Raça e História
Raça e História
Raça e História
Claude Lévi-Strauss
Tradução e notas de René Decol
Nota do tradutor
Escrito para uma série da Unesco dedicada a combater o racismo e publicado em 1952, Raça e história
foi logo reconhecido como um dos textos mais importantes de Lévi-Strauss. Neste ensaio são discutidas
questões fundamentais sobre a história, as culturas e as civilizações, na visão privilegiada do grande
antropólogo francês. Leitura obrigatória em cursos de ciências sociais, foi publicado no Brasil em 1970
em tradução que contem muitos erros 1.
A versão que se segue é uma tradução integralmente nova, feita a partir do original francês, e da versão
para o inglês. Além de corrigir vários erros de tradução e revisão, foi feito um esforço para tornar a
leitura mais fácil, sem no entanto comprometer a magistral prosa do autor. Nos momentos onde foi
necessário optar entre a fidelidade e a clareza, no entanto, optou-se pela última, seguindo-se assim a
concepção da edição em inglês.
Há muitas maneiras através das quais este ensaio pode ser lido. Uma delas é como guia para um passeio
pela história das civilizações (no plural). Poucos pensadores, fora Lévi-Strauss, estariam capacitados para
uma tarefa dessa envergadura em pouco mais de 60 páginas.
Para facilitar este tipo de leitura, foram acrescentadas nada menos do que quarenta notas explicativas e
links para recursos na internet.
Por fim, a seção Recursos na internet traz referências a mapas e linhas do tempo que podem tornar a
sua leitura mais rica, principalmente para os alunos do Ensino Médio.
1 Race et Histoire foi publicado na coleção Le racisme devant La Science, © Unesco 1960. Publicado no Brasil na
coletânea em dois volumes Raça e ciência, Ed. Perspectiva, 1970. Além dessa, atualmente há outra edição
disponível, publicada por uma editora portuguesa (que é a mesma da coleção Pensadores da Abril). Como a
intenção da coleção era atingir um público amplo, a própria Unesco preparou as traduções. A versão em português
é muito acidentada, para dizer o mínimo: há erros crassos de tradução e de revisão.
1
Raça e história
Claude Lévi-Strauss
Sumário
1. Raça e cultura
3. O etnocentrismo
5. A ideia de progresso
8. Acaso e civilização
11. Bibliografia
Recursos na internet
● HiperHistory
● World History Tiimeline
● Human Evolution Research
2
● Linha do tempo da história - Wikipedia
● Portal de Antropologia
● Cultures.com
● Heilbrunn Time Line of Art History
● Arte da Caverna de Chauvet - Bradshaw Foundation
● Galeria de arte pré-histórica
1. Raça e cultura
3
lugar de pai das teorias racistas, não concebia a pretensa "desigualdade das raças
humanas" de uma maneira quantitativa mas sim qualitativa. Para ele, as grandes
raças primitivas que formavam a humanidade nos seus primórdios – branca,
amarela, negra – não eram só desiguais em valor absoluto, mas também diversas
nas suas aptidões particulares. O efeito negativo da degenerescência estava,
segundo ele, mais ligado ao fenômeno da mestiçagem do que a posição de cada
uma delas numa escala de valores comum; e destinada, portanto, a atingir a
humanidade inteira, condenada ao processo crescente de miscigenação 3. Mas o
pecado original da antropologia consiste na confusão entre a noção puramente
biológica da raça (supondo, por outro lado, que mesmo neste campo limitado
esta noção possa ter qualquer objetividade, o que é contestado pela genética) e
as produções sociológicas e psicológicas das culturas humanas. Bastou Gobineau
ter cometido este pecado para ficar preso ao círculo infernal que conduz de um
erro intelectual, não necessariamente de má-fé, à legitimação involuntária de
todas as tentativas de discriminação e de exploração.
Por outro lado quando falamos de contribuição das raças humanas para a
civilização não queremos dizer que as manifestações culturais da Ásia ou da
Europa, da África ou da América, extraiam sua originalidade do fato destes
continentes serem, na sua maioria, povoados por habitantes de troncos raciais
diferentes. Se a originalidade da sua contribuição existe – e não há dúvidas sobre
3Processo que está ligado ao das migrações, por sua vez, tão antigo quanto as primeiras civilizações. A era das
navegações e a grande migração para as Américas teve com consequência uma intensificação ainda maior do
encontro de culturas, sem falar da globalização nas últimas décadas. Enfim, seria possível deduzir das palavras de
Lévi-Strauss que o intercâmbio e o cruzamento de povos e culturas é da própria natureza da história em geral, e
ainda mais no caso da Civilização Ocidental, o que coloca sob outra luz a questão das migrações.
4
isso – ela está mais relacionada com circunstâncias geográficas, históricas e
sociológicas do que com aptidões distintas ligadas a constituição anatômica ou
fisiológica de negros, amarelos ou brancos. Mas não se pode deixar para segundo
plano um aspecto igualmente importante da história: esta não se desenvolve
uniformemente, mas através dos extraordinariamente diversos modos de
sociedades e civilizações. Esta diversidade intelectual, estética e antropológica
não está ligada por nenhuma relação de causa e efeito àquela que existe no plano
biológico entre determinados aspectos observáveis dos grupos humanos – apenas
correm paralelas, mas em terrenos diferentes. E ao mesmo tempo distingue-se
dela por dois aspectos importantes. Em primeiro lugar, a diversidade sociológica
situa-se numa outra ordem de grandeza: existem muito mais culturas humanas
do que raças 4. Enquanto as culturas podem ser contadas aos milhares, as raças
contam-se pelas unidades; por outro lado duas culturas pertencentes a uma
mesma raça podem diferir tanto ou mais que duas culturas provenientes de
grupos raciais diferentes. Em segundo lugar, ao contrário da diversidade entre as
raças, que apresentam como principal interesse a sua origem histórica e a sua
distribuição no espaço, a diversidade entre as culturas coloca uma série de
problemas.
5 “Homem de rua”, no original. Nos anos 50 ainda estava fresca a lembrança dos horrores da Segunda Guerra
Mundial, quando em muitos países, principalmente na Alemanha e na Itália, o racismo foi abraçado por enormes
5
ter a pele negra ou branca, ou o cabelo liso ou crespo, para permanecer em
silêncio face a uma outra questão. Se não existem aptidões raciais inatas, como
explicar que a civilização desenvolvida pelo homem branco tenha feito os
imensos progressos que conhecemos, enquanto as outras permanecem
atrasadas, umas a meio do caminho, e outras submetidas a um atraso de milhares
ou dezenas de milhares de anos? 6
6
em etnógrafo e ir partilhar a existência de uma sociedade que o interesse; mas,
mesmo que se transforme em historiador ou arqueólogo, nunca poderia entrar
em contato direto com uma civilização desaparecida; só poderia ter um acesso
indireto, através dos documentos escritos a seu respeito, ou dos objetos,
ferramentas, obras de arte e outros registros que esta sociedade porventura tiver
deixado 7. Enfim, não devemos esquecer que mesmo as sociedades
contemporâneas que continuam a ignorar a escrita, aquelas a que chamamos de
“selvagens” ou “primitivas”, foram, também elas, precedidas por outras formas,
cujo conhecimento é praticamente impossível, mesmo de maneira indireta; um
catálogo cuidadoso, portanto, deveria reservar um número de itens em branco
infinitamente maior do que aqueles em que somos capazes de escrever qualquer
coisa. Impõem-se uma primeira constatação: a diversidade das culturas é no
presente, e também foi no passado, muito maior e mais rica que tudo o que
pudermos dela conhecer.
7 É o caso, por exemplo, das tribos de caçadores coletores que habitavem o continente sul-americano antes da
chegada dos europeus. Ver Os índios antes do Brasil, de Carlos Fausto (Jorge Zahar Editor, 2000).
7
oferecer a imagem de uma mesma civilização, ainda que tenham seguido
caminhos diferentes. Operam simultaneamente, nas sociedades humanas, forças
que atuam em direções opostas, umas tendendo para a manutenção, e mesmo
para a acentuação dos particularismos, outras agindo no sentido da convergência
e da afinidade. O estudo da linguagem oferece exemplos surpreendentes de tais
fenômenos. Assim, ao mesmo tempo que as línguas de uma mesma raiz
apresentam tendências para se diferenciar umas das outras (tais como o russo, o
francês e o inglês 8), línguas de origens diversas, mas faladas por povos que vivem
próximos, desenvolvem características comuns; por exemplo, o russo diferenciou-
se, sob determinados aspectos, de outras línguas eslavas para se aproximar, pelo
menos por determinados traços fonéticos, das línguas urálicas e turcas faladas na
sua vizinhança geográfica.
