As Mãos Precárias - Estudos Sobre Raduan Nassar
As Mãos Precárias - Estudos Sobre Raduan Nassar
As Mãos Precárias - Estudos Sobre Raduan Nassar
Paginação ACDPRINT
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Edição Maio de 2020
O IELT é financiado por Fundos Nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia no âmbito do projeto UID/ELT/00657/2013.
AS MÃOS PRECÁRIAS
ESTUDOS
SOBRE
RADUAN NASSAR
IELT
Lisboa
2020
O respeito pelo Acordo Ortográfico atualmente em vigor
é da única responsabilidade dos autores de cada artigo.
8 Índice geral
Índice geral
Apresentação. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11
Carlos F. Clamote Carreto
Madalena Vaz Pinto
Apresentação
No prólogo de um intrigante conto da Idade Média (Le Lai de l’ombre) que nos fala
de reflexos, de sombras, de projeções e de imagens distorcidas do Outro a partir
das quais se constrói, no entanto, paradoxalmente, o amor, e no qual Jean Renart,
conhecido poeta francês do século XIII, parodia e desconstrói sistematicamente os
fundamentos da retórica e do imaginário cortês, lemos que mais vale contar com
12 Apresentação
uma boa fortuna do que com amigos e familiares. Com efeito, estes vão e vêm. E
também morrem, dispersando‑se então a riqueza e as falsas ilusões depositadas
num simulacro de felicidade. É a sorte que, entre contingência e movimento cal‑
culado dos astros, rege o nosso destino e provavelmente os destinos da própria
escrita poética que só assim, conclui o autor, escapa às águas tumultuosas do alto
mar para chegar às margens tranquilas delimitadas pela aritmética do conto.
preparação, entre acaso e providência, toda a sua atualidade. A riqueza das comu‑
nicações apresentadas durante a Jornada e os estimulantes debates que as acom‑
panharam deixaram em todos nós memórias duradouras, mas não menos volúveis
e sujeitas à inelutável lei do esquecimento. Daí que, desde logo, tenha surgido a
ideia de publicar os resultados do encontro. Não tanto como impulso arquivístico
(por mais importante e valioso que este seja) ou dever de memória, mas tão sim‑
plesmente como forma de prolongar o diálogo, sempre necessário e inacabado,
em torno de Raduan Nassar, do fenómeno narrativo, da Literatura.
O conjunto de ensaios que agora se publica não ambiciona ser nem uma homena‑
gem, nem, tão pouco, uma tardia, desnecessária e já anacrónica legitimação de um
merecido prémio. Trata‑se apenas de partilhar a alegria breve que traz a reflexão
1
Ver passagem em epígrafe.
14 Apresentação
Na maioria dos textos, como se verá, o reconhecimento do valor da obra será rea‑
firmado a par do enigma que constituiu o seu repentino cessar. Resta saber se se
trata, de facto, de um fim repentino, ou mesmo de um fim. As posições divergem.
Arrisca‑se, por vezes, a hipótese de uma continuidade – as mesmas mãos, afinal
– entre texto e terra, entre labor textual e os cuidados da lavoura. Lacónicas res‑
postas do autor ao longo de todos estes anos, não explicam. Ficamos com os tex‑
tos e as conjeturas, apresentados em seguida segundo as ligações que entre si se
estabelecem.
No seu ensaio, António Vieira começa por destacar o que nele desde logo o mar‑
cou na leitura de Lavoura Arcaica e que se repetiu vinte anos depois, na ocasião da
escrita deste texto: a constatação de estar diante de uma nova linguagem, fron‑
teira indecisa entre prosa e poesia, aspeto reiterado na leitura dos outros textos de
Raduan Nassar. No que toca a este romance, afirma, é possível verificar um modo
particular de construção textual ‑ substituição de pontos finais por pontos e vír‑
gula ou de interrogação ‑, o que contribui para o adensamento dos parágrafos.
Neles, o leitor tem acesso às atmosferas interiores de homens expostos ao assé‑
dio das paixões, numa combinação entre rememoração, júbilo, desejo e culpa, e
pode pressentir a tragédia que se aproxima. Tal potência não permite ao leitor ficar
incólume. Ele percorre a narrativa por seus passos, entregando‑se mais ou menos
aos acontecimentos, ao sentir mais empatia ou recusa, preso dessa forma na rede
do texto que percorre. O mesmo encantamento repetir‑se‑ia nos outros textos do
autor, aumentando a perplexidade com a recusa de o escritor voltar à literatura ou
sequer dela falar. Sobre esse acontecimento, António Vieira arrisca uma possibili‑
dade: a proximidade excessiva entre o vivido e o narrado.
O mesmo impacto com a linguagem é referido por Arnaldo Saraiva ao ler seu pri‑
meiro romance, Lavoura Arcaica. Este romance surpreendia por se tratar do pri‑
meiro livro de um autor no qual, curiosamente, não se reconheciam as fragilidades
discursivas, os clichés ou as modernices forçadas próprias de muitos romances de
estreia. Mas Lavoura arcaica surpreendia ainda pela temática, parábola familiar
retomada e desconstruída, ambientada no espaço rural, na contramão do romance
urbano, social e político em voga então no Brasil. Estudioso da literatura brasileira
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 15
e leitor de Raduan Nassar desde sua estreia, Arnaldo Saraiva, como a maioria da
crítica, atribui o mesmo valor aos textos seguintes e adensa o enigma do abandono
por um viés curioso: a recusa em continuar a escrever contamina necessariamente
o que foi escrito, obriga os leitores desta obra a pôr sob suspeita noções estabele‑
cidas e consensuais sobre a autoria, a obra, o engajamento e o lugar da literatura.
pelo mercado editorial. Porém, como mostra a autora, o efeito desse desejo de fuga
é paradoxal e perverso: consiste na hiperbolização da figura do autor sobre a obra
que se verifica pela sobrevalorização dos paratextos, principalmente os epitextos
– correspondência, depoimentos, entrevistas, conversas. A palavra do autor empí‑
rico sobrepõe‑se à do autor textual, ou, dito de outra forma, ocorre a restituição da
aura por via da recuperação de um vínculo singular entre o valor de existência e o
valor de exposição.
Talvez para Raduan, propõe Masé Lemos, a escrita se apresente como contingên‑
cia entre a possibilidade de dizer e de não dizer. Ao reler, no seu artigo, o conto
Ventre seco, espécie de carta‑manifesto, a autora chama a atenção para o que já aí
se percebe: uma escrita que provoca, incomoda e inverte as posições dominantes.
Essa provocação vai ser mantida nos textos seguintes de Raduan Nassar, inclusive
no diálogo que a sua obra estabeleceu com outros autores ‑ Joyce, Thomas Mann,
Fernando Pessoa (via o heterónimo Ricardo Reis). Qual o tema que aí se destaca? O
da indiferença, não só como um motivo dentro da obra, mas também como pos‑
tura do artista diante da obra e da vida. A obra nassariana aproxima‑se deste modo
do cinismo; o cinismo dos grandes indiferentes que visa construir uma filosofia que
promova a liberdade absoluta e, assumindo um tom provocador, faz o pensamento
efetivamente pensar. «Ele», de Um copo de cólera, ou o narrador de Um ventre seco,
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 17
Pedro Eiras inicia seu texto, situado nos limiares entre o registo poético e o ensaís‑
tico, com uma confissão em forma de pergunta: por que estou apaixonado por
Um copo de cólera? Porque se trata de um texto furioso, que enfurece, que não se
apresenta como representação, mas afeto. E que esconde, no aparente episódio
das formigas que ignoram uma vedação e a ultrapassam desordenadamente um
juízo amplo e devastador. Tudo aí é exposto e avaliado: cada gesto, palavra, ideo‑
logia, moral, consciente e inconsciente. Mas a fúria não se limita ao Um copo de
cólera. A força argumentativa e o jogo performativo cínico dos textos de Raduan
Nassar, afirma o autor, criam uma perigosa intensidade em que tudo detém valor
e em que todos os valores acabam arruinados. Um copo de cólera, Lavoura arcaica,
Ventre seco. O que cabe ao leitor ler nestes textos? Que partido tomar? O coração
vacila. A escolha, inevitável, apresenta‑se sempre absurda. Terá o autor sucumbido
à ira de seus textos? Como continuar a escrever depois deles? O silêncio parece ter
sido a resposta.
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 19
António Vieira
Relida Lavoura arcaica, quase vinte anos após a primeira leitura, novas visibilidades
me advêm deste texto. Da primeira vez, atendera sobretudo à linguagem, tão cati‑
vante que se sobrepôs ao conteúdo; eis que passei à visualização da narrativa, fase
por fase, ao longo do seu desenrolar. Como se reescrevesse para mim, transcreven‑
do‑o em imagens, num filme ideal, o drama que nos é contado. Revivi a história com
os meus próprios recursos; olhei‑a, segui‑a de fora, como se não estivesse implicado.
Mas como ler este texto e permanecer incólume? A exterioridade da leitura é rela‑
tiva: o leitor, ao refazer com os seus próprios passos os passos da narrativa, sempre se
entrega mais ou menos aos acontecimentos que da leitura absorve e às personagens
que nela andam em jogo, oferecendo‑se ora em projecção e identificação, ora em
denegação e recusa, e assim se prende emotivamente na rede da escrita que percorre.
Diz‑se geralmente que este livro está escrito numa ‘linguagem bíblica’. Afirmação
equívoca, ou pelo menos imprecisa. Quantas escritas dentro da escrita bíblica, quan‑
tos estilos e géneros encadeados! Para além da objecção de Nietzsche, de grande
“fraude literária” decorrente da junção, da fusão de dois livros incompatíveis, imiscí‑
veis, incomensuráveis – o Velho e o Novo Testamento – obtendo, a partir daí, o Livro...
A Lavoura inventa uma linguagem prodigiosa, que nos leva de volta aos deuses do
deserto, essas divindades patriarcais, impiedosas, ciumentas e castigadoras, que nasce‑
ram nos desertos pedregosos da Ásia mediterrânica e partiram a conquistar o mundo1.
A linguagem solene que inspiraram, suspensa de advertências, éditos e profecias,
reencontrâmo‑la de algum modo no arcaísmo desta lavoura (a escrita literária lança,
também, as suas sementes à folha lavrada): nos longos parágrafos que amontoam
exortações e argumentos; na veemência, por vezes na violência, da palavra proferida; e
no segredo, no indizível que ronda e paira e tarda em ser mostrado. E acode‑me a frase
do romance, “me senti num momento profeta da minha própria história” (p. 91)2.
1
Há um lapso na epígrafe da segunda parte, O retorno (p. 147), que consiste numa citação do Alcorão.
Trata‑se, com efeito, da sura IV (conforme à ordenação definitiva dada a este livro sagrado por Abu Bakr,
o primeiro califa, que ficou depositário das suas folhas esparsas); mas o versículo não é o 24, antes o 27,
que diz: “Não deves seduzir a tua mãe, as tuas filhas, as tuas irmãs, etc.”; e nele foi elidida parte do seu
conteúdo, pois que conclui: “Mas, se acontecer, Deus é misericordioso”.
2
Todas as referências se reportam à edição completa da obra de Raduan Nassar (2016), figurando o
número das páginas entre parêntesis.
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3
Franz Boas, citado por Claude Lévi‑Strauss (1958: 227).
22 Raduan e o arcaísmo da lavoura
espaço luminoso da Grécia para uma cultura mediterrânica e patriarcal, ela própria
mudada para estas terras novas do ocidente antárctico.
Atentemos: Édipo sai de Corinto para se prevenir do incesto previsto pelos oráculos;
André foge de casa com o mesmo propósito. A doença (a peste) grassa na cidade, e
há que procurar o culpado e varrer a impureza; a doença (a epilepsia) habita André e
manifesta‑se nele, tornando‑o impuro. Édipo chega a Tebas – ou seja, a casa – e con‑
suma os actos anunciados; André volta a casa e reencontra Ana. Édipo seduz a mãe,
André a irmã. Jocasta, sabendo do acontecido, dá‑se à morte; o pai, informado do que
acontecia, dá a morte a Ana. Na inconfidência dos pastores (de Corinto e de Tebas)
desvenda‑se o fio todo do enigma; na inconfidência do irmão, Pedro, deslinda‑se a
trama que expõe a verdade e desencadeia a punição. Com Édipo, e por ele, o pai é
morto (estamos na Grécia); o pai de André (estamos agora com os deuses do deserto)
inflige a morte à mulher impura. Édipo não quer ver, e por isso se cega; André emu‑
dece perante o culminar da tragédia e, com a sua mudez, a Lavoura arcaica se fecha
e se conclui. – “A morte – vem explicar a voz distante e branca do antropólogo – deve
ser integrada na vida para que a agricultura seja possível” (Lévi‑Strauss, 1958: 245).
Grande veemência e grande fúria neste texto. A divindade do deserto, temível e vinga‑
dora, é interiorizada e incorporada aqui pelo homem velho, que transmigra de gera‑
ção em geração, e é assumida sucessivamente pelas figuras do avô, do pai e do irmão
mais velho, que enfim trai a confidência e leva o pai a perpetrar o ‘crime de honra’,
trazendo ao romance um clarão de tragédia. Ao longo deste livro há um culto, uma
devoção, e por fim uma rejeição, deste homem velho exemplar, austero e castigador,
que incarna a tradição e profere o seu discurso de intolerância e de rancor sob o véu
da ternura e da benignidade. O seu paradigma é o do “ancião cujo asseio mineral do
pensamento não se perturba nunca com as convulsões da natureza; nenhum entre
nós há de apagar da memória a formosa senilidade dos seus traços.” (p. 62). Ele é este
avô tutelar, cujo fatalismo culmina na conclusão universal: Maktub!, está escrito! Mas a
figura do homem velho é sucessivamente idolatrada e recriminada, o narrador oscila
entre um desejo extremo de identificação e um impulso incontido de destruição.
Toda a substância desta escrita ondula pela fronteira indecisa e misteriosa entre
prosa e poesia, e este livro pode ler‑se como coisa vária: saga familiar, mito drama‑
tizado e romanceado, elegia da violência, ode à natureza, advertência profética,
longo poema erótico. É um cristal de extrema coesão e perfeito talhe, e acontece
que vemos por ele diversamente, conforme à face tocada pelo sol que lhe incide.
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 23
Raduan exprime com mestria certos momentos que anunciam, e ainda assim enco‑
brem, o desastre iminente, e se contêm num tempo interior represado. Já no seu
conto O velho, um dos componentes de Safrinha, escrita em 1958, é dito: “E há em
tudo um clima silencioso de espera” (p. 383). E noutro conto, Mãozinhas de seda,
alguém afirma: “Cultivei por muito tempo uma convicção: a maior aventura humana
é dizer o que se pensa” (p. 353). Estão, pois, em jogo a veracidade e o segredo, e sobre‑
tudo a veracidade do segredo. Mas há um tormento que acompanha e anima este
livro. As palavras “tumultuado”, “turbulento” e “faminto” percorrem‑no e dominam
‑no, em intensidade e repetição. O grande deus Diónisos triunfa desta escrita.
Como obter esta atmosfera, e criar este espaço literário com a língua portuguesa? Eis o
prodígio que nos encanta. Como recortar, dentro da língua comum e quotidiana, essa
outra língua privada e possante, que permite a quem escreve tornar‑se um escritor, e
que há‑de ser uma língua de transgressão? Num ensaio de Michel Foucault encontra‑
mos esta reflexão: “A literatura (...) é a linguagem ao situar‑se no limite longínquo de si
mesma.”4 E Proust, em Le temps retrouvé, fala “dessa magnífica linguagem, tão diferente
da que continuamos a falar, e em que a emoção desvia o que queríamos dizer e abre
em seu lugar uma frase bem diversa, emergente de um lago desconhecido onde vivem
essas expressões sem relação com o pensamento, e que por isso mesmo o revelam.”5
Ora, cada escritor revisita em sobressalto o seu lago secreto, perdido na sua fantasia,
no fundo dos seus sonhos, senão do seu delírio. Ninguém mais pode aceder a essas
águas privadas, longínquas e inacessíveis, mágicas e poiéticas. O escritor volta vezes
sucessivas à margem silenciosa do seu lago, em viagens repetidas e inconfessáveis,
a buscar a matéria literária. Daquela água se revigora, dela extrai uma forma própria
e única de dizer, de situar as próprias visões e emoções no mais fundo do seu pensa‑
mento, tornando‑o então trama literária. Do lago azul se alimenta, daquelas névoas e
águas profundas: dele provêm as suas metáforas, o estilo, a maneira própria de estar
em literatura. E essa língua segunda, escavada e esculpida em metamorfose no inte‑
rior da língua comum, é como uma ferramenta artesanal feita à medida, que exprime
o estar‑no‑mundo do escritor com as suas singularidades e visibilidades próprias, em
contraste com o alheamento, a opacidade e a trivialidade do olhar e do sentir comuns.
