Pierre Clastres - Do Etnocidio
Pierre Clastres - Do Etnocidio
Pierre Clastres - Do Etnocidio
Pierre Clastres
Publicado em Encyclopaedia Universalis (Paris: Universalia, 1974).
acusações precisas de genocídio contra as potências coloniais. Mas o jogo das
relações internacionais e a indiferença relativa da opinião pública impediram a
instituição de um consenso análogo ao de Nuremberg: nunca houve processos
judiciais.
Ele tem em comum com o genocídio uma visão idêntica do Outro: o Outro é a
diferença, certamente, mas é sobretudo a má diferença. Essas duas atitudes
distinguem-se quanto à natureza do tratamento reservado à diferença. O
espírito, se se pode dizer, genocida quer pura e simplesmente negá-la.
Exterminam-se os outros porque eles são absolutamente maus. O etnocida, em
contrapartida, admite a relatividade do mal na diferença: os outros são maus,
mas pode-se melhorá-los obrigando-os a se transformar até que se tornem, se
possível, idênticos ao modelo que lhes é proposto, que lhes é imposto. A
negação etnocida do Outro conduz a uma identificação a si. Poder-se-ia opor o
genocídio e o etnocídio como duas formas perversas do pessimismo e do
otimismo. Na América do Sul, os matadores de índios levam ao ponto máximo
a posição do Outro como diferença: o índio selvagem não é um ser humano,
mas um simples animal. O homicídio de um índio não é um ato criminoso, o
racismo desse ato é inclusive totalmente evacuado, já que afinal ele implica,
para se exercer, o reconhecimento de um mínimo de humanidade no Outro.
Monótona repetição de uma antiqüíssima infâmia: ao falar precursoramente do
etnocídio, Claude Lévi-Strauss lembra, em Raça e história, como os índios das
Ilhas da América Central se perguntavam se os espanhóis recém-chegados
eram deuses ou homens, enquanto os brancos se interrogavam sobre a
natureza humana ou animal dos indígenas.
Quem são, por outro lado, os praticantes do etnocídio? Quem se opõe à alma
dos povos? Em primeiro lugar aparecem, na América do Sul mas também em
muitas outras regiões, os missionários. Propagadores militantes da fé cristã,
eles se esforçam por substituir as crenças bárbaras dos pagãos pela religião do
Ocidente. A atitude evangelizadora implica duas certezas: primeiro, que a
diferença — o paganismo — é inaceitável e deve ser recusada; a seguir, que o
mal dessa má diferença pode ser atenuado ou mesmo abolido. É nisto que a
atitude etnocida é sobretudo otimista: o Outro, mau no ponto de partida, é
suposto perfectível, reconhecem-lhe os meios de se alçar, por identificação, à
perfeição que o cristianismo representa. Eliminar a força da crença paga é
destruir a substância mesma da sociedade. Aliás, é esse o resultado visado:
conduzir o indígena, pelo caminho da verdadeira fé, da selvageria à civilização.
O etnocídio é praticado para o bem do selvagem. O discurso leigo não diz outra
coisa quando enuncia, por exemplo, a doutrina oficial do governo brasileiro
quanto à política indigenista: "Nossos índios, proclamam os responsáveis, são
seres humanos como os outros. Mas a vida selvagem que levam nas florestas
os condena à miséria e à infelicidade. É nosso dever ajudá-los a libertar-se da
servidão. Eles têm o direito de se elevar à dignidade de cidadãos brasileiros, a
fim de participar plenamente do desenvolvimento da sociedade nacional e de
usufruir de seus benefícios". A espiritualidade do etnocídio é a ética do
humanismo.