8
diante; cada grupo atribui uma extrema importância a essas diferenças que os
distinguem uns dos outros. Podemos perguntar se esta diversificação interna não
tende a aumentar quando a população cresce, ou por outro lado, quando se torna
mais homogênea; esse talvez tenha sido o caso da Índia antiga, com o
aparecimento de um sistema de castas após o estabelecimento da hegemonia
ariana 9.
9 A civilização que floresceu no vale do rio Indus entre 3.000 e 1.300 AC, aproximadamente, constituiu uma das
grandes civilizações da Antiguidade. No seu auge, entre 2.600 e 1.900 AC, pode ter chegado a abrigar uma
população de mais de cinco milhões de habitantes, maior, portanto, do que a de muitos países da Europa no início
do século 21.
9
este enorme fragmento por tanto tempo separado da humanidade, consistia, na
verdade, numa multidão de sociedades, grandes e pequenas, que mantinham
entre si contatos estreitos. E a par com as diferenças devidas ao isolamento,
existem aquelas, também importantes, devidas a proximidade: do desejo de
oposição, de se distinguir, de serem elas próprias. Muitos costumes nascem não
de qualquer necessidade interna ou acidente favorável, mas apenas da vontade
de não ficar para trás em relação a um grupo vizinho que submeteu a
determinadas regras um domínio da vida social sobre a qual o primeiro nunca
havia pensado instituir normas. Portanto, a diversidade das culturas humanas não
deve induzir a uma observação fragmentária ou fragmentada. Ela é menos função
do isolamento dos grupos, do que das relações entre eles.
3. O etnocentrismo
10
ocidental utilizou o termo selvagem no mesmo sentido. Ora, por detrás destes
termos dissimula-se um mesmo juízo: é provável que a palavra bárbaro tenha
origem etimológica na confusão e desarticulação do canto das aves em oposição
ao valor significante da linguagem humana 10; e selvagem, que significa “da
floresta”, evoca também um gênero de vida animal, por oposição a cultura
humana. Recusa-se, tanto num como no outro caso, a admitir o próprio fato da
diversidade cultural, preferimos jogar para fora da cultura tudo o que não esteja
de acordo com as normas sociais existentes.
11
todas as formas da espécie humana, teve um aparecimento muito tardio e uma
expansão limitada 11. Mesmo onde ela parece ter atingido o seu mais alto grau de
desenvolvimento, não existe qualquer certeza, tal como a história recente o
prova, de estar estabelecida ao abrigo de equívocos ou de regressões 12. Mas,
para vastas parcelas da espécie humana, e durante dezenas de milênios, esta
noção parece estar totalmente ausente. A humanidade acaba nas fronteiras da
tribo, do grupo linguístico, por vezes mesmo, da aldeia; a tal ponto que um
grande número de populações ditas primitivas se designam por um nome que
significa os “homens” (ou, por vezes, com menos discrição, os “bons”, os
“excelentes”, os “perfeitos”), implicando assim que as outras tribos, grupos ou
aldeias, não participam das virtudes ou mesmo da natureza humana, mas são,
quando muito, compostos por “maus”, “perversos”, “macacos de terra”, ou “ovos
de piolho” 13. Chegando-se mesmo, na maior parte das vezes, a privar o
estrangeiro do ultimo grau de realidade, fazendo dele um “fantasma” ou uma
“aparição”. Assim acontecem curiosas situações onde os interlocutores tem
atitudes simétricas. No Caribe, alguns anos após a descoberta da América,
enquanto os espanhóis enviavam comissões de investigação para indagar se os
indígenas possuíam ou não alma, estes dedicavam-se a afogar os brancos feitos
prisioneiros para verificar se o cadáver estava sujeito a putrefação... Esta anedota,
11 O autor se refere ao Iluminismo no plano das idéias, e a “era das Revoluções” no plano político, com seu ideal
igualitário sintetizado no célebre lema “liberdade, igualdade e fraternidade”. O ideal iluminista acreditava que a
razão venceria a irracionalidade e o preconceito. As duas guerras mundiais na primeira metade do século 20 foram
várias vezes interpretadas como uma evidência de que esse ideal teve um alcance muito limitado.
12 Referência à Alemanha, onde o iluminismo parecia ter alcançado seus voos mais altos, mas onde no entanto, o
nazismo floresceu.
12
simultaneamente barroca 14 e trágica, ilustra bem o paradoxo do relativismo
cultural que vamos encontrar mais adiante revestido de outras formas: é na
própria medida em que pretendemos estabelecer uma discriminação entre as
culturas e os costumes que nos identificamos mais completamente com aqueles
que tentamos negar. Recusando a humanidade àqueles que identificamos como
“selvagens” ou “bárbaros”, não fazemos mais que copiar-lhes as suas atitudes. O
bárbaro é, antes de mais nada, o homem que crê na barbárie.
15 Declaração da Unesco sobre a questão das raças, redigida e publicada em 18 de julho de 1950, primeira de uma
série de quatro proposições sobre o tema. Lévi-Strauss participou da elaboração deste primeiro documento. Novas
versões foram publicadas em 1951, 1967 e 1978.
13
não realiza a sua natureza numa humanidade abstrata, mas nas culturas
tradicionais onde mesmo as mudanças mais revolucionárias deixam intactos
enormes setores da vida em sociedade 16; essas declarações se explicam também
em função de uma situação bem definida no tempo e no espaço. Preso entre a
dupla tentação de condenar experiências que o chocam afetivamente e de negar
as diferenças que ele não compreende intelectualmente, o homem moderno
entregou-se a toda a espécie de especulações filosóficas e sociológicas para
estabelecer vãos compromissos entre estes polos contraditórios; e para perceber
a diversidade das culturas procurando suprimir o que ela contem, para ele, de
escandaloso e de chocante.
Mas, por mais diferentes e, por vezes, bizarras que possam ser, todas estas
especulações se reduzem a uma mesma receita, de que o termo falso
evolucionismo é, sem duvida, o mais adequado para caracterizar. Em que consiste
ela? Trata-se de uma tentativa para suprimir a diversidade das culturas fingindo
conhecê-las completamente. Por que, se tratarmos os diferentes estados em que
se encontram as sociedades humanas, tanto antigas como longínquas, como
estados ou etapas de um desenvolvimento único que, partindo do mesmo ponto,
deve convergir para o mesmo fim, deduzimos que a diversidade é apenas
aparente. A humanidade torna-se una e idêntica a si mesma, só que esta unidade
e esta identidade não se realizam senão progressivamente, e a variedade das
culturas ilustra os momentos de um processo que dissimula uma realidade mais
profunda, ou retarda a sua manifestação.
16 Apesar do enorme prestígio dos ideais revolucionários no pós-Guerra, Lévi-Strauss aqui já parece desiludido
com a possibilidade de transformação das revoluções políticas. A União Soviética, por exemplo, ainda tinha muito
prestígio entre intelectuais quando da publicação deste ensaio. A queda do Muro de Berlim, no entanto, mostrou o
quanto muitas características da sociedade russa permaneceram inalterados, apesar da revolução de 1917.
14
Esta definição pode parecer sumária quando temos presentes as imensas
conquistas do darwinismo 17. Mas não é o darwinismo que está em causa, porque
evolucionismo biológico e o pseudo-evolucionismo que aqui tratamos são duas
coisas muito diferentes. A primeira nasceu como uma vasta hipótese de trabalho,
baseada em observações em que havia pouca necessidade de interpretação. Os
vários tipos que constituem a genealogia do cavalo podem ser ordenados numa
série evolutiva por duas razões; primeiro, é necessário um cavalo para engendrar
outro cavalo; segundo, as camadas de terreno sobrepostas historicamente
contém esqueletos que variam gradualmente desde a forma mais arcaica até a
mais recente. Torna-se assim altamente provável que o Hipparion seja o
verdadeiro antepassado do Equus caballus. O mesmo raciocínio provavelmente
pode ser aplicado a espécie humana e às raças que a constituem. Mas quando
passamos dos fatos biológicos para os fatos culturais as coisas complicam-se de
uma maneira singular. Podemos recolher em sítios arqueológicos objetos
materiais e constatar que a forma ou a técnica de produzir um determinado
objeto varia progressivamente de acordo com a profundidade das camadas
geológicas. E, no entanto, um machado não dá fisicamente origem a outro
machado, tal como acontece com o animal. Dizer que um machado evoluiu a
partir de um outro é apenas uma metáfora, desprovida do rigor cientifico da
expressão quando aplicada aos fenômenos biológicos. O que é verdadeiro para os
objetos materiais, é ainda mais para as instituições, as crenças, os gostos, cujo
passado geralmente desconhecemos. A noção de evolução biológica é uma
17 Ressalva que só se tornou ainda mais importante desde a publicação deste ensaio, com os enormes avanços
ocorridos na genética e na biologia, e que tomam o evolucionismo biológico como paradigma fundamental. Os
avanços nas chamadas ciências da vida tiveram enorme impacto também na antropologia. Ver M. Susan Lindre,
Alan Goodman, e Deborah Heath, “Anthropology in an Age of Genetics: Practice, Discourse, and Critique” em
Genetic Nature/Culture, Goodman et al. University of Californa Press, 2003. (Reunião de trabalhos apresentados no
simpósio da Fundação Wenner-Gren realizado em Teresópolis, RJ, entre 11 e 19 de junho de 1999).
