20 anos mora na Vila Nova)
Assim, para estes parnaibanos, a cidade antes era muito animada,
havia muitas festas, todo mundo participava, e os próprios padres con-
tribuíam para que elas se realizassem. Até o pessoal do sítio vinha para
a cidade nesses dias, para as festas do Divino, de Corpus Christi, festa
de Sant'Ana, festas juninas etc., quando Parnaíba era praticamente
auto-suficiente. A economia de subsistência aliada a alguns estabeleci-
mentos comerciais asseguravam o abastecimento para uma população
composta por poucas famílias.
Antigamente era só as famílias daqui, todo mundo se conhecia. Eu sou daqui, minha
família toda também. Meu marido não, é de fora . (D. Antonieta, parnaibana, 50 anos,
nasceu e foi criada no Centro, há 4 anos mora em Vila Nova)
Para esses parnaibanos da Vila Nova, a importância da cidade es-
tava, como no Centro Histórico, centrada na participação das famílias,
nas festas. A especificidade que se observava no discurso deles, con-
tudo, era em relação ao patrimônio edificado. Diferentemente dos do
Centro, eles descreviam as casas e acompanhavam as transformações e
reformas por que passaram mesmo após tê-las vendido. Assim, o Cen-
tro era valorizado e apropriado apenas através dos laços afetivos que
ainda os uniam a esse espaço, o que era transmitido por várias gera-
ções no interior de uma família .
A sensação irremediável de perda e a necessidade de tornar presente
aquilo que deixou de existir, conservando pelo menos na memória o es-
paço privado de sua família, levava-os a acompanhar, a controlar até, as
modificações que suas antigas casas foram ou iam sofrendo.
Eu morei lá na cidade, na casa que hoje é do Paul. Saí daquela casa porque, quando
meus pais morreram, eu não tinha condições de comprar a parte de meu irmão e

{José GUILHeRme cantoR maGnam) 301


nem ele a minha. Sabe, é casa histórica, tem um valor muito grande. Se não fosse
isso eu continuava morando lá até hoje. Tem paredes de taipa, bem grossas, cômodos
enormes, era uma beleza, A cozinha era dentro e o banheiro fora. Quem vê a fachada
não dá nada pela casa, mas se você entrar, imagina que hoje tem até piscina. Eu acho
que Parnaíba tem que ser preservada. Eu gosto muito daqui e acho que a cidade tem
que ficar como está. Não deviam nem ter deixado construir umas casas modernas
lá no Centro. (D. Antonieta)
Para os parnaibanos que vieram do sítio para a Vila Nova e que, por-
tanto, não possuíam casas no Centro Histórico, a Vila Nova aparecia
como um espaço privilegiado da cidade, já que eles não tinham vínculos
estreitos com aquelas famílias cuja história e identidade estavam plas-
madas no Centro Histórico.
O centro é muito parado. Ficam todas as casas fechadas. De noite não dá prá andar
lá. Dá medo. Não tem gente nas ruas, não tem nada lá, tá morto parece. Aqui não;
tem gente na rua, tem televisão ligada, tem música, tem crianças. Daqui a alguns
anos dizem que o centro da cidade será aqui. (D. Cecília)

Vila Nova : os "de fora"


No discurso dos "de fora" o que aparecia eram as condições de vida,
semelhantes às da periferia dos grandes centros urbanos: faltavam
transporte, hospital, escolas e água; as vias públicas eram mal conser-
vadas, os moradores só conseguiam construir suas próprias casas nas
horas vagas, havia problema de desemprego, segurança etc. Era, pois,
um discurso centrado na percepção das carências do bairro e, portanto,
radicalmente diferente dos depoimentos dos "de dentro".
Não dá prá aceitar que uma cidade tão velha que dizem que D. Pedro morou, não
tenha hospital, escola, ônibus, água. Osasco, Barueri, Carapicuíba, que são bem mais
novas que Parnaíba, que pertenceram a Parnaíba, tem tudo isso. Agora, aqui não.
(Ângelo, 25 anos, há 2 anos em Vila Nova)
No caso desses moradores, isso ocorria em virtude de suas histórias
de vida, suas relações familiares e afetivas estarem associadas a outras
cidades. Dessa forma, Parnaíba surgia sempre numa visão comparativa
com experiências anteriores. Na tentativa de solucionar os problemas do

302 {museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas}


bairro e melhorar suas condições de vida, tomaram várias iniciativas:
abaixo-assinados, protestos diante da prefeitura etc. Ao mesmo tempo
em que contavam isso, ia se delineando a imagem que os "de fora" de
Vila Nova têm dos parnaibanos:
Eu estava pensando em criar uma Sociedade ou Associação Amigos do Bairro. Lá em
São Paulo, em todo bairro tem, e o pessoal vai mesmo para as Secretarias reclamar. E
acabam resolvendo o problema. Mas o pessoal daqui é muito parado. (Rita, 18 anos,
há três anos mora em Vila Nova)
À imagem do parnaibano acomodado, passivo, acrescentava-se a re-
sistência que manifestavam contra os "de fora".
Quando eu cheguei aqui, foi difícil me entrosar com os parnaibanos. São muito
desconfiados. Parece que acham que a gente vem aqui se aproveitar deles. Depois de
algum tempo, quando descobriram que eu não era nenhum monstro, começaram a
me aceitar. Antes era mais difícil. (Ernesto, 35 anos, há 7 anos mora na Vila Nova)
Para eles, o centro era a passagem para o trabalho ou para a escola em
Osasco, e o local onde encontravam serviços públicos e as poucas opções
de lazer que podiam usufruir: o bar, a praça. O ponto de referência domi-
nante continuava centrado nas carências do bairro, ainda que com algu-
mas alusões esparsas ao tombamento ou ao valor histórico da cidade:
Com esse negócio de tombar a cidade, ninguém mais pode alugar casa lá. E prá com-
prar muito menos. Pobre não pode morar em Parnaíba. Prá mim não interessa se
essa cidade é histórica ou não. O que adianta ela ser antiga se não existem condições
prá população? E o povo daqui também não dá valor prá nada. (Ângelo)
Assim também na Vila Nova confirmava-se a hipótese inicial, a da he-
terogeneidade da população ligada à existência de significados diferen-
ciais. Os "de dentro" da Vila Nova compartilhavam com os parnaibanos
do Centro as mesmas representações: o orgulho de ser parnaibano, o forte
sentimento de pertencimento à cidade e a percepção das transformações
profundas na dinâmica de Parnaíba, que era só das famílias. Os "de fora",
os novos segmentos de população que se fixaramna Vila Nova, elabora-
vam uma imagem radicalmente diferente, centrada no bairro e suas ca-
rências,já que não possuíam nem a história familiar nem tinham acesso à
história mais ampla para valorizar a cidade com outros critérios.

{José GUILHeRme cantoR maGnanr} 303


VISÕES DA CIDADE

Com base nas entrevistas, conversas e contatos, foi possível detectar


uma regularidade no discurso dos "de dentro": o que eles valorizavam
eram os costumes, lembranças e relações sociais, referidos a um tempo
em que "Parnaíba era da gente ..." Nesse sentido, as festas surgiam com
grande destaque, como momentos de expressão, concretude e atualiza-
ção daquelas relações, quando então era possível voltar a se apropriar
da cidade e dos espaços públicos em destaque: as três ruas - a de cima,
a de baixo e a do meio - a praça e a Igreja. Esse era também um dos có-
digos de entrada no mundo parnaibano, era no domínio público que se
admitiam os de fora, dificilmente no âmbito do privado.
Fora do calendário de festas, o cotidiano da cidade acontecia entre
as famílias, no interior das casas, herança de várias gerações, a que só
têm acesso os parentes: "Eles vêm na sua casa, conversam, mas não te
convidam prá ir na casa deles", diziam os "de fora". A casa era, portan-
to, o espaço onde eles se encastelam e se defendem dos "de fora". Se já
não são efetivamente os "donos da cidade", porque havia outros grupos
disputando o domínio das relações e controlando alguns setores da vida
social, era no âmbito da casa, entretanto, que esse domínio continuava
existindo, pois nela não permitiam nem a entrada, nem a interferência
dos "de fora". A casa é o símbolo que restou dessa tradição que se legiti-
ma na descendência dos fundadores da cidade.
Por conseguinte, não era tanto o valor histórico-arquitetônico das
edificações que orientava a visão de cidade e patrimônio desse segmen-
to. A história que permeava seu sistema de valores e visão era antes uma
história familiar, portanto restrita, que não passava por um conheci-
mento mais especializado. Apenas os parnaibanos que saíram da cidade
e voltaram e os da Vila Nova que foram expulsos do Centro é que soma-
vam à casa esse valor, ainda que de forma secundária, e isso se devia à
possibilidade de comparação com outras cidades.
Os termos mais utilizados para designar o patrimônio eram "anti-
güidade" e "tradição". Alguns não diferenciavam o CONDEPHAAT do

304 {museus, coLeções e patRimÔmos: naRRatiVas poufômcasl


IPHAN, referindo-se apenas ao "patrimônio"; o tombamento era pouco
compreendido: havia quem pensasse ser uma lei municipal, aprovada
pela Câmara, abrangendo apenas a igreja ou as duas casas bandeiris-
tas tombadas pelo IPHAN. As poucas referências a um cuidado e aten-
dimento às normas do tombamento se restringiam à conservação das
fachadas. Os que tinham um maior conhecimento do CONDEPHAAT
eram justamente os que tinham tido problemas com reformas em suas
casas, e para eles a imagem era negativa, caracterizada pela ineficiência,
pela demora e pelo tratamento desigual: "implicam com umas coisinhas
de nada e deixam passar coisas mais graves". Ou então não entendiam
a existência de um órgão preocupado com "antigüidades" nos dias de
hoje: "eu não entendo isso, tanta coisa acontecendo, o mundo tão muda-
do, não sei como é que sobrou o CONDEPHAAT, eu não entendo ..."
O "ser parnaibano" - apesar das especificidades advindas tanto da
condição de classe, faixa etária ou de expectativas de vida diferentes re-
lacionadas à cidade - traduzia-se na tentativa de manutenção da identi-
dade desse segmento diante das transformações pelas quais a cidade vi-
nha passando nas últimas décadas. A integração progressiva da cidade à
Grande São Paulo, com todas as mudanças já citadas - ingresso de novos
segmentos da população, formação de novos bairros, especulação imobi-
liária etc.-, tinha gerado alterações profundas na composição social da
cidade. "Ser parnaibano" era quem, por oposição, definia o outro- os "de
fora" - artistas, estrangeiros, operários, comerciantes e professores.
Para os "de fora" residentes no Centro Histórico a cidade existia e
tinha importância enquanto patrimônio edificado. É um atributo im-
portante tanto para aqueles que investiram muito na restauração de
suas casas como para os que contavam com a implementação do turis-
mo para a divulgação e ampliação de suas atividades. Assim valoriza-
vam a cidade tanto por causa da tranqüilidade e proximidade com São
Paulo, quanto por seu patrimônio histórico e arq~itetônico. Conheciam
o órgão de preservação que atuava na cidade e, na maior parte das ve-
zes, cobravam uma atuação mais rígida de fiscalização e a necessidade
de um programa educativo para a população.

{José GUILHeRme cantoR maGnam} 305


Entretanto, é importante destacar que mesmo para os "de fora" a
concepção do que seja preservar era diversa da do órgão, e às vezes con-
flitante com ela. Assim,por exemplo, um dos estrangeiros demoliu uma
das duas casas antigas que comprou, construindo uma nova, imitando a
demolida, e restaurou outra à custa de destelhar 11 casas da zona rural.
Também a idéia de que o tombamento e a preservação se resumiam ape-
nas à fachada das casas era generalizada tanto para os "de fora" como
para os parnaibanos.
Para os "de fora" residentes na Vila Nova, que ali se fixaram em fun-
ção das exigências do mercado de trabalho e que eram trabalhadores
sem ou com pequena qualificação profissional, a representação da cida-
de estava plasmada no bairro, e o dominante no discurso eram as rei-
vindicações de melhorias na infra-estrutura do bairro - água, esgoto,
asfalto etc.: o Centro Histórico era apenas a passagem para o trabalho ou
o local onde estão os serviços públicos.
A observação dos casos atendidos no escritório do CONDEPHAAT
confirmou as questões levantadas na pesquisa. Assim, apesar do esfor-
ço por parte dos técnicos para justificar a importância de se manter as
características originais das casas e, nos casos de reforma ou ampliação,
de proceder de maneira criteriosa a fim de não comprometer o valor do
imóvel, inúmeras vezes os proprietários se opuseram à orientação dada
e cederam apenas em parte em suas intenções iniciais. A casa é o domí-
nio do privado, aí não se aceitam interferências.
Outro dado interessante que foi possível observar foi em relação a
algumas pessoas que, anos atrás, fizeram reformas descaracterizado-
ras das casas, como, por exemplo, trocar janelas por vitrôs, e que hoje
querem retornar ao "antigo", ao original. A valorização do "antigo" vai
pouco a pouco ganhando terreno na cidade, não em função do valor his-
tórico arquitetônico das casas, mas em função do valor comercial que
elas passaram a ter em razão da especulação imobiliária surgida prin-
cipalmente em vista da procura de pessoas de fora "pelo charme que as
casas antigas têm". Assim mesmo, nas novas construções, todos queriam
o "estilo colonial",já incorporado pela indústria da construção.

306 {museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas}


Enfim, concluiu-se que o que estava em jogo era a questão da apro-
priação da história e as maneiras pelas quais essa apropriação se dava.
De um lado estavam os parnaibanos, cuja identidade está colada à histó-
ria familiar e que tentavam ainda manter um controle, rejeitando os de
fora, cuja vinda para a cidade era associada à destruição de estilo e vida
tradicional. Para esse segmento, o patrimônio edificado, tanto as casas
com as edificações públicas, tinham valor enquanto referido à história
das famílias, faltando-lhes um contexto mais amplo que lhes permitiria
entender e até mesmo valorizar os bens culturais com os critérios insti-
tucionais da preservação.
De outro, estavam os "de fora", que atribuíam à ignorância dos par-
naibanos o descaso pela preservação e que, justamente por manipula-
rem e terem acesso a um conhecimento mais especializado, valorizavam
o patrimônio edificado com os critérios que se aproximavam aos do ór-
gão de preservação, ainda que as atitudes de preservar se mostrassem às
vezes contraditórios aos interesses do órgão, já que a preocupação que
norteava esse grupo era, principalmente, ditada por sua visão particu-
lar, pressupondo dividendos pessoais na preservação dos imóveis ou da
cidade. Esse grupo acabava tendo, portanto, a mesma percepção que se
pôde observar na maior parte das intervenções dos órgãos de preserva-
ção: valorizar o objeto por si mesmo, sem levar em conta os significados
projetados no bem e sua inserção no tecido social.

As FESTAS

Tendo em vista a freqüência e o destaque com que o tema das festas


apareceu de diferentes maneiras no discurso dos moradores, e o seu ca-
ráter público em oposição aos valores ligados à vivência do domínio do-
méstico, no interior das casas, essas celebrações, profanas e religiosas,
terminaram constituindo um espaço privilegiado para o andamento
da pesquisa. A primeira tarefa foi identificar o calendário festivo anual
para, na continuação, fazer a observação de cada uma delas. Esse ciclo
era constituído por festas que celebram desde momentos de significa-

{José GUILHeRme cantoR maGnam} 307


ção mais ampla, como o Corpus Christí, o Sete de Setembro e o Carnaval,
até comemorações mais restritas ou rurais, como a festa de São João, de
Joãozinho Chaves e a Romaria de Santo Antônio do Surú, passando por
festas religiosas .e marcos significativos para a cidade, como a Festa de
Santa Ana e o aniversário da cidade.
Em ordem cronológica elas se distribuíam da seguinte maneira: São
Sebastião e São Benedito, em janeiro; Carnaval; Santo Antônio do Surú
(17/06); Corpus Christí (21/06); São João de Joãozinho Chaves (30/06); Festa
de São João da Vila Nova (final de junho); Festa de Sant'Ana (29/07); Sete de
Setembro e Aniversário da Cidade (14/11). Por razões de espaço serão apre-
sentadas aqui apenas Corpus Christí, o Carnaval e a Festa da Padroeira.

Descrição
Corpus Christi
A festa de Corpus Christí é realizada em Parnaíba há muito tempo,
havendo registres em documentos até do século XVII. A maneira tradi-
cional de enfeite da cidade era jogar flores e ervas aromáticas nas ruas
por onde a procissão passava. Sua forma atual, com tapetes de serragem
colorida decorando as ruas é, entretanto, bastante recente. Por volta dos
anos 1960, uma professora vinda de Itu introduziu essa técnica de enfei-
te e, a partir de então, todas as festas foram feitas assim.
A festa é organizada pela Prefeitura, pelos moradores e pela Igreja,
cabendo à primeira tingir a serragem e distribuí-la; aos moradores a
decoração das ruas, que compreende a definição dos temas, desenhos
e a escolha das pessoas para ajudar a fazer o trabalho; à Igreja, cabe a
organização e a realização da missa e da procissão.
A preparação da festa que foi objeto de observação para a pesquisa6 co-
6 . Como as demais meçou mais ou menos dez dias antes, com a tintura da serragem feita por
descrições que
constam neste funcionários da Prefeitura em uma pracinha em frente ao Largo São Ben-
relato, a desta
festa tem como
to. Durante esse período também foram feitas reuniões com os responsá-
base observações veis por rua para saber a quantidade de serragem, nas diferentes cores,
feitas à época da
pesquisa. que cada um iria precisar. Também os moldes de madeira ou de papel que
iriam ser utilizados para os desenhos foram feitos alguns dias antes. As

308 {museus, coLeções e patRimélmos: naRRativas poufélmcas}


barraquinhas a ser montadas no dia da festa foram fornecidas pela Prefei-
tura, e os responsáveis se inscreveram no Departamento de Turismo.
A decoração das ruas centrais - Santo Antônio, Santa Cruz, Suzana
Dias- da Praça 14 de Novembro e do trecho final da Bartolomeu Bueno,
começou na noite e madrugada anteriores ao dia da festa e se estendeu
até a hora do almoço do dia seguinte. Apenas a rua Coronel Raimundo
e o trecho inicial da rua Bartolomeu Bueno começaram de manhã cedo.
Durante a noite e a madrugada foram principalmente os jovens que tra-
balharam, inclusive alunos das várias escolas do município, quando en-
tão a cidade ganhou um ritmo completamente diferente do habitual:
pessoas circulando pelas ruas, grupos de serenata e garrafas térmicas
de café e quentão animando o trabalho.
Os grupos, à exceção das escolas, eram pequenos, com cinco ou seis
pessoas por trechos de rua. A decoração com~çou com a feitura do moti-
vo principal, que pôde ser feito a partir de moldes de madeira, de papel
ou riscados no chão à mão livre ou a partir de desenho prévio. O fundo
do quadro foi coberto primeiro com serragem natural e depois com co-
lorida; foram usadas duas qualidades, uma grossa e outra mais fina. A
serragem é o elemento básico utilizado na decoração além da farinha de
trigo, cascas de ovos, pó de café, papel crepom, tampinhas de garrafas
cobertas com papel laminado e outros.
De manhã cedo, as barracas de comida e artesanato começaram a
ser montadas. As de comida ocupavam a Praça 14 de Novembro, as ruas e
as garagens das casas. Na maioria destas, vendiam-se doces caseiros. Na
praça, as barracas eram da Assistência Social e da Igreja. Havia também
barraquinhas da Santa Casa, do Centro Espírita e do Teatro. As de arte-
sanato, tanto de Parnaíba como de fora, tomavam conta da praça e da
lateral da igreja. Os trabalhos de Parnaíba eram feitos principalmente
em crochê, retalhos, bonecas de pano e artesanato em madeira; os de
fora, aqueles habitualmente presentes nas feiras do Embu e da Praça da
República, o chamado "artesanato industrializado".
No começo da tarde a cidade já estava cheia, e todos- turistas, vin-
dos principalmente de São Paulo, Barueri e Osasco, moradores, assim

{José GUILHeRme cantoR maGnam} 309


como os habituais repórteres de jornal e televisão - passeavam obser-
vando os tapetes e consumindo os produtos oferecidos nas barraqui-
nhas. Às 16 horas, a banda da cidade - a Corporação Musical Santa Ce-
cília - começou a tocar em frente à igreja, de onde sairia procissão às
16h30min, composta· pelo padre, pelo prefeito e um senhor carregando
o pálio; a seguir a banda, atrás, o povo. Durante todo o percurso, os
turistas se aglomeravam nas calçadas, assistindo e/ou fotografando,
enquanto a maioria dos parnaibanos ou seguia a procissão ou a via
passar da janela de suas residências. As casas de fim de semana esta-
vam abertas e com muita gente. Muitas tinham suas janelas e sacadas
enfeitadas com toalhas de crochê, arranjos de flores, imagens e velas.
Um altar, na calçada da rua Bartolomeu Bueno, era também ponto de
aglutinação, já que nesse local é costume a procissão parar e o padre
fazer uma breve benção.
O momento máximo é a procissão, cuja passagem desfaz a decoração
das ruas, o que marca o final da festa.

Festa de Sant'Ana, padroeira de Parnaíba


O dia 26 de junho é feriado em Santana do Parnaíba: a cidade celebra
o dia de sua padroeira, mas as comemorações, em geral, são transferidas
para o fim de semana mais próximo. Essa festa, tradicional na cidade, é
uma das mais antigas e justamente por ser a da padroeira, é uma das
que mobilizam mais fortemente os moradores "de dentro". Em tempos
idos, durava vários dias; mais recentemente, é celebrada uma missa em
louvor à Sant'Ana no dia 26 e, no domingo, há procissão, missa campal,
barraquinhas e música na praça.
Esta festa atrai poucas pessoas de fora, a maioria dos presentes é de
moradores da cidade, dos bairros próximos e da zona rural. No ano em
que a pesquisa foi realizada, a movimentação maior teve início à tarde,
quando as barraquinhas de comida e bebida já estavam armadas, e um
alto falante começou a tocar. Por volta das 16hOOmin, todos se aglome-
raram no Largo da Matriz. Saiu, então, a procissão, tendo à frente os
Violeiros do Brasil - grupo de Osasco contratado para animar a festa -,

310 {museus, coLeções e patRimônws: naRRativas poufômcas)


a seguir a imagem de São Sebastião ("ele tem que ir na frente para não
chover"), a imagem de Sant'Ana, o padre, as autoridade locais, a banda
da cidade e um grupo de fiéis. Por ser a procissão da padroeira, seu per-
curso é maior, estendendo-se até o limite do Centro com a Vila Nova.
Após a procissão foi realizada a missa campal, em frente à igreja; no
final, a festa continuava na praça, onde os Violeiros do Brasil apresen-
taram uma série de cantores e duplas de viola no coreto, onde, ademais,
ocorreram danças tradicionais como folia de reis, quadrilha, catiras
etc. Outra atração da praça foi a barraquinha de leilão de bonecas. Orga-
nizada pela Igreja - o padre comprara e distribuíra as bonecas entre as
senhoras da cidade para que as vestissem, no dia da festa a barraca foi
ponto de aglutinação no Centro Histórico.Também em homenagem ao
dia da padroeira, o Museu esteve aberto expondo trabalhos de artesa-
nato em pano e retalhos dos moradores da cidade.
No ano em que a pesquisa foi realizada, fazia muito frio no dia da
festa e ainda assim era maciça a presença dos moradores da cidade, em
particular os do Centro Histórico (os mais velhos, principalmente). Os
jovens ficaram na praça até por volta de 19h00min, quando foram para
o clube, onde todos os domingos à noite há uma "balada". Após a apre-
sentação dos violeiros, a banda ocupou o coreto até cerca de 21h00mim,
quando todos se dispersaram e a festa terminou.

