BALADA - DO - PRIMEIRO - AMOR - Antonio - Barreto
BALADA - DO - PRIMEIRO - AMOR - Antonio - Barreto
BALADA - DO - PRIMEIRO - AMOR - Antonio - Barreto
Antônio Barreto
Contra-capa:
O que é estar na idade do abismo? Para Larissa, é ter pesadelos, cair em buracos, precipicios e
túneis sem saída. É se apaixonar e ter medo de não ser correspondida.
Quem está nessa idade não pode deixar as galinhas da tristeza cacarejar na cabeça. Muito menos
deixar fazer ninhos, botar ovos e chocá-los. Se isso acontecer, é bobagem apelar para bola de
cristal, poção mágica e horóscopo.
Larissa está na idade do abismo.
Nem adulta, nem criança. De manhã, outono; á noite, primavera. Tudo rápido e passageiro. A
tristeza e o medo da rejeição parecem eternos.
Para espantá-los, nada melhor do que compor letras de música, planejar uma festa de arromba e
sonhar com Gustavo, o gato mais bonito do pedaço.
Capitulo 1
E a Tess? A Tess, filha de pai rico, riquíssimo (ex-armador grego), voou pro exterior. É tão metida,
tão empombada, que até o nome dela é no plural: Tessalias. E se pronuncia Tessaliá. Pode?
- Dessa vez, oh, maigod, experimentei a Côte D'azur en la Fronce, en la Frrr-roooonncee... - ela falou
com aquele biquinho de mademoiselle. Diz que se tostou em Nice, Antibes, Cannes, St. Tropez etc.
e tal.
Será que ela ficou de top less por lá? Ou top Tess?... Adoro trocadilhos!
Continuando o filme "Minhas férias", tá faltando falar DELE, maigod, o Gustavo, o meu Gu-Guga-
Gugão, amor secreto do meu coração... Ai que coisa brega! Bleeeeeergh!
Pois é: O Gu teve uns dias no rio. Na volta, conforme informação "altamente confidencial" da
Clarissa - minha futura cunhada -, ficou ensaiando com a banda dele, que nem nome tem ainda, mas
eu já vi: faz um som da pesada, chocante! E o Gu, o meu Guga, é o crooner. Pode? E também toca
guitarra, baixo de braço duplo e violão. oh, maigod, será que já botaram música na minha letra? E a
minha letra, como a banda, também não tinha nome. Até que os dois - a banda e a letra - podiam se
chamar assim: SEM NOME. Ou quem sabe: COQUETEL MOLOTOV.
Bom, isso aí explico pra vocês depois. É uma história muito comprida e eu quero pelo menos acabar
esse inventário da galera voltando das férias, não é?
De modo que o mar não tá pra peixe. O peixe não tá pro anzol. E o anzol não tá pra minhoca
nenhuma! Lá na frente, temos muito tempo.
Pois bem: o Bolanove conseguiu economizar dinheiro do salário - é o único cara da nossa turma que
já trabalha - e passou as férias todas em Nova Almeida. Voltou com problemas intestinais, piriri
mesmo, mesmíssimo, de tanto comer camarão. Coisa de mineiro que não tem mar, invade o Espirito
Santo e "vórta" mais "mar" ainda.
A Dri, finalmente aprendeu a nadar. Foi pra Escarpas do Lago e jogaram ela no Rio Grande: um
primo. Na marra, ela teve de sair nadando. Bo fim, no lugar onde os barcos atracam, ela levou o
primeiro beijo. O tal primo tava esperando, na butuca.
E eu? Eu fiquei aqui em Belo Horizonte mesmo, marcando touca.
Meu pai, como sempre, não apareceu durante o mês inteiro. E minha mãe continuou dando "curso
de férias" na faculdade onde ela é professora.
Então, viajei mais que cão deitado, papeando com mosca: essa vida de pais separados... Uma
droga! Droga mesmo!
Resultado?
Vi dezoito filmes no vídeo, seis no cinema. Fui a quatro peças de teatro (por cauda da campanha das
kombis, que é mais barato). Li três romances da Agatha Christie. Comi sessenta saquinhos de
pipoca, quarenta barras de chocolate, trinta e oito sorvetes de amora - adoro sorvetes de amora! -,
quarenta e dois milk-shakespeares - adoro trocadilhos! -, oito saquinhos de batatas pringles, sete
bananas-splits... e mais não falo porque senão fico com vontade de recomeçar tudo.
E não quero que os meus adoráveis leitores pensem que sou uma megagulomaníaca. Uma leoa-
marinha, uma aliá indiana, uma baleia-azul. Não! Nada disso!
Uma escritora não deve - para seus leitores - ter ares de cachalote, de orca ou de morsa. No
máximo, ares de uma foca. Não cham?
Voltando à vaca-preta, digo, à vaca-fria: acho sinceramente que essa minha recaída "megagulo"
alguma coisa foi apenas uma queda de defesas. Uma questão de compensar, ou melhor, preencher
os vazios de uma inexorável solidão. Ai meus sais!
Se a Lu estivesse aqui, já estaria perguntando:
- O que é inexorável, Lara?
E eu respondendo:
- Deixa pra lá, Lu. amanhã te explico na aula.
Porque é sempre assim: quando me espalho, ninguém ajunta.
Mas o problema é que, desde ontem, não penso em outra coisa: AGOSTO/ AZAR/ CORAÇÃO
APERTADO/ REJEIÇÃO, ÃO, ÃO, ÃO!
Todo ano é assim... Lá na frente te conto. Prometo.
Por ora, tenho que escovar esse maldito aparelho nos dentes. Tá cheio de chiclete grudado nele.
Help!
Capítulo 2
Olhei o relógio:
- Não enche, Lu! - irritei-me. O coração pipocou.
- Putgrila! Você tá mesmo uma pilha, hein! Xôôôôô!
Lu tinha razão. Eu tinha um problema. Um problema sério. Comecei agosto, novamente, com o pé
esquerdo.
Todo ano era assim. E "aquilo" me acontecia desde os doze anos, quando meus pais se separaram.
E me incomodava muito.
"Quando me espalho, ninguém ajunta", pensei. E resolvi que me abriria com a Lu no dia seguinte, se
ela tivesse tempo.
Por ora, não. Eu estava apertada de costura, estava no sufoco, estava a mil por hora, agora não dá,
amanhã, etc. coisas que meu pai dizia, sempre que eu pedia pra ele se encontrar comigo.
Mas o coração se acalmou aos pouquinhos.
Enxuguei uma lágrima no canto do olho esquerdo. Engoli um soluço e desejei comer todos os
chocolates do mundo naquele momento, mas me contive, roendo o lápis da mesinha do telefone.
- Me desculpa, Lu. Amanhã te conto tudo, tá? Pode ficar tranqüila. Agora eu tenho que arrumar o
quarto e preparar minha vida de executiva não-remunerada. Ás três tenho inglês...
- A mamãe tá pensando em me matricular no basic, te falei?
- Ótimo, mas às quatro e meia ainda tenho violino, lembra?
- Claro, Larinha - gostava quando ela me chamava de Larinha. - Quando você chegar, me liga. Mas
antes de sair faça a simpatia que ensinei.
- Tá. Pode deixar. Prometo.
- Então, tchau. Beijo.
- Beijo.
Desliguei o telefone.
O lápis da mesinha, todo roído.
"Mamãe vai me torra de novo", pensei. Busquei na minha escrivaninha um lápis novo e troquei-o por
aquele resto de chocolate de grafite.
Mais calma, caminhei até a cozinha. Acendi o fogão e pus uma chaleira com água para ferver.
Depois, apanhei o vidro de mel no armário e fui até a sala retirar da jarra três pétalas de rosa
vermelha que a mamãe ganhara, no dia anterior, de um fã.
"Quem diria, Larissa Berioska - meu pseudônimo literário - a famosa escritora do colégio, transando
bruxarias", pensei alto.
Na verdade, eu só fazia aquilo porque tinha prometido à lu. E talvez, quem sabe, até desse certo.
Quem sabe, nesse ano, esse agosto não fosse mais igual aos outros? Mais ameno. Quem sabe o
meu pai...
Aí o telefone toca.
- Meu Deus, é o Gu!
Na corrida de volta à sala tropecei no tapete e derrubei da mesinha de cento a jarra de porcelana
chinesa que mamãe ganhara de seu último (ou penúltimo) namorado.
- Oh, maigod! E se for o Xoba? Help! Help! Help! me, baby! Tou no saco! E se for o Cultura Inútil?
Putzgrila! É demais pra um dia só... Socorro né?
Enquanto a jarra dava seu último giro sobre a mesa, no chao, derramando água e rosas vermelhas
no tapete (que mamãe tinha acabado de comprar numa liquidação), me benzi, fiz uma figa e,
tremendo, me perguntei: - atendo ou não esse maldito telefone?
Capitulo 6
- Alô.
- Alô? É a Larissa?
- É... Quem tá falando? - era voz de gato.
- É o Paracelso. Tudo bem?
Pronto! O mundo desabou. Era o próprio.. o teorema de Pitágoras de trás pra frente, o problema dos
problemas. Paracelso, o tre4sloucado, o mauricinho-lingua-de-trapo a quem todos nós, na escola,
chamamos pela inusitada alcunha de nada mais, nada menos que... adivinharam?
- Cultura Inútil?
- É... Tudo bem?
- Tudo e você?
- Quase tudo. O negócio é que eu tava aqui pensando... bem, tudo começou por volta das duas
horas da madrugada de hoje, enquanto eu acompanhava pelo meu telescópio a evolução de Antares
na Constelação de Scorpius, cruzando o quadrante oitavo a oeste do Hemisfério Sule, por
conseguinte, ao deparar-me com as galáxias de Lupus à esquerda da cauda de Centaurus, o que
espantosamente me sugeriu o formato de uma vassoura, lembrei-me de uma coisa...
- Ai, Cultura, desembucha logo! - apelei.
- Lembrei-me de que estamos entrando, exatamente agora, às onze horas e oito minutos desse
primeiro de agosto, no oitavo dia de Leão, no zodíaco. Mas, de acordo com as profecias de
Nostradamus, a partir do sétimo dia instala-se a Conjunção do Diabo. O que vale dizer: vai ser o
inferno daqui pra frente, durante trinta dias, sabia?
- sabia, Cultura. A Lu já me ligou pra falar disso. É o mês das bruxas, né?
- Mas não é a-pe-nas isso, Larissovska... - detestava quando ele frisava aquele apenas. E mais
ainda, quando me chamava de Larissovska, colocando por sua conta um ovska no meu nome, que
eu achava lindo, e ele deixava mais russo ainda.
- Não é a-pe-nas isso, Larissovska. O problema é que a Lua vai fazer subir de-ma-si-a-da-men-te as
marés e, por conseguinte - de onde ele teria tirado aquele "por conseguinte"? - as calotas polares
vão degelar com maior rapidez, provocando enchentes, maremotos e até desprendimento de
icebergs de-ma-si-a-da-men-te...
- Ô Cultura, dá um tempo! Já troquei uma idéia sobre isso com a Lu - menti. - Pra mim é só o mês
em que as bruxas andam soltas por aí. E ponto. Isola!
- Mas também não é a-pe-nas isso, Laruska... - aí era demais! Agora tava abreviando o Larissovska
para Laruska. Era demais! Soltei os cachorros, radicalizei:
- Olha aqui, Culta, tenho muito o que fazer, tá legal? Vamos deixar esse papo pra amanhã. Continue
de banzo em Natal, sonhando com foguete, ogiva, satélite, Barreira do Inferno, tá? Qual é, mané? Tá
me achando com cara de patricinha, é?
- Desculpa, Lara. É que não é só isso, entende? Você sabia que foi exatamente nesse mês que
explodiram a bomba atômica em Hiroshima e Nagasaki, no Japão? E olha o tanto de gente boa que
morreu em agosto: O Getúlio Vargas, o Juscelino Kubitschek, a Marlyn Monroe, a Carmen Miranda,
o Paulo VI, o Gláuber Rocha, o Drummond...
- Bleeeeeeergh, Culta! Vou acabar te apelidando de Pé-na-Cova... Se manca!
- Mas... na verdade, sabe? - ele continuou, comovente... - Na verdade, deixa te falar, isso tudo não
passa é de supertição mesmo. Começou lá na Idade Média, depois da Noite de São Bartolomeu,
quando massacraram centenas de protestantes, na França, em 24 de agosto de 1572...
Desisti. Era muita adrenalina.
Tirei o fone do ouvido, conferi se não havia perdigotos no bocal e deixei o Cultura inútil se ralando no
gogó, falando sozinho com sua própria caixa-de-som-encefálica. "Meu Deus! Como é que eu pude
ter o primeiro beijo com esse cara? Eu tava maluca?"
Percebi, a tempo, o animal "naqueles dias", totalmente inspirado: parecia menina com TPM. Dizem
que, de vez em quando, tinha que tomar uma pá de remédios fortíssimos. Tudo por causa da
ansiedade, da depressão, da superagitação. A Rê, por exemplo, jura que já viu ele até virar
lobismomem à meia-noite, no sítio da Tess
Foi quando, divagando sobre esse nosso famigerado "lobiboy" - o rei do ketchup -, senti um forte
cheiro de queimado invadindo a sala, a casa toda.
- Help! - detonei.
Era a chaleira que deixei no fogo, fervendo, para o chá milagroso da Lu.
Capitulo 7
- Tchsssss...
- Cof! Cof! Cof!
Quando consegui entrar na cozinha, tossindo, o fogão chiava feito uma locomotiva. Tentei girar o
botão para apagar o fogo, mas acabei encostando na trempe.
Gritei de dor.
A chaleira caiu no chão, torrada.
Procurei um pano de prato, mas a fumaça ainda estava muito densa, me impedindo de enxergar as
coisas com nitidez. E, pra piorar, eu ainda não tinha encontrado os meus óculos, desde que
acordara, naquela manhã infernal.
Me desesperei.
Então a campainha tocou.
Abri a porta e uma senhora descabelada, vizinha do andar de cima, entrou esbaforida, perguntando
se eu estava bem.
Sem esperar pela resposta, ela foi direto para a área de serviço. Pegou uma toalha, encheu um
balde d'água e despejou-o sobre a chaleira e o fogão, desligando o gás logo em seguida.
Quando os chiados horríveis cessaram e a fumaça se dissipou, trouxe um copo d'água com açúcar e
disse, coçando a enorme verruga preta que tinha no nariz:
- Tome, minha filha. Não foi nada. Foi só um susto, viu? Você precisa ter mais cuidado.
Meio perplexa, desorientada, tomei a água que ela ofereceu. Mas logo em seguida se foi, arrastando
as chinelas como se arrastasse correntes. E tive, naquele momento, a impressão de que também
usava um chapéu pontiagudo, em formato de cone. Será? Seria uma bruxa?
- Não entendo mesmo essas mães de hoje em dia... Como podem sair pra trabalhar e deixar
crianças ainda tão novas sozinhas, cuidando de casa? - ela foi falando pelo corredor, subindo a
escada e arrastando atrás de si mesma uma vassoura que fazia "toc-toc-toc". E depois, "toc-toc-toc".
