Bruno Tolentino - Os Deuses de Hoje (Record, 1995) PDF
Bruno Tolentino - Os Deuses de Hoje (Record, 1995) PDF
Bruno Tolentino - Os Deuses de Hoje (Record, 1995) PDF
Os Deuses de Hoje
P o e m a s
BRUNO
T O L E N T I N O
Os Deuses
de Hoje
E D I T O R A R E C O R D
R IO DE JA N EIRO • SÃO PAULO
C IP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato N acional dos Editores de Livros, R J.
C D D — 869.91
95-1672 C D U — 8 6 9 .0 (8 1 )-!
IS B N 8 5 -0 1 -0 4 4 9 2 - X
P E D ID O S P E L O R E E M B O L S O P O S T A L
C aixa Postal 23.052 — Rio de Janeiro, RJ — 20922-970
SUMARIO
U m aviso p rév io 10
In trod u ção 11
O s d eu ses d e h o je 19
A p rim e ira escala 21
O p rim e iro ad eu s a M a n u e l B a n d e ira 21
L e s P hares 22
E m b u sca d o tú m u lo de C a sim iro 23
H o s a n a à cid a d e d o S alv ad o r 24
A ú ltim a visita 25
A c a m in h a d a ao cais 30
O s dois 31
M ais versos à b o ca d a n o ite 34
E s c a la n o C a b o Verde 40
O e m b alo d o larg o 41
O in seto 42
A o p in iã o de S ilen o 43
F e liz an iversário 44
O sob reviven te 46
D e c la ra ç ã o d e v o to 47
M in im a m ora lia 47
N o tíc ia s de ca sa 48
O sign o 50
5
B runo Tblentino
6
Os deuses d e h o je
U m In te rlú d io
TO RRES & D EU SES 143
Ú ltim a P a rte
N A T E R R A P R O V IS Ó R IA 203
O fa lcão 205
O ú ltim o p asseio 207
O s d esap a re cid o s 21 1
N o tu r n o à ja n e la d o a lh e a m e n to 213
P re c e p elo d ia seg u in te 213
D e a rm a s e b ag ag en s 220
R e in cid ê n cia s à b o ca d a a u ro ra 2 21
O c e n te n á rio 225
P ost-scriptum p a ra F réd d y B la n k 227
D iscu rse ira s e faxin as 228
A d ád iva 231
P o e ta o p e ra d o , à su a m a n e ira 233
A m e d a lh a 235
O s S a n to s d a L u z d a P e n h a 236
W B . Ifeats: o fin al d ’A Torre 239
R esp o n sab ilid ad es 242
A ro sa d o p o lvo 246
L á p id e s p a ra m e u p ai 249
C á e n tre n ó s 257
A to rre ca b o c la 258
N ih il ob sta t 264
7
Os deuses de hoje
Olavo de Carvalho,
0 Jardim das Aflições (VIII: § 23)
9
U m a v iso p r é v io
10
Introdução
11
B runo Tolentino
12
Os deuses de hoje
Com sutil inversão, o dístico final expõe, ainda uma vez, uma inusitada
idéia de história. A mão do poeta escreve não entre seu nascimento e morte,
mas entre a morte (o túmulo) e o nascimento (o berço). É como se o sentimento
lírico nascesse a contrapelo, como se se insurgisse não contra a linguagem,
como queria Octavio Paz, mas contra o próprio e mais produndo conceito de
tempo. Escrever, sabendo-se morto, pois a indesejada das gentes veio antes da
hora, é também sobrepujar o mais incontornável dos destinos. A morte, con
dicionadora do silêncio, torna-se aqui uma espécie de caução lírica, de condi
ção do produto estético. Seria curioso observar que a mesma inversão temporal
fecha o livro. O autor deixa para o final uma série de sonetos sob o título N ihil
obstai, exatamente a divisa que abria os livros autorizados para publicação.
Invertcndo-a, ele como que abre espaço não mais para a releitura, mas para a
própria vivência, a iluminação poética.
Um outro traço se expõe no mesmo soneto. O texto que lemos é uma
releitura, um balanço dos sucessos literários na construção do soneto. Portanto,
a literatura aí se realiza em dois planos: o plano do texto escrito e o da leitura.
São dois níveis de enunciação interligados, simultâneos. De alguma maneira,
13
B runo Tolentino
o texto se propõe como uma espécie de metafísica do poético. Borra-se nossa linear
concepção do literário. E apenas o texto que concentra as virtudes estéticas ou são
estas produzidas por inter-relações mais amplas e complexas? Borges certa vez
afirmou que todo grande texto contém o seu contrário — livro e antilivro. Não se
pode negar que “Releitura” se reveste de um caráter exemplar em relação às
palavras borgianas.
Apenas para testarmos a coerência que preside sua idéia de história,
vejamos como Bruno Tolentino a apresenta. Em certo momento contempla
mos “a roda destroçada da História tropeçada no seu Nada”. Em seguida, “os
desfiladeiros da História” ou “aquelas sete ou sete mil cabeças sem memória
da estulta, enorme e nauseabunda hidra de gravata, capuz e cassetete a que
chamamos História”. Lemos ainda que “a poesia é sempre como a vida, o
contrário da História”. Enfim, o campo semântico a que se filia a História,
neste livro, é sempre o de uma radical e irrevogável negatividade.
O poema traz ainda para o proscênio a linha mestra temática do livro: o
exílio. O exílio, que o poeta pretendia breve e que acabou marcando toda sua
obra, torna-se a própria condição de Os deuses de hoje. Dividido em duas partes
e um prólogo, o livro nasce com o golpe de 64 e com o irrecusável convite do
exílio. O prólogo costura as duas partes (Durante o baile negro e Terra Provisória)
que cobrem a recente história brasileira. Uma explicação desnecessária: a
primeira parte fotografa a violência política, social e, sobretudo, espiritual,
enquanto a segunda costura-se de retratos de restos de um país, de uma “waste
land”, aquela que sobrou da fúria, sem adjetivos, dos hunos, os construtores
exímios e detalhistas de nossa destruição.
Porém o exílio do poeta e de seu texto não é linear. Ao contrário, lembra
em muito o périplo de Odisseu, desejando e evitando a volta à ítaca. N ’Or
Deuses, ele volta, aporta, mas é apenas para, logo em seguida, lançar-se de novo
ao mar — e esse é o movimento dramático do texto. Além disso, o exílio não
condena apenas aquele que parte. Os que ficam, Bandeira, Cecília, Drum-
mond, também sentem as mãos negras de um silêncio a envolvê-los. Quase
sempre aqueles que ficam se vêem condenados a uma morte impertinente e
tenaz que aguarda, que espreita, que persegue.
Basta ler o trecho final de “Primeiro adeus a Manuel Bandeira” para lhe
perceber a elaboração poética:
14
Os deuses de hoje
Breve trecho incrustado no interior de uma longa prece, aí mais uma vez
se revela a arte de congregar alusões. O verbo bíblico, divino, fundador se
15
B runo Tolentino
16
P rimeira P arte
a Antonio Cândido
W.B. Y e a t s
17
OS D E U S E S D E H O J E
O s outros, os ruidosos,
os que gastam a saliva sem afiar os dentes,
passam a ser só presa.
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B runo Tolentino
Os senhores da treva,
os donos da impudência,
são deuses, são eternos.
C om o os nossos gemidos
que não passam
eles não passarão.
R io de Janeiro,
abril de 1964
20
Os deuses de hoje
A PRIMEIRA ESCALA
M ariana, 16/4/64
21
B runo Tolentino
LES PHARES
22
Os deuses de hoje
EM BUSCA DO TÚ M U LO
D E CASIMIRO
23
Bruno Tolentino
24
Os deuses de hoje
A ÚLTIM A VISITA
25
B runo Tolentino
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Os deuses de hoje
im aginário e furta-cor,
e a expressão é transparente,
um tanto distante da gente
(com o sem pre), mas aquele alvor
ainda é idêntico a si m esm o: a ilha
tranqüila e grave aguarda a quilha
27
B runo Tolentino
28
Os deuses de hoje
29
B runo Tolentino
A CAMINHADA AO CAIS
e abandonas à desesperança!
Vou deixar-te para não te ver
atravancar o am anhecer
R io de Janeiro, 8/5/64
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Os deuses de hoje
OS DOIS
É um a loucura!
São muitos dias
em solo pátrio
desde a torm enta,
quase quarenta!
N ão , não devias.
D uras e duras
com o u m a acha
de lenha incerta
de entrar no átrio
sem ser preciso
e chegas hoje
mais indeciso
diante do cais!
Q u e mais procuras Y
Q ue esperas mais?
A m aré baixa
escapa, foge
com o um alerta,
com o u m aviso
às gaivotas
que ainda estão soltas
Ficas ou vais?
E m barcas? Voltas?
O lha que as botas
andam por perto!
Se eu te disser
que este m om ento
um a m ulher
de camisola
não te consola
nem deixa em paz,
tu que dirias?
O apartam ento
fica distante,
e aqui m esm o,
31
Bruno Tolentino
pouco adiante
há um a gaiola...
Aonde irás?
E u , quando incerto
não ando a esmo,
faço figura
de alguém capaz
de decidir-me,
pareço firme,
não m e pareço
contigo em nada!
Desde o com eço
desta charada
sabias bem
que acabarias
por vir aqui;
noites e dias
com essa coitada,
viras do avesso
o que sabias
de antem ão:
que eras alguém
maldividido,
mas m uito perto
de achar sentido
na operação
bem -planejada,
tradicional,
da divisão...
Vai, vai-te embora,
fico eu por ti.
Porque afinal,
partir em dois
é a solução
que a vida pôs
em tuas mãos
e, mais não fora,
o mais das vezes
32
Os deuses d e hoje
algo m e diz
que de nós dois,
dos dois irmãos
mais contrastados
e siameses
deste país,
eu, na verdade
sou a m etade
bem mais feliz:
de dois extremos
m alconjugados,
sou o mais fraco,
mas o mais rico,
caro velhaco,
tu vais, eu fico...
Q uerida acha:
tu crês que os deuses
deste lugar
com o os venenos
vêm pra ficar,
eu não! E u creio
que há solução
enquanto crês
no que é talvez
a realidade,
mas custa m enos...
\ài, vai ou racha!
Representar-te
neste lugar
sem te aturar
será um prazer.
Ficar e ser
só tua alm a
talvez m e dê
por fim a calm a
com o recheio,
senão a paz.
Parte, rapaz!
Até porque
33
B runo Tolentino
partir ao meio
é a tua arte,
que esperas? Parte!
