A Arte de Contar Histórias

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A arte de contar histórias e compartilhar memórias

A arte de contar histórias e


compartilhar memórias

Concepção e coordenação
Giuliano Tierno

2007

[email protected]
F. 11 – 7254-6514

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A arte de contar histórias e compartilhar memórias

A​os contadores de histórias 


 
O mundo das crianças não é tão risonho quanto se pensa. Há medos 
confusos, difusos, as experiências das perdas, bichos, coisas, pessoas que 
vão e não voltam... O escuro da noite: o mundo inteiro se ausentou. Voltará? 
Os grandes não gostam disto e inventam estórias de meninos e meninas que 
eram só risos. Talvez para se convencerem a si mesmos de que sua própria 
infância foi gostosa... 
Escrevi estas estórias em torno de temas dolorosos, que me foram dados 
por crianças. Não é possível fazer de conta que eles não existem. Os maus 
espíritos, a gente os espanta chamando-os pelo seu nome real... O objetivo 
da estória é dizer o nome, dar às crianças símbolos que lhes permitam falar 
sobre seus medos. E é sempre mais fácil falar sobre si mesmo fazendo de 
conta que se está falando sobre flores, sapos, elefantes, patos... 
Há estórias que podem ser escutadas em disquinhos ou simplesmente lidas 
sozinhas... São as estórias engraçadas. Outras devem ser contadas por 
alguém. 
Quando se anda pelo escuro do medo, é sempre importante saber que há 
alguém amigo por perto. Alguém está contando a estória. Não estou 
sozinho... Nem o livro que se lê e nem o disquinho que se ouve têm o poder 
de espantar o medo. 
É preciso que se ouça a voz de um outro e que diz: 
- Estou aqui, meu filho... 
 
Rubem Alves 

1. INTRODUÇÃO

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“O ato de contar histórias, intrinsecamente humano, traz em si, talvez como poucos
outros, o paradoxo de ser dos mais gratuitos e, ao mesmo tempo, dos mais empenhados.
Contar pelo prazer de contar, contar pela alegria de ouvir. Contar para fazer lembrar,
contar para mover montanhas e céus. Por mais que passe o tempo e o ato de contar
histórias adquiri diferentes feições, desdobrando-se em sem-número de linguagens e
suportes, ele tem na sua origem essa dupla raiz: beleza e necessidade.”
José Luis C. T. Ceccantini

2. TRADIÇÃO ORAL E LITERATURA: UMA RELAÇÃO


SOLIDÁRIA2

A tradição oral precede a cultura letrada. Ela está intimamente vinculada à


memória afetiva e familiar, à memória coletiva dos primeiros povos de ​homo sapiens
interessados em dar sentido aos fenômenos naturais, à “criação do mundo”
(cosmogonia). Sua trajetória na chamada “evolução” histórica da humanidade,
encontrou-se em dado momento com a palavra escrita, e dessa fricção, novos contornos
surgiram na memória histórica e poética da humanidade.
O repertório de um contador de histórias passou, a partir daí, a ser alimentado
por aquilo que ouvia, como também por aquilo que lia. ​A palavra escrita passou a
construir e sugerir imagens para o narrador. Daí temos a percepção de um processo
retroalimentativo entre ler e ouvir. Se o Ser lê palavras, ele passa a compor um
repertório semântico e este o ajuda na escuta das narrativas orais. Por meio da escuta, o
Ser compõe imagens, retornando aos livros “aberto” e receptivo às novas realidades
inventadas no universo da ficção, da imaginação.
Quando alimentado por imagens genuínas, construídas a partir da sua própria
percepção, o Ser tem a possibilidade de criar enquanto escuta, criar enquanto lê. Do
contrário, ​quando o Ser torna-se um receptor de imagens prontas (conduzidas em geral
pelas ideologias de consumo) transmitidas pela mídia em geral, sua capacidade criativa
dá lugar a sua imaginação reprodutora​, ou seja, o indivíduo passa por um processo

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fantasmagórico, iludindo-se que está criando, quando na realidade ele está reproduzindo
o pensamento e as imagens de outrem.
​“Narrar uma história é a arte de transmiti-la depois”, aponta Walter Benjamin
em seu artigo ​O Narrador​. Mas, para isso, afirma o filósofo, são necessárias
comunidades de ouvintes​, sem estas não há possibilidade de haver a Arte de Contar
Histórias. A atividade narrativa está intimamente ligada ao ócio. ​“O ócio é o pássaro
onírico a chocar o ovo da experiência, mas basta um sussurro na floresta de folhagens
para espantá-lo”, continua Benjamin. Essa imagem poética reflete o “risco” de
ameaçarmos o ócio na vida de um indivíduo. Nos grandes centros urbanos, sobretudo,
com uma vida regida por ideais de consumo, as histórias vão desaparecendo do
cotidiano das comunidades e uma sociedade reprodutiva vai se formando.
Daí o valor essencial, se assim podemos dizer, da narrativa. Ela estimula o Ser
em busca de suas imagens, ela propõe uma ruptura com o coletivo a partir do coletivo.
Pensemos numa história de um Rei. Quando narrada, a primeira imagem que pode
surgir é aquela de um Rei baixinho e barrigudo, veiculada pela mídia, em desenhos
animados, ilustrações esquemáticas e figurativas etc. No entanto, ao narrá-la, o contador
de histórias, poderá surpreender seu ouvinte propondo um novo cenário, convocando
aspectos dos outros sentidos do Ser, além da visão, como olfato, paladar, audição e tato,
para estimulá-lo a compor e criar a imagem do Rei que será diferente em cada ouvinte,
que será genuíno e simbólico para cada indivíduo. Isso gerará um outro ​aspecto
fundamental na relação contador-ouvinte, a comunhão com a história​. ​Não estamos
mais tratando de um universo estereotipado, mas de um espaço singular.
A história propõe a criação de uma relação de encontro. Encontro definido aqui
como um espaço metafórico em que narrador e ouvinte habitam ao mesmo tempo. Não
é o lugar do narrador, não é o lugar do ouvinte. É um terceiro lugar, um lugar vazio
ainda, que será habitado por ambos no instante mágico e presente da história narrada.
A totalidade das narrativas, sejam elas míticas, contos de fadas, literatura
infantil, ou, literatura em geral, trazem marcas da experiência humana, trajetórias
carregadas de imagens poéticas, imagens que compõem contradições e ambivalências
do humano. São essas narrativas que interessam ao leitor e ao ouvinte. Por isso
entendemos que, para a formação de um leitor, a narrativa oral, a contação de histórias é
um aspecto fundamental como um Portal de Entrada para o Maravilhoso, que propõem

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as histórias, e para a incerta aventura chamada existência humana. Enriquece-nos João


Guimarães Rosa: “o mais importante no mundo é isso: que as pessoas ainda não foram
terminadas. Afinam e desafinam. Verdade maior.”

3. SEGREDOS DE CONTO DE FADAS*

Todos nós, em algum momento da infância, vivemos sob os encantos dos contos
de fadas. O susto, o prazer, o medo, a tristeza, a alegria, enfim, as dezenas de
sentimentos expressos no rosto das crianças ao ouvir essas histórias sempre me
instigaram. O que eles despertam no imaginário das crianças que tanto as fascina, e por
que eles são importantes para elas?
Os contos de fadas existem há milênios, em diversas culturas, em todos os
continentes. Atualmente, estudiosos do mundo inteiro na área da saúde mental e da
educação passaram a se interessar pela análise de mitos, lendas e contos de fadas. Hoje,
podemos compreender a profunda riqueza simbólica e a utilidade dessas histórias, que
são parte importante de nosso patrimônio cultural. A visão psicanalítica tem nos
ajudado a responder algumas perguntas: afinal, por que as crianças as adoram e pedem
que os recontemos centenas de vezes?
Para entender essas questões precisamos pensar um pouco sobre o
desenvolvimento da psique humana, pois os contos de fadas são tão fascinantes porque
simbolizam processo de nosso desenvolvimento​. Para a psicanálise, psique se constitui
de três estruturas dinâmicas, o Id (princípio do prazer), o Ego (princípio da realidade) e
o Superego (princípio da moral).
As crianças pequenas, que passarão ainda por longo processo de sublimação dos
desejos libidinais do Id, estão sob forte influência desse aparelho de nossa mente, e a
linguagem simbólica, não-verbal desses contos, comunica-se diretamente com o
imaginário da criança. Essas narrativas estão envolvidas em um universo que denota
fantasia, partindo de uma situação real, concreta, lidando com emoções que qualquer
criança já viveu. Se passam num lugar que é apenas esboçado, fora dos limites do tempo
e do espaço, mas onde qualquer um pode caminhar, porque todo esse processo é vivido
através da fantasia e do imaginário.

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Os personagens de conto de fadas não têm idade cronológica definida. Os heróis


em geral são dotados e características presentes na infância (medo, vergonha,
ingenuidade etc.) e na adolescência (desejo de conhecer e dominar o mundo, espírito
aventureiro, paixões arrasadoras).
Desse modo, ​os contos encantam pessoas de qualquer faixa etária, pois
reproduzem, em seu enredo, a passagem por todos os estágios da vida humana. Sob a
faceta psicológica, podemos afirmar que os detalhes escabrosos são os de maior
significado na história. Invariavelmente, qualquer conto de fada segue um enredo no
qual o herói abandona a casa de seus pais, passa por diversas privações e então, como
Fênix, renasce das cinzas, e vive “feliz para sempre”.
Caso o herói não fosse capaz de superar as privações por que passa,
personificadas nas crueldades dos vilões, ele não conseguiria triunfar no final da história
– é exatamente aí que reside a mensagem positiva que as crianças guardam dos contos e
seus horrores. Pela imensa riqueza e poder de suas palavras, os contos de fada merecem
um espaço no desenvolvimento psíquico de todos nós.

4. O NARRADOR

“(...)Se o sono é o ponto mais elevado da distensão física, e ​o ócio ​o grau mais elevado
do relaxamento psíquico. O ócio é o pássaro onírico a chocar o ovo da experiência.
Basta um sussurro na floresta de folhagens para espantá-lo. Seus ninhos – as atividades,
ligadas intimamente ao ócio – já foram abandonados nas cidades, e no campo estão
decadentes. Assim, ​a capacidade de ouvir atentamente se vai perdendo e perde-se
também a comunidade dos que escutam. Pois ​narrar estórias é sempre a arte de
transmiti-la depois, e esta acaba se as histórias não são guardadas. Perde-se porque
ninguém mais fia ou tece enquanto escuta as narrativas. Quanto mais natural a atividade
com que a narração é seguida, tanto mais profundamente cala aquilo que é transmitido.
Onde o ritmo do trabalho se apoderou daquele que narra, ele ouve as estórias de tal
maneira que lhe será natural a maneira de transmiti-las depois. Assim, é construída a
rede que acomoda o dom de narrar e é desta forma que ela vem se desfazendo hoje em

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todos os lados, depois de ter sido atada há milênios no âmbito dos ofícios mais
antigos.(...).”

“Cada manhã traz-nos informações a respeito das novidades do Universo. Somos


carentes, porém de estórias curiosas. E isto porque nenhum acontecimento nos é
revelado sem que seja permeado de explicações. Em outras palavras: quase nada mais
do que acontece é abrangido pela narrativa, e quase tudo pela informação. Pois a metade
da habilidade de narrar reside na capacidade de relatar a estória sem ilustrá-la com
explicações.”
Walter Benjamin

5. A EDUCAÇÃO APÓS AUSCHIWTZ

A exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação. De tal
modo ela precede quaisquer outras que creio não ser possível nem necessário
justificá-la. Não consigo entender como até hoje mereceu tão pouca atenção. Justificá-la
teria algo de monstruoso em vista de toda monstruosidade ocorrida. Mas a pouca
consciência existente em relação a essa exigência e as questões que ela levanta provam
que a monstruosidade não calou fundo nas pessoas, sintoma da persistência da
possibilidade de que se repita no que depender do estado de consciência e de
inconsciência das pessoas. Qualquer debate acerca de metas educacionais carece de
significado e importância frente a essa meta: ​que Auschwitz não se repita. Ela foi a
barbárie contra a qual se dirige toda a educação. Fala-se da ameaça de uma regressão à
barbárie. Mas não se trata de uma ameaça, pois Auschwitz foi a regressão; a barbárie
continuará existindo enquanto persistirem no que têm de fundamental as condições que
geram esta regressão. E isto que apavora. Apesar da não-visibilidade atual dos
infortúnios, a pressão social continua se impondo. Ela impele as pessoas em direção ao
que é indescritível e que, nos termos da história mundial, culminaria em Auschwitz.
Dentre os conhecimentos proporcionados por Freud, efetivamente relacionados
inclusive à cultura e à sociologia, um dos mais perspicazes parece-me ser aquele de que
a civilização, por seu turno, origina e fortalece progressivamente o que é
anticivilizatório. Justamente no que diz respeito a Auschwitz, os seus ensaios ​O

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mal-estar na cultura ​e ​Psicologia de massas e análise do eu m


​ ereceriam a mais ampla
divulgação. ​Se a barbárie encontra-se no próprio principio civilizatório, então pretender
se opor a isso tem algo de desesperador.

A reflexão a respeito de como evitar a repetição de Auschwitz é obscurecida pelo


fato de precisarmos nos conscientizar desse elemento desesperador, se não
quisermos cair presas da retórica idealista. Mesmo assim é preciso tentar, inclusive
porque ​tanto a estrutura básica da sociedade como os seus membros, responsáveis
por termos chegado onde estamos, não mudaram nesses vinte e cinco anos. Milhões
de pessoas inocentes ---- e só o simples fato de citar números já é humanamente
indigno, quanto mais discutir quantidades —foram assassinadas de uma maneira
planejada. Isto não pode ser minimizado por nenhuma pessoa viva como sendo um
fenômeno superficial, como sendo uma aberração no curso da história, que não importa,
em face da tendência dominante do progresso, do esclarecimento, do humanismo
supostamente crescente​. ​O simples fato de ter ocorrido já constitui por si só
expressão de uma tendência social imperativa. ​Nesta medida gostaria de remeter a
um evento, que de um modo muito sintomático parece pouco conhecido na Alemanha,
apesar de constituir a temática de um ​best-seller ​como ​Os quarenta dias de ​Musa ​Dagh,
de Werfel. Já na Primeira Guerra Mundial os turcos —- o assim chamado movimento
turco jovem dirigido por Enver Pascha e Talaat Pascha —— mandaram assassinar mais
de um milhão de armênios. Importantes quadros militares e governamentais, embora, ao
que tudo indica, soubessem do ocorrido, guardaram sigilo estrito, ​O genocídio tem suas
raízes naquela ressurreição do nacionalismo agressor que vicejou em muitos países a
partir do fim do século XIX.

Além disso não podemos evitar ponderações no sentido de que ​a invenção da ​bomba
atômica​, capaz de matar centenas de milhares literalmente de um só golpe, insere-se no
mesmo nexo histórico que o genocídio. ​Tornou-se habitual chamar o aumento súbito da
população de ​explosão populacional: ​parece que a fatalidade histórica, para fazer
frente à explosão populacional, dispõe também de contra-explosões, o morticínio de
populações inteiras. Isto só para indicar como as forças às quais é preciso se opor
integram o curso da história mundial.

