Bruno Tolentino - Os Deuses de Hoje (Record, 1995) PDF

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Bruno Tolentino

Os Deuses de Hoje
P o e m a s
BRUNO
T O L E N T I N O

Os Deuses
de Hoje

E D I T O R A R E C O R D
R IO DE JA N EIRO • SÃO PAULO
C IP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato N acional dos Editores de Livros, R J.

Ib len tin o , Bru n o


T 5 87 d O s deuses de hoje / B ru n o 'Iblentino.
— Rio de Janeiro : Record, 1995.

1. Poesia brasileira. I. Título.

C D D — 869.91
95-1672 C D U — 8 6 9 .0 (8 1 )-!

Copyright © 1995 by B ru n o L u cio de C arvalho


Tolentino Sobrinho

C ap a e 4 a capa: V ictor Burton

Direitos exclusivos desta edição reservados pela


D IS T R IB U ID O R A R E C O R D D E S ER V IÇ O S D E
IM P R E N S A S A .
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P E D ID O S P E L O R E E M B O L S O P O S T A L
C aixa Postal 23.052 — Rio de Janeiro, RJ — 20922-970
SUMARIO

U m aviso p rév io 10
In trod u ção 11

P rim e ira P a rte


D U R A N T E O B A IL E N E G R O 17

O s d eu ses d e h o je 19
A p rim e ira escala 21
O p rim e iro ad eu s a M a n u e l B a n d e ira 21
L e s P hares 22
E m b u sca d o tú m u lo de C a sim iro 23
H o s a n a à cid a d e d o S alv ad o r 24
A ú ltim a visita 25
A c a m in h a d a ao cais 30
O s dois 31
M ais versos à b o ca d a n o ite 34
E s c a la n o C a b o Verde 40
O e m b alo d o larg o 41
O in seto 42
A o p in iã o de S ilen o 43
F e liz an iversário 44
O sob reviven te 46
D e c la ra ç ã o d e v o to 47
M in im a m ora lia 47
N o tíc ia s de ca sa 48
O sign o 50

5
B runo Tblentino

A aleg ria dos n au frág io s 51


Sob u m a lu z de exílio 53
 n fo ra ao m a r 54
A lei d o silên cio 55
A lu z 57
O ó b olo 58
O estra n h o e m su a areia 60
A estrela 64
N o v o em b a lo d o larg o 67
v
A terra p rov isória 69
O b aile n eg ro 69
M id su m m er’s n ight scream 76
O s olh os n ã o são sem en tes 77
A fên ix 79
M o rte d o m a stim 81
A cela im a g in a d a 82
Im a g e n s e se m e lh a n ça s 83
A se m e n te 84
N on injussa can o 85
O v u lto n a lad eira 85
O c â n ta ro 87
O g a n so selvagem 89
A o p ró p rio co ra ç ã o 92
O refrigério 93
J u íz o F in a l 94
C a n tile n a d o e co 101
O s olh os tro ca d o s 115
R eie itu ra 116
A in d e s e ja d a 117
A o fim d as co n ta s 122
A g a rç a e o eq u ilib rista 123
V ivi m a l 132
R uas 134
A n tíg o n a to rn a à ca sa 136

6
Os deuses d e h o je

N o e m b a rc a d e iro d a v o lta 137


U m d iá rio d e b o rd o 138

U m In te rlú d io
TO RRES & D EU SES 143

Ú ltim a P a rte
N A T E R R A P R O V IS Ó R IA 203

O fa lcão 205
O ú ltim o p asseio 207
O s d esap a re cid o s 21 1
N o tu r n o à ja n e la d o a lh e a m e n to 213
P re c e p elo d ia seg u in te 213
D e a rm a s e b ag ag en s 220
R e in cid ê n cia s à b o ca d a a u ro ra 2 21
O c e n te n á rio 225
P ost-scriptum p a ra F réd d y B la n k 227
D iscu rse ira s e faxin as 228
A d ád iva 231
P o e ta o p e ra d o , à su a m a n e ira 233
A m e d a lh a 235
O s S a n to s d a L u z d a P e n h a 236
W B . Ifeats: o fin al d ’A Torre 239
R esp o n sab ilid ad es 242
A ro sa d o p o lvo 246
L á p id e s p a ra m e u p ai 249
C á e n tre n ó s 257
A to rre ca b o c la 258
N ih il ob sta t 264

7
Os deuses de hoje

"A i de nós, esse personagem não é novo na História. E le já


passou por este mundo, e quando passou não deixou atrás de
si um jardim de delícias, e sim um rastro de insânia e
crueldade. A síntese de culto do cosmos e culto da História
não surge — a i de nósl — na hora antes da aurora, mas na
luz indecisa que prenuncia uma longa noite. (...) Os deuses
do espaço e do tempo não são objeto de culto prim averil
numa infância do mundo, mas o princípio de uma
decadência, o sinal de uma ruptura trágica entre a
Existência e o Sentido, que dá início a uma longa e fa ta l
decomposição do espírito e termina pela dispersão da tribo. ”

Olavo de Carvalho,
0 Jardim das Aflições (VIII: § 23)

9
U m a v iso p r é v io

E ste livro-m ar qu e um m eu prim o


entendeu qu e andava faltan d o
entre as enxurradas qu e rim o;
esta recapitulação
dos m ales recentes do bando
(a qu e som ei m eus exageros,
m as qu e sem pre segundo o prim ão
fa z ia fa lta aos brasileiros)
com p ilei-o d e péssim o humor,
entre um e outro nhenhenhém
e longas pausas para o café,
o cigarro etc., leitor.
A o cabo, n ão sei bem o qu e é,
m as assim são as coisas do amor.

São Paulo, agosto de 1994.

10
Introdução

Antônio Fhulo Graça*

Foi a Critica da faculdade do juízo (1790) que fundou a estética moderna.


Com ela, Immanuel Kant concluía a tarefa de limitar os territórios da ciência,
da moral e da beleza. Desde então, a autonomia de cada uma dessas produções
deixou de ser mera especulação para tornar-se fato. O belo, estabelecido como
aquilo que apraz universalmente sem conceito e sem a apresentação de um
fim, tomou-se a base para a construção da estética moderna, cujo apogeu se
deu com o império das vanguardas na alvorada de nosso século. Nem sempre,
porém, se procura sublinhar um dado: a terceira crítica kantiana erguia-se
como uma ponte entre os dois outros vértices do triângulo da excelência
ocidental: o verdadeiro (razão pura) e o bom (razão prática). Assim, a autono­
mia estética nasce também da necessidade do diálogo entre a ciência e a moral.
É exatamente na turbulência de tal aporia que contemplamos a grandeza da
reflexão kantiana.
A certa altura, o filósofo comunica: “O belo é o símbolo do moralmente bom.”
E depois conclui: “O gosto torna, por assim dizer, possível a passagem do atrativo
dos sentidos ao interesse moral habitual sem um salto demasiadamente violento.”
Quem está afeito à leitura do filósofo sabe que ele usa com absoluta precisão o
vocábulo símbolo. Se o belo é símbolo do moralmente bom é porque ambos se
assemelham apenas nas regras de pensar o objeto estético e a ação moral. Porém,
insista-se, é exatamente aqui, nesta dobra quase imperceptível, que sua teoria
investe na e investe-se de bem-vinda complexidade. Em termos bastante rudes, a
estética moderna nasceu e viveu sua autonomia sem jamais rasurar o diálogo. E,
em certos momentos, chegou mesmo a tangenciar uma heteronomia. Heterono­
mia que, diga-se com todas as letras, sedimentou a cultura clássica de Homero a
Dante, para tomarmos dois exemplos extremos.
O leitor atônito poderia perguntar-se: que relação há entre tais postulados
e Os deuses de hoje de Bruno Tolentino? Parece-me que este livro nasce entre
os nervos dessa tensão filosófica. É através do conflito entre os pólos extremos
dos princípios expostos que o poeta elabora seu projeto estético. Autonomia do
poético, representação sem conceito, afirmação de uma finalidade sem fim,
todos esses contornos da moldura moderna podem ser averiguados nos textos
aqui apresentados. Entretanto, cimenta-os, articula-os duas vontades: a reli-

* Antônio Paulo Graça é professor da Universidade do Amazonas, mestre e doutorando em Teoria da


literatura.

11
B runo Tolentino

giosidade e a política, termos absolutamente indissociáveis, em se tratando do


livro em questão. A férrea oposição entre os deuses (intemporais por definição)
e a expressão “de hoje” (a temporalidade mais efêmera) deixa clara sua vocação
espiritual e política, vocações congênitas, mais ainda, estruturais.
Apenas uma palavra a alguém que ainda possa estranhar o cruzamento
de duas tradições tão fortemente distintas na história da lírica: a musa religiosa
e a musa política. Basta lembrar que Carlyle já nos ensinara que o verdadeiro
poeta é também profeta. Se recorrermos ao sinônimo “vate”, logo veremos que
seu radical etimológico também freqüenta a palavra vaticínio. Tomando, ainda
insatisfeitos, a palavra liturgia, uma espécie de condição da poesia de Bruno
'Iòlentino, logo aprenderemos que seu sentido mais profundo era “função
pública”, ou seja, os mistérios da fé tornam-se coletivos, comunitários, políticos
em última instância.
Sublevar-se contra os dogmas da arte moderna, porém, pode ser apenas
uma aventura desajuizada. Não é o caso de Os deuses de hoje. Seu projeto
estético é, a um só tempo, novo e amadurecido. De tal maneira que a oposição
a uma poesia esteticista e lacônica — tão em moda entre alguns jovens
bizantinos — soma-se à necessidade de fundar nova estratégia lírica, nova
forma de representação, para usarmos termo um tanto inconveniente, mas
bastante produtivo nas mãos de um Erich Auerbach. Se a poesia clássica
atingiu o momento mais luminoso na representação alegórica da Commedia,
se a alegoria moderna tornou-se dissidente do símbolo pré-romântico e da
própria alegoria medieval, Bruno Tolentino, parece-me, construiu em seus
textos grandes massas para representar os agentes da tragédia sócio-política do
Brasil. E le não utiliza símbolos abstratos, tampouco indivíduos repre­
sentativos. Toma a história como um acontecimento único, luminoso e inteli­
gível. Eis aqui um ponto digno de atenção. No poema-título, lê-se:

Virão, virão, e continuarão


a vir, a ir chegando
nas mandíbulas

sempre os mesmos pedaços


dos nossos sonhos e do nosso irmão.

Condensa-se assim, com versos mercuriais, a marcha destruidora da


história incorporada à fome onívora e multiforme (sonhos e corpos) dos deuses
hodiernos, as mãos vermelhas e também o corpo sacrificial do signo de trevas
e sangue que o poema articula.
O poeta demonstra segura compreensão do fato histórico enquanto pro­
cesso, isto é, não se exime, não se autoproclama. Ao contrário, mimetiza o
drama em suas cores mais fortes, como no instante em que diz:

12
Os deuses de hoje

chega de elegias por enquanto


há um país que é preciso pôr abaixo.

É preciso alertar que agora já invadimos um outro recanto de Os deuses de


hoje, ou seja, sua idéia de história. Mesmo por esses dois detalhes, já se terá
percebido que o poeta estabelece uma conexão entre duas filosofias da história.
A primeira, benjaminiana, em que o angelus novus contempla no percurso
temporal os escombros de nossas esperanças. A segunda, hegeliana, em que o
calvário da caminhada do espírito é também trágico, mas a tragédia “exprime
a condição do absoluto”. Em outras palavras, não há alternativa, ou o ser
assume construir-se nesse calvário de sofrimentos ou os caminhos do espírito
estão fechados. Não é demais lembrar que o mesmo Hegel escrevera que “a
história universal não é o lugar da felicidade. Nela, os períodos de felicidade
são as páginas em branco”. Certamente não se pode vislumbrar nenhuma dose
de desespero nem em Hegel nem na poesia de Bruno Tolentino. A concepção
trágica da história, num e noutro, robustece a criação, filosófica ou poética.
O soneto Releitura assim se fecha:

Agora que copias de mão leve


o que fizeste então, lê cada verso

à luz do exílio, que ia ser tão breve


e afinal inspirou tudo o que escreve
tua mão entre o túmulo e o berço.

Com sutil inversão, o dístico final expõe, ainda uma vez, uma inusitada
idéia de história. A mão do poeta escreve não entre seu nascimento e morte,
mas entre a morte (o túmulo) e o nascimento (o berço). É como se o sentimento
lírico nascesse a contrapelo, como se se insurgisse não contra a linguagem,
como queria Octavio Paz, mas contra o próprio e mais produndo conceito de
tempo. Escrever, sabendo-se morto, pois a indesejada das gentes veio antes da
hora, é também sobrepujar o mais incontornável dos destinos. A morte, con­
dicionadora do silêncio, torna-se aqui uma espécie de caução lírica, de condi­
ção do produto estético. Seria curioso observar que a mesma inversão temporal
fecha o livro. O autor deixa para o final uma série de sonetos sob o título N ihil
obstai, exatamente a divisa que abria os livros autorizados para publicação.
Invertcndo-a, ele como que abre espaço não mais para a releitura, mas para a
própria vivência, a iluminação poética.
Um outro traço se expõe no mesmo soneto. O texto que lemos é uma
releitura, um balanço dos sucessos literários na construção do soneto. Portanto,
a literatura aí se realiza em dois planos: o plano do texto escrito e o da leitura.
São dois níveis de enunciação interligados, simultâneos. De alguma maneira,

13
B runo Tolentino

o texto se propõe como uma espécie de metafísica do poético. Borra-se nossa linear
concepção do literário. E apenas o texto que concentra as virtudes estéticas ou são
estas produzidas por inter-relações mais amplas e complexas? Borges certa vez
afirmou que todo grande texto contém o seu contrário — livro e antilivro. Não se
pode negar que “Releitura” se reveste de um caráter exemplar em relação às
palavras borgianas.
Apenas para testarmos a coerência que preside sua idéia de história,
vejamos como Bruno Tolentino a apresenta. Em certo momento contempla­
mos “a roda destroçada da História tropeçada no seu Nada”. Em seguida, “os
desfiladeiros da História” ou “aquelas sete ou sete mil cabeças sem memória
da estulta, enorme e nauseabunda hidra de gravata, capuz e cassetete a que
chamamos História”. Lemos ainda que “a poesia é sempre como a vida, o
contrário da História”. Enfim, o campo semântico a que se filia a História,
neste livro, é sempre o de uma radical e irrevogável negatividade.
O poema traz ainda para o proscênio a linha mestra temática do livro: o
exílio. O exílio, que o poeta pretendia breve e que acabou marcando toda sua
obra, torna-se a própria condição de Os deuses de hoje. Dividido em duas partes
e um prólogo, o livro nasce com o golpe de 64 e com o irrecusável convite do
exílio. O prólogo costura as duas partes (Durante o baile negro e Terra Provisória)
que cobrem a recente história brasileira. Uma explicação desnecessária: a
primeira parte fotografa a violência política, social e, sobretudo, espiritual,
enquanto a segunda costura-se de retratos de restos de um país, de uma “waste
land”, aquela que sobrou da fúria, sem adjetivos, dos hunos, os construtores
exímios e detalhistas de nossa destruição.
Porém o exílio do poeta e de seu texto não é linear. Ao contrário, lembra
em muito o périplo de Odisseu, desejando e evitando a volta à ítaca. N ’Or
Deuses, ele volta, aporta, mas é apenas para, logo em seguida, lançar-se de novo
ao mar — e esse é o movimento dramático do texto. Além disso, o exílio não
condena apenas aquele que parte. Os que ficam, Bandeira, Cecília, Drum-
mond, também sentem as mãos negras de um silêncio a envolvê-los. Quase
sempre aqueles que ficam se vêem condenados a uma morte impertinente e
tenaz que aguarda, que espreita, que persegue.
Basta ler o trecho final de “Primeiro adeus a Manuel Bandeira” para lhe
perceber a elaboração poética:

E , constrangido de ter vindo,


Anoto rápido este aceno
da minha mão de barro trêmulo
àquele que o esplendor do efêmero
cantou de mãos dadas com a morte.

14
Os deuses de hoje

Temos aí um desenho nervoso em que dois pares de mãos se entrecruzam.


A mão de barro trêmulo regurgita de sentimentos pascalinos, enquanto as do
poeta homenageado resgatam a efemeridade dos gestos minúsculos, exatamen­
te por não temer o diálogo com a morte. A visibilidade desse cruzamento (mãos,
barro, efemeridade e morte), do movimento abrupto e ritmado transforma o
poema num exemplo da complexa relação entre a pintura (fanopéia), o pen­
samento (logopéia) e a música (melopéia).
Se não foi devidamente sublinhado o desenho poético deste livro é porque
o leitor atento o perceberá sem maiores dificuldades. Apenas por dever de
ofício, tentemos seguir a funcionalidade de certas combinações musicais, como
em

à imensidão sem eco,


à hora da coragem
na calçada do século

em que o eco se prolonga no século, rim a e duração reproduzindo o


sentido, por um efeito do isomorfismo. O u em

consolos para o náufrago


Quem sabe o que o antropófago

quando a rim a se faz através de um a deglutição fonêmica antropo/au-


tofágica. O u ainda no já com entado Releitura em que a palavra berço
surpreendentem ente rim a com a palavra verso. São detalhes expressivos
que m ostram com o B ru n o Tolentino procurou atualizar as sutilezas
musicais que haviam atingido o ápice nas m ãos de um a m estra, Cecília
Meireles. D a m esm a m aneira, o ritm o de seus poemas provém sobre­
m aneira da tradição inglesa, dos pés acentuais e não das sílabas gram a­
ticais. Fiquem os por aqui e deixemos que o próprio leitor tenha o prazer
de descobrir a m úsica suave que emerge de m uitos versos.
Afoitemos a um poema religioso, “Prece pelo dia seguinte”. Lemos:

e eu, desconfiado do meu verbo,


confio em ti, eu, sombra absorta
gemendo à porta da caverna
com a nostalgia de ir-me embora
deste aqui-e-agora de merda!

Breve trecho incrustado no interior de uma longa prece, aí mais uma vez
se revela a arte de congregar alusões. O verbo bíblico, divino, fundador se

15
B runo Tolentino

degreda e degrada no verbo humano, poético mas suspeito. À porta da caverna


(dantescap), o poeta é apenas uma sombra. Incapaz de erguer-se de si mesmo,
absorvido por sua subjetividade, por sua contingência, o convite ao interior da
caverna e aos mistérios sagrados suspende-se. Permanece mesmo assim uma
nostalgia equívoca. Equívoca porque se trata de um desejo de transcendência,
de libertar-se da efemeridade do hicet nunc. Em outros termos, aqui a impos­
sibilidade da ascensão espiritual se soma, cruel e dolorosamente, à nostalgia
primeva, anterior à queda humana. E , coroando tais especulações, temos o
atordoante recurso aosermo vulgaris, o aqui-e-agora de merda, que desconcerta
o leitor desavisado e desafia aquele que procura ler poema de maneira mais
cuidadosa.
Benjamin escreveu que “Baudelaire conformou sua imagem de artista a
uma imagem de herói”. É que era imperioso ao lírico afrontar o capitalismo
em seu auge, em seu momento simultaneamente fundador e climático. Que
dizer da lírica num instante de crise profunda e multiforme (crise política,
social e espiritual) ? Por ter consciência de que seu trabalho nasce nesse instante
tumultuado, Bruno Tolentino rejeita a imagem do herói e exerce uma saudável
rebeldia. O poeta torna-se um conspirador que, não raro, também se autofla-
gela como que tomando seu próprio corpo como o lugar da denúncia. Enfim,
se observarmos sua relação com o fenômeno estético, com a forma de repre­
sentação, com a história e, por assim dizer, com o ethos do artista, perceberemos
que a poética de Os deuses de hoje se vai construindo cuidadosamente nos
nódulos mais arriscados, mais desafiadores da lírica contemporânea.

16
P rimeira P arte

DURANTE O BAILE NEGRO


( 1964- 85)

a Antonio Cândido

"The intellect o f man isfo rced to choose


perfection o f the life, or o f the work,
and i f it take the second must refuse
a heavenly mansion, raging in the dark■”

W.B. Y e a t s

(O intelecto hum ano é forçado a escolher


entre a perfeição da vida e a da obra,
e se escolhe a segunda sujeita-se a viver
sem a paz de um solar, na escuridão que sobra.)

17
OS D E U S E S D E H O J E

Os deuses vagarosos, os que avançam


sem pressa, pelo passo
do hom em filho do lobo,
neste triste pedaço perdido de um globo
procedem agora
em matilhas.

Procedem sem dem ora,


mas pausados, cientes,
certos, porque são deuses,
de que as ruínas com o as armadilhas
são e serão só deles.

Fazem o que tantas vezes


fizeram antes:
ocupam todo o espaço,
passo a passo
cancelam ou ignoram
os figurantes
e pegam de surpresa,
pelos bigodes
as barbas
os barbantes,
títeres num erosos,
os que de hoje em diante
serão ainda mais reles,
m iudeza nas redes
ou carniça no gancho entre paredes.

O s outros, os ruidosos,
os que gastam a saliva sem afiar os dentes,
passam a ser só presa.

19
B runo Tolentino

E m tempos com o estes


esperemos aqueles,
os bastardos do lobo,
é para eles só que o escombro hum ano dança,
agoniza na longa noite acesa.

Os deuses vigorosos do presente


m ultiplicar-se-ão
e, em núm eros crescentes,
inferno por inferno
nesta terra feroz passada a ferro
chegarão
às jaulas, aos porões, às consciências,
disformes com o levas
de sangue e de vileza nas casernas
de u m a nação fichada e insultada.

O s outros não são nada.

Os senhores da treva,
os donos da impudência,
são deuses, são eternos.

C om o os nossos gemidos
que não passam
eles não passarão.

Virão, virão, e continuarão


a vir, a ir chegando
nas mandíbulas

sempre os mesmos pedaços


dos nossos sonhos e do nosso irm ão.

R io de Janeiro,
abril de 1964

20
Os deuses de hoje

A PRIMEIRA ESCALA

"Minha alma éum a cruz enterrada no céu."


EPITÁFIO D E ALPHONSUS D E GUIMARÃES

Toda alm a é um a cru z aqui plantada,


a tu a foi apenas transferida
para o céu que buscavas na calada,
na imensidão da noite desta vida.

M estre crucificado de saída


pela alm a entrevista e m usicada,
eu vou-m e em bora, vou tom ar a estrada
sem retorno previsto, e a despedida

que vim fazer aqui tem mais sentido,


mais dignidade do que em todo o resto
do país: o país anda iludido,

am ordaçado, e eu faço deste gesto


e do sinal-da-cruz o m eu gemido
de esperança, de adeus e de protesto!

M ariana, 16/4/64

O PRIM EIRO AD EUS A


M AN UEL BANDEIRA

A m eados deste porco ano,


poeta, que te chega tarde,
com o outro fardo desum ano,
já porque é curto o calendário,
já porque aquele doce-am argo
gosto de vida vai perdendo

21
B runo Tolentino

a força antiga, que era menos


que um apetite e hoje é um convite
à festa absurda, e porque vamos
ficando sós e a luz é triste
e depois que o circo desaba
o palhaço sozinho ainda insiste
em seu num erozinho, eu por isto
vim à porta da tua casa
farejar tua últim a bênção.
M as esse aluvião do teu rosto
propenso à resina do chão,
esse últim o aperto de m ão,
com o travo mineral da m orte,
poeta, pai, mais que nós todos
irm ão, ó poeta mais forte,
sinto que sobro, mais um guincho
m al-azeitado em tua porta...
E , constrangido de ter vindo,
anoto rápido este aceno
da m inha m ão de barro trêm ulo
àquele que o esplendor do efêmero
cantou de mãos dadas com a morte.

LES PHARES

Repetalam -te a rosa do povo,


poeta, e dem olem -te a casa...
Vão erguer qualquer coisa de novo.
Triste farol da Ilha Rasa.

Intim ações da Ilha Fiscal,


questões de m étodo, ninguém precisa
se assustar, aqui se fiscaliza
mediante cerim onial:

22
Os deuses de hoje

vamos os dois sem paletó


com Clarice à Colom bo, e eis
que só tu entras! D e nós três
quem barrariam no xilindró?

N ão im porta, os faróis da nação


vamos todos abandonar-te,
apagar-nos com um a certa arte:
tantas m açãs na escuridão

e nós devidamente a sós


cada qual com seu N ão! Apagados,
os que não formos algemados
e am ordaçados levaremos a voz

para o outro lado do mar,


ou deste estranho continente.
Se m e acontecer de cantar
m ando contar discretamente.

EM BUSCA DO TÚ M U LO
D E CASIMIRO

Porque os campos da morte e a m adrugada


do coração têm a m esm a medida,
eu vim te procurar

aqui, a tua sombra confundida


com as franjas do ar no limiar
da luz que vem tecer cada alvorada,

cada nova investida


da dádiva solar...
M as perdi-m e ao seguir a criançada

23
Bruno Tolentino

e confundi-te à espuma, junto ao mar,


perto da vida,
onde a m anhã respira extasiada.

Barra de São João, 23/4/64

HOSANA À CIDADE DO SALVADOR

E a ti tam bém adeus, cidade orgia,


concubina do deus que não te dom a,
dona dos furtos que m e nutrem , dona
da grande e geradora hem orragia,

adeus a ti, que dóis onde eu doía,


útero m aternal de m arafona
que m e entregaste, ursa obscena e sonsa,
aos orgasmos do sonho em pleno dia!

Azulejo, coágulo e carranca,


loba que eu vi com er meus olhos presos,
presos à tua fúria ágil e mansa,

som a mais este à m ultidão de adeuses


que te alim enta, engolfa-o na abastança
de teus uivos inválidos e avessos!

24
Os deuses de hoje

A ÚLTIM A VISITA

"Und einer von allen Sternen


mäste wirklich noch sein."
RAINER MARIA RILKE

N osso baile é de brilhos tão frágeis,


com um tal arom a de ilusão,
que quase tudo ao toque da m ão
desfaz-se entre os dedos mais ágeis,
deixa de ser o que imitava mal.
A perda é o nosso dom natural.

As coisas todas são mortais e vão


pouco a pouco desm oronando,
canteiros de noções, um bando
de pardais, nada tem duração
ou resgate; mas só a estrela agoniza
reluzindo com o a poetisa.

D ispõe os alvos travesseiros


contra a cabeceira da treva
e recebe-nos: leva por leva,
recebe-nos a todos, primeiros
e últimos, celebrando a vida,
o adiam ento da despedida.

O u talvez vá nascer, quem sabe


a que levam as transm utações
da dor hum ana, quantas estações
seguem -se à últim a... E n tre gesto e lábio
consegue ainda, com o em tantos versos,
sugerir-nos outros universos.

U m país desm orona-se, alastra-se


a fogueira inglória e m esquinha,
mas em pleno desastre a vizinha

25
B runo Tolentino

da eternidade imita os astros,


ascende e brilha, a estrela pálida,
é certo, m as já quase a crisálida:

contém asas tão elegantes,


que à noite, a que todos sentimos
vir-nos cercando, ela dá-lhe ritmos
morais, musicais, mais distantes
e mais livres a cada gesto,
sem lam úrias, sem nenhum protesto.

U m país vai perdendo o rum o,


mas ali está sua linhagem
mais nobre e firme: um a linguagem,
um canto imperturbado, o sumo
de um a raça entre a dor e o lençol
espelhando a exatidão de um sol.

A cerco-m e à luz da janela


e dali, daquele vão aberto
sobre os indícios de um deserto,
observo-lhe a figura: bela
com o a rosa que ainda tem no rosto,
aquela a que os ventos de agosto

não perturbavam a ausência calm a...


A m ão que escrevia, que escreve
(ou desenha) a harm onia breve,
tem agora um a asa na palm a,
a outra, a esquerda, a tem no dorso,
e ambas volteiam sem esforço

significando com volteios


o que os lábios de um âm bar ligeiro
vão confirm ando: tudo é passageiro
(insiste em dizer-nos), os meios
são frágeis, mas os fins tam bém .
As duas mãos de Pero Sem,

26
Os deuses de hoje

no entanto, vão bordando o desenho


da perfeição contam inada
pela luz oblíqua, e mais nada
parece ruga sobre um cenho
limpo, branco, olím pico... O céu
vai-lhe opondo, talvez, um véu

im aginário e furta-cor,
e a expressão é transparente,
um tanto distante da gente
(com o sem pre), mas aquele alvor
ainda é idêntico a si m esm o: a ilha
tranqüila e grave aguarda a quilha

e o naufrágio com a vaga nobreza


das m iragens eqüidistantes.
D on a Cecília e os agonizantes
só têm em com um a leveza,
a distância que confunde os níveis
de infinitudes invisíveis

a quem não vai partir ainda.


E subitamente eu quisera
segui-la, encurtar m inha espera,
ir eu tam bém na dança infinda
das m ãos que vão tecendo a rota
derradeira da gaivota...

V ou-m e embora, mas ainda sou rapaz,


sinto que não m e vou de vez,
vou rodar por aí, talvez
voltar um dia... D eixarei atrás
duas mãos que desisto de ver,
que abandono à solidão do ser

que vai morrer, sumir, deixar


este m undo mais belo, e no entanto
mais triste. A agudeza do canto
é tal que, se pertence a um lugar,

27
B runo Tolentino

a um instante, a um relâmpago apenas,


perpetua o baile das cenas

as mais banais e as mais pungentes;


o enorm e vestíbulo frio
da poesia, ou do vazio
a que agora estamos presentes,
vai ficar ainda mais esplêndido
quando enfim se apagar o incêndio

elegíaco desta criatura.


D ona Cecília vai morrer. U m monge
pensa na C ru z e vê ao longe
a grande luz que o transfigura;
um poeta vai fixando
o olhar de cisne ora no bando,

ora naquilo que ainda mal vê;


mas quando a últim a visão vier
vai cantar com certeza, a m ulher
e o cisne vão se unir porque
assim se passa deste lado
ao instante transfigurado

que é com o a cópia do rascunho,


a últim a, a exata versão
prom etida àquela união
de contrários cujo testem unho
era esse canto precisamente.
Por enquanto ainda fala à gente

que não sabe, ou finge não saber,


que a tarefa de viver é ofício
m uito mais grave que difícil,
e que à hora do entardecer
será preciso erguer os olhos
para além de faróis e escolhos

e fixar o olhar de leve


e sem am argura nenhum a
não no naufrágio, mas na espuma,

28
Os deuses de hoje

não no que se cobra ou se deve,


mas na m isericórdia do punho
que vai passar a limpo o rascunho.

A poetisa vai deixar-m e


a im pressão de que sabe isto tudo,
de que com preendeu sobretudo
o sentido m aior do carm e
que u m a vida inteira ocupou-a
e agora se agiliza e voa...

E eu vou deixá-la à sua sorte


com o deixo o meu país: agora
que não m e resta senão ir-m e embora,
vou deixá-la às portas da morte
com o a um cisne, o belo anim al
que em algum lugar do real

faz suas contas este instante


e prepara-se para cantar.
Levo tudo deste lugar,
hei de tê-lo outra vez diante
quando chegar a m inha vez:
reverei a luz em xadrez

sobre as nervuras do assoalho,


as figuras sobre as cortinas
e, voltejando ainda, as finas,
longas mãos enxugando o orvalho,
o sofrimento de um a rosa.
Adeus, ó calm a, ó dolorosa,

ó impávida e precária alvura


que soltas lentam ente as pétalas...
\bu levá-las com igo, as mais belas,
aquelas que andaram na altura
desde que um dia as conheci.
N ão poderei m orrer sem ti.

E sta vida se com põe de curas


provisórias e sucessivas,

29
B runo Tolentino

mas tu, por m uito mais que vivas,


te curaste só das am arguras:
nem peço cura mais tranqüila
para m im . Tentarei repeti-la.

Saio enfim pela ru a Vergueiro


e cam inho rum o à M assao O hno
com a sensação de que abandono
a m im m esm o, ao universo inteiro.
A com p an h a-m e a luz de um a estrela.
N u n ca mais hei de vê-la. O u não vê-la.

São Paulo-Rom a, 1964

A CAMINHADA AO CAIS

Pátria m inha, que apostasias,


que desertas a ti m esm a e dás,
com o lesm a ao bico voraz,
teu corpo cheio de harm onias,

tua alm a jovem... Q uantos dias,


quantos anos desolados vais
alim entar os teus chacais
com a carne dos filhos que crias

e abandonas à desesperança!
Vou deixar-te para não te ver
atravancar o am anhecer

com balbúrdias e carnificinas,


a tragédia que desde criança
vi-te am ontoar nas esquinas.

R io de Janeiro, 8/5/64

30
Os deuses de hoje

OS DOIS

É um a loucura!
São muitos dias
em solo pátrio
desde a torm enta,
quase quarenta!
N ão , não devias.
D uras e duras
com o u m a acha
de lenha incerta
de entrar no átrio
sem ser preciso
e chegas hoje
mais indeciso
diante do cais!
Q u e mais procuras Y
Q ue esperas mais?
A m aré baixa
escapa, foge
com o um alerta,
com o u m aviso
às gaivotas
que ainda estão soltas
Ficas ou vais?
E m barcas? Voltas?
O lha que as botas
andam por perto!
Se eu te disser
que este m om ento
um a m ulher
de camisola
não te consola
nem deixa em paz,
tu que dirias?
O apartam ento
fica distante,
e aqui m esm o,

31
Bruno Tolentino

pouco adiante
há um a gaiola...
Aonde irás?

