Dante - As Traduções Da Divina Comédia

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM

ELIANE APARECIDA ZUCCULIN NUCCI 

DOIS CANTOS DA DIVINA COMMEDIA


EM TRADUÇÕES PARA O PORTUGUÊS

Campinas
2018
ELIANE APARECIDA ZUCCULIN NUCCI

DOIS CANTOS DA DIVINA COMMEDIA


EM TRADUÇÕES PARA O PORTUGUÊS

Dissertação de mestrado apresentada ao


Instituto de Estudos da Linguagem da
Universidade Estadual de Campinas para
obtenção do título de Mestra em Linguística
Aplicada, na Área de Linguagem e
Sociedade

Orientadora: ProfªDrª Maria Viviane do Amaral Veras

Este exemplar corresponde à versão


final da Dissertação defendida pela
aluna Eliane Aparecida Zucculin Nucci
e orientada pela Profa. Dra. Maria
Viviane do Amaral Veras

Campinas
2018
Agência(s) de fomento e nº(s) de processo(s): Não se aplica.
ORCID: http://orcid.org/0000-0002-1072-4163

Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca do Instituto de Estudos da Linguagem
Crisllene Queiroz Custódio - CRB 8/8624

Nucci, Eliane Aparecida Zucculin, 1951-


N883d NucDois cantos da Divina Commedia em traduções para o português / Eliane
Aparecida Zucculin Nucci. – Campinas, SP : [s.n.], 2018.

NucOrientador: Maria Viviane do Amaral Veras.


NucDissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de
Estudos da Linguagem.

Nuc1. Dante Alighieri, 1265-1321. Divina comédia. Inferno - Traduções para o


português. 2. Poesia italiana. 3. Tradução e interpretação. I. Veras, Viviane,
1950-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Estudos da
Linguagem. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Two canti of Divina Commedia in translations to portuguese


Palavras-chave em inglês:
Dante Alighieri, 1265-1321. Divina commedia. Inferno - Translations into portuguese
Italian poetry
Translating and interpreting
Área de concentração: Linguagem e Sociedade
Titulação: Mestra em Linguística Aplicada
Banca examinadora:
Maria Viviane do Amaral Veras [Orientador]
Ana Elvira Luciano Gebara
Érica Luciene Alves de Lima
Data de defesa: 09-03-2018
Programa de Pós-Graduação: Linguística Aplicada

Powered by TCPDF (www.tcpdf.org)


 

BANCA EXAMINADORA:

Maria Viviane do Amaral Veras

Ana Elvira Luciano Gebara

Érica Luciene Alves de Lima

IEL/UNICAMP2018

Ata da defesa, com as respectivas assinaturas dos membros da banca,


encontra-se no SIGA - Sistema de Gestão Acadêmica.
À minha família
AGRADECIMENTOS

Agradeço à minha orientadora, Profª Viviane, a convivência, os conselhos, o


compartilhar da alegria, a sabedoria, o exemplo de dignidade e o amor pelo ensino.
Agradeço aos professores da Pós-Graduação que me ofereceram seu
conhecimento e aos colegas que também muito me ensinaram, em especial à professora e
colega Ana Schäffer.
Agradeço às Professoras Érica Luciene Alves de Lima e Vanessa Chiconeli
Liporaci de Castro pelos conselhos que foram tão valiosos na qualificação, e às Professoras
Ana Elvira Luciano Gebara e Érica Luciene Alves de Lima por fazerem parte da banca de
defesa.
RESUMO

Traduzir e escrever sobre tradução de poesia leva à encruzilhada das escolhas feitas
anteriormente entre a fidelidade possível e a recriação. Para alguns tradutores privilegiados
que são também e talvez, principalmente, poetas, a recriação poética dos textos traduzidos
muitas vezes é o caminho mais interessante. Desde Dante, muitos têm insistido nas
dificuldades quase intransponíveis ou até na impossibilidade da tradução poética. Este
trabalho se propõe a comparar algumas traduções da Commedia para o Português, focando
especificamente traduções do Canto XXV do Inferno, no caso dos tradutores mais
tradicionais, e do Canto I do Inferno, traduzido por Augusto de Campos. Pesquisamos
traduções da Commedia realizadas em um período que se estendeu de meados do século XIX
até o fim do século XX, desde as traduções completas de autoria de Xavier Pinheiro, João
Trentino Ziller, Cristiano Martins e Italo Eugenio Mauro, até as traduções parciais de
Machado de Assis, Dante Milano, Jorge Wanderley e Augusto de Campos. Para embasamento
teórico desta dissertação trouxemos principalmente as teorias de Walter Benjamin e Antoine
Berman sobre tradução e crítica da tradução.

Palavras chave: Tradução ̶ Poesia – Dante ̶ Divina Comédia.


ABSTRACT

Translating and writing about poetry always leads to the crossroad of choosing between
possible fidelity and recreation. For some privileged translators who are also poets themselves
(and perhaps that is the reason why), poetic recreation in translated texts is considered the
most interesting path. Since Dante, many have insistently chased the almost insurmountable
difficulties and often impossibility of poetry translation. This study aims to compare some
translations of Commedia into Portuguese; mainly of Inferno’s Canto XXV, for more
traditional translators, and Inferno’s Canto I, translated by Augusto de Campos. We search
translations of Commedia carried out in a period that extended from the middle of the
nineteenth century until the end of the twentieth century, from the complete translations of
authorship of Xavier Pinheiro, João Trentino Ziller, Cristiano Martins and Italo Eugenio
Mauro, until the partial translations of Machado de Assis, Dante Milano, Jorge Wanderley
and Augusto de Campos. For theoretical background of this dissertation we brought mainly
the theories of Walter Benjamin and Antoine Berman on translation and criticism of the
translation.

Keywords: Translation - Poetry - Dante - Divine Comedy.


E à mesa estás, leitor, com o pensamento
se o que se mostrará daqui por diante
vai dar-te alegria ou desalento.
Dante – Paraíso X, 22
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 11

CAPÍTULO I – A TRADUÇÃO LITERÁRIA 20


1.1 - LITERALIDADE, FIDELIDADE AO SENTIDO E FIDELIDADE À LETRA 20
1.2 - SOBRE A TEORIA DA TRANSCRIAÇÃO 25
1.3 - SOBRE A CRÍTICA DAS TRADUÇÕES 28

CAPÍTULO II – ESTUDO DOS CANTOS I E XXV 32


2.1 - O CANTO I 35
2.2 - O CANTO XXV 36

CAPÍTULO III – TRADUTORES EM CENA – AS TRADUÇÕES 40


3.1 - INFERNO – CANTO XXV 41
3.1.1 -MACHADO DE ASSIS - 1874 42
3.1.2 - JOSÉ PEDRO XAVIER PINHEIRO -1888 46
3.1.3 -JOÃO TRENTINO ZILLER -1953 51
3.1.4 -DANTE MILANO- 1953 55 
3.1.5 -CRISTIANO MARTINS - 1976 59
3.1.6 - ÍTALO EUGENIO MAURO – 1998 62
3.1.7 - JORGE WANDERLEY – 2004 64

3.2 - INFERNO – CANTO I 69


3.2.1 - AUGUSTO DE CAMPOS – 2003 69

CAPÍTULO IV – ENTRE TRADUÇÕES POÉTICAS 75

CONSIDERAÇÕES FINAIS 85

REFERÊNCIAS 90
DICIONÁRIOS E ENCICLOPÉDIAS 95
 
11 
     

INTRODUÇÃO

O Dante nosso de cada dia

Frequentemente mencionados, os versos da Commedia algumas vezes são ouvidos


em meio a um texto recitado por um ator em um filme, outras vezes são lidos na obra de um
poeta, como nos casos de Carlos Drummond de Andrade (1973, p.61), com seu poema “No
meio do caminho”, ou de Olavo Bilac (1977, p.123), que intitulou uma poesia exatamente
com o primeiro verso da primeira estrofe do Inferno, Nel mezzo del camin. Também são
utilizados como epígrafes, inscrevendo-se como uma forma de legendar o que se dá a ler,
agindo como um chamado, a exemplo de Augusto de Campos (1951,p.4), que em seu
primeiro livro, O rei menos o reino, usou a frase queste parole de colore oscuro, ou Machado
de Assis (1962, p. 36), com Tacendo il nome di questa gentilíssima, em “Versos a Corina”,
de Crisálidas, e mesmo neste trabalho, traduzindo uma estrofe do Paraíso.
Há ainda a ocorrência de citações das frases mais conhecidas: no conto O
Alienista, Machado de Assis (1962, p.49) parafraseia jocosamente Dante (Inferno XXXIII,
1,2): la bocca solevò dal fiero pasto ̸ quel peccator1, atribuindo ao personagem Padre Lopes a
frase: la bocca solevo dal fiero pasto ̸ quel seccator2, com a qual este caracteriza um dos
moradores da cidade, importuno e aborrecido.
Podemos encontrar ainda em várias situações, na mídia ou na literatura nacional e
ocidental, a frase lasciate ogne speranza voi ch’intrate, (Inferno III, 9), com o significado de
que, a partir daquele ponto, ou daquela situação, nada mais se pode esperar ou não há mais
possibilidade de saída. “Deixai toda esperança, vós que entrais” aparece até mesmo em
tradução de Emerson J. S. da Costa3, do português para o tupi Eseîar opá pe îerobîasaba,
oîkéba'e gûé.
Nesse sentido, José Lambert (2001, p.50), em seu artigo sobre “Literaturas,
tradução e (des)colonização” sobre a influência das traduções, assim se pronuncia:
[...]O impacto delas costuma ser muito mais forte e profundo no caso de
fragmentos de textos, palavras isoladas e expressões coloquiais que
penetram em nosso discurso – muitas vezes, contra a nossa vontade – e
substituem o discurso chamado normal e original, cuja origem importada
pode até ser esquecida[...].4 
                                                            
1
“A boca levantou da feroz refeição, aquele pecador” (Esta e todas as traduções não referenciadas são nossas).
2
Cf. Dicionário Treccani. Seccatore; importuno, maçante, pessoa aborrecida, que causa tédio e importunação.   
3
Blog do tradutor. http://abanheenga.blogspot.com.br/2013/07/a‐inscricao‐da‐porta‐do‐inferno‐dante.html 
Acesso 04/02/2018. 
4
 http://www.ppgpoet.ufc.br/wp‐content/uploads/2017/05/jose‐lambert‐literatura‐e‐traducao‐2011.pdf  
12 
     

Para Even-Zohar (1979, p.11), no entanto, apesar de as citações das grandes obras
serem recorrentes na literatura ou na linguagem popular, não se trataria de uma demonstração
de interesse, mas antes configuraria um fator de “indiferença” pela obra citada, uma vez que,
fora de seus contextos de origem, as citações perderiam o significado. Com referência à
Commedia, as traduções sucessivas podem trazer uma renovação não apenas da linguagem,
mas também do interesse do público, o qual poderia localizar e compreender melhor as
citações e suas diferentes formas de significação.
Porém, uma obra como a Commedia tem uma grande influência na literatura, no
imaginário de toda uma civilização, influência que segue se concretizando nas referências
mais comuns, mesmo por séculos, como no caso dos escritos de Dante. Assim sendo, também
as traduções da Commedia podem ter tido uma influência significativa, se atentarmos que a
primeira tradução completa, a de Xavier Pinheiro foi, segundo afirma Jorge Wanderley (2004,
p.318) , inspirada pela tradução do Canto XXV por Machado de Assis. Assim também as
traduções de Cantos esparsos feitas por Dom Pedro II poderiam ter influenciado na tradução
da Commedia por Bartolomeu Mitre (1897), uma vez que o tradutor argentino apresentou seu
trabalho ao imperador, pedindo-lhe opinião, conforme enfatiza Romeu Porto Daros5 em seu
artigo sobre a tradução feita por esse presidente da Argentina, em que expõe a amizade de
D.Pedro II e Mitre:
[...]como resta demonstrado no Tomo LXXVI da Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, publicado em 1914, onde consta a
iniciativa de fazer-se copiar no Museu Mitre, em Buenos Aires as: “[...]notas
do próprio punho, escriptas pelo imperador d.Pedro II no exemplar da
traducção da Divina Comédia, feita pelo general Mitre, que submeteu ao
imperador, pedindo-lhe a opinião sobre esse trabalho”[...](1913,p.637-
638.[...]DAROS (2013,p.15).

Dante influenciou para sempre o imaginário ocidental6, com suas visões do


Inferno, com imagens que permanecem até a atualidade, e também com frases, expressões e
nomes, de pessoas reais ou fictícias, de santos ou de seres buscados na mitologia. Ao
escrever a Commedia, deu início ao que se configurou como a língua italiana moderna, que
antes dele não existia como tal: havia a hegemonia do latim como língua erudita e de
comunicação entre os letrados, sendo as línguas derivadas do latim, que eram efetivamente
faladas pelo povo, postas em segundo plano. Dante valorizou a capacidade de expressão do
                                                            
5
  Disponível  em  https://periodicos.ufsc.br/index.php/scientia/article/view/1980‐4237.2012n11p227/22658. 
Acesso 8‐1‐2018  
6
 As referências ao Oriente na Comédia são estudadas por literatos e historiadores. Cf. Andréa Doré, Dante e o 
Oriente: as “invasões bárbaras” e o cânone ocidental (ver referências). 
13 
     

homem comum no livro De Vulgari Eloquentia7, no qual estudou e definiu o que deveria ser a
língua italiana, com base na linguagem dos poetas, e a partir dos dialetos espalhados pela
Itália. Escolheu escrever a Commedia no seu toscano nativo, uma vez que, na sua acepção,
cada um considera e aprecia a língua materna como sendo a mais suave. Mesmo assim,
temperou a linguagem de sua obra com vocábulos de outros dialetos e ainda, com palavras
oriundas do latim, adaptadas ao contexto por meio de sua genialidade pois, segundo Campos
(2003, p.182) “[Dante] empregava uma quantidade significativa de palavras cuja maior ou
menor cronicidade, com respeito ao seu próprio tempo é matéria de estudos e perquirições
sem fim”.
A grande dificuldade da tradução, devido ao tempo transcorrido desde a criação
da obra e ao desconhecimento do significado de muitos dos termos antigos, é a necessidade de
fazer uma escolha, e o tradutor por vezes caminha em terreno minado.
Em vista disso, podemos afirmar, com alguma precisão, que tradução alguma
poderia pretender dar conta de todas as possíveis significações de um poema, sem considerar
as múltiplas versões produzidas desde a que se quer mais literal à que seja amplamente
reconhecida como mais poética. Enfim, considerando as traduções como um trabalho de
cooperação entre versões, pode-se até quantificar uma tradução da Commedia: tantos versos
traduziram o sentido, tantos versos não alcançaram uma ou outra nuance do siginificado das
palavras do original, tantos versos sacrificaram a rima usada pelo autor em favor do
esclarecimento, tantos adjetivos foram acrescentados, tantos termos crus foram suavizados em
favor da palatabilidade literária ou da moralidade da época em que a tradução foi feita...
Embora não possamos qualificar definitivamente qualquer que seja a tradução, há
fatores a questionar: quem são os tradutores, qual o contexto histórico, social, literário em que
se inscreveram, para quem eram essas traduções, que público as recebeu e como. Elas estão
no nosso passado, e só podemos criticá-las com equanimidade a partir de respostas a essas
perguntas. Entendemos também que o gosto pessoal do crítico e o gosto do público atual não
deveriam minimizar o valor dessas traduções.
No caso das traduções da Commedia para o português brasileiro, analisadas neste
trabalho, há um lapso de tempo a ser considerado e, de certa forma, precisamos viajar por elas
e com elas aos Cantos dantescos. Elas vêm sendo feitas desde o fim do século XIX, e por todo
o século XX. Seus autores se situam em cenários históricos, políticos, sociais e literários
completamente diferentes, o público a que se destinavam foi mudando com o passar do

                                                            
7
 Escrito em latim, posto que dirigido aos letrados de seu tempo e consciente da originalidade de sua obra. 
14 
     

tempo, as expectativas do público e da crítica sofreram alterações, a visão de mundo dos


leitores se tornou diferente, ano após ano. Cada tradução é única, faz parte de um todo
indissociável. Há diferenças entre as traduções, há algumas soluções menos felizes, mas
também há muita criatividade. A maioria dos tradutores se ateve ao sentido, alguns quiseram
trazer a ideia principal ligada a esse sentido e deixaram de fazer ouvir em suas traduções a
música inerente à poesia de Dante, ou baixaram o tom da invectiva dantesca visando não ferir
sensibilidades.
A apresentação ao público de uma obra renovada poderia ser o princípio de cada
retradução, e é isso que entendemos quando Benjamin (2001, p.72) afirma que uma tradução
envelhece, embora o texto do autor ainda se mantenha vivo na sua língua de origem, esse é o
fator mais visível na comparação entre algumas das traduções aqui estudadas e a obra escrita
por Dante.
Visando uma compreensão dos fatos que antecederam a realização da obra, e
antes de falarmos especificamente dos tradutores e das traduções, buscamos um panorama
geral da vida do autor da Commedia, tendo como base perfil biográfico feito pelo escritor,
ensaísta e crítico literário Italo Borzi (2011), professor da cátedra dantesca da Fundação Besso
de Roma, autor de uma biografia e ensaios sobre Dante.
Quando a Idade Média já se avizinhava do que viria a ser considerado pelos
estudiosos como o Renascimento, no ano de 1265, nascia Dante em Florença, filho do notário
Alighieri e da primeira mulher deste, Dona Bella. Nessa época a cidade já vivia dividida por
acontecimentos que haviam causado rivalidade entre duas famílias nobres, o que acabara
levando cada uma delas e seus agregados políticos a se alinharem aos grupos antagônicos dos
guelfos e gibelinos.
A infância de Dante transcorreu entre as escaramuças e as trocas de poder que
aconteciam ciclicamente, e durante esse período ele conheceu aquela que viria a ser a musa da
sua poesia, Beatriz. Encontrou-a quando ambos tinham nove anos, e só voltou a vê-la aos
dezoito anos, quando se torna então o poeta do dolce stil nuovo. Devido a esse fato, esse
simbolismo8 do número nove9, carregado de mistério10, está insistentemente marcado em sua
obra de juventude, Vita Nova, irá estender-se depois para a Commedia.  Para os cristãos

                                                            
Nove,  três  vezes  três,  o  número  das  tríades  sagradas  –  para  os  cristãos,  Pai,  Filho,  Espírito  Santo,  para  os 
gregos, Zeus, Hades e Netuno. Deméter teria procurado por 9 dias após Perséfone ter sido raptada por Hades. 
Nove  é  ainda  o  número  das  musas  a  quem  Dante  recorre  no  Canto  I  do  Purgatório.  Disponível  em 
https://www.dicionariodesimbolos.com.br/numero‐9/
9
Disponível em: https://www.montesiao.pro.br/estudos/teologicos/significado_numeros.html 
10
Disponível em: http://bemzen.uol.com.br/noticias/ver/2011/02/03/1093‐o‐misterio‐do‐9 
15 
     

medievais, nove são os frutos e os dons do Espírito Santo; nove, no simbolismo pitagoriano,
significa o fim de um ciclo e começo de outro; indica ainda realização, consecução e
perfeição; no Catolicismo, reporta às novenas, nove dias de orações; ainda, às nove
beatitudes do Evangelho; representa a mais alta forma do amor universal e a plenitude
espiritual, sem nos esquecermos que, no âmbito terreno, são nove os meses da gestação
humana. 
Beatriz morre jovem, e o poeta, já então conhecido e que fizera para ela seus
primeiros poemas, decide que, para falar de novo de tão excelsa dama, deveria escrever uma
obra que estivesse acima de todas as outras. Conseguirá esse feito com a Commedia, com seus
14.233 versos, e abrangendo quase todas as vertentes do conhecimento medieval, mas que, em
essência, visava exaltar a sua amada.
Após a morte de Beatriz, Dante casou-se, teve filhos, inscreveu-se na corporação
dos farmacêuticos, fez parte do Conselho de Florença. Sua dedicação como cidadão já fora
provada, tendo ele lutado pela cidade nas batalhas de Campaldino e Caprona, mas continuou a
prestar serviços à sua comunidade, e em 1.300, ano do Jubileu, foi enviado como emissário a
Roma, para pedir a interferência do Papa Bonifácio VIII nas divergências políticas de
Florença. Essa intervenção se patenteia com o envio de um cardeal para arbitrar as
divergências locais. Porém, o cardeal mandado pelo Papa não foi capaz de se desincumbir de
sua missão e deixou a cidade. Dante, que fazia parte do Conselho, foi novamente enviado a
Roma para pedir ajuda ao Papa. A situação na cidade se agravava, e os Bianchi, facção a que
Dante pertencia, foram afastados do poder. Os Neri tinham se tornado senhores da situação, e
um amigo de Dante, quando esse já se encontrava em Siena, a caminho de casa, trouxe-lhe a
notícia de que o poeta fora condenado por falsidade e tráfico de influência, sujeito a uma
multa de cinco mil florins e exílio. Se a multa não fosse paga em três dias, aconteceria o
confisco de todos os seus bens. Dada a impossibilidade de levantar tal quantia em tão pouco
tempo, além da clara injustiça da sentença, Dante permanece em Siena, mas logo após é dada
uma nova sentença, em virtude de o poeta não ter pago a multa: é condenado a morrer na
fogueira, caso volte a Florença.
Assim começa a peregrinação do poeta por tantas cidades da Itália, em castelos
cujos senhores o recebem pelo seu nome ilustre, e para muitos dos quais presta seus serviços
como embaixador e representante, até sua morte, em 1321.
16 
     

Fonte: Pintura de Domenico di Michelino (1460)11 -


http://www.stelle.com.br/imagens/domenico_450.jpg 

É durante esse período que Dante dá início à estruturação da Commedia, obra na


qual retoma a ideia que já encontrara na Eneida de Virgílio, quando o herói Eneias desce às
profundezas do Inferno. Pela mão do mestre Virgílio o poeta florentino, ao mesmo tempo
autor e personagem, fará o caminho entre o Inferno, o Purgatório e o Paraíso, às portas do
qual encontrará e será guiado dali em diante por Beatriz.
De certa forma, nosso percurso no estudo da traduções para o português também
se configurou uma peregrinação, pois, à medida que a leitura da Commedia e os estudos
sobre Dante se aprofundaram acumulou-se o número das traduções que consultamos, e as
comparações tornaram-se inevitáveis, ressaltando a observação das dificuldades tradutórias e
as renúncias a que os tradutores foram levados ao se dedicarem a essas traduções.
                                                            
      11  Uma das mais conhecidas imagens de Dante,“A Comédia ilumina Florença”, pintada por Domenico di
Michelino na catedral de Santa Maria del Fiore, representa Dante às portas de Florença, tendo em mãos a Divina
Comédia, que conta a história da viagem do autor, como ser vivente, pelos três reinos depois da morte, o
Inferno, o Purgatório e o Paraíso. Transcorre em uma Semana Santa, de 8 a 14 de abril de 1.300, e foi escrita
quando Dante já se encontrava no exílio, do qual jamais retornaria, estando, ao contrário do que sugere o quadro,
fechadas para ele as portas da cidade. Após sua morte em Ravenna, cujo governante o abrigara, os florentinos
tentaram muitas vezes repatriar seus restos mortais, sem êxito, e por isso só existe um cenotáfio em Florença
com o nome do poeta. No entanto, embora seus concidadãos contemporâneos não o tivessem valorizado e
acolhido, sua obra é universal. Disponível em http://www.stelle.com.br/imagens/domenico_450.jpg
17 
     

Qualquer tradução, seja para o português ou outra língua, está sempre eivada de
renúncias, e tratando-se de uma obra como a Commedia, isso acontece, não apenas por se
tratar de um grande poema, mas também pelo tempo transcorrido desde seu aparecimento há
sete séculos, mas, principalmente, pelo que a obra e seu autor representam. 
Comentando sobre a sua tradução de “A Tarefa do Tradutor” Suzana Kampf
Lages (2002) chama a atenção para o fato de que a palavra “tarefa” (Aufgabe, em alemão),
também pode ser interpretada como “renúncia”; aliás, na primeira versão feita pela autora, a
palavra “tarefa” vinha hifenizada a “renúncia”, demonstrando a variedade de sentidos que a
palavra alcança na língua alemã.
O ensaio de Walter Benjamin (2008, p.71), A tarefa do tradutor, foi o guia nesta
caminhada pelas veredas das traduções de Dante. Nesse ensaio o autor fala sobre a
“transformação de tom e significado que sofrem as grandes obras poéticas” no correr do
tempo, assim como a língua de cada tradutor sofre modificações, e enquanto a obra poética
traduzida permanece, para Benjamin, a tradução envelhece e caduca. Tendo como referência
essa asserção, analisamos neste trabalho algumas das traduções da Commedia para o
português, em relação a sua adequação e pertencimento ao momento em que foram
traduzidas, assim como a sua sobrevivência no tempo.
Ainda que muitas vezes os tradutores escolhidos para este trabalho não se
reportem ao que se poderia hoje nomear “teoria da tradução”, de qualquer forma existe
sempre uma “teoria” implícita em cada tradução, e esse é um dos pontos também leados em
conta na pesquisa.
Por que comparar o trabalho de autores de traduções completas editadas no Brasil,
juntamente com trabalhos dos que traduziram apenas alguns CantosɁ Estudadas somente
aquelas, seria perdido o ensejo de discutir a tradução de Machado de Assis, autor que
traduziu um único Canto, justamente o XXV. Em situação semelhante está o poeta Dante
Milano, que trouxe para o português três Cantos, parcimônia que se refletia em sua própria
poesia. Seguindo o mesmo raciocínio, deveria ser deixado de fora ainda Augusto de Campos
e, nesse caso, estaria perdida a oportunidade de discutir a “transcriação”. No caso de Campos,
uma vez que traduziu outros Cantos do Inferno que não o XXV, foi necessário fazer um
ajuste, e o estudo recaiu sobre a emblemática tradução do Canto I, que demonstra, para os fins
deste trabalho, as opções transcriativas do tradutor.
Criticar para quê essas traduções, se já se acumulam críticas de estudiosos e
literatos, como os que mencionaremos a seguir na apresentação dos tradutoresɁ Segundo
Antoine Berman (1995, p.13) a crítica existe, desde o século XVIII, no sentido de julgamento
18 
     

ou de avaliação, mas, na opinião do autor, a crítica deve ser “a restituição da verdade de uma
tradução”, e este afirma ainda que deve incluir uma “análise rigorosa de uma tradução, de seus
traços fundamentais, do projeto lhe deu origem, do horizonte no qual ela surgiu, da posição
do tradutor”. Por outro lado, segundo Berman (p.42), quando se aborda a análise de traduções
(em comparação ou comentadas), há sempre o risco de cair no extremo de, de certa forma,
afirmar que algumas são inadequadas ou precárias. Em nosso entendimento, as comparações
são uma extensão da crítica, uma explicação, uma justificativa No entanto, Benjamin (2008,
p.81) afirma que as obras mais importantes têm, todas, “sua tradução virtual entre as linhas”, e
que essa tradução virtual seria o “arquétipo ou ideal” de todas as traduções. Embora a
Commedia seja um “grande escrito”, quase como um dos textos sagrados de que fala
Benjamin, não se pode certamente esperar, por exemplo, quando se analisa e compara
algumas de suas traduções, nem mesmo, por vezes, uma “equivalência”, seja ela formal ̶
estrita manutenção do sentido – seja ela dinâmica, reproduzindo o valor cultural, ainda que
não seja conservada a forma (NIDA e TABER,1969).

