LOURO 2015 Educação Musical Inclusiva

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Catalogação: Gilza Helena Teixeira - Bibliotecária CRB6/1725


DIÁLOGOS COM O SOM é uma publicação produzida pelo Núcleo de Produção Editorial
do Centro de Registros (CeR) da Escola de Música da Universidade do Estado de Minas Gerais
(ESMU - UEMG), em parceria com o Programa de Pós-Graduação em Artes da UEMG.

Editor PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO -


José Antônio Baêta Zille PPGArtes

Organização Coordenadora
Helena Lopes da Silva e José Antônio B. Zille Helena Lopes da Silva
Coordenação editorial
José Antônio B. Zille e Roger Canesso EdUEMG - EDITORA DA UNIVERSIDADE
DO ESTADO DE MINAS GERAIS
Projeto gráfico
Maíra Santos Coordenação
Daniele Alves Ribeiro
Capa
Roger Canesso Diagramação
Marco Aurélio Costa Santiago
Editoração de partituras
Lívia Rodrigues Batista
http://eduemg.uemg.br
Fotografia [email protected]
Hélio Dias (32) 3052-3120

Revisão UNIVERSIDADE DO ESTADO DE


Língua portuguesa: Cibele Imaculada da Silva MINAS GERAIS
Língua espanhola: Elba Magnani de Souza
Finalização: Gislene Marino Reitor
Dijon Moraes Júnior
ESCOLA DE MÚSICA DA UEMG
Vice-Reitor
Rua Riachuelo, 1.321 - Padre Eustáquio
Belo Horizonte - CEP: 30720-060 José Eustáquio de Brito

Diretor Chefe de Gabinete


Rogério Bianchi Brasil Eduardo Andrade Santa Cecília

Vice-Diretor Pró-reitor de Planejamento, Gestão e Finanças


Helder da Rocha Coelho Adailton Vieira Pereira

CENTRO DE REGISTROS Pró-reitora de Pesquisa e Pós-Graduação


Terezinha Abreu Gontijo
Coordenador
José Antônio B. Zille
Pró-reitora de Ensino
NÚCLEO DE PRODUÇÃO EDITORIAL Renata Nunes Vasconcelos

Coordenador Pró-reitora de Extensão


Roger Canesso Vânia Aparecida Costa
Organizadores
)FMFOB-PQFTEB4JMWBt+PTÏ"OUÙOJP#BÐUB;JMMF

Autores
Rosângela Pereira de Tugny
Viviane Louro
Cecília Cavalieri França
Violeta Hemsy de Gainza
Judith Akoschky
Dulcimarta Lemos Lino
Maria Teresa Mendes de Castro
Luciana Del-Ben
Helena Lopes da Silva
Daniel Gohn
Teresa Mateiro
Moacyr Laterza Filho
Luis Ricardo Silva Queiroz

VOLUME 2

Editora da Universidade do Estado de Minas Gerais


Barbacena - 2015
Modos de escutar ou: como colher
o canto das árvores? 17
Rosângela Pereira de Tugny

Educação musical inclusiva: desafios e reflexões


Viviane Louro 33
“Outros que contem passo por passo”
Cecília Cavalieri França 51
A improvisação musical como técnica pedagógica
Violeta Hemsy de Gainza 65
“Desde la exploración sonora de Cotidiáfonos
a la sínteses acústica” Procesos creativos en
Educación Musical 79
Judith Akoschky

Acronon: o tempo na educação


musical da infância 95
Dulcimarta Lemos Lino

O uso da flauta doce na formação


de professores de Música 109
Maria Teresa Mendes de Castro

Música, ensino e Educação Básica


Luciana Del-Ben 121
Mediar escutas musicais no ensino médio: uma
proposta metodológica para a aula de música 141
Helena Lopes da Silva
Educação musical com as
tecnologias da EaD 157
Daniel Gohn

Ensinar música: ocupação individual ou


profissão aprendida? 171
Teresa Mateiro

A avaliação integrada ao ensino e à


aprendizagem: indícios de um sistema 189
Moacyr Laterza Filho

Há diversidade(s) em música: reflexões


para uma educação musical intercultural 197
Luis Ricardo Silva Queiroz
Série Diálogos com o Som – Vol. 2 |

Cada pessoa é única, com características físicas, mentais, sensoriais,


afetivas e cognitivas diferenciadas. Portanto, há necessidade de se
respeitar e valorizar a diversidade e a singularidade de cada ser humano.
Cai o “mito” da constituição de uma turma homogênea e surge o desafio
de uma “praxis” pedagógica que respeite e considere as diferenças.

Ministério da Educação (2002)

E
m 1981, a ONU promoveu uma iniciativa inédita, que teve como objetivo
chamar a atenção do mundo para a criação de planos de ações, na tentativa
de enfatizar a igualdade de oportunidades, a reabilitação e a prevenção de
deficiências. O lema desse evento foi Participação plena e igualdade, o qual foi de-
finido como um direito das pessoas com deficiência, a fim de que elas pudessem
viver de maneira completa, começassem a ter parte ativa no desenvolvimento das
suas sociedades e tirassem proveito das suas condições de vida de modo equivalen-
te a todos os outros cidadãos. Esse ano ficou conhecido como “Ano Internacional
das Pessoas Deficientes”1 e foi o primeiro passo efetivo para o desenvolvimento do

1 Atualmente, a terminologia utilizada é “pessoa com deficiência”, mas em alguns lugares do mundo o
termo já está sofrendo alterações, e a nova proposta é “pessoa com diversidade funcional”. Tudo indica
que essa terminologia será amplamente utilizada nos próximos anos, mas por enquanto, “pessoa com
deficiência” ainda pode ser utilizado.