Carnaval
O carnaval em Santana de Parnaíba é uma festa tradicional e bas-
tante conhecida na região, principalmente em Barueri, Osasco e Pira-
pora. A abertura é, há mais de cem anos, na sexta-feira à noite, com o
Bloco dos Fantasmas e o Grito da Noite. Este último é o grupo que vai
puxando o samba, com temas improvisados, geralmente sobre perso-
nagens e situações do cotidiano da cidade. Atrás do 1'Grito" vem o Bloco
dos Fantasmas, do qual todos participam vestidos com mortalhas bran-
cas, caveiras e máscaras ou com fantasias de terror; o maior cuidado é
não ser reconhecido. O primeiro grupo de "fantasmas" saiu, no ano de
realização da pesquisa, por volta das 22hOOmin do Museu, no Largo da

(José GUILHeRme cantoR m aGnam} 311


Matriz. Aos poucos, vários outros "fantasmas", de todas as partes da ci-
dade - inclusive do cemitério - foram engrossando o bloco.
Do Bloco dos Fantasmas todos participaram: velhos, mulheres, crian-
ças, moradores do Centro Histórico, da Vila Nova. Nos outros dias, três
eventos se realizaram': o baile no clube, o baile na rua e o desfile das escolas
de samba, no domingo e na terça-feira. Para o carnaval no Clube Atlético
Santana foi contratado um conjunto de fora; o baile é bastante animado,
na opinião dos participantes, indo das 23hOOmim às 4 horas da manhã.
Na Praça 14 de Novembro foi realizado o baile de rua, promovido pela
Prefeitura e animado pela banda da cidade. O baile começou às 19h30min,
indo até meia noite, e normalmente é uma opção para aqueles que não po-
dem pagar o ingresso para o baile do clube, assim como para as crianças.
A organização e preparação do desfile ficaram por conta da Prefei-
tura e do clube. Eram duas as escolas de samba da cidade: a Unidos de
Parnaíba, subvencionada pela Prefeitura, e a do Clube Atlético Santana.
Foi o Departamento de Turismo que idealizou a decoração das ruas, con-
tratou a costureira e providenciou as verbas para a compra de material
para as fantasias.
Às 16h30min saiu o desfile, com a "Unidos" na frente e a escola do
C.A.S.A. a seguir. Nessa hora, as calçadas estavam cheias de turistas, e
os moradores do Centro aguardavam nas janelas de suas casas a pas-
sagem do desfile. A "Unidos" era a escola maior, com ala das crianças,
das mulatas, bloco de moças, bloco dos rapazes, rainha da bateria, ba-
teria, porta-bandeira, mestre-sala, rainha e rei morno. A maior parte
dos integrantes dessa escola era da Vila Nova, além de alguns amigos
de São Paulo, Barueri e Osasco. A escola do C.A.S.A. saiu com o bloco
das casadas, o bloco das moças, porta-bandeira, mestre-sala, bateria e
destaques. Nessa escola a maior parte dos participantes era do Centro
Histórico e das famílias tradicionais da cidade.

Significado das festas


A partir da observação do conjunto das festas, pôde-se fazer uma pri-
meira classificação: as da Padroeira, São Benedito, São Sebastião, Romaria

312 (museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas)


de Santo Antônio do Suru, Corpus Christi, São João da Vila Nova e São João
da Família Chaves são festas essencialmente religiosas, ou seja, seu ponto
focal está na devoção ao santo que celebram, o que não quer dizer que não
tenham elementos ou momentos profanos, tais como as barraquinhas, o
baile, a madrugada de preparação das ruas para o Corpus Christi e etc. As
demais teriam então um caráter marcadamente profano, como a festa de
Aniversário da Cidade, a comemoração do Sete de Setembro e o Carnaval.
Entretanto, essa classificação não é suficiente para identificar como
cada segmento participa das diversas festas, pois essa participação é um
importante indício das suas apropriações do espaço social da cidade,
baseadas no referencial histórico de cada um, e expressa os conflitos e
tensões que permeiam o cotidiano.
Observando a relação dos "de dentro" com as festas, vê-se nitida-
mente que a maior valorização e participação recaíam justamente na-
quelas festas que reforçam a identidade parnaibana: a Festa da Padroei-
ra e o Aniversário da Cidade. Na Festa da Padroeira são eles que enfeitam
o altar e seguem a procissão rezando e cantando. No Aniversário da Ci-
dade, todos estão na rua desde cedo e no baile à noite. Pode-se perceber,
em ambas, a importância que os "de dentro" atribuem à sua realização,
quer pela participação quer pela exaltação à cidade, a seus fundadores e
às famílias tradicionais. Por outro lado, os moradores da Vila Nova e dos
· bairros da periferia da cidade participavam dessas festas na qualidade
de simples espectadores, enquanto os "de fora" do Centro Histórico se-
quer tomavam conhecimento delas.
A festa de Corpus Christi expressa outras relações. O núcleo da festa
- os tapetes de serragem que enfeitavam as ruas por onde passava a pro-
cissão - foi uma novidade introduzida por uma pessoa de fora, trabalho
que hoje é feito principalmente por pessoas da Vila Nova, com amigos de
cidades próximas, com destaque para a participação dos "artistas". Eles
se reuniram previamente para decidir o tema que orientaria a decora-
ção dos tapetes - no ano da pesquisa foi "O trabalho e os santos".
Assim, os "artistas", independentemente da rua em que residiam,
enfeitaram a Praça 14 de Novembro, normalmente com temas e mate-

{José GUILHeRme cantoR maGnam) 313


riais não muito ortodoxos, o que gerou muitos comentários na cidade.
Eram poucos os "de dentro" que enfeitaram as ruas; sua participação
era dada pelo controle~ pela crítica, quando de manhã passeavam pela
cidade observando o trabalho, revelando também no momento da festa
a disputa e o conflito' que existe entre os grupos.
A festa de São João da Vila Nova, por sua vez, expressava também a po-
sição dos moradores desse bairro na dinâmica dos grupos. Essa festa nas-
ceu justamente como afirmação e delimitação de espaço, já que naquele
momento esse grupo era fortemente discriminado pelos "de dentro"; o
clube, por exemplo, não os admitia como sócios. Mais recentemente esse
papel de "periferia", de "baianos", é preenchido pelos moradores de bair-
ros mais afastados do Centro, como o Jardim Isaura, por exemplo. Assim,
essa festa também refletia uma nova oposição: a presença de moradores
que têm outro tipo de vínculo com a cidade e que se relacionam muito
mais com os habitantes das cidades vizinhas, principalmente Osasco e
Barueri - num certo sentido seus "iguais" - do que com os "de dentro".
Já o Carnaval, como festa de inversão, das fantasias que ocultam e
revelam, da possibilidade de representar outros papéis, permitia a par-
ticipação de todos: dos "de dentro", "de fora", "artistas", "estrangeiros",
da periferia e dos turistas, ainda que essa participação ocorra de forma
diferenciada. Assim, nas duas escolas de samba manifestou-se nova-
mente a oposição Centro Histórico/Vila Nova; o baile de rua e o do clube
também marcaram novas diferenças. E o Bloco dos Fantasmas e o Grito
da Noite são caracteristicamente parnaibanos, já que há mais de 100
anos são eles que abrem o Carnaval na sexta-feira à noite.
As demais festas do calendário da cidade se inscreviam em outros
eixos de significação. O Sete de Setembro é uma festa cívica, obrigatória,
realizada em todos os municípios. A Romaria de Suru, a menos dinâmica
e com sinais de enfraquecimento, refletia principalmente as transfor-
mações pelas quais passou a área rural do município com a expulsão
dos sitiantes, dando lugar a loteamentos e chácaras de fim de semana.
O Suru era, à época da pesquisa, talvez o último bairro rural onde ainda
era dominante a presença de pequenos sitiantes.

314 {museus, coLeções e patRrm8mos: naRRatrvas pouf8mcas}


Na festa de São João de ]oãozinho Chaves, via-se também a manu-
tenção das tradições ligadas ao catolicismo rural aliadas à realização
do baile - forró -, que é o momento mais concorrido da festa. As outras
duas festas, São Sebastião e São Benedito, eram festas religiosas que per-
diam vitalidade ano a ano, repercutindo apenas a devoção ainda presen-
te principalmente entre os mais velhos, "de dentro".
Também em relação à maneira como a população da cidade avaliava
as festas, foi possível perceber significados e valores diferenciados atri-
buídos a cada uma delas. Assim, para os "de dentro", há a valorização
do tempo em que as festas tinham um caráter mais familiar, voltadas
apenas para a comunidade local. Essa perspectiva se apresentava tanto
no discurso dos velhos como no de seus filhos e netos, que dominam
uma história localizada e o significado dessas festas, que dão conteúdo
ao ser "parnaibano".
Este grupo qualificava as festas em geral por meio da comparação
com as do passado. Assim, contavam que a maior parte delas era de ca-
ráter religioso, exercendo um papel atuante no cotidiano das famílias.
A igreja era cuidada e decorada por elas, sendo que cada uma recebia
a incumbência de manter o altar de um santo; em todos os quintais
eram plantadas flores destinadas à decoração da igreja. As mulheres
bordavam toalhas, faziam roupas para vestir as imagens etc. Todo ano
era sorteado um festeiro, que arcava com a totalidade das despesas e
sempre procurava superar seu antecessor. Assim, os santos eram ho-
menageados e as festas podiam durar até vários dias, com grandes do-
ações aos leilões (geralmente animais de criação) e fartura de bebida e
comida gratuita para todos.
Tinha quermesse, a quermesse era movimentada, tinha congada, tinha pau-de-
sebo, leilão com aqueles bichos, tinha bolo, tinha porco, bezerro, cabrito, galinha,
nas festas lá no jardim da praça. Tinha tanto bicho que os sitiantes tra ziam, princi-
palmente na festa de São Benedito, que é ele que protege os animais. Todo sitiante
dava um bicho prá São Sebastião que era prá guardar os animais, proteger. Então
cada sitiante, quando era festa dele, trazia um bicho. Até 1947, eu me lembro que era
assim, depois foi fracassando. Todo quintal que tinha frango, porco, cabrito, o dono

(José GUILHeRme cantoR maGnam} 315


da casa dizia: "esse não pode matar que é de São Sebastião", não podia matar porque
vinha pro leilão. Atualmente não tem mais nada que presta. (D. Dilma)
É importante esclarecer que descrições desse tipo correspondem ao
período no qual a atividade agrícola era dominante. Assim, também era
forte a lembrança das rezas caipiras, da folia de reis, das congadas, sempre
ressaltadas pela simplicidade que caracterizavam a vida em Parnaíba.
Mais recentemente, no discurso dessas famílias, as festas eram
descritas pelo que elas não têm e não são mais: a falta de religiosi-
dade, característica dos tempos modernos, aliada ao desinteresse de
um padre que "não gosta de festa" - chegou mesmo a impedir a rea-
lização de algumas delas - é agravada pelo interesse principalmente
comercial que orienta a realização das festas: "ninguém mais segue
a procissão, todos só querem montar barraquinha prá vender alguma
coisa", diziam. Essas mudanças eram explicadas pelas transformações
que a cidade sofreu nas últimas décadas, principalmente o crescimen-
to do município e o conseqüente aumento populacional, que geraram
modificações profundas no cotidiano da cidade e se refletiam também
no significado das festas. Para os "de dentro", os costumes, os valores
e as tradições se perderam:
Naquele tempo era gostoso as festas, tinha muita festa de rua, da igreja, era muito
bonito: barraca, cada barraca tinha um grupo uniformizado. (...)As barracas eram
em benefício da igreja, que nem essas festas do Divino, de Santana, essas festas
grandes que tinha,( ...) tinha congada, era tudo daqui, era tão bonito, depois foi mor-
rendo, foi acabando tudo, agora não tem mais ... Tinha uma porção de divertimento,
muito bonito, depois acabou tudo. Os costumes da cidade, do povo mesmo, já não é
como era, né, tem muita gente de fora aqui, tem muita gente: aqui pro centro não
aumentou, é a mesma coisa de sempre, mas lá prá cima, aquela vila que formaram,
é tudo gente de fora, pouca gente daqui. (D. Estela)
Essa festa do Corpus Christi, ou seja, esse enfeite nas ruas é relativamente recente, é de
após guerra.( ...) Corpus Christi antes, aqui, enfeitava-se as janelas, punha-se colchas
bonitas, toalhas, flores, crucifixo em cada janela. Ainda se faz isso, algumas pessoas,
as mais velhas, as mais moças já não enfeitam as janelas prá passar a procissão.( ...)
antes aqui era uma comunidade literalmente fechada. Então a gente vivia só com

316 [museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas}


recurso próprio e participava muito, porque a festa do divino, por exemplo, era
uma festa muito importante. O festeiro era sorteado quando terminava uma festa.
Chamava o Imperador do Divino e a Imperatriz. E tinha que ter capitão de mastro,
alferes da bandeira.(...) A festa de Santana, antes, tinha mais importância que Corpus
Christi hoje, porque era a Padroeira; Corpus Christi tinha, mas nem chamava Corpus
Christi porque era o "Triunfo da Eucaristia" né. Isso é muito antigo(...) Era o enfeite
das janelas e as folhas odoríficas que pisava e ficava aquele cheiro bom na rua( ...)
mas agora, na verdade, não é mais o espírito religioso, predomina mais o espírito
turístico, NE? (D. Emília)
Já para os "de fora", que não têm acesso ao passado da cidade e à me-
mória das festas, a avaliação que faziam delas é positiva, sendo um atri-
buto importante na caracterização da cidade. Elas expressavam, segun-
do eles, a manutenção do caráter "tradicional" de uma cidade pequena,
de interior. Assim, tanto para os "estrangeiros" como para os "artistas",
a opção por Santana de Parnaíba significava a possibilidade de morar
em uma cidade com essas características: uma "comunidade" ainda não
transformada totalmente em seus hábitos pelos meios de comunicação
de massa e conservando aquele "charme antigo". Para os "profissionais"
que vieram se integrar diretamente no cotidiano da cidade as festas
aparecem como a possibilidade de penetração no mundo fechado do
parnaibano e como eventos que atualizam, de forma um tanto nebulosa,
a memória de Santana de Parnaíba.
Os artistas têm que se envolver na vida da cidade através daquilo que sabem fazer,
através da arte. Por exemplo, nas festas como o Corpus Christi, o Carnaval... são pos-
sibilidades que a gente tem de participar fazendo aquilo que o artista sabe e deve
fazer; essa é minha opinião, entendeu? Eu gosto de morar aqui, aqui você ainda tem
uma vida diferente ... O Carnaval aqui, eu gosto muito, ainda é uma festa familiar
sem confusão. (Sr. Lourenço)
Eu gosto de Parnaíba, dessa vida de interior. Eu conheço as tias, o açougueiro, o
pessoal do sítio que vende frutas, sou amigo de todos ... f!qui, você dá uma saída e
todo mundo sabe onde você está ... e tem muita festa, aqui eles ainda conservam as
tradições; coisa que você não vê nas grandes cidades. Eu participo das festas, sempre
que posso, até fotografei e filmei o Carnaval e o Corpus Christi. (Paul)

(José GUILHeRme cantoR maGnam) 317


Havia, entretanto, diferenças significativas ao se comparar os discursos
com o comportamento desses grupos em relação à sua participação nas fes-
tas. Segundo os depoimentos dos "de dentro", as festas acabaram, não têm
mais sentido; no entanto, esse grupo continua participando e organizando
algumas delas, prihcipàlmente as religiosas e, em especial, a da padroeira e
a do aniversário da cidade. No discurso dos "de fora" tem-se a valorização
de todas as festas em conjunto, contudo, eles participavam efetivamente
daquela que tinha um caráter mais nitidamente marcado de exposição da
cidade para fora, de valorização do "cenário" da cidade: o Corpus Christi.
Pode-se concluir que, se as festas passaram por um processo de
transformação, inclusive no que se refere aos seus aspectos formais -
tais como, duração, organização e "brilho" -, elas continuavam existin-
do com diferentes graus de dinamismo, marcando posições, definindo
espaços, revelando aspectos do cotidiano e atualizando tanto os confli-
tos como as possibilidades de integração.

CoNcLusõEs

A pesquisa foi desenvolvida em três etapas - exploratória, classificató-


ria e de observação- cada qual em torno de um eixo básico. A primeira
parte tinha como objetivo levantar o conjunto das opiniões, interesses
e valores existentes na população de Santana de Parnaíba a respeito da
cidade e do patrimônio cultural, procurando a partir daí agrupar os
entrevistados em segmentos segundo os recortes e categorias que eles
mesmos utilizavam. Foi possível identificar, assim, duas divisões bem
nítidas: os "de dentro" e os "de fora".
Para os primeiros, a importância da cidade aparecia principalmente
no contexto das relações de família; o discurso era centrado no pas-
sado, quando Parnaíba era "dos parnaibanos", "todos se conheciam" e
quando as festas mobilizavam toda a cidade. As referências históricas
-salvo genéricas alusões ao tempo dos bandeirantes- não iam, contudo,
para além da história particular dos troncos familiares. Era através da
memória de um passado antes mítico que real e da crítica aos "tempos

318 {museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas}


atuais", à gente de fora, que os "de dentro" se auto-representavam como
guardiões do verdadeiro "ser parnaibano".
Os "de fora" traziam a marca da modernidade, das transformações.
Essa marca ia desde saber dar o devido valor ao patrimônio - diferente-
mente dos parnaibanos, considerados "atrasados", "ignorantes" -, pas-
sando pela defesa da ecologia, até o caso mais extremo dos "de fora" da
vila Nova, para os quais o que conta são as carências de equipamentos
urbanos, como corresponde a moradores de periferia.
Para uns, o interesse era pessoal: restaurar as próprias casas, mes-
mo à custa de destruir outras; alguns viam na cidade a possibilidade de
desenvolver atividades específicas, ligadas ao turismo, como ocorre em
Paraty ou Embu. O referencial, aqui, era o valor histórico-arquitetônico
apreendido de maneira algo ingênua- o "estilo colonial", que também
sensibiliza alguns "do centro" - ou, de forma genérica, o "charme das
casas antigas". Nesse sentido, o discurso dos "de fora" aproximava-se
em alguns aspectos da visão e prática dos organismos de preservação:
a ênfase era colocada na história mais geral e no patrimônio edificado,
com a diferença de que no caso dos órgãos de preservação existe uma
fundamentação histórica e arquitetônica elaborada, com base em co-
nhecimentos técnicos especializados.
O importante, contudo, é notar que para os "de dentro" a história
era idealizada e apreendida do ponto de vista restrito e fragmentado de
suas vinculações familiares; para os "de fora" a história era antes uma
referência genérica e/ou ingênua; de qualquer maneira, eram instâncias
que não se encontravam. Este era um problema a ser encarado pelos
órgãos de preservação: atuar no sentido de estabelecer mediações entre
esses pólos, de forma que o horizonte limitado das percepções dadas
pudesse se vincular a processos mais abrangentes, o que significava am-
pliar o que é restrito (percepções dos "de dentro") ~tornar mais concre-
to e preciso o que é aprendido de maneira difusa e permeada pelo senso
comum (percepções dos "de fora").
Qualquer proposta, seja de esclarecimento ou de atuação, se preten-
desse obter ressonância, devia partir dessa base mínima, e que não era

(José GUILHeRme cantoR maGnam) 319


a mesma para todos os moradores. Enquanto uns, os "de dentro", se-
guramente responderiam a apelos que evocassem de alguma forma os
laços familiares e a condição de "parnaibanos históricos", outros, os "de
fora", seriam mais sensíveis a questões e temas relacionados com a cida-
de enquanto conjunto arquitetônico com características específicas e
aberta a iniciativas, atividades e propostas que a vinculassem "ao resto
do mundo" e aos dias atuais.
Tanto os "de dentro" como os "de fora" encontravam-se, contudo,
num plano, o das festas. E mais uma vez fazia-se sentir a divisão já as-
sinalada: para os primeiros, as festas de hoje não tinham mais aquele
"brilho" de antigamente; para os outros, eram ocasiões de integração
na cidade ou de aí exibir suas iniciativas e o produto de suas atividades.
De um jeito ou de outro, porém, a questão tocava a todos, ainda que por
motivações e valores diferentes.
A escolha do ciclo festivo como fio condutor da terceira etapa da
pesquisa deveu-se, antes de mais nada, à importância que as festas as-
sumiam no discurso dos informantes e no efeito mobilizador que con-
trastava ~om a rotina da cidade. Era preciso, contudo, explicar essa
evidência empírica e assim fundamentar a linha de análise escolhida.
Comparando, então, as conclusões da primeira parte com observações
e depoimentos especificamente em torno do tema das festas, pôde-se
perceber uma oposição de fundo, referente ao conceito de tempo. Num
caso, tempo histórico, seqüencíal-progressivo: era o passado justificando
o "ser parnaibano" e servindo de critério para excluir os "de fora", essa
gente de agora, sem laços com a tradição de Parnaíba; para estes últi-
mos, o mesmo passado era visto como sinal de atraso, imobilismo, ou
então não passava de um vago marco de referência.
Com relação às festas, porém, o tempo de base é cíclico: a cada ano se
repetia o mesmo calendário festivo. "As festas já não são como antiga-
mente", deploravam os mais velhos. No entanto persistiam, amparadas
por uma estrutura que permanece, a despeito das inevitáveis mudan-
ças. É que se o tempo histórico era percebido como irreversível, o tempo
cíclico repunha, de forma ritualizada, eventos que evocam o passado,

