Patrícia Hill Collins

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Pensamento feminista negro e estudos da tradução – Entrevista

com Patrícia Hill Collins1


Dennys Silva-Reis [DSR]: Sua contribuição seria muito importante para os estudos da
tradução no Brasil e um estímulo para nosso trabalho sobre antirracismo na academia
e no campo da tradução. Acredito que suas reflexões sobre esses temas seriam muito
frutíferas em nossos debates sobre eles, visto que poucas mulheres negras acadêmicas
falam desses assuntos.

Patricia Hill Collins [PHC]: Obrigada por este convite para discutir de que modo
aspectos do meu trabalho poderiam contribuir para os estudos da tradução. Embora
eu esteja menos familiarizada do que gostaria com os estudos da tradução, tenho
pensado muito sobre questões de tradução dentro do meu próprio trabalho. Assim,
minhas respostas refletem minha percepção de como questões de tradução afetam
minha produção intelectual.

[DSR]: Quais são as dinâmicas do sexismo e do racismo por meio da linguagem?

[PHC]: O sexismo e o racismo não são apenas ideologias, mas também abarcam práticas
sociais tangíveis. Como sistemas de poder, eles organizam instituições e práticas sociais
injustas. Em meu trabalho, volto à ideia de comunidade como um locus importante 229
que organiza as conexões entre instituições sociais injustas e os discursos ideológicos
que as reproduzem. A comunidade também pode servir de locus imporante para gerar
análises antirracistas e feministas da injustiça social. Neste sentido, a comunidade é
um locus específico onde ocorre a linguagem como um conjunto de ideias e de páticas
comunicativas.

Quando se trata de comunicação e linguagem, faço a distinção posterior entre


uma comunidade linguística e uma comunidade interpretativa. Uma comunidade
linguística é frequentemente vista como um lugar de igualdadee social onde falar uma
língua compartilhada encoraja ostensivamente valores e ideias semelhantes e uma
visão de mundo comum. Esse entendimento da língua mesma como o fundamento
das comunidades linguísticas subjaz às ideias do senso comum sobre tradução. Aqui,
basta traduzir do português para o inglês ou vice-versa para que os membros de cada
comunidade linguística tenham acesso à visão de mundo dos outros. Essa perspectiva
1 Tradução de Marcos Bagno (UnB). E-mail: [email protected]

Patrícia Hill Collins


Professora Emérita da Universidade de Maryland, College Park. Entre seus livros premiados se incluem
Black Feminist Thought: Knowledge, Consciousness, and the Politics of Empowerment (1990, 2000) e
Black Sexual Politics: African Americans, Gender, and the New Racism (2004). Seu livro mais recente,
Intersectionality as Critical Social Theory está programado para publicação em 2019.
Dennys Silva-Reis
Doutor em Literatura pela Universidade de Brasília (UnB). E-mail: [email protected]