E u , quando incerto
não ando a esmo,
faço figura
de alguém capaz
de decidir-me,
pareço firme,
não m e pareço
contigo em nada!
Desde o com eço
desta charada
sabias bem
que acabarias
por vir aqui;
noites e dias
com essa coitada,
viras do avesso
o que sabias
de antem ão:
que eras alguém
maldividido,
mas m uito perto
de achar sentido
na operação
bem -planejada,
tradicional,
da divisão...
Vai, vai-te embora,
fico eu por ti.
Porque afinal,
partir em dois
é a solução
que a vida pôs
em tuas mãos
e, mais não fora,
o mais das vezes

32
Os deuses d e hoje

algo m e diz
que de nós dois,
dos dois irmãos
mais contrastados
e siameses
deste país,
eu, na verdade
sou a m etade
bem mais feliz:
de dois extremos
m alconjugados,
sou o mais fraco,
mas o mais rico,
caro velhaco,
tu vais, eu fico...

Q uerida acha:
tu crês que os deuses
deste lugar
com o os venenos
vêm pra ficar,
eu não! E u creio
que há solução
enquanto crês
no que é talvez
a realidade,
mas custa m enos...
\ài, vai ou racha!
Representar-te
neste lugar
sem te aturar
será um prazer.
Ficar e ser
só tua alm a
talvez m e dê
por fim a calm a
com o recheio,
senão a paz.
Parte, rapaz!
Até porque

33
B runo Tolentino

partir ao meio
é a tua arte,
que esperas? Parte!
D esde pequenos
não nos largamos
nem entendem os,
agora vamos,
vai, vai, cai fora,
não durarias
por mais quarenta
noites e dias
com essa m ulher
que ainda te adora
m as mal te agüenta,
adieu, m on frère...

MAIS VERSOS À BOCA DA N O IT E

Q uando os frutos da terra,


os pedaços do pêssego,
brilhavam em sossego
e com unhão, a fera

que tudo dilacera


invadiu a avenida
e estraçalhou-m e a vida...
Q uando este barco em perra

(alguns dias atrás


encalhou no Recife),
eu sinto-m e um patife,
um covarde, o rapaz

que larga a nam orada


porque, levando um tapa

34
Os deuses de hoje

do cunhadão, escapa
quietinho e na calçada

reage com um discurso;


mas enquanto esta nau
logra m anter o curso,
este cara-de-pau

acocorado aqui
no calçadão da noite,
deixando-te ao açoite,
terrinha em que nasci,

em pleno m ar aberto,
à distância de tudo,
discursa a sós com o m udo
m undo da lua, o enxerto

m elancolicozinho,
de rabinho enfiado
entre as pernas, coitado,
mais um dedo m indinho

erguendo o seu protesto.


L á no alto, na fila
das nuvens, vejo um resto
de cara de gorila

inofensivamente
distante, com o em fuga,
com a vaga verruga
de um a estrela doente

entre a orelha e o nariz:


o m acaco de farda
que agora m onta guarda
sobre todo um país,

35
B runo Tolentino

m anda-m e o seu retrato


mais feliz, pendurado
a um céu abaulado,
a im agem três-por-quatro

de um a desolação...
Recebo-o aqui, fugido
com o a im itação
de um cão: o meu ganido

à imensidão sem eco,


à hora da coragem
na calçada do século,
se imita a vadiagem

de um vira-lata vivo
porque correu de casa,
não tem eco: é altivo,
intenso, m as sem asa,

paira no desperdício
do mar, mas não ecoa
com o num precipício
um cão latindo à toa.

M as é assim que junto


a treva a m eu deserto
e quase m e pergunto
se tanto desacerto,

se aquilo tudo e o nada


que m e sublinha o olhar
não são coisas que o m ar
inventa na calada

da noite sem estrelas...


O vento na garoa
diz que é um a coisa à-toa
a visão, com o as velas

36
Os deuses de hoje

que imagino a este barco;


mas a im aginação,
essa demente ao largo,
não faz a aparição,

é a m em ória doente
que a m istura às espumas
e às horas, um a a um a,
incontornavelm ente.

Já deixamos atrás
Fernando de N oronha
e a aparição m edonha
surge-m e um a vez mais,

e desta vez mais nítida


e mais irrespondível:
essa visão ao nível
moral de um a ferida

multiplica-se, alastra-se
por um país inteiro,
enquanto eu sonho mastros,
velas num nevoeiro

e sinais de um futuro,
consolos para o náufrago.
Q uem sabe o que o antropófago
tram a agora no escuro,

provavelmente menos
que um desterrado à proa
contando seus pequenos
desastres à garoa...

A noite universal
propõe esquecim ento
e pílulas no vento,
aqui é tudo igual,

37
B runo Tolentino

tudo idêntico à alma


que não quer soluçar
e conversa com o mar,
que é a imitação da calm a

quando anda assim quieto;


tudo gira sem pressa,
e a m inha cabeça,
o meu cabelo preto,

oscilam com o um lenço


na unidade da treva,
concedem -se ao imenso
porque a corrente leva

o que flutue nela.


Talvez a excom unhão
do hum ano coração
seja igual à da estrela

que persiste sozinha


em perfurar o escuro;
quem sabe o m eu futuro,
com o o dessa vizinha

na escuridão de hoje,
sejam um a coisa só,
um pontinho que foge
e surge a cada nó

vagaroso da nave
pelo enorm e universo;
tudo tem seu reverso,
um verso, um a arquitrave,

um a nação boiando
na escuridão da História;
talvez toda m em ória
dê no silêncio, um bando

38
Os deuses de hoje

de gaivotas sem rum o


na quietude estelar.
M as se assim for, e o estrum e
do tem po devagar

confundir tudo e nada,


quero deixar escrito
nas franjas do infinito
tão longe da alvorada,

esta noite m arinha


e informe, eu assim mesmo
quero soltar a esmo
esta canção sozinha,

este débil bulício


sem m aior serventia
que a pequena elegia
depois do sacrifício.

Term inaria assim,


por um a indagação
ao abismo, ou a mim
com o consolação:

o vento m arinheiro
e a alm a à descoberta
desviariam a seta,
perturbariam o arqueiro?

E seria possível
um dia retornar,
viver, andar ao nível
da luz, a luz solar?

M an ch am -n a para sempre
de violência e opróbrio?
D u ram , deixam semente
os vestígios do ódio,

39
B runo Tolentino

ou um dia o reflexo
do últim o choque elétrico
todo um país perplexo
entre o cínico e o cético,

em palidecerão,
com o afinal no peito
o hum ano coração
refolhado e refeito,

doce, empalidecendo
quando, o futuro vindo,
a sombra for cedendo
e a luz se for abrindo...?

N /M ‘H enrique L ag e’,
m aio de 1964

ESCA LA NO CABO V ERD E

Rocha seca que o m ar cercou de sede,


com m inha solidão desço na tua
e é o m eu país que vejo, a sombra nua
do m esm o desolado m eio-dia:

sofres da m esm a luz e cais na rede


do m esm o logro, és só mais p e q u e n in a -
ilha, cabra de pó, febre caprina
roendo o pasto áspero do dia,

sinto-te debater-te ao fim da linha,


no duro anzol do azul em que te esgotas
sob a revolução das gaivotas,
ó pátria estéril tão igual à m inha!

São Vicente, 26/5/64

40
Os deuses de hoje

O EM BALO DO LARGO

Por enquanto diremos


que nossos ancestrais se extraviaram
e não logram os mais achar o nódulo
em que o erro se aclara;
que não sabemos mais com o acordar
sob o canto, o peso em flor dos limoeiros.
Lhes diremos
que sonháram os vir por outra coisa,
de outro m odo,
e aportam os aqui com o um cântaro a mais
onde a im agem , a nossa, nos sufoca,
se perde, se confunde
com o olhar esgotado que nos coube.
E circunvoltaremos
o sono, a vela ébria da doçura,
passando, sem tocá-lo, no jardim
de cujas noites
nunca mais nossos olhos voltariam.

Vós, no entanto, que o vistes


depois que a flauta da visão se esfuma,
acercai-vos, dizei-nos
o que querem de nós os nossos bruscos corações
que a vaga e o vento vão am olecendo,
por que nos fazem pedidos e perguntas
na oscilação de tantos jogos sem proveito,
nas calm arias com o nas torm entas,
nas febres, nas indiferenças,
enquanto transm udam o-nos em outros
e com o quem não pensa
lançam os âncora, levantamos âncora,
enchem os e esvaziamos de novo
nossos tonéis, nossas palavras,
nossos espelhos, nossos cálculos, nossas
pálpebras... Aonde nos levam nossos corações?
E o que estavam dizendo, procurando

41
B runo Tolentino

dizer, quando a distância ia apagando


o desenho das nuvens sobre o cais
e era em vão que nos curvávam os tentando
seguir, reconhecer, mas já sem forças
de ajudar, decifrar ou responder...

O IN SETO

A m ontoado
trivial do aleatório, escoadouro
raso demais para enxurradas, decrescente
lago virando poça,
mero depositório
de ocorrências, sismógrafo
do vago... Reduzido ao caroço,
com seu dente de ouro
e seu sempre malpago
sonho de quando e onde,
quem quer que o tenha visto trespassado
pelo m ero alfinete do acaso, perguntado
responde
com o tu, com o qualquer: não era um m ago...

M as observa-o, curvado
sobre o hexágono estreito que lhe serve de crânio,
observa a coisa hum ana,
esquisitamente m ecânica;
vai, pálpebra a pálpebra,
de m em brana em m em brana sacudindo
o desarticulado,
desm ontando o acessório,
o não-secreto,
o arsenal para o móvel, e o resto, a soma tonta
e em pedaços: o inseto.

42
Os deuses d e h oje

E olha afinal de face o espólio nu:


nada que impressionasse. E ainda assim...
L á no fiando, no fim,
no âm ago discreto,
nos restos da pupila... U m lam po obscuro,
irredutível corredor sem m uros,
acidental, talvez, com o na concha
o som do abismo, e que se move, que
se vai m ovendo... E de repente conta
esse nervo impalpável. N u m escrínio de ossos
cabia o imprevisível, o insondável
poço de um eco próprio. E já não posso
fechar tudo na m ão que vai morrer.

As parcelas do vivo: m erecer


seus fragmentos, um a um . Pedimos
am or com o um remorso e nesse frasco
apodrece o efêmero entre as patas
da solidão, do sangue, da m em ória.

Fosforescente o inseto, não apenas seu rastro.

Paris, m arço de 1965

A OPINIÃO D E SILEN O

“E stran h o inseto esse,


ch am am -n o, ao que parece,
hom em , pessoa... Passa
com o quem vai voltar,
ave de arribação, mas que arrastasse
pedaços sem valia, com o à cata
de algum m odo de uni-los, dar-lhes forma
ou voz, talvez. N o eco
pára às vezes um pouco, conhecendo,

43
B runo Tolentino

incapaz de salvar. N ão tem um rosto,


tem mil cintilações e u m a garganta
incompreensível, que escurece, e sempre
mais relutante. C ai,
e não raro tão perto
que chega a parecer conciliado;
não tarda m uito a recobrar o ríctus
que o põe aquém das coisas,
m uro sob heras secas.
E continua a cavalgada em círculos
que não com pleta nunca.
C om o os troncos mais duros buscam leito,
assim deita-se ele, mas sem força,
vazio de fragor e alheio à terra.
D e um m urm úrio sombrio ficam folhas
novas, iguais às outras,
lim ando o velho sol. Q ue nunca inteira
se apaga a cham a escura.

Mas por que m e interrogas


sobre o bicho estrangeiro irmão dos Fados,
com o se dele eu visse
mais do que a dor que o cega ou a loucura
que o ordena e vai cum p rin d o...?”

F E L IZ ANIVERSÁRIO

C aiu, caiu
fora da H istória
o meu país:
foi por um triz,
mas foi... E agora?
Bye-bye B razill
Os sacripantas
te anestesiaram ,

44
Os deuses de hoje

deram -te a teta


do deus que adoras
e hoje te operam
à baioneta!
D ói m uito? C horas?
Ranges os dentes
com o os dementes?
N ão adianta,
ouve, repara:
ninguém te escuta...
Aquelas feras,
a gorilada,
a força bruta
que te engoliu
de m adrugada,
tem o fuzil,
tu não tens nada,
só capataz!
Terrinha linda,
mas provisória,
fica calada,
m eu bem, e escuta,
é a voz da H istória:
— “C aiu caiu...”
Vais cair mais
e mais ainda,
vais para a puta
que te pariu:
prim eiro abril,
depois o N ada.

fhris, I o de abril de 1965

45
B runo Tolentino

O SO BREV IVEN TE

Losângulo por seus cantos limitado,


nem devassou seu sonho
nem lhe encontrou resposta.
Avançou mais uns metros, arrastando-se,
usando os cotovelos, mas o fôlego,
farto de se esbater contra os cacos do orgulho,
cedeu, largou a presa
e ele sobrou
nas rugas infantis, na espinhosa doçura,
na obstinação com as palavras.
Sobrou no sono escasso, rebocado
a recorrências, com o num remorso.
Mal se percebe agora o sofrimento
sob a efígie e o nom e,
nele mais nada faz lem brar seus mortos,
senão talvez o altivo
despistamento da ressurreição.

O corpo, um guarda-chuva
avaro, asas fechadas,
queixa-se “dessa luz
espetada em m eu flanco, dispersando,
estragando-m e a sábia redução,
m eu exato quadrado de delírio,
m inha cal, feixe negro...”

E a fenda no teorem a, o que é a fenda?


A dor, o que é a dor? E , mais adiante,
aquela m úsica que entreabrimos
— e vem a hesitação e vem a queda,
opaca, em parafuso,
a outra sede, o outro sono,
onde afundam visível e visão...

46
Os deuses de hoje

DECLARAÇÃO D E VOTO
na coroação de um símio

Recebe com o feto que se enterra


em nosso peito cada vez mais oco,
cada pedaço que ainda dói um pouco
desse cansaço de ainda am ar a terra

que te vão dando de presente, soco


na boca de um coitado que ainda berra
o seu berrinho cada vez mais rouco,
m ico-m ilico, el-rey da m inha terra.

Porque nós te parimos, os palhaços,


os festivos, os lépidos, os burros,
porque hoje nasces com a cumplicidade

da placenta entulhada de fracassos


e ilusões que em pilhamos, entre urros
eu voto hoje em vossa majestade.

Berna, 3 de outubro de 1966

MINIMA m o r a l ia

"Como é possívelfazer poesia depois


de Auschwitz?"
TH EO DO R ADORNO

C om o é possível
fazer poesia
depois, durante?
O u m esm o antes...

47
B runo Tolentino

Parece incrível
pensar no dia
tendo adiante
a noite horrível.

Teodoro Adorno,
olhando em torno
eu te diria
que é mais urgente

do que impossível
fazer poesias
por estes dias.
Por esta gente.

N OTÍCIAS D E CASA

O m atagal acaba de chegar por aqui


e, quase audíveis, traz
curtos gemidos surdos.
E existiria um outro
ao final, restaurado corpo em nova
ascensão, acossado nas ladeiras
da febre, se ela m esm a anda m udando?

Os penhascos revistos um instante


por entre aquelas bruscas labaredas
do coração que nunca fazem sombra,
voltas de novo às tuas alamedas
de m ão vazia,
e é tua m esm o assim essa agonia
de um país à deriva, dessa m ão
que a miragem sustinha e cai também.

48
Os deuses de hoje

Teu o corpo desfeito,


a luz supliciada
e o joão-ninguém ,
aquele velho que, há apenas poucos dias,
disse bom -dia a todos, pôs o gato
e o canarinho sobre o parapeito
e, tirando os sapatos,
atirou-se do nada
pelo sétimo andar...

Teu o peso do corpo que olhas, olhas


cair
cair
com o não caem as folhas,
por lá, com o os tiranos,
com o as lesmas,
elas dem oram m uito a sair do lugar,
levam anos e anos
para se renovar, insistem em ser as m esm as...
Por lá é tudo o mais que anda no ar,
e nada há de pôr fim à queda infinda,
àquele longo, grave,
com o inútil acorde (porque enfim tanto faz)
entre a ilusão da ave
e a im itação da alm a, a alm a ainda,
ela que nesse extrem o nada pode.

O m atagal desperdiçado vive em ti,


ou dura nas entranhas
cheias de cinza com que andas a buscar
velhas terras estranhas
entre o antigo e o novo,
tu e os vagos receios de um corpo
incerto de cair ou de acabar
de despencar um dia
longe da sua tribo, do seu povo,
carne cheia de m ato na agonia,
carne que te reclam a a travessia
buscando ver mais longe, andar mais nova,

49
B runo Tolentino

mas que a queda e a vertigem põem à prova


de um a ressurreição.

A carne pelo ar,


a noite que há num corpo,
o corpo sem o chão,
e o cantochão
dos vagos contrafortes da alm a rouca
de cantar e cair
cair
cantar,
flauta longe da boca,
sozinha a tua carne tenta o sopro...

O SIGNO

Procuraste o teu signo


nas areias, submisso
aos ásperos casulos da alegria
feita de esquecim ento,
e davas tudo por um ritm o onde afogar,
desperdiçar palavras. N ão amavas
o esquilo, não amavas
a m úsica das nuvens dedilhada
entre a sombra e teu corpo.
E eis que o carvalho
que levavas nos olhos, nesse cofre
sem fundo onde o perdido se perfila,
penetra já sem ti no m undo imóvel,
na alam eda sem data onde am ontoam -se
os objetos dispersos,
os contos sem linguagem que ninguém
ouviu ou há de ouvir.
N u n ca estiveste
assim tão próxim o do ávido equilíbrio.

50
Os deuses d e hoje

M as com o falar de calm a quando as folhas


são e não são as mesmas,
quando o espaço
à força de resíduos foi secando?
Antes dizer do impulso sem retorno
que era m ortal e insubmisso e não bastava
nem vai bastar jamais.
R ouca seja a m anhã, insustentáveis
os ecos da ferida ou do milagre.
Q ue enquanto iam ruindo entre os pinheiros
tantos passos que a luz fora fragilizando,
tinhas tudo entrevisto e te curvavas
sobre a relva um instante,
à escuta.

M as assim dividido,
das chuvas de Verão aos perfumes do N orte
(que vão envelhecendo) tu quem és?
Procuravas teu signo, procuravas
no avesso dos relâmpagos, nas pupilas
que o sal escurecera e és um hom em
cujos ombros pedem cigarras...

Todo pendes da obscura


pele turva do mito.
N asceste longe, foste para longe,
cantas para estar longe. Encontrarás
um signo (o teu talvez) na palm a aberta
pela chaga do êxtase, e que tempo
e lugar silenciem.

A ALEGRIA DOS NAUFRÁGIOS

Sustentei m inha alegria


com a chegada das folhas no vento,
com a espum a das palavras indecisas
enquanto as estações precipitavam-se,

51
B runo Tolentino

davam -se um a após outra pelo espólio


do rom per da plum agem dos dias.

Juntei m inha alegria


no vão de tantos mitos, que às vezes
revi com alegria
esse arroio liberto que as palavras
não tocam , que ressurge
cheio de sons estranhos, surpreendentes,
enquanto indiferente, irremissível,
a folha arrasta a água fugitiva.

Libertei, por assim dizer, m inha alegria.

Perdi, bem sei, as m arcas


que u m a respiração tinha gravado
do lado esquerdo e turvo do meu sono,
e que m e voltam às vezes, sem aviso,
por trás do seco vento
que assola os dias secos.
D esde então a distância as tem roído,
vidraças em baçadas pelo bafo
confuso do esquecido.
Esgota-se a aparência e o dia passa
à sombra aquém dos ramos.
Cheguei antes,
precedi m inha vida.

M inha vida, no fundo


de antigas brechas onde em palidecem
as im agens, nos sulcos
de rostos familiares que a distância,
suas águas cruzadas,
cavaram , povoaram
com a sombra das candeias que preparam
para a separação.

(Nossos aqueles dias, dir-se-ia


que os de agora am ontoam -se
estranham ente à porta.)

52
Os deuses de hoje

Ainda assim, e acossado por palavras


que tão clara doçura estrangulou,
ainda assim quisera
voltar, chegar de novo
ao lugar encantado onde, precária,
a alm a tantas vezes derrubada
foi nossa e, tocha à m ão,
conduzia o perdido. Retorno
que inscrevo junto à cham a primordial.

Juntos, m inha alegria.


Em palidecerá
o capitel dos dias onde dança,
às folhas já sem peso misturada,
a lem brança. E ste corpo
devolverá por nós ao chão arcano
palavras despossuídas
de febre, sem elhança ou peso hum anos.

SOB UMA LU Z D E E X ÍL IO

U m dia,
nós à proa, o olho inquieto,
o vento turvo havia anos, de repente
foram saltando a bordo,
a espum a da loucura em torno aos lábios,
cardum es inteiros.
Decidim os não voltar, tom am os o largo
sem um a palavra,
fomos despedaçar nossas lembranças
em lugares alheios e vazios.

Mas súbito, esta noite,


que querem tantos olhos queim ando,
espiando-nos
entre noções arruinadas, casas, pastos,

53
B runo Tolentino

coros confusos, excessivas


estrelas...? Q uem são, aonde querem
chegar com palavras que ardem
com o os lábios do sal sobre a ferida
tão mal cicatrizada da outra vida?

É de crer (acreditam os) que o am or


distribui seus sinais com o a corrente
profunda; que ele arrasta
indiferentemente
os escolhos sem nom e e os pedaços mais vivos,
e que por um m om ento pareciam
nunca ter existido nem jogado
a risco a própria alm a, a própria m úsica,
mas que súbito acordam à distância
— anos, morcegos anos —
aqui, à superfície
de um sofrimento, sob um a luz de exílio.

ÂNFORA AO MAR

A ânfora em que ondulas guarda ainda


um sabor que ficara, um a m istura
de sal e alheam ento;
tua respiração, que ao sono tende,
sente que perde altura.

Flu tu as sem destino, noite adentro


hesitas com o a vaga
e a estrela vai e vem e u m a vez mais naufraga
e a calm aria é longa e tudo é longe.
Q uem reconhece agora, quem responde?

Tu saberias, se viver não fosse


entre o vento e o ouro de um a asa

54
Os deuses d e hoje

vertiginoso em blem a de um instante,


forjar aquela m archa
em que exílio e poder iriam juntos,
súbita seiva doce.

E no entanto navegas
com a inescusável graça
do sonho a encarcerar o sonhador,
mas essa ânfora íntim a aonde for
te embriaga, te cega,
te sufoca: é m ister que a despedaces.

A L E I DO SILÊN C IO

H o je sinto-m e bem melhor.


G aranto que é verdade!
Vbltei a esta cidade
que conheço de cor,
sem esquecer as outras, um a a um a,
em que vivi a descascar a cor
de um pôr-do-sol interminável com o a espuma,
mas sinto-m e melhor,
bem melhor. São assim as surpresas do amor...

N ã o vou m e demorar,
não vão deixar.
N ão vão notar que estou de volta,
m as não vão consentir tam pouco
que a sombra de um poeta, essa espécie de louco
inaceitável na cidade dos deuses,
contam ine os escombros hum anos
que andaram erguendo à solta
por aqui,
por todos estes anos.

55
B runo Tolentino

Mas vou ficar uns meses,


pois ninguém vai notar
que vou andar calado por aí,
até que este lugar
com ece a m e m atar;
então, mais tarde, um moribundo
vai retornar ao mundo
levando na mortalha
pedaços de esperança
e ecos de um a batalha
(interior sobretudo, ou apenas)
de antem ão perdida,
eu sei, m as que fazer? Coisas da vida.

Coisinhas sem indulto.


C ertas cenas
seriam bem difíceis de apagar.
A m em ória atrapalha
o sono da criança
e o sentido do canto de um adulto,
e este aqui, quando voltar à França,
na certa vai cantar.

Por enquanto caluda!


N a cidade dos deuses
santo nenhum ajuda
e quem fizer qualquer espécie de barulho
passa ao m enos uns meses
sendo eletrocutado.
(C ru z credo! Vade retro, desgraçado,
dá ou recebe o choque,
que nós, os caladinhos, calm am ente
iremos todos com o bondes a reboque
na mais elétrica cidade
de toda a H istória deste estranho continente.)

Vou engolir o orgulho


e ficar bem quietinho, com o o resto
deste povinho alegre, tantas vezes

56
Os deuses de hoje

apavorado, é certo, mas avesso a protestos,


senão contente m esm o de um deserto
em que m assacram a luz.

Vou calar à m aneira de Jesus


diante de Pilatos
(quando L h e perguntou se E le sabia
o que era a verdade).
Aqui nesta cidade
seria um a loucura
responder, perturbar a fantasia
ou apontar para os fatos.

N ão vou fazer figura


de outro crucificado,
dizem -m e que o primeiro não deu certo...
M as vou ficar por perto.
E vou ficar calado
com o Jesus ficou:
olhando bem pra cara dele. E levou tanta,
mas tanta chicotada!
Ainda assim parece que tam bém não falou.

Pra quê? N ão adianta...


Por cá tam bém não adianta nada:
lá fora a gente canta
e a turm a toda escuta,
aqui só os deuses do filho da puta.

A LU Z

É claro que existe essa luz


que nos abraça e estremece,
e os azulejos do futuro
que os vermes da noite não com em .

57
Bruno Tolentino

Mas é claro tam bém que o pus


da violência contam ina o escuro,
e abafam tudo sob a tam pa
do medo e do ódio. Escurece
e o chacal diminui o hom em ,
a solidão da estrela cresce.
Escondem os a pequena lâmpada,
vestimos os restos do dia
dos farrapos que dente a dente
disputam -nos. Gasta, arquejante,
acreditam os na semente
que cobrem de cal: a agonia
da pétala aos poucos prepara
as ressurreições do diam ante.
A besta há de passar. A luz
há de pisar-lhe a sombra e a cara.

R io de Janeiro, 7 de setem bro de 1971

O ÓBOLO

Ah, quando a viste enfim, já quase outra


à força de durar atada à roda
que a fazia em pedaços forçando
o frágil ponto extremo,
já se lhe ia o fôlego e ninguém
arriscaria saudá-la: “O lá, ó lu z!”

A agonia de um átim o, e entendeste


que não há travessia
na m orte provisória; sem um gesto,
vendo-a ganhar distância ergueste os olhos
e subiste de volta,
segundo os signos últimos,
rum o ao que te esperava, o adro escuro.

58
Os deuses de hoje

E eis que, entretanto,


enquanto tarde e já sem voz escapas
de tanto ter ladrado por aí,
nu com o qualquer um , resta esse canto,
dá-se que, árvore ainda, o tronco gasto
na luz enlouquecida
recom eça a crescer impedindo o cam inho
com o o cacto soberbo e daninho
do velho Bandeira,
belo ainda, e intratável, trespassado
de incisões e de sílabas.

Sustém com ele o escuro que te cega;


já que não tens lugar neste lugar
e que nada sobrara
de tão próxim o ou puro, cede, pára
e pensa no dem ente e no coitado,
no naufrágio m oral a que sobraste.

Perdoa tudo aquilo que execravas,


porque enquanto m isturam o ferro e o gado,
tu, apesar de tudo,
tens o óbolo, a língua, a herança de que vives
com o se te nutrisse a ti só, m as em que tudo
procura seu reflexo:
aqui o tens, a cada verso mais perplexo,
eu sei, m as sob um resto
de protesto, ou nem isso: de palavras.

59
B runo Tolentino

O ESTRAN H O EM SUA AREIA

"Dormire, ma nella mia patria, dormire


guardandone lunge le spire
delfum o che sale."
CARDUCCI

“D orm ir em casa, repousar a asa,


recostar a cabeça
na m inha terra, com fumaças lentas
dissolvendo suas árvores cinzentas
no longo céu constante,
o velho céu sem mais nenhum a pressa,
o m esm o céu de sempre, o céu de antes...”

C um prira-se a jornada
e agora p or fim seu cão fiel
tinha-o todo de volta
mas enquanto
a luz na areia solta
cantava-lhe acalantos
e ele ali estava com o um capitel
caído sobre a praia da chegada,
enquanto ele dorm ia nenhum cão
lambia aquela m ão,
o suor do cansaço do pescoço,
ou as cicatrizes sobre aquele dorso
durante tanto, tanto tem po atado
ao cantochão do mar, ao velho mastro
sinuoso com o o sonho sob os astros
e firme sob o canto das sereias
no entardecer de todos os desastres.

C ão algum
lam bia aqueles membros, um a um
ramos do tronco desenraizado,
arrancado às raízes que no peito

60
Os deuses d e hoje

cresciam sem sentido, doloridas


com o os dedos crispados da outra vida.

Q u e estranho acento feito


de distâncias puídas
naquela voz! Aquela voz contando
as visões, as miragens, os pedaços
do corpo dado à brisa, aos estilhaços
da canção perseguida e m al ouvida.
O corpo flutuando,
o corpo desatado atrás do coro
em baçando os espelhos de outro m ar
refletido nos olhos pelo choro
que ele econom izava e iria dar
à beira de um a areia
fam iliar e alheia...

F aziam falta os ecos


que ele tem ia tanto e não vieram
porque ninguém , já ninguém mais espera:
o rei volta sozinho
da solidão de longe à solidão de agora.
E pelos vagos becos,
atalhos e caminhos
do labirinto que a em oção soletra,
o rei vindo de fora
anda detido com o a m ão da Parca
pelos fusos daninhos:
o braço sem o cetro, o esqueleto
do gesto circunspecto
e inútil do m onarca,
o anel sem o dedo que o investe,
o fausto sem as vestes,
o tropel sem corcel fechando o cerco.

A rredondado mar, m ar quase berço,


separação e embalo
que ele cantou para não separá-los,
a m áscara da cena,

61
B runo Tolentino

o azul da cantilena;
praias alheias e vazias, cheias
de um puro alheam ento,
tudo cristal e sal e esquecim ento,
longas areias quietas com o o avesso
dos sonhos turbulentos,
falai com ele agora, ondas, areias,
únicos travesseiros
para a m esm a cabeça
que voltou, com o voltam do estrangeiro
os pássaros m igrantes,
nem daqui nem de lá, restos do vôo,
asas da vastidão
o rei voltou
a solidão voltou, o resto não.

Q ue nada, nada mais é com o dantes,


nem tu, mar, velho mar, espelho e lago
das distâncias sem fundo,
deste m undo
espelhado no outro, m ar de encontro
a tantos desencontros, com o os troncos
truncados, arrancados às raízes
que os frágeis paraísos
da m em ória refazem e desfazem-se
ao acaso das praias confundidas
pelas lentas viagens
da alm a embriagada pela vida.

Dilúvio de quim eras, m era parte


de um todo nunca inteiro,
fera ferida pelo incompreensível
flechaço do invisível,
m ar que bates no eterno a procurar-te,
consola esse estrangeiro
que aqui trouxeste e que, segundo a arte
da volta, do impossível,
chega igual ao que foi, o pioneiro
das vaguidões sem lastro e sem bandeira.

62
Os deuses d e hoje

Teu velho prisioneiro,


teu filho, teu irm ão,
consola-o, canta agora em seu ouvido
a canção sem enredo e sem tim ão;
conta à tua m aneira
a longa, a m esm a história, recom eça
a contar as gaivotas,
seus gritos espantados, suas glórias
nos ocasos distantes, e as derrotas
e, avulsas, as vitórias
dos sargaços nos braços idiotas
do vazio entulhado de pedaços.

C onsola essa cabeça,


abraça-te a esses braços
que tanto se entregaram às tuas garras,
se para sempre esbarras
no peito que acordou acorrentado
de repente
sem as tuas correntes.
Q ue agora, repentina e novamente
abriste descuidoso a tua porta
e ele caiu da porta escancarada
aqui, nesta calçada
branca do teu império descuidado.

C aiu sobre o vazio avarandado


das abolidas salas
de mais ninguém , as que ninguém recorda.

O rei voltou do nada para o nada.

Lobo de sal e névoa, lobo-mar,


sossega os teus conflitos
e pelos intervalos do infinito
dispersa as velas e cancela as cordas
que já não ligam mais, se antes ligaram,
a m iragem ao cais,
o m astro à tarde clara,
a âncora à ilusão

63
B runo Tolentino

da coisa firme, do possível chão.


Fala com ele, fala
de inacabadas coisas que acabaram
por se acabar.
Substitui seu cão
e lam be o tombadilho
do sonho de seu corpo, em barcação
do nada atravessado pela flecha
que trespassa o estertor do coração.

Tudo é mar, e no m ar é tudo exílio.


Beija-o, que ele se deixa
beijar, fera ancestral, lam be o teu filho,
lambe essa m ão entrando pela treva
e ritm ando o informe, leva a leva
de um levante sem face ou remissão.
C oroa essa cabeça
sem pouso, sem irm ão, sem endereço...

A ESTR ELA

M as, dito isto, vai,


vai outra vez embora,
vai por enquanto, cai
com o a folha e o velhote, mas cai fora,
entra no bote,
entra em ti m esm o que o navio vem
e vai, vai, vai-te em bora, adeus, am ém !

