LOURO 2015 Educação Musical Inclusiva
LOURO 2015 Educação Musical Inclusiva
LOURO 2015 Educação Musical Inclusiva
Organização Coordenadora
Helena Lopes da Silva e José Antônio B. Zille Helena Lopes da Silva
Coordenação editorial
José Antônio B. Zille e Roger Canesso EdUEMG - EDITORA DA UNIVERSIDADE
DO ESTADO DE MINAS GERAIS
Projeto gráfico
Maíra Santos Coordenação
Daniele Alves Ribeiro
Capa
Roger Canesso Diagramação
Marco Aurélio Costa Santiago
Editoração de partituras
Lívia Rodrigues Batista
http://eduemg.uemg.br
Fotografia [email protected]
Hélio Dias (32) 3052-3120
Autores
Rosângela Pereira de Tugny
Viviane Louro
Cecília Cavalieri França
Violeta Hemsy de Gainza
Judith Akoschky
Dulcimarta Lemos Lino
Maria Teresa Mendes de Castro
Luciana Del-Ben
Helena Lopes da Silva
Daniel Gohn
Teresa Mateiro
Moacyr Laterza Filho
Luis Ricardo Silva Queiroz
VOLUME 2
E
m 1981, a ONU promoveu uma iniciativa inédita, que teve como objetivo
chamar a atenção do mundo para a criação de planos de ações, na tentativa
de enfatizar a igualdade de oportunidades, a reabilitação e a prevenção de
deficiências. O lema desse evento foi Participação plena e igualdade, o qual foi de-
finido como um direito das pessoas com deficiência, a fim de que elas pudessem
viver de maneira completa, começassem a ter parte ativa no desenvolvimento das
suas sociedades e tirassem proveito das suas condições de vida de modo equivalen-
te a todos os outros cidadãos. Esse ano ficou conhecido como “Ano Internacional
das Pessoas Deficientes”1 e foi o primeiro passo efetivo para o desenvolvimento do
1 Atualmente, a terminologia utilizada é “pessoa com deficiência”, mas em alguns lugares do mundo o
termo já está sofrendo alterações, e a nova proposta é “pessoa com diversidade funcional”. Tudo indica
que essa terminologia será amplamente utilizada nos próximos anos, mas por enquanto, “pessoa com
deficiência” ainda pode ser utilizado.
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O paradigma de suporte alega que a sociedade precisa oferecer suporte para que
todas as pessoas, em especial, as com deficiências, participem de todos os âmbitos
sociais com o máximo de autonomia possível. Antes de chegarmos a esse ponto,
tivemos dois outros paradigmas: o paradigma de institucionalização, que pregava
que as pessoas com deficiências deveriam ficar isoladas em instituições específicas
para elas, fora do convívio social, e o paradigma de serviço, que pregava que a
pessoa com deficiência poderia ser integrada na sociedade depois de passar por
um processo de normalização, ou seja, a sociedade prestaria o serviço de treiná-
la em instituições especializadas e, quando estivesse pronta para a convivência
social, seria colocada na escola comum (OLIVEIRA; REIS, 2004).
“Estar apto a receber todos os públicos” não significa somente promover adaptaçôes
arquitetônicas, como rampas, elevadores, chão tátil e banheiros. Certamente, isso é
imprescindível, mas as iniciativas precisam ir além disso. Antes, significa oferecer
programas internos de acessibilidade, ou seja, intérprete de libras em todos os
estabelecimentos públicos e privados; livros, cardápios e panfletos em Braille;
adaptações de mobiliário para cadeirantes, obesos ou pessoas com mobilidade
reduzida, em todos os locais públicos e privados; maneiras alternativas para que
pessoas com deficiência intelectual ou autismo usufruam dos benefícios que o local
oferece às demais pessoas; telefones para surdos, cadeirantes e anões; roupas para
obesos, anões ou pessoas mais altas que a média; academias adaptadas para cadeirantes;
parquinhos adaptados para crianças com deficiência física, surdas ou cegas etc.
Ou seja, o paradigma de suporte prega o respeito à individualidade das pessoas e
uma sociedade que ofereça as mesmas oportunidades para todos os indivíduos,
independentemente de suas questões físicas, cognitivas ou comportamentais.
