BALADA - DO - PRIMEIRO - AMOR - Antonio - Barreto

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Balada do Primeiro Amor

Antônio Barreto
Contra-capa:
O que é estar na idade do abismo? Para Larissa, é ter pesadelos, cair em buracos, precipicios e
túneis sem saída. É se apaixonar e ter medo de não ser correspondida.
Quem está nessa idade não pode deixar as galinhas da tristeza cacarejar na cabeça. Muito menos
deixar fazer ninhos, botar ovos e chocá-los. Se isso acontecer, é bobagem apelar para bola de
cristal, poção mágica e horóscopo.
Larissa está na idade do abismo.
Nem adulta, nem criança. De manhã, outono; á noite, primavera. Tudo rápido e passageiro. A
tristeza e o medo da rejeição parecem eternos.
Para espantá-los, nada melhor do que compor letras de música, planejar uma festa de arromba e
sonhar com Gustavo, o gato mais bonito do pedaço.
Capitulo 1

PRIMEIRO DIA DE AGOSTO: segunda-feira de manhã. Que azar!

Catorze para quinze é a idade do abismo.


A gente vive tendo pesadelo com buraco, caindo na parambeira, no precipício, na cisterna, no túnel,
no rio e até no aquário.
Meu pai costuma dizer: "A galinha da tristeza, nessa idade, pode estar cacarejando sobre sua
cabeça. mas nunca deixe ela fazer o ninho, nem botar o ovo".
E como dá trabalho crescer! É passar direto do outono para a primavera. E, ás vezes, dura menos
que uma semana. Já notaram?
A gente acorda, se olha no espelho, e ainda vê uma garotinha. Depois lava o rosto, enxuga, e vê
uma princesa. Plim!
Tudo muito rápido. Ainda mais quando a metamorfose se dá em agosto, final de inverno, mês de
azar e de bruxa...
Eu disse bruxa?
Help! Isola!
Não que eu acredite em bruxaria, gato preto, sexta-feira 13, roupa do avesso ou mau agouro. Nem
sei se dá azar mesmo, mesmíssimo, passar debaixo da escada. Diz a Lu que a pessoa não cresce
mais. Em todo caso, não arrisco.
E quebrar espelho? Diz a Lu que a imagem da pessoa também vira um monte de cacos. Help, de
novo! Nem de longe que vou entrar nessa roubada!
Mas o negócio é o seguinte: fim de julho, todo mundo voltou das férias detonado, bronzeado,
tostado. A galera toda cheinha de novidades pra contar. E eu aqui, sozinha mais uma vez,
começando agosto sem uma bala na agulha, sem uma figurinha pra trocar.
Lu, minha melhor amiga, foi pra São Paulo conhecer uns parentes que chegaram do Japão depois
do último terremoto.
Carolina, que continua o chove-não-molha com o Helger, desembarcou em Guarapari. O Helger
ficou chupando dedo por aqui mesmo. Mas acampou na serra do Cipó, num fim de semana, com a
turma do inglês.
Rê foi pra Búzios, Angra e Rio. Ralou asa-delta, parapente e até ultraleve: conheceu os carinhas
mais gatos do pedaço. E, cá entre nós, ao que parece, não voltou mais virgem. Será que ela transou
mesmo? Pena que a Rê é muito cheia de tititi, senão eu ia levar um papo com ela: botar esse
negócio a limpo, ver como foi, sabe como?
O Cultura se mandou pra Natal. Mas o bolha, em vez de curtir Genipabu, bugres, surfe na areia de
Ponta Negra, marzão azul, garotas... sabe o que foi fazer lá? - Conhecer a Barreira do Inferno!
Pode?
Só ele mesmo pra trocar uma onda por um foguete.
Mas o Xoba compensou. Diz que em Salvador aprontou todas: bebeu, fumou, dançou, jogou
capoeira, mergulhou de cabeça, transou e tudo o mais que a sua imaginação de "Pithercanthropus
quase erectus machista" é capaz de detonar. Devia ter levado o Cultura com ele:o que não sobra
num, falta no outro. E vice-versa.

E a Tess? A Tess, filha de pai rico, riquíssimo (ex-armador grego), voou pro exterior. É tão metida,
tão empombada, que até o nome dela é no plural: Tessalias. E se pronuncia Tessaliá. Pode?
- Dessa vez, oh, maigod, experimentei a Côte D'azur en la Fronce, en la Frrr-roooonncee... - ela falou
com aquele biquinho de mademoiselle. Diz que se tostou em Nice, Antibes, Cannes, St. Tropez etc.
e tal.
Será que ela ficou de top less por lá? Ou top Tess?... Adoro trocadilhos!
Continuando o filme "Minhas férias", tá faltando falar DELE, maigod, o Gustavo, o meu Gu-Guga-
Gugão, amor secreto do meu coração... Ai que coisa brega! Bleeeeeergh!
Pois é: O Gu teve uns dias no rio. Na volta, conforme informação "altamente confidencial" da
Clarissa - minha futura cunhada -, ficou ensaiando com a banda dele, que nem nome tem ainda, mas
eu já vi: faz um som da pesada, chocante! E o Gu, o meu Guga, é o crooner. Pode? E também toca
guitarra, baixo de braço duplo e violão. oh, maigod, será que já botaram música na minha letra? E a
minha letra, como a banda, também não tinha nome. Até que os dois - a banda e a letra - podiam se
chamar assim: SEM NOME. Ou quem sabe: COQUETEL MOLOTOV.
Bom, isso aí explico pra vocês depois. É uma história muito comprida e eu quero pelo menos acabar
esse inventário da galera voltando das férias, não é?
De modo que o mar não tá pra peixe. O peixe não tá pro anzol. E o anzol não tá pra minhoca
nenhuma! Lá na frente, temos muito tempo.
Pois bem: o Bolanove conseguiu economizar dinheiro do salário - é o único cara da nossa turma que
já trabalha - e passou as férias todas em Nova Almeida. Voltou com problemas intestinais, piriri
mesmo, mesmíssimo, de tanto comer camarão. Coisa de mineiro que não tem mar, invade o Espirito
Santo e "vórta" mais "mar" ainda.
A Dri, finalmente aprendeu a nadar. Foi pra Escarpas do Lago e jogaram ela no Rio Grande: um
primo. Na marra, ela teve de sair nadando. Bo fim, no lugar onde os barcos atracam, ela levou o
primeiro beijo. O tal primo tava esperando, na butuca.
E eu? Eu fiquei aqui em Belo Horizonte mesmo, marcando touca.
Meu pai, como sempre, não apareceu durante o mês inteiro. E minha mãe continuou dando "curso
de férias" na faculdade onde ela é professora.
Então, viajei mais que cão deitado, papeando com mosca: essa vida de pais separados... Uma
droga! Droga mesmo!
Resultado?
Vi dezoito filmes no vídeo, seis no cinema. Fui a quatro peças de teatro (por cauda da campanha das
kombis, que é mais barato). Li três romances da Agatha Christie. Comi sessenta saquinhos de
pipoca, quarenta barras de chocolate, trinta e oito sorvetes de amora - adoro sorvetes de amora! -,
quarenta e dois milk-shakespeares - adoro trocadilhos! -, oito saquinhos de batatas pringles, sete
bananas-splits... e mais não falo porque senão fico com vontade de recomeçar tudo.
E não quero que os meus adoráveis leitores pensem que sou uma megagulomaníaca. Uma leoa-
marinha, uma aliá indiana, uma baleia-azul. Não! Nada disso!
Uma escritora não deve - para seus leitores - ter ares de cachalote, de orca ou de morsa. No
máximo, ares de uma foca. Não cham?
Voltando à vaca-preta, digo, à vaca-fria: acho sinceramente que essa minha recaída "megagulo"
alguma coisa foi apenas uma queda de defesas. Uma questão de compensar, ou melhor, preencher
os vazios de uma inexorável solidão. Ai meus sais!
Se a Lu estivesse aqui, já estaria perguntando:
- O que é inexorável, Lara?
E eu respondendo:
- Deixa pra lá, Lu. amanhã te explico na aula.
Porque é sempre assim: quando me espalho, ninguém ajunta.
Mas o problema é que, desde ontem, não penso em outra coisa: AGOSTO/ AZAR/ CORAÇÃO
APERTADO/ REJEIÇÃO, ÃO, ÃO, ÃO!
Todo ano é assim... Lá na frente te conto. Prometo.
Por ora, tenho que escovar esse maldito aparelho nos dentes. Tá cheio de chiclete grudado nele.
Help!
Capítulo 2

Plec! Plec!... Chiiiiissss... Plec! Plec! Plec-Plec! Chiiisss...


Mas como eu ia dizendo - tou catando milho numa velha Olivetti portátio que o meu pai me deu -, pra
azarar mais ainda esse papo de que agosto rima com desgosto, comecei o mês já em superbaixo-
astral. Dor de cabeça, febre, zoeira: Início de TPM. Pode?
e nem adiantou a Lu telefonar com aquela voz melosa, logo ás nove da manhã do dia 1º, uma
maldita segunda-feira:
- ... e além do mais, Lara, é um mês liiiiiiindo! Repare... falta pouco para a primaveeeera, é semana
de lua cheia, e as plantas estão se espreguiçaaaaannnndo...
Era véspera do reinicio das aulas, segundo semestre. Eu tinha acabado de acordar da minha santa e
sagrada soneca. Quase dormi de novo.
Mas, se eu deixasse, a Lu ficaria ali horas e horas me alugando com aquele papo de aranha.
Aranha? Help! Isola!
Salagadula, mexicadula!!!
E pra piorar a Lu ainda me vem com as suas receitas "tiro e queda" pra fisgar o meu gato, o Gu:
- Essa é infalível! É tiro e queda. Anota aí: no primeiro dia de lua crescente corte uma maça ao meio,
no sentido horizontal. Numa das bandas faça um buraquinho e coloque algumas pétalas de rosa e
um papelzinho marrom com o nome da sua paixão. Despeje mel por cima, tampe e junta à outra
banda. Amarre com uma fita vermelha, sem dar nó, e por sete dias coloque a maça na janela
durante toda a noite. Não se esqueça de retirá-la antes do sol nascer. No oitavo dia, leve a maça até
a beira de um riacho e esconda-a debaixo de uma planta. Seu gato vai aparecer em três tempos,
miiiiaaaanndo, comeeeennndo na sua mão! Certeza!
Logo saquei que ela tava lendo aquilo de alguma revista: nunca falaria ao meio, e sim no meio. E
esse papo de banda de maça? Brinquei:
- Que barato é esse de banda de maça, queridinha? É maça que toca música, trombone, tarol,
marcação, surdo e bumbo?
Ela riu:
- São as bordas da maça, Lara. Tem horas que você parece uma analfa. São as booooordas da
maça, entendeu?
- E como é que eu vou fazer pra acordar antes do sol nascer, Bolhajapa? Nem que a banda inteira
fique tocando nos meus ouvidos.
- Pede pra sua mãe te acordar mais cedo, ora. E não me chame assim, entendeu? Bolhajapa é a
mãe...
"Tem horas que a Lu parece mesmo uma bolha japonesa", pensei.
Dei esse apelido a ela nem sei por quê: nunca vi uma bolha japonesa. talvez pelo seu jeito manso,
meloso, de falar as coisas. Avoada, nas nuvens, parecendo que vai desmanchar no ar de uma hora
pra outra.
- E você pensa que minha mãe também conseguiria acordar antes do sol nascer? Santa
ingenuidade! Nem que ela programasse o despertador, o rádio-relógio, o timer e o telefone ao
mesmo tempo! Mamãe hiberna mais que uma morsa!
- Morsa? o que é isso?
- Deixa pra lá. Depois te explico.
- E você vai fazer a minha simpatia? É tão bonitiiinhaa...
- Tudo bem, Lu. Digamos então que eu consiga, por um supermilagre, acordar antes do sol nascer.
Onde é que eu vou achar um riacho nessa cidade? Onde? Só se eu levar a maça na beira do
Arrudas, que é pura lama, lixo e esgoto. Serve? E onde vai ter uma planta ali, uma unicazinha só,
pra eu esconder a maça debaixo dela? Tá tudo assoreado...
- Assoreado?
- É. Tá tudo sem vida, sem verde algum, entendeu? Amanhã, lá no colégio, te explico com mais
calma, tá? Por ora, me diga uma coisa: não tem uma bruzariazinha mais fácil, não? Com essa aí o
Gustavo se manda de vez, sacou? Com essa aí, só vai me aparecer mesmo, e em três tempos, é um
gato morto boiando no Arrudas, inchadão, olhos estufados, cheio de moscas e vermes no nariz...
Aproveitei pra dar uma olhadinha no júlio Verne: ressonava entre as almofadas como um velho
sultão depois do banquete. meu angorá reinava em sonhos, absoluto, entre as suas bichanas
odaliscas.
De repente, ele mexeu o rabo e lambeu as patas, acordando. Incomodado com alguma coisa,
espreguiçou-se, conferiu tudo à sua volta, olhou interrogativamente para o teto e, em segundos,
voltou a dormir. Mas me deixou um grilo: ele nunca olhara para o teto! Ele nunca acordada àquela
hora! Mesmo que eu estivesse nos dias de TPM, berrando ao telefone.
Impulsivamente, também olhei para o teto.
Meu Deus!!! lá estava ela... Enorme! Imensa! Descomunal!
Gritei! E gritei de novo!
Capítulo 3

- Uma barata! Uma barata!


- Bleeergh! - a Lu engasgou do outro lado da linha. - Pára com isso, Lara. Que nojento! Tem horas
que você me dá arrepios. Credo!
- É uma barata, Lu. De verdade! Das enormes! Peraí que vou pegar uma vassoura.
Corri até a área de serviço, e apanhei a primeira coisa comprida que vi pela frente: a mangueira do
aspirador de pó. Quando voltei, com as pernas bambas, ela já não estava mais lá. Desapareceu,
escafede-se, a nojenta!
Ofegante, voei pro telefone.
- Matou ela? Matou ela? - a Lu perguntou.
- Não, Lu, sumiu... Era das grandes, deve ter voado lá pra fora - me fiz de corajosa.
- Ai, meu Deus, que medo! Que nojo!
- Ué, covardona, tá com medo de quê? - ataquei.
- Help! Gato morto boiando no Arrudas... barata...
- Mas a bruxa aqui é você, se lembra? Quem é que tá dando sopa pro azar, com essa história de
simpatia?
- Só queria te ajudar.
- Mas aposto que já tá com medo de ser queimada numa fogueira, dentro de um caldeirão cheio de
orelhas de morcego, línguas de sapo e cabeças de cobra.
- Bleeeergh! - ouvi de novo.
- Aliás, Bolhajapa, vou mudar seu apelido é pra santa Inquisição, de tanto que você fica me
perguntando as coisas.
"Tem horas que sou mesmo má", pensei. "Malévola, maléfica, maleficíssima..."
- Cruzes, Lara! Hoje você acordou com a vó atrás do toco, hein? Acho melhor só sair de casa depois
de bater na madeira três vezes e botar na mochila um galho de arruda e um pé de coelho. E, mesmo
assim, cuidado pra não pisar na calçada com o pé esquerdo, viu?
Me dei por vencida.
Minha melhor amiga, minha adorável bolha oriental, minha única confidente fiel e conselheira era
mesmo uma bruxinha. Ai meus sais! Help!
- Tá legal, Lu. É que as chinelas estavam viradas de cabeça pra baixo quando acordei.
Me policiei: "chinela tem cabeça?" - Consertei: " ...viradas ao avesso, Lu, ao avesso".
- Ai, Larissa, isso é muito mal. Muito maaaal, sabe?
Senti um calafrio na nuca.
Quando a Lu me chamava pelo nome todo, Larissa, é porque alguma coisa séria estava mesmo pra
acontecer.
Ou seria um principio de nóia?
- Isso é prenúncio de mau agouro, Larissa. Tome cuidado, mas muuuuuuiito cuidado mesmo! - ela
aconselhou.
Júlio Verne se mexeu nas almofadas de novo. Rápido, saltou do sofá para o tapete, miou, eriçou os
pêlos cinzentos e ficou se esfregando no cesto onde a mamãe guardava os jornais. Quando ele
empinou a cauda, na vertical, parecendo eletrizado por alguma força sobrenatural, olhei para o teto:
nada! a barata não estava lá.
- Tá bem, Lu, tá bem - voltei a falar com a bruxa. - te prometo que saio de casa hoje, no mínimo com
aquele cristal que o Cultura Inútil me deu, o duende que você trouxe de São Tomé das Letras e um
dente de alho, tá certo?
- Não que eu queira ser chata. Mas é que tem muita gente mal-intencionada por aí. Gente invejosa,
você sabe.
- Sei.
- Botam olho gordo nas pessoas, matam as plantinhas, a mamãe me falou. e quando a mamãe fala,
você sabe, é tiro e queda...
aqui cabe explicar que a Lu era nissei, filha de japoneses, e também filha única, como eu. Mas órfã
de pai: o pai dela morreu em um acidente de caminhonete na Fernão Dias.
Dizem que o senhor iroshi era um floricultor muito habilidoso. Já havia trabalhado até com o famoso
Burle Marx, o maior paisagista do mundo.
Então dona mishiko, a mãe da Lu, tomou as rédeas da Floricultura Bonsai e levou os negócios pra
frente.
O lugar era lindo: parecia um pequeno paraíso perdido no alto do bairro Gutierrez, de onde se
avistava grande parte da cidade. No meio do terreno ficava a casa de madeira rústica onde
moravam. Viviam cercadas por beija-flores, sabiás, rolinhas, bem-te-vis, tanques de peixes
ornamentais coloridos, jardins de pedra, bonsais, ervas aromáticas e muitas, muitas plantas e
árvores raras.
A Lu jura que, numa noite de lua cheia, à beira de um laguinho ao lado da varanda, viu até um
duende correndo entre os troncos repletos de cogumelos, orelhas-de-pau e bromélias.
Não acredito, é claro.
Mas a Lu, às vezes me assusta. Chego a pensar que ela possa mesmo alguns pequenos poderes
domésticos, por acreditar nessas coisas fantásticas. Auto-sugestão? Talvez.
No fundo, tudo não passa de uma tremenda vontade de permanecer peterpan na vida. Continuar
acreditando em histórias da carochinha, não enfrentar a realidade, não querer crescer. Essas coisas
da "nóia" nossa de cada dia... (Agora eu falei igualzinho à minha mãe, que é psicóloga.)
Mas, enfim, ali estava ela, mais uma vez, tentando me convencer de que um olho (e gordo) pode
matar uma planta. Coisas de floricultores... Mas detonei logo em seguida, tipo pra me ver livre
daquele papo:
- OK, você venceu! Acrescento na mochila a pulseirinha de figa e a ferradura da estante da sala, tá
bem?
- Não brinca, Larissa. Com essas coisas não se brinca.
Percebi que ela começava a se irritar comigo. Pra refrescar, e pra não perder minha melhor
confidente logo na primeira e tenebrosa manhã de agosto, resolvi desmontar de sua vassoura e ir
cuidar da vida:
- Lu, te ligo depois, tá?
- O que foi? É a barata de novo?
- Não. É que eu tenho umas coisas pra fazer, você sabe. Arrumar quarto, dar comida pra Aghata,
checar material da escola, tenho inglês de tarde, violino...
- Tudo bem. Você me liga, então?
- Ligo.
Delisguei.
Júlio Verne saltou para o seu tamborete à frente do aquário de Aghata Crítica, interrogativo: parecia
querer conversar com ela. Mas Aghata nadava de um lado pro outro, tranqüila, vermelhamente
tranqüila.
Olhei pro teto e suspirei aliviada. Tudo sob controle de novo. "Meu Deus! Como é bom o silêncio dos
abismos. Como é boa a paz que sucede os vendavais.", filosofei. E corri pra anotar mais essa frase
no caderninho.
Um dia ouvi falar (ou li não sei onde) que, por causa de uma frase o mundo inteiro pode acabar...
"Mas nenhuma palavra é capaz de romper os anéis do amor que sequer foi declarado...",
acrescentei.
- Ah! Como tou inspirada hoje! - suspirei de novo. - Guga, Guga. Como te amo! Como te
desconheço...
E cantarolando, botei um ponto final num ponto de exclamação, logo depois das reticências... Liguei
o som numa FM, bem baixinho, e fui cuidar da vida.
Capitulo 4

Consegui virar a página das dez horas. ufa!


Me aproximei do aquário e brinquei com Aghata. Ela deixava eu passar o indicador nas suas
barbatanas, fazendo cócegas. Feliz, se enfiava por entre as plantinhas, dava piruetas, entrava pela
abertura da caverninha de pedras e saía do outro lado, fazendo bolhas com a boca.
Sabia que essa era a hora do almoço. Por isso ficava tão lampeira, tão serelepe, na sua silenciosa
peixice. E, quando eu pegava o potinho de para borrifar algumas pitadas de comida entre as algas e
musgos, ela quase pulava fora do aquário, de tanta satisfação.
Júlio Verne, nesses momentos, sentia ciúmes e vinha se enroscar nas minhas pernas.
Uf! Tudo voltara ao normal!
Coloquei a mangueira do aspirados de volta ao armário de serviço e fui até o quarto dar uma geral
no guarda-roupa.
Surpresa!
Quando abri a porta, um vapor de naftalina invadiu meu rosto e verifiquei que tudo estava fora de
ordem. Blusa não combina combinava com calça, saia não combinava com bleizer, colete virado do
avesso, sapatos espalhados pelo piso... Me apavorei. Um ladrão?
Corri para a janela. Conferi: não havia nenhuma escada. (Eu morava no terceiro andar.) Havia, isto
sim, um sol lindo se desmanchando sobre as buganvílias do vizinho do térreo. E o céu tão azul que
até doeu nos meus olhos.
Voltei para a sala e testei a porta de entrada do apartamento: trancada, a correntinha do pega-ladrão
no lugar. Tudo OK.
Voltei pro quarto.Bruxaria? Puxei os lençóis. Cadê o Dândi?
O coração disparou novamente. Procurei o Dândi debaixo da cama, nas gavetas da cômoda, na
bagunça do guarda-roupa, no cesto de roupa suja, no quarto da mamãe, na biblioteca, debaixo do
tapete, nada... Meu ursinho de pelúcia também sumira.
De repente um barulho estranho!
Parecia que alguém batia com uma vassoura no teto e nas paredes dos cômodos. Três vezes: toc-
toc-toc!
E depois mais três vezes. Em seguida um arrastar de correntes... e assim sucessivamente, até eu
me trancar no banheiro, morrendo de medo, pensando no que fazer.
Sentei-me no bidê e fiquei matutando, com a mão no queixo, parecendo a estátua d'O pensador de
Rodin.
Aí vi a fotografia do Tom Cruise na capa de uma das minhas revistas, no cestinho que ficava ao lado
do lavatório. Resolvi folheá-la. Talvez eu espairecesse. Nada!
Passei para o Almanaque do Garfield. "Ele é mestre nesses assuntos de ficar sozinho em casa.
Quem sabe não tenha uma solução para o meu caso?" Abri a primeira página.
- Bleeeeeergh!!!
Uma lagartixa saltou de dentro dela e voou das minhas mãos para o piso, desaparecendo
rapidamente pelo ralo do banheiro.
Suei frio, tremi e lavei as mãos, de nojo. Depois tomei coragem e coloquei outra revista sobre o ralo,
com medo da lagartixa voltar pelo mesmo buraquinho.
" E se a lu for mesmo uma aprendiz de feiticeira? E se tudo isso estiver acontecendo por causa dela,
pelo desdém que fiz de seus poderes? Afinal, ela só estava querendo ajudar a fisgar o gu com
aquelas fórmulas..."
" E ao contrário", fiz um balanço em voz baixa, "em poucos minutos me aparece uma barata enorme
no teto, um cheiro horrível de naftalina exala do guarda-roupa todo desarrumado, o meu urso de
pelúcia desaparece como que por encanto, um fantasma fica batendo alguma coisa em todas as
paredes do apartamento, arrastando correntes. E por último, uma lagartixa salta da revista do
Garfield para as minhas mãos, me deixando nesse estado deplorável".
Não pensei duas vezes. Olhei para o relógio, dava tempo!
Abri a porta do banheiro, devagarzinho, esquadrinhei o corredor que saía para o quarto - os barulhos
milagrosamente, cessaram - e voei para o telefone:
- En-ta-tão, Magalu? Me pa-passa uma feitiçariazinha mais simples tá? - caprichei nos diminutivos,
ela gostava disso. - Uma, umazinha assim... que-que não dê tanto tra-trabalho, tá?
- Por que você tá gaguejando? Aconteceu alguma coisa?
- Não, nada, não. Foi só um susto bobo. Uns barulhos no teto e o Dândi sumiu. Depois uma
lagartixa...
- Você quer mesmo? Não é gozeira não?
- Não. Sério mesmo! Se for mais simples, prometo que faço tudo do jeito que você mandar. Depois,
dando tempo, até te peço outra pra fazer ursinho de pelúcia aparecer, lagartixa desaparecer,
fantasma...
- Ótimo. Então lá vai!
Ela deu um taime na linha e percebi que estava folheando alguma coisa. Ouvi sua língua estalar, tipo
pra molhar os dedos quando a gente vai passar as páginas de um livro velho. Depois de alguns
segundos, falou:
- Bem... olha aqui, vamos lá... vamos lá, madame - e deu outro estalo com a língua. - Me lembrei, me
lembrei... Essa é ótima, infalível! E é bem simplezinha, tiro e queda, certeza. Tá afins?
- Tou.
- então anote aí, madame - notei ela um pouco agressiva comigo: nunca me tratara por madame. -
Ferva um pouco de água e desligue o fogo...
Fiquei pensando: "Claro, se eu não desligar o fogo, a água ferve, a panela queima, o fogão explode,
o Corpo de Bombeiros chega, etc."
- ...coloque um punhado de pétalas de rosa, uma colherinha de mel e abafe. Depois da infusão...
Quase perguntei pra ela se sabia, realmente, o que era "infusão". Aposto que não sabia. No máximo,
"confusão".
Estava mais que claro que a Lu não se lembrava dessas coisas coisa nenhuma. Ela nunca me diria
isso: o menino dos seus sonhos, ora essa! E, além de tudo, era a única pessoa nessa vida que sabia
do meu maior segredo: o carinha por quem eu caía de quatro era o Gustavo, e mais ninguém.
Apesar de que, num passado não muito remoto, quando a gente dá aquelas recaídas, caidaça,
supercarente, ó maigod, andei arrastando asas até pro Xoba, aquele mau-caráter que só pensava
em mostrar os músculos, jogar capoeira no pátio da escola, irritar as meninas etc. Um bolha!
Putz! Mas isso aí também não vale, não conta, porque nesse tempo - por uns quinze dias só - andei
apaixonada pelo professor de geografia, tive um sonho com o meu dentista e outro com o Axl do
Guns n'Roses, nessa ordem.
Sem contar "o meu primeiro beijo", que detonei com o Cultura Inútil, o carinha metido a intelectual,
tipo sabe tudo, que até hoje é a fim de ficar comigo - mas sem a menor chance, é claro. Imaginem,
pelo apelido dele (fala pelos cotovelos e, para completar o quadro, tem perdigotos...)
- É perdigotos, Lu, é aquele cuspe que o carinha joga na gente, sem querer, quando está falando
exaltadamente e...
- O quêêêêê, Lara? Tá ficando maluca?
Claro que a Lu não entendeu nada. Eu e meus céleres pensamentos... Sou mesmo uma nefelibata,
como diria o meu pai, se estivesse aqui...
Mas tentei ajeitar as coisas:
- Nada não, Lu. É que eu estava pensando que... bem, deixa pra lá, tá? Amanhã te explico, na
escola, antes da primeira aula. Prometo.
Mandei um beijo, dei uma desculpa e desliguei o telefone.
Ela não era bruxa coisa nenhuma! Agora eu tinha ceretza.
Capítulo 5

Dez minutos depois... Meus sais! Lu de novo:


- Você está bem mesmo?
- Tou. Tou sim.
- Se precisar, podemos começar mais uma daquelas sessões teleparticulares e teleconfidenciais,
lembra?
Lembrei um letreiro luminoso. E ela papagaiando:

"Dra. LUCIANA KIOKA


TELEPSICÓLOGA e TELETERAPEUTA NÃO-OCUPACIONAL

Especialista em tarô, búzios, numeorologia, I Ching, horóscopo chinês, acupuntura, ervas


medicinais, banho turco, bola de cristal, runas, candomblé, orixás, seu anjo protetor e
telequiromancia: a fantástica leitura das mãos por telefone!
Dra. LUCIANA KIOKA atende dia e noite. Faça-nos uma consulta ainda hoje e terá um desconto
de..."

