ROCHA, E. A. C. Descaminhos Da Democratização Da Educação Na Infância PDF

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Descaminhos da democratização da Educação na Infância.

Eloisa Acires Candal Rocha 2


Universidade Federal de Santa Catarina – Brasil

Os caminhos da democratização da educação da infância tem exigido a


mobilização social e a luta política no sentido de garantir o acesso aos serviços
educativos para as crianças pequenas e, paralelamente exige a definição de uma ação
pedagógica consequente.
Em tempos neo-liberais os projetos educativos vêem-se seduzidos pelos apelos
do mercado (capacitação de domínios básicos, flexibilização, etc.), pela ilusão da
equiparação dos conhecimentos pela via da transmissão e do ensino de mão única ou,
por outro lado, rendem-se aos anseios de uma igualdade de oportunidades focando-se
apenas na criança como individuo isolado e como vir-a-ser.
Afirmar a função educativa das creches e pré-escolas como parte do sistema
educativo, no caso brasileiro, não tem sido suficiente para irmos além, no sentido de
uma pedagogia que permita a construção de projetos educacionais – pedagógicos3 que
considerem sua vinculação social e política, ultrapassando o mito de uma infância que
ignora os processos de dominação e reprodução da desigualdade social.
A curta duração da história da educação infantil no Brasil, e também em
Portugal, não tem escapado da reprodução dos antigos binômios que deram base às
pedagogias, currículos e práticas, seja de orientação “tradicional”/conservadora (onde
ensinar é igual a transmitir e ao professor cabe dominar os processos de instrução e à
criança – única, abstrata e natural – assimilar os conteúdos); seja de orientação
“nova”/liberal (onde criança – também única, abstrata e natural necessita para aprender
que o professor conheça seus níveis de desenvolvimento e organize as condições para
que ele ocorra).
Atualmente temos ainda nos deparado com perspectivas que se intitulam
democráticas e no entanto, reiteram a necessidade de “transmissão de conteúdos, não
ultrapassando um perfil que podemos definir como neo-conservador, na medida em que
não rompem com os modelos de assimilação passiva que reafirmam as funções de