Viviane Louro | 33
| Música e Educação

paradigma de suporte, no qual vivemos hoje em dia (LOURO, 2009).

O paradigma de suporte alega que a sociedade precisa oferecer suporte para que
todas as pessoas, em especial, as com deficiências, participem de todos os âmbitos
sociais com o máximo de autonomia possível. Antes de chegarmos a esse ponto,
tivemos dois outros paradigmas: o paradigma de institucionalização, que pregava
que as pessoas com deficiências deveriam ficar isoladas em instituições específicas
para elas, fora do convívio social, e o paradigma de serviço, que pregava que a
pessoa com deficiência poderia ser integrada na sociedade depois de passar por
um processo de normalização, ou seja, a sociedade prestaria o serviço de treiná-
la em instituições especializadas e, quando estivesse pronta para a convivência
social, seria colocada na escola comum (OLIVEIRA; REIS, 2004).

Na abordagem atual (paradigma de suporte) a proposta é que todos os


estabelecimentos públicos e privados precisam estar aptos a receber todos os
tipos de pessoas, ou seja, a sociedade precisa oferecer suporte para que todos
possam usufruir de todos os benefícios e campos sociais. Isso indica acessibilizar
bibliotecas, parques, mercados, restaurantes, museus, hospitais, clubes, teatros,
escolas, enfim, todos os lugares. Como afirma Oliveira e Reis (2004, p. 2), “O
paradigma de suportes prevê intervenções decisivas e afirmativas no processo de
desenvolvimento do sujeito e no reajuste da realidade social”.

“Estar apto a receber todos os públicos” não significa somente promover adaptaçôes
arquitetônicas, como rampas, elevadores, chão tátil e banheiros. Certamente, isso é
imprescindível, mas as iniciativas precisam ir além disso. Antes, significa oferecer
programas internos de acessibilidade, ou seja, intérprete de libras em todos os
estabelecimentos públicos e privados; livros, cardápios e panfletos em Braille;
adaptações de mobiliário para cadeirantes, obesos ou pessoas com mobilidade
reduzida, em todos os locais públicos e privados; maneiras alternativas para que
pessoas com deficiência intelectual ou autismo usufruam dos benefícios que o local
oferece às demais pessoas; telefones para surdos, cadeirantes e anões; roupas para
obesos, anões ou pessoas mais altas que a média; academias adaptadas para cadeirantes;
parquinhos adaptados para crianças com deficiência física, surdas ou cegas etc.
Ou seja, o paradigma de suporte prega o respeito à individualidade das pessoas e
uma sociedade que ofereça as mesmas oportunidades para todos os indivíduos,
independentemente de suas questões físicas, cognitivas ou comportamentais.

O sistema de ensino diante da inclusão


É recente a proposta de construção de uma sociedade inclusiva, cerca de 30

34 | Viviane Louro
Série Diálogos com o Som – Vol. 2 |

anos. Por isso, ainda há tanta controvérsia sobre essa temática, principalmente
no sistema pedagógico, pois, dentro dessa nova realidade, não caberiam mais
as escolas especiais, pois estas são extremamente segregacionistas. O objetivo
maior, no paradigma de suporte, é que todas as escolas sejam aptas a receber
todos os tipos de alunos: sem ou com deficiências, com altas habilidades, com
questões culturais diversas, com problemas psiquiátricos, com autismo, com
orientações sexuais distintas, com religiões diferentes, enfim, todas as pessoas,
sem exceção.

Devido à inclusão, o sistema de ensino está passando por uma crise, pois ele reflete
um modelo de ensino do século retrasado, galgado em agrupamento de pessoas
conforme particularidades específicas (crianças de tal idade, alunos com tais
características e interesses etc.). Além disso, o sistema educacional é baseado em
turmas fechadas, com somente um professor que “oferece” o conteúdo, avaliações a
partir de provas e notas, conteúdos inflexíveis que precisam ser dados num tempo
específico, rendimento a partir de um padrão do que é esperado para tal idade.

Mas, como propõe Vitaliano (2010, p. 24),

a educação inclusiva é o caminhar para uma escola aberta à diferença, onde


todos possam fazer o seu percurso de aprendizagem, independentemente
das desvantagens de natureza biológica, sociocultural, psicológica e
educacional.

A Declaração de Salamanca também reforça essa ideia ao assegurar o direito


de todos à educação, independentemente de suas diferenças e dificuldades
individuais, sejam elas quais forem (UNESCO; MEC-ESPANHA, 1994).

Portanto, pensar em inclusão é repensar o sistema. Promover a inclusão de forma


efetiva é mexer nesse sistema. É levar em consideração as individualidades e
habilidades das pessoas, pensar no aprendizado como processo, não como fim ou
com foco num conteúdo específico para ser aprendido num tempo determinado.
É construir o aprendizado de forma colaborativa, com a participação de pessoas
diferentes. É permitir que cada aluno arquitete seu conhecimento de acordo com
suas necessidades e interesses pessoais. É oferecer conteúdos que tenham sentido
para a vida prática das pessoas e não somente exigir que os alunos decorem
assuntos que vão cair na prova ou vestibular e que, depois disso, nunca mais serão
vistos. É mudar a relação “professor que ensina” versus “aluno que aprende” para
“pessoas que trocam, interagem, ensinam e aprendem ao mesmo tempo”. Esse é
o desafio deste século.