A qui estão, em todo caso, um a vez mais


prodigiosos, o convés m olhado, o cais,
a noite em que a estrela te espia,
em que os amigos
antes do despertar, duas, três vezes
repetiam -se ainda

64
Os deuses de hoje

que estavam na berlinda


mas tudo era dos deuses,
e nada m udaria antes do despertar,
antes desse am anhã que não se acaba mais.

E nfim , em teu lugar


eu tam bém partiria...

O u seriam m entira
os ecos que sum iram
na água encurralada? N o deserto
im itando um enorm e espaço aberto,
os sussurros, as vozes u m a a um a
esvaziando o convés,
baralhando-se à espuma,
virando esse silêncio em que a estrela te espia
chegar, partir, voltar a u m a agonia.

A h, na esteira dos anos que se encolhem


ante essa ou aquela
cham a, faísca, o lum e quase extinto,
ou em qualquer vestígio já sem força
— os sinais precursores da alm a nova —
aqui no labirinto
rostos, sombras e nomes
com o que transbordaram lentam ente,
já não habitas mais a hora esvaziada,
já não habitas nada,
és pura lenda,
vives agora ali no coração da fenda,
cercado por tenazes
enquanto, ainda de rastos,
u m país perde o fôlego...

E no entanto não és
um daqueles rapazes
a que ataram as m ãos, arrebentaram os pés,
queim aram os genitais
e apagaram o nom e...

65
B ru no Tolentino

N ã o , não és, não serás


jam ais aquele hom em .
E s, nem m enos nem mais,
o outro, esse que eras
e não interessava nem às feras;
um daqueles poetas avulsos
que vão e vêm à toa pelo m undo
e nunca chegam , justam ente, ao fundo
do que não são, e nunca dizem a que vêm.

É s outra vez igual a ti e a mais ninguém ,


exceto, em torno aos pulsos,
certas incompreensíveis novidades,
com o m arcas de algemas de verdade,
mas que não são vestígio
do que te acontecera de m edonho,
não são nem tatuagens, são só sonho
que transpusesse com o por prodígio
as sanções do acordar...

E segundo
que a m ultidão dos rostos e dos nomes,
anônim a tornada,
faz sombra sobre o espelho que emoldura
a rápida figura,
o vulto vagabundo,
ou sem um baque some
nas discussões vazias do Verão
(mas do outro, do louco das canículas),
à noite, que é tão longa, ninguém volta
ao convés, já não voltam mais as vozes,
impossível agora com preendê-las,
sozinha à tona d’água passa a estrela,
porque os destroços não.

66
Os deuses de hoje

NOVO EM BALO DO LARGO

Partir, reincidir,
subir até as fontes o afluente
da visão, esquecer
o coração que quer durar entre as folhagens
familiares, onde lentam ente
se aquiete, tente
envelhecer.

G algar as avalanches
surdas e bruscas da recordação,
reincidir, partir
antes do dia, preceder a onda branca
do coração que tudo afoga e passa a tranca
am orfa na m em ória, o coração
que se faz e refaz no esquecimento.

Imóvel sobre as cristas móveis um m om ento,


olha-o: não é o país
que vês e que não vês,
que se abre e se fecha, coral turvo, não é
aquela pátria que te toca deixar, se é
que a deixarias...
E a opacidade
da m em ória, é essa H istória que talvez
seja e não seja a tua,
com o a m odulação constante da m aré
é e não é da lua
e aquele espaço
que arrastas aonde fores é a m etade
de tudo a cada passo.

A h, parte, parte-o,
espatifa esse bloco
da cor, da palidez do m árm ore em que o soco
não entra e não ecoa,
essa distância,

67
B runo Tolentino

esse madeiro à toa


na corrente, essa ânsia
desejosa de estar,
toda a nudez do ser espelhada no olhar
que via e já não vê.

Reincidir, dizer-se
livre, longe de tudo
e é tudo ainda

e sempre o m esm o: o m esm o olhar enfermo,


cheio de sede, o olhar
que se confunde ao vento de lugar em lugar,
a maresia, o salto
que se confunde ao ar
e não pode deter-se nem tocar
a terra provisória, a floresta, o asfalto...

É tudo para sempre agora e ainda


esse olhar parasita
que anuvia e limita
a luz, a luz calada mas infinda,
as claridades lentas da distância,
o cântico dos galos com o torres
chorosas a rondar
as m adrugadas no quintal, o choro
arquitetando o dia além dos morros,
galgando, trespassando lança a lança
a alvorada que hesita:
a ondulação no ar com o um a fita,
a serpentina solta,
o vôo, a vida, a vaguidão, o olhar,
a ida, a volta,
a ida ainda, e em volta
a escuridão, o mar...

68
Os deuses de hoje

À TERRA PROVISÓRIA

Adeus, cimos e vales e veredas,


e bosques e clareiras e campinas
soltas ao vento, sacudindo as crinas
das espigas de sol na luz de seda.

Adeus, troncos e copas e alamedas,


esmeraldas selvagens que as neblinas
salpicavam de prata, adeus, colinas
que iam subindo com o labaredas

de cobalto no ar... Adeus, beleza


irrepetível, que m e viu nascer
e toca-m e deixar: a natureza

tam bém é feita de deixar de ser,


e eu levo agora a sombra e deixo a presa
à luz do provisório amanhecer.

O BA ILE N EGRO

"Ut te postremo donarem munere mortis


et mutam nequiquam alloquerer cinerem. ”
CATULO, Cl

Q uando, na noite escura,


sob um teto qualquer,
asa por asa, inseto por inseto,
vai-se aos poucos form ando
o tresloucado bando
e um candeeiro aceso pende a um teto,
e trem e a cham a pura

69
B runo Tolentino

que nem rescinde o escuro nem rejeita


o silêncio agravado
pelo bater de asas ansiado
que ouvido algum percebe, quem quiser
observar atento, com o à espreita
de um enigm a insensato,
há de colher no ato
u m bando suicida:
cada m ínim o vulto
que em espirais de rápida subida
vai levantando o vôo, de repente
m ergulha extasiado
naquele ponto ardente
por onde o vivo passa deste lado
ao outro e imperioso lado oculto.

H oje, no m undo inteiro,


mas sobretudo aqui no m eu país,
há enxam es assim: o desespero
de que são cada um a vítim a e o aprendiz
é com toda a certeza
o poder que os recruta.
H á bandos de uniforme, cada vulto
um a sombra platônica, de gruta:
a sombra da vileza,
a da m era violência, e a m ais estulta:
a da consciência pura,
a sombra que é um braseiro
de convicção no coração da fortaleza.

Todas ardem e queim am a criatura,


todas crêem no que fazem , e assim consom em
indiferentemente
o inseto que fazem do hom em ;
são o ponto ardente
entre o teto e o assoalho,
o ponto obscuro
em que se encontram o bando tresloucado
e o estranho suor de um trabalho...

70
Os deuses de hoje

N o entanto, inseto ou cham a, todos são


um só produto, um a alucinação,
um a inversão moral do ímpeto alado
da natureza cega: quando somem
de encontro ao lampião,
as falenas da noite não hesitam,
porque elas mesmas buscam
a cham a nua; mas que im item , que repitam
aquele estranho rito
das m aneiras mais bruscas,
nos porões mais sombrios da H istória,
é um a profanação:
do ritual, do mistério, do mito,
da estranheza das coisas e dos seres.

Tradução imoral de um infinito


enigm ático, é certo, mas solene,
esses prazeres
de ritual m acabro são apenas
outra caricatura a mais das cenas
em que a vida infinita do universo
se expande e se exterm ina,
sem que nada condene
nem a falena nem a lamparina.

Ali a coisa é outra. Ali o inverso


de tudo e de um mistério
povoa a noite com o obsceno grito
e o desfiguramento
da vida, da criatura, da nobreza
p or certo incompreensível
de um ritual que principia no sensível
mas vai desem bocar no eterno: um movimento
tão estranho e tão sério,
tão vital e tão prenhe
de significações
que por m uito que a m ente desdenhe
extrair-lhe as lições,
a alm a, a alm a insiste
senão em desvendá-lo, em com preendê-lo.

71
B runo Tolentino

Aqui, caneta em riste


num tímido protesto quase apelo,
ouvindo a música do baile negro
que este m esm o absurdo instante dão
do outro lado da rua,
com o C rucifixo pendurado a um prego
contra a parede nua
de um a casa contígua
tanto à Paixão do Cristo
quanto a um a tradicional E scola Pública,
medito em tudo isto
na sem i-escuridão
de um a noite sem lua,
num a antiga República
que nasceu dos escombros de um Im pério
e, há quem o diga,
acaba entre a vertigem e a gazua
com que lhe abrem agora o coração.

E medito um mistério
m uito m aior que o ritual da festa
que os deuses mascarados
dão em honra da besta
sob o olhar divertido ou patriótico,
dizem -m e, de fileiras de ilustres convidados!
N ã o penso nos algozes; nem m esm o nos coitados
que os mais ferozes uniform izados
fazem dançar até de m adrugada;
reflito no protótipo,
penso no ritual,
no peso meio exótico
e na natureza am bígua da noção
de rito; no sentido universal
e m ítico de cada
sílaba da palavra conspurcada
agora, este m om ento, ante a calçada
em que passeia um velho cidadão
m eio aflito de m e ver espiá-lo.

72
Os deuses de hoje

Se esta existência fosse um garraíao


e vivêssemos cada um ali dentro,
com o um desses navios
metidos lá por fios
que o põem de novo ereto
quando lhe atinge o centro,
eu diria que este instante m e sinto
metido no gargalo;
que o garraíao é preto,
e que o naviozinho
entrou num labirinto,
porque é impossível socorrê-lo ou retirá-lo
de onde entrou sozinho.

O ritual, nesse caso,


deixou de ter sentido e nem a m ão
de D eus ou, se preferes, a intervenção do acaso
podem restituí-lo
a um significado mais tranqüilo.
O mistério é o mistério,
mas há situações
em que o jogo é mais sério,
porque é o jogo hum ano. E que nexo
encontrar entre um jogo tão com plexo
quanto o que tem lugar
do outro lado da rua, e a cena, familiar
em tantos casarões,
com o o da velha Fazenda do Pilar
em que vi tantas vezes
o bando tresloucado m ergulhar
na cham a nua pendurada a um teto?

E n tre o hom em e o inseto


há um a obscuridade, um a zona
de significações m eio obscuras
que o olhar, o m ero olhar hum ano não desvenda,
e assim faz de metades contrastadas
os dois níveis da lenda
m oral da criatura.

73
Bruno Tblentino

A um deles, à tona
do tanque sempre raso do sensível,
vejo um m enino pasmo;
ao outro, num a lição de entusiasmo
de todo incompreensível,
um a porção de insetos em aglutinação
contra um a só das paredes caiadas,
em frente a um lampião...

A H istória se repete com o farsa,


disse o filósofo alem ão,
e aqui estou, quase um quarto de século
após ter tido um a prim eira ocasião
de observar aquele choque
entre a criatura e a auto-im olação;
e aqui estou a reboque
de um a doida inversão
do m esm o fato,
ou, para ser mais exato,
aqui estou com o mais um com parsa
impotente no baile sem eco
do outro lado da rua... O lampião,
a cham a nua, são
o instinto de extermínio,
o fogo que saiu do lugar
e passou a m orar
no peito hum ano, uniform izado desta vez;
ante os ouvidos pasmos do m enino,
oposto à cham a cru a agora o bando,
reduzido, é provável, a um só dançarino
resistindo e dançando
ao som de um ensurdecedor alto-falante,
im ita assim m esm o a falena, e talvez
repita aquele instante
com a m esm a lucidez.

E , não vês?,
é ainda o m esm o rito,
só que agora ao contrário:

74
Os deuses de hoje

a m etade de um grito,
um choque elétrico, e o universo perdulário
derram a-se em diagonal
sobre a festa insensata
que m ata, m ata, m ata...
É o m esm o ritual.
A única novidade
é que o circo feroz da hum anidade
introduz u m a pata
no equilíbrio da noite universal.
E perm ita-m e, leitor, que encerre agora
esta dissertação
de m aneira abstrata,
que faça disso tudo um a noção,
mais adequada à hediondez da hora...
Encerrarei assim m inha visão:
entre o corpo, que flui
à contraluz dos dias,
seqüestrado entre facas de intelecto
no estranho claro-escuro de algum jogo
que a m ente não dom ina nem dilui;
e as graves agonias
da alm a, seu projeto
dedicado a im itar o que se evade
deste m undo de artérias pelo fogo
severo da vontade
(vontade de ser deus no que falece
deste lado e aparece,
quem sabe, do outro lado);
entre estes dois extremos
de tudo o que buscamos e não tem os,
passa o vôo exem plar do alucinado
inseto que procura a eternidade
entre as vigas de um teto.

E é possível que ali, do lado oposto


a esta m esm a casa,
persista algo de asa
na solidão pavorosa de um rosto.

75
B runo Tolentino

E por isso te peço que em nom e


de um inseto e de um hom em
penses naquele rito:
fecha os olhos agora, com o eu faço,
e através do espaço,
por toda a hum anidade,
repara com que fausto
o que é finito rebaixa o infinito
e o m eram ente misterioso vilifica um mistério.
Tua m elhor metade
vai nesse vôo exausto.
A outra m etade é um a charada estéril.

R io de Janeiro-O xford, 1971-72

MIDSUMMER’S NIGHT SCREAM

"Thou mettest with things dying;


1 with things new-born...”
T H E WINTER’S TALE

Voltou a luz, o dia de "Vferão


voltou: voltaram os risos
à beira-rio, no pom ar, na poeira,
nas levezas sem pressa ou precisão.
As folhas da parreira
acenam para o corpo (os paraísos
nunca perdem as folhas) com doçura.
E o velho ouro é leve, a luz é pura
e a frágil asa da alegria inscreve
volteios e arabescos na luz breve.

O jasm im acendeu-se, e é mais suave


sob as pálpebras brancas da luz grave.

76
Os deuses de hoje

Rodopiam as rendas, as risadas,


o sonho, a tarantella ...
Corpos e sombras giram na dourada,
dolorosa corrida, ah, mas tão bela,
enquanto, encarcerado num porão,
há agora aquele par... E a traiçoeira,
a insuportável luz virá depois,
mais tarde, entre eles dois.

Oxford, junho de 1972

OS O LH O S NÃO SÃO SEM EN TES

"Warum gabst du uns die tiefen Bliecke?"


GOETHE

N ão, irm ão, nossos olhos não são


sementes; mas talvez tu acredites,
com o eu acredito, que existe
algum a coisa a mais sob esse inconseqüente
delírio nosso, tão m al-hum orado,
algo de obstinado e renitente
subindo, buscando, forçando passagem
dentre as m argens do escuro subterrâneo,
no doido sonho hum ano
de total vacuidade...
Porque o nosso
não é bem um lam ento, é um monocórdio
levante, tão constante quanto ardente,
u m a conversa de semiclaridades
que conseguissem m uito simplesmente
confirm ar só os véus e nunca a face
sob esses véus
que nenhum dente hum ano há de rasgar.

77
Bruno Tolentino

N em posso imaginar
outra música assim, que resguardasse
tudo sempre acordado, a grande insônia
na caixa vazia e sem nom e;
o vazio tão branco, com o os ossos,
selvagens, desejosos.
E de repente é urgente,
é preciso encontrar
um a pausa qualquer em que o corpo coubesse,
mais sem esperar mais que o anel se partisse,
que a roda do real se interrompesse
para que pela fenda entrasse a vida,
o instante mortal com o portal
diante do precipício
aberto sobre a próxim a mordida
de espirais e espirais de um fogo histérico.
Eu
(mas não existe o eu desse mistério)
sei que me hei de lem brar de im aginar teu rosto
enquanto o lobo perm itir que eu veja:
para sempre hei de ver os teus lábios buscando
subir mais e mais perto
das intensas cavernas onde ronda o deserto
a labareda dos olhos, e que seja
tudo outra vez queim ado vivo; então
a história toda será fogo puro.
N os olhos não, no escuro,
só no escuro da boca há salvação.
E na hora que obriga a não ser, a calar,
o grito do teu lábio em m eu olhar,
ah, para sempre no m eu pensam ento,
há de em purrar a roda destroçada
da H istória tropeçando no seu N ada
para que a vida exista e o corpo possa
arrancar seu pedaço de m om ento.
Q ue eu penso no teu corpo: vejo os ossos
e restituo-te o resto, o hom em todo,
reclam o-o verso a verso ao filhote do lobo!

78
Os deuses de hoje

£ à falta
de socorrer-te a tem po, o m eu lam ento,
este histérico rito vai cantando
e buscando escutar o som da flauta
e ser enfim eu m esm o a flauta. Urgente,
dentro de cada som canta a semente,
solene e obstinada, irredutível
quando os olhos se perdem no indizível,
e a boca sangra, sangra sem saber
com o gritar, arder, quem sabe, ou delatar...

A F Ê N IX

Algoz e torturado
à superfície são
um a excrescência só.
D a tenaz à carcaça
a m esm a som bra passa
indiferente aos dois.
N u m m esm o giro esvaem-se
um a garra e u m a face.
D ispusem o-nos todos
a atravessar o átrio
e eis que, pouco depois,
na vertigem, no lodo,
m orre-se em separado:
um gem e, o outro tem dó.
Ao fundo o solo pátrio,
as notícias de casa...
O fogo, o ferro vivo,
a m iragem em brasa,
que sei eu deles? N ada.
O nada é m eu motivo
e nem sequer consigo
m etê-lo na palavra.

79
B runo Tolentino

Sou um nada ao abrigo.


Sei, m esm o assim, que a asa
pode ser arrancada,
mas não se sabe nada
que lhe arranque seu vôo.
N ão canto porque sou
o oposto do carrasco
ou o vago irm ão gêm eo
do fantasma dançante:
canto porque este instante
tenho apenas m eu asco
e entendo que quem gem e
repõe a roda em m archa
no rum o de um sentido.
Talvez de cada açoite
arrebentando a noite
um a fênix renasça.
E m todo caso creio
que o que partem ao meio
vai durar m uito mais
que a besta mais voraz.
Toda fênix passa,
mas volta. A besta, eu sei,
tem um certo poder,
mas não conhece a lei
que rege esse mistério,
não sabe renascer,
e repete-se apenas.
A lei que anim a a raça,
não a apagam com cenas
de holocausto, de um falso
ritual tão estéril
quanto estrangeiro ao ser.
D e cada cadafalso
toda a raça renasce
tantas e quantas vezes
a desvirtuem os deuses,
que a fizerem aos pedaços.
E um a fênix a raça,

80
Os deuses de hoje

qualquer que seja. A nossa


é possível que possa
morrer, mas com o o pássaro
do entendim ento egípcio:
qualquer que seja o vício,
o abutre ou o ritual,
a fênix é o sinal
que faz da im olação
um prim eiro portal.
Só ela entreabre à espada
a bainha da graça;
só a coisa imolada
confirm a-nos o eterno:
quando baixa aos infernos
vai buscar a alvorada.

M ORTE DO MASTIM

E se ele viver o bastante,


se ele viver para contar
que o que ele foi despedaçar
entregou-se em vôo rasante
à mandíbula desdentada,
senão desdenhosa, do nada;
se ele viver para encenar
um a vez mais aquele instante,
porque ele era a coisa do chão
que mais leva a duvidar do ser,
considera a m orte do cão,
à luz do que ele fez morrer:
a carne era um berro, o seu salto
m era sombra sob o sol, tão alto...

81
B runo Tolentino

A C ELA IMAGINADA

E penetras
o local m alescuro; resplandecem
vivas ao fimdo as m arcas
do leito de ferralha: corpo e alm a
torciam -se, estiravam-se aos pedaços
ali... Seria assim
a vertente de sombra onde dançou,
dançou depois ardeu,
o inseto ensandecido?

M elancolia, desolação dos dias


lentos, em paredados
nos porões do silêncio onde se avia
a m esm a imolação.
M ove-se a sombra, quer rom per o cerco,
dissolver-se em reflexos;
à distância
imaginas o instante
em que o acordar acossa o acordado,
e encostas tua fronte
à fronte suplicante.

Mas desfazem -se os nós


entre a luz cá de fora
e o corpo enxoviado
na agonia que o arrasta, m utilando-o.
E segue o baile negro
na enchente da elegia refletido;
caída em ti, salgueiro socorrendo
o abismo, tua vida.
Acedes, e ela
estrem ece e hesita.

82
Os deuses de hoje

IM AGENS E SEM ELHANÇAS

N ão, não és tu a ovelha


em transe, nem o Fausto
am igo do Diabo;

sonhas que te assemelhas


ao dançarino exausto,
ao diam ante no cabo,

mas não provaste a lâm ina...


É s o escândalo atrás
da desordem, de todas

e de mais um a infâmia:
excluído das bodas
do baile negro, a adaga

agora tanto faz,


e a escuridão, o horror.
Tanto te dá supor

tudo voltando ao nada,


ficaste só ao lado
do nada: o últim o grito

que não viu a alvorada


a ti nunca chegou.
Se, tão longe do dram a,

o corpo mutilado
ainda se parece
vagam ente contigo,

à medida que desce


e sobe a luz da cham a
entre dois precipícios,

83
B runo Tolentino

o vulto do inimigo
e o teu, eqüidispostos
e equivalentes, são

dois lados da ilusão,


meras noções de um rosto
apenas: o solstício

não vale o equinócio


e o arabesco fortuito
canta, mas passa m uito,

m uito longe do chão.


Q u e é onde enfim os ossos
e a treva dão-se as mãos...

A SEM EN T E

D oce sem ente avulsa de Verão,


a lua,
fielmente inclinada em tuas pálpebras;
tua febre, isto é, tua vida
se exercitando a conhecer seu mal;
as duas, três palavras que a ilum inam ,
e és o único a ver
a cena abandonada pelos dias,
o em balo de repente
do pêndulo fantástico sangrando.

E n xam e dedicado a espedaçar-se,


fogueira em que fugiam
cara a cara dois corpos,
não, não podes tocar um coração
de que foste excluído
e dança ainda,

84
Os deuses de hoje

depois da cinza, antes da vinha, dança


o exausto dançarino.

Tu? Tu espias a lua, aquela doce


semente desgarrada que se dá,
igual, a m esm a não.
Tu te aquietas.

NONINJUSSA CANO

E u quis cantar as coisas ordenadas


inelutavelmente desde o início
e tocou -m e baixar a um precipício
atrás de um a por um a, nas pegadas

dos que vivem segundo as debandadas.


Pegando sabiá peguei o vício
de escapar entre as m alhas, o difícil
era reconhecer as emboscadas...

M eu canto foi assim desde um com eço,


ia virando tudo pelo avesso,
pondo-se à contraluz de u m a erosão

contínua, de ruína... C o m razão


deu na enxovia em que se paga o preço
da teimosia e da sublevação.

O VULTO NA LADEIRA

E n con tro Jorge de L im a


na virada da ladeira

85
B runo Tolentino

do M osteiro de São Bento;


com o os braços do C ruzeiro,
cru zam o-n os já lá em cim a,
um descendo, o outro subindo;
vejo-o estender-me a m ão limpa
com toda a solenidade
e sinto cair a tarde
com o tudo anda caindo...
Lem bro ainda o que lhe disse.
‘Poeta, mestre meu difícil,
cada vez mais m e lam ento
destes tempos; de haver sido
o século tão propício
aos deuses de cassetete
e aos fúteis quebra-cabeças
dos néscios, dos que não cessam
de redividir o nada
e conclam ar à cruzada
a legião dos ressentidos
Aqui, à sombra da Igreja,
desde o dia em que partiste
m ultiplicaram -se os signos
do fim destes tempos tristes-,
tristes segundo os desígnios
d’0 que assim quis, e assim seja
E vinha caindo a tarde
no adro daquela igreja
ferta pedra e pensamento
e, sem que eu o compreendesse,
assim com o veio o bardo
que cam inhava com igo
desapareceu no vento
daquele lugar antigo
C om o Miraceli às vezes
desaparece e aparece
sacudindo a eternidade
sobre este m undo postiço
E ainda padeço a saudade
do sonho de tudo isso

86
Os deuses de hoje

O CÂNTARO

Pende teu corpo agora


sobre a m esm a cisterna a que levaste o cântaro
que te irias tornar
para o entornar por este m undo afora,
para o esvaziar e encher de esquecim ento,
quase conciliado
com teus próprios silêncios, m urm urando
em salas abafadas, repetindo-te
que enfeites são cansaço,
combates do sem-face
pelo naufrágio, pela efígie não.

O ardor em que se esvai


a im agem : a instantânea
brasa do m ovim ento, o puro fogo
andarilho, sem rosto,
ateado à nudez, lagarto solto...

E no entanto é evidente que vais perdendo pé


dia a dia, no cerco
de objetos familiares que se calam
enquanto o sono m au desta vida te engole
m edo, desejo e fôlego,
e tudo mais é um vago estrem ecer ao longe
de estátuas sucessivas.

U m a casa enxotada de teus olhos


levou com ela os m ontes, os telhados,
os peitoris de ouro onde o m ar bate,
olho glauco, e se parte:
* tudo cintila ainda
um breve, u m longo
m as apaga-se
some-se
Prossegues
desde então com o podes, sob o arom a

87
Bruno Tolentino

im itando o reflexo
de copas e resinas, tua soma
vertiginosa das mudanças...
Ficas
com dois olhos vazios na incerteza
de mudar, na esperança de morrer,
o vivo sitiado dos pés à cabeça
até que a pele e a im agem o anoiteçam.

Im aginas ouvir
(talvez ainda não ouças)
passos soando com o se um a queixa
soasse, o sustenido nalgum poço,
um substrato de percepção
aqui e ali, centelhas
ao longe, onde se acabam
os m urm úrios do espelho:
ficaste prisioneiro
de um a m archa forçada, imperceptível,
tronco podado, catas
hesitante um vestígio.

A cerca-te e repara
na ordem sem prodígio dessa fuga:
vem o lugar, fulgura e logo, célere
o dia, e cada dia
menos que cada forma
instantânea e contínua
aqui, do movimento,
que é perpetuidade e fragmento;
e dá-se a intercessão
do lugar e do instante
a que se segue
esvaziado de cintilação
o lugar devolvido
intacto à própria queda. E só então
a dor antes da volta e a alegria
de fazer-se mais perto.
E repara

88
Os deuses de hoje

que nem retorno nem ressurreição


te am param , que só vivem
a alegria e seu límpido gem ido,
o estrépito em que brilham a hum ilhação
e o corpo com que os serves, distraído,
em cujo nom e aceitas
promessas adiadas de colheitas,
um apagar-se gradual de tudo, um lento
desm oronar-se de fidelidades
e, enfim, o alheam ento.

Por todo pouso e alento


eis que só resta o pão em que as mãos se reúnem ,
eis que m al sobra a p az que as unhas ferem
antes do despertar sobressaltado.
C h am a de volta a ti
a m anhã que não soube envelhecer,
que ainda te guarda. L em bra
que assim teu signo foi: um m ovim ento
sob a torrente escura,
deitado atrás da dança,
no coração unânim e fragmento.

O GANSO SELVAGEM

C h ega tão de m anso,


de tão alto, vindo
de tão longe! Vem
com modos de dança,
mas com a precisão
de um quase ponteiro,
mais um m ensageiro
da noite qu e avança.
E é tão nobre, tão
frágil e tão lindo

89
B runo Tolentino

quanto o ritm o, o cheiro


e o azul da estação;
m ancha no aluvião
da noitinha, o ganso
selvagem sozinho,
desgarrado ou não,
vai baixando, paira
com o indecidido
entre algum cam inho
perdido e o chão;
e quando aquiesce,
quando finalmente,
com o que hesitante,
resignado desce
de um a solidão
a outra, fugido
não ao bando, não
à lua crescente,
m as à imensidão,
exausto, ofegante,
já não pode m ais...
Já se acerca a nós
com a resignação
de quem reconhece
que foge ao fugaz;
que, se baixa ao rio,
troca de corrente,
deixa a altura à frente
e a am plidão atrás,
troca de vazio,
já não troca mais
de destinação.

Parece-se então
dolorosam ente
a nós, é um irm ão,
a asa dobrada
com o a nossa; agora,
com o o albatroz,

90
Os deuses de hoje

o poeta, a história,
a sombra do hom em ,
será com o nós:
vai durar agora
com o se de fora.
E até que a alvorada
lhe devolva o nom e,
o fôlego, o lago,
o horizonte vago
cham ando-o outra vez;
até que banhado
de luz, de altivez,
enfim vá-se embora,
vá de novo atrás
do bando, talvez;
até que am anheça,
m ovendo a cabeça
de um para o outro lado,
é um pobre coitado,
aqui embaixo faz
figura de am ante
só, embriagado:
cam inha hesitante,
volta atrás, dem ora,
recom eça, avança,
cansa-se, desiste
e de repente canta!

M eio rouco, a voz


esgarçada, um grito,
um lamento quase,
um despedaçar-se
lento com o a gaze
de um débil disfarce
que se rasga em vão,
cum pre aquele rito
inconcluso, triste:
o pescoço em riste
contra a escuridão,

91
B runo Tolentino

os pés num a dança


incerta, a garganta
de um aço cortante,
eriçado, grave,
é um a estam pa atroz:
já não é a ave,
a ave voltejante,
é um pobre am ante,
chora com o nós.

AO PRÓPRIO CORAÇÃO
(Voltas a um tema)

Perdi teus ecos, tuas asas, dei-os


ao vento que os ouvia... Só depois
hei de ouvi-los de volta, quando cheios
do peso que partir um ram o em dois,

o enxam e todo: com o contra um muro


parte-se a onda e passa a ser espuma,
ouvirei soluçar com o se alguma
revoada de pombas pelo escuro

procurasse voltar. Mas não se volta


ao pombal desertado, a um coração
desabitado e dado ao vento não

há volta: ao ram o vivo a folha solta


sabe que não retorna, e com o a brasa
o soluço se apaga, com o a asa...

92
Os deuses de hoje

O REFRIG ÉRIO

“O Brunnen-Mund, du gebender, du Mund


der unershöpflich, eines, reines Spricht"
RAINER MARIA RILKE

Sem i-ácido silêncio.


N o corpo um gosto agudo de ferrugem,
com o o desejo avulso.
A noite, a lua alta no seu curso
e o sussurro da água, balaústre
da m ente sobre o imenso.
M ergulha a m ão na fonte, sente o pulso
da terra dissolvendo-se.

E se de súbito
a lua impressentida se derrama
no vazio, reclam a
tudo o que tens de coisa nascitura,
e assobios de m ata no horizonte
arrancam -te a ti m esm o? D e onde chega
teu coração vestido da doçura
intacta de outra fonte?

L onge, lá nos Esquilos, na ladeira


entre a cidade e a beira
da m ata da Tijuca, um a carranca
de pedra verde-negra
solta agora os trinados da água branca
e é com o a eternidade que ejacula,
imperturbável porque vem do fundo
severo e natural, não deste mundo
mas da vida.

Ali a tua alm a


m ata a sede ancestral, e canta e pula,
alada, transportada pelo eco,

93
B runo Tolentino

livre da dispersão que há um quarto de século


circunda-a, afoga-a e cega-a;
inatingida pelo que não chega
a m isturar o m undo à consciência,
ali tua alm a flui porque se entrega
à confluência
do sonho conturbado da existência
com os símbolos do imenso.

Assim a alma
se embriaga e em briaga e enfim se acalm a,
próxim a do m inuto e da distância;
leve, seguindo a água
aos lugares da infância,
entre os signos suspensa,
assombrada naufraga
a anim ula vagula,
dessedentada quase, no silêncio.

JUÍZO FIN A L

N ã o tive justificação nenhum a.


Fui com o a poça, cheia só de céu.
O u com o a doce ondulação da plum a
na desnecessidade do chapéu.
Fui com o um nevoeiro que se esfuma,
gastei o tem po que m e coube ao léu,
perfeitamente à toa, e m eu troféu
ganhei-o assim, por im itar a brum a.
Passei o tem po todo na varanda,
na rede desta vida, m e abanando
com folhas de papel, na semipaz
dos loucos, não sei onde e não sei quando.
Mas e daí? Tudo é D eus Pai que m anda,
se bem que quase tudo o outro é que o traz...

94
Os deuses de hoje

II

A h, desperdício, o vício brasileiro!


E u m e perdi por ele. Foi ao vício
do velho desperdício costumeiro
que entreguei m inha vida. Ao impropício
projeto nacional voltei-me inteiro
e vivi com o vive o adventício
pássaro solitário passageiro
do vento: desde sempre, desde o início,
qualquer distância parecia pouco,
a asa m e exigia mais que o vôo.
N ão m e lam ento. N ão se lamentou
o furacão tam pouco, e nenhum louco
desfaz de seu delírio. E eu am o o vício
do vento, esse estrangeiro no edifício...

III

O s sendeiros do vento e a m inha vida


dedicada a u m a vaga ventania
venturosa e veloz com o a descida
vertiginosa e sem melancolia.
A coisa indecidida, um a harm onia
eólica e aberta, entretecida
às vezes de u m a paz (na calm aria),
às vezes de u m lam ento (na subida).
O sentido do vento, que eu ouvia
dizer coisas perfeitas, proferidas
por um langor que embalsamava o dia
e perfumava a noite. E se na ida
havia algum sentido, a volta o havia
de ir desfazendo, e foi assim a vida.

IV

F o i um longo lam ento esse passeio,


um a doce elegia num jardim
intensam ente belo e sempre alheio,
mas cheio de um lam ento m esm o assim.