O tempo desta narrativa é um dos seus enigmas. De resto, ao longo de todo o texto
se inscreve e se oferece uma filosofia do tempo: tempo de retenção, feito de esperas,
pausas, descontinuidades e saltos, de paciências e impaciências que explodem como
actos rebeldes. – “A impaciência também tem os seus direitos!”, lê‑se na página 92. É
um tempo eleático, de Zenão, paradoxalmente imóvel, avançando por saltos. Assim
nos fala o narrador de um “voo célere de um pássaro branco, ocupando em cada ins‑
tante um espaço novo” (p. 91) – tal como a flecha de Zenão, imóvel na sua essência,
mas ocupando no espaço lugares sussessivos, que são tempos.
4
“La littérature (…) c’est le langage se mettant au plus loin de lui‑même” (Foucault, 2003 : 13).
5
“ (…) ce magnifique langage, si différent de celui que nous parlons d’habitude, et où l’émotion fait dévier
ce que nous voulions dire et épanouir à sa place une phrase tout autre, émergée d’un lac inconnu où vivent
ces expressions sans rapport avec la pensée et qui par cela même la révèlent ” (Proust, 1954 : 166).
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 25
Igualmente imóvel me parece ser o tempo que tenho tido de convívio com Raduan.
Visito‑o quase regularmente uma vez por ano, às vezes de dois em dois anos, sempre
na companhia da Gilda, que de início foi o talismã, o ‘abre‑te sésamo!’ para o conhe‑
cer. Nunca falamos de literatura – embora seja possível falar de livros, dos seus livros
enquanto objectos‑livro (o livro na sua singularidade, as edições, o aspecto exterior,
incluindo papel, mancha, tipo de letra, peripécias e mal‑entendidos da produção).
Assim, permanece atento ao lado sensorial das novas edições da Lavoura, incluindo
o seu aspecto gráfico e o seu destino. E torna‑se evidente que não se afastou emoti‑
vamente da literatura, que há‑de ter sido, e deve permanecer, a fibra central da sua
vida. Afastou‑se, sim, da sua obra criativa, como os dei otiosi da história das religiões
se distanciam dos mundos que criaram, sem desistirem de os observar do alto. E
recordo‑me de uma vez ter assistido em sua casa à projecção de uma película, então
ainda em fase experimental, sobre a Lavoura, e de ter permanecido toda a tarde e
uma parte da noite a conversar sobre o filme, com ele e com os raros convidados.
26 Raduan e o arcaísmo da lavoura
Este projecto perfaz o seu sonho de multiplicar os recursos num país de escassez.
Contou‑me um dia quanto rejubilou ao ver chegar ao cais do famoso mercado Ver
o Peso, em Belém do Pará, os alimentos abundantes extraídos da Amazónia, os pei‑
xes gigantescos, os frutos inúmeros que davam, disse, para alimentar as multidões
de brasileiros. Nós próprios, a Gilda e eu, presenciámos esse espectáculo, numa
noite inesquecível: os barcos saíam das névoas do rio, carregados desses frutos da
água e da floresta, que iam inundando as praças do mercado; os homens corriam
em todas as direcções, a transportar e a arrumar o que vinha do rio; enquanto os
abutres, alinhados às centenas sobre os telhados, aguardavam imóveis o nascer do
dia, para se regalarem com o butim quando os restos juncassem o chão.
qualquer retorno lhe é insuportável. E eis que leio agora o texto de uma entrevista
recente que contém uma confissão: “Nassar – escreve o entrevistador – passou um
ano no seu apartamento de São Paulo a trabalhar doze horas por dia no seu livro,
e a chorar todo o tempo. E acrescentou: Digo às pessoas que já não leio mais, mas
elas nunca me acreditam” (Chacoff, 2017). Ou, para regressar ao romance, “corre‑
mos graves riscos quando falamos” (p. 169).
Nunca me conformei com o silêncio literário de Raduan. Uma coisa é saber‑se algo,
outra é acreditar. Por isso, sabendo embora que arredava os livros em geral, e os ofere‑
cidos em particular, arrumando‑os e exilando‑os depois de agradecer a oferta, nunca
desisti de lhe oferecer os meus volumes que foram aparecendo pelo Brasil. Agora, ao
regressar ao seu romance, com um entendimento mais claro deste homem, desta
escrita e das suas raízes, compreendo a afirmação nele contida, atribuída a André, o
protagonista, e que revejo em Raduan: “ao contrário do que se pensa, sei muito sobre
rebanhos e plantações, mas guardo só comigo toda essa ciência primordial” (p. 127).
Mas há uma zona de sigilo e sombra que convém à poesia e à literatura, e não deve
ser desvendada; ou, conforme a um verso órfico, “há um momento em que devem
cessar os nossos cânticos”.
Bibliografia
Chacoff, Alejandro (2017), “Why Brazil’s greatest writer stopped writing?”, The New Yorker, 21,
disponível em: https://www.newyorker.com/culture/persons‑of‑interest/why‑brazils
‑greatest‑writer‑stopped‑writing (consultado a 04/04/2019).
Cunha, Celso & Lindley Cintra (1986), Nova gramática do português contemporâneo, Lisboa,
João Sá da Costa.
Nassar, Raduan (2016), Obra completa, São Paulo, Companhia das Letras.
Raduan Nassar:
a (in)felicidade pela literatura ou pela
agricultura (e pecuária)
Arnaldo Saraiva
Universidade do Porto
Por um lado, não havia nesse livro nenhuma das fragilidades discursivas ou estilís‑
ticas típicas de livros de estreia; por outro lado, ele não fazia concessões a moder‑
nices, a linearidades ou a clichés linguísticos, ideológicos e narrativos comuns ao
romance urbano, social, político ou erótico então em voga no Brasil, projetando até
os seus personagens para um espaço rural e para um tempo antigo sugerido pelo
título (que logo se veria que podia implicar também a terra inteira e a história da
humanidade) e revelando, no tratamento da linguagem como no das emoções, um
empenho radical idêntico ao que revelara, poucos anos antes, o romance e o conto
clariceano; por outro lado ainda, tratava‑se de um texto escrito num português
admirável, admirável pelo seu léxico exuberante, minucioso e preciso, pela soli‑
dez da sua por vezes enredada sintaxe, pela envolvência dos seus variados ritmos,
pelas suas reverberações poéticas (que até podiam valer‑se de citações de Novalis,
Walt Whitman e Jorge de Lima), pelo fôlego comedido das suas enumerações e
anáforas, pelas suas elipses subtilíssimas, pelo seu vigoroso metaforismo.
30 Raduan Nassar: a (in)felicidade pela literatura ou pela agricultura (e pecuária)
Nessa altura nem sabia que os pais de Raduan eram emigrantes libaneses, mas
quando o soube não fiquei admirado; é por demais notória a dedicação à língua
portuguesa da parte de alguns que nasceram de pais que a não falavam, fosse a
ucraniana Clarice, o judeu polaco Samuel Rawet, o dinamarquês Per Johns, ou o
libanês de origem Salim Miguel, que com a sua revista Sul serviu a lusofonia antes
de se falar em lusofonia (e que nos deixou, com escandaloso silêncio geral, há
pouco tempo). Mas não podemos esquecer outros filhos de libaneses, como o filó‑
logo e dicionarista António Houaiss e o romancista Milton Hatoun, ou os netos de
sírio‑libaneses Mário Chamie e Carlos Nejar. Esqueçamos, isso sim, o péssimo poeta
também filho de libaneses Michel Temer, que viria a ocupar a presidência do Brasil,
para tristeza ou ofensa de muitos brasileiros, entre os quais está Raduan Nassar.
Na escassa literatura deste não há nenhum conflito entre as culturas da sua origem
árabe e da sua formação cristã, “coroinha” que até foi. Pode mesmo haver conver‑
gência se atendemos às referências que implicam as tradições milenares, a família
patriarcal, o corpo individual ou relacional, as imposições e os interditos explíci‑
tos ou implícitos. Não por acaso, Lavoura Arcaica até contém, dentro da parábola
bíblica do filho pródigo, a parábola do faminto das Mil e uma Noites. Só que em
ambos os casos estamos perante parábolas desconstruídas ou distorcidas, a moral
codificada que se retirava da parábola é claramente desmoralizada. E o que fica
dessas e de outras parábolas ou alegorias que são como regra os textos de Raduan
é apenas a figuração de uma tensão e de um conflito insanável, na “casa velha” ou
na “casa nova”, entre o indivíduo e a família ou a sociedade, entre o atual e o tradi‑
cional, entre a liberdade e a escravidão (ou a “manipulação” a que alude o conto “O
ventre seco”), entre o poder (político, económico, erótico, ou outro) e a submissão
ou rebelião (que pode levar ao sado‑masoquismo de Um Copo de Cólera, traduzido
como em nenhuma outra obra de língua portuguesa), ou entre o pensamento e o
sentimento.
Uma obra como a de Raduan Nassar, tão breve, tão substancial e tão clássica (de
primeira classe), obriga‑nos a pensar no lugar que ela e o seu autor concedem
à literatura. E a resposta parece clara em ambos os casos: ela não passa de uma
efémera mesmo se brilhante evasão intervalar, ou de um “lamento”. A literatura
não salva nada, salvo a si mesma. Não parece mais importante ou nobre do que a
lavoura antiga e moderna ou do que a criação de coelhos e galinhas. E uma página
literária, de alta semiologia, não é necessariamente mais valiosa do que um pros‑
peto sobre sementes. Assim, a (in)felicidade pela literatura é tão viável como a (in)
felicidade pela agricultura (e pela pecuária).
Clara Rowland
Universidade Nova de Lisboa
Instituto de Estudos de Literatura e Tradição (NOVA FCSH)
Voz
Numa sequência da primeira parte do filme Lavoura Arcaica, de Luiz Fernando
Carvalho (2001), durante a conversa entre as personagens André e Pedro no quarto
da pensão onde o primeiro se refugiou, ouvimos a voz de André em off, sobre um
plano dos dois irmãos imóveis, dizendo: “não se constranja, meu irmão, encontre logo
a voz solene que você procura, (...), pergunte sem demora o que acontece comigo
desde sempre, (...), me desconforme depressa a cara, me quebre contra os olhos a
velha louça lá de casa”. Parece ser a mesma voz que, também em off, tinha, nos planos
anteriores, narrado sobre imagens da infância as rememorações de André, num filme
que faz das variações em torno das várias vozes e da voz narrativa um dos elementos
principais da articulação com o texto literário. Não é, porém, a mesma voz – Daney,
a propósito de Bresson (Daney, 2015: 99‑100), recordava que há, no cinema, diversas
maneiras de estar “off” – porque em nenhum outro momento do filme a voz fora de
campo se dirige a uma personagem presente em campo sem intersectar, de algum
modo, a imagem, e sem, ao mesmo tempo, enfraquecer a estrutura da destinação
que mantém o discurso directo à margem da imagem.
34 Ímpeto e atropelo: ficção da palavra em Raduan Nassar
e foram seus olhos plenos de luz em cima de mim, não tenho dúvida, que me fizeram
envenenado, e foi uma onda curta e quieta que me ameaçou de perto, me levando
impulsivo quase a incitá‑lo num grito “não se constranja, meu irmão, encontre logo
a voz solene que você procura, uma voz potente de reprimenda, pergunte sem
demora o que acontece comigo desde sempre, componha gestos, me desconforme
depressa a cara, me quebre contra os olhos a velha louça lá de casa”, mas me contive,
achando que exortá‑lo, além de inútil, seria uma tolice, e, sem dar por isso, caí pen‑
sando nos seus olhos, nos olhos de minha mãe nas horas mais silenciosas da tarde
(Nassar, 1999: 17).
Não é a primeira vez que um “grito impulsivo” acontece no texto de Lavoura Arcaica
sem ser pronunciado. Na página anterior, André, num deslize, pensa em perguntar
por Ana, refreando‑se: “escorreguei e quase perguntei por Ana, mas isso foi só um
ímpeto cheio de atropelos”, para logo acrescentar “eu poderia isto sim era pergun‑
tar como ele pôde chegar até minha pensão, me descobrindo no casario antigo, ou
ainda, de um jeito ingénuo, procurar conhecer o motivo da sua vinda, mas eu nem
sequer estava pensando nessas coisas” (Idem: 16). Do mesmo modo, pouco depois,
afirma: “ ‘essas coisas nunca suspeitadas nos limites da nossa casa’ eu quase deixei
escapar, mas ainda uma vez achei que teria sido inútil dizer qualquer coisa, na ver‑
dade eu me sentia incapaz de dizer fosse o que fosse” (Idem: 28). Toda a primeira
parte do romance é atravessada por esta estrutura: hipóteses de elocução são for‑
muladas, inscritas no texto, entre aspas, e explicitamente recusadas, ou porque
desviadas para outras possibilidades, ou porque invalidadas pelo próprio narrador,
tanto por censura como por correcção. No lugar delas, o silêncio é mantido, ou
outras coisas são ditas. O mesmo acontece, aliás, ao longo de “O Esporro”, explosão
central de Um Copo de Cólera, em vários momentos. Destaco apenas este:
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 35
não que ela não fosse inteligente, sem dúvida que era, mas não o bastante, só o sufi‑
ciente, e eu poderia atrevido largar às soltas o raciocínio, espremendo até ao bagaço o
grão do seu sarcasmo, mas eu não falei nada, não disse um isto, tranquei minha pala‑
vra, ela não teve o bastante, só o suficiente, eu pensava (Nassar, 1992: 35).
É um exemplo entre muitos da novela breve. E tal como nos primeiros casos que
destaquei, o que se acentua aqui é não apenas a virtualidade daquilo que se afirma
como hipótese de discurso, a que já regressarei, mas é também a construção de
uma situação intervalar: nestes períodos longos, efeitos de circularidade desta‑
cam e isolam, frequentemente, os momentos que estou a identificar. No primeiro
exemplo de Lavoura Arcaica, é a referência aos olhos “plenos de luz” de Pedro
(Nassar, 1999:17) que se reconfigura na memória dos olhos da mãe (“caí pensando
nos seus olhos”) poucas linhas depois da incitação censurada. No exemplo de Um
Copo de Cólera, é o refrão sobre o bastante e o suficiente a emoldurar a hipótese de
discurso no interior de uma repetição. O resultado é o reforço do estado de suspen‑
são em que se encontra já o discurso entre aspas ou descrito como virtual. Porque
o que estes exemplos constróem – e, volto a repeti‑lo, são justamente exemplos,
casos exemplares de um modo discursivo generalizado nestes romances – é um
discurso inteiramente assente sobre a figura da preterição ou paralipse: um dis‑
curso em estado intervalar, que se descreve como não dizendo o que, entretanto,
diz. E que, feito de frases censuradas, descartadas, abandonadas, impronunciadas,
configura‑se paradoxalmente em jorro, esporro, transe, delírio, ou seja num fluxo
verbal que se sugere colérico, incontido e incontrolável. É então sobre esta apa‑
rente contradição entre cólera e paralipse, tão significativa numa obra que se pro‑
longa, hoje, na figura do escritor que regressa para dizer que nada mais dirá, que
gostaria de reflectir aqui.
Jorro e silêncio
1
Reproduzo a nota na íntegra: “Um copo de cólera”, escrito em 70 e inédito até aqui, é agora publicado
em sua segunda versão. Mais precisamente, foi ampliado o sexto quadro (O esporro), em relação à versão
original. Além disso, o autor enxertou no texto versos de Jorge de Lima (“queima‑me, língua de fogo”,
“transforma‑me em tuas brasas” e “fogo (espírito) violento e dulcíssimo”, todos de “Espírito Paráclito”);
versos também de Fernando Pessoa (“caiam cidades, sofram povos, cesse a liberdade e a vida”, “quando
o rei de marfim está em perigo, que importam a carne e o osso das irmãs e das mães e das crianças?” e
“nada (pouco) pesa na alma que lá longe estejam morrendo filhos”, todos de “Ouvi contar que outrora,
quando a Pérsia”); o autor parafraseou ainda uma pequena passagem de “O artista quando jovem”, de
James Joyce (“sabe qual é a minha opinião a teu respeito, comparada comigo mesmo?” ...“essa é a única
diferença, apenas essa”) (Nassar, 1978: 83‑84).