D esde pequenos
não nos largamos
nem entendem os,
agora vamos,
vai, vai, cai fora,
não durarias
por mais quarenta
noites e dias
com essa m ulher
que ainda te adora
m as mal te agüenta,
adieu, m on frère...
34
Os deuses de hoje
do cunhadão, escapa
quietinho e na calçada
acocorado aqui
no calçadão da noite,
deixando-te ao açoite,
terrinha em que nasci,
em pleno m ar aberto,
à distância de tudo,
discursa a sós com o m udo
m undo da lua, o enxerto
m elancolicozinho,
de rabinho enfiado
entre as pernas, coitado,
mais um dedo m indinho
inofensivamente
distante, com o em fuga,
com a vaga verruga
de um a estrela doente
35
B runo Tolentino
de um a desolação...
Recebo-o aqui, fugido
com o a im itação
de um cão: o meu ganido
de um vira-lata vivo
porque correu de casa,
não tem eco: é altivo,
intenso, m as sem asa,
paira no desperdício
do mar, mas não ecoa
com o num precipício
um cão latindo à toa.
36
Os deuses de hoje
é a m em ória doente
que a m istura às espumas
e às horas, um a a um a,
incontornavelm ente.
Já deixamos atrás
Fernando de N oronha
e a aparição m edonha
surge-m e um a vez mais,
multiplica-se, alastra-se
por um país inteiro,
enquanto eu sonho mastros,
velas num nevoeiro
e sinais de um futuro,
consolos para o náufrago.
Q uem sabe o que o antropófago
tram a agora no escuro,
provavelmente menos
que um desterrado à proa
contando seus pequenos
desastres à garoa...
A noite universal
propõe esquecim ento
e pílulas no vento,
aqui é tudo igual,
37
B runo Tolentino
na escuridão de hoje,
sejam um a coisa só,
um pontinho que foge
e surge a cada nó
vagaroso da nave
pelo enorm e universo;
tudo tem seu reverso,
um verso, um a arquitrave,
um a nação boiando
na escuridão da História;
talvez toda m em ória
dê no silêncio, um bando
38
Os deuses de hoje
o vento m arinheiro
e a alm a à descoberta
desviariam a seta,
perturbariam o arqueiro?
E seria possível
um dia retornar,
viver, andar ao nível
da luz, a luz solar?
M an ch am -n a para sempre
de violência e opróbrio?
D u ram , deixam semente
os vestígios do ódio,
39
B runo Tolentino
ou um dia o reflexo
do últim o choque elétrico
todo um país perplexo
entre o cínico e o cético,
em palidecerão,
com o afinal no peito
o hum ano coração
refolhado e refeito,
doce, empalidecendo
quando, o futuro vindo,
a sombra for cedendo
e a luz se for abrindo...?
N /M ‘H enrique L ag e’,
m aio de 1964
40
Os deuses de hoje
O EM BALO DO LARGO
41
B runo Tolentino
O IN SETO
A m ontoado
trivial do aleatório, escoadouro
raso demais para enxurradas, decrescente
lago virando poça,
mero depositório
de ocorrências, sismógrafo
do vago... Reduzido ao caroço,
com seu dente de ouro
e seu sempre malpago
sonho de quando e onde,
quem quer que o tenha visto trespassado
pelo m ero alfinete do acaso, perguntado
responde
com o tu, com o qualquer: não era um m ago...
M as observa-o, curvado
sobre o hexágono estreito que lhe serve de crânio,
observa a coisa hum ana,
esquisitamente m ecânica;
vai, pálpebra a pálpebra,
de m em brana em m em brana sacudindo
o desarticulado,
desm ontando o acessório,
o não-secreto,
o arsenal para o móvel, e o resto, a soma tonta
e em pedaços: o inseto.
42
Os deuses d e h oje
A OPINIÃO D E SILEN O
43
B runo Tolentino
F E L IZ ANIVERSÁRIO
C aiu, caiu
fora da H istória
o meu país:
foi por um triz,
mas foi... E agora?
Bye-bye B razill
Os sacripantas
te anestesiaram ,
44
Os deuses de hoje
45
B runo Tolentino
O SO BREV IVEN TE
O corpo, um guarda-chuva
avaro, asas fechadas,
queixa-se “dessa luz
espetada em m eu flanco, dispersando,
estragando-m e a sábia redução,
m eu exato quadrado de delírio,
m inha cal, feixe negro...”
46
Os deuses de hoje
DECLARAÇÃO D E VOTO
na coroação de um símio
MINIMA m o r a l ia
C om o é possível
fazer poesia
depois, durante?
O u m esm o antes...
47
B runo Tolentino
Parece incrível
pensar no dia
tendo adiante
a noite horrível.
Teodoro Adorno,
olhando em torno
eu te diria
que é mais urgente
do que impossível
fazer poesias
por estes dias.
Por esta gente.
N OTÍCIAS D E CASA
48
Os deuses de hoje
49
B runo Tolentino
O SIGNO
50
Os deuses d e hoje
M as assim dividido,
das chuvas de Verão aos perfumes do N orte
(que vão envelhecendo) tu quem és?
Procuravas teu signo, procuravas
no avesso dos relâmpagos, nas pupilas
que o sal escurecera e és um hom em
cujos ombros pedem cigarras...
51
B runo Tolentino
52
Os deuses de hoje
SOB UMA LU Z D E E X ÍL IO
U m dia,
nós à proa, o olho inquieto,
o vento turvo havia anos, de repente
foram saltando a bordo,
a espum a da loucura em torno aos lábios,
cardum es inteiros.
Decidim os não voltar, tom am os o largo
sem um a palavra,
fomos despedaçar nossas lembranças
em lugares alheios e vazios.
53
B runo Tolentino
ÂNFORA AO MAR
54
Os deuses d e hoje
E no entanto navegas
com a inescusável graça
do sonho a encarcerar o sonhador,
mas essa ânfora íntim a aonde for
te embriaga, te cega,
te sufoca: é m ister que a despedaces.
A L E I DO SILÊN C IO
N ã o vou m e demorar,
não vão deixar.
N ão vão notar que estou de volta,
m as não vão consentir tam pouco
que a sombra de um poeta, essa espécie de louco
inaceitável na cidade dos deuses,
contam ine os escombros hum anos
que andaram erguendo à solta
por aqui,
por todos estes anos.
55
B runo Tolentino
56
Os deuses de hoje
A LU Z
57
Bruno Tolentino
O ÓBOLO
58
Os deuses de hoje
59
B runo Tolentino
C um prira-se a jornada
e agora p or fim seu cão fiel
tinha-o todo de volta
mas enquanto
a luz na areia solta
cantava-lhe acalantos
e ele ali estava com o um capitel
caído sobre a praia da chegada,
enquanto ele dorm ia nenhum cão
lambia aquela m ão,
o suor do cansaço do pescoço,
ou as cicatrizes sobre aquele dorso
durante tanto, tanto tem po atado
ao cantochão do mar, ao velho mastro
sinuoso com o o sonho sob os astros
e firme sob o canto das sereias
no entardecer de todos os desastres.
C ão algum
lam bia aqueles membros, um a um
ramos do tronco desenraizado,
arrancado às raízes que no peito
60
Os deuses d e hoje
61
B runo Tolentino
o azul da cantilena;
praias alheias e vazias, cheias
de um puro alheam ento,
tudo cristal e sal e esquecim ento,
longas areias quietas com o o avesso
dos sonhos turbulentos,
falai com ele agora, ondas, areias,
únicos travesseiros
para a m esm a cabeça
que voltou, com o voltam do estrangeiro
os pássaros m igrantes,
nem daqui nem de lá, restos do vôo,
asas da vastidão
o rei voltou
a solidão voltou, o resto não.
62
Os deuses d e hoje
63
B runo Tolentino
A ESTR ELA
64
Os deuses de hoje
O u seriam m entira
os ecos que sum iram
na água encurralada? N o deserto
im itando um enorm e espaço aberto,
os sussurros, as vozes u m a a um a
esvaziando o convés,
baralhando-se à espuma,
virando esse silêncio em que a estrela te espia
chegar, partir, voltar a u m a agonia.
E no entanto não és
um daqueles rapazes
a que ataram as m ãos, arrebentaram os pés,
queim aram os genitais
e apagaram o nom e...
65
B ru no Tolentino
E segundo
que a m ultidão dos rostos e dos nomes,
anônim a tornada,
faz sombra sobre o espelho que emoldura
a rápida figura,
o vulto vagabundo,
ou sem um baque some
nas discussões vazias do Verão
(mas do outro, do louco das canículas),
à noite, que é tão longa, ninguém volta
ao convés, já não voltam mais as vozes,
impossível agora com preendê-las,
sozinha à tona d’água passa a estrela,
porque os destroços não.
66
Os deuses de hoje
Partir, reincidir,
subir até as fontes o afluente
da visão, esquecer
o coração que quer durar entre as folhagens
familiares, onde lentam ente
se aquiete, tente
envelhecer.
G algar as avalanches
surdas e bruscas da recordação,
reincidir, partir
antes do dia, preceder a onda branca
do coração que tudo afoga e passa a tranca
am orfa na m em ória, o coração
que se faz e refaz no esquecimento.
A h, parte, parte-o,
espatifa esse bloco
da cor, da palidez do m árm ore em que o soco
não entra e não ecoa,
essa distância,
67
B runo Tolentino
Reincidir, dizer-se
livre, longe de tudo
e é tudo ainda
68
Os deuses de hoje
À TERRA PROVISÓRIA
O BA ILE N EGRO
69
B runo Tolentino
70
Os deuses de hoje
71
B runo Tolentino
E medito um mistério
m uito m aior que o ritual da festa
que os deuses mascarados
dão em honra da besta
sob o olhar divertido ou patriótico,
dizem -m e, de fileiras de ilustres convidados!
N ã o penso nos algozes; nem m esm o nos coitados
que os mais ferozes uniform izados
fazem dançar até de m adrugada;
reflito no protótipo,
penso no ritual,
no peso meio exótico
e na natureza am bígua da noção
de rito; no sentido universal
e m ítico de cada
sílaba da palavra conspurcada
agora, este m om ento, ante a calçada
em que passeia um velho cidadão
m eio aflito de m e ver espiá-lo.
72
Os deuses de hoje
73
Bruno Tblentino
A um deles, à tona
do tanque sempre raso do sensível,
vejo um m enino pasmo;
ao outro, num a lição de entusiasmo
de todo incompreensível,
um a porção de insetos em aglutinação
contra um a só das paredes caiadas,
em frente a um lampião...
