Representação Políticas No Movimento Diretas Já

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Representagées Politicas no Movimento Diretas-Ja RESUMO Este artigo procura resgatar algumas representagoes politicas que foram utitizadas pelos manifestantes, durante a campanha das“Diretas-Jd” em 1984. Esias representagaes podem ajudar a entender a significado hisiérico do movimento, pois serviram para reela- borar alguns conteddos da tradicau po- Idica brasileira, através de simbotos, slo- gans € novas prdticas coletivas. Cen- tralizando em trés categorias bésicus - Povo, Nagdo, Protesto - mastramos camo as “Diretas-Ja” marcaram um nova tipo Marcos Francisco Napolitano de Eugénio* ABSTRACT This article examines some po- litical representations utiliseds on campaing so-called “Diretas-J4", in 1984, when millions of citizens, went to the streets against the military regime, in the nanie of democracy. Those represen- tations worked as symbolic spaces, in wich, the brazilian political tradition (bused on the authoritarian social rela- tions) was reelaborate and resignified by the people, We concentre the analysis on three basic categories: People, Nation and Protest. de expresso politica no espaco piblico. O significado histérico do movimento “Diretas-J4", ocorrido entre novembro de 1983 ¢ abril de 1984,' foi muito além dos seus resultados polftico-institucionais imediatos. Em pouco mais de quatro meses, milhées de brasileiros ocuparam as pracas publicas num conjunto de gigantescas manifestagées de repiidio ao regime militar, exigindo a volta das eleigdes diretas para Presidente da Reptblica. Mesmo presa a uma dinamica institucional, ou seja, a votagdo no Congresso Nacional da emenda do de- putado Dante de Oliveira (PMDB), as “Diretas-J4” ultrapassou qualquer expectativa de participagao e mobilizou os mais amplos setores da socie- dade civil, pré-organizados ou nao. O movimento catalisou as criticas de diversos segmentos s6cio-po- Iiticos contra o regime militar instaurado em 1964: 1é estavam presentes a critica politico-institucional, a critica sécio-econémica, a critica ideolégi- ca, Dada a sua amplitude, estas manifestagdes se amalgamaram num con- senso tatico, unido pelo paradigma simbélico da democracia, capaz de ‘Professor da Universidade Federal do Parana. Rev. Bras. de Hist. 207 impedir que as divergéncias entre os diversos matizes da oposigao, que aderiram a0 movimento, inviabilizasse a vitéria da emenda constitucional no Congreso. Este paradigma simbilico da democracia, por sua vez, era consti- tufdo por um conjunto de representagées que surgiam em forma de ima- gens ¢ discursos. Estas imagens e discursos, registradas e disseminadas pelos érgaos de imprensa, nos oferecem um campo de estudo privilegiado Para mapear uma cultura politica emergente, desde os anos 70, que reelaborou a tradicfo e a linguagem através das quais se pensava o lugar do politico no Brasil. Neste artigo selecionamos trés representagdes basicas, entre tantas Possiveis, que o movimento “Diretas-J4” se apropriou e reelaborou. Sao elas: POVO, NACAO E PROTESTO POLITICO. POVO. A irtupgao publica do “povo”, as centenas de milhares de pessoas, na praca publica, surpreendeu aos mais otimistas organizadores do movi- mento “Diretas-J4”, A afluéncia do publico ao primeiro grande comicio, no dia 25/01/84, na Praga da Sé em Sio Paulo, causou um enorme impacto na opinigo péblica, A “apatia” to decantada, do “povo” brasileiro em relagao & polfti- ca, parecia ter sido superada. Ao mesmo tempo a tradigao do pensamento politico brasileiro, que tende a desqualificar