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 37
Para tornar mais clara esta contradição, vejamos por um momento a estrutura
“expandida” de Um Copo de Cólera. A novela é curta, e nas edições subsequentes à
primeira desprovida de elementos paratextuais. Dos sete capítulos, cerca de vinte
páginas estão distribuídas por seis, e cinquenta páginas estão concentradas no
longo capítulo “O Esporro”, que se configura, à semelhança do delírio de André na
primeira metade de Lavoura Arcaica, como torrente de palavras, “discurso hemorrá‑
gico” – esporro, justamente. No entanto, à diferença do romance, a forma da novela
assenta inteiramente na unidade desse capítulo que, não sendo central, se apre‑
senta como um centro potencialmente ilimitado, desmesurado e recortado pelos
restantes capítulos que assumem a função de moldura: não preparam, justificam
ou antecipam a explosão – que tem a sua fonte na descoberta das formigas, logo
na abertura do capítulo 6 –, antes a destacam e fazem ressaltar contra, por um
lado, a brevidade do resto do livro, e contra a circularidade imposta pela repetição
especular entre primeiro e último capítulo. A sugestão de uma implosão da forma
da novela, de um desvio irrecuperável no seu desenho inicial, é ao mesmo tempo
criada e desmentida por uma moldura que, isolando a explosão, lhe dá forma e
limite.
ser forjada, enquanto que, para o homem, é de um espectáculo sem plateia que
se trata. Nisto, o narrador amplia os efeitos da cólera sobre a forma: se toda a crise
se constrói em torno da destinação desviada da cólera (“alguém tinha que pagar”,
Nassar, 1992: 43), ou seja em torno do modo como o impulso colérico transita de
pessoa para pessoa (das formigas para a mulher para a caseira para o caseiro para
a mulher que tem o tamanho de uma formiga), o gesto fundamental da novela é
transformar toda a acção num palco sem exterior. Contra o esforço da mulher, que
supostamente construiria nos caseiros o seu público, o narrador, que “precisava
mais do que nunca – para atuar – dos gritos secundários de uma atriz” mas “não
queria balidos de plateia” (Idem: 43), vai “puxar para o palco quem estiver ao seu
alcance” (Idem: 36), dirigindo o discurso colérico para todos os presentes, destina‑
tários do impulso verbal. A novela é, então, o teatro da cólera, nesse gesto acen‑
tuando a importância da destinação: no final da novela, esvaziada a cena, “ator em
carne viva, em absoluta solidão – sem plateia, sem palco, sem luzes, debaixo de um
sol já glorioso e indiferente” (Idem: 79), a cólera anula‑se a si própria, já sem objecto,
instaurando por fim o silêncio – palco que devora a plateia, dentro sem fora, encon‑
tra na moldura o seu limite e anulação.
É tentador associar esta delimitação entre cólera e silêncio que marca o fim do
teatro intervalar de Um Copo de Cólera ao fim da escrita. Como afirma Abel Barros
Baptista: “o abandono permite marcar com o silêncio subsequente um limite que
assinale à palavra colérica esse traço indispensável, porque distintivo: a brevidade”
(Baptista, 2003: 236).
Cólera e intervalo
que comecei por descrever. Porque, num sentido muito preciso, o silêncio subse‑
quente à cólera não pode ser desvinculado do silêncio como possibilidade lançada
sobre o discurso pela negação da paralipse: em última análise, na obra de Raduan –
obra ainda em curso, neste sentido – seria sempre possível, ao mesmo tempo, falar
e não falar. Veja‑se, em Um Copo de Cólera, o arranque da discussão: no regresso do
extermínio das formigas, o narrador encontra a namorada e a caseira separadas,
depois de as ter visto a conversar. Interpelado pela namorada, o narrador percorre,
no seu discurso, ao longo da página, inúmeras hipóteses de resposta, todas afi‑
nal não pronunciadas (“e muitas outras coisas eu poderia contrapor ainda à sua
glosa”), decidido a “trancar” a palavra, a não dizer nada, até que vê dona Mariana,
pergunta por seu Antônio, constrói três hipóteses de resposta (“mais cuidadosa, a
dona Mariana podia inclusive justificar”; “e ela ainda, numa das suas tiradas, podia
até dizer de um jeito asceta”; “e nem que ela tivesse de dizer”, Nassar, 1992: 37)
antes de explodir assim que a caseira abre a boca para falar – sem portanto chegar
a dizer nada – ao fim de dez páginas deste jogo. Ou considere‑se, de forma atenta,
o “delírio” de André perante o irmão em Lavora Arcaica: no final do terceiro capítulo,
quando sente os primeiros sinais da crise, ocorre a André “aproveitar um resto de
embriaguez que não se deixara espantar com a sua chegada para confessar, quem
sabe piedosamente, ‘é o meu delírio, Pedro, é o meu delírio, se você quer saber’”
(Nassar, 1999: 18). A frase, porém, só será pronunciada no final do capítulo sete,
perante a primeira explosão de André (que pela primeira vez fala, desde a aber‑
tura). Pouco antes, lemos: “afinal, que importância tinha ainda dizer as coisas? O
mundo para mim já estava desvestido, bastava tão só puxar o fôlego do fundo dos
pulmões...” (Idem: 47).
as malditas insetas me tinham entrado por tudo quanto era olheiro, pela vista, pelas
narinas, pelas orelhas, pelo buraco das orelhas especialmente! e alguém tinha de
40 Ímpeto e atropelo: ficção da palavra em Raduan Nassar
pagar, alguém tem sempre de pagar queira ou não, era esse um dos axiomas da vida,
era esse o suporte espontâneo da cólera” (Nassar, 1992: 43).
Paralipse
A paralipse como mecanismo básico dessa tensão deve e não deve inscrever‑se
nesta lógica, precisamente porque a representa e, ao mesmo tempo, a põe em
causa. Pelo menos de três modos, que gostaria de resumir, aproximando‑me da
conclusão desta proposta de leitura:
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 41
2. Por outro lado, porém, a paralipse é aqui uma palavra dupla: diz o que não se
disse, mas não o diz àquele com quem não se falou. A distorção da paralipse
é constante ao longo destes textos, e tem o seu melhor exemplo na despe‑
dida entre André e a mãe, no capítulo onze de Lavoura Arcaica: a ladainha das
negações intensifica‑se, hipóteses de elocução sobrepõem‑se sem que sejam
formuladas, e nenhum dos dois diz nada. Mas é a Pedro que André conta tudo
isso, é a Pedro que as frases em discurso directo são reportadas – citações
impossíveis de um discurso impronunciado. Do mesmo modo, não é Pedro,
e sim o leitor, quem tem acesso à paralipse do discurso que lhe é dirigido. No
filme de Luiz Fernando Carvalho que comecei por referir, a primeira referência
censurada a Ana é representada por um gesto de André ao espelho: lenta‑
mente, começa a escrever as letras que formam o nome da irmã, para as apa‑
gar antes que sejam vistas por Pedro. É uma representação precisa do efeito
desta paralipse: marca irónica da cena de escrita e de leitura que o discurso
oral, teatralizado, parece submergir. Em rigor, a paralipse suspende o teatro da
cólera, desviando o discurso da sua dramatização e destinação, e englobando,
no mesmo gesto, o público assim interpelado no espaço do palco.
que começam por para” (paralipse e parábase, por exemplo), estas não só
estão simultaneamente dos dois lados da linha de separação entre o dentro e
fora, mas também são a própria linha, ligando interior e exterior e permitindo
a saída de um e a entrada do outro, confundindo‑os2. Se a palavra, negada e
represada, encontra sempre, nestes textos, a sua violenta enunciação, não o
é, por força da paralipse, enquanto expressão violenta da cólera, domínio da
palavra dita sobre a impossibilidade de dizer. A palavra que explode, violenta,
queimando, sobre a estrutura de negação que a continha, é já uma palavra
anulada, contrariada, também ela apenas hipótese, possibilidade entre outras,
errata e exemplo de um modo de dizer (“e me ocorreu também que eu pode‑
ria exortá‑lo (...), dizendo, por exemplo,” (Nassar, 1999: 76). O excesso, mais
uma vez, gera uma sensação de insuficiência – o silêncio que se segue à cólera
parece devolvê‑la, apenas, ao silêncio que já trazia inscrito. Como se diz em
Um Copo de Cólera: “que culpa tinham as palavras? existiam, isto sim, eram
soluções imprestáveis” (Nassar, 1992: 52).
Bibliografia
Baptista, Abel Barros (2003), “A lavoura e a fome”, in Coligação de Avulsos. Ensaios de Crítica
Literária, Lisboa, Cotovia, pp. 235‑240.
Cadernos de Literatura Brasileira nº 2. Raduan Nassar (1996), Rio de Janeiro, Instituto Moreira
Salles.
2
“If words in “para” are one branch of the labyrinth of words in “per”, the branch is itself a miniature
labyrinth. “Para” is a double antithetical prefix signifying at once proximity and distance, similarity and
difference, interiority and exteriority, something inside a domestic economy and at the same time
outside it, something simultaneously this side of a boundary line, threshold, or margin, and also beyond
it, equivalent in status and also secondary or subsidiary, submissive, as of guest to host, slave to master.
A thing in “para”, moreover, is not only simultaneously on both sides of the boundary line between
inside and out. It is also the boundary itself, the screen which is a permeable membrane connecting
inside and outside. It confuses them with one another, allowing the outside in, making the inside out,
dividing them and joining them. It also forms an ambiguous transition between one and the other”
(Miller 2004: 179).
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 43
Chacoff, Alejandro (2017), “Why Brazil’s greatest writer stopped writing?”, New Yorker,
21/01/2017.
Daney, Serge (2015), “O órgão e o aspirador (Bresson, o diabo, a voz off e mais algumas)”, in
Clara Rowland, Francisco Frazão e Susana Nascimento Duarte (eds.), O Cinema que Faz
Escrever: textos críticos, Coimbra, Angelus Novus, pp. 91‑106.
Lemos, Masé (2012), “Lavoura Arcaica ou o trabalho da origem”, in Ana Chiara e Fátima
Cristina Dias Rocha (eds.), Literatura Brasileira em Foco V. Realismos, Rio de Janeiro, Casa
Doze, 2012, pp. 186‑199.
Miller, J. Hillis (2004), “The Critic as Host”, in Harold Bloom et al. (edd.), Deconstruction and
Criticism, Londres & Nova Iorque, Continuum, 2004, pp. 177‑204.
Nassar, Raduan (1978), Um Copo de Cólera, 1ª edição, São Paulo, Livraria Cultura.
Nassar, Raduan (1992), Um Copo de Cólera, 5ª edição, São Paulo, Companhia das Letras.
Literatura e utopia:
Raduan Nassar, o belo e o bom.
Em Mãozinhas de seda, Raduan Nassar escreve: “Cultivei por muito tempo uma
convicção: a maior aventura humana é dizer o que se pensa” (Nassar, 2016, p. 353).
Em Lavoura arcaica lê‑se: “mas que doce amargura dizer as coisas” (Nassar, idem,
p. 54).
1
http://www.lagoadosino.ufscar.br/resolveuid/8bec3a76fa4748498c243be75e86d3b0
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 47
tirava as meias e com os pés brancos e limpos ia afastando as folhas secas e alcan‑
çando abaixo delas a camada de espesso húmus, e a minha vontade incontida era de
cavar o chão com as próprias unhas e nessa cova me deitar à superfície e me cobrir
inteiro de terra úmida” (Nassar, idem, p. 34).
Ou: “pés descalços (…) úmidos como se tivessem sido arrancados à terra naquele
instante” (Nassar, idem, p. 11) ; os pés e “seu jeito tímido de raiz tenra.” (Nassar, idem,
p. 12). Ou ainda, a respeito da irmã amada de Lavoura, “meus olhos cheios de amar‑
gura não desgrudavam de minha irmã que tinha as plantas dos pés em fogo impri‑
mindo marcas que queimavam dentro de mim…” (Nassar, idem, p. 35).
proporção que existia entre os babacas dos intelectuais, vindo pois da enfermidade
– e só daí – a força amarga do pensamento independente” (Nassar, idem, p 36, grifo
meu). Ou ainda, na mesma novela, “fazendo coincidir, necessariamente, enfermi‑
dade e soberania “pra julgar o que digo e o que faço” (Nassar, idem, p. 41).
Na novela Um copo de cólera, escrita três anos antes da criação de Lavoura, mas
publicada posteriormente, vicejam inspiradas imagens provindas do mundo ani‑
mal. Nas cenas amorosas, por exemplo, o narrador se vê transformado em bicho:
“eu cavalo só precisava naquele instante dum tiro de partida” (Nassar, idem,
p. 232); “forjei uma víbora no músculo viscoso da língua” (Nassar, idem, p. 267);
“fosse quando eu em transe, e já soberbamente soerguido da sela do seu ventre”
(Nassar, idem, p. 211), ou, “as penas todas do corpo mobilizadas” (Nassar, idem,
p. 267), ou o reduzido tempo de reação “da tartaruga livre e desenvolta” (Nassar,
idem, p. 272).
Numa entrevista, Raduan Nassar narra que ao escrever essa novela ria‑se às gar‑
galhadas (em contraste com Lavoura, que segundo ele resultou de nove meses de
trabalho durante dez horas por dia, e em meio a um constante caudal de lágrimas),
o que nos faz pensar em Um copo de cólera como pastoral satírica, um epitalâmio
às avessas, ou mesmo uma caricatura das Bucólicas, de Virgílio. O ligustro, arbusto
ornamental, cuja cerca‑viva devorada num certo ponto pelas formigas desen‑
cadeia a cólera furibunda do narrador, é uma das espécies vegetais citadas por
Virgílio em seu livro clássico.
formigas tão ordeiras, puto com sua exemplar eficiência, puto com essa organi‑
zação de merda que deixava as pragas de lado e me consumia o ligustro da cerca
viva” (Nassar, idem, p. 228).
A mítica Arcádia, as justas entre pastores nas Bucólicas, suas paixões às vezes fatais
por seres de um ou outro sexo, as cruéis rivalidades entre poetas, com a presença
forte do mundo animal e vegetal, são transformadas por Raduan num cenário para
‑urbano, diluidamente rural, ‑ “minha casa lá no 27” (Nassar, idem, p. 205) se refere
ao km 27 de alguma estrada da periferia da megalópolis – para o desenvolvimento
de um embate dialogado e crescentemente violento entre um macho “remoto e
frágil” (Nassar, idem, p. 201, epígrafe ), um narciso “fascistão!” (Nassar, idem, p. 262)
de convicções patriarcais, e uma jovem pastora de ideias progressistas e sexuali‑
dade liberada. Embora a construção do protagonista masculino seja impiedosa,
bem cabendo à personagem a designação de porco chauvinista, é curioso que o
autor ilustre com as próprias idiossincrasias as falas do brutal e misantrópico macho
dominador. A jovem e libidinosa “femeazinha livre”, jornalista na cidade grande,
tem falas altivas, embora caricaturalmente ideologizadas, em defesa de sua crença
na possível redenção da humanidade. Tanto pode ser percebida como vítima como
heroína dessa inquietante comédia em torno da guerra dos sexos.
Cito nessa matéria as falas das páginas 47 e 48: “a força escrota da autoridade
necessariamente fundamenta toda ‘ordem’, palavra por sinal sagaz que incor‑
pora, a um só tempo, a insuportável voz de comando e o presumível lugar das
coisas” ao que responde a mulher: “força bruta sem rodeios, sem lei que legi‑
time” (Nassar, idem); e ainda a invectiva: “seu gorila” (assim eram chamados os
50 Literatura e utopia: Raduan Nassar, o belo e o bom.
militares no poder). Ao que sucede a réplica do homem: “ao contrário dos bons
samaritanos, não amo o próximo, nem sei o que é isso, não gosto de gente, etc.”
(Nassar, idem), que faz lembrar a famosa declaração do Presidente Figueiredo,
último do período ditatorial: “Prefiro cheiro de cavalo do que cheiro de povo”
(sic).
Seria admissível pensar que a crença na Utopia social, para Raduan, represente
uma continuação metamorfoseada da sua religiosidade juvenil? Em contraste
com o caso de Arthur Rimbaud, gênio que precocemente “pendurou a flauta
no pinheiro sagrado” e que na primeira juventude chegou a redigir um projeto
de Constituição Comunista (Le Monde, 2017), Raduan manteve a capacidade de
acreditar num possível aprimoramento humano, apesar das dúvidas e reticências
que o seu poderoso intelecto lhe possam suscitar. O desenvolvimento e poste‑
rior doação ao Estado da fazenda Lagoa do Sino é mais uma obra no currículo
do escritor/utopista Raduan Nassar, segundo a nossa tese. Contou‑me ele uma
vez, com uma de suas gargalhadas jupiterianas, ter reservado para si uma micro
‑fazenda ao lado da grande que doou, para melhor fiscalizar os usos que dela
farão as autoridades universitárias. Sabe‑se também que presenteou o capa‑
taz que trabalhou por trinta anos na Lagoa do Sino com boas terras para o seu
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 51
Cito, para concluir esse tema, trecho de um ensaio publicado no volume Obra
completa de Raduan Nassar, comemorativo do 30º aniversário da Companhia das
Letras, A corrente do esforço humano:
Penso mesmo que não existe nada mais belo e comovente que perseguir utopias.
Só que não será fácil resistir à crença, como não se resiste a uma paixão, de que, em
certo sentido, o homem é uma obra acabada, marcado não só pela experiência pas‑
sada, mas marcado sobretudo – e definitivamente – pela sua dependência absoluta
de valores, coluna vertebral de toda ‘ordem’, e encarnação por excelência das rela‑
ções de poder. Incapaz de dispensá‑los ao tentar organizar‑se, é este o seu estigma;
sempre às voltas com valores, vive aí sua grande aventura, mas também sua prisão
(Nassar, idem, p. 417).
Foi no ano de l974 que Raduan Nassar foi trazido à sede carioca da Editora José
Olympio pela mão de Antonio Olavo Pereira, romancista ele próprio e irmão do
fundador da casa editorial mais importante no país, até então, no campo da litera‑
tura brasileira.
A editora apresentava‑se como uma empresa familiar com fortes traços patriarcais.
