EISENBERG, José. A Escravidão Voluntária Dos Índios Do Brasil e o Pensamento Político Moderno
EISENBERG, José. A Escravidão Voluntária Dos Índios Do Brasil e o Pensamento Político Moderno
EISENBERG, José. A Escravidão Voluntária Dos Índios Do Brasil e o Pensamento Político Moderno
XXXIX
No incio da era moderna, durante o perodo da expanso martima europeia para ocidente, a teologia moral na Pennsula Ibrica estava imersa em
debates jurdicos sobre a legalidade e legitimidade da ocupao das terras da
Amrica e da escravizao dos seus habitantes. A seconda scholastica, como
era conhecido o movimento de telogos, predominantemente dominicanos e
jesutas, que estava no centro daqueles debates, era orientada pela teologia
moral de S. Toms de Aquino e procurava produzir uma doutrina compreensiva que provesse o Vaticano e seus aliados seculares com um arcabouo
terico para os argumentos jurdicos desenvolvidos por aqueles que estavam
preocupados com questes derivadas da ocupao do Novo Mundo. Na primeira metade do sculo XVI, o palco daqueles debates eram as universidades
espanholas de Salamanca e Alcal, onde os telogos dominicanos, como Francisco Vitria, Bartolom de las Casas e Domingo de Soto, produziam a interpretao hegemnica da doutrina tomista daquele perodo. J na segunda
metade do sculo (particularmente depois da ascenso de Joo III ao trono
portugus) so as universidades portuguesas de Coimbra e vora os palcos
principais daqueles debates e so telogos da recm-fundada Companhia de
Jesus, como Lus de Molina e Francisco Suarez, os responsveis pela produo da interpretao hegemnica da teologia moral de S. Toms.
A principal mudana na doutrina tomista introduzida pelos telogos jesutas
na segunda metade do sculo XVI foi a utilizao de um conceito subjectivo
de ius (direito)1. Para os dominicanos, o facto de que a liberdade dos homens
era um direito natural implicava que ela era inalienvel. O que era justo
* Departamento de Cincia Poltica (UFMG).
1
Cf. Richard Tuck, Natural Rights Theories, Cambridge, Cambridge University Press,
1979.
Jos Eisenberg
produzia direitos e, dado que justo era aquilo que era derivado dos princpios
morais da religio crist, os direitos correspondentes tinham um carcter
objectivo. Assim, para os dominicanos, direito (ius) era tudo aquilo que era
permitido pelas leis naturais, divinas ou humanas. Para os jesutas, no entanto, direitos eram certas faculdades (facultas) sobre as quais todo o homem
tem domnio (dominium). Em De iustitia et iure (1592), Molina o primeiro
tomista a argumentar que o facto de que a liberdade era um direito implicava
que todo o homem podia dispor dela como quisesse. Para Molina, todo o
direito (ius) implicava domnio (dominium) e, assim sendo, os direitos no
constituam princpios objectivos derivados do plano ou vontade divina, mas
tinham carcter subjectivo: os homens eram proprietrios dos seus direitos.
A origem deste conceito subjectivo do direito conhecida. J havia
aparecido na doutrina nominalista de telogos da Universidade de Paris no
sculo XV, tais como Jean Gerson, e, como mostra Richard Tuck (1979),
comeou a desenvolver-se a partir da crtica franciscana ao tomismo a partir
do sculo XIII. No entanto, o conceito subjectivo do direito era um princpio
que antagonizava com o direito natural tomista. So os jesutas em Portugal
os primeiros tomistas a encontrarem uma maneira de interpretar os direitos
como faculdades subjectivas dos homens e justificar esta interpretao como
consonante com a teologia moral de S. Toms.
A origem e as motivaes da introduo do conceito subjectivo do direito
pelos jesutas so o objecto do presente estudo. Analisarei aqui a influncia
do encontro jesutico com os ndios do Brasil no sculo XVI sobre o desenvolvimento da teoria poltica jesutica articulada pelos telogos jesutas em
Portugal. Em particular, analisarei a influncia que os debates coloniais sobre
a escravido voluntria dos nativos da Amrica tiveram sobre o desenvolvimento do pensamento de Lus de Molina, principal responsvel pela introduo do conceito subjectivo do direito na teoria poltica tomista.
O evento central desta anlise um debate jurdico entre missionrios no
Brasil em 1567. De um lado, Manuel da Nbrega, fundador das primeiras
misses jesutas para o Novo Mundo, e, do outro, Quircio Caxa, ento professor de Casos de Conscincia no Colgio da Bahia, que desenvolveu um argumento em favor da escravido voluntria dos indgenas baseado no conceito
subjectivo do direito. O aparecimento deste conceito num debate colonial dcadas antes do seu aparecimento em tratados de direito natural na Europa suscita
uma questo: como que o debate sobre a escravido voluntria dos ndios
influenciou o aparecimento do direito subjectivo entre os jesutas portugueses?