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Como hoje em dia é extremamente limitada a possibilidade de mudar os pressupostos


objetivos, isto é, sociais e políticos que geram tais acontecimentos, as tentativas de se
contrapor à repetição de Auschwitz são irnpelidas necessariamente para o lado
subjetivo. Com isto refiro-me sobretudo também à psicologia das pessoas que fazem
coisas desse tipo. ​Não acredito que adianta muito apelar a valores eternos, acerca dos
quais justamente os responsáveis por tais atos reagiriam com menosprezo; também não
acredito que o esclarecimento acerca das qualidades positivas das minorias reprimidas
seja de muita valia. É preciso buscar as raízes nos perseguidores e não nas vitimas,
assassinadas sob os pretextos mais mesquinhos. Torna-se necessário o que a esse
respeito uma vez denominei de inflexão em direção ao sujeito. É preciso reconhecer os
mecanismos que tornam as pessoas capazes de cometer tais atos, é preciso revelar tais
mecanismos a eles próprios, procurando impedir que se tornem novamente capazes de
tais atos, na medida em que se desperta uma consciência geral acerca desses
mecanismos. ​Os culpados não são os assassinados, nem mesmo naquele sentido
caricato e sofista que ainda hoje seria do agrado de alguns. ​Culpados são
unicamente os que, desprovidos de consciência, voltaram Contra aqueles seu ódio e sua
fúria agressiva. E necessário contrapor-se a uma tal ausência de consciência, é preciso
evitar que as pessoas golpeiem para os lados sem refletir a respeito de si próprias. A
educação tem sentido unicamente como educação dirigida a uma auto-reflexão crítica.
Contudo, na medida em que, conforme os ensinamentos da psicologia profunda, todo
caráter, inclusive daqueles que mais tarde praticam crimes, forma-se na primeira
infância, a educação que tem por objetivo evitar a repetição precisa se concentrar na
primeira infância. Já mencionei a tese de Freud acerca do mal-estar na cultura. Ela é
ainda mais abrangente do que ele mesmo supunha: sobretudo porque, entrementes, a
pressão civilizatória observada por ele multiplicou-se em uma escala insuportável. Por
essa via as tendências à explosão a que ele atentara atingiriam uma violência que ele
dificilmente poderia imaginar. porém o mal-estar na cultura tem seu lado social ---- o
que Freud sabia, embora não o tenha investigado concretamente. É possível falar da
claustrofobia das pessoas no mundo administrado, um sentimento de encontrar-se
enclausurado numa situação cada vez mais socializada, como uma rede densamente
interconectada. Quanto mais densa é a rede, mais se procura escapar, ao mesmo tempo

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em que precisamente a sua densidade impede a saída. Isto aumenta a raiva contra a
civilização. Esta torna-se alvo de uma rebelião violenta e irracional.

Um esquema sempre confirmado na história das perseguições é o de que a


violência contra os fracos se dirige principalmente contra os que são considerados
socialmente fracos e ao mesmo tempo ---- seja isto verdade ou não —- felizes. De
uma perspectiva sociológica eu ousaria acrescentar que nossa sociedade, ao mesmo
tempo em que se integra cada vez mais, gera tendências de desagregação. Essas
tendências encontram-se bastante desenvolvidas logo abaixo da superfície da vida
civilizada e ordenada. ​A pressão do geral dominante sobre tudo que é particular, os
homens individualmente e as instituições singulares, tem uma tendência a destroçar o
particular e individual juntamente com seu potencial de resistência. Junto com sua
identidade e seu potencial de resistência, as pessoas também perdem suas qualidades,
graças a qual têm a capacidade de se contrapor ao que em qualquer tempo novamente
seduz ao crime. Talvez elas mal tenham condições de resistir quando lhes é ordenado
pelas forças estabelecidas que repitam tudo de novo, desde que apenas seja em nome de
quaisquer ideais de pouca ou nenhuma credibilidade.

Quando falo de educação após Auschwitz, refiro-me a duas questões: primeiro, à


educação infantil, sobretudo na primeira infância; e, além disto, ao esclarecimento geral,
que produz um clima intelectual, cultural e social que não permite tal repetição;
portanto, um clima em que os motivos que conduziram ao horror tornem-se de algum
modo conscientes. Evidentemente não tenho a pretensão de sequer esboçar o projeto de
uma educação nesses termos. Contudo, quero ao menos indicar alguns pontos
nevrálgicos. Com freqüência por exemplo, nos Estados Unidos —- o espirito germânico
de confiança na autoridade foi responsabilizado pelo nazismo e também por Auschwitz.
Considero esta afirmação excessivamente superficial, embora na Alemanha, como em
muitos outros países europeus, comportamentos autoritários e autoridades cegas
perdurem com mais tenacidade sob os pressupostos da democracia formal do que se
queira reconhecer. Antes é de se supor que ​o fascismo e o horror que produziu se
relacionam com o fato de que as antigas e consolidadas autoridades do império haviam
ruído e se esfacelado, mas as pessoas ainda não se encontravam psicologicamente

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preparadas para a autodeterminação. Elas não se revelaram à altura da liberdade com


que foram presenteadas de repente. É por isso que as estruturas de autoridade
assumiram aquela dimensão destrutiva e - por assim dizer - de desvario que antes, ou
não possuíam, ou seguramente não revelavam. Quando lembramos que visitantes de
quaisquer potentados, já politicamente desprovidos de qualquer função real, levam
populações inteiras a explosões de êxtase, então se justifica a suspeita de que o
potencial autoritário permanece muito mais forte do que o imaginado. Porém quero
enfatizar com a maior intensidade que o retorno ou não retorno do fascismo constitui em
seu aspecto mais decisivo uma questão social e não uma questão psicológica. Refiro-me
tanto ao lado psicológico somente porque os demais momentos, mais essenciais, em
grande medida escapam à ação da educação, quando não se subtraem inteiramente à
interferência dos indivíduos.

Freqüentemente pessoas bem-intencionadas e que se opõem a que tudo aconteça de


novo citam o conceito de vínculos de compromisso. A ausência de compromissos das
pesssoas seria responsável pelo que aconteceu. Isto efetivamente tem a ver com a perda
da autoridade, uma das condições do pavor sadomasoquista. É plausível para o
entendimento humano sadio evocar compromissos que detenham o que é sádico,
destrutivo, desagregador, mediante um enfático "não deves". Ainda assim considero ser
uma ilusão imaginar alguma utilidade no apelo a vínculos de compromisso ou até
mesmo na exigência de que se reestabeleçam vinculações de compromisso para que o
mundo e as pessoas sejam melhores. A falsidade de compromissos que se exige somente
para que provoquem alguma coisa —- mesmo que esta seja boa ----, sem que eles sejam
experimentados por si mesmos como sendo substanciais para as pessoas, percebe-se
muito prontamente. E espantosa a rapidez com que até mesmo as pessoas mais ingênuas
e tolas reagem quando se trata de descobrir as fraquezas dos superiores. Facilmente os
chamados compromissos convertem-se em passaporte moral — são assumidos com o
objetivo de identificar-se como cidadão confiável — ou então produzem rancores
raivosos psicologicamente contrários à sua destinação original. Eles significam uma
heteronomia, um tornar-se dependente de mandamentos, de normas que não são
assumidas pela razão própria do indivíduo, O que a psicologia denomina superego, a
consciência moral, é substituído no contexto dos compromissos por autoridades

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exteriores, sem compromisso, intercambiáveis, como foi possível observar com muita
nitidez também na Alemanha depois da queda do Terceiro Reich. Porém justamente a
disponibilidade em ficar do lado do poder, tomando exteriormente como norma
curvar-se ao que é mais forte, constitui aquela índole dos algozes que nunca mais deve
ressurgir. Por isto a recomendação dos compromissos é tão fatal. As pessoas que os
assumem mais ou menos livremente são colocadas numa espécie de permanente estado
de exceção de comando. O único poder efetivo contra o princípio de Auschwitz seria
autonomia, para usar a expressão kantiana; o poder para a reflexão, a autodeterminação,
a não-participação.

Certa feita uma experiência me assustou muito: numa viagem ao lago de Constância, eu
lia num jornal de Baden em que se informava acerca da peça ​Mortos sem sepuItura, d​ e
Sartre, que representa as situações mais terríveis. A peça incomodava visivelmente o
critico. Mas ele não explicou este incômodo mediante o horror da coisa que constitui o
horror de nosso mundo, mas torceu a questão como se, frente a uma posição como a de
Sartre, que se ocupara do problema, nós tivéssemos, por assim dizer, um sentido para
algo mais nobre: que não poderíamos reconhecer a ausência de sentido do horror.
Resumindo: o critico procurava se subtrair ao confronto com o horror graças a um
sofisticado palavrório existencial. O perigo de que tudo aconteça de novo está em que
não se admite o contato com a questão. rejeitando até mesmo quem apenas a menciona,
como se, ao fazê-lo sem rodeios, este se tomasse o responsável, e não os verdadeiros
culpados.

Em relação ao problema de autoridade e barbárie considero importante um aspecto que


geralmente passa quase despercebido. Ele é mencionado numa observação do livro ​O
Estado ​da SS, de Eugen Kogon, que contém abordagens importantes deste todo
complexo e que não recebeu a atenção merecida por parte da ciência e da pedagogia.
Kogon afirma que os algozes do campo de concentração em que ele mesmo passou anos
eram em sua maioria jovens filhos de camponeses. ​A diferença cultural ainda
persistente entre a cidade e o campo constitui uma das condições do horror, embora
certamente não seja nem a única nem a mais importante. Repudio qualquer sentimento
de superioridade em relação à população rural. Sei que ninguém tem culpa por nascer na

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cidade ou se formar no campo. Mas registro apenas que provavelmente no campo o


insucesso da desbarbarização foi ainda maior. Mesmo a televisão e os outros meios de
comunicação de massa, ao que tudo indica, não provocaram muitas mudanças na
situação de defasagem cultural. Parece-me mais correto afirmar isto e procurar uma
mudança do que elogiar de uma maneira nostálgica quaisquer qualidades especiais da
vida rural ameaçadas de desaparecer. Penso até que a desbarbarização do campo
constitui um dos objetivos educacionais mais importantes. Evidentemente ela pressupõe
um estudo da consciência e do inconsciente da respectiva população. Sobretudo é
preciso atentar ao impacto dos modernos meios de comunicação de massa sobre um
estado de consciência que ainda não atingiu o nível do liberalismo cultural burguês do
século XIX.

Para mudar essa situação, o sistema normal de escolarização, freqüentemente bastante


problemático no campo, seria insuficiente. Penso numa série de possibilidades. Uma
seria — e estou improvisando — o planejamento de transmissões de televisão
atendendo pontos nevrálgicos daquele peculiar estado de consciência. Além disto,
imagino a formação de grupos e colunas educacionais móveis de voluntários que se
dirijam ao campo e procurem preencher as lacunas mais graves por meio de discussões,
de cursos e de ensino suplementar. Naturalmente sei que dificilmente essas pessoas
serão muito bem-vistas. Mas com o passar do tempo se estabelecerá um pequeno círculo
que se imporá e que talvez tenha condições de se irradiar.

Entretanto não deve haver nenhum mal-entendido quanto à inclinação arcaica pela
violência existente também nas cidades, principalmente nos grandes centros.
Tendências de regressão — ou seja, pessoas com traços sádicos reprimidos — são
produzidas por toda parte pela tendência social geral​. Nessa medida quero lembrar a
relação perturbada e patogênica com o corpo que Horkheimer e eu descrevemos na
​ m cada situação em que a consciência é mutilada, isto se
Dialética do esclarecimento. E
reflete sobre o corpo e a esfera corporal de uma forma não-livre e que é propicia à
violência. Basta prestar atenção em um certo tipo de pessoa inculta como até mesmo a
sua linguagem — principalmente quando algo é criticado ou exigido — se torna
ameaçadora, como se os gestos da fala fossem de uma violência corporal quase

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incontrolada. Aqui seria preciso estudai também a função do esporte. que ainda não foi
devidamente reconhecida por uma psicologia social crítica. ​O esporte é ambíguo: por
um lado, ele pode ter um efeito contrário à barbárie e ao sadismo, por intermédio do
fairplay, d​ o cavalheirismo e do respeito pelo mais fraco. Por outro, em algumas de suas
modalidades e procedimentos, ele pode promover a agressão a brutalidade ​C ​o sadismo,
principalmente no caso de espectadores. que pessoalmente não estão submetidos ao
esforço e à. disciplina do esporte; são aqueles que costumam gritar nos campos
esportivos. ​É ​preciso analisar de uma maneira sistemática essa ambigüidade. Os
resultados teriam que ser aplicados à vida esportiva na medida da influência da
educação sobre a mesma.

Tudo isso se relaciona de um modo ou outro à velha estrutura vinculada à autoridade, a


modos de agir - eu quase diria - do velho e bom caráter autoritário. Mas aquilo que gera
Auschwitz, os tipos característicos ao mundo de Auschwitz, constituem
presumivelmente algo de novo. Por um lado, eles representam a identificação cega com
o coletivo. Por outro, são talhados para manipular massas, coletivos, tais como os
Himmler, Höss, Eichmann. ​Considero que o mais importante para enfrentar o perigo de
que tudo se repita é contrapor-se ao poder cego de todos os coletivos, fortalecendo a
resistência frente aos mesmos por meio do esclarecimento do problema da
coletivização. Isto não é tão abstrato quanto passa parecer ao entusiasmo participativo.
especialmente das pessoas jovens, de consciência progressista. O ponto de partida
poderia estar no sofrimento que os coletivos infligem e se filiam a eles. Basta pensar nas
primeiras experiências de cada um na escola - preciso se opor àquele tipo de ​folk-ways,
hábitos populares, ritos de iniciação de qualquer espécie, que infligem dor física
—muitas vezes insuportável -— a uma pessoa como preço do direito de ela se sentir um
filiado, um membro do coletivo. A brutalidade de hábitos tais como os trotes de
qualquer ordem, ou quaisquer outros costumes arraigados desse tipo, é precursora
imediata da violência nazista. Não foi por acaso que os nazistas enalteceram e
cultivaram tais barbaridades com o nome de "costumes". Eis aqui um campo muito atual
para a ciência. Ela poderia inverter decididamente essa tendência da etnologia

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encampada com entusiasmo pelos nazistas, para refrear esta sobrevida simultaneamente
brutal e fantasmagórica desses divertimentos populares.

Tudo isso tem a ver com um pretenso ideal que desempenha um papel relevante na
educação tradicional em geral: a severidade. Esta pode até mesmo remeter a uma
afirmativa de Nietzsche, por mais humilhante que seja e embora ele na verdade pensasse
em outra coisa. Lembro que durante o processo sobre Auschwitz, em um de seus
acessos, o terrível Boger culminou num elogio à educação baseada na força e voltada à
disciplina. Ela seria necessária para constituir o tipo de homem que lhe parecia
adequado. ​Essa idéia educacional da ​severidade​, em que irrefletidamente muitos podem
até acreditar, é totalmente equivocada. A idéia de que a virilidade consiste num grau
máximo da capacidade de suportar dor de há muito se converteu em fachada de um
masoquismo que — como mostrou a psicologia — se identifica com muita facilidade ao
sadismo. O elogiado objetivo de "ser duro" de uma tal educação significa indiferença
contra a dor em geral. No que, inclusive, nem se diferencia tanto a dor do outro e a dor
de si próprio. Quem é severo consigo mesmo adquire o direito de ser severo também
com os outros, vingando-se da dor cujas manifestações precisou ocultar e reprimir.
Tanto é necessário tornar consciente esse mecanismo quanto se impõe a promoção de
uma educação que não premia a dor e a capacidade de suportá-la, como acontecia
antigamente. Dito de outro modo: ​a educação precisa levar a sério o que já de há
muito é do conhecimento da filosofia: que o medo não deve ser reprimido. Quando
o medo não é reprimido, quando nos permitimos ter realmente tanto medo quanto
esta realidade exige, então justamente por essa via desaparecerá provavelmente
grande parte dos efeitos deletérios do medo inconsciente e reprimido.