O fundador, deus agora otiosus, José Olympio Pereira, retirara‑se do comando da
Casa, como a denominava orgulhosamente, e passara a gestão ao filho, Geraldo
Jordão Pereira. Por aquela editora, a partir de sua fundação em 1931, e culminando
nas décadas de 50, 60 e 70 do século 20, foram publicados os livros dos grandes vul‑
tos da prosa, da poesia, da ensaística e da sociologia brasileira. (Sérgio Buarque de
Holanda, José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, Guimarães Rosa, Carlos Drummond
de Andrade, Manuel Bandeira, Jorge Amado, Pedro Nava, João Cabral de Mello
Neto, Gilberto Freyre, Antonio Carlos Villaça e um longo etc.), a elite, enfim, da cria‑
ção cultural brasileira. Eclético, habilíssimo na condução de seus contactos sociais
52 Literatura e utopia: Raduan Nassar, o belo e o bom.
Para minha surpresa, percebi que a qualidade literária das obras a serem consi‑
deradas era a menor preocupação daqueles ilustres conselheiros. Os originais, ou
as reedições candidatas a publicação, eram avaliados exclusivamente a partir das
perspectivas de venda de cada um ou da força política ou social dos seus padri‑
nhos fora da editora. Mesmo assim, eu contava com um módico orçamento para
remunerar relatórios de leitura sobre originais inéditos.
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 53
Uma tarde, recebi um telefonema de Antonio Olavo. De algum modo, ele perce‑
bera em mim um viés literário. Queria recomendar‑me expressamente a leitura
dos originais de um escritor paulista até então inédito. Na próxima reunião me
entregaria o pacote e pedia que eu fosse rápida na leitura. Assim o fez e, como
costumava, levei eu para casa os originais por ele tão veementemente recomen‑
dados. E lembro ainda com absoluta clareza o espanto, o encantamento, o cho‑
que ao descobrir a voz possante, o caudal narrativo que inaugurava uma prodi‑
giosa fala que possuía a imediatez emocional da música e que mais tarde seria
conhecida mundo afora. Eram os originais datilografados de Lavoura Arcaica que
eu tinha em mãos.
Quero lembrar ainda outro episódio marcante. Em 2001, Raduan nos chamou,
a António e a mim, para assistir com ele na casa de Perdizes o copião do filme
Lavoura Arcaica, do diretor carioca Luiz Fernando Carvalho. Pudemos perceber,
durante as quase quatro horas de projeção (o filme seria depois reduzido), o
54 Literatura e utopia: Raduan Nassar, o belo e o bom.
prodigioso tino artístico do nosso amigo, ao sinalizar, com rigor artesanal abso‑
luto, os cortes que ainda deveriam ser feitos para que o filme se tornasse – como
aconteceu – também ele uma obra prima. O diretor, para preparar as filmagens,
internara‑se com todo o elenco durante três meses numa fazenda no interior
de Minas Gerais, onde os atores aprenderam a executar as atividades agrícolas
exibidas no filme e a atriz principal tomou lições de dança para encarnar Ana,
a irmã‑amada. O próprio Raduan, conhecido por sua aversão a viagens, não se
furtou a ir à fazenda supervisionar os trabalhos. Dessa forma, só aparentemente
afastado da literatura, e de fato socialmente recluso, vendo e recebendo apenas
amigos íntimos e a família, Raduan não deixou jamais de pastorear os destinos de
sua obra, hoje aclamada no Brasil e no mundo ocidental e merecedora do maior
galardão da lusofonia.
Para terminar, quero retomar uma confidência que me fez Raduan há muitos anos.
Revelou‑me que a responsável pelo enamoramento do adolescente pela língua e
literatura em português era a sua irmã Rosa, professora do ginásio em Catanduva,
onde residia a família. Licenciada em letras clássicas pela USP, helenista premiada,
fora ela a abrir os olhos e os ouvidos do irmão mais jovem para o idioma de Camões.
Pedi a Raduan que me mandasse algum depoimento sobre Rosa Nassar Martins,
tendo recebido em seu lugar o testemunho de uma de suas discípulas, Sylvia Jorge
de Almeida Martins, também ela professora de português. Sobre Rosa, transcrevo
o que escreve Sylvia:
Altiva, rápida, erecta, ela entrava na sala… e seus olhos profundos nos encara‑
vam firmes e enérgicos. Assinalava na lousa algumas das principais ideias que
nos expunha sobre a lígua portuguesa. Sua aula era viva, cativante, fluente. A voz
grave, vibrante, num tom caloroso, contava de outros mundos, de outra gente,
de irmãos de idioma, da cantada força lusitana, do gigantesco berço brasileiro a
aconchegar o linguajar português. (…) E tínhamos de ler, e de saber, e de escrever
e de provar!… Canto hoje a força dentro de mim erguida pelo seu trabalho, Rosa
Nassar (Martins, 2017).
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 55
Bibliografia
Bachmann, Ingeborg (1978), “Der Fall Franza”, Werke Dritter Band, Munique, Piper Verlag.
Nassar, Raduan (2016), Raduan Nassar. Obra completa, São Paulo, Companhia das Letras.
56 Literatura e utopia: Raduan Nassar, o belo e o bom.
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 57
A estética do bagaço.
O génio intranquilo e as suas promessas
de abundância debaixo da peneira
Robert Browning
«Andrea del Sarto, called ‘the faultless painter’»
Lede além
do que existe
na impressão.
E daquilo
que está aquém
da expressão.
Jorge de Lima
«Canto VII: Audição de Orfeu»
58 A estética do bagaço. O génio intranquilo e as suas promessas de abundância debaixo da peneira
ii. em segundo lugar, por ter ousado trocar a prática e a criação literárias pela
actividade agrícola, optando assim por viver as Geórgicas ao invés de as ler,
ou melhor, por viver a Lavoura ao invés de a escrever (nos termos do seu que‑
rido Jorge de Lima, «Os bois e os versos indo fluentemente, / ruminações de
tempo, de bagaços»; Lima, 1958: 826);
1
Lê‑se aliás em Lavoura Arcaica, numa passagem de interpretação programática: «‑ Já disse que
não acredito na discussão dos meus problemas, estou convencido também de que é muito perigoso
quebrar a intimidade, a larva só me parece sábia enquanto se guarda no seu núcleo, e não descubro
de onde tira a sua força quando rompe a resistência do casulo; contorce‑se com certeza, passa por
metamorfoses, e tanto esforço só para expor ao mundo sua fragilidade» (Nassar, 2016: 168).
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 59
detectar as matrizes líricas de textos nos quais a prosa tem no ritmo o seu fac‑
tor mais estruturante (penso, muito em particular, no caso Um Copo de Cólera);
por outro lado, porém, qualquer leitor atento terá ainda condições de compre
ender que o facto de a totalidade da obra coincidir com a sua própria súmula
(cerca de 400 pequenas páginas muito bem respiradas, na recente edição da
Companhia das Letras) deriva de um entendimento muito específico por parte
do Autor da natureza singular das relações entre vita activa e vita contempla‑
tiva, ou entre tempo e duração, que cedo enunciou na primeira obra publicada,
Lavoura Arcaica, onde se pode ler em registo de arte poética:
que esse tremor suba corrompendo a santa força dos braços, e nem circule e se
estenda pelas áreas limpas do corpo, e nem intumesça de pestilências a cabeça,
cobrindo os olhos de alvoroço e muitas trevas (Nassar, 2016: 56ss.).
2
Numa entrevista para a revista Veja, no final dos anos 90, o escritor já se questionava: «Abandonei o
curso científico e pulei para o clássico, abandonei um curso de letras na universidade, o curso de direito
no último ano, a empresa familiar assim que meu pai faleceu. Abandonei ainda uma criação de coelhos,
o jornalismo e outras coisas mais. Tudo somado, só levei a pecha de inconstante. Por que só quando
abandonei a literatura eu teria me transformado em personagem fascinante?» (apud Cariello, 2012).
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 61
a comunidade: peritextos, por um lado, como prefácios & posfácios3, mas muito
em particular todo aquele conjunto de actos enunciativos que Genette classificou
como epitextos, isto é: correspondência, depoimentos, entrevistas, conversas – e
destes, muito em particular, a classe dos epitextos públicos –, cuja especificidade
espacial (ao contrário do peritexto, o epitexto não está materialmente ligado ao
livro e portanto circula num espaço físico e social virtualmente ilimitado) tem cla‑
ras repercussões pragmáticas e funcionais, uma vez que atinge um público muito
mais alargado do que o público‑leitor‑da‑obra (cf. Genette, 1987).
Se é certo que este tipo de enunciados, como assinala ainda Genette, se concentra
menos na obra do que na vida do autor e na sua relação com o momento histórico
individual e colectivo, parece assim fazer parte do seu protocolo enunciativo uma
espécie de indistinção entre as figuras do autor empírico e do autor textual. Em rigor,
o fenómeno acaba por inverter a lógica subjacente ao poema que Herberto Helder
dedicou ao escultor Luis Jiménez, que «morreu esmagado pela sua obra», levando a
que escritores com estas características provoquem uma espécie de esmagamento
do texto da Obra sob o poder avassalador do discurso do Autor, mesmo quando este
não fala, conforme denuncia um título como o de Nilza de Campos Becker, «Raduan
Nassar: Da linguagem poética ao silêncio do escritor» (2011)4.
3
N.B. Raduan Nassar tende a reduzir os peritextos ao mínimo: embora mantenha, por exemplo, a Nota
final de Um Copo de Cólera, na qual indica algumas fontes intertextuais, o mesmo não acontece no caso
de Lavoura Arcaica, cuja Nota da 1ª edição – que esclarecia de forma análoga que a célebre parábola do
faminto seria fruto da distorsão de uma das narrativas breves de Mil e Uma Noites – foi posteriormente
suprimida (cf. Rodrigues, 2006).
4
Ou ainda «O silêncio de Raduan», de Otavio Frias Filho, já de 1996.
62 A estética do bagaço. O génio intranquilo e as suas promessas de abundância debaixo da peneira
Para Raduan Nassar, o capítulo menos atraente da literatura sempre foi o do burbu
rinho literário — noites de autógrafos, debates, assédio da imprensa. Resultado: ele
jamais admitiu autografar suas obras em festas de lançamento, não hesitou em com
parecer a um encontro de escritores na França só para dizer à plateia que nada tinha a
declarar e descobriu um modo educado de falar aos jornalistas que pode recebê‑los,
sim, a qualquer hora, desde que a conversa não gire em torno de literatura ou temas
afins. Não é de estranhar, portanto, que sejam raras as entrevistas dadas por Raduan.
5
Disponível em https://blogdoims.com.br/entrevista‑com‑raduan‑nassar‑2/.
6
Assim se integrando numa já encorpada linhagem de autores famosos com conhecida aversão a
entrevistas.
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 63
farei uma pergunta ingénua: o que tem o escritor António Lobo Antunes que o torna
um entrevistado apetecível mesmo na época de pousio, fora da circunstância da publi‑
cação de um novo livro? (…). A minha hipótese, que será mais do que engenhosa
(outra vez a etimologia), desdobra‑se num duplo movimento: 1) nenhum outro escri‑
tor português vivo proporciona aos leitores um confronto tão vivo e tão dramático
com o Génio; 2) quanto mais aumenta a necessidade social de estupidez, mais cresce
o entusiasmo colectivo pelo Génio (e na medida em que é beneficiado por esta lei, o
Génio entende que não deve fazer nada para a contrariar) (Guerreiro, 2017).
7
Cf. Otavio Frias Filho: «O silêncio de Raduan virou uma encantação, um mistério quase policial. Já
teria dito o que tinha a dizer? Dedicava‑se agora a uma espécie de anti‑literatura, a fim de denunciar,
pelo mutismo, o embuste das vaidades literárias, da indústria da fama? Descobrira algo que não valia
a pena nem seria possível verter em palavras? É possível, até, que a decisão não fosse uma decisão,
mas de início uma brincadeira, um capricho temporário a que o escritor se viu acorrentado conforme
tomava vulto o mito do silêncio, que já não podia ser quebrado sem o risco de uma desmoralização
provavelmente embaraçosa, talvez irreversível» (Frias Filho, 2000: 175).
64 A estética do bagaço. O génio intranquilo e as suas promessas de abundância debaixo da peneira
É desde logo flagrante, por conseguinte, que na conversa aqui em causa nos encon
tramos bastante longe de uma certa tradição dialogante ou coloquializante da cultura
8
Cf. Philippe Lejeune, «L’image de l’auteur dans les médias» (in 1986: 87ss.): «L’auteur est, par définition,
quelqu’un qui est absent. Il a signé le texte que je lis — il n’est pas là. Mais si ce texte me pose des
questions, il est bien tentant pour moi de dériver en une curiosité sur l’auteur, et en un désir de faire sa
connaissance, l’état de trouble, d’incertitude ou d’éveil engendré par la lecture. C’est ce que j’appellerai
l’illusion biographique: l’auteur apparaît comme la «réponse» à la question que pose le texte. Il en a la
vérité: on aimerait lui demander ce qu’il a voulu dire… Il en est la vérité: son œuvre “s’explique” par sa
vie. Au moment où je produis ma lecture, je vais m’imaginer remonter vers une source qui la garantit, et
m’enfoncer dans un mirage plus ou moins tautologique, puisque le plus souvent la “vie” est reconstruite
à la lumière de l’œuvre qu’elle doit expliquer. Mirage d’autant plus insidieux qu’il n’est pas tout à fait
un mirage: on est souvent encouragé à réagir ainsi par l’auteur lui‑même, qui tend plus ou moins
directement à se représenter dans son œuvre, ou donne à penser qu’il s’y est représenté. Clef de son
œuvre, l’auteur est en même temps perçu comme un être mystérieux du seul fait qu’il écrit. On rêve sur
sa puissance, qu’on mesure à l’effet ressenti pendant la lecture».
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 65
ocidental, que teria no Banquete de Platão o seu exemplo matricial e mais significativo,
pois o que aqui se encena é da ordem da conversa enquanto epitexto característico
da Modernidade, e portanto próprio da República das Letras: na descrição de Barthes,
«parte de um jogo social de que ninguém pode escapar ou [...] de um empreendi‑
mento intelectual colaborativo entre escritores e media» (Barthes, 1981: 300; trad.
minha; cf. Meurée e Martens, 2014). O que significa desde logo e em primeira instância
que se colocarão problemas complexos entre a expectativa de autenticidade que a
presença real do autor sugere e a pose ou a postura que por outro lado a presentifica‑
ção de uma situação cénica obrigatoriamente lhe solicita.
Parece assim ficar bastante claro que, a respeitarmos a atitude ético‑existencial que
Raduan Nassar assumiu desde que o seu nome cumpre uma função‑autor, as decla
rações em circunstâncias como as que uma conversa ou uma entrevista promovem
resultam de um acto enunciativo próprio de um desautor (para usar o conceito na
proposta de Laurent Zimmermann – 2012: 83‑98) que assumidamente requer uma
leitura contra‑autorial (cf. Rabau, 2012: 5‑18), isto é, uma leitura interpretativa que
considere criticamente a natureza intrincada do vínculo entre autoria(lidade) e auto
ridade, colocando em causa o discurso de autoridade do autor acerca do sentido
que ele reconhece à sua obra9. A verdade é que uma tal leitura invalida até a conhe‑
9
Raduan Nassar pronuncia‑se muito explicitamente sobre esta questão, ao responder à pergunta
acerca da importância que o empirista Francis Bacon teve na sua formação: «Bacon sacou uma
coisa muito simples, simples como outras grandes sacadas na história. Colocou sob suspeição o que
ele chamava de idola, ou ídolos, que, segundo ele, eram entraves para se chegar ao conhecimento.
Abreviando as coisas, ele arrolou entre os idola os juízos de autoridade, ou seja, aquelas afirmações
que vinham acompanhadas com força de verdade só porque tinham sido feitas por pessoas que
gozavam de grande prestígio intelectual. Então, Aristóteles poderia ter dito uma besteira na sua história
natural, mas essa besteira atravessava séculos como verdade só porque tinha sido dita por Aristóteles.
E o que o Bacon propunha é que não seria possível fazer ciência sem verificar através da investigação
experimental certas verdades, que só passavam por verdades pela autoridade dos seus autores. Com
essa coisa tão simples m as um simples que pra agüentar a mão é preciso caráter — Bacon alavancou
a virada dos incipientes procedimentos científicos, deu uma contribuição decisiva pra metodologia da
época. Agora, se Bacon podou a praga em áreas passíveis de verificação, em áreas adjacentes, que são
o mundo dos valores, onde não se consegue ultrapassar os limites da opinião, a praga rebrotou, quatro
séculos depois, com uma virulência capaz até de comprometer vidas humanas. Cinco minutos de um
prestigioso jornal de tevê, prestígio para o qual centenas de atores dão o melhor do seu talento, são
capazes de fazer a cabeça de uma população. No compartimento dos valores estéticos, que são uma
titica perto disso, a coisa não é diferente. Nesta área, é raro alguém questionar o que vem embrulhado
de prestígio e autoridade, reverenciam‑se mitos de modo obsceno, daí que tem gente que fala em
66 A estética do bagaço. O génio intranquilo e as suas promessas de abundância debaixo da peneira
cida passagem de Umberto Eco entre a intentio auctoris e a intentio operis, pois ela
pressupõe, aceita e discute a intentio auctoris, sobretudo quando esta é explicitada
nestes mal situados lugares paratextuais, assim trasladando a blanchotiana «má
‑fé» da verdade romanesca para a verdade autobiográfica (Blanchot, 1949: 189ss.;
cf. Decout, 2015). Trata‑se, portanto, de assumir uma leitura que conteste o autor
enquanto auto‑leitor, e não o autor enquanto criador (cf. Depretto, 2012: 69‑82),
como apontou com muita agudeza Maria José Cardoso Lemos num texto de 2003:
Descrever a trajetória de Raduan Nassar é uma tarefa perigosa, pois ele embaralha seus
rastros, quer pelo silêncio, quer pela repetição constante de suas respostas, respostas
sempre pouco esclarecedoras, como que a evitar uma auto‑reflexão sobre sua obra.