Desde a chegada dos primeiros jesutas ao Brasil, a violncia usada pelos
colonos no seu esforo de escravizarem a populao indgena preocupou os
missionrios. Poucos meses aps a sua chegada ao Brasil, Nbrega j mostra
insatisfao com o tratamento violento que os ndios recebiam das mos dos
portugueses. Segundo ele, as guerras movidas contra os selvagens no eram
Jos Eisenberg
escravo natural descrito por Aristteles4. O mais ilustre defensor do argumento
da escravido natural no sculo XVI foi, no entanto, o humanista Juan Gines
de Seplveda, autor do Democrates Secundi. Essa fama deveu-se em grande
parte sua participao no debate sobre os direitos de conquista da coroa
espanhola no Novo Mundo travado com o dominicano Bartolom de las Casas
em Sevilha em 1550. Entretanto, dos quatro argumentos apresentados por
Seplveda em defesa dos direitos de conquista da Espanha, apenas um se
baseava na teoria da escravido natural dos ndios. Os outros trs condenavam
os ndios por pecarem contra a natureza e a cristandade. Seplveda defendeu
o direito da coroa espanhola de submeter os ndios ao seu poder temporal e,
portanto, o direito de escraviz-los em decorrncia das guerras que poderiam
ser justamente movidas para se atingir a submisso5. Seplveda tambm usou
o recurso ao direito das naes (ius gentium), segundo o qual a condio
brbara dos ndios justificava a sua submisso ao governo espanhol e a guerra
movida contra aqueles que resistissem.
Os dominicanos Francisco de Vitria e Bartolom de las Casas tambm
concordavam com o facto de que os ndios viviam em violao aos direitos
naturais. Esses autores, contudo, argumentavam que os nativos no poderiam ser considerados culpados e punidos por essas faltas pelo facto de
ignorarem completamente as leis naturais6. Aos dominicanos coube, portanto, justificar a conquista das Amricas sem usarem o recurso teoria
aristotlica advogada por Mair e Seplveda. Em seu relectio De indis (1539),
Francisco de Vitria articula a mais sistemtica justificao dos direitos de
colonizao espanhis, sem, contudo, derivar esses direitos da condio
natural dos ndios7. Vitria diz que o direito de ocupao do novo continente
no pode basear-se na soberania legtima do papa ou do imperador, pois
nenhum deles tem autoridade temporal sobre aquelas terras e os povos que
nelas vivem. Os pecados e o paganismo, segundo Vitria, tambm no
podem ser usados como justificao, pois os ndios no estavam sob jurisdio de qualquer corte espanhola ou eclesistica.
Para Vitria, o direito dos espanhis de ocuparem as terras novas s pode
ser derivado (a) do direito natural de associao e comunicao, (b) do
10
4
V. Lewis Hanke, Aristotle and the American Indians, Bloomington, Indiana University Press,
1959, e segs., pp. 14, e Anthony Pagden, The Fall of Natural Man, pp. 27 e segs.
5
Juan Gines de Seplveda, Democrates segundo, o de la justas causas de la guerra contra
los indios, Madrid, Angel Losada (ed.), 1951.
6
V. Francisco Vitria, Lectiones in Summa Theologiae, 1a.2ae, 90, in A. Pagden e
J. Lawrence (eds.), Vitria: Political Writings, Cambridge, Cambridge University Press, 1991,
p. 160, e Bartolom de Las Casas, Apologetica Historia Sumaria, Edmundo OGorman (ed.),
Mxico, 1967.
7
Lewis Hanke privilegia os argumentos apresentados por Las Casas no debate de 1550
contra Seplveda. A controvrsia de Sevilha tornou-se a mais difundida e ilustre discusso sobre
os direitos de conquista da Espanha no Novo Mundo. Os argumentos defendidos pelo
dominicano Las Casas no evento, entretanto, j haviam sido desenvolvidos por Vitria em
1539 no seu relectio De indis (v. Hanke, 1959, pp. 14 e segs.).
11
Jos Eisenberg
Os ndios do Brasil estavam vendendo a sua liberdade e a dos seus
parentes desde os primeiros dias da colonizao, clamavam os jesutas.
Nbrega, porm, argumenta que esse hbito no existia antes da chegada dos
europeus, tendo sido eles quem ensinou aos ndios esta ynfernal raiz10.
difcil estabelecer se os ndios de facto praticavam a escravido antes
da chegada dos portugueses. Mesmo que se comprovasse a existncia dessa
prtica, seria ainda complicado determinar o seu grau de disseminao entre
os muitos grupos indgenas brasileiros. Uma das raras fontes que tratam do
assunto a carta escrita em 1551 pelo jesuta Azpicuelta Navarro, na qual
ele narra o caso de alguns ndios mantidos em cativeiro por uma tribo
inimiga espera da realizao de uma cerimnia festiva onde seriam comidos. Ao ser-lhes oferecida a possibilidade de permutarem o seu destino pela
escravido, um dos prisioneiros prontamente respondeu que no queria ser
vendido porque la cumplia a su honra passar por tal muerte como valiente
capitn11.
Se os ndios praticavam a escravido voluntria antes da chegada dos
europeus, era, no entanto, uma questo menor. Segundo a teoria tomista do
direito natural, a escravido voluntria s se justificava como produto de
uma situao de extrema necessidade. Os jesutas teriam de decidir, portanto, se os casos de escravido voluntria na colnia eram resultado de situaes de extrema necessidade.
OS NDIOS QUE SE VENDEM A SI PRPRIOS: O DEBATE CAXA VS. NBREGA
SOBRE A ESCRAVIDO VOLUNTRIA
12
10
Frei Manuel da Nbrega, carta a Tom de Sousa, ex-governador do Brasil, 5 de Julho
de 1559, MBIII-13, p. 79.
11
Frei Joo de Azpicuelta Navarro, carta aos padres e irmos em Coimbra, Agosto (?)
de 1551, MBI-35, p. 279.
12
V. Resolues da junta da Bahia sobre as aldeias dos padres e os ndios, 30 de Julho
de 1566, MBIV-44, pp. 354 e segs.