ISSN: 1807 - 8214


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negligencia as implicações políticas do que significa pertencer a uma comunidade
linguística particular. Nesse sentido, as comunidades linguísticas são apolíticas – as
dinâmicas de poder que afetam todos os aspectos da comunicação desaparecem.
Basta introduzir ideias no Google Translate e ver o que sai do outro lado.
Em contrapartida, minha concepção de comunidade interpretativa torna as
relações de poder mais centrais para o ato de comunicação e tradução. As relações de
poder dentro de uma comunidade interpretativa regulam quem pode falar, quem é
ouvido e que conhecimento passa a representar essa comunidade para os forasteiros.
As relações de poder moldam quem é silenciado e quem é ouvido. O racismo e o
sexismo operam dentro de comunidades linguísticas particulares, gerando padrões
de silenciamento e de escuta que contribuem para as relações sociais de racismo e
sexismo. Sistemas de poder como esses transformam comunidades linguísticas em
comunidades interpretativas com graus diferenciados de poder falar em nome de
uma visão de mundo ou representá-la. Por exemplo, nos Estados Unidos, as pessoas
negras, latinas e indígenas que se opõem ao racismo são rotineiramente silenciadas.
De igual modo, quando as mulheres falam contra a violência sexual e o assédio sexual,
elas são desacreditadas e frequentemente ridicularizadas. O grande número de
falantes de inglês no contexto dos Estados Unidos pode constituir uma comunidade
linguística, mas é uma comunidade em que o racismo e o sexismo permeiam valores,
ideias e visões de mundo sobre o que significa pertencer à comunidade interpretativa
estadunidense. Globalmente, a dominância do inglês como a língua da academia
230 significa que autores como eu que falam, escrevem e publicam em inglês podem
ser ouvidos, ao passo que pessoas igualmente talentosas, senão mais, cujo trabalho
ainda não foi traduzido em inglês permanecem relativamente desconhecidas.
Nesse sentido, as relações de poder entre comunidades interpretativas, com
comunidades linguísticas como a face pública de uma comunidade interpretativa,
configuram as relações sociais de racismo, sexismo etc. Dentro dos Estados Unidos, por
exemplo, pessoas negras, latinas e indígenas constituem comunidades interpretativas
que há muito tempo formulam contradiscursos à ideologia estadunidense dominante.
Os relacionamentos entre comunidades interpretativas influenciam por que certos
conhecimentos são legitimados enquanto outros permanecem desconhecidos. Seja
em disciplinas acadêmicas ou em Estados-nações, as relações de poder moldam
padrões semelhantes de ser silenciado e de ser escutado.

[DSR]: Você considera os textos canônicos das ciências humanas como


inerentemente sexistas ou racistas? Ou eles simplesmente têm sido usados
desse modo?

[PHC]: Os textos canônicos dentro das ciências humanas ilustram esses padrões
de diversas comunidades interpretativas exercendo diferentes graus de poder na
formatação daquilo que conta como conhecimento. Nesse caso, os textos são artefatos
de decisões que foram tomadas na época em que eles foram criados e aceitos, assim
como a história das diversas comunidades interpretativas que os usam de modos

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particulares para propósitos particulares. Se os textos escritos originais são sexistas e
racistas, seja por seus pressupostos claramente identificáveis acerca de raça e gênero,
seja ao configurar pressupostos que simplesmente não veem a raça e o gênero como
importantes, a interpretação subsequente desses textos reforçam essas ideias. Por
exemplo, os textos canônicos da teoria sociológica clássica, minha própria disciplina,
simplesmente colocam raça e gênero fora do próprio campo, vendo-os assim como
preocupações secundárias. Ora, quando se trata de desigualdade social, a classe
constitui o objeto central de investigação. Nesse sentido, os textos canônicos podem
ser racistas e sexistas sem aparentar sê-lo.

Aqui a ideia de comunidades interpretativas se torna especialmente importante.


Com o tempo, se o conhecimento canônico se torna descontextualizado e viaja como
uma verdade tomada como ponto pacífico dentro de um campo de estudo, ele traça
as fronteiras para o campo. Nesse sentido, o conhecimento e a aceitação dos textos
canônicos servem de sentinelas cuidando de quem pode entrar no campo e quem não
pode. Frequentemente, é invisível o trabalho desempenhado por textos canônicos na
reprodução do racismo e do sexismo dentro de um campo. Textos canônicos muitas
vezes têm um tempo de vida com uma influência que se desdobra para muito além de
suas intenções iniciais. Esses textos se tornam canônicos, não exclusivamente devido
a seu conteúdo, mas através do poder de comunidades interpretativas (disciplinas)
dedicadas a legitimá-los como textos canônicos.
Quando se trata de racismo e sexismo, neste contexto, a questão não é tanto se 231
devemos ler os textos canônicos em nossos respectivos campos mas como devemos
lê-los. Eu encontro muito valor em textos canônicos se os leio através de lentes de
uma sociologia do conhecimento que é consciente da produção e do consumo desses
textos. Posso tomar o que é útil e deixar o resto para trás. Às vezes, é útil criticar textos
canônicos, identificar os efeitos negativos que têm tido no modo como as pessoas
têm assumido suas ideias. Em outros casos, é suficiente questionar sua utilidade para
a reflexão sobre o racismo e o sexismo.
Honramos o trabalho intelectual de um autor/a levando suas ideias a sério. Mas
fazer isso exige levar em conta a economia política de como um texto é produzido.
A questão fundamental para qualquer autor/a é: quem é seu público? Como uma
estudiosa do racismo e do sexismo que também é autora, tem sido importante para
mim conhecer meus públicos e distinguir entre eles. Leio os textos canônicos do meu
campo à luz de seus autores e de seus públicos visados; é importante saber quando
tais textos foram escritos, por quem, e em que contextos políticos. Além disso, sempre
concedo a outros autores o benefício da dúvida para ver como efetivamente seus textos
alcançaram seus propósitos declarados. Obviamente, se discordo do objeto expresso
de um autor, por exemplo, um tratado de direita sobre a inferioridade das mulheres
negras, não lhe concedo o benefício da dúvida. Ao contrário, analiso esses textos
para ver como o/a autor/a construiu seu argumento e as evidências que usou para
apoiá-lo. Isso me dá insight sobre como antecipar e me contrapor a tais argumentos