a participacao popular direta hos grandes acontecimentos da naco,? exigia um questionamento. Na grande imprensa as reagées iam do maravilhoso ao temerdrio, pois as lembrangas dos motins e saques de abril/1983 em Sao Paulo esta- vam vivas. A revista ISTOE (19/02/84), davao seguinte titulo 4 sua maté- ria: “O Gigante que desperta". Apesar daquele protesto nfio ser o primeiro a ocupar as pragas contra o regime militar,’ ele era percebido como algo novo ¢ especial, devido principalmente a sua amplitude. Nas representa- ges veiculadas pela imprensa, a categoria “POVO" parecia adquirir uma dimensao real, corpérea e expressiva. Na praca pablica estava o “POVO” brasileiro, uno miiltiplo ao mesmo tempo. “Subitamente unidos em torno de uma palavra de ordem que outra vez, como nos tempos mais dificeis, reuniu todos sob o mesmo teto amplo” (ISTOE, 01/02/84). 208 ‘A mesma revista a0 mesmo tempo que enfatiza o “espetéculo da multidéo”, procura individualizar 0 ato de ocupar a praga, publicando int- meros depoimentos de “‘trabalhadores” ¢ “pessoas comuns”, sub-repre- sentagdes que surgem para legitimar aquele ato. “Natalia, uma caixa de supermercado; Hugo, um meta- lirgico; Paulo, um niquelador; José, um cobrador de éni- bus...” (idem). Se essas “pessoas comuns” dio materialidade ao “povo”, clas ao mesmo tempo dao legitimidade a iniciativa do “grande personagem” da- quele comjcio, o Governador Franco Montoro, um dos organizadores: “Olhando vagamente as ruas desertas [ era feriado em SP ] Montoro sonhava com mithares de Hugos, Natalias, Paulos reunidos na Praga da Sé” (idem). Ao lado das “pessoas comuns”, a revista faz referéncia a “familias inteiras" e “pessoas de classe média”, presentes na Praga. A revista VEJA (01/02/84), também se utiliza de representagées similares, para descrever a multidao daquele evento. Ao que nos parece a representagio “POVO", complementada com as representagSes do tipo “pessoas comuns”’, “famili- as inteiras”, “pessoas de classe média”, adquire um cardter inofensivo, na medida em que se neutraliza simbolicamente a possibilidade da ago de “agitadores” e “baderneiros” presentes na multidao, o que deslegitimaria © movimento perante a opinio pablica ¢ poderia provocar uma reago do regime militar. Por outro lado estas representagdes sugerem uma presenga espontanea de cidadaos “sem ideologia”, interessados unicamente em va- ler os seus direitos. Consagrando essa legitimidade ¢ indicando 0 carter unfvoco das “Diretas-J4”, a revista ISTOE conclui: “Chegard o dia em que todo o Pais saird as ruas para pedir eleigao direta” (25/04/84). Sob outro aspecto, a presenga concreta de milhares de pessoas na Praga, aliada ao tipo de representag3o simbélica disseminada pelos organizadores e pela imprensa, exigia uma releitura do “Povo” enquanto categoria politica. O velho lema republicano, presente inclusive na propria Constituigéo do Regime Militar - “Todo poder emana do Povo e em seu 209 nome seré exercido” - ganha um outro sentido, na medida que 0 momento histérico Ihe dé contetido. O velho e tespeitado “campeao” da legalidade, © jurista Sobral Pinto, ao fazer a Jeitura ptiblica deste artigo da Constitui- go, em pleno comicio da Candelaria no centro do Rio (10/04/84), causou “frisson” na multidao, dado 0 efeito de deslocamento que sugeria. Se 0 “povo” daquela Constituigao autoritéria batia na porta do po- der para exigir mudancas politicas, ele também servia de base para repre sentagdes conservadoras, que procuravam se legitimar junto a este mesmo poder para efetivar negociagSes palacianas e elitistas. Tancredo Neves, Porta-voz