Olhei o relógio:
- Não enche, Lu! - irritei-me. O coração pipocou.
- Putgrila! Você tá mesmo uma pilha, hein! Xôôôôô!
Lu tinha razão. Eu tinha um problema. Um problema sério. Comecei agosto, novamente, com o pé
esquerdo.
Todo ano era assim. E "aquilo" me acontecia desde os doze anos, quando meus pais se separaram.
E me incomodava muito.
"Quando me espalho, ninguém ajunta", pensei. E resolvi que me abriria com a Lu no dia seguinte, se
ela tivesse tempo.
Por ora, não. Eu estava apertada de costura, estava no sufoco, estava a mil por hora, agora não dá,
amanhã, etc. coisas que meu pai dizia, sempre que eu pedia pra ele se encontrar comigo.
Mas o coração se acalmou aos pouquinhos.
Enxuguei uma lágrima no canto do olho esquerdo. Engoli um soluço e desejei comer todos os
chocolates do mundo naquele momento, mas me contive, roendo o lápis da mesinha do telefone.
- Me desculpa, Lu. Amanhã te conto tudo, tá? Pode ficar tranqüila. Agora eu tenho que arrumar o
quarto e preparar minha vida de executiva não-remunerada. Ás três tenho inglês...
- A mamãe tá pensando em me matricular no basic, te falei?
- Ótimo, mas às quatro e meia ainda tenho violino, lembra?
- Claro, Larinha - gostava quando ela me chamava de Larinha. - Quando você chegar, me liga. Mas
antes de sair faça a simpatia que ensinei.
- Tá. Pode deixar. Prometo.
- Então, tchau. Beijo.
- Beijo.
Desliguei o telefone.
O lápis da mesinha, todo roído.
"Mamãe vai me torra de novo", pensei. Busquei na minha escrivaninha um lápis novo e troquei-o por
aquele resto de chocolate de grafite.
Mais calma, caminhei até a cozinha. Acendi o fogão e pus uma chaleira com água para ferver.
Depois, apanhei o vidro de mel no armário e fui até a sala retirar da jarra três pétalas de rosa
vermelha que a mamãe ganhara, no dia anterior, de um fã.
"Quem diria, Larissa Berioska - meu pseudônimo literário - a famosa escritora do colégio, transando
bruxarias", pensei alto.
Na verdade, eu só fazia aquilo porque tinha prometido à lu. E talvez, quem sabe, até desse certo.
Quem sabe, nesse ano, esse agosto não fosse mais igual aos outros? Mais ameno. Quem sabe o
meu pai...
Aí o telefone toca.
- Meu Deus, é o Gu!
Na corrida de volta à sala tropecei no tapete e derrubei da mesinha de cento a jarra de porcelana
chinesa que mamãe ganhara de seu último (ou penúltimo) namorado.
- Oh, maigod! E se for o Xoba? Help! Help! Help! me, baby! Tou no saco! E se for o Cultura Inútil?
Putzgrila! É demais pra um dia só... Socorro né?
Enquanto a jarra dava seu último giro sobre a mesa, no chao, derramando água e rosas vermelhas
no tapete (que mamãe tinha acabado de comprar numa liquidação), me benzi, fiz uma figa e,
tremendo, me perguntei: - atendo ou não esse maldito telefone?
Capitulo 6

- Alô.
- Alô? É a Larissa?
- É... Quem tá falando? - era voz de gato.
- É o Paracelso. Tudo bem?
Pronto! O mundo desabou. Era o próprio.. o teorema de Pitágoras de trás pra frente, o problema dos
problemas. Paracelso, o tre4sloucado, o mauricinho-lingua-de-trapo a quem todos nós, na escola,
chamamos pela inusitada alcunha de nada mais, nada menos que... adivinharam?
- Cultura Inútil?
- É... Tudo bem?
- Tudo e você?
- Quase tudo. O negócio é que eu tava aqui pensando... bem, tudo começou por volta das duas
horas da madrugada de hoje, enquanto eu acompanhava pelo meu telescópio a evolução de Antares
na Constelação de Scorpius, cruzando o quadrante oitavo a oeste do Hemisfério Sule, por
conseguinte, ao deparar-me com as galáxias de Lupus à esquerda da cauda de Centaurus, o que
espantosamente me sugeriu o formato de uma vassoura, lembrei-me de uma coisa...
- Ai, Cultura, desembucha logo! - apelei.
- Lembrei-me de que estamos entrando, exatamente agora, às onze horas e oito minutos desse
primeiro de agosto, no oitavo dia de Leão, no zodíaco. Mas, de acordo com as profecias de
Nostradamus, a partir do sétimo dia instala-se a Conjunção do Diabo. O que vale dizer: vai ser o
inferno daqui pra frente, durante trinta dias, sabia?
- sabia, Cultura. A Lu já me ligou pra falar disso. É o mês das bruxas, né?
- Mas não é a-pe-nas isso, Larissovska... - detestava quando ele frisava aquele apenas. E mais
ainda, quando me chamava de Larissovska, colocando por sua conta um ovska no meu nome, que
eu achava lindo, e ele deixava mais russo ainda.
- Não é a-pe-nas isso, Larissovska. O problema é que a Lua vai fazer subir de-ma-si-a-da-men-te as
marés e, por conseguinte - de onde ele teria tirado aquele "por conseguinte"? - as calotas polares
vão degelar com maior rapidez, provocando enchentes, maremotos e até desprendimento de
icebergs de-ma-si-a-da-men-te...
- Ô Cultura, dá um tempo! Já troquei uma idéia sobre isso com a Lu - menti. - Pra mim é só o mês
em que as bruxas andam soltas por aí. E ponto. Isola!
- Mas também não é a-pe-nas isso, Laruska... - aí era demais! Agora tava abreviando o Larissovska
para Laruska. Era demais! Soltei os cachorros, radicalizei:
- Olha aqui, Culta, tenho muito o que fazer, tá legal? Vamos deixar esse papo pra amanhã. Continue
de banzo em Natal, sonhando com foguete, ogiva, satélite, Barreira do Inferno, tá? Qual é, mané? Tá
me achando com cara de patricinha, é?
- Desculpa, Lara. É que não é só isso, entende? Você sabia que foi exatamente nesse mês que
explodiram a bomba atômica em Hiroshima e Nagasaki, no Japão? E olha o tanto de gente boa que
morreu em agosto: O Getúlio Vargas, o Juscelino Kubitschek, a Marlyn Monroe, a Carmen Miranda,
o Paulo VI, o Gláuber Rocha, o Drummond...
- Bleeeeeeergh, Culta! Vou acabar te apelidando de Pé-na-Cova... Se manca!
- Mas... na verdade, sabe? - ele continuou, comovente... - Na verdade, deixa te falar, isso tudo não
passa é de supertição mesmo. Começou lá na Idade Média, depois da Noite de São Bartolomeu,
quando massacraram centenas de protestantes, na França, em 24 de agosto de 1572...
Desisti. Era muita adrenalina.
Tirei o fone do ouvido, conferi se não havia perdigotos no bocal e deixei o Cultura inútil se ralando no
gogó, falando sozinho com sua própria caixa-de-som-encefálica. "Meu Deus! Como é que eu pude
ter o primeiro beijo com esse cara? Eu tava maluca?"
Percebi, a tempo, o animal "naqueles dias", totalmente inspirado: parecia menina com TPM. Dizem
que, de vez em quando, tinha que tomar uma pá de remédios fortíssimos. Tudo por causa da
ansiedade, da depressão, da superagitação. A Rê, por exemplo, jura que já viu ele até virar
lobismomem à meia-noite, no sítio da Tess
Foi quando, divagando sobre esse nosso famigerado "lobiboy" - o rei do ketchup -, senti um forte
cheiro de queimado invadindo a sala, a casa toda.
- Help! - detonei.
Era a chaleira que deixei no fogo, fervendo, para o chá milagroso da Lu.
Capitulo 7

- Tchsssss...
- Cof! Cof! Cof!
Quando consegui entrar na cozinha, tossindo, o fogão chiava feito uma locomotiva. Tentei girar o
botão para apagar o fogo, mas acabei encostando na trempe.
Gritei de dor.
A chaleira caiu no chão, torrada.
Procurei um pano de prato, mas a fumaça ainda estava muito densa, me impedindo de enxergar as
coisas com nitidez. E, pra piorar, eu ainda não tinha encontrado os meus óculos, desde que
acordara, naquela manhã infernal.
Me desesperei.
Então a campainha tocou.
Abri a porta e uma senhora descabelada, vizinha do andar de cima, entrou esbaforida, perguntando
se eu estava bem.
Sem esperar pela resposta, ela foi direto para a área de serviço. Pegou uma toalha, encheu um
balde d'água e despejou-o sobre a chaleira e o fogão, desligando o gás logo em seguida.
Quando os chiados horríveis cessaram e a fumaça se dissipou, trouxe um copo d'água com açúcar e
disse, coçando a enorme verruga preta que tinha no nariz:
- Tome, minha filha. Não foi nada. Foi só um susto, viu? Você precisa ter mais cuidado.
Meio perplexa, desorientada, tomei a água que ela ofereceu. Mas logo em seguida se foi, arrastando
as chinelas como se arrastasse correntes. E tive, naquele momento, a impressão de que também
usava um chapéu pontiagudo, em formato de cone. Será? Seria uma bruxa?
- Não entendo mesmo essas mães de hoje em dia... Como podem sair pra trabalhar e deixar
crianças ainda tão novas sozinhas, cuidando de casa? - ela foi falando pelo corredor, subindo a
escada e arrastando atrás de si mesma uma vassoura que fazia "toc-toc-toc". E depois, "toc-toc-toc".
Engoli seco, na dúvida se protestava por ela ter me chamado de "criança" (eu já ia fazer quinze
anos), ou se aceitava tudo caladinha. Afinal, ela me salvara do incêndio.
Fiquei com a segunda alternativa e agradeci:
- Obrigada, dona Floripes. É que me distraí com o chá do dia das bruxas no telefone... A Lu falou
que o Cultura inútil bombardeou um iceberg em Hiroshima... por causa da morte do Paulo VI no
telescópio do Nostradamus, logo depois do maremoto das calotas do Juscelino na Conjução do
Diabo e... bem, me desculpe, tá? Não vai acontecer de novo. Prometo... - e quase ainda perguntei
por que não tinha passado uma escova nos cabelos: tava igualzinha à Madame Min.
Acho que dona Floripes - que era a síndica do mês, no prédio, e morava no apartamento bem em
cima do meu - foi embora perplexa, estupefada...
- Você teve sorte, menina, porque hoje estou dando faxina em casa - ela resmungou corredor afora. -
Não enxergo quase nada, mas senti o cheiro, senti o cheiro... o cheiro...
Só aí me lembrei que tinha deixado o Cultura na linha.
De mansinho, sem fazer barulho, peguei o telefone. Ele continuava escorrendo...
- ...de modo que elas estão mesmo soltas, Laruska. E não é a-pe-nas isso. De acordo com as
últimas estimativas, de-ma-si-a-da-men-te corretas, do Conselho das Bruxas da Grã-Bretanha, há
cem mil delas somente na Inglaterra. No mundo todo são mais de um milhão e, se o ano tem
quinhentos e vinte e cinco mil e seiscentos minutos, imaginemos então que...
Bati o telefone.
Era demais pra um dia só! E antes que eu, exausta, me deixasse cair sobre o sofá, sem querer,
murmurei: abracadabra, olho de cabra. Quero que o Cultura se transforme numa... Não consegui
imaginar algo que valesse mesmo a pena. Voltei pra cozinha e limpei o chão, a chaleira, o chão.
Só quando o Júlio Verne, também já refeito do susto, miou de fome, é que eu vi o bilhete de minha
mãe pregado no ímã-framboesa da geladeira:
Lara,
Por favor, não acenda o fogão até eu chegar. As válvulas estão estragadas, com vazamento.

DANGER !

Não mexa em nada, nadinha, tá?


Tem salada, maionese, sanduíche e suco na geladeira.
Até de noitinha!
Beijos!

MAMÃE
Capitulo 8

Pombas! Bombas!
o mundo quase vindo abaixo por causa de um bilhete não lido, meu Deus!
E logo eu que achava a Lu distraída, avoada, desligada? A "bolhajapa", nessa história, tava errada.
Tremenda falta de autocrítica. Que bandeira, não?
Eu podia ter transformado o apartamento em cinzas. Eu podia ter feito o prédio todo voar pelos ares,
como uma caixa de sapatos. E, se isso acontecesse, eu ainda era capaz de ficar lá em cima -
babacona - procurando baratas pra matar, entre as nuvens, antes de cair. Ou bruxas montadas em
vassouras, quem sabe, ou lagartixas.
- Help! - detonei. E corri até a escrivaninha, pegando o lápis. - Um insight! - e escrevi, ofegante:

"Calma, calma, Lara enluarada.


Não chore, baby, não chore...
Você podia ter botado fogo
no quarteirão inteiro, você sabe.
Você podia ter estraçalhado
o seu peixe, o seu gato
e a cidade inteira, quem sabe.

Você só não podia, baby,


deixar de fazer o seu chá:
promessa é dúvida, é dívida
que alguém algum dia
vai te cobrar..."

Pensei: "Vai dar uma bela letra de rock pro Gustavo botar música. Quem sabe, uma balada
romântica?"
Continuei eletrizada, como que possuída pelos incontroláveis deuses da poesia:

"Calma, baby, dessa vez


a culpa não foi do mordomo,
sabe como? É a batalha!
Bota lenha na fogueira,
dá a volta por cima
do fogo, da palha..."

Faltava o refrão. Lembrei da minha filosofia de vida predileta. E a inverti:

"Quando você te ajunta,


ninguém te espalha".
(bis)

E continuei:

"Por causa de uma frase


o mundo pode acabar.

Mas você não carrega, baby,


sua casa nas costas,
feito um caracol.
A vida é essa mochila
cheia de frases feitas
feita de estradas cheias
de sangue, suor e sal.

E apenas uma lágrima


pode transbordar
a chuva, o rio, o lençol.

Mas quando chover lá fora,


Lara enluarada,
ninguém vai te secar
entre as chamas molhadas
do sol".

Botei o ponto final e exultei de alegria!


Lindo! Meus Deus! Que lindo! Eu pulava como uma tresloucada.
Conseguira! Era a chama de alegria que me faltava. Era a injeção de auto-estima para enfrentar o
resto do dia. Agradeci aos deuses. Eu era uma deusa! Uma poeta!
Fechei o caderninho, arrumei o quarto, juntei roupas sujas no cesto, organizei rapidamente o armário
e acabei encontrando meus óculos debaixo da cama.
Depois do almoço, tirei uma soneca e resolvi tomar uma banho. Enquanto deixava a água do
chuveiro esquentar um pouquinho – até esqueci da lagartixa – cantarolava alguma coisa, pensando
numa possível melodia que eu pudesse sugerir ao Gustavo: uma mistura de Vivaldi com Dire Straits
em Brother’s in arms... coisa muito maluca.
Vesti um jeans surrado, um bustiê fininho (tava muito quente lá fora) e ajeitei as tralhas na mochila.
Pensei: ―Quando eu tiver meu violino, se algum dia eu tiver um, ele não vai caber aqui dentro...‖
Mas eu detestava a idéia de ter que sair carregando um violino na rua por aí, todo mundo reparando,
me perguntando que bicho era aquele, você toca isso?... et cetera e tal.
Então me lembre da madame Berioska.
Capitulo 9

Devo contar que, depois do inglês, minha vida de executiva não-remunerada continuava até as seis
da tarde, com madame Tatiana Berioska, minha velha e bondosa professora de música! (Eu
estudava em um de seus violinos.)
Júdia, viera da Rússia ainda menina, fugindo da perseguição nazista. Seus pais já haviam morrido
num campo de concentração da Alemanha. Por milagre, perdida pelas ruas de Kaliningrado, na
Lituânia, ela foi recolhida por uns judeus poloneses que a colocaram num navio para Lisboa. De lá a
embarcaram para o Brasil, quando tinha a minha idade. Com uma diferença: já tirava no violino tudo
o que Tchaikovsky, Schumann, Bach, Vivaldi, Mendelssohn e Pagannini compuseram nesse
instrumento.
Eu engatinhava na música: um pouco de violão, guitarra mais ou menos, flauta médio e violino...
bem... me consolava quando madame Berioska dizia, mastigando palitinhos de chocolate, com seu
sotaque carregado de erres:
- Entrrrre as quinze e as trinta anos, babuska, a homem não dá o menooooorr pelota parrrra o que
rrresta da humanidade pensa dela. Das trinta a cinqüenta, a homem passa tempo toda
prrrreocupada em saber o que rrrrresssta da humanidade pensa dela. Das cinqüenta parrra diante,
babuska, a homem finalmente descoooobrrrre que a resta da humanidade nunca deu o menooooorrr
pelota parrrrra ela...
Morria de rir. E comia os palitinhos que ela oferecia numa bandeja de prata, enquanto acendia a sua
inseparável cigarrilha holandesa. Ela tinha sessenta e cinco anos, cento e dez quilos e a agilidade de
uma garota.
Podia ser minha avó ou minha bisavó. E éramos tão intimas que, de vez em quando, me deixava
tirar uns acordes do seu Stradivarius, um violino raríssimo que nem se fabrica mais.
Ás vezes fico até pensando que madame Berioska adorava o fato de eu ter um nome supostamente
russo: Larissa. E mais: havia adotado o seu sobrenome como meu pseudônimo artístico: Berioska.
Uma homenagem, apenas. Afinal, pelo menos na música, eu era uma "cria" sua.
Certa vez, meu pai me contou que ele e a mamãe escolheram o meu nome por causa do filme Dr.
Jivago e o Tema de Lara, que era a música do filme. Osmar Shariff interpretava o médico-poeta,
apaixonado por Julie Christie (a Lara, diminutivo de Larissa, em russo), durante a Revolução Russa
de 1917.
Mas foi madame Berioska quem me explicou mais tarde - com o pince-nez na ponta do nariz - logo
no primeiro dia de aula:
- Larissa, minha querida, seu nome não é um nome originalmente russo, como todos pensam, sabia?
Me embasbaquei, tomada de surpresa. Com suas bochechas gordas e rosadas, ela continuou:
- É um nome grego, que significa alegria e prazer, no sentido genérico. Em latim, corresponde a
laetitia, que deu Letícia, em português. Mas significa também fertilidade, fecundidade, abundância,
no latim rústico. E também encanto, graça e beleza de estilo, na língua retórica.
- Que barato! Quando eu tiver uma filha, se algum dia tiver uma filha, vai se chamar Letícia... - E me
maravilhava mais ainda quando madame Berioska - retocando o batom vermelho - completava:
- E na Grécia, babuska, tem uma cidadezinha linda de casinhas brancas com o seu nome, sabia?
Fica a oeste do golfo de Salônica, no mar Egeu. Mais exatamente ao sul do monte Olimpo, às
margens do rio Salemvria, na Tessália...
- Tessália? - me espantei naquele dia. "Essa eu tinha que contar pra Tess. Fazer inveja. Ou aquela
embombada pensava que só ela é que podia ter nome importante na vida?"
- Sim babuska, na Tessália, uma planície muito fértil onde se cultivam uvas. Larissa é a capital da
povíncia da Tessália...
- Ca-pi-tal da Tessália? - abri a boca de espanto. "Essa agora era demais! Super! Eu ia tirar o maior
sarro da Tess: eu era simplesmente a capital da província dela. Pode?"
- Larissa também é a pátria de Aquiles, babuska! - ela acabou de entornar o caldo da minha vaidade.
- Aquiles? Aquele do calcanhar? - perguntei curiosa.
- Sim. E o mais famoso herói do cerco de Tróia.
Não resisti. Com cócegas no céu da boca, pedi mais um pouco de capim pro meu ego:
- E a senhhora sabe a história dele?
- Sei. Quer que te conte um pedacinho?
- Quero.
Então me serviu, cerimoniosamente, um licor de anis. Bambeei as pernas, mas agüentei o tranco. E
entrei de sola nos palitinhos de chocolate, a garganta queimando, uma quentura boa, zonza. E
quando ela se acomodou na cadeira de balanço, acendi sua cigarrilha e trouxe-lhe as pantufas de
raposa polar, da Sibéria.
E como uma avó, uma avó que acaba de chegar de uma terra muito distante, contou-me:
Capitulo 10

- Aquiles era filho de Tétis e de Peleu, o rei dos mirmidões...


Quis perguntar o que era "mirmidões", mas desisti. Madame não gostava de ser interrompida.
"Depois procuro no dicionário", pensei. Mas como se adivinhasse o meu pensamento ela foi soltando
a pipa:
- Mirmidões eram as formigas que Zeus transformou em guerreiros para fazerem companhia Éaco, o
avô de Aquiles, um homem muito solitário. No dia do casamento de Peleu e Tétis, os deuses
compareceram. Mas a deusa Éris, a Discórdia, atirou entre eles uma maça de ouro com a inscrição:
"Para a mais bela". Essa, mais tarde, veio a ser a causa da Guerra de Tróia...
Nesse ponto, madame Berioska fez uma pausa, retocou novamente o batom com um espelhinho
redondo - como era vaidosa! - e ajeitou os seios enormes entre as alças do sutiã, por cima da blusa.
"Devia estar apertado", pensei. Depois, com a classe das divas do cinema, ela deu outra baforada na
cigarrilha e continuou:
- ... o fato é que, quando Aquiles nasceu, sua mãe mergulhou-o nas águas do rio Estige, tornando-o
invulnerável, exceto no calcanhar, por onde Tétis o segurava, para não se afogar. Aquiles cresceu
forte, ardiloso, inteligente e, depois de nove anos de lutas e guerras, resolveu vingar a morte de
Pátroclo, seu amigo que fora assassinado por Heitor. Aquiles conseguiu matar Heitor, mas, tempos
depois, foi mortalmente ferido no calcanhar por uma flecha envenenada, lançada por Páris. Depois
da morte de Aquiles os gregos se deseperaram. E acharam que nunca mais conquistariam Tróia...
- Que coisa mais triste... -balbuciei.
- Mas Ulisses, outro grande herói que sobrevivera, introduziu soldados dentro de um gigantesco
cavalo de madeira que foi colocado às portas da cidade. De noite, imaginando ser um "presente" dos
gregos derrotados, os troianos levaram o cavalo para dentro dos muros da fortaleza. Então, quando
festejavam, bêbados, a suposta vitória sobre os gregos, Ulisses e seus soldados saíram das
entranhas do cavalo, abriram os portões da cidade para que o resto do exército atacasse. E tomaram
Tróia. Não é uma história linda?
- É... mas o coitado do Aquiles... Por que a mãe dele não o mergulhou no rio segurando-o pelos
cabelos?
- É uma boa pergunta, babuska. Mas... e se ele fosse careca?
Começamos a rir. Madame Tatiana Berioska quase caiu de sua cadeira de balanço e eu quase caí
da minha fogueira das vaidades.
- É por isso que o nome de Aquiles é objeto de freqüentes alusões, sejam literárias ou da vida real –
emendou. – Calcanhar-de-aquiles significa o ponto vulnerável, o lado fraco das pessoas.
Enquanto eu procurava identificar, entre um palitinho e outro, o meu calcanhar-de-aquiles, ela
arrematou:
- E tem mais, babuska! Sabe quem era Lara, na mitologia romana?
- Não, madame Berioska! Não faço a menor idéia – me remoí de novo, de curiosidade.
- Lara era uma ninfa, uma divindade fabulosa do rio Tibre, a mae dos Lares. E os Lares eram as
divindades protetoras da casa e de seus moradores, cultuados pelos romanos. Ou melhor, eram
espíritos tutelares, considerados como almas dos mortos encarregados de proteger a casa, as ruas,
a cidade...
- Que chique! – exclamei. – Nunca pensei que até meu apelido fosse importante!
- Mas não se exulte tanto, minha querida paroladeira! – ela cortou, passando o indicador na ponta do
meu nariz. – E acho que já descobri qual é o seu calcanhar-de-aquiles...
Ruborizei-me. Me senti quase que despida na frente dela. Será que madame Berioska sabia
mesmo?
- E qual é? – perguntei ansiosa.
Numa gargalhada alegre, respondeu:
- Júpiter, rei dos deuses e dos homens, deus do dia e criador de Lara, privou-a da língua, babuska,
porque ela era muito tagarela!
Completamente atingida no calcanhar-de-aquiles – mesmo não sendo a tagarelice o meu maior
defeito – no susto, engasguei-me com o último palitinho de chocolate.
Ela levantou-se da cadeira de balanço e bateu nas minhas costas:
- São Brás, babuska. São Brás.
E depois, pra consolar, remendou meus trapos com o seu sotaque carregado de erres:
- Não se prrrrreocupe, querrrrrrriiiida. Berrrriiooooska não vai contar nada prrraaa ninguém, tá?
Berrriiooooska é uma túmula! Fala muito pouca, viu?
Agradeci com um gesto de cabeça – muda-, e fiz menção de sair, olhando o carrilhão da sala: um
velho relógio de parede que dava as horas por música. Tava na hora de ir. Pensei: ―Um primeiro dia
de aula nada típico...‖
- Mas não é bem isso, madame Berioska! Meu calcanhar é outro. Não é a língua não, viu? – não me
dei por vencida.
Fiz beicinho pra ela.
- Eu sei, minha bonequinha, eu sei. Berioooooska tava só brincando. Beriooooska sabe que sua
calcanhar-de-aquiles é na coração...
- Um dia eu conto pra senhora, tá? Prometo – aumentei o beicinho.
Antes que eu saísse, porém, ela levantou-se da cadeira, puxou-me para junto de seu corpo
descomunal e acariciou meu rosto, quase sufocando-o entre aqueles seios enormes.
- Um dia você fala ―dele‖, babuska, o dona da seu coração?
- Falo – respondi. – Mas vai ser um segredo só nosso, certo?
- Certo.
Ela passou as duas mãos nos meus cabelos. Senti seu perfume de alfazema e água-de-colônia.
Depois, com um ar muito maroto de cumplicidade, essa cumplicidade das amigas de mesma idade,
falou:
- Então, eu também vai contar a minha calcanhar-de-aquiles, tá? Por oroooorra, babuska, só posso
adiantar que ele se chama Pavel Vlassov, e conserta relóóóógias!