Engoli seco, na dúvida se protestava por ela ter me chamado de "criança" (eu já ia fazer quinze
anos), ou se aceitava tudo caladinha. Afinal, ela me salvara do incêndio.
Fiquei com a segunda alternativa e agradeci:
- Obrigada, dona Floripes. É que me distraí com o chá do dia das bruxas no telefone... A Lu falou
que o Cultura inútil bombardeou um iceberg em Hiroshima... por causa da morte do Paulo VI no
telescópio do Nostradamus, logo depois do maremoto das calotas do Juscelino na Conjução do
Diabo e... bem, me desculpe, tá? Não vai acontecer de novo. Prometo... - e quase ainda perguntei
por que não tinha passado uma escova nos cabelos: tava igualzinha à Madame Min.
Acho que dona Floripes - que era a síndica do mês, no prédio, e morava no apartamento bem em
cima do meu - foi embora perplexa, estupefada...
- Você teve sorte, menina, porque hoje estou dando faxina em casa - ela resmungou corredor afora. -
Não enxergo quase nada, mas senti o cheiro, senti o cheiro... o cheiro...
Só aí me lembrei que tinha deixado o Cultura na linha.
De mansinho, sem fazer barulho, peguei o telefone. Ele continuava escorrendo...
- ...de modo que elas estão mesmo soltas, Laruska. E não é a-pe-nas isso. De acordo com as
últimas estimativas, de-ma-si-a-da-men-te corretas, do Conselho das Bruxas da Grã-Bretanha, há
cem mil delas somente na Inglaterra. No mundo todo são mais de um milhão e, se o ano tem
quinhentos e vinte e cinco mil e seiscentos minutos, imaginemos então que...
Bati o telefone.
Era demais pra um dia só! E antes que eu, exausta, me deixasse cair sobre o sofá, sem querer,
murmurei: abracadabra, olho de cabra. Quero que o Cultura se transforme numa... Não consegui
imaginar algo que valesse mesmo a pena. Voltei pra cozinha e limpei o chão, a chaleira, o chão.
Só quando o Júlio Verne, também já refeito do susto, miou de fome, é que eu vi o bilhete de minha
mãe pregado no ímã-framboesa da geladeira:
Lara,
Por favor, não acenda o fogão até eu chegar. As válvulas estão estragadas, com vazamento.
DANGER !
MAMÃE
Capitulo 8
Pombas! Bombas!
o mundo quase vindo abaixo por causa de um bilhete não lido, meu Deus!
E logo eu que achava a Lu distraída, avoada, desligada? A "bolhajapa", nessa história, tava errada.
Tremenda falta de autocrítica. Que bandeira, não?
Eu podia ter transformado o apartamento em cinzas. Eu podia ter feito o prédio todo voar pelos ares,
como uma caixa de sapatos. E, se isso acontecesse, eu ainda era capaz de ficar lá em cima -
babacona - procurando baratas pra matar, entre as nuvens, antes de cair. Ou bruxas montadas em
vassouras, quem sabe, ou lagartixas.
- Help! - detonei. E corri até a escrivaninha, pegando o lápis. - Um insight! - e escrevi, ofegante:
Pensei: "Vai dar uma bela letra de rock pro Gustavo botar música. Quem sabe, uma balada
romântica?"
Continuei eletrizada, como que possuída pelos incontroláveis deuses da poesia:
E continuei:
Devo contar que, depois do inglês, minha vida de executiva não-remunerada continuava até as seis
da tarde, com madame Tatiana Berioska, minha velha e bondosa professora de música! (Eu
estudava em um de seus violinos.)
Júdia, viera da Rússia ainda menina, fugindo da perseguição nazista. Seus pais já haviam morrido
num campo de concentração da Alemanha. Por milagre, perdida pelas ruas de Kaliningrado, na
Lituânia, ela foi recolhida por uns judeus poloneses que a colocaram num navio para Lisboa. De lá a
embarcaram para o Brasil, quando tinha a minha idade. Com uma diferença: já tirava no violino tudo
o que Tchaikovsky, Schumann, Bach, Vivaldi, Mendelssohn e Pagannini compuseram nesse
instrumento.
Eu engatinhava na música: um pouco de violão, guitarra mais ou menos, flauta médio e violino...
bem... me consolava quando madame Berioska dizia, mastigando palitinhos de chocolate, com seu
sotaque carregado de erres:
- Entrrrre as quinze e as trinta anos, babuska, a homem não dá o menooooorr pelota parrrra o que
rrresta da humanidade pensa dela. Das trinta a cinqüenta, a homem passa tempo toda
prrrreocupada em saber o que rrrrresssta da humanidade pensa dela. Das cinqüenta parrra diante,
babuska, a homem finalmente descoooobrrrre que a resta da humanidade nunca deu o menooooorrr
pelota parrrrra ela...
Morria de rir. E comia os palitinhos que ela oferecia numa bandeja de prata, enquanto acendia a sua
inseparável cigarrilha holandesa. Ela tinha sessenta e cinco anos, cento e dez quilos e a agilidade de
uma garota.
Podia ser minha avó ou minha bisavó. E éramos tão intimas que, de vez em quando, me deixava
tirar uns acordes do seu Stradivarius, um violino raríssimo que nem se fabrica mais.
Ás vezes fico até pensando que madame Berioska adorava o fato de eu ter um nome supostamente
russo: Larissa. E mais: havia adotado o seu sobrenome como meu pseudônimo artístico: Berioska.
Uma homenagem, apenas. Afinal, pelo menos na música, eu era uma "cria" sua.
Certa vez, meu pai me contou que ele e a mamãe escolheram o meu nome por causa do filme Dr.
Jivago e o Tema de Lara, que era a música do filme. Osmar Shariff interpretava o médico-poeta,
apaixonado por Julie Christie (a Lara, diminutivo de Larissa, em russo), durante a Revolução Russa
de 1917.
Mas foi madame Berioska quem me explicou mais tarde - com o pince-nez na ponta do nariz - logo
no primeiro dia de aula:
- Larissa, minha querida, seu nome não é um nome originalmente russo, como todos pensam, sabia?
Me embasbaquei, tomada de surpresa. Com suas bochechas gordas e rosadas, ela continuou:
- É um nome grego, que significa alegria e prazer, no sentido genérico. Em latim, corresponde a
laetitia, que deu Letícia, em português. Mas significa também fertilidade, fecundidade, abundância,
no latim rústico. E também encanto, graça e beleza de estilo, na língua retórica.
- Que barato! Quando eu tiver uma filha, se algum dia tiver uma filha, vai se chamar Letícia... - E me
maravilhava mais ainda quando madame Berioska - retocando o batom vermelho - completava:
- E na Grécia, babuska, tem uma cidadezinha linda de casinhas brancas com o seu nome, sabia?
Fica a oeste do golfo de Salônica, no mar Egeu. Mais exatamente ao sul do monte Olimpo, às
margens do rio Salemvria, na Tessália...
- Tessália? - me espantei naquele dia. "Essa eu tinha que contar pra Tess. Fazer inveja. Ou aquela
embombada pensava que só ela é que podia ter nome importante na vida?"
- Sim babuska, na Tessália, uma planície muito fértil onde se cultivam uvas. Larissa é a capital da
povíncia da Tessália...
- Ca-pi-tal da Tessália? - abri a boca de espanto. "Essa agora era demais! Super! Eu ia tirar o maior
sarro da Tess: eu era simplesmente a capital da província dela. Pode?"
- Larissa também é a pátria de Aquiles, babuska! - ela acabou de entornar o caldo da minha vaidade.
- Aquiles? Aquele do calcanhar? - perguntei curiosa.
- Sim. E o mais famoso herói do cerco de Tróia.
Não resisti. Com cócegas no céu da boca, pedi mais um pouco de capim pro meu ego:
- E a senhhora sabe a história dele?
- Sei. Quer que te conte um pedacinho?
- Quero.
Então me serviu, cerimoniosamente, um licor de anis. Bambeei as pernas, mas agüentei o tranco. E
entrei de sola nos palitinhos de chocolate, a garganta queimando, uma quentura boa, zonza. E
quando ela se acomodou na cadeira de balanço, acendi sua cigarrilha e trouxe-lhe as pantufas de
raposa polar, da Sibéria.
E como uma avó, uma avó que acaba de chegar de uma terra muito distante, contou-me:
Capitulo 10
Relógias?
Ai, meus sais! Olho o relógio: duas e quinze. Já estava superatrasada.
Me despedi, em pensamento, de madame Berioska e calcei o tênis sem amarrar os cadarços. Dei
um beijo no Júlio Verne, fiz cócegas na Aghata (achei-a muito estranha, muito agressiva ) e fiquei
considerando, seriamente, a hipótese de arranjar um namorado pra ela. Afinal, Júlio Verne era um
bom companheiro, mas era um gato. E gatos adoram comer peixes.
Pensei: ― A qualquer hora o Júlio Verne, num desses ímpetos felinos característicos dos machos,
pode se banquetear com a Aghata Crítica‖.
E morri de rir outra vez. Imaginei o Júlio Verne (o escritor) transando com a Aghata Christie (a
escritora). Hercule Poirot (o detetive mais esperto que um gato) gritando para o capitão Nemo (que
vivia trancado num aquário, ou melhor, num submarino): ―...Agora não, agora não!‖
Eu estava impossível!
Fiz um gesto no ar, espantando pensamentos comprometedores.
Depois fechei as janelas, tranquei as portas e saí, meio trôpega, pela calçada.
Lá fora um sol de faroeste me esperava. ―Bang! Bang!‖ – detonei. O dia estava lindo no Alto Barroca.
As cigarras cantavam, o céu azul, azulíssimo, e eu – como uma borboleta em lua-de-mel – era feliz.
Corri até o ponto final da linha 1001, descendo a rua Santa Cruz. O ônibus ameaçava sair. Assobiei
e o motorista esperou um pouquinho. Quando passei pela roleta, agradeci ao trocador, entregando o
vale-transporte.
O carinha lançou uns olhares, mas não dei bola. Vi ele piscando pro motorista, através do retrovisor.
Era uma senha qualquer: coisa de paquera. Nem liguei.
Apenas escolhi, no ônibus quase vazio, um banco alto, mais atrás. Agora, tranqüilamente instalada
em meu posto de vigia predileto (a janelinha de um ônibus), eu poderia observar o desfile da cidade.
2ª PARTE – FORA DE CASA, DENTRO DE MIM
Capitulo 12
Unidos do Barulho Nosso de Cada Dia, Grêmio Recreativo dos Batedores de Carteira, Desunidos do
Sem-Tudo, Anônimos do Cordão de Ouro, Foliões da Cola de Sapateiro, Independentes da
Desmiséria Alheia, Estação Primeira da Buzina, Neuróticos da Gasolina: o desfile da cidade.
Atravesso o carnaval diário de miseráveis, desempregados, ambulantes e trombadinhas: um filme
triste, muito triste. O centro da cidade é um caldeirão fervente. As ruas chiam, suam, estalam,
pipocam e se dobram em esquinas que desembocam em outras esquinas. Ferro, concreto, borracha,
metal e a sinfonia das maquinas num palco onde ninguém aplaude ninguém. Labirintos dentro de
labirintos.
Zoada, desço no ponto de em frente ao Detran, no bolo compressor. Subo até a praça da Liberdade
e olho o relógio eletrônico: 32° - Ploc! – 15:00.
Se tivesse tempo, iria olhar os chafarizes. Mas tomo a direita na Gonçalves Dias e desço a Bahia. Os
operários de uma construção mexem comigo:
- Três em ponto, gatinha! Três em ponto!
Arrisco um olhar. Eles gostam, brincam entre si e continuam o serviço, satisfeitos.
Apresso o passo e entro no saguão do curso de inglês. Lá no balcão vejo o Xoba, o Pri-Pri, a Rê, a
Liubiana, o Pablo, a Mariana e a Clarissa – minha futura cunhada. Helger e Carolina chegam depois,
descendo as escadas do segundo andar. Parece que continuam o chove-não-molha: olhares,
olhares e mais olhares...
- Esse aqui é o Breka, primeiro ano de engenharia mecânica...
- Oi! – Pri-Pri me apresenta o irmão, também mais velho, também na faculdade. Só não falou de quê.
Mas eu disse ―Oi‖. E ele disse: - Oi, prazer... Pra-Pra.
Quase ri. Que dupla! Pri-Pri e Pra-Pra...
- E ai?
- E ai?
- Que foi, gentem?
- Tem aula não, galera! Só semana que vem!
- Por que, uai?
- Não deu tempo de acabar as reformas do segundo andar!
- Massa!
- Oba!
- Só...
- É nove...
- É dez!
- Valeu!
- E ai? E ai? E ai?...
- Proponho um cinema.
- Super!
- Olhai, tá o maior calor lá fora, galera! Cedaço ainda, todo mundo de papo pro ar...
- Quem detona?
- Que tal um milk-shake no Xodó?
- Que você acha, Lara?
- Quem tiver afins, ora... Eu é que não posso. Tenho violino.
- Ai, dondoca! Vai acender a cigarrilha da ―Karioska‖, é? – Xoba dá um murro no peito e arrota. O
primo mais velho dele, o tal Breka, fica ressabiado. Desaprova.
- ―Karioska‖ é a vó! Vê se te acha, cara! – dou o troco.
Pri-Pri saca o lance, aparta, põe panos quentes:
- Olhaí, galera! Chega de papo furado! Vamos pro shopping dar um role. O Pra-Pra tá de carro, tem
carteira, pode levar a gente.
- O Breka também tá de carro, e pra ele só falta o brevê de piloto. – Xoba arrota, arrogante.
- Tudo bem, tudo bem gentem...
- Já tem uma tribo lá no shopping. Tão afins ou não?
- Quem é que tá lá?
- A Andréia, o Gui, a Tess, o Cultura, a Bebela, a Pat, a Dri, o Bolanove e a banda do Gustavo: vão
dar uma palha hoje de tarde. Tão estreando uma aparelhagem nova, da pesada, no estacionamento.
Meu coração bateu forte com aquela informação da Clarissa – minha futura cunhada. O Gu, meu
Deus, o Gu!
―Vou ou não vou? Tô morrendo de saudade dele... será que já botou musica na minha letra? Lufas
pra madame Berioska... Não. Não posso, coitada... Não posso dar o cano nela...‖
- Que que eu faço, Liu? Me ajuda...
- Me ajuda o quê, Lara? Qual é?
- Nada não, Liu... tava só pensando... deixa pra lá!
- E aí, galera?
- Chega de lero-lero. Vamos pro shopping.
- Massa!
- Só.
- Fechado!
- Vamo nessa!
Fiquei pensando num poema triste: ―Fiz a minha cama/ o colchão cheio de pedras/ o lençol bordado
de espinhos/ agora vou ter que me deitar nela...‖
- Você não vem, Lara?