da ala mais conservadora € conciliatéria do movimento “Dire- tas-J4”, dizia num comicio: “Hd um momento na vida dos povos que eles ndo podem se dar ao luxo da divisdo e das retaliacées, se divididos em facgdes afrontadas estardo praticando 0 tragico exercicio da desagregagao nacional” (VEJA, 25/4/84). Nesta fala 0 “POVO” calcado a categoria da “Nagao”, devendo submeter-se aos designios ¢ interesses desta, ndo aparece mais como 0 gerador de direitos , mas unicamente como o portador de deveres. Entre os deveres sobressai-se 0 de nao contribuir para a “desagregagao nacional”. Obviamente alguém deve falar em nome deste Povo-Nacao, na negocia- gio com o Regime. Tancredo Neves seria o candidato das “regras do jogo” no Colégio Eleitoral, em janeiro de 1985. Qualquer que seja a leitura ¢ o uso da representagao “Povo”, sua Presenga no espago pablico € percebida, pelo conjunto dos atores politi- cos, como uma manifestagao positiva em si, base de sustentagao do paradigma democratico. Uma bela imagem, retirada de um poema de Carlos Drummond de Andrade, titulo da matéria da Revista VEJA de 25/04/84, traduz essa positividade: “Uma flor nasceu na rua” (ao se referir a0 movi- mento “Diretas-J4” como um todo). A presenga do “POVO” transformava a aridez da praga numa imagem de vida, realizavel sob esta ética, dentro da plena liberdade publica. NAGAO A categoria “Nagao” € outro elemento simbélico que sera reelaborado de diversas formas, ao longo do movimento “Diretas-J4”. 210 Enquanto as vozes mais conservadoras, Jocalizadas no interior do regime militar ou nao, apelavam para a “Nag&o” como salvaguarda de uma ordem politica inquestiondvel, os atores do protesto popular se utilizavam dela para colocar em xeque essa mesma ordem, vista como excludente, autori- téria ¢ elitista, Antes de tudo, lembramos que os comicios das “Diretas-J4” per- correram dezenas das mais importantes cidades do Pafs, adquirindo um carter nacional, importante para legitimar o movimento.‘ Todos os comi- cios seguiam um ritual que inclufa 0 uso de simbolos oficiais do Brasil, como a bandeira e o Hino Nacional, O canto coletivo do Hino, ao final dos comicios, sugeria um sentido além do contetido da sua letra, além da inculcagio escolar, além do seu caréter oficial. O Hino, vibrando no coro dos descontentes com o regime, parecia demarcar que o lugar da “Nagao” passava a ser a sociedade civil, na medida em que 0 Estado era ocupado por um Regime cada vez mais antipopular € deslegitimado, O mesmo sen- tido parecia ser sugerido pelas bandeiras nacionais: deslocavam o sentido do protesto popular, sempre rotulado como obra de “desordeiros” sem pa- triotismo, pela tradi¢fo conservadora. Esse deslocamento ocortia na me- dida em que inviabilizava o uso desses sfmbolos no discurso da repressao. O bizarro argumento do regime militar que a presenga de “bandeiras ver- melhas” (simbolos do “comunismo internacional”) nos comfcios era um sinal de “desrespeito” as bandeiras nacionais, indica a luta pela legitimi- dade no uso das representagdes naquele contexto. ‘A “Nagao” surgia também em outras representagdes, nao oficiais. Porexemplo, na cangao popular que sc tornou o hino das manifestacdes de rua no Brasil, “Caminhando” (composta por Geraldo Wandré em 1968 ¢ proibida pelo regime militar). Nas “Diretas-Ja” ela era cantada em unis- sono pelos manifestantes e em sua letra a imagem da Nagao se transfigura na imagem da “Patria”: “Hé soldados armados/amados ou ndo/quase todos perdi- dos de armas mao/ nos quariéis !hes ensinam antigas ligdes/ de morrer pela Patria e viver sem razées”. Sob