320 {museus, coLeções e patRrmômos: naRRatrvas poufômcas)


atualizando-o e articulando-o à rede de relações que permeiam a trama
do dia-a-dia. Os ritos, assim, ao mesmo tempo em que alteram e estabe-
lecem cortes no fluxo cotidiano, não constituem momentos essencial-
mente diferentes da rotina diária, uma vez que, neles, determinados
aspectos desse mesmo cotidiano são salientados, colocados em foco. "O
mito e o ritual seriam dramatizações ou maneiras cruciais de chamar a.
atenção para certos aspectos da realidade social, facetas que, normal-
mente, estão submersas pelas rotinas, interesses e complicações do co-
tidiano" (Da Mata, 1979, p. 34).
Daí o interesse pelas festas - momentos de encontro entre o passado
e o presente, entre parnaibanos "históricos" e os "de fora", entre mora-
dores e visitantes; conforme afirma Da Mata, "é como se o domínio do
ritual constituísse uma região privilegiada para se penetrar no 'coração
cultural' de uma sociedade, ou seja, no seu sistema de valores, uma vez
que o rito permite tomar consciência de certas cristalizações sociais
mais profundas". (Idem, p. 29)
Foi mostrado como os "de dentro" e os "de fora" - artistas, profis-
sionais, estrangeiros -participavam, em diversos graus, das festas. Cada
evento festivo, mobilizando, assim, participações diferenciadas, torna-
va-se suporte de significados também diferentes; dessa forma, não se
pode decidir pela "autenticidade" ou descaracterização deste ou aquele
com base em critérios estabelecidos num corte temporal diacrônico: se
ainda são realizados, é porque são investidos de significados por seus
vários participantes. Assim, a Festa da Padroeira e o Aniversário da Ci-
dade, por exemplo, constituem rituais de reforço para os antigos par-
naibanos; já a comemoração de Corpus Christi, entre outras, para os "de
fora", abre a possibilidade de entrada e participação na vida da cidade.
Além da oposição em torno do eixo temporal, existia outra, presente
nos depoimentos e no próprio comportamento dos entrevistados: é a
que opunha espaço privado (a casa) e espaço público. Enquanto aquele
era impenetrável, fechado aos "de fora" (inclusive aos Órgãos de preser-
vação e seus técnicos, nas visitas de rotina), o último era acessível até
para os turistas. O primeiro era o universo das famílias, o lugar de onde

{José GUILHeRme cantoR maGnam} 321


se exercia o controle - cortinas que se agitam discretamente, janelas
que abrigam olhares perscrutadores; já o segundo era aberto, na moda-
lidade de trajeto das procissões e dos desfiles, e local das barracas em
dias de festa: era, enfim, o cenário dos rituais.
Se se pretendesse· chegar até as casas (enquanto edifícios tomba-
dos, portanto, sujeitos à ação preservacionista institucional) e a seus
moradores, sensibilizando-os para a questão global da preservação,
seria preciso começar pelo espaço público e, estrategicamente, pelas
festas, elemento vivo e dinamizador do patrimônio cultural. O calen-
dário de festas pode constituir uma via de acesso privilegiada para
se começar a estabelecer as mediações entre as histórias familiares
particulares e os processos históricos mais abrangentes, e entre estes
e o patrimônio tombado.
Uma presença mais efetiva dos órgãos de preservação por ocasião das
festas e de sua preparação - incentivando, documentando, divulgando,
fornecendo subsídios de infra-estrutura - permitiria contrabalançar
a tradicional (e inevitável) função de órgão fiscalizador com outra, de
apoio. Um centro de memória poderia dar continuidade a essa tarefa
por meio de uma pesquisa histórica mais ampla, não apenas mediante
a coleta de dados em instituições e arquivos, mas também com levanta-
mentos de informações, documentos e objetos em poder dos próprios
parnaibanos: seria preciso mostrar que os fragmentos que constituem
sua memória fazem parte de processos mais amplos, responsáveis pelo
que Santana de Parnaíba foi e conserva hoje, em seus costumes, casas,
ruas, edifícios e na dinâmica de suas redes sociais.

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{José GUILHeRme cantoR maGnam) 323


patRimÓnio, Identidades e
metodOLOGiaS de tRaBaLHO:
/

Um OLHaR ffiUSeOLOGICO SOBRe a


expedição são pauLo 450 anos
Maria Cristina Oliveira Bruno

a identificação, o tratamento e a extroversão dos indicadores


da memória têm multiplicado os seus universos de análise
e ampliado o escopo de suas interpretações sobre as referências pa-
trimoniais, desafiando as perspectivas de pesquisa e impondo olhares
transdisciplinares para o desenvolvimento de instituições científicas e
preservacionistas. Nesse contexto e partilhando este cenário institu-
cional com outros modelos de gestão patrimonial, os museus têm pro-
curado superar seus impasses técnicos e argumentar a partir de novos
enfoques temáticos que problematizam os limites e reciprocidades en-
tre o local e o global.
A Museologia, por sua vez, tem proposto e experimentado novas me-
todologias de trabalho para a ampliação e verticalização do escopo de
seus campos de ação interdisciplinar e de projeção social. Trata-se de
uma área de estudo e atuação pública vocacionada para a negociação e a
inclusão socioculturais, apesar dos paradoxos que foram se acumulando
ao longo do tempo e que impuseram aos museus uma função muitas ve-
zes anacrônica em relação aos problemas das sociedades, transformando

324 (museus, coLeções e patRim8mos: naRRativas pouf8mcas}


os espaços museológicos em guetos de elites econômicas e científicas.
Entretanto, no âmbito da expressiva diversidade metodológica que
tem norteado os procedimentos museológicos de salvaguarda e comu-
nicação dos museus contemporâneos, as expedições ainda representam
um importante papel no que se refere à percepção e ao enquadramento
das referências patrimoniais para posterior inserção no universo da
musealização.
Esta comunicação prioriza a discussão sobre as estratégias meto-
dológicas, em especial a proposição da expedição como meio eficiente
para a observação e o registro das diversas manifestações da categoria
patrimônio cultural. A reflexão aqui proposta está organizada em tor-
no de um estudo de caso museológico: a Expedição São Paulo 450 Anos
e sua conexão com a implantação do programa museológico do Museu
da Cidade de São Paulo.
Cabe sublinhar que esta reflexão tem origem no período em que di-
rigi a Divisão de Iconografia e Museus do Departamento de Patrimônio
Histórico da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo (de 10/2003 a
7/2004) e tive a oportunidade de utilizar a minha experiência acadêmi-
ca na elaboração de princípios e métodos para a constituição do Siste-
ma Municipal de Museus. Este estudo de caso, agora apresentado, foi o
primeiro projeto nesse contexto com forte expressão museológica, que
resgatou as experiências anteriores da própria Secretaria e delineou os
caminhos sistêmicos.
Assim, este texto está organizado em dois segmentos. Em um pri-
meiro momento, serão pontuados alguns aspectos significativos da
historicidade dos processos expedicionários e suas respectivas cumpli-
cidades com a trajetória dos museus. Em um segundo momento, serão
apresentadas as características dessa expedição, que procurou identifi-
car e registrar os contornos contemporâneos dos enquadramentos cog-
nitivos que norteiam a construção das identidades da megalópole São
Paulo, tendo em vista uma ação museológica que pudesse representar
uma perspectiva renovada, ampliada e intensificada para a problemati-
zação do perfil patrimonial da cidade.

{maRia CRIStma ouveiRa BRuno} 325


EXPEDIÇÕES: PRINCIPAIS MOMENTOS DOS
OLHARES PRESERVADOS

São poucos os autores que se preocupam em analisar as relações en-


tre expedições e o perfil dos museus. Entretanto, encontramos reminis-
cências dessas relações desde a Antigüidade, e as perspectivas expedi-
cionárias têm singular relevância na construção dos sentidos patrimo-
niais que ao longo do tempo têm consolidado as instituições museológi-
cas, referenciando as ações de salvaguarda e comunicação e definindo a
vocação educacional dessas instituições.
As expedições estão na base da quase totalidade dos museus, cujos
acervos têm possibilitado o desenvolvimento de muitos campos de co-
nhecimento e delimitado as fronteiras de significação, refletindo os
caminhos que as sociedades trilham entre os objetos interpretados e
preservados e os novos olhares interpretantes que se apropriam das
coleções e acervos. Os encadeamentos entre as intenções de planejar
e percorrer, percorrer e olhar, olhar e perceber, perceber e selecionar,
selecionar e registrar, registrar e coletar, têm servido para as mais di-
ferentes propostas museológicas, estão na base da formação de inúme-
ros acervos e têm orientado a lógica e a função social de diversas insti-
tuições. As rotas, os roteiros e os percursos concebidos e realizados em
nome das mais diferentes razões têm justificado a origem de grandes
contingentes de patrimônio musealizado. Estes percursos foram orien-
tados para os saques e as espoliações, para o tráfico ilícito de bens cul-
turais, para as coletas dos exploradores naturalistas e para as investiga-
ções científicas.
Em alguns casos, as expedições foram organizadas em nome de in-
teresses econômicos, religiosos, políticos, e os frutos de suas coletas
acabaram se transformando em coleções museológicas. Em outros ca-
sos, são os próprios museus que realizam as expedições, com propósitos
científicos e culturais. Apesar das diversas origens, é possível afirmar
que, em algum momento, os frutos dessas estratégias contribuem para

326 {museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas}


a formação de instituições, desencadeando os processos preservacionis-
tas e propondo delimitações na categoria patrimônio.
Essas estratégias, por sua vez, têm permitido a elaboração de uma pe-
dagogia do olhar apoiada não só na visão, mas na articulação entre os
diferentes sentidos. Essa articulação não deixa de ser também uma forma
de medir o mundo de acordo com as intenções e tecnologias disponíveis.
Esse olhar expedicionário tem evidenciado condutas individuais
e coletivas inseridas nos mais variados contextos culturais e tem sido
responsável pelo aprimoramento das noções de apropriação e pertenci-
menta, evidenciando dois atributos essenciais: a lucidez e a reflexidade.
Os acervos resultantes das expedições evidenciam a lucidez delimitada
pelas diferentes realidades e intenções das rotas e dos percursos, mas
possibilitam também a reversibilidade. Os processos museológicos, na
busca do equilíbrio entre os procedimentos de salvaguarda e comuni-
cação, submetem a novos olhares aquilo que foi visto, selecionado e pre-
servado.
Ao longo do tempo as expedições serviram, como perspectivas me-
todológicas, para amparar "certezas, leis e determinismos" do universo
científico. No Brasil especialmente, pode-se assinalar que esses proces-
sos são responsáveis pelas primeiras impressões de identificação do ter-
ritório e da população. A partir de olhares estrangeiros e exploratórios
que saquearam e confiscaram, passando por olhares que buscaram os
indícios da identidade nacional e por outros que procuraram as bases
para afirmações nacionalistas, identificam-se também os olhares que
se preocupam em vincular os longínquos vestígios arqueológicos com
as sociedades contemporâneas ou, ainda, aqueles olhares que fixam sua
atenção na diversidade estética das manifestações culturais ou na valo-
rização do meio ambiente.
Os resultados desses percursos estão povoando 'instituições brasilei-
ras ou estrangeiras, estão possibilitando diferentes percepções sobre as
nossas características e têm contribuído com a educação e a elaboração
da noção de patrimônio. Evidenciam, ainda, as reciprocidades entre os
interesses econômicos e as premissas acadêmicas, refletem preconceitos

{maRia CRIStina OLIVeiRa BRUnO} 327


e demonstram as perspectivas centralizadoras que embasaram a orga-
nização das expedições. Há no Brasil um histórico de estratégias regula-
doras em relação às expedições e, portanto, delimitando os percursos e
restringindo os olhares. Chegamos a contar, durante um período, com um
Conselho de Fiscalização das Expedições Artísticas e Científicas no Brasil,
e hoje temos uma legislação muito refinada, que organiza e controla as
investidas no País.
O projeto Expedição São Paulo 450 Anos permitiu diferentes aná-
lises a partir dos diversos campos de conhecimento que embasaram a
sua realização e avaliação, e os produtos resultantes evidenciam essa
multiplicidade de olhares.
É importante destacar que esta reflexão parte de um olhar museoló-
gico em relação à realidade patrimonial e subordinado às premissas da
disciplina aplicada Museologia, ou seja, orientado para os estudos sobre
a proposição, o desenvolvimento e a análise dos processos que as so-
ciedades estabelecem com suas referências patrimoniais. Em seu cam-
po de atuação, esta disciplina se interessa em indicar diretrizes para a
ressignificação dos bens culturais e, também, no estabelecimento dos
parâmetros relativos à educação para o patrimônio.
Neste texto, nossa intenção está amparada em um olhar analítico
museológico, dirigido para a eficácia das expedições no que diz respei-
to à delimitação dos novos contornos da categoria patrimônio cultural,
como também identificar a lucidez desse olhar coletivo e interdiscipli-
nar sobre o perfil patrimonial da cidade de São Paulo.

EXPEDIÇÃO SÃO PAULO 450 ANos: A BUSCA DO PERFIL


CONTEMPORÂNEO DA CIDADE

A partir das premissas apresentadas, reiteramos que o Programa


Museológico do Museu da Cidade de São Paulo (Franco, 2003) foi conce-
bido contando que o eixo gerador de suas metodologias de trabalho de-
veria estar apoiado na estratégia expedicionária, ou seja: a coordenação
desse programa entendeu que decodificar museologicamente a cidade

328 {museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas}


de São Paulo, a fim de delinear o seu perfil contemporâneo, depende de
percursos, olhares e registres que possam sistematicamente subsidiar a
constituição das ações de salvaguarda e comunicação e embasar argu-
mentos em relação aos acervos já constituídos.
O projeto expedicionário em referência foi realizado de 11 a 17 de
janeiro de 2004, mas o planejamento, a análise dos resultados e o geren-
ciamento das informações ocorreram entre setembro de 2003 e dezem-
bro de 2004. Foi uma realização da Secretaria Municipal de Cultura de
São Paulo, do Instituto Florestan Fernandes e da EXPOMUS, sob a coor-
denação de José Guilherme Magnani, Julio Abe Wakarara, Jupira Cauhy,
Maria Cristina Oliveira Bruno e Maria Ignez Mantovani Franco, e teve o
patrocínio da Petrobras e o apoio do Grupo Estado.
Contou com a participação de 31 especialistas das mais variadas áre-
as de conhecimento e 12 estudantes de Antropologia e Museologia, além
de diversos profissionais que se responsabilizaram pela produção e in-
fra-estrutura dos trabalhos. Foram realizadas 81 reuniões, entre as eta-
pas de concepção, organização e avaliação das ações expedicionárias.
Foram percorridas duas rotas na cidade de São Paulo. Por um lado,
um grupo percorreu a Rota Sul - Norte, iniciando em Parelheiros e ter-
minando emJaraguá. Por outro lado, outro grupo percorreu a Rota Les-
te - Oeste, entre a Cidade Tiradentes e o Jardim Ângela.
Ao longo do desenvolvimento da expedição, foram envolvidas 699 pes-
soas e 212 instituições da cidade. Os trabalhos realizados ao longo das rotas
preestabelecidas possibilitaram a coleta de 456 objetos e o registro de 8.111
fotografias, 135 depoimentos e 20 desenhos. A estes registres somaram-se
80 horas de vídeo e 21 horas de áudio. Seus resultados estão organizados em
um banco de dados para o gerenciamento dos distintos registres e foram
divulgados por intermédio de publicações, exposição, DVD e CD.
A organização dessa expedição procurou permear os tênues limites
entre tradição e ruptura metodológicas no que se refere ao seu projeto
executivo. Ao mesmo tempo em que constituiu um comitê de especialis-
tas (com distintas experiências de percursos investigativos), articulou
lideranças locais para a constituição das rotas e dos roteiros; apoiou com

{maRia CR!Stma OLIVeiRa BRUnO} 329


igual interesse as pesquisas bibliográficas sobre os estudos clássicos re-
lativos à cidade e o levantamento de documentos temáticos sistematiza-
dos junto às instituições do poder público; priorizou enfoques temáticos
para observação ao longb dos roteiros, mas incentivou a disponibilidade
para encontrar o imprevisto, entre muitas outras características que
consolidaram a elaboração desta tomografia sobre a cidade, permeada
por encontros, confrontos e trocas culturais.
Esse processo metodológico, organizado a partir das questões aqui
levantadas, foi constituído a partir de três etapas sucessivas, que deter-
minaram as articulações entre as intenções, os olhares e os registras.

Primeira etapa: decodificação do princípio metodológico-


elaboração das intenções e preparação do olhar
Os trabalhos preparatórios foram iniciados com a definição dos parâ-
metros conceituais reguladores das parcerias e definidores dos processos
de trabalho, ou seja: a construção da idéia da expedição. Esta definição,
por sua vez, foi potencializada em função dos parceiros que se articularam
na coordenação; do perfil interdisciplinar dos viajantes (pesquisadores e
assistentes); das interlocuções com lideranças de diferentes vetores da
cidade e das consultas a documentos públicos. Da mesma forma, permitiu
a organização e discussão prévia de distintas possibilidades de roteiros
e a avaliação exaustiva sobre as rotas propostas. Nesta etapa, indicamos
que os participantes da expedição deveriam estar abertos ao imprevisto
ao longo do percurso e esta perspectiva possibilitou uma inquietação po-
sitiva no que se refere ao questionamento das próprias intenções.

Segunda etapa: realização da expedição-


compatibilização entre os olhares e os registros
A construção dos percursos, a partir de procedimentos preestabe-
lecidos, refletiu a divisão dos roteiros, a logística cotidiana e a expe-
rimentação dos instrumentos de trabalho, com vistas ao encontro e
confronto entre diferentes olhares especializados, adaptações de ati-
tudes, discussões interdisciplinares e avaliações cotidianas. Saímos

330 {museus, coteções e patRim8mos: naRRativas pouf8mcas}


pelas rotas buscando verificar as permanências, os arranjos coletivos,
os sistemas de reciprocidade e as múltiplas expressões culturais que
entrelaçam os desafios e as utopias dos cidadãos desta megalópole. Esta
busca teve como estímulo a identificação dos principais segmentos de
referências patrimoniais, que deveriam contextualizar o programa
museológico orientado para a história contemporânea da cidade de São
Paulo. Ao final da realização dos roteiros e a partir de uma reunião de
avaliação, três enfoques temáticos foram valorizados: território, socia-
bilidade e imaginário. Assim, a organização dos registras foi equacio-
nada nesses três campos.

Terceira etapa: delineamento dos produtos-


confronto entre intenções, olhares e registras
Os processos avaliadores foram desenvolvidos em diferentes frentes
e possibilitaram a elaboração de distintos produtos, a partir da cons-
tituição de um banco de dados com a inserção de todos os registres.
Nesta etapa, o grande desafio foi encontrar o entendimento entre as
fronteiras que permearam as impressões dos viajantes e a necessidade
de criar estratégias metodológicas para a sistematização dos registras
e análises. A realização dos relatórios, dos textos para a publicação do
livro, do roteiro para o DVD, entre outros produtos, permitiu novos en-
contros entre os atores deste projeto e, sobretudo, um novo encontro
com a cidade.
Entendemos que a metodologia expedicionária tem a potencialidade de
garantir a esse processo museológico um caminho de percepção sobre as
encruzilhadas contemporâneas da cidade de São Paulo e de acordo com
as nossas avaliações, os registres sobre os enfoques temáticos valoriza-
dos - território I sociabilidade I imaginário - permitem a construção
de argumentações expositivas e educativas, com também, possibilitam
a salvaguarda de registres significativos da cidade deste momento.
Procuramos com esse projeto identificar os novos contornos que a
categoria patrimônio tem assumido na cidade de São Paulo e quais de-
senhos desses contornos deveriam ser musealizados.

{maRia CRIStina OLIVeiRa BRUnO) 331


Da mesma forma, foi possível verificar os caminhos que têm sido
trilhados para a construção das legitimações sociais e identitárias e
como esses processos poderiam interagir com a constituição de um
museu de cidade.

RefeRênciaS BIBLIOGRáfiCaS

EXPEDIÇÃO São Paulo 450 anos: uma viagem por dentro da metrópole.
Coordenação José Guilherme Cantor Magnani, Julio Abe Wakahara,
Jupira Cauhy, Maria Cristina Oliveira Bruno, Maria Ignês Mantovani
Franco. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura: Instituto
Florestan Fernandes, 2004, 224 p.

FRANCO, M. I. M. Programa museológico para o Museu da Cidade de São


Paulo. São Paulo: Expomus, 2003.

JACKNIS, I. "Franz Boas and Exbits - on the limitations of the Museum


Method of Antropology". ln: Objects and Others - Essay on Museum and
Material Culture. v. 3. Edited by George W. Stocking,Jr. Wisconsin: The
University ofWisconsin Press, 1985, pp. 75 -111.

ROUANET, P. S. "O olhar iluminista". ln: O olhar. São Paulo: Schwarcz,


1989.

SHAER, R. Invention des Musées. Paris: Gallimard, 1993.