Relógias?
Ai, meus sais! Olho o relógio: duas e quinze. Já estava superatrasada.
Me despedi, em pensamento, de madame Berioska e calcei o tênis sem amarrar os cadarços. Dei
um beijo no Júlio Verne, fiz cócegas na Aghata (achei-a muito estranha, muito agressiva ) e fiquei
considerando, seriamente, a hipótese de arranjar um namorado pra ela. Afinal, Júlio Verne era um
bom companheiro, mas era um gato. E gatos adoram comer peixes.
Pensei: ― A qualquer hora o Júlio Verne, num desses ímpetos felinos característicos dos machos,
pode se banquetear com a Aghata Crítica‖.
E morri de rir outra vez. Imaginei o Júlio Verne (o escritor) transando com a Aghata Christie (a
escritora). Hercule Poirot (o detetive mais esperto que um gato) gritando para o capitão Nemo (que
vivia trancado num aquário, ou melhor, num submarino): ―...Agora não, agora não!‖
Eu estava impossível!
Fiz um gesto no ar, espantando pensamentos comprometedores.
Depois fechei as janelas, tranquei as portas e saí, meio trôpega, pela calçada.
Lá fora um sol de faroeste me esperava. ―Bang! Bang!‖ – detonei. O dia estava lindo no Alto Barroca.
As cigarras cantavam, o céu azul, azulíssimo, e eu – como uma borboleta em lua-de-mel – era feliz.
Corri até o ponto final da linha 1001, descendo a rua Santa Cruz. O ônibus ameaçava sair. Assobiei
e o motorista esperou um pouquinho. Quando passei pela roleta, agradeci ao trocador, entregando o
vale-transporte.
O carinha lançou uns olhares, mas não dei bola. Vi ele piscando pro motorista, através do retrovisor.
Era uma senha qualquer: coisa de paquera. Nem liguei.
Apenas escolhi, no ônibus quase vazio, um banco alto, mais atrás. Agora, tranqüilamente instalada
em meu posto de vigia predileto (a janelinha de um ônibus), eu poderia observar o desfile da cidade.
2ª PARTE – FORA DE CASA, DENTRO DE MIM

Capitulo 12

Unidos do Barulho Nosso de Cada Dia, Grêmio Recreativo dos Batedores de Carteira, Desunidos do
Sem-Tudo, Anônimos do Cordão de Ouro, Foliões da Cola de Sapateiro, Independentes da
Desmiséria Alheia, Estação Primeira da Buzina, Neuróticos da Gasolina: o desfile da cidade.
Atravesso o carnaval diário de miseráveis, desempregados, ambulantes e trombadinhas: um filme
triste, muito triste. O centro da cidade é um caldeirão fervente. As ruas chiam, suam, estalam,
pipocam e se dobram em esquinas que desembocam em outras esquinas. Ferro, concreto, borracha,
metal e a sinfonia das maquinas num palco onde ninguém aplaude ninguém. Labirintos dentro de
labirintos.
Zoada, desço no ponto de em frente ao Detran, no bolo compressor. Subo até a praça da Liberdade
e olho o relógio eletrônico: 32° - Ploc! – 15:00.
Se tivesse tempo, iria olhar os chafarizes. Mas tomo a direita na Gonçalves Dias e desço a Bahia. Os
operários de uma construção mexem comigo:
- Três em ponto, gatinha! Três em ponto!
Arrisco um olhar. Eles gostam, brincam entre si e continuam o serviço, satisfeitos.
Apresso o passo e entro no saguão do curso de inglês. Lá no balcão vejo o Xoba, o Pri-Pri, a Rê, a
Liubiana, o Pablo, a Mariana e a Clarissa – minha futura cunhada. Helger e Carolina chegam depois,
descendo as escadas do segundo andar. Parece que continuam o chove-não-molha: olhares,
olhares e mais olhares...
- Esse aqui é o Breka, primeiro ano de engenharia mecânica...
- Oi! – Pri-Pri me apresenta o irmão, também mais velho, também na faculdade. Só não falou de quê.
Mas eu disse ―Oi‖. E ele disse: - Oi, prazer... Pra-Pra.
Quase ri. Que dupla! Pri-Pri e Pra-Pra...
- E ai?
- E ai?
- Que foi, gentem?
- Tem aula não, galera! Só semana que vem!
- Por que, uai?
- Não deu tempo de acabar as reformas do segundo andar!
- Massa!
- Oba!
- Só...
- É nove...
- É dez!
- Valeu!
- E ai? E ai? E ai?...
- Proponho um cinema.
- Super!
- Olhai, tá o maior calor lá fora, galera! Cedaço ainda, todo mundo de papo pro ar...
- Quem detona?
- Que tal um milk-shake no Xodó?
- Que você acha, Lara?
- Quem tiver afins, ora... Eu é que não posso. Tenho violino.
- Ai, dondoca! Vai acender a cigarrilha da ―Karioska‖, é? – Xoba dá um murro no peito e arrota. O
primo mais velho dele, o tal Breka, fica ressabiado. Desaprova.
- ―Karioska‖ é a vó! Vê se te acha, cara! – dou o troco.
Pri-Pri saca o lance, aparta, põe panos quentes:
- Olhaí, galera! Chega de papo furado! Vamos pro shopping dar um role. O Pra-Pra tá de carro, tem
carteira, pode levar a gente.
- O Breka também tá de carro, e pra ele só falta o brevê de piloto. – Xoba arrota, arrogante.
- Tudo bem, tudo bem gentem...
- Já tem uma tribo lá no shopping. Tão afins ou não?
- Quem é que tá lá?
- A Andréia, o Gui, a Tess, o Cultura, a Bebela, a Pat, a Dri, o Bolanove e a banda do Gustavo: vão
dar uma palha hoje de tarde. Tão estreando uma aparelhagem nova, da pesada, no estacionamento.
Meu coração bateu forte com aquela informação da Clarissa – minha futura cunhada. O Gu, meu
Deus, o Gu!
―Vou ou não vou? Tô morrendo de saudade dele... será que já botou musica na minha letra? Lufas
pra madame Berioska... Não. Não posso, coitada... Não posso dar o cano nela...‖
- Que que eu faço, Liu? Me ajuda...
- Me ajuda o quê, Lara? Qual é?
- Nada não, Liu... tava só pensando... deixa pra lá!
- E aí, galera?
- Chega de lero-lero. Vamos pro shopping.
- Massa!
- Só.
- Fechado!
- Vamo nessa!
Fiquei pensando num poema triste: ―Fiz a minha cama/ o colchão cheio de pedras/ o lençol bordado
de espinhos/ agora vou ter que me deitar nela...‖
- Você não vem, Lara?
- Não posso, Carol. Deixa pra outra, tá?
- Tudo bem. Beijo.
- Beijo.
Metade entrou no carro do Breka, o primo mais velho do Xoba. Metade no carro do Pra-Pra, o irmão
mais velho do Pri-Pri. Se mandaram, cantando pneus, cantando... e eu, plantada, dando cavalo-de-
pau no meio no meio-fio.
- Ah! Maldita responsabilidade! – berrei internamente.
E voltei pelo mesmo caminho de onde viera.
Capitulo 13

A casa da madame Berioska ficava perto do curso de inglês, a dois quarteirões da Bahia, na Bias
Fortes.
Agora eu dispunha de tempo. Podia dar uma esticada no cine Belas Artes, ver os cartazes da
semana. Podia tomar um sorvete no Xodó. Podia me sentar num banco da praça da Liberdade e
ficar admirando os chafarizes, os lulus fazendo xixi na grama, os velhinhos jogando damas, as
velhinhas jogando fofocobol, os coroas fazendo cooper, as crianças nem aí pra isso tudo e eu nem aí
pra quase nada...
Caminhei devagar, pensando no Gu: os olhos verdes dele, o sorriso dissimulado dele, o rabo-de-
cavalo dourado, a sensibilidade dele.
De repente: BLLAAAAAAAAANG!
Um baque surdo no chão a minha frente. Uma cortina de poeira. Algo se mexendo na calçada, se
avermelhando numa gosma e depois ficando imóvel, silenciosamente imóvel. E em seguida tufos de
gente se ajuntando, gritando, pedindo socorro.
Aí os operários desceram dos andaimes, dos tapumes, das escadas. Uma velha desmaiou nos
braços de um policial. Uma criança berrou pela mãe e, de repente, ali estava ela: A MORTE.
Pela primeira vez a vi de frente, bem pertinho de mim, esperneando feito um bicho em minhas
entranhas. Depois ela foi se acomodando aos pouquinhos, como criança que começa a dormir.
Ali estava ELA: um corpo estirado no chão, imóvel, olhando para o céu, o lugar de onde acabara de
cair. Era um operário. Talvez o mesmo que há poucos minutos me disse:
- Três em ponto, gatinha, três em ponto!
E talvez ―a morte‖ tivesse planos para o futuro. E talvez ―a morte‖ tivesse mulher pra brigar, filhos pra
criar e contas pra pagar.
E agora ―ela‖ estava ali. Ela. A morte.
Mas eu não sentia nada. Não sentia medo, nem nojo do sangue escorrendo da sua nuca para a
calçada. Apenas olhava os olhos dele, que olhavam para o céu. Apenas olhava para as suas mãos
sujas de cimento. Tentando entender o que fazia aquele cara ali, parado. Uma correntinha no
pescoço, um relógio espatifado no pulso, um alicate pendurado na cintura e um boné do Atlético
ainda pousado sobre seus ombros. E ele era jovem. E ainda tinha braços e pernas. Então? Uns vinte
e poucos anos?
Então, por que aquele cara não se levantava, meu Deus?
Por que ficava ali, vermelhamente imóvel, deixando que todo mundo visse como dormia? Por que ele
não se limpava e saía andando de volta lá pra cima, lá pro céu, lá pro andaime de onde veio?
De repente, entre zumbidos e sirenes, as coisas escureceram.
A terra se abriu sob meus pés e eu caí no vazio, mansamente, como uma pluma.

...

- Larissa! Larissa! Acorda!


Dona Mishiko, à beira da cama, tentava me reanimar com alguma coisa molhada. Abri mais um
pouco os olhos e também vi a Lu, do outro lado.
- Você desmaiou, Lara. Agora toma isso aqui. Vai lhe fazer bem.
Dona Mishiko segurou-me a cabeça entre os braços enquanto a Lu me fazia beber um copo de algo
muito amargo.
- Bleeeeeergh! Lu, que coisa mais horrível! Onde estou?
- No meu quarto, Lara. Mamãe te trouxe lá do curso de inglês, quando você apagou... Já sabemos o
que aconteceu.
- Miss Mary nos contou tudo – falou a mãe da Lu.
- Tudo? Tudo o quê? O que aconteceu?
- Você desmaiou, Lara. Um operário caiu daquela construção, pertinho de você, lembra?
Dona Mishiko afagou meus cabelos, enxugou um pouco do suor do meu rosto, e disse:
- Não se esforce, querida. Você ainda está muito fraca. Vou fazer chá bem quente, tá? Fique calma.
Segurei a mão da Lu.
- Já estou me lembrando, Lu. Foi terrível! Mas como é que eu vim parar aqui?
- Você desmaiou na calçada, certo?
- Certo.
- Aí, na confusão, um dos operários da construção, o mestre-de-obras, te carregou pro curso de
inglês. Disse que sabia que você estudava lá, que todos te cumprimentavam quando você passava,
e que era pra cuidarem de você, telefonassem pra sua casa, tomassem providencias... essas coisas.
- E ai?
- Aí miss Mary chegou, tentou te reanimar, deu muitos telefonemas, mas não conseguiu localizar sua
mãe nem seu pai. Por coincidência, mamãe apareceu pouco tempo depois. Ela ia me matricular no
basic, lembra que te falei?
- Lembro...
- Pois então, Lara, mamãe te pôs no carro e te trouxe aqui pra casa.
- Caramba! Que coincidência! E minha mãe?
- Ligaram pra faculdade, mas ela já tinha saído, e ninguém sabia informar pra onde. Ligaram também
pra sua casa e pro escritório do seu pai, mas ele tá viajando pro Rio, né?
- É?
Apertei mais ainda a mão da Lu, morrendo de vergonha: até ela sabia onde meu pai se encontrava,
menos eu.
Chorei um pouquinho e perguntei:
- Eu falei alguma coisa enquanto tava desmaiada?
- Não, Lara. Apenas movia os lábios e suava que nem uma jarra de refresco.
- E que horas são?
- Ainda é de tardinha: umas quatro e meia, cinco. Por quê?
- Acabei perdendo minha aula de violino, Lu. E por causa da maldita responsabilidade... Eu podia ter
ido com a turma ver o Gustavo tocar no shopping. Eu podia ter escapado de ver a morte de perto...
Foi então que percebi, sobre a mesinha de telefone do quarto da Lu, um livrinho chamado
Almanaque das magias, de uma tal Tia Veralúzia, de quem eu nunca ouvira falar.
Descobri tudo: era dali que ela tirava as suas ―feitiçarias‖ para resolver os meus pequenos problemas
sentimentais, suas fórmulas mágicas para que o Gu me desse bola, se aproximasse de mim...
Mas não tive vontade de dizer nada.
Apenas senti um aperto enorme na garganta e no coração. E fiquei ali, olhando pra ela, meio boba,
sentindo ternura por ela, uma ternura quente e acolhedora, algo que dava uma sensação gostosa de
paz e segurança.
―Minha bolhinha japonesa, minha melhor amiga, minha irmãzinha querida, como você é incrível,
como gosto de você...‖, fiquei sentindo, fiquei pensando, e apertando a mão dela. E a Lu piscando os
olhos rasgados, meio desconcertada, me fazendo carinho na ponta do nariz.
Depois ela também ficou parada, imóvel, me olhando profundamente dentro da alma, sem perguntar
nada: acho que estava sentindo muita pena de mim naquele minuto.
E pela primeira vez reparei como era bonita: os cabelos compridos, lisos e pretos. Os olhos de
gueixa, brilhantes, interrogativos. As mãos delicadas e ágeis. Os dentes perfeitos e os lábios
finamente trêmulos que, agora, se aproximavam de minha testa. Beijou-me e afagou-me, enquanto
sua mãe trazia uma xícara de chá de hortelã.
- Tome enquanto está quente, querida. – virou-se para a Lu, quase sussurrando – Agora deixe ela
dormir um pouco, bruxinha. Depois vocês trocam impressões, tá?
Tive vontade de rir daquele ―trocam impressões‖. Nunca ouvira uma coisa dessas. ―Devia ser
expressão muito antiga dos Kioka‖, pensei, ―coisa dos antepassados dela...‖. Mas me contive,
tranqüilizando dona Mishiko:
- Não estou com a menor vontade de dormir, dona Mishi... Posso chama-la assim?
- Pode, Lara! Eu não a trato por Lara, com a Lu?
- Obrigado por tudo, tá? Desculpe o trabalhão que tou dando pra senhora.
- Ora, você é a melhor amiga da minha única filha. Então é minha filha também. Vamos?
Dona Mishi e Lu me ajudaram a levantar da cama.
A casa era de madeira envernizada por dentro, espaçosa, clara e cheia de samambaias, bonsais,
arranjos de ikebana, pequenas estátuas e quadros orientais. Os móveis eram todos de bambu e
vime. Na varanda, dona Mishi esticou a rede e fez com que eu me acomodasse nela.
- Vou trazer um cobertor – ela disse.
Lu sentou-se numa poltrona de vime e almofadas, ao meu lado. Logo um beija-flor riscou o espaço
de um lado a outro e pairou no ar, numa das pontas do telhado, onde havia uma garrafinha com
água açucarada.
Enquanto admirava o balé que o bichinho executava, dona Mishi trouxe o cobertor. Era uma senhora
pequena, de passinhos curtos, ágil e calada, mas gostava muito de assobiar. Usava um macacão
azul, com manchas amarronzadas nas pernas. Num dos bolsos trazia um par de luvas de borracha e
no outro uma tesoura de podar.
Então ela penteou, com os dedos, os cabelos já levemente grisalhos. Gentilmente me acomodou no
pano da rede, como se estivesse fazendo um ―pacote‖ de meu corpo, naquela quentura. E
sussurrou-me aos ouvidos, quase musicalmente:
- Tenho uma pequena surpresa pra você. É só aguçar bem os ouvidos e fechar os olhos. É Kitaro...
Segundos depois, uma música que parecia emanada dos céus foi preenchendo suavemente cada
espaço da varanda e cada reentrância dos vasos de begônias, jibóias e samambaias. As folhas
começaram a dançar e beija-flores coloridos vieram executar seu balé entre garrafinhas açucaradas.
Lu, de olhos fechados, parecia estar em transe, quase sorrindo, dentro de uma bolha. E mais
adiante, dona Mishi flutuava entre os pequenos tanques de carpas japonesas, assobiando baixinho,
acompanhando a música. De vez em quando ela se abaixava, adubava uma planta, conversava com
ela, podava os galhos secos de outra, regava e tornava a conversar, e assobiar. Depois, sumia
dentro de uma barraca de lona armada lá no fundo, ao lado de um pessegueiro.
Senti uma felicidade quase sobrenatural invadindo minha alma. E quando a música acabou a Lu
abriu os olhos, balançou delicadamente a rede e falou:
- Foi muito difícil, não é?
- Foi – respondi.
- Comigo também foi assim – ela abaixou a cabeça.
- Você sente muita falta dele, Lu? – perguntei.
- sinto, mas não é como você. Quando ele morreu, eu só tinha dois anos de idade. Quase não me
lembro como era seu rosto... só o conheço por fotografia.
- Acho que comigo é pior, porque eu sei que ele está por aí, em algum lugar... tão próximo de mim
como a Terra está próxima de Marte.
- Não fale assim, Larinha. Ele não está por ai... Está apenas se preparando pra chegar, qualquer
hora dessas. Tem os seus compromissos...
- É. Talvez. O seu te deixou alguma lembrança?
- Só essa correntinha.
Mostrou-me uma correntinha de prata com um pequeno Buda de marfim na ponta.
- É pra dar sorte – ela falou.
- Eu sei – consegui balbuciar, antes de nós duas nos abraçarmos e chorarmos juntas, uma agarrada
na outra, como duas crianças com frio.
Quando nos separamos, enxugando as lágrimas, Lu voltou para sua poltrona de vime e eu continuei
olhando as arvores, sentindo os perfumes que vinham da ultima brisa que entardecia as folhas.
Ruminei:
- Você sempre vai ser minha amiga, eternamente, não vai?
- Vou sim, Lara – ela me acudiu – É só você deixar...
- Eu preciso muito de você...
Em silencio, ela colheu o espinho de uma castanheira e espetou o meu dedo nele. Em seguida,
colheu a escama de uma casuarina e pediu que eu espetasse a ponta do dedo dela. Quando duas
gotinhas de sangue apareceram, unimos nossos dedos.
- É assim que fazem no Japão – ela falou.
Nos abraçamos novamente. Uma borboleta azul voejou alguns segundos sobre nossas cabeças. E
desapareceu no meio dos raios de sol poente que se infiltravam, naquele minuto, entre as copas das
arvores e o nosso coração.
Capítulo 14

Tiramos par ou impar. Perdi.


A brincadeira: divã-em-vão, uma espécie de jogo da verdade, imitação de ―consultório psicanalítico‖.
Lu falou:
- Não vale. Você conta primeiro, tá?
- Não! Sorte é sorte e azar é azar! Quem perde ouve, lembra? E quem ganha conta.
- Mas hoje não vale. Você é quem precisa desabafar. Me empresta seus óculos – e fez com que eu
me deitasse num sofá.
Em seguida, acomodou-se numa poltrona confortável, pôs os meus óculos na ponta do nariz, jogou
os cabelos para trás, fez um coque na nuca e cruzou as pernas, tomando ares de mulher enérgica.
Parecia uma daquelas ―sargentas‖ da Gestapo, mas de olhos puxados.
- Diga-me, senhoooooora... Berioska. Penso que este é o seu nome, não? O que a preocupa?
- O meu pai – respondi. E disparei a metralhadora giratória. – É que o meu pai, a doutora sabe... o
meu pai se separou da minha mãe quando eu tinha dez anos. E de lá pra cá, todo mês de agosto,
que é o aniversário dele, eu fico muito confusa porque ele desaparece. No mês de julho inteiro ele
também some...
Então eu sempre passo as férias de julho sozinha, fico com sentimentos de rejeição, tensão pré-
menstrual, cólicas, como dúzias de chocolates e sorvetes de amora, vejo filmes, leio livros, engordo
três quilos e a minha mãe também passa o dia fora de casa, vai dar curso de férias porque precisa
ganhar um dinheiro extra...
- Vamos por parrrrrtes, senhora Berioska. Vamos por paaaarrrrtes, pooooor favoooooooor...
Continuei girando a metralhadora:
- De modo, doutora, que o mês de agosto pra mim é muito azarado, sabe? Porque, veja a senhora,
logo de saída, hoje, dia primeiro, eu já vi uma barata, uma lagartixa, as chinelas estavam viradas pra
baixo, tinha muito cheiro de naftalina no guarda-roupa revirado, pensei que tinha entrado ladrão em
casa, o Dândi sumiu, ouvi um barulho de fantasma batendo na parede e arrastando correntes, a
chaleira estourou e cheguei até a pensar que minha melhor amiga era uma bruxa...
- Senhora Berioska – ela enfureceu-se. – Deste jeito eu é que vou ficar confusa. Por
favooooooooorrr... – e pegou uma caneta, fingindo anotar tudo num caderninho. – Continue, mas
beeeeeeem devagaaaaaaaar...
- Então dona Floripes me salvou do incêndio, e um operário morreu na minha frente! – concluí, mais
ou menos eufórica.
- Definitivamente, senhora Berioska, a senhora é um caso muito difícil, muuuuuuuuuito difícil... – ela
fez uma pausa, com ares de reflexão, olhando por cima dos meus óculos. – Façamos o seguinte:
voooltemos ao ponto inicial, está bem? O seu pai... o que a senhora espera do seu pai? Penso que a
senhora disse ―pai‖, não, senhooora Berioska?
- bem, espero muito, quero dizer, não tenho a pretensão de esperar muito e, sim, muitas coisas.
Coisas como ele me levar a um cinema, ou a um jantar, mas sem a namorada dele. Coisas como ele
me telefonar de vez em quando, se oferecendo pra cortar minhas unhas ou limpar os seus, digo, os
meus óculos... ou me fazer cafuné, como quando eu era criança...
Luciana Kioka pensou, sorriu, pensou de novo e, com um ar muito, mas muito sério, respondeu:
- Você está sofrendo de uma paternalose que, se não tomar cuidado, evoluirá para paternalite, de
prognóstico sério, e provavelmente acabará tendo que fazer uma paternalectomia. Sugiro que vá ao
jardim e apanhe três cachos de amora com a mão esquerda e coma-os sem tirar o aparelho dos
dentes. São cinco reais e sessenta centavos. E está terminada a sessão.
- Bem, mas será que dava pra eu falar mais uma coisinha só? – prossegui rapidamente, antes que a
―doutora‖ Kioka pudesse negar. – Acontece que não terminei. Ainda tenho algumas coisas que
gostaria que o meu pai...
- Só falta a senhora desejar que o seu pai também venha lhe dar banho, não é? Mas prossiga,
senhora Berioska, prossiga... Ainda tenho cinco minutos. Mas apeeenas cinco minutos, está bem?
- É que eu queria que o meu pai me desse uma lente de contato verde e um violino.
- Arrrrãããããh! Eis a chave da questão! – respondeu Luciana Kioka. – De fato, creio nunca ter ouvido
falar em semelhante doença. Acho que se trata do mais sério caso que já vi. Por acaso seu pai fala
muito em dinheiro?
- Sim. Reclama o tempo todo que não tem. Adorou quando eu disse pra ele que não queria festa de
debutante.
- Com razão. Isso é muito burguês. E sua mãe?
- A mesma coisa.
- A senhora tem mesada?
- Muito pequenininha. Dá pra comprar sorvete de amora e...
- A senhora mencionou o fato de que seu pai vai fazer aniversario?
- sim, doutora. Neste sábado, dia seis de agosto.
- Então, eis o ―x‖ da questão, senhora Berioska! É você quem ―precisa‖ dar uma coisa pra ele, um
presente. Um presente que ele gostaria muito de receber. Um presente inesquecível, entendeu? ―É
dando que se recebe‖, já ouviu falar?
- Mas como, doutora Kioka? Eu não tenho dinheiro pra comprar nada, já mencionei esse fato.
- É um fato deveras cruciante, senhora Berioska. Mas nós vamos dar um jeito nisso.
- Cruciante? Como?
- Se a senhora me der o prazer de sua visita na semana que vem, ou melhor todas as semanas,
quero dizer, duas vezes por semana. Aliás, amanhã?
- Creio que sim. Receio somente que seja tarde demais.
- Agora chega de troca de impressões, meninas!
Dona Mishi, deliciosamente, encerrou a sessão com sanduíches de tomates assados com queijo e
mostarda, batatinha frita, sorvete de amora e, por ultimo, torradas com chá da China.
- Banzai! – ela falou, depois que eu acabei o banquete. – Creio que agora eu já posso te levar pra
casa, Lara san!

3ª PARTE - Salada Mista


Capitulo 15

Quando cheguei, dona Floripes, da escada, arrematava para mamãe os últimos detalhes da minha
bandeira com o fogão:
- ... e quase que o prédio todo pegou fogo, Sônia! Precisava ver a fumaceira...
Claro que a mamãe já sabia dos exageros da vizinha. Mesmo assim, me torrou, falou do bilhete que
ela deixou na geladeira, falou da minha incrível distração, falou que ia botar cadeado no telefone,
falou que mandou o Dândi pra lavanderia porque ele estava encardido, que tinha dado uma geral no
meu guarda-roupa, que botou naftalina por causa do cheiro de mofo, etc. etc.