Alguns, irritados com sua postura, pensam até tratar‑se de uma estratégia de marke‑
ting desse ator/autor que interage com sua pequena obra‑prima na sua recepção atual,
obra que, parcimoniosamente, vem retornando sempre ao cenário cultural por meio
de novas publicações, traduções e adaptações cinematográficas (Lemos, 2003: 81).
Vejamos agora sucintamente e a esta luz de que modo Raduan Nassar procede a
uma clara (des)orientação dos protocolos interpretativos da sua obra na conversa
de 1996, com base numa estratégia que com toda a finura aceita e rentabiliza o jogo
dos lugares‑comuns que a construção da figura do autor enigmático necessaria
mente agencia. Nesse sentido, as sedes argumentorum de que parte não deixam
de andar em torno do mais antigo desses lugares, o da falsa modéstia, subjacente
a diversos tópicos, que, no entanto, provoca a aparição subliminar e à contre‑coeur
dos lugares especiais onde efectivamente a singularidade do autor – na sua condi‑
ção de promessa de filho pródigo da literatura – se desvela.
Joyce ou em Pound e parece que está dando cria. Aliás, as vacas lá na fazenda são bem mais discretas
em hora tão crítica. Como você vê, o que aconteceu comigo acontece nas melhores famílias. Na minha
adolescência andei em más companhias, trapaceiros e caloteiros, mas de que trago boas lembranças
por terem sugerido posturas para a reflexão. Os trapaceiros atuando no mundo turvo dos valores, o
caloteiro, na linha reta da investigação objetiva, os dois atuando em áreas tão diferentes, mas conver
gindo, e como!, na cabeça de um jovem que pretendeu um dia fazer literatura com liberdade. Se é que
isso seja possível» (entrev. cit.).
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 67
10
N.B. Alain Duault (2011): «Vingt ans d’activité, quarante ans de silence: oui, ce qui intrigue d’abord
chez Rossini, ce n’est pas sa musique, c’est son silence. Formidable paradoxe!». A este propósito, parece
particularmente adequado o comentário de Galia Yanoshevsky ao volume Enquête sur les Entretiens
Littéraires: «Ce retour au personnage de l’auteur comme cœur de l’œuvre détourne l’attention vers
des aspects autres que l’œuvre per se. Il s’agit, par exemple, du personnage médiatique de l’écrivain,
ou des images multiples de l’écrivain, comme le signale Butor, et qui font partie d’un mythe, d’une image
flottante de l’écrivain comme homme des médias, et qui correspond à plusieurs modèles de lui (…). Il
s’agit dans certains cas d’une posture qui finit par être confondue avec l’auteur et ses écrits (…). C’est
le cas par exemple chez Duras, plus âgée, dont la parole de l’entretien, à en croire Peeters, devient
oraculaire (…): l’auteur finit par se conformer à son moi médiatique, au point que ses livres eux‑mêmes
soient contaminés par cette parole vide» (2015).
68 A estética do bagaço. O génio intranquilo e as suas promessas de abundância debaixo da peneira
Perloff qualificou como de unoriginal geniuses), naquilo que será uma estratégia
transversal a toda a conversa, especialmente notória nas diversas declarações que
dizem respeito às supostas ou pressupostas influências e contaminações que a sua
obra evidencia, declarações que assentam agora no princípio do lugar‑comum de
qualidade11.
Com efeito, chega a ser penoso assistir às sucessivas tentativas (frustradas) por
parte dos interlocutores de lhe atribuírem correlações com outras obras, escritores,
críticos ou teóricos:
11
Nas palavras de Raduan Nassar: «As ideias estão no ar. Se assimilei uma e outra no meu trabalho, as tais
conquistas de que você fala, foi cheirando involuntariamente a atmosfera. Por decisão mesmo, sempre
me mantive à distância de toda especulação teorizante ou programática, sobretudo por uma questão de
assepsia, quero dizer, para preservar alguma individualidade da minha voz. Não ia arrogância nisso. Se
tivesse de me pautar pela leitura de manifestos literários, eu jamais teria escrito uma linha» (entrev. cit.).
12
Veja‑se ainda a descrição que Alexandre Gaioto faz do espaço em que conversa com o escritor: «Na
pequena sala, não há vestígio algum de literatura. Não há livros nas estantes, não há livros espalhados
pelo chão, aquela não parece a casa de um escritor. A fala de Raduan, concisa e lacônica, também não
se parece com a voz de um escritor. Alguns escritores falam por meio da poesia, recorrem a metáforas
paridas na hora, comentam, empolgados, os detalhes do processo criativo de determinadas obras:
vivem e respiram a literatura diariamente. Não é o caso de Raduan. Não há metáforas em suas falas, nem
poesia vazando daquele verbo, mas há o silêncio. Não chega a ser triste nem melancólico, mas é um
pouco desconfiado. Tem contundência aquele silêncio. Tem textura aquele silêncio. É o mesmo silêncio
que enche, aos berros estridentes, a literatura dele. E aproveito que ele está novamente em silêncio para
perguntar sobre seu estilo próprio» (2013).
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 69
ii. por outro lado, quando questionado sobre a relação com a teoria e a crítica
suas contemporâneas, nomeadamente as produzidas em torno da própria
obra, Raduan Nassar assume sem qualquer pudor que não se pode pronunciar
sobre o assunto por desconhecer os textos (mesmo os de um dos entrevista‑
dores, José Paulo Paes, que acaba pendurado na sua própria pergunta13);
Suponho que exista em toda obra uma teoria subjacente do autor, podendo ser
apreendida pelos que eventualmente se interessem por ela. Mas quando um
escritor faz a exposição da sua teoria, para suprir de significados uma poética
que não consegue falar por ela mesma, acontece aí um evidente desajuste. A
poética pretende ser revolucionária por desestruturar a linguagem convencio‑
nal, só que seu autor, para explicá‑la, acaba se socorrendo da mesma linguagem
que usamos pra pedir um copo d’água, o que é o fim da picada.
13
«José Paulo Paes: Num artigo que escrevi em 95 no Jornal da Tarde, citei seu Lavoura arcaica como um
dos poucos exemplos de romances brasileiros nos quais se poderia falar em “anfibismo cultural”. Você
concorda com isso?
Raduan: Não sei se entendi bem a pergunta, pois não li o artigo.» (entrev. cit.)
Cf. ainda a resposta a Leyla Perrone‑Moisés: «Você acha que a crítica literária pode ter alguma influência
nas obras subsequentes de um escritor?
Raduan: Caberia a cada escritor dar a sua resposta. No meu caso, não deu tempo. Quando fiz minha estreia
com o Lavoura, já tinha escrito minha obra completa… Vantagens de quem escreve curto» (idem).
70 A estética do bagaço. O génio intranquilo e as suas promessas de abundância debaixo da peneira
14
Numa entrevista a Augusto Massi e Sabino Filho, o valor decisivo destas epígrafes fica inteiramente
claro: «mergulhei no Invenção de Orfeu (…), que eu a princípio, e mesmo depois, lia sem entender,
porque ninguém, penso, pode entender aquele poemão no nível lógico. Não entendia mas ao mesmo
tempo entendia demais aquele texto, inclusive no nível lógico» (1984).
15
«Daí que o homem comum assim como os povos periféricos jamais tiveram seus nomes inscritos
como vencedores. Entretanto, quando se entra em uma residência bem posta, é legítimo perguntar,
diante do orgulho do dono da casa, onde estão os anônimos que assentaram os tijolos. Como seria
legítimo perguntar, num giro pelos países desenvolvidos, onde estão os povos, humilhados e ofendidos,
que concorreram para o seu brilho» («A corrente do esforço humano» (1980), in 2016: 410).
16
«sem acesso à razão, ele agora se ressuscita ridiculamente como Lúcifer… há‑há‑há… som e fúria…
há‑há‑há… você não passa, isto sim, é de um subproduto de paixões obscuras, e toda essa algaravia,
obsessivamente desfiada» (Um Copo de Cólera, in idem: 259).
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 71
Mas o que a passagem anteriormente citada ilumina não diz apenas respeito ao
plano transtextual da obra de Nassar, ela incide em directo sobre os pontos essen‑
ciais de qualquer reflexão poetológica digna desse qualificativo: i) o problema da
criação, ii) o entendimento específico da linguagem no seu regime literário ou
poético, iii) a natureza porosa do vínculo da literatura com o mundo. Ora, no caso
específico de Raduan Nassar, não há como isolar qualquer um destes aspectos sem
considerar de imediato todos os outros:
sabia fazer as coisas, essa minha irmã, esconder primeiro bem escondido sob
a língua a sua peçonha e logo morder o cacho de uva que pendia em bagos
túmidos de saliva enquanto dançava no centro de todos, fazendo a vida mais
turbulenta, tumultuando dores, arrancando gritos de exaltação, e logo entoados
em língua estranha começavam a se elevar os versos simples, quase um cântico,
nas vozes dos mais velhos, e um primo menor e mais gaiato, levado na corrente,
pegava duas tampas de panelas fazendo os pratos estridentes, e ao som con‑
tagiante parecia que as garças e os marrecos tivessem voado da lagoa pra se
juntarem a todos ali no bosque (Nassar, 2016: 33‑34).
Acho que não adianta forjar uma escora metafísica para aquela postura, como
arrolar a estética disso ou a estética daquilo, porque no fundo o caso daquela
tendência seria mesmo de inaptidão pra reflexão existencial. Agora, a casca das
palavras, da proposta antidiscursiva, como a laranja que se passa num espreme‑
dor, certamente que não excluía resíduos de significados. Fosse então o caso de
forjar uma escora, quando muito se poderia falar na estética do bagaço. Não vai
aí qualquer conotação pejorativa, é só uma tentativa de adequação vocabular.
Entre usar bagaço ou palavras em toda sua acepção possível, cada escritor que
fizesse a sua escolha.17
iii. Em suma, o que o move é o poder que a palavra detém em matéria de refle
xão existencial. Não é com certeza por acaso que Raduan Nassar é mais con
temporâneo de Glauber Rocha e da sua estética da fome do que da estética
do bagaço concretista: porque também na sua obra não há folclore inter
vencionista, nem clichés sócio‑económicos, paternalismo ou humanitarismo
fáceis, como se verifica numa certa linhagem neonaturalista da ficção brasi‑
leira do século XX, e isso não significa que haja absentismo18.
17
E ainda: «Aliás, só pra completar, acredito que a boa prosa tenha sido sempre poética. Porque existe
também a arte que se constrói com significados, e que se nutre no mundo inesgotável da semântica.
Parte da crítica talvez tenha diminuído o conceito de estilo na literatura ao identificá‑lo só no nível da
casca. Kafka, que se valeu de um registro realista de linguagem, tem um estilo forte. Dürrenmatt, a
mesma coisa. Alguns dos seus textos nos jogam pro espaço. De Dostoiévski, dizem até que ele escrevia
mal em russo. As leituras que nos acompanham a vida toda foram as dos artistas dos significados.
Poucas vezes eles trabalharam a frase com artifícios visíveis demais, mas são deles as nossas leituras
inesquecíveis» (entrev. cit.).
18
Na síntese de Leyla Perrone‑Moisés: «A originalidade de Raduan Nassar, com relação a outros
escritores da sua geração, consiste justamente nessa opção por um engajamento político mais amplo
do que o recurso direto aos temas de um momento histórico preciso. Um engajamento no combate aos
abusos do poder, em defesa da liberdade individual, numa forma de linguagem que não faz concessões
à “mensagem”» (1996: 69).
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 73
É certo que parece ser insolúvel e interminável o problema que se coloca entre cria‑
ção literária, responsabilidade ético‑política e exercício da cidadania desencadeado
por Platão e combatido por Shelley ou Schiller: em tempos de cólera ou de indigên‑
cia como os nossos, essa questão tende a agudizar‑se e a ganhar renovados contor‑
nos, como se tornou flagrante na cerimónia de recepção do Prémio Camões, que
veio suscitar a discussão em torno do ethos pré‑discursivo e do ethos discursivo (ainda
que não se tenha feito uso destes conceitos). E o que parece ser mais espantoso é o
facto de o escritor, totalmente ciente da função‑autor que o seu nome e pessoa cum‑
prem, ter ousado assumir um lugar contra‑autoral, ao encerrar o discurso com o acto
performativo «não há como ficar calado», e assim demonstrando o valor do mundo
sobre o valor da vida – ou da república sobre a república das letras –, exactamente
nos termos em que a sua personagem Zé‑das‑palhas, de Menina a Caminho, o fizera
décadas antes, ao repetir o quase refrão «Doutor Getúlio Vargas, o povo brasileiro tá
cansado, cansado, cansado» (Nassar, 2016: 307)19. Eis o poder do tão aclamado silên‑
cio de Raduan Nassar, que com Vinicius de Moraes poderia dizer na sua «Mensagem
à poesia»: «digam‑lhe que há/ Um náufrago no meio do oceano, um tirano no poder,
um homem/ Arrependido [...]/ digam‑lhe que há um grande/ Aumento de abismos na
terra, há súplicas, há vociferações/ [...] peçam‑lhe que se cale/ Por um momento, que
não me chame/ Porque não posso ir/ Não posso ir/ Não posso» (Moraes, 1981: 233
‑235). Mas Vinicius foi, Raduan é que não.
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19
Cf. ainda «A corrente do esforço humano» (2016: 417‑418): «Supondo‑se que todo homem seja porta
dor de uma exigência ética, não há como estar de acordo com a dominação de uns sobre outros. Penso,
como muitos, que seja possível imaginar caminhos diferentes para as relações entre indivíduos e entre po
vos, e penso mesmo que não existe nada mais belo e comovente do que perseguir utopias. (…) Se é assim,
é também mais ou menos óbvio que, entre os dominados, só os tolos se comprometem com a ‘ordem’ que
os subjuga. Aos lúcidos, como sugeriu um pensador do século passado, tudo seria permitido».
74 A estética do bagaço. O génio intranquilo e as suas promessas de abundância debaixo da peneira
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AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 77
Eppur se muove
a Raduan Nassar
Marcos Siscar
Uma pura potência: escrever ou não mais escrever. Mas seria preciso escrever –
potência em ato – para, então, poder não mais escrever. Como observa o filósofo
Avicena, “uma potência perfeita e acabada é aquela de um escriba dominando per‑
feitamente a arte de escrever no momento em que ele não mais escreve”. (apud
Agamben, 1995: 19) Alcançar a pura potência equivaleria ao exercício de liberdade
daquele que pode querer não mais querer. Esta é a posição do escritor Raduan
Nassar, que, após publicar um romance, uma novela e alguns contos, em 1978, para
de escrever.
Em 1970, ele escreve o conto “O ventre seco”, embrião da novela Um copo de cólera,
sua última publicação. Com efeito, seus textos fabricam uma circularidade que cria
78 O silêncio eloquente de um ventre seco
não só uma relação intertextual interna, mas também externa, a partir da idéia de
literatura como re‑escritura infinita. Seu título, “O ventre seco”, é quase um oxi‑
moro, uma conjunção de contrários, uma potência que se imobiliza, que se cala,
sugerindo a idéia de abstinência.
Mas afinal qual seria a relação da escrita com o silêncio? Da pulsão com a falta de entu‑
siasmo? Do excesso de trabalho, informação, experiência, razão com a indiferença, o
cinismo, o ceticismo? Enfim, qual a relação do fluxo que transborda como a cólera do
copo órfico – com o fluxo contínuo de uma longa linha traçada pelo arado de Édipo?
Talvez para Nassar a folha em branco – rasura tabulae – se apresente como terra
árida, como corpo impenetrável de mulher, que precisa ser perfurada para ser
semeada. Escrita entendida como Lavoura arcaica. Mas finalmente, a semeadura
e a colheita já não mais importam, apenas o corpo branco da folha. A escrita se
apresenta então como contingência entre a possibilidade de dizer e de não dizer,
como um ventre que se quer seco.
1
Ver esse conceito em Gilles Deleuze, “A literatura e a vida” in Crítica e Clínica.
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 79
No conto, Descartes é citado sem aspas e parafraseado nos itens 6, 7, 8 e 15, conforme
o estilo próprio das construções textuais de Nassar. O narrador atribui à mulher vários
conceitos desenvolvidos pelo filósofo em seu Discurso do método e nas Meditações,
tratados onde Descartes tenta acabar com a dúvida cética. No item 6, ele acusa a
80 O silêncio eloquente de um ventre seco
O item 7 é quase todo uma paráfrase ou uma paródia do famoso trecho do Discurso
do Método no qual Descartes estabelece a regra da clareza para combater a dúvida
pirrônica, ou seja, “não aceitar nada além do que se apresente à minha mente de
maneira tão clara e distinta que não possa duvidar disto”(apud Popkin, 2000: 275).