E , não vês?,
é ainda o m esm o rito,
só que agora ao contrário:
74
Os deuses de hoje
a m etade de um grito,
um choque elétrico, e o universo perdulário
derram a-se em diagonal
sobre a festa insensata
que m ata, m ata, m ata...
É o m esm o ritual.
A única novidade
é que o circo feroz da hum anidade
introduz u m a pata
no equilíbrio da noite universal.
E perm ita-m e, leitor, que encerre agora
esta dissertação
de m aneira abstrata,
que faça disso tudo um a noção,
mais adequada à hediondez da hora...
Encerrarei assim m inha visão:
entre o corpo, que flui
à contraluz dos dias,
seqüestrado entre facas de intelecto
no estranho claro-escuro de algum jogo
que a m ente não dom ina nem dilui;
e as graves agonias
da alm a, seu projeto
dedicado a im itar o que se evade
deste m undo de artérias pelo fogo
severo da vontade
(vontade de ser deus no que falece
deste lado e aparece,
quem sabe, do outro lado);
entre estes dois extremos
de tudo o que buscamos e não tem os,
passa o vôo exem plar do alucinado
inseto que procura a eternidade
entre as vigas de um teto.
75
B runo Tolentino
76
Os deuses de hoje
77
Bruno Tolentino
N em posso imaginar
outra música assim, que resguardasse
tudo sempre acordado, a grande insônia
na caixa vazia e sem nom e;
o vazio tão branco, com o os ossos,
selvagens, desejosos.
E de repente é urgente,
é preciso encontrar
um a pausa qualquer em que o corpo coubesse,
mais sem esperar mais que o anel se partisse,
que a roda do real se interrompesse
para que pela fenda entrasse a vida,
o instante mortal com o portal
diante do precipício
aberto sobre a próxim a mordida
de espirais e espirais de um fogo histérico.
Eu
(mas não existe o eu desse mistério)
sei que me hei de lem brar de im aginar teu rosto
enquanto o lobo perm itir que eu veja:
para sempre hei de ver os teus lábios buscando
subir mais e mais perto
das intensas cavernas onde ronda o deserto
a labareda dos olhos, e que seja
tudo outra vez queim ado vivo; então
a história toda será fogo puro.
N os olhos não, no escuro,
só no escuro da boca há salvação.
E na hora que obriga a não ser, a calar,
o grito do teu lábio em m eu olhar,
ah, para sempre no m eu pensam ento,
há de em purrar a roda destroçada
da H istória tropeçando no seu N ada
para que a vida exista e o corpo possa
arrancar seu pedaço de m om ento.
Q ue eu penso no teu corpo: vejo os ossos
e restituo-te o resto, o hom em todo,
reclam o-o verso a verso ao filhote do lobo!
78
Os deuses de hoje
£ à falta
de socorrer-te a tem po, o m eu lam ento,
este histérico rito vai cantando
e buscando escutar o som da flauta
e ser enfim eu m esm o a flauta. Urgente,
dentro de cada som canta a semente,
solene e obstinada, irredutível
quando os olhos se perdem no indizível,
e a boca sangra, sangra sem saber
com o gritar, arder, quem sabe, ou delatar...
A F Ê N IX
Algoz e torturado
à superfície são
um a excrescência só.
D a tenaz à carcaça
a m esm a som bra passa
indiferente aos dois.
N u m m esm o giro esvaem-se
um a garra e u m a face.
D ispusem o-nos todos
a atravessar o átrio
e eis que, pouco depois,
na vertigem, no lodo,
m orre-se em separado:
um gem e, o outro tem dó.
Ao fundo o solo pátrio,
as notícias de casa...
O fogo, o ferro vivo,
a m iragem em brasa,
que sei eu deles? N ada.
O nada é m eu motivo
e nem sequer consigo
m etê-lo na palavra.
79
B runo Tolentino
80
Os deuses de hoje
M ORTE DO MASTIM
81
B runo Tolentino
A C ELA IMAGINADA
E penetras
o local m alescuro; resplandecem
vivas ao fimdo as m arcas
do leito de ferralha: corpo e alm a
torciam -se, estiravam-se aos pedaços
ali... Seria assim
a vertente de sombra onde dançou,
dançou depois ardeu,
o inseto ensandecido?
82
Os deuses de hoje
e de mais um a infâmia:
excluído das bodas
do baile negro, a adaga
o corpo mutilado
ainda se parece
vagam ente contigo,
83
B runo Tolentino
o vulto do inimigo
e o teu, eqüidispostos
e equivalentes, são
A SEM EN T E
84
Os deuses de hoje
NONINJUSSA CANO
O VULTO NA LADEIRA
85
B runo Tolentino
86
Os deuses de hoje
O CÂNTARO
87
Bruno Tolentino
im itando o reflexo
de copas e resinas, tua soma
vertiginosa das mudanças...
Ficas
com dois olhos vazios na incerteza
de mudar, na esperança de morrer,
o vivo sitiado dos pés à cabeça
até que a pele e a im agem o anoiteçam.
Im aginas ouvir
(talvez ainda não ouças)
passos soando com o se um a queixa
soasse, o sustenido nalgum poço,
um substrato de percepção
aqui e ali, centelhas
ao longe, onde se acabam
os m urm úrios do espelho:
ficaste prisioneiro
de um a m archa forçada, imperceptível,
tronco podado, catas
hesitante um vestígio.
A cerca-te e repara
na ordem sem prodígio dessa fuga:
vem o lugar, fulgura e logo, célere
o dia, e cada dia
menos que cada forma
instantânea e contínua
aqui, do movimento,
que é perpetuidade e fragmento;
e dá-se a intercessão
do lugar e do instante
a que se segue
esvaziado de cintilação
o lugar devolvido
intacto à própria queda. E só então
a dor antes da volta e a alegria
de fazer-se mais perto.
E repara
88
Os deuses de hoje
O GANSO SELVAGEM
89
B runo Tolentino
Parece-se então
dolorosam ente
a nós, é um irm ão,
a asa dobrada
com o a nossa; agora,
com o o albatroz,
90
Os deuses de hoje
o poeta, a história,
a sombra do hom em ,
será com o nós:
vai durar agora
com o se de fora.
E até que a alvorada
lhe devolva o nom e,
o fôlego, o lago,
o horizonte vago
cham ando-o outra vez;
até que banhado
de luz, de altivez,
enfim vá-se embora,
vá de novo atrás
do bando, talvez;
até que am anheça,
m ovendo a cabeça
de um para o outro lado,
é um pobre coitado,
aqui embaixo faz
figura de am ante
só, embriagado:
cam inha hesitante,
volta atrás, dem ora,
recom eça, avança,
cansa-se, desiste
e de repente canta!
91
B runo Tolentino
AO PRÓPRIO CORAÇÃO
(Voltas a um tema)
92
Os deuses de hoje
O REFRIG ÉRIO
E se de súbito
a lua impressentida se derrama
no vazio, reclam a
tudo o que tens de coisa nascitura,
e assobios de m ata no horizonte
arrancam -te a ti m esm o? D e onde chega
teu coração vestido da doçura
intacta de outra fonte?
93
B runo Tolentino
Assim a alma
se embriaga e em briaga e enfim se acalm a,
próxim a do m inuto e da distância;
leve, seguindo a água
aos lugares da infância,
entre os signos suspensa,
assombrada naufraga
a anim ula vagula,
dessedentada quase, no silêncio.
JUÍZO FIN A L
94
Os deuses de hoje
II
III
IV
95
Bruno Tolentino
VI
96
Os deuses de hoje
VII
VIII
97
Bruno Tolentino
IX
98
Os deuses de hoje
XI
X II
X III
99
B runo Tolentino
X IV
XV
100
Os deuses de hoje
XVI
C A N TILEN A DO EC O
101
B runo Tolentino
D ei-m e m al no século
e vaguei à toa,
variei demais
e andei por aí
solfejando a vida,
mas sei que sumi
no instante propício:
ao olhar atrás,
a troca foi boa,
dou-m e bem com o eco.
Claro, eu ao início
queria a garoa
dos corpos em flor,
não um baque seco
que m al entendia,
mas dia após dia,
102
Os deuses de hoje
a asa do eco
batia, batia
levando-m e ao beco
de um grande esplendor,
não da fantasia.
N ão m e foi difícil
ser feliz e, doa
com o hoje m e dói,
m inha vida foi
presente do eco;
não com o eu a quis,
nem com o seria
se eu tivesse sido
boa criatura,
e no entanto a fiz
andar à procura
daquela poesia
que é tem po perdido,
mas que nunca é pouca
porcaria e diz
que a vida-aprendiz,
da m ão para a boca,
pode ser loucura,
mas te faz feliz.
C o m o diz Yeats,
se não tive lar
tive outros deleites,
subi sem parar
ladeiras no ar
e, m onstro por monstro,
fui parar no poço
da M edusa: posso
m e vangloriar
de sair de lá
ileso e ainda m oço,
na horinha H ...
Fui logo ao encontro
do deus do lugar
103
B runo Tolentino
Fernando Pessoa
dizia que fora
com o a erva daninha
que não arrancaram ;
a m im m e podaram
bem cedo, e a tesoura!
Rilke reclam ava
que não tinha casa:
a m im m e m andaram
em bora da m inha;
m an d aram -m e às favas,
com o eu m erecia,
e eu fui bater asa
por aí afora
um a vida inteira,
certo de ir-m e embora
de muita zoeira
que não vinha ao caso
de qualquer m aneira.
M anuel Bandeira
um a vez me disse
que não desistisse
de ouvir o silêncio,
professor de estilo;
que quando escrevesse
procurasse ouvi-lo,
104
Os deuses de hoje
aragem de lenço,
não o sobe-e-desce
da m ontanha-russa;
que ele tinha sorte,
escapara à m orte
e ficara surdo!
A chei um absurdo
aquela ironia,
mas nosso dentuço
sorriu e explicou-se
com a sabedoria,
o m olho agridoce
que botava em tudo:
disse-m e que o verso
não viceja em poço
nenhum , m as no beco
em que a alm a fuça;
que é sempre o reverso
da m oeda, o avesso
da m oda e da musa
deste nosso século.
A lição valia
e eu, quase um m enino,
a ouvi com candura
105
B runo Tolentino
e a observaria
ao cortar o pano
do m eu arlequim:
ou m uito m e engano,
ou, com um certo tino,
B ru n o Tolentino
sua fantasia
ajustou-a sim
com o ele o dissera,
m uito embora a fera
que sou, ou que era,
preferisse andar
sem tanta muleta,
viver de evasão,
encher o pulm ão
e, sem hesitar,
cair na sarjeta,
se preciso, e não
se m eter em beco
nem se comportar.