Depois que acendeu o primeiro cigarro, deu uma baforada longa e suspirou, abri o jogo. Fiz ela
esticar-se no sofá, tirei seus sapatos, acomodei-a numas almofadas e contei todo o meu dia.
Coitada: morreu de pena de mim. Chorou, pediu desculpas, tentou ajudar, ligou pra dona Mishiko,
agradeceu o que ela fez por mim, ligou pro meu pai, e, mais uma vez, necas...
- Esse telefone nunca atende! – ela esbravejou.
- Ele tá no Rio, mãe – falei.
- É?
- É... Miss Mary ligou pro escritório dele, quando desmaiei...
- Na hora em que esse irresponsável aparecer, vamos ter uma conversa muito séria! Pode deixar
comigo. Ele vai ver...
- Deixa pra lá, mãe. Desencana. Sábado é o aniversário dele, lembra?
- Mais um motivo, ora!
- E você, onde estava? Ligaram pra faculdade também.
- Dei minhas aulas e fui pagar uns papagaios, antes do banco fechar. A fila tava uma loucura.
Mamãe pediu que eu trouxesse um chá gelado pra ela. No segundo gole puxou-me para seus braços
e ficamos as duas deitadas no sofá: ela alisando os meus cabelos e eu admirando a beleza de suas
unhas pintadas. Senti seu perfume e gostei de ficar também um pouquinho embriagada com aquilo.
Aí mamãe apagou o cigarro e, como se adivinhasse o que eu ia perguntar, falou:
- Tudo ia muito bem, Lara, aos trancos e barrancos, sabe como? Então resolvemos separar as
escovas de dente... Que dói, dói! Eu sei. Mas não é necessário transformar sua vida numa novela
mexicana por causa disso. Não é a toa que um casal chega à conclusão de que não dá mais pra
viver junto. E, se isso acontece, acaba sendo a mais uma solução do que um problema, sacou?
Adorava quando ela falava as minhas gírias. Era uma mulher muito inteligente, letrada, mestre em
psicologia. E tinha sempre a palavra certa no lugar certo. E tudo nela combinava: os cabelos à belle
époque, castanhos, os olhos castanhos, a pele morena clara, o rosto anguloso, os óculos
arredondados, o colar de pérolas e as covinhas no rosto, que eu também herdara. O mais bonito
nela, no entanto, eram os gestos. Como ela sabia falar com as mãos!
Mas dessa vez ela estava com as mãos ocupadas. Uma nos meus cabelos e a outra na xícara de
chá, no cigarro, ou no cinzeiro.
- Sabe, Lara? – ela continuou. – O Conceito de casamento eterno mudou. Mudou para ―eterno
enquanto dure‖, sacou? E isso é positivo. Ninguém precisa ficar casado por obrigação, coisa que
antigamente as pessoas nem contestavam. Apesar disso, a idéia de segurar a barra da separação
da família é a mesma, porque os sentimentos não mudam com o tempo, entende? Amor, saudade,
ciúme são os mesmos desde que o mundo é mundo.
- Durante muito tempo eu não consegui me concentrar nas aulas, mãe. Acho que até hoje acontece.
Fico pensando que vocês ainda vão se acertar, se juntar de novo. E demorei pra me acostumar com
a imagem de vocês dois solteiros. Pensei até em ligar pro papai falando que tava com dor de
garganta, febre de trinta e nove graus, desmaios, convulsões... tipo chantagem emocional, sacou?
Aliás, pensei até em me... deixa pra lá...
- Separação não é abandono, filha. Com o tempo você vai entender que eu e o Piotr apenas
deixamos de ser um casal. Mas ele vai continuar sendo o seu pai, e eu a sua mãe, pro resto da vida.
- ainda bem que vocês não meu usaram pra fazer chantagem um com o outro, né? A Rê, coitada,
fica superconfusa, complicada, e até agressiva. O pai dela fala horrores da mãe, pra Rê ficar do lado
dele. Depois a mãe desmente tudo, e ela acha que o culpado é o pai... e vice-versa. Ela pensa que
vai pirar.
- A melhor forma de lidar com essa loucura dos pais é não tomar as dores de nenhum, nem ficar
procurando culpados, entendeu?
- Aprender a separar os papéis, não é? Como no teatro.
- Isso mesmo. Veja bem: o marido da sua mãe é um, o seu pai é outro, embora sejam a mesma
pessoa. Assim como a mulher do seu pai é diferente da sua mãe na maneira de pensar e agir,
entendeu? Nada de ficar dividida!
Esperei mamãe tomar outro gole de chá.
- Vou te contar um segredo, mãe.
- Conta...
- Pouco depois da separação, papai me chamou para ir ao cinema, só nós dois, lembra?
- Acho que sim. Faz muito tempo, né? Você tinha dez...
- Faz cinco anos... Então papai comprou pipoca, entramos no cinema, conversamos, rimos, ele me
contou piadas e aí, quando as luzes se apagaram...
- Ai, meu Deus! Não vá me dizer que... – mamãe se assustou.
- Pouco depois que as luzes se apagaram, mãe, numa hora em que a cena era muito clara, muito
iluminada, sabe?
- Conta, Lara! Conta logo!
- Eu vi o papai dando a mão pra uma moça, que estava sentada na cadeira do outro lado, perto dele.
E ficaram assim durante o filme inteiro, de mãos dadas, eu percebi. E quando o filme acabou, a
moça saiu por um corredor, nós saímos por outro, e fiquei muito tempo pensando porque o papai
fizera aquilo? Se era uma namorada dele, por que ele não me apresentou ela, mãe? Seria mais
fácil...
Mamãe suspirou, aliviada:
- Talvez não, filha. Você iria sentir muito mais ciúme do que já havia sentido, tenho certeza. E olha,
se acontecer de novo, abra o jogo, ou se apresente pra ela. ―de oferecida‖ mesmo... Ela não vai
tomar o meu lugar, entendeu? Seja quem for... E tem outra, filha: antes de sermos pais, somos
homem e mulher. Pense nisso, pra não deixar que o egoísmo e o ciúme tomem conta de você,
querendo a solidão para os dois. Temos o direito de reconstruir nossas vidas, você não acha?
- Claro, mãe. Tá melhor assim, pensando bem. Mas vocês não brigavam muito, né?
- Um pouco, filha. Só não deixamos as coisas entornar, sacou? Senão, seria pior pra você. Mais do
que já foi até agora.
- A Marcela, coitada, os pais dela trancavam a porta do quarto e brigavam baixinho, achando que ela
não estava ouvindo. Ela ouvia tudo e ficava na pior. E, depois que se separaram, usavam ela pra
mandar recados um pro outro. Mas quando eles resolveram juntar os trapos de novo, com outra
pessoa, a Marcela ficou com dois pais, duas mães, e mais três irmãos, além dos dois que já tinha.
- E aí?
- Aí que ela acha o maior barato agora. Os novos irmãos são superlegais, sabia?
- Não te falei? Nem tudo são espinhos nesse arremedo de tragédia grega! Tá vendo?
- A Marcela agora tem duas casas. Quando enjoa de uma, vai pra outra.
- Massa.
- E você, já tem namorado, mãe?
- Nada, filha. Nada sério, só um fã.
- Confessa...
- Sério mesmo. Quando pintar um cara legal, pode até ser... pode ter certeza, eu trago ele pra te
conhecer, tá?
- Tá. Eu te amo.
- Eu também, filha.
- Quer mais chá?
- Não. Vou tomar um banho e relaxar. O dia hoje foi terrível, torturante. Não como o seu, é claro. Mas
estou estressada. O pagamento dos extras não saiu. Tou me sentindo um trapo, uma bolha.
- Uma bolhajapa?
- Como você chama a Lu, né?
- É. É como se fosse minha irmã, mãe. É minha melhor amiga.
- Rá-rá! Eu sei pela conta do telefone...
Mamãe beijou-me e , antes de entrar no chuveiro, falou:
- A propósito, filha. Me desculpa por ter chamado seu pai de irresponsável? Ele não é isto, isto é...
ele sempre foi assim mesmo, desligado de tudo, meio poeta, meio sonhador, meio boêmio, sabe
como? Não é a toa que vive no meio desses ―artistas‖ malucos, por aí...
- Tudo bem, mãe. Eu gosto dele assim mesmo.
- E aí? Já pensou no que vai dar de presente, no aniversário? Que tal um par de meia? Bem bacana.
- Tou pensando, mãe. Tou pensando em algo pra ele nunca mais esquecer de mim. Meia não...
- E se ele não voltar do Rio até sábado?
- Ele volta, mãe. Eu acho que dessa vez ele volta...
Capítulo 16

1º de agosto HELP!!!!
(noite de lua cheia)

(20h30) – Querido diário:

Sou uma menina de quase quinze anos, já tenho um metro e setenta de altura, magrela – nas férias
eu engordo três quilos -, morena clara, olhos grandes e pretos, e algumas espinhas no rosto, além
das sobrancelhas grossas - de taturana. Gosto de usar batom vermelho e roupas pretas, tipo “mulher
fatal”.
Dizem até que sou sexy, por causa dos meus lábios carnudos. Mas uso aparelho nos dentes e
óculos: por isso não acredito nisso.
Sou também muito romântica e sonhadora, como meu pai. Mas também sou muito esperta quando
preciso.

AS 11 COISAS + CHATAS DA VIDA PRA MIM SÃO:


1 – acordar cedo;
2 – telefone ocupado;
3 – ter de ir embora no melhor da festa;
4 - gente esnobe;
5 – não ter irmão ou irmã;
6 – pai que não aparece;
7 – menino B-A-B-A-C-A;
8 – prova de matemática;
9 – FOFOCA!!!
10 – lavar louça;
11 – ter de fazer vestibular.

AS MELHORES???
1 – escrever;
2 – tocar violino;
3 – conversar com a Lu;
4 – sorvete de amora;
... e o Gu.

(21h15) – Querido diário:

O meu pai é um cara que vive metido no meio dos artistas. De vez em quando ele dá uma de
empresário de cantores, grupos de rock, etc. (Ele tem um pequeno escritório com uma secretária, a
Marizete, que vive discutindo com ele, pra ele não chegar atrasado.)
Outras vezes o meu pai dá uma de agente literário, de algum escritor famosos, e outras eu nem sei
onde é que ele está quebrando o galho. É um sujeito que viaja muito,, e sempre se esquece de me
telefonar de onde está. Mas quando ele aparece eu dou pulos de alegria.
(Acho que vou ver televisão.)

(23h) – Querido diário:

Nem sei se ainda tenho idade pra ficar fazendo diário, sabe? Nunca fiz um. E acho que isso é coisa
de menina mais nova, naquela fase de “aborrecência” , no máximo uns treze anos, sacou?
Mas é que o Dândi foi pra lavanderia, de tão encardido que estava. Como ele é o meu “confidente
particular antes de dormir”, e agora já não está mais aqui, então apelei pra você. (E a televisão só
tem novela e filme chato.)
O meu dia eu não vou contar porque já contei tudo pra Lu e pra mamãe.
É que estou com um superproblema de ordem sentimental. E é possível até que eu pegue uma
paternalose aguda por causa disso. Mas, pra resolver esse, eu tenho outro megaproblema, que é de
ordem econômica, e não sei como fazer, porque a grana tá muito curtinha e eu não quero dar um par
de meias – de presente de aniversario – pro meu pai, sacou? O dinheiro da mesada também tá
quase acabando: gastei tudo nas férias, em bobagens.
Moeda corrente agora, só tenho passe de ônibus.
O que posso fazer? Me ajude a pensar.

(meia-noite) – Querido diário:

Acho que você é muito chato. Aceita tudo sem dar palpite.
O Dândi pelo menos, conversava comigo antes de dormir.
Já estou bocejando.
UUUUUUUUUUÁÁÁÁÁ´rrrrrfff...
Até amanhã.
Boa noite.
Capitulo 17

SEGUNDO DIA DE AGOSTO: terça-feira


Aula!

Logo de manha, na entrada do colégio, o Xoba já me deu uma cantada. Mando ele se ralar. Não
adianta. Continua aquele blábláblá: fala da moto dele, da prancha de surfe dele, do carro novo do pai
dele, enfim, dele.
Pra encurtar o caminho, dou um role naquela ―falta de conteúdo‖:
- Xoba, se você precisar de um mecânico, tenho um primo que encara qualquer máquina, tá?
- Qualquer motor? Envenena?
- Envenena numa boa, cara. Até montou um carro pra ele mesmo: usou as rodas de um Tempra, o
motor de um Ômega, a transmissão de um Santana e a carroceria de um Escort – os olhos dele
brilharam. Se interessou:
- Pó, o cara deve ser bom mesmo! Tem o endereço?
- Tenho.
- Mas como é que esse seu primo terminou tudo, com tantas partes diferentes desse carro?
- Na cadeia!
Xoba ficou arara. Aí deu um branco nele, se atropelou e acendeu um cigarro, nervoso.
- Um dia você me paga, magrela! Dá um mole comigo pra você ver. Se bobear, dança.
- Qualé, Xoba! Vê se cresce, cara! Pra mim você não passa da versão masculina da loraburra!
Derrotado, o cérebro de ameba se mancou. Pegou seu umbigo no chão e saiu plantando bananeira
portão adentro, mexendo e assobiando pras meninas que passavam. Caso perdido.
Mas ai o Pri-Pri veio levar um papo comigo. Papo legal, esticado, sem abobrinha. O Pri-Pri era
desses que não deixava cair a linha. E me falou como foi o lance do dia anterior, quando a galera se
mandou pro shopping pra ver o Gustavo tocar:
- Precisava ver a aparelhagem nova da banda, Lara! Sumpler, as caixas acústicas novas,
estroboscópios, baixo de braço duplo, Lara, arrasou! Já fizeram uma fita demo pra tocar na rádio,
sabia?
Isso eu já sabia: o Gu tocava e cantava como um anjo, como um deus! E ele – só ele – conseguia
tirar um agudo na guitarra que me deixava simplesmente arrepiada.
- E lá no shopping pintou um cara, Lara... um coroa assim meio malucão, rabo-de-cavalo, nome
esquisito, dizendo que era empresário e tava afins de levar a banda pro Rio, gravar um CD lá, e
coisa e tal... Mas o negócio ficou assim meio laranja, sabe como?
Enquanto o Pri-Pri falava, por segundo desliguei o plug e fiquei ali parada no pátio, marcando touca,
pensando no Gustavo de novo, no seu rabo-de-cavalo dourado, nos seus olhos verdes e até no seu
senso de humor.
Gustavo tinha mania de brincar com as palavras, com as frases feitas, dando outro sentido a elas.
Viva dizendo: ―Se alguém te der um limão, faça dele uma laranjada‖. Eu achava isso lindo!
Principalmente quando ele fazia uma pausa e acrescentava: ―... mas com açúcar, pra adocicar o
espírito...‖
Era um modo, uma filosofia de vida.
Uma vez, das raras vezes em que conversamos sozinhos, rolou um papo sobre óculos, por causa
daquela musica do Paralamas: Eu uso óculos. Me perguntou se eles me incomodavam muito. Eu
disse que sim, que meu maior sonho era ganhar um par de lentes de contato verdes. Ele sorriu,
enfiou as mãos no bolso da jaqueta e falou, com aquele jeito seguro:
- Olho por olho, lente por lente, Lara, melhor ver o mundo como você já faz. Você vê as coisas ―por
dentro‖, sabe como? E eu admiro muito isso...
- Mas aqui fora tá muito brabo, Gustavo, muito descolorido – argumentei.
- Mas não será uma lente de contato verde que vai botar cor nessa brabeza toda que você vê,
sacou?
Eu quase tive um treco. Com meu coração aos pulos, ele arrematou:
- E depois, você tem os olhos negros mais lindos que já vi. Pra que tentar clarear a sombra, se os
olhos que guardam a sombra já são iluminados?
Aí eu quase desmaiei. Me deu um branco, tremi o corpo todo, deixei os livros caírem no chão e,
quando eu já tava quase me recuperando do vexame, ele perguntou?
- Você continua escrevendo?
- Acho que sim... isto é, claro. Claro que sim – engasguei.
- E o violino? Continua?
- Também.
- Faz uma letra pra nossa banda, então. Se o pessoal aprovar, a gente bota musica, topa?
- To-topo... – continuei catando milho com a língua.
- Então a gente se vê por aí, tá legal?
- Tá. Assim que tiver pronta eu te mando... isto é, entrego pra você.
- Combinado?
- Combinado, Gu. Posso te chamar de Gu?
- Pode. Posso te chamar de Lá?
Então ele se foi. E fiquei tão apaixonada que se ele perguntasse naquela hora mais um montão de
posso isso, posso aquilo, eu só diria: pode-pode-pode...
Uns tempos depois entreguei uma letra pra ele, tipo coisa que dava pra fazer um rock pauleira muito
interessante. Pensei até em botar o titulo de Coquetel molotov, porque andei misturando tudo o que
vinha na cabeça, meio sem lógica, coisa bem minha, explosiva, naqueles tempos...
Mas o tempo passou (uns dois meses) e o Gu nunca mais falou sobre o assunto. Acho que não
gostou da letra. Fazer o quê?
- Larissa? – o Pri-Pri chamou.
Tava na hora de desligar o plug do Gustavo.
Suspirei fundo.
O Pri-Pri, ao meu lado, continuou falando da esticada da turma do shopping. E eu, de tanto pensar
no Gu, comecei a procurá-lo com os olhos entre a rapaziada do colégio. Necas. Dei uma geral no
varandão do segundo andar, varri as quadras, a lanchonete...
Aí a Rê chegou. Falou que tava na maior deprê, que ―ficou‖ com um carinha que ela conheceu na
escada rolante do shopping, coisa e tal. Eu tinha o maior medo dela ficar grávida, de bandeira. Então
disse a ela pra tomar cuidado com aquela ―ficação‖.
- Hoje em dia, Rê, qualquer carinha de treze, catorze anos já faz coisas que você nem imagina. Não
bobeia!
- E daí, Lara? Não quero nem saber!
- Você ainda vai se dar mal, Rê! Vai ver!
- Tô nem aí, Lara! A dondoca é que parece uma freira com essa historia de amor platônico,
romantismo e outras babaquices. O Kabrum me mostrou a letra que você fez pra banda do Gusta...
Esbravejei:
- O que você tá querendo insinuar, sua lambisgóia?
- Que você é careta, Lara. Os gatos tão aí é pra gente miar mesmo, morou? Se eu fosse você, já
tinha ―ficado‖ com o Gusta. Ele é lindão!
Aí eu rodei a baiana:
- Cascavel! Jararaca!
Nessa hora o Culta chegou. Me contive pra não soltar um pombo-sem-asa na cara dela. Mas o Culta
percebeu o lance e já foi logo detonando um montão de abobrinhas culturais.
Começou com o mesmo lero-lero do dia anterior, sem o menor desconfiômetro: Nostradamus, Paulo
VI, telescópio, bruxaria, iceberg, tudo. Tudo misturado naquele liquidificador de perdigotos que ele ia
tirando da mochila cerebral. Batia, batia e no final: suco de cuspe. Falei:
- Ô Culta, vê se não aluga mais, tá?
Ele beijou a minha mãe, fez uma mesura e se ajoelhou no chão feito um bobo-da-corte, um valete:
- minha rainha da Rússia, princesa de Baikonur... Por você eu até encaro um extraterrestre, se ele
pintar na minha frente!
Eu nem tchum. Que saco! Continuei procurando o Gustavo pra cá, pra lá, necas!
Então a Lu apareceu pra me salvar do ET de cuspe:
- Lara! Já descobri o que vamos fazer pra levantar a grana...
Capitulo 18

- Que grana, Lu?


Eu tava tão enrolada nos meus pensamentos que nem me lembrava mais do meu terrível problema
paternalístico.
- Uai, Lara... a grana pra gente comprar um presente pro seu pai, esqueceu? É aniversario dele
sábado.
- É mesmo, Lu... eu tava meio distraída, pensando no Gustavo. Por que será que ele não veio?
- E nem virá, Lara. Liguei pra ele ontem à noite e tenho uma noticia ótima pra você.
- Você ligou pro Gu, sua falsa? Sem a minha permissão? Tá querendo paquerar ele, é? Minha
melhor amiga? E eu imaginando que, imagi-gi-nando que...
- Deixa de bobagem, sua possessiva! Tá com ciúmes, é?
- Claro, ué... o que você tá tramando contra mim, hein? Coloque-se no seu lugar!
- Calma, Berioska! Calma... só liguei pra saber se ele tinha a letra do Imagine, do John Lennon. A
mamãe tá querendo decorar a letra, entendeu? É pras plantas...
- Meio esquisito... sua mãe não canta, só assobia... mas dessa vez passa. E daí? O que rolou?
- Rolou que o Gustavo não vem hoje porque vai viajar pro Rio. E disse que vai dar uma festa pra
galera toda, na casa dele, sexta-feira à noite.
- Uma festa? Tá brincando!
- Sério, verdade mesmo! Ele pediu pra gente, eu, você e a Clarissa, espalhar a noticia, convidar a
turma. Disse que não vai ter tempo de fazer isso por telefone. Tem que instalar as caixas de som,
testar a aparelhagem nova, afinar os instrumentos, essas coisas... E ainda tem a viagem.
- Então é por isso que ele não veio?
- É. E mais: a festa vai ser à fantasia. Serve qualquer uma, inclusive fantasia nenhuma, pra quem
quiser, ou não quiser...
- Ahhaaaaannnn...
- E tem mais: ele me disse, em off, veja bem... eeemmm ooffff, que vai fazer uma surpresa na festa,
um segredo. E eu tenho um leve palpite de que essa surpresa, esse segredo, é pra você. Mas é só
um palpi-te, tááá?
- Uma surpresa, um segredo?
- E tem mais: eu contem o nosso problema pra ele.
- Contou?
- É. Só falei que a gente tava dura e precisava levantar uma grana. E que eu ia segurar essa onda
pra você, entendeu?
- Você não devia ter feito isso, Lu. É problema só nosso, alias, meu...
- Daí propus a ele a minha idéia...
- Sua idéia? E qual é?
- Sabe aquela barraca grandona que era do meu pai, quando ele fazia acampamento pra colher
plantas nativas? Já te mostrei, lembra?
- Lembro... Aquela que fica do lado do pessegueiro, não é?
- Isso mesmo. Pois bem, a mamãe liberou ela pra gente. Vamos armar a barraca no gramado da
casa do Gu.
- Pra quê?
- Aí é que entra a minha idéia: a gente se fantasia de cigana ou coisa parecida.
- E daí?
- Daí, a gente vai ler a mão da galera, entendeu? Se quiser, a gente pode até botar carta de tarô, I
Ching, bola de cristal, ler horóscopo, vender sorte, o escambau!
- Ahhhhhãããããñnnnnn...
- Com a facilidade que você tem pra escrever, pode até vender uns poemas, uns bilhetes de amor,
conforme o gosto ou o ―poblema‖ do freguês, entendeu?
- Lu, não é ―poblema‖, é pro-problema, entendeu?
- Entendi... e você, entendeu?
- Lu, você não existe!
- E... na entrada da barraca a gente coloca uma tabela de preços, sacou? Tipo assim: leitura de
mãos: 50 centavos; bilhetes de amor: 1 real; horóscopo: 40 centavos; poema: 1 real e meio... e por
aí vai...
- Lu, você é genial! – vibrei. – Só você mesmo, bruxinha, pra bolar um negocio desses.
- Se deixar comigo, Lara, a gente levanta esse dinheiro na sexta-feira mesmo, na festa do Gu. Já
combinei tudo com ele...
- E como vamos fazer pra bolar essas coisa todas? Não vai dar tempo. Eu não saco nada de tarô, I
Ching, bola de cristal, ler a sorte nas mãos...
- Essa parte, deixa comigo. Tenho experiência no assunto. Mole pra nós! A outra fica por sua conta:
os bilhetes de amor, os poemas e o horóscopo.
- O horóscopo? Isso eu também não sei, Lu.
- A gente copia de uma revista. É tudo igual mesmo, ora, o mesmo blábláblá.
- Como assim?
- Simples: você leva doze papeizinhos. Um horóscopo pra cada signo, com as previsões do mês já
escritas ali.
- Mas tem um problema, Lu: descobriram, recentemente, o décimo terceiro signo, sabia? Um tal de
Esculápio, na constelação de Ofiúco, se não me engano...
- Mole pra nós... – ela não se apertava com nada, impressionante! – A gente leva treze papeizinhos
então, vai ser até melhor: CONHEÇA O SEU NOVO HORÓSCOPO!!! Todo mundo vai querer saber
o seu NOVO SIGNO, não vai?
- Acho que vai.
- Pois então? O freguês vai ter que falar a sua data de nascimento, pra saber o seu novo signo. Você
consulta a tabelinha e lê as previsões.
- Tenho uma idéia melhor: a gente podia xerocar várias previsões dessas, pro freguês levar tudo por
escrito, no papel.
- Ótimo! Você já está se revelando uma excelente administradora de empresas! E isso não vai pesar
no nosso capital de giro.
- Capital de giro?
- É. O dinheiro que vamos ter que investir no negocio. É pouca coisa. Te empresto, se você não
tiver. É só pra comprar uns penduricalhos, uns balangandãs pra decorar a barraca, e os xérox.
- E quanto aos poemas, os bilhetes de amor? Como é que eu vou escrever alguma coisa se não
estiver inspirada na hora, se não pintar um insight, o estalo da criação?
- Isso é frescura, Lara! Deixa esse papo de inspiração pras letras de musica, pras redações na aula
da Graça, pro seu livro, entendeu? O negocio é faturar, fa-tu-raaar, entendeu?
- Como assim?
- Com os poemas e os bilhetes você faz a mesma coisa que o horóscopo: bola antecipadamente
umas cinco ou seis situações, decora, e lá na barraca você escreve. Ou então já leva tudo escrito
com a sua letra. Na hora você finge que tá escrevendo, enrola o freguês, e depois saca o bilhete, ou
o poema, debaixo da mesa.
- Mesa?
- É. Já combinei com o Gu. Vamos dividir a barraca em dois compartimentos. Um pra mim e outro
pra você. Uma mesa pra mim, outra pra você, entendeu? A turma do Gu vai montar tudo pra nós,
inclusive a divisória e a iluminação da barraca.
- É?
- O Liga-Tripa, aquele da bateria, até ficou de passar lá em casa pra levar a barraca, as mesas e as
cadeiras. O pai dele tem uma caminhonete. E o Kabrum, dos teclados, também vai ajudar.
- Lu, você é mágica, sabia? Maga! Você é maga, MAGALU!
- Modéstia as favas, madame, também sei me virar. Você faria o mesmo por mim... Agora, só tem
uma coisa...
- O que, Lu?
- Você já pensou no presente do seu pai?
HELP!
Ainda não tinha me ocorrido nenhuma idéia.
Livro não valia: o meu pai já tinha lido até o dicionário do Aurélio, e de trás pra frente! Disco? CD?
Nem se fala: ele ouvia tudo, era eclético pra caramba!
Roupa?
Podia ser. Eu podia comprar um terno e uma gravata: nunca vira meu pai de terno e gravata. Ele
detestava! Mas acho que andava precisando dessa indumentária, por causa das viagens e reuniões
com executivos.
Por outro lado, seria uma coisa realmente inesquecível, mesmo que fosse pra dar raiva nele: se
lembraria de mim por isso e-terno-mente... (Como já disse, adoro trocadilhos!)
Detonei:
- Lu, o barato vai ser um terno. Meu pai nunca usou um, nem pra casar com a minha mãe. E acho
que ele vai ficar lindo! Chega daquelas roupas largas, coloridas, folgadonas, tipo turista americano
no Havaí ou hyppie songamonga da década de 50, 60. que tu acha?
- Grande sacada, Lara! Mas... e se ele não usar? O terno vai ficar mofando no fundo do armário
dele? Não é meio furreca?
- Mas, pelo menos, vai se lembrar de mim toda vez que for trocar de roupa.
- Claro! E se você quiser, Berioska, posso te ensinar a dar os nós na gravata. Quando ele precisar,
vai ligar pra você imediatamente, até lá do escritório mesmo, aposto!
Ela fingiu que falava ao telefone e imitou o meu pai, com voz grossa:
- Lara, tenho uma reunião com os japoneses... Você sabe o nó Windsor? Lara, tenho um almoço
com os americanos... Você sabe o nó Semi-Windsor? Larissinha, minha querida, tenho que sair com
uns ingleses... Você sabe o four-in-band?
- E você sabe dar esses nós todos, Lu? – me espantei.
- Todos não, porque são mais de cento e oitenta e oito. Mas executivo nenhum vai passar vexame.
- E como você saca isso, Lu? Você não tem pai, nem irmão.
- A gente não precisa ter uma coisa pra saber dela. Um dia a gente pode precisar.
- Nossa! Não sabia que você era tão prática!
- Prática não, prendada! Tou pronta pra me casar com um samurai, sabia?
Rimos juntas. Completei:
- Ou um ninja executivo, Lu. Com aquela pasta ―James Bond‖ enoooooooooorme...
E, enquanto a gente quase fazia xixi na calça de tanto rir, a sirene do colégio tocou e entramos pra
sala.
Capitulo 19

Na primeira aula já tava o maior tititi.