esta ética, o “militarismo”, o mesmo que comandava a politica do Estado, acabava por distorcer 0 sentido da Nagio. Neste caso, a “Pa- tria” se configura como o lugar da morte , da vida “sem raza”, dilufdana “razio de Estado”, Assim, 0 hino oficial e o paralelo expressavam senti- mentos ambfguos perante as representagdes de “Nagao” e “Patria”, ex- 21 Pressando os seus diversos sentidos politicos, durante 0 movimento. As- sim, concordamos com Marilena Chauf quando diz: “A Nagao nao é coisa, nem idéia (...) € uma pratica politica € social, um conjunto de agdes e relagdes postas pelas falas ¢ pelas praticas sociais, politicas e culturais (...) A Nagao nao é; ela se faz e se desfaz"5 A “Nagio” foi evocada também como sfmbolo da sociedade civil, materializada na multidao presente na praga. Franco Montoro disse num dos comicios: “Hd pouco me perguntaram quantas pessoas estdo nesta Praga - 300 mil, 400 mil? A resposta é outra: aqui estdio 130 milhdes de brasileiros” (VEJA, 1°/02/84), A praga se transforma no simulacro da “Nagao”, A sociedade civil Tesgatava a representagdo da “Nagdo” da esfera do Estado. Este aspecto é muito inovador na medida em que a tradi¢ao politica brasileira sempre colocou Estado como fundador e preexistente a Nagio e da Sociedade, sedimentando uma hipertrofia na memoria do Estado e um recalque na meméria da Sociedade. Outra fala, de muito impacto popular na época, foi a do jogador de futebol Sécrates, do Corinthians, ativo participante do movimento “Dire- tas-J4”, “O jogador Sécrates, presente no palanque, anunciou que ndo deixaria 0 Corinthians para ir jogar na Itdlia, se conse- guir votar para Presidente” (VISAO, 23/04/84). Neste caso a negagiio de um direito basico Provoca uma cisdo entre © cidadao ¢ seu Pais, a tal ponto de Provocar ou nfo um exilio voluntirio, O exilio de um jogador da Selegao Brasileira simboliza toda a perda do referencial de Nagao e nacionalidade, categorias que aqui aparecem cola- das ada “cidadania”. O encadeamento da tepresentagdo da nacionalidade ¢ da cidadania nunca foi muito comum na histéria brasileira, sugerindo a emergéncia de uma nova cultura politica a partir das lutas da sociedade civil contra o regime militar’ 212 PROTESTO POLITICO As formas simbélicas que 0 protesto politico se revestiu no movi- mento “Diretas-Ja” foram muito criativas ¢ variadas. Além disso os diver- sos espagos € manifestagdes sociais foram resignificados em fungiio da- quele movimento. A imprensa destacava, com certa surpresa, 0 “bom hu- mor junto com a politica” (OESP, 22/04/84). “Tudo foi pretexto para pedir as Diretas: bailes, churrascos, batucadas, festas de formatura, enterros simbélicos, parti- das de futebol, rodas de chimarrao, prévias eleitorais, vernissages, noites de autégrafo a até locais de trabalho abriram espaco para a manifestagao pelas Diretas” (OESP, 22/04/84). O Carnaval daquele ano foi extremamente politizado, sem que o humor e airreveréncia ficassem prejudicados. Pode-se caracterizar 0 “uso rebelde” de uma tradigao popular. Em Brasflia saiu um bloco chamado “Pacot&o” com o tema “cai na real General”. Em Salvador o bloco “Pane- la Vazia”, usava as “Diretas-J4” como tema do seu enredo. Até no semi- oficial Camaval carioca as Escolas de Samba encontraram espago para protestar petas Diretas: A “Caprichosos de Pilares” fez subir aos céus um enorme baldo com os dizeres: “DIRETAS-JA”. Diversos bailes carnava~ lescos tiveram como tema o slogan do movimento ¢ a cor amarela como cor principal das fantasias, como 0 promovido pela Associagiio dos Assis- tentes Sociais de Sao Paulo, em cujo cartaz se 1é: “DO FUNDO DO CO- RACAO; GRITO PELAS DIRETAS (...) Traje amarelo!”