106
Os deuses de hoje
à beira do informe
com o um precipício
à espreita do eco.
107
B runo Tolentino
II
É , a vida é assim
com o aqui vai dito,
m as, queira ou não queira
quem teme o infinito,
vale a pena sim.
Estam os em paz,
valeu a canseira,
ou a minha valeu!
C ansei-a de mim
sem cansar-m e eu dela,
que enfim tanto faz
se é ela ou sou eu
(a concha ou a pérola)
quem se descolora:
foi pena perdida
m inha vida bela,
mas valeu a amora
108
Os deuses de hoje
na m oita arredia...
N em insisto agora
em que troco a vida
pela poesia,
digo simplesmente
que, buscando um eco
a cada trocadilho
da im aginação,
por mais que demore
cercando a medida
hoje descarrilho
e bato de frente
com o eco no verso,
a frase caída,
ou descarrilhada
em pleno universo.
109
B runo Tolentino
quero-m e distante
dos bestialógicos
do tem po presente.
U m tanto insolente,
curvei-m e diante
da m usa e do belo,
apenas! B em sei
que vivi a esmo,
que acabei fazendo
m eu verso a martelo,
em vez de fazê-lo
com o o M anuel
fazia-o e propunha-o,
mas fu testem unha
só perante a lei
que acato: a poesia,
que Shelley queria
tirar do papel
e eu o mais das vezes
tirei de m im m esm o...
(Irritei os deuses
de hoje e de ontem ,
mas eles que contem
esse pedacinho,
a mim pouco importa
porque Inez é m orta
e eu vou m orrer sozinho.)
Se gastei a vida
nas idas e voltas
de um a despedida
sem medida ou fim,
se amei e perdi
sem apelação,
pus m inha canção
e seus estribilhos
nos melhores trilhos,
o que enfim m e basta.
110
Os deuses de hoje
111
B runo Tolentino
É um a voz da cor
difusa da alm a,
a cor descascada
dessa m ascarada
que, quando se acalm a
vira, vai, soletra
e enfia no verso
todo um universo
quando a noite cai,
quando a coisa vai
ficando mais preta
e até m eia aperta...
E a hora deserta.
H o ra em que se chega
à esquina em que o século
com sua baderna
e seu vade-m écum
consente em se dar
a u m a luz extrem a,
de vela em caverna.
Platônica ou não,
é a hora da entrega
total à visão:
reverberação
sustendo o que queim a
num a circular
reform ulação
de cada unidade,
a união de cenas
que a vida apequena
e a arte conduz
a um a variedade
da realidade
tênue com o a luz.
N o último andar
do único edifício
nesse beco existe
112
Os deuses de hoje
E enchê-lo afinal
não de fantasia,
ou de mais saudade,
mas de um a em oção
que, se esvaziando
e, quando vazia,
de novo se enchendo
de recordação,
vai aparecendo,
surgindo do mal
da vida, e formando
um espelho, um lago
refletindo um bando
de gansos voando
com o um só: as asas
tendendo à união,
com pondo a harm onia
de um só par de asas
113
B runo Tßlentino
P or m im ou por ti
esse cisne-ganso
voltaria aqui?
Estran h a noção
voltar do sem -fim ...
D igam os que sim,
que retornaria,
essa ave-em blem a
do canto e da altura;
essa criatura
gêm ea do poem a,
suponha-se enfim
que tornasse à dura
pousada do chão...
114
Os deuses de hoje
M as se for assim,
um rápido instante
antes de voltar
imóvel sugere
aquele mistério
que é nosso ao passar
e apenas então:
a evaporação
moral do sensível,
eco do invisível
e form ulação
final do fugaz,
o que nunca mais
deixa o coração.
OS O LH O S TROCADOS
115
B runo Tolentino
RELEITU RA
116
Os deuses de hoje
A INDESEJADA
2 .
N inguém pensou m enos na m orte, creio,
do que aquele gnom o; mais ninguém ,
que eu saiba, conseguiu passar tão bem,
tão distraído, no lugar mais feio
da esplêndida viagem: seu passeio,
rápido, sem paradas com o um trem
direto, iria longe, mais além
dir-se-ia que não. Observei-o
mais de u m a vez às voltas com alguém,
algum pobre-diabo a que o recheio
apodrecia, e vi-o sempre alheio,
sem com partir-lhe o dram a, sem receio
de que a sorte o tratasse assim também.
Q ue o castigasse à hora do recreio.
3.
117
B runo Tolentino
4.
5.
118
Os deuses de hoje
6.
7.
119
B runo Tolentino
8.
9.
120
Os deuses de hoje
10.
11.
12.
121
B runo Tolentino
122
Os deuses de hoje
A GARÇA E O EQ UILIBRISTA
II
123
B runo Tolentino
III
IV
124
Os deuses de hoje
VI
VII
125
B runo Tolentino
V III
IX
12 6
Os deuses de hoje
XI
12 7
B runo Tolentino
X II
X III
128
Os deuses de hoje
X IV
XV
129
B runo Tolentino
XVI
X V II
X V III
130
Os deuses de hoje
X IX
XX
131
B ru n o Tolentino
XXI
VIVI MAL
132
Os deuses de hoje
133
B runo Tolentino
RUAS
134
Os deuses de hoje
II
III
IV
135
B runo Tolentino
136
Os deuses de hoje
NO EMBARCADEIRO DA VOLTA
137
B ru n o Tolentino
UM DIÁRIO D E BORDO
1. EVOCAÇÃO
2. CANTEIROS
138
Os deuses de hoje
3. VALES
4. PÂNTANOS
5. SEARAS
139
B ru n o Tòlentino
6. PERFUMES
7. DEFINIÇÕES
140
Os deuses de hoje
8. GEMIDOS
9. TÚMULOS
141
B ru n o Tolentino
10. DESFECHOS
142
U m I n ter lú d io
A lberto T orres
Cecília Meireles
143
lberto Torres
A h á m uitos anos,
disse de nós
que não formamos
um a união
ainda não;
que, com o os símios
que trocam os ramos
pelos cipós,
nos enredamos
com o ilusório
e confundim os
o bem e o m al;
que porque temos
um território
nos persuadimos
de que há um país
nesse local.
Q ue nestes termos
nunca faremos
um a nação
de um m atagal,
pois se não dermos
com ida, teto,
lugar, raiz
e dignidade
ao cidadão,
ao branco e ao negro,
nosso projeto,
nossa retórica
nacional,
não passarão
de u m a inverdade,
de u m a ilusão
escrita a giz
no quadro-negro
145
B runo Tolentino
e espectral
da anti-H istória,
ponto final
da pretensão
de um dia termos
um a nação
nestes extremos
e vastos ermos
que apelidamos
de meu país...
T in h a razão
aquele hom em .
Setenta e tantos
anos depois,
a m esm a voz
dá nom e aos bois,
a todos nós,
e ainda nos diz
m uito pior.
D iz-nos que após
todo um passado
de desencantos
feitos de enganos
somos ainda
e sempre nós
os que lá estamos,
lá, na berlinda,
da H istória, a sós
com aquela besta
nossa parceira,
a velha índole
brasileira,
que nasceu rindo
do que vendia
e cada dia
fica mais cega,
m ais traiçoeira,
enquanto chega
146
Os deuses de hoje
a hora sexta
de um a torm enta
que aum enta, aum enta
e aum enta ainda,
mais de setenta
anos depois...
A m im e a ti,
leitor, aos dois
e a tantos mais,
aquela voz
conta o que vemos
aqui e ali,
diz e rediz
o que sabemos
todos de cor:
que não, não somos
o que supomos,
mas animais;
não os leões
que aqui não temos,
mas símios, reses
de m atadouro,
pois nos vendemos
por parco ouro,
quando não damos
este país
ao m ero acaso,
a algum sargento
ou aprendiz
de capataz.
E m todo caso
ao cium ento
esprit de corps
de cuja ira
os bons soldados
voltam a dizer-nos
que nos cuidemos,
147
B runo Tolentino
u m tal estad o
de coisas cham as
N ação, Estado,
Brasil ...“M entira!
Pura ilusão!
As tuas torres
pertencem aos deuses
que tantas vezes
instituíste!
N em fazesju s
a um a nação
que não possuis
nem construíste!”
ecoa a voz,
o eco triste,
cheio da ira
de Alberto Torres...
E quantas vezes
lhe ouviste a vaia
por entre as reses
m ortas de fome
no pasto seco
148
Os deuses de hoje
e as magras lavras
do caipira
que às vezes com e
e às vezes não?
Essas palavras
que ouves em vão,
sem que as entendas,
queiras ou não,
são as palavras
de um grande hom em ;
não são parlendas
que vêm e vão
sem muita urgência
ou relação
com a realidade,
sem referência
ao cidadão
ou à paisagem
desta cidade:
essas palavras,
ouve-as e grava-as
no coração
com o um a aragem
entre o selvagem
e a solidão,
porque elas são
pura verdade.
N ão as entendes
porque não queres,
porque só podes
dar nom e aos bodes
expiatórios
em teus estéreis,
tristes, histéricos
e enfim patéticos
ritos inglórios
e ensangüentados,
os que ofereces
149
B runo Tolentino
a teus duendes
e deuses vindos
de seus olimpos
peremptórios,
semi-ilusórios
porém terríveis
quando enfim descem
àqueles níveis
em porcalhados
em que pareces
viver e vives
porque te vendes,
porque leiloas
a alm a e o resto,
alheio ao eco
da voz que entoa
esse protesto
que desentendes
há quase um século.
O u bem m e engano
ou te dirás
que isto não passa
150
Os deuses de hoje
de um a canção,
dos acalantos
e vadiagens
da m inha m ão;
que ídolos, deuses
et caterva
são só im agem ,
tinta, fum aça
(talvez de erva...),
enfim, m iragem ,
dessas que às vezes
sobem à cabeça
de algum rapaz
entusiasmado
quando tropeça
na inspiração.
151
B runo Tolentino
continuam ente
teus lodaçais
há tanto tem po,
tão lá por trás,
que nem recordas
com que sementes
ou ferram entas...
N inguém disputa
que sejam um mito,
no entanto são
152
Os deuses de hoje
tua invenção.