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ou, melhor ainda, escrever meus próprios argumentos de modo que já refutem tal
obra. Mas também devemos ler os textos canônicos que apreciamos, criticamente.
Quando se trata de textos canônicos que foram criados sob o colonialismo, penso que
precisamos pensar fora das caixas coloniais da tradição e nos tornar autoras de novas
tradições. Por exemplo, quais serão os textos canônicos do feminismo negro? Esse
campo ainda é tão novo, tanto nos Estados Unidos quanto num contexto global, que
suas contribuições à pesquisa e à prática antirracista e antissexista continuam a se
desdobrar. Esses textos serão textos no sentido tradicional da palavra? A rapidez da
mudança das comunicações em rede no quadro da web é um desafio para a capacidade
das comunidades interpretativas de patrulhar as fronteiras dos campos de estudo.
Nesse sentido, quando se trata de racismo e sexismo, os dias de celebração de textos
canônicos podem estar acabando.

[DSR]: Qual a sua percepção de como o sexismo e o racismo se organizam e


operam no campo profissional da tradução/interpretação?

[PHC]: Não tenho certeza de poder falar diretamente das questões específicas
no campo dos estudos da tradução. Mas penso que questões que enfrento ao fazer
meu trabalho intelectual, especialmente o teórico, ilustram de que modo o racismo
e o sexismo configuram questões mais amplas de interpretação. Pelo fato de me
movimentar entre tantas comunidades interpretativas diferentes, frequentemente
232 me vejo pensando sobre qual o melhor modo de dizer o que quero dizer dentro de
cada comunidade, bem como o que elas poderiam dizer umas às outras se tivessem à
sua disposição linhas diretas de comunicação. Essencialmente, para mim, o trabalho
teórico envolve negociar constantemente um conjunto de ideias em termos de outro,
garantindo que eu possa responder a múltiplas comunidades pelas traduções que
tornam meu trabalho possível. Por exemplo, quando se trata de pensamento feminista
negro, desde que viajei ao Brasil, me pegunto como eu poderia entender e interpretar
as semelhanças e diferenças entre o feminismo negro no Brasil, nos Estados Unidos e
através da diáspora africana.

Vejo meu próprio trabalho acadêmico como um ato duplo de tradução e


interpretação. Pelo fato de ser uma mulher afro-americana com um conjunto
particular de experiências educacionais, profissionais e de vida, meu trabalho
sobre mulheres negras reflete esse movimento perpétuo entre comunidades
interpretativas da academia, da família e da vida como uma mulher negra na
sociedade estadunidense. Vejo meu trabalho teórico em Black Feminist Thought e em
Black Sexual Politics como uma tradução de uma forma de linguagem em outra, da
fala cotidiana em uma linguagem acadêmica especializada e vice-versa. Meu livro
On Intellectual Activism reúne várias das mesmas ideias que examino em minhas
publicações acadêmicas, tornando acessíveis não só as próprias ideias para fora da
linguagem acadêmica especializada, mas também os bastidores de como fazer esse
tipo de trabalho intelectual.

