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DIREITOS DOS POVOS INDÍGENAS:

RELEITURA DE FRANCISCO DE VITÓRIA


ENFATIZANDO OS 500 ANOS DO DESCOBRIMENTO

Paulo Borba Casella


Professor Associado de Direito Internacional
da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo

Guilherme Figueiredo Nascimento


Aluno do Curso de Graduação da Faculdade
de Direito da Universidade de São Paulo

Resumo:
Trata-se de u m breve estudo sobre o pensamento de Francisco de
Vitória e sua contribuição para o desenvolvimento do Direito Internacional no
período que antecedeu os descobrimentos. A matéria, ainda, faz u m a análise
crítica do pensamento de Vitória, demonstrando que a lógica da dominação
mercantilista prevaleceu sobre o caráter humanitário do seu pensamento. A
título de remate analisa a situação do País dentro desse panorama, salientando
a violação de direitos e a figura do índio que após os 500 anos do
descobrimento, ainda não tem consolidado, de forma efetiva, seus direitos e
garantias.
Abstract:
The author's study is about the thought of Francisco de Vitória
and his contribution for the development of the International Right in the
period that preceded the Discoveries. The study still does a criticai analysis of
the thought of Vitória, demonstrating that the logic of the mercantilist
dominance prevailed on the humanitarian character of his thought.
Concluding, it analyzes the situation of the Country inside of that panorama,
pointing out the violation of rights and the illustration of the brazilian indian,
w h o after 500 years of the discovery has not Consolidated, in an effective
form, hisrightsand warranties.

Unitermos: Direito dos povos indígenas; evolução d o Direito Internacional;


sociedade brasileira.

"Quant à Ia police de nos sauvages, c'est une chose


presque incroyable, et qui ne se peut dire sans faire honte
à ceux qui ont les loix divines et humaines, comme estans
122 Paulo Borba Casella/Guilherme Figueiredo Nascimento

seulement conduits par leur naturel, quelque corrumpu


qu'il soit, s'entretiennent et vivent si bien en paix les uns
a vedes a u três."

Jean de Léry Histoire d'un voyage faict en Ia terre du


Brésil (1578)1

Considerações introdutórias

A passagem dos primeiros 500 anos do descobrimento do Brasil


enseja reflexão a respeito da consolidação do estado de direito e m sociedade
equânime c o m o condição de efetivação do Direito, não-somente nominal, mas
efetiva. A essa já difícil premissa - infelizmente não-atendida - na ordem interna,
cabe acrescer a dimensão internacional, à luz de contexto cada vez mais presente e
premente, exigindo a adequação dos direitos e garantias fundamentais e m
perspectiva mais ampla.
Nesse sentido, pode-se retomar a questão dos direitos e garantias dos
povos indígenas, presente desde o amanhecer do dia seguinte aos descobrimentos,
na reflexão crucial de Francisco de Vitória,2 e m relação à qual o Direito brasileiro
todavia oscila entre o paternalismo e a busca de remendos aos fatos consumados.
U m a política verdadeiramente nacional e abrangente e m matéria de proteção dos
direitos dos povos indígenas, não-obstante as garantias formais dos arts. 231 e 232
da Constituição da República ainda tem longo caminho a percorrer.

I O Direito Internacional antes dos descobrimentos

Como ciência autônoma, o Direito Internacional só aparece no século


XVII, c o m o De jure belli ao pacis de Hugo Grotius, publicado e m Paris, e m 1625.
Grotius é o primeiro a analisar o conjunto da matéria, vendo-a no seu todo e

1. Jean de Léry. Histoire d'un voyage faict en Ia terre du Brésil (1578) (texte établi, presente et
annoté par Frank Lestringant, précédé d'un entretien avec Claude Lévi-Strauss, Paris, Bibliothéque
classique - Livre de poche, 1994, ch. xviii, pp. 439 e ss.).
2. A respeito Paulo B. Casella, "Presença de Francisco de Vitória" in Revista da Faculdade de
Direito, v. L X X X , 1985, pp. 355-369.
Direito dos povos indígenas: releitura de Francisco de Vitória 123
enfatizando os 500 anos do Descobrimento