95
Bruno Tolentino

Foi com o se ao chegar perto de m im


cada pom ar se fosse abrindo ao meio,
favo por favo, o doce e o am argo, o sim
e o seu não imprevisto. Soletrei-o
sempre m usicalm ente, aquele não
em cada fruto aberto de antem ão
à ferrugem da vida, mas não pude
deixar de lam entá-lo: a com pletude,
esse mel m entiroso a que a alm a alude,
é um vício, o verme em pleno coração.

Porque havia na vida um a insistente


dispersão: tudo vinha e tudo não
acabava de vir, e de repente
tudo não vinha mais. Foi tudo em vão.
E u fui em vão. E m vão seguia o vento
e vagava à m ercê de outra m anhã
que se esfumava: o meu contentam ento
foi seguir o vaivém da vida vã.
Vivi com a fluidez que a m orte inscreve
no olhar agonizante e vi a vida
evaporar-se neste m undo breve
vagam ente. A h, tão vaga e tão delida
quanto a cor do anteontem , a lenta, a leve,
a doce dispersão com padecida...

VI

E com o tudo vinha tão depressa


que mal chegava a vir e quando vinha
parecia não vir, vivi com essa
ou aquela ilusão da alm a sozinha
ante o cais da partida. N o cam inho
que não tem fim, que é sempre um recomeço,
vivi com todo o ímpeto e arremesso

96
Os deuses de hoje

da flecha na amplidão: vivi sozinho.


E não terei vivido nem m elhor
nem pior que ninguém : a alm a conhece
o abismo que atravessa e, por am or
disso ou daquilo, se por fim padece
a imperfeição de tudo, vive desse
ou daquele apanágio do esplendor.

VII

Tudo era meu sem que viesse a m im :


as pétalas que o vento soletrara
e os instantes mais plenos do jardim.
A vida, esse pom ar perdido, é para
quem mal repara nele ou, se repara,
respeita a flor, o fruto e o colibri.
M al cheguei-m e ao regato dei de cara
com a réplica do céu que havia ali
e entreti-m e com ele e um a andorinha
que inventava o Verão longe do bando.
E a vida toda foi assim, foi m inha
por destacar-m e eu dela, com o quando
tudo era eternam ente m eu, que tinha
a m ão aberta e os pássaros voando.

VIII

N ão pertenci a nada em parte alguma.


N u n ca estive à vontade. Andei por sítios
suntuosos, mas cheios de conflitos
com o eu, meio areia e meio espuma...
A nada m e entreguei: trocava a brum a
pelo vento e o fugaz pelo infinito,
amava um corpo e o suspeitava espírito,
desfolhava as visões e, um a por um a,
tocava as coisas para pouco a pouco
desvencilhar-me delas, por estranhas.

97
Bruno Tolentino

Foi assim m eu exílio: o eco rouco


de um grito musical pelas entranhas
do que D eus m e cobrou, ao dar-m e o troco
do que eu paguei por vales e m ontanhas.

IX

A h, porque havia as músicas, havia


a harpa delicada que eu levava
com igo vida afora.... A melodia,
o assovio de D eus, refigurava
e pouco a pouco transfiguraria
a fogueira volátil que eu am ava.
H avia aquela m úsica que havia
de refazer tudo o que harm onizava:
de retecer o que se desfazia;
de fazer reviver o que expirava.
E com o havia em m im com o u m a fria
desafeição do m undo todo, eu dava
tudo ao redor por u m a só palavra
e m e ocupava dela noite e dia.

Se persistia ainda u m a fronteira,


um cristal fragilíssimo entre a ânsia
e a coisa mais ao longe, um ar de infância,
de contraponto e fuga, ia-lhe à beira,
povoava de m úsica a distância
e trazia de volta o que eu perdera.
Absorvia cada dissonância
e harm onizava-a aos poucos, de m aneira
que não sei se o Senhor preocupou-Se
em m oldar m inha vida assim ou não:
sei que foi Sua m ão que ao fim m e trouxe
as asas que plantei no coração
sonâmbulo. E mais nada. Se não fosse
o talismã total da solidão.

98
Os deuses de hoje

XI

Porque o m eu corpo, com o qualquer galho,


queria abrir-se em flor, dar os seus frutos
e aos poucos virar flauta, os diminutos,
leves toques do outono pondo o orvalho
já sereno no ram o já grisalho.
Q uando o inverno afinal lhe fosse o último,
queria apenas haver sido ff útil,
secar prestando contas do trabalho,
segundo a natureza, sem discurso.
M as a im aginação com o um enxam e
desnorteado, súbito, confuso,
envolveu-o e levou-o, e aquele ram o,
cortado m uito cedo à árvore orgânica,
foi só flauta e sofreu de dar só música.

X II

Aquele corpo, cheio da tortura


musical da segunda natureza,
sofreu a solidão da coisa im pura
com binada aos degredos da pureza.
A imperfeição do pêssego perdura
no risco da semente, à terra presa
pela promessa frágil; já frieza
de estátua é o impecável que não dura.
Porque o m eu corpo, raptado à vida
e esquartejado pelo tem po m úsico,
foi m era estatuária, gesto lúdico
e puro... A h, mas pureza alheia e lívida,
que sofre a glória límpida do m árm ore
com a intensa nostalgia de ser árvore.

X III

Já perto da penúltim a estação,


condenado às dialéticas do espírito,

99
B runo Tolentino

aquele corpo que foi todo um grito


m usical, um a longa exclam ação
dolorosa, atirado ao infinito
com o o espectro da espiga sem o grão,
aquele corpo inútil, profusão
desperdiçada entre o m om ento e o mito,
passada quase a curva antepenúltim a
aquele corpo quis recom eçar-se,
quem sabe, antes que a vida se acabasse
com o o eco suspenso pela acústica.
Mas a harm onia não pertence à pauta
e ninguém salva a nota, nem a flauta.

X IV

O jovem visionário vê o esplêndido,


a m ente com balida vai soprando
as últimas faíscas de um incêndio
cadente, interm itente com o quando
as fagulhas finais, estremecendo,
vão repetindo, não, vão imitando
o esplendor m orituro, com o um bando
de vaga-lum es m orre am anhecendo.
Assim um coração feito o repuxo
das m úsicas da m ente, porque alude
à insondabilidade que há no fundo
inexato do ser, àquele açude
de águas ainda mais cegas, quando m urcho
um coração assim cansa do m undo.

XV

E assim eu considero o que recordo


um trêm ulo ensaiar de águas inquietas,
um a série de naus catarinetas
para que a alm a flutue... Vivo a bordo,
ao largo, mas com igo vai um tordo
sempre a meter-se em fundos de gavetas

100
Os deuses de hoje

entulhadas de abismos ou de letras,


e letras m ortas! Dele vem -m e um todo,
pedaço por pedaço flutuante,
mas velho m arinheiro é visitante
de um vazio, não vive o que revê,
antes vê que o não vira nunca dantes
porque a alm a era míope, ou então porque
é tudo um vir-a-ser desconcertante...

XVI

Se hoje coubesse repreender a vida


por tudo o que vivi, se houvesse nisso
u m a glória a alcançar, um a medida
ao m enos da verdade, este caniço
pensante lhe diria que, postiço
que fosse o entusiasm o na subida,
partir é um exercício e a despedida
deu-lhe um certo prazer... G ozo enfermiço,
eu sei, mas que dizer? A parasita
escolhe o tronco a que pendura o esforço,
jam ais o resultado da visita.
Q uanto ao coitado que a levou no dorso,
não tinha culpa algum a, e é tão bonita
u m a orquídea no ar quanto um remorso.

C A N TILEN A DO EC O

Mas a vida é assim...


Avenida, praça,
rua, cais, jardim,
tudo vira pó
e peneira-o a treva;
tudo um vento só

101
B runo Tolentino

vai chegando, passa


e o que encontra leva.
Só não leva o eco.
O eco não tem dó,
esse não sossega.
Tem gente que nega,
fala só da boca
para fora e insiste
que é tarefa triste
peneirar, que enfim
tudo acaba em nada;
tive um a empregada
que u m a vez m e disse
que isso era tolice,
que a vida é um a troca.
H o je sei que sim.
Perdi-m e no meio
de um belo passeio
que não tinha fim,
mas fiz am izade
com a ninfa do eco,
a m usa mais tarde.

D ei-m e m al no século
e vaguei à toa,
variei demais
e andei por aí
solfejando a vida,
mas sei que sumi
no instante propício:
ao olhar atrás,
a troca foi boa,
dou-m e bem com o eco.
Claro, eu ao início
queria a garoa
dos corpos em flor,
não um baque seco
que m al entendia,
mas dia após dia,

102
Os deuses de hoje

a asa do eco
batia, batia
levando-m e ao beco
de um grande esplendor,
não da fantasia.

N ão m e foi difícil
ser feliz e, doa
com o hoje m e dói,
m inha vida foi
presente do eco;
não com o eu a quis,
nem com o seria
se eu tivesse sido
boa criatura,
e no entanto a fiz
andar à procura
daquela poesia
que é tem po perdido,
mas que nunca é pouca
porcaria e diz
que a vida-aprendiz,
da m ão para a boca,
pode ser loucura,
mas te faz feliz.

C o m o diz Yeats,
se não tive lar
tive outros deleites,
subi sem parar
ladeiras no ar
e, m onstro por monstro,
fui parar no poço
da M edusa: posso
m e vangloriar
de sair de lá
ileso e ainda m oço,
na horinha H ...
Fui logo ao encontro
do deus do lugar

103
B runo Tolentino

(jamais tomei posse


senão do solar
que cada deus loci
achou de m e dar)
e era um lugar lindo,
celeiro de setas
das que vão seguindo
as curvas e retas
de um a vida boa,
a vida repleta
da luz que os poetas
perseguem à toa.

Fernando Pessoa
dizia que fora
com o a erva daninha
que não arrancaram ;
a m im m e podaram
bem cedo, e a tesoura!
Rilke reclam ava
que não tinha casa:
a m im m e m andaram
em bora da m inha;
m an d aram -m e às favas,
com o eu m erecia,
e eu fui bater asa
por aí afora
um a vida inteira,
certo de ir-m e embora
de muita zoeira
que não vinha ao caso
de qualquer m aneira.

M anuel Bandeira
um a vez me disse
que não desistisse
de ouvir o silêncio,
professor de estilo;
que quando escrevesse
procurasse ouvi-lo,

104
Os deuses de hoje

aragem de lenço,
não o sobe-e-desce
da m ontanha-russa;
que ele tinha sorte,
escapara à m orte
e ficara surdo!

A chei um absurdo
aquela ironia,
mas nosso dentuço
sorriu e explicou-se
com a sabedoria,
o m olho agridoce
que botava em tudo:
disse-m e que o verso
não viceja em poço
nenhum , m as no beco
em que a alm a fuça;
que é sempre o reverso
da m oeda, o avesso
da m oda e da musa
deste nosso século.

Q ue era sempre o imenso


a pauta da música,
seu lugar, seu berço,
pois só nele o eco
descia da altura
a essa m iniatura
de tudo, o poem a
com o ele o queria
e fazia, a extrem a
compressão do m undo,
m undo quase beco,
o m undo cesura,
m edida, poesia.

A lição valia
e eu, quase um m enino,
a ouvi com candura

105
B runo Tolentino

e a observaria
ao cortar o pano
do m eu arlequim:
ou m uito m e engano,
ou, com um certo tino,
B ru n o Tolentino
sua fantasia
ajustou-a sim
com o ele o dissera,
m uito embora a fera
que sou, ou que era,
preferisse andar
sem tanta muleta,
viver de evasão,
encher o pulm ão
e, sem hesitar,
cair na sarjeta,
se preciso, e não
se m eter em beco
nem se comportar.

Fosse com o fosse,


a lição precoce
se m e enraizou
e guiou-m e o vôo:
se pude voar
de olho na m eta
foi por cortesia
do velho poeta.
Trocava o lugar,
mas pouco a receita,
m udava o idioma
sem tentar m udar
o ouvido que soma:
buscava escutar
a tal frase feita
de medida e imenso,
núm ero e silêncio,
o ritmo que dorm e

106
Os deuses de hoje

à beira do informe
com o um precipício
à espreita do eco.

N ão , não foi difícil,


foi um exercício
um tantinho histérico,
eu sei, mas — que jeito?
N ad a é tão perfeito
que não vire um vício
se a alm a exagera,
e eu vivia à espera
de acertar em cheio...
N em sempre acertei,
m as não com prei gato
por lebre, isso eu sei!
C om prei foi barato
o meu desperdício
e a vida é assim,
com o diz o início
desta cantilena.
N ão serei pessoa
de se receber
outra vez em casa,
mas valeu a pena,
pois tive o prazer
quase cataléptico
que sempre quis ter:
ao modo anti-séptico
do velho Bandeira
com pus a poética
da vida que entoa
a em oção de cor:
juntei despedida,
distância e esplendor,
ou seja, o pior
e o m elhor da vida
sempre de maneira
a viver melhor.

107
B runo Tolentino

Sim, tive o desplante


de plantar-m e à beira
daquela peneira
e eventualmente
dei com o surpreendente
regalo do instante,
o famoso eco
que só canta em beco!
N ão valerá nada
este meu diam ante,
mas troquei por ele
os olhos, a pele
e a alma assombrada,
e não m e queixo disso;
decididamente
não sei do que havia
de queixar-m e, o vício
de viver me agrada.

II

É , a vida é assim
com o aqui vai dito,
m as, queira ou não queira
quem teme o infinito,
vale a pena sim.
Estam os em paz,
valeu a canseira,
ou a minha valeu!
C ansei-a de mim
sem cansar-m e eu dela,
que enfim tanto faz
se é ela ou sou eu
(a concha ou a pérola)
quem se descolora:
foi pena perdida
m inha vida bela,
mas valeu a amora

108
Os deuses de hoje

na m oita arredia...
N em insisto agora
em que troco a vida
pela poesia,
digo simplesmente
que, buscando um eco
a cada trocadilho
da im aginação,
por mais que demore
cercando a medida
hoje descarrilho
e bato de frente
com o eco no verso,
a frase caída,
ou descarrilhada
em pleno universo.

Dei um certo brilho


a u m m undo perverso,
m as não m e arrependo
disso nem de nada:
afinal que im porta
se escolhi o exílio,
se bati a porta
e m e fui em bora?
Acabei fazendo
coisas do barulho
de que tenho às vezes
saudades e orgulho!
D ei u m a banana
lírica, ontológica,
aos deuses e totens
dos tristonhos trópicos,
fui até ao fim,
por isso o m utante
tem horror de m im
e eu dos zoológicos
de fim de sem ana:
cabeçudam ente

109
B runo Tolentino

quero-m e distante
dos bestialógicos
do tem po presente.

U m tanto insolente,
curvei-m e diante
da m usa e do belo,
apenas! B em sei
que vivi a esmo,
que acabei fazendo
m eu verso a martelo,
em vez de fazê-lo
com o o M anuel
fazia-o e propunha-o,
mas fu testem unha
só perante a lei
que acato: a poesia,
que Shelley queria
tirar do papel
e eu o mais das vezes
tirei de m im m esm o...
(Irritei os deuses
de hoje e de ontem ,
mas eles que contem
esse pedacinho,
a mim pouco importa
porque Inez é m orta
e eu vou m orrer sozinho.)

Se gastei a vida
nas idas e voltas
de um a despedida
sem medida ou fim,
se amei e perdi
sem apelação,
pus m inha canção
e seus estribilhos
nos melhores trilhos,
o que enfim m e basta.

110
Os deuses de hoje

Juntei coisas soltas,


m uita coisa gasta
anda por aí
às voltas do seco
vendaval da vida
à m íngua de um eco;
vi-as na avenida
da ilusão, é certo,
mas cheguei mais perto
do mistério ainda:
fui dar com um a linda
alucinação
m usical e estéril
na corrida infinda
do aberto, senão
daquela versão
da luz interior
que à palm a da m ão
é um sinal de amor.

Descobri meu beco


e virei cantor
porque soube pôr
os pingos nos ii
e os pés no país
em que o encontraria:
ousei confiar
no que D eus daria
e deixei-m e andar
certo de que havia
de um dia encontrar
o que já sabia
que seria m eu.
Talvez por favor
terrível de D eus,
talvez por supor
que a vida vadia
era a que valia,
achei o tal eco.

111
B runo Tolentino

É um a voz da cor
difusa da alm a,
a cor descascada
dessa m ascarada
que, quando se acalm a
vira, vai, soletra
e enfia no verso
todo um universo
quando a noite cai,
quando a coisa vai
ficando mais preta
e até m eia aperta...

E a hora deserta.
H o ra em que se chega
à esquina em que o século
com sua baderna
e seu vade-m écum
consente em se dar
a u m a luz extrem a,
de vela em caverna.
Platônica ou não,
é a hora da entrega
total à visão:
reverberação
sustendo o que queim a
num a circular
reform ulação
de cada unidade,
a união de cenas
que a vida apequena
e a arte conduz
a um a variedade
da realidade
tênue com o a luz.

N o último andar
do único edifício
nesse beco existe

112
Os deuses de hoje

essa luz em riste


que pode cegar,
m as que, se não cega,
finalmente entrega
intacta ao olhar
a pedra angular
e sempre difícil
da revelação.
E é com o pegar
num a claridade
flutuando cheia
de evaporação,
sim, mas que no entanto,
por m ediação,
senão pela meia
m agia do canto,
perm ite passar
em diagonal
através do vago
para encher o olhar.

E enchê-lo afinal
não de fantasia,
ou de mais saudade,
mas de um a em oção
que, se esvaziando
e, quando vazia,
de novo se enchendo
de recordação,
vai aparecendo,
surgindo do mal
da vida, e formando
um espelho, um lago
refletindo um bando
de gansos voando
com o um só: as asas
tendendo à união,
com pondo a harm onia
de um só par de asas

113
B runo Tßlentino

contra o céu em brasas


de um fim de estação.

N ã o sei não, mas creio


que o patinho feio,
cisne-ganso ou não,
contentar-se-ia
desse único irm ão
erguendo a paisagem
tão além do chão;
o irm ão da poesia,
essa irm ã do imenso,
essa confusão
do ganso selvagem
com a alvura do cisne
rom pendo o silêncio
para entrar no abismo,
erguendo a garganta
entre o solo e os céus
e, agônico, m anso
com o todo adeus,
soltando a harm onia,
desatando o canto
entre a noite e o dia...

P or m im ou por ti
esse cisne-ganso
voltaria aqui?
Estran h a noção
voltar do sem -fim ...
D igam os que sim,
que retornaria,
essa ave-em blem a
do canto e da altura;
essa criatura
gêm ea do poem a,
suponha-se enfim
que tornasse à dura
pousada do chão...

114
Os deuses de hoje

M as se for assim,
um rápido instante
antes de voltar
imóvel sugere
aquele mistério
que é nosso ao passar
e apenas então:
a evaporação
moral do sensível,
eco do invisível
e form ulação
final do fugaz,
o que nunca mais
deixa o coração.

OS O LH O S TROCADOS

Solidão, cisne-ganso em vôo frio


ante as m argens extrem as: tu conheces
o eco do vazio
e a sem -razão do tem po, que arrefeces
com tua sombra altíssima na alm a;
ouve bem: no silêncio indiferente,
no cum e a que baniste a coisa ardente
(que em quase pedra calm a
aos poucos converteste),
este parceiro teu, itinerante,
guardou a profusão do que lhe deste
longe de tudo, e pelo teu diam ante
trocou os próprios olhos! Q ue dirias
se os pedisse de volta por uns dias?

— Fura que? Ensinei-te


a ver tudo o que vês...
A cabei sendo eu o teu deleite,

115
B runo Tolentino

tua visão, talvez,


em todo caso tua am a-de-leite.
D aquela vez,
quando inventaste d e trocar p o r um enfeite
teus olhos, meu diam ante e a lucidez,
deixei que te afastasses, m ais de ti
que de m im , e que viste?
Voltaste ainda m ais triste.
Leva-os, se queres. Estarei aqu i
quando os vieres devolver, não vejo
quem m ais contentaria o teu desejo...

RELEITU RA

N o livro tantas vezes doloroso


pousaste a cada vez a m ão já tonta
de segurar, talvez, por um a ponta
a grande asa universal sem pouso.

Tremias tanto que fizeste um gozo


m arginal do teu canto e, quase pronta
a últim a estrofe, nem te deste conta
de que faltava ao vôo mavioso

lugar onde pousar neste universo.


A gora que copias de m ão leve
o que fizeste então, lê cada verso

à luz do exílio, que ia ser tão breve


e afinal conduziu tudo o que escreve
tua m ão entre o túm ulo e o berço.

116
Os deuses de hoje

A INDESEJADA

Penso em José G uilherm e M erquior


com o o deixei certa vez em Paris:
m elancólico e ativo, um chafariz
de noções lapidares, do m elhor
que até então lhe ouvira. O m onitor
de idéias transformado no aprendiz
tardio e prem aturo de um a dor
sem sentido, remédio ou cicatriz.
O em baixador na últim a audiência,
curvado sem querer na reverência
mais inútil que fez... José G uilherm e
que eu m andei passear e dei ao verme
sem dar-m e conta! C o m o dói a ausência
que lhe impus quando mais queria ver-me!

2 .
N inguém pensou m enos na m orte, creio,
do que aquele gnom o; mais ninguém ,
que eu saiba, conseguiu passar tão bem,
tão distraído, no lugar mais feio
da esplêndida viagem: seu passeio,
rápido, sem paradas com o um trem
direto, iria longe, mais além
dir-se-ia que não. Observei-o
mais de u m a vez às voltas com alguém,
algum pobre-diabo a que o recheio
apodrecia, e vi-o sempre alheio,
sem com partir-lhe o dram a, sem receio
de que a sorte o tratasse assim também.
Q ue o castigasse à hora do recreio.

3.

M ichel Foucault agonizava em público


e ele se indignava de um parágrafo,

117
B runo Tolentino

de um as frases do autor! U m a metáfora


o desolava mais que aquele súbito
encolhim ento, o últim o metro cúbico
de quem ia morrer. Metia o garfo
na página diante do semáforo
sempre mais am arelo, do decúbito
mais evidente a cada novo encontro.
E u visitava o ilustre moribundo
e lia o obituário quase pronto
que o outro lhe preparava, furibundo
em defesa da idéia! Am ava o m undo,
queria-o sem o avesso, sem o mostro.

4.

L úcido com o o Ulisses na caverna


tenebrosa do Ciclope, não via
o m onstro de um só olho, a noiva eterna,
o verme na m açã... Filosofia
que o preparava mal a um a agonia.
Lem braria Quasím odo, a m oderna
encenação de u m a M edéia esguia
de tão m agra, com endo pela perna
filho por filho? Lem braria , digo,
porque não vi m orrer m eu velho amigo,
deixei-o só um dia e até ao fim
reprovei-o, neguei-lhe o últim o sim,
recreio sem merenda! E não consigo
nem sequer m e explicar que agisse assim.

5.

N o que respeita à m orte, anos a fio


nos desentenderíamos; viemos
a ocupar passo a passo dois extremos
opostos neste m undo, e foi o frio
da foice dela que nos dividiu.
Líam os m uito juntos; quando lemos

118
Os deuses de hoje

G oethe e Hoelderlin, enfim surgiram os gêmeos


de E saú e Jacó, pois desconfio
que lemos um o adeus do Imperador,
o outro a proclam ação do M arechal.
G oethe, com o se sabe, tinha horror
à noite que o outro urgia, e afinal
nós nos desentendem os sobre a dor,
a derrocada, nossa Ilha Fiscal...

6.

E le propunha-se a proclam ação


afirm atória, conceituai, da vida,
eu preparava um a abdicação,
um gesto de protesto e despedida.
U m entrava! O outro à porta da saída
planejava a banana e um a lição
de trevas tijucanas, à medida
que se afrouxava o aperto de m ão
que ia negar u m dia àquele irm ão
para sempre. Goethe observava à vida
à luz solar, H oelderlin um a excursão
aos negros labirintos da ferida,
à inevitável alucinação.
O u seja, quando a alm a é m al nascida...

7.

Súbito, injusto, e enfim cedo demais


o adeus cruel do m eu am igo à vida,
o solar que se erguera... Foi capaz
de dar-lhe um a paixão desinibida,
fiel com o a ilusão correspondida.
Só que tem que a criada era voraz,
era a N egra, trazia-lhe a com ida
em bandeja de prata, mas por trás
dos rapapés sorria entre os cristais...
Vejo-a pondo o vinagre na ferida

119
B runo Tolentino

a conta-gotas: O senhor quer m ais?


A que nunca seria despedida...
lhe fecharia as portas da avenida
deixando aberta apenas a de trás.

8.

Afinal era a hora do recreio,


a hora quase presidencial,
a hora do ministro, do imortal,
do dono da pelota... Sem receio
de que cortassem a luz da casa, cheio
do seu triunfalismo natural,
jamais terá suposto que o final
lhe viesse de dentro, do recheio...
P or cheio desse vício tropical,
o de não ver a podridão no meio,
foi que afinal um dia abandonei-o
a ver navios: eu não tinha o mal
que o levou, tinha outro bem mais feio,
a arrogância, esse câncer nacional.

9.

Q uando M ário Faustino foi-se em bora


para sempre, arrastei-o ao G aleão,
mas chegam os tão tarde que o avião
já decolara havia m eia hora.
Q ueixei-m e ali de um a prem onição
que m e roera o ventre estrada afora:
jam ais o reveríamos... E n tão
ele riu-se e culpou-m e da dem ora
e da idéia de ir lá! N ão m e entendera
porque a m orte era apenas a quim era
no m undo idolatrado, era um a idéia,
um a atriz de cinem a, m uito feia,
mas irreal, nem dele nem alheia.
A vida zoológico sem fera.

120
Os deuses de hoje

10.

Mais luz, mais luz! M ehr Lichtl exigia


e repetia um G oethe agonizante;
H oelderlin m orreu louco, a luz do dia
lhe devia bastar aquele instante.
José G uilherm e com o morreria ?
D ando ordens à N egra ali diante,
conta-gotas na m ão? Eqüidistante
dela com o de tudo o que perdia,
de um lado a glória na fotografia,
fardão e tudo, e do outro algum a estante?
C o m o viveu a hora da agonia,
ele, que se queria triunfante
e só sabia ser o que queria?
E u ouço um grito, e o eco é lancinante.

11.

C horai com igo agora, ó carpideiras


profissionais da cidade iludida,
a cidade sem D eus, cuja avenida,
já sem as nobilíssimas palmeiras,
não leva a parte algum a, entre fileiras
de crianças sem casa e sem comida.
C horai, ó patrióticas torneiras
de asneiras, soluçai com o se a vida
do país, ou de alguém , valesse ainda
a pena de chorar sinceram ente
a m orte do ex-futuro presidente
de um terreno baldio! A voz que brinda
ao destino brutal e a voz mais linda
que se calem , que o nada se lamente!

12.

O nada canta quando a coisa esquenta,


é o nosso cantochão: cheguei a ouvi-lo

121
B runo Tolentino

quando m orreram o M anuel, o Odilo,


a Clarice, o M urilo... É algo mais lenta,
é triste aquela voz quando se ausenta
um contrapeso ao nada. U m vai tranqüilo,
o outro desesperado, mas o estilo
do nada é o do país que se alimenta
de ar com o se tudo fosse nada.
E preciso sofrer para entendê-los,
o nada e o m eu país conto-de-fada,
dependurado pelos tornozelos,
balançando no vento, seus cabelos
varrendo o último esforço da alvorada...

AO FIM DAS CONTAS

"En l ’an trentiesme de mon aage


que toutes les hontesj'ai bues"

Ao ano trinta da m inha idade,


é-m e forçoso confessar,
toca som ar-lhe outra m etade
que de pouco m e serviu gastar
por não ter visto da verdade
mais que o obscuro limiar;
hoje, sem força de vontade,
limpo as teias que o m au vagar
foi deixando em meu pensam ento
e entrego estes versos ao vento.

122
Os deuses de hoje

A GARÇA E O EQ UILIBRISTA

"...com levitações de pluma


e rigores de compasso. ”
CECÍLIA MEIRELES

N u n ca pude entender que um poeta cristão


com o E lio t dissesse: “extraio um a alegria
de erguer eu m esm o um pedestal para a alegria”,
ou algo assim. D e que m aneira o coração,
esse aparelho em paredado no porão
desta vida impossível, extrai um a alegria
seja lá do que faça, ainda que um a alegria
de im itação em m eio a tanta escuridão?
Só a graça de D eus, só a operação da graça,
imerecida e desabando sobre a raça
com o o sol sobre o mar, sem condição nenhum a
e sem outra razão que a de entregar-se à espuma,
penetra esse porão, destrói esse impossível
e constrói a alegria, com o a luz, do invisível.

II

Talvez por esse orgulho de poeta ante a graça


é que o hom em fosse tão frio, tão estranho,
tão separado das comédias do rebanho,
posto tão longe dele por aquela argamassa
de lucidez m arm órea, parente da fumaça.
Indiferente à perda e indiferente ao ganho,
tinha u m a m áscara m ortuária do tam anho
da vida, e a conservava por trás de um a vidraça,
parecia um a garça: dava a impressão de haver
pousado sem querer sobre a praia de um pântano
que lhe m olhava os pés com o um entardecer.
N ã o ia demorar, e era apenas hum ano

123
B runo Tolentino

enquanto demorasse, entre a dor e o prazer,


onde batera a asa um dia, por engano.

III

Foi sempre (ainda o é...) o vate favorito


do que há em m im de mais exato, do pior
e do m elhor que fui colhendo: entre o infinito
e o fugaz, eu tam bém repetia de cor,
de costas para o m undo, as traduções da dor
de existir, disfarçava-as eu tam bém com o um rito
enigm ático ou audaz, o m eu conflito
do ser com seu não-ser, tam bém fui fingidor...
C o m o Eliot, pousei sempre à beira de um lodo
e atravessei-o com o a garça olhando os pés
e alisando-se as penas fictícias, mas fiéis.
C o m o ele, achei-m e sempre à m argem de algum todo
com saudades de D eus, mas com o os capitéis
caídos: solitários, frios, sempre a seu modo.

IV

Fom os dois capitéis roídos pelo ar


de salsugem malsã que afinal foi o nosso
e acabam os ruínas parecidas: não posso,
por mais que queira, transferir-me do lugar
em que caí, com o seu rosto singular
estava e não estava onde estava, um colosso
cercado pelo nada com o o branco de um osso
pelo entulho da carne. Vejo-nos com o a um par
de ímpares parados, dois estranhos ponteiros,
os m esm os, duplicados e inúteis sobre o rosto
de um relógio quebrado... Parentes estrangeiros
um ao outro e à raça, mas não ao tem po, posto
que os dois fomos pedaços caídos ao sol-posto,
mas no lugar m arcado: pontuais e certeiros.

124
Os deuses de hoje

Ambos fomos trocando de m undo, perm utando


a fábula e a família, mas sem m udar de nom e.
Ambos nos disfarçamos ou na garça que some,
ou no falcão que pára no ar de vez em quando.
Ambos brincam os de voar guiando o bando
que nos voltava as costas, arrem edos de hom em
e arroubos de estátua, imóvel, mas com a fome
de absoluto que nascem os rum inando.
E le virou, dilacerado, a própria estátua,
eu não, eu reuni m eus pedaços e dei-os
à operação de D eus, a escolha mais sensata
entre os delírios meus: m eu D eus (ou meus recheios
dos vazios de D eus) quando baixava a pata
m ovia-m e os ponteiros, soltava-m e dos freios!

VI

E u contava com o m al, que pouco conspurcara


“o Arcebispo”, com o um dia o D ylan T hom as
o havia apelidado... A h, o artista que doma
as feras todas e esm iuça a velha tara
da criatura sem jam ais m udar de cara!
A h, com o eu invejava os estados de com a
e os sublimes estados de alm a em cada brom a
que m e contava o artista puro! Auden cansara
de argum entar o quanto 'ihats (W B .)
teve razão em deixar disso, até porque
a B eleza é u m sinal, por sublime que seja
parece que não chega a resolver... O quê?
A h, lá isso, leitor, é outro assunto, ora veja!
Q u e M allarm é desnudaria a própria igreja?

VII

M al m e ajustara ao Velho M undo e vi o M estre


por ocasião de um a celebração a Vhley;

125
B runo Tolentino

ouvira-lhe as conversas sem conversar com ele


e fui dali pensando a fundo no seqüestro
do artista pela arte. E stá bem que eu não preste,
nunca quis prestar m esm o, e daí? Mas que aquele,
aquele m onum ento entre a gravata e a pele
fosse o penhor e a fonte de um a harm onia agreste
que tanto m e em balara quanto acordara, não!
N ão podia aceitá-lo! N em um M urilo Mendes,
leitor, m e surpreendera tanto! O u não m e entendes,
não te perturba em nada o insidioso vão
entre criador e criação? O por que pendes,
pom o perfeito, de um gogó de paspalhão?

V III

B em , não exageremos: paspalhão tam bém não!