332 {museus, coteções e patRim8nws: naRRativas pouf8mcas}


a cidade como OBJeto:
/\
Ressonancias patRimoniais
Manuel Ferreira Lima Filho

A forma de uma cidade pode mudar mais depressa que o coração dos homens

Bernard Lepetit

pATRIMÔNIO E FENÔMENO URBANO

O s temas relacionados ao patrimônio cultural têm tido des-


taque nas pautas contemporâneas, notadamente no que
diz respeito às políticas públicas de diversidade e direitos culturais,
comportamentos e representações sociais, modos de saber e de viver no
1. Arantes já registrou
esse alargamento da
noção de património
(Arantes, 2000, p.
7) e A nico (2005, p.
75), na mesma linha,
analisa esse boom do
campo ou nas cidades.1 património na con-
temporaneidade.
De um modo especial, no Brasil, as cidades tombadas ou não voltam
a ser foco de reflexões e políticas públicas sob a ótica da patrimoniali-
zação. Seja Ouro Preto, Salvador ou Goiânia, ou um· retorno ao interior à
maneira de Triunfo (PE) de Aloísio Magalhães. Assim, com um forte ape-
lo social e cultural, a cidade patrimonial ajusta-se aos interesses de uma
Antropologia na cidade, para usar uma expressão de Oliven (1996, pp.
14-15), que contextualiza os estudos da cidade desde os primeiros pen-

(manueL feRReiRa uma fiLHO) 333


2. Não é objetivo sadores da "Escola de Chicago", como por exemplo Louis With. Bebendo
deste artigo contextu -
alizar as construções na fonte da teoria do folk-urbano de Robert Redefield, With já escrevia
teóricas sobre a cidade
do ponto de vista so-
sobre as implicações das mudanças na ordem social e cultural causadas
ciológico. Isso Ruben
pelo estabelecimento das cidades - papéis sociais fragmentados, isola-
(1996) já fez muito
bem, apontando para mento, anonimato, rel~ções sociais transitórias, afrouxamento de laços
questões importantes
como a migração, o familiares, entre outros-, numa perspectiva de contraste entre o modo
papel da religião, as
formas de sociabilida- de vida urbano e o não urbano. 2
de no contexto urba-
no, como as redes de
Sabe-se do processo de fragmentação dos espaços, das formas de
reciprocidades como convivências sociais no que se refere à metrópole moderna, conseqüên-
contraponto ao viés
culturalista de Redfiled cias da modernidade, que encolheu o mundo, "desvencilhando ordens
eWith.
sociais tradicionais e que alteraram características intimas e pessoais
da nossa existência cotidiana", como afirma Giddens (1991, p. 14). Para
Gilberto Velho, a grande metrópole é expressão de um novo modo de
vida, impulsionado pela Revolução Industrial, com suas inovações tec-
nológicas. A vida na metrópole, devido a uma variedade de experiências
e costumes, se caracteriza por uma "extrema fragmentação e diferen-
ciação de papéis e domínios, dando um contorno particular à vida psi-
cológica individual" (Velho, 1997, p. 17).
Portanto, há de se pensar num desencantamento do homem moderno.
Apressado e sem tempo de contemplação, ele está imerso na metrópole,
que se caracteriza pela velocidade da circulação da informação, das pesso-
as, das mercadorias, das conduções e comunicações a subjugar territórios
(Rolnik, 2004, p. 14). O homem moderno é impactado pela vida nervosa.
Uma vez fatigado, evidencia-se, pois, um tipo blasé de Simmel, caracteri-
zado por uma apatia que nele se aninha e que faz do mundo uma visão de
tons acinzentados. Existência quase automatizada e suspensa no tempo:
A essência do caráter blasé é o embotamento frente à distinção das coisas; não no
sentido de que elas não sejam percebidas(...) mas sim de tal modo que o significado
e o valor da distinção das coisas e com isso das próprias coisas são sentidos como
nulos. Elas aparecem ao blasé em uma tonalidade acinzentada e baça, e não vale a
pena preferir umas em relação às outras. (Simmel, 2005).
Como contraponto, e quase uma remissão, o flâneur de Benjamin
(1991) retorna à cena com um comportamento díspare da metrópole

334 {museus, coLeções e patRim8mos: naRRativas pouf8mcas)


moderna, possuindo por definição "uma extraordinária mobilidade,
percorrendo a metrópole em busca de sensações sempre novas ..." (Bolle,
2000, p. 365-7) contemplando a paisagem da cidade moderna ou bus-
cando uma imersão na sensação da cidade, como prefere Featherstone
(200, p. 192): observa as pessoas, transita pelos becos das ruas, fita as
feições dos andarilhos e das fachadas dos prédios e casas, as brechas de
um tempo que Bachelar (1988) quis ondular e restaurar de memórias
coletivas ou individuais, concorrentes ou tensas. Para isso, recorre-se
à sabedoria daquele que sabe e narra acontecimentos, como escreveu
Benjamin sobre o narrador. É preciso auscultar o passado. Um retorno
às origens para que o presente se faça vigoroso, vibrante, que inunde de
sentidos e referências, já ensinava Halbwachs (1990).
Nesse labirinto produzido pelas fronteiras do Ocidente que revela 3. Interessante
abordagem feita por
multifaces da cidade, colhem-se aqui e ali feições identitárias de um Mafessoli (t 984 e
2006), muito bem
complexo processo social e de construção do sujeito; a noção de patri- explorada num estudo

mónio, antes predominantemente arquiteta das fabricações de nações, etnográfico em duas


comunidades cam ~
é a meu ver, agora, "ressemantizada" para dar evasão a essa busca do ponesas de Goiás por
Maria Emilia carvalho
passado nesses tempos quase apocalípticos de instauração do século e Araújo (2006).

XXI. Mais do que nunca há que se construir pontes para um futuro me-
nos inóspito. Sintoniza-se com saberes profundos, 3 de colchas de reta-
lhos de culturas populares, indígenas, afro-americanas. Vulcaniza-se a
cidadania globalizada dos wajãpi e do saber fazer das baianas do acarajé,
das paneleiras de barro do Espírito Santo.
Rompe-se, assim, quase que definitivamente, com a idéia totalizadora
de património como tombamento. Ensaia-se uma nova roupagem de con-
trole do Estado e de políticas públicas com o nome de Registro do Patri-
mónio Imaterial, que mesmo assim ainda se contamina da noção de ex-
cepcionalidade advinda da gênese e de uma práxis de políticas públicas
a
patrimoniais no Brasil (Lima Filho, 2006). Contudo, meu ver, o relevante
desse movimento todo é a função social que o património, na contempo-
raneidade, tem de materializar e disseminar entre os comuns, aquilo que
a noção antropológica de cultura já insistia em fazer: a pluralidade, a re-
lativização, a desconstrução de dicotomias inventadas pelo Ocidente. Em

{manueL feRReiRa uma fiLHO} 335


4. Ver o livro de outras palavras, na imensa capacidade do homem de produzir e transmi-
Riegel (2006) sobre
o culto moderno tir categorias e representações culturais, seja por meio da arte, inclusive
dos monumentos e
suas relações com os
os monumentos patrimoniais,4 seja por meio das narrativas, pelas formas
valores de contempo- relacionais, enfim, pela suspeita da eficácia da modernidade em querer
raneidade.
reduzir o mundo a umà lógica só. Os conflitos étnicos e religiosos saltam
aos nossos olhos como um tsunami dos contrários.
Nesse cenário bourdieuniano de estruturas comportamentais en-
feixadas por estruturantes culturais, as cidades tornam-se palcos de
convergências e divergências, duração e dialética, passado e presente,
Estado e cidadãos. A cidade é ainda "estrutura e relações sociais, econo-
mia e mercado, é política, estética e poesia. A cidade é igualmente, ten-
são, anonimato, indiferença desprezo, agonia, crise e violência", como
refletiram Eckert e Rocha (2001, p. 3) a partir de suas etnografias pelas
ruas e bairros de Porto Alegre.
Numa perspectiva hierarquizada e de escala de atenção, visualiza-se
a cidade como partes de uma equação: cidade/nação, cidade/região, ci-
dade/bairro, cidade/rua e cidade/sujeito. Esses pares estruturantes da
cidade passam a ser, dessa forma, uma estratégia metodológica a equa-
cionar também a cidade com o objeto. Nação, região, bairro, rua são pla-
nos que se rebatem no sujeito. Estudar a cidade patrimonial é estudar
todos esses domínios até se chegar ao sujeito - ou, de maneira inversa,
do sujeito pode-se chegar à cidade. Ondas de ressonâncias acumuladas
que convergem/divergem para/da cidade patrimonial. Então, a cidade
patrimonial pode ser vista como um objeto metonímico: um artefato,
uma coleção, um fato museal ou mesmo um fato social. E, sendo assim,
ela produz "ressonâncias", para usar um termo de Gonçalves (2005). Ela
é matéria, histórica, cultural, polissêmica. Ela se emoldura num quadro
de metas narrativas, imagens, lembranças e sociabilidades. Palco, assim,
de fenômenos/objetos/sujeitos urbanos, que na perspectiva etnográfica
direciona para uma questão do método para se compreender como e o
que os homens pensam e vivem nas cidades.
Nesse sentido, qual seria a contribuição da Antropologia ao estudar
a cidade patrimonial? Ou, de outra forma, como fazer quando o campo

336 !museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas}


é o patrimônio, como escreveu Abreu (2005)? Como contribuição a essas
perguntas apresentamos uma experiência etnográfica de cidade numa
perspectiva patrimonial.

GOIÂNIA COMO OBJETO DE INVESTIGAÇÃO ETNOGRÁFICA

A gênese da cidade
Concebida num contexto de transição do século XIX para o século
XX, Goiânia nasce querendo ser moderna, mas traz em sua gênese de
cidade planejada um passado, a antiga capital, a colonial Goiás, como
testemunhou Arménia P. Souza (1989). O espaço é representado pela
ambigüidade do passado diante da instauração de uma nova concepção
territorial do futuro que se fazia presente:
No dia 4 de maio de 1936, pela manhã, seis horas precisamente fechamos a casa e
entramos no carro. Chegara a nossa vez de seguir para Goiânia, o Públio, nossa filha
e eu. (...) Para trás ficava a cidade querida (a cidade de Goiás). E as doces recorda-
ções da vida de uma moça nascida no seio de uma numerosa família , criada num
ambiente de proteção e carinho, mas também de princípios rígidos e preconceitos
arraigados. Educada num severo colégio de religiosas francesas, dali saíra com alma
cheia de sonhos e idealismo e o coração povoado de ilusões. (...) Agora esposa e mãe,
iniciava com a sua própria família, a caminhada para uma nova vida numa nova
cidade, numa cidade que ainda estava começando a nascer. (Souza, 1989, p. 13)
Os goianos, em sua vida nova, não deixavam de sentir uma grande saudade de sua que-
rida Goiás, daquele mundo tranqüilo e organizado, dos luares de prata, do murmúrio
do rio Vermelho, que na época das enchentes chegavam a lamber o piso das pontes,
das comidas goianas e de tudo aquilo que ficara pra trás. (Souza, 1989, p. 34)
Assim Goiânia recebe, como seus primeiros atores, sujeitos partidos,
fragmentados. Para trás, um passado organizado, regras preestabeleci-
das, ethos torneado pela tradição do modo de pensar,' nO como agir- rígi-
dos, como disse D. Arménia-, no que comer. O mundo era fechado, circu-
lar como a circunscrição geográfica cercada de morros da antiga capital:
cidade de Goiás. A mudança para a nova capital significava a instabili-
dade, a insegurança, o medo da perda do que ficou para trás. O mundo

{manuet feRRema uma fiLHO) 337


era aberto como as campinas do cerrado, as paisagens a perder de vista.
O cenário era de sertão, um mundo mágico: a paisagem, as impressões e
representações da natur:eza a ser domesticada, matas, bichos, forças da
natureza incontroláveis; vastidão, vazio, como nos mostra D. Armênia:
Não havia água,· nem. energia elétrica ainda. (... ) Para preparar as refeições de
nossa filha , usávamos uma pequena fogueira , do lado de fora do prédio. Não se
encontrava um fogareiro. (...) até vir de Goiás um fogareiro de álcool. Na época,
convivíamos em Goiânia com pequenos animais que viviam na periferia das matas,
como coelhos, iaras, gatos do mato,(...) sagüis, tatus etc. Naquele mundo mágico,
o vigia no turno do Grande Hotel caçava coelho e tatu-galinha. (... ) Aranhas caran-
guejeiras entravam livremente pelas portas de fora.( ...) As tempestades de Goiânia
(. ..)eram realmente impressionantes! Na vasta campina aberta, ainda quase vazia o
vento campeava solto, adquirindo uma força e velocidade incontroláveis.(...) Caíam
raios em todas as direções (...)com a força que adquiria começava a levantar folha s,
papéis, galhos secos e por fim já era uma ameaça terrível para as pessoas (...) ai
de quem cruzasse sua rota; era arrastado, rodopiado (... ) lançado de encontro aos
muros ou cercas de arame farpado. A população temia-os. (...) Misto de cidade e
sertão. (Souza, 1989, pp. 25-28 e 51 )
No cenário político, a construção de Goiânia está relacionada com a
política nacional da Marcha para o Oeste no governo de Getúlio Vargas,
munida pela idéia de civilizar esse mesmo sertão pelo trabalho, numa
perspectiva de mito da brasilidade (Lima Filho, 2001).
Nesse ambiente propício de novas idéias, Pedro Ludovico, nascido na
cidade de Goiás, interventor do estado em 1932, aproveita para encenar a
trama política de isolar seus adversários políticos, os Caiados, e transfere
o poder administrativo do estado para a nova capital (Lima Filho, 2005).
Mas houve resistência, como relatou a senhora Maria Luci Veiga Teixeira
- Dona Fifia. Sua avó, a senhora Maria Abrantes - Quimbinha -, ao se
encontrar com Pedro Ludovico na cidade de Goiás, sentenciou: "Pedro,
se algum dia eu tiver que passar por esta cidade eu quero uma venda nos
olhos para não enxergar nada, eu nem quero ver essa cidade".
Para desqualificar a resistência dos opositores, Pedro Ludovico an-
cora-se num discurso para além do regional (Vidal e Souza, 2002, p.

338 {museus, coLeções e patRimÔniOs: naRRativas poufômcas)


75), como pode ser observado na fala de Câmara Filho, chefe do Depar-
tamento de Propaganda, em P de janeiro de 1936, publicada no jornal
Correio Oficial:
Goiaz é uma verdadeira escola de trabalho. São energias que se despertam num
ritmo harmonioso para um único objetivo que é a prosperidade dessa grande terra,
sob todos os as pé tos (sic) e para a grandeza do Brasil. Goiaz é, agora, uma célula viva
dentro da nacionalidade (Monteiro, 1938, p. 351).
Considerado por Pereira Zeka, 80 anos, como um "artista do impos-
sível" e herói para vários dos pioneiros entrevistados, Pedro Ludovico
concebe a construção da nova capital, um investimento necessário ao
desenvolvimento.
Mas observamos que a ambigüidade igualmente se apresenta na fi-
gura do próprio Pedro Ludovico, que traz consigo símbolos de um fazen-
deiro ou de um novo coronel moderno (médico) do sertão. Em cima de
um cavalo, chapéu de abas largas e botas de cano alto, andava/campea-
va pela cidade em construção. "O Pedro tinha uma personalidade forte,
era rodeado de políticos por toda parte", esclareceu D. Moema de Castro
e Silva Olival. Os carros de bois, atestou D. Ondina de Bastos Albernaz,
"foram os transportadores de tudo que consumia na capital" (Alber-
naz, 1992, p. 65). De fato, já recorrentes na memória iconográfica dos
primeiros tempos da capital, encontram-se fotografias de carros de bois
· puxando o rolo construtor das amplas avenidas e praças.
Em 24 de outubro de 1933 ocorreu o lançamento da pedra funda-
mental. Marcou-se esse local com um pedaço do esqueleto de uma ema
(Mello, 2006, p. 3) e nele se construiu o Palácio das Esmeradas, sede
oficial do governo do estado. Mas a inauguração, chamada de batismo
cultural, só aconteceu em 5 de julho de 1942, com os prédios públicos
construídos no estilo art decó.
O plano urbanístico concebido por Atílio Corr~à Lima, de influência
francesa, buscou tirar o máximo da topografia do sítio, pois o traçado
proposto para o núcleo pioneiro de Goiânia favorecia a drenagem por
topografia, integrando as microbacias hidrográficas. Ele buscou privile-
giar o sistema viário com avenidas largas, sistemas de estacionamento,

{manueL feRReiRa uma fiLHO) 339


beneficiando assim o comércio. Utilizou-se, então, de uma malha or-
togonal. Para a zona industrial, nas imediações das estradas de ferro,
concebeu desvios e uma estação de triagem. Para a zona residencial, o
plano previa uma área tranqüila, distante do movimento do centro. Re-
servou em seus planos grandes áreas verdes que visavam a salubridade
e a beleza. O plano por ele elaborado criava os setores central, norte, sul,
oeste e leste, com delimitação espacial bem definida. Com mão-de-obra
recrutada do interior de Goiás e de outras regiões do País, construiu-se
assim Goiânia (Machado et al, 2003). Mais tarde, um outro urbanista,
Armando de Godoy, de influência inglesa, continua a projetar os primei-
ros traços da nova capital.
Em 1940, Goiânia contava com uma população urbana de 19 mil habi-
tantes. Em 1950 a população era de mais de 53 mil pessoas (mais de 40 mil
só na área urbana), número que saltou para 150 mil em 1960, para cerca
de 700 mil em 1980 e para mais de um milhão em 1998. Projetada para ter
50 mil habitantes, a população de Goiânia cresceu rapidamente, unindo-
se a Campinas, que dela estava separada por 6 km. Campinas - o porto
seguro inicial de grande parte dos goianienses - tornou-se um bairro de
Goiânia, como muitos outros que foram surgindo (Machado et al, 2003).

Tornando-se "patrimônio"
No ano de 2002, Goiânia é alvo de um processo de tombamento fede-
ral de seu núcleo pioneiro, juntamente com edifícios públicos e compo-
nentes art déco (IPHAN, 2002). Esse processo foi conduzindo por várias
instituições e atores sociais, liderados pelo IPHAN regional, movidos
pelo sucesso de um processo anterior que culminou na declaração da
cidade de Goiás como Patrimônio da Humanidade pela UNESCO. Nova-
mente as duas cidades são coladas no imaginário e nas ações políticas do
Estado brasileiro. Uma para romper (1933), outra para unir (2002).
Tal processo colocou em pauta o patrimônio cultural da cidade e in-
dagações sobre os significados desse tombamento nas representações
sociais que os pioneiros e habitantes da tinham sobre ela. Embora seja
uma cidade relativamente nova (73 anos), a questão do "centro histó-

340 {museus, coteções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas}


rico", assim como de toda a cidade, tem sido objeto de quatro planos
urbanos, que defendiam estratégias, instituíam concursos públicos de
requalificação do núcleo histórico e de fachadas dos prédios, além de
demandas de associações junto à Prefeitura. Atualmente um quinto pla-
no tramita na Câmara Municipal.
foi nesse palco de construção de uma "memória oficial" que Goiâ-
nia se "tornou" colecionada, classificada, indexada, padronizada, enfim
musealizada. Se o processo de tombamento do conjunto de 22 elementos
e prédios públicos considerados representativos do estilo art decó coloca
a cidade positivamente no cenário nacional e internacional, isso pode,
por outro lado, inadvertidamente induzir a um processo identitário re-
dutor. Daí a suspeita do método etnográfico para querer saber: quem
Goiânia pensa que é?

Entre vozes e desenhos


No período compreendido entre 2004 e 2006, coordenei uma equi-
pe multidisciplinar que cobria temáticas de pesquisa sobre a cidade,
como: memória, tradição, referências culturais, arquitetura, design e
documentação audiovisual. Buscamos mapear as diversas narrativas e
lugares de fala da primeira e segunda geração de moradores da cidade
e, assim, buscar uma interpretação sobre a produção de bens culturais/
simbólicos da cidade de Goiânia.
Tomamos, então, o rito do tombamento como fato social que nos mo-
tivou a pesquisar a produção simbólica e os significados das narrativas.
Buscamos fazer uma Antropologia na cidade. Lançamos mão do método
etnográfico e exploramos os conceitos de memória, tradição, identida-
de, ritos e patrimônio cultural.
A proposta, em termos gerais, foi produzir reflexões antropológicas
a respeito do tema do patrimônio cultural numa perspectiva transdis-
ciplinar, mas centrada nos estudos da diversidade cultural, objeto pri-
meiro da Antropologia. Privilegiamos o saber local, já ponderado por
frans Boas desde os tempos clássicos da disciplina. Nesse sentido, lan-
çamos mão do método etnográfico defendido por Woortmann (1998, p.

{manueL feRRema uma fiLHO} 341


60),já que para ela "é a etnografia- como 'trabalho de campo' e como
gênero textual- que dá o caráter distintivo da Antropologia. (...) Ela se
construiu e continua se (re)construindo pelo diálogo constante entre
teoria e etnografia".
A pesquisa de ·campo num contexto urbano, aparentemente mais
fácil que as pesquisas etnológicas, se apresenta na realidade como um
grande desafio para o antropólogo, que Velho (2003, pp. 11-19) chamou
de "o desafio da proximidade". A empreitada principal, como escreveu
Oliven (2002, p. 11), é interpretar a sua própria cultura e questionar
pressupostos que muitas vezes são tidos como inquestionáveis, ou seja,
trata-se de conhecer nossos rituais, nossos símbolos, nosso sistema de
parentesco, nosso sistema de trocas. É estranhar as nossas narrativas.
Somam-se essas reflexões à de Eckert e Rocha (2001, p. 5) para as quais a
"etnografia consiste em descrever práticas e saberes de sujeitos e grupos
sociais a partir de técnicas como observação e conversações, desenvol-
vidas num contexto de pesquisa (...) delineando as formas que revestem
a vida coletiva no meio urbano".
A radicalidade proposta pela pesquisa de campo também no contex-
to urbano permite ir à raiz dos fenômenos estudados e ao modo como
a cultura reflete e medeia as contradições de uma sociedade complexa.
Por meio do tema do patrimônio cultural de Goiânia, fez-se uma experi-
ência de uma Antropologia na cidade.
Como analisar uma cidade com apenas 73 anos, tombada, mas já
com casarios da sua primeira rua oficial, a 20, quase todos destruídos?
Como trazer à tona outros estilos arquitetônicos não tão valorizados?
Como escavar por entre memórias oficiosas outras memórias coletivas
a também revelar a cidade? Esse foi o nosso desafio diante dessa situa-
ção etnográfica. Fragmentos e justaposições foram as pistas que a ar-
quiteta Milena D'Ayala Valva nos apresentou ao analisar Goiânia numa
perspectiva de ruínas:
Hoje, a paisagem das cidades se apresenta principalmente por meio de fragmentos,
nos quais os lugares da memória e da tradição não estão mais visíveis (ou nem
existem mais), são fragmentos sem rostos, sem fachadas e mesmo sem centro. Para

342 {museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas}


construir um olhar sobre a paisagem contemporânea, é necessário exercer um
trabalho de radiografia e de montagem. Os objetos que compõem a cidade estão em
constante deslocamento. Com o tempo, se desmembram. Essa é uma das caracte-
rísticas da modernidade, que revela duas categoriais importantes: a justaposição e
a fragmentação. Valva. (2001, p. 55)
Compor o quebra-cabeça de uma memória coletiva dos pioneiros
para falar ou representar uma cidade que nasce com a missão de ser
moderna e ao mesmo tempo é instituída de aura/poder estatal de muse-
alizar a art déco, se apresentou como um desafio.
Os levantamentos bibliográficos, iconográficos e de dados das pri-
meiras entrevistas deixaram claro que andaríamos sobre o terreno da
contraposição das categorias da nação/região, continuidade/mudança,
cidade/rua, bens públicos/bens familiares, sertão/modernização, len-
to/rápido, nós/eu, passado e presente.
Optamos como recurso metodológico pela exegese advinda das re-
presentações mentais materializadas por desenhos.
As primeiras revelações etnográficas vieram de duas orientações
de mestrado sobre Goiânia. Wilton de Araújo Medeiros (2003) estudou
a primeira geração de pioneiros, que desfragmentam os monumentos
da modernidade na cidade construindo uma nova imagem de Goiânia,
e por "uma proposição do direito ao passado para a construção da cida-
dania no presente".
Ronaldo Rosa Junior (2005) concentrou seus estudos nas represen-
tações das crianças. Percebeu que as crianças não reproduziram o con-
ceito de patrimônio tombado e interpretou os parques e as áreas verdes
como elementos de ligação entre o passado e o futuro. A cidade planeja-
da para ter muitos verdes com 50 mil habitantes é a mesma cidade que
ressalta os verdes para abrigar mais de um milhão de habitantes. Assim,
velhos e crianças desenharam a "cidade patrimonia1".
Os pioneiros, lúcidos na compensação das agilidades dos movimen-
tos que faltam, trabalharam suas memórias via quadros sociais trazidos
à tona pela oralidade e pelos desenhos. Revelaram os footings da Avenida
Goiás, os bailes do velho Jóquei, a Rua 20, que insiste em mostrar, pelo

