Pierre Clastres - Do Etnocidio

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DO ETNOCÍDIO

Pierre Clastres

Há alguns anos, o termo etnocídio não existia. Beneficiando-se dos favores


passageiros da moda e, mais certamente, de sua capacidade de responder a
uma demanda, de satisfazer uma necessidade de precisão terminológica, a
utilização da palavra ultrapassou ampla e rapidamente seu lugar de origem, a
etnologia, para cair de certo modo no domínio público. Mas pode a difusão
acelerada de uma palavra garantir, à idéia que ela tem a missão de veicular, a
manutenção da coerência e do rigor desejáveis? Não é evidente que a
compreensão se beneficie com essa extensão e que, afinal de contas, se saiba
de maneira perfeitamente clara do que se fala quando se faz referência ao
etnocídio. No espírito de seus inventores, a palavra estava decerto destinada a
traduzir uma realidade que nenhum outro termo exprimia. Se sentiu-se a
necessidade de criar uma palavra nova, é que havia algo de novo a pensar, ou
então algo de antigo mas ainda não pensado. Em outros termos, julgava-se
inadequada, ou imprópria a cumprir essa nova exigência, uma outra palavra, de
uso difundido há muito mais tempo: a palavra genocídio. Não se pode portanto
inaugurar uma reflexão séria sobre a idéia de etnocídio sem buscar
preliminarmente determinar o que distingue este fenômeno da realidade que o
genocídio nomeia.

Criado em 1946 no processo de Nuremberg, o conceito jurídico de genocídio é


a consideração no plano legal de um tipo de criminalidade até então
desconhecido. Mais precisamente, ele se refere à primeira manifestação,
devidamente registrada pela lei, dessa criminalidade: o extermínio sistemático
dos judeus europeus pelos nazistas alemães. O delito juridicamente definido
como genocídio tem sua raiz portanto no racismo, é o produto lógico e, no
limite, necessário dele: um racismo que se desenvolve livremente, como foi o
caso na Alemanha nazista, só pode conduzir ao genocídio. As guerras
coloniais que se sucederam desde 1945 em grande parte do Terceiro Mundo e
que, em alguns casos, duram ainda hoje, deram por sua vez ensejo a


Publicado em Encyclopaedia Universalis (Paris: Universalia, 1974).
acusações precisas de genocídio contra as potências coloniais. Mas o jogo das
relações internacionais e a indiferença relativa da opinião pública impediram a
instituição de um consenso análogo ao de Nuremberg: nunca houve processos
judiciais.

Embora o genocídio anti-semita dos nazistas tenha sido o primeiro a ser


julgado em nome da lei, não foi o primeiro a ser perpetrado. A história da
expansão colonial no século XIX, a história da constituição de impérios
coloniais pelas grandes potências européias, está pontuada de massacres
metódicos de populações autóctones. Todavia, por sua extensão continental,
pela amplitude da queda demográfica que provocou, é o genocídio de que
foram vítimas os indígenas americanos que mais chama a atenção. Desde o
descobrimento da América em 1492, pôs-se em funcionamento uma máquina
de destruição dos índios. Essa máquina continua a funcionar, lá onde
subsistem, na grande floresta amazônica, as últimas tribos "selvagens". Ao
longo dos últimos anos, massacres de índios têm sido denunciados no Brasil,
na Colômbia, no Paraguai. Sempre em vão.

Ora, foi principalmente a partir de sua experiência americana que os etnólogos,


e muito particularmente Robert Jaulin, viram-se levados a formular o conceito
de etnocídio. É primeiramente à realidade indígena da América do Sul que se
refere essa idéia. Dispomos aí, portanto, de um terreno favorável, se é possível
dizer, à pesquisa da distinção entre genocídio e etnocídio, já que as últimas
populações indígenas do continente são simultaneamente vítimas desses dois
tipos de criminalidade. Se o termo genocídio remete à idéia de "raça" e à
vontade de extermínio de uma minoria racial, o termo etnocídio aponta não
para a destruição física dos homens (caso em que se permaneceria na
situação genocida), mas para a destruição de sua cultura. O etnocídio,
portanto, é a destruição sistemática dos modos de vida e pensamento de povos
diferentes daqueles que empreendem essa destruição. Em suma, o genocídio
assassina os povos em seu corpo, o etnocídio os mata em seu espírito. Em
ambos os casos, trata-se sempre da morte, mas de uma morte diferente: a
supressão física e imediata não é a opressão cultural com efeitos longamente
adiados, segundo a capacidade de resistência da minoria oprimida. Aqui não é
o caso de escolher entre dois males o menor: a resposta é muito evidente,
mais vale menos barbárie que mais barbárie. Dito isto, é sobre a verdadeira
significação do etnocídio que convém refletir.