15
hipótese das mais prováveis nas ciências naturais, enquanto a noção de evolução
social ou cultural não constitui, quando muito, um processo algo sedutor, mas
perigosamente cômodo, de apresentar os fatos.
16
mesmo lugar, mas que a precederam no tempo e, finalmente, as que existiram
num tempo anterior e num lugar diferente.
Vimos que estes três grupos podem ser conhecidos de forma desigual. No
último caso e quando se trata de culturas sem escrita, sem ter deixado algum tipo
de construção, e com técnicas rudimentares (e que são a enorme maioria), nada
podemos saber sobre elas, e tudo o que tentamos saber a seu respeito não
passam de hipóteses. Por outro lado, é extremamente tentador procurar
estabelecer, entre as diversas culturas do primeiro grupo, relações que
correspondem a uma ordem de sucessão no tempo. Como é que sociedades
contemporâneas, que continuam a ignorar a eletricidade e a máquina a vapor,
não evocariam a fase correspondente do desenvolvimento da civilização
ocidental? Como não comparar as tribos indígenas, sem escrita e sem metalurgia,
gravando figuras nas paredes das rochas e fabricando utensílios de pedra, com as
formas antigas da nossas civilização, cuja semelhança é atestada pelos vestígios
encontrados nas grutas da França e Espanha? 18 Foi aí sobretudo que o falso
evolucionismo se propagou. E, no entanto, este jogo sedutor a que nos
entregamos quase irresistivelmente todas as vezes que temos ocasião para isso
(não se compraz o viajante ocidental em encontrar a “idade média” no Oriente, o
“século de Luís 14” na Pequim de antes da Primeira Guerra Mundial, a “idade da
pedra” entre os indígenas da Austrália ou da Nova Guiné?) é extraordinariamente
pernicioso. Das civilizações desaparecidas, conhecemos apenas alguns aspectos e
estes diminuem à medida que são mais antigas, pois os aspectos conhecidos são
18 As pinturas nas cavernas de Chauvet, no sul da França, constituem o tema do premiado filme de 2010 do
cineasta alemão Werner Herzog Cave of Forgotten Dreams. No YouTube há trechos deste documentário, inclusive
o trailer oficial.
17
os únicos que puderam sobreviver à destruição do tempo. O processo consiste
pois em tomar a parte pelo todo, em concluir que, a partir do fato de que duas
civilizações (uma atual, a outra desaparecida) ofereçam semelhanças em alguns
aspectos, pode-se estender a analogia à todos os aspectos. Ora, esta maneira de
raciocinar não só é logicamente insustentável, mas ainda, num bom número de
casos, é desmentida pelos fatos.
19 Nome dado pelos arqueólogos a um artefato pré-histórico, feito de osso e perfurado. Não se sabe exatamente
sua função, e por isso o termo “bastão de comando”, tem sido substituído por “bastão perfurado” (ou pierced rod
em inglês).
18
sociedades indígenas contemporâneas existe uma semelhança – serviram-se de
utensílios de pedra polida. Mas mesmo no plano da tecnologia, torna-se difícil ir
mais longe; o emprego dos materiais, os tipos de instrumentos, e portanto o
propósito com que eram usados, eram diferentes, e mesmo neste aspecto
limitado um grupo nos ensina muito pouco em relação ao outro. Como
poderíamos então aprender qualquer coisa sobre linguagem, instituições sociais
ou crenças religiosas?
20 Lévi-Strauss se refere aqui à arte da cultura san (também chamados de bushmen, sho, barwa, kung, ou khwe),
tribos de caçadores-coletores que viveram no sul da África por milhares de anos, e dos quais restam poucos
remanescentes.
19
do Paleolítico 21 como da arte europeia contemporânea. Porque esta se
caracteriza por um elevado grau de estilização, indo até às deformações mais
extremas, enquanto a arte pré-histórica oferece um realismo surpreendente.
Poderíamos cair na tentação de ver nesta última a origem da arte europeia, mas
isso seria inexato, uma vez que, no mesmo território, a arte paleolítica foi seguida
por outras formas que não apresentam as mesmas características; a continuidade
do lugar geográfico não muda o fato de que sobre o mesmo solo se sucederam
diferentes populações, alheias à obra dos seus antecessores, e trazendo cada uma
consigo crenças, técnicas e estilos diferentes.
20
“etapas” do desenvolvimento de outras, seria preciso admitir que enquanto com
umas se passava qualquer coisa, com outras não acontecia nada, ou muito pouco.
E, na verdade, falamos dos “povos sem história” (para dizer, por vezes, que são
“os mais felizes”). Esta forma elíptica significa apenas que sua história é e
continuará a ser desconhecida, não a sua inexistência. Durante dezenas e mesmo
centenas de milênios, também nesses povos existiram homens que amaram,
odiaram, sofreram, inventaram, combateram. Na verdade, não existem povos
crianças, todos são adultos, mesmo aqueles que não deixaram um diário de
infância e da adolescência. Poderíamos, na verdade, dizer que as sociedades
humanas utilizaram desigualmente um tempo passado que, para algumas, teria
sido mesmo um tempo perdido; que umas andavam rapidamente, enquanto
outras divagavam ao longo do caminho. Seríamos assim conduzidos a distinguir
duas espécies de histórias: uma progressiva, aquisitiva, que acumula os achados e
as invenções para construir grandes civilizações; e uma outra história, talvez
igualmente ativa e empregando outros dons, mas a que faltasse o talento da
síntese. Cada inovação em vez de acrescentar às anteriores, e orientadas no
mesmo sentido, dissolver-se-ia numa espécie de onda que nunca consegue se
afastar por muito tempo da direção original. Esta concepção parece muito mais
flexível e matizada que as visões simplistas descritas anteriormente. Podemos
guardar um lugar para ela na nossa tentativa de interpretação da diversidade das
culturas sem sermos injustos com as demais. Mas, antes, é necessário que
examinemos várias questões.
5. A ideia de progresso
21
Devemos considerar, em primeiro lugar, as culturas pertencentes ao
segundo grupo, àquelas que precederam a cultura do observador. A sua situação
é mais complicada que nos outros casos. Porque a hipótese de uma evolução, que
parece tão incerta e tão frágil quando a utilizamos para hierarquizar sociedades
contemporâneas afastadas no espaço, parece aqui dificilmente contestável, e
mesmo diretamente evidenciada pelos fatos. Sabemos pelo testemunho da
arqueologia, da pré-história e da paleontologia, que a Europa atual foi habitada
por várias espécies do gênero Homo, que se serviam de utensílios de pedra
grosseiramente laminados; que a estas primeiras culturas se sucederam outras,
em que o talhar da pedra é aperfeiçoado, pois é acompanhado pelo polir e pelo
aperfeiçoamento do trabalho em osso e em marfim; que a cerâmica, a tecelagem,
a agricultura, a criação de animais então aparecem, associadas progressivamente
à metalurgia, onde também podemos distinguir etapas. Estas formas sucessivas
sugerem uma ordem no sentido de uma evolução e de um progresso, sendo umas
superiores às outras. Mas, se isso é verdade, como é que estas distinções não
iriam inevitavelmente reagir sobre o modo como tratamos as formas
contemporâneas, mas que apresentam entre si afastamentos análogos? As nossas
conclusões anteriores correm, deste modo, o risco de ser novamente postas em
cheque.