E státu a apatetada, quem sabe, m onum ento
de garça, ou de peru com papo e tudo: lento,
meditabundo, mavioso cantochão
pairando entre as estantes e m al olhando o chão,
com o se nunca o houvesse de com er... Vigo vento,
m úsica em pedernindo-se sublimemente, ah, não,
eu não dou pra essas coisas, fui cachorro ao relento
e hei de ser vira-lata até o fim do cão!
Os m eus ganidos, por exemplo, os que eu invento
para ajustar a realidade ao coração,
não têm só sua lógica e certa relação
entre o que eu fúi e o que virou m eu pensamento,
foram ganidos mesm o, e ganido violento!

IX

E u aos poucos m udava a em oção de lugar,


devagar, mas aos trancos. E n q u an to isso, enquanto
demolia o real para o solenizar,
extraía às ruínas que fazia, não tanto
a m úsica das coisas com o um puro esperanto

12 6
Os deuses de hoje

tecido de lacunas e orgulho, o linguajar


da estátua em seu vazio. Q ue importava falar
com ninguém , se a nudez que m e emprestava o manto
dava-m e os véus de u m a linguagem que separa
e aquela limpidez tão fria quanto rara
valia mais que a vida? E ainda que não valesse,
por que atravancar a luz de um sol que desce,
que vai descendo sempre mais, sempre mais fundo,
por que trocá-lo pelas coisas deste m undo?

A h, o rom ance do nadai O u da melancolia


que o artista ensimesmado e deslumbrado entrega
ao instante sem fim, com o a sombra que cega
e se estira no chão ao se apagar do dia...
O altar da arte é esse vazio, idolatria
oriental da vida que se esfum a e se nega
ao que não deduzir do nada com o regra
do ser fora da H istória, a fuga que extasia...
Religião do êxtase, receita deste mundo
espelhado no outro, culto da negação
de tudo o que não for exercício infecundo.
O Cristo é um acordado, a C ru z é um a intrusão,
a Paixão é um alarm e, um clarim , mas no fundo
dos budismos do belo não há ressurreição.

XI

D ói-m e fisicamente este confessional,


este acerto de contas com a vida enfeitiçada
que eu vivi e mal vi: ia de nada em nada,
de som em som, metrificando o universal,
com parando as estrofes à limpidez do sal.
C om pus assim, no m eu jardim sem m adrugada,
a elegia ideal da vida imaginada,
ergui m eus labirintos no lugar do real.
Reinventei o universo dentro de üm calabouço,

12 7
B runo Tolentino

todo contente, com o o príncipe chinês


que concebeu o I-C h in g trancado no xadrez!
Mas Sua Alteza era um velhote, eu era um m oço
e em vez de envelhecer tatuei-m e ao pescoço
da assom bração que fiz e nunca se desfez.

X II

H avia o ascetismo do parvo no desvio


que alimentava de jejum m inha visão.
N o meu trapézio avaro, antídoto do chão,
a suspensão das leis no puro desvario
m e oferecia proteção contra o vazio
e o suposto destino da “crassa m ultidão” .
Glorificava o erro, o excesso, a aberração,
à volta um precipício, sob m eu passo um fio.
Sentia, ah, isso sim, um a saudade horrível
da presença de D eus, O que eu dependurara
aos avessos da vida: para m im o possível
era um longo intervalo em que olhar bem de cara
sobretudo o abismo. E assim vivia ao nível
do equilibrista, em pleno ar com aquela vara...

X III

A opaca m ultidão dos meus dessemelhantes


ou me enchia de tédio ou m e causava dó:
todos m e pareciam jogar um dom inó
interminável uns com os outros e os instantes
se evaporavam e cada qual sempre mais só
parecia-se mais aos outros figurantes...
E no entanto o fantasma era eu! Por distantes
que andássemos, enfim a nuvem de ouro em pó
que eu sobrepunha à vida era m inha, e jamais,
jamais supus que ao fim de um passeio selvagem
acordaria em paredado na miragem!
Observava tudo, mas via tudo atrás

128
Os deuses de hoje

de u m a arrogância e um a recusa, dois cristais:


um truncando o reflexo, o outro am putando a im agem .

X IV

H á duas posições ante o sonho formal:


a hipnose passiva e o douto hipnotismo.
D e um lado a aquiescência inquieta do anim al
que se tem e perdido; do outro o equilibrismo
decidido e vital de quem tem e o abismo,
m as desafia a queda. D e u m ao outro o local
do holocausto da arte com o um m ero sinal
de m enos ante o m undo: vertigens de alpinismo
e febres de rem orso, que eu misturava à vida
com o quem pára u m pouco à porta da saída,
m as não, não volta atrás... Atrás dos meus modelos
da recusa de D eus, Parcas cujos novelos
rolavam pelo chão com o Um par de pupilas,
entrei nu m labirinto e pus-m e a persegui-las!

XV

“ C o m o foi que as estátuas no poço da M edusa


chegaram lá ?” — Ainda eram vivas ao descer.
“E por qu e desceriam ?” — Porque existe no ser
u m a obscura gravidade, a luz difusa
de u m sol cadente que cobiça o entardecer.
“M as n u m m undo de p ed ra?!” — O m undo é um a confusa
noção tum ultuosa e há na forma um prazer,
traduzido do orgulho, que é mais que um a recusa
e vai levando a própria luz a arrefecer.
“Voltariam de lá ?” — Q u em ? “C ad a sem i-estátua
com seu sol de m entira...” — N ã o sei, porque m orrer
é a grande em briaguez da alm a, e ela anda à cata
de se evadir, de ser o que deixa de ser.
H á um a estranha euforia na m orte que não m ata.

129
B runo Tolentino

XVI

Ainda assim tive a graça de esbarrar num a estátua,


a única que havia ao fim do calabouço,
à altura da saída, ou da entrada: era um m oço
que em vez de envelhecer se empedernira, a exata
im itação daquilo que a vida mais m altrata,
m as nesse caso não: esculpira um pescoço
e encaixara-o entre a música e a robustez de um torso
com um a altivez de cisne, m as um cisne de prata,
um m onstrengo hesitando entre a luz de marfim
e a noite abissal que há na pedra... E ra eu!
O u , se não era, era tão parecido a m im
que acordei de repente, finalmente. Perseu
degolara a M edusa ao refleti-la, o meu
irrefletidamente foi outro golpe assim.

X V II

Prepara-m e mal àquele grito agudo


e ao golpe nu que m e salvava da loucura,
porque fizera da loucura o m eu estudo
do calabouço em que tateia a criatura.
Fo ra-te deduzindo, ó liberdade pura,
de todos os excessos, porque estás sempre em tudo
o que se olha de cara, e não só na figura
do adversário refletido pelo escudo.
M as foi a peito nu, sem peso de arm adura,
que te investi, ó m eu am or da investidura
do real pela dor, 6 criação do m undo
reconquistado ao calabouço nauseabundo.
E foi rum o ao ar livre que te arrastei do fundo
do poço em que te achei, ó trágica escultura!

X V III

Ó liberdade, m ãe de tanto desatino,


prisioneira do sonho que tanto te escraviza

130
Os deuses de hoje

que aos poucos te confunde com teu preço, um a brisa,


um simples sopro te sacode, ó velho sino!
Q u e sulcos tão pungentes, de badalo tão fino,
os teus gem idos vão abrindo na luz lisa,
que ironia cruel no azul, que não precisa
de ti, mas te convida a im itar o destino
das folhas soltas, das gaivotas a pairar...
Ó cam afeu do ser, estranha vaidade
aberta com o os braços da nuvem para o ar,
a quem procuras definir com te abraçar
eternam ente à luz vazia, a um a saudade,
a u m a destinação sem fim, ó liberdade...?

X IX

Ó liberdade em que eu vivia intensam ente


atado à solidão, que duro andar desperto!
E u , que te confundia com o abismo entreaberto,
nunca te possuí: fugias de repente
e, se eu te perseguia, invariavelmente
abraçava-m e a u m nada. E pairavas tão perto!
Roçava tanto em ti que ficava doente,
gania com o um bicho sozinho no deserto.
N u n ca aceitei perder-te e nunca consentia
em conhecer-te: os simulacros de alegria
que arrancava aos pedaços, com o u m a aceitação,
às m inhas esculturas, se eram a imitação
do am or que proclam ava por ti, agora são
apenas teu retrato rasgado, ó noiva fria!

XX

N ã o , decididamente não! N ão recom endo


a mais ninguém a lucidez no desvario.
Cultivei-a, alcancei-a, aperfeiçoei-lhe o frio,
o exato olhar de lâm ina de que agora dependo
porque m e ensinou tudo quanto fui aprendendo,

131
B ru n o Tolentino

desvendando, fazendo-o m eu... O olhar vazio


que o equilibrista entrega ao nada, sobre o fio
que o suspende a si m esm o, mas sobre um vácuo horrendo.
Cedo ou tarde, ou até, quem sabe, o tem po todo,
o passo cede, o resto vira, e o puro artista,
cujo m undo é tão vago quanto é concreta a pista,
vê tudo pelo avesso agora, e de tal m odo
rápido que a visão — ah, tão breve! — resista
ou desista, se esvai e o pobre fica doido!

XXI

Por outro lado, com o diz D on a Cecília


do louco cintilante entre a nuvem e o solo,
o ser nesses limites, com o a estrela no Pólo
tem certa majestade: a fria m aravilha
que tudo dignifica porque mais alta brilha,
com o a lua de Reis nas poças... E u , no colo
estéril da Beleza, entre a popa e a quilha
do barco de Odisseu, ou com o um M arco Polo
das C athais do delírio, logrei pairar suspenso
não sobre o abismo apenas, às vezes sobre a origem
da perfeição, essa m ãe-negra da vertigem.
N ã o aconselharia a pensar com o eu penso,
a viver com o eu vivo. N ão. Mas só sobre o imenso,
só sobre o desmedido o coração é virgem.

VIVI MAL

Sangue m eu, que bebias


num a sede alarm ada,
com o se atrás da vida,
à obscura unidade
e te foste am parando

132
Os deuses de hoje

dos resíduos mais caros


a sustentar no tem po
essa teia impalpável
de am or inconsumido,
claridades de pátio;
sangue m eu, febre velha,
anim al m al-arm ado
no circo da m em ória,
fiquei vivo e, malgrado
teu m urm úrio perfeito
de vertente am arrada,
vivi mal, vivi preso
aos teus nós mais intactos.
E te vejo indormido,
e te percebo gasto,
im igrante comigo,
fuga circunvoltada,
encontrados no antigo
ponto jamais deixado.
Somos sempre os de sempre.
N ã o desertamos nada.
M edimos, frente a frente,
o m esm o gosto frágil
de saber que, no fundo,
puro sopro am putado,
falta, acordo de nuvens,
o que sempre faltara.
A h, corcel do sensível,
potro meu m aldom ado,
conheço teu corcovo
entre os vagos pedaços
do que sobrou de tudo
pela ponte sem m argens
em que catam os juntos
não sei que velho pasto
para um a fom e dúbia,
para um a sede farta
de abolidos acordes
no ventre nu da alm a.

133
B runo Tolentino

N ão sei que estranho rito


guardou do m esm o lado
teu constante desejo
e o objeto desejado
(com não ser nem um corpo,
com o o am or não é um ato
e a fúria da m em ória
dói, com não ser nem chaga),
sei que andam os às turras
com o m esm o desamparo
e que onde am or nutria
seu mito acorrentado,
sobramos do que fomos
e somos seu cascalho.

RUAS

C ertas ruas do Rio que volta e m eia passa


sob a m inha janela têm um gosto agridoce
de fruto m achucado a que o m au-trato trouxe
um brilho resignado, de am or... E n tre a argamassa
e a pedra carcom ida há um a cor, um a graça,
um meneio de dor e risada que fosse
o segredo de tudo: meu Rio de água doce,
de enxurrada, de céu desabando na praça!
Ruas com o grito áspero e seco da cigarra,
a poeira nas folhas, o sol num a vidraça,
e o brilho inesperado e banal de um a jarra
em frente a um a janela aberta sobre o azul,
a noite, e de repente o C ru zeiro do Sul,
esse rio de luz em que se espelha a raça...

134
Os deuses de hoje

II

Velhas ruas: da Estrela, dos Cam pos da Paz...


Rios opacos com o a solidão, que brilha
apenas escondida, ru a D on a Cecília,
ru a Sabóia L im a, ru a Costa Ferraz...
Ruas indiferentes ao nom e, já não faz
diferença nenhum a, é tudo maravilha,
cada nom e um a esteira, cada rua um a ilha,
e o náufrago à deriva, ó naves imortais!
A tal de D o n a Alexandrina quem seria P
É s tu agora a que ninguém recorda mais,
ó galera de pedra que de repente sais
do m eio-fio, com o a vaga luz vadia
da lua cheia de repente sai de trás
das nuvens e te beija, ó sereia, ó enguia!

III

Ruas desfiguradas pelo grito do sol


am algam ado às vossas graças feiticeiras,
ruas atravancadas pela efusão das feiras,
sujas, suadas, com panheiras do arrebol,
am antes da poeira e irmãs do girassol!
Rios de luz, de cio, vitalinas trigueiras,
que vos abris ao pôr-do-sol com o rameiras
e vos cobris de lua, nuas sob o lençol...
Ruas da m inha infância, da m inha adolescência,
restos de meus dilúvios, ó ruas teatrais
que andais atrás de m im com a eterna paciência
das nam oradas e a espantosa impertinência
da m em ória e do am or... Ó ruas do rapaz,
do m enino que eu fui, cascatas que pecais!

IV

Q uando a bênção de D eus todas as tardes cai


sobre os telhados e resvala entre as calçadas

135
B runo Tolentino

e os paralelepípedos e de repente vai


se despejando com o aquelas enxurradas
p or bairros e barrancos, com o um a queixa, um ai,
u m soluço de amor, 6 ruas alagadas
de eterno e de em oção, por entre aqueles nadas
que eu am ei e guardastes, a sombra de m eu pai
com igo pela m ão, com o o beijo de D eus,
anda tam bém por vossos longos abandonos,
perfeitam ente unida ao tem po com o o sono
aos sonhos. E os instantes sem nom e que eram meus,
revivificados pelo eco do que somos,
passam e som em com o o ângelus nos céus...

Q u an d o falo das ruas do Rio de Janeiro


penso na Z o n a N orte em que passei a infância,
o resto não m e im porta. O resto é essa distância
em que eu sum i um dia, o vago m undo inteiro
que m uito m e encantou, mas que não vale o cheiro
da terra quente sob a chuva em que eu criança
pousava os pés descalços, aqueles pés de dança
de pedra em pedra sobre o rio Trapicheiro.
N ã o tenho nada a ver com a ru a Toneleros,
com a Via dei G arófan o ou com a Banhoffstrasse;
nada perdi por lá, por mais que passeasse
dois pés inúteis. Somos todos estrangeiros
de ru a em ru a e só cabemos nos primeiros
e nos últimos passos, o resto é beco, impasse.

AN TÍG O N A TORNA À CASA

“Vem, corre agora para m im m inha torrente,


m eu rio escuro, volta atrás e entra-m e dentro,
negrum e cego com o o olho que há no centro,

136
Os deuses de hoje

no âm ago do sol que despetala a mente.


E baixa o rosto, tu, m eu girassol demente,
ouve a terra que cham a, reclam a o seu rebento.

H á de ser essa a últim a m áscara, assim cheia,


assim prenhe de pálpebras: abre-as, mas fecha o par
de asas inúteis que trouxeste e já volteia,
ó m ariposa, baixa, deixa-te afundar
outra vez em ti m esm a, e não trates de olhar
a lesm a que há no fundo a que desces, de teia...”

NO EMBARCADEIRO DA VOLTA

E m Portugal, onde anda um sol que se dem ora


a diluir um a erosão crepuscular;
no em barcadeiro dos fantasmas a esticar
constantem ente o coração que se evapora,

que busca a luz que vem de dentro para fora


e nunca a luz das coisas com o são; no pom ar
da árvore de ouro, nem a árvore agora
nem a outra, a ancestral cansada de durar;

em Portugal, lugar do velho escoadouro


de todo um continente, deste Ocidente inteiro,
term inal das paixões peregrinas primeiro

e enfim partida aos precipícios do vindouro,


é ali que toca ao coração do brasileiro
despedir-se de E u ro p a e entender-se com o touro.

137
B ru n o Tolentino

UM DIÁRIO D E BORDO

1. EVOCAÇÃO

A terra provisória, proferida


pelo hálito ondulado do invisível,
é aquele m eu precário paraíso
tão propenso ao perdão e à recaída...
Ó terra m inha, ó m inha preferida
a qualquer perm anência sem raízes,
ó promessa adiada e imperecível,
perpétuo adiam ento e despedida!
Õ m inha imponderável nam orada
sem pre tão cobiçada e tão sozinha,
que hás de deitar-te sobre m im , am ada
por mim até o fim, ó terra m inha
e não m inha, entreabre as mãos vazias
a estes ecos que eu fiz do que dizias.

2. CANTEIROS

Antes de tudo lam entar o banho


de sangue que tom aste em plena praça;
depois, im aginando entre a fum aça
e a cinza a delicada luz de estanho,
curvar-m e sobre ti, que és do tam anho
do hum ano coração, cheia de graça
e de consolação... Ir ao rebanho
das nuvens am ontoadas na vidraça
e escolher a mais dúctil, a mais branca,
para sacrificá-la e reduzi-la
a folha de papel, pétala m anca
nos bailados da luz que se desfolha.
E só então colher, sílaba a sílaba,
o jasm im , a cam élia, a magnólia.

138
Os deuses de hoje

3. VALES

C om panheiros do barro e da sem ente,


somos um gesto a mais da terra inteira,
breve estribilho dela, a com panheira
distraída que tudo nos consente,
com padecida às vezes vagam ente
de ver-nos desolados, sem pre à beira,
à véspera de tudo. Esse insolente
peso avulso que somos, sem enteira
casual nos seus vagos rendilhados,
a terra, coleção de vaga-lum es,
recebe-o sem deleites nem cuidados.
Somos seus estrangeiros, seus estrum es
esculpidos p or ela e contrastados
com ela, os vagos vales de seus cum es.

4. PÂNTANOS

O amor, com o os rápidos barrancos


da terra atravessada que se abria
em resposta a contínuos solavancos,
o am or, seus precipícios sem valia
dando as encostas íngremes aos brancos
salgueiros encantados da alegria,
o amor, sua loquaz topografia
cheia de aparições, de saltimbancos
com o tu, capataz de pirilampos,
o am o r que abria os sulcos e esparzia
o sonho da semente pelos campos
lavrados pela m ão da lua fria,
o am or por lá é um pouco com o os pântanos
e os desertos da terra, quase hum anos...

5. SEARAS

Recebe, ó distraída, ó refratária,


as m inhas profusões de coisa tua,

139
B ru n o Tòlentino

que desdenhaste para dar-te à lua


que vai passando a m ão im aginária
pelas ondulações das curvas nuas
das tuas vaguidões de estatuária.
D eixa-m e introm eter-te pelas ruas,
que vais abrindo com o vulvas, a ária
apaixonada que nem m esm o a lua
tirou de m im jamais: se eu conspirara
com ela, é só porque eia se insinua
quando quer em teus seios, pelas claras
penugens de teus cam pos... C om o as suas,
recebe desta vez m inhas searas.

6. PERFUMES

E ei-la que te abre os braços e com enta:


“C ad a vez que te entregas vens do mar,
im itas os sargaços...” Q uando a lenta
aparição da terra vem buscar
tua resignação, que te aparenta
enfim às coisas dela, no lim iar
da últim a hesitação prelim inar
teu corpo inteiro trem e... E em vão que tentas
escapar aos perfumes que ela inventa
p ara ensinar-te a dar-te, a confiar
nela e só nela: a terra cium enta
quer deitar-se contigo, vem no ar
que ela m esm a sem eou para te dar...
Só m esm o a tua terra te contenta.

7. DEFINIÇÕES

A terra provisória mais à frente


com o a boca do abismo e o estertor
do instante sobre o abismo, a terra urgente
e indiferente, fábula de am or
do invisível, a terra im perm anente

140
Os deuses de hoje

e valetudinária com o a dor,


o êxtase tão breve, esse presente
imerecido, a terra, seu sabor
de coisa ida, seu arom a à flor
do vento cium ento, a penitente
que te absolve, a terra, um esplendor
interminável cheio do candor
da beleza espantosa e inconsciente,
a terra é a favorita do Senhor.

8. GEMIDOS

Tu tens a solidão com o a semente


tem a terra vital totalizada.
E tua essa extensão perenem ente
aberta e docem ente desolada.
Tomas nessa amplidão a forma dada
pelo elem ento formativo, e é urgente
que te deixes form ar com o a corrente
profunda e conivente na calada
da noite elem entar e solitária.
Necessitas m orrer nos escondidos
sulcos, nos labirintos dessa vária
fabulação sozinha: os grãos caídos
m orrem calados, vão com pondo a ária
da espiga ao sol, levante de gemidos.

9. TÚMULOS

E a terra, apaixonada com o um último


argum ento atirado pelo ar,
reverberando ainda pela acústica
do tem po distraído, de lugar
em lugar surpreendente com o um susto
e indiferente com o a jugular
da estátua, a terra lenta que de súbito
suspende tudo e entrega tudo ao mar,

141
B ru n o Tolentino

a eterna passageira pelo túnel


do efêmero, im paciente de chegar
ao final, aos confins do absoluto
que a seduziu depois de a abandonar,
a terra te obceca com o um túm ulo
em flor, a flor que nunca há de secar.

10. DESFECHOS

E ei-la que, finalmente aparecendo


para além da linguagem , com o u m dorso
de fera perseguida pelo esplêndido
aceita-te a carícia, o alvoroço...
É a tua terra, a m esm a, sem socorro,
sem justificação com o um incêndio
alastrando no vento os dividendos
da própria divisão, restos de um torso
esquartejado e pendurado ao tempo.
Fu gaz e deslumbrante, mas sabendo
que é solidão o que lhe vem de encontro,
com o a fuga recebe o contraponto
a tua terra deixa-te ir m orrendo
de am or por ela e encosta-se ao teu tronco...

142
U m I n ter lú d io

TORRES & DEUSES


( 1994)

a A lberto da Cunha M elo

“E ste estado não ê um a nacionalidade;


este país não é um a sociedade; esta
gente não é um povo. Nossos hom ens
não são cidadãos. ”

A lberto T orres

“O canto dos galos circunda a m adrugada


de altas torres de música chorosa..."

Cecília Meireles

143
lberto Torres
A h á m uitos anos,
disse de nós
que não formamos
um a união
ainda não;
que, com o os símios
que trocam os ramos
pelos cipós,
nos enredamos
com o ilusório
e confundim os
o bem e o m al;
que porque temos
um território
nos persuadimos
de que há um país
nesse local.

Q ue nestes termos
nunca faremos
um a nação
de um m atagal,
pois se não dermos
com ida, teto,
lugar, raiz
e dignidade
ao cidadão,
ao branco e ao negro,
nosso projeto,
nossa retórica
nacional,
não passarão
de u m a inverdade,
de u m a ilusão
escrita a giz
no quadro-negro

145
B runo Tolentino

e espectral
da anti-H istória,
ponto final
da pretensão
de um dia termos
um a nação
nestes extremos
e vastos ermos
que apelidamos
de meu país...

T in h a razão
aquele hom em .
Setenta e tantos
anos depois,
a m esm a voz
dá nom e aos bois,
a todos nós,
e ainda nos diz
m uito pior.
D iz-nos que após
todo um passado
de desencantos
feitos de enganos
somos ainda
e sempre nós
os que lá estamos,
lá, na berlinda,
da H istória, a sós
com aquela besta
nossa parceira,
a velha índole
brasileira,
que nasceu rindo
do que vendia
e cada dia
fica mais cega,
m ais traiçoeira,
enquanto chega

146
Os deuses de hoje

a hora sexta
de um a torm enta
que aum enta, aum enta
e aum enta ainda,
mais de setenta
anos depois...

A m im e a ti,
leitor, aos dois
e a tantos mais,
aquela voz
conta o que vemos
aqui e ali,
diz e rediz
o que sabemos
todos de cor:
que não, não somos
o que supomos,
mas animais;
não os leões
que aqui não temos,
mas símios, reses
de m atadouro,
pois nos vendemos
por parco ouro,
quando não damos
este país
ao m ero acaso,
a algum sargento
ou aprendiz
de capataz.

E m todo caso
ao cium ento
esprit de corps
de cuja ira
os bons soldados
voltam a dizer-nos
que nos cuidemos,

147
B runo Tolentino

para que um dia,


de m adrugada,
eles não saiam
num a parada
que ninguém mais
impediria
e façam a cam a
entre os currais
enlameados
e a confraria
dos sargentões,
diante da mira
de seus canhões
hoje calados,
mas na tocaia.

u m tal estad o
de coisas cham as
N ação, Estado,
Brasil ...“M entira!
Pura ilusão!
As tuas torres
pertencem aos deuses
que tantas vezes
instituíste!
N em fazesju s
a um a nação
que não possuis
nem construíste!”
ecoa a voz,
o eco triste,
cheio da ira
de Alberto Torres...
E quantas vezes
lhe ouviste a vaia
por entre as reses
m ortas de fome
no pasto seco

148
Os deuses de hoje

e as magras lavras
do caipira
que às vezes com e
e às vezes não?
Essas palavras
que ouves em vão,
sem que as entendas,
queiras ou não,
são as palavras
de um grande hom em ;
não são parlendas
que vêm e vão
sem muita urgência
ou relação
com a realidade,
sem referência
ao cidadão
ou à paisagem
desta cidade:
essas palavras,
ouve-as e grava-as
no coração
com o um a aragem
entre o selvagem
e a solidão,
porque elas são
pura verdade.

N ão as entendes
porque não queres,
porque só podes
dar nom e aos bodes
expiatórios
em teus estéreis,
tristes, histéricos
e enfim patéticos
ritos inglórios
e ensangüentados,
os que ofereces

149
B runo Tolentino

a teus duendes
e deuses vindos
de seus olimpos
peremptórios,
semi-ilusórios
porém terríveis
quando enfim descem
àqueles níveis
em porcalhados
em que pareces
viver e vives
porque te vendes,
porque leiloas
a alm a e o resto,
alheio ao eco
da voz que entoa
esse protesto
que desentendes
há quase um século.

N ão, não o entendes...


Que deuses?, dizes.
D igo-te eu:
não são Jesus
ou o Santo Espírito,
m as criaturas
do teu exílio
longe da C ru z ;
suas raízes
estão fincadas
no aqui e agora
que desfiguras
e contradizes
há tantos, tantos
e tantos anos.

O u bem m e engano
ou te dirás
que isto não passa

150
Os deuses de hoje

de um a canção,
dos acalantos
e vadiagens
da m inha m ão;
que ídolos, deuses
et caterva
são só im agem ,
tinta, fum aça
(talvez de erva...),
enfim, m iragem ,
dessas que às vezes
sobem à cabeça
de algum rapaz
entusiasmado
quando tropeça
na inspiração.

M as são bem mais.


São teu passado
passado a limpo
pelo futuro
do teu presente.
São teu garim po
mais obscuro,
mais renitente.
Eles serão
um a ilusão,
mas que dem ora
a ir-se embora
porque suas hordas
têm o costum e
de serem frutos
daquela haste
perem ptória
cham ada H istória;
podres e astutos,
nascem do estrum e
com que cercaste
e cultivaste

151
B runo Tolentino

continuam ente
teus lodaçais
há tanto tem po,
tão lá por trás,
que nem recordas
com que sementes
ou ferram entas...

B em sei que mentes


de hora em hora,
que reinventas
a três por dois
a realidade,
mas acredito
que neste caso
lembras o vaso
plantado à frente
de um descampado
quase infinito
de tão vazio,
m as já não lembras
com o o desmembras
nem o que sobra
da tua obra,
do teu arado:
lembras o parto,
mas não a puta
que te pariu,
e aos indigentes
que mal são gente,
as criaturas
desse desastre
que te engendraste,
depois doaste
a um povo aflito...

N inguém disputa
que sejam um mito,
no entanto são

152
Os deuses de hoje

tua invenção.
Teus deuses duram
e durarão
(com o estás farto
de ver na gruta
em que acampaste
e de que não sais
até que nascem )
porque por trás
de cada face
nesta cidade
não vês Jesus
nem a Trindade,
mas as figuras
do teu conflito
com o infinito
que não procuras
e não aceitas,
porque rejeitas
a tua cruz
e o Pai, e o Filho,
e a m ão do Espírito
que nos conduz.

Mas tua é a feira


dos fariseus,
outro é o deus
à cabeceira
dos cambalachos
e sonhos teus.
O hom em -deus
tu O pões abaixo
por sob as patas
mais iracundas
do pelotão
ou de outro assalto;
ergues ao alto
as m ãos imundas,
no entanto O matas

153
Bruno Tolentino

e crucificas
aqui, de novo,
com todo um povo
faminto e nu,
menos os dois,
ou dois milhões
de m aus ladrões
que magnificas
ou vilificas,
mas nunca pões
na cru z depois...

B em , m as q u e deuses?,
insistes tu.
Mas que pergunta,
respondo eu!
Os que conspiram
com o Asmodeu
que tanto adoram
sabem quais são
as divindades
cujas cidades
semidefúntas,
cheias do breu,
da podridão
de que te untas,
fazem a desgraça
em que vegeta
toda um a raça
cheia das chagas,
não dos ascetas,
mas dos idólatras
ditos ateus,
esses alcoólatras
que se embriagam
os sete dias
de um a semana
de fantasias

154
Os deuses de hoje

e de chicanas,
com o a noção
nietzschiana
de que o Senhor
teu D eus m orreu
antes do berço
e este universo
agora é teu.

Alberto Torres
findou seus dias
dizendo isso;
suas palavras
têm o am argor
do bom serviço
que te prestava,
que nos prestou.
Abriu o vôo
que não tem volta
logo depois,
mas o que disse
disse-o com fé,
com todo o am or
do patriota
que se revolta,
mas sofre até
pelo agiota.

N ão fez furor
nesta República,
viúva estéril
de um pobre Império.
U m hom em sério
m orreu sozinho
e ignorado
pela cam ada
que m anda e brilha
com o ouro puro,
mas é m onturo,

155
B runo Tolentino

lixo trocado
pelo futuro;
por fim cansado
de cam arilha
tão descarada
que troca um cetro
por mil gazuas
e varre as ruas
a canhonadas,
foi-se, discreto
e endividado,
pois nunca pôs
as m ãos em nada
da coisa pública!

M orreu honrado,
pobre e esquecido.
Mas lá, do olvido
revisitado
que faz sentido
para o futuro
de todos nós,
a sua voz
com seu cham ado
brilha adiante
de tanto escuro
com o um diam ante
indignado!

Por onde for


cada um de nós
que não deserte
esta cidade
tão infeliz,
onde cam inhe
este país
aquela voz
brilha e rebrilha,
tão igualzinha

15 6
Os deuses de hoje

à realidade,
que enfim ressoa
com o um alerta
nos descaminhos
do desamor.
B ate no ouvido
de um a pessoa,
e outra, e outra,
até que encontra
de um certo m odo
quase desperta
toda a família:
répteis e bobos,
a turm a experta
e a gente tonta,
a m acacada
am eaçada
por outro alerta
que atinge a todos:
a bolsa ou a vida!

Tu que dirias?
Tu, que desertas
todos os dias
C risto Jesus
e Alberto Torres;
tu que preferes
baixar às grutas
as mais estéreis
a andar na luz;
tu, se hoje escutas
o que te digo,
tu, que do umbigo
de tantas putas
nasces feliz,
ouve o que diz
um estadista
e o Evangelho!

15 7
B runo Tolentm o

O lha ao espelho
que cara astuta
tens, velho artista,
m acaco velho,
tu, parasita,
pústula, pus
das covardias
mais esquisitas,
tu, símio nu
na selva escura,
tu, criatura
que nega e foge,
dize-m e tu:
defenderias
as tuas torres
se aqueles deuses
voltassem hoje?

Tem o que não...


Entregarias
tudo de novo,
tudo e bem mais:
alm a e nação,
paisagem e povo,
a noiva e o noivo,
o filho e os pais...
Pois quantas vezes
viraste as costas
para escapar
sem dar resposta,
nem te importar?

Joaquim Silvério,
Iscariotes,
e Calabar:
destes o bote,
tomastes posse
desta nação
para a entregar

158
Os deuses de hoje

à fera bronca,
à noite estéril,
às confrarias
da escuridão,
enquanto ronca
E C . Farias,
o foragido
deste querido,
gigante nosso
adorm ecido...

á en tre nós,
C leitor que corres,
foges da voz
de Jesus Cristo
e Alberto Torres:
cada um nos pôs
e põe diante
daquele misto
de mais cipós
com menos ramos,
a variante
com que inventamos
um a noção
irrelevante
do ser hum ano
mais ordinário.

U m no Calvário,
o outro depois,
no entanto os dois
rasgando o pano
que dividia
a luz e o dia,
a convenção
e a realidade;
um com a verdade
que lhe exigia

159
B ru n o Tblentino

Pôncio Pilatos,
o outro com os fatos,
que não m udaram
de cor ou cara
desde seus dias;
enquanto calas
ambos te falam
da rapinagem
de que não cansas
e não desistes.
Falam -te tristes,
sem esperança
de que se salve
um infeliz,
um a criança
neste país,
um a que seja,
na tua igreja
fria e selvagem.