13
Se o pai pode vender a seu filho e se hum se pode vender a si mesmo respostas
do P.e Manuel da Nbrega ao P.e Quircio Caxa, 1567, MBIV-54, pp. 387 e segs. Daqui em
diante referido apenas como debate Caxa v. Nbrega.
14
Quircio Caxa, Breve Relao da Vida e Morte do Padre Jos de Anchieta, So Paulo,
Editora Obelisco.
13
Jos Eisenberg
A primeira meno feita a Caxa na correspondncia da ordem encontra-se
numa carta edificante enviada pela casa jesuta de So Roque, Lisboa, anunciando a partida para o Brasil do jovem Quircio Caxa que havia estudado
teologia por muitos anos15. Em 1565, o padre Antnio Blsquez contou aos
seus colegas portugueses que Caxa estava adquirindo boa reputao no Brasil
como professor de Teologia16. Caxa escreveu a sua primeira correspondncia
na colnia naquele mesmo ano. Tratava-se de uma carta comissionada pelo
provincial Lus de Gr na qual Caxa descreve a vitria dos portugueses sobre
os franceses e elogia Nbrega e Anchieta pelo sucesso na pacificao do
conflito entre tamoios e tupinamb. A contribuio seguinte de Caxa para a
correspondncia da ordem foi a sua opinio jurdica a respeito da monitoria17.
O nico manuscrito do debate Caxa vs. Nbrega que sobreviveu at aos
nossos tempos encontra-se na biblioteca municipal de vora. Apesar de as
opinies dos autores estarem juntas nesse texto, elas foram de facto produzidas separadamente. Caxa escreveu na Bahia, o texto foi ento mandado
para Nbrega no Rio, donde ele escreveu a sua resposta. O documento
consiste em dois argumentos defendidos por Caxa, somados s respostas de
Nbrega a cada um deles18.
O primeiro argumento de Caxa serviu de justificao para a determinao
da monitoria que reconhecia o direito paterno da venda da prole em caso de
grande necessidade. De acordo com o Cdigo Justiniano, um pai poderia
vender o filho em caso de extrema pobreza ou necessidade de alimento
(nimian paupertatem egestatemque)19. Segundo as determinaes da Mesa
de Conscincia e Ordens de Portugal, a lei romana foi reescrita e passou a
determinar que a venda poderia ocorrer quando o pai estivesse sujeito a
grande necessidade. Caxa defendia a verso revista da lei romana, argumentando que o Cdigo Justiniano tinha sido racionalmente estendido pelos
juristas portugueses para tambm abarcar os casos de grande necessidade,
e no s de extrema:
E pois a rezo da ley h acudir necessidade do pay, rezo parece
estender a lay a outra qualquer necessidade extrema, como Saliceto sobre
a dita ley a estendeo necessidade de resgatar dos que injustamente lhe
querem tirar a vida [] no h muito que o principe alargue o direito
15
14
20
XIV .
Debate Caxa v. Nbrega, pp. 399-400. Saliceto foi um jurisconsulto bolonhs do sculo
21
Casus exceptus a regula extenditur ad similem et ubi eadem est ratio, idem debet esse
ius (ibid., p. 400).
22
Thomas Aquinas, Summa Theologiae, 2ae.2ae., 66.7.
23
Id., ibid.,
24
Id., ibid., 1a.2ae., 94.5. A genealogia do conceito de dominium apresentada aqui
limitada aos autores e casos pertencentes corrente de pensamento tomista no perodo
anterior ao debate Nbrega vs. Caxa. Uma histria mais completa do conceito teria de incluir
anlises de outros significados atribudos ao termo, especialmente no contexto dos debates
sobre propriedade e despotismo.
15
Jos Eisenberg
Aquino inclui o dominium poltico, assim como o dominium paterno, na
segunda categoria, pois, assim como os governantes devem promover o bem
dos governados, os pais devem cuidar do bem dos filhos. Essa forma de
dominium diferente do dominium directo que o senhor tem sobre o seu
escravo ou o proprietrio sobre as suas terras. A natureza prescreve o
dominium do pai sobre o filho porque o pai melhor equipado para cuidar
do filho. O direito objectivo (ius) da criana de desfrutar da sua liberdade ,
portanto, sujeito a esse tipo especial de dominium que o pai retm. Ademais,
esse dominium no corresponde ao direito natural de usufruto (ius utile),
nem to-pouco ao direito de propriedade (dominium directum)25.
Ao utilizar o termo dominium para descrever a autoridade do pai, Aquino
criava um dilema conceptual que no podia ser resolvido dentro dos limites
da sua teologia moral. Se o facto de o pai ter um dominium natural sobre
o filho significa que ele pode dispor da liberdade do filho em caso de extrema
necessidade, ento a liberdade no um direito objectivo e inalienvel, j que
pode ser alienado em extrema necessidade. Por outro lado, se o direito do
pai em relao ao filho no um dominium verdadeiro, mas apenas alguma
forma de ius utendi, ento ele no tem o direito de vender a liberdade da sua
prole. Ao definir as autoridades paternal e poltica como formas de dominium
natural, Aquino criava uma ambiguidade conceptual em relao
preexistncia do dominium no estado de natureza e, consequentemente, deixa
obscuro se os homens podem, por direito natural, dispor livremente daquilo
sobre o qual se tem dominium.
No seu primeiro argumento, Caxa explora, portanto, estas ambiguidades
da teologia moral de S. Toms de Aquino, estendendo o argumento tomista
aos casos em que o pai vende o filho devido a grande necessidade, e no
s extrema. No difcil enxergar que a inteno de Caxa ao fazer este
argumento semntico era claramente a de relaxar a aplicao da lei e legitimar
assim os casos de escravido que estavam ocorrendo no Brasil. Nbrega, no
entanto, no partilhava os objectivos de Caxa.