? Nos proprios comicios a presenca de fantasias, adcregos, mascaras, bonecos gigantes (como os do Senador Teoténio Vilela, recém-falecido, de Tancredo Neves ¢ outros) , lembrava o cardter festivo das manifestagoes. Longe de ser percebida como uma contradi¢ao, 0 améalgama entre a festae a politica expressava o sentimento de reconquista de um espace ptiblico despolitizado pelo regime militar (as ruas € pragas). Além disso, o cardter festivo no deixava de ser uma desmoralizagdo do discurso do regime que via no protesto popular 0 prenincio da “baderna” e do “caos”. A grande festa coletiva inviabilizava qualquer estratégia de repressfio e no tinha limites para expressar-se publicamente, Exemplo disso era a presenga do “Dragao das Diretas”, uma fantasia coletiva de papel, que desafiou o esta- do de “emergéncia” imposto pelo governo nas ruas de Brasilia.* 213 Os comicios das Diretas eram a continuidade de um tipo de mani’ festagao popular criada para viabilizar as manifestagdes partidarias du- ante as eleigdes, cerceadas pela Lei Falco. Segundo Regina Festa “E preciso lembrar que nos perfodos da campanha eleito- ral, ndo apenas a televisdo continuava sob censura, como estava limitada a propaganda politica no radio e TV pela Lei Falcdo. Entdo para fazer campanha politica o povo teve que sair as ruas e pracas e nestes espagos recriaram as fes- tas-comicios, soltaram baldes e papagaios cobertos de men- sagens politicas, promoveram forrés, mutirGes, teatro popu- lar, ete.”2 Nas “Diretas-Jé” esse espago foi ampliado e mesclou-se a genuinas manifestagdes carnavalescas, Outra tradigao presente nas “Diretas”, que marcava o timing dos comicios, era ada Miisica Popular Brasileira. A MPB sempre foi um espa- ¢0 de critica ao regime militar ¢ algumas cangées se tornaram hinos do idedrio oposicionista: “Caminhando”, que ja citamos; “Apesar de Vocé” (Chico Buarque, 1973, censurada); “O Bébado € 0 Equilibrista” (Joao Bosco/Aldir Blanc, 1979, Hino da. Anistia); “Coragao de Estudante” (Mil- ton Nascimento, 1983, que mais tarde se tornaria cang¢ao simbolo da elei- g40 de Tancredo Neves); “O Menestrel das Alagoas” (Milton Nascimen- to, composta em homenagem ao senador Teotdnio Vilela). Todas estas mti- sicas marcaram a campanha das “Diretas”, num ritual que se repetia a cada comicio. A imprensa captavae ampliava esse cardter festivo do movimento, Procurando fazer circular a imagem de uma sociedade que, mesmo oprimi- da, nao perdia o senso de humor e a “cordialidade”. Se o discurso da im- Prensa tinha sido implacavel com os motins que espalharam o “caos” em Sao Paulo, um ano antes das “Diretas”, agora ela procurava reforcar os clementos festivos dos comicios, Ao fazero elogio da transgressao simbé- lica da ordem, como numa catarse coletiva, talvez.a Grande Imprensa pro- curasse expiar a perspectiva da desagregacao social contida no protestoe a tensdo natural da presenga popular nas pragas e ruas, Tomemos alguns exemplos: “Para dar passagem @ grande festa nacional, ao som de to- das as batucadas - Direias-Ja?" (VISAO, 23/04/84). 