Jesus dizia
sem pieguice
que o ser hum ano
era um irm ão;
Alberto Torres
disse e redisse
que é ledo engano
um a nação
que nos sonham os
todos os dias,
mas dedicamos
ao deus oculto,
até que o vulto
de cada torre
na poça im unda
se nos confunda
com o pai que m ata
e a m ãe que m orre,
e o deus que escorre

16 0
Os deuses de hoje

com o goteira
vire a torm enta
que tudo inunda,
gere a imundície
podre e barata,
venha da m ata
para as calçadas
com o um recheio
nauseabundo
furando o fundo
de papeladas
e papelões...

M ais de setenta,
setenta anos
de vergonheira,
e o m ofo aum enta
dentro da empada,
a m ascarada
dos orçam entos
e dos anões
não dá em nada,
outros bufões
dividem ao meio
tua caveira
e não, não morres:
m orre o país
dos desatentos,
e os deuses lentos
chegam -se à beira
daquelas torres
tão cobiçadas
que Alberto Torres
um dia disse
serem tolice
am eaçada
de devaneio.

Mas, nada disso


(dizes) nação

161
B runo Tolentino

ou não, existe
este país!
Seria assim?
N ão vou te dar
um a lição
que já conheces
pela raiz,
sabes m elhor
do que ninguém ,
sabes de cor
a poesia
chocha e chinfrim
do charlatão
que se envaidece
ao violão.
M as, quanto a m im ,
sonho acordar
a m ultidão
e escolho a prece.
Escolho orar
e ver, e agora
vou te contar
com o é que entendo,
que vejo, a lenda
desoladora,
a história triste
do que nos diz
um estadista
e hom em de bem,
um grande hom em ,
dos que aparecem
de vez em quando
em meio ao bando
dos vigaristas.

Falo em seu nome.


Falo tam bém
por ti, por m im ,
por nossos filhos,

162
Os deuses de hoje

por todos eles


e por aqueles
que não os têm.
Venho de exílios
quase sem fim,
e esta canção
que agora faço,
faço-a com medo,
com o embaraço
e a hesitação
de um coração
que vive à m íngua
de com unhão
com a própria língua
há longos anos.

Seria engano,
e engano ledo,
julgar que posso
dar-te a lição
que lês no espelho
e nas esquinas
todos os dias
com vista grossa,
a lenda é nossa
e não precisa
do que eu diria,
pois não termina
quando um fujão,
um desertor,
que se foi m oço
e voltou velho,
imita a fala
que ouve da brisa
para contá-la
com esse arremedo
de exaltação
cham ado dor.

163
B runo Tolentino

Terei cuidado
com o que disser,
porque quem quer
ser escutado
pelo seu povo
mede a linguagem
que serve e usa,
mas nunca abusa:
antes implora
à velha m usa
contem porânea
que, se puder,
ou se quiser,
lhe ensine agora
aquela m úsica
tão natural
à realidade
que é a irm andade
subcutânea
de todo um povo.
Q ue salve a imagem
dessa ilusão
extem porânea,
dessa vontade
de im aginar-se
f‘ a z er o novo’
num a qualquer
facilidade
sob disfarce
de poesia,
a fantasia
esqueletal,
que todo dia
lês em jornal.

A h, se eu soubesse
com o acordar-te!
Se a m inha arte
pudesse mais

164
Os deuses de hoje

do que os jornais!
Se essa missão
que m e proponho
quando ainda sonho
enfim pudesse
ser realidade,
ou algo mais
do que ilusão!
Mas, com o disse
D on a Cecília:
se não houvesse
tantas paredes,
se nossos braços
tecessem m alhas,
colhessem redes...
Q u e maravilha!
Pelos compassos
desta canção
eu salvaria
esta nação,
ou pelo menos
sacudiria
suas m ortalhas
até que ouvisse
a Alberto Torres
sendo citado
por todo lado
nesta cidade
enfim desperta,
senão liberta
da cam arilha
que a tem pilhado.

as b asta, às torres!

M Vamos a elas,
que das janelas
o mais das vezes
vemos os deuses...

165
B runo Tolentino

Por elas vives,


com eles morres;
tu as elevas,
eles as vêem
e com o as trevas
cobrem sem pressa
vãos e declives
num a paisagem,
ou com o o trem
que se arremessa
rapidamente
dentro do túnel,
os deuses agem
prudentem ente:
erguem as cabeças,
m edem o pecúnio
e, impreteríveis,
frios, selvagens,
mas deuses! vêm...

Os altos níveis
inacessíveis
que as torres têm
não te socorrem ,
porque eles chegam
do ar tam bém :
com o os morcegos
em bandos cegos,
descem, em ergem
surgem da treva
e, leva a leva
de sangue e lodo,
baixam , escorrem ,
cercam -te as torres
no país todo
e de algum m odo
te submergem.
C o m o se alérgicos
ou refratários

166
Os deuses de hoje

a resistências,
não são velozes,
m uito ao contrário:
rondam a presa
com a elegância
das reticências,
não dos algozes:
com a agudeza
dos carniceiros,
vêem à distância,
e olham , observam,
rondam o cortejo
dessas caronhas
roendo ervas,
catando lixo,
a coisa, o bicho
que ia ser hom em
mas não perm item ,
a assombração
que se envergonha
mas passa fome,
passa o limite
da abjeção
e aceita tudo
quanto sobeja
e cata-o e com e-o...

Os deuses rondam
esse deserto
inadmissível,
não com seus tanques,
mas com a reserva
surda das ondas,
senão da hiena
imperceptível
sem m edo ou pena
do que agoniza,
o olhar de cinza
e o dente agudo

167
B runo Tolentino

de quem precisa
ver o esqueleto
quase de fora
antes da hora
em que lhe arranque
tripa e pulmão!

Os deuses, quietos
com o os covardes
que viram feras,
vigiam e esperam
a ocasião
em seus discretos
esconderijos,
pois nunca é tarde
para os expertos
que nascem certos
da vocação
e crescem , rijos
com o os enormes,
ocos projetos
que os arquitetos
da negação
fazem em segredo;
m as, tarde ou cedo,
enquanto dormes,
lépidos, ledos,
pé ante pé
na escuridão,
chegam mais perto,
mais perto, até
que ali estão
seus vultos pretos.
Porque estão certos
de ter razão,
curvam -te a nuca
até o chão,
até que beijas
o pé e a m ão

168
Os deuses de hoje

do deus do ontem
tornado o hoje
a que ninguém
resiste ou foge,
a triste igreja
do deus em brusca
ressurreição,
o anti-hom em
de quem o nom e
é legião...

Q ue então te m ontem
ou m atem , é mais
um a questão
de inclinação
tua que deles,
visto que vêem
com o animais
de criação
a ti, aos reles
restos morais
que és e nunca
deixas de ser
perante eles,
os teus juízes:
por mais que pises
nos outros, és
o que eles vêem
quando te têm
por sob a pata
com o quem trata
aos pontapés
o que é só deles;
porque ninguém
tem com o eles
todo o poder
do capataz
sobre a m anada
em derrocada,

169
B runo Tolentino

e usam -no em busca


do teu am ém ...

N ad a de estranho:
os deuses vêm
a teu cham ado,
mas vêm atrás
do teu grotesco
de hoje e d’antanho:
a procissão,
a m ultidão
que, pelos becos,
m orros e vãos
do teu império
em dissolução,
form am a estéril
dem onstração
de mais um nível
na podridão
mais funda, mais
inadmissível,
os teus chiqueiros,
o teu legado
aos teus herdeiros,
a tua incrível
alienação.

Ó rfa de pais
e de país,
toda um a raça
passa e repassa
de m ão em m ão,
e os deuses vêem
essa infeliz,
inconcebível
dem olição
do teu passado
e do teu futuro,
que cortas, cortas

170
Os deuses de hoje

pela raiz
até que o escuro,
a escuridão
abre as com portas
a um pobre gado,
sacrificado
por devoção
a ídolos duros,
e um m alogrado
país obscuro
e m altrapilho
bate de m ão
vazia às portas
do desespero
com seu rastilho
de convulsões.

É a indescritível
desolação
dos aleijões,
dos esqueletos
ainda inteiros,
dos corpos secos,
brancos e pretos,
de olhos pequenos
e enorm es panças
cheias do horrível
vácuo da fome,
filas de hom ens,
mães e crianças
que usas e abusas,
mas que não nutres
e m uito m enos
vestes e educas;
a procissão
que, em desespero,
curvando as nucas
ante os abutres,
vai e abre as portas

171
B runo Tolentino

aos deuses frios


quando caducam
teus desvarios.

/
so e n tã o
E que, com o o rio
passa levando
o aluvião
que cobiçara,
roendo a cara
mole do chão,
é só então
que os deuses vêm.
C hegam em bando,
com o um resgate
pelo alçapão,
com o um veneno
velho e barato,
mas necessário
no casarão
cheio de ratos
e usuários
da podridão.

N ão , nunca têm
a solução
dos teus dilemas,
mas têm à mão
o teu retrato,
e pronto, basta!
A obra de arte,
a im agem gasta,
suja e confusa
dos eczem as
de um aleijão,
é o guia-m apa
do pelotão,
tem o poder

172
Os deuses de hoje

brutal do fato
que te recusas
a confessar-te,
a reconhecer...

C o m que cuidado
tiram a chapa
desse coitado!
T ratam -no a tapa,
e com razão!
Sabem que a cara
do descarado
cabe na m ão
do ídolo arm ado,
e que ele gosta
de bofetão;
sabem que a tara
de quem se encosta
no valentão
é ser tratado
do m odo duro
com que o malvado
trata o poltrão:
a tapa e murro.
M as dão-te ao menos
u m a razão:
dizem que são
um a resposta
ante a desordem,
que suas hordas
salvar-te-ão
da convulsão
e do desastre
a que voltaste
de novo as costas.

C urvas-te então,
beijas os pés
da parasita,

173
B runo Tolentino

lambes as botas
do ser supremo
que te visita,
e o enorm e anão
por fim hesita-
se não consola
os seus fiéis,
não os degola
a todos não;
escolhe os dóceis,
coleciona-os,
transforma uns poucos
em brindes, fósseis,
enfeites ocos
para os museus
nauseabundos
do novo deus
que fez do m undo
mais um a zona
de segurança.
O deus imundo
que te consola
de ser anão,
que não se cansa
de pôr a argola
no teu nariz
O deus que avança
sobre o país
e agarra tudo,
com e a esperança,
pune a decência,
fecha as escolas,
bane a criança,
mas dá esmolas
a quem se presta
ao beija-m ão,
aos rapapés...

174
Os deuses de hoje

M ete-lhe a alma
num a gaiola
e deixa o resto
solto, contanto
que lhe ouça palmas,
que não lhe ouça
choro nem canto,
nenhum protesto,
nenhum a prece
que não pudesse
ser um tributo
ao deus da hora.
E a gente m oça
ou vai embora
sem suas almas,
ou a um a voz
une-se e adora
o deus astuto,
o novo algoz
absoluto
que se assenhora
dos lambe-botas,
que, não dem ora,
beijam -lhe a m ão
e batem palmas
ante a derrota
de um a nação
sem mais saída
que dar a vida
aos idiotas.

p or q u e não
E se são teus deuses?
Se os m aom és
de ocasião
guiam assim
os seus fiéis:
aos bofetões,

175
B runo Tolentino

aos cachações,
queiram -no ou não,
guiam -no assim
até ao fim,
até à meca
das ilusões.
Sim , por que não
se tantas vezes,
com o peteca
de paspalhão,
saíste atrás
de um a outra m ão
que te aplicasse
u m a vez mais
a bofetada
dura e bem dada
pelos fundilhos,
tu, que não tinhas
cara ou sequer
força, desplante
de erguer a face
ante teus filhos,
tua m ulher?

N ão eras nada
e nada és,
pois doravante
és o joguete,
a erva daninha,
a marionete
dos coronéis,
dos lampiões;
sabias bem
que entre os bofetes
e os rapapés,
entre o joão
das loterias
e o joão-ninguém ,
seu eleitor,

176
Os deuses de hoje

por fim, mais dia


ou m enos dia,
com m enos gana
ou mais ardor,
teu deus viria
e u m a vez mais
puxar-te-ia
pelos barbantes
com que te esgana,
porque assim guia
os navegantes
do m ar de lama,
senão além
da Taprobana,
aos seus quartéis,
aos seus currais.

Porque os gigantes
filhos de anões
nunca lhes dão
pouso ou perdão,
mas u m a espécie
sempre hum ilhante
de expiação.
E nunca exigem
explicações
a seus hom únculos,
apenas fingem
ouvir e descem,
pelos porões,
com o as esfinges
a seu crepúsculo:
com aquele exato,
velho sorriso,
o último aviso
de que obedecem
quando cham ados
e irão ao culto
desesperado

177
Bruno Tolentino

com o se dessem
veneno a um rato.

E assim mereces!
Porque de fato
sabes que esses
e tantos outros
monstros baratos
e boloridos
vindo ao encontro
de tuas preces
são teu retrato
fiel, cuspido,
frio, escarrado.
Os teus parentes
e conhecidos
sabem que és,
ou te tornaste
um roedor,
um porco dente
roendo a haste
em que a semente
gerou a flor
podre e doente
que se pendura
com o bandeira
esfarrapada
à ponta dura
da baioneta,
com o a um guindaste
sanguinolento
que erguesse ao vento
a descarada
papoula preta
filha do nada
com a bandalheira.

N o espelho raso
de cada poça

178
Os deuses de hoje

que te retrata,
aquela imagem
da flor maldita
que te entorpece
depois te mata,
não vai descrita
porque coubesse
no belo acaso
da rima rica:
significa
o velho e a m oça
na mais tranqüila
concubinagem ;
o jovem à hora
das vassalagens;
os sacripantas
fazendo fila
ante os selvagens
e os imbecis;
eles e tantos,
e muitos mais
neste país!

A flor do vício
e do desmando,
que andas plantando
pelas beiradas
do precipício,
nessa paisagem
que vais cortando
pela raiz,
é, sem tirar
nem pôr, a cara
do teu país:
doente, insossa
e sem sabor,
em pleno ar
com o uma flor
que se prepara

179
B runo Tolentino

a ser jogada
ali, no vaso
de um lupanar...

E m todo caso
o capataz
já não te pede
explicações
e os sargentões
não querem mais
tuas matreiras
divagações,
querem levar
tudo o que pões
entre paredes
e cum eeiras,
e entram , apontam
para o que insistes
em ignorar
e, arm as em riste,
abrem -te o lar,
enchem prisões,
e vão buscar
tudo o que escondes,
nos alçapões,
nas arapucas,
quem sabe onde,
tudo o que faz
de ti um m onstro
triste e voraz
os deuses buscam -no
até que o encontram .

d ão o bote
E dos justiceiros,
porque são deuses!
Sem anas, meses,
anos inteiros,
observam , escutam

180
Os deuses de hoje

teus palavrórios,
teus exageros
e julgam , julgam -te
m uito bem 1
Ali, às beiras
dos belos bairros
de que te orgulhas
há o hom em -bicho
com endo lixo
pelos entulhos,
os meninotes
form ando o bando
de arm as em punho,
atrás dos carros
e das carteiras,
nascendo em maio,
m orrendo em junho,
ou vegetando
nas espeluncas,
em seus caixotes
com o galinhas
em seus balaios,
os tristes ursos
de um circo negro

Os deuses mudos
anotam tudo;
texto por texto,
lêem -te os discursos
e as entrelinhas
e, com o nunca
pregaram um prego
sem boa estopa,
fazem daqueles
que sob a roupa
são osso e pele,
fazem aos poucos
dos semiloucos
de ira e fome,

181
B runo Tolentino

daqueles moços
emaciados
que são esboços
finais do hom em
que não serão,
frios, tenazes
com o a razão,
os deuses fazem
de um aleijão
abandonado
o seu pretexto
para o sarau
da assombração
entre as caveiras,
sob as bandeiras
a meio pau,
no longo luto
do mais funesto
dos feriados.

Se se aproveitam
de quanto fazes,
se cortam o joio,
depois o trigo,
é porque assim,
sempre capazes,
meticulosos,
põem ao abrigo
toda a colheita.
P or teu apoio
mais irrestrito
eles te aceitam
o que é ruim
pelo que é bom;
questão de tom,
simples receita
de bacanal
organizada
por toda a seita.

182
Os deuses de hoje

Q ue o esprit de corps
faz de um curral
algo de prático,
e é natural,
mais dem ocrático
e bem melhor
que todos com am
toda a m anada
aberta a sabre,
e nada sobre
do que se abre
nem reste nada
do que te tom am ,
nem o pior.

Frios, argutos,
prudentem ente,
com o convém
às velhas feras,
eles esperam
e, quando vêem
que finalmente
tu já não tens
noção algum a
do que te deram
da últim a vez,
dispensadores
de expiação,
os domadores
do que tu és
saem da brum a,
surgem, acodem
aos teus horrores,
e se primeiro
com em teus bodes
expiatórios,
depois devoram
teus companheiros
e finalmente

183
B runo Tolentino

a ti tam bém .
Pior a emenda
do que o soneto!
Porque os teus deuses,
todas as vezes
que vêm (e vêm
com o os invernos
que não se adiam ),
não sabem nem
que já fizeram
outras badernas
em outras eras:
com o modernas
Medusas frias,
os Torquem adas
de pelotão
cavam -te as covas
achando novas
alegorias
para a estação
de fogo e ferro
do m esm o erro,
as mascaradas
recauchutadas
da aberração...

Sabem porém
que não tens nada
para a salada
desta nação,
que para o preto,
o branco e o pardo
não és ninguém ,
nem um covarde,
és a oferenda
ao deus que tem
todo o poder:
o deus do mal
com o do bem

184
Os deuses de hoje

que pouco fazes,


o que segura
pelo cangote,
com o anim al
entre tenazes,
a criatura
que lhe foi dada,
com o convém
a um deus saber
com o segure
o que lhe dêem
de m ão beijada.

o m o n a len d a
C do piparote
dado no m undo
pela m ão dura
do anjo horrendo
que odeia o ser
(o que não quis
ser o segundo
e desde então
faz este m undo
tão infeliz),
aqui, no fundo
do m eu país,
há um a coorte
assim tam bém .
A ndam com sorte,
vivem tão bem
que não im portam
a mais ninguém ;
não estão ocultos
atrás da porta,
estão calados,
mas bem mais perto
do que supões.
N ã o são soldados,
soldados têm

185
B runo Tolentino

outras missões,
são as legiões
de um a caserna
que se confunde
com essa caverna
sem lugar certo
no m apa-m úndi,
onde, segundo
creias ou não,
andam os vultos
de um a platônica
exibição...

Porque, no fundo,
se são m iragem
dos teus desertos,
são tão incríveis
quanto concretos,
são, na paisagem
de desconcertos
em que tu vives,
os mais terríveis
dos teus enxertos!
Mas todos são
tão, tão discretos
que quando chega
de prontidão
a horda cega
parece côm ica
a procissão!
Mas não é não:
a histriónica
aparição
com endo os bodes
da ocasião,
tem tanta fome
que com e as torres
morais do hom em
e depois com e

186
Os deuses de hoje

a ele também.
Q uando enfim surgem,
com o C aronte
tocando à m argem ,
por trás do m onte
de m edo e fezes
das tuas urbes
semi-selvagens;
quando eles vêm,
entre teus porres,
tuas badernas
e teus reveses,
dar-te lições,
engolir bodes,
sonhos e torres,
não são bufões,
são m esm o deuses,
os que supões
inconcebíveis,
mas te sacodem
com m ãos visíveis
até que têm
tudo o que tinhas:
tuas tardinhas,
nos calçadões,
tuas cidades
e vastidões
despovoadas,
tuas ciladas
e teus porões,
que enchem de lodo,
sangue e vergonha,
até que nem
o louco sonha,
nem ele mais
desmente o algoz,
a carantonha
que o m onstro faz.

18 7
B runo Tolentino

Até que em todo


o país a voz
do dono ecoa,
com o a peçonha
fazendo a paz
com o que envenena;
até que o gado,
pobre coitado,
que m uge à toa,
não seja mais
que um a pequena,
triste excrescência
na consciência
que se esboroa...

s deuses v êm
O cobrar a parte
que lhes devias;
são tuas crias,
as criaturas
daquela arte
ou artim anha,
ou diabrura,
quem sabe o quê,
a artezinha
sutil que tinhas
em tanto apreço
que, se ao com eço
foi pequenina,
veja você,
cresceu, cresceu,
entre ruínas
e virou fé!

M ove as m ontanhas
que são de Deus
e não dos deuses,
o mais das vezes
remove até

188
Os deuses de hoje

o mal e o bem,
a tua arte
da ambigüidade,
que curva, inclina
e entorta tudo
ad absurdum
e um dia há de
pegar-te o pé
e arrastar-te
para as profundas
do poço imundo.

Velhos ou m oços,
teus inocêncios
escavam poços
em teus desertos,
mas tu tam bém ...
Poços imensos,
cheios de sedes
e de trapaças,
ocos que podes
cercar das hordas
dos teus cangaços,
mas onde é certo,
é inevitável
que um dia acordes
diante da feira
feroz, a missa
negra e negreira,
interminável
e costum eira,
a tribo inteira
dos esqueletos
e das carniças
que am ontoaste,
o branco à beira
do poço preto.

Os que ali juntam


os teus pedaços

189
B ru n o Tolentino

e, passo a passo,
gole por gole,
bebem teu sangue,
com em -te a prole
e te perguntam
se aquele m angue
sanguinolento,
o m onum ento
que escavucaste
à tua raça,
por fim te basta
com o desgraça...

O precipício
será teu último
e triste poço,
o mais inútil
desde o início,
o poço seco
no eterno beco
dos velhos vícios,
teu calabouço
cheio de ossos
e de ruínas.
A arte que ensinas
aos próprios deuses,
arte de quinas,
e curvaturas,
as mentirinhas
e as desverdades
de que dispunhas
com o metades
de um a só farsa,
ergue colossos
e as desventuras
suas vizinhas,
ervas daninhas
que nunca passam.

190
Os deuses de hoje

Q uando se esgarçam
aquelas redes
morais que guardam
o bem do mal,
quando um a raça
faz um curral
entre paredes
para a mais cúm plice
bacanal,
primeiro cum pre-se
o ritual,
depois, mais tarde,
com o convém
à velha guarda,
os monstros vêm.

Vêm porque acodem


para cobrar-te
o passo em falso,
são teus comparsas,
mas tam bém são
as testemunhas
de acusação,
as que dispõem
do cadafalso
e nele põem
quanto quiserem:
nossas mulheres,
filhos, irmãos,
sonhos e farsas...
Porque são deles
todos aqueles
que eles acodem
e não socorrem ,
poços e bodes,
homens e torres,
e nunca podes
queixar-te a eles
porque eles podem

191
B ru n o Tolentino

por sua vez


dizer tam bém
duas ou três
coisas plausíveis,
com o os convites
que lhes fizeste:
aquele, este,
tantos... N ã o vês?
Irresistíveis,
eles existem
porque os fizeste,
são um a peste,
mas de encom enda...

E enquanto isso,
enquanto fazem
o teu serviço,
não és ninguém
e eles tam pouco:
os corretores
do desvario
nos corredores
dos teus vazios
são quase lenda,
mitos num oco
não de caverna,
mas de outro poço
e outro, e outro/
sombras de ossos
vindas do fundo
de um a cisterna
nauseabunda,
com o de encontro
à hidra de L ern a
vinham escombros
do submundo.

Mas a ilusão
que a um certo nível

192
Os deuses de hoje

os deuses são,
fantasmas, sombras,
coisas que hibernam
por entre os gases
da podridão
e acordam quase
com o um a eterna
alucinação,
a indescritível
aparição,
a triste lenda
com seus bigodes,
seus aleijões
e seus sequazes,
no entanto pode
fazer que nem
as mais terríveis
execuções
das tuas ordens,
as mais incríveis
demolições,
nada, ninguém
rem ova a venda
que cega os olhos
de gerações...

o m o p iolhos
C nos corações,
os deuses ágeis
andam em matilhas,
tropas selvagens
de ocupação;
ocupam o vão
entre as quadrilhas
e o cidadão,
entre os que erguem
as maravilhas
da criação

193
B runo Tolentino

e o rufião
que as não consegue
furtar ao chão.

N ão, mas os deuses


conseguirão!
C om a paciência
dos animais,
não desesperam,
esperariam
a vida inteira
seu dividendo,
sua ração
na rapinagem,
sua porção
no teu horrendo
festim de ossos...
D ia após dia
esperarão
quietos, sabendo
que entre teus poços
de podridão,
tires ou não
tua vantagem
na agiotagem ,
andam -se erguendo
cum e por cum e
aqueles cimos
essenciais
a u m a nação.
E , com o as feras,
com a intermitência
dos vaga-lum es,
esperam, esperam,
até que a m era
repetição
de um a m egera
cham ada H istória
de novo faz

194
Os deuses d e hoje

da m esm a escória
mais um a inglória
ressurreição.

C hegam então
sempre por trás,
sempre da sombra,
sempre do não;
quando os ouvimos
com o aos escombros
chegar fazendo
trem er o chão
e pondo a m ão
em cada ombro,
não somos nada,
não temos mais
a intuição
da criatura
entre anim ais,
somos m anada,
gado no escuro,
carniça em postas,
com o nos postes
de antigam ente,
um outro abril,
os pedacinhos
de Tiradentes
pelos cam inhos
deste Brasil.

E então, nas m atas,


rios, encostas,
cidades, vales
de um a nação,
as alvoradas
viram crepúsculos,
suja-se o chão
e ouvem -se as patas
do pelotão

195
B runo Tolentino

pisando o irmão.
M ata-se em vão,
e ainda assim
m ata-se, m ata-se
até ao fim,
até que o sangue,
correndo a rodo,
criando mangues
e enchendo exílios
de um a ira absurda,
por ti, por m im ,
por nossos filhos,
o m ar de sangue
faça que todos
os teus escrúpulos
sejam defuntos
e um a nação
finja-se surda
e ande no lodo,
os transeuntes
da deserção.

D e nada vale
que te perguntes
por quê, quem são,
a que vieram;
eles virão
porque ignoras
que cara têm,
de onde surgem,
qual é seu nome.
N ão vêm de fora.
Surgem do hom em .
Aquelas feras
são a ferrugem
no teu porão.
Os deuses nascem
de ti, das cruzes
abandonadas

196
Os deuses d e hoje

por ti, que sujas


com tais ciladas
tuas calçadas
entre os ocasos
e as m adrugadas
que as tuas ruas
atravancadas
de dor, de fome,
de ingratidão,
são com o urzes
e os deuses surgem
desse descaso,
em mais um passe
dessa m agia
com que desfazes
o que fazias,
fazendo as pazes
com a apostasia
do coração.

o rq u e tu as torres
P andam cercadas
da multidão
desabrigada
que não tem nom e,
que não socorres
nem vês, a enorm e
desolação
que te preparas
faz com que eles
troquem o pejo
pelo uniforme,
e, bruscam ente,
com o piolhos
e percevejos
por sob a pele
mas ante a cara
de um a nação,

197
B runo Tolentino

surjam de novo,
com o do ovo
sai a serpente
que com e os olhos
e rói a m ão
de todo um povo
que não se ergue,
que m al consegue
erguer então
torres nos pântanos
que finalmente
as engolirão.

O batalhão
pode ser velho
ou quase imberbe,
mas é o espelho
diante do cego,
e não adianta,
de nada serve
se certas vezes
os reconheces
e outras não:
todos são deuses
e baixam, descem
ou se levantam
da podridão.
Os que te espiam
talvez durante
um a geração,
e enfim percebem
a eletrizante
ocasião
que nunca perdes...

Os deuses verdes
e confiantes
de um a nação
em perm anente

198
Os deuses d e hoje

demolição,
os que obedecem
à vocação
quando consentem
em levantar-se
sob o disfarce
de outra lição,
um belo dia,
um dia triste
com o os que insistes
em dar ao C ão,
infelizmente
aquele dia
os cham arás,
porque eles são
as fantasias
sacramentais
com que envenenas
todas as cenas,
os rituais
com que apequenas
as tuas torres
até que morres
entre currais.

C om a convicção
com que teus galos
erguem as torres
de um cantochão
longo e choroso
em torno, à frente,
em busca, atrás
do sangue ardente
e esplendoroso
das alvoradas,
assim um dia
irás cham á-los,
com o os teus galos
cham am a magia

199
B runo Tolentino

das m adrugadas.
M as, ao contrário
dos festivais
do am anhecer,
com o os badalos
nos cam panários
batem na tarde
que anda a morrer,
irás cham á-los
com o o covarde
cham a o sicário.

E , pontuais
com o os mosquitos
quando escurece,
ou os chacais
quando a luz m orre,
eles virão,
escutarão
a tua prece
e, porque deuses
sempre obedecem
ao m esm o rito
todas as vezes,
virão, virão
com er-te torre
por torre, e o grito
que abafarão.

A tua raça,
alim entando-se
da m entira,
escravizando
sem cerim ônia
seus semimortos,
primeiro corre
em direção
ao precipício
e, com o o bando

200
Os deuses d e hoje

daqueles porcos
que eram demônios
fugindo ao Cristo,
enfim se atira
sobre a carcaça
dos próprios vícios,
dos mesmos erros,
o velho misto
de desesperos
que entrega tudo
à m ão de ferro
e de veludo
dos deuses frios,
demolidores
das tuas torres
e construtores
dos teus vazios

R io-C untioa, abril de 1994

201
Ú ltima P arte

N A T E R R A P R O V IS Ó R IA
( 1985- 1994)

a Antônio Houaiss

"A beast is slain, a beast thrives;


fa t blood squeaks on the sand.
A blinded god believes
that he is not blind. ”

G e o f f r e y H il l

(M ata-se um anim al e um outro engorda;


na areia um sangue gorduroso, negro;
um deus que ficou cego acorda
e não se acredita cego.)

203
O FA LC A O

O falcão parado
no ar um m om ento,
imobilizado
no ar pelo vento
que lhe em purra o peito
parado, perfeito
no exílio do céu.
O falcão no exílio
da amplidão, e imóvel
sobre um braço jovem,
o falcão só teu...
O falcão sem fim,
o falcão sem grei,
o dono do filho
do rei, o falcão
dono da amplidão.
E u vivi assim.
C om o esse falcão
onde as nuvens movem
devagar a m ão;
com esse falcão
de repente imóvel
no branco do céu.
Assim vivi eu.

Décadas a fio
pairei sem poder
voltar ao m eu rio;
não o pude esquecer
e não soube ser
daqui nem de lá:
nem o rouxinol,

205
B runo Tolentino

nem o sabiá,
via am anhecer
com o o girassol
vê a luz morrer,
sente a passarada
retornar ao ninho,
depois a calada
da noite descer.
Vivi tão sozinho
que doía ser,
e vivi tão mal
que vim a tecer
meu canto de nada,
devagar, de fora,
de longe, da arcada
de um a embriagadora
solidão moral.

C ansei-m e afinal.
C alei-m e e voltei
trem endo da altura,
de novo à procura
do bando, da grei,
o falcão calado
no ar um m om ento,
se imobilizado
(quase) pelo vento
que lhe enfuna o peito;
se com um certo jeito
solitário ainda,
porque a solidão,
essa nunca finda,
é com o um incêndio
ateado ao vento,
não se acalm a não,
mas acaba sendo
referencial:
purificação
pelo alheam ento,

206
Os deuses de hoje

é ainda um sinal
da torre ancestral
que há no coração.

O ÚLTIM O PASSEIO

"A mão de Deus, à Sua mão direita. ”


ANTERO D E QUENTAL

D eb ru ço-m e a esta janela


em tudo igual à tua,
ou à dela, à de nós três aquele dia,
e que agora, outra vez por cortesia
da poesia, dá de novo sobre a rua
das Laranjeiras,
das transfigurações dos transeuntes
que nela fomos tantas vezes juntos,
a cam inho tu e eu da casa dela,
da E strela da M anhã, que envelhecera
surda com o a beleza e quase cega,
à m aneira
do vaga-lum e dócil que se entrega
à noite intervalado de cegueiras.

E evoco nosso últim o passeio,


inquieto, à tardinha, sob o doce
sol-com -chuva de abril (creio que era
o dia vinte, mas bem pode ser que fosse
dia dezoito, o teu dia
ou fora ou ia ser); e quem diría,
andávam os no meio,
o Brasil, tu e eu, de um a baderna
desoladora, e não fora
m inha saudade antecipada e eu não viera.

207
B runo Tolentino

V inha da casa de Isabel e Caio,


com o Francisco Bicalho D om ingues rim ando
pau -d e-arara e pára-raio,
com todos perguntando
uns pelos outros telefone afora,
com a gorilada fora da caserna,
com o país, e tu e eu, quase indo embora,
com tua m orte e os meus mortos já marcados
para m orrer: tu aos poucos,
os outros aos pedaços,
entre a garra dos deuses, o aplauso dos loucos
e a pata do soldado
nos quartéis da Polícia Militar.

N a pátria dos jagunços, dos Catões de um a casta


de pusilânimes, grã-finos e covardes,
a nação m anietada, a hora nefasta
ensaiando o seu nada, e no teu braço,
aquela tarde,
a estrela da m anhã da vida inteira
sem saber, sem poder saber de nada...
Calados desfilávamos
pelos desfiladeiros
da H istória,
pela ru a outonal das Laranjeiras,
sua glória imortal crepuscular
cheirando a choque elétrico na cara,
sabendo a fim de beco e pau-de-arara,
e nós, os três, impávidos
com o o pendão no vento
daquela hora sexta...
O truculento festival da besta
tinha acabado de recomeçar.