Pessoas que se enquadram cegamente em coletivos convertem a si próprios em algo


como um material, dissolvendo-se como seres autodeterminados. Isto combina com a
disposição de tratar outros como sendo uma massa amorfa. Para os que se comportam
dessa maneira utilizei o termo "caráter manipulador" em ​Authoritarian personality (​ A
personalidade autoritária), e isto quando ainda não se conhecia o diário de Höss ou as
anotações de Eichmann. Minhas descrições do caráter manipulador datam dos últimos
anos da Segunda Guerra Mundial. Às vezes a psicologia social e a sociologia

15
A arte de contar histórias e compartilhar memórias

conseguem construir conceitos confirmados empiricamente só muito tempo depois. O


caráter manipulador — e qualquer um pode acompanhar isto a partir das fontes
disponíveis acerca desses lideres nazistas — se distingue pela fúria organizativa, pela
incapacidade total de levar a cabo experiências humanas diretas, por um certo tipo de
ausência de emoções, por um realismo exagerado. A qualquer custo ele procura praticar
​ em por um segundo sequer ele imagina o
uma pretensa, embora delirante, ​realpolitik. N
mundo diferente do que ele é, possesso pela vontade de ​doing things, ​de fazer coisas,
indiferente ao conteúdo de tais ações. Ele faz do ser atuante, da atividade, da chamada
efficiency e​ nquanto tal, um culto, cujo eco ressoa na propaganda do homem ativo. Este
tipo encontra-se, entrementes - a crer em minhas observações e generalizando algumas
pesquisas sociológicas - , muito mais disseminado do que se poderia imaginar. O que
outrora era exemplificado apenas por alguns monstros nazistas pode ser constatado hoje
a partir de casos numerosos, como delinqüentes juvenis, lideres de quadrilhas e tipos
semelhantes, diariamente presentes no noticiário. Se fosse obrigado a resumir em uma
fórmula esse tipo de caráter manipulador — o que talvez seja equivocado embora útil à
compreensão — eu o denominaria de o tipo da ​consciência coisificada. ​No começo as
pessoas desse tipo se tornam por assim dizer iguais a coisas. Em seguida, na medida em
que o conseguem, tornam os outros iguais a coisas. Isto é muito bem traduzido pela
expressão ​aprontar, q​ ue goza de igual popularidade entre os valentões juvenis e entre os
nazistas. Esta expressão ​aprontar ​define as pessoas como sendo coisas aprontadas em
seu duplo sentido. Conforme Max Horkheimer, a tortura é a adaptação controlada e
devidamente acelerada das pessoas aos coletivos. Algo disso encontra-se no espirito da
época, por menos procedente que seja falar em espírito nesses termos. Enfim, resumirei
citando Paul Valéry, que antes da última Guerra Mundial disse que a desumanidade
teria um grande futuro. É particularmente difícil confrontar esta questão porque aquelas
pessoas manipuladoras, no fundo incapazes de fazer experiências, por isto mesmo
revelam traços de incomunicabilidade, no que se identificam com certos doentes
mentais ou personalidades psicóticas.

Nas tentativas de atuar contrariamente à repetição de Auschwitz pareceu.me


fundamental produzir inicialmente uma certa clareza acerca do modo de constituição do
caráter manipulador, para em seguida poder impedir da melhor maneira possível a sua

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A arte de contar histórias e compartilhar memórias

formação, pela transformação das condições para tanto. Quero fazer uma proposta
concreta: utilizar todos os métodos científicos disponíveis, em especial psicanálise
durante muitos anos, para estudar os culpados por Auschwitz, visando se possível
descobrir como uma pessoa se torna assim. O que aqueles ainda podem fazer de bom é
contribuir, em contradição com a própria estrutura de sua personalidade, no sentido de
que as coisas não se repitam. E essa contribuição só ocorreria na medida em que
colaborassem na investigação de sua gênese. Obviamente seria difícil levá-los a falar;
em nenhuma hipótese poder-se-ia aplicar qualquer procedimento semelhante a seus
próprios métodos para aprender como eles se tornaram do jeito que são. De qualquer
modo, entrementes eles se sentem — justamente em seu coletivo, com a sensação de
que todos são velhos nazistas — tão protegidos, que praticamente nenhum demonstrou
nem ao menos remorsos. Porém presumivelmente também neles, ou em alguns deles,
existem pontos de apoio psicológicos mediante os quais seria possível mudar isto,
como, por exemplo, seu narcisismo, ou, dito simplesmente, seu orgulho. Eles se sentirão
importantes ao poder falar livremente a seu respeito, tal como Eichmann, cujas falas
aparentemente preenchem fileiras inteiras de volumes. Finalmente, é de supor que
também nessas pessoas, aprofundando-se suficientemente a busca, existam restos da
velha instância da consciência moral que se encontra atualmente em grande parte em
processo de dissolução. Na medida em que se conhecem as condições internas e
externas que os tornaram assim — pressupondo por hipótese que esse conhecimento é
possível —, seria possível tirar conclusões práticas que impeçam a repetição de
Auschwitz. A utilidade ou não de semelhante tentativa só se mostrará após sua
concretização; não pretendo superestimá-la. ​É preciso lembrar que as pessoas não
podem ser explicadas automaticamente a partir de condições como estas. Em condições
iguais alguns se tornaram assim, e Outros de um jeito bem diferente. Mesmo assim
valeria a pena. O mero questionamento de como se ficou assim já encerraria um
potencial esclarecedor. Pois um dos momentos do estado de consciência e de
inconsciência daninhos está em que seu ser-assim - que se é de um determinado modo e
não de outro - é apreendido equivocadamente como ​natureza​, como um dado imutável
e não como resultado de uma ​formação. Mencionei o conceito de consciência
coisificada. Esta é sobretudo uma consciência que se defende em relação a qualquer
vir-a-ser, frente a qualquer apreensão do próprio condicionamento, impondo como

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A arte de contar histórias e compartilhar memórias

sendo absoluto o que existe de um determinado modo. Acredito que o rompimento


desse mecanismo impositivo seria recompensador.

No que diz respeito à consciência coisificada, além disto é preciso examinar também a
relação com a ​técnica​, sem restringir-se a pequenos grupos. Esta relação é tão ambígua
quanto a do esporte, com que aliás tem afinidade. Por um lado, é certo que todas as
épocas produzem as personalidades — tipos de distribuição da energia psíquica — de
que necessitam socialrnente. Um mundo em que a técnica ocupa uma posição tão
decisiva como acontece atualmente, gera pessoas tecnológicas, afinadas com a técnica.
Isto tem a sua racionalidade boa: em seu plano mais restrito elas serão menos
influenciáveis, com as correspondentes conseqüências no plano geral. Por outro lado, na
relação atual com a técnica existe algo de exagerado, irracional, patogênico. Isto se
vincula ao "véu tecnológico". ​Os homens inclinam-se a considerar a técnica como
sendo algo em si mesma, um fim em si mesmo, uma força própria, esquecendo que
ela é a extensão do braço dos homens. Os meios —— e a técnica é um conceito de
meios dirigidos à autoconservação da espécie humana — são fetichizados, porque os
fins — uma vida humana digna — encontram-se encobertos e desconectados da
consciência das pessoas. Afirmações gerais como estas são até convincentes. Porém
uma tal hipótese ainda é excessivamente abstrata. Não se sabe com certeza como se
verifica a fetichização da técnica na psicologia individual dos indivíduos, onde está o
ponto de transição entre uma relação racional com ela e aquela supervalorização, que
leva, em última análise, quem projeta um sistema ferroviário para conduzir as vitimas a
Auschwitz com maior rapidez e fluência, a esquecer o que acontece com estas vítimas
em Auschwitz. ​No caso do tipo com tendências à fetichização da técnica, trata-se
simplesmente de pessoas incapazes de amar. Isto não deve ser entendido num sentido
sentimental ou moralizante, mas denotando a carente relação libidinal com Outras
pessoas. Elas são inteiramente frias e precisam negar também em seu íntimo a
possibilidade do amor, recusando de antemão nas outras pessoas o seu amor antes que o
mesmo se instale. A capacidade de amar, que de alguma maneira sobrevive, eles
precisam aplicá-la aos meios. As personalidades preconceituosas e vinculadas à
autoridade com que nos ocupamos em ​Authoritarian Personality, e​ m Berkeley,
forneceram muitas evidências neste sentido. Um sujeito experimental - e a própria

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A arte de contar histórias e compartilhar memórias

expressão já é do repertório da consciência coisificada - afirmava de si mesmo: "I like


nice equipament" (Eu gosto de equipamentos, de instrumentos bonitos),
independentemente dos equipamentos em questão. Seu amor era absorvido por coisas,
máquinas enquanto tais. O perturbador — porque torna tão desesperançoso atuar
contrariamente a isso — é que esta tendência de desenvolvimento encontra-se vinculada
ao conjunto da civilização. Combatê-lo significa o mesmo que ser contra o espírito do
mundo; e desta maneira apenas repito algo que apresentei no começo como sendo o
aspecto mais obscuro de uma educação contra Auschwitz.

Afirmei que aquelas pessoas eram frias de um modo peculiar. ​Aqui vêm a propósito
algumas palavras acerca da ​frieza. Se ela não fosse um traço básico da antropologia, e,
portanto, da constituição humana como ela realmente é em nossa sociedade; se as
pessoas não fossem profundamente indiferentes em relação ao que acontece com todas
as outras, executando o punhado com que mantêm vínculos estreitos e possivelmente
por intermédio de alguns interesses concretos, então Auschwitz não teria sido possível,
as pessoas não o teriam aceito. Em sua configuração atual - e provavelmente há
milênios - a sociedade não repousa em atração, em simpatia, como se supôs
ideologicamente desde Aristóteles, mas na persecução dos próprios interesses frente aos
interesses dos demais. Isto se sedimentou do modo mais profundo no caráter das
pessoas. O que contradiz, o impulso grupal da chamada ​lonely crowd​, da massa
solitária, na verdade constitui uma reação, um enturmar-se de pessoas frias que não
suportam a própria frieza mas nada podem fazer para alterá-la. ​Hoje em dia qualquer
pessoa, sem exceção, se sente mal-amada, porque cada um é deficiente na
capacidade de amar. A incapacidade para a identificação foi sem dúvida a condição
psicológica mais importante para tornar possível algo como Auschwitz em meio a
pessoas mais ou menos civilizadas e inofensivas. O que se chama de "participação
oportunista" era antes de mais nada interesse prático: perceber antes de tudo a sua
própria vantagem e não dar com a língua nos dentes para não se prejudicar. Esta é uma
lei geral do existente. O silêncio sob o terror era apenas a conseqüência disto. A frieza
da mônada social, do concorrente isolado, constituía, enquanto indiferença frente ao

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A arte de contar histórias e compartilhar memórias

destino do outro, o pressuposto para que apenas alguns raros se mobilizassem. Os


algozes sabem disto; e repetidamente precisam se assegurar disto.

Não me entendam mal. Não quero pregar o amor. Penso que sua pregação é vã:
ninguém teria inclusive o direito de pregá-lo, porque a deficiência de amor, repito, é
uma deficiência de ​todas ​as pessoas, sem exceção, nos termos em que existem hoje.
Pregar o amor pressupõe naqueles a quem nos dirigimos uma outra estrutura do caráter,
diferente da que pretendemos transformar. Pois as pessoas que devemos amar são elas
próprias incapazes de amar e por isto nem são tão amáveis assim. Um dos grandes
impulsos do cristianismo, a não ser confundido com o dogma, foi apagar a frieza que
tudo penetra. Mas esta tentativa fracassou; possivelmente porque não mexeu com a
ordem social que produz e reproduz a frieza. Provavelmente até hoje nunca existiu
aquele calor humano que todos almejamos, a não ser durante períodos breves e em
grupos bastante restritos, e talvez entre alguns selvagens pacíficos. Os utópicos
freqüentemente ridicularizados perceberam isto. Charles Fourier, por exemplo, definiu a
atração como algo ainda por ser constituído por uma ordem social digna de um ponto de
vista humano. Também reconheceu que esta situação só seria possível quando os
instintos não fossem mais reprimidos, mas satisfeitos e liberados. Se existe algo que
pode ajudar contra a frieza como condição da desgraça, então trata-se do conhecimento
dos próprios pressupostos desta, bem como da tentativa de trabalhar previamente no
plano individual contra esses pressupostos. Agrada pensar que a chance é tanto maior
quanto menos se erra na infância, quanto melhor são tratadas as crianças. Mas mesmo
aqui pode haver ilusões. Crianças que não suspeitam nada da crueldade e da dureza da
vida acabam por ser particularmente expostas à barbárie depois que deixam de ser
protegidas. Mas, sobretudo, não é possível mobilizar para o calor humano pais que são,
eles próprios, produtos desta sociedade, cujas marcas ostentam. O apelo a dar mais calor
humano às crianças é artificial e por isto acaba negando o próprio calor. Além disto o
amor não pode ser exigido em relações profissionalmente intermediadas, como entre
professor e aluno, médico e paciente, advogado e cliente. Ele é algo direto e
contraditório com relações que em sua essência são intermediadas. O incentivo ao amor
- provavelmente na forma mais imperativa, de um dever - constitui ele próprio parte de
uma ideologia que perpetua a frieza. Ele combina com o que é impositivo, opressor, que

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A arte de contar histórias e compartilhar memórias

atua contrariamente à capacidade de amar. Por isto o primeiro passo seria ajudar a frieza
a adquirir consciência de si própria, das razões pelas quais foi gerada.

Para terminar gostaria ainda de discorrer brevemente a respeito de algumas


possibilidades de conscientização dos mecanismos subjetivos em geral, sem os quais
Auschwitz dificilmente aconteceria. O conhecimento desses mecanismos é uma
necessidade; da mesma forma também o é o conhecimento da defesa estereotipada, que
bloqueia uma tal consciência. Quem ainda insiste em afirmar que o acontecido nem foi
tão grave assim já está defendendo o que ocorreu, e sem dúvida seria capaz de assistir
ou colaborar se tudo acontecesse de novo. Mesmo que o esclarecimento racional não
dissolva diretamente os mecanismos inconscientes — conforme ensina o conhecimento
preciso da psicologia —, ele ao menos fortalece na pré-consciência determinadas
instâncias de resistência, ajudando a criar um clima desfavorável ao extremismo. Se a
consciência cultural em seu conjunto fosse efetivamente perpassada pela premonição do
caráter patogênico dos traços que se revelaram com clareza em Auschwitz, talvez as
pessoas tivessem evitado melhor aqueles traços.

Além disso seria necessário esclarecer quanto à possibilidade de haver um outro


direcionamento para a fúria ocorrida em Auschwitz. Amanhã pode ser a vez de um
outro grupo que não os judeus, por exemplo os idosos, que escaparam por pouco no
Terceiro Reich, ou os intelectuais, ou simplesmente alguns grupos divergentes. O clima
- e quero enfatizar esta questão - mais favorável a um tal ressurgimento é o
nacionalismo ressurgente. Ele é tão raivoso justamente porque nesta época de
comunicações internacionais e de blocos supranacionais já não é mais tão convicto,
obrigando-se ao exagero desmesurado para convencer a si e aos outros que ainda têm
substância.