O Patarra, de biologia, quase não conseguiu agüentar o tranco, tamanho o zunzunzum sobre a festa
do Gu. Na lousa, ele tentava explicar como seria o programa da matéria dele até o fim do segundo
semestre.
Aliás, primeiro dia de aula de segundo semestre é sempre assim. É só abobrinha, conversa mole,
professor tentando animar a turma pro resto do ano, a turma querendo sacar qual é a dele dali pra
frente, e coisa e tal.
O Patarra era legal, mas de pavio curto.
Falava de divisão celular, organização dos vegetais, dos animais, dos vertebrados, artrópodes,
protozoários, funções dos seres vivos, Leis de Mendel, patati-patatá... até ele não agüentou a zoeira:
- Peraí, gente! Dá um tempo, tá legal? Deixa eu botar o programa no quadro. Vocês anotam, a gente
troca umas idéias, vê as duvidas, quem tá mais fraco nisso, naquilo... Depois eu libero, falou?
Aí a turma se aquietou um pouco: quarenta monstrengos pra controlar, não é mole!
Mas tudo ia bem até que ele resolveu apagar a parte de cima do quadro. Era muito rápido: The
Flash, seu apelido. Num piscar de olhos foi limpando tudo. Só que, de repente, o apagador voou da
mão dele e acertou em cheio a cara da Rê, que gostava de ficar lá na frente, pra se mostrar.
Foi uma gargalhada geral. E ela ficou louca da vida, com a cara toda branca, empoeirada de giz.
Me senti vingada: o pombo-sem-asa que não dei nela... A Lu já havia comentado comigo quando
entramos na sala de aula, e eu cochichei o episodio:
- Não fica dando corda pra Rê não, Lara! Ela é dessas que abaaaaaaandonam as amigas toda vez
que pinta um carinha na sua vida.
- E é venenosa – completei.
- Fo-fo-queira... – a Lu arrematou.
De modo que o Patarra pediu desculpas, meio sem jeito, escreveu uns esquemas na lousa, esperou
a turma copiar e liberou a sala quinze minutos antes do sinal.
Aí foi um abafo só.
Tess falou que ia fantasiada de Mascarada de Veneza; Mariana, de Camponesa holandesa; o Pri-
Pri, de Homem-rã; a Dri, de Cleópatra; Ale, de Árabe; Guilherme, de Kamikaze; Marcela, de
Odalisca; Andréia, de Rapunzel – porque usava tranças; e Pat, de Cárie dentária...
- Cárie dentária? – todos perguntaram, boquiabertos.
E a Pat, na maior tranqüilidade:
- É que a minha mãe é dentista, gente! É só eu vestir um dos uniformes brancos dela, botar a
marcara cirúrgica e pintar umas manchas pretas por cima...
- Aaaaaaaaaaaaaaahhhhhhhhhh...
Admiramos a presença de espírito da Pat. E mais: o senso prático.
A Clarissa – minha futura cunhada – continuou:
- E eu de garçonete: vou ter que ficar por conta dos comes e bebes mesmo.
E a Liubiana:
- Vou de Domadora de leões!
O Bolanove emendou, dando uma espécie de rugido:
- Grrrrraaaaaaauuuuuurrr! Então eu vou de Leão da domadora, gatinha!– Ele andava caidaço por
ela.
Pura pretensão, porque, pelo andar da carruagem, não ia ter nenhuma chance.
Tá certo que o Bolanove era muito bom amigo, bom caráter, conselheiro, e o único da turma que já
trabalhava: era balconista de uma loja de grife no shopping. mas o problema é que ele era muito
gordo, pesava noventa e oito, noventa e nove quilos! De perfil, parecia mesmo um número nove.
E a Liu tava arrastando asa era pro Pablo. E o Pablo era alto, esbelto, cavalheiro, bom de papo,
ótimo dançarino, jogava futebol e torcia pro Atlético: tudo coisa que a Lu vidrava. E, pra completar, o
Pablo tinha uma cabeleira linda, amarrada na nuca. Parecia um toureiro espanhol pode? Nem
precisava fantasia: era só amarrar uma faixa vermelha na cintura.
Só não gostei muito foi da decisão da Carolina, minha outra grande amiga da escola (e também fora
dela): resolveu não ir à festa. Motivo? O Helger tomou coragem e a convidou pra um cinema. Pode?
Quem sabe agora, finalmente, aquele chove-não-molha dos dois não terminasse? O filme? A Carol
nem sabia o nome. Mas isso não importava. Importava, sim, ela estar com o Helger, nosso colega (e
amigo do peito) do inglês. O fato é que todo mundo torcia pra que os dois dessem certo,
namorassem, de verdade.
Mas aí o Culta falou que ia vestido de Astronauta ianomâmi! A galera não entendeu muito bem, mas
riu. O Juliano brincou:
- Vai de Telescópio... ou de Paracelso mesmo...
- Tenho uma idéia melhor, Culta! – Julius gozou. – Você ia ficar de-ma-si-a-da-men-te ótimo
fantasiado de Mochila!
O Culta se ralou, mas deu o troco:
- ... E o Juliano de Camarão, ou melhor, Leander potitinga! E o Julius... bem – pensou um pouco - ...
o Julius ia ficar perfeito de Pão-de-ló, ou Marta Rocha, ou melhor... de Drosophyla melanogaster!
E antes que eles perguntassem ―o que é isso‖ – e começassem outro chove-não-molha com o Culta
– a Rê detonou que não ia fantasiada de nada. Ia ―dela‖ mesma.
- Fantasia é pra quem tem falta de personalidade! – a bandida sentenciou.
Mas aí entrou a Graça, professora de português, e botou ordem nas coisas:
- Gente! Atenção! – bateu palmas, franziu o cenho. Era baixinha, bonitinha, de narizinho arrebitado,
cara de menina, mas muito brava. E já foi logo dando orações subordinadas substantivas. E pra
arregaçar a cuca da rapaziada ainda lascou uma revisão de regência verbal.
A turma então deu um tempo. Se concentrou. Anotou daqui, anotou dali, perguntou, respondeu, e
dá-lhe gramática! Uf!
Só na hora do recreio é que o banzé da festa prosseguiu.
Mas eu nem saí pra ir à lanchonete. Dei umas moedas pra Lu me trazer uma coxinha, uma empada
e aproveitei o tempo para ir rascunhando alguns bilhetes de amor. ―Tempo é dinheiro‖, pensei.
―Tenho que cuidar do meu futuro empresarial...‖
Então me veio uma idéia: a gente podia fazer um correio sentimental. Assim: o pessoal passava na
barraca, eu escrevia a declaração de amor –todo mundo tinha pelo menos uma paquerinha com todo
mundo – e o Culta, mediante uma módica porcentagem nos negócios, levaria e leria o bilhete no
microfone do Gu, nos intervalos, entre uma musica e outra.
Ficaria muito mais excitante, mais dinâmico.
Quando a minha sócia chegou com os salgadinhos, apresentei a idéia pra ela.
- Genial, Lara! Não te falei? Você tem um futuro enorme no ramo dos negócios!
Depois do recreio vieram mais duas aulas: química, com o Galileu, e geografia, com o Xande.
Química eu detestava!
E a única ―química‖ que me interessava naquele momento era a do amor: as transformações do
amor, os elementos da paixão, as substâncias do olhar, as misturas da alma, as propriedades, as
leis, os tratados e os compostos de um beijo. Mais nada.
E a geografia?
Eu adorava o Xande, já tinha me apaixonado platonicamente por ele, como já falei. Mas nem prestei
atenção.
Enquanto o Xande viajava pelas planícies geladas da Sibéria, onde tinha muito petróleo, eu cuidava
do meu poço artesiano de palavras.
Escrevi uns bilhetes pro correio sentimental, bolei uns versos e comecei a pensar nas piadas e
adivinhas, que eu tencionava dar de lambuja pro freguês caso ele se interessasse muito na
brincadeira: oferta da casa.
Durante aquele tempo fiquei tão absorvida com o trabalho que nem ouvi a sirene do colégio tocar e a
Lu me chamar. Me cutucou:
- Ô Lara, já acabou a aula. Vamos nessa!
- Já? – perguntei.
- Já, uai! Vamos embora. A galera toda se mandou.
Botei o ponto final no ultimo bilhete e saí coma Lu.
No portão, a mãe dela esperava dentro do carro, ouvindo Imagine, do John Lennon. De vez em
quando ela cantarolava baixinho acompanhando o ritmo da musica. ―Era verdade‖, pensei. A Lu não
mentira. Ela também cantava.
Então dona Mishi ofereceu carona. Aceitei. Da casa dela até a minha era só descer umas ladeiras.
No trajeto, combinei:
- Lu, tou pensando...
- Você pensa demais!
- Acho que vou ficar a tarde toda no toco. E a noite também. Nem me telefona, tá?
- Por quê?
- Preciso escrever essas coisas todas, me inspirar, sabe como? O tempo tá curto, muito curto.
- O tempo sempre muito curto, mas tudo bem, né? Você é a poeta...
- Pensar e falar é fácil, mas escrever não, Lu! Escrever é se revelar, é revelar os outros, entendeu?
- Tá bem. Mas e os horóscopos? Como a gente faz?
- Não sei. Tou meio perdida nesse ponto.
- Faz assim: bola toda a sua ―inspiração‖ hoje de tarde e hoje de noite, tá? Amanhã, depois da aula,
ou depois do almoço, você vai lá pra casa. Tenho um monte de revistas. Como te falei, a gente copia
os melhores horóscopos, os mais alto-astral, e depois é só xerocar.
- Massa! Aí a gente aproveita e prepara a tabela de preços.
- Claro! Isso é o principal.
Dona Mishi parecia rir de nós, por dentro. Devia estar pensando na nossa nova ―troca de
impressões‖, isto é, im-preções. Emendei o pensamento dela com o meu: ―...nos tempos bicudos que
atravessamos, nossos precinhos até que serão bem suaves, bem camaradas...‖
- Quem sabe a gente não abre um crediário, Lu?
Lu riu. O carro chegou. Beijei as duas. E corri pra casa.
Capitulo 20

Lar, doce lar! Lara, doce Lara...


Astral lá em cima.
Abro a porta e o Júlio Verne vem se enroscar nas minhas pernas. Ganha um beijo. Aghata Critica,
com ciúmes doentios, fica nadando nervosa, tentando saltar do aquário. Me preocupo de novo: está
muito só sem um peixe ao seu lado.
Ponho comida pra ela. ―Será que está querendo se suicidar?‖, penso, ―como eu, não sabe do seu
pai...‖ Já ouvira dizer, ou li não dei onde, que os peixes vermelhos se suicidam por motivos
inexplicáveis. Talvez por solidão, paranóia, stress, como os seres humanos. Os golfinhos também
fazem isso...
Passo os dedos em suas barbatanas, coço a barriga. Se acalma. Me consolo: ―É só carência
afetiva...‖
Ligo a secretária eletrônica e levo um susto. Reconheço a voz:
- Fiotinha, tô morrendo de saudades de você! Já recebeu minha carta? Chego do Rio mais breve que
você imagina, tá? Tenho uma bela surpresa... Beijilhões! Tchau! Te amo!
É o papai! Meu coração dispara. Pulo de alegria.
Help! Ele tá chegando! Ele tá chegando! Ai, meu São Judas Tadinho...
(Todo dia, antes de levantar, eu rezava pra São Judas Tadinho, que, para mim, era ―filho‖ de São
Judas Tadeu, ―o santo das causas impossíveis‖.)
Corro até o quarto e troco a roupa do colégio. Visto um short, prendo os cabelos e tiro o maldito
aparelho dos dentes. Calço as chinelas, abro a porta e vou até o hall do prédio ver se tem carta na
caixa do correio. Necas!
Subo até o 402 e pergunto pra dona Floripes se ela já recolheu a correspondência do dia.
- Já, minha filha. O correio sempre passa às onze e meia. Eu distribuo em seguida. Ponho tudo
debaixo da porta.
- Tinha alguma carta pra mim, dona Floripes?
- Não sei, minha filha, porque eu não leio o nome do destinatário nem do remetente, sabe? Eu só
leio o numero do apartamento.
- Mas tinha carta pro 302, dona Floripes? – eu já estava ficando impaciente com aquela bruxa.
Quase berrei: ―Desembruxa!‖
- Pro 302? Tinha sim, minha filha... tinha uma...
Nem esperei ela acabar com a lengalenga.
Corri pra cozinha: lá estava ela no ímã-framboesa da geladeira, ao lado de um bilhetinho da mamãe:

Surpresa, princesa! Carta do seu “paipai”.


Banzai!
P.S.: Já mandei consertar as válvulas do fogão.
Até de noite!
Beijos!
Mamãe.

Abri a carta do meu pai. Outra surpresa: lá dentro, uma nota de cinqüenta reais!
Li, reli, beijei a carta e me senti a pessoa mais amada, mais querida e mais importante do mundo.
Não pelo dinheiro, é claro, mas por causa das desculpas que ele pedia e das noticias, das novidades
que ele contava. E mais: ele estaria comigo no dia de seu aniversario... Pode?
Felicidade transbordando, esqueci da fome.
Liguei pra Lu, esbaforida, com falta de ar:
- Lu, recebi carta do meu pai, Lu! Estou a mil! Estou feliz!
- Calma, Berioska, calma.
- E já temos capital de giro, Lu! Depois te explico, tá?
Bati o telefone.
Ela não deve ter entendido nada, é claro. Mas já estava costumada com os meus vapt-vupts.
O estomago roncou. Encarei um prato de maionese com arroz e salada crua. Enquanto comia
matutava:
―Talvez a gente nem precise mais executar o plano, armar a barraca pra levantar a grana na festa do
Gu... com cinqüenta reais, com os cinqüenta reais que meu pai mandara no envelope, dava pra
comprar um presente bem transado pra ele mesmo... Era só não contar... Era só desistir do terno e
da gravata... pensar em outra coisa mais descolada... Depois, um terno com calça, camisa e gravata
não ficaria por menos de duzentos reais! Que tal um jogo de ferramentas pro seu velho Chevette, por
exemplo?‖
Entre uma garfada e outra reli os modelos de correio sentimental que já havia escrito na aula.

“DESTINATÁRIO:
O vento só vai ter um trabalho:
jogar fora as cinzas que você deixou.”
REMETENTE:

DESTINATÁRIO:
“De que valem os olhos se eles se fecham
Quando nossos lábios se tocam?”
REMETENTE:

DESTINATÁRIO:
“Tudo o que é bom dura o tempo
Necessário para ser inesquecível.”
REMETENTE:

DESTINATÁRIO:
“ Eu não sou pivete, mas estou de olho
Nesse seu coraçãozinho de ouro!”
REMETENTE:

DESTINATÁRIO:
“ A tarefa mais difícil de aprender
É aprender a esquecer alguém de
que aprendemos a gostar.”
REMETENTE:

DESTINATÁRIO:
“Você não é +, nem -. Você é = a mim.
Mas que tal : esse orgulho pra gente
X nosso amor?”
REMETENTE:

Fiquei tão entusiasmada que até parei de comer. Desliguei o telefone e a secretária eletrônica:
―Escritora que se preza não pode ser interrompida pelos alôs da vida‖, li numa entrevista da Aghata
Christie. E durante a tarde toda consegui escrever:
”Te conheci a prazo, te sonhei a prestações, te quis a crediário e te esqueci numa parcela fixa, sem
avalista. Não deu certo: era amor à primeira vista!”

“ Quando se sonha sozinho, tudo não passa de sonho. Quando sonhamos juntos, é o começo da
realidade!”

“Amigo não é aquele que fala vá em frente, mas aquele que diz vou contigo.!

“Não deixei seu coração se transformar numa estrada, onde muitos passam, mas ninguém fica...”

“Se pensas que não te amo, é puro engano teu, pois não encontrarás no mundo, amor maior que o
meu!”

“Estações
Te conheci na primavera: mas era só paquera!
No inverno você me deu a mão: calor no coração!
No verão a primeira briga: frio na barriga!
Mas você me beijou no outono: perdi o sono!
Se você arrasa o meu clima, porque não entende minha estação?”

“Quando você pensar que tudo passa, lembre-se de que um dia eu passei na sua vida... com uma
vontade enorme de ficar! Te adoro de montão!”
“Sua boca é o sol, a minha é a lua. No eclipse do amor, minha boca beija a sua!”

Reciclagem
“Estou sozinho, jogado no lixo.
Nele eu me rato, me sapo, me mosco, me lagartixo!
Que tal me reciclar, princesa, no relaxo, no refresco ou no capricho?
Prometo que depois eu-cavalo, me relincho.
Princesa, eu me principesco!
Por você, princesa, eu até me cato, eu me rei-lixo!”

“Não sou tudo que você deseja, mas sou muito mais do que você merece!”

“Você entrou na minha vida sem pedir licença. Agora não sei como te mandar embora. Te amo!”

“Você é a energia que faz da minha vida uma fonte de luz... A conta, a gente racha!”

“Se a vida lhe der 1.000 motivos pra chorar, mostre que você tem 1.001 pra sorrir. No mínimo, você
é o máximo!”

“Tenho todo o mar, só quero uma gota.


Tenho todo o céu, só quero uma estrela.
Tenho todo mundo e só quero você!
Te amo!”

Previsão do Tempo:
“Te amo com céu claro, nublado ou ensolarado...
Te amo com ar quente ou seco no período...
Te amo ameno, em temperatura instável... ou com massa fria e nevoeiros pela manhã...
Te amo no nascente e no poente, no minguante e no crescente... oscilando entre o mínimo e o
máximo das nossas línguas molhadas.
Aí você me deixa sujeita a raios e tempestades, relâmpagos e trovoadas!
Te amo na lua nova e na lua cheia como num queijo.
Só não tenho previsão do tempo quando você vem me dar um beijo.”

Pensei: ―Tem poema aqui que dá até letra de música... vão ser mais caros‖. Pensei também em ligar
pra Lu, ler pra ela as ―inspirações‖. Mas desisti. Ela podia querer dar palpites, e eu não estava nem
um pouquinho a fim de modificar as minhas idéias.
Então percebi que a noite já havia caído. Mamãe chegaria logo. Arrumei mais ou menos a bagunça
da mesa, tomei um banho e quando entrei no quarto ela já estava lá, na sala, exausta e tentando
colar um band-aid no calcanhar.
- Ai, Lara, estou morta, mortinha... Hoje o Freud me deu um trabalho! Estou até com falta de ar.
- Toma um banho quente, mãe. Relaxa.
- Nem precisa, filha. Vou é cair na cama e dormir. Tou me sentindo uma espécie de pneu careca, e
vaio.
Morri de rir da comparação. Brinquei com ela:
- Então você vai é cair na ―câmara‖...
Ela riu também, me beijou e disse:
- Boa noite, anja, amanha a gente conversa.
Eu falei: - Vou fazer um pouquinho de barulho, mãe. Tenho que escrever umas coisas, bater a
maquina...
- Tudo bem, mas não esquece de apagar as luzes, tá?

Fechei a porta do quarto dela e voei pra mesa, pra continuar o trabalho. Fui bolando as adivinhas:

1. De dois carecas, completamente carecas, qual é o mais careca?


2. O que é, o que é? Olha para a frente, para ver o que está atrás?
3. Quem é que sempre põe as pernas nas orelhas?
4. O que o porco-espinho míope disse para o cacto?
5. O que é, o que é? Quem está triste nunca dá?
6. O que é que nunca se compra uma só, mas só se usa metade de cada lado?
7. O que é, o que é? Quanto mais se tira, mais aumenta?

(Soluções: 1. Quem tiver a cabeça maior/ 2. O espelho retrovisor/ 3. Os óculos/ 4. Alô, querida!/ 5.
Pulos de alegria/ 6. Meia./ 7. O buraco.)

Coloquei a solução das adivinhas no pé da pagina. Consultei o relógio: vinte e duas horas. Bocejei,
mas me fiz de durona. Faltavam as piadas. Como escrever piadas? Eu nunca tinha bolado uma.
Puxei pela memória, me lembrei mais ou menos de algumas que o meu pai contava, misturei tudo,
escrevi, joguei papel fora, reescrevi. Até que acabaram assim:

A filhinha perguntou pra mãe:


- Mamãe, os anjos voam, não voam?
- Sim, filhinha, eles voam...
- Papai chamou a nossa empregada de “meu anjo”. Quando é que ela vai voar?
- Agora mesmo!
A mãe fala com o filho:
- Porque você voltou tão cedo do colégio?
- Porque eu coloquei uma dinamite debaixo da mesa da professora.
A mãe:
- Volte já para o colégio e peça desculpas!
- Que colégio?

O cara era tão fanático pelo Atlético, que um dia ele estava sentado no sofá, lendo jornal, quando o
filho chegou, berrando:
- Pai, a mãe caiu na área!
O pai respondeu:
- Então é pênalti contra o Cruzeiro!

O tráfego na a. Afonso Pena tava congestionado. O velhinho “buzinador” não deixava a buzina em
paz: buzinava, buzinava e buzinava...
Então uma moça, no carro ao lado, abriu a porta, saiu, passou a mão no capô do carro do velhinho e
falou:
- Que “tetéia”, vovô! E o que mais o senhor ganhou de presente de Natal, hein?
O Sílvio Santos, no seu programa de domingo, liga pra casa da patroa da Gorete, empregada recém-
chegada da roça, no sul de Minas:
- Se você responder à minha pergunta, ganha um automóvel, Gorete!
A Gorete, não acreditando que ele está ao mesmo tempo na televisão e falando com ela ao telefone,
responde:
- Num “querdito” não, seu “Sirvo”! É trote, né?
E o Sílvio:
- Garanto que não é, Gorete! Rá-rááá! Vá até a sala de visitas da sua patroa, liga a televisão, e você
vai ver que eu vou lhe acenar com a mão! Rá-rááá´...
E a Gorete:
- Num posso não, seu “Sirvo”... Eu tô só de “carcinha”...

Quase me engasguei de rir.


―Acho que a Lu vai adorar esse material‖, pensei. ―Tá massa! Massa mesmo! A gente tem que fazer
isso... executar o plano.‖
Peguei a calculadora, somei os correios, os poemas, as sete adivinhas mais as cinco piadas. Por
enquanto, colocando tudo a um real cada, na média, dava uns trinta e três reais... mais cinqüenta
que o papai mandou: oitenta e três reais... Somando os treze horóscopos dava noventa e seis.
Mas os horóscopos podiam se repetir indefinidamente nas consultas. Então, digamos que, por baixo,
eu os multiplicasse por três, ou por quatro. Teria aí uns cento e trinta e cinco reais, mais o trabalho
da Lu, na mesma média: duzentos e setenta reais! Tirando o capital de giro, que calculei em dez por
cento, dava uns duzentos e quarenta!
Viva! Era um negocio da China! Ou melhor... do Japão!
Pensei em ligar pra Lu, mas só aí me dei conta das horas: duas da manhã. Help! Juntei os papéis,
botei tudo numa pasta de elástico e, claro, fui dormir.
Nunca, até então, eu tinha produzido tanto. Me senti uma verdadeira escritora, como a Aghata
Christie. O problema é que, naquela noite, sonhei que eu era um pneu careca, e completamente
vazio.
4ª PARTE – A DANÇA DOS SIGNOS

Capitulo 21

TERCEIRO DIA DE AGOSTO


Sono!
Nove horas da manhã e eu ainda acordei bocejando.
Sonada. Perdi a hora, perdi a aula. Mamãe também dormia, coitada. Fiz café, suco de laranja e
misto-quente pra ela. Bati na porta do quarto e falei:
- Camareira, dona Sônia!
Ela acordou meio esbaforida, mas logo entregou os pontos:
- De vez em quando, Lara, a gente tem que se dar um presente. Até o sono vale nessas horas. Mas
não se acostume com isso...
- Também acho, mãe. Mas você devia descansar mais, trabalhar menos...
- Que horas são?
- Nove e meia.
Ela não se deu por vencida. Tomou o café que eu preparei, entrou no chuveiro, se arrumou toda, e
em meia hora já estava ligando o carro na garagem:
- Lá pelas sete estou de volta! Liga pra Lu e veja se teve matéria nova na escola, tá? Não se
acostume...
Eu disse ―tá‖ e entrei. Botei uma fita nova na maquina de escrever e datilografei tudo que havia
bolado. Meio-dia e meia liguei pra Lu:
- Dormi mais que a cama, mas escrevi o que a gente precisava. Agora só faltam os horóscopos.
Teve matéria nova na aula?
- Adivinha. O Robertão fez a gente encher quase meio caderno de exercícios...
- Depois você me passa?
- Claro. Que horas você vem?
- Duas horas tá bom?

...

Duas horas em ponto eu já estava na casa da Lu.


Mostrei minhas ―inspirações‖. Ela vibrou. Disse que a festa ia ser um baita sucesso e que tinha uma
surpresa pra mim:
- Os horóscopos estão prontos, Lara! Ontem a noite, a tia Kazumi fez tudo pra nós no computador.
Eu e mamãe achamos que não ia dar tempo de você bolar tudo. Ligamos pra ela, ela topou.
- Uau! Ela é astróloga?
- E das melhores. Está escrevendo pra uma revista de adolescentes. Acho até que ela já tinha tudo
preparado, sabe como?
- Que sorte!
- Quer ver?
- Claro!
Lu me mostrou o novo Zodíaco de treze signos, incluindo o tal Esculápio.
Depois me mostrou o Zodíaco antigo, sugerindo que podíamos também xerocar, junto com o outro, e
passar pra turma.
Desse modo todo mundo poderia comparar um com o outro e saber seu novo signo. Por exemplo,
quem era de Áries (21 de março a 20 de abril) passava a ser de Peixes (12 de março a 18 de abril).
Quem era de Touro passava pra Áries. Quem era de Gêmeos pulava pra Touro, e assim por diante.
- A galera vai delirar, Lu! É uma nova descoberta! Eureca! É o novo ovo do Colombo!
- Que nada! É a nossa galinha dos ovos de ouro! –ela corrigiu. – A gente agora só vai ter o trabalho
de xerocar e recortar... Então? Preparada para conhecer os NOVOS SIGNOS DE MADAME
BERIOSKA?
- Acho que sim! Help!
Olhos arregalados, suor frio, palpitação, li:

SAGITÁRIO (18 dez. a 18 jan.)


PARA AS GATAS: a mil por hora – Delicada, curiosa, impulsiva e de imaginação fértil. Sua persona
é supermarcante, garota! Nunca irá se queixar de solidão. Sua simpatia, alegria e compreensão
fazem com que você viva rodeada de amigos. Neste mês, aproveite: o pior já passou! Todos os
planetas da afetividade vão entrar em seu signo, tá? Sem essa de fazer o gênero ―fossa‖: espanta
até mosca, imagina brotos?
PARA OS GATOS: Rasgando o verbo – Você é o rei da espontaneidade e não mede muito suas
palavras. Mas a bronca não dura tanto, pois saber cativar amigos é outra de suas qualidades. No
que depender dos astros, você vai passar agosto numa boa, tudo big mesmo. E, com um joguinho
de cintura, de leve, esse astral poderá eeeeeesticar até o fim do ano. Se melhorar estraga!

CAPRICÓRNIO (19 jan. a 15 fev.)


PARA AS GATAS: É Papo cabeça! – Segura e dona de si, a capricorniana é admirada pela turma e,
ás vezes, temida pelos garotos! Mas os que se assustam com sua independência não lhe
interessam. Afinal, ela procura ter ao seu lado alguém maduro, pois considera o amor um assunto
muito sério.
Para agosto, sua casa zodiacal promete uma superfase amorosa. É a chance de acertar os ponteiros
com seu lindinho!
PARA OS GATOS: Não foge a luta! - Você adora conquistas difíceis! Em geral, é o mais caladinho
da turma, mas, no fundo, não é tão sério quanto parece. Teimoso, determinado, voilá: neste mês
você simplesmente vai arrebentar a boca do balão! Aperte o cinto, mande a deprê pro espaço, tire
aquele charme do armário e detona, cara! Uau!

AQUÁRIO ( 16 fev. a 11 mar.)


PARA AS GATAS: Á frente de seu tempo! – Vanguardista, com a cabeça cheia de idéias
moderninhas, a aquariana não tolera a rotina. Adora novidades e não consegue viver sem estar
apaixonada. Mas ama a seu modo, sem muitas regras. Então, o miau que quiser prendê-la não pode
fazer marcação cerrada, tipo zagueiro central, sacou? Neste período vai chover gato na sua horta. E
se estiver avulsa, no singular, não perca uma festa: pode pintar um amor novinho em folha, very
special, baby! Caliente, mucho caliente!
PARA OS GATOS: Á caça de aventuras – Independente, liberal, original... mas isso pode confundir
as garotas. Para elas, é meio difícil saber quando estão sendo, ou não, paqueradas por você.
Aventureiro, adora arriscar a pele e sente uma atração fatal por grandes desafios. Só um conselho:
capriche no look. você anda meio sujinho, né?

PEIXES (12 mar. A 18 abr.)