****

Esta dissertação está dividida em 4 capítulos.


No primeiro capítulo, “A Tradução literária”, são discutidas a literalidade, a
fidelidade ao sentido e a fidelidade à letra, e como essas noções, embasadas nas teorias
tradutórias aqui estudadas, podem ser identificadas no trabalho de alguns tradutores
brasileiros da Commedia. Discutimos também a transcriação, movimento liderado pelos
irmãos Campos, que aqui nos interessou pela iconoclastia exercida, no caso específico da
tradução do Canto I do Inferno, por Augusto de Campos. Esse Capítulo se detém ainda sobre
a crítica das traduções, fundamentada nas teorias de Antoine Berman sobre o tema.
O Capítulo dois trata de um estudo dos Cantos I e XXV do Inferno. O Canto I
descreve o momento do encontro de Dante e Virgílio, quando Dante se encontra “perdido na
selva escura”, uma metáfora para uma fase da vida do autor em que este se desviara do
caminho correto. No Canto XXV Dante descreve a punição dos ladrões, que se transformam
de homens em serpentes e de serpentes em homens, sucessivamente.
Os tradutores e o contexto literário e diacrônico de suas produções vem
apresentado no Capítulo três, assim como a análise de sete traduções poéticas do Canto XXV
do Inferno. e a análise do Canto I, por Augusto de Campos – sob a ótica da transcriação, que
se mostra imediatamente no início do Canto, permitindo uma visão dos parâmetros utilizados
19 
     

pelo autor, acompanhada pelas noções dessa teoria e de sua aplicação, para compreendermos
a diversidade de pontos de vista que se apresentam na tradução poética.
Além de um perfil biográfico de cada um dos tradutores, uma breve
contextualização, que em alguns casos traz algumas notas sobre a recepção das traduções.
Trata-se de textos de críticos literários que, em alguns casos, entoam loas ao aparecimento de
uma nova tradução e, em outros casos, apresentam uma animosidade, velada ou não,
mascarada com elogios dúbios; outros textos trazem os comentários de alguns dos autores
sobre as próprias traduções.
No Capítulo quatro analisamos algumas características da tradução poética,
valendo-nos das categorias propostas por Berman sobre as tendências da tradução
etnocêntrica.
20 
     

CAPÍTULO I – A TRADUÇÃO LITERÁRIA

De fato, desde o mitico episódio de Babel, vêm se acumulando os testemunhos de


poetas, historiadores, filósofos, teólogos e outros estudiosos que se dedicaram a traduzir e
refletiram sobre essa atividade, e nem sempre de forma assistemática. São diversas as formas
de sistematização, especialmente a partir dos anos 1960 ̸ 70, quando a tradução passa a ser
tomada como objeto de estudo da linguística, a partir da década de 1980, quando incorpora
também as questões culturais e se propõe, enfim, como área de estudos independente.12
Segundo Rosemary Arrojo (1998) a ambição de estabelecer e delimitar uma área de estudos, a
despeito dos progressos alcançados, teria levado a alimentar
[...]a velha esperança de que a formulação de uma teoria abrangente e
universalmente implementável pudesse, algum dia, tornar qualquer tradução
não apenas previsível e independente das circunstâncias e idiossincrasias de
seu tradutor ou tradutora mas, também, objeto de avaliações isentas,
revertendo, assim, a situação de alegada indigência teórica e reflexiva,
geralmente associada à inevitável inadequação supostamente intrínseca à
atividade tradutória.[...]13

No caso da tradução literária, é preciso levar em conta ainda o valor estético do


texto a traduzir, sua função poética e sua literalidade, e a possibilidade de recriação em outras
línguas.

1.1- LITERALIDADE, FIDELIDADE AO SENTIDO E FIDELIDADE À LETRA

Os romanos traduziram a cultura grega, incluindo a escultura, o teatro, a filosofia;


e assim como na estatuária, sua interpretação da arte da comunicação grega teve um cunho
romano, isto é, não se colocar na posição de quem faz uma cópia servil, mas antes uma
tradução ao espírito romano. Nesse contexto, Marco Túlio Cícero é considerado por
estudiosos como George Steiner (1975) o primeiro “teórico da tradução” do mundo ocidental,
tal como aponta Rosemary Arrojo (1998): que não seja feita a tradução ‘verbum pro verbo’
(Libellus de optimo genere oratorum) significa que para o filósofo romano a tradução literal
já não era uma boa opção.  
                                                            
12
 Para mais detalhes, cf. Os ‘estudos da tradução’ como área de pesquisa independente: dilemas e ilusões de 
uma disciplina em (des)construção. Ver referências. 
13
 Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102‐44501998000200007&lng=pt& 
tlng=pt. Acesso 10‐4‐2017 
 
21 
     

“Traduzir é desviar”, como bem explicita Francis Aubert (1987, p.3), pois,
segundo o autor, estruturalmente as línguas não têm identidade entre si; portanto, a
literalidade é estigmatizada. “A fidelidade à mensagem exige, portanto, uma infidelidade à
forma” conforme Aubert. Entretando entendemos que, na poesia, a mensagem está também
na forma, sem que a conservação dessa forma implique necessariamente uma inclinação à
literalidade.
O trabalho de São Jerônimo (LARBAUD, 2001, p.48), ao traduzir a Bíblia do
original hebraico para o latim, exerceu grande influência na formação das línguas românicas.
Referindo-se ao próprio trabalho, em carta ao seu discípulo Pamáquio, Jerônimo (1995, p.61)
afirma “não apenas confesso, mas proclamo a plenos pulmões que quando traduzo os textos
gregos ̶ que não sejam as Sagradas Escrituras (onde até a estrutura da frase é mistério) ̶ não
é a palavra, mas o sentido que exprimo”14. Para o patrono dos tradutores, o importante,
mesmo em se tratando de texto sagrado, era que a palavra fosse traduzida em sua essência. Os
textos sagrados judaicos sempre tinham sido copiados palavra por palavra, devido à
consideração de que qualquer mudança destruiria o teor sagrado dos escritos, portanto,
quando traduzidos, deviam manter essa suposta literalidade. Jerônimo, que lia os textos
diretamente da sinagoga, não se deixou envolver por esse costume tradutório  de proclamar a
intraduzibilidade da palavra divina, antes foi fiel a si mesmo, e à máxima exarada em De
optimo genere interpretandi, isto é, Non verbo e verbo, sed sensum exprimere de sensu (“não
visar a tradução palavra por palavra e sim o sentido”).  
Por sua vez, na Alemanha, Schleiermacher ([1835]2010), em seu artigo “Sobre os
diferentes métodos de traduzir”, põe em evidência a tensão entre aproximar-se e distanciar-se
das línguas traduzidas, dos autores e de suas culturas. É nessa fronteira que profere a hoje
icônica afirmação de que há apenas dois caminhos para a tradução: deixar o escritor em paz e
levar até ele o leitor, ou deixar ficar o leitor e levar até ele o escritor. Afirmava ainda
desaconselhável a mistura dos dois métodos, uma vez que ambos os caminhos são tão
completamente diferentes que um deles tem que ser seguido com o maior rigor, pois, qualquer
mistura produz necessariamente um resultado muito insatisfatório (2010, p.57). Apontando o
que há de difícil em cada caminho, distigu entre proporcionar ao leitor a experiência da
estranheza do outro ou fazer desse encontro algo familiar, mas um familiar criado por uma

                                                            
14
   Essa Carta a um Senador romano influente na Igreja Católica deve sua fama ao fato de Jerônimo ter sido 
  acusado de infiel em sua tradução. A Carta não só remete ao modo de traduzir de Cícero, reafirmando‐o “a 
  plenos pulmões”, como também chama em seu socorro a Arte Poética de Horácio. 
22 
     

“semelhança exótica”. Enfim, seja qual for a escolha, estão aí “as renúncias que nosso
tradutor há que se impor necessariamente (p.71).
Em Walter Benjamin (2001, pp.77 ̸78), sobre a fidelidade, encontramos a acepção
de que, traduzindo palavra por palavra quase nunca se reproduz totalmente o seu sentido
primeiro; e ainda que a tradução literal torna impossível reproduzir o sentido; e que existe
nas palavras “uma tonalidade afetiva”. Benjamin também afirma que a obra de arte não tem o
objetivo imediato de ser feita para alguém, principalmente para alguém em particular: “Pois
nenhum poema dirige-se ao leitor, nenhum quadro, ao espectador, nenhuma sinfonia, aos
ouvintes.” (2001, p.67). Tratando-se de uma tradução, o autor é enfático: a única razão para
traduzir várias vezes um mesmo texto seria o fato de que há leitores que não conseguem lê-lo
no original.
Textos não literários tais como manuais técnicos, textos de medicina ou farmácia,
documentos e outros semelhantes devem comunicar exatamente seu conteúdo, sob pena de
consequências graves. Já os textos literários, e principalmente os poéticos, têm um
desenvolvimento e uma substância diferentes, que a tradução precisa acompanhar. Benjamin
deixa esse fator bem claro, ao afirmar que “o essencial” de uma obra poética “não é a
comunicação, não é o enunciado. E, no entanto, a tradução que pretendesse comunicar algo
não poderia comunicar nada que não fosse comunicação, portanto, algo inessencial”. Aqui,
seguindo esse raciocínio, podemos levar em conta que, em poesia, o que importa na verdade é
a fruição do poema, o deleite proporcionado, o encanto que esse mesmo poema provoca em
quem o lê, e não meramente a aplicação de sinônimos e a árida garimpagem do sentido. Ainda
segundo Benjamin (2001, p.67),
[...]aquilo que está numa obra literária, para além do que é
comunicado (e mesmo o mau tradutor sabe que isso é o essencial),
não será isto aquilo que se reconhece como o inaferrável, o
misterioso, o “poético”? Aquilo que o tradutor só pode restituir ao
tornar-se,ele mesmo, um poeta?[...]

Entre os tradutores de Dante escolhidos para este trabalho destacam-se Dante


Milano, Cristiano Martins, Jorge Wanderley e Augusto de Campos como poetas; sendo assim,
suas traduções, seguindo as diretrizes de Benjamin, deveriam ser as mais interessantes, o que
será oportunamente comentado no decorrer das análises. A poesia de Machado de Assis, por
outro lado, tem sido sistematicamente considerada um trabalho menor em vista da
grandiosidade de sua obra em prosa. No entanto, suas traduções de poesia alheia têm sido
23 
     

apreciadas através dos anos, contando-se, entre outras,15 a do poema The Raven, de Edgar
Allan Poe, bem como a do Canto XXV do Inferno da Commedia.
Em seu Aspectos linguísticos da tradução, embora teça comentários sobre ser
impossível traduzir poesia, Roman Jakobson (2007, p.66), afirma que as impossibilidades
podem ser contornadas, pois, “[o]nde houver uma deficiência, a terminologia poderá ser
modificada por empréstimos, calços, neologismos, transferências semânticas e, finalmente,
por circunlóquios”. Para o autor, há uma vasta gama de possibilidades de tradução, que
dependerá dos conhecimentos e capacidades do tradutor. Também, quanto às diferenças entre
as gramáticas de duas línguas, Jakobson afirma que mesmo isso não torna impossível que a
“informação conceitual contida no original” seja levada ao leitor. No entanto, alerta que, “em
sua função cognitiva”, a gramática afeta pouco a linguagem, ou seja, “o nível cognitivo da
linguagem não só admite, mas exige a interpretação por meio de outros códigos, a
recodificação, isto é, a tradução” (p.67). Porém, para Jakobson, “nos gracejos, nos sonhos, na
magia, enfim, naquilo que se pode chamar de mitologia verbal de todos os dias, e sobretudo
na poesia, as categorias gramaticais têm um teor semântico elevado” (p.70). Especificamente
sobre a tradução poética, Jakobson explicita que a poesia não pode ser traduzida, pois “o
trocadilho, ou para empregar um termo mais erudito e talvez mais preciso, a paronomásia,
reina na arte poética”, e ainda que, em poesia, “só é possível a transposição criativa” (2007,
p.71), que entendemos aqui como uma afirmação da traduzibilidade.
Antoine Berman (2007, p.40), por sua vez, censura os seguidores da vertente que
nomeou “tradução etnocêntrica”, ao dizer que “uma longa tradição ̶ de Dante a Du Bellay e
Montaigne, de Voltaire e Diderot a Rilke, Jakobson ou Bense ̶ afirma que a poesia é
intraduzível, porque ela é só uma “hesitação entre o som e o sentido (Valery).”
Berman explicita que essa tradição afiança que a relação entre som e sentido
impediria a tradução de poesia, e, segundo essa mesma tradição, a poesia não deveria ser
traduzida, pois sua “verdade e valor” estariam consignados à sua “intraduzibilidade e
intangibilidade”. Ressalta ainda sua discordância enfatizando que, conforme esses parâmetros,
o “verdadeiro poema” deveria ser intraduzível, sendo a sua tradução uma traição, mesmo
necessária, tendo até mesmo como ponto de rebaixamento o fato de que se assemelha a uma
operação mercantil: “para falar como os gregos e os medievais, ela é tão necessária quanto o

                                                            
15
Embora João Trentino Ziller esteja elencado entre os poetas nos paratextos da edição 2011̸ 2012 da Commedia
traduzida por ele, não foi possível encontrar poemas de sua autoria, apenas comentários seus sobre poesia
provençal, além de um livro sobre Os Lusíadas.
 
 
24 
     

comércio e as atividades de dinheiro, mas em todos os casos trata-se de atividades vis e sem
valor”.
Quanto à fidelidade ao “sentido”, Berman (2007,p.32) afirma que supor que
traduzir seja captar o sentido, é deixar esse mesmo sentido distanciado “de sua letra, de seu
corpo mortal, de sua casca terrestre”, escolhendo “o universal” em vez do “particular”. Para
esse estudioso, “o sentido é captado na língua para a qual se traduz. Para tanto, deve ser
despojado de tudo que não se deixe transferir. A captação do sentido afirma sempre a
primazia de uma língua”16. Em outras palavras, ser fiel ao sentido é, para o autor, ser infiel à
letra, porém, sendo infiel à letra do texto fonte, o tradutor será fiel à letra do texto alvo:

[...] esta é a essência da tradução etnocêntrica; fundada sobre a primazia do


sentido, ela considera implicitamente ou não sua língua como um ser intocável
e superior, que o ato de traduzir não poderia perturbar. Trata- se de introduzir
o sentido estrangeiro de tal maneira que seja aclimatado, que a obra
estrangeira apareça como um “fruto” da língua própria.[...] (BERMAN,
2007, p.32)

Observamos que, nos paratextos editoriais, os tradutores da Commedia aqui


elencados fazem referência constante à manutenção do sentido da obra original. Podemos
perceber que esse é um ponto primordial dessas traduções: em alguns casos, são ignoradas as
aliterações, as anáforas, as assonâncias, número de sílabas, acentos, ritmos, e em outros
casos pode ocorrer de as rimas toantes dentro do verso serem substituídas ou desaparecem,
embora a forma original das terzine seja mantida. Apenas Augusto de Campos (2003, p.184),
dos tradutores estudados neste trabalho, procura fugir à imposição do sentido ̶ razão pela
qual trazemos neste trabalho o que reconhecemos como projeto tradutório desse poeta que
também traduz, tal como proposto por seu irmão Haroldo de Campos em diversos ensaios e
entrevistas sobre tradução poética, ou, sobre a transcriação (1988, 1992, 1998, 2011, 2015).
Ao comentar sobre a sua tradução do Canto I do Inferno, referindo-se ao verso “solitário, sem
sol e sem saída” - retirado de seu próprio poema “O Rei menos o Reino”, e inserido
(tra(du)zido) nesse Canto de Dante, - Augusto de Campos afirma que se trata de “captar o
espírito da coisa, mais do que a versão lítero-banal do verso”.

                                                            
16
 Grifos do autor. 
25 
     

1.2 - SOBRE A TEORIA DA TRANSCRIAÇÃO

A partir de 1957, Haroldo de Campos passa a apresentar, em artigos, a tradução


como “recriação”. Segundo o próprio autor, seu objetivo, traduzindo dessa forma, é, antes de
tudo, sintetizar em português o texto estrangeiro, sem fugir ao texto original, que deve ser
tratado com respeito17.
Em “Da tradução como criação e como crítica” Campos (2006), esboça em linhas
gerais o seu trabalho, quanto à tradução de poesia, referindo-se principalmente ao filósofo
Max Bense, do qual acata a ideia de “informação estética” – que seria de extrema fragilidade
e, nessa fragilidade, conforme Campos, reportando-se a Bense – “residiria muito do fascínio
da obra de arte”. Esclarece ainda que a informação estética “não pode ser codificada senão
pela forma em que foi transmitida pelo artista”, e que uma modificação na “sequência dos
signos verbais perturba a realização estética” (p.33). Retomando a conclusão de Bense sobre a
intraduzibilidade da informação estética, Campos (p.34) conclui que, desde que se tenha por
princípio que textos criativos são impossíveis de traduzir, também se deve ter por princípio
que sua recriação é possível. Faz ainda referência ao fenômeno da isomorfia – “em outra
lingua, [haverá] uma outra informação estética” , embora diferentes na língua de partida e na
de chegada; segundo Campos, “como corpos isomorfos, cristalizar-se-ão dentro de um
mesmo sistema”.
Refere-se ainda (p.35) a Ezra Pound (1885-1972) como sendo o maior exemplo de
“tradutor-recriador”. Recriar, criar algo novo, traduzir um poema transcriando-o, assim
Campos segue o make it new de Pound: uma renovação, uma nova maneira de traduzir.
Segundo Campos, mesmo quando se equivoca, Pound consegue ser fiel ao “espírito”, ao
“clima” da obra traduzida.
Cita, ainda, as traduções de Odorico Mendes (1799-1864), que, traduzindo a
Odisseia, teria feito uma “redução” no número de versos, apontando para uma capacidade de
concisão do português em comparação com as línguas latina e grega. Nas palavras do próprio
Odorico (cf. Campos,1992, p.39), uma tradução que não reduzisse as repetições do texto
grego tornaria a obra desagradável, seria “a pior das infidelidades”. Essa capacidade do
tradutor de adequar o texto às possilidades de linguagem do português, que não é uma língua
declinável, ao contrário do grego, no qual, segundo Campos “se pode jogar com terminações
diversas dos casos emprestando sonoridades às mesmas palavras” ̶ está de acordo com a
                                                            
17
Cf. Santana-Dezmann e Milton. O “make it new” segundo Haroldo de Campos.
https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/26819/26819.PDFXXvmi=. Acesso 23-10-2017.
26 
     

ideia de “sintetizar” o texto, como declara em suas explanações sobre a criação, recriação e
transcriação. O autor lembra ainda que Odorico Mendes “adota a técnica da interpolação,
incorporando versos de outros poetas, quando entende que certa passagem homérica pode ser
vertida através desse expediente” (1992, p.38).
Coerente com a teoria da transcriação, em seus comentários sobre a tradução de
alguns Cantos de Dante, Augusto de Campos (2003, p.184) enfatiza que “certas
reetimologizações não convencionais, suscitadas pelo palavreado dantesco” [...] “vão por
conta de uma operação poética de rejuvenescimento linguístico”. “Tradução criativa”,
“reconfiguração”, “reetimologização”, “rejuvenescimento” são as palavras-chave para a
compreensão da teoria transcriativa. Vemos que o procedimento de substituição – como no
caso do terceiro verso do Canto I do Inferno, no qual Augusto de Campos substituiu a frase
de Dante por um verso de seu livro O Rei menos o Reino – tivera um antecedente na tradução
de Odorico Mendes. Para Augusto de Campos, que considera banal a literalidade, esse
procedimento de Mendes se apresenta como uma “usurpação”, uma “antropofagia”,
movimentos defendidos por Campos.
Seguindo o caminho da “transposição criativa” preconizada por Jakobson,
encontramos em Haroldo de Campos (2006, p. 35) a afirmação de que os textos mais difíceis
de traduzir são aqueles que mais atraem em suas possibilidades de recriação, ou ainda que,
sendo textos criativos, sua tradução será “recriação ou criação paralela, autônoma porém
recíproca”.
Ainda em Metalinguística e outras metas, Campos enfatiza que
[...]A tradução de poesia (ou prosa que a ela equivalha em
problematicidade) é antes de tudo uma vivência interior do mundo e da
técnica do traduzido. Como que se desmonta e remonta a máquina da
criação, aquela fragílima beleza aparentemente intangível que nos
oferece o produto acabado numa língua estranha. E que, no entanto, se
revela suscetível de uma vivissecção implacável, que lhe revolve as
entranhas, para trazê-la novamente à luz num corpo linguístico
diverso.[...](CAMPOS, 2006, p.43).

Já na coletânea Transcriação (Da transcriação poética e semiótica da operação


tradutora), Haroldo de Campos (2015, p.60) também explicita que ao transformar “a função
poética em função metalinguística”, o tradutor de uma obra poética pratica uma transgressão,
ao mesmo tempo em que seleciona e combina de modo totalmente novo os “elementos extra-
e-intratextuais do original”; nesse processo, para o autor, o original se revelaria ficcional. A
concepção daí advinda traria uma nova configuração, que faria pensar de forma diferente o
27 
     

original. Em entrevista ([1988]2011)18 a Thelma Médice Nóbrega e Giana M.G. Giani, na


época alunas de pós-graduação da Unicamp, Haroldo de Campos afirma que “a boa tradução é
aquela que aspira à trans-criação”. Refere-se às traduções com fins de ensino como “úteis e
respeitáveis, sobretudo quando incluídas em edições bilíngues, mas que não podem ser
tratadas como produtos estéticos” (p.143). Para o autor, essas traduções não se destacam,
apesar dos tradutores algumas vezes conseguirem até mesmo uma tradução “recriadora”,
alcançando as rimas e a execução dos versos.
Falando a respeito da tradução da Commedia em alemão, na tradução de Karl
Vossler, Campos destaca que o filólogo tinha por objetivo “reproduzir, simples e
objetivamente, o conteúdo do poema”, mas que “ ninguém atento à evolução de formas na
poesia alemã poderá confundi-la, em termos de resultado esteticamente avaliável, com a
“transfundição” (Umguss) de excertos do poema” feita pelo poeta Stefan George, cujo
“virtuosismo de linguagem” foi hábil na captação da musicalidade do poema dantesco (p.143-
144).
Relativamente a esse tópico referido na entrevista de Campos, poderíamos supor
que a tradução da Commedia para línguas neolatinas, tais como o português, o espanhol e o
francês, apresentaria para os tradutores, aparentemente, uma facilidade maior. Porém, os
falsos cognatos encontrados no italiano muitas vezes confundem e enganam. Muitos
vocábulos usados por Dante já não existem no italiano atual, e além disso, há muitos termos
que foram forjados pelo autor e cuja tradução não tem um consenso total até mesmo para os
estudiosos e filólogos italianos. Já nas línguas não aparentadas com as neolatinas, a
dificuldade é mais visível, e então temos, por exemplo, traduções para o inglês, feitas sem
rimas, pela impossibilidade de manter a sonoridade da obra. Campos comenta, sobre as
traduções para o alemão, que a recriação é possível, porém constata que, de modo geral, o
que os tradutores têm em mente é “reproduzir, simples e objetivamente, o conteúdo do
poema”, e isso nos leva novamente a patentear o privilégio do sentido, fórmula encontrada na
maioria das traduções para o português.

                                                            
18
Disponível em: Trabalhos em Linguística Aplicada – Campinas (vol. 2) 53‐65 – jan.‐jun. 1988.
28 
     

1.3 - SOBRE A CRÍTICA DAS TRADUÇÕES

Antes de apresentarmos as etapas de avaliação propostas por Berman em seu livro


Pour une critique des traductions, vamos passar pela proposta de Haroldo de Campos, que se
faz necessária para dar relevo à crítica de traduções literárias:
[A] tradução é crítica do texto original na medida em que os elementos
atualizados pelos novos “atos ficcionais” de seleção e combinação citam
os elementos ausentes; o original, por sua vez, passa a implicar as suas
possíveis citações translatícias como parte constitutiva de seu horizonte de
recepção (a “sobrevida” do original, o seu “perviver” na terminologia de
Walter Benjamin).[...] (CAMPOS, 2015, p. 124).