214 “A festa descontraida que o Rio ofereceu ao Pais (...) foi uma pré-estréia saborosa dessa onda que articula uma rei- vindicagao politica (as Diretas-Jd4) com uma nova atitude diante da vida (a vontade de dangar nas pragas enquanto os politicos se sucedem nos palanques)” (ISTOE, 25/04/84). A Folha de Sao Paulo, por sua vez, destacava a “seriedade” por trés daquela festa: “A manifestagao de ontem foi uma festa de todos (...) A chu- va de papel picado, as baterias de algumas escolas de sam- ba, o trio elétrico, os abragos e os gritos em momento algum abalaram o enredo da festa de ontem: a exigéncia do direito de votar para Presidente. A festa ndo foi inconseqiiente” (FSP, 17/04/84). Outras referéncias simbélicas para organizar a percepgao do movi- mento foram emprestadas ao futebol. No Brasil, esse esporte se tornou um. importante espago de sociabilidade."" No futebol, a presenga fisica das massas populares € arrebatadora, tal qual a multidao das “Diretas-Ja” que ocupava as pragas. As analogias eram inevitaveis. Por exemplo, numa en- trevista, um juiz de futebol muito famoso na época declarou, referindo-se ao comicio da Candelaria: “E a mesma emogdo que sinto quando estou apitando um clssico no Maracana” (ISTOE, 18/04/84). A utilizagdo das representagdes advindas da experiéncia social do futebol também organizava o discurso da imprensa: “Era um clima de final de Copa do Mundo. Juntando samba e futebol, cerca de } mithdo de pessoas que ali se reuniam proclamou, depois de uma passeata iniciada na Praga da ‘Sé, num entusiasmo apaixonante ¢ incrivelmente ordeiro, que quer diretas-jd. E quem conhece o calor das paixdes nacio- nais sabe que com elas nao se brinca” (VISAO, 23/04/84). ‘Na mesma matéria, mais adiante a mesma revista completava a imagem: 215 “A multidao esta com os politicos de Oposigao que estio com © samba € 0 futebol da multidao” (idem). A utilizagao do referencial simbélico do futebo! para traduzir uma experiéncia politica nao deixa de sugerir uma novidade daquele momento. Reafirma a capacidade de articulagao hist6rica de Tepresentagdes simb6li- cas diferentes, que geram novos significados conforme seu arranjo e seu contexto, Haja vista, neste caso, que o binémio “futebol-politica” sempre foi visto de maneira auto-excludente. A esquerda, 0 futebol sempre foi rotulado como o “6pio do povo”, lugar da aliena¢do. A direita, o futchol sempre foi visto como um espago despolitizado, de evasdo popular, ex- Pressio da massa “irracional”. Mas as representagdes construfdas em fun- g4o das “Diretas-Jé” colocavam em cheque estas concepgdes tradicionais. As imagens do futebol eram relembradas para traduzir e amplificar o es- petaculo das multid6es em protesto, Além de se utilizar de elementos tradicionais na cultura brasileira - © humor, o carnaval e 0 futebol -, 0 Protesto assumiu novas formas de agdo: “buzinagos” e “panelagos” se faziam ouvir em diversas cidades bra- sileiras, 4s vésperas da votagio da emenda Dante de Oliveira. “Rojoes, buainas, panelas e apitos” foram utilizados na “noite dos fogos e barulho” (OESP, 25/04/84). Nas cidades, onde houve algum tipo de repressao, como em Brasilia, este tipo de protesto conseguia se fazer ouvir e dificultar a agio do Exército e da Policia. Mas nem todo carter pacifico e festivo da campanha das “Diretas- J&” impediu que os homens ligados ao tegime militar vissem nela apenas uma manifestago de “baderna”, promovida por “radicais”, conforme a fala do General Rubem Ludwig, chefe do Gabinete Militar do Governo Figueiredo. A resposta de Luis Inécio Lula da Silva, uma das liderangas do movimento, expressava a auto-imagem da sociedade civil, recém-ad- quirida: “Nao € baderna nao General. A baderna est4 no Colégio Eleitoral” USTOE, 25/04/84). Em 1964, 0 discurso do “caos” e da “bademna” conseguiu aglutinar setores conservadores da sociedade em torno do Golpe Militar. Mas em 1984 a sociedade civil brasileira, festivamente , expressava a necessidade de uma ordem politica fundada na liberdade de ‘expressdo, na justiga social