{manuet feRRema uma fiLHO) 343


que restou de seus casarios, que a cidade ali nasceu: a Faculdade de Di-
reito, o Conservatório de Música, a sede da Folha de Goiás, a árvore que os
estudantes plantaram quando tudo ainda era poeira e sonhos.
Detalhavam tempos de Getúlio Vargas e Pedro Ludovico. Das águas
do córrego Botaf6go e das minas de água que matavam a sede e da pen-
são da Dona Maruca. As corridas de bicicletas, as fontes da Praça Cívica,
o tempo dos chapéus, dos vestidos bem cortados, dos saraus, do Café
Central, do Mercado Municipal, onde todos eram todos ou quase, do me-
cânico Zé Pretinho e de sua Hermosa, talento e musicalidade dos filhos
para além de hierarquias sociais. O Sr. Francisco Magalhães Filho nos
contou satisfeito sobre a sua capacidade executiva de asfaltar a Avenida
Goiás e cuidar da caixa d'água do Setor Sul. Tudo recheado com uma boa
dose de política partidária. E lá de novo estava o herói Pedro Ludovico. O
professor Genesco Bretãs, com seus 93 anos, emocionou-se com o tempo
das fanfarras do Colégio Lyceu, tendo sido seu diretor, e das competições
com o Colégio Pedro Gomes de Campinas. Já Manoel Ferreira Lima, com
91 anos, também professor, detalhou as peripécias de passar entre as
cercas da pista de avião do primeiro aeroporto, já que vinha de bicicleta
de Campinas para dar aula no Colégio Santo Agostinho. "Pedro Ludovico
foi um herói", sentenciava sem dúvidas. Concepção maximizada pela ex-
plicação de Nize Freitas de Souza, filha do primeiro prefeito Venerando
de Freitas: "que partido você é, Venerando? Eu sou PL''. Mas PL porque
naquela época era PSD e UDN. Mas ele dizia:- "Eu eu sou PL."- 'Mas que
partido é esse, Venerando?' Pedro Ludovico!"
O tempo era relacional. Os olhares se encontravam, calmamente. Das
cadeiras nas portas, da cozinha aberta, dos bailes de carnaval no Grande
Hotel, e mais tarde no Jóquei Clube. Velhas vozes que enternecem quem
sabe ouvir. Memórias emolduradas nos velhos álbuns de famílias, obje-
tos, lembranças, o tempo que se foi e que inquieta.
E as crianças? Atores sociais que negociam com a realidade social o
estar no mundo, não são simples reprodutores sociais de nossas coer-
ções culturais e ideológicas. A cidade é vertical, verde e alegre, moder-
na e bonita, mas cheia de mudanças para fazer: mais casas, mais verdes,

344 {museus, coLeções e patRimÔnros: naRRativas poufônrcas}


mais solidariedade e sem violência. Novamente o relacional é buscado
apesar do tempo que se acelera. Os bosques dos primeiros traçados es-
tão presentes, apesar de suas nascentes estarem todas submersas na
concretude do cimento.
Identificamos também estilos arquitetônicos na primeira rua que a
cidade ainda conserva. Exemplares para além do art decó: o normando, o
eclético, o moderno, o neocolonial. Sobrepomos fotos antigas e atuais de
vários acervos. Descobrimos na cidade dos outros a nossa cidade. Mapas
e planos foram justapostos. Voltamos ao tempo nos filmes arquivados e
disponibilizados no Arquivo Nacional: década de 1960, 1970 e 1980. Pio-
neiros visitados, gravados, filmados.
Constatamos que nem pioneiros nem crianças reconhecem o con-
junto tombado art déco. Ele não é um traço constitutivo central da iden-
tidade dos goianienses. Para além dos prédios, sublinha-se a figura he-
róica de Pedro Ludovico. Muito lembrado pelo seu jeito de conduzir a
feitura da cidade, pela maneira relacional e hierárquica de conduzir as
questões. Cavalo, chapéu, bois, ordens: o sertão fala mais alto do que os
modernismos dos volumes dos prédios.
Então, entre os fragmentos da "cidade moderna", o mosaico da ci-
dade se visualiza: cidade-nação da Marcha para o Oeste, cidade-sertão
deslocando tempos e espaços de saberes profundos assentados no País;
· cidade-bairro como o de Campinas, que dá suporte à nova cidade e à Vila
Militar, depois Bairro Popular que abrigava os militares e funcionários
públicos; cidade-rua, como a rua 20 dos pianos, do mogno, das casas pri-
meiras. Por fim, da cidade-sujeito, que introjeta em suas reminiscências
a sua trajetória pessoal e familiar, como na fala de José Mendonça Teles:
Eu te vejo Goiânia, quando abro a janela de minha sensibilidade e sinto a sensação
de que o tempo, preso na tessitura dos meus dedos, caminha comigo e me faz tam-
bém protagonista de tua história; quando percorro os olhos por objetos antigos
- álbuns que ficaram na gaveta da saudade - e encontro homens paralisados no
instantâneo da foto, vestuário e gestos de outro tempo, olhos perdidos na imensi-
dão do abandono. Eu te vejo Goiânia, quando caminho meus pés cansados por tuas
ruas em movimento- carros retesados no asfalto da intolerância- e sinto a minha

{manueL feRRema uma fiLHO) 345


insignificância num espaço que foi meu, numa rua que já foi minha, de tantos pés,
e mãos, e sentimentos, e gestos fraternos. (Teles, 1998, pp.15 e 16)
A cidade patrimonial só tem legitimidade ou sentido se todas essas
equações forem consideradas, caso contrário ela será apenas um artifí-
cio do Estado pós-moderno, uma interpretação parcial e redutora como
um único olhar sobre um objeto, uma coleção ou um fato museal, ou
até, quem sabe, o som de uma viola de uma corda só.

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348 {museus, coLeções e patRim8mos: naRRatrvas pouf8mcasl


à pROCURa da aLma
encantadoRa da cidade
Myrian Sepúlveda dos Santos

Eu amo a rua. Esse sentimento de natureza toda íntima não vos seria revelado
por mim se não julgasse, e razões não tivesse para julgar, que este amor assim
absoluto e assim exagerado é partilhado por todos vós. Nós somos irmãos, nós
nos sentimos parecidos e iguais; nas cidades, nas aldeias, nos povoados, não
porque soframos, com a dor e os desprazeres, a lei e a polícia, mas porque nos
une, nivela e agremia o amor da rua. É este mesmo o sentimento imperturbável
e indissolúvel, o único que, como a própria vida, resiste às idades e às épocas.
Tudo se transforma, tudo varia -o amor, o ódio, o egoísmo. Hoje é mais amargo
o riso, mais dolorosa a ironia, Os séculos passam, deslizam, levando as coisas
fúteis e os acontecimentos notáveis. Só persiste e fica, legado das gerações cada
vez maior, o amor da rua. 1

.o que seria um museu da cidade? Seria aquele que articu-


la a memória local com a nacional, ou ainda aquele que
responde aos diversos problemas enfrentados pela população de com-
1. João do Rio
2002: 1.

plexas megalópoles? São imensos os desafios que uma cidade coloca ao


cientista social. É preciso decodificar as explorações e manipulações
inerentes aos processos económicos e políticos implantados, é mister
que se incluam nas instituições constituídas todos aqueles que se co-
locam à margem dos benefícios sociais; urge, ainda, a planificação do
sistema de modo que o ganho de hoje não se torne a miséria de amanhã.
Há, entretanto, uma questão da cidade com a qual somente o especialis-

{mYRian sepúLveda dos santos} 349


ta da memória pode lidar. Refiro-me aos seus marcos simbólicos, à alma
encantadora das ruas, tal como descrita por João do Rio, à procura do
tempo perdido, nos termos de Proust.
Nessa busca, o cientista social encontra-se desprovido de instrumen-
2. Gonçalves 2003. tos. Os diagnósticos dàs redes da cidade, do crescimento populacional,
p. 188.
dos fluxos migratórios, dos desequilíbrios econômicos, das injustiças
sociais, das causalidades políticas são tantos e ao mesmo tempo tão par-
cos de recursos. Neste artigo, parafraseando Gonçalves, vou defender a
idéia de que o profissional de museus se dedique à bricolage, ou seja, faça
com que suas atividades se tornem menos semelhantes às do cientista e
mais identificadas com o trabalho do artista e do poeta. Para isso, pro-
curarei definir, ainda que de forma sintética, por um lado, os conceitos
de cidade e modernidade, e, por outro, os de museu e memória. 2

A CIDADE MODERNA

Uma das mais caras noções que, nós cientistas sociais, adquirimos
nas últimas décadas é a de que não é possível atribuirmos um único signi-
ficado a uma palavra. Embora tal contribuição possa colocar em questão
a própria noção de ciência, ela tem sido apropriada por aqueles que prefe-
rem o conhecimento das incertezas e da transitoriedade do que a redução
e a arbitrariedade do conhecimento. Nesse sentido, para que uma contri-
buição possa ser feita às práticas a serem desenvolvidas por um museu da
cidade, é necessário antes de tudo partir de uma definição sobre o que é
museu e o que é cidade. Inicio minha análise pelo último conceito.
Embora seja possível falarmos em uma história das cidades e traçar-
mos o desenvolvimento de aglomerados humanos da Antigüidade até
nossos dias, pois inegavelmente há aspectos entre cidades distantes no
tempo e espaço que podem ser comparados, minha opção aqui será prio-
rizar a análise das relações sociais inerentes às cidades modernas. São
muitos os autores que apontam modificações radicais nas concepções
de tempo e subjetividade, bem como nas formas de organização social
que ocorrem em torno dos séculos XVII e XVIII. Essas modificações são

350 {museus, coLeções e patRJmÔnros: naRRativas poufônrcas}


cruciais para que possamos refletir melhor sobre a maneira pela qual
podemos hoje perceber todas as coisas que nos cercam e com as quais
nos relacionamos, e portanto também as cidades.
Dentre os clássicos da Sociologia, autores como Karl Marx, Émile
Durkheim, Max Weber e Georg Simmel estabeleceram paradigmas for-
tíssimos para pensarmos os pilares dessa modernidade. É hoje um senso
comum associarmos às grandes cidades os problemas oriundos do capi-
talismo, da industrialização, da impessoalidade e do anonimato. Estes
termos, entretanto, adquirem certas especificidades quando pensados
em relação às mudanças ocorridas nos dois ou três últimos séculos.
Para Marx, o modo de produção capitalista foi responsável tanto pela
implantação de um sistema extremo de exploração entre classes como
pelas condições que permitem a sua superação. A desnaturalização do 3. Como análises
paradigmáticas que
sistema econômico nos deixou como herança a consciência dos vínculos configuram o marco
da modernidade, po-
entre sistema de produção e distribuição de riquezas. Com Durkheim demos citar O capital,
de Karl Marx (1 983),
aprendemos que o sistema social pode ser considerado um fato, que as
Da divisão do traba-
sociedades se tornam mais complexas e que os indivíduos se adaptam a lho social, de ~mile
Durkheim (1 999),
tarefas cada vez mais especializadas. A denúncia, que ainda nos assom- A ética protestante e
o espírito do capita-
bra, de que o mundo perdeu sua mágica ao se defrontar com a eficiência lismo, de Max Weber
(2004) e A filosofia
da técnica e da racionalidade foi feita por Weber. Ao dialogar com essas do dinheiro, de Georg
macro-análises da modernidade, Simmel tomou para si uma lente de Sim mel (1 978).

· aumento e optou pela análise das relações de sociabilidade que ocorrem


entre os homens no momento em que todas essas transformações des-
critas estão em curso. 3 Afinal, que tipo de relações podem ser observa-
das entre os homens nessa dita modernidade?
Pensar a metrópole hoje é pensar uma determinada condição de ser
e existir, brilhantemente identificada por Simmel, em "A metrópole e
a vida mental", ao definir a figura do homem blasé. Segundo o autor, a
base psicológica do indivíduo da metrópole é constituída em reação à
intensificação dos estímulos nervosos. Em contraposição à vida na pe-
quena cidade, que permite aos homens relacionamentos profundamen-
te sentidos e emocionais, a vida na cidade leva os homens a proteger
suas emoções dos constantes estímulos e desafios. O homem da cidade

(mvRian sepúLveda dos santos) 351


desenvolve a capacidade de responder ao bombardeio de estímulos atra-
vés de seu aparato psíquico menos sensível e mais afastado da sua zona
profunda da personalidade: o intelecto. O homem da metrópole é racio-
nal e intelectualizado, mas vazio de sentimentos.
Segundo o autor, aessência da atitude blasé:
Consiste no embotamento do poder de discriminar. Isto não significa que os objetos
não sejam percebidos, como é o caso dos débeis mentais, mas antes que o significado
e valores diferenciais das coisas, e daí as próprias coisas, são experimentados como
destituídos de substância. Elas aparecem à pessoa blasé num tom uniformemente
plano e fosco; objeto algum merece preferência sobre outro.•
Acrescenta, ainda, Simmel, que esse estado blasé é o fiel reflexo sub-
4. Simmel1979, p.16. jetivo da economia do dinheiro completamente interiorizada. À medida
5. Sobre o "casaco de que a economia do dinheiro torna equivalentes a água e o vinho, esta
Marx", ver o belíssimo
ensaio de Peter Stally- equivalência se impõe aos indivíduos que lidam com o dinheiro. Eles
brass (2000) .
se tornam, então, incapazes de distinguir o valor inerente àquilo que
observam. Da mesma maneira que o dinheiro, que lida com a ausência
da cor e a indiferença, o intelecto do indivíduo moderno é insensível à
essência das coisas. Ele não é mais capaz de perceber o que é específico
de um objeto. O valor do casaco, tal qual descrito por Marx, é dado ape-
nas pela relação de troca, pelo mercado. 5
Como reagir a esse embotamento do indivíduo moderno? Para Sim-
mel, ele surge como defesa do indivíduo que não pode mais reagir com
a dimensão mais profunda do seu ser, de sua identidade, ou seja, com
seus sentimentos e emoções. As tarefas do metropolitano típico são
tão variadas e complexas que, sem o controle absoluto das emoções, a
submissão à pontualidade, aos compromissos e obrigações cairia num
caos inexplicável.
Nessa mesma linha de análise iniciada por Simmel, outro pensador
alemão se destaca: Walter Benjamin. Em face das exigências que acida-
de grande impõe aos indivíduos, resta a eles se autopreservar, ainda que
nesse movimento percam sua capacidade de discriminar. Não obstan-
te esse processo de embotamento coletivo do indivíduo metropolitano,
Benjamin resgata uma figura que escapa ao ritmo da multidão e à espe-

35 2 {museus, coLeções e patmm8mos: naRRativas pouf8mcas}


cialização do trabalho. Ele fala do fl.âneur, aquele indivíduo ocioso, que
caminha pelas ruas em ritmo próprio, observando a tudo e indiferente
aos estímulos crescentes da cidade. Benjamin associa o fl.âneur aos per-
sonagens excêntricos e detetives descritos nos romances de Edgar Alan
Poe. Para o autor, o que importa é a capacidade que o indivíduo preserva
de olhar o diferente, o outro, em sua especificidade, e resistir ao não ser
absorvido pela multidão e pelas imposições da uniformidade de com-
portamento ditada pela modernidade.
Segundo ele, ao analisar os escritos de Baudelaire, a Paris que é des-
crita pelo escritor francês ainda admitia a figura do fl.âneur, pois nela
havia o transeunte que se perde na multidão; mas também havia ainda o flâneur,
que precisa de espaço para agir e que não quer privar-se de sua privatização. Ocioso,
caminhava como se fosse uma personalidade: assim era seu protesto contra a divisão
do trabalho, que transforma as pessoas em especialistas.•
Benjamin, portanto, descreve o fl.âneur como sendo aquele indivíduo 6. Benjamin 1985,
p. 81.
que ainda tem capacidade de estranhar o que vê, ainda não foi subjuga-
7. Ver, por exemplo,
do nem pela cidade grande, nem pela economia de mercado, nem pela a análise de Beck,
Giddens e Lash sobre
burguesia. Ele é acolhido pela multidão, mas não faz parte dela. A crítica a destradicionalização
(1997) e o debate
é feita à substituição da vida pública pelo mundo privado burguês, que organizado em torno
esvaziou o primeiro e procurou em vão reproduzi-lo privadamente. deste tema por Heelas
e outros (1996).
A crítica às grandes cidades, à especialização, ao mercado e ao de-
senraizamento do indivíduo moderno não é consensual entre aqueles
que estudam a sociedade contemporânea. Para alguns autores, é justa-
mente esse processo que leva o indivíduo a se tornar um especialista e
desenvolver sua racionalidade, que também o conduz aos caminhos da
liberdade. A corrente teórica anglo-saxã, que privilegia o individualis-
mo e a razão como frutos da modernidade, associa a liberdade justamen-
te ao individualismo crescente e ao processo de ruptura com tradições
anteriores. A cidade grande, neste caso, rompe com oprovincianismo e
o atraso das cidades pequenas e do mundo ruraV
Acredito, no entanto, que não seja necessário considerar as rela-
ções de sociabilidade como uniformes nas sociedades complexas. Con-
siderando as análises de autores frankfurtianos das últimas gerações,

{mvRian sepúLveda dos santos} 353


que, embora críticos da modernidade, por não aceitarem como eman-
cipatórias e liberalizantes as relações sociais marcadas pela impessoa-
lidade, individualismo e anonimato, admitem que relações impessoais
podem e devem ser mantidas em esferas de disputas pelo poder e re-
lações mercantis, sem' se expandirem para as demais esferas da vida. 8
À esfera cultural, por excelência, caberia a tarefa de manter viva a co-
municação face a face entre os homens, bem como a possibilidade da
flâneurie, ou seja, do espírito desinteressado e excêntrico que poderia
existir em cada um de nós.

ÜS TEATROS DA MEMÓRIA

8. Embora Jurgen Uma das grandes transformações da modernidade diz respeito à


Habermas (1984) seja
a referência teórica concepção de tempo. Embora não seja aqui o espaço de desenvolver tal
mais importante desta
perspectiva, muitas
análise, é importante ressaltar que o ritmo acelerado das sociedades
são as novas contri· modernas e a mobilidade que adquirem os cidadãos fazem com que eles
buições que cami-
nham nesse sentido. adquiram novas formas de comportamento. Como descrito acima, em
Ver, por exemplo, o
debate mais recente sociedades mais complexas, os indivíduos passam a ser submetidos in-
entre Nancy Fraser e
Axel Honneth (2003). cessantemente a situações cada vez mais novas, em que desconhecem
9. Ver UI ri eh Beck seus interlocutores e os desafios que enfrentam. Um indivíduo que nas-
(1992).
ce no seio de uma família, mas que em poucos anos vivenda a frag-
mentação desse núcleo inicial de sociabilidade e se insere em diversas
outras instituições sociais, conhecendo novos núcleos sociais, em locais,
regiões e até mesmo países distantes, aprende a se adaptar a situações
diversas. Para alguns autores, os indivíduos passam mesmo a ter cons-
ciência de que vivem em situações de permanente de risco. 9 Ora, nesse
contexto, as memórias que se constroem a partir dos laços de sociabili-
dade são cada vez mais fragmentadas e múltiplas.
Desde as primeiras pesquisas empíricas ficou demonstrado que nos-
sas memórias individuais são muito frágeis e incoerentes. Nossa capaci-
dade de guardar o que aconteceu é pequena e é por meio do diálogo e
da comunicação que as memórias se consolidam. Esses diálogos muitas
vezes têm como suporte estruturas de sociabilidade que possibilitam a

354 {museus, coLeções e patRimÔmos: na1mat1vas poufômcasl


reiteração de idéias, valores e lembranças do passado. 10 Assim, é muito 1O. Sobre teorias da
memória e, espe-
mais fácil para nós guardarmos aquelas memórias que são reiteradas cialmente, sobre as
teorias de Maurice
em determinados contextos, como entre familiares, grupos escolares, Halbwachs sobre os

locais de trabalho e assim por diante. As memórias são contadas e re- quadros sociais da
memória, ver Santos
contadas e, com isso, são consolidadas entre os membros de um grupo 2003.

social. Os objetos concretos, bem como a música, o odor e o paladar,


também são extremamente importantes ao trabalho da memória. Mui-
tas vezes lembranças do passado são associadas a uma música, a um pa-
ladar, um objeto ou um lugar. Eles são suportes da memória. É famoso
o exemplo dado por Proust em que seu personagem volta ao passado
quando se delicia novamente ao comer um delicado bolo chamado ma-
deleine. Mas quem de nós não tem uma memória do passado associada a
uma música, uma árvore, um perfume, um pequeno bar?
A memória, isto é, a consciência das diversas experiências que fo-
ram vivenciadas ao longo de uma vida, as escolhas, decisões, questio-
namentos por que passam os indivíduos são essenciais à construção das
identidades individuais. Para saber quem somos precisamos de nossas
memórias. Os objetos fazem parte da forma pela qual os indivíduos se
relacionam com outros e com seu mundo. Os indivíduos se relacionam
com os outros também através da posse e do controle do mundo que os
cerca. O ato de colecionar está presente no indivíduo desde muito cedo e
pode ser observado pelas tentativas que as crianças fazem de colocar em
um mesmo conjunto pedrinhas coloridas multiformes, bolas de gude,
conchas de praia ou figurinhas. A posse dos objetos obtida pela riqueza,
por habilidade, gosto ou equivalente, confere a seu dono certo prestígio,
fortalece sua auto-estima e identidade.
À medida que os grupos são cada vez menos estáveis, a mobilidade dos
indivíduos maior e à mediada que os objetos também se transformam em
uma velocidade crescente, pois mesmo os produtos disponíveis para a
alimentação do passado já não são os mesmos dos enlatados do presente,
torna-se cada vez mais difícil para os indivíduos contarem detalhes sobre
a vida no passado. O ritmo acelerado da vida também torna o trabalho da
memória, a flâneurie através do tempo, praticamente impossível.