De qualquer modo, haveria que mostrar as possibilidades concretas da resistência. Por


exemplo, a história dos assassinatos por eutanásia, que acabaram não sendo cometidos
na dimensão pretendida pelos nazistas na Alemanha, graças a resistência manifestada. A
resistência limitava-se ao próprio grupo; e justamente este é um sintoma bastante
notável e amplo da frieza geral. Além de tudo, porém, ela é limitada também em face da
insaciabilidade presente no princípio das perseguições. Em última instância, qualquer

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A arte de contar histórias e compartilhar memórias

pessoa não-pertencente ao grupo perseguidor pode ser atingida; portanto, existe um


interesse egoísta drástico a que se poderia apelar. Enfim, seria necessário indagar pelas
condições específicas, históricas, das perseguições. Em uma época em que o
nacionalismo é antiquado, os chamados movimentos de renovação nacional são, ao que
tudo indica, particularmente sujeitos a práticas sádicas.

Finalmente​, o centro de toda educação política deveria ser que Auschwitz não se repita.
Isto só será possível na medida em que ela se ocupe da mais importante das questões
sem receio de contrariar quaisquer potências. Para isto teria de se transformar em
sociologia, informando acerca do jogo de forças localizado por trás da superfície das
formas políticas. Seria preciso tratar criticamente um conceito tão respeitável como o da
razão de Estado, para citar apenas um modelo: na medida em que colocamos o direito
do Estado acima do de seus integrantes, o terror já passa a estar potencialmente
presente.

Em Paris, durante a emigração, quando eu ainda retornava esporadicamente à


Alemanha, certa vez Walter Benjamin me perguntou se ali ainda havia algozes em
número suficiente para executar o que os nazistas ordenavam. Havia. Apesar disto a
pergunta é profundamente justificável. ​Benjamin percebeu que, ao contrário dos
assassinos de gabinete e dos ideólogos, as pessoas que ​executam ​as tarefas agem em
contradição com seus próprios interesses imediatos, são assassinas de si mesmas na
medida em que assassinam os outros. Temo que será difícil evitar o reaparecimento
de assassinos de gabinete, por mais abrangentes que sejam as medidas educacionais.
Mas que haja pessoas que, em posições subalternas, enquanto serviçais, façam coisas
que perpetuam sua própria servidão, tornando-as indignas; que continue a haver Bojeis
e Kaduks, contra isto é possível empreender algo mediante a educação e o
esclarecimento.

Theodor Adorno

Tradução: Wolfgang Leo Maar

6. A PALAVRA MÁGICA

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A arte de contar histórias e compartilhar memórias

Certa palavra dorme na sombra


De um livro raro.
Como desencantá-la?
É a senha da vida
A senha do mundo.
Vou procurá-la.

Vou procurá-la a vida inteira


No mundo todo.
Se tarda o encontro, se não a encontro,
Não desanimo, procuro sempre.
Procuro sempre, e minha procura
Ficará sendo minha palavra.

Carlos Drummond de Andrade


7. O TEMPO

O despertador é um objeto abjeto.


Nele mora o Tempo. O Tempo não vive sem nós, para não parar.
E todas as manhãs, nos chama freneticamente como
Um velho paralítico a tocar a campainha atroz.
Nós
É que vamos empurrando, dia a dia, sua cadeira de rodas.
Nós, os seus escravos.
Só os poetas
Os amantes
Os bêbados
Podem fugir
Por instantes
Ao Velho... Mas que raiva impotente dá no Velho
Quando encontra crianças a brincar de roda

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A arte de contar histórias e compartilhar memórias

E não há outro jeito senão, desviar delas a sua


Cadeira de rodas!
Por que elas, simplesmente, o ignoram...

Mario Quintana

8. O OLHAR DE ESTRANGEIRO

Nunca a questão do olhar esteve tão no centro do debate da cultura e das sociedades
contemporâneas. Um mundo onde tudo é produzido para ser visto, onde tudo se
mostra ao olhar, coloca necessariamente o ver como um problema. Aqui não
existem mais véus nem mistérios. Vivemos no universo da sobreexposição e da
obscenidade, saturado de clichês, onde a banalização e a descartabilidade das coisas
e imagens foi levada ao extremo. Como olhar quando tudo ficou indistinguível,
quando tudo parece a mesma coisa?
A empresa tradicional do olhar não é mais possível, na medida em que pressupunha
uma identidade e um significado intrínseco das coisas. Olhar então implicava
descobrir um sentido que se tomava por dado nos indivíduos, relações e paisagens.
Esta suposição de uma realidade anterior ao olhar, ao complexo processo de
exposição que chamamos comunicação, é que porém vem sendo colocada em xeque.
Como se constitui aquilo que hoje se apresenta ao nosso olhar?
Mudanças na estrutura urbana, na arquitetura, nos meios de comunicação e transporte
viriam alterar profundamente a própria constituição da realidade. Hoje o real é ele
mesmo uma questão. As autopistas de alta velocidade – além da informatização –
transformam por completo o perfil das grandes cidades e portanto a nossa
experiência e nossa maneira de ver. O indivíduo contemporâneo é em primeiro lugar
um passageiro metropolitano: em permanente movimento, cada vez para mais longe,
cada vez mais rápido. Essa crescente ​velocidade determinaria não só o olhar mas
sobretudo o modo pelo qual a própria cidade, e todas as outras coisas, se apresentam
a nós.

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A arte de contar histórias e compartilhar memórias

A velocidade provoca, para aquele que avança num veículo, um achatamento da


paisagem. Quanto mais rápido o movimento, menos profundidade as coisas têm,
mais chapadas ficam, como se estivessem contra um muro, contra uma tela. A
cidade contemporânea corresponderia a este novo olhar. Os seus prédios e
habitantes passariam pelo mesmo processo de superficialização, a paisagem urbana
se confundindo com outdoors. O mundo se converte num cenário, os indivíduos em
personagens. Cidade-cinema. Tudo é imagem.
As cidades tradicionais, ao contrário, eram feitas para serem vistas de perto, por alguém
que andava devagar e podia observar os detalhes das coisas. Um prédio feito para
ser observado por quem passa na calçada, a pé, pode ser ornamentado. É através de
suas formas arquitetônicas que ele nos diz o que ele é. Um topo recortado nos sugere
um castelo medieval, marquises decoradas remetem a uma estrutura futurista. A
arquitetura tradicional constrói a representação.
O caminhar lento surgiu na filosofia e na poesia com a figura do ​flaneur.​ Personagem
do final do século XIX, era o indivíduo que vivia na rua como se estivesse em casa,
fazendo dos cafés a sua sala de visitas e das bancas de jornal a sua biblioteca. Este
homem ainda podia se pretender um olhar capaz de captar as coisas como elas eram.
O seu olhar era correspondido. Num poema de Baudelaire, “A Passante”, esta
experiência aparece no seu momento terminal. O poeta está caminhando em meio à
multidão quando, de repente, por um breve instante, o olhar dele se encontra com o
de uma linda mulher, vindo no sentido contrário. Neste instante de êxtase,
verdadeira iluminação, ele se viu refletido no olhar dela. O poeta, surpreendido, fica
imobilizado e, ao se voltar, ela já tinha desaparecido na multidão. Essa crescente
dificuldade em se reconhecer nos objetos e nos outros, que atravessa toda a obra de
W. Benjamin, introduzia a problemática de um olhar que possa ser correspondido,
de um olhar nos olhos.
Na cidade do movimento, ao contrário, a arquitetura, sob o impacto da velocidade,
perde espessura. A construção tende a virar só fachada, painel liso onde são fixados
inscrições e elementos decorativos, para serem vistos por quem passa correndo pela
auto-estrada. Ocorre uma superficialização do prédio: por trás da fachada, ele é um
simples galpão igual a todos os outros. Toda a arquitetura pós-moderna consiste
nesta transformação do prédio em mural, em letreiro, em tela. Painéis luminosos que

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A arte de contar histórias e compartilhar memórias

reproduzem castelos medievais ou ​haciendas mexicanas. Em vez de se construir a


representação, se representa a construção.
Aqui tudo é imagem, signo. Daí a hiper-realidade em que parece ter-se constituído a
nossa realidade. Tradicionalmente, o pensamento ocidental fundou-se no princípio
da representação: as imagens e os concertos serviam para representar algo que lhes
era exterior. Com a generalização da imagem, porém, o próprio princípio de
representação deixa de funcionar. As imagens passaram a constituir elas próprias a
realidade. Não se pode mais trabalhar com o conceito tradicional de representação,
quando a própria noção de realidade contém no seu interior o que deveria
representá-la. Torna-se difícil distinguir o que é real e o que não é. Neste universo
feito de imagens, o real não tem mais origem na realidade. Daí a sensação corrente
de que estas fachadas ocultem um mundo verdadeiro que estaria por trás. Mas não
há nada lá. Tudo só existe na superfície sem fundo da imagem.
Com esta proliferação das imagens, entramos na era da produção do real. Aquilo que era
pressuposto do olhar é agora o seu resultado. Não há mais distinção entre realidade e
artifício, entre experiência e ficção, entre história e estórias. Nossa identidade e
lugar são constituídos a partir de um imaginário e uma iconografia criados pela
indústria cultural. Este ​mediascape​ é a realidade onde indivíduos hoje vivem.
Neste mundo de personagens e cenários, tudo é ​imagerie.​ Tem a consistência de mito e
imagem. A cultura contemporânea é de segunda geração, onde a história, a
experiência e os anseios de cada um são moldados pela literatura, os quadrinhos, o
cinema e a tv. Vidas em segundo grau. Todas estas histórias já foram vividas, todos
estes lugares visitados.
Mas esta transformação de tudo em imagem acarreta a sua permanente reciclagem.
Tudo parece ​remake.​ A repetição ao infinito banaliza as imagens, transformando-as
em clichês. É como se a cultura contemporânea estivesse liquidando o seu estoque.
O pós-modernismo parece estar se encaminhando para o impasse. Somos ainda
capazes de ver através dessa mitologia esvaziada de todo significado pela repetição?
É a questão que atravessa, nos últimos anos, o pensamento e a arte contemporâneos: a
perda de sentido das imagens que constituíam nossa identidade e lugar. Daí o
recurso ao olhar do estrangeiro, tão recorrente nas narrativas e filmes americanos
recentes: aquele que não é do lugar, que acabou de chegar, é capaz de ver aquilo que

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A arte de contar histórias e compartilhar memórias

os que lá estão não podem mais perceber. Ele resgata o significado que tinha aquela
mitologia. Ele é capaz de olhar as coisas como se fosse pela primeira vez e de viver
histórias originais. Todo um programa se delineia aí: livrar a paisagem da
representação que se faz dela, retratar sem pensar em nada já visto antes. Contar
histórias simples, respeitando os detalhes, deixando as coisas aparecerem como são.
O estrangeiro toma tudo como mitologia, como emblema. Reintroduz imaginação e
linguagem onde tudo era vazio e mutismo. Para ele estes personagens e histórias
ainda são capazes de mobilizar. Ele é o único que consegue ver através desta
imagerie. Uma das encarnações mais recorrentes do estranho, do recém-chegado, é
aquele que retorna. O cinema recente fez daquele que volta para casa o seu
personagem principal. Depois de fugir deste mundo em que nada mais tem valor, ele
volta para resgatar as figuras e passagens banalizadas do nosso imaginário, para tirar
dele uma identidade e um lugar.
A outra figura do estrangeiro criada pela cultura contemporânea é a do anjo. Ele aparece
insistentemente na narrativa, na pintura e no cinema dos últimos anos. A que se deve
uma tal inflação de anjos? Parece que, nesse mundo de simulacros, onde tudo é
artificial, saiu-se em busca dos personagens e histórias que correspondam a essa
nova constituição e percepção do espaço e do tempo. Nesse momento maneirista da
cultura, que vive de citações e remakes, não é por acaso que se recorre a esse figura
barroca por excelência. Quem, dentre, todos os seres, tem a mesma mobilidade da
câmera que flutua através desse universo cinético, a mesma imaterialidade de suas
criaturas imagéticas? O anjo, é claro, o personagem de nosso tempo. Enquanto os
indivíduos estão se transformando em personagens, ele é o único capaz de ter como
programa tornar-se humano, escapar à pura espectralidade, sem no entanto perder
sua transcendência. O anjo não tem história. Não viveu, não viu nada. Logo, vê
esses indivíduos/ personagens e lugares/ cenários como imagens banalizadas. Ele vê
o que nós não podemos mais enxergar. Contra as imagens-clichês, imagens do
sublime.
Os anjos só vêem o essencial, as formas puras. No último filme de Win Wenders, ​As
asas do desejo,​ eles vêem tudo em branco e preto, desprovidos da simulação
brilhante da cor. Um olhar fenomenológico, em meio às coisas, mostrando-as como

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A arte de contar histórias e compartilhar memórias

realmente são. É o que os torna capazes de captar a banalidade do cotidiano


humano, de lhe dar a poesia do instantâneo e da contemporaneidade.
Na sua forma celestial, o anjo é a figura da inocência. Daí a presença do ponto de vista
da criança em muitos filmes atuais. Ele desconhece o pecado original, a queda, a
separação e o exílio. Como não tem desejo, jamais experimenta a decepção e a
perda. Não sendo sujeito a paixões e ilusões, não vive o sofrimento e a infelicidade.
Atemporal, desconhece a morte. Mas ao optar por ficar entre os homens, o anjo
perde as asas. Encarnado, ele agora está sujeito ao amor e à dor. Separado dos
desígnios divinos, não tem mais certeza do sentido, só mais uma interpretação.
O anjo então adquire uma história: ele deve dar a si mesmo uma identidade e um lugar.
Esta busca, para ele a primeira, é que vai levá-lo a viver histórias originais e ver as
coisas como se fosse pela primeira vez. Aventura que não é mais permitida a nós,
humanos. As figuras mais arquetípicas do cinema – como o detetive, a mulher fatal,
o viajante, anjos caídos... – são revitalizadas nessa nova encarnação. É o que
distingue o anjo do fantasma, outra das presenças mais recorrentes do cinema atual.
Este representa a volta do que está morto, da imagem gasta, do clichê. Para ele tudo
está no passado, já acabou. História ali só existe como repetição idêntica.
Mas o anjo é também um personagem do imaginário, que aparece entre nós para manter
viva a sua força. O encantamento dessas figuras imaginárias permite perceber sua
presença. Ao contrário do fantasma, o anjo simboliza a inocência, a vida, a emoção
e a vontade de amar – tudo aquilo que o cinema da reciclagem não tem – contra a
errância, a melancolia e o narcisismo. Ele é capaz de olhar estes cenários em ruínas
com a imediaticidade e o entusiasmo daquele que acabou de chegar. Paradoxo da
cultura contemporânea: quem poderia dar vida para suas histórias esgotadas senão
um ser sem história, capaz de se sacrificar, abrindo mão de sua imortalidade e
também de sua transcendência, por nós e nosso mundo? A cultura em crise faz
apelo a suas criaturas mais sublimes para encontrar uma saída.
A estes exilados interiores só restaria então o estranhamento? Destino moderno
eternamente em vias de partir? Na outra ponta do mundo que só existe como
imagem e mito, habitado por seres em movimento, por personagens, a
contemporaneidade porém busca outros espaços: o da individualidade e da
intimidade. Tudo aquilo que seja da ordem pessoal, da subjetividade, sem lugar no