16
25
Id., ibid.,, 1a.1a., 96.4. A maioria dos juristas que antecederam S. Toms defendiam
que uma criana no poderia ser vendida mesmo sob a presso de extrema pobreza. Mesmo
que o pai teoricamente tivesse ius vitae mecisque sobre a sua prole, ele no poderia vend-los como escravos. S. Paulo diz que a venda no prejudica a ingenuitas da criana, pois um
homem livre no tem preo (nulo praetium aestimatur, p. 5.1.1.). Caracalla e Diocleciano
concordam, adicionando o argumento de que o acto da venda era passivo de punio. Por duas
vezes, em 315 B.C. e 323 B.C., Constantino mostrou concordncia com esse preceito
(C.Th.4.8.6. e C.Th.11.27.2.). Entretanto, numa contituio anterior, em 313 B.C., o mesmo
Constantino abre uma excepo ao tratar como vlida a venda de um recm-nascido (sanguinolentus) (C.Th.5.10.1.). A novidade dessa legislao reside nas condies da venda: o
vendedor s poder efectuar a venda da criana com a finalidade de pagar dvidas, o preo
deveria ser justo, e o vendedor ou a pessoa vendida poderiam cancelar o acto atravs do
pagamento do valor da venda ou da troca por outro escravo de valor correspondente. O direito
de reverso da venda seria cancelado se a criana fosse produto de uma unio com um brbaro.
(v. Cdigo Justiniano, c. 482-565 a. D.; cf. Buckland, 1908, pp. 420 e segs.).
17
Jos Eisenberg
prejudicial aos ndios, portanto, contrria ao bem comum. Nbrega pensava
que com a reforma os ndios passaram a fazer parte do corpo poltico da
colnia, sendo que dentro das aldeias o seu bem-estar era, portanto, um
problema da comunidade civil. Sendo esse o caso, nenhuma lei que os
prejudicasse poderia ser considerada justa.
O argumento de Nbrega baseado na distino entre aqueles que pertencem comunidade civil e aqueles que esto fora dela, uma distino j elaborada pelos dominicanos. Vitria, por exemplo, nunca contestou a escravido
voluntria dos africanos, pois, se os europeus no tinham nenhuma pretenso
de reclamarem a soberania sobre o territrio africano, ento os africanos no
poderiam ser considerados membros da comunidade crist28. Nbrega to-pouco contestou a justeza da escravido dos africanos. O caso dos ndios
brasileiros, contudo, era diferente, raciocinava o jesuta, pois aqueles que
viviam nas aldeias eram de facto membros da comunidade poltica colonial29.
Nbrega adopta um tom formalista na sua resposta a Caxa, exigindo que a lei
seja seguida palavra por palavra, mas as suas preocupaes, contudo, eram os
casos concretos de escravido no Brasil, e no rigorismos jurdicos30.
Ao tratar dos factos, Nbrega compara dois casos de pais vendendo filhos
no Brasil. O primeiro caso era o dos potiguar de Pernambuco que vendiam
as suas crianas como escravos por estarem famintos. Essa escravido,
segundo Nbrega, era legtima, pois esses ndios encontravam-se em situao de extrema necessidade. O segundo caso era o de alguns ndios da Bahia,
e a escravido era ilegtima, argumenta o jesuta, pois esses ndios no se
encontravam em extrema necessidade, mas, na verdade, alguns haviam mentido quanto verdadeira paternidade da criana, enquanto outros haviam sido
forados pelos colonos a efectuarem a venda. Para resolver a dubiedade de
casos como este, Nbrega sugere que o direito de venda do pai fosse
completamente eliminado do texto da monitoria. O objectivo de Nbrega era
produzir leis que ajudassem, e no obstrussem, os seus esforos para lidar
com os casos concretos, em que as principais ameaas liberdade dos
ndios eram as mentiras de outros ndios e a violncia dos colonos31. N-
18
28
Francisco de Vitria, carta a Bernardino de Vique, O. P., 18 de Maro de 1546 (?),
in A. Pagden e J. Lawrence (eds.), Vitria: Political Writings, pp. 334-335.
29
Ao discutir a questo da escravido no sculo XVI em The Problem of Slavery in Western
Culture, David Brion Davis cita frequentemente a experincia missionria no Brasil. Davis,
entretanto, apenas nota o diferente tratamento dado escravido de ndios e africanos, sem
em momento algum conseguir explicar tal diferena. Como vemos, em ltima instncia, a
diferena definida em termos polticos, e no tnicos. A dualidade que conta membros
da comunidade vs. estrangeiros, e no ndios vs. africanos (cf. D. B. Davis, The Problem
of Slavery in Western Culture, Ithaca, Cornell University Press, 1966).
30
Debate Caxa v. Nbrega, p. 413: E, porque minha enteno neste negocio no h
tratar mais que o que pertence aos casos, que pola costa se pratico, pera manifestao da
verdade e segurana das consciencias dos penitentes, virei agora a tratar da questo quid facti.
31
Ibid., p. 401.
Ibid., p. 403.