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Pensar sobre meu trabalho como tradução e interpretação entre múltiplas
comunidades interpretativas deixou claras duas coisas. Primeiro, nem todas as ideias
se traduzem. Algumas são de fato intraduzíveis porque provêm de comunidades
interpretativas particulares e são significativas dentro delas. Os esforços por
“traduzir” visões de mundo indígenas em termos que são compreensíveis dentro do
pensamento ocidental frequentemente produzem caricaturas das filosofias holísticas
dos povos indígenas. Traduzir os termos de uma visão de mundo não-ocidental para
uma visão de mundo ocidental faz prosseguir a violência epistêmica que tem sido
parte da colonização. Precisamos nos dar conta dos limites da tradução.
Em segundo lugar, as relações de poder influenciam o que é visto como digno
de se traduzir e o que simplesmente não existe porque não foi traduzido. Basicamente,
alguns tópicos nunca chegam aos olhos do público porque grupos mais poderosos
simplesmente não têm interesse em ver tais ideias traduzidas. Durante anos, houve
pouco interesse na visão de mundo das mulheres afro-americanas, principalmente
porque as mulheres negras eram consideradas como tendo pouca coisa de valor a
dizer. Felizmente, um esforço permanente das mulheres negras de falar a verdade
sobre as vidas das mulheres negras mudou essa situação.

[DSR]: De que modo a tradução poderia contribuir para a disseminação de


teorias feministas e antirracistas não hegemônicas?

[PHC]: Eu de fato estou mais interessada nos mecanismos do modo como 233
desenvolvemos teorias feministas e antirracistas não hegemônicas do que em como
poderíamos disseminar teorias que emergem de modos tradicionais de fazer teoria ou
teorização. Dentro das culturais ocidentais, a teoria é altamente racionada, disponível
para uns poucos seletos que conseguem adqurir o letramento e as credenciais que
lhes permitem obter empregos de teóricos. E uma vez dentro desses empregos,
as convenções disciplinares limitam o que alguém pode dizer e fazer. Essa é uma
descrição pragmática da teoria, que precisa ser levada em conta junto com quaisquer
esforços por disseminar teorias criadas sob tais condições sociais. Ao mesmo tempo, a
vigilância acadêmica está se erodindo, criando novas possibilidades para modos mais
democráticos de teorizar por meio dos quais mais ideias realmente chegam à mesa
teórica.

É um projeto que tem estado no centro da minha atenção há algum tempo. Nas
suas perguntas, você distingue com razão racismo de sexismo. Creio que precisamos
desse tipo de clareza analítica, especialmente ao analisar como o racismo e o sexismo
têm sido organizados dentro de contextos nacionais diferentes. Para mim, eles não
são a mesma coisa, e é importantíssimo dedicar tempo para aprender sobre cada um.
Mover-se depressa demais rumo a uma aliança imaginária entre racismo e sexisto
sob a bandeira de um conceito maior que apaga essas diferenças, por exemplo, a
justiça social, não só é errado como pode ser politicamente ineficaz.

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Os estudos da tradução mantêm a integridade dessas distinções ao exigir
que os atividades acadêmicos do racismo e do sexismo façam o trabalho de traduzir
suas ideias para públicos que tipicamente não são seu alvo principal. É diferente
escrever sobre feminismo para uma suposta plateia de mulheres brancas do que
sobre feminismo para homens negros. Como soa diferente o trabalho antirracista
quando escrito para públicos negros ou brancos. Fazer o trabalho de tradução é ver
o racismo e o sexismo como interconectados e independentes, criando um caminho
para ver o antirracismo e o feminismo como igualmente interconectados.
Meu trabalho sobre interseccionalidade é em boa medida um ato de tradução.
Vejo a interseccionalidade como uma teoria social crítica que tem menos a ver
com disseminação do que já tem sido decidido – isto é, o conhecimento canônico
mencionado antes, que merece crítica – do que com um projeto colaborativo
de construção de conhecimento através das diferenças. A tradução enfatiza as
semelhanças, mas também identifica diferenças importantes. Como projeto de
conhecimento, a interseccionalidade se apoia inerentemente nas bases das boas
traduções.
Acabo de concluir um livro intitulado Intersectionality as Critical Social
Theory (Duke University Press, 2019) no qual, embora não faça da tradução um tema
explícito, meu argumento se fundamenta na tradução como um processo para fazer
tal teoria. Dedico um tempo considerável à discussão do engajamento dialógico
como essencial para construir essa teoria social crítica que é adequada para tratar do
234 racismo, do sexismo e de formas mais amplas de opressão. E o engajamento dialógico
é o alicerce da tradução.