1
Comunicação apresentada no Congresso Educação e Democratização – 2 e 3 de Maio de 2007-
Aveiro - PT

2
Este trabalho contou com a valiosa contribuição de Ângela Coutinho – integrante do NUPEIN e
Doutoranda do IEC-UMINHO – PT.
3
Termo utilizado por Machado (1996)
reprodução hegemônica. Assim as bases curriculares dominantes colocam a centralidade
da ação pedagógica com crianças pequenas, ora no pólo dos conteúdos disciplinares, ora
nas áreas ou aspectos a desenvolver. Outros ainda tentam somar estas duas dimensões,
cruzando procedimentos pedagógicos, entre atividades e projetos, sem contudo romper
com a base comum que os orienta: a criança e a infância como referências abstratas e
universais.
Sabemos que a Modernidade inaugura a educação da criança com um caráter
institucional e normalizador, justificado com base em princípios científicos voltados
para o enquadramento social. É esta história da assistência à infância que evidencia
uma origem comum na perspectiva educativa das instituições que passam moderna e
contemporaneamente a responsabilizar-se pela educação da criança pequena,
indicando a própria origem de sua Pedagogia, alicerçada num pacto do controle
social.
Por outro lado, a descoberta da primeira infância como “objeto cultural”
relaciona-se à difusão do conhecimento psicológico e à definição da infância como
objeto pedagógico e como período de aprendizagem (Rocha, 1999).
Interroga-se, portanto se poderá a pedagogia contemporânea incorporar em suas
representações as contraposições às idéias elaboradas no interior das ciências humanas
modernas, que também têm a infância como objeto de suas preocupações, definindo-a a
partir de perspectivas históricas e contextuais.
A crítica à universalidade da infância, enraizada pela Pedagogia, decorre do
reconhecimento da sua heterogeneidade, e proclamam o respeito “as características
propriamente infantis e às diferenças presentes nas diferentes idades ou etapas da
mesma infância” (Narodowski, 2001, p. 27).
O conceito de “infância heterogênea” inclui elementos relativos à diferença e à
influência de contextos específicos na construção da diversidade, como afirmação
positiva e contrária ao estabelecimento de padrões de normalidade. O horizonte da
heterogeneidade e da alteridade na constituição dos sujeitos humanos, passa a sustentar
a definição de uma “Pedagogia da Infância”.
O desafio para o campo da Pedagogia da Infância está em ir à raiz desta questão!
Definir criticamente bases curriculares para a educação infantil nos exige redefinir
numa perspectiva socio-histórica e cultural a constituição da criança, da infância e de
conhecimento.
A dimensão que os conhecimentos assumem na educação das crianças pequenas
coloca-se numa relação extremamente vinculada aos processos gerais de constituição da
criança: as linguagens, as interações e o lúdico.
Neste sentido é que entendemos que as bases para os projetos de educação na
pequena infância não se resumem aos conteúdos escolares retritos a uma ‘versão
escolarizada’4, uma vez que toda e qualquer aprendizagem é conseqüência das relações
que as crianças estabelecem com a realidade social e natural, no âmbito de uma infância
determinanda.
Uma Pedagogia da Infância terá, pois como objeto de preocupação os processos de
constituição do conhecimento pelas crianças, como seres humanos concretos e reais,
pertencentes a diferentes contextos sociais e culturais também constitutivos de suas
infâncias. A construção deste campo poderá diferenciar-se a medida que considere as
diferentes dimensões humanas envolvidas na construção do conhecimento e os sujeitos
históricos “objetos” da intervenção educativa.
Neste sentido a superação de uma visão homogênea de criança e infância, que
segundo Sarmento & Pinto (1997) só pode ser considerada se pensarmos no fato da
infância ser constituída por seres humanos de pouca idade, necessita tomar a infância
como construção social, reconhecida em sua heterogeneidade, a partir de fatores que
determinam sua constituição e de suas culturas, tais como a classe social, a etnia-raça e
gênero.
Desvelar o que conforma as diferentes infâncias exige considerar as próprias
crianças nesta dimensão social. Uma Pedagogia da Infância comprometida definirá as
bases para um projeto educacional-pedagógico, para o cumprimento de sua função
educativa de ampliação e diversificação dos conhecimentos e experiências infantis, mas
para exercer esta tarefa não basta conhecermos as crianças (padronizadas e
uniformizadas), ou estudar os modelos e métodos para ensinar os “conteúdos”. Os
núcleos da ação pedagógica abrangem os diferentes âmbitos que constituem a
construção do conhecimento pela criança (linguagem gestual, corporal, oral, pictórica,
plástica e escrita; relações sociais, culturais e com a natureza) e exigem conhecer as
crianças através de seu complexo acervo de patrimônio linguístico, intelectual,
expressivo, emocional, enfim, as bases culturais que as constituem com tal.