PARA AS GATAS: História sem fim! – Regida por Netuno, está sempre ligada no reino das
profundezas, sem limites. Seu signo contem um pouco de cada um dos outros doze, sabia? Por isso
você é meio “maria-vai-com-as-outras”. Sorry! E tem a tendência de se transformar na pessoa a
quem está ligada. Mas é sábia e mística. Sensível, romântica, sabe dar valor ao que realmente tem
valor, e é muito fiel. Para este mês, uma renovada no visual pode ser um bom começo. Mas... olho
vivo e ouvido atento: as mui amigas podem fazer o maior tititi contigo.
PARA OS GATOS: Fora da órbita! – Você tem a chave do mundo dos sonhos, do inconsciente,
sabia? Mas cuidado com as realidades práticas da vida. Seja perseverante e disciplinado, senão o
tombo vai ser um arraso! No entanto, os astros indicam uma maré de sorte em agosto. Pode fazer
uma fezinha na loteria ou até no ―bicho‖: jacaré e borboleta! E prepare-se: uma baby vai tira-lo da
órbita no final do ano! Uau!

ÁRIES (19 abr. a 13 mai.)


PARA AS GATAS: Energia para dar e vender – Se a vida apresentasse um novo desafio a cada dia,
a ariana estaria como pediu a Deus. Vencer obstáculos, no seu caso, parece ser uma espécie de
―missão‖. Saúde e energia, gata! Pode malhar: a sensualidade será seu forte nesse período.
Aproveite o fluido dos astros, mas não queira conquistar gregos e troianos. Vá com menos sede ao
pote e fique atenta, para perceber a chegava de um amor de verdade. Seu love tá quase no papo,
―caidinho‖, e você não sabe!
PARA OS GATOS: O doce bárbaro! – Você é uma fera, sabia? Grrrr! No amor você barbariza! Mas,
quando a monotonia se instala, o nativo deste signo não agüenta de insatisfação. Para manter o
pique, você conta com os bons fluidos de Marte, o deus da guerra. Mas neste período, até meados
de setembro, é melhor ir devagar com o andor, que a ―santa‖ é de barro. Não entre de cabeça. Vá
devagar, tá? Belisque, só!

TOURO (14 mai. A 20 jun.)


PARA AS GATAS: Que charme! Que brilho! – Regida por Vênus, a deusa do amor e da beleza, você
também é fiel, constante, determinada, sensual e apaixonada. Uff! Quanta qualidade! O charme que
Deus lhe deu está faiscando. Dica astral: preste mais atenção num bichano que curte a sua
companhia há muito tempo, um tempão! Ele tá doido pra lamber a sua mão. Uaaaauuuu...
PARA OS GATOS: Que fogaréu, bróder! – Natureza forte, intensamente apaixonado, romântico sem
ser brega, amigo. Nossa! Neste mês, curta! Saia da toca! E, se estiver desimpedido, passe livre, que
nem um passarinho, aí vai a dica: pode botar o seu bloco na rua, viu? O love vai pegar fogo e não
terá bombeiro que consiga apaga-lo!

GÊMEOS (21 jun. a 19 jul.)


PARA AS GATAS: Cara-metade com caramelo! – Você é a eterna criança do Zodíaco, sabia?
Espirituosa, comunicativa, gosta de aprender tudo, até as línguas mias difíceis da ―tribo‖. Mas,
mutável como o mercúrio você adora disfarces e mímicas. E faz muitas coisas ao mesmo tempo.
Mas sabe aquele gato que te atrai? Pois é: tá carente. E você que faze-lo feliz. Mãos à obra! Detona,
baby!
PARA OS GATOS: Dois em um, dose dupla! – Você é um perfeito idealista. Nos relacionamentos é
dez! Muito versátil, gosta de estar sempre bem-informado. Espírito pratico, cuidadoso, habilidoso e o
coração do tamanho do bonde. E como sabe fazer carinho! Mas previna-se: fale menos. No amor,
uma ―ex‖ muito especial pode reaparecer de repente. Mas um toque: o replay pode não ser uma boa.
Tente novamente, mas de forma diferente, sacou? Que tal entrar na contramão agora? Talvez ela
goste. E peça bis! No mias, tudo azul, azul, azul...

CÂNCER (20 jul. a 19 ago.)


PARA AS GATAS: É jogo limpo! – Sonhar é com você mesma. Só que de vez em quando é bom dar
uma caidinha na real. Em vez de idealizar um namorado perfeito – que só existe na sua imaginação -
, preste mais atenção nos gatinhos que cruzam o seu caminho, tá? Jogo de cintura não lhe falta, é
só jogar limpo. Para agosto, tudo clean!
PARA OS GATOS:É o bicho! – O canceriano, se for traído, vira o bicho! E talvez até demore muito a
se livrar da mágoa, mas sabe superar tudo com determinação. Neste mês, cresça e apareça! Você
vai tirar de letra qualquer problema, de fichinha, pode crer. No mais, relaxe. Vai ter muita colher de
chá por aí!

LEÃO (20 ago. a 15 set.)


PARA AS GATAS: Nascida para brilhar! – Personalidade marcante, magnetismo especial. Pudera!
Seu planeta regente é nada mais, nada menos que o astro-rei: o Sol! Ama de paixão viver rodeada
de amigos e fãs. Vaidosa, não resiste a um elogio, e é capaz de tudo por um grande amor. Mas,
antes, pondere se o garoto vale mesmo a pena, tá?
PARA OS GATOS: Viva a vida! – Para ele, o que vale é estar sempre batalhando pelo que deseja ou
acredita, mas não gosta de estar sozinho nas paradas. Em agosto, olhe, olhe, e descubra que bicho
lhe mordeu. Dê uma faxina geral em tudo: no quarto, no coração, por dentro e por fora. As coisas
emperradas vão engrenar de novo! É só não bancar o durão de outros carnavais. As águas já
rolaram!

VIRGEM (16 set. a 30 out.)


PARA AS GATAS: Mais que perfeita! – Certinha da cabeça aos pés, você é capaz de um chilique se
encontrar o quarto bagunçado. É perfeccionista e exigente. E quando se apaixona, sai de baixo! Mas
lembre-se: quem não arrisca, não petisca. Experimente convidar aquele ―paquera‖ para um cinema.
Se ele disser não, paciência. Mas, se topar, vai ser uma festa! Os astros prometem dar um
empurrãozinho!
PARA OS GATOS: Solte a pipa! – Nas questões do amor, sua mania de perfeição atrapalha um
pouco. Porém seu jeitão insinuante e bem-humorado também conta pontos. A imaginação vai rolar
solta. Isso é ótimo, mas não fique apenas na fantasia. Detone a gata! Pode dar corda
tranquilamente: ela vai adorar ser paparicada por você! Miiiiiiau!

LIBRA (31 out. a 22 nov.)


PARA AS GATAS: Cheia de charme! – Solidária até debaixo d’água, procura sempre extrair o melhor
das pessoas com quem se relaciona. Sua vida social estará a mil! Com tantos convites pintando no
pedaço, você só ficará em casa, no toco, se quiser. Mas cuidado pra não entrar de cabeça nos
embalos, tá?
PARA OS GATOS: Justiça seja feita! – Á primeira vista você parece um garoto frágil, mas é só
fachada. Persona fortíssima, romântico a moda antiga, vive e respira amor. Porém, se não for
correspondido, vira um cubo de gelo. Neste período, um conselho: puxe o freio de mão, não ouse
demais. Depois, dê uma olhada no seu currículo arrasante e engate aquela primeira, mas só quando
setembro vier!

ESCORPIÃO (23 nov. a 29 nov.)


PARA AS GATAS: Jeitinho intrigante – Se carisma atrai gregos e troianos. É um magnetismo que
deixa os gatos fascinados. Além disso, quando ―lova‖, é do tipo que não revela tudo. Joga com as
emoções, e não dispensa uma cena de ciúmes. Vem aí uma nova fase superpositiva, cheia de
veneno. Difícil será escolher, com tantos gatos saltitando na frente.
PARA OS GATOS: Fora do comum! – Você costuma despertar ciúmes doentios na baby, por todos
os poros. Mas a fidelidade é a sua marca registrada. Em agosto, fora com o clima down! Arranje um
tempinho free, fique frio e tente controlar a ansiedade, sacou?

ESCULÁPIO (30 nov. a 17 dez.)


PARA AS GATAS: Pé quente, cabeça fria – Você é uma transição entre Escorpião e Sagitário.
Portanto, lembre-se: ciúme é o tempero do namoro, mas nunca o prato principal. Nenhum menino
agüenta um esquema de vigilância vinte e quatro horas por dia. Tome uma superdose de
autoconfiança e prepare-se: os gatos de Gêmeos e Aquário podem deixa-la fora de órbita! Seu lema
é: pé quente, cabeça fria. Em agosto, além de contar com a sorte, Ofiúco – sua constelação –
promete um período de sombra e água fresca. Mais um conselho, gatinha: pegue leve nas frituras,
viu?
PARA OS GATOS: Unanimidade total! – Você tem o poder da magia, do mistério, da sedução.
Dizem até que é curandeiro, sabia? Tem muita energia interior, mas deve evitar o oba-oba da galera.
E cuidado: aquela garota pode não ter paciência de Jô. Se você demorar muito para decidir, talvez
ela desista de esperar e vá cantar em outra freguesia. Que tal um clima light para ela? Convide-a
para um jantar à luz de velas: a convivência com o broto vai ficar gostosíssima! E pode botar lenha
na fogueira em agosto: todo mundo vai se amarrar em você, sabia? Esculápio tá um esculacho! Tá
bom demais!!!

...

Quando terminei, a Lu roia as unhas, curiosa:


- E aí, Lara? Eu era de Gêmeos, agora sou o que mesmo?
- Um real, Lu! Tá custando um real a consulta. Primeiro a grana... – brinquei.
- Sua mercenária! – ela esbravejou. – A tia é minha, viu?
- Tá vendo como vai dar certo? Até você já mordeu a isca.
Li de novo o horóscopo dela: Touro. Fez cara de quem não gostou muito. Adorava ser de Gêmeos.
Mas eu, ao contrario, era de Áries, e amei passar a ser de Peixes, não sei por quê. Coisa dos astros,
só podia...
Larguei de embromação. Risquei signo por signo em quadrados e colei cada um numa folha, para
ficar mais fácil de xerocar.
Quando – uffff! – dei por encerrada minha parte, a Lu tava acabando de limpar a bola de cristal: um
globo de vidro transparente cheio de água e anilina azul, muito curioso.
- Você sabe ler esse negocio mesmo, Lu? – duvidei.
- Dois reais! Primeiro a grana... – brincou, me dando o troco.
Rimos.
Ela embaralhou as cartas do tarô, organizou os naipes do baralho, passou álcool nas pedrinhas e
conchinhas dos búzios e repassou os mapas de leitura das mãos.
- Agora vamos ao principal, madame Berioska! A tabela de preços!
- Sarava, madame Magalu!
- Axé, muzifia...
Capitulo 22

No escritório da floricultura Luciana e Mishiko san conversavam alguma coisa. Voltaram carregando,
cada uma, um quadro de giz.
Neles estavam escritos, com letra de forma bem redondinha, os preços dos vários produtos que
comercializavam, EM OFERTA: amor-perfeito, buganvília, bambuza, azaléia, hibisco, onze-horas,
dama-da-noite, maracujá, cipreste, pinheiro, manacá, jasmim, ameixeira, pessegueiro, rosa,
alamanda, grama, esterco, adubo, xaxim, vasos, armações, ferramentas e até redes que vinham
―importadas‖ do Nordeste.
Apagamos aquilo tudo e dona Mishi falou:
- Faz assim... tou atendendo uns clientes meio apressados. Vocês discutam os preços, anotam num
papel e depois eu passo para as lousas com a minha letra, certo?
- Super, mãe! Vai ficar lindo com a sua letra! – Lu arrematou.
Eu emendei:
- O sucesso começa pela estética! – não sei de onde tirei isso. Mas dona Mishi sorriu, fez um gesto
no ar e concordou.
- E a propaganda é a ―arma‖ do negocio! – concluiu a Lu, imitando a Gorete da piada.
- Mas vamos por etapas, e não aos tapas, meninas...
Dona Mishi se foi e voltamos ao trabalho. Discutimos daqui, argumentamos dali e fizemos cálculos.
Ponderamos sobre os rumos que a economia estava tomando no Brasil – a Lu parecia até doutora
no assunto – e, depois de meia hora de um bom economês, chegamos à seguinte conclusão: todo
mundo ia querer saber o novo signo. Em seguida, movidos pelas mesmas molas propulsoras do
consumismo na sociedade capitalista moderna – a curiosidade, a novidade do produto, a
propaganda, o preço, etc. – iam querer saber também o seu novo horóscopo. Então, dividindo ou
repartindo o nosso produto em dois, obteríamos maiores lucros, multiplicando consequentemente o
seu preço por dois. E como brinde ou oferta da casa – um chamarisco irresistível -, abriríamos mão
de outras mercadorias como adivinhas e piadas para quem consumisse a nossa mercadoria mais
cara.
Não é genial? Uma técnica de vendas perfeita?
E, como a sensação de que estávamos progredindo rapidamente em nosso ramo de negócios,
bolamos a primeira tabela, a minha:

MADAME BERIOSKA

1 – SEU NOVO SIGNO ................. R$ 1,00


2 – SEU NOVO HOROSCOPO ......... R$ 2,00
3 – POEMAS PARA O SEU AMOR .... R$ 2,00
4 – CORREIO SENTIMENTAL ......... R$ 0,50
5 – ADIVINHAS ........................... GRÁTIS
6 – PIADAS ................................. GRÁTIS

Obs.: piadas e adivinhas GRÁTIS apenas para clientes que fizerem “consultas” de 1 e 2: novo
signo e novo horóscopo!

E a Lu, sagaz, completou:


- Tá faltando o marketing, Lara. Precisamos de algo que chame a atenção de cara, logo na entrada.
- Que tal uma faixa?
- Faixa não dá mais tempo de mandar fazer. Vamos com cartolina mesmo! A mamãe tem um
punhado lá no escritório.
E criamos os seguintes cartazes, no vapt-vupt:
Ofiúco entrou na parada, é o 13º signo
Todo mundo mudou de casa
Seu astral já não é mais o mesmo
Saiba seu novo e correto horóscopo
O zodíaco virou uma zorra
Você já sabe o que é Esculápio?
Consultas com Madame Berioska
Na barraca do destino

- Genial! Regenial! – vibramos as duas. Aquilo tudo, com efeito, já começava a dar coceiras, de tanta
satisfação.
- Já tô ficando zoada, Lara! Tá bom demaaaaaais...
- Eu também, Lu. Mas vamos em frente. Por etapas...
Apanhei outra cartolina e desenhei, em letras garrafais:
BARRACA DO DESTINO

- E a sua placa, Lu? A sua tabela de preços... como a gente faz?


Lu foi mais pratica:
- Tudo a um real, Lara! Pelo visto, vou ter poucos clientes nessa festa.
- Duvide-o-dó!
- Você vai ver.
- Ver de que jeito?
- Simples.
- Simples?
Tinha horas que eu ficava ―pê da vida‖ com a simplexidade dela. Berrei:
- Desembruxa!
Lu rabiscou uma folha rapidamente e me passou:

MADAME MAGALU

1 – Leitura das mãos (quiromancia) ...................... R$ 1,00


2 – Bola de cristal .............................................. R$ 1,00
3 – Cartas (tarô/baralho cigano) .......................... R$ 1,00
4 – Jogo de búzios ............................................. R$ 1,00
5 – Numerologia ................................................ R$ 1,00

- Mas como você vai dar conta disso tudo, Lu? – espantei-me. Sinceramente, não acreditava que ela
soubesse sacar tanta coisa ao mesmo tempo.
- Mole pra nós, já falei! Tenho experiência no assunto, minha filha. Deixa comigo.
- Você já decorou?
- Que decoreba, que nada! Cansei de brincar dessas coisas com minhas primas do Japão. Elas
adoooooooram! Tem uma até, a Yumi, que nem queria mais voltar pra Tóquio. Ficava o dia inteiro
pedindo que eu jogasse búzios pra ela, lesse carta, lesse mão... Quase perdeu o avião!
- Por que você nunca me falou disso?
- Ora, você nunca me perguntou...
- Não sou adivinha nem bruxa, né?
- Isso nem é em Belo não, Lara! É em São Paulo. Tenho muitos parente lá, não te falei? Quando os
do Japão chegam, vai todo mundo pra casa da tia Akemi, no bairro da Liberdade. Ou então pra casa
da tia Futaba, da tia Tamaka, ou pro restaurante do tio Tamotsu...
- Aaaaaahhhhhh...
- E eu sempre saio de lá enjoada, de tanto ―brincar‖ de cigana com as minhas primas.
- E como você aprendeu isso tudo?
- Ora, nas revistas, nos livros! Minha mãe também é meio esotérica. Adora essas coisas.
- Verdade?
- É... no fundo, nós japoneses somos todos uns esotéricos. Esse negocio de tecnologia made in
Japan é só na superfície. É uma questão de sobrevivência... e também de inteligência.
- Saquei.
- Pra vender de um lado da moeda, escondemos o outro.
- Eu admiro muito isso, sabia? São os dois opostos que se completam, né? A luz e a sombra, a
matéria e o espírito... – filosofei barato.
- Mas chega de tititi, Berioska! Time is money! Vamos xerocar a papelada e comprar os balangandãs
e os penduricalhos pra gente decorar a nossa Barraca do Destino!
- Que penduricalhos?
- Papel de seda, papelão, umas estrelas e umas meia-luas.
- Não é meia-luas não, Lu. É meias-luas...
- Tá bem, tá bem... – ela ficou brava. – Que horas são?
- Quase seis.
- Xiiii, então não vai dar, madame. Temos que deixar tudo pra amanhã. A tia Kazumi vai passar
daqui a umas meiasssss-horas. Vamos visitar uns velhinhos no asilo, sabe? Ela cuida deles, eu e
mamãe ajudamos um pouco, no que podemos.
- Tudo bem, Lu. Quer que eu ajude também?
- Se você tiver roupas velhas em casa, cobertores, é só trazer. Um dia te levamos lá pra conhecer.
Eles são muito carentes.
- Eu iria gostar, acho, ou ficar triste. Não sei...
- Na hora você vê. Por ora, madame, expediente encerrado. Amanha de tarde a gente compra as
coisas, cola as meiasssss-luas nos barbantes e estica tudo, pra ver como é que vai ficar.
- Então eu já vou indo, tá?
- E a matéria do Robertão? Não quer levar pra copiar?
- Putz! Já ia me esquecendo.
Na saída fiquei pensando: ―Meu Deus, como sou chata e egoísta! Tou parecendo uma velha
ranzinza! Preciso largar dessa mania de ficar corrigindo a Lu. Ela sabe muito mais coisas praticas da
vida do que eu, é solidária... eu preciso‖.
- Eu preciso crescer mais... – pensei alto, no portão.
A Lu, já acostumada aos meus vapt-vupts do pensamento, falando sozinha, me beijou no rosto e
brincou:
- Então anda de salto alto, peste! Cresça e apareça, sua besta!
Dei um abraço nela e pedi desculpas.
- Dez-culapada! – ela emendou. – Amanhã duas em ponto! Se atrasar, desconto no seu
contracheque, sócia!
- Não esqueça de agradecer a tia Kazumi por mim, tá? Eu não conseguiria bolar aqueles horóscopos
daquele jeito. E ela me ajudou sem ao menos me conhecer. Deve ser uma pessoa maravilhosa...
...

Naquela noite, em casa, fiz apenas três coisas: liguei pra madame Berioska, copiei a matéria do
Robertão e depois fiquei pensando naquela misteriosa tia Kazumi.
Desconfiei de que ela nem existisse mesmo, em carne e osso. Muito estranho, cheio de entrelinhas,
o papo da Lu: quem tá perto da gente, quem tá longe...
Antes de dormir quase tive certeza: tia Kazumi era, na verdade, a própria dona Mishiko.
Mas isso eu só iria investigar no dia seguinte.
Capitulo 23

QUARTO DIA DE AGOSTO: quinta-feira, duas da tarde

A meio caminho, entre a minha casa e a casa da Lu, na Catete com Japão, funcionava um pequeno
―tem-tudo‖, tipo armazém, armarinho, padaria, sacolão, farmácia, papelaria e boteco ao mesmo
tempo. Parecia uma dessas vendinhas do interior, com todos os cheiros de Minas: lingüiça
defumada, pão de queijo, fumo de rolo, goiabada, réstias de alho e cebola, salame... uma delicia!
Lembrei-me de minha avó Nita, que morava em Passos, lá no ―sur‖ de Minas, onde ainda se sentiam
esses cheiros. E me deu uma saudade danada do vó Tonho, dos tios, das tias, das primas e
principalmente da Flavinha, irmã mais nova do meu pai – e que já era minha tia com vinte e cinco
dias de idade. Pode? – Lembrei-me do jeitinho engraçado dela puxar o erre bem fechado: ―quero um
xisbúrguerrr, um sorvete e um iogurrrte...‖
Mas seu Zé Botinha, o dono do ―tem-tudo‖, veio nos atender:
- Pois não, professorinha?
A Lu riu e me perguntou o porquê do professorinha.
Expliquei que o meu pai costumava passar por ali, de vez em quando, pra tomar uma cerveja e jogar
conversa fora com os amigos, no balcão do fundo. E o seu Zé Botinha o chamava de professor.
- Ele te conhece, professorinha?
- Acho que sim.
Compramos o papelão e papel de seda de varias cores: azul, branco, amarelo, vermelho, verde,
rosa, preto, lilás. Compramos três rolos de barbante e dois tubos de cola. E claro: dois chocolates,
que ninguém é de ferro, né?
Então o Marcelo, filho do seu Zé, perguntou:
- Que tal uns balões para a festinha?
- Não é festinha de criança, não! – respondi.
Ele pediu desculpas, meio sem pescar nada.
- E o seu pai, como vai?
- Vai bem... – respondi.
Viu que eu não estava muito pra conversa. (Ainda tínhamos que encontrar um xérox pelas
redondezas.) Embrulhou os penduricalhos:
- Quer que anote na caderneta, professorinha? Na conta do seu pai?
- Precisa não, Marcelo.
Tirei a nota de cinqüenta reais do bolso. A Lu se assustou:
- Uai! Eu ia pagar, Lara! Você não queria que eu emprestasse o capital de giro?
- Papai me mandou essa nota preta pela carta, Lu. Parece até que adivinhou...
Seu Zé Botinha, na caixa registradora, teve que se virar pra fazer o troco. Contou as moedinhas em
voz alta, centavo por centavo. Por ultimo, mandou lembranças ao meu pai e saímos.
Na André Cavalcanti com Francisco Sá havia uma banca-livraria com copiadora. E umas nove
pessoas na fila, à nossa frente, com o mesmo objetivo: tirar xérox. Parecia um posto de saúde
publica: todo mundo com papel na mão e aquela cara de ―só saio quando fechar‖. E pior: um calor
dos diabos, ventilador estragado, motoristas buzinando na porta, crianças chorando ―sapateando‖
pra mãe comprar revista, e a sensação de que íamos ser queimadas vivas num forno de jornais,
livros, revistas e formulários. O mundo se acabando em papel... Papel, papel e mais papel.
- Help, Lu! E agora?
Mas o dono da livraria também conhecia o meu pai.
- Você é a filha do Piotr, o Russo, não é? – ele perguntou, aboletado atrás da maquina registradora,
com ares de intelectual pós-moderno.
- Sou... Como o senhor sabe?
- Tive com ele no Rio, semana passada. Viajamos no mesmo avião. E, alem disso, é amigo de um
grande amigo meu em Niterói, o Júlio César.
- Mas como o senhor sabe que ele é meu pai?
- Ora, vive mostrando fotografia sua pra todo mundo, uai! O Russo é o cara mais coruja que já
conheci, tem o maior orgulho de você. E eu sou um bom fisionomista. Te reconheci logo...
O astral subiu. Voei até a Lua, passei por Vênus, Marte, contornei os anéis de Saturno e quando
voltei ainda estava meio zonza.
- Meu nome é Rui. E o seu é... Lara? É Lara, não é?
- Isso mesmo. Larissa... muito pra-prazer – gaguejei.
- E o que você quer, Larissa? Olha, aqui você não pede. Aqui você manda, falou?
Ao mesmo tempo que eu tentava descer as escadas do meu orgulho, ou da minha vaidade, ia
pensando abobada e feliz: ―Ser filha de pai mais ou menos popular até que não era lá tão ruim
assim... todo mundo me conhecia... meu pai mostrava meu retrato para as pessoas... Ó maigod!‖
- Acorda, Russa! – Lu me beliscou, enquanto o cara, o tal Rui, já ia passando o nosso serviço na
frente dos nove, em outra copiadora dos fundos.
Lu gozou:
- Desse jeito, dona russa, toda vez que eu precisar de alguma coisa neste bairro, vou apelar é pra
você! Vai ser popular assim lá na...
- Peraí, Lu, não escracha...
Agradeci ao tal Rui o favor, pagamos e subimos a Oscar Trompowski, de volta. No caminho, a Lu
falou que nunca havia beijado ninguém, que tinha um carinha a fim dela e que tava sem saber o que
falar pro garoto, e coisa e tal... Prometi que conversaríamos sobre isso mais tarde. Eu daria umas
dicas. Ela ficou mais aliviada.
Quando chegamos, dona Mishi já havia escrito nas lousas as nossas tabelas de preço, com a sua
letra bem redondinha. Ficou uma belezura!
Recortamos as estrelas, as bandeirinhas, as meias-luas. Medimos a largura e o comprimento da
barraca, cortamos os barbantes, colamos os penduricalhos e esticamos tudo, pra fazer o primeiro
teste visual. Ia ficar barbarizante! Parecia uma barraca árabe, das mil e uma noites.
Nisso a campainha tocou: era o Liga-Tripa como Kabrum, que vieram buscar a barraca, as mesas e
as cadeiras, conforme tinham combinado com a Lu.
Ao se depararem com aquela ―tenda dos milagres‖ na frente deles, detonaram:
- Pô, cara! Chocante...
Kabrum, ―numas de pressa que o tempo urge, maninha‖, foi logo tirando a camiseta e empilhando as
cadeiras num canto: era todo tatuado nos braços. Gostava de mostrar os músculos, apesar de uma
certa barriguinha de cerveja e a barbicha de bode. Horrorível!
Liga-Tripa, ao contrario, magrelinho, mauricinho e meio, e meio tímido, começou pela barraca.
- Posso desmontar, Luciana?
Notei que ele se ruborizava quando falava com ela.
Pesquei no ar: devia ser o tal carinha a fim de ficar com a u. e a Lu, pastel, bandeirosa, sem saber
onde pôr as mãos, também se avermelhou toda:
- Hein?
- A barraca, Luciana? Posso desamarrar?
- Ah, sim... claro, claro, pode...
Não tive mais duvidas. Pelo engasgo da Lu era ele mesmo, mesmíssimo. Pisquei pra ela. Ela quase
me fulminou com um olhar.
- Deixa eu só botar os balangandãs numa caixa, Tiago...
Tiago?
A Lu já sabia até o nome verdadeiro dele. Batata!
Acertei! E enquanto ela tremia que nem gelatina ao lado do Tiago Liga-Tripa, desamarrando os
barbantes das bandeirolas e das estrelas, o Kabrum se aproximou de mim e falou:
- Olhaí, gatinha! Tenho um bilhete do Gustavo pra você.
E me passou o envelope com cheiro de perfume francês.
Meu coração bateu blang-blang!
E blaaaaaaaanng!
Help!
Fechando o envelope, havia um selinho com nome e endereço: morava numa rua da Cidade Jardim.
Chiquérrimo! Abri:

Lá,
Desculpe não ter ligado antes.
Passei quase todas as férias atarefado com a banda, ensaiando, compondo e comprando a
aparelhagem nova.
Gostei demais da idéia da barraca na festa: vai ser um sucesso, pode crer! E estou louco pra
te ver fantasiada de cigana.
Venha logo: tenho uma surpresa! E não se esqueça de trazer o violino.
Beijão!
Gu

P.S.1: A senha pra entrar na festa (por motivos de segurança) será ZORRAZUL!
Não se esqueça: ZORRAZUL!
P.S.2: Morro de saudades desses olhos negros de sombras iluminadas. E desse coração de
flor selvagem...