Dessa afirmação podemos inferir que, desde a primeira tradução, já se apresenta


uma espécie de julgamento, e que este se aplica ao original. Seguindo esse raciocínio,
podemos intuir que, mais tarde, esse julgamento se fará duplamente: cada tradutor, tendo
consciência disso ou não, fará uma crítica ao original e às traduções anteriores. Notamos que
nos paratextos poucos autores afirmam ter feito uma consulta a essas traduções prévias.
Porém, entendemos que, para qualquer tradutor, esta poderia ser uma ação na busca de um
aprimoramento da própria tradução.
A questão da crítica de traduções literárias está presente em todo o trabalho
teórico de Antoine Berman, mas é em seu último trabalho, Pour une critique des traductions,
de 1995, que apresenta uma aplicação do que se pode chamar de um método para avaliar uma
tradução literária. No caso, a análise de traduções francesas de Going to bed, uma elegia do
poeta inglês John Donne.
Assim como acontece com Haroldo de Campos, para o tradutor e crítico Berman
(1995, p. 16), o que se busca não é um método, um caminho que sirva de modelo para todos,
mas tão somente “um percurso possível” (p.64). Desta forma, para Berman, não existe
neutralidade ante uma tradução, e em suas contestações a respeito de uma “base consensual
de julgamento” (grifos do autor), indica a existência de “uma base não subjetiva, e
principalmente não dogmática, não normativa, não prescritiva”, e nessa trilha o autor
evidencia as resistências dos que se preocupam com a tradução literal e privilegiam o sentido,
ou ainda dos partidários da distinção entre fonte e alvo.
Para Berman (1995, p.84) embora a tradução possa ser considerada, ela mesma,
uma “obra”, efetivamente, pode haver utilidade em compará-la a traduções anteriores. Uma
primeira tradução seria difícil de analisar, uma vez que se trataria de uma “introdução”,
29 
     

carente de perfeição ou pureza. A verdadeira representação da tradução seria alcançada nas


retraduções, simultâneas ou posteriores.
Conforme o autor, no entanto, há um ponto crucial no que diz respeito às
traduções consecutivas de uma obra: cada uma delas está fixada no tempo em que foi feita, e
só pode ser estudada se posta no ambiente em que foi gestada; suas assim julgadas
“deficiências” ou “caducidade” estão diretamente ligadas ao tempo em que a crítica ocorre;
assim, no entendimento do autor, essas traduções estão ancoradas a “um certo estado da
literatura, da língua, da cultura, etc.”, portanto, a crítica tem que levar em conta esses fatores.
Como podemos entender a partir dessas colocações, comparar traduções deveria
ser, para Berman, um trabalho de crítica, mas nunca de julgamento, uma vez que o peso dos
fatores apontados acima incide sobre cada tradução de modo diferente, já que “crítica e
tradução são estruturalmente aparentadas” (p.97).
No entanto, mesmo Berman, quando escreve seu livro específico sobre crítica de
traduções, não consegue se desviar de um comportamento judicativo, quando compara as
traduções para o francês e para o espanhol do poema Going to Bed, de Donne. Sobre
traduções do mesmo poema para o português, Paulo Henriques Britto19, em seu artigo
“Fidelidade em tradução poética: o caso Donne”, conclui que uma comparação feita a partir
de parâmetros científicos, isto é, utilizando os mesmos pesos e medidas, leva inevitavelmente
à conclusão de que, tendo em conta esses parâmetros, uma tradução acabará por ser
considerada melhor que outra.
Com referência à retradução, Berman afirma que se pode supor que ela é uma
“crítica” das traduções da mesma obra feitas anteriormente, e, numa metáfora, compara essas
traduções a uma fotografia, pois essa crítica “revela” as traduções “no sentido fotográfico”,
situando-as no seu tempo e nas idiossincrasias literárias, linguísticas e culturais que lhes
foram contemporâneas.
Em artigo de 199020, Berman enfatiza que as retraduções são necessárias dado o
envelhecimento das traduções e “porque nenhuma é a tradução”, portanto, a tradução está
sujeita ao tempo e tem “uma temporalidade própria: a da caducidade e do inacabamento”.
Porém, conforme o autor, haveria exceções, traduções que persistem, como os originais, e às
vezes, com maior esplendor que eles e que seriam as “grandes traduções”. Estas seriam as da
Vulgata por São Jerônimo, a da Bíblia por Lutero, a tradução de Poe por Baudelaire, entre
                                                            
19
 Disponível em http://www.ciencialit.letras.ufrj.br/terceiramargemonline/numero15/terceiramargem 15.pdf 
 Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S2175-79682017000200261&script=sci_arttext. Acesso 2-
20

1-2018
30 
     

outras, e mesmo se, conforme o autor, os leitores venham diminuindo em número ou algumas
dessas traduções devam ser modernizadas, ainda assim, por suas características em comum,
permanecem “grandes”. Os elementos que fazem a grandeza dessas obras são, para Berman, o
fato de cada uma delas ter sido, em primeiro lugar, um acontecimento na língua alvo, a seguir,
ter um caráter sistemático, semelhante ao original, ser “um lugar de encontro entre a língua do
original e a língua do tradutor”; ligar-se intensamente ao original, levando-se em conta o
“impacto” sobre a cultura que a recebe, e finalmente, ser “um precedente incontornável para a
atividade de tradução contemporânea ou anterior.”
A primeira tradução poética completa da Commedia para o português, da autoria
de Xavier Pinheiro, manteve-se como principal meio de conhecimento da obra dantesca entre
nós por meio século, e, sendo atualmente de domínio público, é a mais editada e ainda hoje é
referência no Brasil. No entanto, embora tenham seu lugar no panorama da literatura
brasileira, nem essa, nem as traduções subsequentes para o português, estudadas neste
trabalho, tomaram o lugar do original, nos termos indicados por Berman no parágrafo acima.
Na análise das traduções aqui apresentadas pode-se verificar a oportunidade das
colocações de Benjamin, retomadas por Berman, quanto ao fato de que uma tradução vai, ao
longo do tempo, perdendo a capacidade de atrair o leitor, uma vez que o vocabulário, as
alusões e as referências utilizadas pelo tradutor vão mudando com o passar dos anos: cada
tradução está ancorada ao período cultural em que foi feita. Para Benjamin (2002, p.72) a
língua materna daquele que traduz sofre transformações, assim como os grandes originais de
poesia, mas aquilo que o poeta disse permanece na língua em que ele escreveu, e as traduções
acabam por submergir nas modificações inevitáveis de cada língua.
Outro ponto para o qual Berman (1995,pp.89 ̸ 90) nos chama a atenção são as
palavras-chave, ou “palavras fundamentais”. Enfatiza a existência de palavras-chave
estrangeiras, que são os intraduzíveis de cada língua, (nós mesmos, lusófonos, podemos
encontrar o exemplo mais emblemático de nossa língua na palavra “saudade”), palavras das
quais a tradução, segundo o autor, devem ser explicadas, mesmo quando não há equivalência
entre os termos nas línguas de partida e de chegada. Por outro lado, existem as palavras-chave
na obra de um determinado poeta, fundamentais nessa poesia, ou que ainda, conforme
Berman, podem ser consideradas fundamentais na literatura de toda uma civilização.
Encontramos vários exemplos de palavras fundamentais da Commedia, tais como amore,
valore e stelle, mas uma está bem visível no canto XXV, a palavra spirto, ou seu plural,
spiriti, ou ainda, seu sinônimo, anima.
31 
     

13-Per tutt’i cerchi de lo’nferno scuri Por todo círculo do inferno escuro
14-non vidi spirto in Dio tanto superbo, não vi espírito em Deus assim soberbo
15-non quel che cade a Tebe giú da’ muri. nem o que emTebas lá rolou do muro.

Nos versos 13, 14 e 15, Xavier Pinheiro e Jorge Wanderley fizeram uma tradução
mais literal; Machado de Assis e Dante Milano preferiram “alma”; Ziller trocou “espírito” por
“réu”; Hernâni Donato por “pecador”; Cristiano Martins escamoteou a palavra e seu contexto,
encaixando um “niguém”, enquanto Italo Eugênio Mauro a substituiu por “ser”. Na tradução
de Augusto de Campos, embora o Canto seja outro e outro o assunto, encontra-se, no verso
122 do Canto I a palavra anima, que manteve em português seu sinônimo, “alma”.
“Réu”, “ser” e “espírito” são substantivos e pode-se dizer que “pecador”, neste
caso também é; no entanto, “ninguém” é pronome indefinido, não está no campo lexical nem
no semântico de “espírito”, o que traz uma alteração profunda. Já nos versos 35, 36 e 37, a
palavra spiriti foi traduzida como espíritos, a não ser por Martins, que usou “vultos”, ainda
uma vez se desviando do teor da palavra-chave, e Ziller, que usando “ombras”, praticou um
sincretismo entre o italiano e o português. “Sombras”, no caso, estaria correto como sinônimo
de “espírito”. Já “ombras” não existe em português.

35-e tre spiriti venner sotto noi, e três espíritos vindo até nós
36-de’ quai né io né ‘l duca mio s’accorse, os quais não vimos, o guia nem eu,
37-se non quando gridar: “Chi siete voi Ɂ”; senão quando gritaram: “Quem sois vósɁ”

Conforme vimos antes, Jakobson (2007, p.70) faz um comentário relevante que
podemos relacionar com esse tópico: referindo-se à função cognitiva da linguagem, o autor
afirma que ela tem uma pequena dependência do sistema gramatical, uma vez que o que
percebemos através da linguagem se dá pela “recodificação, isto é, a tradução” e que seria
uma incoerêcia a possibilidade de haver “dados cognitivos inefáveis ou intraduzíveis”. No
entanto, chama a atenção para o fato de que, na poesia, é importante manter as categorias
gramaticais.
O tradutor nem sempre encontra, na língua para a qual traduz, sinônimos exatos
ou termos equivalentes ao que o autor do original criou e escreveu. No entanto, manter as
categorias gramaticais, adicionadas aos campos lexicais e semânticos encontrados no original
durante a tradução seria, mais do que um movimento estético, uma questão de valorizar a obra
traduzida.
32 
     

CAPÍTULO II – ESTUDO DOS CANTOS I E XXV

Intitulada por Dante como Commedia, a obra, uma das principais da literatura
italiana, foi divulgada em três cópias, principalmente por Giovanni Boccaccio, que
acrescentou o adjetivo Divina.
O Purgatório, concluído em 1312, e o Paraíso (1321) são compostos de 33 Cantos;
o Inferno (1308), com 34 Cantos, tem um a mais; trata-se esse Canto extra de um prelúdio,
uma apresentação, um projeto que em seguida irá se desenvolvendo.
É consenso geral que Dante teria baseado sua obra no número três, símbolo da
Santíssima Trindade, extrapolando para o número nove, três vezes três, como a referência à
idade em que ele e sua amada Beatriz se encontraram pela primeira vez, encontro reiterado
aos dezoito anos, ainda um múltiplo de três. Para a tradutora francesa de Dante, Jacqueline
Risset 21, essa numerologia estaria embutida nas terzine, cada uma composta de três versos,
os quais seriam compostos de onze pés, sendo o pé a medida dos versos gregos; segundo a
autora, cada terzine, multiplicada por onze, redundaria em trinta e três pés, sendo que trinta e
três é o número de Cantos do Purgatório e do Paraíso. O Inferno conta com uma introdução,
o Canto I, e tem mais trinta e três Cantos, perfazendo os cem Cantos da Commedia.
Enquanto nas traduções de outros clássicos, como, por exemplo, da Odisseia, os tradutores
enfrentaram dificuldades tais como a aproximação ao verso grego, determinado por pés,
iambos e troqueus, sílabas átonas e tônicas, na tradução da Commedia para o português essas
escolhas não se apresentaram. No entanto, dos tradutores brasileiros que comentaram o
próprio trabalho, nenhum referiu a existência de pés nos versos dantescos.
O Inferno se formou como um abismo quando Lúcifer foi precipitado na Terra, e
os movimentos de terra seguintes constituíram a montanha do Purgatório. O Inferno é
composto de nove círculos, e a gravidade dos pecados recrudesce à medida que se aproxima
do centro, no qual está, preso no gelo22, o demônio alado Lúcifer, que com suas três bocas
devora eternamente Judas, Brutus e Cássio, traidores notórios.
Nos Cantos I e II do Inferno Dante faz um preâmbulo da sua viagem. No Canto
III, abre-se a porta infernal, sobre a qual pode ser lida a mensagem do desengano absoluto,
lasciate ogne speranza, voi ch’entrate, que significa “deixai toda esperança, vós que entrais”.
Esse Canto ainda não fala dos círculos infernais, pois nesse vestíbulo Dante encontra os
                                                            
Cf. Jacqueline Risset, Traduire Dante. Disponível em http://www.pileface.com/sollers/spip.php? article1474# 
sommaire. Acesso 16‐10‐2017. 
Cf. Eduardo Sterzi, 2008, p.114, aqui a Commedia segue uma tradição islâmica que, ao contrário da tradição 
cristã, põe Lúcifer no gelo e não no fogo.     
33 
     

mornos, os que não fizeram bem nem mal, aqueles che visser sanza ’nfamia e sanza lodo
(Inf. 3.36), “que viveram sem infâmia e sem louvor”, e contra os quais o autor se volta
enraivecido.
Os círculos do Inferno começam a partir do Canto IV, começando no primeiro, o
Limbo, onde ficam os pagãos virtuosos, que viveram antes da vinda de Cristo, e aqueles que,
nascidos embora na cristandade, não foram batizados. Trata-se de um círculo escuro,
simbolizando a falta da luz do Evangelho em suas almas.
O segundo, o Vale dos ventos, comporta os culpados de luxúria, e esses são
arrastados por vendavais e furacões, representado aí os vícios da carne que antes os
arrastavam ao pecado. Esse círculo é regido por Minos, juiz que, após ouvir a confissão dos
pecados, determina, pelas voltas que sua cauda perfaz ao enrolar-se em volta do pecador, o
círculo ao qual a alma está destinada
O terceiro, representado por um lago de lama, contém os culpados pelo pecado da
gula, que agora só têm para saciar sua fome a lama imunda, e sob uma chuva de granizo e de
neve, sofrem os ataques do Cérbero, cão de três cabeças, que os dilacera e não os deixa
esquecer a origem de seu pecado.
O quarto círculo é dos avarentos e dos pródigos, que em vida não tiveram medida
para poupar ou para gastar, e agora são constrangidos a arrastar diante de si enormes pedras,
representando seus bens terrenos, e que aí não cessam de trocar insultos.
Os iracundos estão no quinto círculo, o do Rio Estige, mergulhados em um lago
de água e sangue fervente, e agridem-se uns aos outros, enquanto no fundo do rio, cuja
superfície lhes é vedada, estão os rancorosos que esconderam sua ira.
Os hereges, os que não creram em Jesus como filho de Deus e os ateus estão
condenados ao sexto círculo, para sempre sepultados em ataúdes abertos e ardentes.
No sétimo círculo, do Flegetonte, temos a divisão em três vales. No primeiro,
sofrem as almas dos violentos contra o próximo, mergulhados no sangue daqueles a quem
fizeram sofrer, e além disso, na margem, o Minotauro e os Centauros flecham os que
conseguem levantar a cabeça do rio de sangue. No segundo vale, o dos Suicidas, pagam seus
pecados os que usaram de violência contra si mesmos, transformados agora em árvores
retorcidas, que sangram ao serem atormentadas por aves que quebram os ramos. O terceiro
vale comporta os pecadores contra Deus, a natureza e a arte, atormentados sob gotas ígneas
em um deserto de areia escaldante.
Malebolge é o nome do oitavo círculo, dividido em dez fossas, ou zavorras, das
quais a primeira é o lugar dos rufiões e sedutores, sempre açoitados pelos demônios; a
34 
     

segunda é dos lisojeadores e bajuladores, afundados em fezes e esterco, devido à falsidade em


que viveram; a terceira, contém os simoníacos, enfiados de ponta-cabeça em buracos e com os
pés em chamas; a quarta pune os adivinhos, que choram com a face voltada para as costas; a
quinta zavorra, um lago de asfalto fervente, encerra os corruptos; a sexta sujeita os hipócritas,
que caminham sob pesadíssimas capas de chumbo dourado; a sétima fossa é a dos ladrões
mostrados no Canto XXV, que, picados por serpentes, transformam-se sucessivamente de
homens em serpentes e de serpentes em homens novamente, em uma punição sem fim; a
oitava zavorra mostra o castigo, nas chamas, dos que foram maus conselheiros; os
espalhadores de discórdia são punidos na nona fossa por demônios que os mutilam, e na
décima fossa os falsários recebem o castigo por meio de doenças e chagas malcheirosas.
O Cocito, lago de gelo, forma o nono círculo, e é o lugar de castigo dos traidores.
Contém quatro esferas: Caína, onde ficam os que traíram parentes, e o nome deriva de Caim,
o primeiro traidor. Os pecadores são punidos sendo presos no gelo, com apenas o torso e a
cabeça acima do gelo. Na Antenora, com as cabeças acima do gelo, estão os traidores da
pátria. A Ptoloméia guarda os traidores de seus convidados; unicamente com o rosto fora do
gelo, suas lágrimas congelam e os impedem de ver. Finalmente, a Judeca, onde permanecem
sob o gelo, sem perderem a consciência, os que traíram seus amigos e protetores, em uma
referência ao maior traidor conhecido, Judas, que traiu Cristo.
Após atravessar todos os círculos do Inferno, Dante e Virgílio chegam até o lago
gelado onde está preso Lúcifer, e, passando por ele, dirigem-se ao Purgatório, montanha com
círculos ascendentes, onde estão os que se arrependeram de seus pecados quando ainda vivos.
Sobre o Purgatório, assim se expressa Eduardo Sterzi:
[...]trata-se do reino em que a historicidade – isto é, o tempo como
processo, como possibilidade de transformação – continua vigente, como se
aqui houvesse uma possibilidade de sobrevivência para além da morte (ou,
mais precisamente, dentro da morte)e o destino dos indivíduos continuasse
aberto, ainda por decidir.[...] (2008, p.114)

Entre essas almas estão as de amigos e conhecidos de Dante, ou figuras históricas,


muitas delas narrando suas vidas, outras surpreendidas por encontrar um ser vivente nesse
mundo sombrio. Como já acontecera no Inferno, algumas delas perguntam por pessoas que
conheceram, ansiando por notícias do mundo que deixaram. Mas estas pedem a Dante que
fale por elas quando voltar ao mundo, pois as preces dos vivos podem apressar sua passagem
para o Paraíso.
35 
     

Ainda segundo Sterzi (p.121), a originalidade de Dante quanto ao Purgatório está


em situá-lo em uma montanha, e não sob a terra, como poderiam tê-lo imaginado os antigos,
para quem o Purgatório seria apenas uma parte do Inferno, como o Limbo.
Virgílio acompanhará Dante até as portas do Paraíso. Como ele mesmo explicara,
o fato de ser pagão o impede de alcançar esse patamar. Daí em diante, após Dante se purificar
nos dois rios, o Letes, que apaga as memórias más, e o Eunoé, que fixa as boas memórias,
Beatriz se encarregará de levar o poeta até o lugar da luz eterna.
Segundo Sterzi (2008, p.126) Dante descreve a seguir seu caminho pelo Paraíso,
narrado como composto primeiramente de oito “céus”, da Lua, de Mercúrio, de Vênus, do
Sol, de Marte, de Júpiter, de Saturno e das Estrelas Fixas, nos quais ele destaca os santos e
santas que ali se encontram, e o girar das esferas eternas. Em seguida virá o “primeiro móvel”,
que roda e governa os céus anteriores. Acima de todos está o Empíreo. Para Sterzi, “[V]ale
notar que, nesse movimento entre Empíreo e esferas celestes, está a temporalidade toda do
Paraíso: o Empíreo, afinal situa-se completamente fora do tempo e fora do espaço”(grifos do
autor). Esse é o lugar da Rosa Mística, onde Beatriz desaparece e Dante passa a ser guiado por
São Bernardo, até ser levado a ver o que não pode descrever, o mistério da Trindade, porque
simplesmente não pode lembrar ou não tem com o que comparar na esfera humana e terrestre.
Para Sterzi (p.127), a “visão do mistério da Trindade “excede a possibilidade de apreensão e
compreensão por meio da linguagem e da poesia”. Segundo o autor, essa “inefabilidade
derradeira” termina por se estender totalmente ao Paraíso, e foi transmitida na poesia de Dante
por meio de “luz e música”.

2.1 - O CANTO I

O Canto I23, a abertura do poema, explica as circunstâncias da entrada de Dante


no Inferno, seu encontro com Virgílio, que conta a Dante o que encontrará adiante, não
apenas no Inferno, mas também no Purgatório, onde as almas esperam para passar ao Paraíso.
No entanto, Virgílio avisa que não poderá seguir além do Purgatório, uma vez que, sendo
pagão, não conheceu a doutrina de Cristo. Os pagãos, que não receberam o Batismo, estão

                                                            
23
A versão integral do Canto I em italiano está disponível em http://www.segnalidivita.com/la_divina_
commedia/inferno_canto_I.htm. Acesso 05-02-2018.
 
36 
     

confinados no Limbo, de onde Virgílio sai, a pedido de Beatriz, para ajudar Dante em seu
périplo pelos reinos da morte.
A frase inicial, Nel mezzo del camin di nostra vita, situa a ambientação da
Commedia numa época da vida de Dante, ou seja, a meia-idade. Segundo Borzi (2011, p.21 ̸
22) a atribuição de ser essa a medida da metade da vida viria a partir das Escrituras, onde
Isaías afirma ter ido até a porta do Inferno nessa época da existência. Ainda segundo Borzi,
todas as imagens dos primeiros versos da Commedia derivam da tradição bíblica, e o crítico
acrescenta que todas essas citações revelam a intenção de Dante de “dar ao seu Poema uma
autêntica força profética de convicção”.
Os versos seguintes, mi ritrovai per una selva oscura, ché la diritta via era
smarrita, dão conta de como o poeta se achava nessa época, encontrando-se sem direção,
perdido em um lugar sombrio, ou em uma situação em que não conseguia ver uma saída.
Cercado por animais ferozes - a pantera, que a imaginação medieval associava à luxúria, o
leão, imagem da soberba e da violência, e a loba, comumente associada, na época, à avareza -
, o poeta clama por ajuda e a recebe de Virgílio, maior mentor da poesia de Dante. Virgílio se
identifica como originário de Mântua, nascido sub Julio, isto é, na época de César, e autor da
Eneida. Dante demonstra reconhecê-lo, e Virgílio manda que ele siga outro caminho, pois a
fome da loba que persegue Dante é insaciável, e só o Veltro poderá dar-lhe um fim. Há
suposições de que Dante falava de um governante que viria para resolver os problemas e unir
a Itália, porém a controvérsia sobre a identidade desse elemento nunca foi resolvida.

2.2 - O CANTO XXV

Quanto ao Canto XXV24, é preciso ressaltar, para maior compreensão, que é o


prosseguimento do Canto XXIV, no qual o condenado Vanni Fucci já aparecera e fizera
profecias funestas sobre o futuro de Dante; segundo Benedetto Croce (1921, p. 96 ̸ 97), aquele
é um espírito sempre em guerra “contra Deus e as leis divinas”, mergulhado no mal, ladrão e
soberbo; com os atos e palavras obscenas de Vanni Fucci, Dante dá início ao Canto XXV.

                                                            
24
A  versão  integral  do  Canto  XXV  em  italiano  está  disponível  em  http://www.segnalidivita.com/la_divina_ 
commedia/inferno_canto_XXV.htm. Acesso 05‐02‐2018. 
 
 
37 
     

A seguir, esse Canto fala da transformação que se opera quando condenados e


serpentes sofrem transmutação, juntando-se e depois se separando: o que era serpente,
transformado em homem, e o que era homem se transforma em serpente, e assim
sucessivamente.
Dante identifica aí vários florentinos conhecidos e condenados em vida como
ladrões: além de Vanni Fucci, que está no Inferno por ser ladrão de objetos sacros e ao ser
picado pela serpente entra em combustão e vira cinzas, eis Cianfa dei Donati e Agnelo
Bruneleschi, acusados de peculato; Buoso degli Abati e Puccio dei Galigai, ladrões, e também
Francesco Guercio dei Cavalcanti, assassinado pelos cidadãos da vizinha Gaville: os parentes
de Cavalcanti vingaram-se de sua morte, razão pela qual Dante diz, no verso final do Canto,
que aquela cidade ainda chora.
Ainda para Croce “[n]ão reina aqui o sentido do misterioso e prodigioso, nem há
verdadeira perturbação pelo horror daquele castigo divino”; o crítico afirma ainda que a
ocorrência “comove pouco a alma do poeta” (p.97), mas que o interessante neste Canto é
como Dante enfrenta o assunto difícil, e sua habilidade na descrição.
Apesar de partirem de uma abordagem fantástica, os outros Cantos da Commedia
relacionam-se ou com pessoas reais, que estariam no Inferno e Purgatório condenadas por
seus pecados, colocadas em situações de certo modo plausíveis no imaginário da época, ou
referem-se a fatos históricos, ou então a acontecimentos e lendas relatados nos clássicos. O
Canto XXV, no entanto, é uma criação de Dante; tem um ponto de referência, segundo o
próprio Dante, que consiste nas narrações de Lucano, sobre Sabello e Nassídio, e nas
Metamorfoses de Ovídio, quando este descreve a história clássica de Cadmo e Aretusa.
Alguns dos personagens foram ladrões conhecidos em Florença e cidades próximas, e na
Commedia são expostos como condenados à sétima zavorra por seus atos infames enquanto
viventes, mas aparecem, sobretudo, moldados pela arte e a originalidade de Dante. Devemos
lembrar ainda que este é um dos Cantos em que Dante dialoga com o leitor, chamando-lhe a
atenção para os fatos que narra, de certa forma trazendo o leitor para um lugar próximo da
ação, numa forma de cumplicidade do autor com sua audiência:

46.Se tu se’or, lettore, a creder lento Se em crer, leitor, agora fores lento
47.ciò ch’io dirò, non sarà maraviglia, no que eu contar, não haverá surpresa,
48.ché io che ‘l vidi, a pena il mi consento .pois eu, que o vi, quase não me contento.

Sobre as metamorfoses, Auerbach (1997, p. 179), comenta que Dante nos dá a


ideia de que corpo e alma se conservam juntos e, embora o aspecto externo do ente mude, sua
38 
     

essência permanece, desvendando o interior real do indivíduo. Referindo-se aos ladrões do


Canto XXV, Auerbach especifica que essas metamorfoses se referem a uma avaliação de suas
vidas anteriores, e que, para Dante, a metamorfose seria muito mais sólida e real do que a
ocorrida com Sabello e Nassídio ou Cadmo e Aretusa, já que faz parte do destino de cada ser
humano. O próprio Dante, no andamento do Canto, enfatiza:

94.Taccia Lucano omai là dov’e’ tocca Cale Lucano enfim onde ele conta
95.del misero Sabello e di Nasidio, sobre Sabello e o mísero Nassídio,
96.e attenda a udir quel ch’or si scocca. e espere ouvir o que ora aui se aponta.
97.Taccia di Cadmo e d’Aretusa Ovidio Cale de Cadmo e Aretusa Ovídio,
98.ché se quello in serpente e quella in fonte que, se converte em versos, não o invejo,
99.converte poetando, io non lo ‘nvidio aquela em fonte e aquele em um ofídio,
100.ché due nature mai a fronte a fronte pois duas naturezas em cotejo
101.non trasmutò sí ch’amendue le forme não transmudou até que ambas as formas
102.a cambiar lor matera fosser pronte. tivessem, de trocar matéria, ensejo.