No conto ele declara: “Farto também estou das tuas idéias claras e distintas a res‑
peito de muitas outras coisas, [...] ainda fico espantado com este mundo simulado
que não perde essa mania de fingir que está de pé” (idem: 65). O narrador questiona
a idéia cartesiana segundo a qual o acesso à verdade se daria quando uma idéia
se apresentasse clara e distintamente, e, à luz cartesiana, contrapõe a escuridão, o
obscurantismo, procedimento usado por Nassar também em seus outros textos.
Indo ainda mais longe no seu método para afastar todas as dúvidas, Descartes,
na Primeira Meditação, apresenta a hipótese de um “gênio maligno” que perversa‑
mente brincasse com os homens ao simular um mundo fictício, ao distorcer nossas
faculdades. Afinal, como podemos ter certeza sobre as coisas, sobre o mundo real,
sobre a própria existência de um eu que pensa? Assim, ao gênio maligno, polo
da escuridão, Descartes contrapõe a luz de Deus, garantia metafísica de bondade
e de perfeição que não permitiria nem o erro nem a dúvida cética. O narrador,
no item 15, inverte a proposição de Descartes e, à certeza de Paula, contrapõe a
escuridão, o mundo de sombras, no qual vivia sua mãe que a olhava “de um jeito
maligno”, expressão que aparece no conto, ironicamente, entre aspas.
Assim, Descartes levaria a sua dúvida metodológica ao extremo – dubito ergo sum –,
sendo considerado por alguns pensadores como o introdutor do ceticismo no pen‑
samento moderno, uma vez que, finalmente, para Descartes, somente através da
garantia de Deus, haveria possibilidade de acesso ao real. Neste aspecto, Descartes
pode ser considerado um crítico radical que questiona os limites da razão e, em
última análise, um “sceptique malgré lui”, segundo a expressão de Richard Popkin.
enxergar as coisas de maneira clara e distinta? Esta parece ser a pergunta do narra‑
dor, que, em sua radicalidade, passa a duvidar também de suas próprias posições.
O item 8 da carta vai neste sentido, ao dizer que “a razão é mais humilde que certos
racionalistas”, terminando em outra alusão a Descartes: “você pode continuar car‑
reando areia, pedra e tantas barras de ferro, Paula, embora qualquer criança também
saiba que é sobre um chão movediço que você há de erguer teu edifício” (idem: 65).
Raduan Nassar, a propósito de Um copo de cólera, fala sobre esta questão, que é
também pertinente ao conto aqui em pauta:
Ceticismo e cinismo
“O ventre seco” foi escrito durante a época da ditadura militar no Brasil, época de
uma literatura engajada, de contracultura, contra a lei – é proibido proibir –, posição
que parece finalmente reforçar a lei, o bem e o mal, a mulher e o homem; época
de uma dialética rigorosa, deixando entreaberta a questão: é possível uma outra
saída? Nem isto nem aquilo, mas talvez, esta é a formula de Pirro que escapa a uma
síntese negativa. A fórmula pirroniana mais importante é “ não mais” [ou mallon],
que permite dizer que uma coisa não é “mais isto” do que aquilo. Ela é análoga ao
I would prefer not to de Bartleby de Melville, fórmula que, segundo Deleuze, abre
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 83
deturpados de sua função inicial: “ Está certa aquela tua amiga frenética quando
te diz que sou “ incapaz de curtir gentes maravilhosas ”. Sou incapaz mesmo, não
gosto de “ gentes maravilhosas ”, não gosto de gente, para abreviar minhas prefe‑
rências” (idem: 64).
Seguindo esta lógica cética, as posições radicais são evidenciadas sem que haja
um posicionamento qualquer. Assim, no quarto item da carta, ele declara: “ não
tenho nada contra este feixe de reivindicações que você carrega, a tua questão
feminista, essa outra do divórcio, e mais aquela do aborto, essas questões todas
que ‘estão varrendo as bestas do caminho’. [….] quero dizer simplesmente que não
tenho nada contra” (Nassar, 1998: 63). Nassar declarou ter lido Alexandra Kollontaï
(1872‑1952) militante feminista radical, bolchevista, espécie de guia do movimento
feminista do século XX.
não exatamente como suspensão do juízo, mas sim como suspensão do assentimento.
Na verdade, o cético, se não para de duvidar, não para de pensar. A epoché implica
antes a afasia, como recusa a se pronunciar categoricamente sobre isto ou aquilo, do
que a recusa a pensar. Esta afasia não subentende incapacidade de falar mas sim rei‑
vindicação do direito ao silêncio, em particular em uma época tão barulhenta e tão
“endoxal”, isto é, tão movida pela obrigação da opinião (2004: 31).
A escrita nassariana se forja assim como uma diatribe bem ao gosto dos antigos
cínicos, através de uma argumentação que ataca de maneira violenta e cruel as
instituições, os costumes, a hipocrisia e a razão: o bom senso, que para Descartes é
o atributo melhor compartilhado pelos homens. Seu jogo cínico é radical, daí o fato
de seus personagens lançarem mão dos atos mais extremados: incesto, mastur‑
bação, perversão, profanação, crueldade, cólera, aproximando‑se assim dos atos
2
Hoje assistimos talvez ao seu desmantelamento.
3
André Rangel Rios entende como “ironia em acontecimento” em seu livro Mediocridade e ironia.
86 O silêncio eloquente de um ventre seco
Nassar estabelece diálogo intenso com outros autores, com James Joyce, Thomas
Mann e Ricardo Reis, heterônimo de Fernando Pessoa, sobre o tema da indiferença,
não só como motivo interno à obra, mas como postura do artista face à obra e à
vida. Assim, Raduan reflete sobre a questão da arte pela arte, do artista fechado em
sua torre de marfim indiferente à vida e, por outro lado, questiona também a arte
dita engajada, planfletária, que assolava a literatura brasileira dos anos 70.
4
Vai neste sentido o pensamento cartesiano exposto no livro As paixões da alma.
5
Conceito desenvolvido por Vladimir Safatle em Cinismo e falência da critica.
6
Segundo análise sobre Hegel de Rubens Rodrigues Torres Filho em “À sombra do Iluminismo” In
Ensaios de filosofia ilustrada.
7
Ver na entrevista com Raduan Nassar realizada pelo Cadernos de Literatura Brasileira, Instituto Moreira Salles.
88 O silêncio eloquente de um ventre seco
Joyce, presente também em Nassar8, é significativa, porém ela nunca vem de forma
direta, é sempre re‑escritura, bio‑grafia. A obra de Joyce se divide em diferentes
idades: infância, adolescência, adulta e maturidade. Existe ainda desdobramen‑
tos entre seus textos, relações intra‑textuais, numa circularidade que reenvia ao
motivo do eterno retorno, como bem sinaliza a primeira frase de Finnegans Wake: a
commodius vicus of recirculation, que mostra a leitura que Joyce empreende da filo‑
sofia dos ciclos de Vico.
Essa concepção da obra de Joyce, na qual cada texto resvala uma poética, nos
parece essencial para compreender a obra de Raduan Nassar – que aparente‑
mente terminou seu projeto literário e que por isso teria parado de escrever. Em
Nassar, estão presentes também os desdobramentos das idades em diferentes eta‑
pas da vida – da infância que aparece em Menina a caminho, que se aproxima de
Dublinenses, até a velhice, com Hoje de madrugada. Pode‑se perceber ainda em seu
trabalho uma mistura de gêneros e estéticas diversas.
Assim, a pequena e primorosa obra de Raduan Nassar funciona como uma espiral
que perpassa idades. Em Menina a caminho [1961], a narrativa em terceira pessoa,
de pretensões behavioristas, descreve como uma câmera o percurso da menina,
mas sem deixar de travar com a personagem um jogo de focalização que varia o
olhar do narrador com a visão da menina entremeado pelo discurso indireto livre.
André, o adolescente tresmalhado de Lavoura arcaica [1975], retorna adulto no
conto O ventre seco, que torna em Um copo de cólera [1978], e, já velho, volta em
Hoje de madrugada [1970]. Pode‑se estabelecer uma leitura destes personagens
como compostos concebidos fora de uma ordem cronológica, porque não há con‑
tinuação linear entre eles, mas antes a procura das condições em que uma deter‑
minada variação se apresentou para o sujeito.
8
Assim como retirou as Notas de autor das edições subsequentes, retirou também as dedicatórias, ao
pai, no caso de Lavoura arcaica e a Heidrun Brückner e a Modesto Carone em Um copo cólera.
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 89
é a minha opinião a teu respeito, comparada comigo mesmo ? ” … ” essa é a única
diferença, apenas essa ”). A nota omite o pedaço que caracterizaria o cinismo de
Temple, que, ao contrário de Cranly, tem consciência e declara, sem hipocrisia, o
fato de ser um escroto. Nassar troca escroto por fascista:
– […] Queres saber qual é a minha opinião a teu respeito, comparado comigo próprio?
– Meu caro senhor – disse Cranly com o maior respeito ‑ , você é incapaz, está ouvindo
bem? Absolutamente incapaz de ter opinião.
– Está bem, mas sabes o que eu penso de ti e de mim, comparados um com o outro?
– continuou Temple.
[…]
– Confesso que sou um escroto – disse, sacudindo a cabeça com desespero. – Sou e sei
que sou. E admito que sou.
Dixon deu‑lhe uma palmada no ombro e disse com meiguice:
– E isto te será levado a crédito, Temple!
– Mas este aqui – disse Temple, apontando para Cranly – também é um escroto,
como eu. Só que ele não sabe. Essa é a única diferença. Apenas essa, digo‑lhes eu.
(Joyce, 2001: 261).
E como eu recuperasse aquela calma (nervosa por dentro) de cada palavra, eu arris‑
quei ainda “só uma pergunta: sabe qual é a minha opinião a teu respeito, comparada
comigo mesmo?” “você é incapaz, absolutamente incapaz de ter opinião” “tudo bem,
mas sabe o que penso de você e de mim, comparados um com o outro?” “desembucha
logo, seu delinquente” “confesso que em certos momentos viro um fascista, viro e sei
que virei, mas você também vira fascista, exatamente como eu, só que você vira e não
sabe que virou; essa é a única diferença, apenas essa; […]” “devo concluir que o nosso
fascista confesso ainda é melhor, se comparado a mim” “pelo contrário, se por um lado
redime, a confissão por outro também pode liberar: mais do que nunca posso agir
como um fascista... (Nassar, 1978: 63‑64).
O outro trecho que Nassar retirou do Retrato não aparece na nota de autor, e é
de extrema importância no que concerne ao problema do artista face à vida e à
liberdade. Já quase no final do livro, o personagem Stephen Dedalus diz a Cranly
que não irá comungar na Páscoa. Cranly então lhe diz que este fato irá deixar sua
mãe muito triste, e lhe pergunta se os sentimentos maternos não lhe tocam, se
ele não ama sua mãe, e, se ele não é crente, então por que não comungar, apenas
para agradá‑la? Mas Dedalus deixa claro que é preciso cortar os laços com sua
mãe, que ele não teme a possibilidade de cometer um erro nem o fato de ficar
sozinho.
Neste contexto, Stephen Dedalus fará a célebre declaração que para Maurice
Blanchot é “o tema essencial de Dedalus, e a existência de que a obra de Joyce
é apenas a colocação paradoxal (pois o enigma ali é o equivalente do silêncio)”
(1944: 2‑3). O romance é a busca do jovem Stephen para se tornar artista, mas não
simplesmente artista enquanto profissão, mas como alguém que tem uma visão
diferente de mundo – é o que Stephen quer alcançar, ele quer se impor e afirmar
uma liberdade sem limites. Mas como explica Blanchot, “A liberdade é a alma do
artista, e esta liberdade é negação perpétua, negação em proveito de uma avi‑
dez que nada pode satisfazer, assim como pressentimento daquilo que não pode
jamais ser alcançado” (ibidem). Vejamos alguns trechos:
[...] Vou te dizer o que farei e o que não farei. Não servirei aquilo em que não acredito
mais, chame‑se isso o meu lar, a minha pátria, ou a minha igreja: e vou tentar exprimir
‑me por algum modo de vida ou de arte tão livremente quanto possa, e de modo tão
completo quanto possa, empregando para a minha defesa apenas as armas que eu me
permito usar: silêncio, exílio e sutileza (Joyce, 2001: 279/280).
[…] impossível ordenar o mundo dos valores, ninguém arruma a casa do capeta ; me
recuso pois a pensar naquilo em que não mais acredito, seja o amor, a amizade, a famí‑
lia, a igreja, a humanidade ; me lixo com tudo isso! me apavora ainda a existência, mas
não tenho medo de ficar sozinho, foi consciente que escolhi o exílio, me bastando hoje
o cinismo dos grandes indiferentes… (Nassar, 1978: p. 52).
O cinismo dos grandes indiferentes é construção de uma filosofia que quer promo‑
ver a liberdade absoluta. A vida cínica tem quatro mandamentos que nossos heróis
tentaram seguir: vida não dissimulada, vida independente, vida direita e vida sobe‑
rana. Com finalidade pedagógica, o cinismo se utiliza da provocação, se servindo
até da gozação grosseira, na tentativa de fazer o pensamento efetivamente pensar.
Assim faz Diógenes de Sínope que não hesita em praticar atos indiferentes, assim
faz também o personagem “Ele” de Um copo de cólera ou o narrador de Um ventre
seco que discorrem sobre a irredutibilidade da verdade, do poder do ethos, de sua
relação irreversível, da impossibilidade de os pensar sem relação fundamental uns
com os outros. O cinismo efetua assim a dramatização e a passagem do limite pela
encenação da vida.
Maurice Blanchot defende a tese de que Dedalus “se sente atraído por uma vida
livre, estrangeira às ordens sociais ou religiosas, uma vida difícil mas orgulhosa,
talvez marcada para sempre pelo erro, mas enquanto o espírito pode sonhar de se
exprimir com liberdade absoluta”(ibidem) “ Viver, errar, triunfar, recriar a vida com a
vida!” diz Stephen Dedalus.
Quanto a Tomas Mann, uma pequena citação de A Montanha mágica, aliás bastante
manipulada, aparece no romance Lavoura arcaica. Mas, além desta obra, é com o
conto Tonio Kröger, que trata da questão do artista na sociedade moderna, que
Nassar trava um diálogo que indiretamente aparece em seus textos. Neste conto,
Mann apresenta o protótipo do artista como um indivíduo afastado da vida e pri‑
sioneiro de seu ofício. Já em Morte em Veneza, a arte é passível de destruir a vida
daquele que lhe dá forma. Thomas Mann estabelece assim a oposição entre arte e
vida nos seus primeiros contos, especialmente em Tonio Kröger.
92 O silêncio eloquente de um ventre seco
Confesso que sinto certa dificuldade em dissociar a paixão pelo texto da paixão temá‑
tica, acho que, no fundo, no fundo mesmo, o que importa é vibrar com a vida, me
parece estar aí o ponto de partida da literatura, no que penso inteiramente diferente
daquele personagem de Tonio Kröger, que diz que quem morre pra vida nasce pra
arte. Papo furado (Heynemann: 1992).9
Trabalhava não como quem trabalha para viver, mas como alguém que não deseja
outra coisa a não ser trabalhar, pois que não se dá nenhum valor como pessoa e
deseja ser considerado apenas criador, passando de resto despercebido como uma
sombra parda, como um ator sem maquiagem, que não é nada enquanto não tem
papel a representar. Trabalhava em silêncio, trancafiado, invisível, cheio de menos‑
prezo para com aqueles pequenos literatos para quem o talento era um adereço
social e que, pobres ou ricos, se pavoneavam selvagens e esfarrapados, ou ostentando
gravatas exclusivas, convencidos de que levavam uma vida altamente feliz, digna e
artística, ignorando que boas obras só surgem sob pressão de uma vida ruim, que
quem vive não trabalha, e que é preciso estar morto para ser realmente um criador
(Mann, 2000a: 111).
Tonio Kröger era o artista alienado em sua torre de marfim, marginal, estetizante,
submerso pelo jogo de formas e idéias, indiferente ao mundo. Thomas Mann vai
começar a mudar sua concepção estética justamente a partir de A montanha
mágica – obra escolhida por Nassar para estabelecer diálogo direto com Mann –,
que marca o momento de cisão existente na obra de Tomas Mann, quando ocorre
9
Liliane Heynemann, “Do culto das letras ao cultivo da lavoura”, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 29/08/1992.
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 93
uma tomada de posição política mais implicada na relação entre arte e vida pelo
artista.
Então, com o tormento e orgulho do conhecimento veio a solidão, pois era‑lhe impos‑
sível permanecer no círculo dos ingênuos, alegremente inconscientes, e a marca em
sua testa os incomodava (idem: 109).
Tonio Kröger prega a calma e uma espécie de serenidade indiferente, visto que é
preciso que o artista se afaste da paixão. Segundo o preceito da “arte pela arte”, o
mais importante seria a forma e não o conteúdo; em princípio ele seria indiferente,
94 O silêncio eloquente de um ventre seco
Em certo momento de sua trajetória Thomas Mann vai se afastar de sua primeira
concepção, e isto se dá na época em a Alemanha se modifica, que o nazismo começa
a aflorar. Mann desenvolve então uma nova sensibilidade artística, virando‑se para
uma nova articulação com a vida, sem contudo ser atraído para a chamada arte
engajada.