Toda cultura opera assim uma divisão entre ela mesma, que se afirma como
representação por excelência do humano, e os outros, que participam da
humanidade apenas em grau menor. O discurso que as sociedades primitivas
fazem sobre si mesmas, discurso condensado nos nomes que elas se dão, é
portanto etnocêntrico de uma ponta à outra: afirmação da superioridade de sua
existência cultural, recusa de reconhecer os outros como iguais. O
etnocentrismo aparece então como a coisa do mundo mais bem distribuída e,
desse ponto de vista pelo menos, a cultura do Ocidente não se distingue das
outras. Convém mesmo, aprofundando um pouco mais a análise, pensar o
etnocentrismo como uma propriedade formal de toda formação cultural, como
imanente à própria cultura. Pertence à essência da cultura ser etnocêntrica, na
medida exata em que toda cultura se considera como a cultura por excelência.
Em outras palavras, a alteridade cultural nunca é apreendida como diferença
positiva, mas sempre como inferioridade segundo um eixo hierárquico.
Embora breve, essa vista de olhos sobre a história de nosso país é suficiente
para mostrar que o etnocídio, como supressão mais ou menos autoritária das
diferenças sócio-culturais, está inscrito de antemão na natureza e no
funcionamento da máquina estatal, a qual procede por uniformização da
relação que mantém com os indivíduos: o listado conhece apenas cidadãos
iguais perante a Lei.
Referência à forma geométrica aproximada [do mapa] da França. [N.T.]
Incas sobre as tribos submetidas nunca atingiu a violência do zelo maníaco
com que os espanhóis aniquilariam mais tarde a idolatria indígena. Embora
fossem hábeis diplomatas, os Incas sabiam utilizar a força quando necessário e
sua organização reagia com a maior brutalidade, como todo aparelho de
Estado quando seu poder é questionado. As freqüentes insurreições contra a
autoridade central de Cuzco, impiedosamente reprimidas de início, eram a
seguir castigadas pela deportação em massa dos vencidos para regiões muito
distantes de seu território natal, isto é, aquele marcado pela rede dos locais de
culto (fontes, colinas, grutas etc): desenraizamento, desterritorialização,
etnocídio...
Eis por que nenhum descanso podia ser dado às sociedades que
abandonavam o mundo à sua tranqüila improdutividade originária; eis por que
era intolerável, aos olhos do Ocidente, o desperdício representado pela não
exploração econômica de imensos recursos. A escolha deixada a essas
sociedades era um dilema: ou ceder à produção ou desaparecer; ou o
etnocídio ou o genocídio. No final do século passado, os índios do pampa
argentino foram totalmente exterminados a fim de permitir a criação extensiva
de ovelhas e vacas, que fundou a riqueza do capitalismo argentino. No início
deste século, centenas de milhares de índios amazônicos pereceram sob a
ação dos exploradores de borracha. Atualmente, em toda a América do Sul, os
últimos índios livres sucumbem sob a pressão enorme do crescimento
econômico, brasileiro em particular. As estradas trans-continentais, cuja
construção se acelera, constituem eixos de colonização dos territórios
atravessados: azar dos índios com quem a estrada depara! Que importância
podem ter alguns milhares de selvagens improdutivos comparada à riqueza em
ouro, minérios raros, petróleo, em criação de bovinos, em plantações de café
etc? Produzir ou morrer, é a divisa do Ocidente. Os índios da América do Norte
aprenderam isso na carne, quase todos mortos a fim de permitir a produção.
Um de seus carrascos, o general Sherman, declarava-o ingenuamente numa
carta endereçada a um famoso matador de índios, Buffalo Bill: "Pelo que posso
calcular, havia, em 1862, cerca de 9 milhões e meio de bisões nas planícies
entre o Missouri e as Montanhas Rochosas. Todos desapareceram, mortos em
troca de sua carne, de sua pele e de seus ossos. [...] Na mesma data, havia
cerca de 165 mil Pawnee, Sioux, Cheyenne, Kiowa e Apache, cuja alimentação
anual dependia desses bisões. Eles também partiram e foram substituídos pelo
dobro ou o triplo de homens e mulheres de raça branca, que fizeram dessa
terra um jardim e que podem ser recenseados, taxados e governados segundo
as leis da natureza e da civilização. Essa mudança foi salutar e se cumprirá até
o fim."1
in:
1
Citado em René Thévenin & Paul Coze, Moeurs et histoire des Indiens Peaux-
Rouges (Paris: Payot, 1952).