Teus deuses duram
e durarão
(com o estás farto
de ver na gruta
em que acampaste
e de que não sais
até que nascem )
porque por trás
de cada face
nesta cidade
não vês Jesus
nem a Trindade,
mas as figuras
do teu conflito
com o infinito
que não procuras
e não aceitas,
porque rejeitas
a tua cruz
e o Pai, e o Filho,
e a m ão do Espírito
que nos conduz.
153
Bruno Tolentino
e crucificas
aqui, de novo,
com todo um povo
faminto e nu,
menos os dois,
ou dois milhões
de m aus ladrões
que magnificas
ou vilificas,
mas nunca pões
na cru z depois...
B em , m as q u e deuses?,
insistes tu.
Mas que pergunta,
respondo eu!
Os que conspiram
com o Asmodeu
que tanto adoram
sabem quais são
as divindades
cujas cidades
semidefúntas,
cheias do breu,
da podridão
de que te untas,
fazem a desgraça
em que vegeta
toda um a raça
cheia das chagas,
não dos ascetas,
mas dos idólatras
ditos ateus,
esses alcoólatras
que se embriagam
os sete dias
de um a semana
de fantasias
154
Os deuses de hoje
e de chicanas,
com o a noção
nietzschiana
de que o Senhor
teu D eus m orreu
antes do berço
e este universo
agora é teu.
Alberto Torres
findou seus dias
dizendo isso;
suas palavras
têm o am argor
do bom serviço
que te prestava,
que nos prestou.
Abriu o vôo
que não tem volta
logo depois,
mas o que disse
disse-o com fé,
com todo o am or
do patriota
que se revolta,
mas sofre até
pelo agiota.
N ão fez furor
nesta República,
viúva estéril
de um pobre Império.
U m hom em sério
m orreu sozinho
e ignorado
pela cam ada
que m anda e brilha
com o ouro puro,
mas é m onturo,
155
B runo Tolentino
lixo trocado
pelo futuro;
por fim cansado
de cam arilha
tão descarada
que troca um cetro
por mil gazuas
e varre as ruas
a canhonadas,
foi-se, discreto
e endividado,
pois nunca pôs
as m ãos em nada
da coisa pública!
M orreu honrado,
pobre e esquecido.
Mas lá, do olvido
revisitado
que faz sentido
para o futuro
de todos nós,
a sua voz
com seu cham ado
brilha adiante
de tanto escuro
com o um diam ante
indignado!
15 6
Os deuses de hoje
à realidade,
que enfim ressoa
com o um alerta
nos descaminhos
do desamor.
B ate no ouvido
de um a pessoa,
e outra, e outra,
até que encontra
de um certo m odo
quase desperta
toda a família:
répteis e bobos,
a turm a experta
e a gente tonta,
a m acacada
am eaçada
por outro alerta
que atinge a todos:
a bolsa ou a vida!
Tu que dirias?
Tu, que desertas
todos os dias
C risto Jesus
e Alberto Torres;
tu que preferes
baixar às grutas
as mais estéreis
a andar na luz;
tu, se hoje escutas
o que te digo,
tu, que do umbigo
de tantas putas
nasces feliz,
ouve o que diz
um estadista
e o Evangelho!
15 7
B runo Tolentm o
O lha ao espelho
que cara astuta
tens, velho artista,
m acaco velho,
tu, parasita,
pústula, pus
das covardias
mais esquisitas,
tu, símio nu
na selva escura,
tu, criatura
que nega e foge,
dize-m e tu:
defenderias
as tuas torres
se aqueles deuses
voltassem hoje?
Joaquim Silvério,
Iscariotes,
e Calabar:
destes o bote,
tomastes posse
desta nação
para a entregar
158
Os deuses de hoje
à fera bronca,
à noite estéril,
às confrarias
da escuridão,
enquanto ronca
E C . Farias,
o foragido
deste querido,
gigante nosso
adorm ecido...
á en tre nós,
C leitor que corres,
foges da voz
de Jesus Cristo
e Alberto Torres:
cada um nos pôs
e põe diante
daquele misto
de mais cipós
com menos ramos,
a variante
com que inventamos
um a noção
irrelevante
do ser hum ano
mais ordinário.
U m no Calvário,
o outro depois,
no entanto os dois
rasgando o pano
que dividia
a luz e o dia,
a convenção
e a realidade;
um com a verdade
que lhe exigia
159
B ru n o Tblentino
Pôncio Pilatos,
o outro com os fatos,
que não m udaram
de cor ou cara
desde seus dias;
enquanto calas
ambos te falam
da rapinagem
de que não cansas
e não desistes.
Falam -te tristes,
sem esperança
de que se salve
um infeliz,
um a criança
neste país,
um a que seja,
na tua igreja
fria e selvagem.
Jesus dizia
sem pieguice
que o ser hum ano
era um irm ão;
Alberto Torres
disse e redisse
que é ledo engano
um a nação
que nos sonham os
todos os dias,
mas dedicamos
ao deus oculto,
até que o vulto
de cada torre
na poça im unda
se nos confunda
com o pai que m ata
e a m ãe que m orre,
e o deus que escorre
16 0
Os deuses de hoje
com o goteira
vire a torm enta
que tudo inunda,
gere a imundície
podre e barata,
venha da m ata
para as calçadas
com o um recheio
nauseabundo
furando o fundo
de papeladas
e papelões...
M ais de setenta,
setenta anos
de vergonheira,
e o m ofo aum enta
dentro da empada,
a m ascarada
dos orçam entos
e dos anões
não dá em nada,
outros bufões
dividem ao meio
tua caveira
e não, não morres:
m orre o país
dos desatentos,
e os deuses lentos
chegam -se à beira
daquelas torres
tão cobiçadas
que Alberto Torres
um dia disse
serem tolice
am eaçada
de devaneio.
161
B runo Tolentino
ou não, existe
este país!
Seria assim?
N ão vou te dar
um a lição
que já conheces
pela raiz,
sabes m elhor
do que ninguém ,
sabes de cor
a poesia
chocha e chinfrim
do charlatão
que se envaidece
ao violão.
M as, quanto a m im ,
sonho acordar
a m ultidão
e escolho a prece.
Escolho orar
e ver, e agora
vou te contar
com o é que entendo,
que vejo, a lenda
desoladora,
a história triste
do que nos diz
um estadista
e hom em de bem,
um grande hom em ,
dos que aparecem
de vez em quando
em meio ao bando
dos vigaristas.
162
Os deuses de hoje
Seria engano,
e engano ledo,
julgar que posso
dar-te a lição
que lês no espelho
e nas esquinas
todos os dias
com vista grossa,
a lenda é nossa
e não precisa
do que eu diria,
pois não termina
quando um fujão,
um desertor,
que se foi m oço
e voltou velho,
imita a fala
que ouve da brisa
para contá-la
com esse arremedo
de exaltação
cham ado dor.
163
B runo Tolentino
Terei cuidado
com o que disser,
porque quem quer
ser escutado
pelo seu povo
mede a linguagem
que serve e usa,
mas nunca abusa:
antes implora
à velha m usa
contem porânea
que, se puder,
ou se quiser,
lhe ensine agora
aquela m úsica
tão natural
à realidade
que é a irm andade
subcutânea
de todo um povo.
Q ue salve a imagem
dessa ilusão
extem porânea,
dessa vontade
de im aginar-se
f‘ a z er o novo’
num a qualquer
facilidade
sob disfarce
de poesia,
a fantasia
esqueletal,
que todo dia
lês em jornal.
A h, se eu soubesse
com o acordar-te!
Se a m inha arte
pudesse mais
164
Os deuses de hoje
do que os jornais!
Se essa missão
que m e proponho
quando ainda sonho
enfim pudesse
ser realidade,
ou algo mais
do que ilusão!
Mas, com o disse
D on a Cecília:
se não houvesse
tantas paredes,
se nossos braços
tecessem m alhas,
colhessem redes...
Q u e maravilha!
Pelos compassos
desta canção
eu salvaria
esta nação,
ou pelo menos
sacudiria
suas m ortalhas
até que ouvisse
a Alberto Torres
sendo citado
por todo lado
nesta cidade
enfim desperta,
senão liberta
da cam arilha
que a tem pilhado.
as b asta, às torres!
M Vamos a elas,
que das janelas
o mais das vezes
vemos os deuses...
165
B runo Tolentino
Os altos níveis
inacessíveis
que as torres têm
não te socorrem ,
porque eles chegam
do ar tam bém :
com o os morcegos
em bandos cegos,
descem, em ergem
surgem da treva
e, leva a leva
de sangue e lodo,
baixam , escorrem ,
cercam -te as torres
no país todo
e de algum m odo
te submergem.
C o m o se alérgicos
ou refratários
166
Os deuses de hoje
a resistências,
não são velozes,
m uito ao contrário:
rondam a presa
com a elegância
das reticências,
não dos algozes:
com a agudeza
dos carniceiros,
vêem à distância,
e olham , observam,
rondam o cortejo
dessas caronhas
roendo ervas,
catando lixo,
a coisa, o bicho
que ia ser hom em
mas não perm item ,
a assombração
que se envergonha
mas passa fome,
passa o limite
da abjeção
e aceita tudo
quanto sobeja
e cata-o e com e-o...
Os deuses rondam
esse deserto
inadmissível,
não com seus tanques,
mas com a reserva
surda das ondas,
senão da hiena
imperceptível
sem m edo ou pena
do que agoniza,
o olhar de cinza
e o dente agudo
167
B runo Tolentino
de quem precisa
ver o esqueleto
quase de fora
antes da hora
em que lhe arranque
tripa e pulmão!
Os deuses, quietos
com o os covardes
que viram feras,
vigiam e esperam
a ocasião
em seus discretos
esconderijos,
pois nunca é tarde
para os expertos
que nascem certos
da vocação
e crescem , rijos
com o os enormes,
ocos projetos
que os arquitetos
da negação
fazem em segredo;
m as, tarde ou cedo,
enquanto dormes,
lépidos, ledos,
pé ante pé
na escuridão,
chegam mais perto,
mais perto, até
que ali estão
seus vultos pretos.
Porque estão certos
de ter razão,
curvam -te a nuca
até o chão,
até que beijas
o pé e a m ão
168
Os deuses de hoje
do deus do ontem
tornado o hoje
a que ninguém
resiste ou foge,
a triste igreja
do deus em brusca
ressurreição,
o anti-hom em
de quem o nom e
é legião...