Ele tem em comum com o genocídio uma visão idêntica do Outro: o Outro é a
diferença, certamente, mas é sobretudo a má diferença. Essas duas atitudes
distinguem-se quanto à natureza do tratamento reservado à diferença. O
espírito, se se pode dizer, genocida quer pura e simplesmente negá-la.
Exterminam-se os outros porque eles são absolutamente maus. O etnocida, em
contrapartida, admite a relatividade do mal na diferença: os outros são maus,
mas pode-se melhorá-los obrigando-os a se transformar até que se tornem, se
possível, idênticos ao modelo que lhes é proposto, que lhes é imposto. A
negação etnocida do Outro conduz a uma identificação a si. Poder-se-ia opor o
genocídio e o etnocídio como duas formas perversas do pessimismo e do
otimismo. Na América do Sul, os matadores de índios levam ao ponto máximo
a posição do Outro como diferença: o índio selvagem não é um ser humano,
mas um simples animal. O homicídio de um índio não é um ato criminoso, o
racismo desse ato é inclusive totalmente evacuado, já que afinal ele implica,
para se exercer, o reconhecimento de um mínimo de humanidade no Outro.
Monótona repetição de uma antiqüíssima infâmia: ao falar precursoramente do
etnocídio, Claude Lévi-Strauss lembra, em Raça e história, como os índios das
Ilhas da América Central se perguntavam se os espanhóis recém-chegados
eram deuses ou homens, enquanto os brancos se interrogavam sobre a
natureza humana ou animal dos indígenas.

Quem são, por outro lado, os praticantes do etnocídio? Quem se opõe à alma
dos povos? Em primeiro lugar aparecem, na América do Sul mas também em
muitas outras regiões, os missionários. Propagadores militantes da fé cristã,
eles se esforçam por substituir as crenças bárbaras dos pagãos pela religião do
Ocidente. A atitude evangelizadora implica duas certezas: primeiro, que a
diferença — o paganismo — é inaceitável e deve ser recusada; a seguir, que o
mal dessa má diferença pode ser atenuado ou mesmo abolido. É nisto que a
atitude etnocida é sobretudo otimista: o Outro, mau no ponto de partida, é
suposto perfectível, reconhecem-lhe os meios de se alçar, por identificação, à
perfeição que o cristianismo representa. Eliminar a força da crença paga é
destruir a substância mesma da sociedade. Aliás, é esse o resultado visado:
conduzir o indígena, pelo caminho da verdadeira fé, da selvageria à civilização.
O etnocídio é praticado para o bem do selvagem. O discurso leigo não diz outra
coisa quando enuncia, por exemplo, a doutrina oficial do governo brasileiro
quanto à política indigenista: "Nossos índios, proclamam os responsáveis, são
seres humanos como os outros. Mas a vida selvagem que levam nas florestas
os condena à miséria e à infelicidade. É nosso dever ajudá-los a libertar-se da
servidão. Eles têm o direito de se elevar à dignidade de cidadãos brasileiros, a
fim de participar plenamente do desenvolvimento da sociedade nacional e de
usufruir de seus benefícios". A espiritualidade do etnocídio é a ética do
humanismo.

O horizonte no qual se destacam o espírito e a prática etnocidas é determinado


segundo dois axiomas. O primeiro proclama a hierarquia das culturas: há as
que são inferiores e as que são superiores. Quanto ao segundo, ele afirma a
superioridade absoluta da cultura ocidental. Portanto, esta só pode manter com
as outras, e em particular com as culturas primitivas, uma relação de negação.
Mas trata-se de uma negação positiva, no sentido de que ela quer suprimir o
inferior enquanto inferior para içá-lo ao nível do superior. Suprime-se a
indianidade do índio para fazer dele um cidadão brasileiro. Na perspectiva de
seus agentes, o etnocídio não poderia ser, conseqüentemente, um
empreendimento de destruição: ao contrário, é uma tarefa necessária, exigida
pelo humanismo inscrito no núcleo da cultura ocidental.