criticando os seus precursores pela falta de visão e pela falta de método, sabendo
contudo reconhecer-lhes os méritos, e citá-los, quando ocasião se apresenta.
M a s antes de Grotius muitos refletiram sobre questões pertinentes ao
Direito Internacional, dentre os quais podem ser destacadas algumas obras, que se
atem a temas específicos dessa área.
Foram conservadas obras como o De bello de João Legnano (falecido
e m 1383), o Traité des faits d armes et de chevalerie de Cristiano de Pison, LArbre
des batailles (escrito por volta de 1384) por Honório Bonet, ou o Libellus de bello
justo et licito (de 1514) Wilhelmus Matthiae para citar alguns que discorrem
detalhadamente sobre as guerras e atos que, no correr destas, se possam praticar.
Essas obras, e muitas outras, refletiram a preocupação - partilhada por religiosos e
leigos de regulamentar a atividade guerreira. Não apenas os Estados, ou seja, o
conjunto de Repúblicas, Principados e Reinos, mas também os particulares a ela
recorriam para resolver as questões pendentes. T a m b é m foi decisiva a atuação da
Igreja no sentido de restringir as guerras e humanizar os combates.
N a Espanha diversos pensadores se reservaram ao estudo do direito da
guerra. Santo Isidoro, bispo de Sevilha (de 596 a 636), na sua obra Origens ou
Etymologie, retoma o conceito de jus gentium das Institutas de Ulpiano, dando-lhe
características que o aproximam muito da concepção moderna. T a m b é m relevante
foi o trabalho de S. Raimundo de Penaforte (nascido entre 1175 e 1185, falecido e m
1275), Summa poenitentias. Outro marco relevante, são Las siete partidas, obra de
Rei Afonso X de Cartilha, que teve como colaboradores Giacomo Ruiz, Fernando
Martinez e Roldum. Essa obra regulava o direito da guerra de forma minuciosa.
Mas, é só depois de Francisco de Vitória que podemos falar e m
Direito Internacional jus inter omnes gentes. Vitória trouxe contribuição pessoal e
original ao Direito, enriquecendo-o c o m princípios amplos e humanos. Foi Hugo
Grotius o responsável pelo estabelecimento do Direito Internacional como ciência
distinta, mas o pai do Direito Internacional é Francisco de Vitória e essa paternidade
está fora de discussão.

II Vitória As grandes navegações e descobrimentos Brasil

No curso da história é difícil encontrar época que se possa comparar


aos anos que marcaram o fim do século X V e início do século X V I . A Idade Média
viu nascer nova civilização e m seu seio, teve sua importância e sua originalidade.
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N ã o há ruptura entre civilização medieval e a civilização do Renascimento, mas


ocorre u m florescimento, u m apogeu, que pelo seu brilho e sua extensão não pode
perdurar. O Renascimento é a culminação, o fim de u m processo que se foi
preparando ao longo de toda Idade Média.
N o ano de 1492 Cristóvão Colombo descobre o Novo Mundo, e nesse
m e s m o ano os reis católicos tomam o último bastião muçulmano da Península
Ibérica, Granada. Ocorre ainda na Espanha a unificação dos Reinos de Castela e
Aragão.
A descoberta do Novo Mundo, incluso a unificação de Castela e
Aragão e o fim da ocupação árabe, juntamente com a invenção da imprensa de tipos
móveis por Guttenberg, são alguns dos eventos que precisamos ter e m mente ao
pensarmos no ambiente histórico e m que viveu os primeiros anos de sua vida u m
dos homens que b e m ilustram o novo ideal: Francisco de Vitória, profundamente
ligado ao mundo medieval, àfilosofiae à teologia, mas que nos traz algo de novo e
original.
N o decorrer da década de 30 Francisco examina os direitos que os
espanhóis podiam invocar para justificar a dominação do Novo Mundo, nas famosas
preleções De Indis e De jure belli Hispanerum in barbares. E m anos posteriores,
principalmente 1539 e 1541, Carlos V consulta Francisco a respeito de diversas
questões referentes ao Novo Mundo, especialmente no que se referia à conquista e
evangelização da América.
Grande ressonância no campo doutrinai tiveram as idéias de Francisco
a respeito da forma e condições a que deveria estar submetida a conquista e
colonização da América.3 As idéias do grande teólogo aparecem pela primeira vez
na relectio De temperantia, sendo posteriormente desenvolvidas nas duas relectionis
De Indis. O imperador, ouvindo falar a respeito dos estudantes de Vitória nesse
campo, dirige-se por carta a ele, manifestando o interesse pela questão. Poucos anos
depois das Relectiones De Indis serem promulgadas editam-se as Nuevas Leyes de
índias, sobre as quais, ao menos indiretamente, influiu Francisco.
Aspecto novo do pensamento vitoriano é a preocupação humanitária,
que transparece dos tratados escritos no século X V I e nos seguintes, opondo-se ao
espírito vigorante na Idade Média, no campo das guerras, segundo o qual dever-se-ia
fazer tanto mal quanto possível aos inimigos, matando, torturando, massacrando,