Uma outra abordagem do significado do Canto XXV encontramos no Projeto da


Columbia University, sobre Dante. Segundo Teodolinda Barolini25, o desenvolvimento desse
Canto refere-se aos mistérios fundamentais do Cristianismo, à Encarnação de Cristo (Deus
como ser humano) e a Transubstanciação (o pão e o vinho que se transformam em carne e
sangue na Comunhão). No estudo citado podemos acompanhar a ideia de que Dante, uma vez
que descreve os acontecimentos do Inferno, mostra a perversão desses mistérios, e também
desvenda a seus leitores a perversão dos “mais naturais ̸ biológicos eventos constitutivos do
eu: sexo e nascimento”.
Dante, no Canto XXIV, faz uma referência à fênix que morre e renasce das
próprias cinzas, ao falar de Vanni Fucci, o qual também é atacado por uma serpente, entrando
em combustão e virando cinzas, das quais renasce. Segundo Barolini, haveria aí, por vias
travessas, uma referênciaà morte e ressurreição de Cristo
Ainda conforme a pesquisadora citada, chama a atenção o fato de que Dante custa
a desvendar os nomes dos ladrões, referindo-se a eles quase sempre por pronomes, e essa
negativa de identificação trata de uma “negação da constituição da individualidade” – Dante
se refere frequentemente ao fato de que os seres monstruosos, formados a partir da união de
homens e serpentes, já “não são dois e nenhum”, portanto, nada. A autora cita, em
contrapartida o status de Cristo, que no mistério da Encarnação tem uma natureza ao mesmo
tempo divina e humana, e a Santíssima Trindade, que sendo trina, não perde as características
                                                            
25
  The Divine Comedy by Dante Alighieri – Digital Dante Edition with Commento Baroliniano – MMXVII ‐ 
University – Disponível emhttps://digitaldante.columbia.edu/dante/divine‐comedy/inferno/inferno‐25/ 
Acesso em 14‐12‐2017 
39 
     

fundamentais de seus três elementos. Para Barolini, o avesso dos mistérios cristãos que se
desenrola no Inferno configura a perversão aí enfatizada por Dante.
Também quanto à perversão dos “eventos biológicos”, Barolini lembra que,
observado o ataque da serpente ao homem, supõe-se aí “uma cópula obscena”, um estupro,
“uma intimidade física violenta e pornográfica imposta por um ser sobre o outro”.
Outra característica notada por nós no Canto XXV é a maneira com que Dante se
encarniça contra Pistoia, cidade vista, naquele tempo, como inimiga de Florença. O ato de
erguer as mãos fazendo figas, descrito no início do Canto e considerado obsceno à época,
refere-se ao fato de que Pistoia tinha, no alto de uma elevação e ofensivamente voltada na
direção de Florença, uma escultura representado dois braços levantados com as mãos em
figas.
Nesse Canto os pecadores se transformam em serpentes, que por sua vez retomam
a forma dos pecadores, e assim sucessivamente. O Inferno é um lugar destinado à punição dos
pecados, mas os pecadores não se arrependem, e não têm possibilidade de redenção, portanto,
os castigos são sempre os mesmos e eternamente reiterados.
40 
     

CAPÍTULO III – TRADUTORES EM CENA - AS TRADUÇÕES

Gravura de Gustave Doré para o Canto XXV26


      https://pt.wikipedia.org/wiki/Gustave_Dor%C3%A9

                                                            
26
A gravura acima é uma das mais conhecidas ilustrações do Canto XXV. As edições mais antigas da
Commedia, em suas versões de luxo, traziam as ilustrações feitas por Gustave Doré, de modo que se tornou
praticamente um cânone a representação dos Cantos de Dante pelo artista francês. Com o passar do tempo,
outras representações pictóricas vieram a adornar as traduções, por exemplo, estampadas recentemente na edição
monumental da tradução de Ziller (2011-2012), as gravuras de Botticelli, realizadas entre 1480 e 1510 para uma
antiga edição da Commedia, ou ainda os desenhos de Michael Mathias Prechtl na publicação, nos anos 1970,
para o Circulo do Livro, na tradução em prosa de Hernâni Donato. Também a pintura de Delacroix, Dante et
Virgile aux Enfers (1822) ilustrou a capa de edições da Commedia traduzida por Cristiano Martins.  
Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Gustave_Dor%C3%A9. Acesso 10-11-2017

 
41 
     

3.1 - INFERNO – CANTO XXV

Neste capítulo trazemos uma breve informação sobre cada um dos tradutores de
trechos ou da Commedia completa elencados neste trabalho. Não se trata de uma classificação
integral, uma vez que quase todos os tradutores já não se encontram entre nós, portanto seus
“projetos de tradução” e “posições tradutórias” somente poderão ser supostos a partir do
resultado de sua obra, e também pelo fato de alguns tradutores não terem escrito sobre suas
próprias traduções, ou de não ter sido possível encontrar comentários ou críticas sobre seus
trabalhos.
Em Pour une critique des traductions: John Donne, Berman (1995, pp.73 ̸ 79),
explicita que a mera expressão “crítica de traduções” já conduz a um pensamento negativo a
respeito do texto traduzido, e refere que, mesmo em casos que certas análises foram feitas de
modo delicado, para o autor fica implícita a impressão de que há profundas alterações e
perdas. No entanto, recorda que a crítica, apesar de seu lado negativo, também tem uma face
positiva, e que uma crítica que apresentasse apenas negatividade não seria verdadeira.
Para um esclarecimento do que deveria ser uma crítica produtiva, Berman (pp. 73 ̸
79) elenca uma série de itens relativos à crítica, os principais sendo:

- “quem é o tradutor” – quando o crítico busca conhecer o autor da tradução, que


obras traduziu, se é autor de obras próprias, quais as línguas em que traduz, e se escreveu
sobre a tradução, sua e de outros;
- “a posição tradutória” - nas palavras de Berman, o comprometimento do
tradutor com a tradução, como esse tradutor se coloca frente a essa tradução, a explicação de
suas escolhas;
- “o projeto de tradução”, este determinado pelos itens anteriores;
- “o horizonte do tradutor”, que seria um “conjunto de parâmetros de linguagem,
literários, culturais e históricos” ao qual o tradutor está ligado, em que se ancora e que
influencia a sua tradução.
Seguindo de perto as recomendações de Berman, passamos ao comentário das
traduções.
A primeira tradução completa no Brasil, a do Barão da Vila da Barra, em versos
livres, trazia a carga de uma tradição que exaltava o rebuscamento dos termos, o vocabulário
altissonante, o que faz da leitura nos dias que correm um esforço cansativo e por vezes
infrutífero, motivo pelo qual não a analisamos aqui. Traduções parciais da Divina Comédia
42 
     

foram feitas através dos anos, entre as quais se incluem a tradução de dez Cantos do
Purgatório, por Henriqueta Lisboa (1969), e de Seis Cantos do Paraíso, por Haroldo de
Campos (1976).
Em 1965, Hernâni Donato lançou, pela editora Cultrix, a tradução completa em
prosa. Em 2016, pela editora L&PM, foi lançada uma nova edição completa da Divina
Comédia em prosa, traduzida por Eugênio Vince de Morais27. Uma vez que, neste trabalho,
nos interessamos pelo estudo de traduções poéticas, e a tradução em prosa tem especificidades
próprias, nossa preocupação foi apenas listá-las e não serão analisadas aqui.
Devido à necessidade de um recorte mais estrito, trouxemos para este trabalho
uma análise de alguns excertos, especificamente do Canto XXV do Inferno, dos tradutores:
José Pedro Xavier Pinheiro, João Trentino Ziller, Cristiano Martins e Italo Eugenio Mauro,
autores de traduções completas; excertos das traduções do mesmo Canto feitas por Machado
de Assis, Dante Milano, Jorge Wanderley, autores de traduções parciais. Quanto a Augusto de
Campos, teve a sua tradução do Canto I do Inferno incluída neste trabalho como forma de
estabelecer um contraponto entre algumas teorias da tradução e a proposta transcriativa de
Augusto e Haroldo de Campos. Augusto de Campos traduziu alguns Cantos do Inferno e do
Purgatório, mas, como entre eles não se encontra uma tradução do Canto XXV (recorte deste
trabalho), trouxemos a transcriação do Canto I do Inferno que, além de ser o Canto de
abertura da Commedia, apresenta as ideias e as balizas do que se conhece hoje por
transcriação.

3.1.1 – MACHADO DE ASSIS - 1874

Machado de Assis nasce em 1839; menino pobre, mestiço e epilético, órfão de


mãe muito cedo, criado pela madrasta, ela também mestiça; frequenta a escola pública, tendo
como madrinha a viúva de um senador e brigadeiro, proprietária da quinta onde seus pais
haviam trabalhado. Estréia na literatura aos dezesseis anos, quando publica um poema no
jornal Marmota Fluminense, tornando-se em seguida, aos dezessete anos, aprendiz de
tipógrafo na Imprensa Nacional28 Autodidata, aprende por conta própria várias línguas. Entre
suas traduções de poesia, conta-se, além do Canto XXV do Inferno de Dante, a de O Corvo,

                                                            
Entrevista a Caroline Chang – Disponível em http://www.lpm-blog.com.br/?tag=eugenio-vinci-de-moraes.
Acesso 28-12-2017
28
Disponível em http://www.releituras.com/machadodeassis_bio.asp. Acesso 3-8-2016
43 
     

de Edgar Allan Poe, um trecho de Hamlet, de Shakespeare, uma fábula de La Fontaine, um


poema (A Elvira) de Lamartine, traduções de poemas chineses, através de traduções francesas,
uma Ode de Anacreonte, um poema (Estâncias a Ema) de Dumas Filho, uma Ode de
Chateaubriand (Cantiga do rosto branco).
Consta que atradução de Machado de Assis do Canto XXV foi feita em 1874,
mesmo ano em que o escritor publicou em forma de folhetins seu romance A Mão e a Luva,
no jornal O Globo.29 O Canto foi publicado mais tarde, na coletânea Ocidentais, e seria
novamente citado por Machado, no conto “As Academias de Sião”, em Histórias sem Data.
Em comentário, Machado nos dá uma breve ideia sobre o motivo de traduzir o Canto XXV:
[...]Comecei esta tradução por curiosidade, e conclui-a creio que por aposta
comigo mesmo. Pus todo o escrúpulo em que a reprodução me saísse fiel;
mas se as descrições, as imagens e as ideias passaram à nossa língua, não
passou, nem poderia passar o estilo do poeta, estilo ao qual dizia
Macaulay que os mais nobres modelos da arte grega deveriam ceder o passo.
Esse não se traduz: soletra-se ou lê-se, conforme se conhece pouco ou muito
a língua original.[...] (MACHADO DE ASSIS, 2009, apud Flores30)

Jean Michel Massa (1966), comentando a tradução do Canto XXV, feita por
Machado de Assis, sugere que, embora parecendo um contra-senso, a escolha por traduzir
esse Canto poderia ser uma “homenagem à beleza”.
Porém, quando se observa mais atentamente, o escritor realista Machado de Assis,
que era também poeta parnasiano, parece ter encontrado nesse Canto características que se
encaixavam perfeitamente no movimento com o qual se identificava poeticamente. O
Parnasianismo respeitava as regras de versificação, não admitia grande apelo à linguagem
figurada, mas também se apropriava da mitologia31, o que faz sentido para essa tradução, se
atentarmos às referências no Canto às figuras mitológicas de Sabello, Nassídio, Cadmo e
Aretusa, além do centauro Caco e de Hércules.
Esse movimento literário requer ainda a referência a fatos históricos, e os
personagens foram, de fato, pessoas reais, pecadores, que efetivamente viveram e cometeram
atos de peculato ou de roubo, que foram conhecidos em sua época, e por causa dessa infausta
notoriedade, Dante os colocou naquela seção do Inferno. Sendo ainda o Parnasianismo um

                                                            
29
Academia Brasileira de Letras - Arquivo Machado de Assis. http://www.academia.org.br/
academicos/machado-de-assis/biografia. Acesso 29-9-2016
30
Disponível em https://periodicos.ufsc.br/index.php/traducao/article/view/2175-7968.2017v37n3p117/ 34846.
Acesso em 29-09-2017.
31
Enciclopédia Delta Larousse (1998). Verbete Parnasianismo – p.4461.
44 
     

movimento que preconizava a “arte pela arte”32, sem necessidade de se apoiar, para justificar
sua existência, em evasivas tais como o amor, o Canto XXV tem todas as condições para ir ao
encontro das exigências do tradutor.
A seguir, soluções de um trecho da tradução de 1874 de Machado de Assis:

1-Al fine de le sue parole il ladro Acabara o ladrão, e, ao ar erguendo


2-le mani alzò con amendue le fiche As mãos em figas, deste modo brada:
3- gridando:“Togli, Dio, ch’a te le squadro!” “Olha, Deus, para ti o estou fazendo!”
4-Da indi in qua mi fuor le serpi amiche E desde então me foi a serpe amada,
5-érc’una li s’avvolse allora al collo Pois uma vi que o colo lhe prendia,
6-come dicesse “Non vo’ che piú diche”; Como a dizer: “não falarás mais nada!”
7-e un’altra a le braccia, e rilegollo, Outra os braços na frente lhe cingia
8-ribadendo sé stessa sí dinanzi, Com tantas voltas e de tal maneira
9- che non potea con esse dare un crollo. Que ele fazer um gesto não podia.
10-Ahi Pistoia, Pistoia, ché non stanzi Ah ! Pistoia, por que numa fogueira
11-d’incenerarti sí che piú non duri Não ardeste tu, se a mais impuros,
12-poi che ‘n mal fare il seme tuo avanzi? Teus filhos vão,nessa mortal carreira Ɂ
13-per tutt’i cerchi de lo ‘nferno scuri Eu, em todos os círculos escuros
14-non vidi spirto in Dio tanto superbo, Do Inferno, alma não vi tão rebelada,
15-non quel che cade a Tebe giù da muri. Nem a que em Teas resvalou dos muros.
16-El si fuggí che no parlò piú verbo; E ele fugiu semproferir mais nada.
17-e io vidi un centauro pien di rabbia Logo um centauro furioso assoma
18-venir chiamando: “Ov’è, ov’è l’acerboɁ” A badar: “Onde, aonde a alma danadaɁ”
19-Maremma non cred’io che tanta n’abbia, Marema não terá tamanha soma
20-quante isce elli avea su per la groppa De reptis quanta vi que lhe ouriçava
21-infin ove comincia nostra labbia. O dorso inteiro desde a humana coma.
22-Sovra le spalle, dietro da la coppa, Junto à nuca do monstro se elevava
23-con l’ali aperte li giaccia un draco; De asas abertasd um dragão que enchia
24-e quello affuoca qualunque s’intoppa. De fogo a quanto ali se aproximava.
25-Lo mio maestro disse: “Questi è Caco, “Aquele é Caco, ̶ o Mestre me dizia, ̶
26-che, sotto ‘l sasso di monte Aventino, Que, sob as rochas do Aventino, ousado
27-di sangue fece spesse volte laco. Lagos de sangue tanta vez abria.
28-Non va co’ suoi fratei per un cammino, “Não vai de seus irmãos acompanhado
29-per lo furto che frodolente fece Porque roubou malicioso o armento
30-del grande armento ch’elli ebbe a vicino; Que ali pascia na campina ao lado.
31-onde cessar le sue opere biece “Hércules com a maça e golpes cento
32-sotto la mazza d’Ercule, che forse Sem lhe doer um décimo ao nefando
33-gliene diè cento, e non sentí le diece”. Pôs remate a tamanho atrevimento”.
34-Mentre che sí parlava, ed el trascorse, Ele falava, e o outro foi andando.
35-e ter spiriti venner sotto noi , No entanto em baixo vinham para nós
36-de’ quai né io né ‘l duca mio s’accorse, Três espíritos que só vimos quando
37-se non quando gridar: “Chi siete voi?”; Atroara este grito: “Quem sois vós?”
38-per che nostra novella si ristette, Nisto a conversa nossa interrompendo
39-e intendemmo pur ad essi poi. Ele, como eu, no grupo os olhos pôs.
40-Io non li conoscea; ma ei seguette, Eu não os conheci, mas sucedendo,
41-come suol seguitar per alcun caso, Como outras vezes suceder é certo,
42-che l’un nomar un altro convenette, Que o nome de um estava outro dizendo,
43-dicendo: “Cianfa, dove fia rimaso?”; “Cianfa onde ficou?” Eu por que esperto
44-per ch’io, acciò che ‘l duca stesse atento, E atento fosse o Mestre em escutá-lo,
45-mi puosi ‘l dito su dal mento al naso. Pus sobre a minha boca o dedo aberto.
                                                            
32
https://pt.wikipedia.org/wiki/Parnasianismoacesso 2-8-2016
45 
     

46-Se tu se’or, lettore, a creder lento Leitor, não maravilha que aceitá-lo
47-ciò ch’io dirò, non sarà maraviglia, Ora te custe o que vais ter presente,
48-ché io che ‘l vidi, a pena il mi consento. Pois eu, que o vi, mal ouso acreditá-lo.

O trecho do verso 3, ch’a te le squadro, não tem correspondente no português, e


foi resolvido por “para ti o estou fazendo!”. Literalmente seria “Toma, Deus, que a ti o
ajusto!”. Esse é um caso em que o tradutor renuncia à tradução literal do verso, tendo que
procurar uma maneira de contornar a inexistência da rima entre ladro e squadro, pois em
português o sinônimo de ladro é “ladrão”, palavra próxima, porém oxítona, modificando
totalmente a rima, ou então “gatuno”, “larápio”, palavras trissílabas, e além disso
inadequadas ao contexto, uma por ser muito coloquial, outra excessivamente altissonante,
fugindo da simplicidade do termo banal usado por Dante.
Na frase do verso 8, ribadendo sé stessa sí dinanzi, que em italiano se refere ao
ato de rebater a ponta de um prego de forma a prendê-lo firmemente na madeira – o que
metaforicamente a serpente fez em relação ao homem – a solução encontrada dá uma ideia
bastante próxima do original.
Tratando-se do verso 11, de incinerarti si che piú non duri, foi transformado em
“se a mais impuros”, e, a seguir, em “Teus filhos vão, nessa mortal carreiraɁ”, perdendo-se,
ao deixar de lado o teor do verso 12, poi che ‘n mal fare il seme tuo avanzi?, a ideia da
semente trazida, segundo a lenda, pelos soldados de Catilina, escória da sociedade que teria
fundado Pistoia. Dante faz uma referência, uma citação aos antepassados dos pistoienses,
enquanto Machado traz uma nova ideia, fazendo recair sobre os descendentes dos habitantes
da cidadeo ônus das más ações. Se o objetivo primeiro dos tradutores tradicionais é sempre a
conservação do sentido, este é um caso em que o sentido foi totalmente invertido, porém
houve a compensação com a palavra “carreira”, que, de certa forma, retoma a ideia de
continuidade entre antepassados e descendentes.
Nos versos 26 che, sotto ‘l sasso di monte Aventino, traduzido como “Que, sob as
rochas do Aventino, ousado” e 32, sotto la mazza d’Ercule, che forse, traduzido como “Sem
lhe doer um décimo ao nefando” houve o acréscimo de dois adjetivos para compor o verso e
obter a rima, “ousado” e “nefando”, e este último adjetivo remete, por suas implicações
de “perverso” , “ malvado”, às opere biece (obras más) do centauro Caco.
Para Bizarri (1965, apud Augusto de Campos, 2003, p. 182), na época essa era a
tradução mais perfeita em português “não apenas pela correta interpretação e pelo respeito à
forma métrica original, mas também por conservar ao máximo, compativelmente com a
diferença linguística, o ritmo e o estilo de Dante”. Bizarri assinala que esse Canto viria a ser
46 
     

reputado pela crítica como “um dos mais interessantes e complexos do poema, devido aos
problemas de técnica expressiva e de linguagem poética impostos pela ousadia da figuração”.
Podemos encontrar, ainda uma vez, em A tarefa do tradutor, uma indicação do
fenômeno que se apresenta em quase todas as traduções mais antigas da Commedia: para
Benjamin (2008, p. 70), o original sofre alterações, embora continue vivo, pois vida é tudo
que se transforma e se renova; haveria modificações e amadurecimento numa pós-vida das
palavras do autor, que seriam, na época em que foram escritas, “uma tendência de sua
linguagem poética”, mas que então poderiam não mais existir como tal. Na visão de
Benjamin, um novo ponto de vista poderia ser observado no que está estruturado: o que
parecia novidade, agora poderia não apresentar o frescor de antes, e o que era moderno
antigamente poderia estar agora datado.
Machado põe nessa tradução a concisão, um fator constante em sua própria obra.
Estão ausentes grande parte dos adjetivos comumente encontrados em outras traduções do
mesmo Canto, as inversões são mínimas, assim como o apoio dos gerúndios para término das
frases.

3.1.2 – JOSÉ PEDRO XAVIER PINHEIRO– 1888

Intelectual de uma época em que se podia até mesmo encontrar um Imperador-


tradutor, como é o caso de Dom Pedro II, que traduziu partes da Commedia33, há, além disso,
a possibilidade de que a tradução poética do Canto XXV feita por Machado de Assis tenha
levado Pinheiro a tentar uma empresa mais arrojada.
Isadora Maleval (2012) explicita alguns dados34 que podem dar uma ideia do
contexto histórico em que esse tradutor se situava. Baiano, nascido em 1822, Xavier Pinheiro
tinha o curso de humanidades e era membro do Conservatório Dramático. Jornalista, oficial
da Secretaria dos Negócios da Justiça do Império e da Secretaria do Ministério da Agricultura,
Comércio e Obras Públicas, e, além da tradução da Commedia, autor de obras didáticas como
o “Epítome de História” e um compêndio sobre gramática do português, nunca publicado.
Xavier Pinheiro era funcionário público, foi autor de compêndios escolares e de dois

                                                            
33
Cf. artigo de Romeu Porto Daros sobre essa tradução. Disponível em: http://revistas.fflch.usp.br/manuscritica/
article/view/2063/1898. Acesso 12-12-2017
34
cf.artigode.IsadoraTavaresMaleval.Disponível.em: http://www.encontro2010.rj.anpuh.org/resources/anais/8/12
76708595_ARQUIVO_TextoparaANPUH2010.pdf. Acesso em 04-12-2015.
47 
     

romances, além de três peças teatrais35. Contam-se ainda traduções de obras tão heterogêneas
quanto tratados sobre agricultura e uma obra sobre retórica religiosa, porém, não há
referências a uma obra em versos.
Quando procuramos observar o viés teórico que Xavier Pinheiro poderia ter
empregado para traduzir a Divina Commedia, nos damos conta de que não havia na época
aquilo a que hoje chamamos de “teorias de tradução”, embora o texto de Schleiermacher,
Über die verschiedenen Methoden des Übersetzens, de 1835, pudesse ser conhecido de muitos
tradutores, e antes disso, as teorias de Cícero e os ditames de São Jerônimo sobre o assunto já
pudessem fazer parte do cabedal de conhecimento dos eruditos.
A tradução de Xavier Pinheiro:

1-Al fine de le sue parole il ladro Assim dizia o roubador e, alçando


2-le mani alzò con amendue le fiche Ambas as mãos, que figuravam figas
3-gridando: “Togli, Dio, ch’a te le squadro!” “Toma, ó Deus” exclamou “o que eu te mando”.
4-Da indi in qua mi fuor le serpi amiche Serpes me foram desde então amigas:
5-perch’una li s’avvolse allora al collo Porque logo uma ao colo se enroscava,
6-come dicesse “Non vo’ che piú diche”; Como a dizer: - “Não quero que prossigas!”
7-e un’altra a le braccia, e rilegollo, Tolhendo-lhe outra os braços, se enlaçava
8-ribadendo sé stessa sí dinanzi, Diante sobre o peito, e o movimento
9-che non potea con esse dare un crollo. Com rebatido vínculo atalhava.
10-Ahi Pistoia, Pistoia, ché non stanzi Ah! Pistóia! ah! Pistóia! o incendimento
11- d’incenerarti sí che piú non duri Teu decreto, extinguido nome impuro,
12-poi che ‘n mal fare il seme tuo avanzi? Pois dás da estirpe tua ao vício aumento!
13-Per tutt’i cerchi de lo’nferno scuri Tão soberbo não vi no abismo escuro,
14-non vidi spirto in Dio tanto superbo, Contra Deus outro esp’rito; nem o ousado,
15-non quel che cade a Tebe giú da’ muri. Que de Tebas caiu morto do muro.
16-El si fuggí che no parlò piú verbo; Sem mais dizer fugira o condenado.
17-e io vidi un centauro pien di rabbia Eis rábido centauro vi correndo
18-venir chiamando: “Ov’è, ov’è l’acerboɁ” A gritar: ̶ “onde está o celerado Ɂ”
19-Maremma non cred’io che tanta n’abbia Nem tem Marema de répteis horrendo
20-quante bisce elli avea su per la groppa Bando igual ao que o dorso carregava
21-infin ove comincia nostra labbia. Té onde a humana forma está-se vendo.
22-Sovra le spalle, dietro da la coppa, Na espádua, abaixo da cerviz pousava,
23-con l’ali aperte li giaccia un draco; As asas estendendo, atroce drago,
24-e quello affuoca qualunque s’intoppa. Que fogo a quanto encontra arrevesava.
25-Lo mio maestro disse: “Questi è Caco, “É Caco” ̶ o Mestre diz – “ que a imane estrago
26-che, sotto ‘l sasso di monte Aventino, Afeito do Aventino se aprazia,
27-di sangue fece spesse volte laco. Sob as penhas, de sangue em fazer lago.
28-Non va co’ suoi fratei per un cammino, “Dos seus irmãos não segue a companhia,
29-per lo furto che frodolente fece Por haver depredado, fraudulento,
30-del grande armento ch’elli ebbe a vicino; Armentio, que próximo pascia.
31-onde cessar le sue opere biece “Tiveram fim seus crimes: golpes cento
32-sotto la mazza d’Ercule, che forse Sobre ele desfechou de Alcide a clava:
33-gliene diè cento, e non sentí le diece” Aos dez perdera já a vida o alento”. ̶
34-Mentre che sí parlava, ed el trascorse, Foi-se o centauro enquanto assim falava.
35-e tre spiriti venner sotto noi, Abaixo eis três espíritos chegando,
                                                            
35
Disponível em https://pt.wikisource.org/wiki/Autor:Jos%C3%A9_Pedro_Xavier_Pinheiro. Acesso 03-08-2016.
48 
     

36-de’ quai né io né ‘l duca mio s’accorse Nos quais nenhum de nós ida atentava
37-se non quando gridar: “Chi siete voi Ɂ”; “Quem sois Ɂ” ̶ romperam súbito bradando.
38-per che nostra novella si ristette, A narração então suspende o Guia;
39-e intendemmo pur ad essi poi. E só deles curamos, escutando.
40-Io non li conoscea; ma ei seguette, Nenhum dessa companhia eu conhecia.
41-come suol seguitar per alcun caso, Mas estão, como às vezes acontece,
42-che l’un nomar un altro convenette, Um, chamando por outro, assim dizia:
43-dicendo: “Cianfa, dove fia rimaso Ɂ”; “Onde é Cianfa, que assim desapareceɁ”
44-per ch’io, acciò che ‘l duca stesse atento, Dedo nos lábios fiz nesse momento
45-mi puosi ‘l dito su dal mento al naso. A Virgílio sinal por que atendesse.
46-Se tu se’or, lettore, a creder lento Em crer o que eu contar se fores lento,
47-ciò ch’io dirò, non sarà maraviglia, Não há de ser, leitor, para estranhado;
48-ché io che ‘l vidi, a pena il mi consento. Quase o que eu vi descrê meu pensamento.

Neste fragmento, no verso 3: gridando: “Togli, Dio, ch’a te le squadro!”


percebe-se que a tradução “Toma, ó Deus” exclamou ‘o que eu te mando’” se atém ao
sentido do original, com exceção do trecho sublinhado, ch’a te le squadro, que se refere a
ajustar com o esquadro, tal como o faria um pedreiro, e que foi alterado para um termo que
fizesse rima.
Também o verso 10, Ahi Pistoia, Pistoia, ché non stanzi – que originalmente
pergunta ao Conselho de Pistoia por que não delibera (stanzi) sobre o incêndio da cidade, suas
iniquidades, e transforma-se em “o incedimento teu decreto”. Pinheiro, atendo-se ao vocábulo
“decreto”, procura formar uma semelhança, uma sorte de compensação; a pergunta torna-se
uma afirmação e uma ordem. Dante, aqui, não ordena, pergunta, e a continuação da frase: si
che piú non duri– que significa “assim que mais não perdure” – foi alterada para “extinguido
nome impuro”, sem remota relação com a frase de Dante, configurando um acréscimo para
obtenção da rima.
O verso 16 acrescenta um substantivo “o condenado”, para fazer rima com o verso
18, “o celerado”; os versos 19 e 20 se valem do preenchimento da frase com “de répteis o
horrendo bando”; o adjetivo “atroce” vem a seguir para completar o verso.
“Imane estrago Afeito do Aventino se aprazia” aponta os crimes de Caco, sem
que Dante tenha mencionado dessa forma, pois, no verso 26 diz somente che, sotto ‘l sasso di
monte Aventino. Podemos falar aqui até mesmo de uma forma de recriação avant la lettre.
“Afeito”, sinônimo para acostumado, retoma spesse, “muitas vezes”. Dante, em sua expressão
lacônica, diz apenas “Este é Caco, que, sob a rocha do monte Aventino, de sangue fez muitas
vezes lago”. Para facilitar a rima, Xavier Pinheiro estende o verso, introduzindo uma noção
de destruição e o suposto prazer do Centauro em matar. Temos então um caso de tradutor ̸
autor, criando e recriando o texto.
49 
     

No verso 32, sotto la mazza d’Ercule, che forse - Ercule é substituído por Alcide,
o outro nome pelo qual o semideus é conhecido. Isso certamente não altera a compreensão, e
é caso único entre as traduções cotejadas.
Gerúndios e particípios são usados para completar o verso:

1.alçando –
3.mando –
17. correndo –
21. vendo -
23. estendendo –
29. depredado –
35.chegando –
37. bradando –
39. escutando.