Viviane Louro | 35
| Música e Educação

Iniciativas inclusivas nacionais no contexto musical


No Brasil, a educação musical inclusiva ainda é pouco difundida. O que temos
com mais vigor é a educação musical especial, ou seja, aulas de música para grupos
fechados de pessoas com deficiências, na maioria das vezes, nas poucas instituições
de ensino especializado que ainda existem ou em ONGs que atendem a esse público.

Poucos são os trabalhos inclusivos, isto é, que juntam pessoas com e sem
deficiências no mesmo ambiente educacional musical de forma consciente e
direcionada pedagogicamente para que todos aprendam. Temos certamente
algumas iniciativas que vêm tomando espaço. Dois exemplos são o Programa de
Apoio Pedagógico e Inclusão da Fundação das Artes de São Caetano do Sul (Papi)
e o Espaço Pedagógico de Artes (EPA), ambos em São Paulo.

A Fundação das Artes2 é uma escola de artes tradicional e conceituada em São


Paulo. Nela há os cursos livres de dança, artes visuais, teatro e música, e os cursos
profissionalizantes de música e teatro. Desde 2007, a escola de música possui um
programa de inclusão que visa a contribuir com a acessibilidade para que pessoas
com deficiências possam estudar música como as demais. Integram as ações desse
programa: capacitação de professores; monitores em sala de aula junto com os
alunos com deficiência; aulas de apoio extracurricular; adaptações de conteúdo,
materiais e avaliações; cotas para aulas de instrumentos; encaminhamentos e
diálogo com a área de saúde para melhor contribuir com a inclusão dos alunos,
dentre outras (SOARES, 2012).

Já o Espaço Pedagógico de Artes3 é uma ação nova, iniciada em 2014 por um grupo
de profissionais preocupados com a educação musical inclusiva. Nesse espaço,
todos os alunos – com ou sem deficiências – passam por uma sondagem inicial
em que são mapeadas as dificuldades e habilidades deles nas questões musicais,
cognitivas, psicomotoras e comportamentais e, a partir disso, é traçado um plano
pedagógico individualizado. Os alunos são distribuídos em aulas individuais ou
coletivas, conforme suas necessidades, e cada turma tem um objetivo específico
musical a ser trabalhado. Os conteúdos e o tempo de aula são flexíveis, há muitos
materiais adaptados, e as avaliações são realizadas de acordo com a capacidade
dos alunos, tendo eles deficiência ou não4.

Além de espaços pedagógicos inclusivos, como os acima mencionados, temos

2 Disponível em: www.fascs.com.br.


3 Disponível em: www.espacopedagogicodeartes.wordpress.com.
4 Disponível em: www.espacopedagogicodeartes.wordpress.com.

36 | Viviane Louro
Série Diálogos com o Som – Vol. 2 |

singelamente outras iniciativas espalhadas pelo país. No Departamento de Música


da Universidade Federal de Pernambuco há o Laboratório de Educação Musical
Inclusiva – Lemi. O objetivo dessa iniciativa é fomentar uma discussão dentro da
universidade sobre a acessibilidade musical, além de promover pesquisa sobre a
temática e materiais adaptados e subsidiar eventos maiores na área.

Na Bahia, o programa Neojibá5 – Núcleos Estaduais de Orquestras Juvenis e


Infantis da Bahia – possui desde 2010 um projeto voltado também para crianças,
adolescentes e adultos com deficiências, além do trabalho já realizado com
pessoas em geral, grande parte delas, em situação de vulnerabilidade social.

Em 2014, uma ONG de São Paulo promoveu o primeiro censo de educação musical
inclusiva, com o objetivo de mapear quantos professores de Música trabalhavam
com pessoas com deficiência no Brasil, bem como suas necessidades em relação
ao trabalho. Há também, em São Paulo, o grupo de estudos Germina6, que visa
a discutir e estudar sobre música, inclusão, neurociências e aprendizagem, criar
estratégias pedagógicas para esse contexto e publicar artigos científicos sobre
esses temas em revistas significativas da área de música, inclusão e educação,
para contribuir com o desenvolvimento teórico.

Em Brasília, temos o Surdodum7, uma banda de música brasileira formada por


surdos, ouvintes e pessoas com deficiência física que difunde a música para surdos,
assim como o projeto Som da Pele8, em Recife, que capacita pessoas surdas para
tocar em grupos, além de difundir a música regional. A banda Ab’Surdos, em
Uberlândia9, tem o mesmo propósito.

As pesquisas e publicações nacionais sobre essa temática ainda são poucas, mas
vêm crescendo a cada ano. Cada vez mais trabalhos são apresentados na Abem10,
Anppom11 e Simcam12, eventos de referência na área musical. Livros na área ainda
são escassos, mas temos algumas literaturas nacionais, como: Educação musical e
deficiência: propostas pedagógicas, Arte e inclusão, Arte e responsabilidade social:
inclusão pela música e teatro e Fundamentos da aprendizagem musical da pessoa

5 Disponível em: www.neojiba.org.br.


6 Disponível em: www.neuromusica.wordpress.com.
7 Disponível em: http://www.surdodum.com.
8 Disponível em: http://somdapele.blogspot.com.br.
9 Disponível em: http://culturasurda.net/2015/02/24/banda-absurdos/.
10 Associação Brasileira de Educação Musical (disponível em: www.abemeducacaomusical.com.br).
11 Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música (disponível em: www.anppom.com.br).
12 Simpósio de Cognição e Artes Musicais (disponível em: www.abcogmus.org/simcam).