BLLLAAAAAAAAAAANNNNNNGGGGG!
Meu coração bateu como a porta de um castelo.
Meu coração bateu como os portões do paraíso.
E quase desmaiei.
Kabrum percebeu e me segurou pelo braço. Sentei-me numa cadeira.
- Tudo bem, Lara? Aconteceu alguma coisa?
- Nada, não, Kabrum. Foi só um susto... isto, é, deve ser a ma-maionese que co-comi no almoço.
A Lu desconfiou, vendo o envelope na minha mão.
- Quer ir tomar um copo d’água com açúcar, lá na cozinha, Lara?
- Quero.
Entramos esbaforidas.
- Conta! Conta logo, Berioska!
- São Judas tadinho! Olha só, lu... Leia! Leia isso...
Passei a cartinha pra ela, que leu, releu, trileu e detonou:
- É uma legitima declaração de amor, Lara!
- É?
- Uma das mais lindas que já li! Uma legitima ―mimachuca queugosto‖... raríssima!
- Será? Isto é... pode ser... você acha que é mesmo?
- Claro! Pelo menos, pelo P.S.2, ele tá afinzão de você, Russinha! Mas o que significa zorrazul?
Confabulamos, ―trocamos impressões‖, e nem tchum de água com açúcar... Nem solução para o
zorrazul. Que mistério!
Meio desconfiados de alguma coisa – e com aquela cara de irmãozinho que acaba de ver a
irmãzinha pelada no banheiro -, Kabrum e Liga-Tripa (ou melhor, Tiago) vieram se despedir, da
janela da varanda:
- Aí gatinhas! Já botamos tudo na caminhonete. Tem mais alguma coisa pra levar?
- Acho que não, Ti-Tiago – a Lu gaguejou.
- Então, até lá... Lara já melhorou?
- Hein?
- A Lara! Já melhorou do mal-estar?
- Aããã~hhnnn... já, já sim.. até e.. obrigada, tá? Apareçam na barraca!
- Claro! Amanha, no intervalo do show, a gente leva um lero no gramado, falou?
- Falou...
- Tão afins de um suco, um cafezinho, uma cerveja? – Lu ofereceu, tentando ―segurar‖ o Tiago mais
um pouquinho.
- Agora não, Lu... Posso te chamar de Lu?
- Pode. Claro. Deve... Ti...
- É que... ainda temos que arrumar a maquina de gelo seco, pra fazer fumaça, sabe como? Fumaça
no palco...
- Pena..
- O Gu já voltou do Rio? – perguntei.
- Só amanhã. Tá fechando um negocio...
Aí Tiago se aproximou meio sem jeito, vermelho como um picolé de groselha, pegou as mãos da Lu,
beijou-as rapidamente e colocou algo entre elas. Depois, chispou na direção da caminhonete, onde o
Kabrum já acelerava, impaciente. Saíram buzinando e cantando pneus.
Lu abriu o bilhete que tinha entre as mãos.
- Help! Ai meus sais! Veja isso, Lara!
Abri o bilhete:

Lu,
O beijo é uma língua gostosa de aprender.
Mas pobre de mim, não sei japonês.
Você não quer me ensinar?
Te sonho! Te adoro!
Arigatô!
Sayonara!
Ti

- Yiiiiuuuuuuupe! – detonamos.
Lu pôs minha mão sobre seu coração. Batia como o meu.
―Coração de flor selvagem.‖
- Ai, Lara! Por essa eu não esperava. E agora? O que é que eu faço?
- Foi uma declaração de amor também, Lu. Não percebeu? Uma legitima ―michupa queuderreto‖ da
classe sorvetóidea, família dos ligualídeos, espécie Beijopithecus electrus, raríssima também,
sacou?
- Acho que sim, isto é, pode ser...
- Claro que é... ―Te sonho, te adoro!‖
- Mas e se ele tiver s fim só de me beijar, Lara? E depois... bau-bau! Adeus...
- Não creio, Magalu. Pela minha experiência, que não é lá grandes coisas, mas pode ser
considerada nesse caso, ele tá a fim é de ―ficar‖ mesmo. Aliás, de tímido não tem nada. É preciso
muita coragem pra fazer o que ele fez, viu?
- Você acha?
- Lógico! Beijou as mãos, pôs bilhete entre elas... precisa mais?
Pulamos abraçadas: felicidade a duas era muito melhor. E estávamos desabrochando. E havia
naquele momento um medo enorme de que as pétalas caíssem. Um medo grande de que os nossos
corações selvagens, de repente parassem. E se derretessem apenas com o calor do que a gente
sonhava.
De modo que fiquei pensando, mais uma vez, como a vida reserva surpresas a cada minuto que
passa. Depois do vendaval, a felicidade leve e quente da brisa, depois o sono.
Arrebatada ainda, comentei com a Lu:
- Repare como são as coisas: até ontem, éramos duas morcegas abandonadas na masmorra das
bruxas, numa floresta escura e gelada. Hoje, somos princesas encantadas, na mais alta torre do
castelo...
Ela completou:
- No castelo dos príncipes, que nos esperam lá embaixo, na ponte levadiça, debaixo do sol...
- Uau!
E detonamos duas taças de sorvete que dona Mishi acabara de colocar na mesa.
Detalhe: naquela tarde, os indícios de que dona Mishi fosse mesmo a tal tia Kazumi ficaram mais
claros.
Percebi que havia um microcomputador na mesa do escritório dela e, ao lado, uma pilha de revistas
pra adolescentes, recortes, horóscopos, mapas astrológicos e até um minidicionário de gírias.
Mas resolvi não levar mais adiante a ―investigação‖.
Não alteraria nada eu saber da verdade, não mudaria em nada a minha vida. Pelo contrário, só
aumentaria a admiração por aquela mulher que, lá no fundo, devia ter um bom motivo pra esconder
sua generosidade atrás de um pseudônimo: tia Kazumi.
Ou talvez ela fizesse isso simplesmente por timidez, ou por uma questão de ética, de princípios.
Faça o milagre, mas não revele o santo. ―Coisa de orientais‖, pensei. ―Ah! Esses japoneses
imprevisíveis e suas mascaras maravilhosas!‖
De repente a Lu, com uma inenarrável cara de sapeca, detonou:
- Me ensina a beijar, Lara?
E eu escapuli, na mais indescritível cara de ―catedrática‖:
- Deixa pra amanhã, Lu. Ainda tenho que passar no dentista.
Claro que era mentira. Ou melhor, meia mentira. Dentista? Só no dia seguinte. Ás vezes sou assim
mesmo: fecho a gaveta e jogo a chave fora. Larissa Berioska, a esparramada, a estrupícia.
Capitulo 24

QUINTO DIA DE AGOSTO: sexta-feira, dia da festa!

Acordei com o pé direito.


No colégio o zunzunzum sobre a festa aumentou. Tinha até professor querendo ir, pode? E todo
mundo perguntava: - Como é essa tal barraca do destino? Você é cigana mesmo?
O boato se espalhara e queriam saber detalhes. Guardamos segredo, é claro!
Às duas horas da tarde abri a boca, e o Dr. Marcus, meu ortodontista, acabou de completar o
quadro:
- Agora estão corretos, Larissa. Articulação perfeita. Você não precisa mais usar aparelho nos
dentes!
- Yiiiuuupeeee! – detonei.
Uma hora depois eu já estava na casa da Lu, ensinando ela a beijar.
Calma, caríssimos leitores! Não é o que vocês estão pensando não, viu? Chispa! Isola!
Apenas contei pra ela o lance do meu primeiro beijo. E pra mal dos pecados, se lembram com
quem? Pois é, como Cultura inútil, pode?
Mas até que foi legal. Naquele tempo ainda admirava sua inteligência. Não ligava para os perdigotos.
E nem eu nem ele sabíamos exatamente como era o beijo: só de filme. Estávamos virgens nesse
assunto, e morrendo de medo. Mas aprendemos.
Não sei se, numa aula de biologia ou de química, o Culta tinha me mandado um bilhete assim:
VOCÊ É A GLICOSE DO MEU METABOLISMO. TE AMO MUITO! E assinou com uma letrinha
miúda: paracelso. Assim mesmo, com minúsculas. Tive dó, tive pena, instinto maternal, não sei.
Resolvi dar uma chance pra ele, mesmo sem saber que tipo de coisa ia rolar.
No dia seguinte, depois do inglês, pediu pra me acompanhar até em casa. No ônibus veio com o
seguinte papo:
- Um beijo pode deixar a gente exausto, sabia?
Fiz cara de desentendida. Ele continuou:
- Dependendo do beijo, a gente põe em ação vinte e nove músculos, consome cerca de doze
calorias e acelera o coração de setenta para cento e cinqüenta batidas por minuto.
Aí ele tomou coragem e pegou na minha mão. Mas continuou salivando:
- A gente também gasta, na saliva, nada menos que 9 mg de água; 0,7 mg de albumina; 0,18 g de
substancias orgânicas; 0,711 mg de matérias graxas; 0,45 mg de sais e pelo menos 250 bactérias...
Aí o bactéria falante aproximou o rosto do meu e, tremendo, tirou seus óculos, tirou os meus, e
ficamos nos olhando, de pertinho. O bastante para que eu descobrisse que, sem os óculos, seus
olhos eram bonitos e expressivos, azuis e brilhantes. E achei gostoso aquele calorzinho que envolvia
o corpo da gente. Ele beijou a pontinha do meu nariz, fechei os olhos e senti sua respiração
ofegante. Seus lábios tocaram os meus. Primeiro de leve, depois com mais força, e então nos
abraçamos de bocas coladas, por alguns segundos.
E de repente o ônibus já havia chegado no ponto final e já tínhamos transposto, juntos, o abismo do
primeiro beijo.
Desci, cheguei em casa, nos beijamos de novo no portão do prédio, e aí ficamos apaixonados por
várias semanas. Até que o mundo rolou, as luas vieram e voltaram, o tempo se esqueceu do tempo,
as contas do telefone aumentaram, depois diminuíram... e foi ficando nisso. Normal.
De vez em quando, ele ainda me ligava pra falar de suas reações orgânicas quando me via na
escola. Botava nos perdigotos aquela salada química. Falava de adrenalinas e noradrenalinas...
Help!
Depois dava um tempo, e vupt! Voltava a ligar, falando de "progesterona, testosterona", e os
escambaus... Putz!
— É por isso que tou com cara de bobo alegre, Lara!
E bobo alegre ele ficou. Porque conheci o Gustavo. O resto vocês já sabem.
Assim, ensinei a Lu a beijar: fiz uma espécie de manual do beijo pra ela:
1. Nunca beije sem vontade, Lu. Primeiro, você tem que estar muuiiiiinto a fim!
2. Sem essa de querer saber quem beija e quem é beijado. O que importa é a vontade, o clima,
sacou? Depois do beijo, quem vai lembrar?
3. Se o Liga-Tripa... desculpe... se o Tiago estiver muito tímido, deixa a coisa rolar, sem forçar a
barra, certo? Tentem os beijinhos no rosto, na mão, na ponta do nariz, um roçar de lábios... Não
precisa começar logo com um "de língua", tá?
4. Não exagera no batom. A Ré já me contou: todo carinha detesta sair maquiado de uma sessão de
beijos.
5. Não fique "geladeira" não, viu? O Tiago tá a fim de beijar você, e não uma boneca de pano.
6. Não fale demais. Pode cortar o clima, sacou?
7. Confira se o seu hálito tá legal. Mas sem encucar...
8. Feche os olhos. Do jeitinho que a gente vê no cinema. O resto, minha filha, é ir flutuando na
tempestade. Depois você me conta...
— E se não der certo, Lara?
— Ora, ninguém nasce sabendo mesmo. E o beijo é o nosso primeiro contato pra valer com os
carinhas, né? Eles também não nascem sabendo. Vai ver, o Liga-Tripa é mestre.
— E se eu quebrar a cara?
— Fazer o quê, Lu? Crescer não é fácil, minha filha. E a vida não tem certificado de garantia. Pior é
ficar longe das grandes emoções que ela oferece, não acha? Se você beijar a lona com o Liga-Tripa,
levanta e parte pra ou¬tra, pro segundo round, sacou?
Parece que, depois disso, ela se sentiu mais segura.
Pegou um espelhinho na bolsa, passou batom e perguntou:
— Assim tá bom?
— Tá ótimo. No ponto.
Beijou o espelho.
— Ai, meus sais! Deixa pra treinar com o Liga-Tripa, Lu!
Dei por encerrada a aula de beijologia.
Já eram cinco horas da tarde. Trabalhos terminados, recortes e xerox na pasta de elástico, tudo em
ordem. Agora eu precisava ir pra casa me aprontar pra festa. Ainda teria que descolar uma fantasia
de cigana, e não sabia como.
No entanto, uma coisa me atormentava:
— Lu, você não sabe mesmo qual é essa bendita surpresa que o Gustavo tá me preparando?
Ela fez uma cara não muito convincente, tentando escapulir do meu cerco:
— Sei não, Lara.
— Lu, olha nos meus olhos e repete. Você não sabe mesmo?
— Claro que não, Lara! — me sondava com o rabo do olho. — E, mesmo que soubesse, não falaria,
viu?
— Por quê? Você não é minha melhor amiga? E o nosso pacto de sangue?
— Sou... Mas eu poderia estragar tudo. A surpresa não teria mais o mesmo gosto... e não me
obrigue a isso!
Tive certeza de que ela sabia. Porém afrouxei a marcação, desapertei o cinto. Afinal, ela tinha razão.
"maldita curiosidade essa que faz sofrer tanto as mulheres!"
Lu riu baixinho, tentando esconder o gesto com mão sobre a boca, como fazem as gueixas. Estava
feliz, muito feliz. E pela primeira vez também pensou alto naquele dia: "Curiosidade mata..."
Mas gelei quando ela pegou uma adaga sobre mesinha de centro da sala, desembainhou e...
— Vou fazer harakiri, Lara! Vou me matar! Adeus!
Voei pra cima dela.
Rápida, saltou para um lado, se esquivou de mim e, num golpe de corpo, colocou a adaga no meu
pescoço:
— Banzai! — gritou. E depois ficou morrendo de gargalhar na minha frente, fazendo troça do meu
medo.
Naquele momento percebi que a Lu era mesmo uma garota imprevisível, diferente, selvagem: uma
flor selva¬gem, como eu. Por isso éramos tão unidas, tão ligadas, tão amigas. E tínhamos nossas
próprias armas para nos proteger do mundo.
— Essa adaga era do meu pai, Lara. Ele era descendente de samurais.
Ficou triste. Sentiu saudades de um pai que nem conhecera. Enxuguei sua lágrima.
— Leva a adaga pra nossa barraca, Lu. Põe sobre a mesa. Além de decorar, você vai se sentir mais
perto dele... E vai dar sorte, tá? Promete?
— Prometo.
— Então já vou indo. Agora vá se arrumar. Já são quase cinco e meia.
Saí da casa da Lu com um nó na garganta, mas debaixo de uma tarde fantástica.
Pelo caminho, descendo as ladeiras, eu vinha sentindo o cheiro dos jasmins que se derramavam
pêlos muros. Algumas damas-da-noite também desabrochavam suas flores brancas e amarelas nos
jardins. Me senti meio perdida, com uma culpa de não sei o quê. Talvez culpa por estar feliz.
Entrei em casa. E de certo modo me vi penetrando numa igreja. Peguei o telefone imediatamente e
liguei pra Lu:
— Tá tudo bem, bruxinha?
— Tudo, Berioska. Já passou, tá? Pode ficar tranquila.
— Tiúris?
— Tiúris! Que horas eu passo pra te pegar?
— Não precisa, não. Mamãe me leva.
— Tem certeza?
— Bom... ela pode não chegar a tempo, né? Falar nisso, que horas a festa vai começar? Esqueci
desse pequeno detalhe...
— Oito em diante. Faz assim: lá pelas sete e meia você me liga. Se sua mãe não tiver chegado
ainda, a gente passa aí.
— Massa!
— Então, beijo.
— Beijo.
Aliviei. Ufffffa! Como que por milagre um peso saiu do meu coração.
Agora era pensar na fantasia. E no agito da festa.
5ª PARTE – FESTA NO CORAÇÃO
Capitulo 25

Revirei armários, abri e fechei gavetas, tentando ei contrar entre minhas roupas algo que se
parecesse cor fantasia de cigana. Eu tinha muitos vestidos, mas não eram suficientemente longos. E
quase todos escuros.
Eu precisava de algo colorido, muito colorido, e lenços pra amarrar na cabeça e no pescoço. Apelei
pras coisaí da minha mãe. Também não achei necas. E agora, meu São Judas Tadinho?
Tanto me preocupei com as artes de uma cigana que me esqueci do principal: o visual, o look. Quem
iria acreditar numa cigana de tênis ou minissaia? Ou fuso, colete, botas e chapéu? Ou colant? Ou
camiseta de malha debaixo de um jeans?
Plim! São Judas Tadinho me deu a luz.
Liguei pra minha avó Bilude, a "cabelos de algodão doce". Ela sempre me salvava nessas e noutras
situações. Era uma mulher muito prática, inteligente, bondosa e linda: tinha os cabelos curtos e
brancos, parecidos com nuvens de algodão. Compreensiva e franca, às vezes até demais. E como
era alegre!
— Vó! Help!
Bastou dizer essas duas palavras mágicas. Expliquei o assunto e ela já deu uma ideia:
— Vou verificar no baú, Lara. Quem sabe encontro umas saias antigas da sua mãe, coisa da década
de setenta, uns trecos meio hippies, que guardei?
— Perfeito, vozinha. Aquelas saias compridas e coloridas, né?
—Isso mesmo. Você já tomou banho, lavou os cabelos?
— Não.
— Mas como, minha filha? Tá parecendo com sua tia Marilise! Se apresse!
(Tia Marilise, irmã da minha mãe, era médica homeopata. Devia ser discípula de Jó. A rainha da
tranquilidade e da paciência, vivia me dizendo: "Devagar se vai ao longe, quem tem pressa come
cru" etc. ...)
— Como assim, vó?
— Você vai para uma festa às oito e ainda nem tomou banho, não se produziu? Que rapaz vai
querer dançar com uma cigana suada?
— Uai, vozinha, eu tava relendo os horóscopos, isto lê... deixa pra lá. Depois te explico.
— Olha, faça o seguinte: tome um banho e lave bem os cabelos com xampu e creme rinse, tá?
Enquanto isso eu vou ver o que temos no baú. Dentro de meia hora, no máximo, eu tou aí...
(Ela morava no mesmo bairro da gente. E passou a dirigir um Chevette vermelho, depois que
perdera o marido, o vô Waldir; e o único filho, o tio Celso, que também não conheci.)
— Falou, vozinha! Não demore!
— Pode deixar comigo. Vou te fazer uma "produção" jóia!
Gostei daquele "jóia". Era uma gíria que nem se falava mais, saíra de moda. Mas como a vovó
gostava de estar sempre atualizada com as coisas — era uma mulher muito moderna —, inclusive as
gírias, deixei o "jóia" passar em brancas nuvens de algodão-doce, como os cabelos dela. E corri pró
banho.
Em quinze minutos vovó já tocava a campainha, com uma caixa de papelão debaixo do braço.
— Você tem certeza de que a festa começa às oito?
— De oito em diante.
— Então não temos muito tempo. Vai secando os cabelos, que eu vou preparar um chá de camomila
bem forte.
Estranhei. Pra que chá de camomila? Mas não disse nada. Quando vó Bilude tomava a direção das
coisas, era melhor concordar. E caladinha, boca-de-siri.
Enquanto o chá esfriava, ela empurrou as cutículas das minhas unhas e pintou-as com esmalte
vermelho. Depois, molhou um algodão no chá, colocou-o sobre meus olhos e falou:
— Agora deite um pouquinho. Vamos acabar com essas olheiras! — e trouxe outra xícara de chá pra
que eu tomasse. —Vamos acabar com essa ansiedade! Relaxa! — e foi pintando as unhas dos
meus pés, também de vermelho. Depois começou a maquiagem: aplicou a base e uma camada de
pó translúcido. Nos olhos, usou sombras opacas e neutras. Por último, passou delineador, rímel e
blush.
— Fique de olhos fechados, tá? Escutei um ploc na cozinha, parecido com o da torradeira. Em
seguida o barulho do liquidificador.
— Pode abrir. Tome.
Me serviu um misto-quente e torradas com vitamina de mamão e suco de laranja.
— Não to com fome, vó!
— Não é legal chegar à festa de estômago vazio. Às vezes os quitutes demoram a pintar, e você
pode ter uma indisposição. É só pra forrar a barriga...
Não discuti. Aliás, estava adorando aquele paparico.
Terminei o lanche.
— Vamos experimentar a roupa!
Abri a caixa de papelão: uma blusa tomara-que-caia de retalhos, com triângulos, retângulos e
quadra¬dos multicoloridos. Uma saia rodada plissê, também colorida. Lenços de seda vermelhos,
amarelos e verdes. Uma sandália franciscana que serviu direitinho no meu pé. Pulseiras de latão,
anéis de bijuteria, um colar de pérolas que dava duas voltas no pescoço e um par de brincos de
argolas enormes.
Pronto! Vó trouxe o espelho e eu já era uma cigana!
— Yiiiuuuuuuupie!
— Agora solte os cabelos, Lara. A chave girou na porta e mamãe entrou com uma sacola comprida
nas mãos.
— Mamma mia! — ela quase caiu de costas. — Inacreditável! Que produção fantástica, mãezinha!
— Modéstia às favas, ainda tenho os meus segredos...
— Nossa, vó! Tou a mil! Ficou lindo! Não parava de me olhar no espelho. Pensei: "O Gu vai ter um
troço quando me vir assim..."
— Agora o batom, garota! — mamãe falou.
Exibiu um dos dela: vermelhão, com sabor de cereja. Passou-o sobre meus lábios e depois me fez
beijar um lenço de papel, pra retirar o excesso.
— Acho que falta alguma coisa, Sônia... — vovó ficou matutando. — Castanholas?
—Que castanholas, vó? Castanhola é pra bailarina espanhola, aquelas do sapateado... Você não
assistiu Bodas de sangue, do Saura?
— Claro, mãe! O perfume...
Mamãe pingou uma gota de Dune atrás das orelhas e nos pulsos.
Pronto! Fiquei um arraso!
— Pode ler a minha mão, madame Lariuska? — ma¬mãe brincou.
— A minha primeiro — vovó pediu.
— Não é Lariuska, não, gente! É Berioska mesmo...
— Chique!
— Chiquésimo!
E de repente estávamos as três ali, abraçadas e felizes: três gerações de mulheres que se viam a si
mesmas pela primeira vez como num caleidoscópio. Uma era a face da outra. A chave. E o coração.
E a alma da outra. E em cada uma um pouco do tempo pelo qual já haviam passado, passavam e
iriam passar, enquanto houvesse uma brincadeira tão singela, imprevisível e delicada como a própria
vida. A vida fantasiada de cigana, de professora ou, simplesmente, de avó.
E percebi que a chave que uma guardava abria o coração da outra, que guardava uma chave que
abria a mesma gaveta, do coração de outra, que continha a mesma chave.
"Um moto-contínuo", pensei. "A vida dentro da vida, a caixa de uma caixa, a porta dentro da porta..."
Compreendi assustada, e a tempo, que as coisas mais bem guardadas eram simplesmente aquelas
que podíamos deixar à mostra, às claras, para que o outro as encontrasse.
E com as portas escancaradas de quase tudo, na alegria infantil que pareceu saltitar entre elas,
naquele minuto, mamãe e vovó foram cochichar no quarto. Ouvi algumas frases soltas:
— Ela vai adorar... Pena que vô Nelson, vó Jenny, Tioninha, Lalu e Raquel não estejam aqui pra
ver...
— Tomara que dê tudo certo...
— Garantiu que sim...
Não liguei coisa com coisa. Passei por cima: tinham mania de cochichar até ao telefone.
Dei uma última sapeada no espelho e liguei pra Lu, como prometera. Dispensei e agradeci a carona,
eufórica.
Vovó comandou:
— Vamos no meu carro. Carruagem vermelha combina mais com princesa cigana. E torçam pra
esse carango não virar uma abóbora!
Rimos.
— Onde fica?
— É na Cidade Jardim.
— Puxa! Gente grã-fina, hein? Que chique!
Peguei o envelope e a carta do Gu: rua Conde de Linhares, 480.
Quinze pras oito. Mamãe, com uma sacola comprida na mão — a mesma com que tinha entrado
minutos antes —, apagou as luzes do apartamento e saímos. A dois quarteirões de casa me lembrei:
— Ihhhh... vó! Temos que voltar!
— Por quê?
— Esqueci a pasta de elástico!
— Que pasta, Lara enluarada?
— É segredo, por enquanto. Depois da festa eu conto, tá? Mas sem essa pasta eu não posso ir.
Voltamos. Peguei a pasta na escrivaninha, tranquei novamente a porta e saí. Quando vovó dava
partida no Chevette, me dei conta de outra coisa:
— Xiiii... Peraí, vó! Tenho que levar um violino! Esqueci completamente do violino! Ai, meu São
Judas!
Me desesperei. Eu não tinha um violino: estudava com madame Berioska, mas o violino era dela,
ficava na casa dela. E durante a tarde toda não atentara para aquele "pequeno" detalhe que o Gu
pedia no bilhete: "levar o violino... o meu violino". E agora?
Vovó me consolou:
— Não se aflija, queridinha. Vamos passar na madame Berioska primeiro e pedir um deles
emprestado, tá? Agora... torce para ela estar em casa, né?
Foi então que mamãe abriu a misteriosa sacola comprida. Dentro havia outro saco de veludo azul,
com um laço amarelo.
— Não vai precisar, madame Beriosquinha! Olha o que seu pai mandou do Rio...
Arrebentei o laço amarelo feito uma louca. E dei de cara com uma caixa de madeira cheirosa. Puxei
o trinquinho da dobradiça de metal reluzente, arregalei os olhos e...
— Maigod! Um violino! Help!
— E já está afinado, Lara! Seu pai pediu que o levas¬se na dona Berioska, pra ela afinar direitinho,
como você gosta...
— Mãããããããe... não acredito! Estou sonhando! Me belisca!
— É a tal surpresa... Lembra do recado na secretária eletrônica?
— Lembro! Ai, meus sais! Vou ter um troço!
E enquanto eu tentava me lembrar da senha da festa, tirando algumas notas dissonantes, esticando
o arco, vovó brincou:
— É melhor a gente ir logo. Já vi que esse baile vai ser "de arromba". Perder um minuto vai ser
perder uma eternidade. Ainda bem que você tomou o meu chazinho de camomila...
No trajeto eu me sufoquei, chorei. Beijei meu pai no violino, abracei minha mãe na sacola e acariciei
minha vó no volante. E, não sei como, chegamos.
Capitulo 26