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A arte de contar histórias e compartilhar memórias

universo do arquétipo e da simulação. Uma nova questão está no centro da estética


mais recente: a da ​inocência​.
Um século depois do seu advento, o cinema se defronta com a dificuldade de criar
novas imagens e contar histórias originais. O exemplo é conhecido: quando Gary
Cooper, nos anos 50, sacava um revólver, não havia consciência do gesto. Era como
se fosse pela primeira vez. Agora, quando Clint Eastwood tira sua arma, ele está
refazendo um gesto já visto no cinema. Está inevitavelmente citando. Esta
consciência da história do cinema está estampada na maior parte dos filmes que
assistimos. É como se nos lembrassem que chegamos tarde demais, que tudo hoje é
repetição, que as coisas agora só existem em segundo grau.
Daí a tentativa de contar histórias simples – existe história simples que uma história de
amor? – e construir personagens dotados de espessura ser tão recorrente no cinema
mais recente. Mas em geral esta autenticidade é desde logo cinematográfica. No seu
último filme, ​As asas do desejo​, Win Wenders teve de reunir um anjo e uma
trapezista para contar o encontro de um homem com uma mulher. Só poderia
fracassar. Hoje a inocência é entre aspas. É simulada.
Mas Mauvais sang, filme francês de Leos Carax, é justamente uma história de amor. Em
plena era da obscenidade, onde a violência e o sexo são explicitados à exaustão, um
cinema que vem falar do que não pode ser dito (o amor não correspondido), do que
não pode ser consumado. O desencontro e a perda, experiências que a tensão e a
competição da vida moderna só vêem reforçar, voltam a alimentar o imaginário de
novos filmes. “Se passo longe de você, passo longe de tudo, por muito tempo.” Os
amores impossíveis são mais do que nunca possíveis.
Contratado por um velho gângster, ele se apaixona por sua garota. A partir deste clichê
hollywoodiano, usado em incontáveis filmes policiais, Carax desenvolve situações e
imagens carregadas de afetividade e lirismo. Toda a trama gira em torno de um vírus
retro, que ataca “aqueles que fazem amor sem amor”. Ele abandonará a namorada
por alguém que não lhe corresponde. Uma aventura condenada, desde logo, ao
malogro: “existe um amor que vá rápido mas que dure para sempre?” Mas que
indica, pela intensidade da entrega, o surgimento de toda uma nova sensibilidade.
Como porém narrar uma história assim simples? Ela parece já ter sido mil vezes
contada. Como, hoje em dia, retratar uma mulher bonita sem idealizá-la? Tarefa

29
A arte de contar histórias e compartilhar memórias

nada fácil, uma vez que o cinema já formou, no nosso inconsciente, através de suas
estrelas, uma figura de mulher sedutora. Todo olhar hoje para uma mulher está
condicionado pela mídia e a publicidade. Vemos uma imagem de mulher em cada
mulher. Como, então, uma mulher pode se oferecer ao nosso olhar sem
imediatamente virar pura imagem?
Carax fez sua atriz, Juliette Binoche, assistir filmes mudos, onde as atrizes tinham a
espontaneidade de gestos e expressões ainda não marcados pela sua própria
repetição. Colocando-se sempre ao lado e não atrás da objetiva. Pedindo-lhe para
olhar para a câmera como se ela estivesse apaixonada por ele e não o inverso.
Trata-se de resgatar aquele momento primeiro em que a mulher guarda a inocência
do olhar, anterior à tomada de consciência do poder de sedução de sua imagem. No
interior da mídia, ela se faz sujeito, e não objeto, do olhar. Também o espectador
livra-se do olhar fascinado, não retribuído, para ter de inventar sua paixão.
Reinstaura-se, ao menos como possibilidade, um espaço para o exercício da
subjetividade. Alguém está olhando para alguém.
Mas este olhar que quer ser olhado é também profundamente amoroso. Em ​Mauvais
sang,​ a câmera tem um verdadeiro caso de amor com a atriz. Muito diferente do
cinema contemporâneo corrente, profundamente misógino, onde a exposição erótica
da mulher desprovida de afeição. Daí a recusa enfática ao nu, a toda forma de
exibição que avilte a atriz, que tudo lhe tira sem nada dar em troca. O nu é
irreversível: uma mulher despida ficará assim para sempre. O direito de retratar uma
mulher, sobretudo na sua intimidade, deve ser ganho, deve ser merecido. A atriz é
alguém que se está destinado a filmar. Respeito pelo outro que o cinema, como todo
o aparato voyerístico da mídia, há muito perdeu. Tal como a pintura, tudo deve ser
pretexto para se ter uma relação privilegiada com uma musa. Cinema que se faz por
causa de uma mulher.
Por trás do aparente moralismo, uma vontade do cinema de resgatar sai integridade. Não
é por acaso que o centro da trama seja a recusa a trair o homem amado, ainda que
muito mais velho e doente. Seus personagens apresentam uma consistência de
caráter que parecia ter desaparecido dos nossos horizontes.
Gestos ingênuos e desengonçados, mímica, jogos de circo, brincadeiras que parecem
filmes de pastelão: o cinema busca uma certa inocência. Rostos retratados em close

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A arte de contar histórias e compartilhar memórias

surpreendidos ao sonhar. Tentativa de reencontrar o espaço e a intimidade. Tudo


aquilo que costumávamos chamar de interioridade. Em vez das imagens de glamour,
cenas domésticas, pessoais: restos de café da manhã numa mesa, sapatos
desalinhados num canto do quarto, fotos e livros sobre uma escrivaninha... Imagens
marcadas por um olhar muito pessoal, onde tudo remete a alguém ou a um momento
particular.
Contar uma história simples e verdadeira. “As mulheres me diziam, ‘seja simples’, mas
é tão difícil.” Ter por ponto de partida não as imagens, mas as emoções. Não se trata
de reencontrar uma pureza perdida, que só existe como citação. A inocência hoje
não tem qualquer traço de ingenuidade, é alcançada por aqueles que atravessam o
deserto da solidão e do sofrimento. Daí o tom ligeiramente não contemporâneo deste
filme, voltado para sentimentos e coisas em desaparição. Numa época em que as
imagens pareciam ter perdido definitivamente toda inocência, surge um olhar
tomado de frescor e encantamento. Capaz de olhar nos olhos. O cinema tem de se
afastar um pouco da sua atualidade, carregada de referências, para se encontrar
como vida e emoção.
Nelson Brissac Peixoto

9. LENDA AFRICANA1

BATA NA CABEÇA,
QUE COISA FEIA,
EU VOU ROLAR,
EM CIMA DE VOCÊ!!!!!!!!!!!
Há muito tempo numa aldeia da África havia um povo chamado OBI.
Nesse povo havia um menino muito esperto que gostava de andar pelas montanhas que
cercavam a vila.
Um dia esse menino estava passeando pela montanha mais alta lá perto e ele viu uma
abóbora FIBA pequenininha e verde. Esse menino continuou andando sempre por essa
montanha e a cada dia a abóbora ficava maior e maior. Um dia ele percebeu que a

1
Contada por Jamie Olivero, no evento Boca do Céu, realizado no SESC PINHEIROS, São Paulo/SP,
Maio/2006.

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A arte de contar histórias e compartilhar memórias

abóbora estava ficando amarelinha e depois de alguns dias ele viu que a abóbora tinha
ficado laranja.
A abóbora continuava crescendo e crescendo e então esse menino teve uma idéia:
- Vou levar essa abóbora para a minha mãe fazer Bolo de Abóbora, Pão de
Abóbora, Bolachinha de Abóbora, suco de Abóbora, Torta de Abóbora – uhmm
que delícia.
O menino foi checar se a abóbora estava madura – batendo na cabeça dela. Mas a
Abóbora FIBA era muito esperta e antes que o menino a desprendesse da terra ela se
soltou e começou a persegui-lo cantando:
Bata na cabeça
Que coisa feia
Eu vou rolar
Em cima de você !!!!!
O menino saiu correndo para não ser atropelado pela abóbora.
Ele começou a descer a montanha e gritou assim para as árvores que estava embaixo:
- Árvores, Árvores, por favor, se afastem – a abóbora FIBA quer me pegar.
As árvores vendo que o menino estava realmente com medo e que ele era um menino
educado, afinal de contas tinha pedido POR FAVOR resolveram se afastar para dar
passagem para o menino – elas abriram o caminho e depois voltaram para onde estavam
– assim poderiam parar a abóbora.
Mas vocês sabem o que aconteceu ?
A Abóbora FIBA passou pelas árvores e elas viraram palitinhos de dentes – tão forte
que era a abóbora.
O menino ficou muito preocupado e então lembrou que a tia dele morava lá pertinho – e
ele foi correndo para a casa da tia com a abóbora cantando atrás dele:
Bata na cabeça
Que coisa feia
Eu vou rolar
Em cima de você !!!!!
Ele falou:
- Tia, tia , POR FAVOR abra a porta que a abóbora FIBA quer me pegar !

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A arte de contar histórias e compartilhar memórias

A tia viu que era o seu sobrinho e que ele era muito educado – abriu a porta para ele
entrar e logo fechou mas a abóbora FIBA logo passou pela casa e não sobrou nem um
pedacinho da casa. E ela vinha sempre cantando:
Bata na cabeça
Que coisa feia
Eu vou rolar
Em cima de você !!!!!
O menino estava apavorado e continuou correndo. Logo ele estava chegando num
chiqueiro e pediu para os porcos:
- Seu Porco, POR FAVOR deixa eu passar – a abóbora FIBA está atrás de mim
!!!!!
Os porcos viram que o menino era muito educado e bonzinho e resolveram ajudá-lo
abrindo passagem só para o menino e disseram que iam parar a abóbora FIBA.
Mas vocês imaginam o que aconteceu ???? A abóbora era tão forte, tão forte que depois
que ela passou só ficou bacon por todos os lados !
O menino estava desesperado – e a abóbora vinha atrás dele cantando:
Bata na cabeça
Que coisa feia
Eu vou rolar
Em cima de você !!!!!
Logo o menino viu um bando de vacas e falou:
- Dona Vaca, POR FAVOR me ajude, a abóbora FIBA está atrás de mim e quer
me pegar.
As vacas perceberam que o menino era muito educado e decidiram ajudá-lo:
Falaram assim:
- Menino, você fica atrás da gente que nós vamos protegê-lo. Não se preocupe.
E então as vacas ficaram todas juntinhas e abaixaram a cabeça.....
Logo, logo elas escutaram a abóbora cada vez mais perto. E ela estava cantando:
Bata na cabeça
Que coisa feia
Eu vou rolar
Em cima de você !!!!!

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A arte de contar histórias e compartilhar memórias

As vacas ficaram quietinhas e com as cabeças abaixadas, mas quando a abóbora passou
elas levantaram os chifres e...... lançaram a abóbora para o céu. E como a abóbora
estava vindo muito, muito rápido ela subiu muito, muito alto e vocês sabem o que
aconteceu ?
Ela se dividiu em dois pedaços:
Um maior que virou o SOL,
Um menor que virou a LUA e
As sementes que viraram as ESTRELAS que hoje vemos no céu.

10. FOLCLORE

O folclore faz parte da cultura geral. Não se pode admitir, mesmo no homem comum, o
desconhecimento do folclore. É uma espécie de humanismo pré-escolar... Uma criatura
que não sabe canções de roda, adivinhações, brinquedos, histórias, parlendas, não teve
infância, está mutilada, não pode ser feliz, não pode educar seus filhos, não entende
nada de si nem dos seus conterrâneos, nem do homem em lugar nenhum do mundo...

Cecília Meirelles

11. DISCUTINDO O GOSTO2

Passemos então diretamente a esse assunto, já com uma indagação preliminar e de


substancial importância: o que é o gosto? A pergunta permite respostas que vão, desde o
sentido pelo qual se percebe o sabor das coisas, passando pelo conceito de prazer,
satisfação, simpatia, opinião, critério, moda, etc. Nenhum desses elementos, no entanto,
serve para pensar no gosto como categoria estética, que é o principal objetivo deste
livro.
Embora com algumas imperfeições (quase sempre as definições deixam lacunas), o
Novo Dicionário da Língua Portuguesa​, de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira,
apresenta um conceito de gosto, no mínimo, intrigante e polêmico. Senão vejamos: diz o
autor que o gosto é a “faculdade de julgar os valores estéticos segundo critérios

2
CALDAS, Waldenyr.​ Uma utopia do gosto.​ São Paulo: Brasiliense, 1988.

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A arte de contar histórias e compartilhar memórias

subjetivos, sem levar em conta normas preestabelecidas”. Assim, por exemplo,


expressões como “gosto requintado”, “falta de gosto”,
“mau gosto”, kitsch, “cafona”, “brega”, etc. seriam apenas conceitos subjetivos dotados
até mesmo de um certo maniqueísmo que apenas classifica mas nada explica.
Ao mesmo tempo, não há como negar que realmente, quando julgamos o gosto, quase
sempre lançamos mão de valores estéticos inerentes ao nosso universo cultural e social.
Isso significa dizer, noutras palavras, o seguinte: sempre que fazemos uma apreciação
estética do gosto utilizamos, para tanto, o universo de informações, valores e normas
que traduzem através da nossa ação social todo o pensamento e a lógica da classe a que
pertencemos. Essa constatação invalida de certa forma uma análise profunda e criteriosa
da estética do gosto.
Não porque seja impossível nossa imparcialidade nessa discussão. Mas simplesmente
pelo fato de não abdicarmos do nosso juízo de valores, do universo cultural a que
pertencemos, da própria lógica interna da classe. Assim, a discussão seria feita sob a
ótica de determinadas categorias inerentes à classe social do analista. Visto desse modo,
tudo indica que a tentativa de se realizar uma análise científica do gosto fica bastante
difícil. O fato, por exemplo, de o gosto estar exposto a várias facetas de uma mesma
questão, ou até mesmo de diversas questões, não é suficiente para explicar a existência
de uma interpretação lógica e objetiva do gosto. Até porque, para que se pense numa
“explicação racional” do gosto, é prudente ao mesmo tempo que aceitemos com
pré-requisito alguns conceitos do tipo posição social, diferença de comportamento entre
gerações, a distinção conveniente feita entre pessoas “cultas” e “incultas”, entre outras.
Mas, ao mesmo tempo que procedemos dessa forma, estamos reconhecendo a existência
de uma estratificação do gosto. Ocorre que, ao reconhecermos essa estratificação,
estamos também admitindo ser o gosto, antes de mais nada, uma questão de classe
social. Assim, aceitando a estratificação do gosto como verdadeira, já podemos dizer em
seguida que existem, isto sim, níveis de gosto, do mesmo modo que existem níveis de
cultura, uma vez que cada classe social possui sua própria cultura. É fora de dúvida (a
Sociologia da Cultura já tratou dessa questão exaustivamente) que a classe proletária
possui um universo cultural diferente daquele encontrado entre a classe burguesa.
Não se trata de universos antagônicos, como bem já demonstraram Leon Trotski em
Literatura e Revolução e Antonio Gramsci em ​Literatura e Vida Nacional​, ao