Os segredos das lojas têm em comum com os mistérios da nossa Igreja as relações
evidentes com as solenidades ocultas e os excessos sagrados da humanidade mais
remota… Quanto à Igreja, refiro‑me à ceia, ao ágape, ao consumo sacramental da
carne e do sangue, e no que diz respeito às lojas… (Mann, 2000b, p. 700).
eu poderia dizer com segurança, mas não era a hora de especular sobre os serviços
obscuros da fé, levantar suas partes devassas, o consumo sacramental da carne e do
sangue, investigando a volúpia e os tremores da devoção, […](Nassar, 1997: 26).
Você tem razão, Paula: não chego sequer a conservador, sou simplesmente um obscu‑
rantista. Mas deixe este obscurantista em paz, afinal, ele nunca se preocupou em fazer
proselitismo (Nassar, 1998: 62).
10
Ver sobre essa questão Michel Löwy, “Lukács e Leon Naphta: o enigma do zauberberg”. In Romantismo
e messianismo, 1990.
96 O silêncio eloquente de um ventre seco
A luta, até ali verbal, se transforma em combate corporal, como ocorre em Lavoura
arcaica e em Um copo de cólera. O duelo, explica Settembrini, é o último estágio; no
fim das contas, só resta aos homens a luta corporal, estágio primitivo da natureza,
retorno à barbárie, precisamente naquele momento crucial da civilização ociden‑
tal, ameaçada pelo perigo de desaparecimento após a Primeira Guerra Mundial e
do surgimento do nazismo e da barbárie perpetuada por este regime totalitário
e o que, no Brasil, no contexto da obra nassariana, podemos talvez relacionar ao
apogeu da ditadura militar.
Em Reis, o desejo é mantido no grau zero : “ Nada quero ” [OP, p. 287], que é um “ não
quero querer ”, lido pela psicanálise como uma forma de desejo. Todos os excessos
pretendem ser aí dominados, principalmente o excesso de ser muitos: “ Vivem em nós
inúmeros […] /Há mais eus do que eu mesmo. / Existo todavia / Indiferente a todos. /
Faço‑os calar: eu falo. Os impulsos cruzados […]/ Disputam em quem sou. / Ignoro‑os.
Nada ditam / A quem me sei : eu ‘screvo ” (2001: 119‑120).
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 97
Com efeito, Reis carrega uma idéia de indiferença afetada pela racionalização
face a dor que ele quer evitar. Desta maneira, ele se afasta da vida e mantém uma
postura afastada do mundo, sem a coragem cínica, fingindo a renúncia, a falta
de desejo, como se pudesse simplesmente, contemplando uma vida que passa
inexoravelmente.
Nas Ficções do Interlúdio – Odes de Ricardo Reis, o poeta se dirige a Lídia para
convencê‑la a ter uma vida contemplativa, nada desejar, pois tudo seria destinado
ao tempo inexorável que passa, irreversível. Nada desejar, aceitar o Destino, eis o
segredo da felicidade.
caiam cidades, sofram povos, cesse liberdade e a vida, quando o rei de marfim está em
perigo, que importa a carne e o osso das irmãs e das mães e das crianças? nada pesa na
alma que lá longe estejam morrendo filhos… ” (Nassar, 1978: 59‑60).
Eduardo Lourenço comenta que “ é bem difícil conceber cenário mais pós‑moderno
que o do poema de Reis, o famoso poema dos jogadores de xadrez concentrados
no seu jogo [...] e indiferentes a tudo, salvo à nossa indiferença ” (1986: 53). Contudo
há algo de inquietante em Reis e que se traduz no insistente Maktub árabe, na
98 O silêncio eloquente de um ventre seco
No conto “Aí pelas três da tarde” (1972), a indiferença contra as convenções sociais
pretende também atingir um estágio de construção de uma nova visão do mundo,
daí o conselho do narrador deste conto:
Largue‑se nela como quem se larga na vida, e vá fundo nesse mergulho: cerre as abas
da rede sobre os olhos e, com um impulso do pé [já não importa em que apoio], goze
a fantasia de se sentir embalado pelo mundo (Nassar, 1998: 73).
[…] deitado de lado, a cabeça quase tocando os joelhos recolhidos, ele dormia, não era
a primeira vez que ele fingia esse sono de menino, e nem seria a primeira vez que me
prestaria aos seus caprichos […]” (Nassar, 1978: 81).
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 99
E, no conto “Um ventre seco”, a sombra do ventre seco da mãe. Exílio radical, tonel
de Diógenes, retorno à origem, ao estado de natureza dos cínicos, ou a uma zona
de indiferenciação?
Assim se apresenta o jogo livre da linguagem como algo novo e comum a ser
conquistado, e não restaurado. A linguagem da infância, como sugere Giorgio
100 O silêncio eloquente de um ventre seco
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(ed.), Le conte et la lettre dans l’espace lusophone – Cahier nº 8 du Centre de recherche sur
les pays lusophones, Paris, Presses de la Sorbonne Nouvelle.
11
Ver seu livro Bartleby ou la création.
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 101
Pedro Eiras
Universidade do Porto
Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa
Tinha paixão?
Tinha paixão?
Ele, três livros apenas – que se retire a paixão e nada ficará: papel em branco.
1
Este ensaio foi apresentado no Colóquio Internacional «Tinha Paixão? (literaturas brasileira e
africanas)», organizado por Patrícia Lino e Sunamita Cohen, no dia 25 de Maio de 2011, e é publicado
pela primeira vez neste livro. O colóquio decorreu em vários locais do Porto, e pretendia divulgar
autores das literaturas brasileira e africanas a um público não académico.
104 Tinha paixão, tinha um copo de cólera?
Mas paixão é cólera, lavoura, caminho. Não simples alegria; muito menos paz. É
fúria, dor, jogo mortal, fogo e depois o silêncio das cinzas.
Dizê‑lo alto e bom som. Não por exibicionismo, perante o mundo. O apaixonado
sente que já não há mundo: ele apenas diz, apenas lê, sozinho.
Estar apaixonado é doloroso, fascinante, terrífico. Não se vai de ânimo leve para o
livro. Entra‑se a medo. Às vezes, nem sequer se quer ler; mas o apaixonado dá por
si a ler, despossuído, e depois já não pode deixar de ler.
Às vezes, o apaixonado pensa que odeia os livros, estes livros. E esse ódio também
pertence à paixão. Tem tanto medo deles, o apaixonado, que os fecha. Que depois
os abre. Sitia as palavras – ele, o sitiado. (Pouco importa o que ele quer, o que ele
pensa que quer: ele não sabe nada.) Ele é seduzido: o livro o arrebata do mundo.
Antecipo o prazer de ler. Recuso‑me a ler. Leio. Sei o texto e faço por ignorá‑lo. Finjo a
minha força, forço a minha indiferença. Como se diz de um actor: é forçado, soa a falso.
Porque a escrita é um ritmo, quer dizer, quer dizer: respiração, pulso, uma taqui‑
cardia sagazmente dominada. O que acontece a um corpo que lê uma frase?
Fenomenologia por explorar. Esse corpo imita a frase que lê: é varado pela mesma
electricidade. (Diz‑se de Proust que prolongava as frases para adiar a difícil, asmá‑
tica inspiração; é uma pequena explicação fácil; mas o que acontece ao leitor de
Proust, que asma outra recebe ele nos seus pulmões puros, impuríssimos?)
A paixão não dá nada. Não rende, não produz, não ilumina nem indica o caminho.
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 105
(Mas damos a vida por uma paixão, e sabemos: é quando damos essa vida que a
vivemos, que ela se torna nossa, perdida e conquistada.)
Na verdade, eu não sei explicar. O que sabe dizer o apaixonado? É evidente que
não sabe falar da sua paixão. Vai somando palavras, não para explicar, mas para
encobrir. O quê? Precisamente, ele desconhece aquilo que encobre.
(O que é? O que subjaz ao meu pensamento, que outros textos, que outras expe‑
riências Lavoura Arcaica evoca em mim, e recalco, e não sei, nunca saberei?)
Eu gostaria de apenas ler, não dizer nada. Ficar, o mais possível, rente à escrita.
Na verdade, ela está nos livros, on line, está em todo o lado (sobretudo, no apetite
condicionado dos leitores – não ainda os apaixonados –, em certo voyeurismo fácil).
Em todo o lado a menção da família libanesa, a migração para o Brasil, São Paulo,
Raduan sétimo de dez filhos, nascido em 1935. Em todo o lado os estudos de direito e
filosofia; as profissões abandonadas, as viagens pelos Estados Unidos, pela Alemanha,
pelo Líbano. O regresso. A escrita: o conto “Menina a caminho” em 1960, o romance
Lavoura Arcaica, a novela Um Copo de Cólera e três outros contos entre 1968 e 1974
(há ainda um último conto, “Mãozinhas de seda”, escrito em 1996; mas o autor dirá
que não passa de uma “molecagem”). As publicações: o romance em 1975, a novela
106 Tinha paixão, tinha um copo de cólera?
Eu preferia ignorar, desistir desta pergunta – ficar com os escritos, a sós. Teria muito
com que ficar: textos a interrogar, anos a fio. Mas é mais forte do que eu: pergunto
por quê o silêncio. Minha tentação.
Em raras entrevistas, Raduan Nassar deixa entrever razões, e por vezes a razão do
sem‑razão.
Entrevistado por Mario Sabino em 1997, acrescenta: “Não acredito que se possa
recuperar aquele impulso vital que leva alguém a mergulhar de cabeça numa ativi‑
dade. Depois que se perde isso, a gente tem mais é que cair fora. Não se faz litera‑
tura para valer com paixão requentada.”
Eu não me dava conta então de que escrever tem muito a ver com história pessoal,
muito a ver com exorcizar condicionamentos, fantasmas, demônios e sabe‑se lá mais
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 107
Expõe‑se, ironiza, graceja. Em que podemos acreditar? O que se diz aqui, que não
seja logo desdito pelo humor? Que exposição não se camufla?
Uma entrevista, lugar de obscuridade: não se pode acreditar numa só palavra, por‑
que cada palavra é ficção (mesmo quando se jura dizer a verdade, toda a verdade,
nada senão a verdade – intrat nesse momento o fantástico demónio da ficção).
São apenas hipóteses provisórias, ainda quando assinadas pelo mesmo nome que
assina os livros.
Talvez a verdade seja muito mais simples. Talvez nem sequer haja mistério neste
abandono da escrita. Alguém escreve, alguém deixa de escrever – por que haveria
mistério aqui?
A alucinação não tem limites: de bom grado aceita projecções, teorias da conspira‑
ção, delírios hermenêuticos. Os leitores inventam explicações para o inexplicável;
julgam, rotulam; justificam ou atacam o autor – que deixou a literatura? ou abdi‑
cou? ou a trocou por outra cultura, o cultivo da terra e a criação dos animais? ou
preteriu, esqueceu, foi vencido por, falhou, desprezou, temeu, o quê?
No limite, o leitor odeia (outra paixão) Raduan Nassar (odeia o silêncio, se ama os
livros).
Sobretudo: o leitor explica, explica, explica. Não suporta não interpretar o que não
compreende (é o mecanismo do medo, por definição). Prefere um tribunal inteiro.
Basta espreitar on line: todos os comentários inflamados sobre este escritor que
ousou não escrever mais.
(O mundo não pára de pedir: mais um romance, mais outro romance, quando
publicas o teu próximo romance?, já estás a escrever o teu próximo romance?, oh,
108 Tinha paixão, tinha um copo de cólera?
entretém‑me, distrai‑me com glosas, mais e mais volumes, histórias diluídas nos
muitos tomos das obras completas... Mundo que raramente se suspende na leitura,
na releitura do texto sozinho, na repercussão difícil da mesma palavra ao longo das
décadas, das gerações.)
Na verdade, não há acidente. O silêncio pode ser inexplicável; mas estava previsto
dentro do próprio texto que falava – desde a primeira hora. Releio o conto “O ven‑
tre seco”, escrito em 1970, e ouço: “já cheguei a um acordo perfeito com o mundo:
em troca do seu barulho, dou‑lhe o meu silêncio.”
Não se pode confundir a voz das personagens com as opiniões do autor, decerto,
decerto. Mas pode‑se avaliar uma concordância, suspeitar de um contágio.
E mesmo se não se pode acreditar nas entrevistas, mesmo se elas são tão verdadei‑
ras como os romances, as novelas, os contos, também nas entrevistas há concor‑
dância, coerência.
(E há uma coerência da fúria – Lavoura Arcaica é um dos livros mais furiosos que
alguma vez li –, mas também uma coerência do abandono. Raro é, decerto, que um
mesmo autor viva as duas paixões, uma após a outra – e talvez uma prometida no
interior da outra.)
Se contos como “O ventre seco” ou “Aí pelas três da tarde” descrevem uma renúncia
ao mundo, aquele que se encena a si próprio como Raduan Nassar nas entrevistas
lembra também (é Schopenhauer reencarnado?):
Gostar, gostar para valer, eu gosto mesmo é de dormir. Dormir é a melhor coisa deste
mundo. Nem leitura, nem diversão, nem uma boa mesa, nada se compara. Sexo então
é fichinha perto. É um momento de magia quando você, só cansaço, cansaço da
pesada, deita o seu corpo e a sua cabeça numa cama e num travesseiro. Ensaio, prosa,
poesia, modernidade, tudo isso vai para o brejo quando você escorrega gostosamente
da vigília para o sono. É o nirvana!
Um fazendeiro, uma jornalista: amantes. Ela chega à chácara dele. Indiferença fin‑
gida dele. No quarto, denso erotismo dos dois (na verdade, mais depressa a fanta‑
sia dele) (na verdade, ele – o narrador – insinua a insatisfação dela). Dia seguinte.
O narrador furioso com uma invasão de saúvas, que lhe desfazem uma cerca (a
propriedade privada?); ela estranha tanta fúria; ele reage: começa a descarregar
sobre os trabalhadores da chácara, ali bem à mão, quase sempre calados. Ela res‑
ponde por eles. E começa um longo, longo duelo verbal, barroco, implacável. Até
que ele esbofeteia a jornalista; eclode o gozo erótico de ambos (tudo, então, até
aqui, foi um ritual? uma perversa parada nupcial?). Mas a fúria dele é mais forte
do que o próprio jogo erótico; rompe o pacto, humilha‑a (como é difícil resumir
Um Copo de Cólera sem trair tudo quanto este texto não explica, não quer expli‑
car): e ela foge. Desespero do narrador sozinho; a nostalgia da infância (não sei
resumir, não se pode resumir). No fim do dia ela regressa, e toma a narração (não
se pode – ).
Ler, transcrever aqui uma frase do tamanho da cólera. Uma única frase de, na minha
edição, trinta e oito páginas.
Não o farei. Cito apenas (começar em voz baixa, como quem surpreende as mediae
res, como quem entra no fluxo vivo desse rio), por exemplo, aqui, o começo do
duelo:
............... e foi então que ela, com a mão ainda na maçaneta, deglutindo o grão per‑
feito do meu chamariz, e desenterrando circunstancialmente uns ares de gente séria
(ela sabia representar o seu papel), entrou de novo espontaneamente em cena, me
dizendo com bastante equilíbrio «eu não entendo como você se transforma, de
repente você vira um fascista» e ela falou isso dum jeito mais ou menos grave, na
linha reta do comentário objetivo, só entortanto, um tantinho mais, as pontas sempre
110 Tinha paixão, tinha um copo de cólera?
– ou, mais adiante, cólera acesíssima, a sequência de um combate infrene (cito lon‑
gamente, cito demasiado, mas sempre com escrúpulo de interromper, de cortar,
onde seria preciso um fôlego só – Joyce pedia um leitor de insónia ideal, seria pre‑
ciso também um leitor de respiração ideal):
............... «fique tranqüila, pilantra, gente como você desempenha uma função» eu
disse com amargura, «fique tranqüilo, sabichão, gente como você também desem‑
penha uma função: cruzando os braços, você seria conivente, mas agora vejo que
isso é muito pouco, como agente é que você há de ser julgado» «não pedi tua opi‑
nião» eu disse me amparando na frase feita, essa muleta ociosa mas capaz de me
exacerbar, compensadoramente, as sobras de musculatura, senti que me explodiam
duas bolhas imensas aqui nos bíceps, enquanto reconquistava – suprema aventura!
– minha consciência ocupada, fazendo coincidir, necessariamente, enfermidade e
soberania «pra julgar o que digo e o que faço tenho os meus próprios tribunais, não
delego isso a terceiros, não reconheço em ninguém – absolutamente em ninguém
– qualidade moral pra medir meus atos» eu disse trocando de repente de retórica
(tinha vibrado o diapasão e pinçado um tom suspeito, mas, como simples instru‑
mentos – inclusive as inefáveis... – e já que tudo depende do contexto, que culpa
tinham as palavras? existiam, isso sim, eram soluções imprestáveis), acabei inver‑
tendo de vez as medidas, tacando três pás de cimento pra cada pá de areia, arga‑
massando o discurso com outra liga, me reservando uma hóstia casta e um soberbo
cálice de vinho enquanto entrava firme e coeso (além de magistral, como ator) na
liturgia duma missa negra ...............