19
Jos Eisenberg
conclui que o direito que uma pessoa tem de vender a sua prpria liberdade
no pode ser uma consequncia do dominium utile. Para justificar a escravido voluntria, Caxa apela para a distino subtil entre preceitos primrios
e secundrios do direito natural (prima e seconda praeceptae) elaborada por
Aquino na Summa Teologiae. Seguindo os passos do doutor anglico, Caxa
argumenta que:
[] Se a liberdade h de direito natural, no h porque a natureza a
isso incline, como inclina a no fazer a outrem injuria, seno quia non
inducit contrarium licet ars adinvenerit [ela permite aquilo que no
contrrio a ela]33.
No estado natural, os homens andavam nus e possuam todas as coisas
em comum; porm, as leis da natureza no proibiam o uso de roupas e a
propriedade privada. Caxa conclui que a liberdade do homem se encaixa na
mesma categoria do direito natural (seconda praeceptae): os homens so
livres no estado natural, mas isso no significa que uma pessoa no possa
vender a sua prpria liberdade. Era possvel, portanto, justificar o direito de
alienar a liberdade atravs do argumento tomista de que a liberdade um
preceito secundrio do direito natural. O argumento de Caxa estava completamente de acordo com a teoria de Toms de Aquino.
O argumento de que a liberdade uma forma de dominium havia sido por
sculos um assunto para acirrados debates entre os telogos da cristandade.
Os primeiros a tentarem resolver essa ambiguidade do pensamento tomista
foram os franciscanos ainda no sculo XIII. A soluo encontrada foi excluir
qualquer forma de dominium do estado de inocncia. Para esses irmos, o
princpio do direito natural segundo o qual no estado natural todas as coisas
eram possudas em comum no um preceito secundrio que pode ser
mudado pelas leis humanas, mas sim um preceito que exclui a existncia de
qualquer forma de propriedade naquele estado. Dun Scotus, por exemplo,
apoia-se na bula Exiit qui seminet, expedida pelo papa Nicolau III em 1279,
para arguir que o nico direito natural desse tipo que havia no estado de
inocncia era o simplex usus facti, isto , um direito de usufruto sem qualquer associao com a ideia de dominium. Era esta crtica do conceito de
dominium natural que estava no cerne da justificao franciscana do voto de
pobreza radical enquanto espelho da vida no estado de inocncia34.
O incio do sculo XIV foi um perodo de expanso das propriedades da
Igreja. Isso tornou a posio franciscana cada vez mais incmoda e levou
33
Ibid., p. 402.
Richard Tuck (1979) faz um estudo do desenvolvimento do conceito franciscano de
dominium e das controvrsias que a ele se seguiram dentro da Igreja catlica (v. pp. 21 e segs.).
34
20
35
21
Jos Eisenberg
preservao. Cada pessoa tem esse direito (ius), que o resultado de uma
justia equnime e irrevogvel, mantida na sua pureza original, ou na sua
integridade natural [] A esse dominium pode ser tambm somado o
dominium da liberdade, que uma faculdade (facultas) irrestrita dada por
Deus []37.
Como vemos nesta passagem, os debates ao redor do conceito de
dominium na teologia moral de S. Toms acabam por levar os crticos do
doutor anglico a produzirem um novo conceito de ius. Neste processo, eles
acabaram por elaborar tambm a justificao necessria para casos de escravido voluntria onde no h extrema necessidade.
Caxa usa, portanto, um conceito de direito subjectivo que havia sido
articulado pela primeira vez por Gerson. Assim como os seus antecessores,
Caxa explora as ambiguidades da definio de liberdade de S. Toms visando
ajustar a teoria do direito natural sua definio de liberdade como
dominium. Mas Caxa, diferente do nominalista Gerson, busca fazer o conceito de direito subjectivo consonante com a doutrina tomista.
Caxa nunca cita Gerson ou qualquer outro nominalista. Os jesutas certamente conheciam-no, pois liam a Imitatio Christi todas as noites nas suas
casas, pensando erroneamente que esse livro de Thomas Kempis fora
escrito por Gersonito, o apelido carinhoso dado ao filsofo nominalista. As
referncias citadas por Caxa em favor da sua nova definio de liberdade
como dominium foram retiradas dos casos de conscincia que ele costumava ensinar. Apoiando-se em Navarro, Caxa faz do cardeal Caetano o seu
adversrio declarado, j que ele havia explicitamente sustentado que os homens no so senhores (dominus) da sua prpria liberdade38.
Os Manuales de Confessores e Penitentes de Azpicuelta Navarro foram
publicados pela primeira vez em 1550. Essa obra caracterstica do renascimento tomista que ocorreu na Pennsula Ibrica durante todo o sculo XVI,
perodo no qual cresce vertiginosamente o nmero de confessionrios em
igrejas e capelas. Elaborados para os confessores resolverem os casos difceis a eles apresentados no confessionrio, estes manuais continham discusses de inmeros casos cuja interpretao trazia tona as ambiguidades do
direito cannico. As passagens dessa obra citadas por Caxa so retiradas de
uma discusso sobre o problema da usura na qual Navarro diz ser lcito que
uma pessoa se venda39. De acordo com Nbrega, contudo, Caxa distorceu o
22
37
Erit igitur naturale dominium donum Dei quo creatura jus habet immediate a Deo assumere
res alias inferiores in sui usum et conservationem, pluribus competens ex aequo et inabdicabile
servata originali justitia seu integritate naturali [] Ad hoc dominium spectare potest dominium
libertatis, quae est facultas quaedam libere resultans ex dono Dei [.] (Jean Gerson, De Vita
Spirituale Animae, escrito em 1402, citao retirada de Richard Tuck, 1979, p. 27).
38
Cardeal Caetano, ou Thomas de Vio (1468-1533).
39
Martin de Azpicuelta Navarro, Manual de Confessores e Penitentes, Coimbra, 1552,
cap. 23, n.os 95-97, p. 565.