— Zorrazul!
Fantasiado de Capitão América, o porteiro controla¬va o interfone, numa guarita de vidro. Apertou
um botãozinho e o portão se abriu.
Uns carinhas que vinham atrás de mim brincaram: "Abre-te, Sésamo!" E o portão se fechou. Tiveram
que repetir:
— Zorrazul!
E entraram, dando gargalhadas. Logo percebi que o Gu tinha amigos que iam de roqueiros a
budistas, patinadores, pára-quedistas, rappers, surfistas de água doce e até gente normal. E que
Babel!
Uma tribo já dançava um rap à beira da piscina, imitando o Michael Jackson. Pelo big agito e pela
para¬fernália, a festa ia ser mesmo "de arromba", como dissera minha vó. A "zorra" se espalhava
pelos gramados, entre pinheiros, mesas, cadeiras e buganvílias. Tudo sem enredo, misturado como
a nossa geração: posters dos Beatles, Guns n'Roses, Pato Fu, Skank, Bob Marley, Sepultura,
símbolos de paz e amor, globos espelhados, , corações, os "nossos cartazes", luzes coloridas, luz de
velas (selas de cavalo, chapéus de cowboy, posters de vacas, cavalos, ovelhas: o pai do Gu era
fazendeiro num lugar chamado Baependi, no Vale da Árvore dos Ossos, e se chamava seu
Zângelo), cenas de guerra, vassouras, gaiolas de bambu, liquidificadores velhos, brinquedos de
plástico, balões e... lá no fundo, entre a casa (que era enorme!) e o palco, a minha barraca! Me
arrepiei, apertando o violino e a pasta de elástico contra o peito.
— Vai ser um auê! — detonei sozinha.
— Tá o maior tititi lá em cima, cunhada! Todo mundo esperando sua chegada!
Virei as costas e dei de cara com a Clarissa, equilibrando uma bandeja de salgadinhos.
— Sirva-se, madame Berioska — ela emendou. — Eu seguro o violino pra você.
— Ai, Clarissa, que susto! E o Gu?
— Por aí, madame. Tá meio que fazendo sala prós amigos, por enquanto. É gente pra dodói, não é?
— Uau! Nunca vi tanta galera diferente!
— Papai e mamãe foram pra fazenda. Sabe como é, quiseram deixar a "tchurma" mais à vontade.
Vou ter que segurar essa onda, já vi.
— E você, sozinha de garçonete?
— Não. Mamãe pediu prós empregados ajudarem. Até o jardineiro, o Lindolfo, tá dando uma de
garçom hoje. Mas já virou uns goles. Tá zuretinha da silva! E o Herculano, o motorista, não pára de
tomar o "último" conhaque.
— Pelo visto, tem um pessoal meio turbinado, né?
— A Tess é que parece ligadona. Não larga do celular. Fazer o quê?
— Isso aí, cada um na sua.
— Precisava ver o papo da galera da asa-delta. O Gu me arranja cada amigo.
— Como assim?
— Não entendi nada do que eles falavam. Nadinha!
— Pois é, Cia, hoje em dia é assim: cada tribo com sua língua própria, né? Quem não tiver por
dentro, voa...
— E se estrumbica! Deixa eu girar agora. Tem muita gente chegando. Vou avisar o Gu que você...
— Não precisa! Já avisei! — era o Cultura fantasiado de algo parecido com uma cobra: a cara e os
óculos aparecendo por um buraco.
— Ô Culta! E aí?
— O Gu tá doido atrás de você. Aceita um guaraná? Procurei o Gu no palco enfumaçado pelo gelo
seco, entre as luzes do estroboscópio que girava. Necas!
— Você sabia que a maior minhoca do mundo é a da Tasmânia, que atinge cerca de um metro e
oitenta de comprimento? — a cobra detonou, entre perdigotos de guaraná.
— Sabia, Culta, e ela se parece muito com você! Que tal ir procurar uma jararaca na beira da
piscina? — pas¬sei o dedo, carinhosamente, no seu nariz.
Ele riu e ensaiou uns pulinhos.
Virei as costas em direção à barraca. Lá estava ―ele‖, dando dois beijinhos no rosto da Lu.
"Vou assumir meu posto de comando", pensei. Brinquei com o nariz do Culta outra vez, analisei
rapida¬mente a situação. Ordenei:
— Cuida do violino e dessa pasta, sócio! Volto logo, tá?
Corri até a barraca do meu destino. Desviei de um pessoal que parecia jogar capoeira no gramado.
Mas esbarrei numa mesa. Uns copos caíram, resmungaram alguma coisa. E gritei:
— Gustavo!
Ele me viu.
O coração tremeu. As pernas falharam, faltou ar. O mundo pesou sobre meus ombros, mas ele
continuava lá. Lindo!
Nos encontramos no meio do caminho e não precisamos dizer mais nada um pro outro naquela hora.
Nem uma palavra. Apenas entrelaçamos as mãos, mergulhamos nossos olhos nos oceanos
profundos que os olhos do outro ofereciam. E nos abraçamos, ofegantes. Como se uma saudade
imensa — a saudade dos amantes que não se vêem há anos — tivesse tomado conta de tudo.
E então senti que, talvez algum dia, quem sabe, ele também pudesse me amar. Como eu o amava.
Capitulo 27
— Você não trouxe o violino, Lá? — perguntou com a voz meio trémula.
— Tro-trouxe sim, Gu. O Culta tá segurando ele pra mim.
— Ótimo!
— Por quê?
— Mais tarde te conto... Bem, é uma surpresa, sabe?
— É?
— É... — ele também estava nervoso. Confessou:
— E-eu sinto muitas saudades de você, entende? Bem, é que, é que... — engasgava. — Isso nunca
aconteceu comigo, sabe como?
— Sei...
— Eu passei as férias todas pensando em você...
— Eu também. Lu cortou o barato:
— Agora chega de confidências, pombinhos! Vamos ao trabalho! — bateu palmas.
Fuzilei a Lu com um olhar. Gu beijou meu rosto e falou "até mais tarde", se encaminhando para o
palco. Mas, antes disso, deu um aviso:
— Olha, gente, cuidado com os fios trançados na parte de trás da barraca! Tivemos que ligar um
gerador elétrico nos fundos. É só não passarem por ali, para não
tropeçar, OK?
— Tudo bem, Gu. A gente não esquece. Pode ficar tranquilo.
Meu "sócio" trouxe o violino e a pasta de elástico. Entramos na barraca, ocupamos nossas mesas e
ficamos à espera dos primeiros "clientes".
Para minha surpresa, o próprio Culta já foi logo pedindo uma frase muito louca pra mandar pra
Bebela, uma paquera que ele tinha de outra sala, no colégio.
Despistando, revirei meus xerox e não descobri nada que pudesse se adaptar ao jeito de ser
daquela peça rara.
Mas eu estava inspirada. O abraço do Gu tinha me deixado com a corda toda. Pensei um pouquinho,
peguei uma caneta e caprichei, em letra de forma:
Bebela,
Vi um barco voando, quando de repente furou o pneu.
Quantas melancias sobraram?
Não dá pra saber, já que peixe nao tem pulga!
Xiiii!!! Quando penso em voce, nao falo coisa com coisa!
Te adoro!

Paracelso

O "cobra-de-óculos" vibrou:
— Genial, Berioska! Você é mesmo uma gênia! Mas me explica uma coisa: que negócio é esse de
me chamar de sócio?
De lambuja, dei pra ele a piada da Gorete e uma das adivinhas. Propus o lance:
— Aí, Culta! Já que gostou, que tal dez por cento do faturamento pra você ler essas mensagens lá
no microfone, nos intervalos da banda?
— Topo! Deixa comigo, desde que eu não tenha de tirar a fantasia.
— Vai ficar até mais charmoso: uma cobra lendo bi¬lhetes de amor...
— Cobra, não! Minhoca!
— A maior minhoca do mundo. Um minhocuçu! Recebi a grana dele, a primeira. Guardei na gaveta.
Do outro lado a Lu já jogava as cartas com uma patricinha desconhecida, de outra galera:
— Rei de copas, minha filha... um cara mais velho vai incentivá-la e dar o maior help num projeto
seu. Huuummm... Valete de ouros... deve pintar um novo amor, sabia? Um cara supersincero, porém
um tanto complicado...
Chega o Xoba. Desastre. O que escrever pra ele? Meio detonado, queria uma declaração de amor
justamente pra Ré. Mas não me fiz de rogada. Lasquei:

Rê,

Quando te conheci, montei num cavalo e fugi.


De saudade nao aguentei: montei numa vaca e voltei.
Te amo pra burro!

Xoba

Ele delirou. Só pediu pra tirar o te amo e trocar por te quero: era mais sincero. Tava a fim de "ficar"
com ela. E, na saída, ainda ofereceu um cigarro e um copo de cerveja. Recusei. E como ficara
bonzinho! Me confessou:
— Sabe, Berioska, às vezes a gente briga, se dá uns "tiros" por aí, mas no fundo, no fundo, eu gosto
muito de você... — e quase chorando, como um bebezão, me deu um beijo na testa.
Do outro lado a Lu riu, enquanto lia a bola de cristal para um cara da galera da asa-delta. De vez em
quando, com a mão esquerda, ela alisava a adaga de samurai sobre a mesa. Então escutei aquela
voz de matraca enguiçada, bem na minha frente:
— Eu era de Sagitário, agora sou o quê, Berioska? E quero também uns poemas e um correio
sentimental pra mandar pró Charles, meu paquera de Valadares, que tá nos Isteites, falou? — era a
Tess, já meio tontinha, com um telefone celular na mão.
Não titubeei: pedi data de nascimento, li o horóscopo de Esculápio, passei os poemas Previsão do
tempo e Estações, e bolei outro correio:
— Beautiful! Beautiful! Beautiful! — ela cacarejou. — Você é demais, Beri! Era exactly o que eu
queria!
— São sete reais e cinquenta centavos, Tess — apresentei a conta.
— Dependura pra mim, Beri... depois eu pago, tá?
— Infelizmente, Tessália, não vendemos nada fiado nem a crediário, pelo menos por enquanto... E
também não oferecemos presente de grego! "Tebas" pra você!
Ela fez cara de xarope. Pensei: "Esses ricaços, quanto mais ricos, mais pão-duros". Depositou o
celular sobre a mesa, abriu a bolsa e meio down, mas ligadona, sacou uma nota de dez reais. Fiz o
troco e agradeci:
— Volte sempre, querida!
Quando a "furreca" saiu cambaleando pela porta, percebi a fila: umas vinte pessoas já se
acotovelavam, esperando sua vez, no maior tititi. Cochichei pra Lu:
— Olha lá fora, bruxinha! Olha o nosso sucesso! Lu estalou os dedos, esfregou as mãos e, antes de
chamar outro freguês, segredou-me:
— Já fiz mais de trinta reais, e você?
— Uns cinquenta... — respondi.
— Daqui a pouco vou ter que dar um taime pra fazer xixi.
— Tudo bem, Lu. Eu ainda não estou "apertada", não. Vou aguentar firme, tá?
— Vida de cigana não é mole! Não te falei?
— E o Liga... isto é, o Tiago? Já apareceu?
— Quando a banda também der um taime, ele vem me ver. Prometeu.
— Ulalá!

...
Continuamos o trabalho. Lu jogava búzios, lia mãos, lia cartas e fazia o "jogo da vida" com uma
desenvoltura impressionante! E eu ia sacando os horóscopos, distribuindo piadas, poemas, correios
e adivinhas, conforme o planejado.
Lá fora o som da banda detonava o pessoal, debaixo da lua cheia.
Atacavam de dance, country e anos 60. Nunca vi tanto jogo de cintura, tanta polivalência e tanto
ecletismo juntos.
De vez em quando, eu parava um pouco a consulência. Olhava pela janelinha da barraca e via o
meu gato entre as luzes coloridas e a fumaça azulada do palco, rasgando sua guitarra no ar, num
rock pauleira de arrepiar.
No entanto, estranhava muito um sujeito com máscara de Zorro, sentado num banquinho, ao lado da
bateria. Um coroa esquisito, ruivo, cabeludo, camisão estampado, que não fazia nada: só ficava
aplaudindo.
Nos intervalos, porém, o Culta chegava ao microfone e lia os recados do correio sentimental.
A galera entrava em delírio, vinha abaixo, na zoeira. E a fila ia aumentando. Porém eu percebia que
aquele cara de Zorro não parava de olhar pra mim. Sentia seu olhar a distância. E isso me
incomodava muito.
Outras vezes, numa balada romântica, o Gu se emocionava tanto quando cantava que parecia até
estar chorando: a voz meio rouca e macia, como a do Neil Young. Parecia um anjo sem asas. E eu
já querendo que a banda desse um taime pra me abraçar com ele.
Aí a Clarissa chegou com duas bandejas de salgadinhos e refrigerantes. Uma pra mim, outra pra Lu,
que pediu licença a um cliente. Foi lá dentro da casa procurar o banheiro, com alguma coisa debaixo
do braço. Na saída, Clarissa me entregou um bilhetinho:

Princesa, Prepare-se para a surpresa.


Gu

E de repente todas as luzes se apagaram. Apenas os estroboscópios do palco enfumaçado e


colorido ficaram acesos.
Aquele cara de Zorro levantou-se do banquinho, prendeu os cabelos num rabo-de-cavalo, coçou a
barba rala, debaixo do queixo e encaminhou-se até o microfone.
— Príncipes e princesas, gatinhas e gatões, podem me chamar de Zorro! Sou o novo empresário da
banda e quero comunicar aqui três surpresas. Primeiro, o lançamento do nosso primeiro disco, que
sairá também em K-7 e CD, por uma das maiores gravadoras do Rio.
A galera urrou, uivou, berrou. De algum lugar espocaram foguetes.
— Segundo... — o Zorro prosseguiu, e tive a impressão de já ter ouvido aquela voz em algum lugar,
talvez no rádio, ou na TV. — Segundo... a contratação da exímia violinista Larissa Berioska, que
também deverá fazer parte do grupo caso aceite a proposta que faremos a ela nesta noite, é claro!
Minhas vistas escureceram. Os ouvidos zumbiram, as pessoas aplaudiram e eu continuei escutando:
— E terceiro, galera das galeras, tribo das tribos... — fez uma pausa entre assobios e palmas — ...
vamos servir pra vocês um coquetel muito, muito especial! Um coquetel que dará nome à mais nova
banda de sucesso garantido no Brasil inteiro! Um coquetel que fará todo mundo beijar estrelas,
cheirar planetas, beber galáxias e mastigar a Via Láctea dessa nossa maravilhosa "zorra azul", que é
a vida... Carpe diem!
Continuei zonza, não acreditando em nada do que acontecia à minha volta. Cadê a Lu, meu Deus!
HELP!!! E o Zorro continuou:
— Com música do Gusta e letra de Larissa Berioska: o CO-QUE-TEL...MO-LO-TOV!
De repente, meu coração virou um tambor retumbando nas entranhas da selva amazônica, no meio
das palmas.
Meu coração virou um pandeiro repicando numa escola de samba, entre assobios.
Meu coração era um tamborim desafinado nas profundezas de um vulcão, entre mãos me
carregando, me abraçando e me atirando na cara redonda da lua.
Então o Gu arrancou todas as nossas palavras de sua garganta solitária, enquanto o mundo girava à
minha volta como um cavalo enlouquecido que não quisesse mais parar.
Naquela overdose infernal de guitarras, teclados, baixos e baterias, as cordas vocais do meu amor
se recolheram e explodiram, como a sístole e a diástole de tudo que é vivo — e pede pra viver mais
e mais.
Assim, perdida no labirinto que eu própria havia tecido, sem perceber, ouvi o galope do meu primeiro
protesto:

”Pra calar a boca


Numa farra,
Fechar o tempo
Enquanto chove.
Nessa falta de futuro
A touca amassa,
E a massa dorme.

Na cabeça a rolha
Tem um furo:
O mundo gira
E não se move.
Se a coisa toda
Foi na marra,
A barra é suja
Mas envolve...

A vida passa
A moda muda,
E o palco aos poucos
Descortina.
O barulho ajuda
Na fumaça
Que saltar
Da lamparina...

Mas o salário
É uma nota só.
O tempo arrota
E não comove.

O cara some
E se consome.
Seu consumo
É só de fome.
Bebe fogo,
Come lava
E lava a alma
Dessa terra.
Aí o tempo vira num tanque,
E você chora:
I love! I love!
A Bomba Humana
Pira o punk
Que trinca os dentes
Num serrote.

Se a ressaca então
For detonante:
Sal de frutas
Não resolve.

O sal saliva,
A língua assa,
E a vida fica
Mias picante.
E você chora,
Você berra:
- É hora, é hora
É hora
De um coquetel
Molotov!

E você grita,
Você chora:
- I love!
I love!
I love...”
6ª PARTE – A TRAVESSIA

Capitulo 28

As luzes se acenderam novamente. Todo mundo gritando: "I lovef I lovef I love!" , na apoteose final
das pal¬mas e dos delírios. Me colocaram no palco.
O Zorro se aproximou me abraçando forte, de uma forma esquisita — reconheci aquele perfume. E
depois me beijou o rosto — reconheci aquela barba por fazer. E finalmente retirou a máscara, num
sorriso largo:
— Paaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaai! — detonei, com os olhos arregalados.
— Eu mesmo, fiotinha... — balbuciou, enxugando algumas lágrimas de alegria. E completou:
— Custei a aparecer desta vez, não é?
Eu não sabia o que dizer. Apenas soluçava. E me abraçava com ele, pensando estar num sonho, ou
num pesadelo: não havia maneira de descobrir, naquele minuto.
Do palco eu via a turma pedindo bis: Pri-Pri, Bolanove, Dri, Liubiana (abraçada com o Pablo), Pat,
Tess (abraçada com o celular), Mariana, Ale, Xoba (com a Rê), Guilherme, Marcela, Andreia, Culta
(com a Bebela), Julius, Juliano, Clarissa... Só faltavam o Helger e a Carolina: deviam estar felizes, no
cinema. Mas fiz de conta que também se encontravam ali, abraçados. Todos. Minha galera. Todos,
todos os meus amigos ali, e eu sen¬tindo calafrios na sola dos pés, as mãos geladas, o corpo
trémulo, o calor do abraço do meu pai... até que alguém, às minhas costas, comandou:
— Lá menor, Lara!
Lu me entregou o violino, disse baixinho: — É meia-noite. — E foi sentar-se atrás da bateria do Liga-
Tripa. Meu pai me passou o microfone e fiquei plantada feito um dois-de-paus, sem saber o que
fazer, o que falar.
Mas alguma coisa me impulsionou. Algo muito forte me impeliu para a frente, e eu disse:
— Gente... — apontei um dedo pra ele — ... esse é o meu pai! Este é o Piotr... o meu pai... e é
aniversário dele!
A galera, novamente, veio abaixo. Detonei de novo:
— Dó maior!
Suspendi o arco, colocando o violino na posição clássica, entre o ombro e o queixo. E solei o
Parabéns pra você, apenas com o Gu fazendo acompanhamento no baixo de braço duplo.
Quando terminamos, papai me beijou. Continuava emocionado.
— Você acha que consegue repetir o Coquetel molotov, fiotinha?
— Vou tentar, não sei...
Gu comandou de novo: — Lá menor! — A princípio arranhei um pouco, mas não notaram. Na
segunda estrofe eu já dominava a música, e na terceira ficara completamente à vontade.
Foi o maior sucesso!
Repetimos a música mais duas vezes naquela noite. E quando houve novo intervalo — o Culta
sempre lendo os recados no microfone —, papai me levou para um cantinho do palco e cochichou:
— Foi o melhor aniversário que passei na vida, filha... Vo-você tá tocando mu-muito bem. Já é uma
virtuose...
Quis dizer do presente dele. Desisti.
— Quer almoçar comigo amanhã? — perguntou.
— Só nós dois, pai? — pedi exclusividade.
— Claro, filha. Só nós dois. Mais ninguém. Prometo! Não levo nem a verdadeira madame Berioska....
— Posso escolher o restaurante?
— Claro. Agora que você ficou rica...
— Rica? Como assim?
— Sua mãe já leu o contrato da gravadora e aprovou. Só falta você concordar. Acho que uma
violinista no grupo vai dar o maior charme, a maior mídia. É um toque especial, o algo mais. E não
há nenhuma banda com violinista em Belo. Você vai estourar logo, vai ver...
— Tem certeza?
— Claro. Vai por mim, fiota. É o meu ramo...
— E vou ter que parar de estudar?
— Não, claro que não! A gente sempre dá um jeito nisso. Deixe comigo.
— E aquele negócio do "fiquei rica"?
— A gravadora do Rio me autorizou a repassar um adiantamento sobre os direitos autorais do
Coquetel molotov. Sua música vai ser o nome do conjunto, e também do disco, como falei.
— O Gu já sabe?
— Claro. Combinamos tudo no Rio, nos mínimos detalhes. Até a senha da festa eu bolei!
— E o que significa aquilo que você falou, pai? Carpedia...
— Carpe diem.
— Isso...
— É uma locução do poeta latino Horácio, em suas Odes, escritas lá pelo século I, antes de Cristo.
Significa: "Aproveita o dia presente". Com isso Horácio quer nos lembrar que a vida é curta e que
devemos aproveitá-la ao máximo, sem desperdiçar o tempo, sacou? E então? Topa?
— Pai! Você não existe! — dei outro beijo nele.
— O adiantamento, por enquanto, é pouco. Mas é só adiantamento mesmo. Depois vêm os acertos
normais, conforme a quantidade de cópias vendidas, e as execuções em rádio, TV etc. Tenho
certeza de que a banda vai estourar no mercado.
— Quanto?
— Por ora, só dois mil reais...
— Yuuuupie! — detonei.
Nunca vira tanta grana na minha vida!
— E você ainda fala só dois mil reais, pai? Isso é um mundo de dinheiro, uma fábula. O que eu vou
fazer com tanta grana?
— Isso você descobre logo, tenho certeza. Mas ouça uma coisa: a fama, a galinha da fama, vai ficar
cacarejando na sua cabeça. Não deixe ela fazer ninho, nem botar ovo, tá bem?
Morri de rir. Lembrei-me da infância, do início da adolescência, ele me precavendo das galinhas que
podiam me visitar no poleiro do dia e da noite: a galinha da tristeza, a galinha da angústia, a galinha
do medo, a galinha da insegurança, a galinha da dúvida...
— Tá bem, pai — concordei, alisando sua barba es¬petada.
— E continue assim, como você é... Nunca sinta pena de si mesma, mesmo quando a galinha da
fama for embora. Hoje em dia, filha, tudo é muito passageiro, dura apenas quinze minutos... Me
promete?
— Prometo... — balbuciei, pensativa.
— Aqui está o contrato. Você lê direitinho e amanhã me telefona, marcando o restaurante. Sua mãe
já assinou a procuração, caso você tope. Aí a gente aproveita pra comemorar o meu niver. Agora
tenho que ir.
Me passou uns papéis e fez menção de sair.
— Fica mais um pouquinho, pai...
— Gostaria de ficar, mas estou exausto! Vim do aeroporto direto pra cá.
Fiz beicinho. Ele continuou:
— Nem tomei banho ainda, Lara. E já tou meio velho pra essas festas da rapaziada, não acha? —
balançou a máscara de Zorro no dedo, piscando um olho. — Mas me saí bem... Aliás, se você
tivesse ido ao shopping com a turma, teria me encontrado.
— Então você era o coroa que o Pri-Pri falou? O tal cara meio malucão, rabo-de-cavalo, esquisito... o
tal coroa que tava empresariando a banda?
— Malucão, não! Isto é, isso mesmo, digo, era eu mesmo... Pombas! Essa garotada... — engasgou.
— E eu só tenho quarenta e um anos...
— E por que você não me ligou, pai? A gente podia se encontrar lá... tava morta de saudades!
— Eu tinha que voltar ao Rio naquela mesma noite. Levar outra fita demo, providenciar contratos,
negociar percentagens etc. Não havia tempo a perder. Daí, combinei a festa e a sua surpresa com o
Gu lá no shopping mesmo, tudo pra hoje, digo, pra ontem. Hoje já é sábado, né?
— Obrigada, pai. Foi uma noite inesquecível! E adorei o violino!
— Agradeça ao Gustavo, filha. É um cara legal, um band-leader responsável, e muito talentoso,
apesar de cruzeirense.
Ele olhou na direção do Gustavo e riu:
— Mas acho que acabo de perdê-la, madame Berioska...
— Não fala assim, pai.
— Sei que você também gosta dele. Formam um belo par. Tá aprovado.
— Ele te falou alguma coisa?
— Adivinha! Até pediu pra te namorar, como se fazia no meu tempo. Pode?
— E você deixou, pai?
— Claro. Com o coração aos pedaços, mas deixei. Tudo tem a sua hora, né? E essa vida não se
demora no dia de ontem... nem anda para trás...
— Você já me disse isso num sonho que tive.
— Como assim?
— Deixa pra lá. Amanhã te conto, no almoço. Isto é, hoje, né?
— E não esqueça do meu par de meias, tá? Pra mim é sagrado! — ele riu, me beijou e foi saindo no
meio da turma. Fiquei acompanhando sua figura exótica desaparecer entre as mesas e o burburinho.
Era o meu pai, sim, como ele sempre fora, do jeito dele e de mais ninguém. Inteirinho. E como eu o
conhecia!
Capitulo 29

Eu estava feliz. E fiquei com medo de que a felicidade também olhasse para trás. Mas quando vi,
atrás da bateria, a Lu e o Liga-Tripa se beijando, detonei:
— Carpe diem!
Então dois olhos verdes de mim se aproximaram.
E, suspensos, fixos exatamente no encontro da lua com o toldo que encobria o palco, aqueles olhos
procuraram alguma coisa entre as estrelas. Um segredo, um enigma, uma nave perdida, ou um
sonho?
Com a cabeça, timidamente, "ele" descreveu um semicírculo de oeste para leste e tentou achar uma
saída, uma palavra. Ou quem sabe, apenas o instante em que as coisas ficam simples, e pequenas.
Assim, em silêncio, jogou seus cabelos para trás, acariciou a ponta do meu queixo e tocou seus
lábios nos meus. Senti seu cheiro, seu perfume, seu hálito.
Parecia que um violino e uma guitarra faziam fundo ao longe, leve, como uma balada distante. E,
com os olhos fechados, tive a sensação de flutuar sobre campos e colinas repletas de flores que
cantavam, numa noite clara de primavera.
Depois, um abismo: eu estava só. Na outra margem, como num sonho, a neblina. Lá, meu pai
segurava um urso de pelúcia e minha mãe carregava um livro debaixo do braço. E me acenavam.
Depois, apareceu um gato, de pêlos longos, cinzentos. E uma senhora gorda, com um violino nas
mãos, me dando adeus.
Abri os olhos. "Ele" colocou uma flor nos meus cabelos.
Vi a lua boiando num aquário vermelho. Urna chave girou dentro de mim e a lua derramou seus raios
sobre as últimas nuvens que, em turbilhão, renasciam sobre outras nuvens que chegavam.
Delicadamente, aquelas mãos dedilharam as cordas de minha alma fugidia. Tocaram a música que
vinha no galope das alegrias do vento e nas sombras que a lua beijava em nossas faces. Tocaram
tudo, enfim, que um coração pode guardar em cada compasso do primeiro amor, de verdade.
— Essa música que está tocando agora, Lara, eu fiz pra você. E se chama Balada do primeiro amor.
Trêmula, fiquei com medo de crescer. E, dentro do escuro que me separava do escuro, guardei uma
lágrima de orvalho no cantinho dos olhos. Em seguida, acrescentei dois peixinhos vermelhos no
aquário da lua, coloquei uma folha em branco numa máquina de escrever imaginária... Mas ouvi:
— Eu te amo, Larissa.
Embora tentasse, não mais consegui conter o tempo. O minuto ficou enorme demais para que eu
pudesse, ainda, dissolvê-lo em outros pensamentos, pessoas, ou palavras.
Então fechei os olhos novamente. Fiz uma ponte sobre o abismo imaginário que me separava
"deles". Mas não atravessei para o outro lado. Apenas sorri e balbuciei, feliz, muito feliz:
— Eu também, Gustavo.

*FIM*

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