{mYRian sepúLveda dos santos} 355


Em suma, todo o processo de construção de memórias individuais
através interações sociais face a face, em que os significados são nego-
ciados entre pares, é cada vez mais difícil em sociedades complexas.
Essa fragilidade incita a ânsia por instituições sociais que sejam capa-
zes de resolver o problema. Diante do esquecimento, recorre-se ao sa-
ber das grandes enciclopédias do conhecimento; diante da ausência de
tradições sólidas, recorre-se aos grandes marcos simbólicos do presente
que propiciem fortes sentimentos identitários. O Estado aparece nesse
sentido como peça fundamental, ao proporcionar aos indivíduos bases e
fundamentos para que eles se sintam parte de um todo maior, que lhes
confira identidade. Se as comunidades de origem não são mais capazes
de proporcionar as identidades individuais, as instituições coletivas do
11. Para uma análise presente podem cumprir esse papel. Os museus modernos que se con-
dos museus modernos
e seus vínculos com solidam a partir do século XVIII estão associados ao fortalecimento dos
os Estados Nacionais,
o grande público e as
Estados Nacionais e ao público massivo. Além disso, a tradição coletiva
noções de autenticida-
que agora é disponibilizada aos indivíduos necessita de legitimação, e
de, ver, entre outros,
Bennett (1995) e esta é proporcionada pelo caráter de veracidade e autenticidade que é
Pomian (1990) .
atribuído aos objetos de cada coleção que se forma em torno da nação. 11
As coleções sempre atribuem prestígio a quem as possui. Nesse sen-
tido, há museus públicos e privados e, entre os primeiros, museus na-
cionais, regionais ou locais. Podem usufruir do prestígio de serem os
patronos de grandes coleções os governos federal, estaduais e muni-
cipais, bem como os membros das classes abastadas, ou todos aqueles
detentores de algum tipo de poder político ou econômico. Em governos
mais democráticos, observa-se a abertura para o público de coleções
que fortalecem a auto-estima de grupos sociais múltiplos, que passam a
ter acesso às políticas de construção cultural.
Os museus da modernidade reúnem objetos que são retirados de seus
locais de origem e agrupados em novos arranjos que implicam novos dis-
cursos e significados. Os papéis dessas instituições a que chamamos mu-
seus são múltiplos e diversificados. Eles podem servir ao público como
elemento catalisador do sentimento nacionalista, do pertencimento lo-
cal, propiciar um espaço de lazer, de informação, ou ainda de educação.

356 {museus, coLeções e patRtm8mos: naRRativas pouf8mcas}


Muitas vezes essas funções se mesclam. No Brasil, acompanhando com
certo atraso uma tendência que se observou na Europa e nos demais
países latino-americanos, os museus se abrem cada vez mais ao merca-
do. Eles foram até recentemente financiados basicamente pelo Estado, e
seus discursos refletiam a centralização de um discurso nacionalista. 12
Com a retração do Estado, os diretores de museus precisaram se adaptar 12. Para uma análise
das mudanças mais
ao mercado, recorrendo a fontes múltiplas de financiamento e respon- recentes ocorridas
nos museus brasilei-
dendo à diversificada demanda do público. Nesse processo, observa-se ros sob uma perspec-
tiva sociológica, ver
uma maior abertura à diversidade de produção cultural, uma vez que
Santos 2004.
são dadas oportunidades para que setores múltiplos da sociedade pas- 13. Clitford 1997,

sem a organizar seus artefatos de memória. Surge nesse período uma p. 168.

maior preocupação com a preservação do patrimônio imaterial, ou seja,


com práticas culturais que até então não recebiam apoio oficial. Mas
como nem todos têm a mesma possibilidade de acesso às leis do merca-
do, podemos esperar que os museus, ao se submeterem basicamente às
demandas do mercado, continuem incapazes de expressar toda a diver-
sidade e riqueza cultural de um povo ou nação. De qualquer forma, há
uma consciência maior de que os objetos que são expostos nos museus
não retêm uma única verdade, mas que adquirem múltiplos significados
e que há uma relação de poder tanto entre os que expõem e os que são
expostos, como entre os detentores das coleções.
]ames Clifford resume bem o estado atual do debate, ao afirmar que
a questão concreta para a prática etnográfica e para a prática seguida
por profissionais de museus diz respeito a como, em diversos matizes, as
estratégias retóricas constituídas afetam diferentes audiências.n

A CIDADE DA MEMÓRIA COLETIVA

João do Rio, jornalista, escritor, nasceu no Rio de janeiro em 1881 e


faleceu em 1921. Seus contos expressam de forma marcante o amor que
o autor nutria pelas ruas da cidade. Neles ganham textura, corpo e alma
as pessoas comuns que ocupam um espaço público. São elas as maripo-
sas de luxo, os trabalhadores da estiva, os gatunos, os zungas, as mu-

{mvRian sepúLveda dos santos) 357


lheres mendigas, as crianças, os que matam por paixão, os vagabundos
que transitam entre as ruas e os presídios da cidade. Por intermédio de
João do Rio percebemos que os pobres e marginais que habitam as ruas
são pessoas, têm sentimentos, lutam pela sobrevivência, desenvolvem
estratégias de resistência e fazem suas escolhas cotidianas.
Os museus têm um leque de opções a desenvolver e poderão ser
bem-sucedidos ao se comprometerem com grande parte delas. Eles po-
dem entreter, informar e educar com o auxílio dos objetos, e de forma
competente. Também a cidade pode ser representada a partir de um
número enorme de perspectivas, eixos teóricos e questões levantadas.
Cabe, no entanto, lembrar que os museus, enquanto instituições que
lidam com um conjunto rico de objetos simbólicos, têm a possibilidade
de lidar com a memória coletiva da cidade, que é construída por seus
habitantes de forma rica e criativa.
Alguns autores procuram na cidade justamente o espaço da memó-
ria coletiva, compreendido como sendo aquele ocupado por práticas que
estão literalmente enraizadas entre seus habitantes. 14 Se podemos ver a
cidade como um teatro da memória, podemos também vê-la representa-
14. Dois livros recen- da no museu a partir dessas práticas que dão lhe vida. Os diversos espe-
tes sobre a cidade se
destacam nessa pro- cialistas voltados para a resolução dos problemas urbanos muitas vezes
cura às memórias co-
letivas: Boyer (1994)
ignoram que qualquer saída deve ser procurada a partir do imaginário
e Baile (2000).
da cidade presente entre seus habitantes. Esse imaginário é múltiplo e
15. Baile 2000.
p. 315.
complexo, e precisa ser considerado. Para compreender uma cidade é
16. Baile 2000,
necessário trazer à tona "os quadros da cultura cotidiana que registram
p. 318.
os embricamentos entre biografia individual e história coletiva". 15 É ne-
cessário reconhecer que quando "o mapa da memória do eu e o mapa da
cidade se sobrepõem, não é possível desenhar um sem o outro". 16
A alma da cidade tem de ser procurada entre os moradores da cidade.
Recentemente, alguns trabalhos nos mostraram que o bonde de Santa
Tereza, no Rio de Janeiro, traz sentimentos em que questões subjetivas e
coletivas não se distanciam. Em uma dissertação de mestrado, a antro-
póloga Simone Cunha nos mostra o grau de comprometimento e amor
pelo bonde presente entre os empregados da empresa responsável pelo

358 (museus, coLeções e patRJmÔmos: naRRativas poufômcas}


veículo. Eles são profissionais que sofrem com a deterioração do bonde,
que colocam seu dinheiro na compra de peças já obsoletas, mas funda-
mentais à engrenagem, que lidam com a maquinaria de forma artesanal.
Não se trata aqui de mais um transporte, mas de um transporte muito
caro àqueles que vivem em Santa Tereza. Os moradores têm se mobili-
zado constantemente junto às autoridades competentes, lutando pela
preservação de um meio de transporte que já não obedece às regras de
segurança e eficiência decretadas pelos estudiosos do trânsito. Em um
documentário, em grande parte inspirado pelo trabalho da antropóloga,
de mesmo título inclusive, o diretor Jorge Ferreira teve a felicidade de
obter uma série de depoimentos que nos sensibilizam. O bonde é parte
do ofício que os pais dos condutores conseguiram transmitir aos filhos, é
parte do carnaval do bairro, das idas diárias ao trabalho, dos romances,
do som a que todos se acostumaram. O documentário tem um testemu-
nho final de uma moradora antiga que nos transmite sua aflição de pen-
sar o bonde em períodos de grande chuva, por saber que ele está lá fora,
se molhando. O bonde é um dos personagens da história da cidadeY
Bolle, citando Benjamin, ressalta que a memória não é o instru-
mento para a exploração ou descrição de eventos do passado; ela é o
palco no qual o passado se inscreve no presente. Retomo aqui uma ci-
tação muito feliz:
A linguagem indicou de modo inequívoco que a memória não é um instrumento para 17. Cunha, Simone
Dubeux Berardo
a exploração do passado, e sim, seu palco. A memória é o meio daquilo que vivemos, Carneiro da. Um
bonde chamado
assim como a terra é o meio dentro do qual jazem, soterradas, as cidades mortas. Santa Tereza : um
estudo antropológico
Quem pretende se aproximar do próprio passado soterrado tem de proceder como
sobre concepções
um homem que cava. (... ) E, sem dúvida, para ter sucesso nas escavações, é preciso de património cul-
tural. Dissertação de
um plano. Igualmente indispensável, porém, é a enxada cautelosa e experimental Mestrado. UFRJ/IFCS,
1997.
na terra escura, e priva-se do melhor, quem só registra o inventário de seus acha-
18. Walter Benjamin,
dos, e não a obscura felicidade do local do achado. A busca, mesmo em vão, é tão Obras Escolhidas, v. 11,
239s, citado por Bol-
importante quanto o achado feli z." le, 2000, p. 3 18.

Em suma, uma cidade é construída por seus habitantes ao longo do


tempo, e resgatar essa história é trabalhar com as marcas do tempo que
ainda estão presentes na cidade. Que o Museu da Cidade consiga ser o la-

(mvRian sepúLveda dos santos} 359


boratório vivo de experiências sobre o passado, que resgate as memórias
coletivas para que elas possam ser defendidas e recuperadas, que saiba
brincar com o passado e. recriá-lo artisticamente. Esta será inegavel-
mente uma grande contribuição dessa casa aos moradores da cidade.

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{mYRian sepúLveda dos santos} 361


demaRcando fRonteiRas URBanas:
a tRansfoRmação de moRadias
/\
em patRimQniO CULtURaL
Roberta Sampaio Guimarães 1

INTRODUÇÃO

1. Doutoranda em urante os anos de 2001 e 2003, os jornais diários do mu-


An tropologia pelo
Programa de Pós-Gra- nicípio do Rio de janeiro cobriram exaustivamente os de-
duação em Sociologia
e Antropologia da
bates em torno da criação das Áreas de Proteção do Am-
Universidade Federal
biente Cultural - APACs. Embora as primeiras APACs datem da década
do Rio de Janeiro,
desenvolveu durante de 1980, foi especificamente a decretação de cinco áreas na Zona Sul
três anos um estudo
sobre os discursos que conformou um espaço público conflituoso, composto por morado-
oficiais e locais de
transformação de res, empresários relacionados à construção civil, gestores públicos e es-
moradias em pa-
trimónio cultural.
pecialistas das ciências humanas e das belas artes. O enorme interesse
Pesquisa atualmente pelo "patrimônio cultural" da cidade foi ocasionado pelos alvos dos pro-
o movimento moder-
nista brasileiro e as cessos de preservação: prédios e casas residenciais de propriedade das
viagens etnográficas
realizadas por Mário camadas médias e altas da população, localizados em pontos econômica
de Andrade.
e simbolicamente valorizados da cidade.
2. O Globo,
25/07/2001. De acordo com matéria do jornal O Globo 2 e com a presidente da As-
3. Entrevista concedi- sociação de Moradores e Amigos de Botafogo, 3 o "movimento preserva-
da a mim em feverei-
ro de 2003 .
cionista" foi o responsável pela criação das APACs dos bairros do Leblon,
Laranjeiras, jardim Botânico, Botafogo e Ipanema. Este movimento co-
meçou com a mobilização de associações de moradores de diversos bair-

362 {museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas}


ros da Zona Sul em 1999, ano em que o então prefeito Luiz Paulo Conde
promulgou a "lei dos apart-hotéis", que regulamentava a construção de
apartamentos de 30 metros quadrados, com apenas uma vaga de gara-
gem para cada duas unidades habitacionais. Como os empresários da
construção civil visavam a utilização dos terrenos ocupados por casas e
prédios de poucos andares dessa região da cidade, os representantes dos
moradores se uniram para impedir que tais imóveis fossem demolidos,
causando o que nomearam de "descaracterização" e "perda da qualida-
de de vida" dos bairros.
No decorrer da polêmica sobre a construção dos apart-hotéis, foi eleito 4 . Os bens tombados
pelas APACs não
o candidato de oposição à prefeitura César Maia, que em sua campanha podem ser demolidos
nem sofrer alterações
havia se comprometido a atender às reivindicações do movimento pre- que os descaracte·
rizem, seja na parte
servacionista. Logo no começo de seu mandato, em 2001, ele decretou
externa ou interna
uma lei que possibilitava à sociedade civil recorrer ao Departamento Ge- do imóvel; já os bens
preservados não
ral do Patrimônio Cultural - DGPC contra os processos já aprovados de podem ser demolidos
nem sofrer alterações
demolição de casas e prédios. Além dessa lei, o prefeito também decretou nas características
originais de fachada,
o primeiro "ambiente cultural" de sua gestão, a APAC do Leblon, con- telhado ou volume-
tendo 218 imóveis entre tombados, preservados e tutelados. 4 Estimuladas tria, sendo permitida
a realização de obras
por esse decreto, associações de bairro de diversas regiões da cidade pro- de modernização em
seu interior, desde que
curaram a Prefeitura com pedidos de preservação de imóveis, fazendo sigam as condições
preeestabelecidas
que, em apenas dois anos, o DGPC iniciasse a discussão e avaliação da pelo DGPC; e os bens
tutelados podem
criação de mais de dez APACs, entre elas as dos bairros Humaitá, Fonte da
ser modificados ou
Saudade, Gávea, Tijuca, Morro da Mangueira, Copacabana, Grajaú, Rocha demolidos, mas estão
sujeitos a restrições do
Miranda e a do Corredor Cultural abrangendo Catete, Flamengo e Glória. órgão de tutela, como
seguir as característi-
No entanto, as cinco primeiras APACs decretadas durante o gover- cas e o gabarito dos
prédios vizinhos que
no César Maia receberam tantas críticas que o processo de criação de estejam tombados ou
novas áreas foi interrompido. Os questionamentos abarcaram diversos preservados.

aspectos da política patrimonial: os valores enunciados como justificati-


va para a preservação das casas e prédios de apartamentos; os critérios
para a listagem dos imóveis; a decretação das áreas pela Prefeitura sem
discussão prévia com os setores sociais interessados e sem a aprovação
de uma lei pela Câmara dos Vereadores; sua incompatibilidade com as
legislações urbanísticas dos bairros; e a interferência no direito de pro-

{nosenta sampa10 Gmmanães) 363


priedade dos imóveis. Ou seja, a criação de tais "patrimônios culturais"
pôs em ebulição diferentes concepções sobre o que é "pertencer" a um
determinado bairro, que pontos de vista culturais, históricos ou artís-
5. Para um quadro ticos deviam ser representados, quais os mecanismos políticos estavam
completo dos debates
em torno da preser- sendo disponibilizados· para a participação da sociedade civil no pro-
vação de moradias
durante a gestão do
cesso de preservação e que legislação e direito de propriedade deviam
prefeito César Maia
prevalecer sobre os bens. Este artigo aborda os processos sociais que
(2001-2004), ver Gui-
marães, 2004. possibilitaram a criação dessas polêmicas APACs e as noções de "cultu-
ra" e "comunidade" que tais debates movimentaram. 5

Ü SURGIMENTO DAS TENSÕES ENTRE POLÍTICAS


PATRIMONIAIS E URBANÍSTICAS

O primeiro programa patrimonial da prefeitura do Rio de janeiro


destinado a preservar "áreas de interesse cultural" foi o Corredor Cul-
tural do Centro. Os estudos para a sua criação começaram em 1979 e
foram concluídos em 1983, tendo como resultado a preservação de cerca
de 1.300 edificações. Nesse programa, havia a intenção de representar
a cultura através de imóveis que seriam relevantes por seus aspectos
históricos e arquitetônicos, e também pela "vida" que ainda continham.
Os critérios de preservação dos bens foram definidos pelo Escritório
Técnico do Corredor Cultural, ligado administrativamente ao Instituto
Municipal de Arte e Cultura- IMAC/RIOARTE. Um dos principais articu-
ladores do projeto, o arquiteto Augusto Ivan de Freitas Pinheiro, subse-
cretário municipal de Urbanismo e também diretor do Instituto Pereira
Passos na gestão de César Maia, concedeu uma entrevista ao jornal Ca-
pital Cultural - o jornal do Centro da Cidade, onde explicitou as concepções
patrimoniais que guiaram a seleção dos bens preservados.
Grosso modo, poderíamos dizer que o Centro dispõe de um conjunto arquitetônico
importante da época da Colônia,( ...) uma área da época do Império(...) e finalmente
um trecho que representaria a República.( ...) A idéia era proteger e preservar estes
três períodos de nossa história e também os monumentos arquitetônicos desta épo-
ca, que estão nestes lugares. Queríamos preservar não só a arquitetura. O Corredor

364 {museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas)


Cultural não tinha o objetivo de preservar apenas os prédios, mas também preservar
um pouco da vida que ainda existia nesses prédios.'
Tendo como referência esse primeiro projeto patrimonial, foi cria- 6. Jornal Capital
Cu#ural- o Jornal do
da em 1985 a Área de Proteção Ambiental - APA dos bairros da Saúde, Centro da Cidade,
março de 2004.
Gamboa, Santo Cristo e parte do Centro, projeto que ficou conhecido
7. Entrevista concedi-
pela abreviação SAGAS. O arquiteto Luis Eduardo Pinheiro, diretor do da a mim em setem-
bro de 2003.
DGPC na gestão de César Maia, declarou que essa APA foi fundamental
no processo de estabilização das práticas patrimoniais de preservação
de "ambientes culturais" na cidade, já que contou com uma grande mo-
bilização dos moradores e com a participação de diversas instituições
públicas ligadas aos governos federal, estadual e municipal. Segundo
seu relato, foi durante o lançamento do Corredor Cultural que os mo-
radores da Saúde tomaram a iniciativa de organizar uma quinzena de
debates sobre a situação do bairro.
Estava havendo um momento em que a legislação urbanística estava promovendo a
saída de todos os moradores dali do bairro da Saúde. Porque a legislação urbanística
favorecia uma série de atividades incompatíveis com as atividades residenciais.
Aquilo ali estava sendo olhado pelo mercado imobiliário como quintal do Centro,
da área central de negócios. Como não podia construir edifícios-garagem no Centro
da cidade, os estacionamentos tinham que estar situados num raio de SOO metros.
Quando você botava o compasso, os SOO metros caiam na Saúde. Então, a Saúde
estava virando área de estacionamento, área de depósito, área de frigoríficos, área
de oficinas. E com isso, por exemplo, nas ruas estreitas de lá passavam os caminhões
de frigorífico e iam batendo nas fachadas e subiam as calçadas, estavam pouco se
lixando, e isso ia deteriorando muito a qualidade de vida daquela região. Ela era
uma região que desde 1967 não estava recebendo nenhuma benfeitoria. Então, os
moradores queriam a revitalização daquele espaço.'
O discurso enunciado pelo especialista envolvido com a criação da
APA SAGAS, comparado ao discurso do envolvido·corri as preservações
do Corredor Cultural, aponta para uma significàtiva inflexão. Pois se o
Corredor Cultural foi um projeto pautado por critérios arquitetônicos
e históricos respaldados por modelos canônicos das belas artes e por
uma valorização do passado da cidade - embora não pretendesse ex-

(RoseRta sampa10 GUimaRães} 365


cluir do processo de preservação a "vida" que ocupava as edificações-,
o projeto SAGAS surgiu de uma mobilização de moradores contra uma
política pública que estava "deteriorando" a "qualidade de vida" da re-
gião. O interesse dos moradores em torno da preservação da região não
recaía, segundo relatado pelo arquiteto Pinheiro, sobre a valorização
de seus aspectos históricos ou artísticos, mas sobre a intenção de per-
manecer em seu local de moradia e mantê-lo inalterado em suas ca-
racterísticas, independentemente dos mecanismos legais que fossem
utilizados para esses fins.
Quando se criou esse projeto SAGAS a gente verificou que era importante, porque o
v ice-governador da época, o Darcy Ribeiro, fez uma visita ao local e, deslumbrado
com aquele espaço, disse "vamos tombar tudo, imediatamente". E os moradores
disseram assim: "nós não queremos o tombamento, nós não queremos ser tombados.
Nós queremos permanecer no lugar".•
A criação de uma área de preservação foi assim a forma mais eficaz
S. Idem . encontrada por essa parcela do poder público envolvida com a questão
9.1dem. patrimonial para, em conjunto com os moradores, suplantar a legisla-
ção urbanística e limitar o escopo de atuação do mercado imobiliário.
A valorização dos aspectos culturais e tradicionais da região foi uti-
lizada discursivamente pelos gestores para sustentar as medidas de
preservação.
Nós propusemos em 1984 o tombamento de várias coisas que iam desde igrejas
tradicionais, a cortiços - pela primeira vez estávamos tombando cortiços no Rio
de janeiro- e pinturas de botequim.(...) Mas, ainda era a Diretoria [do Patrimônio
Histórico] e ainda não se tinha a legislação [da APAC]. Aí a gente fez esse tombamento
pontual, assim, espalhando pelos três bairros, de maneira bem espalhada, para que
se criasse um sítio- se não me engano, foram 27 bens tombados-, criando um sítio
histórico. Ali dentro já existiam alguns bens esparsa mente tombados pelo Patri-
mônio Nacional. E aí a gente espalhou mais, tombando aquela área ali, aguardando
que se fizesse uma legislação urbanística para aquilo. Foi a idéia da APAC, que surgiu
como APA e depois com o Plano Diretor se transformou em APAC. 9

366 {museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas}


A OFICIALIZAÇÃO DA DISPUTA PELOS ESPAÇOS DA CIDADE

Em 1988 os parâmetros de classificação das APAs foram legalmente 10. Decreto Munici-
pal n°7.612.
instituídos: de acordo com o artigo P do Decreto Municipal, seria APA
11 . Artigo 350 - Lei
a área que apresentasse "características notáveis nos aspectos naturais Orgânica do Mu-
nicípio.
ou culturais" e que fosse ocupada e utilizada "no sentido da valorização
12. Lei Complemen-
do património ambiental". 10 Nota-se que nessa primeira definição de pa- tar n° 16 · Plano
Diretor Decenal da
trimónio ambiental não são separadas, com políticas patrimoniais dife- Cidade do Rio de
Janeiro.
renciadas, as noções de "natural" e "cultural". No artigo 4Qdo Decreto
são delineadas as características especificamente "culturais" desejáveis
a um bem preservado por uma APA:
1. Seja integrante de um conjunto de bens de valor
cultural na área que está inserido;
2. Apresente características morfológicas típicas e
remanescentes na área na qual está inserido;
3. Constitua-se em testemunho de várias etapas de
evolução urbana da área na qual está inserido;
4. Possua valor afetivo ou se constitua em marco na
história da comunidade.
A partir desses itens, percebe-se que as concepções de "proteção
ambiental" norteadoras da seleção de bens preservados por uma APA
- já absorvidas as experiências anteriores do Corredor Cultural e do
projeto SAGAS - se direcionaram tanto para a valorização de suas ca-
racterísticas históricas e arquitetónicas quanto de suas características
"afetivas" e "comunitárias". A conjugação dessas duas últimas noções
seria responsável pela oficialização da representação do património por
meio da preservação de moradias, por incorporar à legislação municipal
os discursos referentes às construções de "identidades culturais locais"
calcados em uma perspectiva subjetiva de sentimento de pertença dos
moradores às áreas protegidas.
Com o apoio da Lei Orgânica.U o Plano Diretor da cidade/ 2 de 1992,
instituiu oito diferentes tipos de unidades de conservação, entre elas
as APAs e as APACs. Passou a ser APA a área "dotada de características

(RoBeRta sampa10 GUimaRães} 367


ecológicas e paisagísticas notáveis cuja utilização deve ser compatível
com sua conservação ou com a melhoria de suas condições ecológicas", e
APAC, a área "que apresefl:ta relevante interesse cultural e característi-
cas paisagísticas notáveis·, cuja ocupação deve ser compatível com a va-
lorização e proteção da 'sua paisagem e do seu ambiente urbano e com a
preservação de seus conjuntos urbanos". Ou seja, a partir desse momen-
to, há uma divisão clara entre as concepções de preservação ecológica e
cultural, ganhando relevância a noção de "ambiência cultural".
A lei das APACs permite que o Conselho Municipal de Patrimônio
Cultural- CMPC aprove a preservação de áreas e bens imóveis indicados
como de relevante interesse cultural pelos estudos dos especialistas do
DGPC, embora o que seja considerado "relevante" varie muito de acordo
com a configuração dos especialistas de ambos os órgãos e com a polí-
13. Para mais in- tica patrimonial de cada gestão municipal. 13 Após passar pelo Conselho,
formações sobre a
organização admi- o projeto para a criação de uma nova APAC é encaminhado ao prefeito,
nistrativa dos órgãos
patrimoniais cariocas,
que o sanciona em forma de decreto publicado no Diário Oficial do Muni-
ver Carlos, 1997. cípio. Até o momento, a maior parte das APACs foi criada por decreto,
sendo raras as áreas regulamentadas por intermédio de lei votada pela
Câmara dos Vereadores.