- Não posso, Carol. Deixa pra outra, tá?
- Tudo bem. Beijo.
- Beijo.
Metade entrou no carro do Breka, o primo mais velho do Xoba. Metade no carro do Pra-Pra, o irmão
mais velho do Pri-Pri. Se mandaram, cantando pneus, cantando... e eu, plantada, dando cavalo-de-
pau no meio no meio-fio.
- Ah! Maldita responsabilidade! – berrei internamente.
E voltei pelo mesmo caminho de onde viera.
Capitulo 13
A casa da madame Berioska ficava perto do curso de inglês, a dois quarteirões da Bahia, na Bias
Fortes.
Agora eu dispunha de tempo. Podia dar uma esticada no cine Belas Artes, ver os cartazes da
semana. Podia tomar um sorvete no Xodó. Podia me sentar num banco da praça da Liberdade e
ficar admirando os chafarizes, os lulus fazendo xixi na grama, os velhinhos jogando damas, as
velhinhas jogando fofocobol, os coroas fazendo cooper, as crianças nem aí pra isso tudo e eu nem aí
pra quase nada...
Caminhei devagar, pensando no Gu: os olhos verdes dele, o sorriso dissimulado dele, o rabo-de-
cavalo dourado, a sensibilidade dele.
De repente: BLLAAAAAAAAANG!
Um baque surdo no chão a minha frente. Uma cortina de poeira. Algo se mexendo na calçada, se
avermelhando numa gosma e depois ficando imóvel, silenciosamente imóvel. E em seguida tufos de
gente se ajuntando, gritando, pedindo socorro.
Aí os operários desceram dos andaimes, dos tapumes, das escadas. Uma velha desmaiou nos
braços de um policial. Uma criança berrou pela mãe e, de repente, ali estava ela: A MORTE.
Pela primeira vez a vi de frente, bem pertinho de mim, esperneando feito um bicho em minhas
entranhas. Depois ela foi se acomodando aos pouquinhos, como criança que começa a dormir.
Ali estava ELA: um corpo estirado no chão, imóvel, olhando para o céu, o lugar de onde acabara de
cair. Era um operário. Talvez o mesmo que há poucos minutos me disse:
- Três em ponto, gatinha, três em ponto!
E talvez ―a morte‖ tivesse planos para o futuro. E talvez ―a morte‖ tivesse mulher pra brigar, filhos pra
criar e contas pra pagar.
E agora ―ela‖ estava ali. Ela. A morte.
Mas eu não sentia nada. Não sentia medo, nem nojo do sangue escorrendo da sua nuca para a
calçada. Apenas olhava os olhos dele, que olhavam para o céu. Apenas olhava para as suas mãos
sujas de cimento. Tentando entender o que fazia aquele cara ali, parado. Uma correntinha no
pescoço, um relógio espatifado no pulso, um alicate pendurado na cintura e um boné do Atlético
ainda pousado sobre seus ombros. E ele era jovem. E ainda tinha braços e pernas. Então? Uns vinte
e poucos anos?
Então, por que aquele cara não se levantava, meu Deus?
Por que ficava ali, vermelhamente imóvel, deixando que todo mundo visse como dormia? Por que ele
não se limpava e saía andando de volta lá pra cima, lá pro céu, lá pro andaime de onde veio?
De repente, entre zumbidos e sirenes, as coisas escureceram.
A terra se abriu sob meus pés e eu caí no vazio, mansamente, como uma pluma.
...
Quando cheguei, dona Floripes, da escada, arrematava para mamãe os últimos detalhes da minha
bandeira com o fogão:
- ... e quase que o prédio todo pegou fogo, Sônia! Precisava ver a fumaceira...
Claro que a mamãe já sabia dos exageros da vizinha. Mesmo assim, me torrou, falou do bilhete que
ela deixou na geladeira, falou da minha incrível distração, falou que ia botar cadeado no telefone,
falou que mandou o Dândi pra lavanderia porque ele estava encardido, que tinha dado uma geral no
meu guarda-roupa, que botou naftalina por causa do cheiro de mofo, etc. etc.
Depois que acendeu o primeiro cigarro, deu uma baforada longa e suspirou, abri o jogo. Fiz ela
esticar-se no sofá, tirei seus sapatos, acomodei-a numas almofadas e contei todo o meu dia.
Coitada: morreu de pena de mim. Chorou, pediu desculpas, tentou ajudar, ligou pra dona Mishiko,
agradeceu o que ela fez por mim, ligou pro meu pai, e, mais uma vez, necas...
- Esse telefone nunca atende! – ela esbravejou.
- Ele tá no Rio, mãe – falei.
- É?
- É... Miss Mary ligou pro escritório dele, quando desmaiei...
- Na hora em que esse irresponsável aparecer, vamos ter uma conversa muito séria! Pode deixar
comigo. Ele vai ver...
- Deixa pra lá, mãe. Desencana. Sábado é o aniversário dele, lembra?
- Mais um motivo, ora!
- E você, onde estava? Ligaram pra faculdade também.
- Dei minhas aulas e fui pagar uns papagaios, antes do banco fechar. A fila tava uma loucura.
Mamãe pediu que eu trouxesse um chá gelado pra ela. No segundo gole puxou-me para seus braços
e ficamos as duas deitadas no sofá: ela alisando os meus cabelos e eu admirando a beleza de suas
unhas pintadas. Senti seu perfume e gostei de ficar também um pouquinho embriagada com aquilo.
Aí mamãe apagou o cigarro e, como se adivinhasse o que eu ia perguntar, falou:
- Tudo ia muito bem, Lara, aos trancos e barrancos, sabe como? Então resolvemos separar as
escovas de dente... Que dói, dói! Eu sei. Mas não é necessário transformar sua vida numa novela
mexicana por causa disso. Não é a toa que um casal chega à conclusão de que não dá mais pra
viver junto. E, se isso acontece, acaba sendo a mais uma solução do que um problema, sacou?
Adorava quando ela falava as minhas gírias. Era uma mulher muito inteligente, letrada, mestre em
psicologia. E tinha sempre a palavra certa no lugar certo. E tudo nela combinava: os cabelos à belle
époque, castanhos, os olhos castanhos, a pele morena clara, o rosto anguloso, os óculos
arredondados, o colar de pérolas e as covinhas no rosto, que eu também herdara. O mais bonito
nela, no entanto, eram os gestos. Como ela sabia falar com as mãos!
Mas dessa vez ela estava com as mãos ocupadas. Uma nos meus cabelos e a outra na xícara de
chá, no cigarro, ou no cinzeiro.
- Sabe, Lara? – ela continuou. – O Conceito de casamento eterno mudou. Mudou para ―eterno
enquanto dure‖, sacou? E isso é positivo. Ninguém precisa ficar casado por obrigação, coisa que
antigamente as pessoas nem contestavam. Apesar disso, a idéia de segurar a barra da separação
da família é a mesma, porque os sentimentos não mudam com o tempo, entende? Amor, saudade,
ciúme são os mesmos desde que o mundo é mundo.
- Durante muito tempo eu não consegui me concentrar nas aulas, mãe. Acho que até hoje acontece.
Fico pensando que vocês ainda vão se acertar, se juntar de novo. E demorei pra me acostumar com
a imagem de vocês dois solteiros. Pensei até em ligar pro papai falando que tava com dor de
garganta, febre de trinta e nove graus, desmaios, convulsões... tipo chantagem emocional, sacou?
Aliás, pensei até em me... deixa pra lá...
- Separação não é abandono, filha. Com o tempo você vai entender que eu e o Piotr apenas
deixamos de ser um casal. Mas ele vai continuar sendo o seu pai, e eu a sua mãe, pro resto da vida.
- ainda bem que vocês não meu usaram pra fazer chantagem um com o outro, né? A Rê, coitada,
fica superconfusa, complicada, e até agressiva. O pai dela fala horrores da mãe, pra Rê ficar do lado
dele. Depois a mãe desmente tudo, e ela acha que o culpado é o pai... e vice-versa. Ela pensa que
vai pirar.
- A melhor forma de lidar com essa loucura dos pais é não tomar as dores de nenhum, nem ficar
procurando culpados, entendeu?
- Aprender a separar os papéis, não é? Como no teatro.
- Isso mesmo. Veja bem: o marido da sua mãe é um, o seu pai é outro, embora sejam a mesma
pessoa. Assim como a mulher do seu pai é diferente da sua mãe na maneira de pensar e agir,
entendeu? Nada de ficar dividida!
Esperei mamãe tomar outro gole de chá.
- Vou te contar um segredo, mãe.
- Conta...
- Pouco depois da separação, papai me chamou para ir ao cinema, só nós dois, lembra?
- Acho que sim. Faz muito tempo, né? Você tinha dez...
- Faz cinco anos... Então papai comprou pipoca, entramos no cinema, conversamos, rimos, ele me
contou piadas e aí, quando as luzes se apagaram...
- Ai, meu Deus! Não vá me dizer que... – mamãe se assustou.
- Pouco depois que as luzes se apagaram, mãe, numa hora em que a cena era muito clara, muito
iluminada, sabe?
- Conta, Lara! Conta logo!
- Eu vi o papai dando a mão pra uma moça, que estava sentada na cadeira do outro lado, perto dele.
E ficaram assim durante o filme inteiro, de mãos dadas, eu percebi. E quando o filme acabou, a
moça saiu por um corredor, nós saímos por outro, e fiquei muito tempo pensando porque o papai
fizera aquilo? Se era uma namorada dele, por que ele não me apresentou ela, mãe? Seria mais
fácil...
Mamãe suspirou, aliviada:
- Talvez não, filha. Você iria sentir muito mais ciúme do que já havia sentido, tenho certeza. E olha,
se acontecer de novo, abra o jogo, ou se apresente pra ela. ―de oferecida‖ mesmo... Ela não vai
tomar o meu lugar, entendeu? Seja quem for... E tem outra, filha: antes de sermos pais, somos
homem e mulher. Pense nisso, pra não deixar que o egoísmo e o ciúme tomem conta de você,
querendo a solidão para os dois. Temos o direito de reconstruir nossas vidas, você não acha?
- Claro, mãe. Tá melhor assim, pensando bem. Mas vocês não brigavam muito, né?
- Um pouco, filha. Só não deixamos as coisas entornar, sacou? Senão, seria pior pra você. Mais do
que já foi até agora.
- A Marcela, coitada, os pais dela trancavam a porta do quarto e brigavam baixinho, achando que ela
não estava ouvindo. Ela ouvia tudo e ficava na pior. E, depois que se separaram, usavam ela pra
mandar recados um pro outro. Mas quando eles resolveram juntar os trapos de novo, com outra
pessoa, a Marcela ficou com dois pais, duas mães, e mais três irmãos, além dos dois que já tinha.
- E aí?
- Aí que ela acha o maior barato agora. Os novos irmãos são superlegais, sabia?
- Não te falei? Nem tudo são espinhos nesse arremedo de tragédia grega! Tá vendo?
- A Marcela agora tem duas casas. Quando enjoa de uma, vai pra outra.
- Massa.
- E você, já tem namorado, mãe?
- Nada, filha. Nada sério, só um fã.
- Confessa...
- Sério mesmo. Quando pintar um cara legal, pode até ser... pode ter certeza, eu trago ele pra te
conhecer, tá?
- Tá. Eu te amo.
- Eu também, filha.
- Quer mais chá?
- Não. Vou tomar um banho e relaxar. O dia hoje foi terrível, torturante. Não como o seu, é claro. Mas
estou estressada. O pagamento dos extras não saiu. Tou me sentindo um trapo, uma bolha.
- Uma bolhajapa?
- Como você chama a Lu, né?
- É. É como se fosse minha irmã, mãe. É minha melhor amiga.
- Rá-rá! Eu sei pela conta do telefone...
Mamãe beijou-me e , antes de entrar no chuveiro, falou:
- A propósito, filha. Me desculpa por ter chamado seu pai de irresponsável? Ele não é isto, isto é...
ele sempre foi assim mesmo, desligado de tudo, meio poeta, meio sonhador, meio boêmio, sabe
como? Não é a toa que vive no meio desses ―artistas‖ malucos, por aí...
- Tudo bem, mãe. Eu gosto dele assim mesmo.
- E aí? Já pensou no que vai dar de presente, no aniversário? Que tal um par de meia? Bem bacana.
- Tou pensando, mãe. Tou pensando em algo pra ele nunca mais esquecer de mim. Meia não...
- E se ele não voltar do Rio até sábado?
- Ele volta, mãe. Eu acho que dessa vez ele volta...
Capítulo 16
1º de agosto HELP!!!!
(noite de lua cheia)
Sou uma menina de quase quinze anos, já tenho um metro e setenta de altura, magrela – nas férias
eu engordo três quilos -, morena clara, olhos grandes e pretos, e algumas espinhas no rosto, além
das sobrancelhas grossas - de taturana. Gosto de usar batom vermelho e roupas pretas, tipo “mulher
fatal”.
Dizem até que sou sexy, por causa dos meus lábios carnudos. Mas uso aparelho nos dentes e
óculos: por isso não acredito nisso.
Sou também muito romântica e sonhadora, como meu pai. Mas também sou muito esperta quando
preciso.
AS MELHORES???
1 – escrever;
2 – tocar violino;
3 – conversar com a Lu;
4 – sorvete de amora;
... e o Gu.
O meu pai é um cara que vive metido no meio dos artistas. De vez em quando ele dá uma de
empresário de cantores, grupos de rock, etc. (Ele tem um pequeno escritório com uma secretária, a
Marizete, que vive discutindo com ele, pra ele não chegar atrasado.)
Outras vezes o meu pai dá uma de agente literário, de algum escritor famosos, e outras eu nem sei
onde é que ele está quebrando o galho. É um sujeito que viaja muito,, e sempre se esquece de me
telefonar de onde está. Mas quando ele aparece eu dou pulos de alegria.
(Acho que vou ver televisão.)
Nem sei se ainda tenho idade pra ficar fazendo diário, sabe? Nunca fiz um. E acho que isso é coisa
de menina mais nova, naquela fase de “aborrecência” , no máximo uns treze anos, sacou?
Mas é que o Dândi foi pra lavanderia, de tão encardido que estava. Como ele é o meu “confidente
particular antes de dormir”, e agora já não está mais aqui, então apelei pra você. (E a televisão só
tem novela e filme chato.)
O meu dia eu não vou contar porque já contei tudo pra Lu e pra mamãe.
É que estou com um superproblema de ordem sentimental. E é possível até que eu pegue uma
paternalose aguda por causa disso. Mas, pra resolver esse, eu tenho outro megaproblema, que é de
ordem econômica, e não sei como fazer, porque a grana tá muito curtinha e eu não quero dar um par
de meias – de presente de aniversario – pro meu pai, sacou? O dinheiro da mesada também tá
quase acabando: gastei tudo nas férias, em bobagens.
Moeda corrente agora, só tenho passe de ônibus.
O que posso fazer? Me ajude a pensar.
Acho que você é muito chato. Aceita tudo sem dar palpite.