Chama-se etnocentrismo essa vocação de avaliar as diferenças pelo padrão da


própria cultura. O Ocidente seria etnocida porque é etnocêntrico, porque se
pensa e se quer a civilização. Uma questão porém se coloca: nossa cultura
detém o monopólio do etnocentrismo? A experiência etnológica permite
responder a isso. Consideremos a maneira como as sociedades primitivas
nomeiam a si mesmas. Percebe-se que, na realidade, não há
autodenominação, na medida em que, de modo recorrente, as sociedades se
atribuem quase sempre um único e mesmo nome: os Homens. Ilustrando com
alguns exemplos esse traço cultural, lembraremos que os índios Guarani
nomeiam-se Ava, que significa os Homens; que os Guayaki dizem deles
mesmos que são Aché, as "Pessoas", que os Waika da Venezuela se
proclamam Yanomami, a "Gente"; que os Esquimós são Innuit, "Homens".
Poder-se-ia estender indefinidamente a lista desses nomes próprios que
compõem um dicionário em que todas as palavras têm o mesmo sentido:
homens. Inversamente, cada sociedade designa sistematicamente seus
vizinhos por nomes pejorativos, desdenhosos, injuriosos.

Toda cultura opera assim uma divisão entre ela mesma, que se afirma como
representação por excelência do humano, e os outros, que participam da
humanidade apenas em grau menor. O discurso que as sociedades primitivas
fazem sobre si mesmas, discurso condensado nos nomes que elas se dão, é
portanto etnocêntrico de uma ponta à outra: afirmação da superioridade de sua
existência cultural, recusa de reconhecer os outros como iguais. O
etnocentrismo aparece então como a coisa do mundo mais bem distribuída e,
desse ponto de vista pelo menos, a cultura do Ocidente não se distingue das
outras. Convém mesmo, aprofundando um pouco mais a análise, pensar o
etnocentrismo como uma propriedade formal de toda formação cultural, como
imanente à própria cultura. Pertence à essência da cultura ser etnocêntrica, na
medida exata em que toda cultura se considera como a cultura por excelência.
Em outras palavras, a alteridade cultural nunca é apreendida como diferença
positiva, mas sempre como inferioridade segundo um eixo hierárquico.

No entanto, se toda cultura é etnocêntrica, somente a ocidental é etnocida.


Segue-se, portanto, que a prática etnocida não se articula necessariamente
com a convicção etnocêntrica. Caso contrário, toda cultura deveria ser
etnocida, o que não acontece. É nesse nível, parece-nos, que se pode
identificar uma certa insuficiência da reflexão que vêm fazendo, de um tempo
para cá, os pesquisadores preocupados, com razão, com o problema do
etnocídio. Com efeito, não basta reconhecer e afirmar a natureza e a função
etnocidas da civilização ocidental. Enquanto nos contentarmos em determinar o
mundo branco como mundo etnocida, permaneceremos na superfície das
coisas, não sairemos da repetição — legítima, é verdade, pois nada mudou —
de um discurso já pronunciado, pois afinal o bispo Las Casas, por exemplo, já
na aurora do século XVI, denunciava em termos muito precisos o genocídio e o
etnocídio que os espanhóis impunham aos índios das Ilhas e do México. Da
leitura dos trabalhos dedicados ao etnocídio retira-se a impressão de que, para
seus autores, a civilização ocidental é uma espécie de abstração, sem raízes
sócio-históricas, uma vaga essência que sempre envolveu em si o espírito
etnocida. Ora, nossa cultura não é de modo algum uma abstração, é o produto
lentamente constituído de uma história, ela é passível de uma pesquisa
genealógica. O que faz que a civilização ocidental seja etnocida? Tal é a
verdadeira questão. A análise do etnocídio implica, para além da denúncia dos
fatos, uma interrogação sobre a natureza, historicamente determinada, de
nosso mundo cultural. Portanto, trata-se de encarar a história.