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anos. Por isso, ainda há tanta controvérsia sobre essa temática, principalmente
no sistema pedagógico, pois, dentro dessa nova realidade, não caberiam mais
as escolas especiais, pois estas são extremamente segregacionistas. O objetivo
maior, no paradigma de suporte, é que todas as escolas sejam aptas a receber
todos os tipos de alunos: sem ou com deficiências, com altas habilidades, com
questões culturais diversas, com problemas psiquiátricos, com autismo, com
orientações sexuais distintas, com religiões diferentes, enfim, todas as pessoas,
sem exceção.
Devido à inclusão, o sistema de ensino está passando por uma crise, pois ele reflete
um modelo de ensino do século retrasado, galgado em agrupamento de pessoas
conforme particularidades específicas (crianças de tal idade, alunos com tais
características e interesses etc.). Além disso, o sistema educacional é baseado em
turmas fechadas, com somente um professor que “oferece” o conteúdo, avaliações a
partir de provas e notas, conteúdos inflexíveis que precisam ser dados num tempo
específico, rendimento a partir de um padrão do que é esperado para tal idade.
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Poucos são os trabalhos inclusivos, isto é, que juntam pessoas com e sem
deficiências no mesmo ambiente educacional musical de forma consciente e
direcionada pedagogicamente para que todos aprendam. Temos certamente
algumas iniciativas que vêm tomando espaço. Dois exemplos são o Programa de
Apoio Pedagógico e Inclusão da Fundação das Artes de São Caetano do Sul (Papi)
e o Espaço Pedagógico de Artes (EPA), ambos em São Paulo.
Já o Espaço Pedagógico de Artes3 é uma ação nova, iniciada em 2014 por um grupo
de profissionais preocupados com a educação musical inclusiva. Nesse espaço,
todos os alunos – com ou sem deficiências – passam por uma sondagem inicial
em que são mapeadas as dificuldades e habilidades deles nas questões musicais,
cognitivas, psicomotoras e comportamentais e, a partir disso, é traçado um plano
pedagógico individualizado. Os alunos são distribuídos em aulas individuais ou
coletivas, conforme suas necessidades, e cada turma tem um objetivo específico
musical a ser trabalhado. Os conteúdos e o tempo de aula são flexíveis, há muitos
materiais adaptados, e as avaliações são realizadas de acordo com a capacidade
dos alunos, tendo eles deficiência ou não4.
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Em 2014, uma ONG de São Paulo promoveu o primeiro censo de educação musical
inclusiva, com o objetivo de mapear quantos professores de Música trabalhavam
com pessoas com deficiência no Brasil, bem como suas necessidades em relação
ao trabalho. Há também, em São Paulo, o grupo de estudos Germina6, que visa
a discutir e estudar sobre música, inclusão, neurociências e aprendizagem, criar
estratégias pedagógicas para esse contexto e publicar artigos científicos sobre
esses temas em revistas significativas da área de música, inclusão e educação,
para contribuir com o desenvolvimento teórico.
As pesquisas e publicações nacionais sobre essa temática ainda são poucas, mas
vêm crescendo a cada ano. Cada vez mais trabalhos são apresentados na Abem10,
Anppom11 e Simcam12, eventos de referência na área musical. Livros na área ainda
são escassos, mas temos algumas literaturas nacionais, como: Educação musical e
deficiência: propostas pedagógicas, Arte e inclusão, Arte e responsabilidade social:
inclusão pela música e teatro e Fundamentos da aprendizagem musical da pessoa
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Ser professor não é um trabalho ou uma ocupação, mas, sim, uma profissão e, como
tal, necessita de um estudo denso a partir de embasamentos teóricos bem definidos.
Um mecânico precisa saber como funciona um carro e quais tipos de ferramentas
são necessários para conseguir arrumar um defeito específico do automóvel. Se
ele souber tudo de que precisa sobre carros, mas não souber sobre consertos ou
manuseio das ferramentas, não conseguirá arrumar o carro, assim como se ele
entender sobre ferramentas, tipos de óleos e peças, materiais mais apropriados para
se usar, mas não souber sobre o funcionamento do carro, de nada adiantará.