Viviane Louro | 37
| Música e Educação

com deficiência, todos de minha autoria, com a participação de convidados; A


musicalidade do surdo, de Nadir Haguiara Cervelline; Musicografia braile, de
Dolores Tomé, e Ensino de música para pessoas com deficiência visual, de Shirley
Escobar Tudissaki. Há também, anualmente, o Simpósio de Educação Musical
Especial13, em São Paulo, organizado por mim e pela pedagoga Lisbeth Soares,
que visa a capacitar professores de Música e interessados para o ensino inclusivo.
Além disso, existe o meu site, Música e Inclusão14, que serve como portal para
discussões e divulgação de pesquisas, cursos e novidades sobre a área, e o blog
Educação e Música para Todos.

Em suma, as iniciativas acima citadas são somente algumas das existentes em


nosso país. Certamente há mais projetos e pesquisas na área, mas seria inviável
mencionar todos neste ensaio. De qualquer forma, se formos considerar o
tamanho do Brasil, veremos que ainda é enorme a carência de profissionais
qualificados, pesquisas e programas efetivos de inclusão musical. Mas o que
importa é caminhar e, mesmo que lentamente, ampliar as ações em busca de
tornar o fazer musical mais acessível a todos.

Os desafios da educação musical diante do paradigma de suporte


Como a ideia geral no paradigma de suporte é oferecer oportunidades para todas
as pessoas e em todos os contextos, não podemos excluir a música dessas reflexões
e mudanças, seja ela considerada um entretenimento, um arcabouço cultural,
um processo terapêutico, uma proposta pedagógica ou uma profissão. Diante
da educação musical, a inclusão é um grande desafio, pois mexe com questões
muito enraizadas. A primeira delas, e um grande problema a ser resolvido, é a
capacitação dos professores de Música.

Ser professor não é um trabalho ou uma ocupação, mas, sim, uma profissão e, como
tal, necessita de um estudo denso a partir de embasamentos teóricos bem definidos.
Um mecânico precisa saber como funciona um carro e quais tipos de ferramentas
são necessários para conseguir arrumar um defeito específico do automóvel. Se
ele souber tudo de que precisa sobre carros, mas não souber sobre consertos ou
manuseio das ferramentas, não conseguirá arrumar o carro, assim como se ele
entender sobre ferramentas, tipos de óleos e peças, materiais mais apropriados para
se usar, mas não souber sobre o funcionamento do carro, de nada adiantará.

Podemos traçar um paralelo entre esse exemplo do mecânico e a educação

13 Disponível em: www.musicaeinclusao.wordpress.com.


14 Disponível em: www.musicaeinclusao.wordpress.com.

38 | Viviane Louro
Série Diálogos com o Som – Vol. 2 |

musical: um profissional que tem grande conhecimento musical, mas nenhum


conhecimento sobre aplicações metodológicas diferenciadas, seria equivalente
ao mecânico que conhece as ferramentas, mas não sabe escolher qual é a mais
adequada a ser utilizada frente a determinado problema que o carro apresente.
Da mesma forma, um professor que é expert em Música e metodologias, mas
não domina o conhecimento sobre desenvolvimento humano, processo de
aprendizagem, psicologia cognitiva, dentre outros, é o mesmo que um mecânico
que conhece profundamente todas as ferramentas e técnicas de conserto, mas
não sabe como funciona o carro. Ou então, um professor que conhece bem os
aspectos envolvidos com a aprendizagem e desenvolvimento humano, mas não
tem conhecimento das questões metodológicas musicais é igual a um mecânico
que conhece todo o mecanismo do funcionamento do carro, mas não sabe como
consertá-lo, pois não domina as ferramentas e técnicas necessárias.

Então, para se dar aula de Música é fundamental saber sobre música, metodologias,
abordagens diferenciadas, estratégias pedagógicas, psicologia cognitiva, e o
principal: pessoas, ou seja, o modo como funciona o aparato neurológico que
se destina à aprendizagem, levando em consideração o desenvolvimento motor
e emocional, bem como os aspectos referentes aos problemas de aprendizagem,
transtornos, distúrbios e deficiências. Certamente, um profissional com todo
esse conhecimento não é fácil de se encontrar, pois alcançar esse estágio de
compreensão de tantos assuntos exige muita dedicação, anos de estudo e formação
interdisciplinar e muita experiência prática. Mas nem por isso temos que nos
acomodar, precisamos buscar a ampliação de nosso conhecimento e exigir que
os cursos de licenciatura em Música ofereçam subsídio para que os profissionais
formados tenham esse perfil.

Ainda é muito comum na área musical, principalmente no que tange à


aprendizagem instrumental, termos professores que só saibam ensinar da
maneira que aprenderam, pois nunca fizeram nenhum curso ou complementação
em licenciatura musical ou Pedagogia. Algumas escolas priorizam em seu corpo
docente instrumentistas de renome, que dominam a técnica instrumental e tudo
que envolve seu instrumento musical, mas que nem sempre dominam a técnica
de lecionar e, muito menos, sabem sobre processo de aprendizagem, cognição,
comportamento humano ou deficiências.

Portanto, o primeiro grande entrave que temos na área de educação musical


em nosso contexto nacional é encontrar profissionais qualificados no ensino
da Música, com consciência dos assuntos (já traçados acima) que envolvem o

Viviane Louro | 39
| Música e Educação

ensinar e aprender. Certamente, quem cursa licenciatura em Música frequenta


algumas disciplinas que oferecem um corpo teórico sobre pedagogia e psicologia
da aprendizagem, mas essas disciplinas focam, geralmente, o ensino musical
para crianças que não apresentam problemas de aprendizagem, transtornos
ou deficiências. Dificilmente os cursos de licenciatura em Música promovem
embasamento teórico e prático profundo para o ensino da Música para pessoas
com condições diferenciadas de aprendizagem, tais como pessoas da terceira idade
ou adultos, pessoas com deficiências graves, menores infratores, dependentes
químicos ou demais.