40
V. Duns Scotus, Opera Omnia, vol. XIX, d. 36, q. 1, Paris, 1894, p. 446, e Duns Scotus
on the Will and Morality, ed. Allan B. Wolter, Washington, 1986, p. 525.
41
Sylvestro Mazzolini de Prierio, Summa Summarum que Silvestrina nuncupatur, Lyons,
1524, p. 175.
42
Johannes Driedo, De Libertate Christiana, Lovaina, 1540, pp. 97-98 e 116.
23
Jos Eisenberg
Caxa sugere que ele tinha plena conscincia de que as suas ideias se distanciavam da interpretao dominicana do texto de S. Toms.
Na sua resposta ao segundo argumento de Caxa, Nbrega concorda com
a afirmao de que o principal problema da disputa era se uma pessoa era
senhora (dominus) ou no da sua liberdade. Segundo Nbrega, todo aquele
que vive como escravo, de alguma maneira, consentiu em faz-lo. O problema decidir quando a razo, seguindo os preceitos do direito natural,
fora a pessoa a vender a sua liberdade, ou seja, quando essa venda justa.
A distino crucial a ser feita entre verdade e livre arbtrio. A vontade pode
at consentir com a escravido, mas deve faz-lo segundo os ditames da
razo. A pessoa deve vender a sua liberdade somente quando a extrema
necessidade pode ser racionalmente confirmada43.
Nbrega recupera a interpretao dominicana do conceito de liberdade de
Toms de Aquino. O dominicano Francisco de Vitria havia tomado conhecimento do conceito de direito subjectivo de Gerson quando ainda estudava
no Collge Montaig de Paris. Contudo, desde o incio da sua carreira
acadmica como palestrante na Universidade de Salamanca, em 1526, Vitria
mostrou-se fiel ao conceito tomista de ius como direito objectivo derivado
da razo divina. Segundo Vitria, os homens tinham a capacidade de conhecerem parte da razo divina atravs do exerccio da sua prpria razo. Como
o intelecto divino havia prescrito a liberdade para todos os homens, esses
no tinham o direito de disporem da sua prpria liberdade a seu bel-prazer.
Usando passagens do discpulo de Vitria, Domingo de Soto, no seu argumento, Nbrega reafirma a verso dominicana da inalienabilidade da liberdade
humana44. Nbrega tambm clama para que no se d muita importncia
opinio do seu ex-professor em Coimbra, Navarro, pois, alm de ser ele a
nica autoridade que defende a escravido voluntria, o livre arbtrio necessrio para a sua justificao no pode ser constatado nos casos do Brasil.
Para Nbrega, as ideias de Navarro no podiam ser extrapoladas para alm
dos casos que esse autor examina. Tanto Navarro como Soto, diz Nbrega,
argumentam que uma pessoa s pode vender a sua liberdade para salvar a
prpria vida ou para pagar dvidas45.
Nbrega diz ainda que quando duas leis naturais so conflituantes a mais
forte prevalece. Portanto, a lei que comanda a preservao da prpria vida,
por ser superior que comanda a preservao da liberdade, deve ter prece43
24
Ibid., p. 420.
Ibid., p. 407.
Ibid., p. 420.
25
Jos Eisenberg
Aps identificar e refutar os desvios efectuados por Caxa em relao
interpretao dominicana tomista do direito natural, Nbrega conclui a sua
reposta ao segundo argumento do seu colega jesuta com mais uma anlise
de casos concretos de venda de ndios no Brasil. Esses casos, diz o jesuta,
mostram que os ndios do Brasil so constantemente enganados pelos colonos, que induzem os nativos a venderem a sua liberdade sabendo que esses
no sabem das consequncias dessa venda:
E, como neste caso se tenha experincia de quo faceis sejo estes
gentios pera se enganarem quando tem sujeio e medo, justamente se
deve presumir engano em as taes vendas de si mesmo49.
Pior ainda, reclama Nbrega, mesmo nos casos em que os ndios vendem
a sua liberdade compelidos por extrema penria e fome, essas necessidades
so na maioria das vezes produto da aco de colonos vidos por comprarem a liberdade dos nativos. Apenas no caso dos potiguar a fome no
sobreveio por culpa dos colonos, fazendo aquela venda legtima.
Em retrospectiva, o debate Caxa vs. Nbrega teve um papel importante,
ainda que limitado, na consolidao das leis que passaram a regular a escravido indgena aps 1567. Em Maro de 1570, o recm-coroado rei Sebastio promulgou uma lei banindo qualquer tipo de escravido voluntria. Presses contrrias lei, porm, levaram o rei a transferir a competncia sobre
esses assuntos para a administrao colonial. Em meados da dcada de 1570,
as autoridades coloniais legalizam a escravido voluntria50.
A morte do rei Sebastio em frica abre uma crise de sucesso do trono
portugus que s resolvida com a sua transferncia para as mos de Felipe
II, rei de Castela, em 1580. Felipe nomeia Manuel Teles Barreto para assumir
o governo do Brasil. Durante a administrao de Barreto (1583-1587) os
jesutas passam por dificuldades. Numa carta endereada a Felipe II, datada
de 1585, o jesuta Lus da Fonseca reclama dos problemas criados pelo
governador e do ouvidor apontado pelo mesmo. Fonseca tambm menciona
as palavras pouco amigveis com as quais o governador se referia em
pblico Companhia. Segundo o jesuta, Barreto havia dito que preferia dar
dinheiro a uma escola de turcos do que aos jesutas e que preferia no ir para
o paraso uma vez sabendo que os jesutas iriam estar l51.