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Então, para se dar aula de Música é fundamental saber sobre música, metodologias,
abordagens diferenciadas, estratégias pedagógicas, psicologia cognitiva, e o
principal: pessoas, ou seja, o modo como funciona o aparato neurológico que
se destina à aprendizagem, levando em consideração o desenvolvimento motor
e emocional, bem como os aspectos referentes aos problemas de aprendizagem,
transtornos, distúrbios e deficiências. Certamente, um profissional com todo
esse conhecimento não é fácil de se encontrar, pois alcançar esse estágio de
compreensão de tantos assuntos exige muita dedicação, anos de estudo e formação
interdisciplinar e muita experiência prática. Mas nem por isso temos que nos
acomodar, precisamos buscar a ampliação de nosso conhecimento e exigir que
os cursos de licenciatura em Música ofereçam subsídio para que os profissionais
formados tenham esse perfil.
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Outro pormenor a ser destacado é que, na área de música, só é necessário ter o curso
de licenciatura se o professor for lecionar em escolas públicas do ensino fundamental,
pois ele precisa se submeter a um concurso público que exige tal formação. Dificilmente
uma empresa contratará uma pessoa para administrar seus recursos se ela não for
formada em Administração; da mesma forma, um médico que não tem o registro
oficial, chamado CRM, não pode atuar. Para alfabetizar crianças, é obrigatório ter o
curso de Pedagogia e, para pilotar um avião, precisa ser formado em Aeronáutica.
Mas, para se ensinar música, não necessariamente precisa ser formado em Pedagogia
Musical. Em contextos tais como escolas de música, escolas particulares do ensino
geral, ONGs, escolas especiais ou trabalhos alternativos, como em hospitais ou
outros tipos de centros, a licenciatura não é uma obrigação. Nem para lecionar
nas universidades públicas o professor de música necessita ter obrigatoriamente o
curso de licenciatura ou Pedagogia (a não ser que o edital do concurso o exija). Ele
precisa ter ensino superior em Música, somente. É comum, por exemplo, pessoas que
possuem bacharelado em um determinado instrumento, mestrado e doutorado em
performance passarem num concurso público para lecionar numa universidade e
serem responsáveis pela formação de outros professores, sem nunca terem estudado
aspectos importantes da pedagogia geral e musical.
Diante da inclusão, isso é um problema muito grave, pois, sem saber como se
desenvolve neurologicamente o processo cognitivo, psíquico, comportamental
e físico do ser humano “considerado sem deficiência” e, por consequência, da
pessoa denominada “com deficiência”, e sem saber como acionar o processo de
aprendizagem dessas pessoas a partir de metodologias diferenciadas, fica muito
difícil a democratização da aprendizagem musical. E, inclusive, essas pessoas (com
deficiências) estão chegando às universidades, pois, como estamos no paradigma de
suporte, como já retratado no início deste ensaio, as pessoas estão procurando mais
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enfaticamente seus direitos, e a sociedade está se abrindo para absorver esse público
em todos os contextos, sendo o ensino superior um deles. Por isso, os professores
universitários precisam começar a se preparar para receber essas pessoas.
Mas a inclusão é um caminho sem volta. Sendo assim, não surte mais efeito um
professor de Música afirmar que não quer ou não sabe dar aulas para alunos com
deficiências, ainda mais se ele estiver numa escola regular, seja pública, seja privada,
pois esses alunos estão cada vez mais adentrando a escola comum. Por isso, a área da
educação musical precisa se munir de ferramentas para lidar com essa nova demanda,
a começar pelos cursos de licenciatura, que deveriam oferecer obrigatoriamente
disciplinas que abranjam essa temática, como comentei anteriormente. A Portaria
n. 1.793, de dezembro de 1994, recomenda a inclusão da disciplina Aspectos
ético-político-educacionais da normalização e integração da pessoa portadora de
necessidades especiais15, prioritariamente, nos cursos de Pedagogia, Psicologia e em
todas as licenciaturas. Passaram-se vinte anos e isso ainda não se concretizou. Os
cursos de pós-graduação necessitam abrir linhas de pesquisa que contemplem essa
temática. As escolas de música precisam começar a se adaptar para receber esses
alunos. Os eventos científicos na área de música precisam ampliar suas discussões
no que tange à inclusão e há necessidade de mais publicações sobre isso.
15 Os termos integração, normalização e pessoas com necessidades especiais estão em desuso atualmente,
mas expus o que a Portaria comenta para demonstrar que não é de hoje que esse assunto é visto como
importante e deve ser abordado nos cursos de formação de professores de todos os cursos e por isso a área
Musical precisa se atualizar urgentemente.