Ofereço constantemente palestras em eventos nacionais e internacionais na área


de música, pedagogia e inclusão, e uma pergunta muito frequente que me fazem
é: Qual a sua formação? Ou: Se eu quiser me especializar nesse assunto (educação
musical inclusiva), que curso devo fazer?

Respondendo à primeira questão: minha formação é academicamente na


área de música, sou bacharel em Piano Erudito com mestrado em Educação
Musical. Mas eu só consegui traçar minha carreira na área inclusiva porque,
em paralelo aos estudos musicais, busquei cursos em outras áreas. Fiz muitos
cursos de pequena duração sobre deficiência física, intelectual, auditiva, visual,
psicomotricidade e neurociências, assim como participei intensamente de
congressos na área de Medicina, Psicologia, Inclusão Social, Musicoterapia e
Pedagogia. Também me envolvi em grupos de estudos em Psicologia Analítica
e Psicanálise. Fiz aulas particulares de Braille e Libras e, junto disso, dois anos
de estágio em Musicoterapia na AACD, em São Paulo. Atualmente, curso
doutorado em Neurociências na Unifesp, para complementar meus estudos na
área. Percebi que se eu não buscasse conhecer profundamente outras questões,
além de música, eu não conseguiria trabalhar com o público que se apresentava
em minhas aulas, pois sempre trabalhei com pessoas com patologias diversas,
dentre elas, algumas gravíssimas.

Portanto, se alguém quiser se especializar em educação musical inclusiva, por


não termos esse curso oficializado no Brasil como uma área específica dentro
da educação musical, precisará passar por caminhos semelhantes ao meu e
buscar o conteúdo específico relacionado às deficiências, em paralelo ao estudo
musical. Mas, independentemente disso, seria muito interessante que os cursos
de licenciatura aprimorassem os conteúdos nessa área para todos os licenciandos,
pois certamente os professores de Música, uma hora ou outra, vão se deparar com
alunos que apresentam algum tipo de dificuldade de aprendizagem.

40 | Viviane Louro
Série Diálogos com o Som – Vol. 2 |

E que disciplinas ou conteúdos seriam importantes os cursos de licenciatura


oferecerem para dar o mínimo de subsídio sobre a temática? Com base em minha
experiência teórica e prática, acredito que assuntos relacionados a neurociências,
ou seja, ao funcionamento do cérebro e suas implicações na aprendizagem;
psicologia cognitiva e abordagens da psicologia social; desenvolvimento
psicomotor, problemas de aprendizagem, transtornos e deficiências; técnicas
de abordagens diferenciadas, tais como tecnologia assistiva, metodologias
comportamentais, andragogia, dentre outras. E o fundamental: estágio prático
em ONGs, escolas especiais e hospitais, pois o conteúdo teórico em si não oferece
suporte suficiente para a pessoa entender como fazer na prática, se não houver o
exercício da aplicação desses conceitos.

Outro pormenor a ser destacado é que, na área de música, só é necessário ter o curso
de licenciatura se o professor for lecionar em escolas públicas do ensino fundamental,
pois ele precisa se submeter a um concurso público que exige tal formação. Dificilmente
uma empresa contratará uma pessoa para administrar seus recursos se ela não for
formada em Administração; da mesma forma, um médico que não tem o registro
oficial, chamado CRM, não pode atuar. Para alfabetizar crianças, é obrigatório ter o
curso de Pedagogia e, para pilotar um avião, precisa ser formado em Aeronáutica.
Mas, para se ensinar música, não necessariamente precisa ser formado em Pedagogia
Musical. Em contextos tais como escolas de música, escolas particulares do ensino
geral, ONGs, escolas especiais ou trabalhos alternativos, como em hospitais ou
outros tipos de centros, a licenciatura não é uma obrigação. Nem para lecionar
nas universidades públicas o professor de música necessita ter obrigatoriamente o
curso de licenciatura ou Pedagogia (a não ser que o edital do concurso o exija). Ele
precisa ter ensino superior em Música, somente. É comum, por exemplo, pessoas que
possuem bacharelado em um determinado instrumento, mestrado e doutorado em
performance passarem num concurso público para lecionar numa universidade e
serem responsáveis pela formação de outros professores, sem nunca terem estudado
aspectos importantes da pedagogia geral e musical.

Diante da inclusão, isso é um problema muito grave, pois, sem saber como se
desenvolve neurologicamente o processo cognitivo, psíquico, comportamental
e físico do ser humano “considerado sem deficiência” e, por consequência, da
pessoa denominada “com deficiência”, e sem saber como acionar o processo de
aprendizagem dessas pessoas a partir de metodologias diferenciadas, fica muito
difícil a democratização da aprendizagem musical. E, inclusive, essas pessoas (com
deficiências) estão chegando às universidades, pois, como estamos no paradigma de
suporte, como já retratado no início deste ensaio, as pessoas estão procurando mais

Viviane Louro | 41
| Música e Educação

enfaticamente seus direitos, e a sociedade está se abrindo para absorver esse público
em todos os contextos, sendo o ensino superior um deles. Por isso, os professores
universitários precisam começar a se preparar para receber essas pessoas.

Outro grande empecilho para a inclusão é a questão da habilidade ou predisposição


musical. Soares (2009) afirma que é comum ainda acharem que o “dom” ou
“talento” são coisas inatas, e que pessoas que não aprendem com facilidade não
podem ter acesso à música. Além disso, ainda é grande o foco na alta performance
instrumental, principalmente em escolas reconhecidas de música, o que dificulta
a entrada e permanência de quem não “acompanha” tais exigências.