As actividades jesutas no Brasil entraram em decadncia aps a anexao
de Portugal coroa espanhola. As escolas acumularam grandes dvidas, os
49
Ibid., p. 427.
V. Serafim Leite, Histria da Companhia de Jesus no Brasil, ARSI, 1938-1950, t. II,
liv. II, cap. IV, pp. 207 e segs.
51
Manuscrito catalogado no Archivum Romanum Societatis Iesu (ARSI), na coleco
Lusitania, sob o cdigo Lus., 69, p. 13.
50
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conselheiros e seus aliados tomaram as ruas em protesto com armas nas
mos. Eles declararam os jesutas inimigos do bem comum e da repblica
e, citando conturbaes recentes que haviam ocorrido em Veneza, foram
casa do governador pedir a expulso de todos os irmos da colnia. No dia
seguinte, os conselheiros requisitaram aos jesutas a elaborao de um documento certificando a legalidade da escravido indgena no Brasil. Temendo
pela sua segurana, os irmos assentiram. O documento produzido por eles
declara que a nova lei no poderia ser usada para libertar ndios que haviam
sido legalmente escravizados durante a vigncia de leis anteriores. No mesmo
texto os jesutas comprometem-se a no usarem a nova lei para tentarem
alforriar os ndios em poder dos colonos. A lei foi de facto revista no ano
seguinte e a revolta, por fim, extinguiu-se52.
O declnio das misses jesutas no Brasil durante a primeira metade do
sculo XVII tambm pode ser constatado pela diminuio do nmero de
missionrios em territrio brasileiro. Em 1601 havia 162 irmos no Brasil.
Esse nmero cresceu para 187 em 1631, para ento retornar a 162 por volta
de 165453. Ao passo que as misses costeiras declinaram, as misses junto
aos ndios carij no Paraguai expandiram-se e tornaram-se o mais importante
centro de actividade jesutica no Novo Mundo. No passado, Nbrega quisera
fundar essas misses. Os jesutas do Brasil, contudo, no tiveram participao alguma na empreitada paraguaia, j que outros contingentes de missionrios foram enviados directamente da Espanha para este fim. As mudanas
conceptuais que os missionrios jesutas realizaram, contudo, no pereceram. Pelo contrrio, como veremos a seguir, o conceito de direito subjectivo
foi mais tarde sistematizado e incorporado por telogos jesutas na Europa
e reapropriado de novas formas por geraes subsequentes de missionrios
na Amrica.
LIBERDADE E DIREITOS NATURAIS NA TEORIA POLTICA JESUTA
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29
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que fossem bons, mas, pelo contrrio, exercendo a liberdade de Seu livre
arbtrio, se decidiu por deix-los em situao indeterminada eternamente?
Certamente, se essa posio aceite, a nossa liberdade de escolha
totalmente destruda, e a justia de Deus para com os nefastos desaparece, e, portanto, Deus assume um carcter de manifesta maldade e
crueldade. por essa razo que vejo essa posio como extremamente
perigosa para a f []56.
A soluo apresentada pelo jesuta tipicamente escolstica. Segundo ele,
Deus tem um conhecimento mdio (scientia media) dos eventos contingentes e esse conhecimento encontra-se entre o seu conhecimento natural e o
seu conhecimento livre:
Atravs do seu conhecimento natural, Deus sabe que metafisicamente
possvel, mas no metafisicamente necessrio, que Ado pecar se colocado
no den. Atravs do Seu conhecimento livre, Ele sabe que Ado ser de
facto colocado no paraso e de facto pecar. Por outro lado, o que Ele sabe
atravs do seu conhecimento mdio algo mais forte do que o primeiro e
mais fraco do que o segundo, ou seja, que Ado necessariamente pecar se
ele for colocado no den. Portanto, Deus tem um conhecimento mdio
apenas se Ele sabe todas as contingncias condicionais futuras57.
O conhecimento natural o conhecimento que Deus tem de todos os
mundos possveis, enquanto o conhecimento livre o conhecimento das
contingncias futuras reais ou absolutas. O seu conhecimento mdio, assim
como o conhecimento livre, corresponde ao conhecimento dos eventos
metafisicamente contingentes, eventos esse sobre os quais Deus no tem
controlo. Nesse sentido, a scientia media de Deus um conhecimento das
contingncias futuras condicionais ou subjuntivas. Este conceito de scientia
media representava uma resposta sistemtica s teses protestantes da
predestinao e da indeterminao da vontade divina. Atravs dele, Molina foi
capaz de conservar o papel da divina providncia sem eliminar a responsabilidade moral do homem por suas escolhas e a importncia dessas escolhas
para a salvao (ou danao) da alma.
Ao desenvolver as consequncias jurdicas da sua tese teolgica no tratado de direito natural De iustitia et iure (1593), Molina compreendeu que,
se o livre arbtrio do homem de facto responsvel pelo pecado, ento deve
haver um contrato natural atravs do qual Deus transferiu essas responsabilidades para os homens. A contrapartida da transferncia dessas obrigaes
30
56
Lus de Molina, Concordia, disputation 50, par. 14, in Alfred J. Freddoso (ed.), On Divine
Foreknowledge (parte IV de Concordia), Ithaca, Cornell University Press, 1988, p. 139.