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A arte de contar histórias e compartilhar memórias

analisarem a importância da cultura burguesa. Trata-se apenas de duas culturas


diferentes, mas ao mesmo tempo influenciando-se mutuamente. Noutras palavras, quero
dizer o seguinte: alguns valores culturais da burguesia passam, num certo momento, a
ser absorvidos pelo proletariado. A recíproca é verdadeira. É bem verdade que, quase
sempre, de forma caricata ou ​kitsch​.
Nesse caso a afirmação é mais válida quando o proletariado absorve valores da cultura
burguesa. Essa questão, aliás, se tornou uma prática quase rotineira com o advento da
chamada sociedade de massa. Mas quero antes disso voltar um pouco atrás no tempo e
discutir, ainda que de passagem, a influência de alguns valores culturais que precedem a
moderna sociedade de massa. Um deles é o desejo de ascensão social.
A Revolução Industrial, nós sabemos, é um marco divisório na História da Civilização.
Antes dela vivíamos a Idade Moderna, depois dela vivemos a Idade Contemporânea.
Entre tantos motivos que justificam essa afirmação (não carece mencioná-los) está o
surgimento, de um lado, da classe burguesa, dona do capital, dos meios de produção,
disposta a investir sua riqueza na produção dos mais variados produtos com o objetivo
precípuo, como era de se esperar, de multiplicar sempre que possível e cada vez mais
seu capital. De outro lado, surgia a classe proletária, formada por um contingente
economicamente pobre vindo do interior e das regiões rurais, disposto a vender sua
força de trabalho em troca, inicialmente, de 14 horas diárias de trabalho e um salário. E
assim, em síntese, se consolidaria o capitalismo industrial e com ele as classes burguesa
e proletária.
Ao mesmo tempo, à medida que se desenvolvia, que evoluía essa consolidação,
aumentavam as diferenças econômicas, sociais e culturais entre proletariado e
burguesia. No bojo desse processo alguns valores da cultura burguesa despontavam,
fornecendo o modelo cultural, pelo menos para a classe proletária. O sistema de ensino,
o consumo, o cristianismo e a ideologia da ascensão social são alguns valores da
burguesia que chegariam até o proletariado. Vejamos como se traduz o desejo de
ascensão social e suas implicações na estética do gosto.
É fácil entender, por exemplo, que o estilo de vida da burguesia iria fascinar, pelo
menos, grande parte do proletariado. O conforto, um tempo livre para o lazer, as letras,
as artes, a ciência, enfim, todo um conjunto de valores, produtos e instituições até então
só acessíveis à burguesia passariam a ser forte e insistentemente desejados pelo

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A arte de contar histórias e compartilhar memórias

proletariado. E a única forma possível de desfrutar dessas regalias, dos privilégios


advindos do investimento do capital seria através da ascensão econômica e social. Isso,
é claro, o proletariado não podia fazer.
Em primeiro lugar, porque não tinha o capital para investir nem na reprodução do
próprio capital, nem nas artes, na ciência, na cultura, na moda e no lazer. Este último
item, aliás, era ainda agravado pela falta de tempo, uma vez que, como já disse
anteriormente, ele trabalhava nada menos que 14 horas.
Em segundo lugar, há que se registrar um aspecto importante: no início da Revolução
Industrial, ou seja, por volta de 1770-1780 (os historiadores consideram que a primeira
Revolução Industrial vai de 1760 a 1860), os operários recebiam modestos salários,
insuficientes, em alguns casos, até para equilibrar o orçamento doméstico. Certamente
já nessa época havia as exceções. E uma delas, sem dúvida, era a profissão de tecelão,
um profissional bem pago, muito mais pela escassez dessa especialidade do que pelo
reconhecimento da sua importância como trabalhador que gera riqueza.
Acontece que, com a invenção da máquina de fiar na Inglaterra, por James Hargreaves,
em 1767, essa profissão surgia por uma necessidade premente. No início, portanto, os
tecelões viveram seus dias de glória. O historiador Edward McNall Burns, em seu livro
História da Civilização Ocidental​, nos dá uma noção tão pitoresca quanto precisa do
tecelão dessa época. Diz ele: “Os que se dedicavam a essa profissão podiam exigir
salários tão altos que, ao que se dizia, costumavam pavonear-se nas ruas com notas de
cinco libras enfiadas na fita do chapéu e almoçavam ganso assado aos domingos”. Os
tecelões, como se vê pelas palavras de Burns, eram uma exceção. Alguns profissionais
operários chegaram realmente a ascender aos estratos da classe média. Além,
evidentemente, dos tecelões, devemos ainda destacar os ​mechanics (oficiais mecânicos)
e os ​sansculottes​ (pequenos artífices que se tornavam operários qualificados).
Colocados esses exemplos e um panorama muito rápido do comportamento econômico
do operário no início da Revolução Industrial, quero agora mostrar seu comportamento
diante dessa mudança no tocante à estética do gosto. Antes disso, porém, devo registrar
algumas informações básicas que mudariam, ainda em plena Revolução Industrial, não
só o conceito subjetivo do belo, mas ainda todo um conceito implícito de uma estética
do gosto que envolvia abundância, boa aparência, pele bem-tratada, gestualidade
delicada, repertório compatível com a nova posição social, um certo ar de austeridade

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A arte de contar histórias e compartilhar memórias

acompanhado ainda de um certo “tom” solene nas relações sociais, a freqüência social a
novos ambientes, enfim, um variado número de características inerentes à cultura da
classe burguesa. Se por um lado a arte renascentista criou um padrão de beleza segundo
o qual a robustez masculina e feminina significavam um conceito aprimorado de belo
(veja-se, por exemplo, as obras de Leonardo Da Vinci, Rafael e Michelangelo), no
início da Revolução Industrial apareceria numa nova estética, em face das
transformações, criando entre outras coisas um novo padrão de beleza e uma “nova”
estética do gosto. O processo se deu da seguinte forma: a burguesia emergente, do
mesmo modo como anteriormente a aristocracia, passaria a investir na sua aparência
pessoal, procurando manter seu corpo sempre bonito e jovial. A boa aparência e a pele
bem-tratada eram sinônimos de boa posição social e de abundância econômica. A
gestualidade comedida, leve e delicada passavam ao espectador a impressão de uma
pessoa de fino trato que atingiu comportamentos suficientemente refinados para ser
reconhecida como uma lady ou um sir.
O repertório, por sua vez, deveria estar sempre à altura da elegância gestual e da posição
social que a pessoa ostentava. A austeridade, a formalidade nas relações sociais e a
freqüência aos lugares e ambientes mais elegantes completavam o quadro e o tipo ideal
de uma pessoa reconhecidamente de bom gosto. Portanto, vale a pena atentarmos para
um aspecto de extrema importância que atravessou o tempo e permanece vivo até os
nossos dias: a idéia de bom gosto, de gosto refinado está intimamente associada ao
poder econômico de tal modo, que um operário do início da Revolução Industrial, tanto
quanto um operário da nossa época, dificilmente poderia ser visto como uma pessoa de
bom gosto. Eu cito operário apenas como exemplo, mas é claro que este critério é
extensivo a todas as pessoas que, pelos mais variados e diversos motivos, pertencem às
categorias sociais mais modestas da sociedade.
Quero aqui retomar a seguinte questão: a idéia de que o bom gosto está diretamente
associado ao poder econômico. Interessante observar, por exemplo, que quase todas as
pessoas cultas e intelectualizadas se consideram de bom gosto, de gosto refinado, e
sempre recebem o beneplácito, a concordância da grande maioria das pessoas. Ocorre
também que essa pessoa culta e intelectualizada quase sempre também pertence aos
estratos da alta classe média ou mesmo da alta burguesia. Ler, por exemplo, Franz
Kafka, James Joyce, Baudelaire e Thomas Mann e ouvir Bach, Liszt, Beethoven,

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A arte de contar histórias e compartilhar memórias

Brahms, etc. é considerado uma opção de bom gosto. Ao mesmo tempo, ler Eugène
Sue, ​Os Mistérios de Paris​; Conan Doyle, ​As Aventuras de Sherlock Holmes;​ Emily
Bronte, ​O Morro dos Ventos Uivantes;​ Alexandre Dumas, ​O Corcunda de Notre Dame​,
e ouvir o cantochão gregoriano, música sertaneja e Charles Aznavour é considerado,
senão por opção de mau gosto, seguramente de gosto duvidoso. Eu, a bem da verdade,
acho que os intelectuais consideram uma opção de mau gosto. Aqui cabe uma pergunta:
quais critérios, regras e métodos foram usados para se estabelecer essa dicotomia do
bom e do mau gosto? Mais adiante eu discuto essa questão num capítulo específico.
Quero retomar uma questão proposta anteriormente. Eu disse que tanto a burguesia
quanto o proletariado possuem uma cultura própria e que alguns valores culturais de
ambas as classes podem ser, num certo momento, assimilados por uma ou outra classe.
Pois bem, essa teoria é verdadeira, tem respaldo científico e já foi demonstrada por
inúmeros antropólogos clássicos como Radclif Brown; Melville J. Herskovits, ​Man and
His Works​; Ralph Linton, ​The Study of Man​; mais recentemente por Cliford Geertz, ​As
interpretações da Cultura,​ e pelo magnífico trabalho de Alfred Weber intitulado
História Sociológica da Cultura​. É justamente baseado nessa perspectiva teórica da
antropologia cultural que eu quero analisar duas questões, a meu ver fundamentais, para
continuarmos discutindo a utopia do gosto.
A primeira é a seguinte: o poder político e o poder econômico, desde as civilizações
clássicas como Grécia e Roma, por exemplo, sempre reservaram a suntuosidade e a
abundância material aos grupos dominantes da sociedade – nessa época ainda não
podemos falar propriamente em classes sociais. Nesse patrimônio estavam incluídas a
arte erudita, a grande literatura, a ciência, entre outras instituições que continuam sendo
monopólio da classe dominante. A favor dessas instituições estavam, além dos grupos
dominantes, o carisma do capital, que não só causava admiração, como permitia um
estilo de vida desejado (como nos nossos dias) por toda a sociedade.
A segunda questão é um complemento da primeira e trata do seguinte: esse certo
maniqueísmo que estabelece o “mau gosto” e o “bom gosto” tem, a meu ver, suas
origens na diferença de um certo patrimônio (obras, produtos, objetos, etc.) adquirido
pela alta burguesia e pelo proletariado. Aliás, a rigor, a gênese de toda essa questão não
está nem na burguesia surgida a partir da Revolução Industrial. Ela apenas absorveu e
reproduziu valores culturais e comportamentos estéticos da nobreza. Portanto, é uma

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A arte de contar histórias e compartilhar memórias

questão, um fenômeno histórico-social anterior à Revolução Industrial. A burguesia, a


bem da verdade, o que fez foi projetar para o futuro e ao longo da História da Cultura a
idéia de refinamento, de elegância, de gestualidade moderada, leve e delicada da
nobreza, enfim, aqueles valores já mencionados. Assim, portanto, surgiria o
maniqueísmo do gosto. Tudo o que fosse consumido ou prestigiado pela nobreza
inicialmente, e depois pela burguesia, seria considerado produto, objeto de bom gosto.
A recíproca nesse caso não é verdadeira. Tudo aquilo consumido ou de alguma forma
prestigiado pelo proletariado seria, no mínimo, considerado de gosto estético duvidoso
ou, em alguns casos, realmente de mau gosto.
Nessa época, a ideologia da ascensão social ganhava ainda mais força. A burguesia
industrial emergente ganhava ares de nobreza, como já vimos, pelo desejo de
semelhança. Mas isso apenas na aparência. O proletariado, por sua vez, também
desejava a ascensão social. Assim, ele passaria a absorver alguns valores culturais e
morais da burguesia. Mas também, apenas na aparência, na superfície. Ele não tinha,
como não tem até hoje, condições sócio-econômicas para assimilar efetivamente o
modus vivendi da burguesia. Já não era o caso desta classe, por exemplo, que surgia
forte, entre outras coisas, em função de uma nobreza visivelmente decadente. Tanto é
assim, que ainda em pleno século XVIII (1789) a burguesia francesa, apoiada por
alguns segmentos da classe média, faz a Revolução e assume definitivamente o poder.
Aqui cabe uma pergunta inclusive de cunho pedagógico: quais as alternativas do
proletariado que, desejoso de seguir o gosto estético (todas aquelas atribuições já
mencionadas) da burguesia, via-se economicamente impossibilitado de fazê-lo? Há três
respostas para a mesma pergunta. Para alguns restava a resignação determinada, é claro,
por uma imposição econômica. Para outros, a opção era o arremedo, a imitação, aquilo
que com o advento da sociedade de massa os estudiosos passariam a chamar de ​kitsch.​
Para outros ainda havia a alternativa pura e simples de não desejar essa identidade
cultural com a burguesia, ou seja: assumir seus valores, sua condição de classe e viver a
estética e o próprio estilo de vida do proletário. Interessante notar que o comportamento
dessa determinada parcela do proletariado vai de certo modo de encontro, contradizer a
teoria de Arno Mayer em seu livro ​A Força da Tradição e se converter, no mínimo,
numa exceção.

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A arte de contar histórias e compartilhar memórias

De acordo com o autor (não se trata propriamente de uma tese original), há uma lei
determinada pelo próprio processo histórico, segundo o qual a tradição cultural estaria
acima da divisão de classes, ou seja, da própria estratificação da sociedade. Assim,
determinadas instituições culturais atravessariam o tempo resistindo às transformações
políticas, econômicas e sociais, permanecendo até nossos dias. Claro, nesse aspecto não
há o que contestar. Até porque a Antropologia já analisou exaustivamente essa questão.
Este, aliás, é um aspecto muito importante na formação do gosto estético da sociedade
como um todo. Os antropólogos chamam-no de interpenetração cultural. Cito um
exemplo: como já sabemos, desde a Revolução Industrial na Inglaterra a burguesia
liberal fornece o modelo cultural para a as classes proletárias.

12. A OPINIÃO E O ESTEREÓTIPO


O nosso círculo de experiência é limitado. O nosso espaço vivido no mundo é pequeno.
Embora tenhamos a ilusão de participar intensamente desse mundo único que encerra os
seres viventes, conhecemos, na verdade, um reduzido espaço dentro dele, e um caminho
familiar pelo qual nos guiamos e onde repetimos nossos passos, entre a infinidade de
caminhos oferecida a outros seres.
Se a nossa atividade essencial como sujeitos é ação e percepção, nós a exercemos dentro
de um espaço de vida que nos rodeia como uma bolha de sabão e onde encontramos
nosso significado biológico e existencial.
Conhecemos algumas pessoas, algumas coisas, alguns pedaços de paisagens, de ruas,
alguns livros. Presenciamos alguns fatos, mas não presenciamos a maior parte dos fatos
os quais conversamos. Confiamos, porém, nas pessoas que viveram e presenciaram
esses fatos, e o pensamento e o discurso quotidiano se alimentam dessa confiança
social.
Além disso, sabemos que transfiguramos uma cena por nós assistida, e ela sofre uma
distorção causada pelo ponto de vista. Como se a nossa percepção das coisas fosse, mais
do que uma recepção, uma construção, uma tarefa sobre o mundo.
Quando entramos em um ambiente novo, de estimulação complexa, passamos por
instantes de atordoamento. Tudo é uma mancha confusa que hostiliza os sentidos. Aos
poucos, as coisas se destacam desse borrão e começam a nos entregar o seu significado,

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A arte de contar histórias e compartilhar memórias

à medida da nossa atenção. É o trabalho perceptivo, que colhe as determinações do real,


as quais se tornam estáveis para o nosso reconhecimento, durante algum tempo.
Essa colheita perceptiva, relação de trabalho e de escolha entre o sujeito e o seu objeto,
pode sofrer um processo de facilitação e de inércia. Isto é, colhem-se aspectos do real já
recortados e confeccionados pela cultura. O processo de estereotipia se apodera da
nossa vida mental.
Nem sempre estamos dispostos à aventura da percepção: somos insensíveis e desatentos
às coisas que povoam nosso mundo e, por isso, sofremos de uma perda, de um
empobrecimento que nos faz capitular e enxergar através de mediações impostas.
Castigo que sofremos à medida que não sentimos nem exercemos simpatia pelas coisas.
A simpatia, que é uma afinidade pré-categorial do sujeito com o seu objeto, traz em si já
uma intuição de ordem superior, que começa com a negação do óbvio e do já visto.
Ela pode se formar através de um trabalho sobre o mundo, de uma negação do dado
imediato, que recebe sua recompensa quando já não descrevemos nem classificamos,
mas habitamos as coisas do mundo.
Charles Dickens fala, através de David Copperfield, quando este recorda os primeiros
anos de sua infância:
“Creio que a memória da maioria dos homens guarda estampada os dias da meninice
mais do que geralmente se acredita, assim como creio na faculdade de observação,
sempre muito desenvolvida e exata, das crianças. Os homens feitos, que se
notabilizaram por causa dessa faculdade, nada mais fizeram se não conservá-la, em vez
de adquiri-la na sua madureza; e o que poderá prová-lo é que esses homens têm frescor,
vivacidade e serenidade, além da grande capacidade de agradar, dons que são também
uma herança da infância.”
Reconquistar o que se perdeu é muito difícil: difícil é o caminho da volta às coisas, de
volta ao mundo da vida pré-categorial e pré-reflexiva, para reencontrar os fenômenos
face a face. Esse caminho pede um alto grau de tomada de consciência da vida em si
que começa na recusa do estabelecido, na suspensão da validade mundana.