Assim como não é abstração extratemporal, a civilização do Ocidente


tampouco é uma realidade homogênea, um bloco indiferenciado idêntico em
todas as suas partes. No entanto, é essa a imagem que parecem fazer dela os
autores acima citados. Mas, se o Ocidente é etnocida assim como o sol é
luminoso, então esse fatalismo torna inútil e mesmo absurda a denúncia dos
crimes e o apelo à proteção das vítimas. Não seria, ao contrário, porque a
civilização ocidental é etnocida em primeiro lugar no interior dela mesma que
ela pode sê-lo a seguir no exterior, isto é, contra as outras formações culturais?
Não se pode pensar a vocação etnocida da sociedade ocidental sem articulá-la
com essa particularidade de nosso próprio mundo, particularidade que é
inclusive o critério clássico de distinção entre os selvagens e os civilizados,
entre o mundo primitivo e o mundo ocidental: o primeiro reúne o conjunto das
sociedades sem Estado, o segundo compõe-se de sociedades com Estado. E é
nisso que se deve tentar refletir: pode-se legitimamente colocar em perspectiva
essas duas propriedades do Ocidente, como cultura etnocida, como sociedade
com Estado? Se fosse assim, compreenderíamos por que as sociedades
primitivas podem ser etnocêntricas sem no entanto serem etnocidas, já que
elas são precisamente sociedades sem Estado.

É aceito que o etnocídio é a supressão das diferenças culturais julgadas


inferiores e más; é a aplicação de um princípio de identificação, de um projeto
de redução do outro ao mesmo (o índio amazônico suprimido como outro e
reduzido ao mesmo como cidadão brasileiro). Em outras palavras, o etnocídio
resulta na dissolução do múltiplo no Um. O que significa agora o Estado? Ele é,
por essência, o emprego de uma força centrípeta que tende, quando as
circunstâncias o exigem, a esmagar as forças centrífugas inversas. O Estado
se quer e se proclama o centro da sociedade, o todo do corpo social, o mestre
absoluto dos diversos órgãos desse corpo. Descobre-se assim, no núcleo
mesmo da substância do Estado, a força atuante do Um, a vocação de recusa
do múltiplo, o temor e o horror da diferença. Nesse nível formal em que nos
situamos atualmente, constata-se que a prática etnocida e a máquina estatal
funcionam da mesma maneira e produzem os mesmos efeitos: sob as espécies
da civilização ocidental ou do Estado, revelam-se sempre a vontade de
redução da diferença e da alteridade, o sentido e o gosto do idêntico e do Um.

Abandonando esse eixo formal e de certo modo estruturalista para abordar o


da diacronia, da história concreta, consideremos a cultura francesa como caso
particular da cultura ocidental, como ilustração exemplar do espírito e do
destino do Ocidente. Sua formação, enraizada num passado secular, mostra-se
estritamente coextensível à expansão e ao fortalecimento do aparelho do
Estado, primeiro sob sua forma monárquica, a seguir sob sua forma
republicana. A cada desenvolvimento do poder central corresponde um
desdobramento acrescido do mundo cultural. A cultura francesa é uma cultura
nacional, uma cultura do francês. A extensão da autoridade do Estado traduz-
se no expansionismo da língua do Estado, o francês. A nação pode se dizer
constituída, o Estado pode proclamar-se detentor exclusivo do poder, quando
as pessoas sobre as quais se exerce a autoridade do Estado falam a mesma
língua que ele. Esse processo de integração passa evidentemente pela
supressão das diferenças. É assim que, na aurora da nação francesa, quando
a França era apenas o reino dos francos e seu rei um pálido senhor feudal do
norte do Loire, a cruzada dos albigenses abateu-se sobre o sul para abolir sua
civilização. A extirpação da heresia cátara, pretexto e meio de expansão para a
monarquia capetiana, traçando os limites quase definitivos da França, aparece
como um caso puro de etnocídio: a cultura do Midi— religião, literatura, poesia
— foi irreversivelmente condenada, e os habitantes do Languedoc passaram a
ser súditos leais do rei da França.