E, enquanto isso, o texto incha,

10-Ahi Pistoia, Pistoia, ché non stanzi Ah! Pistóia! ah! Pistóia! o incendimento
11- d’incenerarti sí che piú non duri Teu decreto, extinguido nome impuro,

25-Lo mio maestro disse: “Questi è Caco ,“É Caco” ̶ o Mestre diz – “ que a imane estrago
26-che, sotto ‘l sasso di monte Aventino, Afeito do Aventino se aprazia,

e as inversões se sucedem:

19-Maremma non cred’io che tanta n’abbia Nem tem Marema de répteis horrendo
21-infin ove comincia nostra labbia. Té onde a humana forma está-se vendo.
23-con l’ali aperte li giaccia un draco; As asas estendendo, atroce drago,
28-Non va co’ suoi fratei per un cammino ,“Dos seus irmãos não segue a companhia,
32-sotto la mazza d’Ercule, che forse Sobre ele desfechou de Alcide a clava:

O trecho acima descreve bem a dificuldade apontada por Benjamin, a respeito do


envelhecimento de uma tradução: A Commedia, traduzida por Xavier Pinheiro no fim do
século XIX, mostra as marcas linguísticas de uma época em que o Parnasianismo era a moda
na poesia. O rebuscamento nas expressões literárias era valorizado, o que poucos autores, a
exemplo de Machado de Assis, deixavam de seguir.
50 
     

9-che non potea con esse dare un crollo. Com rebatido vínculo atalhava;

vínculo pode ser um sinônimo de nó; efetivamente a serpente se enrolava no pecador, que
não podia fazer um movimento (crollo) daí a ideia dos nós, que, no entanto, sobrecarrega a
tradução.

17-e io vidi un centauro pien di rabbia Eis rábido centauro vi correndo

rábido é um termo erudito, do latim rabidu (Ferreira, p.1179).

23-con l’ali aperte li giaccia un draco; As asas estendendo, atroce drago.

atroz - do latim atroce, (Ferreira, p. 159). O tradutor escolheu usar a palavra latina em vez de
atroz.

Notamos que, com as palavras usadas nos exemplos o tradutor buscava compor a
métrica, que não alcançaria se tivesse posto seus sinônimos, “nó”, “raivoso” e “atroz”, sendo
os dois casos perfeitamente cabíveis na época de Pinheiro. No entanto, o significado pode não
ser tão claro para alguns leitores atuais.
51 
     

3.1.3 - JOÃO TRENTINO ZILLER -1953

Mapa do Inferno, ilustração de Sandro Botticelli para a Divina Commedia, c.148536


https://en.wikipedia.org/wiki/Divine_Comedy_Illustrated_by_Botticelli

Nascido no Tirol, em 1878, primeiro padre, depois pastor metodista, professor de


latim, português, geografia, história, autor de Pequenos Reparos Filológicos, A verdadeira
chave dos Lusíadas, Geografia Política do Mundo, Ziller lança, em 1953, a tradução em
português da Divina Comédia, a qual será relançada em 1978. Depois, em 2011 ̸ 2012, a tradução vem
novamente a público numa edição monumental, com os desenhos feitos por Botticelli para a
Commedia entre 1480 e 1510.
Nas palavras do próprio Ziller no fac-símile do prefácio da primeira edição,
podemos observar o enfoque tradutório utilizado:
Confesso que não tentei traduzir o pensamento, acompanhando fielmente a
letra, mas interpretando o gênio. Aliás, construções e formas diferentes,

                                                            
36
 Disponível em https://en.wikipedia.org/wiki/Divine_Comedy_Illustrated_by_Botticelli. Acesso 12-12-2017 
A ilustração mostrada acima dá início ao Inferno na edição mais recente da tradução de Ziller. Cada Canto vem
encabeçado por uma das imagens desenhadas por Botticelli, e embora faltem à coleção original cinco gravuras,
quatro delas foram substituídas por gravuras feitas por um discípulo de Botticelli, e a última faltante, uma do
Paraíso, foi deixada em branco. A edição é bastante diferente das mais conhecidas, uma vez que o texto, segundo
os comentários na própria edição, “preserva a orientação dos desenhos e dos textos na página, fazendo com que
o livro seja lido verticalmente, de cima para baixo”, como era a forma original pensada por Botticelli. No livro
traduzido, apresenta-se o desenho e, nas duas páginas seguintes, em uma, o texto em italiano e, a seguir, na
outra, a tradução.
 
52 
     

inevitáveis na passagem para outro idioma, não alteram a essência do


conjunto. (ZILLER, 2012, p. 66)

Em artigo que comenta o lançamento dessa tradução da Commedia, Lucchesi


(2011) destaca que, seguindo a tradição brasileira, “a nova edição da Commedia integra-se
nas falhas e acertos de nossa tradição” e que a complexidade da obra, levada para outros
idiomas, acaba sempre por ser simplificada em suas asperezas e obscuridades, e ainda tendo
escamoteadas as “palavras infames” e os “notáveis neologismos que parecem esmaecidos e
bem comportados, longe da alta voltagem do texto de partida”.
Sterzi, Referindo-se à mesma reedição da tradução de Ziller, comenta que
[...]é uma tradução mais eficaz no conjunto do que no detalhe: se a lemos
em comparação verso a verso com o original, pode soar claudicante;
mas se a lemos menos atentos à força singular das formulações vocabulares e
figurativas do que à fluidez da sucessão dos fatos é proveitosa.[...]
(STERZI, 2011).37

O crítico prossegue dizendo que Ziller tem inclinação para abstratizar que é
sólido em Dante, banalizando as frases, além de buscar interpretar as metáforas dantescas,
enquanto dilui a originalidade de Dante em lugares-comuns. 
Trata-se da primeira tradução completa da Commedia editada no Brasil no Século
XX, após tanto tempo de hegemonia da tradução de Xavier Pinheiro. No entanto, como nos
alerta Arrojo (1993,p.19) o tradutor faz parte do seu tempo, do seu entorno, e traz consigo um
cabedal de conhecimentos, dos quais não pode fugir quando traduz. No caso de Ziller, as
escolhas tradutórias parecem remeter a um cenário senão semelhante, bastante próximo ao
que determinou a tradução de Xavier Pinheiro, calcada no parnasianismo da época, e segue a
mesma prescrição quanto às inversões e adjetivações, deixando de lado a ordem direta e a
parcimônia dantesca.
Editada pela primeira vez em 1953, a tradução de João Trentino Ziller viria a
público em duas outras oportunidades, 1978 e 2011 ̸ 2012. Benjamin nos alerta sobre as
modificações que pode sofrer o original, e que assim também uma tradução é vítima do tempo
em que foi realizada. Expressões e construções bem aceitas na década de 1950 mostram-se
hoje datadas, se bem que não cheguem a soar incompreensíveis. Porém, não apenas os termos

                                                            
37
Disponível em http://www.editorapeiropolis.com.br/wpcontent/uploads/2011/03/Clipping_OESP_26.02.11.pd
f. Acesso em 12-12-2017
 
53 
     

antiquados soam estranhos: ausentes em Dante, aqui se observam os acréscimos para facilitar
a rima, além dos adjetivos.
A seguir, a tradução de João Trentino Ziller
1-Al fine de le sue parole il ladro Após isto, o ladrão, em ato obsceno,
2-le mani alzò con amendue le fiche, ambas as mãos aos céus ergueu, bradando:
3-gridando: “Togli, Dio, ch’a te le squadro!” Toma, infame, é para ti, Deus, que aceno”.
4-Da indi in qua mi fuor le serpi amiche, “Foram-me então as serpes bajulando,
5-perch’una li s’avvolse allora al collo, pois uma lhe envolveu forte a garganta,
6-come dicesse “Non vo’ che piú diche”; para impedi-lo de seguir falando;
7-e un’altra a le braccia, e rilegollo, os braços outra quase lhe quebranta
8-ribadendo sé stessa sí dinanzi, em envolver-lhos e se torce à frente
9-che non potea con esse dare un crollo. a lhe tirar a ação qualquer e quanta.
10-Ahi Pistoia, Pistoia, ché non stanzi Por que não marcas imediatamente,
11-d’incenerarti sí che piú non duri, Pistoia, a tua destruição total,
12-poi che ‘n mal fare il seme tuo avanzi Ɂ pois que superas tua vil semente Ɂ
13-Per tutt’i cerchi de lo’nferno scuri Do tormento em nenhum ciclo infernal
14-non vidi spirto in Dio tanto superbo, réu achei contra Deus assim soberbo
15-non quel che cade a Tebe giú da’ muri. nem o gigante, em Tebas colossal.
16-El si fuggí che no parlò piú verbo; Rápido, após, fugiu sem dizer verbo.
17-e io vidi un centauro pien di rabbia Vi um centauro ali chegar, raivoso,
18-venir chiamando: “Ov’è, ov’è l’acerboɁ” gritando: “Onde, onde está o vil acerboɁ”
19-Maremma non cred’io che tanta n’abbia, No brejo de Marema, venenoso,
20-quante bisce elli avea su per la groppa tantas serpentes não habitam, creio,
21-infin ove comincia nostra labbia. quantas tinha no corpo esse monstruoso;
22-Sovra le spalle, dietro da la coppa, de asas abertas um dragão no meio
23-con l’ali aperte li giaccia un draco; dos ombros carregava e tudo inflama
24-e quello affuoca qualunque s’intoppa. o que resvala no seu corpo feio.
25-Lo mio maestro disse: “Questi è Caco ,“Caco, me disse o Mestre, ele se chama”,
26-che, sotto ‘l sasso di monte Aventino, que na aventina rocha recortada
27-di sangue fece spesse volte laco. com sangue transformou a greda em lama.
28-Non va co’ suoi fratei per un cammino, Dos seus irmãos não segue a mesma estrada,
29-per lo furto che frodolente fece que o roubo dos armentos fraudulento
30-del grande armento ch’elli ebbe a vicino; impõe-lhe mais difícil caminhada.
31-onde cessar le sue opere biece Da hercúlea maça golpes mais de cento
32-sotto la mazza d’Ercule, che forse lhe destruíram intenções malditas:
33-gliene diè cento, e non sentí le diece”. do inferno dez lhe abriram o aposento.”
34-Mentre che sí parlava, ed el trascorse, Enquanto essas palavras eram ditas
35-e tre spiriti venner sotto noi, Caco passou e três ombras chegavam,
36-de’ quai né io né ‘l duca mio s’accorse, que nos foi dado ver só, quando, aflitas,
37-se non quando gridar: “Chi siete voi Ɂ”; olhando para nós: “Quem sois Ɂ” gritavam.”
38-per che nostra novella si ristette, Calamo-nos, então; nosso cuidado
39-e intendemmo pur ad essi poi. foi observar os três que conversavam.
40-Io non li conoscea; ma ei seguette, Eu não os conheci, mas, como é dado
41-come suol seguitar per alcun caso, na conversa chamar-se mutuamente,
42-che l’un nomar un altro convenette, aconteceu que um deles, perturbado,
43-dicendo: “Cianfa, dove fia rimaso Ɂ”; disse: “Cianfa por que está ausente Ɂ
44-per ch’io, acciò che ‘l duca stesse atento onde ficou Ɂ”Por isto supliquei
45-mi puosi ‘l dito su dal mento al naso. ao caro Mestre, em modo reverente,
46-Se tu se’or, lettore, a creder lento silêncio e observação. Leitor, não sei
47-ciò ch’io dirò, non sarà maraviglia, se tardo a crer será o que declaro
48-ché io che ‘l vidi, a pena il mi consento. porém, se o fores, não me admirarei;
eu mesmo achei o fato incrível, raro.
54 
     

A primeira terzine segue as soluções dos tradutores anteriores. Porém, Ziller,


fugindo à inevitavel suavização da imprecação insultuosa a Deus: “Togli, Dio, ch’a te le
squadro!”, antepõe ao nome sagrado um adjetivo injurioso “infame”, como uma forma de
compensação.
O verso 8, ribadendo sé stessa sí dinanzi, foi solucionado como “em envolver-
lhos e se torce à frente”, embora ribadendo tenha o mesmo significado de “rebatendo” em
português, e pudesse ser empregado sem alterar o som e o sentido.
Uma serpente se atira ao pescoço da vítima, outra se enrola em seus braços,
impedindo seus movimentos: no verso 9, che non potea con esse dare un crollo, e ela não
consegue se mexer: “Os braços outra quase lhe quebranta” é uma explicação excessiva.
Enquanto que, no verso 11, d’incenerarti sí che piú non duri– “de incendiar-te até
que mais não dures”, torna-se “Pistoia, a tua destruição total”, o tradutor não foge do tema,
apesar de não fazer referência à destruição pelo fogo preconizada por Dante. Traduzido por
“pois que superas tua vil semente Ɂ”, o verso 12, poi che ‘n mal fare il seme tuo avanzi Ɂ
mantém a referência folclórica à semente (do povo), trazida por Catilina, general romano
cujas tropas, formadas pela escória dos soldados, teriam fundado Pistoia.
No verso 26, o adjetivo “aventina” recupera che, sotto ‘l sasso di monte Aventino,
com a frase “que na aventina rocha recortada”. Já o verso 27, di sangue fece spesse volte
laco, que ficou - “com sangue transformou a greda em lama”, muda o verso dantesco,
perdendo-se a hipérbole do lago de sangue.
No verso 30 “impõe-lhe mais difícil caminhada”, e “do inferno dez lhe abriram o
aposento” verso 33, são acréscimos que se justificam para compor a rima e dar explicações. A
inversão dos versos, o 32 pelo 31 não altera o teor da terzine.
No verso 34, notamos o uso da palavra “ombras” – ombra, plural ombre,
“sombra” em italiano. A utilização da palavra “sombras” não alteraria o número de sílabas,
pela elisão entre o “s” final de “três” e o inicial de “sombras”. Versos 35 e 36: o adjetivo
“aflitas” e a frase “olhando para nós”, inserção para completar o verso, e o acréscimo de
vários advérbios, com o mesmo objetivo; além disso, a sonoridade das rimas dantescas se
modifica.
Já nos versos 44, 45 e 46 o tradutor perde a oportunidade de recuperar o gesto,
comum até hoje, de levar o dedo aos lábios pedindo silêncio,substituído por uma inversão de
atitude; em Dante é um gesto simples, cotidiano, mas que aqui se transforma em “súplica” e
“reverência”. A seguir, verificamos que a terzine 46,47 e 48, que forma um todo, frase que
deveria terminar no verso 48, se alonga até o verso 49.
55 
     

No verso 14, spirto foi trocado por “réu”; no verso 15, non quel che cade a Tebe
giú da’ muri se transformou em“nem o gigante, em Tebas colossal”, que escamoteia a
informação da queda e ainda acresce um substantivo e um adjetivo; verso 19: “No brejo de
Marema, venenoso” ajunta uma informação sobre a condição do local, e outro adjetivo para
fazer a rima com “monstruoso”, no verso 21.
Os versos sublinhados mostram os trechos em que o tradutor, para preencher o
verso e completar a rima, tomou a liberdade de acrescentar palavras inexistentes no original:
“em ato obsceno” e “infame”: o apoio de dois adjetivos; o gerúndio, que modifica o sentido
de amiche, em que o poeta considera “amigas” as serpentes, e que em “bajulando”, inverte o
sentido da frase e as serpentes se tornam aduladoras do poeta.
Há ainda os hipérbatos recorrentes nesta tradução, recurso utilizado também na
tradução de Xavier Pinheiro.

3.1.4 - DANTE MILANO – 1953

Nasce no Rio de Janeiro em 1899, morre em Niterói em 1991. Só se ausenta dessa


região para uma visita ao pintor Cândido Portinari, no interior de São Paulo. Seu pai, um
músico, abandonou a família quando Milano era criança; sem recursos para estudar na escola
regular, faz-se autodidata, aprende línguas, trabalha em jornais (Jornal da Manhã, Gazeta de
Notícias), depois vem a ser funcionário público. Conhece e se torna amigo de escritores, tais
como Olegário Mariano e Manuel Bandeira; traduz Horácio e Dante.
Embora seja um poeta ligado ao movimento modernista, não publica seus poemas
e textos com a mesma frequência dos escritores dessa época e na ocasião do auge do
Modernismo. Pelo contrário, frequentemente inutiliza suas produções, e apenas em 1948
publica um primeiro e único livro: “Poesias”, com cerca de 140 poemas, sendo por isso, na
acepção de Vinícius de Morais, um “poeta bissexto”. Sérgio Buarque de Holanda, em artigo
de março de 1949, ao comentar o lançamento do livro de Milano, afirma que o envolvimento
do poeta com o modernismo significou apenas “quando muito, um enriquecimento de
expressão, jamais uma abdicação deliberada de sua modalidade originária”, pois “sempre se
conservou rigorosamente à margem de inovações literárias que pouco lhe ofereciam de
atraente, a ele que bebera em fontes antigas e puras.”38
                                                            
Cf. Leituras da poesia de Dante Milano em jornais, de Vanessa Moro Kukul. Disponível em
http://www.abralic.org.br/anais/arquivos/2016_1491262684.pdf.
56 
     

Sobre a tradução de poesia, o próprio Milano (1979, p. 292) se manifesta dizendo


que o poema, que demorou tanto para nascer e deixar de ser apenas um sonho, padece ao ser
transportado para a indiferença de uma língua estranha, na qual “irá perder para sempre o som
intraduzível, a cor indefinível”. Além disso, acrescenta o autor, esse verso inflexível, criado
por muito tempo de elucubração, será visto a seguir partido, tendo suas palavras
recombinadas, e isso será uma violação da obra do poeta.
Durante muitos anos, Dante Milano fica encarregado do Museu da Magia Negra
da Polícia Civil do Rio de Janeiro. Correa (2013)39, em uma pesquisa sobre “o tombamento
(1938) do Museu da Magia Negra da Polícia Civil ̸ RJ (Correa, 2008), explica que esse Museu
foi dirigido por Milano por muitos anos e, na opinião do crítico, essa seria a origem de
“marcas indeléveis na sua poesia”, relativas, segundo o crítico, ao “imaginário do mal”40,
fartamente disseminado pelas salas e instalações do museu.
No entanto, quando observamos atentamente a obra de Milano, vemos que a
erudição do poeta alcançava dimensões mais vastas, não cingida apenas a essa vertente
preconizada pelo crítico. O poeta realizou estudos sobre Mallarmé, Leopardi, Augusto dos
Anjos, e traduziu Baudelaire e Dante; se se pode falar de alguma influência, podemos
observar que Milano (1979, p. 132) faz ecoarem no seu poema Metamorfoses as
transformações do Canto XXV, a cuja tradução se dedicou.
Em 1988, a Academia Brasileira de Letras lhe concedeu o prêmio Machado de
Assis, pelo conjunto da obra.41
Entre os três cantos do Inferno que traduziu, Dante Milano incluiu o XXV, e esta
aproxima-se da tradução de Machado de Assis: concisa, com poucos adjetivos, evitando os
hipérbatos. Analisamos a tradução como se apresenta na edição de 1953, dos Cadernos de
Cultura do MEC, uma vez que, na edição de 1979, da obra completa do tradutor, há algumas
alterações.
Dante Milano:

1-Al fine de le sue parole il ladro Assim disse o ladrão, e levantando


2-le mani alzò con amendue le fiche, bem alto ambas as mãos fazendo figas
3-gridando: “Togli, Dio, ch’a te le squadro!” exclamou: “Toma, Deus! É a Ti que as mando!”
                                                                                                                                                                                                          
A autora faz referência ao artigo de Sérgio Buarque de Holanda Mar enxuto, publicado no Diário de Notícias,
Quarta Seção, Rio de Janeiro, 06/03/1949.
39
http://www.psicopatologiafundamental.org/uploads/files/posteres_iv_congresso/mesas_iv_congresso/mr58-
alexandre-fernandes-correa.pdf
40
Corrêa, Alexandre Fernandes. Análise cultural do torrão dos infernos: imaginário do mal nas poéticas de Dante
Milano e Nauro Machado. Estud. Lit. Bras. Contemp., Dez 2012, no.40, p.213-233. ISSN 2316-4018
Cf. o trabalho de Alexandre Fernandes Correa, A experiência da poesia do amor em Dante Milano. Ver
referências.
57 
     

4-Da indi in qua mi fuor le serpi amiche, Tenho agora as serpentes por amigas,
5-perch’una li s’avvolse allora al collo, que uma, enroscada, lhe apertou a goela
6-come dicesse “Non vo’ che piú diche”; como a lhe dizer: “Nada mais digas”,
7-e un’altra a le braccia, e rilegollo, e outra logo em seus braços se enovela
8-ribadendo sé stessa sí dinanzi, formando tantos nós e tantas peias
9-che non potea con esse dare un crollo. que ele não pôde libertar-se dela.
10-Ahi Pistoia, Pistoia, ché non stanzi Ah, Pistoia, por que não te incendeias,
11-d’incenerarti sí che piú non duri, para que não perdures, já que impuros
12-poi che ‘n mal fare il seme tuo avanziɁ crimes são mal de raça em tuas veias!
13-Per tutt’i cerchi de lo’nferno scuri Nem nos antros do Inferno mais escuros
14-non vidi spirto in Dio tanto superbo, vi alma contra Deus tão revoltada,
15-non quel che cade a Tebe giú da’ muri. nem o tebano que caiu dos muros.
16-El si fuggí che no parlò piú verbo; Ele foi indo, sem dizer mais nada;
17-e io vidi un centauro pien di rabbia e um centauro furioso o perseguia
18-venir chiamando: “Ov’è, ov’è l’acerboɁ” bradando: “Onde, onde estás, alma danada Ɂ”
19-Maremma non cred’io che tanta n’abbia, Nem na Maremma há tanta bicharia
20-quante bisce elli avea su per la groppa quanto em sua garupa pululando
21-infin ove comincia nostra labbia. vi, até o ponto em que homem se fazia.
22-Sovra le spalle, dietro da la coppa, Em seus ombros, à nuca se agarrando,
23-con l’ali aperte li giaccia un draco; de asas abertas, um dragão estava
24-e quello affuoca qualunque s’intoppa. em sua volta fogo vomitando.
25-Lo mio maestro disse:“Questi è Caco, “Aquele é Caco, ̶ o Mestre me explicava ̶
26-che, sotto ‘l sasso di monte Aventino, que escondido nas rochas do Aventino
27-di sangue fece spesse volte laco. lagos de sangue entorno derramava.
28-Non va co’ suoi fratei per un cammino, Longe de seus iguais, outro destino
29-per lo furto che frodolente fece segue, porque com fraude o furto fez
30-del grande armento ch’elli ebbe a vicino; do vizinho rebanho; desatino
31-onde cessar le sue opere biece que pôs fim a seus atos, sob os pés
32-sotto la mazza d’Ercule, che forse e sob a clava de Hércules lhe dando
33-gliene diè cento, e non sentí le diece”. cem golpes, de que apenas sentiu dez.”
34-Mentre che sí parlava, ed el trascorse, Enquanto assim falava e o outro ia andando,
35-e ter spiriti venner sotto noi, três espíritos vieram até nós,
36-de’ quai né io né ‘l duca mio s’accorse, que eu e o meu guia só notamos quando
37-se non quando gridar: “Chi siete voi Ɂ”; de perto nos gritaram: “Quem sois vósɁ”;
38-per che nostra novella si ristette, pelo que interrompendo aquele caso
39-e intendemmo pur ad essi poi. atentos fomos ao que vinha após.
40-Io non li conoscea; ma ei seguette, Eu não os conhecia, mas acaso,
41-come suol seguitar per alcun caso, como acontece, um deles revelou-me
42-che l’un nomar un altro convenette, quem era outro que vinha com atraso,
43-dicendo:“Cianfa, dove fia rimasoɁ”; quando: “E Cianfa, onde está?” lhe disse o nome;
44-per ch’io, acciò che ‘l duca stesse atento, e ante o meu guia levo cauteloso
45-mi puosi ‘l dito su dal mento al naso. o dedo ao lábio, que sentido tome.
46-Se tu se’or, lettore, a creder lento Leitor, se porventura for custoso
47-ciò ch’io dirò, non sarà maraviglia, crer no que vou dizer-te, não admira,
48-ché io che ‘l vidi, a pena il mi consento. pois eu, que o vi, acreditar não ouso.

Como nas traduções anteriores, o verso 3 não abrange o significado do original,


por não terem sido encontradas palavras que rimassem ou mesmo que explicassem o sentido,
e quanto ao verso 8, ribadendo sé stessa si dinanzi, encontrou-se o tradutor na mesma
situação. Já no verso 12, poi che ‘n mal fare il seme tuo avanzi Ɂ, de alguma forma, na
palavra “raça” recuperou-se algo do sentido original, remetendo a seme; perdeu-se, no
58 
     

entanto, o senso de continuidade, de recrudescimento do mal que repousa em avanzi. Na


edição de 1979, Milano corrige, de certa forma, essa lacuna, usando “pois em duros crimes,
superas tua antiga raça”. No verso 24, e quello affuoca qualunque s’intoppa, que poderia ser
traduzido como “e incendeia qualquer um com quem topa”, assim mesmo, do verbo
intoppare, deparar, topar, o tradutor preferiu “em sua volta fogo vomitando”. Porém, na nova
edição da tradução, Milano, alterando os versos 23 e 24 para “de asas abertas um dragão
lançava ̸ fogo em quem quer que lhe passasse ao lado”, aproximou do original o teor da frase
traduzida.
Os acréscimos são mínimos, no verso 30, “desatino”, para fazer a rima com
“destino”, e no verso 31, “sob os pés”, visando a rima com “dez”, e não alteram muito o
sentido, enquanto as sonoridades estão preservadas em boa parte do fragmento analisado.
Nos versos 19-20, tanta n’abbia, quante bisce42, Milano traduz por “há tanta
bicharia – quanto”; embora sejam palavras sem correspondência vocabular, o tradutor
aproveita a semelhaça de sonoridade entre bisce e bicharia, conseguindo uma composição
criativa. 
Pelo fragmento estudado aqui, as alterações ocorridas na nova versão de 1979
visaram limpar a tradução de quase todos os gerúndios usados primitivamente para formar as
rimas. Apenas no verso 29, “segue, porque furtou mais de uma vez”, que substituiu “segue,
porque com fraude o furto fez”, Milano efetuou uma troca que deixou para trás uma palavra
importante, “fraude”, extraída de frodolente, “fraudulento”, que assevera o impacto da ideia
de Dante a respeito do Centauro.O tradutor optou por desfazer a aliteração anteriormente
obtida na frase, e que acompanhava aquela composta pelo próprio Dante, desfazendo assim a
semelhança de sonoridades que tinha antes, nessa frase, com o original.