O Dândi pelo menos, conversava comigo antes de dormir.
Já estou bocejando.
UUUUUUUUUUÁÁÁÁÁ´rrrrrfff...
Até amanhã.
Boa noite.
Capitulo 17
Logo de manha, na entrada do colégio, o Xoba já me deu uma cantada. Mando ele se ralar. Não
adianta. Continua aquele blábláblá: fala da moto dele, da prancha de surfe dele, do carro novo do pai
dele, enfim, dele.
Pra encurtar o caminho, dou um role naquela ―falta de conteúdo‖:
- Xoba, se você precisar de um mecânico, tenho um primo que encara qualquer máquina, tá?
- Qualquer motor? Envenena?
- Envenena numa boa, cara. Até montou um carro pra ele mesmo: usou as rodas de um Tempra, o
motor de um Ômega, a transmissão de um Santana e a carroceria de um Escort – os olhos dele
brilharam. Se interessou:
- Pó, o cara deve ser bom mesmo! Tem o endereço?
- Tenho.
- Mas como é que esse seu primo terminou tudo, com tantas partes diferentes desse carro?
- Na cadeia!
Xoba ficou arara. Aí deu um branco nele, se atropelou e acendeu um cigarro, nervoso.
- Um dia você me paga, magrela! Dá um mole comigo pra você ver. Se bobear, dança.
- Qualé, Xoba! Vê se cresce, cara! Pra mim você não passa da versão masculina da loraburra!
Derrotado, o cérebro de ameba se mancou. Pegou seu umbigo no chão e saiu plantando bananeira
portão adentro, mexendo e assobiando pras meninas que passavam. Caso perdido.
Mas ai o Pri-Pri veio levar um papo comigo. Papo legal, esticado, sem abobrinha. O Pri-Pri era
desses que não deixava cair a linha. E me falou como foi o lance do dia anterior, quando a galera se
mandou pro shopping pra ver o Gustavo tocar:
- Precisava ver a aparelhagem nova da banda, Lara! Sumpler, as caixas acústicas novas,
estroboscópios, baixo de braço duplo, Lara, arrasou! Já fizeram uma fita demo pra tocar na rádio,
sabia?
Isso eu já sabia: o Gu tocava e cantava como um anjo, como um deus! E ele – só ele – conseguia
tirar um agudo na guitarra que me deixava simplesmente arrepiada.
- E lá no shopping pintou um cara, Lara... um coroa assim meio malucão, rabo-de-cavalo, nome
esquisito, dizendo que era empresário e tava afins de levar a banda pro Rio, gravar um CD lá, e
coisa e tal... Mas o negócio ficou assim meio laranja, sabe como?
Enquanto o Pri-Pri falava, por segundo desliguei o plug e fiquei ali parada no pátio, marcando touca,
pensando no Gustavo de novo, no seu rabo-de-cavalo dourado, nos seus olhos verdes e até no seu
senso de humor.
Gustavo tinha mania de brincar com as palavras, com as frases feitas, dando outro sentido a elas.
Viva dizendo: ―Se alguém te der um limão, faça dele uma laranjada‖. Eu achava isso lindo!
Principalmente quando ele fazia uma pausa e acrescentava: ―... mas com açúcar, pra adocicar o
espírito...‖
Era um modo, uma filosofia de vida.
Uma vez, das raras vezes em que conversamos sozinhos, rolou um papo sobre óculos, por causa
daquela musica do Paralamas: Eu uso óculos. Me perguntou se eles me incomodavam muito. Eu
disse que sim, que meu maior sonho era ganhar um par de lentes de contato verdes. Ele sorriu,
enfiou as mãos no bolso da jaqueta e falou, com aquele jeito seguro:
- Olho por olho, lente por lente, Lara, melhor ver o mundo como você já faz. Você vê as coisas ―por
dentro‖, sabe como? E eu admiro muito isso...
- Mas aqui fora tá muito brabo, Gustavo, muito descolorido – argumentei.
- Mas não será uma lente de contato verde que vai botar cor nessa brabeza toda que você vê,
sacou?
Eu quase tive um treco. Com meu coração aos pulos, ele arrematou:
- E depois, você tem os olhos negros mais lindos que já vi. Pra que tentar clarear a sombra, se os
olhos que guardam a sombra já são iluminados?
Aí eu quase desmaiei. Me deu um branco, tremi o corpo todo, deixei os livros caírem no chão e,
quando eu já tava quase me recuperando do vexame, ele perguntou?
- Você continua escrevendo?
- Acho que sim... isto é, claro. Claro que sim – engasguei.
- E o violino? Continua?
- Também.
- Faz uma letra pra nossa banda, então. Se o pessoal aprovar, a gente bota musica, topa?
- To-topo... – continuei catando milho com a língua.
- Então a gente se vê por aí, tá legal?
- Tá. Assim que tiver pronta eu te mando... isto é, entrego pra você.
- Combinado?
- Combinado, Gu. Posso te chamar de Gu?
- Pode. Posso te chamar de Lá?
Então ele se foi. E fiquei tão apaixonada que se ele perguntasse naquela hora mais um montão de
posso isso, posso aquilo, eu só diria: pode-pode-pode...
Uns tempos depois entreguei uma letra pra ele, tipo coisa que dava pra fazer um rock pauleira muito
interessante. Pensei até em botar o titulo de Coquetel molotov, porque andei misturando tudo o que
vinha na cabeça, meio sem lógica, coisa bem minha, explosiva, naqueles tempos...
Mas o tempo passou (uns dois meses) e o Gu nunca mais falou sobre o assunto. Acho que não
gostou da letra. Fazer o quê?
- Larissa? – o Pri-Pri chamou.
Tava na hora de desligar o plug do Gustavo.
Suspirei fundo.
O Pri-Pri, ao meu lado, continuou falando da esticada da turma do shopping. E eu, de tanto pensar
no Gu, comecei a procurá-lo com os olhos entre a rapaziada do colégio. Necas. Dei uma geral no
varandão do segundo andar, varri as quadras, a lanchonete...
Aí a Rê chegou. Falou que tava na maior deprê, que ―ficou‖ com um carinha que ela conheceu na
escada rolante do shopping, coisa e tal. Eu tinha o maior medo dela ficar grávida, de bandeira. Então
disse a ela pra tomar cuidado com aquela ―ficação‖.
- Hoje em dia, Rê, qualquer carinha de treze, catorze anos já faz coisas que você nem imagina. Não
bobeia!
- E daí, Lara? Não quero nem saber!
- Você ainda vai se dar mal, Rê! Vai ver!
- Tô nem aí, Lara! A dondoca é que parece uma freira com essa historia de amor platônico,
romantismo e outras babaquices. O Kabrum me mostrou a letra que você fez pra banda do Gusta...
Esbravejei:
- O que você tá querendo insinuar, sua lambisgóia?
- Que você é careta, Lara. Os gatos tão aí é pra gente miar mesmo, morou? Se eu fosse você, já
tinha ―ficado‖ com o Gusta. Ele é lindão!
Aí eu rodei a baiana:
- Cascavel! Jararaca!
Nessa hora o Culta chegou. Me contive pra não soltar um pombo-sem-asa na cara dela. Mas o Culta
percebeu o lance e já foi logo detonando um montão de abobrinhas culturais.
Começou com o mesmo lero-lero do dia anterior, sem o menor desconfiômetro: Nostradamus, Paulo
VI, telescópio, bruxaria, iceberg, tudo. Tudo misturado naquele liquidificador de perdigotos que ele ia
tirando da mochila cerebral. Batia, batia e no final: suco de cuspe. Falei:
- Ô Culta, vê se não aluga mais, tá?
Ele beijou a minha mãe, fez uma mesura e se ajoelhou no chão feito um bobo-da-corte, um valete:
- minha rainha da Rússia, princesa de Baikonur... Por você eu até encaro um extraterrestre, se ele
pintar na minha frente!
Eu nem tchum. Que saco! Continuei procurando o Gustavo pra cá, pra lá, necas!
Então a Lu apareceu pra me salvar do ET de cuspe:
- Lara! Já descobri o que vamos fazer pra levantar a grana...
Capitulo 18
Abri a carta do meu pai. Outra surpresa: lá dentro, uma nota de cinqüenta reais!
Li, reli, beijei a carta e me senti a pessoa mais amada, mais querida e mais importante do mundo.
Não pelo dinheiro, é claro, mas por causa das desculpas que ele pedia e das noticias, das novidades
que ele contava. E mais: ele estaria comigo no dia de seu aniversario... Pode?
Felicidade transbordando, esqueci da fome.
Liguei pra Lu, esbaforida, com falta de ar:
- Lu, recebi carta do meu pai, Lu! Estou a mil! Estou feliz!
- Calma, Berioska, calma.
- E já temos capital de giro, Lu! Depois te explico, tá?
Bati o telefone.
Ela não deve ter entendido nada, é claro. Mas já estava costumada com os meus vapt-vupts.
O estomago roncou. Encarei um prato de maionese com arroz e salada crua. Enquanto comia
matutava:
―Talvez a gente nem precise mais executar o plano, armar a barraca pra levantar a grana na festa do
Gu... com cinqüenta reais, com os cinqüenta reais que meu pai mandara no envelope, dava pra
comprar um presente bem transado pra ele mesmo... Era só não contar... Era só desistir do terno e
da gravata... pensar em outra coisa mais descolada... Depois, um terno com calça, camisa e gravata
não ficaria por menos de duzentos reais! Que tal um jogo de ferramentas pro seu velho Chevette, por
exemplo?‖
Entre uma garfada e outra reli os modelos de correio sentimental que já havia escrito na aula.
“DESTINATÁRIO:
O vento só vai ter um trabalho:
jogar fora as cinzas que você deixou.”
REMETENTE:
DESTINATÁRIO:
“De que valem os olhos se eles se fecham
Quando nossos lábios se tocam?”
REMETENTE:
DESTINATÁRIO:
“Tudo o que é bom dura o tempo
Necessário para ser inesquecível.”
REMETENTE:
DESTINATÁRIO:
“ Eu não sou pivete, mas estou de olho
Nesse seu coraçãozinho de ouro!”
REMETENTE:
DESTINATÁRIO:
“ A tarefa mais difícil de aprender
É aprender a esquecer alguém de
que aprendemos a gostar.”
REMETENTE:
DESTINATÁRIO:
“Você não é +, nem -. Você é = a mim.
Mas que tal : esse orgulho pra gente
X nosso amor?”
REMETENTE:
Fiquei tão entusiasmada que até parei de comer. Desliguei o telefone e a secretária eletrônica:
―Escritora que se preza não pode ser interrompida pelos alôs da vida‖, li numa entrevista da Aghata
Christie. E durante a tarde toda consegui escrever:
”Te conheci a prazo, te sonhei a prestações, te quis a crediário e te esqueci numa parcela fixa, sem
avalista. Não deu certo: era amor à primeira vista!”
“ Quando se sonha sozinho, tudo não passa de sonho. Quando sonhamos juntos, é o começo da
realidade!”
“Amigo não é aquele que fala vá em frente, mas aquele que diz vou contigo.!
“Não deixei seu coração se transformar numa estrada, onde muitos passam, mas ninguém fica...”
“Se pensas que não te amo, é puro engano teu, pois não encontrarás no mundo, amor maior que o
meu!”
“Estações
Te conheci na primavera: mas era só paquera!
No inverno você me deu a mão: calor no coração!
No verão a primeira briga: frio na barriga!
Mas você me beijou no outono: perdi o sono!
Se você arrasa o meu clima, porque não entende minha estação?”
“Quando você pensar que tudo passa, lembre-se de que um dia eu passei na sua vida... com uma
vontade enorme de ficar! Te adoro de montão!”
“Sua boca é o sol, a minha é a lua. No eclipse do amor, minha boca beija a sua!”
Reciclagem
“Estou sozinho, jogado no lixo.
Nele eu me rato, me sapo, me mosco, me lagartixo!
Que tal me reciclar, princesa, no relaxo, no refresco ou no capricho?
Prometo que depois eu-cavalo, me relincho.
Princesa, eu me principesco!
Por você, princesa, eu até me cato, eu me rei-lixo!”
“Não sou tudo que você deseja, mas sou muito mais do que você merece!”
“Você entrou na minha vida sem pedir licença. Agora não sei como te mandar embora. Te amo!”
“Você é a energia que faz da minha vida uma fonte de luz... A conta, a gente racha!”
“Se a vida lhe der 1.000 motivos pra chorar, mostre que você tem 1.001 pra sorrir. No mínimo, você
é o máximo!”
Previsão do Tempo:
“Te amo com céu claro, nublado ou ensolarado...
Te amo com ar quente ou seco no período...
Te amo ameno, em temperatura instável... ou com massa fria e nevoeiros pela manhã...
Te amo no nascente e no poente, no minguante e no crescente... oscilando entre o mínimo e o
máximo das nossas línguas molhadas.
Aí você me deixa sujeita a raios e tempestades, relâmpagos e trovoadas!
Te amo na lua nova e na lua cheia como num queijo.
Só não tenho previsão do tempo quando você vem me dar um beijo.”
Pensei: ―Tem poema aqui que dá até letra de música... vão ser mais caros‖. Pensei também em ligar
pra Lu, ler pra ela as ―inspirações‖. Mas desisti. Ela podia querer dar palpites, e eu não estava nem
um pouquinho a fim de modificar as minhas idéias.
Então percebi que a noite já havia caído. Mamãe chegaria logo. Arrumei mais ou menos a bagunça
da mesa, tomei um banho e quando entrei no quarto ela já estava lá, na sala, exausta e tentando
colar um band-aid no calcanhar.
- Ai, Lara, estou morta, mortinha... Hoje o Freud me deu um trabalho! Estou até com falta de ar.
- Toma um banho quente, mãe. Relaxa.
- Nem precisa, filha. Vou é cair na cama e dormir. Tou me sentindo uma espécie de pneu careca, e
vaio.
Morri de rir da comparação. Brinquei com ela:
- Então você vai é cair na ―câmara‖...
Ela riu também, me beijou e disse:
- Boa noite, anja, amanha a gente conversa.
Eu falei: - Vou fazer um pouquinho de barulho, mãe. Tenho que escrever umas coisas, bater a
maquina...
- Tudo bem, mas não esquece de apagar as luzes, tá?
Fechei a porta do quarto dela e voei pra mesa, pra continuar o trabalho. Fui bolando as adivinhas:
(Soluções: 1. Quem tiver a cabeça maior/ 2. O espelho retrovisor/ 3. Os óculos/ 4. Alô, querida!/ 5.
Pulos de alegria/ 6. Meia./ 7. O buraco.)
Coloquei a solução das adivinhas no pé da pagina. Consultei o relógio: vinte e duas horas. Bocejei,
mas me fiz de durona. Faltavam as piadas. Como escrever piadas? Eu nunca tinha bolado uma.
Puxei pela memória, me lembrei mais ou menos de algumas que o meu pai contava, misturei tudo,
escrevi, joguei papel fora, reescrevi. Até que acabaram assim:
O cara era tão fanático pelo Atlético, que um dia ele estava sentado no sofá, lendo jornal, quando o
filho chegou, berrando:
- Pai, a mãe caiu na área!