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A arte de contar histórias e compartilhar memórias

13. BACHELARD: PEDAGOGIA DA RAZÃO, PEDAGOGIA DA


IMAGINAÇÃO3

Bachelard vai mostrar que existem dois tipos de imaginação: a imaginação formal e a
imaginação material. A primeira conduz à geometrização e se fundamenta na visão e na
contemplação do mundo, permanecendo, assim, nas arestas exteriores do objeto. A
imaginação material, ao contrário, instaura uma psicologia do contra, impondo-se como
um convite ao domínio sobre a intimidade mesma da matéria. Recuperando o mundo
como resistência, a imaginação material funciona como acelerador do psiquismo,
provocando um fluxo ininterrupto de imagens sempre novas.
Esta disposição se fundamenta na crítica ao vício de ocularidade que aparece de forma
esparsa ao longo da obra bachelardiana. O ocularismo é, segundo Bachelard, uma
atitude ocularista.
Para Bachelard, a verdadeira imaginação é a imaginação material, pois enquanto a
imaginação formal é puramente contemplativa e opera a partir de um distanciamento do
mundo, a imaginação material, ao contrário, resulta de um corpo-a-corpo com a
materialidade do mundo, tornando-se, assim, dinâmica e transformadora.

14. A POÉTICA DO DEVANEIO4

Quando, na solidão, sonhando mais longamente, vamos para longe do presente reviver
os tempos da primeira vida, vários rostos de criança vêm ao nosso encontro. Fomos
muitos na vida ensaiada, na nossa vida primitiva. Somente pela narração dos outros é
que conhecemos a nossa unidade. No fio de nossa história contada pelos outros,
acabamos, ano após ano, por parecer-nos com nós mesmos. Reunimos todos os nossos
seres em torno da unidade de nosso nome.
Mas o devaneio não conta histórias. Ou, pelo menos, há devaneios tão profundos,
devaneios que nos ajudam a descer tão profundamente em nós mesmos que nos
desembaraçam da nossa história. Libertam-nos do nosso nome. Devolvem-nos, essas

3
BARBOSA e BULCÃO, Elyana e Marly. Bachelard: pedagogia da razão, pedagogia da imaginação.
Petrópolis: Vozes, 2004.
4
BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. Trad. Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins
Fontes, 1988. págs. 93 e 94.

43
A arte de contar histórias e compartilhar memórias

solidões de hoje, às solidões primeiras. Essas solidões primeiras, essas solidões de


criança, deixam em certas almas marcas indeléveis. Toda a vida é sensibilizada para o
devaneio poético, para um devaneio que sabe o preço da solidão. A infância conhece a
infelicidade pelos homens. Na solidão a criança pode acalmar seus sofrimentos. Ali ela
se sente filha do cosmos, quando o mundo humano lhe deixa a paz. E é assim que nas
suas solidões, desde que se torna dona de seus devaneios, a criança conhece a ventura
de sonhar, que será mais tarde a ventura dos poetas. Como não sentir que há
comunicação entre a nossa solidão de sonhador e as solidões da infância? E não é à toa
que, num devaneio tranqüilo, seguimos muitas vezes a inclinação que nos restitui às
nossas solidões de infância.
Deixemos então à psicanálise o cuidado de curar as infâncias maltratadas, os pueris
sofrimentos de uma ​infância endurecida que oprime a psique de tantos adultos. Está
aberta a uma poético-análise uma tarefa que nos ajudaria a reconstituir em nós o ser das
solidões libertadoras. A poético-análise deve devolver-nos todos os privilégios da
imaginação. A memória é um campo de ruínas psicológicas, um amontoado de
recordações. Toda a nossa infância está por ser reimaginada. Ao reimaginá-la, temos a
possibilidade de reencontrá-la na própria vida dos nossos devaneios de criança solitária.

15. A POÉTICA DO ESPAÇO5

Aqui, com efeito, abordamos uma recíproca cujas imagens deveremos explorar: todo
espaço realmente habitado traz a essência da noção da casa. Veremos, no decorrer de
nossa obra, como a imaginação trabalha nesse sentido quando o ser encontrou o menor
abrigo: veremos a imaginação construir “paredes” com sombras impalpáveis,
reconfortar-se com ilusões de proteção – ou, inversamente, tremer atrás de grossos
muros, duvidar das mais sólidas muralhas. Em suma, na mais interminável das
dialéticas, o ser abrigado sensibiliza os limites do seu abrigo. Vive a casa em sua
realidade e em sua virtualidade, através do pensamento e dos sonhos.
Por conseguinte, todos os abrigos, todos os refúgios , todos os aposentos têm valores
oníricos consoantes. Já não é em sua positividade que a casa é verdadeiramente

5
BACHELARD, Gaston. ​A poética do espaço. trad. Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins
Fontes, 1993. p. 23.

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A arte de contar histórias e compartilhar memórias

“vivida”, não é somente no momento presente que reconhecemos os seus benefícios. Os


verdadeiros bem-estares têm um passado. Todo um passado vem viver, pelo sonho,
numa casa nova. A velha locução: “Levamos par a casa nova nossos deuses domésticos”
tem mil variantes. E o devaneio se aprofunda de tal modo que, para o sonhador do lar,
um âmbito imemorial se abre para além da mais antiga memória. A casa, como o fogo,
como a água, nos permitirá evocar, na seqüência de nossa obra, luzes fugidias de
devaneio que iluminam a síntese do imemorial com a lembrança. Nessa região
longínqua, memória e imaginação não se deixa dissociar. Ambas trabalham para seu
aprofundamento mútuo. Ambas constituem, na ordem dos valores, uma união da
lembrança com a imagem. Assim, a casa não vive somente no dia-a-dia, no curso de
uma história, na narrativa de nossa história. Pelos sonhos, as diversas moradas de nossa
vida se interpenetram e guardam os tesouros dos dias antigos. Quando, na nova casa,
retornam lembranças das antigas moradas, transportamo-nos ao país da Infância Imóvel,
imóvel como o imemorial. Vivemos fixações, fixações de felicidade (não será
necessário dar à “fixação” suas virtudes, deixando de lado a literatura psicanalítica, que
deve, por sua função terapêutica, registrar sobretudo processos de desfixação?).
Reconfortamo-nos ao reviver lembranças de proteção. Algo fechado deve guardar as
lembranças, conservando-lhes seus valores de imagens. As lembranças do mundo
exterior nunca hão de ter a mesma tonalidade das lembranças da casa. Evocando as
lembranças da casa, adicionamos valores de sonho. Nunca somos verdadeiros
historiadores; somos sempre um pouco poetas, e nossa emoção talvez não expresse mais
que a poesia perdida.
Assim, abordando as imagens da casa com o cuidado de não romper a solidariedade
entre a memória e a imaginação, podemos esperar transmitir toda a elasticidade
psicológica de uma imagem que nos comove em graus de profundidade insuspeitados.
Pelos poemas, talvez mais que pelas lembranças, chegamos ao fundo poético do espaço
da casa.

16. METÁFORA6

6
GASSET, José Ortega y. A idéia de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 1991. págs. 37 e 38.

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A arte de contar histórias e compartilhar memórias

Talvez vocês recordem o delicioso conto de Wells que se intitula “O homem que podia
fazer milagres”. De noite, numa taberna de Londres, dois homens quaisquer, já afetados
pelos pesados vapores da cerveja, discutem fastidiosamente sobre se há ou não milagres.
Um crê neles, o outro não. E em certo instante o incrédulo exclama: “Isso é como se eu
dissesse agora que esta luz se apague e a luz se apagasse!”; e eis que uma vez
pronunciadas estas palavras, a luz, efetivamente, se apaga. E desde aquele momento
tudo o que aquele homem diz ou simplesmente pensa, mesmo sem querer dizê-lo
formalmente, acontece, se realiza. A série de aventuras e conflitos que este poder, tão
mágico como involuntário, lhe proporciona constitui a matéria do conto. Por fim um
agente da Polícia o persegue tão de perto que o pobre homem pensa: “Por que não se vai
ao diabo este policia!”. E, com efeito, o polícia se vai ao diabo.
Mas suponham vocês que algo parecido acontecesse ao humilde apaixonado cuja
imaginação não chega a mais do que a dizer da face da donzela amada que é uma rosa –
portanto, que de pronto aquela face se convertesse realmente numa rosa. Que espanto!
Não é certo? O infeliz se angustiaria, ele não havia querido dizer isso, era pura
brincadeira – ser rosa e a face era apenas metafórico; não era um ser no sentido real,
mas um ser no sentido de irreal. Por isso, a expressão mais usada na metáfora emprega o
como e diz: a face é como uma rosa. O ser como não é o ser real, senão um como-ser,
um quase-ser: é irrealidade como tal.
Perfeitamente; mas então, o que é que sucede quando sucede uma metáfora? Pois
sucede isto: há a face real e há a rosa real. Ao metaforizar ou metamorfosear ou
transformar a face em rosa é preciso que a face deixe de ser realmente face e que a rosa
deixe de ser realmente rosa. As duas realidades, ao serem identificadas na metáfora,
chocam-se uma com a outra, se anulam reciprocamente, se neutralizam, se
desmaterializam. A metáfora vem a ser a bomba atômica mental. Os resultados da
aniquilação dessas duas realidades são precisamente essa nova e maravilhosa coisa que
é a irrealidade. Fazendo chocarem-se e anularem-se realidades obtemos
prodigiosamente figuras que não existem em nenhum mundo.

17. SE MARAVILHANDO COM OS CONTOS DE FADAS7

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A arte de contar histórias e compartilhar memórias

Quem lê “Cinderela” não imagina que há registros de que essa história já era contada na
China, durante o século IX d.C. E, assim como tantas outras, tem se perpetuado há
milênios, atravessando todas as geografias, mostrando toda a força e a perenidade do
folclore dos povos.
Por quê? Porque os contos de fadas estão envolvidos no maravilhoso, um universo que
detona a fantasia, partindo sempre duma situação real, concreta, lidando com emoções
que qualquer criança já viveu... Porque se passam num lugar que é apenas esboçado,
fora dos limites do tempo e do espaço, mas onde qualquer um pode caminhar... Porque
as personagens são simples e colocadas em inúmeras situações diferentes, onde têm que
buscar e encontrar uma resposta de importância fundamental, chamando a criança a
percorrer e a achar junto uma resposta de importância fundamental, chamando a criança
a percorrer e a achar junto uma resposta sua para o conflito... Porque todo esse processo
é vivido através da fantasia, do imaginário, com intervenção de entidades fantásticas
(bruxas, fadas, duendes, animais falantes, plantas sábias...).
Ou, como bem explica Vera Teixeira de Aguiar: “Os contos de fadas mantêm uma
estrutura fixa. Partem de um problema vinculado à realidade (como estado de penúria,
carência afetiva, conflito entre mãe e filho), que desequilibra a tranqüilidade inicial. O
desenvolvimento é uma busca de soluções, no plano da fantasia, com a introdução de
elementos mágicos (fadas, bruxas, anões, duendes, gigantes etc.). A restauração da
ordem acontece no desfecho da narrativa, quando há uma volta ao real. Valendo-se
desta estrutura, os autores, de uma lado, demonstram que aceitam o potencial
imaginativo infantil e, de outro, transmitem à criança a idéia de que ela não pode viver
indefinidamente no mundo da fantasia, sendo necessário assumir o real, no momento
certo”.
Por lidar com conteúdos da sabedoria popular, com conteúdos essenciais da condição
humana, é que esses contos de fadas são importantes, perpetuando-se até hoje...
Daí que haver numa história fadinhas atrapalhadas, bruxinhas que são boas ou gigantes
comilões não significa – nem remotamente – que ela seja um conto de fadas... Muito
pelo contrário. Tomar emprestado o nome das personagens-chaves desses contos não
faz com que essas histórias adquiram sua dimensão simbólica... A magia não está no
fato de haver uma fada já anunciada no título, mas na sua forma de ação, de aparição, de
comportamento, de abertura de portas...

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A arte de contar histórias e compartilhar memórias

Acontece igualzinho quando se lêem adaptações, canalizações, suavizações, alterações


etc... Cada elemento dos contos de fadas tem um papel significativo, importantíssimo e,
se for retirado, suprimido ou atenuado, vai impedir que a criança compreenda
integralmente o conto... Por isso se condena tanto o que Walt Disney fez com os contos
de fadas... Ao adocicá-los, pasteurizá-los, ao retirar-lhes os conflitos essenciais, tirou
também toda a sua densidade, significação e revelação... O mesmo vale tantas edições
brasileiras – nada confiáveis -, pois se trata muito mais de uma adaptação ao gosto do
encarregado da tarefa (que não é o autor), do que de uma leitura rica e bela do original...
(não basta conservar o título, se não se mantém a integridade da história).
Se o adulto não tiver condições emocionais para contar a história inteira, com todos os
seus elementos, suas facetas de crueldade, de angústia (que fazem parte da vida, senão
não fariam parte do repertório popular...), então é melhor dar outro livro para a criança
ler... Ou esperar o momento em que ela queira ou necessite dele e que o adulto esteja
preparado para contá-lo... De qualquer modo, ou se respeita a integridade, a inteireza, a
totalidade da narrativa, ou se muda de história... (e isso vale, aliás, como conduta para
qualquer obra literária, produzida em qualquer época, por qualquer autor... Mutilar a
obra alheia, acho que é um dos poucos pecados indesculpáveis...).
Os contos de fadas são tão ricos que têm sido fonte de estudo para psicanalistas,
sociólogos, antropólogos, psicólogos, cada qual dando sua interpretação e se
aprofundando no seu eixo de interesse... Bruno Bettelheim, um de seus estudiosos mais
importantes e fecundos, é quem alerta:
“Explicar para uma criança por que um conto de fadas é tão cativante para ela, destrói,
acima de tudo, o encantamento da história, que depende, em grau considerável, de a
criança não saber absolutamente por que está maravilhada. E ao lado do confisco deste
poder de encantar vai também uma perda do potencial da história em ajudar a criança a
lutar por si só e dominar exclusivamente por si só o problema que fez a história
estimulante para ela. As interpretações adultas, por mais corretas que sejam, roubam da
criança a oportunidade de sentir que ela, por sua própria conta, através de repetidas
audições e de ruminar acerca da história, enfrentou com êxito uma situação difícil. Nós
crescemos, encontramos sentido na vida e segurança em nós mesmos, por termos
entendido ou resolvido problemas pessoais por nossa conta, e não por eles nos terem
sido explicados por outros.”

