Serviço Substitutivo e Hospital Psiquiátrico - Convivência e Luta
Serviço Substitutivo e Hospital Psiquiátrico - Convivência e Luta
Serviço Substitutivo e Hospital Psiquiátrico - Convivência e Luta
Serviço Substitutivo
e Hospital Psiquiátrico:
Convivência e Luta
The alternative service and the
psychiatric hospital: coexistence and struggle
Paulo Sergio
dos Prazeres
& Paulo Sergio
Carneiro Miranda
Pontifícia Universidade
Católica de Minas
Gerais
Artigo
● As articulações com a sociedade local são A apresentação dos resultados segue uma
mais determinantes para a sustentação dos forma que facilita a leitura e a compreensão
dispositivos assistenciais em saúde mental do dos mesmos: fazemos uma breve introdução,
que as regulamentações do setor. que justifica e situa historicamente o
aparecimento da hipótese.
● A existência do serviço substitutivo não Subseqüentemente, os temas abordados no
garante a superação do hospital psiquiátrico. estudo são trabalhados e evidenciados nas
falas dos informantes. Por fim, após a
● As estratégias de luta do movimento da apresentação dos dados, acrescentamos a
reforma psiquiátrica brasileira são semelhantes discussão dos resultados e as conclusões do
às estratégias de luta do movimento de estudo da hipótese.
manutenção do hospital psiquiátrico.
Introdução à hipótese:
● Caminha-se, na prática, para uma convivência
da guerra feudal à análise
pacífica entre o serviço substitutivo e o hospital
psiquiátrico, ao contrário do proposto pelo script
estrutural
da reforma psiquiátrica, que defende a superação
Pretendemos verificar, aqui, a possibilidade
do hospital como dispositivo de tratamento.
de superação do hospital psiquiátrico a partir
do estudo da convivência entre ele e o
Neste artigo, escolhemos, em função da
serviço substitutivo.
exigüidade do espaço de publicação, abordar a
última hipótese, pois ela é a hipótese que
Sabemos que, dentre as estratégias de
condensa todas as outras e que propõe a
superação do hospital, a instalação de serviços As articulações
interrogação sobre o futuro da reforma psiquiátrica com a sociedade
substitutivos foi uma delas. Para Campos II local são mais
na cidade estudada.
(2002), a luta dos defensores do fim do determinantes
hospital psiquiátrico com os que defendem para a
Metodologia sustentação dos
sua manutenção segue um modelo feudal. dispositivos
Neste trabalho, o referencial teórico foi o Os hospitais são cercados por novos serviços assistenciais em
e modos de assistência, com a finalidade de saúde mental do
materialismo histórico-dialético e o método que as
usado foi o qualitativo. Os instrumentos foram estrangular o hospital, mas, até que isso regulamentações
a entrevista semi-estruturada e investigação aconteça, pode-se gastar um século, um do setor.
o pessoal do serviço de saúde, quer dizer, uma relação mais respeitosa, eu acho que
os pacientes não têm nada a ver com essas muito pacífico passa pra passivo e vira uma
brigas (P2). coisa horrorosa (P2).
Uma outra determinação da relação entre Para outros entrevistados, deve-se criar
os dois serviços ocorre quando a relação entre mediadores na relação entre os dois serviços,
posto que a capacidade de luta entre os dois
os profissionais é tomada como a relação entre
tem limites.
os serviços e, também, quando o contrário
acontece: a relação entre os serviços é
[...] Eu acho que quando a gente está
tomada como a relação entre os profissionais.
forçando a vertente do substitutivo e criando
Não, ela não é do usuário, de jeito
quase que uma trincheira, uma luta, uma
nenhum...É como se tivesse pessoalizado as
guerra, de um lado o aberto, de outro lado,
instituições... Existe uma coisa que não dá
o supostamente fechado, eu acho que isso
pra entender, as pessoas não vêem que são
pode ter um certo limite. Eu acho que a gente
instituições; então, existe essa personificação
tem que perceber o que há nas instituições
das instituições (P1).
de aberto e de fechado, pra daí a pouco a
gente tentar ter uma maturidade mais
Um último aspecto apontado pelas
Uma outra
cristalina, mais sólida sobre o que é um serviço
entrevistas foi o da perspectiva de futuro da
determinação da de fato substitutivo, que vai nesse caso, nessa
relação entre os relação entre os serviços. Inicialmente, essa
cidade, vai coexistir no mesmo território, na
dois serviços perspectiva é pensada pela concepção de que
ocorre quando a
mesma cidade com um serviço fechado... Eu
o hospital tem que aceitar a organização
relação entre os acho que são especificidades, que, numa
profissionais é hierarquizada do sistema de saúde mental
pesquisa como essa, têm que ser pensadas.