O pai respondeu:
- Então é pênalti contra o Cruzeiro!
O tráfego na a. Afonso Pena tava congestionado. O velhinho “buzinador” não deixava a buzina em
paz: buzinava, buzinava e buzinava...
Então uma moça, no carro ao lado, abriu a porta, saiu, passou a mão no capô do carro do velhinho e
falou:
- Que “tetéia”, vovô! E o que mais o senhor ganhou de presente de Natal, hein?
O Sílvio Santos, no seu programa de domingo, liga pra casa da patroa da Gorete, empregada recém-
chegada da roça, no sul de Minas:
- Se você responder à minha pergunta, ganha um automóvel, Gorete!
A Gorete, não acreditando que ele está ao mesmo tempo na televisão e falando com ela ao telefone,
responde:
- Num “querdito” não, seu “Sirvo”! É trote, né?
E o Sílvio:
- Garanto que não é, Gorete! Rá-rááá! Vá até a sala de visitas da sua patroa, liga a televisão, e você
vai ver que eu vou lhe acenar com a mão! Rá-rááá´...
E a Gorete:
- Num posso não, seu “Sirvo”... Eu tô só de “carcinha”...
Capitulo 21
...
...
No escritório da floricultura Luciana e Mishiko san conversavam alguma coisa. Voltaram carregando,
cada uma, um quadro de giz.
Neles estavam escritos, com letra de forma bem redondinha, os preços dos vários produtos que
comercializavam, EM OFERTA: amor-perfeito, buganvília, bambuza, azaléia, hibisco, onze-horas,
dama-da-noite, maracujá, cipreste, pinheiro, manacá, jasmim, ameixeira, pessegueiro, rosa,
alamanda, grama, esterco, adubo, xaxim, vasos, armações, ferramentas e até redes que vinham
―importadas‖ do Nordeste.
Apagamos aquilo tudo e dona Mishi falou:
- Faz assim... tou atendendo uns clientes meio apressados. Vocês discutam os preços, anotam num
papel e depois eu passo para as lousas com a minha letra, certo?
- Super, mãe! Vai ficar lindo com a sua letra! – Lu arrematou.
Eu emendei:
- O sucesso começa pela estética! – não sei de onde tirei isso. Mas dona Mishi sorriu, fez um gesto
no ar e concordou.
- E a propaganda é a ―arma‖ do negocio! – concluiu a Lu, imitando a Gorete da piada.
- Mas vamos por etapas, e não aos tapas, meninas...
Dona Mishi se foi e voltamos ao trabalho. Discutimos daqui, argumentamos dali e fizemos cálculos.
Ponderamos sobre os rumos que a economia estava tomando no Brasil – a Lu parecia até doutora
no assunto – e, depois de meia hora de um bom economês, chegamos à seguinte conclusão: todo
mundo ia querer saber o novo signo. Em seguida, movidos pelas mesmas molas propulsoras do
consumismo na sociedade capitalista moderna – a curiosidade, a novidade do produto, a
propaganda, o preço, etc. – iam querer saber também o seu novo horóscopo. Então, dividindo ou
repartindo o nosso produto em dois, obteríamos maiores lucros, multiplicando consequentemente o
seu preço por dois. E como brinde ou oferta da casa – um chamarisco irresistível -, abriríamos mão
de outras mercadorias como adivinhas e piadas para quem consumisse a nossa mercadoria mais
cara.
Não é genial? Uma técnica de vendas perfeita?
E, como a sensação de que estávamos progredindo rapidamente em nosso ramo de negócios,
bolamos a primeira tabela, a minha:
MADAME BERIOSKA
Obs.: piadas e adivinhas GRÁTIS apenas para clientes que fizerem “consultas” de 1 e 2: novo
signo e novo horóscopo!
- Genial! Regenial! – vibramos as duas. Aquilo tudo, com efeito, já começava a dar coceiras, de tanta
satisfação.
- Já tô ficando zoada, Lara! Tá bom demaaaaaais...
- Eu também, Lu. Mas vamos em frente. Por etapas...
Apanhei outra cartolina e desenhei, em letras garrafais:
BARRACA DO DESTINO
MADAME MAGALU
- Mas como você vai dar conta disso tudo, Lu? – espantei-me. Sinceramente, não acreditava que ela
soubesse sacar tanta coisa ao mesmo tempo.
- Mole pra nós, já falei! Tenho experiência no assunto, minha filha. Deixa comigo.
- Você já decorou?
- Que decoreba, que nada! Cansei de brincar dessas coisas com minhas primas do Japão. Elas
adoooooooram! Tem uma até, a Yumi, que nem queria mais voltar pra Tóquio. Ficava o dia inteiro
pedindo que eu jogasse búzios pra ela, lesse carta, lesse mão... Quase perdeu o avião!
- Por que você nunca me falou disso?
- Ora, você nunca me perguntou...
- Não sou adivinha nem bruxa, né?
- Isso nem é em Belo não, Lara! É em São Paulo. Tenho muitos parente lá, não te falei? Quando os
do Japão chegam, vai todo mundo pra casa da tia Akemi, no bairro da Liberdade. Ou então pra casa
da tia Futaba, da tia Tamaka, ou pro restaurante do tio Tamotsu...
- Aaaaaahhhhhh...
- E eu sempre saio de lá enjoada, de tanto ―brincar‖ de cigana com as minhas primas.
- E como você aprendeu isso tudo?
- Ora, nas revistas, nos livros! Minha mãe também é meio esotérica. Adora essas coisas.
- Verdade?
- É... no fundo, nós japoneses somos todos uns esotéricos. Esse negocio de tecnologia made in
Japan é só na superfície. É uma questão de sobrevivência... e também de inteligência.
- Saquei.
- Pra vender de um lado da moeda, escondemos o outro.
- Eu admiro muito isso, sabia? São os dois opostos que se completam, né? A luz e a sombra, a
matéria e o espírito... – filosofei barato.
- Mas chega de tititi, Berioska! Time is money! Vamos xerocar a papelada e comprar os balangandãs
e os penduricalhos pra gente decorar a nossa Barraca do Destino!
- Que penduricalhos?
- Papel de seda, papelão, umas estrelas e umas meia-luas.
- Não é meia-luas não, Lu. É meias-luas...
- Tá bem, tá bem... – ela ficou brava. – Que horas são?
- Quase seis.
- Xiiii, então não vai dar, madame. Temos que deixar tudo pra amanhã. A tia Kazumi vai passar
daqui a umas meiasssss-horas. Vamos visitar uns velhinhos no asilo, sabe? Ela cuida deles, eu e
mamãe ajudamos um pouco, no que podemos.
- Tudo bem, Lu. Quer que eu ajude também?
- Se você tiver roupas velhas em casa, cobertores, é só trazer. Um dia te levamos lá pra conhecer.
Eles são muito carentes.
- Eu iria gostar, acho, ou ficar triste. Não sei...
- Na hora você vê. Por ora, madame, expediente encerrado. Amanha de tarde a gente compra as
coisas, cola as meiasssss-luas nos barbantes e estica tudo, pra ver como é que vai ficar.
- Então eu já vou indo, tá?
- E a matéria do Robertão? Não quer levar pra copiar?
- Putz! Já ia me esquecendo.
Na saída fiquei pensando: ―Meu Deus, como sou chata e egoísta! Tou parecendo uma velha
ranzinza! Preciso largar dessa mania de ficar corrigindo a Lu. Ela sabe muito mais coisas praticas da
vida do que eu, é solidária... eu preciso‖.
- Eu preciso crescer mais... – pensei alto, no portão.
A Lu, já acostumada aos meus vapt-vupts do pensamento, falando sozinha, me beijou no rosto e
brincou:
- Então anda de salto alto, peste! Cresça e apareça, sua besta!
Dei um abraço nela e pedi desculpas.
- Dez-culapada! – ela emendou. – Amanhã duas em ponto! Se atrasar, desconto no seu
contracheque, sócia!
- Não esqueça de agradecer a tia Kazumi por mim, tá? Eu não conseguiria bolar aqueles horóscopos
daquele jeito. E ela me ajudou sem ao menos me conhecer. Deve ser uma pessoa maravilhosa...
...
Naquela noite, em casa, fiz apenas três coisas: liguei pra madame Berioska, copiei a matéria do
Robertão e depois fiquei pensando naquela misteriosa tia Kazumi.
Desconfiei de que ela nem existisse mesmo, em carne e osso. Muito estranho, cheio de entrelinhas,
o papo da Lu: quem tá perto da gente, quem tá longe...
Antes de dormir quase tive certeza: tia Kazumi era, na verdade, a própria dona Mishiko.
Mas isso eu só iria investigar no dia seguinte.
Capitulo 23
A meio caminho, entre a minha casa e a casa da Lu, na Catete com Japão, funcionava um pequeno
―tem-tudo‖, tipo armazém, armarinho, padaria, sacolão, farmácia, papelaria e boteco ao mesmo
tempo. Parecia uma dessas vendinhas do interior, com todos os cheiros de Minas: lingüiça
defumada, pão de queijo, fumo de rolo, goiabada, réstias de alho e cebola, salame... uma delicia!
Lembrei-me de minha avó Nita, que morava em Passos, lá no ―sur‖ de Minas, onde ainda se sentiam
esses cheiros. E me deu uma saudade danada do vó Tonho, dos tios, das tias, das primas e
principalmente da Flavinha, irmã mais nova do meu pai – e que já era minha tia com vinte e cinco
dias de idade. Pode? – Lembrei-me do jeitinho engraçado dela puxar o erre bem fechado: ―quero um
xisbúrguerrr, um sorvete e um iogurrrte...‖
Mas seu Zé Botinha, o dono do ―tem-tudo‖, veio nos atender:
- Pois não, professorinha?
A Lu riu e me perguntou o porquê do professorinha.
Expliquei que o meu pai costumava passar por ali, de vez em quando, pra tomar uma cerveja e jogar
conversa fora com os amigos, no balcão do fundo. E o seu Zé Botinha o chamava de professor.
- Ele te conhece, professorinha?
- Acho que sim.
Compramos o papelão e papel de seda de varias cores: azul, branco, amarelo, vermelho, verde,
rosa, preto, lilás. Compramos três rolos de barbante e dois tubos de cola. E claro: dois chocolates,
que ninguém é de ferro, né?
Então o Marcelo, filho do seu Zé, perguntou:
- Que tal uns balões para a festinha?
- Não é festinha de criança, não! – respondi.
Ele pediu desculpas, meio sem pescar nada.
- E o seu pai, como vai?
- Vai bem... – respondi.
Viu que eu não estava muito pra conversa. (Ainda tínhamos que encontrar um xérox pelas
redondezas.) Embrulhou os penduricalhos:
- Quer que anote na caderneta, professorinha? Na conta do seu pai?
- Precisa não, Marcelo.
Tirei a nota de cinqüenta reais do bolso. A Lu se assustou:
- Uai! Eu ia pagar, Lara! Você não queria que eu emprestasse o capital de giro?
- Papai me mandou essa nota preta pela carta, Lu. Parece até que adivinhou...
Seu Zé Botinha, na caixa registradora, teve que se virar pra fazer o troco. Contou as moedinhas em
voz alta, centavo por centavo. Por ultimo, mandou lembranças ao meu pai e saímos.
Na André Cavalcanti com Francisco Sá havia uma banca-livraria com copiadora. E umas nove
pessoas na fila, à nossa frente, com o mesmo objetivo: tirar xérox. Parecia um posto de saúde
publica: todo mundo com papel na mão e aquela cara de ―só saio quando fechar‖. E pior: um calor
dos diabos, ventilador estragado, motoristas buzinando na porta, crianças chorando ―sapateando‖
pra mãe comprar revista, e a sensação de que íamos ser queimadas vivas num forno de jornais,
livros, revistas e formulários. O mundo se acabando em papel... Papel, papel e mais papel.
- Help, Lu! E agora?
Mas o dono da livraria também conhecia o meu pai.
- Você é a filha do Piotr, o Russo, não é? – ele perguntou, aboletado atrás da maquina registradora,
com ares de intelectual pós-moderno.
- Sou... Como o senhor sabe?
- Tive com ele no Rio, semana passada. Viajamos no mesmo avião. E, alem disso, é amigo de um
grande amigo meu em Niterói, o Júlio César.
- Mas como o senhor sabe que ele é meu pai?
- Ora, vive mostrando fotografia sua pra todo mundo, uai! O Russo é o cara mais coruja que já
conheci, tem o maior orgulho de você. E eu sou um bom fisionomista. Te reconheci logo...
O astral subiu. Voei até a Lua, passei por Vênus, Marte, contornei os anéis de Saturno e quando
voltei ainda estava meio zonza.
- Meu nome é Rui. E o seu é... Lara? É Lara, não é?
- Isso mesmo. Larissa... muito pra-prazer – gaguejei.
- E o que você quer, Larissa? Olha, aqui você não pede. Aqui você manda, falou?
Ao mesmo tempo que eu tentava descer as escadas do meu orgulho, ou da minha vaidade, ia
pensando abobada e feliz: ―Ser filha de pai mais ou menos popular até que não era lá tão ruim
assim... todo mundo me conhecia... meu pai mostrava meu retrato para as pessoas... Ó maigod!‖
- Acorda, Russa! – Lu me beliscou, enquanto o cara, o tal Rui, já ia passando o nosso serviço na
frente dos nove, em outra copiadora dos fundos.
Lu gozou:
- Desse jeito, dona russa, toda vez que eu precisar de alguma coisa neste bairro, vou apelar é pra
você! Vai ser popular assim lá na...
- Peraí, Lu, não escracha...
Agradeci ao tal Rui o favor, pagamos e subimos a Oscar Trompowski, de volta. No caminho, a Lu
falou que nunca havia beijado ninguém, que tinha um carinha a fim dela e que tava sem saber o que
falar pro garoto, e coisa e tal... Prometi que conversaríamos sobre isso mais tarde. Eu daria umas
dicas. Ela ficou mais aliviada.
Quando chegamos, dona Mishi já havia escrito nas lousas as nossas tabelas de preço, com a sua
letra bem redondinha. Ficou uma belezura!
Recortamos as estrelas, as bandeirinhas, as meias-luas. Medimos a largura e o comprimento da
barraca, cortamos os barbantes, colamos os penduricalhos e esticamos tudo, pra fazer o primeiro
teste visual. Ia ficar barbarizante! Parecia uma barraca árabe, das mil e uma noites.
Nisso a campainha tocou: era o Liga-Tripa como Kabrum, que vieram buscar a barraca, as mesas e
as cadeiras, conforme tinham combinado com a Lu.
Ao se depararem com aquela ―tenda dos milagres‖ na frente deles, detonaram:
- Pô, cara! Chocante...