Recordo tudo aquilo


com o um m eu exercício,
a que m e obrigo
para gravar o tem po em que o m eu Rio
ou corria ou m orria;
e deixo agora escrito tudo isso
com o a vertigem sobre o precipício,

208
Os deuses d e hoje

mas com a natural melancolia


que herdei de ti, ou que estudei contigo,
dá no m esm o. Porque sei que o teu estilo
de lam entar e coroar a vida
no m esm o gesto disfarçado e largo,
com o m esm o doce-am argo
olhar do encontro quase despedida,
toda essa tram a m uito refletida
e m uito leve, sei que tudo isso
é m eu tam bém , que eu tam bém tenho o vício
de olhá-las de soslaio, aquelas sete
ou sete mil cabeças sem m em ória
da informe, estulta, enorm e
e nauseabunda hidra
de gravata, capuz ou cassetete
a que cham am os H istória e nos convida
a andar sem perceber no precipício
do pesadelo recorrente e esquecidiço.

E ao contar-m e outra vez tudo isso,


aqui desta janela,
debruçado sozinho sobre aquela
e m esm a tarde, que ao inverso das folhas
cai m uito mais no solo
incoerente da H istória que no colo
das transfigurações da eternidade;
ao lem brar com saudade
e m edo tudo aquilo,
sei que de certo m odo ainda m e olhas
agora, se de longe; que me espias
com o era o teu estilo,
para ver com o é que eu sinto e vejo
a barafunda das tapeçarias
que pisamos e às vezes refazemos
com a recorrência avulsa do desejo,
com a vocação do corpo e o am or dos extremos,
mais a graça instantânea
da vida que se perde
do m om ento e de nós.

209
B runo Tolentino

E u m a voz
que tento pôr agora no papel,
nossa voz ancestral contem porânea,
a que pergunta m as que só responde
depois que se m isturam quando e onde,
com o e por quê, e o verde
d’antanho recolore
o instante que foge;
aquela voz, a tua, a nossa, M anuel,
vem avisar-m e agora,
vem recordar-m e hoje
o que tu m e dizias esse dia:
que o m undo é com o um porre
lento e contínuo e cheio de degredo;
que é preciso ter medo
e esperança, contido e comedida;
e que o que nunca morre,
a poesia, é sempre, com o a vida,
o contrário da H istória:
súbita e breve e m uito delicada
de segurar, às vezes, pela mão.

A m ão de um a alegria,
que é a m esm a m ão dos pêsames, do adeus
e do aperto de mão.
A m ão aberta, a m ão honrada,
jam ais a m ão de ferro da vitória,
am bígua e contingente
e tão freqüentem ente
ensangüentada pelos manifestos
do caos, na confusão
de ninguém e de todos,
nos engodos,
nos gestos do carrasco e nos protestos
da pátria no porão.

Q ue a poesia, com o a vida, é feita


dos pequenos fonemas e dos restos
da alm a sempre desinteressada.
A H istória é a vizinha do nada,

210
Os deuses d e hoje

a vida é o cham ado de Deus.


E se a poesia é de D eus, com o a colheita,
com o as chuvas, o sol e as uvas à espera,
a vida é sempre a poesia à espreita
de um a confirmação:
do ouro das espigas, do que gera
do suor e do grão.
O mais é o não,
é o dente da fera
que mastiga a esperança e a primavera,
mas não pode m order aquela m ão,
que é a mão de Deus, a Sua m ão direita.

OS DESAPARECIDOS

E cos do baile negro,


pouco se sabe: conta-se
que finda a travessia lá se foram
escuridão adentro, adaga nua
tentando um a outra febre, febre estranha
que, pelo jeito, já ninguém entende mais.

Os algozes tinham -se arm ado e afiado os dentes;


convictos da culpa dos outros,
desciam, abaixavam-se,
olhos e m ãos no exílio enquanto a alma,
atada a seu rancor com o os forçados,
m archava insaciada.

Eles não: diziam


adeus em plena festa,
partiam decididos
a m orrer pelo fogo; toda viva
alegria é um escudo: imolação,
alegria — um escudo.

211
B runo Tolentino

Porque havia o am or com o eles o am aram


e que cúm plice algum , nudez algum a,
ninguém tinha previsto: caiu
(ou foi subindo aquele am or) e, quem diria,
despojou-os de tudo,
erro, m isericórdia, cham a
nada
não ficou nada
o branco
de u m a dança abolida, a m arca heróica
de um a respiração aos solavancos,
a glória seca
de um a fé reduzida ao osso estrito,
o ram o nu
e um grito!

Q uando um a raça inteira se esboroa


sobra um eco gritando
um infinito
à-toa...

E este instante
eu, que o escuto, deixo-o aqui gravado,
aquele rito
perfeitam ente intacto agora,
a rosa mundi,
a labareda que é um a rosa sem H istória.

Lábios que rói ainda


o delírio encerrado,
gem ido que ficou
irrespondido, rouco
coração arrastado
aos limites do fogo,
quem os conhece agora?
M ão aberta onde cair
m ão am orosa
lá vão
dívida infinda
à espera da aurora.

212
Os deuses de hoje

M urm úrio im aculado.


E co s na escuridão.

N O TU R N O À JAN ELA DO A LH EA M EN TO

Toda escuridão tem seqüelas


de longa data: onde ela for,
sua pata deixa-nos aquelas
m arcas morais, o seu penhor,

o seu prenúncio de outro horror,


de outra noite... Aqui, das janelas
da m anhã nascitura, a cor
das delicadas aquarelas

tem subitam ente o sabor


do eclipse im inente! As velas
em palidecem ante o alvor
do dia vencedor, mas delas

fica um rastro, um fum o, um odor


de negror que não deixa esquecê-las.
C ad a vez que voltam , as estrelas
chegam trem endo de pavor.

R io de Jan eiro, sexta-feira,


13 de dezem bro de 1985

PR EC E P E LO DIA SEG U IN T E

Beatíssim a M aria Virgem ,


arnica nostra , m ãe do espírito

213
B runo Tolentino

e de todo princípio e origem,


pequeno espelho do infinito
e parada central da estirpe
deste m undo tão esquisito
para o qual pariste o teu Filho;

a filha de D on a Cecília
está m orrendo igual a ela;
com o m orreu Jorge de L im a
anda tam bém m orrendo aquela
pérola única, a única filha
do poeta m aior cuja sina
ficou sobrante a toda pérola;

e, xará tua, há aquela estrela


que anda cuidando a própria morte
com o cuidou a vida inteira
dos que batiam à sua porta,
com o no ventre da existência
batem os, os poetas mais sórdidos,
em panturrados de carências.

Regadora da urtiga e do nardo,


lírio da terra ambivalente,
jardineira do quintal dos cardos
da poesia, está tudo m orrendo.
Conselheira dos agoniados,
quem sou eu para vir novamente
pedir perdão por todos os bardos,

por essa raça sobranceira


e enviesada, que anda de luto
pelos próprios excessos e à beira
do teu cântaro gargareja um duro
lam ento espúrio; que boceja
um tédio estéril à m aneira
de quem detesta o absoluto

e de tanto falar por ele


acredita só no que usurpa;

214
Os deuses de hoje

os que rabiscamos no espelho


uns m undos cheios da estrutura
do nada, do vazio em pêlo.
Q uem sou eu para pedir teu zelo
por tantas pobres criaturas....

Brilham os com o estrondoso brilho


dos festivais e, não obstante,
m orrem em público nossos filhos,
nossas mães e nossos amantes
os mais ternos; eternos farsantes,
nossas idéias são brilhantes
com o o carvão de pedra em pilha,

aquela pilha de carvão de pedra


a que tentou certa m anhã
subir, subir, doido de pedra,
o triste herói do Leviatã
de Julian G reen, que a paixão cega
em purrava e acabava no chão
com o a prole de toda paixão...

A mortalidade moral
m ata mais que faca e fuzil
no território nacional;
de ponta a ponta o m eu país,
cada dia mais infantil,
m ata a si m esm o com ardis,
com imposturas, num m arasm o igual

às diabruras e penduricalhos
da pior africanização;
com o u m a colcha de retalhos
que não tapa mais nada, o chão
de derrapantes assoalhos
deste país sem direção,
é sacudido pela m ão

do preterim ento e do emLuste


quando a noite mais um a vez,

215
B runo Tolentino

com o a dissonância na acústica,


cai das alturas com o um susto,
um pesadelo a mais, talvez
um a oportunidade... E o que custa
parar um m inuto, dois, três,

e refletir, orar, ou ver,


ver simplesmente o que fazemos
da raça inteira, de nós m esm os?
M as não: a cada anoitecer
sacudimos pelos extremos
a toalha em farrapos que demos
pelas migalhas do poder

ao banquete dos fratricidas,


dos cam balachos, dos abortos,
o desfile nas avenidas
de m achos-eunucos e outros
fantasiados pela vida,
de cabeça pra baixo na ida
sem volta ao festival dos porcos.

E enquanto isso m orrem , m orrem


filhos e m ães, irmãos no escuro,
órfãos de sonhos e de porres,
m orrem o passado e seu futuro,
m orre tudo e ninguém socorre
a arvorezinha atrás do m uro,
ninguém colhe o fruto m aduro,

a m ão do país que se afoga...


Q ue pantanal é esse nosso
em que é impossível dar um passo
sem afundar, sem que a piroga
vá desaparecendo num poço,
um baldezinho cheio de ossos,
um vazio pendurado à corda

num balanço de enforcam ento?


Q u e m ultidão, que gente é essa,

216
Os dosses de hoje

sem inua, as m ãos à cabeça


ou no bolso alheio? U m a gente
que estraçalha os filhos sem pressa
num ritual de alheam ento
até que ninguém mais os conheça!

Todos são teus filhos e penso,


neste escuro dia seguinte
ao mais perfeito nascim ento,
penso no teu rosto sucinto,
qu e é a perfeição do pensam ento
am parado só do infinito
e contem plando cada berço.

Afoita os teus olhos impecáveis


para nós, nessa difícil volta,
no chão derrapante da gosm a
das últimas ilusões verbais;
o com eta voltou, anda à solta
a cauda do com eta de H alley
e a m inha gente, com o a próstata,

anda caindo e se iludindo,


desam arrando a últim a corda
que ainda a ligava ao Santo Espírito.
Q u e havem os de fazer nessa corda
bam ba? Perceber que caím os?
O u inventar outras mixórdias,
outras licenças e outros ismos

para fingir que não m orrem os


não, que não m atam os nossos filhos,
nossos grãos, que era tudo assim m esmo
para sempre e desde os princípios...
Q ue princípios, m ãe de D eus, nestes ermos
lupanares de precipício
resgatariam tantos erros?

Já estava tudo no Evangelho.


M as no Evangelho tu pouco estás,

217
B runo Tolentino

e foi talvez por isso que o velho


conselheiro do símio sagaz
conseguiu que ele lesse no espelho
aquele texto, ó perverso conselho!
N o espelho tudo se lê para trás...

Só tu és com o nós e o eterno,


pobre M aria Auxiliadora,
e eu, desconfiado do m eu verbo,
confio em ti, eu, sombra absorta
gem endo à porta da caverna
com a nostalgia de ir-m e embora
deste aqui e agora de merda!

M as não, não m e vou mais assim,


escorraçado um a terceira vez
pelo espetáculo de um país
que pouco ou nada tem a ver
com aquela torre de que eu fiz
a aparição para viver
decepado pela raiz,

m as ancorado num contínuo


visionário e no entanto real
com o o chão em que eu andei m enino1
Planto a m inha torre ancestral
aqui m esm o, agora mesm o! O signo
da sobrevivência moral
de um a raça, de um povo tão digno

quanto equivocado, e te imploro


com o um atrevim ento de orgulho
e de esperança, um pequeno coro
de solitário, um m eu entulho
na enxurrada, no vácuo: choro
para que ouças um m urm úrio
mais puro, e nos dês teu socorro1

Socorre o pai, am para a filha


e, unica stella, consola

218
Os deuses d e hoje

o João e a herdeira de Cecília;


depois am ordaça essa abelha
e esse falso zangão que à orelha
de u m a raça zum bem estribilhos
que só adoram os quando te calas.

Transform a o m eu país, Senhora


das súbitas transfigurações,
ó Aparecida nos porões
em que torturam o hom em e a aurora,
ó peregrina entre as visões,
ó negra, ó branca, ó mediadora
das grandes reaproximações,

escuta-nos, m ãe de Jesus!
O rapro nobis, vem a nós
com o estavas ao pé da C ru z
à hora sombria, o instante atroz
em que se ouviu aquela voz:
“Por que m e abandonaste...?” A luz
nos abandona, estamos sós

terrivelmente, mais a culpa


que temos todos deste horror...
Q ue fizemos de nós, ó Mística,
ó Rosa Rústica, ó penhor
da salvação à hora última,
advogada ante o Senhor,
vem a nós, fala-nos, que a acústica

da velha catedral em ruínas


ecoe outra vez com teu nom e,
tua voz! Q ue os farrapos do hom em
que se devora e não term ina
o horrendo banquete da fome,
se reúnam em ti, m ãe-m enina
de todos nós, os que mal somos

os leprosos mal-agradecidos
que não retornaram ao teu Filho

219
Bruno Tolentino

depois de curados... Perdidos,


desviados e maltrapilhos,
retorna a nós, com o do exílio,
velhos bondes em busca dos trilhos,
voltamos tantos iludidos...

N ós, os m utantes, nós, os idólatras


das lucubrações orgulhosas
do encolhido intelecto, esse alcoólatra
que se embebedou de paródias.
A tua inteligência da m orte
é o único modelo da nossa.
O mais é a m iragem do apóstata.

R io de Janeiro, 26/12/1985

D E ARMAS E BAGAGENS

Vou viver na orla da esquizofrenia:


de um lado o universo,
do outro a Bahia.

Ah, ser com o o verso


que essa gente escreve
no sangue,
no m angue
desta vida breve...

Viver assim, de leve,


sem ligar pra nada,
sem querer mais nada,
sem pagar entrada
no vago universo,
a esperar que anoiteça ou que am anheça.

220
Os deuses de hoje

Péssimo hábito esse de viver


com tudo o que eu vivi
m etido na cabeça
que nem capuz de monge!

B em sei que hei de viver com o vivi


até hoje, de longe.

A h, mas se pudesse ser perto daqui...

REIN CID ÊN CIA S À BOCA DA AURORA

E lá vou eu de novo, diacho!


Mas vou ao menos desta vez
pela m elhor das razões, eu acho:
nasce-m e em território inglês
um filho francês; nasce m acho
e vai falar um português

mais enviesado do que o m eu!


Vai falar mais adoçado ainda
porque a voz da ninfa que o brinda
(Vamos ter um filho, escreveu,
por volta de abril...) é tão linda
quanto um eco do camafeu

que Paul C ézanne desenhou


com libretto de Arnault Daniel
m usicado por D arius Millhaud...
C oitado do m eu Raphaël!
Porque, é claro, ela já o batizou,
ele já existe no papel

com o na carne... E lá vou eu embora


sem ter feito nada de bom
deste lado do m ar; o tom
com que abordei N ossa Senhora

221
B ru n o Tolentm o

pouco antes de cair fora,


com o a fúria perpetrada ao som

de lam úrias e ressentimentos,


se tem o travo da paixão
que m e acossa em certos m om entos,
não tem o respeito do chão
de que m e vêm seiva e clarão
anim ar tantos movimentos

da sinfonia inescapável.
N ão deveria ter falado assim
de um a terra inafiançável,
é verdade, mas que faz em mim
o que faço de m elhor: ruim
que seja, d á-m e o que tem de dável,

d á-m e versos, ritm os, gritos


de apavorar um papagaio,
cristas de galo nos balaios,
nas roças que bordam infinitos,
e copas que oscilam em m aio
m as não soltam as folhas... Benditos

os que ficam porque deles será


reino sem reis nem ditadores,
as ruínas de que nascem as torres,
o futuro incerto, o alvará
das m adrugadas que lhes dá,
ou bem N ossa Senhora das D ores,

ou o deus m oreno e brasileiro,


o que não inventou a quadrilha
descendente do deus açougueiro.
E le , que nos brindou a Ilha
de Vera C ru z e em desespero
viu m udarem -lhe o nom e, da quilha

deste barco em que vou de volta


ao m eu exílio desnecessário,
m anda-m e agora a Sua escolta,

222
Os deuses de hoje

Seu belo bando perdulário


de bênçãos, Sua m ão que solta
m inhas asas de um calendário

com data m arcada ante um berço.


Q uando nascer m eu filho, quando
souber da missa mais que um terço
este país que ando deixando
e deixando, este vasto universo
que andam virando pelo avesso

h á de ser o m esm o, e no entanto


há de ser outro. Porque a coisa m uda
devagarinho. Porque o m anto
de N ossa Senhora da Ajuda
abre o cam inho. Porque ram o de arruda
tem um doce perfume, um encanto

indelével com o o doce acento


da estrangeira m ãe do m eu filho.
H e i de pôr fim a tanto exílio,
a tanto inútil sofrimento,
um dia, dentro em breve. O vento
que põe o sabiá no trilhos,

entre as palmeiras paralelas,


acom panhou-m e a vida inteira,
com o agora, com a costum eira
promessa de um m eneio, daquelas
doçuras da m orena à beira
do berço, e depois das janelas

para dizer mais um adeus.


Adeus por ora, m inha pátria,
coleção dos disparates meus!
Sai outra vez pela culatra
o disparo do luar de prata,
m as um dia, com a graça de D eus,

223
B runo Tblentino

vais acertar e, claro, eu também.


Até breve, m eu m orenaço!
E sp era-m e outra, o m eu bem,
e dentro em pouco outro estilhaço
dos teus obuses, do am or que m e vem
todo de ti, com o um cansaço.

Mas por enquanto repousemos.


D eixem os ao vento do largo
os palmeirais que já não vemos,
os sabiás e o eco am argo
destes versos à proa de um barco
mais u m a vez entre os extremos

e a falta de remos seguros.


D eixem os tudo isso agora
por conta de N ossa Senhora
e confiemos teus apuros
e os m eus aos desígnios futuros
de D eus, que nos deu a pletora

de harm onias que somos e damos,


com o milionários mendigos,
aos am igos com o aos inimigos.
Voltaremos, tu e eu, os ramos
tropicais não secam , os antigos,
perenes e provados ditames,

dizem -nos há séculos isso:


voltamos de longe, voltar
é nossa vocação de noviço,
e a peregrinação o serviço
qu e m elhor sabemos prestar.
Por enquanto demos tudo ao mar,

ao deus m arinheiro, a esse misto


lusitano de céus e abismos
que C am ões nos conta que abrimos
e povoamos para o Cristo.

224
Os deuses de hoje

Adeus, terra m inha. Teus cimos


confúndem -se à terra que avisto

dentro de m im . Levo os olhos abertos


e salpicados pela luz
que aprendi contigo, os concertos
de cuíca e tam borim que pus
nos m eus versos, meus pobres enxertos
no tronco, entre os braços da C ru z

que carrego com igo ao deixar-te.


Porque em nom e do Pai, do Filho
e do Santo Espírito, a arte
de te am ar é arte de exílio,
e eu cum pro apenas m inha parte
ao can tar os divinos auxílios.

N /M M arabá, 1986

O CEN TEN ÁRIO

M anuel, m eu santo bravo,


quisera levar-te hoje
um a braçada de cravos,
m as não sei teu endereço;
ou sei, mas não é possível
virar tudo pelo avesso
e em brenhar-m e no invisível
por onde o visível foge.

E assim, sob o vento antigo,


na primavera que sopra
outra vez sobre as tulipas
que enfeitam a velha Europa,
p onho-m e a falar sozinho,
e em bora fale com as ripas

225
B runo Tolentino

de um cercado de m oinho
sinto-m e a falar contigo!

Sinto falta das palavras


que ouvia da tua boca,
da voz que simplificavas,
língua essencial e pouca,
tu que sabias que o eco
precisava do silêncio
para se despir do século
e im itar a voz do imenso.

Confesso-o: sinto saudade


sequer de andar ao teu lado
(tu sempre apressado e meigo,
eu sempre m eio atrasado),
mas de ver-te andar na rua...
Para m im , m eu santo leigo,
a som bra de um a cidade
ficou pendurada à tua.

É verdade que hoje em dia


penduram -na sem protesto
à pior selvageria,
e ainda assim sinto-lhe um resto
de harm onia, aquela música
que tornava um a cidade
recanto teu e da m usa,
lugarejo, confraria.

M udou m uito a paisagem,


os tempos m udaram os hábitos
e não fazem mais o m onge,
mas revejo-m e de longe
atrás dos teus passos rápidos,
com o se atrás de nós dois
já cam inhassem os larápios
que só viriam depois...

226
Os deuses de hoje

M as qual! Todos dois ausentes,


é m uita im aginação
subir a rua da G lória
lado a lado, que a m em ória
m istura-se m al com a vida,
quanto mais com a m orte! O u não?
O u somos sempre os parentes
dos mendigos da avenida

que se ch am a solidão...?

Amsterdam,
19/4/1986

POST-SCRIPTUM PARA
FR ÉD D Y BLAN K

E m nom e da língua e no meu


trago-te a rosa da hom enagem ;
fui cortá-la à m elancolia
e é estranham ente impessoal,
m as cheia daquela saudade
solene e sobrenatural
que era o tem pero da paisagem
(não lembras?) da bela cidade
em que o poeta concebeu
seu doloroso Carnaval.
Talvez sem nenhuma alegria
m as aqui e agora imortal.

227
B runo Tolentino

DISCURSEIRAS E FAXINAS

Volto não sei bem p o r que acerto


entre eu m esm o e minhas ilusões,
mas, no m eio de tanto aperto,
entre os trancos e os cachações
que a alm a leva à toa, converto
em m otes, glosas e refrões
tudo o que ouço ao chegar perto
de u m a cornucópia de anões.

É difícil saber ao certo


qual fossem as inclinações
que fizeram o rei D agoberto
vestir pelo avesso os calções;
é algo mais fácil ver de perto
nossas próprias disposições
a reduzir-nos a um deserto
e construir tubulações

no sentido inverso ao aperto


em que m etem os os colhões.
E z ra Pound redescoberto
em augustíssimas lições,
im aginem -no, m eio incerto,
seqüestrado entre dois paspalhões,
mas pagando para ver... Q ue aperto
entre nossos doutos bufões!

Se atravesso um lugar deserto


tenho dessas alucinações...
Seremos m esm o os trapalhões
que m ostram os ao m undo, o enxerto
da parasita no concerto,
ou desconcerto, das nações?
N ão sei, mas povo tão esperto
m erece ler meus palavrões...

228
Os deuses de hoje

II

P or outro lado, deparei ainda agora,


pouco antes de dobrar a esquina
aqui de casa, com o um a senhora
ocupadíssima a esta hora,
esta hora quase m atutina
em que os vadios vão-se embora,
a varrer a calçada lá fora,
entre a casinha pequenina
e os primeiros tremores da aurora.

Tropecei na vassoura dela


e notei im ediatam ente
um a outra figura à janela,
ocupada tam bém ; tinha à frente
várias escovas e um a panela,
e esfregava diligentemente
um a vidraça; sorriu-m e, na dela,
mas nem por isso indiferente.
Confesso que caí da sela,

que perdi m eu Belerofonte


ou m eu Bucéfalo de vista:
ali estava, lustrando o horizonte
de um país acéfalo, imprevista
e renitente com o a fonte
no escuro, u m a gente na pista
da aurora, servindo-lhe de ponte,
a que a cada m anhã reconquista
seu lugar na H istória. E desmonte

ou m onte quem puder, na esteira


de discurseiras e desmandos,
a brava gente brasileira
acorda e varre, vai limpando
a cara, a janela, a soleira
e as calçadas de casa, e quando
passa o poeta encontra-a à beira

229
B ru n o Tolentino

do escuro, varrendo, varando


a noite ou lim pando-a, à m aneira

de quem desdenha o precipício


que lhe deixaram com o herança.
Aquele rosto de criança
atrás da vidraça ao início
de mais um dia, na certa difícil,
derrapante, aquela cara m ansa
e confiante perturbou-m e o vício
de elegíaco sem esperança
com livros publicados na França

e restos de sotaque inglês.


V inha pensando num soneto
que dissesse, não o que lês
mas o desencanto correto
das alm as mais finas, o preto
nos brancos da H istória, talvez
do pensam ento: nada de concreto,
arabescos ao gosto discreto...
M as não deu certo: desta vez

tropecei sem querer na vassoura


que varre a honra do país,
na escova que a esfrega e redoura,
e de repente algo m e diz
que a raça é u m a batalhadora,
que cada poeta é o aprendiz
de seu povo anônim o. Fiz
estes versos à boca da aurora
e agora vou dorm ir feliz.

230
Os deuses de hoje

A DÁDIVA

João Cabral de M elo N eto


enviou-m e um a vez, num velho
exem plar d 'O Cão Sem Plum as,
um recado-dedicatória:

" A fu la n o de tal, poeta


tão cristalino nos idiom as
em que escreve, este rio espúrio
e a adm iração do seu espelho. ”

Fiquei pasm o, mas gostei, é claro.


Pouco a pouco, depois da pressa
com que saboreei o regalo,
fui-lhe decifrando a malícia:

dádiva assim, por coisa rara


e fina, m uito menos fala
do que cala: todo livro tem preço.
C o m efeito, cada espelho é o início

da pior contem plação estéril


que a jovem alm a inadvertida
confunde com seus solilóquios,
e o poeta do Capibaribe,

ao tratar com o coisa séria


m eu H erm es trimegisto e o estoque
transidiom ático instruído
nos ludismos de L aio e Políbio

que constituía a minha obra;


aquele poeta severo
e exigente, que m e admirava
com o o espelho adm ira a presa,

com o o sino adm ira o dobre


e o fuzil adm ira a salva,

231
B runo Toleniino

isto é, com a m esm a frieza


com que à cara da primavera

o inverno cospe o últim o escárnio;


o poeta pernam bucano
que conhece tão bem as agruras
da literatura e do exílio

m andava m e dizer que a carne


que apodrece, rio-cão no escuro,
m erece mais que as maravilhas
do verbo ru m o aos subterrâneos

a que qualquer inclinação a inclina.


Q uero crer que aquele vate agreste
aludia à m orte que vive
no gesto orgulhoso do esteta.

E , sem poder m udar o signo,


fui m udando, com o o cativo
m uda o cárcere por completo
e o que antes era estreito e triste

vai-se revestindo do hábito


de viver com as próprias paredes,
nas concordatas da alvorada
que nunca falha ou se repete.

A poesia é um celibato
perigosam ente m arcado
pelo prolífico, onde o poeta
mais refletido ainda se perde:

nas profusões do seu reflexo...


Se não tiver quem o admire
com o olho frio, gago e vesgo
de quem , por não ser justamente

o seu mestre, côncavo ou convexo,


seu fiador, seu alter ego,

23 2
Os deuses dc hoje

prefere-lhe sempre o alvo à mira,


por exótica ou grandiloqüente.

Se não tiver quem o exam ine


em exam e de segunda época,
com a im paciência do caipira
que prefere a elocução da seca

às enchentes que, mal term inam ,


o fio do Capibaribe
corta logo... Foi prim eiro da boca
do M anuel, poeta do beco,

que ouvi o elogio-conselho


que o Joaquim (tam bém do Recife)
repetiria à sua maneira.
M atutei-o anos e anos

até a adm iração de um espelho


em que nunca m e refletira...
M udei? M elhorei? O u m e engano?
Sinal de menos m uda a cifra?

PO ETA OPERADO, À SUA MANEIRA

Q uando ele partiu de m aca,


com o em direção à m orte,
com o se ele fosse a faca,
não fosse ser nele o corte,

parecia um punhal posto


dentro do lençol-bainha:
o cabo seria o rosto,
a dura expressão que tinha.

233
B runo Tolentino

D e um a dureza tão fria


que a carne lembrava o osso,
osso-cara com pescoço,
prestando-se à fantasia

com o osso-cabo, de entalhes,


trabalhado a sangue-frio,
sem que por isso atrapalhe-se
a sensação de vazio

com eçando onde term ina


o cabo, ou seja, a cabeça
decepada pela esquina
ao olhar que ainda a conheça

com o vestígio de gente;


conquanto já cabo espesso,
se bem já quase arremesso
da punhalada iminente.

Ia ser desembainhado
mais adiante, esse punhal,
ser exposto e confrontado
com o bisturi, seu igual

talvez não, mas seu parceiro


no com bate desigual
entre o m etal verdadeiro
e a im itação do metal.

Prim eiro pensei no cacto,


mas logo, por extensão,
na lâm ina sob a m ão;
se a m orte rom per o pacto

(pensei) entre dois irmãos,


há de ser desafiando
e não se afiando as mãos.
E o sangue foi-m e voltando

e (um pouco) a respiração.

234
Os deuses de hoje

A M EDALHA

Prestaste um pequeno serviço


ao hom em de bem,
o hom em da rua:
não correste atrás de ninguém ,
ninguém pode dizer que a tua
não foi u m a vida exemplar.

E n tre os muitos exemplos que deste


retenho sobretudo isso,
m as desconfio que talvez
não sujasses o poem a: o teste,
verso a verso, é não se sujeitar...

O uvi-te dizer certa vez


que revolução não tem data
nem forma prevista ou exata
ou definida.

M as a de Ferreira Gullar,
a revolução que ele fez
e vem fazendo há tantos anos
por todos os que tanto a sonhamos,
essa sim, teve data e tem
a form a e o feitio de quem
entregou ao século e ao hom em
o seu sonho, o seu desengano,
a sua vida
e a lim pa m edalha de um nom e.

235
B runo Tolentino

OS SANTOS DA LU Z DA PEN H A

1. A V I S IT A Ç Ã O

L au ra L u z , pecadora arrependida,
cunhada de Isabel, era um a chata:
resolvera fazer um a visita
incaridosa e casta a essa cunhada
que além de ainda viver a m esm a vida
que ela, L au ra, levara, a vira-lata
a cham ava de hipócrita bendita!
L au ra, im paciente, se evangelizada,
não estava pra aquilo e dentro em pouco
poria cada 60 isa em seu lugar!
Zacarias, o santo do pau oco
seu irm ão, era o corno titular
da C ircu lar da Penha: ou estava louco
ou sabia que o pai era o Edgar...

2. O A V IS O D O A N J O

L á ia a ilum inada L au ra L u z
(que não pecava mais) pela Avenida
Brasil, com o Instituto Oswaldo C ru z
à esquerda, planejando essa esquisita
contrafação da Virgem que, Jesus
no santo ventre, foi com padecida
visitar a parenta, e eis que sus!
derrapa a lata velha da bendita
e ela dá com os costados no outro m undo
(ao lado de um chofer de lotação
parecidíssim o ao T ião M edonho!).
E agora? Purgatório? N o profundo
entender do Senhor pecado ou não?
L au ra acorda suando: eu, hein, que sonho!

236
Os deuses de hoje

3. O S R E C É M -N A S C ID O S

Pouco depois, no rancho da família


Santos da L u z , um a Isabel tão prenhe
de pecado m orria dando um filho
ao Zacarias, mas que toda a Penha
dava ao outro... O m artírio tem um brilho
inesperado: o angélico desenho
da Providência fez daquela filha
do sofrimento o que de toda lenha
o fogo faz: fum aça que se eleva;
mas ela foi subindo com o o fumo
do incenso perfum ado e quanta treva
a esperava esvaiu-se: D eus perdoa.
L a u ra é que não, achava aquilo o cúm ulo:
"A santidade da m ulher à-toal ”

4. A S A L A D A E A F A M ÍL IA

E o Batista cresceu sem m ãe, com tia


e dois pais: era a cara do E d gar
e a alegria do velho Zacarias;
que, surdo de ternura, a cada olhar
via a m ãe no m enino e às vezes via
a m aldade do m undo sem ligar.
O guri adorava-o e com o os dias
passam logo e o desfecho ia chegar,
o viúvo mim ava o seu garoto,
com o de resto a Penha inteira. E quando
L au ra, m adrinha dele, era m adrasta
demais, ele caçava um gafanhoto
e punha na salada... O h santo escândalo!
E la pensava que era um a barata...

5. O PA RA CLETO

E um dia o rapazinho deu no pé.


Beijou o pai caquético, benzeu-se

237
B ru n o Tolentino

e sumiu. T ia L au ra tinha fé
que ele voltava, tinha fé em D eus,
mas D eus tinha outros planos para os Seus.
A g e n te nunca sabe quando é
que D eus há de pintar e um dia adeus
vidinha, o dedo D ele pinta e até
que a turm a dê por isso baixa o Santo
(Espírito!) e é aí que a coisa esquenta:
o Batista sumiu da Penha e enquanto
o povo com entava, diz-que longe,
lá no sertão onde prateia a lenta,
a velha lua, se fizera m onge...