ena democracia ¢ jé nfo acreditava mais nos arautos do apocalipse. eae 216 O movimento “Diretas-J4” pode ser analisado pelo angulo pura- mente estrutural, ou seja: a dinfmica fria das forgas sécio-politicas em conflito ¢ a crise institucional do regime militar. Mas podemos analisé-lo, também, sob a dtica cultural: um conjunto de manifestagdes que se apro- pria e reelabora uma série de representagdes simbélicas ¢ traduzem uma dada historicidade. Estes aspectos correm o risco de se perder quando enfatizamos os conflitos puramente institucionais. Neste artigo, tentamos indicar algumas possibilidades desta abordagem, sem a pretensfio de aprofundar a pesquisa. Ao recuperarmos a politica como evento, jogo ¢ representagiio, rea- lizamos dois afastamentos: em primeiro lugar, nos afastamos da visio “positivista” da politica como a racionalidade linear da politica de Estado e dos “grandes” personagens da histéria; em segundo lugar, nos afastamos da concepgao de politica como reflexo superestrutural de uma “realidade” econémica. Em que pese a dindmica funcional das instituigdes e a influén- cia determinante de interesses sécio-econdmicos, a politica pode ser recu- perada ao longo da histria, como o “lugar onde se articula o social e sua representagao, a ma- triz simbélica na qual a experiéncia coletiva se enraiza e se reflete de uma sé vez"."' Mesmo tendo em vista que “os fatos sociais néo so simbolos, mas sdo impossiveis de serem vividos e captados fora de uma rede simbélica”. O mesmo filésofo adverte: “a constituigdo simbdlica da sociedade nao é livre, Ela deve tomar sua matéria no que jd existe” (idem). Coloca-se assim o problema da histdria politica. Oscilando numa tens4o entre a emergéncia do novo ¢ o que “ja existe”, a polftica surge para o historiador como um espago de reelaboracao cultural, onde a consciéncia social se faz. se desfaz. Outro filésofo, Claude Lefort, é quem diz: “Apenas escutando os sinais do novo, perguntando o que advém com a formagao e o desenvolvimento da democracia 217 moderna (...) 0 que pe em causa a separagdo de principio entre Estado e Sociedade Civil, a emergéncia das reivindi- cagées formuladas em conseqiiéncia dos direitos do homem, @ nogdio de individuo (...) € que temos alguma oportunidade de avaliar o politico”." Politica ¢ cultura, nesta tica, deixam de ser “reflexo” ou “esferas” da realidade e constituem-se em modos de vivenciar, operacionalizar e lembrar uma dada configuragao ou conjunto de relagdes sociais. A liber- dade do sujeite histérico, a no determinagao histérica, recoloca o prima- do da politica, tensao entre a norma e a invengio. As “Diretas-Ja” demonstraram, enquanto evidéncia historica, a capacidade das agdes ¢ representagdes pollticas em afirmar, negar e refa~ zer identidades. Mesmo com a frustrago coletiva gerada pela rejeigao da emenda Dante de Oliveira, na noite de 25/04/84, aqueles quatro meses mudaram a face politica da sociedade brasileira. Uma nova cultura politi- ca emergiu no espaco puiblico, baseada na “linguagem dos direitos”, no paradigma da democracia, na autonomia do social frente ao Estado. Novos referenciais de ago coletiva foram experimentados, foram afirmados no- vos valores ético-politicos, toda heranga politica brasileira foi repensada, Arriscamos dizer que as “Diretas-J4”, se toraram a referéncia histérica para as posteriores mobilizagées da sociedade civil, vividas na campanha presidencial de 1989, na campanha do impeachment em 1992 ena recente Agao da Cidadania contra a Fome e Pela Vida. Em todos estes momentos, as representagdes simbélicas, a confluéncia