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Outro grande conflito que dificulta o avanço pedagógico musical inclusivo é que
as pessoas, de um modo geral, ainda confundem educação musical especial ou
inclusiva com musicoterapia. Enfatizo muito essa questão em meu primeiro livro,
Educação musical e deficiência: propostas pedagógicas, de 2006. É comum o público
em geral acreditar que quando uma pessoa com deficiência se aproxima do fazer
musical, ela o faz por questões ligadas à saúde, isto é, ela procuraria a música não
por vontade de aprender, mas sim por indicação médica e pelo fato de a música ser
significativa, de alguma forma, na sua reabilitação. Mas, se pensarmos em sociedade
e educação inclusiva, esse tipo de pensamento precisa ser eliminado, pois a inclusão
parte do pressuposto de que todos podem e têm o direito legal de participar de
qualquer campo social, desde que queiram, incluindo a aprendizagem musical.
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16 O termo correto hoje é “pessoa com Transtorno do Espectro Autista”, mas, por ser mais popular, neste
texto usaremos o termo autista, que não é errado.
17 Lesão neurológica por falta de oxigênio no parto.
18 Órtese: aparelho ortopédico prescrito por um médico com objetivo de prevenir deformidades físicas
ou potencializar função.
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Ou seja, cada deficiência vai requerer um tipo de ação e recurso distinto. Por isso
a importância do trabalho em equipe, do envolvimento da escola de música19
em todo o processo pedagógico do aluno; e, principalmente, a importância de
o professor conhecer bem a história e deficiência de seus alunos, pois é a partir
disso que ele saberá como proceder pedagogicamente ou para onde encaminhar
seu aluno se ele precisar de apoio de outros profissionais. Isso é um dos pilares da
minha abordagem, que realço bem em todas as publicações que faço, tamanha a
importância que acredito ter essa questão.
19 Entende-se como escola de música todos os envolvidos com o processo de aprendizado do aluno (pro-
fessores, coordenadores, monitores, estagiários, dentre outros).
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Dificilmente uma criança cega ou com deficiência intelectual, por exemplo, irá
brincar na rua sozinha, ou um cadeirante irá a um parquinho com seus amigos
sem um familiar junto. Isso faz com que as crianças com deficiências vivenciem
menos as coisas comuns a todas as crianças e, por esse motivo, acabam ficando
mais frágeis emocionalmente e mais dependentes dos familiares. Nesse sentido, a
família é a grande ponte entre a escola e a criança e a principal incentivadora no
processo inclusivo, se conseguir trabalhar em parceria com a escola.
Reflexões finais
Quando falamos em inclusão, dialogamos com muitos aspectos: culturais, sociais,
familiares, médicos, terapêuticos e pedagógicos. Por isso, a inclusão não é algo
simples de se promover, e é por esse motivo também que ainda causa tanto torpor
entre as pessoas, principalmente no âmbito pedagógico. Dentro da educação
comum, esse tema já é amplamente debatido há anos, mas nem por isso está
resolvido. Na educação musical, ainda estamos abrindo as portas para discussões
e iniciativas em relação a essa temática.
Mas o mais importante disso tudo é que a obrigação legal da inclusão está nos
induzindo a repensar o modelo de sociedade, de educação e de convivência e
propondo, embora ainda como algo embrionário, um mundo que respeite e
aceite as pessoas como elas são e que questione os padrões estipulados como
certos ou melhores.
A educação inclusiva nos obrigará a repensar o modelo de escola que temos há tantos
anos; nos impulsionará a aprender com a diversidade e a repensar o papel social da
escola diante da sociedade; nos ajudará a lidar melhor com nossas dificuldades e
deficiências e nos tornará pessoas mais tolerantes e humanizadas. Nesse sentido, a
inclusão só vem a colaborar, e todos temos a ganhar com isso. Certamente, ainda
temos um longo caminho a percorrer e, talvez, nossa geração nem veja os resultados
contundentes desse processo, pois estamos vivenciando a mudança em sua essência.
Mas todo progresso social passa por ambiguidades, lutas, dramas e perdas, e não tem
como haver mudança sem mexer na estrutura. Isso causa instabilidade, insegurança
e, por vezes, resistência e dificuldade em lidar com o novo.
Enfim, com a esperança de que a música seja realmente para todos (um dia),
terminaremos este texto citando partes de um belo conto de Rubem Alves
(1998, p. 35-39):
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Referências
ALVES, R. Concerto para corpo e alma. Campinas: Papirus, 1998.
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