3. Pe. Beltrán, op. cil., Cap. VIII Vitoria y Carlos V, pp. 115-140.
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enfatizando os 500 anos do Descobrimento

violando, destruindo, queimando, roubando, traindo a palavra empenhada, apesar


dos esforços da Igreja e m humanizar a guerra. Francisco adota posição totalmente
diferente. A guerra deve ser praticada como mal necessário para reparar injúria
grave, mas visando ao restabelecimento da paz e praticando o menor mal possível,
evitando dano desnecessário, ou que ultrapasse os limites do estritamente
indispensável: "Finis est pax et securitas. Erge gerenti bellum iustum licent omnia,
quae necessária sunt ad consequendam pacem et securítatem" IV- 431.18. quarta
prepositie. Francisco apresenta princípio ao qual deveríamos prestar mais atenção na
época contemporânea: quando os danos que podem decorrer de u m ataque atingindo
inocentes ou, c o m o coloca Pradelle: "les innocents, ... j'allais dire Ia population
civile" possam ser muito superiores de que a vantagem militar que daí se poderia
obter, é preciso, pura e simplesmente, abster-se de fazer o ataque. Para Francisco a
única justa causa para a guerra é a violação de u m direito, injuria accepta.
Se por u m lado os novos ideais e princípios desenvolvidos por Vitória
contribuíram para que os espanhóis justificassem a sua dominação, por outro
significaram u m a mudança na forma de pensar o Direito Internacional. A s noções
apresentadas por Francisco, verdadeiramente pessoais e originais, ultrapassam o
século.
Juntamente c o m a expansão marítima espanhola, ocorreram os
descobrimentos portugueses, e nesse período ocorre o descobrimento do Brasil.
"Não sabemos se o nascimento do Brasil se deu por acaso, mas não há dúvida de que
foi cercado de grande pompa. A primeira nau de regresso da viagem de Vasco da
G a m a chegou a Portugal, produzindo grande entusiasmo, e m julho de 1499. Meses
depois, a 9 de março de 1500, partia do Rio Tejo, e m Lisboa, u m a frota de treze
navios, a mais espantosa que até então tinha deixado o Reino, aparentemente c o m
destino às índias, sob o comando de u m fidalgo de pouco mais de trinta anos, Pedro
Álvares Cabral. A frota, após passar as Ilhas de Cabo Verde, tomou rumo oeste,
afastando-se da costa africana até avistar o que seria terra brasileira a 21 de abril.
Nessa data, houve apenas u m a breve descida à terra e só no dia seguinte a frota
ancoraria no litoral da Bahia, e m Porto Seguro" 4
O que é importante ter e m mente é que a influência de Francisco de
Vitória não se limitou às fronteiras espanholas, tendo também dado subsídios à

4. Fausto, Boris. História do Brasil, São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 6a ed.,
1998.
126 Paulo Borba Casclla/Guilhcrme Figueiredo Nascimento

expansão marítima portuguesa, b e m como para outras nações e m fase de expansão.


A s conquistas foram seguidas de mudança de pensamento.