A Revolução de 1789, ao permitir o triunfo do espírito centralista dos jacobinos


sobre as tendências federalistas dos girondinos, levou a seu termo o domínio
político da administração parisiense. As províncias, como unidades territoriais,
apoiavam-se cada qual numa antiga realidade, homogênea do ponto de vista
cultural: língua, tradições políticas etc. Elas foram substituídas pela divisão
abstrata em departamentos, própria a romper toda referência às
particularidades locais, e portanto a facilitar em toda parte a penetração da
autoridade estatal. Última etapa desse movimento pelo qual as diferenças
desaparecem uma após a outra diante do poder do Estado: a IIIa República
transformou definitivamente os habitantes do hexágono em cidadãos graças à
instituição da escola leiga, gratuita e obrigatória, e posteriormente do serviço
militar obrigatório. Com isso sucumbiu o que subsistia de existência autônoma
no mundo provincial e rural. A francização estava completa, o etnocídio
consumado: línguas tradicionais enxotadas enquanto dialetos de indivíduos
atrasados, vida aldeã rebaixada à condição de espetáculo folclórico destinado
ao consumo de turistas etc.

Embora breve, essa vista de olhos sobre a história de nosso país é suficiente
para mostrar que o etnocídio, como supressão mais ou menos autoritária das
diferenças sócio-culturais, está inscrito de antemão na natureza e no
funcionamento da máquina estatal, a qual procede por uniformização da
relação que mantém com os indivíduos: o listado conhece apenas cidadãos
iguais perante a Lei.

Afirmar, a partir do exemplo francês, que o etnocídio pertence à essência


unificadora do Estado conduz logicamente a dizer que toda formação estatal é
etnocida. Examinemos rapidamente o caso de um tipo de Estado muito
diferente dos Estados europeus. Os Incas haviam conseguido edificar nos
Andes uma máquina de governo que causou a admiração dos espanhóis, tanto
pelo tamanho de sua extensão territorial quanto pela precisão e a minúcia das
técnicas administrativas que permitiam ao imperador e a seus numerosos
funcionários exercer um controle quase total e permanente sobre os habitantes
do império. O aspecto propriamente etnocida dessa máquina estatal aparece
em sua tendência a incaizar as populações recentemente conquistadas: não
apenas obrigando-as a pagar tributo aos novos senhores, mas sobretudo
forçando-as a celebrar prioritariamente o culto dos conquistadores, o culto do
Sol, isto é, do próprio Inca. Religião de Estado, imposta pela força, em
detrimento dos cultos locais. É verdade também que a pressão exercida pelos


Referência à forma geométrica aproximada [do mapa] da França. [N.T.]
Incas sobre as tribos submetidas nunca atingiu a violência do zelo maníaco
com que os espanhóis aniquilariam mais tarde a idolatria indígena. Embora
fossem hábeis diplomatas, os Incas sabiam utilizar a força quando necessário e
sua organização reagia com a maior brutalidade, como todo aparelho de
Estado quando seu poder é questionado. As freqüentes insurreições contra a
autoridade central de Cuzco, impiedosamente reprimidas de início, eram a
seguir castigadas pela deportação em massa dos vencidos para regiões muito
distantes de seu território natal, isto é, aquele marcado pela rede dos locais de
culto (fontes, colinas, grutas etc): desenraizamento, desterritorialização,
etnocídio...

A violência etnocida, como negação da diferença, pertence claramente à


essência do Estado, tanto nos impérios bárbaros quanto nas sociedades
civilizadas do Ocidente: toda organização estatal é etnocida, o etnocídio é o
modo normal de existência do Estado. Há portanto uma certa universalidade do
etnocídio, no sentido de ser característico não apenas de um vago "mundo
branco" indeterminado, mas de todo um conjunto de sociedades que são as
sociedades com Estado. A reflexão sobre o etnocídio passa por uma análise do
Estado. Mas deve ela deter-se aí, limitar-se à constatação de que o etnocídio é
o Estado e que, desse ponto de vista, todos os Estados se equivalem? Seria
recair no pecado de abstração que precisamente reprovamos à "escola do
etnocídio", seria uma vez mais desconhecer a história concreta de nosso
próprio mundo cultural.