 
 
 
 
 
 
 

                                                            
42
Treccani: Genero (Natrix) de serpentes difundidas no hemisfério setentrional; chamadas também, em italiano,
bisce, de hábitos prevalentemente aquáticos, nutrem-se geralmente de anfíbios, que capturam na água. Na Itália
estão presentes a Natrix de coleira (Natrix natrix), e a Natrix tesselata.
http://www.treccani.it/enciclopedia/ricerca/bisce/. Acesso 20-10-2017.
59 
     

3.1.5 -CRISTIANO MARTINS - 1976

A sucinta nota biográfica da Associação Nacional dos Escritores43 informa as


datas de nascimento e morte, 1912 e 1981, seu diploma em direito, o cargo de professor
universitário, sua filiação à Academia Mineira de Letras e à própria Associação, além de falar
sobre seus livros de poemas, Brejo das Almas e Elegia de Abril; a nota esclarece ainda que
Martins escreveu ensaios sobre Camões e Goethe, além de ter traduzido e comentado Rilke, e
destaca também a tradução da Commedia. Entretanto,é possível compreender mais sobre o
escritor e tradutor na leitura do alentado comentário que precede a tradução lançada pela
Itatiaia, no qual Martins demonstra seu conhecimento não apenas sobre Dante, mas também a
respeito da época em que este viveu e das circunstâncias em que escreveu a Commedia.
44
Encontramos o artigo de Lucchesi (2012), “Elogio da Transparência no qual o
crítico afirma que essa tradução de Martins é “a mais acabada tradução”, referindo-se ao fato
de esse autor ser “o único poeta dos que traduziram integralmente a viagem de Dante”;
Lucchesi põe em relevância, ainda, o ritmo equilibrado e a ordenação das terzine dantesche.
No mesmo artigo, Lucchesi se refere à suavização empregada por Martins dos
termos dantescos, das “rimas duras e ásperas, das expressões vulgares”, atitude que, conforme
se verifica nas leituras realizadas para a efetivação deste trabalho, encontra-se em quase todos
os tradutores brasileiros da Commedia.
Quanto às ideias de Martins (1976, p.43) a respeito de poesia, encontramos em
seu ensaio sobre Goethe a afirmação de que um poema pode ser encarado de duas formas,
segundo a formação do leitor: o poema em si mesmo, sem preocupações sobre o pensamento
ou a personalidade do autor, o que fará com que apenas o poema nos cause impressão, não
havendo especulações sobre o que lhe deu origem; sua forma e conteúdo bastarão para
comunicar a mensagem. Por outro lado, quando se considera o poema levando em conta quem
o produziu, ou, nas palavras de Martins, “buscando descer aos fatos ou episódios que lhe
hajam constituído o verdadeiro fundamento”, a comparação poderá ser útil para compreender
o próprio poema em seu caminho desde a inspiração e atribuir-lhe novas dimensões dentro de
“sua unidade feita quase sempre de fundas complexidades”.
Por outro lado, quanto à tradução, Martins (p.34), procura desmistificar a ideia de
que, uma vez aprendidas as línguas para as quais se vai traduzir, seja possível a passagem das
                                                            
43
http://www.anenet.com.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=235:cristiano-martins&ca
tid=35:escritores&Itemid=61. Acesso 20-09-2017 - na aba “membros-sóciosfundadores”.
  44
 Disponível em http://www.academia.org.br/artigos/elogio-da-transparencia  
 
60 
     

obras literárias de um idioma para o outro. Nesse sentido, explicita que, pela tradução, há a
transmissão de significados, sentidos de construção, o objetivo ou como se configuram as
idéias, mas, conforme o autor, “a beleza e a força de expressão, pouquíssimas vezes podem
ser captadas em tal gênero de transposição, pois são indissociáveis de sua forma original e do
espírito do idioma”.
Em outro ensaio, “A Estranha Viagem”, Martins comenta que, em se tratando de
narrativas de viagens, essas apresentam frequentemente um teor de recreação, abstraindo
sempre o aspecto de literalidade, de arte ou de filosofia: a poesia não serve para esse tipo de
narrativa, mas em alguns casos, exatamente relativos a estranhas viagens, alguns poetas se
serviram da poesia para relatar uma viagem ao Inferno, e entre eles se encontra Dante.
Martins (1976, p. 134) observa ainda que Dante toma por base o cristianismo para a sua visão
de Inferno, mas que “emprega a poesia, a razão mágica ou intuitiva, e não a razão analítica ou
discursiva” sendo que ao invés da filosofia, é a poesia que pode nos levar “à revelação das
verdades essenciais, ao coração da vida e do mundo”.
Afirma também que a razão de a Commedia sobreviver até hoje não se deve ao
assunto, ou aspecto científico, nem mesmo ao filosófico, o qual estaria ligado ao que estava
em voga na Idade Média, e nem à “sua expressão intelectual”, mas à “sua admirável
expressão poética”. Levando-se em conta esse conceito do autor, vemos que sempre traduziu
ou escreveu sobre poetas de grande expressividade, que tiveram lugar assinalado na literatura
ocidental. Martins traduziu Baudelaire e escreveu sobre o poeta francês; também sobre
Leopardi, Mallarmé, Antero de Quental, além de Manuel Bandeira e Augusto dos Anjos, e,
além da tradução de três Cantos do Inferno, produziu ainda um ensaio sobre a poesia de
Dante, no qual discorre sobre a comparação, usada pelo florentino em sua obra, em
contraponto com a metáfora utilizada por muitos outros poetas.
Além de sua ligação com a poesia e com a tradução, Martins escreveu crítica
literária, em vários jornais, ao longo da vida. Assim sendo, em um de seus artigos (1976,
p.155), podemos conhecer o pensamento do autor sobre esse ramo da literatura, também
exercido por ele. Ao se pronunciar sobre a crítica literária, enfatiza que ela distingue as “obras
representativas das não representativas, o que é essencial do que é acessório, o autêntico ou
genuíno do falso e do postiço, a beleza da ausência de beleza ou do feio.”
Adverte ainda que cada livro é único, e cada leitor o transforma em um livro
diferente. Para ele, “a obra de arte, em qualquer circunstância, é produto da sensibilidade
individual, não só de quem a cria ou exprime, como de quem a recria pela leitura ou pela
contemplação”.
61 
     

Na tradução de Matins encontramos algumas inversões e acréscimos, que têm por


objetivo preencher o decassílabo e conseguir a rima:

1-Al fine de le sue parole il ladro Ao fim de seu anúncio, eis que o ladrão
2-e mani alzò con amendue le fiche, ambas as mãos ergueu, fazendo figas,
3-gridando: “Togli, Dio, ch’a te le squadro!” aos gritos: “Toma-as, Deus, que tuas são!”
4-Da indi in qua mi fuor le serpi amiche, Pareceram-me as víboras amigas
5-perch’una li s’avvolse allora al collo, quando uma eu vi, cingindo-lhe a garganta,
6-come dicesse “Non vo’ che piú diche”; tão irada, a ordenar : ̶ Nada mais digas;
7-e un’altra a le braccia, e rilegollo, e outra que aos ímpios braços se levanta,
8-ribadendo sé stessa sí dinanzi, e baixando-os aos flancos, novamente,
9-che non potea con esse dare un crollo. imóveis e doridos os quebranta.
10-Ahi Pistoia, Pistoia, ché non stanzi Ah, Pistoia, Pistoia! De repente
11-d’incenerarti sí che piú non duri, por que não ardes, com teu povo impuro,
12-poi che ‘n mal fare il seme tuo avanziɁ que supera no mal a vil semente Ɂ
13-Per tutt’i cerchi de lo’nferno scuri Pelos diversos graus do reino escuro
14-non vidi spirto in Dio tanto superbo, ninguém vi mais soberbo e mais ousado
15-non quel che cade a Tebe giú da’ muri. mesmo o que em Tebas desabou do muro
16-El si fuggí che no parlò piú verbo; Mas dali se abalou, presto, calado;
17-e io vidi un centauro pien di rabbia um Centauro chegava, em fúria insana,
18-venir chiamando: “Ov’è, ov’è l’acerbo Ɂ” exclamando: “Onde está o desgraçado Ɂ”
19-Maremma non cred’io che tanta n’abbia, Não creio que em Marema, na Toscana,
20-quante bisce elli avea su per la groppa cobras houvesse mais do que mostrava
21-infin ove comincia nostra labbia. no dorso, onde nascia a forma humana.
22-Sovra le spalle, dietro da la coppa, Aos ombros, sobre a nuca transportava
23-con l’ali aperte li giaccia un draco; as asas tensas flamígero dragão
24-e quello affuoca qualunque s’intoppa. que à sua frente tudo incendiava.
25-Lo mio maestro disse: “Questi è Caco, “Este é Caco”, explicou-me o Mestre então,
26-che, sotto ‘l sasso di monte Aventino, que nas cavernas ermas do Aventino
27-di sangue fece spesse volte laco. lagos verteu de sangue e de irrisão.
28-Non va co’ suoi fratei per un cammino, Com seus irmãos não cumpre igual destino,
29-per lo furto che frodolente fece pois ao ver um rebanho ali por perto
30-del grande armento ch’elli ebbe a vicino; roubou-o inteiro, usando ardil supino.
31-onde cessar le sue opere biece Mas foi seu fim, porque Hércules coberto
32-sotto la mazza d’Ercule, che forse por cem golpes deixou-o, à clava erguida,
33-gliene diè cento, e non sentí le diece”. e aos dez primeiros não foi mais desperto.”
34-Mentre che sí parlava, ed el trascorse, Enquanto ele falava e, na corrida,
35-e ter spiriti venner sotto noi, já longe ia o centauro, vindo a nós,
36-de’ quai né io né ‘l duca mio s’accorse, sem ser sua chegada percebida,
37-se non quando gridar: “Chi siete voi Ɂ”; três vultos nos gritaram: “Quem sois vós Ɂ”
38-per che nostra novella si ristette, E suspendendo o tema, prontamente,
39-e intendemmo pur ad essi poi. a ver, olhamos, de quem era a voz.
40-Io non li conoscea; ma ei seguette, Não os reconheci; mas casualmente
41-come suol seguitar per alcun caso, como às vezes sucede a nosso lado,
42-che l’un nomar un altro convenette, ouvi falar um deles, claramente,
43-dicendo: “Cianfa, dove fia rimaso Ɂ”; aos outros: “Cianfa, onde terá ficado Ɂ”
44-per ch’io, acciò che ‘l duca stesse atento, Alertando Virgílio a estar atento,
45-mi puosi ‘l dito su dal mento al naso. aos meus lábios levei o dedo alçado.
46-Se tu se’or, lettore, a creder lento Não te espantes, leitor, se fores lento
47-ciò ch’io dirò, non sarà maraviglia, em compreender o que te vou narrar,
48-ché io che ‘l vidi, a pena il mi consento. pois eu, que o vi, descri por um momento.
62 
     

Os escolhos encontrados pelos tradutores citados anteriormente são idênticos nos


versos 3 e 8; a seguir, no verso 9, “imóveis e doridos os quebranta” tenta traduzir che non
potea con esse dare un crollo, acrescentando para isso dois adjetivos; no verso 10, um “de
repente” para produzir a rima, e no 11, “com teu povo impuro”, outra vez para complemento,
da mesma forma no verso 19, incluindo “na Toscana”; outro adjetivo “ermas” no verso 26,
além de um substantivo “irrisão”, no verso 27, em acúmulo à imagem já hiperbólica do lago
de sangue.
No verso 30, notamos o acréscimo do adjetivo “supino”. Nos versos 38, 40 e 42,
a rima conseguida por meio de advérbios inexistentes no original, para perfazer a rima. Os
versos seguintes, em contrapartida, seguem as expressões de Dante, e conservam a sonoridade
das rimas.
Os adjetivos e advérbios, nesse trecho, recompõem os espaços silábicos. Por outro
lado, nessa tradução, encontramos os marcadores da época em que foi feita, a
contemporaneidade com a literatura, a língua e a cultura brasileiras dos anos 1970.

3.1.6 - ÍTALO EUGENIO MAURO - 1998

Nasce em São Paulo em 1909, e completa os estudos secundários no Colégio


Dante Alighieri. Estuda então na Universidade de Nápoles, Itália, onde se forma em
Engenharia Civil. No Brasil, trabalha como engenheiro e arquiteto. Traduz a Commedia
depois de aposentar-se, durante o período de 1986 a 1998. Recebe por essa tradução o Prêmio
Jabuti, em 2000. Porém, mesmo tendo recebido esse prêmio, não escapa da crítica ácida de
Maurício Santana Dias45, que, em artigo de 1999, afirma que, ao contrário da aparente
facilidade de traduzir pequenos trechos da Commedia, a tradução completa necessita o
conhecimento amplo das línguas em questão, e também algo de insanidade e obsessão. Indica
o trabalho, em sua opinião, meticuloso de Mauro, mas determina que esse esforço de mais de
uma década resultou irregular, embora o elogie como tendo superado, em alguns aspectos,
outras traduções em português. Insiste na literalidade empregada pelo tradutor, que na opinião
do articulista empanou a “graça e musicalidade do poema”. Cita Borges e Eliot, que referem a
ordem direta do escrito dantesco, enquanto Mauro, procurando manter a literalidade da obra e
a métrica, se desfaz frequentemente da ordem direta da frase. Refere-se ainda ao ritmo, que na

                                                            
45
Maurício Santana Diashttp://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs25079913.htm 25-7-99. Acesso 6-1-2017
63 
     

acepção do crítico é “francamente claudicante”. Embora o tradutor tenha conservado a


literalidade, a metrificação e a rima, a energia dos versos estaria perdida, sendo que, na
opinião do crítico, a tradução, em português, tem altos e baixos.
Para Dias, estaria aí configurada certa “angústia da influência” (Bloom, 1991)
que, entre outros aspectos, caracteriza a necessidade de todo poeta de diferenciar-se e se
afastar dos que o precederam. Dias critica ainda o pudor demonstrado por Mauro, uma vez
que esse, tão atento à literalidade “evita cuidadosamente a tradução direta de certas
expressões dantescas, preferindo recorrer a eufemismos”.
Mauro traduziu assim as estrofes de Dante, pondo face a face original e tradução:

1.Al fine de le sue parole il ladro No final de sua fala, esse ladrão
2.le mani alzò con amendue le fiche, ambas as mãos ergueu, fazendo figas,
3.gridando: “Togli, Dio, ch’a te le squadro!” e gritou: “Toma, Deus, que pra ti são”.
4.Da indi in qua mi fuor le serpi amiche, Foram-me as serpes, nessa hora, amigas,
5.perch’una li s’avvolse allora al collo, pois que uma então se lhe enrolou no colo
6.come dicesse “Non vo’ che piú diche”; como a dizer: “Não quero que mais digas”.
7.e un’altra a le braccia, e rilegollo, E uma e outra os braços lhe amarrou, num rolo
8.ribadendo sé stessa sí dinanzi vivo tão rijo e reapertado à frente,
9.che non potea con esse dare un crollo. que tranco algum poderia descompô-lo.
10.Ahi Pistoia, Pistoia, ché non stanzi Ah! Pistoia, Pistoia, induz tua mente
11.d’incenerarti sí che piú non duri, a incinerar-te, prá não viver mais
12.poi che ‘n mal fare il seme tuo avanzi Ɂ no mal, que excede a tua própria semente!
13.Per tutt’i cerchi de lo’nferno scuri Não vira ainda, nos cercos infernais,
14.non vidi spirto in Dio tanto superbo, ser como este, mais contra Deus soberbo
15.non quel che cade a Tebe giú da’ muri. que o que morreu de Tebas nos umbrais;
16.El si fuggí che no parlò piú verbo; e ele fugiu sem pronunciar mais verbo.
17.e io vidi un centauro pien di rabbia Ora, um Centauro, de raiva estuante,
18.venir chiamando: “Ov’è, ov’è l’acerbo Ɂ” chegou clamando: “Onde está esse acerbo?”
19.Maremma non cred’io che tanta n’abbia, Não é Maremma tão exuberante
22.Sovra le spalle, dietro da la coppa, No ombro, atrás da nuca alcandorado,
23.con l’ali aperte li giaccia un draco; tinha um dragão de medonha hispidez,
24.e quello affuoca qualunque s’intoppa. que poria fogo em quem fosse encontrado.
25.Lo mio maestro disse: “Questi è Caco, Disse o Mestre: “Esse é Caco que tu vês,
26.che, sotto ‘l sasso di monte Aventino, que no Aventino, à frente do seu ninho,
27.di sangue fece spesse volte laco. De seus irmãos não comparte o caminho,
29.per lo furto che frodolente fece pelo doloso furto que ele urdiu
30.del grande armento ch’elli ebbe a vicino; do grão rebanho que lhe era vizinho;
31.onde cessar le sue opere biece donde toda a sua torpe ação caiu
32.sotto la mazza d’Ercule, che forse sob a clava de Hércules, que cem
33.gliene diè cento, e non sentí le diece”. lhe deu, e ele não mais de dez sentiu”.
34-Mentre che sí parlava, ed el trascorse, Enquanto isso, passava Caco além,
35-e ter spiriti venner sotto noi, e vieram três espíritos para nós,
36-de’ quai né io né ‘l duca mio s’accorse, que ele despercebera e eu também,
37-se non quando gridar: “Chi siete voi Ɂ”; até ele nos gritarem: “Quem sois vós Ɂ”
38-per che nostra novella si ristette, Nossa conversa aí se interrompeu,
39-e intendemmo pur ad essi poi. e só lhes demos atenção após.
40-Io non li conoscea; ma ei seguette, Eu não os conhecia, mas sucedeu
41-come suol seguitar per alcun caso, (como outras vezes pode ter-se dado)
64 
     

42-che l’un nomar un altro convenette, que um nomeou um companheiro seu,


43-dicendo: “Cianfa, dove fia rimaso Ɂ”; dizendo: “Onde terá Cianfa ficado Ɂ”,
44-per ch’io, acciò che ‘l duca stesse atento, donde, pra que meu guia ficasse atento,
45-mi puosi ‘l dito su dal mento al naso. pus sobre a boca um dedo levantado.
46-Se tu se’or, lettore, a creder lento Se a acreditar, leitor, tu serás lento,
47-ciò ch’io dirò, non sarà maraviglia, no que eu direi, não me será surpresa,
48-ché io che ‘l vidi, a pena il mi consento. pois eu, que o vi, a custo inda o sustento.

Mauro faz uma tradução mantendo o sentido do original, com exceção do terceiro
verso, em que todos os tradutores chegaram praticamente ao mesmo consenso. Os versos 8, 9
e 10 são traduzidos literalmente; no entanto, no decorrer da tradução as irregularidades na
contagem das sílabas tornam-se mais comuns e o acento, frequentemente, se perde. As
modificações nos versos: 19: “tão exuberante”;22: “alcandorado”; 23: “de medonha hispidez”;
referem-se a adjetivos acrescentados.
No verso 26: sotto ‘l sasso di monte Aventino, sob a rocha do monte Aventino,
transformado em “no Aventino, à frente do seu ninho”, com “ninho” usado para formar a
rima, sendo que rocha, a tradução de sasso, não está no mesmo campo lexical de “ninho”.
O versos 28, 29 e 30 seguem também o original, sem no entanto manter a
vivacidade do verso dantesco.
Nos versos 41, 43 e 45, eis o apoio dos gerúndios para formar as rimas, além de,
nos versos 9, 13, 24, 40 e 44, o número de sílabas métricas extrapolar o decassílabo.

3.1.7 - JORGE WANDERLEY– 2004

Nascido em Pernambuco em 1938, formado em Letras e Medicina, mudou-se em


1976 do Recife para o Rio de Janeiro, onde lecionou literatura, na UERJ, até seu falecimento
em 1999. Produziu poesia desde os anos 1960; traduziu Borges,Shakespeare, Lawrence
Durrell, Valéry.46De Dante, não fez apenas a tradução do Inferno, obra publicada
postumamente, mas também a Lírica, em 1996. Nas notas explicativas sobre o Canto XXV,
Wanderley (2004) ressalta a tradução de Machado de Assis e, assim como outros, procura
uma explicação para o porquê da escolha em traduzir esse Canto. “Nada mais narração do que
este canto, e talvez por isso mesmo, nada seria mais caro ao narrador brasileiro”, nas palavras
de Wanderley.

                                                            
46
Sobre Jorge Wanderley, ver página em http://www.algumapoesia.com.br/poesia2/poesianet248.htm
65 

Prefaciando o Inferno, Lucchesi47 afirma que “Jorge [Wanderley] foi um leitor


iluminado, e que buscava, tanto quanto possível, a fidelidade canina, no sentido de Benjamin
(na Tarefa), longe do refrão traduttore, traditore”. E ainda, que diante das dificuldades do
original, “Não escolheu o caminho fácil, quando o original era duro e opaco. Não facilitou o
que em Dante não passava de enigma.” Refere-se ainda às exaustivas consultas feitas por
Wanderley aos comentaristas da Commedia, além da leitura de todas as traduções existentes
para o português, não se recusando nem mesmo a estudar uma das mais antigas, a do Barão da
Vila da Barra, escolho quase intransponível nas traduções brasileiras.
Vemos a seguir a tradução de Wanderley, editada em 2004, cinco anos após a
morte do poeta e tradutor. Esta é uma tradução que se apega à métrica e aos acentos, além de
dizer diretamente o que precisa ser dito, sem se deter no falso pejo que muitas vezes, nas
várias traduções estudadas, esconderá os termos crus da vulgari eloquentia.

1.Al fine de le sue parole il ladro Finda a fala, o ladrão em desafio


2.le mani alzò con amendue le fiche, ergueu as mãos, disse fazendo figas:
3.gridando: “Togli, Dio, ch’a te le squadro!” “Toma, Deus, para Ti é que as envio!”
4.Da indi in qua mi fuor le serpi amiche, Passei a ver as serpes como amigas;
5.perch’una li s’avvolse allora al collo, logo uma lhe enrolou seu colo acima
6.come dicesse “Non vo’ che piú diche”; como a dizer-lhe: “Que nada mais digas”;
7.e un’altra a le braccia, e rilegollo, e outra a seus braços, já porque os comprima
8.ribadendo sé stessa sí dinanzi, amarrando-se a sua frente, impede
9.che non potea con esse dare un crollo. o movimento, tanto os aproxima.
10.Ahi Pistoia, Pistoia, ché non stanzi Ah, Pistoia, Pistoia, que não pedes
11.d’incenerarti sí che piú non duri, por te queimares e não ter futuro,
12.poi che ‘n mal fare il seme tuo avanzi Ɂ já que no mal passas quem te antecede!
13.Per tutt’i cerchi de lo’nferno scuri Não vi no inferno, em cercos tão escuros,
14.non vidi spirto in Dio tanto superbo, espírito ante Deus assim acerbo:
15.non quel che cade a Tebe giú da’ muri .nem no que em Tebas despencou dos muros.
16.El si fuggí che no parlò piú verbo; E foi-se o condenado sem mais verbo:
17.e io vidi un centauro pien di rabbia e um centauro então vi, cheio de ira
18.venir chiamando: “Ov’è, ov’è l’acerbo Ɂ” perguntando: “Onde está, que é tão soberboɁ”
19.Maremma non cred’io che tanta n’abbia, Nem mesmo, creio, em Marema existira
20.quante bisce elli avea su per la groppa tanta serpente quanto em tal garupa
21.infin ove comincia nostra labbia48. subindo à boca do centauro eu vira.
22.Sovra le spalle, dietro da la coppa, E desde os ombros sua nuca ocupa
23.con l’ali aperte li giaccia un draco; um dragão de asa aberta que a quem veja
24.e quello affuoca qualunque s’intoppa. cobre cuspindo fogo em catadupas.
25.Lo mio maestro disse: “Questi è Caco, Disse o Mestre: “É Caco; na vã peleja
26.che, sotto ‘l sasso di monte Aventino, lá sob as penhas do Monte Aventino
27.di sangue fece spesse volte laco. lagoas de seu sangue fez sobejas.
28.Non va co’ suoi fratei per un cammino, Rebanho próximo roubou malino;

47
Disponível em https://periodicos.ufsc.br/index.php/fragmentos/article/view/6550. Acesso 26-01-2017.
labbia. – (Treccani) – Substantivo feminino (do latim labia, plural de labium), usado apenas na Vita Nova e na
Commedia, sempre no singular, significando « vulto », « aspecto ». Por extensão, nostra labbia indica, no corpo
do centauro Caco, a parte que tem natureza e aspecto humano. Disponível em
http://www.treccani.it/enciclopedia/labbia_%28Enciclopedia-Dantesca%29/. Acesso 26-05-2017
66 
     

29.per lo furto che frodolente fece não segue com seus pares, é o revés
30.del grande armento ch’elli ebbe a vicino; pelo seu furto e fraude tão ferinos;
31.onde cessar le sue opere biece cessaram seus enganos, através
32.sotto la mazza d’Ercule, che forse da clava de Hércules ̶ que de pancadas
33.gliene diè cento, e non sentí le diece”. lhe deu bem cem e ele nem sentiu dez.”
34-Mentre che sí parlava, ed el trascorse, Falando o mestre, o outro fugiu na estrada,
35-e tre spiriti venner sotto noi, e eis três espíritos diante de nós,
36-de’ quai né io né ‘l duca mio s’accorse, dos quais nem guia nem eu vimos nada,
37-se non quando gridar: “Chi siete voi Ɂ”; até que eles gritaram: “Quem sois vós Ɂ”
38-per che nostra novella si ristette, Cessou nossa conversa nesse instante,
39-e intendemmo pur ad essi poi. e passamos a ouvir a sua voz.
40-Io non li conoscea; ma ei seguette, Eu não os conhecia; mas adiante
41-come suol seguitar per alcun caso, como numa conversa ocorre o ensejo,
42-che l’un nomar un altro convenette, um nomeou o outro nesse instante,
43-dicendo: “Cianfa, dove fia rimaso Ɂ”; dizendo:“E Cianfa, onde está que não o vejo Ɂ”
44-per ch’io, acciò che ‘l duca stesse atento, Eu queria manter o guia atento:
45-mi puosi ‘l dito su dal mento al naso. dedo nos lábios, mostrei tal desejo.
46-Se tu se’or, lettore, a creder lento Se te ocorre, leitor, captares lento
47-ciò ch’io dirò, non sarà maraviglia, o que digo, não fiques espantado,
48-ché io che ‘l vidi, a pena il mi consento. que eu que vi, creio mal no que comento.