22
os estudiosos utilizavam esquemas de uma simplicidade admirável para
representar esta evolução: à idade da pedra lascada seguiam-se a idade da pedra
polida, as idades do cobre, do bronze e do ferro. Tudo isto é muito cômodo. Hoje
sabemos que, por vezes, o polir e o lascar da pedra coexistiram; e quando a esta
eclipsa completamente aquela, isto não acontece como resultado de um
progresso técnico espontâneo, mas como uma tentativa para copiar em pedra as
armas e os utensílios de metal que possuíam as civilizações teoricamente mais
avançadas mas, de fato, contemporâneas. Inversamente, a cerâmica, que se
pensava que ocorria junto com a “idade da pedra polida”, está associada a pedra
lascada em algumas regiões do norte da Europa.
Tudo o que foi dito sobre as culturas é igualmente válido no plano das
raças, sem que se possa estabelecer (devido às diferentes ordens de grandeza)
23
qualquer correlação entre os dois processos. Na Europa, o homem de Neandertal
não apareceu antes das mais antigas formas do Homo sapiens, mas foram seus
contemporâneos. E é possível que os tipos mais variados de hominídeos
coexistiram no tempo, mesmo que não na mesma parte do mundo: “pigmeus” na
África do Sul, “gigantes” na China e na Indonésia etc.
Mais uma vez, tudo isto não visa negar a realidade de um progresso da
humanidade, mas convida-nos a concebê-lo com mais prudência. O
desenvolvimento dos conhecimentos pré-históricos e arqueológicos tende a
espalhar no espaço as formas de civilização que éramos levados a imaginar como
escalonadas no tempo. Isso significa duas coisas. Em primeiro lugar que o
“progresso” (se este termo ainda é adequado) não é necessário nem contínuo;
procede por saltos, ou, como diriam os biólogos, por mutações. Estes saltos não
consistem em ir sempre mais longe na mesma direção; são acompanhados por
mudanças de orientação, um pouco à maneira dos cavalos do xadrez que podem
efetuar várias formas de movimento, mas nunca no mesmo sentido. A
humanidade em progresso nunca se assemelha a uma pessoa que sobe uma
escada, acrescentando para cada um dos seus movimentos um novo degrau a
todos aqueles já anteriormente conquistados; antes, uma metáfora mais
adequada seria o jogador que aposta em vários dados e que, a cada vez que os
lança, os vê se espalharem no tabuleiro formando combinações diferentes. O que
ganha em um, arrisca a perder no outro, e é só de vez em quando que a história é
cumulativa, isto é, que os dados se adicionam para formar uma combinação
favorável.
24
Que esta história cumulativa não seja privilégio de uma civilização ou de
um período da história, é convincentemente mostrado pelo exemplo da América.
Este imenso continente vê chegar o homem, em pequenos grupos de nômades
atravessando o estreito de Bering favorecido pelas últimas glaciações, numa
época talvez não muito anterior a 20 mil anos atrás. Em 20 ou 25 mil anos, estes
homens conseguiram uma das mais admiráveis demonstrações de história
cumulativa: explorando as fontes do novo meio natural, domesticaram as
espécies vegetais mais variadas para a alimentação (bem como algumas espécies
animais), e também para a produção de drogas, promovendo substâncias
venenosas, como a mandioca 22, ao papel de alimento base, e outras ao de
estimulante ou de anestésico; colecionando certos venenos ou estupefacientes
em função das espécies animais sobre as quais exercem ação efetiva; finalmente,
levando determinadas técnicas, como a tecelagem, a cerâmica e o trabalho em
metais preciosos, ao mais alto grau de perfeição. Para apreciar esta obra imensa,
basta medir a contribuição da América para as civilizações do Velho Mundo: a
batata, a borracha, o tabaco e a coca (base dos anestésicos modernos), que, em
planos diversos, constituem quatro pilares da cultura ocidental; o milho e o
amendoim, que iriam revolucionar a economia africana antes de se tornar comum
no regime alimentar da Europa; o cacau, a baunilha, o tomate, o abacaxi, a
pimenta, várias espécies de feijão, de algodões e de cucurbitáceas. E finalmente o
zero, base da aritmética e, indiretamente, da matemática moderna, era
conhecido e utilizado pelos maias pelo menos meio milênio antes da sua
descoberta pelos indianos, de quem a Europa o recebeu por intermédio dos
árabes. Talvez por esta mesma razão o seu calendário fosse mais exato que o do
22 Para tornar a mandioca comestível é preciso extrair dela o venenoso ácido cianídrico.
25
Velho Mundo. A questão de saber se o regime político dos incas era socialista ou
totalitário já fez correr muita tinta 23. Era baseado, de qualquer maneira, em
formas que lembram as sociedades modernas, e estava vários séculos a frente
dos regimes políticos europeus de então. A atenção renovada, de que o curare 24
foi recentemente objeto, lembraria, se necessário, que os conhecimentos
científicos dos indígenas americanos, que se aplicam a tantas substâncias vegetais
não utilizadas no resto do mundo, podem ainda fornecer importantes
contribuições.
23 Referência a toda uma literatura que floresceu nos anos 40 na América Latina, através de artigos com títulos
como “Fue socialista o comunista el imperio incaico?” ou “El imperio socialista de los incas” (Citados por Enrique
Peregalli em A América que os europeus encontraram, Editora Atual, 2004).
24 Nome comum dado a vários compostos orgânicos venenosos extraídos de plantas da América do Sul. Possuem
intensa e letal ação paralisante, embora sejam utilizados medicinalmente como relaxante muscular ou anestésico.
26
cumulativa toda a cultura que se desenvolvesse num sentido análogo ao nosso,
isto é, cujo desenvolvimento fosse dotado de significado para nós. Enquanto as
outras nos pareceriam estacionárias, não porque necessariamente o sejam, mas
porque a sua linha de desenvolvimento nada significa para nós, não é mensurável
nos termos do sistema de referência que adotamos.
25 Ou dito de outra forma, a significação dos eventos, o valor que a eles atribuimos.
27
A oposição entre culturas progressivas e culturas estagnadas parece assim
resultar, primeiro, de uma diferença de foco. Para o observador de um
microscópio, os corpos aquém ou além do foco sobre a lâmina, mesmo que
apenas alguns centésimos de milímetro, parecem confusos e embaralhados, até
mesmo sequer chegam a aparecer. Uma outra comparação permitirá descobrir a
mesma ilusão. É a que se utiliza para explicar as bases da teoria da relatividade.
Com o fim de demonstrar que a dimensão e a velocidade do deslocamento dos
corpos não são valores absolutos, mas dependem da posição do observador,
lembramos que, para um viajante sentado à janela de um trem, a velocidade e o
comprimento dos outros trens variam conforme estes se deslocam no mesmo
sentido ou em sentido inverso. Ora, cada membro de uma cultura é tão presa a
ela quanto o é o viajante ao trem. Porque, desde o nosso nascimento, o ambiente
que nos cerca faz penetrar em nós, mediante milhares de processos conscientes e
inconscientes, um sistema complexo de referências que consistem em juízos de
valor, motivações, interesses, e até mesmo a visão reflexiva que a educação nos
impõe do processo histórico da nossa civilização, e sem a qual esta se tomaria
impensável, ou apareceria em contradição com a realidade. Deslocamo-nos
carregando este sistema de referências, e as realidades culturais de fora só são
observáveis através das deformações por ele impostas; isso quando ele não nos
coloca na impossibilidade de perceber delas o que quer que seja.
28
movimento, pareça não se mover. É verdade que, com uma diferença cuja
importância ficará evidente quando tivermos uma teoria da relatividade aplicada
não só à física como também às ciências sociais; tudo parece se passar de
maneira idêntica, mas inversa. Para o observador do mundo físico (tal como o
mostra o exemplo do viajante) são os sistemas que evoluem no mesmo sentido
que o seu que parecem imóveis, enquanto aqueles que vão em sentido diferente
parecem mais rápidos. Com as culturas se passa o contrário: nos parecem tanto
mais ativas quanto mais se deslocam no sentido da nossa, e estacionárias quando
a sua orientação é oposta. Mas, no caso das ciências do homem, o fator
velocidade tem apenas um sentido metafórico. Para tornar a comparação válida,
devemos substitui-la pelo conceito de informação e de significação. Sabemos ser
possível acumular muito mais informações a respeito de um trem que se move
paralelamente ao nosso, e a uma velocidade próxima (por exemplo, podemos
nesse caso examinar os viajantes, conta-los etc.) do que sobre um trem que nos
ultrapassa ou que ultrapassamos a grande velocidade, e que some ainda mais
rapidamente quando circula na direção contrária. Nesse caso ele passa tão
depressa que guardamos dele apenas uma impressão, na qual aparentemente a
própria noção de velocidade está ausente; logo se reduz a uma perturbação
momentânea do campo visual, já não é um trem, já não significa nada. Há, pois,
segundo parece, uma relação entre a noção física de movimento aparente e uma
outra noção, que depende não só da física como também da psicologia e da
sociologia, a da quantidade de informação capaz de ser trocada entre dois
indivíduos ou grupos, em função da maior ou menor diversidade das suas
respectivas culturas. Todas as vezes que somos levados a qualificar uma cultura
humana de inerte ou de estacionária devemos, pois, nos perguntar se este
29
imobilismo aparente não resulta da nossa ignorância sobre os seus verdadeiros
interesses, conscientes ou inconscientes, e se, tendo critérios diferentes dos
nossos, esta cultura não é, em relação a nós, vítima da mesma ilusão. Ou melhor,
aparecemos um ao outro como desprovidos de interesse, muito simplesmente
porque não nos parecemos.