Kabrum, ―numas de pressa que o tempo urge, maninha‖, foi logo tirando a camiseta e empilhando as
cadeiras num canto: era todo tatuado nos braços. Gostava de mostrar os músculos, apesar de uma
certa barriguinha de cerveja e a barbicha de bode. Horrorível!
Liga-Tripa, ao contrario, magrelinho, mauricinho e meio, e meio tímido, começou pela barraca.
- Posso desmontar, Luciana?
Notei que ele se ruborizava quando falava com ela.
Pesquei no ar: devia ser o tal carinha a fim de ficar com a u. e a Lu, pastel, bandeirosa, sem saber
onde pôr as mãos, também se avermelhou toda:
- Hein?
- A barraca, Luciana? Posso desamarrar?
- Ah, sim... claro, claro, pode...
Não tive mais duvidas. Pelo engasgo da Lu era ele mesmo, mesmíssimo. Pisquei pra ela. Ela quase
me fulminou com um olhar.
- Deixa eu só botar os balangandãs numa caixa, Tiago...
Tiago?
A Lu já sabia até o nome verdadeiro dele. Batata!
Acertei! E enquanto ela tremia que nem gelatina ao lado do Tiago Liga-Tripa, desamarrando os
barbantes das bandeirolas e das estrelas, o Kabrum se aproximou de mim e falou:
- Olhaí, gatinha! Tenho um bilhete do Gustavo pra você.
E me passou o envelope com cheiro de perfume francês.
Meu coração bateu blang-blang!
E blaaaaaaaanng!
Help!
Fechando o envelope, havia um selinho com nome e endereço: morava numa rua da Cidade Jardim.
Chiquérrimo! Abri:
Lá,
Desculpe não ter ligado antes.
Passei quase todas as férias atarefado com a banda, ensaiando, compondo e comprando a
aparelhagem nova.
Gostei demais da idéia da barraca na festa: vai ser um sucesso, pode crer! E estou louco pra
te ver fantasiada de cigana.
Venha logo: tenho uma surpresa! E não se esqueça de trazer o violino.
Beijão!
Gu
P.S.1: A senha pra entrar na festa (por motivos de segurança) será ZORRAZUL!
Não se esqueça: ZORRAZUL!
P.S.2: Morro de saudades desses olhos negros de sombras iluminadas. E desse coração de
flor selvagem...
BLLLAAAAAAAAAAANNNNNNGGGGG!
Meu coração bateu como a porta de um castelo.
Meu coração bateu como os portões do paraíso.
E quase desmaiei.
Kabrum percebeu e me segurou pelo braço. Sentei-me numa cadeira.
- Tudo bem, Lara? Aconteceu alguma coisa?
- Nada, não, Kabrum. Foi só um susto... isto, é, deve ser a ma-maionese que co-comi no almoço.
A Lu desconfiou, vendo o envelope na minha mão.
- Quer ir tomar um copo d’água com açúcar, lá na cozinha, Lara?
- Quero.
Entramos esbaforidas.
- Conta! Conta logo, Berioska!
- São Judas tadinho! Olha só, lu... Leia! Leia isso...
Passei a cartinha pra ela, que leu, releu, trileu e detonou:
- É uma legitima declaração de amor, Lara!
- É?
- Uma das mais lindas que já li! Uma legitima ―mimachuca queugosto‖... raríssima!
- Será? Isto é... pode ser... você acha que é mesmo?
- Claro! Pelo menos, pelo P.S.2, ele tá afinzão de você, Russinha! Mas o que significa zorrazul?
Confabulamos, ―trocamos impressões‖, e nem tchum de água com açúcar... Nem solução para o
zorrazul. Que mistério!
Meio desconfiados de alguma coisa – e com aquela cara de irmãozinho que acaba de ver a
irmãzinha pelada no banheiro -, Kabrum e Liga-Tripa (ou melhor, Tiago) vieram se despedir, da
janela da varanda:
- Aí gatinhas! Já botamos tudo na caminhonete. Tem mais alguma coisa pra levar?
- Acho que não, Ti-Tiago – a Lu gaguejou.
- Então, até lá... Lara já melhorou?
- Hein?
- A Lara! Já melhorou do mal-estar?
- Aããã~hhnnn... já, já sim.. até e.. obrigada, tá? Apareçam na barraca!
- Claro! Amanha, no intervalo do show, a gente leva um lero no gramado, falou?
- Falou...
- Tão afins de um suco, um cafezinho, uma cerveja? – Lu ofereceu, tentando ―segurar‖ o Tiago mais
um pouquinho.
- Agora não, Lu... Posso te chamar de Lu?
- Pode. Claro. Deve... Ti...
- É que... ainda temos que arrumar a maquina de gelo seco, pra fazer fumaça, sabe como? Fumaça
no palco...
- Pena..
- O Gu já voltou do Rio? – perguntei.
- Só amanhã. Tá fechando um negocio...
Aí Tiago se aproximou meio sem jeito, vermelho como um picolé de groselha, pegou as mãos da Lu,
beijou-as rapidamente e colocou algo entre elas. Depois, chispou na direção da caminhonete, onde o
Kabrum já acelerava, impaciente. Saíram buzinando e cantando pneus.
Lu abriu o bilhete que tinha entre as mãos.
- Help! Ai meus sais! Veja isso, Lara!
Abri o bilhete:
Lu,
O beijo é uma língua gostosa de aprender.
Mas pobre de mim, não sei japonês.
Você não quer me ensinar?
Te sonho! Te adoro!
Arigatô!
Sayonara!
Ti
- Yiiiiuuuuuuupe! – detonamos.
Lu pôs minha mão sobre seu coração. Batia como o meu.
―Coração de flor selvagem.‖
- Ai, Lara! Por essa eu não esperava. E agora? O que é que eu faço?
- Foi uma declaração de amor também, Lu. Não percebeu? Uma legitima ―michupa queuderreto‖ da
classe sorvetóidea, família dos ligualídeos, espécie Beijopithecus electrus, raríssima também,
sacou?
- Acho que sim, isto é, pode ser...
- Claro que é... ―Te sonho, te adoro!‖
- Mas e se ele tiver s fim só de me beijar, Lara? E depois... bau-bau! Adeus...
- Não creio, Magalu. Pela minha experiência, que não é lá grandes coisas, mas pode ser
considerada nesse caso, ele tá a fim é de ―ficar‖ mesmo. Aliás, de tímido não tem nada. É preciso
muita coragem pra fazer o que ele fez, viu?
- Você acha?
- Lógico! Beijou as mãos, pôs bilhete entre elas... precisa mais?
Pulamos abraçadas: felicidade a duas era muito melhor. E estávamos desabrochando. E havia
naquele momento um medo enorme de que as pétalas caíssem. Um medo grande de que os nossos
corações selvagens, de repente parassem. E se derretessem apenas com o calor do que a gente
sonhava.
De modo que fiquei pensando, mais uma vez, como a vida reserva surpresas a cada minuto que
passa. Depois do vendaval, a felicidade leve e quente da brisa, depois o sono.
Arrebatada ainda, comentei com a Lu:
- Repare como são as coisas: até ontem, éramos duas morcegas abandonadas na masmorra das
bruxas, numa floresta escura e gelada. Hoje, somos princesas encantadas, na mais alta torre do
castelo...
Ela completou:
- No castelo dos príncipes, que nos esperam lá embaixo, na ponte levadiça, debaixo do sol...
- Uau!
E detonamos duas taças de sorvete que dona Mishi acabara de colocar na mesa.
Detalhe: naquela tarde, os indícios de que dona Mishi fosse mesmo a tal tia Kazumi ficaram mais
claros.
Percebi que havia um microcomputador na mesa do escritório dela e, ao lado, uma pilha de revistas
pra adolescentes, recortes, horóscopos, mapas astrológicos e até um minidicionário de gírias.
Mas resolvi não levar mais adiante a ―investigação‖.
Não alteraria nada eu saber da verdade, não mudaria em nada a minha vida. Pelo contrário, só
aumentaria a admiração por aquela mulher que, lá no fundo, devia ter um bom motivo pra esconder
sua generosidade atrás de um pseudônimo: tia Kazumi.
Ou talvez ela fizesse isso simplesmente por timidez, ou por uma questão de ética, de princípios.
Faça o milagre, mas não revele o santo. ―Coisa de orientais‖, pensei. ―Ah! Esses japoneses
imprevisíveis e suas mascaras maravilhosas!‖
De repente a Lu, com uma inenarrável cara de sapeca, detonou:
- Me ensina a beijar, Lara?
E eu escapuli, na mais indescritível cara de ―catedrática‖:
- Deixa pra amanhã, Lu. Ainda tenho que passar no dentista.
Claro que era mentira. Ou melhor, meia mentira. Dentista? Só no dia seguinte. Ás vezes sou assim
mesmo: fecho a gaveta e jogo a chave fora. Larissa Berioska, a esparramada, a estrupícia.
Capitulo 24
Revirei armários, abri e fechei gavetas, tentando ei contrar entre minhas roupas algo que se
parecesse cor fantasia de cigana. Eu tinha muitos vestidos, mas não eram suficientemente longos. E
quase todos escuros.
Eu precisava de algo colorido, muito colorido, e lenços pra amarrar na cabeça e no pescoço. Apelei
pras coisaí da minha mãe. Também não achei necas. E agora, meu São Judas Tadinho?
Tanto me preocupei com as artes de uma cigana que me esqueci do principal: o visual, o look. Quem
iria acreditar numa cigana de tênis ou minissaia? Ou fuso, colete, botas e chapéu? Ou colant? Ou
camiseta de malha debaixo de um jeans?
Plim! São Judas Tadinho me deu a luz.
Liguei pra minha avó Bilude, a "cabelos de algodão doce". Ela sempre me salvava nessas e noutras
situações. Era uma mulher muito prática, inteligente, bondosa e linda: tinha os cabelos curtos e
brancos, parecidos com nuvens de algodão. Compreensiva e franca, às vezes até demais. E como
era alegre!
— Vó! Help!
Bastou dizer essas duas palavras mágicas. Expliquei o assunto e ela já deu uma ideia:
— Vou verificar no baú, Lara. Quem sabe encontro umas saias antigas da sua mãe, coisa da década
de setenta, uns trecos meio hippies, que guardei?
— Perfeito, vozinha. Aquelas saias compridas e coloridas, né?
—Isso mesmo. Você já tomou banho, lavou os cabelos?
— Não.
— Mas como, minha filha? Tá parecendo com sua tia Marilise! Se apresse!
(Tia Marilise, irmã da minha mãe, era médica homeopata. Devia ser discípula de Jó. A rainha da
tranquilidade e da paciência, vivia me dizendo: "Devagar se vai ao longe, quem tem pressa come
cru" etc. ...)
— Como assim, vó?
— Você vai para uma festa às oito e ainda nem tomou banho, não se produziu? Que rapaz vai
querer dançar com uma cigana suada?
— Uai, vozinha, eu tava relendo os horóscopos, isto lê... deixa pra lá. Depois te explico.
— Olha, faça o seguinte: tome um banho e lave bem os cabelos com xampu e creme rinse, tá?
Enquanto isso eu vou ver o que temos no baú. Dentro de meia hora, no máximo, eu tou aí...
(Ela morava no mesmo bairro da gente. E passou a dirigir um Chevette vermelho, depois que
perdera o marido, o vô Waldir; e o único filho, o tio Celso, que também não conheci.)
— Falou, vozinha! Não demore!
— Pode deixar comigo. Vou te fazer uma "produção" jóia!
Gostei daquele "jóia". Era uma gíria que nem se falava mais, saíra de moda. Mas como a vovó
gostava de estar sempre atualizada com as coisas — era uma mulher muito moderna —, inclusive as
gírias, deixei o "jóia" passar em brancas nuvens de algodão-doce, como os cabelos dela. E corri pró
banho.
Em quinze minutos vovó já tocava a campainha, com uma caixa de papelão debaixo do braço.
— Você tem certeza de que a festa começa às oito?
— De oito em diante.
— Então não temos muito tempo. Vai secando os cabelos, que eu vou preparar um chá de camomila
bem forte.
Estranhei. Pra que chá de camomila? Mas não disse nada. Quando vó Bilude tomava a direção das
coisas, era melhor concordar. E caladinha, boca-de-siri.
Enquanto o chá esfriava, ela empurrou as cutículas das minhas unhas e pintou-as com esmalte
vermelho. Depois, molhou um algodão no chá, colocou-o sobre meus olhos e falou:
— Agora deite um pouquinho. Vamos acabar com essas olheiras! — e trouxe outra xícara de chá pra
que eu tomasse. —Vamos acabar com essa ansiedade! Relaxa! — e foi pintando as unhas dos
meus pés, também de vermelho. Depois começou a maquiagem: aplicou a base e uma camada de
pó translúcido. Nos olhos, usou sombras opacas e neutras. Por último, passou delineador, rímel e
blush.
— Fique de olhos fechados, tá? Escutei um ploc na cozinha, parecido com o da torradeira. Em
seguida o barulho do liquidificador.
— Pode abrir. Tome.
Me serviu um misto-quente e torradas com vitamina de mamão e suco de laranja.
— Não to com fome, vó!
— Não é legal chegar à festa de estômago vazio. Às vezes os quitutes demoram a pintar, e você
pode ter uma indisposição. É só pra forrar a barriga...
Não discuti. Aliás, estava adorando aquele paparico.
Terminei o lanche.
— Vamos experimentar a roupa!
Abri a caixa de papelão: uma blusa tomara-que-caia de retalhos, com triângulos, retângulos e
quadra¬dos multicoloridos. Uma saia rodada plissê, também colorida. Lenços de seda vermelhos,
amarelos e verdes. Uma sandália franciscana que serviu direitinho no meu pé. Pulseiras de latão,
anéis de bijuteria, um colar de pérolas que dava duas voltas no pescoço e um par de brincos de
argolas enormes.
Pronto! Vó trouxe o espelho e eu já era uma cigana!
— Yiiiuuuuuuupie!
— Agora solte os cabelos, Lara. A chave girou na porta e mamãe entrou com uma sacola comprida
nas mãos.
— Mamma mia! — ela quase caiu de costas. — Inacreditável! Que produção fantástica, mãezinha!
— Modéstia às favas, ainda tenho os meus segredos...
— Nossa, vó! Tou a mil! Ficou lindo! Não parava de me olhar no espelho. Pensei: "O Gu vai ter um
troço quando me vir assim..."
— Agora o batom, garota! — mamãe falou.
Exibiu um dos dela: vermelhão, com sabor de cereja. Passou-o sobre meus lábios e depois me fez
beijar um lenço de papel, pra retirar o excesso.
— Acho que falta alguma coisa, Sônia... — vovó ficou matutando. — Castanholas?
—Que castanholas, vó? Castanhola é pra bailarina espanhola, aquelas do sapateado... Você não
assistiu Bodas de sangue, do Saura?
— Claro, mãe! O perfume...
Mamãe pingou uma gota de Dune atrás das orelhas e nos pulsos.
Pronto! Fiquei um arraso!
— Pode ler a minha mão, madame Lariuska? — ma¬mãe brincou.