Fora isso, as escolas de música raramente possuem adaptações arquitetônicas,


materiais acessíveis a todos, tais como livros e partituras em braille, jogos
diferenciados ou instrumentos modificados. Ainda existe muito preconceito
em relação à música para surdos, falta de pesquisas e metodologias musicais
diferenciadas para o ensino de pessoas com deficiência intelectual ou autismo
e dificuldade em encontrar pessoas que adaptem instrumentos musicais para
deficiência física. Enfim, temos um caminho muito longo ainda a percorrer.

Mas a inclusão é um caminho sem volta. Sendo assim, não surte mais efeito um
professor de Música afirmar que não quer ou não sabe dar aulas para alunos com
deficiências, ainda mais se ele estiver numa escola regular, seja pública, seja privada,
pois esses alunos estão cada vez mais adentrando a escola comum. Por isso, a área da
educação musical precisa se munir de ferramentas para lidar com essa nova demanda,
a começar pelos cursos de licenciatura, que deveriam oferecer obrigatoriamente
disciplinas que abranjam essa temática, como comentei anteriormente. A Portaria
n. 1.793, de dezembro de 1994, recomenda a inclusão da disciplina Aspectos
ético-político-educacionais da normalização e integração da pessoa portadora de
necessidades especiais15, prioritariamente, nos cursos de Pedagogia, Psicologia e em
todas as licenciaturas. Passaram-se vinte anos e isso ainda não se concretizou. Os
cursos de pós-graduação necessitam abrir linhas de pesquisa que contemplem essa
temática. As escolas de música precisam começar a se adaptar para receber esses
alunos. Os eventos científicos na área de música precisam ampliar suas discussões
no que tange à inclusão e há necessidade de mais publicações sobre isso.

15 Os termos integração, normalização e pessoas com necessidades especiais estão em desuso atualmente,
mas expus o que a Portaria comenta para demonstrar que não é de hoje que esse assunto é visto como
importante e deve ser abordado nos cursos de formação de professores de todos os cursos e por isso a área
Musical precisa se atualizar urgentemente.

42 | Viviane Louro
Série Diálogos com o Som – Vol. 2 |

Outro grande conflito que dificulta o avanço pedagógico musical inclusivo é que
as pessoas, de um modo geral, ainda confundem educação musical especial ou
inclusiva com musicoterapia. Enfatizo muito essa questão em meu primeiro livro,
Educação musical e deficiência: propostas pedagógicas, de 2006. É comum o público
em geral acreditar que quando uma pessoa com deficiência se aproxima do fazer
musical, ela o faz por questões ligadas à saúde, isto é, ela procuraria a música não
por vontade de aprender, mas sim por indicação médica e pelo fato de a música ser
significativa, de alguma forma, na sua reabilitação. Mas, se pensarmos em sociedade
e educação inclusiva, esse tipo de pensamento precisa ser eliminado, pois a inclusão
parte do pressuposto de que todos podem e têm o direito legal de participar de
qualquer campo social, desde que queiram, incluindo a aprendizagem musical.

Nesse sentido, o aprender música precisa ser acessível a todos. Em um capítulo


do livro Educação inclusiva em perspectiva, eu e meu amigo Andrade (2009, p.
128), colocamos que

a música é uma possibilidade que se apresenta a todos, sendo assim,


não cabe a nós julgarmos quem pode ou deve de quem não pode ou
não deve estudá-la. O que precisamos é estar preparados para receber
a diversidade.

Família, equipe e escola: a tríade fundamental para a inclusão


Gainza (1988) sustenta que o espírito pedagógico é positivo, porque crê, tem
fé na pessoa e em si mesmo, é entusiasta e progressivo; almeja alcançar algo, é
alerta e inconformista, dado que se questiona a todo instante, além de ser flexível
e comunicativo, isto é, mutável e adaptável às circunstâncias. Então, para uma
educação musical ser eficaz, cumpre haver, além de outras coisas, profissionais
interessados, que sejam positivos, entusiastas, progressivos, alertas e flexíveis.

Perrenoud (2002) comenta sobre a importância de o professor assumir um


compromisso crítico no debate social sobre a finalidade da escola e seu papel na
sociedade, com vistas a aprender a trabalhar cooperativamente na escola e dialogar
com família e comunidade. Sendo assim, ele chama a atenção para um item
fundamental, sem o qual não é possível promover a inclusão: o trabalho em equipe.

Quando se fala em inclusão, dialogamos diretamente com a necessidade de um


trabalho baseado numa rede de apoio de diversos profissionais. Cada deficiência
traz particularidades muito específicas e, para cada uma delas, será necessário
um tipo de apoio, de intervenção, de material ou de metodologia e, às vezes, a
colaboração de profissionais da saúde.

Viviane Louro | 43
| Música e Educação

Por exemplo, pessoas com autismo16 têm muita dificuldade no desenvolvimento da


Teoria da Mente, que “é o nome que se dá à maneira como sentimos e entendemos
a mente dos outros. Ela é fundamental para a compreensão do processo pelo
qual entendemos as próprias emoções e as emoções dos outros” (CAIXETA;
CAIXETA, 2005, p. 7).

Autistas, em geral, têm dificuldade para entender metáforas, piadas ou o que as


pessoas estão sentindo e pensando. Eles não entendem com facilidade o abstrato,
não conseguem generalizar certos conteúdos e levam tudo ao pé da letra. Alguns
podem ter deficiência cognitiva associada, e outros podem ter uma capacidade
intelectual acima da média (BOSA, 2006).