Se o critério adotado tivesse sido o grau de aptidão para triunfar nos meios
26 O raciocínio seguido por Lévi-Straus acabaria por se tornar senso-comum nas ciências sociais. O Produto
Nacional Bruto per capita, durante muito tempo considerado o único indicador do grau de desenvolvimento de um
país, hoje é frequentemente constestado, e novos indicadores tem sido usados, como por exemplo o IDH, Índice
de Desenvolviemnto Humano. Os resultados diferem em muito de acordo com o índice adotado.
30
geográficos mais inóspitos, não havia qualquer dúvida de que os esquimós 27, por
um lado, e os beduínos por outro, levariam o prêmio máximo. A Índia soube,
melhor do que qualquer outra civilização, elaborar um sistema filosófico religioso,
e a China, um gênero de vida capaz de reduziras consequências psicológicas de
um enorme desequilíbrio demográfico 28. Há treze séculos, o Islã formulou uma
teoria onde todos os aspectos da vida humana – técnica, economia, sociedade,
vida espiritual – estão intimamente relacionados, algo que o Ocidente só muito
recentemente voltaria a reencontrar, com certos aspectos do pensamento
marxista e o nascimento da etnologia. Sabemos o lugar proeminente que esta
visão profética permitiu aos Árabes ocupar na vida intelectual da Idade Média. O
Ocidente, apesar de todo seu domínio sobre as máquinas, exibe conhecimentos
muito elementares sobre a utilização e os recursos desta máquina suprema que é
o corpo humano. Neste domínio, pelo contrário, tal como no das relações entre o
físico e o mental, o Oriente e o Extremo Oriente parecem estar milênios a frente;
produziram essas vastas acumulações teóricas e práticas que são o ioga na Índia,
as técnicas de respiração chinesas ou a ginástica visceral dos antigos maoris. A
agricultura sem terra, desde há muito pouco tempo na ordem do dia entre nós,
foi praticada durante vários séculos por certos povos polinésios, que poderiam
ensinar também ao mundo a arte da navegação, e que o surpreendeu
profundamente no século 18, revelando um tipo de vida social mais livre e mais
27 Os esquimós também tem sofrido as consequencias da integração com a civilização ocidental. O filme Nanook
of the North, feito pelo antropólogo Robert Flaherty em 1922, mostra uma cultura ainda bastante preservada na
época, e sua sofisticada maneira de lidar com o ambiente inóspito a que Lévi-Strauss se refere. Este filme está
disponível na internet e é frequentemente citado como um clássico do cinema antropológico.
28 A Ásia sempre teve uma população gigantesca, com a China à frente. Estima-se que por volta da metade do
século 18 a população da Ásia já chegasse a algo próximo aos 500 milhões de habitantes, enquanto a população da
Europa mal ultrapassava os 100 milhões (Massimo Livi-Bacci, A Concise History of World Population, Blackwell, 3a
edição, 2001).
31
generosa do que se poderia imaginar.
29 A estrutura das relações de parentesco foi um dos temas sobre o qual Lévi-Strauss mais se debruçou. Uma
síntese dirigida ao público não-especializado encontra-se em A família, capítulo XIII da coletânea Homem, Cultura
e Sociedade organizada por Harry L. Shapiro (Martins Fontes, 1982).
32
A riqueza e a audácia da invenção estética dos melanésios, o seu talento
para integrar na vida social os produtos mais obscuros da atividade inconsciente
do espírito, constituem um dos pontos mais altos que os homens alguma vez
atingiriam. A contribuição da África é mais complexa, mas também mais obscura,
porque só muito recentemente começamos a imaginar a importância do seu
papel como melting pot 30 cultural do Velho Mundo, lugar onde todas as
influências vieram se fundir para se transformar ou conservar, mas sempre se
renovando. A civilização egípcia, cuja importância para a humanidade
conhecemos, só é inteligível como obra comum da Ásia e da África, e os grandes
sistemas políticos da África antiga, as suas construções jurídicas, as suas doutrinas
filosóficas durante muito tempo escondidas dos Ocidentais, as suas artes plásticas
e a sua música, que exploram metodicamente todas as possibilidades oferecidas
para cada meio de expressão, são outros tantos indicadores de um passado
extraordinariamente fértil. O que pode ser diretamente testemunhado pela
perfeição das antigas técnicas do bronze e do cobre, que ultrapassam de longe
tudo o que o Ocidente praticava nesses domínios na mesma época.
33
fenícia pela escrita; a chinesa pelo papel, a pólvora e a bússola; a indiana no que
se refere ao vidro e ao aço 31 . Estes elementos tomados individualmente têm
menos importância do que a maneira como cada cultura os agrupa, os retém ou
os exclui. A originalidade de cada uma delas reside antes na maneira particular
como resolvem os seus problemas de colocar em perspectiva os valores, que são
aproximadamente os mesmos para todos os homens, porque todos os homens
sem exceção possuem linguagem, técnica, arte, conhecimentos do tipo científico,
crenças religiosas, organização social, econômica e política. Mas a dosagem
destes elementos não é a mesma em cada cultura, e a antropologia dedica-se
cada vez mais a desvendar as origens destas opções, ao invés de catalogar suas
diferentes características.
É possível que tal argumentação seja refutada por seu caráter teórico. É
possível, alguém poderia dizer, no plano de uma lógica mais abstrata,
simplesmente que cada cultura seja incapaz de emitir um juízo verdadeiro sobre
outra, pois uma cultura não pode se evadir de si mesma e a sua apreciação sobre
as demais permanece, portanto, prisioneira de um inevitável relativismo. Mas ao
olharmos em volta, atentos ao que se passa no mundo, todas as especulações
serão desfeitas. Longe de permanecer isoladas, todas as civilizações reconhecem
a superioridade de uma delas, a civilização ocidental. Não vemos o mundo inteiro
buscar nela cada vez mais as suas técnicas, o seu estilo de vida, as suas formas de
lazer e até o seu vestuário? Tal como Diógenes provava o movimento andando, é
34
o próprio progresso das culturas humanas que, desde as imensas populações da
Ásia até às tribos perdidas na selva brasileira ou africana, provam, por uma
adesão unânime sem precedentes na história, que uma das formas da civilização
humana é superior a todas as outras: o que os países menos desenvolvidos
reprovam aos outros nas assembleias internacionais não é o fato de estarem
sendo levados ao mesmo tipo de desenvolvimento, mas o fato de que isto ocorre
lentamente demais.
35
mundo islâmico, na Índia e na China? Ou, antes, o movimento está perto de seu
fim e vai recrudescer, estando o mundo ocidental prestes a sucumbir, como
monstros pré-históricos, com uma expansão física incompatível com a sua
estrutura? Nos esforçaremos para avaliar o processo que se desenrola aos nossos
olhos e do qual somos, consciente ou inconscientemente, agentes, auxiliares ou
vítimas, tenhamos consciência disso ou não.
36
lugar na aldeia onde eles julgavam que a vida valia a pena ser vivida.
33 E no entanto “filosofia das civilizações” parece ser a expressão mais adequada para classificar este tipo de
discussão. Numa época que consagrou a micro-história (focada num aspecto específico) parece que temos poucos
autores dedicados a uma macro-história, ou a uma história das civilizações em seu conjunto. Um bem conhecido,
que no seu clássico Um estudo em história faz uma análise comparada das civilizações, é o historiador inglês Arnold
Toynbee, a quem Lévi-Strauss cita na bibliografia.
37
desigualdade na divisão da energia disponível entre os indivíduos e entre as
classes sociais.