da festa c da politica, as mes- mas entidades sociais, a mesma linguagem dos dircitos serviu para a ex- pressao politica. Para finalizar, ressaltamos um outro detalhe em relagao a historicidade experimentada pela sociedade brasileira na campanha pelas “Diretas". O complemento “JA” no slogan do movimento nos indica a negagao de uma dindmica histérica constante, que se pautou pela “eterna transigao”, onde as manifestagdes da sociedade sempre foram desqualificadas pelas elites como fora do tempo e do espago; onde acman- cipagdo social sempre esteve colada 4 uma temporalidade do Estado (““o lugar da Histéria”); onde a ag2o politica foi sempre manipulada em nome de um passado “mitico” ¢ congelada em nome de um “futuro” sempre adi- ado. As “Diretas-J4” podem ter sido uma tentativa, ainda que cheia de Percalgos, de vivenciar a hist6ria como presente emancipatério, negando foda uma tradigdo dominante na cultura politica brasileira. Naqueles qua- 218 tro primeiros meses de 1984, o tempo histérico se abriu num leque de possibilidades, quando “cada segundo era a porta estreita pela qual podia penetrar o Messias”.'* NOTAS s Semin comicios foram: $0 Paulo, 27/1 1/83 (10 mil pessoas); Curitiba 12/01/84 (50 mil) - primeiro oficialmente reconhecido; So Paulo 25/01/84 (300 mil); Rio de Janeiro 16/02/84 (50 mi); Belém 16(02 (60 mil), Belo Horizonte 24/02 (300 mil); Rio de Janeiro 21403 (200 mil); Londrina 02/04 (50 mil); Recife 05/04 (80 mil); Rio de Janeiro 10/04 (1 milhio); Goinia 12/04 (250 mil) - cerca de 1/4 da populagiio; Porto Alegre 13/04 (200 mil); So Paulo 16/04 (1,5 mi- Ino); Vitdria 18/04 (80 mil). Conforme dados da Folha de Sdo Paulo, 22/04/84. * Umaespécie de "'sindrome das bestializadas”, Iegado da frase de Aristides Lobo sobre o compor- tamento do povo durante a proclamagao da Repoblica: “O povo assistia a tudo bestializado”. * is rigor desde 1977, quando o Movimento Estudantil reconquista as ruas para o protesto, diversos segmentos sociais ja haviam ocupado o espaco pablico para manifestar-se contra o regime militar. * Veenotan. 1. * CHAUL, Marilena, Conformismo e resistencia. Aspectos da cultura popular no Brasil. Si0 Paulo, Brasiliense, p. 114, 1986. “ A partir das manifestagdes do final dos anos 70, os temas da cidadania, democracia, e direitos ‘humanos parecem superar, no conjunto das falas, o tema da “reforma” e da “revoluglo" hegemyinicos até o final dos anos 60. ” A “camavalizagtio do poder” é uma antiga tradigaio de manifcstagio das classes populares no Brasil, uma forma de operacionalizar a critica e a insatisfagio social. Lembramos que a “Revolta da ‘Vacina’” ocorrida no Rio de Janeiro em 1904, comegou com uma teatralizagio satirica do governo, detonando um grande motim popular. * (O“Dragio das Diretas” parece ter origem numa estratégia de ocupagdo das ruas, nascida durante © perfodo mais repressivo do regime militar, em Recife € Olinda. Uma fantasia coletiva, que abriga- va cerca de 80a 100 pessoas, chamada “Cobra Salamanta” saia as ruas para convocar uma mani- festagSo ou fazer alguma reivindicagSio, O cardter camavalesco confundia a repressio e chamavaa atengiio da populagdo transeunte. ° FESTA, Regina. Cumunicagdo popular e alternativa. Dissertagio de Mestrado, Inst, Metodista de Ensino Superior, So Bemardo do Campo, pp. 105-106, 1984. “NEGREIROS, Plinio Labriola de Campos. Resivténciu e rendigdo. A génese do Sport Club Corinthians Paulista (1910-1916). Dissertagio de Mestrado, PUC/SP, 1993. " ROSANVALLOIR, P. “Pour une histoire conceptuelle du politique. 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