6. A D IÁ S P O R A

T ia L au ra foi ver! C om prou passagem


no Expresso, fez a m ala e disse: “espera
que eu trago esse pilantra, com miragem
ou sem m iragem, Z acariasr Zero
à esquerda, desconfiado da voragem
do m undo além da Penha e suas feras,
Zacarias benzeu-a e, por quem eras!
D on a L au ra m andou-se. E só bagagem
este m undo, a criatura é só rascunho;
o artista não term ina o Seu desenho
sobre o papel de em brulho do tam anho
das doideiras do corpo; o corpo é a alcunha,
o nom e é E le que dá, mais tarde, venha
o deslumbrante epílogo do sonho:

7. A S T R A N S F I G U R A Ç Õ E S

Zacarias m orreu na Circular,


ou melhor, foi subindo essa espiral
que transform a o habitante e seu lugar,
que os vai m udando até tocar o um bral
da transfiguração angelical.

238
Os deuses de hoje

L au ra seguiu buscando o limiar


da luz que ainda imitava, mas tão mal,
que um belo dia, ao ver surgir do ar
um brilho inteligivelmente novo,
lenta baixou os olhos e apagou-se.
O beato Batista e a voz do povo
m isturaram -se, e diz quem não tem fé
que enfim casou com um a m ocinha, doce
com o a m ãe, M adalena ou Salomé...

W B. YEATS: O FIN A L D’A TORRE

São horas de com por m eu testamento


e escolho uns varões que estou vendo
subir, escalar o borbulho
do arroio até que a fonte salta,'
os que cedinho, antes do claro
que precede o primeiro sol,
vejo lançar am plam ente o anzol
das encostas gotejantes: declaro-os
os herdeiros do m eu orgulho,
da soberba que herdei de gentes
que não desciam de seus altos
para atar-se a C ausa ou Estado,
escravos nem da cusparada
do tirano nem dos pobre coitados
em quem cuspiam ; os descendentes
da raça dos Burke e dos G rattan,
que doaram , quando fácil seria
recusá-lo, um orgulho eu diria
equivalente ao da m anhã,
da luz m atinal insensata
e solta; um orgulho afim
da com ucópia fabulosa,
ou da torrente extem porânea

239
B ru n o Tolentino

quando o últim o arroio secara;


ou ainda: daquela hora
em blem ática de todo fim,
quando cabe ao cisne fixar
na luz que estremece o olhar
e flutuar sobre a água rósea
entardecida e derradeira
e ali despedir-se, cantar.
E declaro m inha fé sobranceira
rindo-m e do m undo de Plotino
e proclam ando ante Platão
que a m orte, a m orte e a vida, não
existiam, nunca existiriam
sem o am argo desatino
da alm a hum an a que inventa, tira
tudo de dentro de si m esm a
e com põe sozinha seu todo,
tudo aquilo: sol, lua, estrela,
variações de sangue e lodo,
e mais! com o se não bastasse,
acrescente-se que não só se nasce
e m orre, mas que o hom em refaz-se
e ressuscita e sonha, e de tal m odo
sonha que acaba por criar
seu Paraíso translunar.

Preparei, redigi e assinei


m eu tratado de paz, que equivale
a equilibrar certa distância
recíproca entre o pouco que sei
e as coisas mais sábias da Itália,
mais as pedras cheias da elegância
orgulhosa e nobre da G récia;
pus certa distância discreta
entre a im aginação do poeta
e as coisas da m em ória, do am or
à som bra das ninfas em flor,
e aqueles mosaicos de engano,
os cacos todos de que ele,

240
Os deuses de hoje

o hom em , faz um sobre-hum ano


sonho sem elhante a um espelho.

L á no alto, nos vãos, as asas


e os gorjeios, juntos, sozinhos,
vão em pilhando palhas de ninho
e quando com pletam a casa
a ave-m ãe senta-se em cim a
do aconchego que fez e cism a
até que nasçam os passarinhos.

E u deixo juntos m inha fé


e m eu orgulho, ponho-os ao pé
desses jovens que vão subindo
o rio que desce as encostas
da m anhã, para voltar-lhe as costas,
lançar u m verm e à correnteza;
porque eu era, ou seria, um desses,
não fosse que este sedentário
ofício m eu foi-m e partindo
e, em pedaços, cada vez mais vário,
foi-m e dando ao que desse e viesse.

D aq u i em diante com certeza


irei eu m esm o fazendo, esculpindo,
m etendo a alm a na gaiola
arqui-sábia de algum a escola,
até que a decadência lenta,
mas certa, do corpo, das veias,
pondo-m e à prova leve-m e às cheias
impertinentes do delírio,
da decrepitude total,
ou do que mal venha: o martírio,
a m orte, sobretudo a de amigos,
a desaparição do real
que brilhava nuns olhos antigos
e nos cortava a respiração!
Até que tudo aquilo não
venha a ser ou parecer senão
um céu nublado, nuvens apenas

241
B ru n o Tolentino

num horizonte que se apaga,


ou um trinado que divaga
entre as sombras da últim a cena.

RESPONSABILIDADES

C o m o eu tam bém ando chegando perto


dos m eus quarenta e nove, agora o leio
mais responsavelmente e busco um m eio
de fazer da lição o uso mais certo,
ou m enos parecido com o enxerto
que se vive a extrair ao canto alheio.
E le parou a m eio de um deserto
e com eçou de novo o seu, tão cheio
de ecos ancestrais, que os m isturou
sem hesitar ao que encontrou no chão.
E u tenho os meus tam bém , e com o sou
nisto ao m enos seu filho e seu irm ão
tenho e não tenho pátria! escolho o vôo
de volta à terra, aos frutos da estação.

II

Segundo o últim o \eats, o acordado,


tudo o qu e não é D eus, se consum indo
no incêndio do intelecto, é u m repentino
holocausto de sombras. Sendo o bardo
das fantasmagorias, do destino
com o um fardo im oral, ou com o um dardo
na garganta do canto, achava lindo
um cortejo no ar. M as seu cuidado
ao ir-se construindo aquela torre,
foi que a alm a subisse a escadaria
enquanto, solidário com o que m orre,

242
Os deuses de hoje

o corpo fosse com o a alvenaria,


um gritasse com o outro e a poesia
saísse ainda mais sóbria desse porre....

III

Envelhecer ouvindo a gritaria


entre os inseparáveis inquilinos
foi seu m étodo, sim, mas a harm onia
que havia de fazer de dois destinos
tão contrários e graves tinha os sinos
e os obuses no m eio e, quem diria,
daria ainda mais certo que a agonia
da poesia, essa idéia dos cretinos,
cujo azedum e vem desde seus dias...
E le, que riu por últim o do acinte,
fez do que ouvia altas alvenarias,
a língua deste século, e o seguinte,
o vinte e u m , vai dever tudo ao vinte
se ainda pensar, fizer e ler poesias.

IV

E le era o pensador e o apaixonado:


sem tréguas na em oção e sem quartel,
oscilava entre o abismo no papel
e a investida no ar. T in h a o cuidado
de interpor entre os dois esse outro lado
que é a vida, seu ritm o de tropel,
nunca o da debandada ou do bailado,
a fuzilada com o carrossel...
G irar girava! Fabricou-se um term o,
um a nova noção — gyre — e pôs
seu m undo a rodopiar, para depois
(depois de tudo) fabricar-se um erm o
e erigir sua torre àqueles dois:
a alm a pensadora e o corpo enfermo.

243
B runo Tblentino

Sua cosmologia, sua estética


corajosa e encantada, se lunar;
seu heroísm o, não de anacoreta,
de velho equilibrista; seu solar
m al-assom brado pela estranha réplica
da eterna escadaria circular
do florentino, usavam com o m eta
(ou pretexto) o difícil patam ar
do aqui e agora, mas sem hesitar
preferiam a ascensão com o lugar,
porque a alm a é um a dor peripatética,
a anunciação sem anjo, a virgem cética
que o desolava, a encarnação no ar,
a últim a teimosia. Requiescat.

VI

Vou fazer o seguinte de hoje em dia,


tenho pensado há m uito tem po nisso:
dado que herdei um país tão postiço
quanto o que ele agüentou, a confraria
do abutre com o jum ento, a poesia
vou deixá-la habitar esse cortiço,
essa falsa favela, e nem por isso
vou consentir que seja o que seria
ou teria virado sem \feats.
Vou lhe exigir que seja o que ele quis
e conseguiu fazer de seus enfeites
e suas fantasias: a raiz
da gritaria interior, deleites
na torre entre os escombros de um país!

VII

A h, o país dos poetas! Q uanto mais


improvável aqui, no pobre agora

244
Os deuses de hoje

dos desastres morais, quanto mais fora


das probabilidades do fugaz,
quanto mais sujo, mais doente, mais
esquecidiço, quanto mais dem ora
a aparecer esse país, a hora
de defender-lhe as torres ancestrais,
as coisas que fundaram esta linguagem ,
ou a replantaram aqui nesta paisagem
insultada, mas certa do que é,
a hora de erigir-se algum a fé
faz-se mais clara e cheia da coragem
que obriga a não ceder, a fincar pé!

V III

W illiam Butler Tfeats, não irei


a Pasárgada algum a, ou visitar-te
outra vez em Sligo: m inha parte
de réprobo, de autor fora-da-lei,
de degredado de u m a raça, eu sei,
era bem divertida, mas a arte
republicana é a da linguagem , e o rei
ou o ditador só m orrem de um enfarte:
o que vem da arruaça, quando assum e
a graça da poesia, o único estrum e
que tapa formigueiro... O vigarista
(foste tu que o disseste) tem no artista
seu pior inimigo: há quem resista
à facada do canto com o gum e?

IX

Vou ficar por aqui, nesta arruaça,


porque ela se parece ao m eu país,
com o o teu parecia-se à desgraça,
à fome, à fuzilada... Algo m e diz
que por aqui sou mais teu aprendiz,

245
B runo Tblentino

da tua arte, a arte do que passa,


desm orona-se e serve de raiz.
A raiz da canção, daquela graça
de cantar, de erigir-se cada torre
no lugar do real. Q ue não socorre
nem seduz, mas insiste e insiste até
fazer da coisa hum ana o que ela é.
Somos assim aqui tam bém : o porre,
a gritaria, o descalabro... E a fé.

So longl Até um dia destes, Mestre


do ontem e do am anhã, que continua,
que não pode parar. Talvez não preste,
mas se assim for a culpa é m inha e tua,
porque culpa é de todos, não da lua,
do eclipse... A m inha tribo é mais rupestre
do que a tua, é verdade, sai à rua
nua, a cara pintada à m oda agreste
da indiarada abusada pelo resto;
mas não, não q u er dizer que não se entenda
ou não perceba a m entirada, a venda
já não presta, anda em tiras. H á um protesto
cantando p or aqui, com o na lenda
do vilão que, com m edo da encom enda,

trancou-se a vida inteira do hom em honesto...

A ROSA DO POLVO

Tentacular,
não a colheu, abraçou-a,
e m uita gente boa
aqui deste lugar

246
Os deuses de hoje

recebcu-o com aplausos: fora um gesto


fulgurante, de am ante,
diziam -se. D e resto
achavam -se diante

de um fato consum ado...


C ada inocente do Leblon sorria
ao enorm e anim al aquele dia:
refaria o passado,

o m onstro era benigno


e o futuro
o dom ínio obscuro
da besta, cujo signo

era o tem po presente!


A rosa, pobrezinha,
a essas alturas tinha
inconscientem ente

a sensação de ter sido servida


com o um a sobremesa,
e à porta da saída
acum ulava-se um a gente mais surpresa

que assustada, é verdade;


ainda assim
pairava por ali qualquer coisa, a m etade
do inacabado, o fim

interminável do dia seguinte...


E o polvo foi ficando,
afiando os tentáculos no acinte
irrevogável e extensivo, e quando

a boa gente aqui destas paragens


foi m udando de idéia,
já não havia m uita gente na platéia:
os mais selvagens

247
B ru n o Tolentino

tinham todos sumido


e os demais
cultivavam rosinhas nos quintais.
O longo resumido

da epopéia, a versão oficial


da coisa, tinha agora
aquele gosto azedo que demora
a descer pela goela natural,

e m udavam às vezes o discurso


sem que o gosto mudasse.
O polvo, por um passe
de m ágica m udado agora em urso,

em chacal ou em lobo,
publicava o retrato
retocado do fato,
m as entre as redes deste vasto globo

ficava um a impressão
de que a rosa tam bém tinha m udado...
M as não m udara não,
afiançava a garra do soldado

de baioneta em punho,
era a velha m ania da queixa,
do falso testem unho,
e o am e-a ou deixe-a

foi pegando, pegando na rosa


e pintando-a de novo
com aquela tinta am arga e pegajosa
que é o sangue e o suor de um povo.

E assim, recolorida
a cada m adrugada,
a pobrezinha, sempre na calada
da noite espavorida,

248
Os deuses de hoje

cada vez mais informe,


acabou de aprender que algumas vezes
os am antes são deuses,
que quanto mais enorm es

mais duradouros eram.


O polvo-urso-lobo ao socorrer-m e
(diz hoje a coitadinha aos que ainda esperam
que renasça do verme)

despetalou-m e toda...
M as ninguém acredita
que voltem a lhe fazer outra visita,
que sem pedir-lhe a m ão consum em a boda

tenebrosa outra vez.


E ninguém mais cuida da rosa agora,
esquecem , porque querem , que dem ora
m as chega sempre a hora; que talvez

o m esm o noivo venha reclam á-la,


a sua rosa! Até que de repente
parem o trânsito e entrem pela sala
os tentáculos dele novamente,

e cada transeunte,
toda essa gente sem m em ória ou fé,
de repente se espante e se pergunte:
e agora, José?

LÁPID ES PARA M EU PAI


( 6 .X .1 9 1 4 -23.1.1989)

Perdão, meu pai, se fiz a m inha festa


enquanto dem oliam por aqui
a terra que m e deste, essa floresta

249
B ru n o Tolentino

ancestral que serviste e que eu traí.


Pensava m uito nela e um pouco em ti
durante a interminável hora sexta,
o inimaginável frenesi
do burro, do chacal, da velha besta
outra vez em briagada de ilusão.
M as não voltava aqui. N ão vim sequer
receber prêmios, enterrar irmão,
despedir-me de ti... M inha m ulher
deixou-m e ao com parar m eu coração
com o teu, dado sem pre de colher.

II

Q u e se há de fazer se o malnascido,
o E saú que am ava m al Jacó,
é u m a espécie de anão desinibido
no circo ao seu redor, m as não tem dó,
juízo ou paciência? Vivi só
porque fiai sempre um m al-agradecido,
um bastardo da vida sem sentido
e fui-m e em bora sacudindo o pó
dos sapatos, que nem a soberana
cujo esposo entregou este país
a um filho bem m elhor que o teu. Mas fiz
tudo o que fiz porque não quis nem grana
nem em ular um M achado de Assis:
preferi sempre lam a a filigrana.

III

Fu i com por por aí m inha verdade


de barro m al-lavado, a m inha herança
a um país deserdado, cuja pança
é metade vazia: a outra m etade
assisti-a engolir a realidade
e inchar-se de ilusão desde criança;

250
Os deuses de hoje

via em torno de m im ambigüidade


e hipocrisia, a única esperança
era fazer-m e outro e ser enfim
tão distante daqui com o de mim.
M as não deu certo. Tudo o que escrevi
cheira-m e a este país que herdei de ti,
não dos gêmeos fatais, um tão ruim
quanto o outro, ambos típicos daqui.

IV

Porque aqui tudo incha ou estravasa,


este país não cabe na m oldura:
o encaixe entorta quando a porta é dura
e quando a põem abaixo sai de casa!
C abra m acho tam bém : engole brasa,
afia faca em tripa, mas procura
papai o tem po todo... E u m a loucura
m al saído das fraldas bater asa
longe de casa, com o ser feliz?
U m descendente de descobridores
quer descobrir seus próprios dissabores
e o tem po todo o lenho sem raiz
de que ele fez um barco prem aturo
tem saudades da terra! E do futuro...

N avegar é preciso, e bem viver


é entendê-lo e jam ais se esquecer disso,
eu sei; mas sei tam bém que sonhei ser
o que não era e fiquei tão postiço
que vim com m edo de aportar... Q uê isso,
m eu rapaz! im agino-te dizer,
mas que se há de fazer, perdi o viço
e a identidade à toa! Sem saber
gastei-m e no exercício de plantar
bananeiras no vácuo e m e envergonho

251
B runo Tolentino

desse vício: ando ainda em pleno ar,


trem ulo com o as flâmulas no sonho,
oscilo entre o real e o enfadonho
e não sei mais quem pus em m eu lugar!

VI

Navegar, navegar o turbilhão,


rodopiar com ele aonde nos leve...
M as voltar é preciso, andar no chão
a que pertence a vida que m al teve
o instante m orituro: dentro em breve
eu tam bém vou cobrar m inha extensão
à terra provisória e em m eu caixão
vou cru zar estas m ãos, a que ainda escreve
e a outra, a que traiu... U m dia aquela
inquieta, ancestral, única vela
no m astro principal, aceita a calm a,
a calm aria baixa, envolve a alm a,
e navegar enfim vai mais além
do Bojador, do amor, do m al, do bem ...

V II

E u quis dizer o m undo e fui dizê-lo


onda p or onda ao oceano aberto,
sempre à proa da nau; m as, m eio incerto
do que dizer de m im , fiz m eu apelo
e enderecei-o à noite, ao pesadelo,
ao am bíguo, ao imenso: andava perto
do vórtice, m eu pai, nuzinho em pêlo,
uivava com o o vento no deserto,
vivia m al... O grande desafio
é voltar e caber no m esm o leito,
correr em casa com o corre o rio,
se esbaldar e m orrer... E u tenho feito
tudo sempre ao contrário, é meu direito,
eu sei, mas m e cansei do m eu fastio.

252
Os deuses de hoje

VIII

Vi m orrer tua filha predileta.


Tentei am enizar-lhe a travessia,
ajudá-la talvez, e não podia:
m al tenho a autoridade do poeta,
certam ente não tenho a da alm a reta,
a tua a vida inteira; noite e dia
à cabeceira dela te pedia
ajuda, inspiração, mas foi-se a seta
na escuridão, e onde há de andar agora?
N ã o quis a C ru z do Cristo, nem por ti
aceitou carregá-la, e não medi
esforços ou palavras. Roga, implora,
insiste mais que eu, N ossa Senhora
consegue maravilhas por aí...

IX

Volto: dizem -te m orto e agonizante


o resto do país... Tudo mentira!
N em tu podes morrer, nem tanta lira
consegue se acabar. O hum ano instante
é um flechaço no escuro, iluminante
porque é o eterno que lhe aguça a mira
até que rasgue o alvo tira a tira:
a criatura atira-se adiante
para que se ilumine a noite escura.
E ste país é barro de escultura
e parece-se a m im , seu aprendiz,
seu desertor e seu cantor! Q uem diz
que o mistério do am or é u m a figura
de retórica apenas, sem raiz?

N ã o fugia de ti ao ir-m e embora,


fugia do futuro. E u sou assim,

253
B runo Tolentino

nasci subterrâneo com o o aipim,


m as ao contrário dele sou por fora
mais branco que por dentro; e m uito embora
a vida inverta tudo e faça um sim
de cada não, inda sou bem ruim ,
anão de circo ainda, até agora
não tom ei jeito e ainda não caibo aqui.
Todos por cá precisam de u m papai
p or ter m am ãe demais: eu tenho a ti
com o a dor de cabeça tem seu ai,
a alm a tem seu corpo e este país
órfão de pai tem M achado de Assis...

XI

Pode ter sido outro o Patriarca,


no entanto o indiscutível pai da raça
foi M achado, coitado: via a m arca
da ambigüidade em tudo o que se passa
por aqui. Por exemplo, a D on a Plácida
é um em blem a da raça, irm ã da Parca
e enteada da vida na fuzarca...
É que o diam ante interior, sem jaça,
mas sem poder de vir a ser semente,
acaba m isturando-se ao poente
e escapando da luz com pé ligeiro...
A ambigüidade engendra o brasileiro,
seus gêm eos não se entendem e um povo inteiro
sonha um papai que o torne obediente.

X II

M as nem M achado foi um a ficção,


nem o são seu Jacó, seu E saú ,
seu Q uincas B orba.... O u eu, ou m esm o tu,
leitor de m aus poetas, a lição
é sobre a ambigüidade da nação
que tem medo de pôr a alm a a nu

254
Os deuses de hoje

entre o Bento, o E scob ar e a C apitu...


C o m olhos de ressaca ou traição,
ó personagens do futuro, é urgente
que façamos as pazes com o presente,
está dando urubu demais na seca,
tem nego aí com fome e a nossa gente
tem a leveza que não teve a asteca:
gosta de andar no ar que nem peteca...

X III

G êm eos desta nação, nenhum de nós,


m eu pai e meus irm ãos, está tão só
quanto acredita estar, nem N h ã L ó-ló,
nem Brás Cubas... Existe em nossa voz
certo Y-Juca Piram a dando nós
pelas costas da raça, e cada nó
une mais E saú ao irm ão Jacó,
o Palha ao Rubião e cada algoz
à vítima da ocasião propícia.
Mas não somos um caso de polícia
nem um caso perdido, somos antes
um povinho indireto: os figurantes
que só entram na peça um pouco antes
da cortina e sorriem com malícia...

X IV

U m povo tão plebeu quanto patrício


confunde um pouco as coisas, e hoje em dia
vem m isturando a H istória e a poesia;
eu fui pegando aos poucos esse vício
e hoje m e exalto e noticio! Indício
de que a coisa vai bem , com o diria
o Conselheiro A cácio... M as que ria
m elhor quem rir por últim o, é difícil
prever por ora com o a coisa acaba:
a indiarada outro dia, veja só,

255
B runo Tolentino

pintou a cara e sacudiu a taba,


m uita coisa caiu e quando o pó
assentar vamos ver... C achorro baba,
late, mas corre, a H istória não tem dó!

XV

M as agora descansa, agora trégua


de bate-papo circunstancial,
falemos sério agora: o pessoal
anda duro que nem lombo de égua,
m ontar não anda m ole e cabra-cega
já não é brincadeira nacional.
A tribo sacudiu-se e um a ancestral
aquiescência acabou: já não se entrega
a tocha a qualquer u m , tua vitória
é póstum a, m eu pai, mas faz H istória
ao a r livre, na terra a que servias.
Tinhas razão, ainda viria o dia
em que ia ser possível ter m em ória
e vergonha na cara! Q uem diria...

XVI

Q ueria que este neto tam bém fosse


um pouco com o tu; digo tam bém
porque, se não repito m uito bem
teu andar, teu olhar de fera doce,
não te faço vergonha: o tem po trouxe
um a certa unidade ao m eu vaivém,
m eu corpo hoje lembra o teu. Porém
se só recentem ente a carne pôs-se
a confessar o nosso parentesco,
o espírito há mais tem po que te im ita,
e com um certo sucesso: o arabesco
vai virando o desenho, a parasita
tom ando tronco e, entre a textura e o texto,
talvez ande fazendo m enos fita...

256
Os deuses de hoje

X V II

O ra, apresentar prole em cemitério!


Só m esm o neto teu... M as em M ontm artre
apresentei-o a Baudelaire, e a sério!
M inha m ulher am eaçou o enfarte,
já chega de poetas, gente estéril,
dizia ela... E com razão, a arte
é u m a m istura m eio m alasarte
de am bíguo e de inefável, seu mistério
nunca passa da lápide, e é tanto
ou mais brutal que ela: cabra m acho
à procura de pai vai dar no canto
e faz poesias, queira ou não, mas acho
que chega de elegias por enquanto,
há um país que é preciso pôr abaixo!

CÁ E N T R E NÓS

Vileu a pena? Tudo vale a pena


se a alm a, a alm a, etc. & tal...
E n q u an to isso tudo se apequena
e aqui, neste país,
este país que insiste
em caber num dedal,
quem m e garante
que em hora assim tão triste
um livro assim tão negro encontre a alm a m orena,
brasileira o bastante
para fazer o que ainda agora fiz?

L i em seis horas este livro enorm e.


C u stou -m e quase trinta anos, vinte e nove,
mais uns meses de*muita am olação;
m as li-o todo ainda agora, enquanto dorm e

257
B runo Tolentino

m inha família e chove


canivetes e anões aqui no pátrio chão.

Sinto-m e deslocado;
no tem po em que lavrava
m inha indignação
entre o ritm o e a palavra,
confiava na vida, reclam ava um passado
e exigia um futuro, falava a u m a nação!

M as esta m adrugada não sei...


A inda existe essa luz (com o escrevi um dia)
e eu vou ter dentro em pouco o privilégio
de fazer o café e a m inha prece
um a vez mais com a m esm a fé; depois
eu ou m inha mulher, um de nós dois,
vai levar o garoto ao colégio.

Se ela for vou reler L es Chim ères; mas a poesia


teria um futuro qualquer? Fora-da-lei
lá sabe o que é o exílio, a arte? E por aqui
por estas partes haverá de fato
alguém querendo ler, três décadas depois,
nhenhenhém de poeta, seu retrato
de um paiseco de m arré-m arré-de-si?
Pouco im porta à m anada que se dê nom e aos bois,
mas não devia agradar nada a m im , a ti...

A TO RRE CABOCLA

"And may these characters remain


when all is ruin once again ."
YEATS

E u , o poeta B ru n o Tolentino,
porque nunca m e dei com tiranos

258
Os deuses de hoje

nem com títeres, vivi ao léu,


perambulei anos e anos
em território alheio: inglês,
francês, yankee, italiano
etc. & tal... E talvez
porque cada um faz das suas
e põe a culpa no destino,
por espírito de contradição
resolvi que faria das minhas,
mas que ergueria, e por que não,
u m a torre tam bém ! Dessazinhas
que, só por apontar para o céu,
obrigam a respirar o ar fino
fora de m oda por aí,
o que as cítaras têm de cumes...
Ai de m im , quantos azedum es
teria que escalar assim!
N ão im porta, virei, mexi,
frustrei-m e, arranquei-m e os cabelos
dos ouvidos e dos cotovelos,
e um dia vi que tinha enfim
m inha torre a m eio-céu do exílio,
a promessa feita por m im
a m inha m ulher e m eu filho
antes m esm o de conhecê-los:
a torre unia-m e às entranhas
desde meus tempos de m enino,
eu a erguera em terras estranhas,
entre a de ’feats em T h o o r Ballylee
e a de Rainer M aria em D uíno.

Visitei a de Rilke um a vez


e a de feats mais tarde; um a delas,
não sei qual, tem m uito mais janelas,
a outra um a biblioteca
e um a escada meio sombria
e um pouco estreita; ambas as duas
têm as pegadas de um poeta,
a um idade que nunca seca

259
B runo Tolentino

e altas doses de magia.


M as, ao m odo das obras completas,
achei-as imponentes, nuas
e intratáveis, não com o era a m inha,
palavrosa e plebéia: eram retas
com o a idéia, e de um a nitidez
estonteante para quem
m istura facilmente o bem
e o bem-feitinho. Reconheço o que fiz
com o mais ou m enos feliz,
m as fui feliz fazendo-o, o que basta
a pedreiros da m inha casta,
gente um tanto temperamental.
C om o ao vate de língua alemã,
faltava-me a terra, que tinha
e não tinha, e com o ao irlandês
parecia-m e tarefa vã
cantar para um a tribo ignara,
erguer logo um a torre na cara
de u m a realidade mesquinha,
m as que fazer... F iz aquilo que pude.

A m inha é um a torre mais rude


que aquelas duas, e no entanto,
se não tem a pujança do canto
atávico de um a, e menos
os graves acentos serenos
da outra, tem a dúbia altitude
condizente com os tempos vulgares
e ralos que vivemos: se trem e
e se espelha nas poças, tem leme
e é móvel, vai aonde há de ir
sem medo ou fome de porvir...
M as não tem ilusões. N ã o tem nada
que a engrandeça, não se dá esses ares
que sobem a cabeças medíocres;
já não temos \eats nem Rilkes
nestes tempos banais e extremos,
temos as torres que fazemos

260
Os deuses de hoje

de escombros sem nenhum a im portância.


M as, com idêntica elegância,
temos um a coisa comprada
com a coragem do brasileiro:
temos fé no café da m anhã,
tom ado no boteco em frente
do perene país ausente
que havemos de erguer am anhã,
que remédio. H oje temos fé.

H o je, à m aneira do irlandês,


é nosso o gosto do exagero
e, assim com o o outro, é evidente
que temos o gênio insciente
e em brionário dos malucos;
mas de quebra temos certos sucos
tropicais, que nenhum deles tinha...
Q uando acordo e mais um a vez
rabisco a m inha torre até
em restos de papel de em brulho,
quando deixo m inha família
dorm indo e vou, pé ante pé,
sonhar-m e um projeto, um país
com um boi no teto, a maravilha
é que a coisa é e não é,
mas vai indo, deitando raiz
porque este louco aqui insiste
em tentar dizer o que diz
e dá um jeito! E quando durm o triste
porque lá vem o am anhecer
e m e encontra fum ando sozinho
sem ter sabido soerguer
m inha torre mais um pouquinho,
ainda assim tenho um certo orgulho,
perdoo o sangrento embrião
de que nasce toda nação:
im aginem os Estados Unidos
durante a G uerra de Secessão
dando lições aos desvalidos

261
B runo Tolentino

deste improvável continente!


É um bicho esquisito o futuro,
agoniza, agoniza e não m orre,
por que m orreria o da gente?
Vivo certo de que um belo dia
vai existir m inha fantasia:
u m país feito de pão duro
e suado, mas espaço aberto
em que hão de caber m inha torre
e m uitas mais! D isso ando mais que certo.

D e resto, tenho um sexto sentido


que m e assola desde criança,
carioca am ola a esperança
nas facas do tem po perdido:
não creio que o que faz um hom em
valha m enos pela rapidez
com que traças e cupins o com em ;
não m e interessa se por enquanto
ignoram esse país que eu canto,
m inha família tam bém dorm e,
m as em volta há u m a cidade enorm e
mais todo u m continente às voltas
com antenas e sinais às soltas,
o invisível que nunca cessa.
As horas todas chegam . A vez
da alvorada não vem depressa,
m as chega impreterivelmente.
A torre que eu fiz, de repente,
vai caber num país sem fome,
porque é feita à im agem do hom em
que mal acorda engole um café
rapidíssimo no boteco em frente
e se m anda mais à frente ainda!

A im agem não é das mais lindas,


é mais u m a das que o tem po com e,
m as vale a pena sim: im agine
u m a torre andando na rua

262
Os deuses de hoje

ru m o à fábrica, à escola, ao estaleiro...


N ão é de arrepiar? Q ue im porta
se a hora é suja, a ru a é torta
e o tráfego quase impossível?
Tudo se passa em mais de um nível,
o que conta é que tudo germ ine
nos corações depois que some;
a estátua que M ário Faustino
se propôs a fazer, não fez
porque infelizm ente se foi,
e a m inha torre com seu boi
no teto e sem nenhum destino
certo ou provável por enquanto
são m iragens gêm eas: o canto
vai em frente, o mês que destrua
o hom em prisioneiro da hora,
M ário Faustino existe agora!

O tem po vive de um lugar


e a m orte do que tu lhe dês,
m as nenhum tem poder de apagar
u m a visão, um a torre, um nom e:
com Raphaêl e com M artine
fiz m eu papel enquanto hom em ,
m inha obrigação de cantor
e cidadão, de esposo e pai; o resto,
a estátua, a torre, que os term ine
o porvir, um país nos eixos!
F iz m inha parte: m eu protesto,
m inha arte e as searas do amor,
agora basta! D esta vez
durm o m esm o sossegado e deixo
os dividendos da encom enda
por conta de quem os entenda
e ponha em prática.
\bjo o brilho
de Vésper no horizonte e, embora
tenha certa altivez de exílio
e não seja penhor de um porvir,

263
B runo Tolentino

é notícia certa da aurora,


são horas de que vá dorm ir
entre m inha m ulher e m eu filho.

NIHIL OBSTAT

Pretendia encerrar sem com entário


este livro-panfleto, que m e dura
há m ais de trinta anos ao contrário,
na contram ão de um a literatura.
M as, por respeito aos que a preferem pura,
devo dizer que achei mais necessário
estudar com o A utor do abecedário
do que escrever, brilhar, fazer figura...
C antei para passar despercebido
do carrasco e do resto, e se não fiz
o m eu protesto à m oda do país,
há um contexto em que fui, no bom sentido
da palavra, um a espécie de aprendiz:
o do silêncio afinador de ouvido.

II

D eus, que m e deu vontade de cantar,


antes de dar tam bém Sua licença,
ensinou-m e o valor da indiferença
e o gosto do silêncio, Seu solar.
E deu-m e tem po de solenizar,
com o quem se esvazia do que pensa,
a forma necessária do alguidar,
exato porque cheio dessa intensa
fragilidade de que nasce o canto.
E para que eu viesse a com parti-la
fez-m e partir em dois de vez em quando...

26 4
Os deuses de hoje

E le entende de m úsica e de argila,


faz prim eiro o artesão, depois o cântaro
que vai enchendo, sílaba por sílaba.

III

E preciso que a m úsica aparente


no vaso harm onizado pelo oleiro
seja perfeitamente consistente
com o gesto interior, seu com panheiro
e fazedor: o vaso encerra o cheiro
e os ritmos da terra e da semente,
porque antes de ser form a foi primeiro
hum ildade de barro paciente.
D eus, que concebe o cântaro e o separa
da argila lentam ente, foi fazendo
do m eu aprendizado o Seu com pêndio
de opacidades cada vez mais claras,
e com silêncios sempre mais esplêndidos
foi lim ando, aguçando o que escutara.

265
Impresso no Brasil pelo
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