Q ue então te m ontem
ou m atem , é mais
um a questão
de inclinação
tua que deles,
visto que vêem
com o animais
de criação
a ti, aos reles
restos morais
que és e nunca
deixas de ser
perante eles,
os teus juízes:
por mais que pises
nos outros, és
o que eles vêem
quando te têm
por sob a pata
com o quem trata
aos pontapés
o que é só deles;
porque ninguém
tem com o eles
todo o poder
do capataz
sobre a m anada
em derrocada,
169
B runo Tolentino
N ad a de estranho:
os deuses vêm
a teu cham ado,
mas vêm atrás
do teu grotesco
de hoje e d’antanho:
a procissão,
a m ultidão
que, pelos becos,
m orros e vãos
do teu império
em dissolução,
form am a estéril
dem onstração
de mais um nível
na podridão
mais funda, mais
inadmissível,
os teus chiqueiros,
o teu legado
aos teus herdeiros,
a tua incrível
alienação.
Ó rfa de pais
e de país,
toda um a raça
passa e repassa
de m ão em m ão,
e os deuses vêem
essa infeliz,
inconcebível
dem olição
do teu passado
e do teu futuro,
que cortas, cortas
170
Os deuses de hoje
pela raiz
até que o escuro,
a escuridão
abre as com portas
a um pobre gado,
sacrificado
por devoção
a ídolos duros,
e um m alogrado
país obscuro
e m altrapilho
bate de m ão
vazia às portas
do desespero
com seu rastilho
de convulsões.
É a indescritível
desolação
dos aleijões,
dos esqueletos
ainda inteiros,
dos corpos secos,
brancos e pretos,
de olhos pequenos
e enorm es panças
cheias do horrível
vácuo da fome,
filas de hom ens,
mães e crianças
que usas e abusas,
mas que não nutres
e m uito m enos
vestes e educas;
a procissão
que, em desespero,
curvando as nucas
ante os abutres,
vai e abre as portas
171
B runo Tolentino
/
so e n tã o
E que, com o o rio
passa levando
o aluvião
que cobiçara,
roendo a cara
mole do chão,
é só então
que os deuses vêm.
C hegam em bando,
com o um resgate
pelo alçapão,
com o um veneno
velho e barato,
mas necessário
no casarão
cheio de ratos
e usuários
da podridão.
N ão , nunca têm
a solução
dos teus dilemas,
mas têm à mão
o teu retrato,
e pronto, basta!
A obra de arte,
a im agem gasta,
suja e confusa
dos eczem as
de um aleijão,
é o guia-m apa
do pelotão,
tem o poder
172
Os deuses de hoje
brutal do fato
que te recusas
a confessar-te,
a reconhecer...
C o m que cuidado
tiram a chapa
desse coitado!
T ratam -no a tapa,
e com razão!
Sabem que a cara
do descarado
cabe na m ão
do ídolo arm ado,
e que ele gosta
de bofetão;
sabem que a tara
de quem se encosta
no valentão
é ser tratado
do m odo duro
com que o malvado
trata o poltrão:
a tapa e murro.
M as dão-te ao menos
u m a razão:
dizem que são
um a resposta
ante a desordem,
que suas hordas
salvar-te-ão
da convulsão
e do desastre
a que voltaste
de novo as costas.
C urvas-te então,
beijas os pés
da parasita,
173
B runo Tolentino
lambes as botas
do ser supremo
que te visita,
e o enorm e anão
por fim hesita-
se não consola
os seus fiéis,
não os degola
a todos não;
escolhe os dóceis,
coleciona-os,
transforma uns poucos
em brindes, fósseis,
enfeites ocos
para os museus
nauseabundos
do novo deus
que fez do m undo
mais um a zona
de segurança.
O deus imundo
que te consola
de ser anão,
que não se cansa
de pôr a argola
no teu nariz
O deus que avança
sobre o país
e agarra tudo,
com e a esperança,
pune a decência,
fecha as escolas,
bane a criança,
mas dá esmolas
a quem se presta
ao beija-m ão,
aos rapapés...
174
Os deuses de hoje
M ete-lhe a alma
num a gaiola
e deixa o resto
solto, contanto
que lhe ouça palmas,
que não lhe ouça
choro nem canto,
nenhum protesto,
nenhum a prece
que não pudesse
ser um tributo
ao deus da hora.
E a gente m oça
ou vai embora
sem suas almas,
ou a um a voz
une-se e adora
o deus astuto,
o novo algoz
absoluto
que se assenhora
dos lambe-botas,
que, não dem ora,
beijam -lhe a m ão
e batem palmas
ante a derrota
de um a nação
sem mais saída
que dar a vida
aos idiotas.
p or q u e não
E se são teus deuses?
Se os m aom és
de ocasião
guiam assim
os seus fiéis:
aos bofetões,
175
B runo Tolentino
aos cachações,
queiram -no ou não,
guiam -no assim
até ao fim,
até à meca
das ilusões.
Sim , por que não
se tantas vezes,
com o peteca
de paspalhão,
saíste atrás
de um a outra m ão
que te aplicasse
u m a vez mais
a bofetada
dura e bem dada
pelos fundilhos,
tu, que não tinhas
cara ou sequer
força, desplante
de erguer a face
ante teus filhos,
tua m ulher?
N ão eras nada
e nada és,
pois doravante
és o joguete,
a erva daninha,
a marionete
dos coronéis,
dos lampiões;
sabias bem
que entre os bofetes
e os rapapés,
entre o joão
das loterias
e o joão-ninguém ,
seu eleitor,
176
Os deuses de hoje
Porque os gigantes
filhos de anões
nunca lhes dão
pouso ou perdão,
mas u m a espécie
sempre hum ilhante
de expiação.
E nunca exigem
explicações
a seus hom únculos,
apenas fingem
ouvir e descem,
pelos porões,
com o as esfinges
a seu crepúsculo:
com aquele exato,
velho sorriso,
o último aviso
de que obedecem
quando cham ados
e irão ao culto
desesperado
177
Bruno Tolentino
com o se dessem
veneno a um rato.
E assim mereces!
Porque de fato
sabes que esses
e tantos outros
monstros baratos
e boloridos
vindo ao encontro
de tuas preces
são teu retrato
fiel, cuspido,
frio, escarrado.
Os teus parentes
e conhecidos
sabem que és,
ou te tornaste
um roedor,
um porco dente
roendo a haste
em que a semente
gerou a flor
podre e doente
que se pendura
com o bandeira
esfarrapada
à ponta dura
da baioneta,
com o a um guindaste
sanguinolento
que erguesse ao vento
a descarada
papoula preta
filha do nada
com a bandalheira.
N o espelho raso
de cada poça
178
Os deuses de hoje
que te retrata,
aquela imagem
da flor maldita
que te entorpece
depois te mata,
não vai descrita
porque coubesse
no belo acaso
da rima rica:
significa
o velho e a m oça
na mais tranqüila
concubinagem ;
o jovem à hora
das vassalagens;
os sacripantas
fazendo fila
ante os selvagens
e os imbecis;
eles e tantos,
e muitos mais
neste país!
A flor do vício
e do desmando,
que andas plantando
pelas beiradas
do precipício,
nessa paisagem
que vais cortando
pela raiz,
é, sem tirar
nem pôr, a cara
do teu país:
doente, insossa
e sem sabor,
em pleno ar
com o uma flor
que se prepara
179
B runo Tolentino
a ser jogada
ali, no vaso
de um lupanar...
E m todo caso
o capataz
já não te pede
explicações
e os sargentões
não querem mais
tuas matreiras
divagações,
querem levar
tudo o que pões
entre paredes
e cum eeiras,
e entram , apontam
para o que insistes
em ignorar
e, arm as em riste,
abrem -te o lar,
enchem prisões,
e vão buscar
tudo o que escondes,
nos alçapões,
nas arapucas,
quem sabe onde,
tudo o que faz
de ti um m onstro
triste e voraz
os deuses buscam -no
até que o encontram .
d ão o bote
E dos justiceiros,
porque são deuses!
Sem anas, meses,
anos inteiros,
observam , escutam
180
Os deuses de hoje
teus palavrórios,
teus exageros
e julgam , julgam -te
m uito bem 1
Ali, às beiras
dos belos bairros
de que te orgulhas
há o hom em -bicho
com endo lixo
pelos entulhos,
os meninotes
form ando o bando
de arm as em punho,
atrás dos carros
e das carteiras,
nascendo em maio,
m orrendo em junho,
ou vegetando
nas espeluncas,
em seus caixotes
com o galinhas
em seus balaios,
os tristes ursos
de um circo negro
Os deuses mudos
anotam tudo;
texto por texto,
lêem -te os discursos
e as entrelinhas
e, com o nunca
pregaram um prego
sem boa estopa,
fazem daqueles
que sob a roupa
são osso e pele,
fazem aos poucos
dos semiloucos
de ira e fome,
181
B runo Tolentino
daqueles moços
emaciados
que são esboços
finais do hom em
que não serão,
frios, tenazes
com o a razão,
os deuses fazem
de um aleijão
abandonado
o seu pretexto
para o sarau
da assombração
entre as caveiras,
sob as bandeiras
a meio pau,
no longo luto
do mais funesto
dos feriados.
Se se aproveitam
de quanto fazes,
se cortam o joio,
depois o trigo,
é porque assim,
sempre capazes,
meticulosos,
põem ao abrigo
toda a colheita.
P or teu apoio
mais irrestrito
eles te aceitam
o que é ruim
pelo que é bom;
questão de tom,
simples receita
de bacanal
organizada
por toda a seita.
182
Os deuses de hoje
Q ue o esprit de corps
faz de um curral
algo de prático,
e é natural,
mais dem ocrático
e bem melhor
que todos com am
toda a m anada
aberta a sabre,
e nada sobre
do que se abre
nem reste nada
do que te tom am ,
nem o pior.
Frios, argutos,
prudentem ente,
com o convém
às velhas feras,
eles esperam
e, quando vêem
que finalmente
tu já não tens
noção algum a
do que te deram
da últim a vez,
dispensadores
de expiação,
os domadores
do que tu és
saem da brum a,
surgem, acodem
aos teus horrores,
e se primeiro
com em teus bodes
expiatórios,
depois devoram
teus companheiros
e finalmente
183
B runo Tolentino
a ti tam bém .
Pior a emenda
do que o soneto!
Porque os teus deuses,
todas as vezes
que vêm (e vêm
com o os invernos
que não se adiam ),
não sabem nem
que já fizeram
outras badernas
em outras eras:
com o modernas
Medusas frias,
os Torquem adas
de pelotão
cavam -te as covas
achando novas
alegorias
para a estação
de fogo e ferro
do m esm o erro,
as mascaradas
recauchutadas
da aberração...