A PARTICIPAÇÃO DA MÍDIA NA CONFORMAÇÃO


DA ARENA DE DEBATES

A arena de debates que se conformou na criação das APACs do Leblon,


de Laranjeiras, do Jardim Botânico, de Botafogo e Ipanema teve como
palco privilegiado os jornais O Globo e jornal do Brasil, que publicaram en-
tre os anos de 2001 e 2003 mais de 120 matérias e artigos que tratavam
diretamente do assunto. Comparando-se esta ampla cobertura com o
número pouco expressivo de reportagens sobre o tema oferecido por
outros jornais de grande circulação na cidade do Rio de Janeiro, como O
Dia, Extra e O Povo, percebe-se que havia - ou, como se verá adiante, de-
veria haver - um interesse regional e segmentado pela preservação das
moradias: o público dos jornais que se dedicaram à questão é composto

368 {museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas}


por leitores das camadas altas e médias da cidade, muitos residentes na
Zona Sul e, portanto, diretamente afetados pela decretação das áreas; e
o público dos jornais que não participaram do debate é formado pelas
camadas de menor poder aquisitivo da população, que reside majorita-
riamente fora da região de criação das APACs.
De forma esquemática, os setores sociais que participaram do debate
compuseram dois grupos opostos: o dos favoráveis e o dos contrários às
preservações. No grupo dos favoráveis estavam o prefeito, os secretários
municipais, os especialistas do patrimônio ligados à prefeitura - nota-
damente arquitetos, urbanistas e advogados - e os representantes das
associações de moradores. No grupo dos contrários, os representantes
da construção civil e das empresas imobiliárias. Três setores se apre-
sentaram divididos em suas opiniões sobre a política patrimonial: os
especialistas não vinculados à prefeitura - com maior destaque para a
participação de arquitetos, urbanistas e historiadores-, os vereadores e
os moradores. Estes últimos se encontraram posicionados no debate nas
categorias analíticas de "solicitantes", "atingidos" e "simpatizantes": os
solicitantes sendo os moradores que procuraram o órgão público para
que fosse avaliada a possibilidade da inclusão de seus imóveis na lista de
bens preservados do bairro; os atingidos, os moradores que foram no-
tificados da inclusão de seus imóveis na área de preservação no fim do
processo, não tendo assim participado das discussões, e/ou que foram
contrários a essa inclusão por desejarem vender ou alterar seus imóveis;
e os simpatizantes, moradores dos bairros contemplados com a medida
que não tiveram seus imóveis incluídos na área de preservação mas que,
pelos diferentes motivos que serão expostos a seguir, a apoiaram.
Apesar das limitações metodológicas da análise de discursos divul-
gados em material jornalístico, como a edição das falas dos entrevista-
dos e a fragmentação da informação, foi possível' delinear as principais
questões debatidas sobre o processo de preservação dos bens. Esses dis-
cursos permitiram a observação de um conjunto de termos de valoração
oposta que foi operado para se referir aos mesmos fenômenos da política
patrimonial: casas antigas x casas velhas; espigões x prédios modernos;

(RoaeRta sampa10 GUimaRães) 369


progresso x destruição, preservação da cidade x engessamento da cida-
de; adensamento populacional x crescimento urbano; manutenção da
vizinhança x elitismo de vizinhança. A partir dos usos desses termos,
ficaram explicitados os pontos de conflito do processo de preservação
e como ele interferiu dir.etamente na configuração de espaços físicos e
simbólicos, catalisando uma guerra urbana de representações e lugares.

D EFININDO AS REGRAS DO JOGO

Em muitos casos, a medida foi tomada para preservar o bairro até que seja aprovada
uma nova legislação urbana que impeça a degradação. Depois disso, podemos até
permitir a demolição de alguns prédios- Secretário municipal das Culturas."
Essa atitude não é uma forma democrática. Toda a sociedade deveria se pronunciar.
Não acredito que o prefeito baixe um decreto desses( ...) eu queria um apartamento
melhor, com vaga de garagem. Confesso que estou atônito- Morador e participante
da Associação dos Proprietários de Pequenos Prédios do Leblon. 15
Os imóveis são velhos, de arquitetura ultrapassada, sem elevador nem garagem. Só
valem pelo terreno. Tombados, valem muito menos. Os que ganham com isso são
os donos dos imóveis novos desses bairros, que ficarão valorizados. O prefeito está
perseguindo um setor que gera empregos e ajuda a movimentar a economia, que já
está em crise- Presidente da imobiliária Patrimóvel.' 6
A forma como as APACs foram criadas, sem que houvesse uma dis-
14. Jornal do Brasil, cussão prévia com os segmentos que estavam diretamente envolvidos
27/07!2001.
com os imóveis preservados, foi um dos aspectos da política patrimonial
15. Jornal do Brasil,
26/07/2001. que mais indignou seus opositores. Moradores, vereadores e construto-
16.0Giobo, res civis acusaram a Prefeitura de, com a medida, estar interferindo no
27/07/2001.
direito de propriedade, já que os donos dos imóveis não puderam mais
vendê-los para a demolição ou fazer reformas e modificações sem que
houvesse uma aprovação do DGPC. Os especialistas da Prefeitura, por
seu turno, argumentaram que é função do Plano Diretor da cidade miti-
gar o direito de propriedade, que deve ser definido prioritariamente por
sua função social. No caso mais polêmico, da APAC do Leblon, foi funda-
da por moradores do bairro a Associação de Proprietário de Pequenos

370 (museus, coLeções e patRim8mos: naRRativas pouf8mcasl


Prédios- APPP, com o intuito de questionar na Justiça a inclusão de seus
imóveis na área de preservação.
Os projetos [de novos empreendimentos] têm que ser válidos porque foram pro toco- 17. O Globo,
28/03/2002.
lados na legislação anterior. Eles não podem ser alterados. Tem que valer a legislação
18. Jornal do Brasil,
passada, senão ficamos reféns das mudanças na legislação. Já imaginou alguém 27/07/200 1.

que comprou um terreno para fazer um prédio de dez andares que vai virar cinco? 19 . O Globo,
20/12/2001
17
-Presidente da Associação de Dirigentes do Mercado Imobiliário.
Todo processo de uma mudança da legislação urbana tem uma discussão demorada
na casa [Câmara de Vereadores] se não é interessante à construção civil - Vereador
da Comissão de Assuntos Urbanos.'"
Os especialistas da Prefeitura admitiram estarem utilizando o me-
canismo de decretação de uma lei patrimonial para interferir de for-
ma mais ágil no processo de crescimento da cidade, por considerarem
a Câmara dos Vereadores muito suscetível às pressões do mercado imo-
biliário e, portanto, não comprometida com a causa preservacionista.
Uma parcela dos vereadores, por sua vez, acusou a Prefeitura de estar
acordada com alguns empresários da construção civil para acelerar as
demolições nos bairros, já que toda vez que se noticiou nos jornais um
plano de estudos do DGPC para a criação de uma nova APAC muitos imó-
veis foram vendidos às pressas e por preços abaixo do mercado por seus
proprietários. E os construtores civis criticaram a Prefeitura de estar
inviabilizando empreendimentos imobiliários que já haviam sido apro-
vados pela gestão anterior. Também apontaram como prejudicial à atu-
ação do setor as variações de gabaritos de uma mesma rua que, a par-
tir da decretação das APACs, foram diminuídos na parte ocupada pelos
imóveis tutelados, enquanto nos demais imóveis o gabarito permaneceu
o indicado pelo Plano de Estruturação Urbanística.
Se o imóvel mereceu ser tombado ou preservado, por que os critérios para concessão
da isenção ou do desconto seriam diferentes? O desco~to acaba ficando condicio-
nado a um subjetivismo que, na prática, torna sem efeito o instrumento de con-
servação que é a Apac. (. ..) Com a decretação da preservação ou do tombamento, a
propriedade do imóvel é relativizada. Se o bem tem importância para toda a cidade,
então a cidade deve contribuir para sua preservação- Vereador."

{RoBeRta sampa10 GUimaRães} 371


Não quero assustar as pessoas, mas também não quero que elas fiquem muito ale-
gres. Em tese, sempre há benefício fiscal para qualquer restrição ao uso de proprie-
dade. Mas o projeto de lei ainda tem que ser enviado à Câmara. E cada caso é um
caso- Secretário municipal' de Fazenda. 20
Os casarões da Joaquim Murtinho são tombados, mas muitos estão caindo aos peda-
ços porque seus moradores não têm condições de mantê-los- Presidente Institutos
dos Arquitetos do Brasil."
Os moradores atingidos pela preservação de seus imóveis e os espe-
20 . Jornal do Brasil, cialistas não vinculados à Prefeitura introduziram no debate a questão
30/07/2001 .
da regulamentação do incentivo fiscal que deveria auxiliar os proprietá-
21 . O Globo,
28/07/2001 . rios na manutenção das características arquitetônicas de suas fachadas,
22 . O Globo, exigência prevista na lei das APACs e fiscalizada pelo DGPC. Embora a
05/0812001.
Prefeitura tenha anunciado uma redução do Imposto Predial de Territó-
rio Urbano- IPTU para todos os proprietários de imóveis tombados pe-
las APACs, esse benefício não foi concedido na maior parte dos casos por
não terem sido definidas que características deveriam ser preservadas
ou mesmo recuperadas em cada uma das fachadas que passaram a com-
por o "ambiente cultural". Outro problema encontrado para a conserva-
ção dos imóveis foi a necessidade do desconto fiscal ser aprovado pela
Câmara de Vereadores, que não foi incluída no processo de discussão da
criação das APACs. Apesar dos moradores terem considerado a isenção
do IPTU a melhor medida para a preservação dos imóveis, a Prefeitura
devolveu para seus proprietários a responsabilidade de se "auto-susten-
tar", sugerindo que o bem incluído na APAC não fosse somente utilizado
como moradia, fosse também transformado em estabelecimento comer-
cial e assim gerasse a renda necessária para sua manutenção.

MAPEANDO PERDAS E DANOS

Se a gente fosse fazer um balanço de perdas e danos, eu diria que o Rio perdeu muito.
Imagine o que foi desmontar um morro com o do Castelo, em 1922, o berço da cidade.
Mas ainda temos imóveis bem representativos de vários períodos da nossa história
-Coordenadora do Programa de Urbanismo da UFRJ. 22

372 (museus, coLeções e patRimÔmos: naRRatiVas poufômcasl


Tom [Jobim] viveu exatamente aqui, nesta casa, onde funciona há 35 anos esta
escola. Eu amo Ipanema. Cresci percorrendo o bairro todo de bicicleta ou patins.
Peguei a época do bonde e conheço muito a sua história. Inclusive damos aulas para
alunos de 3' e 4' séries sobre Ipanema. Eles fazem passeios, conhecem construções
antigas daqui. O Brasil precisa ter memória cultural e a preservação é fundamental
- proprietária do Colégio Sarah DawseyY
Quando um prédio é demolido, não necessariamente o que é construído em seu lugar
é pior. Alguns prédios antigos sequer têm garagem - Diretor jurídico da Associação
dos Dirigentes do Mercado Imobiliário."
A base argumentativa dos discursos preservacionistas foi a objetifi- 23. O Globo ,
24/08/2001.
cação da cultura, da identidade e da memória da cidade e a retórica cal-
24 . Jornal do Brasil,
cada na idéia da perda, que juntos construíram a percepção da história 25/07/2001.

como um processo de constante destruição ou desfiguração dos objetos 25. Jornal do Brasil,
27/12/2001.
que personificariam tais valores. A ênfase discursiva de legitimação das
26 . Jornal do Brasil,
ações patrimoniais de resguarda recaiu sobre a condenação das demoli- 26/07/2001.

ções de bens considerados representativos da história local ou nacional


e sobre o enaltecimento das edificações que permaneceram "íntegras".
Embora os opositores às decretações das APACs não tenham questiona-
do essa objetificação e retórica, eles tentaram anulá-la argumentando
ser possível que a perda fosse positiva e que a modernização gerasse
melhores edificações para a cidade e seus moradores.
A preocupação foi preservar as características arquitetônicas, sem prejudicar o de-
senvolvimento do bairro [Jardim Botânico] - secretário municipal das Culturas.'s
Não há porque manter prédios que já estão descaracterizados por reformas, só para
se evitar a construção de espigões. Por causa da violência, instalaram-se grades em
janelas e elevaram-se muros, modificando o desenho original (...) Se eles querem
evitar que se construam apart-hotéis, ou frear a especulação imobiliária, devem usar
regras urbanísticas e não normas de preservação de patrimônio público. Assim
estamos desvalorizando os edifícios que realmente são 'importantes - Presidente
do Instituto dos Arquitetos do Brasil.'•
Os especialistas da Prefeitura declararam aos jornais que os critérios
arquitetônicos e históricos que guiavam a atuação da preservação das
moradias eram os aspectos mais relevantes da política patrimonial. No

(RoBeRta sampaw GUimaRães} 373


entanto, os opositores à preservação argumentaram que os bens lista-
dos pelas APACs não possuíam essas características. Arquitetos, histo-
riadores e moradores insatisfeitos com a preservação questionaram a
inclusão de imóveis considerados ordinários por causa das sucessivas
reformas feitas em suas fachadas e de seus ruins estados de conserva-
ção, sinalizando como uma das causas das modificações a adaptação dos
moradores à violência da cidade. Essa correlação específica de assuntos
não foi abordada pelos preservacionistas.

PARTINDO E RE-PARTINDO A CIDADE

27. O Globo, Se não fosse preservado, o Leblon perderia aquele ar de bairro família- Moradora
28/07/2001.
do Leblon. 27
28 . O Rajah é um pré-
dio localizado na Praia A região, que tinha um perfil residencial, acabou se tornando um bairro de passa-
de Bota fogo que ficou
famoso na cidade por gem, cheio de lojas comerciais. Um símbolo de como essas mudanças prejudicaram
ser palco de inúmeras
Botafogo é o edifício Solymar, antigo Rajah. Antes de ele ser construído, havia no
ocorrências policiais
principalmente liga- local um casarão de estilo francês- Historiador e morador de Botafogo. 28
das à prostituição e
ao tráfico de drogas. Não tenho nada contra construírem um prédio na frente do meu, como aconteceu
Ediflcio de pequenos
apartamentos conju- recentemente. Acho de um elitismo facistóide este egoísmo dos moradores que vie-
gados e com muitos
andares, o Rajah é
ram viver em edifícios construídos onde antes havia casas, mas não querem outros
uma opção para a
edifícios lhes tirando a vista- Proprietário da Demolidora Carioca. 29
classe média baixa
que deseja morar As noções de "modernização" ou "transformação da cidade foram iden-
na Zona Sul. Seus
moradores são cons- tificadas de forma negativa pelos preservacionistas, que as contrapuseram
ta ntemente estigmati-
zados pelos outros do com as noções de "tradição" e "familiar". Para os defensores da preserva-
bairro, sendo comum,
quando interpelados
ção, a ameaça promovida pela especulação imobiliária e pelo conseqüente
por alguém sobre adensamento populacional se concentrou principalmente na percepção
seu local de moradia,
responderem que da perda de um estilo de vida e de uma relação de vizinhança identifica-
moram na Praia de
Sotafogo, omitindo dos como "característicos" dos bairros. A valorização de um estilo arqui-
o nome e o número
do prédio. Jornal do
tetônico ou de época foi muitas vezes associada a um tipo de morador que
Brasil, 27/07/2001 .
se buscava preservar. Os contrários às medidas de preservação rebateram
29. O Globo,
07/04/2 002.
esta conjugação de valores acusando os preservacionistas de provocarem
um "engessamento" da cidade e um "elitismo de vizinhança" que desejava
evitar novos moradores aos prestigiados bairros da Zona Sul.

374 {museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas]


No Batalhão existe a possibilidade de se construir um hospital particular e teme-
mos isso. Já os terrenos dos clubes são áreas grandes e podem até dar lugar a vários
prédios. Queremos uma qualidade de vida e a prefeitura vai nos ajudar- Presidente
da Associação de Moradores e Amigos do Leblon. 30
Se você disser que a única condição de crescimento demográfico de bairros da
Zona Sul é a favelização ou a perda da qualidade de vida nos bairros, viva o enges-
samento- Prefeito."
Os favoráveis à política patrimonial enfatizaram alguns aspectos 30. O Globo,
09/02/2002 .
ecológicos das condições dos bairros, argumentando a favor da manu-
31 .0Giobo.
tenção da "qualidade de vida", noção associada à preservação de ele- 05/08/2001 .

mentos como ventilação, iluminação e saneamento das edificações. Em 32 . O Globo,


17/08/2001.
uma declaração mais incisiva, o prefeito da cidade comparou a ameaça
33 . O Globo.
de adensamento populacional dos bairros da Zona Sul ao risco de sua 28/0712001 .

"favelização", categoria que foi por ele utilizada para estimular a asso-
ciação subjetiva do crescimento da cidade a um estado de precariedade,
feiúra e desestruturação das relações sociais. Os opositores às preserva-
ções não abordaram os aspectos ecológicos do adensamento populacio-
nal, preferindo enfatizar o "elitismo", que consideraram ser a base da
proposta de criação das APACs.
A situação do Leblon era urgente. Mas já estava em nossa pauta conversar com Gra-
jaú, Tijuca e Vila Isabel, berço de muita história do Rio- Diretor do DGPC. 32
As pessoas têm preconceito em relação à Zona Norte. Temos coisas históricas, bo-
nitas. Vamos começar a fazer nosso levantamento - Presidente da Associação de
Moradores de Rocha Miranda. 33
Embora várias associações de moradores tenham solicitado o estu-
do de suas edificações e logradouros ao DGPC, somente as da Zona Sul
da cidade se beneficiaram de fato com as decretações. Segundo os espe-
cialistas do patrimônio, a prioridade da Zona Sul se deveu ao assédio do
mercado imobiliário e à grande procura de seus apàrtamentos por mora-
dores de outras regiões da cidade. Entre as críticas recebidas pelo favo-
recimento da Zona Sul, vale destacar o caso do pedido de criação de uma
APAC para o Morro da Mangueira. A solicitação, embora tenha sido enca-
minhada por um membro do CMPC, foi a única sumariamente recusada

{RoaeRta sampa10 GuimaRães} 375


pelo prefeito, que declarou que, por estarem localizadas em uma favela,
os bens apontados como "importantes na história da comunidade" eram
uma ocupação ilegal, não .podendo ser reconhecidos pelo poder muni-
cipal. Segundo o prefeito; para essas áreas, o programa mais adequado
seria o Favela-Bairro, que objetiva promover a urbanização e a legalização
de propriedades nas favelas do Rio. Dentre as edificações indicadas para
integrarem a APAC, estavam as antigas moradias dos compositores Carto-
la e Carlos Cachaç,a e a quadra de samba da escola, o Palácio do Samba.