tomada como a na cidade.
relação entre os
Então, eu acho que a gente tem que buscar
serviços e, mediadores nisso (A1).
também, quando Que tivesse a contra-referência pro serviço
o contrário substitutivo nos casos de internação,
acontece: a
Discussão: convivência e
independente do dinheiro que a pessoa
relação entre os repetição
serviços é tomada tem...Que tivesse essa contra-referência,
como a relação que as pessoas pudessem fazer o tratamento Propusemo-nos, aqui, a interrogar sobre o
entre os
ambulatorial aqui no serviço, e que a futuro da relação entre o serviço substitutivo
profissionais.
internação fosse efetivada, já que o hospital e o hospital psiquiátrico da cidade estudada.
existe, já que o serviço não é 24 horas, Essa relação se dá entre dois serviços de saúde
porque se fosse 24 horas não precisaria disso, antagônicos, com propostas absolutamente
e a pessoa seria internada realmente quando diferentes, através das quais a construção de
precisasse (P1). um sistema está em pauta.
Na seqüência, a relação é pensada pela via A pergunta feita, aqui, é sobre o problema
do trabalho conjunto entre os dois e pelo posto ao País pela reforma psiquiátrica: como
estabelecimento de uma relação que seja convivem serviços substitutivos e hospitais
pautada pela autonomia das ações e respeito psiquiátricos, símbolos do modelo que se quer
entre os serviços. construir e do modelo que já está construído
e instalado no País?
Eu não sei nem se eu sou a favor da
convivência muito pacífica (risos) eu não sei Acreditamos que uma atitude estruturalista
nem se sou a favor disso. Mas eu acho que para a interpretação dessa convivência, como
já dissemos anteriormente, deve ser usada sofrimento mental. Para ele, o profissional se
aqui. O sistema de saúde mental municipal tornou o agente executor dessa relação,
rearranja-se a cada movimento de um de seus tornando-se aquele que põe em prática a
membros (o hospital ou o serviço exclusão do portador de sofrimento mental
substitutivo), um modificando a posição do em função dessa relação de poder.
outro, numa dança constante que afeta a
todos os envolvidos na questão, sejam
O serviço substitutivo é um dispositivo de
gestores, usuários ou profissionais.
atenção em saúde mental que significa, entre
outras coisas, a possibilidade de se cuidar do
Nas entrevistas, vimos que a convivência
portador de sofrimento mental sem retirá-lo
entre o serviço substitutivo e o hospital
totalmente de seu meio, bem como a
psiquiátrico, desde a fundação do primeiro,
facilidade maior do mesmo no acesso ao
foi marcada pelo confronto. Historicamente,
hospital psiquiátrico, principalmente a partir
sabemos o lugar ocupado pelos hospitais
do momento em que este passou a ser a
psiquiátricos no Brasil: centrais e únicos no
porta de entrada para internações hospitalares.
sistema de saúde mental até o final da década
Portanto, o serviço e o hospital fazem parte
de 1980, consumidores da quase totalidade
de um sistema cuja finalidade é a assistência
de recursos financeiros para a assistência aos
ao portador de sofrimento mental.
portadores de sofrimento mental da
Previdência Social e ligadas às formas de Entretanto, o hospital desejar manter-se na
repressão do poder político instituído no mesma posição que teve ao longo dos anos
mundo todo - o que fez, de acordo com anteriores à década de 1990 é desconhecer
Bertolote(1995), a ONU(Organização das essa possibilidade, essa facilidade e o próprio
Nações Unidas) discutir sua função social no sistema instalado no município. Fica evidente
Planeta e apoiar os debates sobre sua que a relação do hospital com o serviço
extinção. A marca principal dos hospitais substitutivo revela-se “colada” à terapêutica
psiquiátricos tem sido a posse do poder, proposta por ele aos portadores de sofrimento
inclusive do ponto de vista do conhecimento. mental, ou seja, o serviço pode fazer parte
da possibilidade de sua abordagem
As entrevistas ‘captam’, na cidade, uma terapêutica bem como o hospital pode fazer
repetição dessa posição histórica dos hospitais parte da abordagem terapêutica do serviço
psiquiátricos, seja pela dificuldade em substitutivo.No entanto, Basaglia (1985) fez
referenciar os usuários para o serviço a seguinte observação:
substitutivo seja para acatar as normatizações
do SUS local. Isso nos permite supor que o A situação (a possibilidade de uma abordagem
hospital local deseja manter-se na posição que terapêutica do doente mental) se revela
historicamente construiu. intimamente ligada e dependente do sistema,
onde toda relação está rigidamente
Basaglia (1985, p.101) descreve o determinada por leis econômicas. Ou seja,
funcionamento do hospital psiquiátrico como não é a ideologia médica que estabelece ou
“uma nítida relação entre os que têm e os induz um ou outro tipo de abordagem, mas,
que não têm poder”, mostrando o quanto antes, o sistema socio-econômico é que
essa forma de relação determina como os determina as modalidades adotadas em níveis
profissionais irão lidar com os portadores de diversos (1985, p. 105).