Sabem porém
que não tens nada
para a salada
desta nação,
que para o preto,
o branco e o pardo
não és ninguém ,
nem um covarde,
és a oferenda
ao deus que tem
todo o poder:
o deus do mal
com o do bem
184
Os deuses de hoje
o m o n a len d a
C do piparote
dado no m undo
pela m ão dura
do anjo horrendo
que odeia o ser
(o que não quis
ser o segundo
e desde então
faz este m undo
tão infeliz),
aqui, no fundo
do m eu país,
há um a coorte
assim tam bém .
A ndam com sorte,
vivem tão bem
que não im portam
a mais ninguém ;
não estão ocultos
atrás da porta,
estão calados,
mas bem mais perto
do que supões.
N ã o são soldados,
soldados têm
185
B runo Tolentino
outras missões,
são as legiões
de um a caserna
que se confunde
com essa caverna
sem lugar certo
no m apa-m úndi,
onde, segundo
creias ou não,
andam os vultos
de um a platônica
exibição...
Porque, no fundo,
se são m iragem
dos teus desertos,
são tão incríveis
quanto concretos,
são, na paisagem
de desconcertos
em que tu vives,
os mais terríveis
dos teus enxertos!
Mas todos são
tão, tão discretos
que quando chega
de prontidão
a horda cega
parece côm ica
a procissão!
Mas não é não:
a histriónica
aparição
com endo os bodes
da ocasião,
tem tanta fome
que com e as torres
morais do hom em
e depois com e
186
Os deuses de hoje
a ele também.
Q uando enfim surgem,
com o C aronte
tocando à m argem ,
por trás do m onte
de m edo e fezes
das tuas urbes
semi-selvagens;
quando eles vêm,
entre teus porres,
tuas badernas
e teus reveses,
dar-te lições,
engolir bodes,
sonhos e torres,
não são bufões,
são m esm o deuses,
os que supões
inconcebíveis,
mas te sacodem
com m ãos visíveis
até que têm
tudo o que tinhas:
tuas tardinhas,
nos calçadões,
tuas cidades
e vastidões
despovoadas,
tuas ciladas
e teus porões,
que enchem de lodo,
sangue e vergonha,
até que nem
o louco sonha,
nem ele mais
desmente o algoz,
a carantonha
que o m onstro faz.
18 7
B runo Tolentino
s deuses v êm
O cobrar a parte
que lhes devias;
são tuas crias,
as criaturas
daquela arte
ou artim anha,
ou diabrura,
quem sabe o quê,
a artezinha
sutil que tinhas
em tanto apreço
que, se ao com eço
foi pequenina,
veja você,
cresceu, cresceu,
entre ruínas
e virou fé!
M ove as m ontanhas
que são de Deus
e não dos deuses,
o mais das vezes
remove até
188
Os deuses de hoje
o mal e o bem,
a tua arte
da ambigüidade,
que curva, inclina
e entorta tudo
ad absurdum
e um dia há de
pegar-te o pé
e arrastar-te
para as profundas
do poço imundo.
Velhos ou m oços,
teus inocêncios
escavam poços
em teus desertos,
mas tu tam bém ...
Poços imensos,
cheios de sedes
e de trapaças,
ocos que podes
cercar das hordas
dos teus cangaços,
mas onde é certo,
é inevitável
que um dia acordes
diante da feira
feroz, a missa
negra e negreira,
interminável
e costum eira,
a tribo inteira
dos esqueletos
e das carniças
que am ontoaste,
o branco à beira
do poço preto.
189
B ru n o Tolentino
e, passo a passo,
gole por gole,
bebem teu sangue,
com em -te a prole
e te perguntam
se aquele m angue
sanguinolento,
o m onum ento
que escavucaste
à tua raça,
por fim te basta
com o desgraça...
O precipício
será teu último
e triste poço,
o mais inútil
desde o início,
o poço seco
no eterno beco
dos velhos vícios,
teu calabouço
cheio de ossos
e de ruínas.
A arte que ensinas
aos próprios deuses,
arte de quinas,
e curvaturas,
as mentirinhas
e as desverdades
de que dispunhas
com o metades
de um a só farsa,
ergue colossos
e as desventuras
suas vizinhas,
ervas daninhas
que nunca passam.
190
Os deuses de hoje
Q uando se esgarçam
aquelas redes
morais que guardam
o bem do mal,
quando um a raça
faz um curral
entre paredes
para a mais cúm plice
bacanal,
primeiro cum pre-se
o ritual,
depois, mais tarde,
com o convém
à velha guarda,
os monstros vêm.
191
B ru n o Tolentino
E enquanto isso,
enquanto fazem
o teu serviço,
não és ninguém
e eles tam pouco:
os corretores
do desvario
nos corredores
dos teus vazios
são quase lenda,
mitos num oco
não de caverna,
mas de outro poço
e outro, e outro/
sombras de ossos
vindas do fundo
de um a cisterna
nauseabunda,
com o de encontro
à hidra de L ern a
vinham escombros
do submundo.
Mas a ilusão
que a um certo nível
192
Os deuses de hoje
os deuses são,
fantasmas, sombras,
coisas que hibernam
por entre os gases
da podridão
e acordam quase
com o um a eterna
alucinação,
a indescritível
aparição,
a triste lenda
com seus bigodes,
seus aleijões
e seus sequazes,
no entanto pode
fazer que nem
as mais terríveis
execuções
das tuas ordens,
as mais incríveis
demolições,
nada, ninguém
rem ova a venda
que cega os olhos
de gerações...
o m o p iolhos
C nos corações,
os deuses ágeis
andam em matilhas,
tropas selvagens
de ocupação;
ocupam o vão
entre as quadrilhas
e o cidadão,
entre os que erguem
as maravilhas
da criação
193
B runo Tolentino
e o rufião
que as não consegue
furtar ao chão.
194
Os deuses d e hoje
da m esm a escória
mais um a inglória
ressurreição.
C hegam então
sempre por trás,
sempre da sombra,
sempre do não;
quando os ouvimos
com o aos escombros
chegar fazendo
trem er o chão
e pondo a m ão
em cada ombro,
não somos nada,
não temos mais
a intuição
da criatura
entre anim ais,
somos m anada,
gado no escuro,
carniça em postas,
com o nos postes
de antigam ente,
um outro abril,
os pedacinhos
de Tiradentes
pelos cam inhos
deste Brasil.
195
B runo Tolentino
pisando o irmão.
M ata-se em vão,
e ainda assim
m ata-se, m ata-se
até ao fim,
até que o sangue,
correndo a rodo,
criando mangues
e enchendo exílios
de um a ira absurda,
por ti, por m im ,
por nossos filhos,
o m ar de sangue
faça que todos
os teus escrúpulos
sejam defuntos
e um a nação
finja-se surda
e ande no lodo,
os transeuntes
da deserção.
D e nada vale
que te perguntes
por quê, quem são,
a que vieram;
eles virão
porque ignoras
que cara têm,
de onde surgem,
qual é seu nome.
N ão vêm de fora.
Surgem do hom em .
Aquelas feras
são a ferrugem
no teu porão.
Os deuses nascem
de ti, das cruzes
abandonadas
196
Os deuses d e hoje
o rq u e tu as torres
P andam cercadas
da multidão
desabrigada
que não tem nom e,
que não socorres
nem vês, a enorm e
desolação
que te preparas
faz com que eles
troquem o pejo
pelo uniforme,
e, bruscam ente,
com o piolhos
e percevejos
por sob a pele
mas ante a cara
de um a nação,
197
B runo Tolentino
surjam de novo,
com o do ovo
sai a serpente
que com e os olhos
e rói a m ão
de todo um povo
que não se ergue,
que m al consegue
erguer então
torres nos pântanos
que finalmente
as engolirão.
O batalhão
pode ser velho
ou quase imberbe,
mas é o espelho
diante do cego,
e não adianta,
de nada serve
se certas vezes
os reconheces
e outras não:
todos são deuses
e baixam, descem
ou se levantam
da podridão.
Os que te espiam
talvez durante
um a geração,
e enfim percebem
a eletrizante
ocasião
que nunca perdes...
Os deuses verdes
e confiantes
de um a nação
em perm anente
198
Os deuses d e hoje
demolição,
os que obedecem
à vocação
quando consentem
em levantar-se
sob o disfarce
de outra lição,
um belo dia,
um dia triste
com o os que insistes
em dar ao C ão,
infelizmente
aquele dia
os cham arás,
porque eles são
as fantasias
sacramentais
com que envenenas
todas as cenas,
os rituais
com que apequenas
as tuas torres
até que morres
entre currais.
C om a convicção
com que teus galos
erguem as torres
de um cantochão
longo e choroso
em torno, à frente,
em busca, atrás
do sangue ardente
e esplendoroso
das alvoradas,
assim um dia
irás cham á-los,
com o os teus galos
cham am a magia
199
B runo Tolentino
das m adrugadas.
M as, ao contrário
dos festivais
do am anhecer,
com o os badalos
nos cam panários
batem na tarde
que anda a morrer,
irás cham á-los
com o o covarde
cham a o sicário.
E , pontuais
com o os mosquitos
quando escurece,
ou os chacais
quando a luz m orre,
eles virão,
escutarão
a tua prece
e, porque deuses
sempre obedecem
ao m esm o rito
todas as vezes,
virão, virão
com er-te torre
por torre, e o grito
que abafarão.
A tua raça,
alim entando-se
da m entira,
escravizando
sem cerim ônia
seus semimortos,
primeiro corre
em direção
ao precipício
e, com o o bando
200
Os deuses d e hoje
daqueles porcos
que eram demônios
fugindo ao Cristo,
enfim se atira
sobre a carcaça
dos próprios vícios,
dos mesmos erros,
o velho misto
de desesperos
que entrega tudo
à m ão de ferro
e de veludo
dos deuses frios,
demolidores
das tuas torres
e construtores
dos teus vazios
201
Ú ltima P arte
N A T E R R A P R O V IS Ó R IA
( 1985- 1994)
a Antônio Houaiss
G e o f f r e y H il l
203
O FA LC A O
O falcão parado
no ar um m om ento,
imobilizado
no ar pelo vento
que lhe em purra o peito
parado, perfeito
no exílio do céu.
O falcão no exílio
da amplidão, e imóvel
sobre um braço jovem,
o falcão só teu...
O falcão sem fim,
o falcão sem grei,
o dono do filho
do rei, o falcão
dono da amplidão.
E u vivi assim.