8. Acaso e civilização
38
Lemos nos tratados de etnologia, e não só nos piores, que o homem deve o
conhecimento do fogo ao acaso de uma faísca ou de um arbusto casualmente em
chamas; que ao achar uma caça acidentalmente assada nestas condições
descobriu como cozinhar os alimentos, que a invenção da cerâmica resulta do
aquecimento de um punhado de argila perto do fogo. Seria assim possível supor
que o homem teria vivido numa espécie de idade de ouro tecnológica, onde as
invenções eram colhidas com a mesma facilidade que se colhem os frutos e as
flores... Só ao homem moderno estariam reservadas a fadiga do trabalho e os
insights geniais...
39
diversos estágios da metalurgia.
34 O antropólogo Gordon Childe parece ir ao ponto quando diz: “A produção de um pote de cerâmica não é tão
fácil quanto parece. Claro que um vaso pequeno ou objeto em forma de um prato pode ser feito de maneira bem
simples a partir de um punhado de barro [...] Mas se alguma coisa mais complexa é o que se quer, esses
procedimentos elementares são insuficientes”. Segundo ele, a confecção de vasos e potes de cerâmica “é talvez a
primeira utilização consciente pelo homem de uma transformação química”. A transformação no caso é a
combinação de silica e óxido de alumínio (também conhecido como alumina) que acontece quando se leva ao
forno a argila. As primeiras peças desse tipo aparecem no período gravetiano (29.000 a 25.000 AC), mas é apenas
no neolítico que essa complexa tecnologia passa a ser dominada em todos os seus aspectos. No Brasil, a cerâmica
marajoara, é um exemplo desta arte.
40
impermeável, evitando o risco de lascar, quebrar ou deformar 35. Poderíamos
multiplicar os exemplos. Todas estas operações são muito numerosas e
demasiado complexas para que o acaso possa explica-las. Cada uma delas tomada
isoladamente nada significa, só a sua combinação imaginada, desejada, procurada
e experimentada permite o êxito. O acaso existe, sem dúvida, mas por si só não
permite alcançar qualquer resultado. Durante dois mil e quinhentos anos, o
mundo ocidental conheceu a existência da eletricidade, descoberta, sem dúvida,
por acaso; mas este acaso permaneceria estéril até os esforços intencionais e
dirigidos pelas hipóteses de Ampére e de Faraday. O acaso não desempenhou
grande papel na invenção do arco, do bumerangue ou da zarabatana, no
nascimento da agricultura e da criação de gado, tal como não desempenhou na
descoberta da penicilina da qual, como sabemos, não esteve totalmente ausente.
Devemos, pois, distinguir cuidadosamente a transmissão de uma técnica de uma
geração para outra, feita sempre com uma facilidade relativa graças à observação
e à preparação cotidiana, e a criação ou melhoramento das técnicas no meio de
cada geração. Estas supõem sempre o mesmo poder imaginativo e os mesmos
esforços encarniçados da parte de alguns indivíduos, qualquer que seja a técnica
particular que tenhamos em vista. As sociedades a que chamamos primitivas não
têm menos homens como um Pasteur ou um Palissy 36 do que as outras.
35 Para a produção dos potes impermeabilizados através de vitrificação que começam a aparecer no período
neolítico é necessário aquecer a peça de argila a que se quer dar forma de maneira controlada a uma temperatura
de 600 °C. Curiosamente não há em português uma palavra específica para esta arte, denominada poterie em
francês, e pottery em inglês. Ambas tem a mesma raiz que a palavra em português pote. Mas enquanto o francês e
o inglês preservam uma palvra especial para esta atividade tão importante na história da humanidade, em
traduções para o português é muito como o uso do temo olaria, o que é impreciso já que este se refere também à
fabricação do tijolo. São coisas diferentes, que embora tenham uma relação (as duas técnicas surgiram no
neolítico), tem histórias bem diferentes. Ver V. Gordon Childe, Man Makes Himself (Spokesman, 2003).
36 Bernard Palissy (1510-1589), artesão e engenheiro francês que ficou famoso por dedicar 16 anos de pesquisa a
imitar a fabricação da porcelana chinesa.
41
Voltaremos a encontrar o acaso e a probabilidade, mas num outro lugar e
com outro papel. Não os utilizaremos para preguiçosamente explicar o
nascimento de invenções, mas para interpretar um fenômeno que se situa a um
outro nível da realidade. Acreditamos que uma dose de imaginação, de invenção
e de esforço criador permaneçam constantes através da história da humanidade;
mas a combinação destes elementos não determina mutações culturais
importantes senão em determinados períodos, e em determinados lugares.
Porque, para chegar a este resultado, os fatores puramente psicológicos não são
suficientes: devem primeiro estar presentes, com uma orientação similar, num
número suficiente de indivíduos para que o indivíduo criador esteja
imediatamente seguro de ter um público; e esta condição depende, ela própria,
da reunião de um considerável número de outros fatores, de natureza histórica,
econômica e sociológica. Se chegaria assim, para explicar as diferenças no
processo de desenvolvimento das civilizações, à necessidade de se invocarem
conjuntos de causas tão complexas e tão descontínuas que seriam incognoscíveis,
quer por razões práticas, quer mesmo por razões teóricas tais como o
aparecimento, impossível de evitar, de perturbações ligadas às técnicas de
observação. Na verdade, para desenredar uma meada de fios tão numerosos e
finos, bastaria submeter a sociedade considerada (e também o mundo que a
rodeia) a um estudo etnográfico global e de todos os seus instantes. Mesmo sem
evocar a amplitude dessa tarefa, sabemos que os etnógrafos, que trabalham, no
entanto, numa escala infinitamente mais reduzida, são muitas vezes limitados nas
suas observações pelas mudanças sutis que a sua simples presença causa. Ao
nível das sociedades modernas, sabemos também que as pesquisas de opinião
42
pública, um dos meios mais eficazes de sondagem, modificam a orientação desta
opinião pela sua própria utilização, que induz nos pesquisados um fator de
reflexão sobre si próprios, até então ausente 37.
37 Sem nomeá-la desta forma, Lévi-Strauss parece formular um “princípio da incerteza” sociológica, similar ao da
física moderna. Um tal princípio é hoje regra metodológica básica em qualquer investigação das ciências sociais
(ver, por exemplo, Gary King, Robert O. Keohane e Sidney Verba, Designing Social Inquiry, Princeton University
Press, 1994). Um dos seus princípios básicos é sempre tornar transparente o nível de incerteza implícito numa
determinada proposição ou teoria, o que o próprio Lévi-Strauss faz consistentemente ao longo de todo texto. E
em suas críticas às teorias evolucionistas ele aponta justamente como uma das falhas a falta de qualquer menção
às incertezas.
43
É verdade, e talvez seja a expressão definitiva da solução que cremos poder
dar ao nosso problema que, no que diz respeito às invenções técnicas (e à
reflexão científica que as toma possíveis), a civilização ocidental mostrou-se mais
cumulativa do que as demais. Começando com o mesmo capital neolítico inicial,
ela soube contribuir com melhoramentos (escrita, aritmética e geometria), os
quais, aliás, rapidamente se esqueceu 38; mas, depois de uma estagnação que,
grosso modo, se estende por dois mil ou dois mil e quinhentos anos (desde o
primeiro milênio antes da Era Cristã até o século 18), subitamente produziu uma
revolução industrial que, pela amplitude, universalidade e importância das suas
consequências, só encontra equivalente, no passado, na revolução neolítica.
Duas vezes na história, portanto, e com cerca de dez mil anos de intervalo,
a humanidade soube acumular uma multiplicidade de invenções orientadas no
mesmo sentido; e este multiplicidade, por um lado, e esta continuidade, por
outro, concentraram-se num lapso de tempo suficientemente curto para que
acontecessem sínteses técnicas de altíssimo nível; uma coordenação que
provocou mudanças significativas nas relações do homem com a natureza e que,
por sua vez, tornaram possíveis outras transformações. A imagem de uma reação
em cadeia, desencadeada por catalisadores, permite ilustrar este processo que se
repetiu duas vezes, e só duas, na história da humanidade. Como é que isso
aconteceu?
44
apresentando as mesmas características cumulativas, puderam acontecer em
diferentes lugares e períodos, mas em outros domínios da atividade humana. Já
explicamos por que razão a nossa própria revolução industrial e a revolução
neolítica (que a precedeu no tempo, mas a qual é comparável pelo mesmo tipo de
interesse) são as únicas que podem parecer a nós como tais, porque o nosso
sistema de referência permite identifica-las. Todas as outras transformações, que
certamente se produziram, revelam-se apenas sob a forma de fragmentos ou
profundamente deformadas. Não podem tomar um sentido para o homem
ocidental moderno (pelo menos todo o seu sentido); podem mesmo parece como
se não existissem.