III 500 anos depois

O que queremos demonstrar nesse breve estudo é que o caráter


humanitário do pensamento de Vitória, apesar de ter modificado o Direito
Internacional até então vigente, não conseguiu alterar a lógica da dominação
mercantilista e a forma hostil de como se consolidou a dominação espanhola, bem
como a portuguesa.
A colonização do Brasil, por exemplo, foi toda marcada por u m a
realidade oposta à liberdade pessoal defendida por Vitória. "A teoria da liberdade
pessoal, aceita por todas as nações, é a que Bluntschli, o eminente publicista suíço,
discípulo de Savigny, define nesses quatro parágrafos do seu Direito Internacional
Codificado: 1. "Não há propriedade do h o m e m sobre o homem. Todo h o m e m é u m a
pessoa, isto é, u m ente capaz de adquirir e possuir direitos. 2. "O Direito
Internacional não reconhece a nenhum Estado e a nenhum particular o direito de ter
escravos. 3. O s escravos estrangeiros tornam-se livres de pleno direito desde que
pisam o solo de u m Estado livre, e o Estado que os recebe é obrigado a fazer
respeitar-lhes a liberdade." 4. "O comércio de escravos e os mercados de escravos
não são tolerados e m parte alguma. O s Estados civilizados têm o direito e o dever de
apressar a destruição desses abusos onde quer que os encontrem. 2
Infelizmente, seja dito de passagem, o comércio e os mercados de
escravos existem ainda (1883) e m nossas capitais, sob as vistas dos estrangeiros,
sem limitação n e m regulamento algum de moralidade, tão livres e bárbaros como
nos viveiros da África central que alimentam os haréns do Oriente.'5
A s palavras de Nabuco demonstram que u m dos traços mais
significativos do desenvolvimento da sociedade brasileira foi a escravidão. Ora,
desde Francisco de Vitória a contradição entre u m a postura internacional onde se
defendiam os direito básicos do h o m e m e u m a realidade colonial onde prevalecia a
escravidão, a exploração desmedida, o extrativismo e o desenvolvimento de
monoculturas agrícolas c o m utilização de mão-de-obra escrava, fazia-se latente.

5. Nabuco, Joaquim. O Abolicionismo, Rio, Nova Fronterira, 1999, p. 116.


Direito dos povos indígenas: releilura de Francisco de Vitória 127
enfatizando os 500 anos do Descobrimento

A s mudanças, pregadas por Vitória e defendidas pelas nações


estrangeiras colonizadoras, só foram ocorrer de fato quando as próprias nações
dominantes passaram a sofrer ônus decorrente da manutenção daqueles sistemas de
operação econômica. Isso só se verificou com o advento do capitalismo industrial,
sucedendo ao mercantilismo, no tardio século XIX.
O cenário internacional presente traz a escabrosa lembrança das duas
Guerras Mundiais, acrescida das desgraças cometidas e m nome do nacionalismo.
Foi somente a partir desses marcos de triste memória que se resolveu, por consenso,
promulgar a Carta das Nações Unidas que previa a defesa dos direitos dos homens
(inalienáveis), b e m como se consolida a defesa do Direitos Humanos.
N o Brasil, contudo, não-obstante formal promulgação, a violação de
direitos sempre foi a regra. Iniciamos o século c o m a política do café c o m leite
(dominação das oligarquias de Minas e São Paulo), seguimos c o m u m Estado N o v o
autoritário e depois vivemos a Ditadura. E m todas essas épocas de diferentes
maneiras prevaleceu u m a democracia viciada, onde as regras beneficiavam u m a
minoria e os direitos dos homens eram violados sistematicamente.
Chegamos ao ano 2000, e o Brasil comemorando seu aniversário de
500 anos foi forçado a confrontar, de m o d o bastante desastrado aliás, o lado sombrio
dessa sociedade e m construção, na qual o progresso material tem sido feito à custa
de exclusão social das fatias da população tecnicamente abaixo da linha da
pobreza" Muitas conquistas foram conseguidas, tanto no sentido de se consolidar o
Estado Democrático brasileiro, como no sentido de se preservar os direitos dos
homens no âmbito internacional.
N ã o podemos repetir os erros do passado. A escravidão somente foi
encerrada quando se tornou antieconômica. Quando teremos razão forte o bastante
para ensejar a consolidação dos direitos dos índios? A resposta a esta indagação não
poderá esperar outros 500 anos. A conclusão se faz com u m a pergunta, através dos
seguintes artigos:

"Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização


social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos
originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam,
competindo à União demarcá-las, proteger e fazer
respeitar todos os seus bens.
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Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são


partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus
direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em
todos os atos do processo."

SãoPaulo,julhode2000.

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