Onde se situa a diferença que impede colocar no mesmo plano, ou pôr no


mesmo saco, os Estados bárbaros (Incas, faraós, despotismos orientais etc.) e
os Estados civilizados (o mundo ocidental)? Percebe-se primeiro essa
diferença no nível da capacidade etnocida dos aparelhos estatais. No primeiro
caso, essa capacidade é limitada não pela fraqueza do Estado mas, ao
contrário, por sua força: a prática etnocida — abolir a diferença quando ela se
torna oposição — cessa a partir do momento em que a força do Estado não
corre mais nenhum risco. Os Incas toleravam uma relativa autonomia das
comunidades andinas quando estas reconheciam a autoridade política e
religiosa do Imperador. Em compensação, no segundo caso — Estados
ocidentais —, a capacidade etnocida se mostra sem limites, ela é desenfreada.
É exatamente por isso que ela pode conduzir ao genocídio e que se pode falar
do mundo ocidental, de fato, como absolutamente etnocida. Mas de onde
provém isso? O que a civilização ocidental contém que a torna infinitamente
mais etnocida que qualquer outra forma de sociedade? É seu regime de
produção econômica, espaço justamente do ilimitado, espaço sem lugares por
ser recuo constante do limite, espaço infinito da fuga permanente para diante.
O que diferencia o Ocidente é o capitalismo, enquanto impossibilidade de
permanecer no aquém de uma fronteira, enquanto passagem para além de
toda fronteira; é o capitalismo como sistema de produção para o qual nada é
impossível, exceto não ser para si mesmo seu próprio fim: seja ele, aliás,
liberal, privado, como na Europa ocidental, ou planificado, de Estado, como na
Europa oriental. A sociedade industrial, a mais formidável máquina de produzir,
é por isso mesmo a mais terrível máquina de destruir. Raças, sociedades,
indivíduos; espaço, natureza, mares, florestas, subsolo: tudo é útil, tudo deve
ser utilizado, tudo deve ser produtivo; de uma produtividade levada a seu
regime máximo de intensidade.

Eis por que nenhum descanso podia ser dado às sociedades que
abandonavam o mundo à sua tranqüila improdutividade originária; eis por que
era intolerável, aos olhos do Ocidente, o desperdício representado pela não
exploração econômica de imensos recursos. A escolha deixada a essas
sociedades era um dilema: ou ceder à produção ou desaparecer; ou o
etnocídio ou o genocídio. No final do século passado, os índios do pampa
argentino foram totalmente exterminados a fim de permitir a criação extensiva
de ovelhas e vacas, que fundou a riqueza do capitalismo argentino. No início
deste século, centenas de milhares de índios amazônicos pereceram sob a
ação dos exploradores de borracha. Atualmente, em toda a América do Sul, os
últimos índios livres sucumbem sob a pressão enorme do crescimento
econômico, brasileiro em particular. As estradas trans-continentais, cuja
construção se acelera, constituem eixos de colonização dos territórios
atravessados: azar dos índios com quem a estrada depara! Que importância
podem ter alguns milhares de selvagens improdutivos comparada à riqueza em
ouro, minérios raros, petróleo, em criação de bovinos, em plantações de café
etc? Produzir ou morrer, é a divisa do Ocidente. Os índios da América do Norte
aprenderam isso na carne, quase todos mortos a fim de permitir a produção.
Um de seus carrascos, o general Sherman, declarava-o ingenuamente numa
carta endereçada a um famoso matador de índios, Buffalo Bill: "Pelo que posso
calcular, havia, em 1862, cerca de 9 milhões e meio de bisões nas planícies
entre o Missouri e as Montanhas Rochosas. Todos desapareceram, mortos em
troca de sua carne, de sua pele e de seus ossos. [...] Na mesma data, havia
cerca de 165 mil Pawnee, Sioux, Cheyenne, Kiowa e Apache, cuja alimentação
anual dependia desses bisões. Eles também partiram e foram substituídos pelo
dobro ou o triplo de homens e mulheres de raça branca, que fizeram dessa
terra um jardim e que podem ser recenseados, taxados e governados segundo
as leis da natureza e da civilização. Essa mudança foi salutar e se cumprirá até
o fim."1

O general tinha razão. A mudança se cumprirá até o fim, só acabará quando


não houver absolutamente mais nada para mudar.

in:

Arqueologia da violência - pesquisas de antropologia política


Pierre Clastres
Prefácio de Bento Prado Jr. | Tradução de Paulo Neves
Publicado em 1980 | Edição brasileira de 2004
Editora Cosac & Naify
extraído do livro eletrônico produzido por:
Coletivo Sabotagem – Conhecimento não se compra, se toma!
http://www.sabotagem.revolt.org/

1
Citado em René Thévenin & Paul Coze, Moeurs et histoire des Indiens Peaux-
Rouges (Paris: Payot, 1952).

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