— A minha primeiro — vovó pediu.
— Não é Lariuska, não, gente! É Berioska mesmo...
— Chique!
— Chiquésimo!
E de repente estávamos as três ali, abraçadas e felizes: três gerações de mulheres que se viam a si
mesmas pela primeira vez como num caleidoscópio. Uma era a face da outra. A chave. E o coração.
E a alma da outra. E em cada uma um pouco do tempo pelo qual já haviam passado, passavam e
iriam passar, enquanto houvesse uma brincadeira tão singela, imprevisível e delicada como a própria
vida. A vida fantasiada de cigana, de professora ou, simplesmente, de avó.
E percebi que a chave que uma guardava abria o coração da outra, que guardava uma chave que
abria a mesma gaveta, do coração de outra, que continha a mesma chave.
"Um moto-contínuo", pensei. "A vida dentro da vida, a caixa de uma caixa, a porta dentro da porta..."
Compreendi assustada, e a tempo, que as coisas mais bem guardadas eram simplesmente aquelas
que podíamos deixar à mostra, às claras, para que o outro as encontrasse.
E com as portas escancaradas de quase tudo, na alegria infantil que pareceu saltitar entre elas,
naquele minuto, mamãe e vovó foram cochichar no quarto. Ouvi algumas frases soltas:
— Ela vai adorar... Pena que vô Nelson, vó Jenny, Tioninha, Lalu e Raquel não estejam aqui pra
ver...
— Tomara que dê tudo certo...
— Garantiu que sim...
Não liguei coisa com coisa. Passei por cima: tinham mania de cochichar até ao telefone.
Dei uma última sapeada no espelho e liguei pra Lu, como prometera. Dispensei e agradeci a carona,
eufórica.
Vovó comandou:
— Vamos no meu carro. Carruagem vermelha combina mais com princesa cigana. E torçam pra
esse carango não virar uma abóbora!
Rimos.
— Onde fica?
— É na Cidade Jardim.
— Puxa! Gente grã-fina, hein? Que chique!
Peguei o envelope e a carta do Gu: rua Conde de Linhares, 480.
Quinze pras oito. Mamãe, com uma sacola comprida na mão — a mesma com que tinha entrado
minutos antes —, apagou as luzes do apartamento e saímos. A dois quarteirões de casa me lembrei:
— Ihhhh... vó! Temos que voltar!
— Por quê?
— Esqueci a pasta de elástico!
— Que pasta, Lara enluarada?
— É segredo, por enquanto. Depois da festa eu conto, tá? Mas sem essa pasta eu não posso ir.
Voltamos. Peguei a pasta na escrivaninha, tranquei novamente a porta e saí. Quando vovó dava
partida no Chevette, me dei conta de outra coisa:
— Xiiii... Peraí, vó! Tenho que levar um violino! Esqueci completamente do violino! Ai, meu São
Judas!
Me desesperei. Eu não tinha um violino: estudava com madame Berioska, mas o violino era dela,
ficava na casa dela. E durante a tarde toda não atentara para aquele "pequeno" detalhe que o Gu
pedia no bilhete: "levar o violino... o meu violino". E agora?
Vovó me consolou:
— Não se aflija, queridinha. Vamos passar na madame Berioska primeiro e pedir um deles
emprestado, tá? Agora... torce para ela estar em casa, né?
Foi então que mamãe abriu a misteriosa sacola comprida. Dentro havia outro saco de veludo azul,
com um laço amarelo.
— Não vai precisar, madame Beriosquinha! Olha o que seu pai mandou do Rio...
Arrebentei o laço amarelo feito uma louca. E dei de cara com uma caixa de madeira cheirosa. Puxei
o trinquinho da dobradiça de metal reluzente, arregalei os olhos e...
— Maigod! Um violino! Help!
— E já está afinado, Lara! Seu pai pediu que o levas¬se na dona Berioska, pra ela afinar direitinho,
como você gosta...
— Mãããããããe... não acredito! Estou sonhando! Me belisca!
— É a tal surpresa... Lembra do recado na secretária eletrônica?
— Lembro! Ai, meus sais! Vou ter um troço!
E enquanto eu tentava me lembrar da senha da festa, tirando algumas notas dissonantes, esticando
o arco, vovó brincou:
— É melhor a gente ir logo. Já vi que esse baile vai ser "de arromba". Perder um minuto vai ser
perder uma eternidade. Ainda bem que você tomou o meu chazinho de camomila...
No trajeto eu me sufoquei, chorei. Beijei meu pai no violino, abracei minha mãe na sacola e acariciei
minha vó no volante. E, não sei como, chegamos.
Capitulo 26
— Zorrazul!
Fantasiado de Capitão América, o porteiro controla¬va o interfone, numa guarita de vidro. Apertou
um botãozinho e o portão se abriu.
Uns carinhas que vinham atrás de mim brincaram: "Abre-te, Sésamo!" E o portão se fechou. Tiveram
que repetir:
— Zorrazul!
E entraram, dando gargalhadas. Logo percebi que o Gu tinha amigos que iam de roqueiros a
budistas, patinadores, pára-quedistas, rappers, surfistas de água doce e até gente normal. E que
Babel!
Uma tribo já dançava um rap à beira da piscina, imitando o Michael Jackson. Pelo big agito e pela
para¬fernália, a festa ia ser mesmo "de arromba", como dissera minha vó. A "zorra" se espalhava
pelos gramados, entre pinheiros, mesas, cadeiras e buganvílias. Tudo sem enredo, misturado como
a nossa geração: posters dos Beatles, Guns n'Roses, Pato Fu, Skank, Bob Marley, Sepultura,
símbolos de paz e amor, globos espelhados, , corações, os "nossos cartazes", luzes coloridas, luz de
velas (selas de cavalo, chapéus de cowboy, posters de vacas, cavalos, ovelhas: o pai do Gu era
fazendeiro num lugar chamado Baependi, no Vale da Árvore dos Ossos, e se chamava seu
Zângelo), cenas de guerra, vassouras, gaiolas de bambu, liquidificadores velhos, brinquedos de
plástico, balões e... lá no fundo, entre a casa (que era enorme!) e o palco, a minha barraca! Me
arrepiei, apertando o violino e a pasta de elástico contra o peito.
— Vai ser um auê! — detonei sozinha.
— Tá o maior tititi lá em cima, cunhada! Todo mundo esperando sua chegada!
Virei as costas e dei de cara com a Clarissa, equilibrando uma bandeja de salgadinhos.
— Sirva-se, madame Berioska — ela emendou. — Eu seguro o violino pra você.
— Ai, Clarissa, que susto! E o Gu?
— Por aí, madame. Tá meio que fazendo sala prós amigos, por enquanto. É gente pra dodói, não é?
— Uau! Nunca vi tanta galera diferente!
— Papai e mamãe foram pra fazenda. Sabe como é, quiseram deixar a "tchurma" mais à vontade.
Vou ter que segurar essa onda, já vi.
— E você, sozinha de garçonete?
— Não. Mamãe pediu prós empregados ajudarem. Até o jardineiro, o Lindolfo, tá dando uma de
garçom hoje. Mas já virou uns goles. Tá zuretinha da silva! E o Herculano, o motorista, não pára de
tomar o "último" conhaque.
— Pelo visto, tem um pessoal meio turbinado, né?
— A Tess é que parece ligadona. Não larga do celular. Fazer o quê?
— Isso aí, cada um na sua.
— Precisava ver o papo da galera da asa-delta. O Gu me arranja cada amigo.
— Como assim?
— Não entendi nada do que eles falavam. Nadinha!
— Pois é, Cia, hoje em dia é assim: cada tribo com sua língua própria, né? Quem não tiver por
dentro, voa...
— E se estrumbica! Deixa eu girar agora. Tem muita gente chegando. Vou avisar o Gu que você...
— Não precisa! Já avisei! — era o Cultura fantasiado de algo parecido com uma cobra: a cara e os
óculos aparecendo por um buraco.
— Ô Culta! E aí?
— O Gu tá doido atrás de você. Aceita um guaraná? Procurei o Gu no palco enfumaçado pelo gelo
seco, entre as luzes do estroboscópio que girava. Necas!
— Você sabia que a maior minhoca do mundo é a da Tasmânia, que atinge cerca de um metro e
oitenta de comprimento? — a cobra detonou, entre perdigotos de guaraná.
— Sabia, Culta, e ela se parece muito com você! Que tal ir procurar uma jararaca na beira da
piscina? — pas¬sei o dedo, carinhosamente, no seu nariz.
Ele riu e ensaiou uns pulinhos.
Virei as costas em direção à barraca. Lá estava ―ele‖, dando dois beijinhos no rosto da Lu.
"Vou assumir meu posto de comando", pensei. Brinquei com o nariz do Culta outra vez, analisei
rapida¬mente a situação. Ordenei:
— Cuida do violino e dessa pasta, sócio! Volto logo, tá?
Corri até a barraca do meu destino. Desviei de um pessoal que parecia jogar capoeira no gramado.
Mas esbarrei numa mesa. Uns copos caíram, resmungaram alguma coisa. E gritei:
— Gustavo!
Ele me viu.
O coração tremeu. As pernas falharam, faltou ar. O mundo pesou sobre meus ombros, mas ele
continuava lá. Lindo!
Nos encontramos no meio do caminho e não precisamos dizer mais nada um pro outro naquela hora.
Nem uma palavra. Apenas entrelaçamos as mãos, mergulhamos nossos olhos nos oceanos
profundos que os olhos do outro ofereciam. E nos abraçamos, ofegantes. Como se uma saudade
imensa — a saudade dos amantes que não se vêem há anos — tivesse tomado conta de tudo.
E então senti que, talvez algum dia, quem sabe, ele também pudesse me amar. Como eu o amava.
Capitulo 27
— Você não trouxe o violino, Lá? — perguntou com a voz meio trémula.
— Tro-trouxe sim, Gu. O Culta tá segurando ele pra mim.
— Ótimo!
— Por quê?
— Mais tarde te conto... Bem, é uma surpresa, sabe?
— É?
— É... — ele também estava nervoso. Confessou:
— E-eu sinto muitas saudades de você, entende? Bem, é que, é que... — engasgava. — Isso nunca
aconteceu comigo, sabe como?
— Sei...
— Eu passei as férias todas pensando em você...
— Eu também. Lu cortou o barato:
— Agora chega de confidências, pombinhos! Vamos ao trabalho! — bateu palmas.
Fuzilei a Lu com um olhar. Gu beijou meu rosto e falou "até mais tarde", se encaminhando para o
palco. Mas, antes disso, deu um aviso:
— Olha, gente, cuidado com os fios trançados na parte de trás da barraca! Tivemos que ligar um
gerador elétrico nos fundos. É só não passarem por ali, para não
tropeçar, OK?
— Tudo bem, Gu. A gente não esquece. Pode ficar tranquilo.
Meu "sócio" trouxe o violino e a pasta de elástico. Entramos na barraca, ocupamos nossas mesas e
ficamos à espera dos primeiros "clientes".
Para minha surpresa, o próprio Culta já foi logo pedindo uma frase muito louca pra mandar pra
Bebela, uma paquera que ele tinha de outra sala, no colégio.
Despistando, revirei meus xerox e não descobri nada que pudesse se adaptar ao jeito de ser
daquela peça rara.
Mas eu estava inspirada. O abraço do Gu tinha me deixado com a corda toda. Pensei um pouquinho,
peguei uma caneta e caprichei, em letra de forma:
Bebela,
Vi um barco voando, quando de repente furou o pneu.
Quantas melancias sobraram?
Não dá pra saber, já que peixe nao tem pulga!
Xiiii!!! Quando penso em voce, nao falo coisa com coisa!
Te adoro!
Paracelso
O "cobra-de-óculos" vibrou:
— Genial, Berioska! Você é mesmo uma gênia! Mas me explica uma coisa: que negócio é esse de
me chamar de sócio?
De lambuja, dei pra ele a piada da Gorete e uma das adivinhas. Propus o lance:
— Aí, Culta! Já que gostou, que tal dez por cento do faturamento pra você ler essas mensagens lá
no microfone, nos intervalos da banda?
— Topo! Deixa comigo, desde que eu não tenha de tirar a fantasia.
— Vai ficar até mais charmoso: uma cobra lendo bi¬lhetes de amor...
— Cobra, não! Minhoca!
— A maior minhoca do mundo. Um minhocuçu! Recebi a grana dele, a primeira. Guardei na gaveta.
Do outro lado a Lu já jogava as cartas com uma patricinha desconhecida, de outra galera:
— Rei de copas, minha filha... um cara mais velho vai incentivá-la e dar o maior help num projeto
seu. Huuummm... Valete de ouros... deve pintar um novo amor, sabia? Um cara supersincero, porém
um tanto complicado...
Chega o Xoba. Desastre. O que escrever pra ele? Meio detonado, queria uma declaração de amor
justamente pra Ré. Mas não me fiz de rogada. Lasquei:
Rê,
Xoba
Ele delirou. Só pediu pra tirar o te amo e trocar por te quero: era mais sincero. Tava a fim de "ficar"
com ela. E, na saída, ainda ofereceu um cigarro e um copo de cerveja. Recusei. E como ficara
bonzinho! Me confessou:
— Sabe, Berioska, às vezes a gente briga, se dá uns "tiros" por aí, mas no fundo, no fundo, eu gosto
muito de você... — e quase chorando, como um bebezão, me deu um beijo na testa.
Do outro lado a Lu riu, enquanto lia a bola de cristal para um cara da galera da asa-delta. De vez em
quando, com a mão esquerda, ela alisava a adaga de samurai sobre a mesa. Então escutei aquela
voz de matraca enguiçada, bem na minha frente:
— Eu era de Sagitário, agora sou o quê, Berioska? E quero também uns poemas e um correio
sentimental pra mandar pró Charles, meu paquera de Valadares, que tá nos Isteites, falou? — era a
Tess, já meio tontinha, com um telefone celular na mão.
Não titubeei: pedi data de nascimento, li o horóscopo de Esculápio, passei os poemas Previsão do
tempo e Estações, e bolei outro correio:
— Beautiful! Beautiful! Beautiful! — ela cacarejou. — Você é demais, Beri! Era exactly o que eu
queria!
— São sete reais e cinquenta centavos, Tess — apresentei a conta.
— Dependura pra mim, Beri... depois eu pago, tá?
— Infelizmente, Tessália, não vendemos nada fiado nem a crediário, pelo menos por enquanto... E
também não oferecemos presente de grego! "Tebas" pra você!
Ela fez cara de xarope. Pensei: "Esses ricaços, quanto mais ricos, mais pão-duros". Depositou o
celular sobre a mesa, abriu a bolsa e meio down, mas ligadona, sacou uma nota de dez reais. Fiz o
troco e agradeci:
— Volte sempre, querida!
Quando a "furreca" saiu cambaleando pela porta, percebi a fila: umas vinte pessoas já se
acotovelavam, esperando sua vez, no maior tititi. Cochichei pra Lu:
— Olha lá fora, bruxinha! Olha o nosso sucesso! Lu estalou os dedos, esfregou as mãos e, antes de
chamar outro freguês, segredou-me:
— Já fiz mais de trinta reais, e você?