45
americano, mais antigo do que se pensava anteriormente, não começou muito
mais tarde do que no Velho Mundo. É provável que três ou quatro pequenos
vales de rios pudessem, nesta competição, clamar uma antecedência de alguns
séculos. Que podemos saber hoje? Temos, pelo contrário, a certeza de que a
questão de prioridade não tem importância, precisamente porque a
simultaneidade das mesmas transformações tecnológicas (seguidas de perto por
transformações sociais), em campos tão vastos e em regiões tão afastadas,
mostra bem que esta não dependeu do gênio de uma raça ou de uma cultura,
mas de condições tão gerais que se situam fora da consciência dos homens.
Estejamos pois certos de que se a revolução industrial não tivesse surgido na
Europa ocidental, se teria manifestado um dia qualquer em outro ponto do globo.
E se, como é óbvio, esta se alargar ao conjunto do mundo habitado, cada cultura
introduzirá nela tantas contribuições específicas que o historiador do futuro
considerará fútil a questão de saber quem, com uma diferença de um ou dois
séculos, pode reclamar a prioridade do conjunto.
46
diferença de graus. Sabemos, por exemplo, que os antigos chineses e os esquimós
desenvolveram bastante as artes mecânicas, e pouco faltou para que tivessem
chegado ao ponto em que a “reação em cadeia” se iniciasse, determinando a
passagem de um tipo de civilização a outro. Conhecemos o exemplo da pólvora
de canhão: os chineses haviam resolvido, tecnicamente falando, todos os
problemas desta técnica, salvo o da sua utilização tendo em vista resultados
maciços. Os antigos mexicanos não ignoravam a roda, como frequentemente se
diz; a conheciam o suficiente para fabricar animais com rodinhas destinados às
crianças; bastaria um passo a mais para possuírem a carroça.
47
cada vez mais longas, poderia desencorajar-se, depois de milhares ou milhões de
jogadas, por não ver nunca aparecer a série de nove números consecutivos, e
pensar que teria feito melhor parar mais cedo. No entanto, nada nos diz que um
outro jogador, adotando a mesma fórmula de apostas, com séries de tipo
diferente (por exemplo, um certo ritmo de alternância entre vermelho e preto, ou
entre par e ímpar), não visse combinações significativas onde o outro jogador só
percebe desordem. A humanidade não evolui num sentido único. E, se em
determinado plano, esta parece estacionária ou mesmo regressiva, isso não quer
dizer que, sob outro ponto de vista, ela não seja objeto de importantes
transformações.
48
Falta finalmente encarar o nosso problema sob um último aspecto. Um
jogador como aquele que vimos nos parágrafos precedentes que nunca apostasse
apenas nas séries mais longas (seja qual for a maneira como se concebam estas
séries) teria toda a possibilidade de se arruinar. O mesmo não aconteceria com
uma coalizão de apostadores que jogassem as mesmas séries em valor absoluto,
mas em várias roletas e que tivessem concordado em pôr em comum os
resultados favoráveis às combinações de cada um. Porque se, tendo tirado o 21 e
o 22, tenho necessidade do 23 para continuar a minha série, existem
evidentemente mais possibilidades de ele sair em dez mesas do que numa só.
39 Lévi-Strauss parece considerar as migrações como um dos processos mais básicos de troca cultural. Este tem
sido também o enfoque das ciências sociais hoje em dia. Por outro lado seria interessante saber qual a opinião do
autor sobre o momento atual caracterizado pleo fechamento da fronteira, isto é, pelo esgotamento de territórios
para serem colonizados no planeta. Embora Lévi-Strauss tenha se mostrado cada vez mais interessado pelas
questões ligadas ao crescimento populacional, principalmente na sua fase mais madura, não se sabe se ele chegou
a tratar desta questão com este enfoque específico.
49
encontra isolada. Aparece sempre coligada com outras culturas e é isso que lhe
permite edificar séries cumulativas. A probabilidade de que, entre estas séries,
apareça uma série longa, depende naturalmente da extensão, da duração e da
variação do regime de coalisão.
Ao longo deste estudo perguntamos, por várias vezes, como era possível
que a humanidade tivesse permanecido estacionária durante nove décimos da
sua história e até mais: as primeiras formas de civilização apareceram entre 200
mil a 500 mil anos atrás, mas as condições de vida transformaram-se
radicalmente apenas ao longo dos últimos dez mil anos. Se a nossa análise é
exata, não foi porque o homem paleolítico tivesse sido menos inteligente, menos
dotado do que o seu sucessor neolítico, mas muito simplesmente porque, na
história humana, uma combinação de grau n levou um tempo de duração t para
se produzir; poderia ter acontecido muito mais cedo, ou muito mais tarde. O fato
não tem maior significado do que o número de jogadas que um jogador deve
esperar para ver produzir uma dada combinação; esta combinação poderá
acontecer na primeira jogada, na milésima, na milionésima, ou nunca. Mas
durante todo este tempo a humanidade, tal como o jogador, não deixa de
especular. Nem sempre intencionalmente, ou conscientemente: mas ela “faz
negócios” culturais, se lança em “operações de civilização”, sendo cada uma delas
coroada de um êxito diferente. Ora chega perto do sucesso, ora compromete as
aquisições anteriores. As grandes simplificações autorizadas pela nossa ignorância
da maior parte dos aspectos das sociedades pré-históricas, permitem ilustrar essa
50
marcha incerta e cheia de idas e vindas. Não há melhores exemplos dessas
regressões do que aquelas que conduzem do apogeu da cultura Levallois à
mediocridade do cultura musteriense; ou dos esplendores da cultura acheuliana e
solutrenses à rudeza do cultura magdaleniana, sem falar nos contrastes extremos
oferecidos pelos diversos aspectos do mesolítico 40.
O que é verdadeiro no que diz respeito ao tempo não o é menos no que diz
respeito ao espaço, mas deve se exprimir de um modo diferente. A possibilidade
que uma cultura tem de totalizar este conjunto complexo de invenções de todas
as ordens a que chamamos civilização é função do número e da diversidade das
culturas com as quais participa na elaboração, a maior parte das vezes
involuntária, de uma estratégia comum. Número e diversidade, dizemos nós. A
comparação entre o Velho Mundo e o Novo nas vésperas da descoberta ilustra
bem esta dupla necessidade.
51
dizer que o nível cultural do México ou do Peru fosse, no momento da sua
descoberta, inferior ao da Europa (vimos até que, em determinados aspectos, lhe
era superior), os diversos aspectos da cultura talvez estivessem aí mais mal
articulados. Ao lado de êxitos admiráveis, as civilizações pré-colombianas estão
cheias de lacunas; têm, se nos é permitido dizer assim, “buracos”. Oferecem
também o espetáculo, menos contraditório do que parece, da coexistência de
formas precoces e de formas abortivas. A sua organização pouco flexível e
francamente diversificada explica possivelmente o seu desmoronamento face a
um punhado de conquistadores. E a causa profunda possa talvez ser encontrada
no fato de a coligação cultural americana ter sido estabelecida entre parceiros
menos diferenciados entre si do que os do Velho Mundo.
52
com que geralmente se justifica a contribuição das raças e das culturas humanas
para a civilização. Enumeram-se fatos, esquadrinham-se questões de origem,
concedem-se prioridades. Por mais bem intencionados que sejam, estes esforços
são inúteis, fúteis, porque falham triplamente no seu objetivo. Em primeiro lugar,
o mérito de uma intervenção atribuída a esta ou aquela cultura nunca é certo.
Durante um século, acreditou-se firmemente que o milho havia sido criado a
partir do cruzamento de espécies selvagens pelos índios da América, e continua-
se a admitir isso provisoriamente, mas não sem uma dúvida crescente, porque
pode ser que o milho tenha vindo para a América (não se sabe muito bem
quando, nem como) a partir do Sudeste Asiático.
53
contribuições que oferecem um caráter de sistema, isto é, que correspondem à
maneira própria que uma sociedade escolheu para se exprimir e satisfazer as
aspirações humanas. A originalidade e a natureza insubstituíveis destes estilos de
vida não podem ser negados, mas como representam tantas escolhas exclusivas,
dificilmente compreendemos a maneira como uma civilização poderia esperar se
beneficiar do estilo de vida de uma outra, a não ser que renunciasse a si própria.