CoNCLUSÃo

Em contextos diversos, o termo patrimônio é constantemente agre-


gado a outros termos - cultural, arquitetônico, histórico, financeiro,
familiar, genético - e utilizado para definir a idéia de propriedade, de
posse de algo. A idéia de patrimônio se encontra, dessa forma, direta-
mente relacionada com a de colecionamento, com a prática de ajuntar
coisas ou experiências em torno de pessoas, regiões ou nações. Muitos
pesquisadores já observaram nas mais diversas culturas e sociedades
algum tipo de colecionamento, demonstrando que a prática é universal.
34. Para uma análise Mas, como aponta Gonçalves3 \ uma característica diferente é encontra-
sobre o património
como ca tegoria de da nas coleções das modernas sociedades ocidentais: nelas a acumula-
pensamento, ver
Gonçalves, 2003.
ção de um grupo de objetos é feita com o único propósito de guardar,
35 . Clifford, 1994. enquanto em outras culturas os objetos são colecionados para serem
distribuídos, trocados ou destruídos. Esse aspecto da subjetividade do
colecionador ocidental foi cunhado por Clifford35 de "autenticidade
possessiva", já que o colecionador considera que através do agrupamen-
to e classificação de objetos pode ser construída uma "identidade", uma
diferenciação em relação ao "outro".
A partir do exame da natureza simbólica das coleções, Pomian enfati-
za que é a linguagem que possibilita que objetos representem experiências
distantes no tempo e no espaço, mediante o acionamento de mecanismos
sociais que estruturem suas formas de representação e percepção. Ele de-
nomina de "invisível" tudo aquilo que tais objetos têm a capacidade de

376 {museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcasj


evocar através de sua presença ou visibilidade: acontecimentos históri-
cos, lugares distantes, modos de vida etc. Essa oposição entre o invisível e
o visível é, para o filósofo, "a que existe entre aquilo de que se fala e aquilo
que se apercebe, entre o universo do discurso e o mundo da visão". 36
Analisando as políticas de patrimônio, Gonçalves 37 demonstra que 36. Pomian, 1984,
p. 68.
recursos narrativos muito específicos são operados para acionar de-
37. Gonçalves, 1996.
terminadas concepções de tempo e cultura, e sustentar a apropriação
de objetos e sua classificação em coleções. Para o autor, a tentativa de
permanência cultural reflete uma concepção de temporalidade na qual
a história é vista como um processo incontrolável de destruição, sendo
que nessa retórica do discurso preservacionista a perda é reconhecida
como um fato histórico exterior e não como um princípio estruturador
interno ao próprio discurso, residindo justamente nesse não reconheci-
mento a sua eficácia simbólica e social. Por intermédio dessas táticas dis-
cursivas de representação, os ideólogos do patrimônio valorizam os as-
pectos entendidos como "tradicionais" e "autênticos" das coletividades,
excluindo de seus discursos tudo o que é "híbrido" ou "inautêntico".
É esse conjunto de operações lingüísticas e sociais que transforma
a moradia em "patrimônio cultural". Como todo sistema de represen-
tação precisa ser socialmente compartilhado para ser eficaz, práticas
institucionais e políticas poderosas são postas em movimento para se
apropriarem de objetos e transformá-los em símbolos de identidades co-
letivas. Discursivamente construída como objeto-símbolo de "memória"
e "identidade", a moradia passa a ser alvo de medidas de preservação
para que não sejam "destruídos" ou "descaracterizados" os vestígios
materiais de uma época, determinadas relações de vizinhança ou tra-
dições locais, todos esses aspectos valorizados a partir de seus traços
harmônicos e coerentes.
Mas a criação da noção de "patrimônio cultural" pelos gestores
públicos, combinada com a participação das "comunidades" na discus-
são das medidas de preservação de sua "vizinhança", se mostrou um
caminho politicamente desestabilizador do gerenciamento do espaço
urbano. No caso da cidade do Rio de Janeiro, se até a década de 1980 os

(RoBeRta sampa10 GUimaRães} 377


especialistas da Prefeitura em políticas urbanísticas e os representan-
tes do mercado imobiliário eram os principais setores que dialogavam
sobre a ocupação e utilizqção desse espaço, após a valorização da noção
de "ambiente cultural" uma ampla gama de especialistas, moradores
38 . Como aponta das localidades e suas· associações representativas se transformaram
Arantes, as institui·
ções de comunicação em importantes vozes no debate, posicionando-se tanto favoráveis
devem ser tratadas
com maior atenção
como contrários às medidas que estavam sendo implementadas com a
durante a análise de intenção de representar suas "identidades culturais". Nessas disputas,
processos sociais,
principalmente os as instituições de comunicação foram importantes produtoras e difu-
desenvolvidos nas
grandes cidades. soras de valores, configurando a todo o momento o espaço público por
Ara ntes, 2000.
meio de produções simbólicas construídas a distância e a partir de vá-
rios pontos de localização. 38
Nos debates sobre as recentes APACs, as declarações enunciadas nos
jornais tanto pelos favoráveis como pelos contrários às preservações
apontaram para o crescimento exponencial das divergências em torno
do tema da preservação de moradias. O que se pôde observar foi que o
não direcionamento de uma política pública que abrangesse os diversos
aspectos da preservação aumentou o conflito e a fragmentação social
da cidade, ao invés de alcançar o objetivo enunciado pelos ideólogos do
patrimônio de produzir um sentimento de pertença a uma coletividade
ou "comunidade". A questão da representação das identidades culturais
se tornou, aqui, uma questão eminentemente política e territorial, que
envolveu não apenas a disputa pela classificação dos objetos-símbolos
dessa "identidade", mas também a classificação dos espaços e de seus
habitantes. A exclusão de bairros pouco valorizados economicamente
do processo de preservação, a tentativa de se manter uma determina-
da vizinhança de bairro e a valorização de casas e prédios construídos
segundo os estilos arquitetônicos academicamente reconhecidos foram
apenas alguns dos indícios de que os valores enunciados pelos que parti-
ciparam da questão das APACs perpassam suas concepções sobre patri-
mônio: por meio delas, valores morais, estéticos, legais, jurídicos, fisio-
lógicos e econômicos foram constantemente atualizados na guerra de
representações e poderes sobre os lugares-objeto de desejo da cidade.

378 {museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufôm cas}


RefeRênciaS BIBLIOGRáfiCaS

ARANTES, Antonio Augusto. Paisagens paulistanas: transformações do


espaço público. Campinas: Unicamp; São Paulo: Imprensa Oficial, 2000.

CARLOS, Cláudio Antônio Santos Lima. Preservação de áreas de proteção


do ambiente cultural (APAC) da Cidade do Rio de janeiro: contribuição
aos estudos e reflexão sobre o tema. Rio de janeiro, dissertação de
mestrado FAU I UFRj, 1997.

CLIFFORD,james. "Colecionando arte e cultura". ln: Revista do


Patrimônio, nQ23. Rio de janeiro: IPHAN, 1994.

GONÇALVES,josé Reginaldo Santos. "O patrimônio como categoria


de pensamento". ln: Abreu, Regina; Chagas, Mário (Orgs.) Memória e
patrimônio: ensaios contemporâneos. Rio de janeiro: DP&A, 2003.

- - · A retórica da perda: os discursos do patrimônio cultural no Brasil.


Cap. 4. Rio de janeiro: UFRjiiPHAN, 1996.

GUIMARÃES, Roberta. A moradia como patrimônio cultural: discursos


oficiais e reapropriações locais. Dissertação de mestrado. PPGSA I
UFRj, 2004.

POMIAN, Krzystof. "Entre o visível e o invisível: teoria geral das


coleções". ln: A Coleção, Enciclopédia Einaudi, v. 1: Memória e História.
Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1984.

{ROBeRta sampaw GUimaRães} 379


notas BIOGRáficas
Regina Abreu
Regina Abreu é antropóloga, professora do Programa de Pós-Graduação
em Memória Social da UNIRIO. Atua também na Escola de Museologia da
UNIRIO, trabalhando com Antropologia dos Museus e dos Patrimônios.
É coordenadora do GT de Patrimônio Cultural da Associação Brasileira de
Antropologia. Atualmente vem pesquisando a relação entre a Antropologia
e os museus e o surgimento de museus como estratégias dos movimentos
sociais, produzindo ensaios e livros, entre os quais A fabricação do imortal
(Rocco), "Museus etnográficos e práticas de colecionamento; antropofagia
dos sentidos", in: Revista do Patrimônio (IPHAN); Memória e patrimônio: en-
saios contemporâneos (org. com Mário Chagas) (DPA).

Maria Cristina Oliveira Bruno


Maria Cristina Oliveira Bruno, museóloga, é professora e vice-diretora do
Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, onde desenvolve a docência (pes-
quisa e ensino) sobre comunicação museológica, com ênfase em museali-
zação da Arqueologia e Etnologia. Nesse museu, coordenou quatro edições
do Curso de Especialização em Museologia (1999 a 2006) e integra o Progra-
ma de Pós-Graduação em Arqueologia ministrando disciplina e orientando
mestrados e doutoramentos.
Tem livros e artigos publicados sobre diversos temas museológicos, presta
consultaria para a elaboração de programas museológicos em diversas insti-
tuições. É licenciada em História (1975, UNISANTOS), especialista em Museo-
logia (1980, FESP), mestre em História Social-Pré-História (1984, USP), doutora
em Arqueologia (1995, USP) e livre-docente em Museologia (2001, USP).

Sibele Cazelli
Graduada em Biologia, mestre em Educação e doutora em Educação Bra-
sileira pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de janeiro (PUC-RJ). É

382 {museus, coLeções e patRim8mos: naRRativas pouf8mcasl


pesquisadora da Coordenação de Educação do Museu de Astronomia e Ci-
ências Afins (MAST), onde estuda os processos de comunicação e cognição
entre o museu e o público, levando-se em consideração as características
das ações educacionais em contexto não formal e as especificidades de cada
tipo de público. Dentro da abordagem de uma sociologia educacional apli-
cada, esses estudos envolvem a obtenção de informação sobre o público em
suas várias dimensões- sociais, culturais, demográficas e individuais-, a
fim de produzir subsídios para a tomada de decisões na organização das
atividades museais em seus aspectos teóricos e práticos. A avaliação dessas
atividades inclui a elaboração de instrumentos de medição e o desenvolvi-
mento de uma metodologia estatística de análise.

Mário de Souza Chagas


Poeta e museólogo, é mestre em Memória Social pela UNIRIO e doutor em
Ciências Sociais pela UER], professor adjunto da UNIRIO e professor visi-
tante da Universidade Lusófana de Humanidade e Tecnologia de Lisboa. É
coordenador técnico do Departamento de Museus e Centros Culturais do
IPHAN e co-editor da revista Musas. Entre suas publicações destacam-se Há
uma gota de sangue em cada museu (2006) e a organização, com Regina Abreu,
do livro Memória e patrimônio- ensaios contemporâneos (2003).

lone Helena Pereira Couto


Ione Helena Pereira Couto graduou-se em 1987 pela escola de Museologia
da Universidade Federal do Estado do Rio de janeiro - UNIRIO. Ingressou,
no mesmo ano, no Serviço de Museologia do Museu do Índio, onde assumiu
sua chefia desde 1993.
Em 1990, publicou, em co-autoria com a antropóloga Arilza de Almei-
da, o livro de culinária indígena O cru e o cozido: a cozinha do Brasil, pelo
Museu do Índio. Em 1997 publicou o artigo "Instrumentos musicais: veícu-

{notas BIOGRáficas} 383


lo de comunicação", pelo Consorciationis Internationalis Musicae Sacrae
Publicationes de Roma, em projeto coordenado pelo Dr. Antonio A. Bispo,
chefe da Sessão Etnomusicológica do Instituto de Estudos Hinológicos e
Etnomusicológicos da Cidade alemã de Colônia. Ainda em 1997 recebeu
o diploma de Reconhecimento de Mérito no Segundo Concurso Nacional
de Experiências Inovadoras de Gestão na Administração Pública Federal,
promovido pela Escola Nacional de Administração Pública (ENAP). Em
2005, concluiu o mestrado em Memória Social pelo programa de Pós-Gra-
duação em Memória Social da UNIRIO, defendendo a dissertação Darcy e
os urubu: um caso entre colecionador e coleção. No mesmo ano, ingressou no
doutorado do mesmo Programa, onde vem desenvolvendo sua pesquisa
sobre coleções etnográficas.

Nélia Dias
Nélia Dias, professora no departamento de Antropologia do ISCTE (Portu-
gal), é autora de dois livros - Le Musée d'Ethnographie du Trocadéro. Anthro-
pologie et muséologie en France (CNRS, 1991) e La Mesure des Sens. Les an-
thropologues et le corps humain au XIXe siecle (Aubier, 2004) - e de vários
artigos sobre coleções de etnografia, história da Antropologia e as relações
entre museus e a questão da diversidade cultural. Sua pesquisa incide sobre
o Musée du Quai Branly, tendo publicado "Cultural Difference and Cultural
Diversity: The Case of the Musée du quai Branly", in: Daniel]. Sherman
(ed.), Museums and Difference (Indiana University Press, 2007) e "Le Musée du
quai Branly perspective historiques", Le Débat, 2007.

Vera Lucia Doyle Louzada de Mattos Dodebei


Bacharel em Biblioteconomia e Documentação, mestre em Ciência da Infor-
mação e doutora em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do
Rio de janeiro (1997), é professora adjunta IV da Universidade Federal doEs-

384 {museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas}


tado do Rio de janeiro- UNIRIO, onde coordena o Programa de Pós-Gradua-
ção em Memória Social (mestrado e doutorado). É bolsista de produtividade
em pesquisa do CNPq, com o projeto "Património digital, memória social e
teoria da informação: configurações e conceituações".

Joana D' Are Fernandes Ferraz


Joana D'Arc Fernandes Ferraz é professora do Programa de Pós-Graduação
em Memória Social na Linha Memória e Património (PPGMS-UNIRIO), in-
serida pelo Programa de Absorção de Recém-Doutores (PRODOC-CAPES).
Doutora em Ciências Sociais (PPCIS-UERJ), mestre em Ciência Política (PPG-
CP-UFF) e pesquisadora associada do Laboratório de Estudos sobre as Dife-
renças e Desigualdades Sociais (LEDDES-UERJ).
Suas áreas de interesse são as políticas de preservação da memória da
ditadura brasileira e as políticas de património construídas pelos movi-
mentos sociais.

Filippo Lenzi Grillini


Filippo Lenzi Grillini, nascido em Florença, Itália, no ano 1976, é doutor em
Antropologia (Metodologíe della Rícerca Etno-antropologíca) pela Universidade
de Siena (Itália). Desenvolveu pesquisas de campo no Brasil, entre os povos
indígenas de Minas Gerais, estudando em uma primeira fase os projetas de
educação diferenciada indígena e, em seguida, de maneira mais aprofunda-
da, os processos de demarcação e delimitação das terras indígenas e o papel
dos antropólogos nesses processos.
Seus principais temas de pesquisa são a Antropologia do desenvolvi-
mento e o estudo da etnicidade, além das reflexões relativas às responsa-
bilidades políticas e sociais da Antropologia contemporânea. Sobre esses
temas, publicou artigos em periódicos e capítulos em livros, e apresentou
comunicações em congressos internacionais.

{notas BIOGRáficas} 385


Roberta Guimarães
Doutoranda em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia
e Antropologia da Universidade Federal do Rio de janeiro (UFRJ), pesquisa
atualmente os projetos de revitalização dos bairros da zona portuária, no
centro do Rio de janeiro. Nos últimos anos, vem desenvolvendo estudos sobre
os discursos oficiais e locais enunciados durante os processos de transformação
de moradias em patrimônio cultural.

Luciana Sepúlveda Kóptcke


Luciana Sepúlveda Koptcke, doutora em Museologia pelo Muséum Natio-
nal d'Histoire Naturelle, Paris, especialista em Teoria da Comunicação e da
Cultura pela UFRJ, licenciada em Educação artística pela PUC-R], é coorde-
nadora de extensão da Fiocruz em Brasília e também do Observatório de
Museus e Centros Culturais.

José Matias de Lima


José Matias de Lima é bacharel em Estatística pela UNICAMP e mestre em
Matemática Aplicada (Estatística) pela Associação Instituto Nacional de
Matemática Pura e Aplicada (IMPA). É pesquisador em Informações Geo-
gráficas e Estatísticas da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Es-
tatística (IBGE), lotado na Escola Nacional de Ciências Estatísticas (ENCE),
onde atua como coordenador do bacharelado em Estatística.
Tem experiência na área de Probabilidade e Estatística, com ênfase em
análise de dados, modelagem e amostragem. Suas principais linhas de pes-
quisa são: dinâmica populacional, condições de vida e políticas públicas
na área cultural, estudando e avaliando o perfil de visitantes em museus
e centros culturais.

386 {museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas}


Manuel Ferreira Lima Filho
Manuel Ferreira Lima Filho é antropólogo, professor titular e coordenador
do mestrado profissional em Gestão do Patrimônio Cultural da Universida-
de Católica de Goiás (IGPA). É membro do Conselho Científico da Associação
Brasileira de Antropologia (ABA).

José Guilherme C. Magnani


José Guilherme Cantor Magnani, doutor em Ciências Humanas pela USP, é
professor do Departamento de Antropologia dessa universidade, e sua área
como pesquisador e orientador na pós-graduação é Antropologia Urbana.
Entre suas publicações, destacam-se os livros festa no pedaço: cultura
popular e lazer na cidade (1984); Na metrópole: textos de Antropologia Urba-
na (1996); Mystica urbe: um estudo antropológico sobre o circuito neo-eso-
térico na metrópole (1999); jovens na metrópole (2007) e os artigos: "Leisure
in Popular Districts in São Paulo", in: Societé et Loisir, (Quebéc, 1994), "O xa-
manismo urbano e a religiosidade contemporânea", in: Religião e Sociedade
(2000) e "De perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana", in: RBCS.
(2002). É coordenador do Núcleo de Antropologia Urbana (NAU) e membro
do Conselho Editorial da Revista de Antropologia da USP.

José do Nascimento Junior


Nascido em 1966, José do Nascimento júnior é formado em Ciências Sociais
pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre. É mestre
em Antropologia Social pela UFRGS, com dissertação sob título A familiari-
dade na política: representações e práticas na política, um estudo de caso do
Partido Progressista Brasileiro - PPB.
Foi gerente de eventos da Anhembi Turismo da Cidade São Paulo, coor-
denador de eventos da Epatur - Empresa Porto-Alegrense de Turismo, foi
membro do Conselho Curador da TV Educativa-RS, dirigiu o Memorial do

!notas BIOGRáficas} 387


Rio Grande do Sul e o Museu de Antropologia do Rio Grande do Sul, coorde-
nou o Sistema Estadual de Museus no Rio Grande do Sul e coordenador de
museus e artes plásticas do Ministério da Cultura. Atualmente é membro
do Conselho Administrativo da Bienal do Mercosul, professor de pós-gradu-
ação em Patrimônio Cultural da UFSM e Diretor de Museus e Centros Cul-
turais do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).

Andréa Lucia da Silva Paiva


Andréa Lucia da Silva Paiva é doutoranda do Programa de Pós-Graduação
em Sociologia e Antropologia (PPGSA) do IFCS da UFRJ. Mestre pelo Progra-
ma de Pós-Graduação em Memória Social da UNIRIO, atualmente desenvol-
ve pesquisa sobre patrimônio cultural e etnicidade na Irmandade de Nossa
Senhora do Rosário dos Homens Pretos no Rio de janeiro.
É autora de diversos artigos sobre memória e patrimônio, dentre eles "A
festa de N. S. do Rosário em Buraco Escuro (MG): memória e espaço em uma
comunidade mineira", publicado pelos Cadernos do CEOM: Memória Social,
Argos, n°. 17,jun., 2003.

Maria das Graças Ribeiro


Maria das Graças Ribeiro é professora da Universidade Federal de Minas
Gerais, mestre em Morfologia, especialista em Psicologia e Metodologia
de Ensino Superior e doutora em Ciências pela Universidade Federal de
São Paulo.
É diretora do Museu de Ciências Morfológicas, membro fundador da
Rede de Museus e Espaços de Ciência e Cultura da mesma universidade e
preside o Fórum Permanente de Museus Universitários Brasileiros.
Nos últimos anos tem se dedicado à museologia científica, desenvolvendo
pesquisas, promovendo a educação e a difusão científica e a inclusão social
na Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG).

388 {museus, coLeções e patRJmÔmos: naRRativas poufômcas}


Mariza Veloso Mota Santos
Mariza Veloso Mota Santos, antropóloga e socióloga, é doutora em An-
tropologia pela Universidade de Brasília, onde também atua como pro-
fessora e pesquisadora no Departamento de Sociologia. É membro da
diretoria do Centro de Estudos do Século XVIII da Universidade Federal
de Ouro Preto (MG), com pós-doutorado na New York University, onde
desenvolveu um projeto de pesquisa comparativa sobre Brasília e Wa-
shington.
Publicou diversos artigos sobre o modernismo no Brasil, o patrimônio
cultural e a história da íntellígentsía brasileira. Faz pesquisas sobre a cons-
trução social do espaço na vida urbana contemporânea e sobre a função
pública da arte.
Mariza Veloso é ainda responsável por uma linha de pesquisa do Pro-
grama de Pós-Graduação em Sociologia - Sociologia da Cultura -, que se
bifurca em duas grandes vertentes: Pensamento Social Brasileiro e Cultura
Urbana Contemporânea.

Roger Sansi-Roca
Roger Sansi-Roca é professor de Antropologia no Goldsmiths College da
Universidade de Londres.
Suas publicações recentes incluem Fetíshes and Monuments: Afro-Brazi-
lian Art and Culture in the 20Th century (Berghahn Books, New York, 2007)
e Cultures of the Lusophone Black Atlantíc (Palgrave, New York, 2007), editado
com David Treece e Nancy Naro.

Myrian Sepúlveda dos Santos


Myrian Sepúlveda dos Santos tem publicações em diversas áreas, sendo
seus principais temas de pesquisa: memória e identidade, teoria social,
práticas e políticas culturais e relações raciais. Entre elas, destacam-se

!notas BIOGRáficas) 389


Memória coletiva e teoria social (Annablume), A escrita do passado em museus
históricos (Garamond/Minc) e Museus e memória nacional (prelo).
Atualmente, como professora adjunta da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro (UER]), desen~olve uma investigação sobre a memória da violên-
cia nas antigas prisões da Ilha Grande.

Claudia Maria Pinheiro Storino


Formada em Desenho Industrial e Comunicação Visual pela Pontifícia Uni-
versidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) e em Arquitetura pela Univer-
sidade Santa Úrsula, é especialista em Preservação e Restauração de Monu-
mentos e Conjuntos Históricos e, atualmente, cursa o mestrado em Memó-
ria Social na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).
É técnica do Departamento de Museus e Centros Culturais do IPHAN e
co-editora da revista Musas.

390 {museus, coLeções e patRimÔmos: naRRativas poufômcas}


Este livro foi impresso em novembro de 2007, com uma
tiragem de 1000 exemplares.

A fonte do texto é a Gentium, desenhada especialmente


para textos de divesas etnias que usam a escrita Latina.
Entre os autores que participam
desta coletâ.nea há antropólogos,
cientistas polrticos, sociólogos,
arquitetos, educadores, biólogos,
historiadores e museólogos.
Alguns militam no campo dos
museus e dos patrimónios há
muitos anos, outros são recém-
chegados; alguns são brasileiros,
outros estrangeiros; alguns são
professores, outros estudantes.
Esta é a graça: investir numa
espécie de miscigenação
intelectual e sensível; estimular
interconexões e intercâ.m bios de
idéias, saberes e afetos.
J: isto o que esta coletâ.nea
representa: a expressão de
uma rede de pessoas cujos
laços extrapolam as injunções
institucionais e acadêmicas
e se constituem em laços de
pensamento e amizade.

A coleção Museu, Memória


e Cidadania, criada pelo
Departamento de Museus e
Centros Culturais do lphan, visa
ISBN 978-85-7617-136-2
a publicação de dissertações,
teses, ensaios e pesquisas que
tratem de questões museológicas
e das relações entre museus e
sociedade.
I
9 788576 171362

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