No verso 7 o uso da frase “já porque os comprima” é tem o objetivo de fazer a


rima, porquanto o verso seguinte “amarrando-se à sua frente” já traduz rilegollo e, de certa
forma, também ribadendo sé stessa sí dinanzi.
Observa-se em Wanderley a conservação geral do sentido, tendência que o
próprio tradutor explicou no prefácio do Inferno: “Como nas traduções que fiz e terei feito ̶
espanta-me que haja quem não perceba ̶ , meu ponto essencial é o da qualidade poética do
texto resultante, sem descuidar do rigor na transposição do sentido do original para ele”. No
entanto, temos o verso 21: infin ove comincia nostra labbia – traduzido por Wanderley como
“subindo à boca do centauro eu vira”. Labbia, no italiano de Dante, tanto pode significar
“boca” quanto “aspecto”; neste caso significa aspecto humano. Verso 22: “sua nuca ocupa”,
assonância que visa ecoar coppa, embora os campos semânticos de coppa e “ocupa” sejam
diferentes. Versos 24 e 25: “em catadupas” e “na vã peleja”, acréscimos para facilitar a rima;
Verso 27: di sangue fece spesse volte laco: a tradução exibe um pequeno equívoco, pois, com
“lagoas de seu sangue fez sobejas”, leva a pensar que é o sangue do centauro, mas trata-se de
sangue alheio, uma vez que o centauro era ladrão e assassino.
Nos versos 28 e 30, o acréscimo dos adjetivos “malino” e “ferinos”, para
completar a rima. Por outro lado, Wanderley é o único tradutor que conservou a aliteração do
verso 29, embora, não cabendo a tradução nesse verso, a tenha utilizado no verso seguinte. É
necessário lembrar que Milano, na primeira edição da sua tradução do Canto XXV, fizera uso
67 
     

da aliteração, mas, que na edição de 1979, modificou o verso, perdendo assim esse recurso,
recuperado aqui por Wanderley:

29.per lo furto che frodolente fece não segue com seus pares, é o revés
30.del grande armento ch’elli ebbe a vicino; pelo seu furto e fraude tão ferinos;

Em artigo crítico, Luchesi49 elogia o grande trabalho de tradutor de Wanderley,


além de sua ética, pois “apostou numa prática aberta, dialetizante – negociando perspectivas
entre línguas e culturas distantes” e ainda que “buscava, tanto quanto possível, a fidelidade
canina, no sentido de Benjamin (na Tarefa)”.
Embora possamos concordar que exista neste caso a marca da fidelidade,
praticada pelo tradutor e ressaltada pelo crítico, principalmente, como afiançada por
Wanderley, a fidelidade ao sentido, pudemos verificar na análise deste pequeno trecho da
tradução que, como em outras traduções, o sentido não basta. Wanderley opta, sempre que
possível, pela sonoridade da rima acompanhando Dante, além das aliterações, mas, nem
sempre existe essa concordância entre o italiano e o português, e então surgem os adjetivos
em final de verso, para completar a rima.
Encontramos em Britto (2012, p.15) a afirmação de que “[à]s vezes, uma palavra
que existe num idioma simplesmente não encontra correspondência em outro, muito embora a
realidade a que ambos se referem seja a mesma.” Em nossa análise desse fragmento do Canto
XXV percebemos um escolho intransponível, pelo menos nas traduções feitas até agora.
Trata-se de Togli, Dio, ch’a te le squadro!, terceiro verso do Canto XXV, que, em todas as
traduções, permanece insolúvel em português, uma vez que “esquadrar”, que seria o sinônimo
lógico, é inaplicável, já que significa dispor ou cortar em ângulo reto, isso em ambos os
idiomas, mas que em português não tem a conotação adicional da expressão idiomática
italiana. Como exemplo em outra língua também influenciada pelo contato com os romanos,
encontra-se em inglês a tradução de square como “ajustar ou liquidar contas”, ou ainda,
“determinar, regular, colocar em lugar certo”50, o que nos leva à origem latina da palavra,
onde temos: “Quadrō, ās, āre, āvi, ātum, v. trans. e intr.- Sent. próp. Esquadriar, cortar em
esquadria. Intr: Adaptar-se, convir, quadrar”51.
Percebe-se aqui a variaçãode sinonímia pela qual a palavra passa entre o latim e o
português, enquanto em inglês, só para citar um exemplo, a sinonímia se manteve. Em
                                                            
49
 Disponível em https://periodicos.ufsc.br/index.php/fragmentos/article/viewFile/6550/6185Fragmentos,número
21, p. 165/176 Florianópolis/ jul - dez/ 2001 .
50
Novo Michaelis–dicionário ilustrado–volume I–Inglês português-1984–Melhoramentos. p.912
51
Dicionário Latino Português – Ernesto Faria – 1982 –RJ: MEC-FENAME.
68 
     

italiano: “V. Intr.: Ser exato, dito a respeito de um cálculo; ser preciso, corresponder com
exatidão. Adaptar-se perfeitamente, exemplo: É um sobrenome que lhe quadra justamente”.52.
Quando, em português, atentamos ao sinônimo “quadrar”, que, segundo Ferreira
(1975) significa também “adaptar-se, ajustar-se, amoldar-se”53, o significado de ajustar-se, ou
ajustar algo a alguém ou a alguma coisa, e no caso, do gesto obsceno feito pelo ladrão para
Deus, caberia na tradução do verso, que poderia ficar como: “Toma, Deus, a ti o ajusto!”, ou
“Toma, Deus, isto te calha!”, ou, mais acertado, “Toma, Deus, isto te quadra!”. No entanto,
essas soluções, embora se possa dizer delas que seriam mais “fieis”, nunca foram adotadas.
No oitavo verso, encontramos o termo ribadendo, de ribadere54: v. tr. (1):
ritorcere col martelo la punta del chiodo conficcato e farla rientrare nel legno affinché
stringa più forte, (isto é, retorcer com o martelo a ponta do prego e fazê-la reentrar na madeira
para que se prenda mais fortemente): poderia ser traduzido para o português, que possui a
palavra “rebatendo”, com o mesmo sentido do termo italiano,porém nenhum dos tradutores a
usou. É verdade que os dicionários de português elencam esse sentido de “rebater” como um
dos últimos sinônimos da palavra, mas ela existe. A esse respeito, Jakobson (2007, p.72)
enfatiza que “[o] trocadilho, ou, para empregar um termo mais erudito, a paronomásia, reina
sobre a arte poética; quer esta dominação seja absoluta ou limitada, a poesia por definição é
intraduzível. Só é possível a transposição criativa [...]”. Nos dois casos citados, todos os
tradutores, embora vinculados à chamada fidelidade na tradução, empreenderam uma forma
de recriação.
Tratando-se do sentido, alguns tradutores, com exceção de Augusto de Campos,
fizeram questão de frisar que suas traduções tinham um compromisso com o sentido da obra
e, de fato, a história contada nos Cantos aqui estudados pode ser recuperada em suas linhas
gerais; se se deseja contar uma história, então, as traduções alcançaram seu alvo. Há, no
entanto, nesse poema, a forma, a métrica, a concisão, a ordem direta da frase, características
de Dante, além das palavras-chave.
Todas as traduções aqui analisadas procuram seguir a forma; nas terzine
dantesche, no entanto, o decassílabo métrico termina quase sempre numa palavra paroxítona ̶
                                                            
52
Lo Zingarelli – Vocabolario della lingua italiana– 2011 – 12ª Ed.- Itália: Zanichelli.
53
Ferreira, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dic. da língua portuguesa - 1975 – RJ: Nova Fronteira.
54
Ribadire Lo Zingarelli – Vocabolario della lingua italiana – 2011 – 12ª Ed.- Itália: Zanichelli.
Treccani: Segundo a parte do dicionário dedicada à obra de Dante, essa palavra aparece apenas em Inferno
XXV, 8, “aqui é necessário explicar que a serpente se enrola estreitamente aos braços do pecador com mais
voltas (segundo Cesari) ou que (segundo Tommaseo) “faz quase anéis em seus braços”, juntando a cabeça à
cauda.” –Disponível em: http://www.treccani.it/enciclopedia/ribadire_%28Enciclopedia-Dantesca%29/
69 
     

quando isso não acontece, Dante termina com uma sílaba átona antecedida por uma tônica,
como em O folle Aragne, sí vedea io te, Purgatório, XII, 43; mais frequentemente, usa um
ditongo, como faz em...e tre spiriti venner sotto noi, Inferno, XXV, 35, ou ainda em Ellera
abbarbicata mai non fue, Inferno, XXV, 58, regra que muitas vezes não é seguida nas
traduções para o português. Machado de Assis, Dante Milano e Jorge Wanderley
apresentaram o menor número de acréscimos em final de verso para facilitar a rima.
Verificamos ainda que a reverência que a Commedia provoca em alguns de seus
tradutores escamoteia as expressões comuns e cotidianas do autor; especificamente no Canto
estudado aqui, notamos que a maioria dos tradutores não teve grande dificuldade, apenas
Machado de Assis e Xavier Pinheiro – devido por certo ao momento em que traduziram, em
que os circunlóquios a respeito de termos crus eram comuns – procuraram suavizar o
vocabulário dantesco, enquanto Ziller, tradutor mais recente, mas alocado literariamente em
uma época bem próxima dos anteriores, abranda expressões e também demonstra um zeloso
respeito em versos que, em Dante, apresentam tão somente o que poderíamos chamar de
naturalidade.

3.2 - INFERNO – CANTO I

3.2.1 - AUGUSTO DE CAMPOS - 2003

Augusto de Campos nasceu em São Paulo em 193155. Lançou seu primeiro livro
de poemas, O rei menos o reino, em 1951. Logo após iniciaria, com seu irmão Haroldo de
Campos e o escritor Décio Pignatari o grupo Noigandres56, o qual iria editar alguns números
de uma revista de mesmo nome. Os poemas em cores de Augusto de Campos, denominados
Poetamenos, de 1955, deram efetivamente início à poesia concreta no país.
Esse movimento57, encetado juntamente com seu irmão Haroldo de Campos, que
visava uma espécie de “revolta” contra as normas pré-estabelecidas na poesia do país,
procurava expressar-se de maneira renovada, numa troca constante com a arte em geral.
Augusto de Campos continuou seguindo essa diretriz, como autor e também como tradutor de
                                                            
55
Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Augusto_de_Campos. Acesso em 26-01-2017.
Omar Khouri - “Noigandres”, citada no Canto XX, de Ezra Pound (1885-1972), extraída de poema do trovador
provençal Arnaut Daniel (1150-1210), Disponível em: http://www.nomuque.net/escritosdelisboa/uncategorized
/12-a-poesia-do-grupo-noigandres-nao-nasce-concreta-torna-se/. Acesso 28-12-2017
57
Disponível em http://biblioteca.pucrs.br/curiosidades-literarias/voce-sabe-o-que-e-poesia-concreta/
70 
     

poesia. Publicou ainda ensaios e crítica, além de seu trabalho como poeta e tradutor, no qual
nos interessou, para fins desta análise, a tradução que fez de alguns cantos do Inferno.
As traduções anteriormente analisadas, desde as que se realizaram no século XIX,
até aquelas que chegaram a público quase ao fim do século XX, têm um tratamento
convencional. A tradução de Campos é fiel às ideias não convencionais do tradutor, logo, na
análise desse texto, procuramos nos ater ao alerta de Arrojo (1993, p.50), que, em seu artigo
“A que são fiéis tradutores e críticos de tradução”, comentando a polêmica surgida entre
Paulo Vizioli e Nelson Ascher a respeito das traduções de um poema de John Donne, feitas
por Vizioli e Augusto de Campos, sugere que determinada tradução poderá ser considerada
mais correta do que outra a partir do leitor, de suas ideias, do momento em que se dá a leitura,
pois o sentido do texto fonte não pode ser protegido pelo leitor, uma vez que nem o próprio
autor teria consciência das intencionalidades e “de todas as variáveis que permitiram a
produção e divulgação de seu texto”; do mesmo modo, o leitor não poderia abandonar o que o
conforma“como sujeito e como leitor”: suas vivências, valores, sua inserção no mundo.
No entanto, mesmo que o crítico, também leitor, esteja impregnado de suas
vivências particulares, é obrigatório desconfiar dessas idiossincrasias e buscar a isenção, e,
nesse caso, a alternativa mais justa seria aquela indicada por Britto58, ao se manifestar sobre a
mesma tradução de Donne, de que uma comparação é possível, uma vez que se utilize
parâmetros de análise.
Ainda segundo Arrojo, o próprio Vizioli, comentando sua tradução do texto de
Donne, enfatiza que se trata de um autor antigo, que obviamente escreve no estilo de sua
época, e um tradutor, mesmo moderno, deveria procurar manter na tradução o diapasão
linguístico da obra traduzida. Embora o original da Commedia já tenha sete séculos, no caso
das traduções que estudamos neste trabalho esse fator linguístico deve ser visto com cuidado.
Dante não tinha um idioma já estabelecido para escrever a sua obra; baseou-a no seu toscano
nativo, mas é possível que tenha modificado vocábulos, acrescentado outros que não eram
correntes à sua época, talvez até mesmo tenha encontrado novos sentidos para palavras
comuns nos dialetos conhecidos. Portanto, as expressões encanecidas que encontramos nas
traduções mais antigas para o português não são necessariamente pesquisadas para prestar
homenagem ao cabedal linguístico do autor, mas um corolário natural das experiências
vocabulares contemporâneas dos tradutores. No prefácio da tradução de três Cantos do
Inferno, Milano (1953, p.5) alerta para o “perigo de modernizar o estilo dantesco, tirando-lhe

                                                            
58
 Disponível em: www.letras.puc-rio.br/.../Britto%20-%20Fidelidade%20em%20trad.%20-%20Donne.p  
71 
     

o caráter medieval, anguloso e inflexível”; mas, segundo o tradutor, haveria ainda um perigo
maior, o de “usar um vocabulário arcaico para arremedar o passado, o que empalideceria o
estilo do Poeta, avançado e inovador”.
Em nossa análise, pudemos perceber na tradução de Campos uma tentativa de
manter o frágil equilíbrio entre fazer uma tradução moderna e manter as características de
harmonia e poeticidade da obra dantesca.
Na ausência da tradução do Canto XXV, objeto de nosso estudo, foi utilizado um
fragmento da tradução do Canto I do Inferno de Augusto de Campos
1.Nel mezzo del cammin di nostra vita No meio do caminho desta vida
2.mi ritrovai per una selva oscura, me vi perdido numa selva escura,
3.ché la diritta via era smarrita. solitário, sem sol e sem saída.
4.Ahi quanto a dir qual era è cosa dura Ah, como armar no ar uma figura
5.esta selva selvaggia e aspra e forte dessa selva selvagem, dura, forte,
6.che nel pensier rinova la paura! que, só de eu a pensar, me desfigura !
7.Tant’è amara che poco è piú morte; É quase tão amargo como a morte;
8.ma per tratar del bem ch’i’vi trovai, mas para expor o bem que eu encontrei,
9.dirò de l’altre cose ch’i’ v’ho scorte outros dados darei da minha sorte.
10.Io non so ben ridir com’io v’intrai Não me recordo ao certo como entrei
11.tant’era pien di sonno a quel punto tomado de uma sonolência estranha,
12.che la verace via abbandonai quando a vera vereda abandonei.
13.Ma poi ch’i’ fui al pie d’un colle giunto Sei que cheguei ao pé de uma montanha
14.là dove teminava quella valle lá onde aquele vale se extinguia
15.che m’avea di paura il cor compunto, que me deixara em solidão tamanha
16.guardai in alto, e vidi le sue spalle e vi que o ombro do monte aparecia
17.vestite già de’ raggi del pianeta vestido já dos raios do planeta
18.che mena dritto altrui per ogne calle, que a toda gente pela estrada guia.
19.Allor fu la paura un poco queta Então a angústia se calou, secreta,
20.che nel lago del cor m’era durata lá no lago do peito onde imergira
21.la notte ch’i passai con tanta pieta59. a noite que tomou minha alma inquieta;
22.E come quei che con lena affannata e como o náufrago, depois que aspira
23.uscito fuor del pelago a la riva, o ar, abraçado à areia, redivivo,
24.si volge a l’acqua perigliosa e guata, vira-se ao mar e longamente mira,
25.cosí l’animo mio, ch’ancor fuggiva, o meu ânimo, ainda fugitivo,
26.si volse a retro a rimirar lo passo voltou a contemplar aquele espaço
27.che non lasciò già mai persona viva. que nunca ultrapassou um homem vivo.
28.Poi ch’èi posato un poco il corpo lasso, Depois que descansei o corpo lasso,
29.ripresi via per la piaggia diserta, recomecei pelo plaino deserto,
30.sí che-‘l piè fermo sempre era ‘l piú basso. pé firme embaixo, mas incerto o passo.
31.Ed ecco, quase al cominciar de l’erta, e quando o fim da estrada estava perto,
32.una lonza leggera e presta molto, um leopardo ligeiro, de repente,
33.che di pel macolato era coverta; que de pele manchada era coberto,
34.e non mi si partia dinanzi al volto, surgiu e se postou na minha frente,
35.anzi ‘mpediva tantyo il mio cammino, e com tal vulto encheu o meu caminho
36.ch’i fui per ritornar più volte vòlto. que só “voltar” volteava em minha mente.
                                                            
59
Treccani:A forma nominativa “pieta” é usada geralmente em versos, baseada no latim porém mais diretamente
derivada do francês (v.Parodi, Língua 247) e parece ter significado distinto de “pietà”, e vale mais como
“tormento”, “angústia”, “ânsia”: Inf. I, 21, con tanta pieta (com tanta angústia, mas Buti entende como “com
tanto lamento”). Disponível em http://www.treccani.it/enciclopedia/pieta_%28Enciclopdal edia-Dantesca%29/ .
Acesso 20-05-2017.
72 
     

37.Temp’era dal principio del mattino, Era a hora do tempo matutino.


38.e ‘l sol montava ‘n sú con quelle stelle Subia o Sol seguido das estrelas
39.ch’eran con lui, quando l’amor divino que o acompanhavam quando o Amor divino
40.mosse di prima quelle cose belle; moveu primeiro aquelas coisas belas.
41.sí ch’a bene sperar m’era cagione Já não temia tanto a aparição
42.di quella fiera a la gaetta pelle daquela fera de gaiata pele
43.l’ora del tempo e la dolce stagione; à hora clara e à suave estação.
44.ma non sí che paura non mi desse Mas o temor de novo me conquista
45.la vista che m’apparve d’un leone. à imagem imprevista de um leão
46.Questi parea che contra me venisse que parecia vir na minha pista
47.con la test’alta e con rabiosa fame, com alta fronte e fome escancarada
48.sí che parea che l’aere ne tremesse. como se o ar tremesse à sua vista.
49.Ed una lupa, che di tutte brame E uma loba magra, macerada
50.sembiava carca ne la sua magrezza, de todas as espécies de avidez,
51.e molte genti fé già viver grame, que levou muita gente à derrocada,
52.questa mi porse tanto di gravezza fez-me sentir o peso dos meus pés,
53.con la paura ch’uscia di sua vista, e fiquei, preso ao pó do meu pavor,
54.ch’io perdei la speranza de l’altezza. sem esperança de sair do rés.

Campos optou pela tradução de di nostra vita por “desta vida”, e alerta que seguiu
“o curso normal da frase”, acompanhando a fluidez do verso. Em sua crítica à tradução de
Campos, Dolhnikoff60 (2012) chama a atenção para as modificações: em “o claro sentido (ou
os sentidos claros) do original”: em “me vi perdido”, o crítico chama a atenção para o fato de
que Dante não se perdeu, porém “se achou”, que é a tradução fiel de mi ritrovai .Já para o
terceiro verso Che la diritta via era smarrita, Augusto de Campos assim justifica as
alterações:
[...]Não posso negar que às vezes a minha aventura dantesca reverbera de
acentos próprios: este é, por certo, ‘o meu Dante’. Assim, aquele
inortodoxo ‘solitário, sem sol e sem saída’ que introjeto na terceira linha do
primeiro terceto e que não traduz literalmente o original mas se reporta a
uma linha do meu poema ‘O rei menos o reino, do livro homônimo, de
evidente influência dantesca, a partirda epígrafe-fraturaexposta: ‘queste
parole de colore oscuro’... Se não é literal, capta– penso eu – o espírito da
coisa, mais do que a versão lítero-banal do verso.[...] (CAMPOS, 2003,
p. 184).

Tratando-se de alterações profundas como a que vemos acima, por ser a


Commedia conhecida na literatura como “O Poema Sacro” (desde o próprio Dante, que se
refere no Canto XXV, 1,2, do Paraíso ao ‘l poema sacro al quale ha posto mano e cielo e
terra), qualquer acréscimo ou modificação poderia ser interpretada como uma heresia; nas
traduções mais antigas, até mesmo os vocábulos e expressões pesadas do próprio Dante

                                                            
60
Disponível em http://sibila.com.br/critica/a-modernidade-de-dante-via-traducao/5346
73 
     

sofrem transformações para se ajustarem à ideia geral de sacralidade e ordem moral e


religiosa: guardadas as proporções, pôr um verso da lavra do tradutor, como feito por
Campos, é como se alguém acrescentasse uma frase de um Rap ao Padre Nosso e fosse rezar
no Vaticano; podemos compreender, dessa forma, as críticas acerbas recebidas pelo tradutror.
Quanto ao terceiro verso, pode-se observar ainda que a tradução-transcriação de
Augusto de Campos tem raízes no manifesto antropófago de Oswald de Andrade61 (“Só me
interessa o que não é meu”), e ainda, remetendo a Fernando Pessoa, Campos enfatiza que
“Tradução para mim é persona”, e ainda: “É quase heterônimo. Entrar dentro da pele do
fingidor para refingir tudo de novo, dor por dor, som por som, cor por cor” (Campos,1988, p.
7apudAndré Dick)62.
Na já citada crítica “A modernidade de Dante via tradução”, Dohlnikoff questiona
o fato de Campos ter escamoteado a “via direita e perdida”, que faz com que não haja nada a
ver com a “relação de ‘via’ com o ‘cammin’”, assim como “a referência à vida virtuosa”; e
ainda sobre os versos 4, 5, 6, questiona a ausência do “claro subtexto metalingüístico”, e
quando Campos substitui os termos cosa dura por “uma figura”, o crítico enfatiza que se trata
de um “substantivo abstratizante, ‘literário’ e vazio de todo significado original”.
No entanto, no prefácio dos Cantos traduzidos, Augusto de Campos (2003, p.183)
explica que, para traduzir Dante, não é suficiente “empregar um discurso o mais direto
possível” nem “munir-se de boa métrica e de boas rimas”, mas que é necessário “estar atento
às aliterações, aos jogos de palavras, às nuances sonoras”, e segue explanando sua exigência
pessoal de que “a concretude e o despojamento vocabulares prevalecem aqui sobre a
adjetivação vaga e o ornamento fungível”.
Referindo-se a Haroldo de Campos, Augusto de Campos afirma que

[...]meu trabalho, como o de Haroldo, segue os preceitos da tradução criativa


–“tradução-arte”, como gosto de chamá-la,“transcriação”, como ele prefere.
Isto é, uma tradução que procura transpor para a língua receptora não só o
sentido mas a riqueza dos valores formais (ritmos, rimas, assonâncias,
aliterações, paronomásias, metáforas, etc.) e a poeticidade do texto
original.[...] (CAMPOS, 2003, p. 261)

Seguindo então os princípios estabelecidos na transciação, como citados acima,


Campos conservou em sua tradução os elementos, por exemplo, da aliteração do verso cinco:
                                                            
61
Ver texto do manifesto em http://www.tanto.com.br/manifestoantropofago.htm
62
Disponível em http://www.revistazunai.com/ensaios/andre_dick_augusto_de_campos.htm O artigo de André
Dick está nas referências. Esse crítico literário, diferente de Dolhnikoff, observa que no uso de verso próprio da
tradução de Dante, Augusto de Campos também se encontra – põe em cena a questão da consciência
metalinguística da intertextualidade.
74 
     

esta selva selvaggia e aspra e forte ̶ “dessa selva selvagem, dura, forte”,e também no verso
doze, che la verace via abbandonai ̶ “quando a vera vereda abandonei”, enquanto que as
rimas usadas foram: vida ̸ saída; escura ̸ figura ̸ desfigura; forte ̸ morte ̸ sorte; Campos
procurou, em português, repetir os mesmos sons das palavras de Dante: vita ̸ smarrita;
oscura ̸ dura ̸ paura; forte ̸ morte ̸ scorte, coerentemente com suas afirmações. No verso 19,
Campos utiliza um adjetivo, “secreta” para fazer a rima com “planeta” e, a seguir, no verso
21, em que Dante diz: la notte ch’i passai con tanta pieta, e que significaria na verdade “a
noite que aí passei com tanta pena”, “angústia”, “lamento”, Campos usa o recurso da
recriação, transformando a frase em “a noite que tomou minha alma inquieta”. Podemos
notar que o ritmo se conserva, e os recursos sonoros reproduzem os de Dante, enquanto que
“inquieto” está dicionarizado como “apreensivo, ansioso, aflito” (Ferreira, 1975, p.69),
remetendo ao significado original. Porém, o acompanhamento da sonoridade das rimas
dantescas se reproduz nos primeiros versos, depois enfraquece, para a seguir ser recuperado.
Ainda sobre este fragmento, Augusto de Campos justifica “certas
reetimologizações não convencionais” na tradução deste Canto , quando se refere ao
escândalo causado, entre os estudiosos de Dante, pela tradução de gaetta pelle, no verso 42,
por “gaiata pele”, e qualifica esta como sendo “uma operação poética de rejuvenescimento
linguístico”.
75 
     

CAPÍTULO IV – ENTRE TRADUÇÕES POÉTICAS

A linguagem de um poeta não pode


ser trasladada a outro idioma: pode-se
traduzir o que ele quis dizer, mas nunca o que
ele disse.
Dante Milano

Além das análises listadas até agora, de versos específicos comparados entre si,
passaremos daqui por diante a examinar características da tradução poética. Em alguns casos,
iremos nos valer das particularidades indicadas por Berman (2007, p.33) pois encontramos
tendências da tradução etnocêntrica em vários fragmentos analisados.
Segundo nos alerta Dante Milano (1953, p.7), a interpretação do que o poeta disse
é possível, embora suas palavras se percam na tradução. No estudo das traduções do Canto
XXV observamos que a ideia desenvolvida por Dante, sobre as transformações dos
condenados, o sentido geral das palavras ditas por eles, o desenrolar do começo, meio e fim
da narração se mantêm, e podemos afirmar, fazendo um cotejo com o original, que as
traduções são compreensíveis.
As traduções aqui examinadas conservam as terzine dantesche e o sistema de
rimas inventado pelo poeta, chamado de terza rima (aba, bcb, cdc, etc.). Porém, constatamos
que, na tradução poética, os hendecassílabos dantescos se transformam em decassílabos
camonianos, que têm acento tônico obrigatório na 6ª e 10ª sílabas, com outra sílaba tônica
variável, com exceção das traduções de Pinheiro e Ziller, que por vezes recorrem ao
decassílabo sáfico, com acento tônico na 4ª, 8ª e 10ª sílabas. Observe-se, a seguir, uma
comparação entre os versos mais conhecidos da Commedia e de Os Lusíadas:

Lasciate ogni speranza voi ch’entrate. (Dante – Inferno – Canto III)


As armas e os barões assinalados... (Camões – Os Lusíadas – Canto I)

O decassílabo é o verso com dez sílabas poéticas ou métricas, utilizado na língua


portuguesa desde que Sá de Miranda o trouxe da Itália por volta de 1527, juntamente com o
soneto e outras formas líricas já havia muito estabelecidas na Península. Para a nossa língua
não importa se a última palavra do verso termina ou não na sílaba métrica, podendo essa
palavra ser oxítona, paroxítona ou mesmo proparoxítona. Já o que seria para nós o
decassílabo, para a língua italiana deverá ser obrigatoriamente uma frase de onze sílabas, pois,
76 
     

embora tenha dez sílabas métricas, deve ter uma sílaba a mais, terminando sempre numa
palavra paroxítona.
Nos versos mais conhecidos de Dante e Camões nota-se a identidade das pausas,
na 2ª, 6ª e 10ª sílabas, que em Dante permanecem durante quase todo o poema, mas que em
Camões só permanecem na 6ª e 10ª, sendo que a outra pausa ocupa às vezes posição diferente
da segunda sílaba, conformando assim o decassílabo heróico.
Machado de Assis traduz o Canto XXV em decassílabos heróicos:
Acabara o ladrão, e, ao ar erguendo
As mãos em figas, deste modo brada:
“Olha, Deus, para ti o estou fazendo!”