— Uns cinquenta... — respondi.
— Daqui a pouco vou ter que dar um taime pra fazer xixi.
— Tudo bem, Lu. Eu ainda não estou "apertada", não. Vou aguentar firme, tá?
— Vida de cigana não é mole! Não te falei?
— E o Liga... isto é, o Tiago? Já apareceu?
— Quando a banda também der um taime, ele vem me ver. Prometeu.
— Ulalá!
...
Continuamos o trabalho. Lu jogava búzios, lia mãos, lia cartas e fazia o "jogo da vida" com uma
desenvoltura impressionante! E eu ia sacando os horóscopos, distribuindo piadas, poemas, correios
e adivinhas, conforme o planejado.
Lá fora o som da banda detonava o pessoal, debaixo da lua cheia.
Atacavam de dance, country e anos 60. Nunca vi tanto jogo de cintura, tanta polivalência e tanto
ecletismo juntos.
De vez em quando, eu parava um pouco a consulência. Olhava pela janelinha da barraca e via o
meu gato entre as luzes coloridas e a fumaça azulada do palco, rasgando sua guitarra no ar, num
rock pauleira de arrepiar.
No entanto, estranhava muito um sujeito com máscara de Zorro, sentado num banquinho, ao lado da
bateria. Um coroa esquisito, ruivo, cabeludo, camisão estampado, que não fazia nada: só ficava
aplaudindo.
Nos intervalos, porém, o Culta chegava ao microfone e lia os recados do correio sentimental.
A galera entrava em delírio, vinha abaixo, na zoeira. E a fila ia aumentando. Porém eu percebia que
aquele cara de Zorro não parava de olhar pra mim. Sentia seu olhar a distância. E isso me
incomodava muito.
Outras vezes, numa balada romântica, o Gu se emocionava tanto quando cantava que parecia até
estar chorando: a voz meio rouca e macia, como a do Neil Young. Parecia um anjo sem asas. E eu
já querendo que a banda desse um taime pra me abraçar com ele.
Aí a Clarissa chegou com duas bandejas de salgadinhos e refrigerantes. Uma pra mim, outra pra Lu,
que pediu licença a um cliente. Foi lá dentro da casa procurar o banheiro, com alguma coisa debaixo
do braço. Na saída, Clarissa me entregou um bilhetinho:
Na cabeça a rolha
Tem um furo:
O mundo gira
E não se move.
Se a coisa toda
Foi na marra,
A barra é suja
Mas envolve...
A vida passa
A moda muda,
E o palco aos poucos
Descortina.
O barulho ajuda
Na fumaça
Que saltar
Da lamparina...
Mas o salário
É uma nota só.
O tempo arrota
E não comove.
O cara some
E se consome.
Seu consumo
É só de fome.
Bebe fogo,
Come lava
E lava a alma
Dessa terra.
Aí o tempo vira num tanque,
E você chora:
I love! I love!
A Bomba Humana
Pira o punk
Que trinca os dentes
Num serrote.
Se a ressaca então
For detonante:
Sal de frutas
Não resolve.
O sal saliva,
A língua assa,
E a vida fica
Mias picante.
E você chora,
Você berra:
- É hora, é hora
É hora
De um coquetel
Molotov!
E você grita,
Você chora:
- I love!
I love!
I love...”
6ª PARTE – A TRAVESSIA
Capitulo 28
As luzes se acenderam novamente. Todo mundo gritando: "I lovef I lovef I love!" , na apoteose final
das pal¬mas e dos delírios. Me colocaram no palco.
O Zorro se aproximou me abraçando forte, de uma forma esquisita — reconheci aquele perfume. E
depois me beijou o rosto — reconheci aquela barba por fazer. E finalmente retirou a máscara, num
sorriso largo:
— Paaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaai! — detonei, com os olhos arregalados.
— Eu mesmo, fiotinha... — balbuciou, enxugando algumas lágrimas de alegria. E completou:
— Custei a aparecer desta vez, não é?
Eu não sabia o que dizer. Apenas soluçava. E me abraçava com ele, pensando estar num sonho, ou
num pesadelo: não havia maneira de descobrir, naquele minuto.
Do palco eu via a turma pedindo bis: Pri-Pri, Bolanove, Dri, Liubiana (abraçada com o Pablo), Pat,
Tess (abraçada com o celular), Mariana, Ale, Xoba (com a Rê), Guilherme, Marcela, Andreia, Culta
(com a Bebela), Julius, Juliano, Clarissa... Só faltavam o Helger e a Carolina: deviam estar felizes, no
cinema. Mas fiz de conta que também se encontravam ali, abraçados. Todos. Minha galera. Todos,
todos os meus amigos ali, e eu sen¬tindo calafrios na sola dos pés, as mãos geladas, o corpo
trémulo, o calor do abraço do meu pai... até que alguém, às minhas costas, comandou:
— Lá menor, Lara!
Lu me entregou o violino, disse baixinho: — É meia-noite. — E foi sentar-se atrás da bateria do Liga-
Tripa. Meu pai me passou o microfone e fiquei plantada feito um dois-de-paus, sem saber o que
fazer, o que falar.
Mas alguma coisa me impulsionou. Algo muito forte me impeliu para a frente, e eu disse:
— Gente... — apontei um dedo pra ele — ... esse é o meu pai! Este é o Piotr... o meu pai... e é
aniversário dele!
A galera, novamente, veio abaixo. Detonei de novo:
— Dó maior!
Suspendi o arco, colocando o violino na posição clássica, entre o ombro e o queixo. E solei o
Parabéns pra você, apenas com o Gu fazendo acompanhamento no baixo de braço duplo.
Quando terminamos, papai me beijou. Continuava emocionado.
— Você acha que consegue repetir o Coquetel molotov, fiotinha?
— Vou tentar, não sei...
Gu comandou de novo: — Lá menor! — A princípio arranhei um pouco, mas não notaram. Na
segunda estrofe eu já dominava a música, e na terceira ficara completamente à vontade.
Foi o maior sucesso!
Repetimos a música mais duas vezes naquela noite. E quando houve novo intervalo — o Culta
sempre lendo os recados no microfone —, papai me levou para um cantinho do palco e cochichou:
— Foi o melhor aniversário que passei na vida, filha... Vo-você tá tocando mu-muito bem. Já é uma
virtuose...
Quis dizer do presente dele. Desisti.
— Quer almoçar comigo amanhã? — perguntou.
— Só nós dois, pai? — pedi exclusividade.
— Claro, filha. Só nós dois. Mais ninguém. Prometo! Não levo nem a verdadeira madame Berioska....
— Posso escolher o restaurante?
— Claro. Agora que você ficou rica...
— Rica? Como assim?
— Sua mãe já leu o contrato da gravadora e aprovou. Só falta você concordar. Acho que uma
violinista no grupo vai dar o maior charme, a maior mídia. É um toque especial, o algo mais. E não
há nenhuma banda com violinista em Belo. Você vai estourar logo, vai ver...
— Tem certeza?
— Claro. Vai por mim, fiota. É o meu ramo...
— E vou ter que parar de estudar?
— Não, claro que não! A gente sempre dá um jeito nisso. Deixe comigo.
— E aquele negócio do "fiquei rica"?
— A gravadora do Rio me autorizou a repassar um adiantamento sobre os direitos autorais do
Coquetel molotov. Sua música vai ser o nome do conjunto, e também do disco, como falei.
— O Gu já sabe?
— Claro. Combinamos tudo no Rio, nos mínimos detalhes. Até a senha da festa eu bolei!
— E o que significa aquilo que você falou, pai? Carpedia...
— Carpe diem.
— Isso...
— É uma locução do poeta latino Horácio, em suas Odes, escritas lá pelo século I, antes de Cristo.
Significa: "Aproveita o dia presente". Com isso Horácio quer nos lembrar que a vida é curta e que
devemos aproveitá-la ao máximo, sem desperdiçar o tempo, sacou? E então? Topa?
— Pai! Você não existe! — dei outro beijo nele.
— O adiantamento, por enquanto, é pouco. Mas é só adiantamento mesmo. Depois vêm os acertos
normais, conforme a quantidade de cópias vendidas, e as execuções em rádio, TV etc. Tenho
certeza de que a banda vai estourar no mercado.
— Quanto?
— Por ora, só dois mil reais...
— Yuuuupie! — detonei.
Nunca vira tanta grana na minha vida!
— E você ainda fala só dois mil reais, pai? Isso é um mundo de dinheiro, uma fábula. O que eu vou
fazer com tanta grana?
— Isso você descobre logo, tenho certeza. Mas ouça uma coisa: a fama, a galinha da fama, vai ficar
cacarejando na sua cabeça. Não deixe ela fazer ninho, nem botar ovo, tá bem?
Morri de rir. Lembrei-me da infância, do início da adolescência, ele me precavendo das galinhas que
podiam me visitar no poleiro do dia e da noite: a galinha da tristeza, a galinha da angústia, a galinha
do medo, a galinha da insegurança, a galinha da dúvida...
— Tá bem, pai — concordei, alisando sua barba es¬petada.
— E continue assim, como você é... Nunca sinta pena de si mesma, mesmo quando a galinha da
fama for embora. Hoje em dia, filha, tudo é muito passageiro, dura apenas quinze minutos... Me
promete?
— Prometo... — balbuciei, pensativa.
— Aqui está o contrato. Você lê direitinho e amanhã me telefona, marcando o restaurante. Sua mãe
já assinou a procuração, caso você tope. Aí a gente aproveita pra comemorar o meu niver. Agora
tenho que ir.
Me passou uns papéis e fez menção de sair.
— Fica mais um pouquinho, pai...
— Gostaria de ficar, mas estou exausto! Vim do aeroporto direto pra cá.
Fiz beicinho. Ele continuou:
— Nem tomei banho ainda, Lara. E já tou meio velho pra essas festas da rapaziada, não acha? —
balançou a máscara de Zorro no dedo, piscando um olho. — Mas me saí bem... Aliás, se você
tivesse ido ao shopping com a turma, teria me encontrado.
— Então você era o coroa que o Pri-Pri falou? O tal cara meio malucão, rabo-de-cavalo, esquisito... o
tal coroa que tava empresariando a banda?
— Malucão, não! Isto é, isso mesmo, digo, era eu mesmo... Pombas! Essa garotada... — engasgou.
— E eu só tenho quarenta e um anos...
— E por que você não me ligou, pai? A gente podia se encontrar lá... tava morta de saudades!
— Eu tinha que voltar ao Rio naquela mesma noite. Levar outra fita demo, providenciar contratos,
negociar percentagens etc. Não havia tempo a perder. Daí, combinei a festa e a sua surpresa com o
Gu lá no shopping mesmo, tudo pra hoje, digo, pra ontem. Hoje já é sábado, né?
— Obrigada, pai. Foi uma noite inesquecível! E adorei o violino!
— Agradeça ao Gustavo, filha. É um cara legal, um band-leader responsável, e muito talentoso,
apesar de cruzeirense.
Ele olhou na direção do Gustavo e riu:
— Mas acho que acabo de perdê-la, madame Berioska...
— Não fala assim, pai.
— Sei que você também gosta dele. Formam um belo par. Tá aprovado.
— Ele te falou alguma coisa?
— Adivinha! Até pediu pra te namorar, como se fazia no meu tempo. Pode?
— E você deixou, pai?
— Claro. Com o coração aos pedaços, mas deixei. Tudo tem a sua hora, né? E essa vida não se
demora no dia de ontem... nem anda para trás...
— Você já me disse isso num sonho que tive.
— Como assim?
— Deixa pra lá. Amanhã te conto, no almoço. Isto é, hoje, né?
— E não esqueça do meu par de meias, tá? Pra mim é sagrado! — ele riu, me beijou e foi saindo no
meio da turma. Fiquei acompanhando sua figura exótica desaparecer entre as mesas e o burburinho.
Era o meu pai, sim, como ele sempre fora, do jeito dele e de mais ninguém. Inteirinho. E como eu o
conhecia!
Capitulo 29
Eu estava feliz. E fiquei com medo de que a felicidade também olhasse para trás. Mas quando vi,
atrás da bateria, a Lu e o Liga-Tripa se beijando, detonei:
— Carpe diem!
Então dois olhos verdes de mim se aproximaram.
E, suspensos, fixos exatamente no encontro da lua com o toldo que encobria o palco, aqueles olhos
procuraram alguma coisa entre as estrelas. Um segredo, um enigma, uma nave perdida, ou um
sonho?
Com a cabeça, timidamente, "ele" descreveu um semicírculo de oeste para leste e tentou achar uma
saída, uma palavra. Ou quem sabe, apenas o instante em que as coisas ficam simples, e pequenas.
Assim, em silêncio, jogou seus cabelos para trás, acariciou a ponta do meu queixo e tocou seus
lábios nos meus. Senti seu cheiro, seu perfume, seu hálito.
Parecia que um violino e uma guitarra faziam fundo ao longe, leve, como uma balada distante. E,
com os olhos fechados, tive a sensação de flutuar sobre campos e colinas repletas de flores que
cantavam, numa noite clara de primavera.
Depois, um abismo: eu estava só. Na outra margem, como num sonho, a neblina. Lá, meu pai
segurava um urso de pelúcia e minha mãe carregava um livro debaixo do braço. E me acenavam.
Depois, apareceu um gato, de pêlos longos, cinzentos. E uma senhora gorda, com um violino nas
mãos, me dando adeus.
Abri os olhos. "Ele" colocou uma flor nos meus cabelos.
Vi a lua boiando num aquário vermelho. Urna chave girou dentro de mim e a lua derramou seus raios
sobre as últimas nuvens que, em turbilhão, renasciam sobre outras nuvens que chegavam.
Delicadamente, aquelas mãos dedilharam as cordas de minha alma fugidia. Tocaram a música que
vinha no galope das alegrias do vento e nas sombras que a lua beijava em nossas faces. Tocaram
tudo, enfim, que um coração pode guardar em cada compasso do primeiro amor, de verdade.
— Essa música que está tocando agora, Lara, eu fiz pra você. E se chama Balada do primeiro amor.
Trêmula, fiquei com medo de crescer. E, dentro do escuro que me separava do escuro, guardei uma
lágrima de orvalho no cantinho dos olhos. Em seguida, acrescentei dois peixinhos vermelhos no
aquário da lua, coloquei uma folha em branco numa máquina de escrever imaginária... Mas ouvi:
— Eu te amo, Larissa.
Embora tentasse, não mais consegui conter o tempo. O minuto ficou enorme demais para que eu
pudesse, ainda, dissolvê-lo em outros pensamentos, pessoas, ou palavras.
Então fechei os olhos novamente. Fiz uma ponte sobre o abismo imaginário que me separava
"deles". Mas não atravessei para o outro lado. Apenas sorri e balbuciei, feliz, muito feliz:
— Eu também, Gustavo.
*FIM*