Por esse motivo, o uso de pistas visuais colabora sensivelmente na aquisição do


conteúdo, pois incentiva a visualização de elementos simbólicos. Como propõe
Soares (2008, p. 1440), “o mundo das imagens traz uma significativa contribuição
na mediação do autista com o mundo”. Além do uso de imagens, é importante
saber perceber as respostas “não verbais” do aluno com autismo, pois muitos não
se comunicam. Lampreia (2007) comenta sobre a importância de seguir o foco
de atenção do aluno com autismo, oferecer-lhe escolhas e pistas e reconhecer as
formas não convencionais de suas respostas. Portanto, as necessidades pedagógicas
de um aluno com autismo podem ser o uso de pistas visuais, materiais concretos
e figuras representativas.

Agora, se estamos diante de um aluno cego, as necessidades mudam. Nesse


caso, eles precisam de materiais palpáveis e em relevo, musicografia braille e
um trabalho de apoio para questões relacionadas à mobilidade nas atividades
musicais corporais. Já um aluno surdo necessitará de uma metodologia totalmente
diferenciada, baseada em vibrações, movimento corporal e com apoio visual.
Um aluno com deficiência física, cadeirante, que não se comunica por falta de
motricidade e com movimentos das mãos limitadas, como por exemplo, um aluno
com uma paralisia cerebral17, necessitará de comunicação alternativa (pranchas
de comunicação), talvez alguma órtese18 para ajudá-lo a tocar um instrumento,
além de estratégias diferenciadas por parte do professor, para atividades de
mobilidade. E, para todas essas ações, faz-se necessário o apoio de profissionais

16 O termo correto hoje é “pessoa com Transtorno do Espectro Autista”, mas, por ser mais popular, neste
texto usaremos o termo autista, que não é errado.
17 Lesão neurológica por falta de oxigênio no parto.
18 Órtese: aparelho ortopédico prescrito por um médico com objetivo de prevenir deformidades físicas
ou potencializar função.

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da saúde. As pranchas de comunicação, por exemplo, só podem ser elaboradas


e confeccionadas por um fonoaudiólogo. Órteses só podem ser prescritas por
profissionais da saúde e necessitam da ajuda de um terapeuta ocupacional para
serem elaboradas (LOURO, 2006 e 2012).

Há ainda os casos em que a atuação precisa ser direta entre profissionais ou


instituições. Uma pessoa com distúrbio do processamento auditivo central
provavelmente necessitará, além de estratégias pedagógicas musicais, de terapia
especializada com fonoaudiólogo. Um aluno com problemas psiquiátricos
graves precisará de acompanhamento psicológico e psiquiátrico, com uso
de medicamentos controlados para que possa se concentrar e manter um
comportamento social adequado dentro do grupo. Um aluno com dislexia
necessitará de apoio de psicopedagogo, além de todo apoio musical.

Ou seja, cada deficiência vai requerer um tipo de ação e recurso distinto. Por isso
a importância do trabalho em equipe, do envolvimento da escola de música19
em todo o processo pedagógico do aluno; e, principalmente, a importância de
o professor conhecer bem a história e deficiência de seus alunos, pois é a partir
disso que ele saberá como proceder pedagogicamente ou para onde encaminhar
seu aluno se ele precisar de apoio de outros profissionais. Isso é um dos pilares da
minha abordagem, que realço bem em todas as publicações que faço, tamanha a
importância que acredito ter essa questão.

Ofereço constantemente capacitações para professores em todo o país, e muitos me


relatam que é comum algumas escolas não passarem para os professores informações
sobre a vida dos alunos, incluindo dados sobre as deficiências. O argumento das
escolas, geralmente, é que o professor não pode saber detalhes da vida do aluno,
pois pode usar a informação de forma inadequada, ou que o diagnóstico pode
rotular negativamente o aluno diante do aprendizado. Eu mesma já trabalhei como
supervisora pedagógica em um local que não me autorizava abrir aos professores o
diagnóstico dos alunos. Certamente me desliguei de tal escola, pois via a necessidade
de trabalharmos com mais clareza diante disso, mas não era possível. Esse tipo de
concepção é uma grande falha de nosso sistema educacional. A pergunta é simples:
sem saber nada sobre a patologia e história de vida do aluno, como o professor
saberá o melhor recurso a utilizar em aula, ou para que profissional da saúde pedir
colaboração ou, ainda, como saberá direcionar o aprendizado daquele aluno? Isso é

19 Entende-se como escola de música todos os envolvidos com o processo de aprendizado do aluno (pro-
fessores, coordenadores, monitores, estagiários, dentre outros).

Viviane Louro | 45
| Música e Educação

equivalente a querer que um médico indique o melhor tratamento para o paciente,


sem saber a doença que ele tem. Em meu livro Fundamentos da aprendizagem
musical da pessoa com deficiência, de 2012, me detenho nisso:

É de fundamental importância que os professores se apropriem de


conhecimentos a respeito das deficiências de seus alunos. Não se pode
negar a importância do empenho pessoal, do apoio familiar, da relação
professor-aluno, etc, no aprendizado, porém quanto maior a compreensão
da deficiência em questão, maiores as chances de ganho cognitivo por
parte do aluno. Conhecer-lhe as potencialidades e limitações evitará
grandes equívocos por parte do professor. (LOURO, 2012, p. 50-51)

Ainda na mesma perspectiva do trabalho em equipe, precisamos reforçar a


importância da atuação da família dentro do processo de inclusão. Sem apoio
familiar, fica muito difícil conseguir bons resultados inclusivos. E o que seria
esse apoio familiar? Basicamente, diálogo entre a instituição musical e os pais ou
cuidadores da criança.