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A arte de contar histórias e compartilhar memórias

Os autores mais famosos desses contos são citados a seguir:


Perrault​, um erudito e acadêmico francês, é autor de vários livros para adultos,
tornando-se célebre e imortal por seu único volume de contos para crianças. São
histórias recolhidas junto ao povo, respeitando o que tivessem de cruel, de moral própria
e poético. Muitos de seus contos foram também recontados pelos irmãos Grimm, mais
de um século depois, mas com menos qualidade literária. Jesualdo assim fala deles: “Os
contos de Perrault são apenas fragmentos e documentos dessa história poética que todos
os povos possuem, mas que não foi edscrita... Mistura a criação popular à sua
imaginação de escritor, dando detalhes e minúcias reais nos contos encontráveis e
característicos de sua época. São obras-primas”.
Os irmãos Grimm​, Jacob e Wilhelm, foram estudiosos, pesquisadores, que em 1800
viajaram por toda a Alemanha conversando com o povo, levantando suas lendas e sua
linguagem e recolhendo um farto material oral que transcreviam à noite... Não
pretendiam escrever para crianças, tanto que seu primeiro livro não se destinava a elas...
Só em 1815 Wilhelm mostrou alguma preocupação de estilo, usando seu material
fantástico de forma sensível e conservando a ingenuidade popular, a fantasia e o poético
ao escrevê-lo.
Andersen é filho do povo, e seus contos brotam de sua própria infância. Dele diz
Jesualdo: “Nele o maravilhoso é a sua própria alma e seu mundo inteiro, seu mundo
vivo, produto de sua própria vida. É o poeta da infância.”

18. EXPERIÊNCIA

MASSA(diferente).................. COLETIVO_________________INDIVÍDUO

ARQUÉTIPO PROCESSO
DE
INDIVIDUAÇÃO
INCONSCIENTE
COLETIVO

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A arte de contar histórias e compartilhar memórias

IMAGINAÇÃO
CRIADORA
PROCESSO
DE
RUPTURA

19. ESTRUTURA X ESPONTANEIDADE

20. TECENDO A MANHÃ

Um galo sozinho não tece uma manhã:


Ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
E o lance a outro; de um outro galo
Que apanhe o grito que um galo antes
E o lance a outro; e de outros galos
Que com muitos outros galos se cruzem
Os fios de sol de seus gritos de galo,
Para que a manhã, desde uma teia tênue,
Se vá tecendo, entre todos os galos.

E se enconrpando em tela, entre todos,


Se entretendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo tecido tão aéreo.
Que, tecido, se eleva por si: luz, balão.
João Cabral de Melo Neto

21. PARA ALÉM DA CURVA DA ESTRADA

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A arte de contar histórias e compartilhar memórias

Para além da curva da estrada


Talvez haja um poço, e talvez um castelo,
E talvez apenas a continuação da estrada.
Não sei nem pergunto.
Enquanto vou na estrada antes da curva.
Só olho para a estrada antes da curva.
Só olho para a estrada antes da curva,
Porque não posso ver senão a estrada antes da curva.
De nada me serviria estar olhando para outro lado
E para aquilo que não vejo.
Importemo-nos apenas com o lugar onde estamos.
Há beleza bastante em estar aqui e não noutra parte qualquer.
Se há alguém para além da curva da estrada,
Esses que se preocupem com o que há para além da curva da estrada.
Essa é que é a estrada para eles.
Se nós tivermos que chegar lá, quando lá chegarmos saberemos.
Por ora só sabemos que lá não estamos.
Aqui há só a estrada antes da curva, e antes da curva
Há estrada sem curva nenhuma.
Alberto Caeiro

22. DESOBJETO

O menino que era esquerdo viu no meio do quintal um pente. O pente estava próximo
de não ser mais um pente. Estaria mais perto de ser uma folha dentada. Dentada um
tanto que já se havia incluído no chão que nem uma pedra um caramujo um sapo. Era
alguma coisa nova o pente. O chão teria comido logo um pouco de seus dentes.
Camadas de areia e formigas roeram seu organismo. Se é que um pente tem organismo.
O fato é que o pente estava sem costela. Não se poderia mais dizer se aquela coisa fora
um pente ou um leque. As cores a chifre de que fora feito o pente deram lugar a um
esverdeado a musgo. Acho que os bichos do lugar mijavam muito naquele desobjeto. O

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A arte de contar histórias e compartilhar memórias

fato é que o pente perdera a sua personalidade. Estava encostado às raízes de uma
árvore e não servia mais nem para pentear macaco. O menino que era esquerdo e tinha
cacoete pra poeta, justamente ele enxergara o pente naquele estado terminal. E o menino
deu para imaginar que o pente, naquele estado, já estaria incorporado à natureza como
um rio, um osso, um lagarto. Eu acho que às arvores colaboravam na solidão daquele
pente.
Manuel de Barros

22. METODOLOGIA DE ESTUDO DA HISTÓRIA A SER


CONTADA

22.1.Escolha da história
Justificativa pessoal para a escolha da história.
Obs:. Justificativa não deve ser apenas racional, recorrer sobretudo às metáforas, às
imagens que ligam a narrativa à sua experiência pessoal.

22.1.1. Imagem FUNDAMENTAL da história.


Descrever a imagem.
Obs:. Vale lembrar mais uma vez que essa descrição deve seguir um percurso livre, sem
necessariamente recorrer ao pensamento linear cartesiado.

22.2.Divisão em 3 partes, seguindo o percurso aristotélico, em começo, meio e fim.

22.3.Escolha e divisão de imagens para cada parte


3 imagens para o começo;
4 imagens para o meio;
3 imagens par a o fim.

22.4.Cenário.
Descrever os lugares em que se passa a história.

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A arte de contar histórias e compartilhar memórias

22.5.Sonoplastia.
Quais são os sons/músicas que existem manifestos/latentes na história.

22.6.Personagens.
Quais? Quem são? [traço predominante] Como falam? [modulação da voz]
22.7.Introdução da história.
Construir a partir das três imagens sugeridas para a definição de COMEÇO.

22.8.“Desobjetos”
Há necessidade?
Como torna-los extensão do corpo?

22.9.Silêncio nas histórias.


Suspense na história.
Pontuar em cada parte da história a sua existência.

23. SILÊNCIO

Como um silêncio denso e prolongado,


Eu me calo,
Tu não tomas a palavra
Porque foi um longo silêncio...
Tudo não foi mais que silêncio.
O silêncio anterior à batalha, essa vigília de armas, feita da espera do amanhecer, e esse
silêncio que sucede os combates, que se instaura no lugar dos ruídos.
Sim, ele permanece no silêncio, o herói.
Mas também a criança, quando não sabe o que responder, oferece seu silêncio como
resposta.
Todos trabalhavam em silêncio, concentrados em suas tarefas.
Os primeiros passos ressoam claros sobre o betume das primeiras horas da manhã, como
que isolados; destacam-se sobre o silêncio da noite que se esfuma.

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A arte de contar histórias e compartilhar memórias

A vida sustada, dir-se-ia;como que suspensa na respiração contida.


O silêncio dá vida a olhares nunca vistos, a gestos ainda não ousados.
Tudo é eminente; para que um braço que se ergue tenha um sentido, nós o esperamos no
silêncio da expectativa, que dá ao ato que se segue todo seu valor; assim, a palavra é
esperada como necessária ao encontro.
O silêncio afasta também consigo adeuses que nunca se deram.
Em uma solidão que se fecha e encerra, em um silêncio que se acaba... é a partir do
silêncio que nasce a qualidade do gesto e da palavra. É nesse crisol que se preparam os
impulsos e as pulsões que organizam, no espaço interior, os ritmos em urgência de
emergência: ele vai falar? agir? Ele ergueu-se, caminhou, voltou-se, olhou-me por
apenas um instante, um instante suficiente para a compreensão, e continuou seu
caminho.
O silêncio é investido de qualidades muito diferentes, conforme preceda ou suceda uma
ação, um ato, uma palavra. A urgência de uma ação que nos mobiliza inteiramente
requer um silêncio propício a essa ação. A ação o exige. Um alpinista que escala uma
parede não sente necessidade de falar. Uma pequena ação rotineira que não requer
grande concentração, mas uma espécie de automatismo, pode propor a palavra a fim de
facilitar o próprio ato, e para que ele não seja realizado com enfado. As velhas falam ao
tricotarem, e raramente sobre o que estão fazendo.
O silêncio inicial assemelha-se à concentração que deve favorecer a ação subseqüente.
O estádio emudece: o atleta imóvel, concentrado sobre si mesmo, vai tentar o recorde
mundial de salto em altura, cercado por um silêncio espantoso. Silêncio, ação, reação.
As ovações explodem, o vencedor ultrapassou a barra da vitória.
O silêncio depois da ação conduz mais à reflexão, ao recolhimento em si mesmo. Após
ler no mural o resultado dos exames, o estudante reprovado muitas vezes permanece em
um silêncio doloroso, próximo das lágrimas. Ele, que tinha feito tudo para ser aprovado,
está prostrado. Isola-se e não quer ver ninguém.
O silêncio anima o olhar, por si mesmo. Sempre há nele mais um retorno para si do que
uma abertura para o exterior.
O tímido freqüentemente é silencioso: ele olha, mas como se estivesse protegido por si
mesmo.

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A arte de contar histórias e compartilhar memórias

O silêncio sempre se oculta na profundidade, lá onde deve ser procurado por quem
quiser encontrá-lo.
Não há conflito entre a palavra e o silêncio; o silêncio dá à palavra sua profundidade.
Um discurso que ignorasse a qualidade do silêncio não passaria de verborragia.
Gostaríamos de dizer: “Chega! Cala-te! Tua fala não contém o silêncio necessário para
que alcance seu verdadeiro valor.” A emergência do não-dito está lá...”

Jacques Leqoq
24. QUADRINHAS PARA FINALIZAR HISTÓRIAS

O bruxo da corte
Perdeu a memória
Deu três piruetas
Acabou-se a história.

25. JEAN-CLAUDE CARRÈRE

Eu perguntei um dia ao neurologista Oliver Sacks o que, do seu ponto de vista, era um
homem normal. Ele respondeu que um homem normal, talvez, seja aquele que é capaz
de contar sua própria história. Ele sabe de onde vem (tem uma origem, um passado, uma
memória em ordem), sabe onde está (sua identidade) e acredita saber onde vai (ele tem
projetos e a morte, no final). Está, portanto, situado no movimento de um relato, ele é
uma história e pode dizê-la para si mesmo.

26. BIBLIOGRAFIA

​ ão Paulo, 1996. Editora Ática.


MACHADO,​ Ana Maria. ​Quem me dera. S
MACHADO, Ana Maria. ​Menina bonita do laço de fita. São Paulo, 1997. Editora
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FURNARI,​ Eva. ​Adivinhe se puder.​ São Paulo, 1994. Editora Moderna.
FURNARI,​ Eva. ​Pandolfo Bereba.​ São Paulo, 2000. Editora Moderna.
MUNIZ,​ Flávia. ​Rita, não grita!​ São Paulo, 1995. Editora Melhoramentos.

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SARTI, Adilson. ​A menina que vendia bala no trem. Juiz de Fora, 2004. Franco
Editora.
ROCHA, Ruth. ​A menina que aprendeu a voar. Rio de Janeiro, 1998. Editora
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​ ão Paulo, 1995. Quinteto Editorial.
ROCHA,​ Ruth. ​Nicolau tinha uma idéia... S
BELINKY,​ Tatiana. ​Tatu na casca.​ São Paulo, 1991. Editora Moderna.
SOUZA,​ Flávio de. ​Que história é essa?​ São Paulo, 2003. Companhia das Letras.

​ ão Paulo, 2003. Companhia das Letras.


SOUZA,​ Flávio de. ​Que história é essa? 2. S
FILHO, SEVCENKO, SCLIAR, COELHO, COSTA, PRIETO E REY; Otávio
Frias, Nicolau, Moacyr, Marcelo, Mônica Rodrigues da, Heloisa e Marcos. ​Vice-versa
ao contrário.​ São Paulo, 2004. Companhia das Letras.
SCIESZKA, Jon. ​A verdadeira história dos três porquinhos! São Paulo, 2003.
Companhia das Letras.
PESESCHKIAN, Nossrat. ​O mercador e o papagaio. Campinas, SP: 1992. Papirus
Editorial.
LOBATO,​ Monteiro. ​Histórias de Tia Nastácia.​ São Paulo, 1947. Editora Brasiliense.
BENNETT, William J.. ​O Livro das Virtudes. Rio de Janeiro, 1995. Editora Nova
Fronteira.
BENNETT, William J.. ​O Livro das Virtudes II. Rio de Janeiro, 1996. Editora Nova
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PIZA, Carmelina de Toledo. ​Entrou por uma porta saiu por outra quem quiser que
conte outra – Contribuições para a formação do professor-contador de histórias.
Botucatu, SP: 2003. Igral Gráfica e Editora.
MACHADO, ​Regina. ​Acordais – Fundamentos Teórico-poéticos da arte de contar
​ ão Paulo, 2004. Difusão Cultural do Livro.
histórias. S
CAMPBELL, ​Joseph. ​O poder do mito.​ São Paulo, 1990. Editora Palas Athena.
SPOLIN, Viola – Improvisação para o teatro – trad. Ingrid Dormien Koudela, ed.
Perspectiva. SP – 1979.
BOAL, Augusto – 200 Exercícios e Jogos para o ator e o não-ator com vontade de dizer
algo através do teatro. Ed. Civilização Brasileira, RJ – 1983.
RIOS,​ Rosana – Teatro de Bonecos – Ed. Global. SP – 1991.

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BENNET,​ Willian J. – O Livro das Virtudes – Ed. Nova Fronteira, RJ. 1995.
MUNIZ,​ Flávia – Rita, não grita! – Ed. Melhoramentos.
BORGES,​ Rogério – Silvino Silvério, o grande caçador – Ed. FTD.
PENTEADO,​ Maria Heloísa – Lucinha Já-Vou-Indo – Ed. Ática.
MACHADO,​ Ana Maria – Menina bonita do laço de fita – Ed. Ática.
CALVINO,​ Ítalo – Fábulas italianas. São Paulo, Companhia das Letras, 1992.
CASCUDO, Luís da Câmara - Contos tradicionais do Brasil. Rio de Janeiro, Ediouro,
1999.
MALLARMÉ,​ Stéphane – Contos indianos. São Paulo, Experimento, 1994.

MUNDURUKU, Daniel – Meu avô Apolinário: um mergulho no rio da (minha)


Memória. São Paulo, Studio Nobel, 2001.
ROSA,​ João Guimarães – Primeiras estórias. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1988.
TAHAN,​ Malba – minha vida querida. Rio de Janeiro, Getúlio Costa, s.d.

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