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Serviço Substitutivo e Hospital Psiquiátrico: Convivência e Luta
profissionais participarem da reforma onde SUS apontam uma saída para a relação
estiverem, no hospital psiquiátrico ou no tumultuada entre os profissionais dos dois
serviço aberto. A reforma psiquiátrica é um serviços: a consideração de um sistema que
empreendimento de muito custo pessoal e pressuponha a submissão dos dois serviços a
profissional. Para Desviat (1999, p. 80): uma gestão única e a necessária participação
dos usuários na construção de parâmetros
O fechamento dos hospitais psiquiátricos se para a assistência, atuando como
converteu em um empreendimento árduo e intermediadores de relações entre aqueles
arriscado, política e profissionalmente, para que deles devem cuidar. Vasconcelos (2001)
aqueles que assumem essa responsabilidade, apresenta essa proposta quando afirma, a
não apenas pelas dificuldades técnicas e pela partir da defesa do princípio da participação
tremenda mobilização de recursos humanos popular no SUS, a necessidade de
e materiais que ele pressupõe, mas também, participação dos usuários na gestão do
acima de tudo, pela oposição trabalhista e sistema.
sindical fundamentada na possível diminuição
de empregos, pelo medo da mudança e da Na parte final dos resultados apresentados,
perda do papel e do poder pelos profissionais, os entrevistados discutiram o futuro da
nisso se incluindo médicos e psicólogos [...]. relação entre os dois serviços. A primeira
A partir do que vimos, aqui, sobre o processo perspectiva desse futuro é a da aceitação,
de reforma na cidade, cuja meta de superação pelo hospital, das normas de hierarquização
do hospital psiquiátrico está colocada como dos serviços, sendo destinado a ele o nível
uma possibilidade, pode-se perceber que as terciário da assistência. Essa postura supõe a
preocupações de Desviat (1999) sobre as hierarquização dos serviços por níveis de
situações a que são submetidos os complexidade e deve ser operacionalizada
profissionais são pertinentes à realidade local. através da referência e contra-referência entre
Basta lembrarmos que, segundo um dos o hospital psiquiátrico e o serviço substitutivo
entrevistados, uma das estratégias do hospital (conforme é proposto hoje, mas não é
psiquiátrico local para enfrentar a reforma realizado). Essa forma de organização de
psiquiátrica, a passeata contra a instalação da serviços é derivada da leitura feita por setores
porta de entrada no serviço aberto, foi da reforma sanitária que colocam na gestão
executada pelos seus trabalhadores. do sistema a ênfase na sua hierarquização
assistencial.
Gostaríamos de acrescentar mais uma
observação sobre a participação dos Essa forma de organização de serviços pode
profissionais na relação entre os serviços. O ser razoável, mas não corresponde à realidade
fato é que mudanças na assistência puseram cotidiana do trabalho em saúde mental. Os
o saber do hospital psiquiátrico em suspeita, serviços substitutivos, notadamente os CAPSs
seja pelo questionamento dos efeitos que a (Centros de Atenção Psicossocial), não se
dominação prescrita pela psiquiatria aos diferenciam do hospital psiquiátrico quanto
portadores de sofrimento mental tem sobre à gravidade dos casos ou procedimentos
os trabalhadores de saúde mental, não lhes estabelecidos. Um caso de um portador de
oferecendo saídas mais autônomas no sofrimento mental que é atendido no hospital
cuidado com o portador de sofrimento mental é passível de ser cuidado numa estrutura
(Basaglia, 1985, p. 103), seja pelos efeitos como a do serviço substitutivo. Toda a
da reforma sanitária, que supõe a autonomia tecnologia é a mesma, só não o são: a
e a participação dos usuários no controle e disponibilidade de horário para o acolhimento
na gestão do SUS. A reforma psiquiátrica e o do portador de sofrimento mental (o serviço
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