4
Esta categoria ‘versão escolar do conhecimento’ é definida para identificar a forma parcializada e
fragmentada que o conhecimento toma ao ser traduzido para o currículo e o ensino na escola. (Rocha,
1991)
4.
Esta complexidade representa para a Pedagogia a necessidade de percepção do
sujeito-criança como objeto de sua ação, orientando a ação pedagógica por olhares que
contemplem sujeitos múltiplos e diversos, reconhecendo, sobretudo a infância como
“tempo de direitos”. Contemplando os Direitos Fundamentais de Proteção, Provisão e
Participação e considerando as diferentes dimensões da constituição do sujeito-criança,
percebendo-o como um outro a ser ouvido e recebido.
A auscultação das crianças implica em desdobramentos na prática pedagógica
que associada ao conhecimento sobre os contextos educativos permite um permanente
dimensionamento das orientações e das práticas educativo-pedagógicas dirigidas a elas.
A aproximação às crianças e às infâncias concretiza um encontro entre adultos e a
alteridade da infância e exige que eduquemos o nosso olhar, para rompermos com uma
relação verticalizada, passando a constituir uma relação na qual adultos e crianças
compartilham amplamente sua experiência de viver parte de suas vidas nas creches e
pré-escolas.
O que se vê de forma recorrente neste momento, em que há uma defesa cada
vez maior da antecipação etária para ingresso na escolarização obrigatória, em nome da
democratização, é a consolidação de projetos que representam de fato desvios de rota
nesta direção, ao desconsiderarem as especificidades da educação da criança de 0 a 6
anos como um espaço coletivo de educação e reiterarem uma mera antecipação dos
modelos de escolarização dos níveis elementares, como extensão para baixo.
O compromisso com a democratização da educação e com ampliação do
conhecimento não poderá cumprir suas metas se ignorar os sujeitos concretos e situados
que constituem-se em objetos da intervenção pedagógica, em especial em contextos
marcados pela pobreza e a exclusão social.
Os caminhos para uma real democratização exigem uma ampliação das
oportunidades educativas e não a redução da experiência das crianças a mera
transmissão de conteúdos eleitos pelo currículo escolar, que se pautem principalmente
numa transposição, numa adequação ou adaptação.
Um projeto de educação para infância deverá ter como eixo de sua organização
as próprias crianças: seus processos de constituição como seres humanos em diferentes
contextos sociais, sua cultura, suas capacidades intelectuais, criativas, expressivas e
emocionais, que resultam em conhecimentos, no lugar de articulações institucionais,
dos “conteúdos escolares ’’, onde a creche e a pré - escola acabam por submeter-se face
à uma configuração tipicamente escolar.
As peculiaridades da criança nos primeiros anos de vida, antes de ingressar na
escola fundamental, enquanto ainda não é só aluno, mas um sujeito criança em
constituição, exige pensar em objetivos que contemplem também as dimensões de
cuidado e outras formas de manifestações e inserção social próprias deste momento
vital. Estes objetivos não se antagonizam com os do ensino fundamental, se
considerarmos a criança de 6-10 anos, que constitui-se do aluno das séries inicias, eles
tem elos comuns.
O termo educação da infância, tem um caráter mais amplo sendo mais pertinente
do que o ensinar, que refere-se mais diretamente ao processo ensino / aprendizagem no
contexto escolar. Como já dissemos o aspecto cognitivo e o trabalho com o conteúdo
escolar, neste caso não deve ganhar uma dimensão maior do que as demais dimensões
envolvidas no processo de constituição do sujeito/criança, reduzindo a educ. infantil ao
ensino. De fato isto vale também para as séries iniciais, mas este é seu objetivo
precípuo.
O papel destas instituições é o de garantir os direitos das crianças, no âmbito de
sua atuação e, como coloca a lei: em complementaridade a família, sem perder de vista
sua responsabilidade coletiva, pública e social.
Em decorrência disto se faz necessária a ampliação do objetivo relativo a
democratização do acesso ao patrimônio cultural – pois ao lado deste estão
principalmente os objetivos relacionados a formação integral da criança: a manifestação
de sua expressão e do seu pensamento, a ampliação das relações sociais, à bricadeira, ao
movimento e à criação, etc.
Na educação das crianças menores de 6 anos em creches e pré-escolas, as
relações culturais, sociais e familiares tem uma dimensão ainda maior no ato
pedagógico. Além do compromisso com um “resultado escolar”, estão em jogo na
Educação Infantil as garantias dos direitos das crianças, viabilizados por uma ação
intencional que organiza a prática pedagógica privilegiando o jogo, a linguagem e a
interação.
Como bem nos orientam as perspectivas histórico-culturais, a inserção de um
novo sujeito (criança) na cultura, não se dá por imposição e, tampouco de forma
espontânea, mas se realiza exatamente no âmago desta relação, entre o que já esta
socialmente constituído e a sua apropriação. Estas duas dimensões tem que estar
garantidas num projeto educativo verdadeiramente democrático no caminho da
emancipação.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CERISARA, Ana Beatriz. (1995) A educação infantil e as implicações pedagógicas


do modelo Histórico - Cultural. Cadernos do CEDES, São Paulo, 35, 65-77.

FARIA, Ana Lúcia G. de e PALHARES, Marina S. (org.) (1999). Educação infantil


pós-LDB: rumos e desafios. Campinas, SP: Autores Associados / Unicamp / UFSCar /
UFSC.

MACHADO, M. L. (1998) Formação profissional para educação infantil: subsídios


para idealização e implementação de projetos. São Paulo, (Doutorado em Psicologia da
Educação - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo).

NARODOWSKI, Mariano. (2001). Infância e Poder: Conformação da Pedagogia


Moderna. Tradução de Mustafá Yasbek. Bragança Paulista: Editora da Universidade
São Francisco. Coleção Estudos CDAPH,

ROCHA, Eloisa A. C. (1991). Pré-escola ou escola: unidade ou diversidade.


(Dissertação de Mestrado - Universidade Federal de Santa Catarina)

___________________ (1999). A Pesquisa em Educação Infantil no Brasil: trajetória


recente e perspectivas de consolidação de uma pedagogia. (Tese de doutorado -
Universidade Estadual de Campinas, São Paulo, Brasil).

SARMENTO, Manuel J. & PINTO, Manuel. (1997). As crianças e a infância: definindo


conceitos delimitando o campo. In: SARMENTO, Manuel J. & PINTO, Manuel
(coord.). As crianças: Contextos e Identidades. Braga, Portugal: Centro de Estudos da
Criança.

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