[DSR]: Em que medida vê o ato de tradução como ativismo feminista e


antirracista?

[PHC]: A tradução nunca é politicamente neutra. Uma coisa é traduzir a língua e


as ideias de grupos dominantes em termos que os grupos subordinados possam
entender. Esse tipo de tradução é aceito como uma prática habitual. Ela supõe que
as ideias de grupos dominantes têm valor inerente e que traduzi-las em termos que
outros possam compreender é fundamentalmente uma boa ideia. O ativismo aqui
consiste em traduzir documentos de modo que mulheres negras e grupos igualmente
subordinados possam conhecer seus direitos, por exemplo, as proteções legais que
podem estar à sua disposição nas leis. O ensino pode ser um terreno para o ativismo,
traduzindo-se textos que podem não estar disponíveis aos seus estudantes ou ajudando
os estudantes a entender a linguagem especializada da academia. Dado que grande
parte do conhecimento ocidental é inerentemente sexista e racista, trabalhar com
os pressupostos que subjazem a esse conhecimento e traduzir seus textos canônicos
numa linguagem que permita às pessoas subordinadas lê-los e avaliá-los criticamente
pode ser um ato de ativismo antirracista e feminista.

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Mas como fica traduzir desde o outro lado do poder, ou seja, as ideias,
análises e conhecimentos produzidos por grupos subordinados? Aqui, a tradução
e o ativismo exigem um conjunto diferente de habilidades tradutórias que estejam
atentas aos custos e benefícios políticos da tradução. Muitos de nós que objetivamos
falar para, por e com pessoas que são subordinadas dentro de sistemas de poder
interseccionados nos engajamos numa forma mais sofisticada de tradução que é
específica ao contexto. Traduzir as ideias das mulheres, das pessoas negras e dos
povos indígenas numa linguagem que os grupos dominantes compreendam pode
nos ajudar em nossas carreiras acadêmicas. Mas a que custou para nós mesmos e
para as pessoas cujas ideias traduzimos? O risco que corremos é o de que tornar
público determinado conhecimento antirracista e feminista pode deixar mais fácil
para grupos dominantes controlar grupos subordinados. O que parece ser a tradução
como ativismo para tornar mais respeitáveis os grupos subodinados pode ser uma
forma de entregar de bandeja.
Vejo muito do meu trabalho como situado nesse espaço intermédio de
traduzir o discurso dominante numa forma que seja útil para os projetos de justiça
social e traduzir as ideias de grupos subordinados uns para os outros de modo que
possam se comunicar melhor entre si. Uma das tarefas mais difíceis é desenvolver
conhecimento autodefinido que permita às mulheres negras e a outras pessoas de
grupos igualmente subordinados falar entre si. Assim como não existe nenhuma
mulher negra essencial que seja típica de todas, não existe nenhuma mensaem que
reflita as experiências diversas das mulheres negras. 235
É difícil criar esses espaços de fala seguros e livres, espaços em que a
tradução não precise batalhar através das diferenças de poder. Ao escrever Black
Feminist Thought, tive de decidir o quanto poderia dizer em público sobre as vidas
das mulheres negras, e o que deveria permanecer privado. Algumas vezes o sigilo é
essencial, não só para o ativismo feminista e antirracista, mas para a sobrevivência
mesma das mulheres negras. Não faz sentido publicizar o conhecimento contraditório
das mulheres negras se a crescente visibilidade concedida a esse conhecimento
aumentar a vulnerabilidade das mulheres negras. Se é difícil remover das conversas
honestas entre nós mesmas os pressupostos de branquitude, masculinidade, riqueza
e heterossexualidade compulsória que são tão centrais no discurso ocidental. Mas
devemos tentar, esperando que, refinando técnicas sofisticadas de tradução, possamos
moldar comunidades interpretativas que nos empoderem.

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