Xavier Pinheiro mistura a acentuação:algumas vezes usa o decassílabo sáfico,


com acentuação na 4ª, 8ª e 10ª sílabas, outras vezes volta ao decassílabo heróico:
Assim dizia o roubador e, alçando
Ambas as mãos, que figuravam figas:
“Toma, ó Deus” exclamou “o que eu te mando”.

Ziller também misturou heróicos e sáficos:


Após isto, o ladrão, em ato obsceno,
ambas as mãos aos céus ergueu, bradando:
“Toma, infame; é para ti, Deus, que aceno.”

A tradução de Martins é em decassílabos heróicos :


Ao fim de seu anúncio, eis que o ladrão
ambas as mãos ergueu, fazendo figas aos gritos:
“Toma-as, Deus, que tuas são!”

Wanderley quase sempre mantém o decassílabo heróico:


Finda a fala, o ladrão em desafio
ergueu as mãos, disse fazendo figas:
“Toma, Deus, para ti é que as envio!”

Mauro procura respeitar o decassílabo heróico, apesar da cacofonia:


No final de sua fala, esse ladrão
ambas as mãos ergueu, fazendo figas,
e gritou: “Toma, Deus, que pra ti são”.

No entanto, nos versos 73 e 74 a pausa foge da 6ª sílaba e cai na 7ª:


Fez-se dois braços dos quatro malquistos:
coxas co’as pernas, barriga co’o peito,
transformaram-se em membros nunca vistos.
77 
     

Milano foi outro tradutor que optou pelo decassílabo heróico:


Assim disse o ladrão e levantando
bem alto ambas as mãos fazendo figas exclamou:
“Toma, Deus! É a ti que as mando!”

Quanto a Augusto de Campos, embora no presente trabalho só possamos lidar


com a tradução de outro Canto que não o XXV, ou seja, neste caso, o Canto I, o decassílabo
heróico também foi escolhido.

No meio do caminho desta vida


me vi perdido numa selva escura,
solitário, sem sol e sem saída.

Referindo-se a sua tradução do primeiro verso do Canto I, Campos (2003, p.181)


explica a facilidade de traduzir a poesia dantesca em nosso idioma, pois, segundo o autor, a
fluência natural do verso foi alcançada apenas seguindo “o curso normal da frase”, com a
acentuação principal na 6ª sílaba.
Entretanto, embora alguns tradutores, a de Machado de Assis, como citado por
Eduardo Bizarri (apud Augusto de Campos, 2003,p.182), tenham mantido a forma e
respeitado a métrica e, conforme Bizarri, o “ritmo e o estilo de Dante”, nem sempre esse
resultado é alcançado.
As diferenças na consecução da traduções, sua maior ou menor eficácia, a
possibilidade de agradar o público leitor e ̸ ou a crítica da época em que foram executadas
poderiam ter sua origem em fundamentos teóricos nem sempre esclarecidos pelos tradutores,
ou fundamentos práticos, devidos às idiossincrasias das línguas de chegada.
Berman (2007, p.33), em sua crítica sobre “Os dois princípios da tradução
etnocêntrica”, explicita que, no horizonte desse tipo de tradução, a obra estrangeira deveria
ser traduzida como se o autor a houvesse escrito na língua de chegada; também, que, por essa
teoria, “a tradução deve fazer com que a esqueçam”, e tudo aquilo que determina uma língua
estrangeira dentro da tradução deveria ser escamoteado, e ainda que a tradução deveria “ser
escrita numa língua normativa”; que os “estranhamentos” deveriam ser evitados. Trata-se
também de supor que a tradução seja algo que o próprio autor “teria escrito se tivesse escrito
na língua da tradução”, isto é, as palavras deveriam acompanhar o diapasão linguístico do
autor: palavras comuns traduzidas por termos igualmente comuns, para que o leitor tivesse a
impressão de estar lendo o original.
78 
     

O que se observa na crítica de Berman é que esse modo de traduzir põe em uma
perspectiva negativa tudo o que não se adapta à cultura de chegada da tradução, e qualquer
estranhamento da obra traduzida, segundo o etnocentrismo, torna a tradução menos eficaz.
Berman (2007,p.48 ̸ 62) analisou treze tendências nas traduções, mas, embora sua análise se
refira primordialmente à prosa, várias tendências podem ser encontradas na tradução de
poesia, e podemos relacionar algumas delas às traduções da Commedia aqui estudadas.
A “racionalização”, uma reordenação visando recompor as frases: as inversões de
termos nas frases, encontradas em algumas traduções da Commedia para o português, por
exemplo os hipérbatos comuns na traduções de Xavier Pinheiro e Ziller, poderiam ser
observadas como uma forma de reordenação, uma vez que era um sistema adotado na época
dessas traduções; quanto à “clarificação”, cujo objetivo é esclarecer o que originalmente se
destinava a ficar oculto ou dissimulado, encontramos um caso emblemático na Commedia, a
determinação de alguns autores e estudiosos e também de tradutores, que insistem em
descobrir o significado do veltro(Inferno, I,101), palavra ou nome que ainda é um dos
mistérios de Dante; e no primeiro verso do Canto VII, do Inferno, a frase Pape Satan! Pape
Satan aleppe!, até hoje confunde os tradutores; no caso do “alongamento”: que, sem melhorar
o texto, apenas acrescenta um volume de palavras e reforça as tendências anteriores, é um uso
comum em traduções da Commedia, quando busca ser alcançado o número de sílabas que
satisfaça à exigência métrica, ou quando o tradutor precisa de alguma palavra que faça rima.
Outra tendência encontrada em traduções da Commedia, o “enobrecimento”,
disfarça os termos menos sofisticados do texto, transformando-os em palavras aceitáveis por
uma determinada fração do público leitor: vocábulos vulgares, mesmo palavrões, que servem
para enfatizar o repúdio e a revolta de Dante quanto a pessoas ou instituições, são muitas
vezes, na tradução, transformados em circunlóquios, desviados de seu feroz teor original: na
Commedia, ao contrário de vários de seus tradutores, Dante não edulcora as palavras menos
nobres, enquanto em certas traduções para o português brasileiro notamos a propensão que
alguns tradutores têm de suavizar os vocábulos crus das invectivas dantescas, trocando-os por
palavras amenas, eufemismos ou perífrases, para evitar o confronto: temos como exemplo os
versos 115, 116 e 117 do Canto XXV, em que, embora Dante tenha feito uma descrição
ponderada e discreta, seus primeiros tradutores para o português, Xavier Pinheiro e Machado
de Assis, traduziram por circunlóquios:

Poscia li piè di retro, insieme attorti,


diventaron lo membro che l’uom cela,
79 
     

e ‘l misero del suo n’avea due porti.

Xavier Pinheiro
115-Na parte, que se esconde, se mudando,
116-Que em duas no mesquinho se fendera.
117-Enquanto o fumo os dois ia velando.

Machado de Assis
115-Os pés de trás a serpe os retorcera
116-Até formarem-lhe a oculta parte,
117-Que no infeliz em pés se convertera.

Ziller transitou entre desvelar cruamente o que, desta vez, em Dante estava
encoberto e tentar em seguida dissimular o que anteriormente fora exposto:   
116-pene tornou-se a cauda bifurcada;
117-seus pudores em pés se transformaram.

Os outros tradutores, no caso do Canto XXV, se mantiveram em media res: nem


procuraram chocar nem suavizar, mas traduziram quase exatamente as palavras de Dante:
Milano
115-Os pés de trás, que ela contorce e prende,
116-tornam-se a parte que a vergonha vela,
117-e que em duas no mísero se fende.

Martins
115-E, pois, de seus artelhos derradeiros,
116-o par o membro oculto se transmuda,
117-que no homem dividia em pés traseiros.

Mauro
115-Logo as patas de trás, junto contratas,
116-formam o membro que o homem encobre,
117-e o do coitado cinde-se em duas patas

Wanderley
115-Depois os pés de trás, junto, e a furto,
116-tornam-se o membro que no homem se vela;
117-e o do mísero, em dois se fez, num surto.

Quanto à “destruição dos “sistematismos”, segundo Berman, “estende-se ao tipo


de frases, de construção utilizada” e ainda se amplia ao “emprego dos tempos”. Com relação
80 
     

a esse tópico, observamos que, nas traduções estudadas, para facilitar a rima, alguns versos
estão no presente, outros no pretérito perfeito, e logo em seguida no imperfeito, ou até no
gerúndio, como no caso do verso 5 do Canto XXV, cujo verbo avvolgere Dante usou no
passato remoto, que em português corresponderia ao pretérito perfeito:

perch’una li s’avvolse allora al collo, traduzido por

Xavier Pinheiro: “Porque logo uma ao colo se enroscava”;


Machado de Assis: “Pois uma vi que o colo lhe prendia”;
Ziller: “pois uma lhe envolveu forte a garganta”;
Milano: “que uma, enroscada, lhe apertou a goela”;
Martins: “quando uma eu vi, cingindo-lhe a garganta”;
Mauro: “pois que uma então se lhe enrolou no colo”;
Wanderley: “logo uma lhe enrolou seu colo acima”.

Voltamos nossa atenção para o “apagamento da superposição de línguas”. Na


Commedia, os personagens falam muitas vezes em seus dialetos, ou mais propriamente, cada
personagem é identificado pelo seu jargão, seja ele de alto ou baixo nível social, e existe até
um trecho (Purgatório, XXVI:140) em que o poeta provençal Arnaut Daniel se expressa em
sua língua literária: em várias das traduções pesquisadas, esse trecho é traduzido, perdendo-se
a referência da existência de uma língua estrangeira no texto.
O caso do “empobrecimento quantitativo”, que, na acepção de Berman, “remete a
um desperdício lexical”, aparece na tradução do Canto XXV, por exemplo, no qual o verbo
squadrare tem, em italiano, uma série de sinônimos que se adequam a várias situações
diferentes; em português, por outro lado, o uso comum fixou apenas uma sinonímia, que se
refere a um substantivo, “esquadro”, objeto utilizado por pedreiros, e o verbo, “quadrar”,
tradução do verbo italiano, que perdeu seu uso, restando somente no dicionário ou em obras
literárias muito antigas.
Percebemos ainda que, nos versos 14 e 15, a anáfora utilizada por Dante não foi
replicada pela maioria dos tradutores:

14.non vidi spirto in Dio tanto superbo,


15.non quel che cadde a Tebe giù da’ muri.

Xavier Pinheiro:
81 
     

Tão soberbo não vi no abismo escuro


Contra Deus outro esp’rito; nem o ousado
Que de Tebas caiu morto do muro.

Machado de Assis

Eu, em todos os círculos escuros


Do inferno, alma não vi tão rebelada,
Nem a que em Tebas resvalou dos muros.

Ziller

Do tormento em nenhum ciclo infernal


réu achei contra Deus assim soberbo
nem o gigante, em Tebas colossal.

Martins

Pelos diversos graus do reino escuro


ninguém vi mais soberbo e mais ousado
mesmo o que em Tebas desabou do muro.

Mauro

Não vira ainda, nos cercos infernais,


ser como este, mais contra Deus soberbo
que o que morreu de Tebas nos umbrais.

Em contrapartida, Wanderley nos dá a entender sua existência, usando “não” e


“nem”, enquanto Milano a respeitou inteiramente, embora em ambos os casos estejam
intercaladas na terzine:

Wanderley:
Não vi no inferno, em cercos tão escuros,
espírito ante Deus assim acerbo:
nem no que em Tebas despencou dos muros.

Milano:
Nem nos antros do Inferno mais escuros
vi alma contra Deus tão revoltada,
nem o tebano que caiu dos muros.

Quanto à “homogeneização”, que faz desaparecer as diferenças do original –


lembramos aqui a “rima equívoca”, em que uma palavra homógrafa tem significados
diferentes, e é usada por Dante para rimar com ela mesma dentro de uma terzine – no
primeiro verso, casso significando “peito”, “tórax” e, no terceiro verso, casso significando
82 
     

“cancelado”. Extrapolando o trecho estudado aqui, não podemos deixar de notar essa
característica da poesia dantesca, a “rima equívoca”, que evoca a sua raiz provençal; o
mesmo expediente já fora usado por Dante em poema da Vita Nova63.
Dessa forma, nos versos 74, 75 e 76, observamos o recurso à “rima equívoca:
le cosce com le gambe e ‘l ventre e ‘l casso
divenner membra che non fuor mai viste.
Ogne primaio aspetto ivi era casso

De todos os tradutores aqui elencados, apenas Milano e Martins conservaram a


sonoridade da rima, sem, no entanto, chegar à proeza de repetir a rima equívoca:
Milano:
os ventres, peitos, coxas, pernas, braços,
transformaram-se em membros nunca vistos.
Do aspecto antigo não restavam traço

Martins:
e coxas , gâmbias, jelhos, peito e baço,
assumindo aleijões nunca encontrados.
Do jeito antigo não ficara traço

Berman lembra ainda a “destruição dos ritmos”: o ritmo é parte primordial na


poesia, e, portanto, na tradução de poesia. Tudo isso se perde quando o tradutor desiste de
manter as pausas encontradas no poema original, altera a pontuação, ignora os enjambements.
O original da Commedia, inclusive o Canto XXV, tem uma profusão de enjambements, de
forma que seria cansativo dar exemplos aqui. Porém, as alterações de pontuação nas traduções
visam algumas vezes diminuir o tamanho das frases, solucionar o problema das rimas e, por
vezes, ainda, o tradutor se vê na situação de mudar de lugar um verso, substituindo-o pelo
anterior ou pelo posterior, para conseguir uma palavra consoante que faça sentido e que se
encaixe no verso, como o fez Machado de Assis, que trocou de lugar os versos 31, 32 e 33,

onde cessar le sue opere biece “Hércules com a maça e golpes cento
sotto la mazza d’Ercule, che forse Sem lhe doer um décimo ao nefando
gliene diè cento, e non sentí le diece.” pôs remate a tamanho atrevimento”.
                                                            
Segundo podemos verificar em Sílvio Elia, esse estratagema vem a ser [...]o dobre. Consistia na repetição, em
cada estrofe, da mesma palavra, que rimava consigo mesma; na lira occcitânica, em cada repetição a palavra
assumia novo significado (rima equívoca), mas isso não se dá nem com o doble (Pierre Le Gentil) da arte de
trovar castelhana nem com o “dobre” da lírica portuguesa (Celso Cunha). ELIA (1974, p.296).
 
 
 
 
83 
     

Quanto ao “empobrecimento qualitativo”, que diminui o diapasão linguístico de


termos que davam expressão ao original, palavras que, no original, transmitem energia, em
que o poeta se expressa violentamente ou com virulência, para enfatizar seu ponto de vista ou
marcar uma posição, muitas vezes são substituídos por termos anódinos e inexpressivos. A
respeito disso, temos como exemplo o verso 27 - di sangue fece spesse volte laco,cuja
tradução seria “de sangue fez muitas vezes lago”:

Xavier Pinheiro: Sob as penhas, de sangue em fazer lago;


Machado de Assis: Lagos de sangue tanta vez abria;
Ziller: Com sangue transformou a greda em lama;
Donato: Nas faldas do Monte Aventino, muito sangue fez derramar;
Milano: Lagos de sangue entorno derramava;
Martins: Lagos verteu de sangue e de irrisão;
Mauro: Muitas vezes, de sangue, um lago fez;
Wanderley: Lagoas de seu sangue fez sobejas.

Observamos nesses excertos que a maioria dos tradutores se ateve à expressão


hiperbólica “lagos de sangue”, mas alguns, caso de Ziller e Donato, amorteceram o vigor da
linguagem dantesca, substituindo-a por termos mais amenos. Já Martins acrescentou um
substantivo para formar a rima, enquanto Wanderley atribuiu a perda de sangue ao próprio
centauro.
Ainda quanto ao “empobrecimento qualitativo”: segundo Berman, é a substituição
de vocábulos por outros que não têm “sua riqueza sonora, nem sua riqueza significante ou –
melhor – icônica”. Conforme o autor esse termo, “ ‘cria imagem’, produz uma consciência de
semelhança”.
No verso 82, Dante constrói uma imagem de fogo e de ardor, usando as palavras
acceso e gran di pepe, “aceso”, “inflamado”, e “grão de pimenta”:

82.Sí pareva, venendo verso l’epe


83.de li altri due, un serpentello acceso,
84.livido e nero come gran di pepe;

No entanto, enquanto na maioria das traduções a imagem se mantém, na tradução


de Martins ela se dilui:
84 
     

82.vi atirar-se outra serpente irada


83.contra os demais do grupo, o bote armando,
84.de negro e de vermelho pintalgada.
85 
     

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Desde o início deste trabalho, a obra de Benjamin, “A tarefa do tradutor”, foi a


principal referência, assim como a disparidade, para a nossa língua, entre o significado de
“tarefa” e “renúncia”, indissociável na expressão alemã Aufgabe. São muitas as renúncias a
que um tradutor tem que se submeter, principalmente no caso da tradução de poesia, e ainda
mais de um poema como a Commedia. No entanto, a vinculação apenas ao leitmotif da
renúncia na comparação das traduções restringiria as possibilidades de análise às teorias
somente de um autor, no caso, Benjamin; houve então a percepção de que Berman, em seus
livros A Tradução e a Letra ou o Albergue do Longínquo, e também em A prova do
Estrangeiro – nos quais muitas vezes cita e atualiza Benjamim – e em Pour une critique des
traductions: John Donne – quando tematiza precisamente a crítica de traduções – seria um fio
de condução pelo labirinto da Commedia mais aplicável e capaz de proporcionar a realização
de um trabalho centrado no intuito de comparar traduções.
Com referência às teorias da tradução que podemos pressupor a partir das
traduções ou com base em paratextos aos textos estudados, foi proposta neste trabalho
também uma comparação, e, nesse ponto, podemos notar que em quase todas as traduções
pesquisadas existe um privilégio do sentido.
Apenas Augusto de Campos não pautou seu trabalho de tradução exclusivamente
por esse caminho. Campos segue seu próprio curso, baseia suas traduções nas teorias a que ele
e seu irmão Haroldo de Campos deram início na literatura brasileira, primeiramente com a
ideia da criação poética, que depois se desenvolveu na recriação e posteriormente na
transcriação.
Quanto à forma, no que se refere especificamente às terzine dantesche, todos
procuraram seguir Dante.
Dante Milano nos afirma que o que se pode traduzir é o que o poeta tentou dizer, e
que as palavras dos poetas não podem ser reproduzidas, mas é possível lembrar ainda uma vez
que ninguém tem acesso ao pensamento do autor, e que, ainda que existam na língua de
chegada vocábulos sinônimos daqueles encontrados no original, nem sempre esses sinônimos
darão conta da “pretendida” significação das palavras da obra traduzida.
Embora feitas por escritores eruditos com grande habilidade no manejo da língua
portuguesa, são mais facilmente legíveis nos dia de hoje as traduções que contemplam a
linguagem comum: segundo Berman (2002, p.33), na tradução da Bíblia para o alemão,
86 
     

Lutero privilegiou, em lugar da fidelidade à letra, uma fidelidade maior ao falar do povo,
assim como Dante já preconizara, em De Vulgari Eloquentia I, 2:
[...]chamo língua vulgar aquela que as crianças aprendem de quem lhes está
próximo no momento em que começam a articular os sons; ou senão, para
ser mais breve, língua vulgar é aquela que, sem necessidade de regras,
aprendemos imitando a nossa ama”.[...]DANTE(1995p.3)
 

Dante afirma também que é essa a língua natural,“ainda que esteja dividida em
diferentes pronúncias e vocábulos”, e não aquela que se aprende utilizando as regras da
Gramática. Comparando as duas maneiras de falar, refere-se à língua vulgar como “a mais
nobre”. Em algumas traduções mais antigas da Commedia para o português, muitas vezes a
língua natural é deixada de lado em favor de um palavreado rebuscado, até mesmo para a
época, privilegiando o culto e o erudito em detrimento do popular. Para Berman (p.51) trata-
se da tendência do “enobrecimento”, visando tornar as traduções “mais belas”. Conforme o
autor, em poesia, isso dá origem à “poetização”. Seria então “um exercício de estilo às custas
do original”. No entanto, pudemos observar que os tradutores que se dedicaram à poesia
mostraram uma menor propensão a complicar seus textos. Vemos em Benjamin quase que
uma prescrição a esse respeito:
[...]Mas aquilo que está numa obra literária, para além do que é comunicado
(e mesmo o mau tradutor admite que isso é o essencial) não será isto aquilo
que se reconhece em geral como o inaferrável, o misterioso, o “poético”?
Aquilo que o tradutor só pode restituir ao tornar-se, ele mesmo, um
poeta?.[...] BENJAMIN(2008 [1923], p.67). (grifos nossos).

No entanto, o fato de traduzir poesia dificilmente tornará alguém poeta, como


constatamos na comparações feitas entre tradutores poetas e não poetas. No cotejo das
traduções, verificamos que os tradutores poetas nos trazem um texto mais fluido, de leitura
mais agradável do que os outros tradutores, que podem ter, muitas vezes, respeitado a métrica
e o sentido, porém, cujas traduções nos deram algumas vezes a impressão de que falta algo,
ou de que a tradução está engessada, travada, como um mecanismo que não funciona bem.
Essa constatação se choca com a opinião do poeta e tradutor Octávio Paz64, que, discorrendo
sobre tradução poética, afirma:
[…]Poucas vezes os poetas são bons tradutores. Não o são porque quase
sempre usam o poema alheio como um ponto de partida para escrever seu
poema. O bom tradutor move-se em uma direção contrária: seu ponto de

                                                            
Disponível em https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/5535/000427623.pdf?sequence+=1. Acesso 30-12-
2017
87 
     

chegada é um poema análogo, ainda que não idêntico, ao poema


original.[…] (PAZ, 1975, p.14)65

No entanto, observamos a análise feita por Berman (1995, p.99) de algumas


traduções de Going to Bed, de Donne, entre as quais está a tradução de Octávio Paz, a qual
seria, na acepção do crítico, a que mais se aproxima dos valores do original e teria as
melhores soluções. Paz fala de um modo geral, dá uma opinião, enquanto que Berman
fundamenta sua crítica, dá exemplos, e concede ao poeta a primazia na tradução com base em
comparação e estudo acurado, duas diretrizes que deveriam ser a base do papel da crítica.
O leitor, certamente, poderia prescindir do crítico para direcionar suas leituras e
seu conhecimento a respeito da literatura em geral, mas um direcionamento aleatório não seria
tão proveitoso, em particular para o leitor menos experiente. As fontes de informação, cada
vez mais presentes no cotidiano, trazem para o indivíduo uma massa de conhecimentos e
acesso a diversos tipos de insumos culturais, que a crítica competente tem a possibilidade de
filtrar
Porém, no caso presente das traduções da Commedia, existe ainda um
direcionamento subliminar, ou seja, as ilustrações, que através dos anos foram enriquecendo
as sucessivas edições. Além do enriquecimento visual trazido pelas obras de arte acrescidas às
traduções, a partir do momento em que as ilustrações passaram a fazer parte das publicações
da Commedia, essa ilusão trazida pela imprensa tornou-se parte integrante da própria obra,
pois se torna, então, inconcebível uma visualização das três repartições do pós-vida sem que
a imaginação do leitor recorra ao que fora determinado pelos artistas. Assim, o Inferno, lugar
sombrio e de sofrimento, terá ficado ainda mais sombrio e mais dolorosamente enfatizadas
suas torturas pelas gravuras de Doré, as mais conhecidas a decorar as páginas da Commedia, e
de mesma forma podemos creditar ao artista francês a popularização das visões do Purgatório
e do Paraíso. As gravuras de Botticelli para a obra de Dante, embora não tão notórias,
juntaram-se igualmente a esse imaginário pictórico.
Por outro lado, o direcionamento pela crítica pode ter também um lado negativo,
quando feita visando compromentimentos particulares. Não existe isenção em uma crítica,
uma vez que o crítico, assim como o tradutor, é formado por suas leituras, seu ambiente social
e político, suas simpatias e antipatias pessoais e toda uma série de fatores que compuseram
sua personalidade e suas expectativas. A tradução é, antes de tudo, uma leitura, uma
interpretação, assim como é a crítica.
                                                            
65
 Tradução nossa. 
88 
     

Por mais que tenha sido buscada neste trabalho uma isenção, uma fria comparação
recorrendo a parâmetros utilizados igualmente entre todos os tradutores, não foi possível
deixar de reportar subjetivamente ao que nos constitui na qualidade primeira de leitor, e
depois como crítico.
Comparados os tradutores do século XIX, Xavier Pinheiro e Machado de Assis,
juntamente com Ziller, que traduziu no século XX, mas que tinha uma cultura e um back-
ground sociolinguístico que reportava ao século anterior, podemos encontrar mais
semelhanças entre Xavier Pinheiro e Ziller do que propriamente desses dois com Machado de
Assis. Xavier Pinheiro e Ziller situam suas traduções para o português ainda em um universo
linguístico em que a clareza e a concisão, além do vocabulário simplificado, não eram
apreciados por todo o público leitor. Machado de Assis era uma exceção em seu próprio
tempo, com seu estilo direto, seco, desataviado, em consonância com a escrita de Dante.
Mauro realizou a tradução mais inconstante, apresentando, no trecho estudado,
versos com traduções literais, com quebras nas pausas e sílabas a mais.
Quanto aos tradutores pós-anos 1950, caso de Martins, Milano e Wanderley,
tradutores e poetas, seguiram as prescrições mais atualizadas dentro do que hoje chamaríamos
“teorias de tradução”, respeitando a forma e as rimas. No entanto, Martins algumas vezes
sacrificou as categorias gramaticais, e enquanto Milano e Wanderley foram os únicos que
procuraram retomar uma anáfora, Wanderley resgatou uma aliteração importante, o que
Milano conseguira na primeira tradução do Canto e desmanchou depois, na segunda versão.
Por sua vez, Augusto de Campos segue os preceitos da própria teoria da
transcriação, em que, conforme suas palavras, seu “intento não é nunca a reverência
acadêmica ao texto, mas a sua presentificação como matéria viva de poesia, respeitados os
lineamentos semânticos e o arcabouço formal do poema” (2003, p.184). Campos ousa
modificar o que é quase canônico, palavras e frases de Dante, substituindo, como mostrado na
sua tradução do Canto I, um verso do original por um verso de sua autoria, e ainda
procedendo a uma operação que, nas palavras do tradutor, “chegou a escandalizar alguns
dantólogos nativos”, ao trocar o sentido de um termo do italiano, gaetta pelle, pelo som,
semelhante, das palavras “gaiata pele”, em português. No entanto, excetuando-se esses
momentos que enfatizam a vereda transcriativa seguida pelo autor, a tradução segue a
prescrição tradutória exposta pelo próprio Campos (p.183), que é a de manter as rimas, as
aliterações, os decassílabos, as terzine dantesche e as palavras-chave, procedimentos que
vimos, em nossa análise, serem em grande parte seguidos pelos outros tradutores poetas. A
favor de Campos, no entanto, devemos observar uma tradução mais enxuta que outras de
89 
     

adjetivos, advérbios, gerúndios e particípios, além de evitar cuidadosamente os hipérbatos


condenados pelo próprio Campos (p.181).
Notamos, em algumas traduções mais recentes, um rejuvenescimento não apenas
do vocabulário, mas também das ideias sobre tradução. As traduções mais antigas, porém, não
perderam seu valor, e ainda podem ser lidas, uma vez que em todas elas, novas e antigas,
encontram-se trechos especiais em que os tradutores alcançaram o que Benjamin chamou de
“essencial”.
90 
     

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