57
V. Alfred Freddoso, introduo Concordia de Lus de Molina, p. 47.
31
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De acordo com Richard Tuck (1979), existe uma conexo entre a reapropriao do conceito de direito subjectivo em Molina e a sobrevivncia das
teorias nominalistas na Universidade de Lovaina, nos Pases Baixos, onde
Johannes Driedo e outros telogos procuravam alternativas ao tomismo dos
dominicanos60. Tuck acredita que a inovao feita por Molina est ligada ao
crescente interesse dos jesutas por Lovaina, principalmente a partir da dcada de 1580, quando o jesuta Leonard Lessius assumiu o posto de professor de Teologia naquela universidade61.
provvel que Tuck esteja certo em relao s conexes entre os jesutas
e Lovaina, mas Leonard Lessius no foi o principal elo de ligao e a dcada
de 1580 no foi o principal perodo de intercmbio. As ideias nominalistas
forjadas em Lovaina reapareceram em Portugal no final do sculo XVI, mas elas
j haviam migrado para l muito antes. Diogo de Mura, nomeado reitor da
Universidade de Coimbra pelo rei Joo III em 1540, estudou em Lovaina.
O telogo Azpicuelta Navarro e muitos outros juristas professores em Coimbra
formaram-se em Toulouse, outro lugar onde as ideias nominalistas de Lovaina
sobreviveram por toda a primeira metade do sculo XVI. O humanista portugus Andr de Resende tambm estudou em Lovaina e, mais tarde, em 1533,
fundou uma escola em vora, para onde trouxe o seu antigo professor,
Nicholas Clenardo, com a finalidade de educar D. Duarte, irmo do rei Joo
III. Clenardo e Damio de Gis, outro portugus que estudou em Lovaina,
eram amigos muito prximos de Erasmo e estavam entre os maiores expoentes
do movimento humanista dos Pases Baixos62.
Muitos jesutas foram educados em vora e Coimbra, entrando assim em
contacto com as ideias importadas de Lovaina. Esse circuito intelectual ajuda
a desvendar as fontes que inspiraram o reaparecimento do conceito de direito
subjectivo a partir de 1580. Contudo, como notou Frank Costello (1974),
essa no pode ser uma explicao causal suficiente para o caso de Molina,
pois ele comeou a trabalhar no De iustitia et iure em 1570, dez anos antes,
portanto, da mudana de Lessius para Lovaina63. Ademais, como se explica
a apario desse conceito entre os jesutas do Brasil j em 1567?
60
32
Cf. Lus de Molina, De iustitia et iure, tract. II, disp. XXXIII, p. 89.
Lus de Molina, Commentaria in Primam Divi Thomas Partem (1593), q.1a, 1.d.1.,
pg.3a. Outros jesutas no acreditavam na existncia de tais gentes: Leonardo Lessius era um
deles. As controvrsias que envolveram esse assunto so estudadas por Pedro S. de Achtegui,
La Universalidade del Conocimiento de Dis en los Paganos segn los Primeros Telogos
de la Compaia de Jess, 1534-1648, Roma, Consejo Superior de Investigaciones Cientficas,
delegao de Roma, 1951.
66
Lus., 68, p. 337.
65
33
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Molina argumenta que o dono do escravo poderia mant-lo ou mesmo
vend-lo, conforme desejasse, e que a escravido de um ndio deveria ser
considerada legal at que se prove o contrrio67.
H, portanto, evidncias suficientes para se supor que Lus de Molina
conhecesse as opinies escritas por Caxa e Nbrega em 1567. A justificao
da escravido voluntria feita por Caxa foi enviada Europa atravs da
correspondncia institucional da ordem e, provavelmente, foi parar na escrivaninha de Molina em vora. No podemos esquecer tambm que Caxa e
Molina nasceram na mesma pequena cidade espanhola, Cuenca, com apenas
trs anos de diferena. Apesar de no haver documentos que comprovem a
correspondncia directa entre os dois jesutas, pouco provvel que no
tivessem conhecimento um do outro.
O tratado de direito natural de Molina tambm nos ajuda a compreender
por que Nbrega resistiu s opinies de Caxa e do prprio Molina. Existe
uma subtileza importante no conceito jesuta de direito subjectivo que escapa
anlise de Richard Tuck e de outros comentadores. Apesar de o conceito
de direito subjectivo ser o fulcro da definio de liberdade como dominium,
as duas afirmaes no so idnticas. No De iustitia et iure de Molina, o
direito subjectivo (ius como facultas) definido num contexto de agresso:
como somente os actos que so produtos do livre arbtrio so faculdades
(facultas), a violao dos direitos de uma pessoa s ocorre quando h
prejuzo do exerccio daquelas faculdades. Ningum pode dizer que os direitos de uma pedra so violados quando no se deixa que ela exera a sua
capacidade natural de cair, pois uma pedra no tem livre arbtrio. Segundo
Molina, o direito natural como facultas somente pode ser interpretado como
direito e poder de se fazer algo se esse algo no for prejudicial a outras
pessoas.
Por outro lado, se a ideia de liberdade como dominium pode ser
justificada pelo conceito de direito subjectivo, essa no a nica interpretao possvel. Locke e Rousseau, por exemplo, tambm esposam o conceito de direito subjectivo, mas defendem que a definio de liberdade como
dominium e a consequente justificao da escravido voluntria so verdadeiramente escandalosas. O conceito de direito subjectivo tem como parte
central a ideia de que a pessoa deve ter direito de prevenir as ofensas
resultantes do livre exerccio da vontade alheia. O conceito de liberdade
como dominium, por seu turno, define direitos pertencentes pessoa que
so produtos de caractersticas particulares de alguns direitos naturais, por
exemplo, aqueles que dizem respeito honra e fama.
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