Na verdade, as tentativas de compromisso só podem conduzir a dois resultados:
ou a uma desorganização de um dos grupos, ou a uma síntese original, mas que,
então, consiste no surgir de um terceiro padrão que se torna irredutível em
relação aos outros dois. O problema não consiste, aliás, em saber se uma
sociedade pode ou não tirar proveito do estilo de vida de outra, mas se, e em que
medida, é capaz de os compreender, e mesmo até de os perceber. Vimos que esta
questão não implica nenhuma resposta categórica. Finalmente, não há
contribuição sem beneficiário. Mas se existem culturas concretas, que podemos
situar no tempo e no espaço, e que podemos dizer que “contribuíram” e
continuam a contribuir, o que é essa “civilização mundial”, suposta beneficiária de
todos esses tributos? Não é uma outra civilização, gozando do mesmo coeficiente
de realidade. Quando falamos de civilização mundial, não designamos uma época
ou um grupo de homens: utilizamos uma noção abstrata, a que atribuímos um
valor moral ou lógico: moral, se é um objetivo que propomos às sociedades
existentes; lógico, se agrupamos sob um mesmo termos os elementos comuns
que a análise permite revelar nas diferentes culturas. Nos dois casos, não
devemos deixar de notar que a noção de civilização mundial é muito pobre,
esquemática, e que o seu conteúdo intelectual e efetivo não oferece grande
densidade. Querer avaliar contribuições culturais carregadas de uma história
54
milenar, e de todo o peso dos pensamentos, sofrimentos, desejos e do trabalho
dos homens que lhes deram existência, referindo-as exclusivamente ao padrão de
uma civilização mundial que é uma forma vazia, seria empobrecê-las
singularmente, esvaziá-las da sua substância, e conservar delas apenas um corpo
descarnado.
55
Não estaremos diante de um estranho paradoxo? Tomando os termos no
sentido que lhes atribuímos, vimos que todo o progresso cultural é função de uma
coalisão entre culturas. Esta coalisão consiste em tornar comum (consciente ou
inconscientemente, voluntário ou involuntariamente, intencional ou
acidentalmente, obrigado pelas circunstâncias ou não) as chances que cada
cultura encontrou no seu desenvolvimento histórico; finalmente admitimos que
esta coalisão seria tanto mais fecunda quando se estabelecesse entre as culturas
mais diversificadas. Posto isto, parece que nos colocamos numa posição
contraditória. Porque este jogo comum de que resulta todo o progresso deve
levar, em consequência, num prazo mais ou menos longo, a uma
homogeneização. E, se a diversidade é uma condição inicial, devemos reconhecer
que as possibilidades de ganhar se tornam tanto mais fracas quanto mais se
prolonga a partida.
42 Aqui Lévi-Strauss parece esta apenas enunciando a idéia que também se tornaria senso comum nas ciências
sociais conemporâneas de que a pretensa unidade e homogeneidade do Estado-Nação, este princípio fundamental
na constituição das sociedades modernas, é na melhor das hipóteses um mito, ou como se convencionou dizer,
que culturas nacionais não passam de “comunidades imaginárias” (Stuart Hall, A identidade cultural na pós-
modernidade, DP&A editora, 2004). De qualquer forma a diversidade no interior de cada sociedade moderna no
que diz respeito a classes, castas, categorias profissionais, faixas etárias, grupos religiosos, orientação política ou
ideológica, ou qualquer outra clivagem, tem sido o tema por excelência de toda a sociologia, desde seus clássicos.
56
desigualdades sociais são o exemplo mais flagrante desta solução. As grandes
revoluções que escolhemos como ilustração, a neolítica e a industrial, foram
acompanhadas, não só por uma diversificação crescente do corpo social, como
notou Spencer, mas também pela instauração de categorias de status
diferenciadas para os grupos, sobretudo do ponto de vista econômico. Vimos que
as descobertas neolíticas rapidamente levaram a uma diferenciação social
intensa, com o nascimento no Oriente antigo das grandes concentrações urbanas,
o aparecimento dos Estados, das castas e das classes. A mesma observação se
aplica à revolução industrial, caracterizada pelo aparecimento de um proletariado
e conduzindo a formas novas e mais desenvolvidas da exploração do trabalho
humano. Até agora, havia uma tendência para tratar estas transformações sociais
como consequência das transformações técnicas, para estabelecer entre umas e
outras uma relação de causa e efeito. Se a nossa interpretação é exata, a relação
de causalidade (com a sucessão temporal que ela implica) deve ser abandonada
como a ciência moderna aliás tende geralmente a fazê-lo em proveito de uma
correlação funcional entre os dois fenômenos. Observemos, de passagem, que o
reconhecimento que o progresso técnico teve, como correspondente histórico, o
desenvolvimento da exploração do homem pelo homem, pode nos incitar a ser
mais modestos nas manifestações de orgulho que, tão facilmente, aquele nos
inspira.
57
modo, identificar o primeiro remédio, os do imperialismo ou colonialismo
ajudarão a ilustrar a segunda. A expansão colonial do século 19 permitiu à Europa
industrial renovar (e não certamente para seu proveito exclusivo) um impulso
que, sem a inclusão dos povos colonizados, teria corrido o risco de se esgotar
mais rapidamente.
58
sobrevivência biológica e cultural da humanidade 43.
59
das instituições internacionais é dupla – consiste, por um lado, numa liquidação
e, por outro, num despertar. Devem em primeiro lugar ajudar a tornar o menos
dolorosa e perigosa possível a liquidação destas diversidades mortas, resíduos
sem valor de modos de colaboração cuja presença em vestígios putrefatos
constitui um risco permanente de infecção para o corpo internacional 44. Elas
devem cortá-los, amputar se necessário, e facilitar o nascimento de outras formas
de adaptação 45. Mas, ao mesmo tempo, devem estar apaixonadamente atentas
ao fato de que, para possuir o mesmo valor funcional que as precedentes, estes
novos modos não podem reproduzi-las ou serem concebidos sobre o mesmo
modelo, sem se reduzirem a soluções cada vez mais insípidas e, no final das
contas, impotentes. Pelo contrário, é preciso que saibam que a humanidade é rica
em possibilidades imprevistas que, ao aparecerem, causarão surpresa; que o
progresso não é feito à imagem confortável da “melhoria do que já existe” em
que procuramos um preguiçoso repouso, mas que é cheio de aventuras, de
rupturas e de choques. A humanidade está constantemente em luta com dois
processos contraditórios, um no sentido da unificação, enquanto o outro age no
sentido da manutenção ou da restauração da diversidade. Como resultado da
posição de cada época ou de cada cultura no sistema, só um desses processos lhe
parece ter sentido, parecendo o outro ser a negação do primeiro. Mas ao dizer
que a humanidade se desfaz ao mesmo tempo em que se faz, ainda teríamos uma
visão incompleta. Porque, em planos e em níveis diferentes, as duas correntes são
formas de um mesmo processo.
44 Lévi-Strauss parece se referir aos elementos arcaicos presentes nas sociedades modernas e que são facilmente
instrumentalizadas pelas forças políticas mais reacionárias. Um exemplo seriam certas características arcaicas da
sociedades alemã (autoritarismo, militarismo, chauvinismo) e que serviram de base para a ascenção do nazismo.
45 Não deixa de chamar atenção neste trecho o uso de uma linguagem, ou de metáforas que remetem ao plano
biológico, mais afeita ao pensamento evolucionista do que ao pensamento do próprio Lévi-Strauss.
60
A necessidade de preservar a diversidade das culturas num mundo
ameaçado pela monotonia e pela uniformidade não escapou certamente às
instituições internacionais. Elas compreendem também que não será suficiente,
para atingir esse fim, avivar as tradições locais e preservar a história e o passado
locais pelo maior tempo possível. É a diversidade que deve ser salva, não o
conteúdo histórico que cada época lhe deu e que nenhuma poderia perpetuar
para além de si mesma. É necessário, pois, encorajar as potencialidades secretas,
despertar todas as vocações para a vida em comum que a história tem de reserva;
é necessário também estar pronto para encarar sem surpresa, sem repugnância e
sem revolta o que estas novas formas sociais de expressão poderão oferecer de
novo. A tolerância não é uma posição contemplativa dispensando indulgências ao
que foi e ao que é. É uma atitude dinâmica, que consiste em prever, em
compreender e em promover o que se quer ser. A diversidade das culturas
humanas está atrás de nós, à nossa volta e à nossa frente. A única exigência que
podemos fazer a seu respeito (criando deveres correspondentes para cada
indivíduo) é que ela se realize sob formas que contribuam para a realização de
todas as outras.
Gobineau, A. de Essai sur l’inégalité des races humaines. 2ª ed., Paris, 1884.
61
Hawkes, C. F. C. Prehistoric foundations of Europe. Londres, 1939.
62