C om o esse falcão
onde as nuvens movem
devagar a m ão;
com esse falcão
de repente imóvel
no branco do céu.
Assim vivi eu.
Décadas a fio
pairei sem poder
voltar ao m eu rio;
não o pude esquecer
e não soube ser
daqui nem de lá:
nem o rouxinol,
205
B runo Tolentino
nem o sabiá,
via am anhecer
com o o girassol
vê a luz morrer,
sente a passarada
retornar ao ninho,
depois a calada
da noite descer.
Vivi tão sozinho
que doía ser,
e vivi tão mal
que vim a tecer
meu canto de nada,
devagar, de fora,
de longe, da arcada
de um a embriagadora
solidão moral.
C ansei-m e afinal.
C alei-m e e voltei
trem endo da altura,
de novo à procura
do bando, da grei,
o falcão calado
no ar um m om ento,
se imobilizado
(quase) pelo vento
que lhe enfuna o peito;
se com um certo jeito
solitário ainda,
porque a solidão,
essa nunca finda,
é com o um incêndio
ateado ao vento,
não se acalm a não,
mas acaba sendo
referencial:
purificação
pelo alheam ento,
206
Os deuses de hoje
é ainda um sinal
da torre ancestral
que há no coração.
O ÚLTIM O PASSEIO
207
B runo Tolentino
208
Os deuses d e hoje
209
B runo Tolentino
E u m a voz
que tento pôr agora no papel,
nossa voz ancestral contem porânea,
a que pergunta m as que só responde
depois que se m isturam quando e onde,
com o e por quê, e o verde
d’antanho recolore
o instante que foge;
aquela voz, a tua, a nossa, M anuel,
vem avisar-m e agora,
vem recordar-m e hoje
o que tu m e dizias esse dia:
que o m undo é com o um porre
lento e contínuo e cheio de degredo;
que é preciso ter medo
e esperança, contido e comedida;
e que o que nunca morre,
a poesia, é sempre, com o a vida,
o contrário da H istória:
súbita e breve e m uito delicada
de segurar, às vezes, pela mão.
A m ão de um a alegria,
que é a m esm a m ão dos pêsames, do adeus
e do aperto de mão.
A m ão aberta, a m ão honrada,
jam ais a m ão de ferro da vitória,
am bígua e contingente
e tão freqüentem ente
ensangüentada pelos manifestos
do caos, na confusão
de ninguém e de todos,
nos engodos,
nos gestos do carrasco e nos protestos
da pátria no porão.
210
Os deuses d e hoje
OS DESAPARECIDOS
211
B runo Tolentino
E este instante
eu, que o escuto, deixo-o aqui gravado,
aquele rito
perfeitam ente intacto agora,
a rosa mundi,
a labareda que é um a rosa sem H istória.
212
Os deuses de hoje
N O TU R N O À JAN ELA DO A LH EA M EN TO
PR EC E P E LO DIA SEG U IN T E
213
B runo Tolentino
a filha de D on a Cecília
está m orrendo igual a ela;
com o m orreu Jorge de L im a
anda tam bém m orrendo aquela
pérola única, a única filha
do poeta m aior cuja sina
ficou sobrante a toda pérola;
214
Os deuses de hoje
A mortalidade moral
m ata mais que faca e fuzil
no território nacional;
de ponta a ponta o m eu país,
cada dia mais infantil,
m ata a si m esm o com ardis,
com imposturas, num m arasm o igual
às diabruras e penduricalhos
da pior africanização;
com o u m a colcha de retalhos
que não tapa mais nada, o chão
de derrapantes assoalhos
deste país sem direção,
é sacudido pela m ão
215
B runo Tolentino
216
Os dosses de hoje
217
B runo Tolentino
218
Os deuses d e hoje
escuta-nos, m ãe de Jesus!
O rapro nobis, vem a nós
com o estavas ao pé da C ru z
à hora sombria, o instante atroz
em que se ouviu aquela voz:
“Por que m e abandonaste...?” A luz
nos abandona, estamos sós
os leprosos mal-agradecidos
que não retornaram ao teu Filho
219
Bruno Tolentino
R io de Janeiro, 26/12/1985
D E ARMAS E BAGAGENS
220
Os deuses de hoje
221
B ru n o Tolentm o
da sinfonia inescapável.
N ão deveria ter falado assim
de um a terra inafiançável,
é verdade, mas que faz em mim
o que faço de m elhor: ruim
que seja, d á-m e o que tem de dável,
222
Os deuses de hoje
223
B runo Tblentino
224
Os deuses de hoje
N /M M arabá, 1986
225
B runo Tolentino
de um cercado de m oinho
sinto-m e a falar contigo!
226
Os deuses de hoje
que se ch am a solidão...?
Amsterdam,
19/4/1986
POST-SCRIPTUM PARA
FR ÉD D Y BLAN K
227
B runo Tolentino
DISCURSEIRAS E FAXINAS
228
Os deuses de hoje
II
229
B ru n o Tolentino
230
Os deuses de hoje
A DÁDIVA
231
B runo Toleniino
A poesia é um celibato
perigosam ente m arcado
pelo prolífico, onde o poeta
mais refletido ainda se perde:
23 2
Os deuses dc hoje
233
B runo Tolentino
Ia ser desembainhado
mais adiante, esse punhal,
ser exposto e confrontado
com o bisturi, seu igual
234
Os deuses de hoje
A M EDALHA
M as a de Ferreira Gullar,
a revolução que ele fez
e vem fazendo há tantos anos
por todos os que tanto a sonhamos,
essa sim, teve data e tem
a form a e o feitio de quem
entregou ao século e ao hom em
o seu sonho, o seu desengano,
a sua vida
e a lim pa m edalha de um nom e.
235
B runo Tolentino
OS SANTOS DA LU Z DA PEN H A
1. A V I S IT A Ç Ã O
L au ra L u z , pecadora arrependida,
cunhada de Isabel, era um a chata:
resolvera fazer um a visita
incaridosa e casta a essa cunhada
que além de ainda viver a m esm a vida
que ela, L au ra, levara, a vira-lata
a cham ava de hipócrita bendita!
L au ra, im paciente, se evangelizada,
não estava pra aquilo e dentro em pouco
poria cada 60 isa em seu lugar!
Zacarias, o santo do pau oco
seu irm ão, era o corno titular
da C ircu lar da Penha: ou estava louco
ou sabia que o pai era o Edgar...
2. O A V IS O D O A N J O
L á ia a ilum inada L au ra L u z
(que não pecava mais) pela Avenida
Brasil, com o Instituto Oswaldo C ru z
à esquerda, planejando essa esquisita
contrafação da Virgem que, Jesus
no santo ventre, foi com padecida
visitar a parenta, e eis que sus!
derrapa a lata velha da bendita
e ela dá com os costados no outro m undo
(ao lado de um chofer de lotação
parecidíssim o ao T ião M edonho!).
E agora? Purgatório? N o profundo
entender do Senhor pecado ou não?
L au ra acorda suando: eu, hein, que sonho!
236
Os deuses de hoje
3. O S R E C É M -N A S C ID O S
4. A S A L A D A E A F A M ÍL IA
5. O PA RA CLETO
237
B ru n o Tolentino
e sumiu. T ia L au ra tinha fé
que ele voltava, tinha fé em D eus,
mas D eus tinha outros planos para os Seus.
A g e n te nunca sabe quando é
que D eus há de pintar e um dia adeus
vidinha, o dedo D ele pinta e até
que a turm a dê por isso baixa o Santo
(Espírito!) e é aí que a coisa esquenta:
o Batista sumiu da Penha e enquanto
o povo com entava, diz-que longe,
lá no sertão onde prateia a lenta,
a velha lua, se fizera m onge...
6. A D IÁ S P O R A
7. A S T R A N S F I G U R A Ç Õ E S
238
Os deuses de hoje
239
B ru n o Tolentino
240
Os deuses de hoje
241
B ru n o Tolentino
RESPONSABILIDADES
II
242
Os deuses de hoje
III
IV
243
B runo Tblentino
VI
VII
244
Os deuses de hoje
V III
IX
245
B runo Tblentino
A ROSA DO POLVO
Tentacular,
não a colheu, abraçou-a,
e m uita gente boa
aqui deste lugar
246
Os deuses de hoje
247
B ru n o Tolentino
em chacal ou em lobo,
publicava o retrato
retocado do fato,
m as entre as redes deste vasto globo
ficava um a impressão
de que a rosa tam bém tinha m udado...
M as não m udara não,
afiançava a garra do soldado
de baioneta em punho,
era a velha m ania da queixa,
do falso testem unho,
e o am e-a ou deixe-a
E assim, recolorida
a cada m adrugada,
a pobrezinha, sempre na calada
da noite espavorida,
248
Os deuses de hoje
despetalou-m e toda...
M as ninguém acredita
que voltem a lhe fazer outra visita,
que sem pedir-lhe a m ão consum em a boda
e cada transeunte,
toda essa gente sem m em ória ou fé,
de repente se espante e se pergunte:
e agora, José?
249
B ru n o Tolentino
II
Q u e se há de fazer se o malnascido,
o E saú que am ava m al Jacó,
é u m a espécie de anão desinibido
no circo ao seu redor, m as não tem dó,
juízo ou paciência? Vivi só
porque fiai sempre um m al-agradecido,
um bastardo da vida sem sentido
e fui-m e em bora sacudindo o pó
dos sapatos, que nem a soberana
cujo esposo entregou este país
a um filho bem m elhor que o teu. Mas fiz
tudo o que fiz porque não quis nem grana
nem em ular um M achado de Assis:
preferi sempre lam a a filigrana.
III
250
Os deuses de hoje
IV
251
B runo Tolentino
VI
V II
252
Os deuses de hoje
VIII
IX
253
B runo Tolentino
XI
X II
254
Os deuses de hoje
X III
X IV
255
B runo Tolentino
XV
XVI
256
Os deuses de hoje
X V II
CÁ E N T R E NÓS
257
B runo Tolentino
Sinto-m e deslocado;
no tem po em que lavrava
m inha indignação
entre o ritm o e a palavra,
confiava na vida, reclam ava um passado
e exigia um futuro, falava a u m a nação!
A TO RRE CABOCLA
E u , o poeta B ru n o Tolentino,
porque nunca m e dei com tiranos
258
Os deuses de hoje
259
B runo Tolentino
260
Os deuses de hoje
261
B runo Tolentino
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Os deuses de hoje
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B runo Tolentino
NIHIL OBSTAT
II
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Os deuses de hoje
III
265
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