Em minha carreira profissional, na prática e também a partir de muito estudo


dentro da psicologia social, posso afirmar que há famílias extremamente
superprotetoras, que tratam a pessoa com deficiência como “eternos bebês”, o que
dificulta a autonomia e maturidade da pessoa. Há aquelas negligentes, que não
querem aceitar a deficiência e, por isso, não levam os filhos a médicos e terapeutas
e se recusam a participar dos programas da escola, ou, então, não passam
informações sobre o filho, o que muitas vezes impede o progresso pedagógico
do aluno. Há famílias permissivas demais, que, por se sentirem culpadas pela
deficiência do filho, não oferecem limites a ele, o que pode se refletir em um
comportamento inadequado em sala de aula. Há famílias extremamente religiosas
que atribuem à deficiência uma função quase mística, que julgam que isso é um
castigo ou carma de outra vida, ou, ainda, que Deus irá curar a pessoa, e por
isso também não agem de forma prática e objetiva para a melhoria do padrão de
vida do indivíduo. Certamente, há também famílias que promovem a autonomia
ao aluno e se colocam disponíveis para o diálogo em prol do melhor caminho
pedagógico musical para o filho.

Obviamente, a questão familiar irá sempre interferir no processo de qualquer aluno,


com deficiência ou não. Mas, no caso de pessoas com deficiência, essa interferência
é muito maior, para o sucesso ou insucesso do processo. Geralmente, pessoas com
deficiência são mais dependentes física e emocionalmente de seus cuidadores,
pela própria dificuldade que a deficiência lhes traz e pela questão histórico-social,
pautada numa visão superprotetora e assistencialista desses indivíduos.

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Série Diálogos com o Som – Vol. 2 |

Dificilmente uma criança cega ou com deficiência intelectual, por exemplo, irá
brincar na rua sozinha, ou um cadeirante irá a um parquinho com seus amigos
sem um familiar junto. Isso faz com que as crianças com deficiências vivenciem
menos as coisas comuns a todas as crianças e, por esse motivo, acabam ficando
mais frágeis emocionalmente e mais dependentes dos familiares. Nesse sentido, a
família é a grande ponte entre a escola e a criança e a principal incentivadora no
processo inclusivo, se conseguir trabalhar em parceria com a escola.

Reflexões finais
Quando falamos em inclusão, dialogamos com muitos aspectos: culturais, sociais,
familiares, médicos, terapêuticos e pedagógicos. Por isso, a inclusão não é algo
simples de se promover, e é por esse motivo também que ainda causa tanto torpor
entre as pessoas, principalmente no âmbito pedagógico. Dentro da educação
comum, esse tema já é amplamente debatido há anos, mas nem por isso está
resolvido. Na educação musical, ainda estamos abrindo as portas para discussões
e iniciativas em relação a essa temática.

Mas o mais importante disso tudo é que a obrigação legal da inclusão está nos
induzindo a repensar o modelo de sociedade, de educação e de convivência e
propondo, embora ainda como algo embrionário, um mundo que respeite e
aceite as pessoas como elas são e que questione os padrões estipulados como
certos ou melhores.

A educação inclusiva nos obrigará a repensar o modelo de escola que temos há tantos
anos; nos impulsionará a aprender com a diversidade e a repensar o papel social da
escola diante da sociedade; nos ajudará a lidar melhor com nossas dificuldades e
deficiências e nos tornará pessoas mais tolerantes e humanizadas. Nesse sentido, a
inclusão só vem a colaborar, e todos temos a ganhar com isso. Certamente, ainda
temos um longo caminho a percorrer e, talvez, nossa geração nem veja os resultados
contundentes desse processo, pois estamos vivenciando a mudança em sua essência.
Mas todo progresso social passa por ambiguidades, lutas, dramas e perdas, e não tem
como haver mudança sem mexer na estrutura. Isso causa instabilidade, insegurança
e, por vezes, resistência e dificuldade em lidar com o novo.

Enfim, com a esperança de que a música seja realmente para todos (um dia),
terminaremos este texto citando partes de um belo conto de Rubem Alves
(1998, p. 35-39):

Os “normais” podem dizer simplesmente: “Sou igual a todos, portanto


sou”. É a igualdade que define o seu ser. Mas os “portadores de

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deficiência”20 têm de fazer uma outra afirmação: “Pugno, ergo sum –


luto, logo existo”. [...] Há jardins feitos por atacado: basta comprar as
plantas no Ceasa ou em Holambra. As plantas são produzidas em série,
em terra cientificamente preparada. [...] Mas há os jardins das solidões,
que florescem nas pedras. [...] As pessoas são assim também. Há os
jardins produzidos em série. Parecem diferentes, mas são todos iguais,
basta chamar um paisagista. E há aqueles que nenhum paisagista sabe
fazer. Brotam da rudeza da pedra vulcânica com uma beleza que é só
sua. [...] Gramanni, amigo rabequista. Rabeca é um violino portador de
deficiência. Há muito violino fino sem deficiência que só desafina. Nas
mãos do Gramanni uma rabeca feita de bambu, gigante, deficiente, toca
Bach. Pois assim são as pessoas...

Referências
ALVES, R. Concerto para corpo e alma. Campinas: Papirus, 1998.

BOSA, C. Autismo: intervenções psicoeducacionais. Revista Brasileira de


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2.ed. São Paulo: Summus, 1988. Coleção Novas Buscas em Educação.

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LOURO, V. (Org.). Arte e responsabilidade social: inclusão pelo teatro e pela


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20 Termo utilizado nessa época.

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Viviane Louro | 49

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