Porque se bebe aqui um copo de cólera. Quer dizer, é um dies irae, um Apocalipse:
um juízo final, ressurreição e condenação de tudo. E por causa de coisa tão pouca
– será? –, umas formigas que rompem uma vedação.
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 111
Juízo final. Quer dizer, pensar com a fúria. É o ponto de vista do pânico, do horror,
de Diónisos. Cheira a enxofre. Ele, ela – estão possuídos por uma coisa maior do
que eles (Clarice: este livro é maior do que eu); mas abrem a boca e, como profetas,
dizem as palavras. São humanos e sobre‑humanos, por graça de uma sinceridade
que não deveria poder existir.
(A civilização existe para impedir de pronunciar essas palavras; mas tanto Um Copo
de Cólera como Lavoura Arcaica existem para maldizer a civilização.)
Que sageza da fúria? Isso não deveria existir. A fúria deveria ser o inverso da sageza
– diz‑se, diz‑se.
É a frase.
Um Copo de Cólera é feito de sete frases, apenas. E uma dessas frases, repito, ocupa
trinta e oito páginas. Mas quem lê compreende que a frase poderia não terminar
nunca, e de algum modo ela não termina.
112 Tinha paixão, tinha um copo de cólera?
Então, é impossível parar: o sintagma pede sempre mais uma palavra, o fluxo (é
irrespirável, nenhum fôlego suporta este enunciado, ele exige os colossos, os titãs;
ninguém pode suster este texto, mas ele sustém‑se, e toma‑nos).
A frase não termina: porque ninguém pode desfazer simplesmente cada fio do
mundo para ficar com os fios lisos na mão, mas cada fio, se o observarmos com
cuidado, dobra‑se novamente em argumento e contradição, verdade e ponto de
vista, cólera da cólera, juízo e crítica do juízo. Não termina: dobra para dentro e
arrasta o leitor. Não é o círculo, com seu centro certo, mas a elipse (Severo Sarduy),
infinitamente dilatável, explosiva, sem origem assegurada.
A frase não termina, e não termina de gozar, por tanto adiar o gozo; e é uma frase
erótica, um jogo perverso, uma excitação gozosa que vai de fúria em cólera para
cair de paixão em danação. Tudo é gozo na frase (tudo é denso, barro lírio pau
esperma goela goma vinho – como se o que as duas personagens dizem fosse uma
convulsão da natureza, e a ideia fosse uma explosão da matéria).
E escrever sobre ele é escrever contra ele, tentar devassar a obscuridade (mas ele
defende‑se bem, ah, contra as lâminas analíticas, que nem o beliscam).
Quer dizer, discurso que reivindica o seu lado obscuro (que lado? todo ele é obs‑
curo por igual): o seu lado danado.
Herberto Helder: “Meu Deus, faz com que eu seja sempre um poeta obscuro.”
Saber que nem tudo pode ser reduzido à mera luz do dia.
Mas que algumas experiências pedem as trevas, até quando estão expostas à mais
forte iluminação.
Discurso difícil, por ser um discurso tão generoso. Nem sempre o silêncio é miste‑
rioso, e o laconismo, obscuro. Aqui, sentimos que o caroço da cólera nos escapa
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 113
porque as palavras se multiplicam; e quanto mais descascam esse fruto, mais afinal
o encobrem: porque quanto mais se diz, mais as palavras adiam – o quê? O que
haveria para dizer, para ler, sob as palavras?
O quê, sob, senão aquilo que as palavras anunciam sem mostrar? Que veredicto
sob o juízo?
Não há veredicto.
Estranho juízo final: ele tem duas bocas, duas verdades, a verdade é esquizo – como
em Lavoura Arcaica, clivada entre o pai e o filho.
Uma das verdades (portanto, meia ‑verdade; portanto, que verdade é esta?)
reivindica‑se fascista. É uma acusação dela, primeiro. Depois, um orgulho dele.
uns fumos de virtude libertária, desta purga ela gostava, tanto quanto se purgava
ao desancar a classe média”.
Ou no conto “O ventre seco”: “não tenho nada contra esse feixe de reivindica‑
ções que você carrega, a tua questão feminista (...), quero dizer simplemente
que não tenho nada a ver com tudo isso. Quer saber mais? Acho graça no ruído
de jovens como você. Que falam tanto em liberdade? É preciso saber ouvir os
gemidos da juventude: em geral, vocês reclamam é pela ausência de uma auto‑
ridade forte”.
(E o leitor odeia.)
(Talvez.)
Suspeitas de gnose.
Na entrevista concedida a Mario Sabino: “Afinal, este mundo não foi criado por um
deus bondoso, o deus bondoso só reina de fachada – um mundo como o nosso só
pode ser obra exclusiva do capeta.”
Mas tudo é duplo, e sob cada palavra dita é preciso ler pelo menos uma palavra
escondida (serve uma para mascarar a outra, serve o excesso para esconder o
escasso).
Porque – mas não quero desfazer por completo (não quero? não posso – não sabe‑
ria) a progressiva revelação, ou desengano, do leitor chegado às últimas páginas,
onde o texto e o ritual se desfazem a si próprios, mostram o avesso frágil do bor‑
dado perverso – porque, dizia, todo o livro (a cólera, o esporro) se constrói sobre
este comentário entredentes, dele, sobre ela: “como se [ela] dissesse «eu não tive o
bastante, mas tive o suficiente» (que era o que ela me dizia sempre)”.
Porque – mas não é bem isto, nunca é bem isto, enquanto escrevo sobre Raduan
Nassar – toda a fúria, indiferença, saúvas, danação e palavra de ordem do fascismo,
tudo isso esconde este terror masculino – digamos assim, abreviemos –, a ferida
narcísica, uma misoginia que esconde a misofobia. E foi, sob o homem cínico, um
homem apavorado que falou sempre, sob a palavra do juízo uma palavra de horror.
Porque nem toda a fantasia, nem todos os actos eróticos deste homem estavam à
altura do desejo – e sob o desejo a memória da infância, o abandono, a crueza do
corpo.
Lavoura Arcaica.
Fim dos tempos – e, num romance, os tempos arcaicos do início, tempos da inven‑
ção da moral e da interrogação da moral.
Uma mesma fúria, porém, no início, no fim de tudo. Os mesmos duelos, em dife‑
rentes bocas.
As mesmas ruínas.
Segunda parte, “O Retorno” (a abrir com uma epígrafe do Corão: “Vos são interdita‑
das: / vossas mães, vossas filhas, vossas irmãs”). Pedro traz André de volta à fazenda.
André reencontra as irmãs (mas não Ana, que se refugiou na capela), a mãe, o pai, e
o irmão mais novo, Lula, que lhe anuncia a própria decisão de fugir de casa. André
fala com o pai; e é um debate de fúria e dor, mas as palavras ditas apenas adiam
as palavras que seria preciso dizer, as interditas; André submete‑se e Iohána não
percebe que nada compreende. Diálogo impossível, inútil. No dia seguinte, como
quer o arquétipo, há a festa da família para comemorar o regresso do filho pródigo.
Música, dança, como numa das memórias da infância. Mas Ana surge, a dançar,
frenética, escandalosa. E Pedro revela o incesto a Iohána, e Iohána enlouquecido
esfaqueia a sua filha Ana, e a família diz o nome do pai e a mãe geme na sua língua
mediterrânica, a língua arcaica.
Citar o pai. O tom do pai, o ritmo, a sapiência; esta memória de um sermão do pai à
mesa da família, a família que ouve, calada; este início de ensinamento (poderia vir
de um livro veterotestamentário). Diz o pai:
Mas apenas para lhe contrapor, sem demora, a voz furiosa do filho, André, reve‑
lando a Pedro a sua paixão maldita – e ouso transcrever uma frase, única, inteira,
que é um capítulo todo de Lavoura Arcaica:
“Era Ana, era Ana, Pedro, era Ana a minha fome” explodi de repente num momento alto,
expelindo num só jato violento meu carnegão maduro e pestilento, “era Ana a minha
enfermidade, ela a minha loucura, ela o meu respiro, a minha lâmina, meu arrepio,
meu sopro, o assédio impertinente dos meus testículos” gritei de boca escancarada,
118 Tinha paixão, tinha um copo de cólera?
minha fala convulsa a alma de uma chama, um pano de verônica e o espirro de tanta
lama, misturando no caldo deste fluxo o nome salgado da irmã, o nome pervertido de
Ana, retirando da fímbria das palavras ternas o sumo do meu punhal, me exaltando
de carne estremecida na volúpia urgente de uma confissão (que tremores, quantos
sóis, que estertores!) até que meu corpo lasso num momento tombasse docemente
de exaustão.
Transcrevo gordas fatias de texto, embebidas em fúria, a fúria que não pertence
apenas a cada palavra, mas se inflama na extensão da frase (à terceira página, já
escrevi, o leitor terá cessado de resistir). Um capítulo é uma só pedra, a sofrer por
inteiro. E um gozo, um grão, uma coisa incómoda que é preciso colher toda, a esgo‑
tar, a encarnar.
Não sei.
E do mesmo modo, “na minha doença existe uma poderosa semente de saúde”.
Por que me apaixono? Porque eu sou André. (E André é andrós, o homem, todos
os homens.)
Porque eu sou, eu serei o pai, Iohána. As palavras dele, o elogio do tempo, que
é também submissão e exorcismo (ritual de apaziguamento, não vá a ordem do
mundo estalar), reconheço‑as em mim.
Porque, se eu não fosse todos (os justos, os danados), Lavoura Arcaica seria ilegível
para mim.
(E é preciso supor também que, para alguns leitores, Lavoura Arcaica será ilegível.
Mas esse é o preço da leitura: quem se perde num livro deve perder‑se também um
pouco a si próprio.)
da terra, o nascimento da moral (Nietzsche teria lido Raduan Nassar). Dir‑se‑ia que
tudo está por decidir, nestas páginas que desafiam o tempo, o incesto, as insti‑
tuições, o juízo. E quando o texto diz agora, é preciso ler: no início dos tempos,
na reinvenção dos tempos por este instante que eu, André, tomo em mãos. Mas
também: no fim dos tempos, no abandono da casa, no cancelamento de tudo o
que foi construído.
O leitor sente que este texto é muito antigo: não foi escrito na década de ’70, não
pertence ao século XX, de algum modo ele nem sequer pertence à História, se
coloca a História em questão, se a História depende de Lavoura Arcaica e corre o
risco de nem resistir ao inquérito. Este texto, dir‑se‑ia, fala de um lugar há muito
tempo esquecido.
Está a moral ainda em exame; é o tempo da origem, de cada vez que André ques‑
tiona a origem.
Por isso sentimos – talvez não hipotextos, estritamente falando, mas – familiari‑
dade com textos fundadores. Lavoura Arcaica tem a materialidade do paraíso da
Génese, e o tempo conferido aos homens do Eclesiastes, e a provação dos justos
de Job. Porque, de algum modo, esses livros estão ainda por escrever, no futuro de
Lavoura Arcaica, se o bem e o mal ainda não foram definidos.
Um Copo de Cólera: “assumo, pois, o mal inteiro, já que há tanto de divino na mal‑
dade, quanto de divino na santidade; e depois, pilantra, se não posso ser amado,
me contento fartamente em ser odiado”.
Por isso Raduan Nassar vive um frente a frente com a linguagem, um corpo a corpo
com o pensamento e a memória. Isto é, assume uma solidão absoluta. Deleuze
diria também: literatura menor, língua menor – aquela que se faz com as matérias
de todos os dias, mas um pouco desviadas, um pouco desajustadas.
Assim André, em Lavoura Arcaica: “Misturo coisas quando falo, não desconheço
esses desvios, são as palavras que me empurram, mas estou lúcido, pai, sei onde
me contradigo, piso quem sabe em falso, pode até parecer que exorbito, e se há
farelo nisso tudo, posso assegurar, pai, que tem também aí muito grão inteiro.
Mesmo confundindo, nunca me perco, distingo pro meu uso os fios do que estou
dizendo.”
Assim se assume a linguagem in statu nascendi. E há grão nela, mas só quem atra‑
vessa a danação sabe encontrá‑lo; é uma iniciação dolorosa, exige a travessia da
morte.
Para nós, que lemos, que ficamos aquém – como Iohána –, é um texto duplo, pelo
menos: porque tem grão e tem farelo, porque este texto se excede e é mais do que
ele mesmo, e ao mesmo tempo se encobre e é menos do que ele mesmo, porque
– sobretudo – ele inclui o seu segredo e afirma que inclui o seu segredo e nunca se
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 123
desmascara mesmo quando diz que está mascarado (e essa é a última máscara, e
Iohána nunca poderá ouvir André).
André tem de inventar outra vez a linguagem porque não há intimidade na lingua‑
gem de todos, nem liberdade na casa da família. Não basta fugir de quatro pare‑
des nem assinar uma confissão com palavras recicladas. Ninguém é verdadeiro a
repetir uma verdade. É preciso inventá‑la pela primeira vez. Tábua rasa, origem dos
tempos, sagração de cada palavra nova.
Por isso, é apenas mais uma versão do “filho pródigo”, já conhecemos a matriz. Mas
não pode ser: um filho pródigo não pode ser mais um (se for, ele não é pródigo,
apenas repete um programa esgotado, um rótulo).
E mesmo: que partido tomar? Porque não basta encarnar cada personagem: em
duelos morais, é inevitável escolhermos o nosso campo (as nossas armas).
Seguimos, por exemplo, André. A nossa empatia, a nossa compaixão, estão com
ele. Nem sequer somos nós que escolhemos; simplesmente, acontece assim
(quem sabe o que dirige a atenção de um leitor? decerto não o próprio leitor;
decerto o leitor é o último a saber por que razão se comove, se enfurece; ele,
o leitor, está demasiado perdido nas malhas do texto, ler é uma experiência de
cegueira).
Mas suspeitamos: e se o pai tiver razão? Iohána nem sequer sabe do incesto, por
ora; e vamos dar como adquirido que o incesto é o pecado maior, o interdito de
todas as civilizações, que tudo soçobra depois desse atentado à exogamia. Mas o
124 Tinha paixão, tinha um copo de cólera?
pai já tem muitos argumentos a opor ao filho, a começar pela sua própria incom‑
preensão de um discurso que se encripta – o que há para compreender nas pala‑
vras loucas de André?
Mas então sobressalta‑se o leitor. Porque, se ambos têm razão, se nenhum, então
talvez pai e filho sejam a mesma figura. Talvez ambos procurem e lutem por uma
verdade absoluta; e pouco importa afinal que a verdade de um seja apolínea e a de
outro dionisíaca, pouco ou nada importa quem segue a ordem ou a desordem, e
depois encontra a semente do seu contrário na lavoura laboriosa que encetou, que
interessa o caminho se é o mesmo o destino?
E nós, que lemos, nós, que tomamos partido e escolhemos o nosso lado, que supor‑
tamos André ou Iohána, que nos apiedamos de Pedro ou de Ana, ou da mãe, ou de
Lula, o mais novo da família, nós, que recebemos as verdades e a boa‑fé de cada
personagem, vemos, nas últimas páginas do livro, cair, um a um, cada elemento
da família condenada. E todos têm culpa, mas ninguém tem culpa, e lemos: “era
sua dor que supurava (pobre irmão!)”, e lemos: “mas era o próprio patriarca, ferido
nos seus preceitos, que fora possuído de cólera divina (pobre pai!), era o guia, era a
tábua solene, era a lei que se incendiava”.
Lemos: pobre André tomado pela paixão e pela cólera, e também pobre mãe inde‑
fesa, pobre irmão mais novo a sonhar fuga e rebeldia. Lemos a piedade derramada
sobre todos, justos, injustos, que importa? o narrador distribui por cada qual crime
e castigo, sofrimento e absurdo, uma só força trágica vara a razão de todos.
O silêncio.
Notas biobibliográficas
António Vieira (Lisboa, 1941). Médico, psiquiatra e biólogo evolucionista, ensinou psico‑
patologia, etologia e evolução humana. Desenvolveu um modelo da origem e evolução
da linguagem. Deixou a Universidade para trabalhar em literatura, tendo publicado so‑
bretudo ficção e ensaio. Pertence ao Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de
Lisboa e à comissão de redação da revista Sigila.
Gilda Oswaldo Cruz (Rio de Janeiro, 1938). Pianista. Atividade editorial no Brasil entre
1973‑1984. Dirigiu o Centro de Estudos Brasileiros (MRE) em Barcelona entre 1984
‑1990. Tem publicado artigos, contos, resenhas, traduções, um romance (Na sombra do
herói, Topbooks, 2010) e uma fábula para a juventude (O caso do amendoim roubado,
Jaguatirica, 2017). Dedica‑se atualmente a preparar concertos de divulgação da música
de Cláudio Santoro (1919‑1989), no ano de seu centenário. Vive e trabalha em Lisboa.
Joana Matos Frias (Porto, 1973) é Professora Auxiliar na Faculdade de Letras da Universidade
do Porto e membro do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa. Tem lecionado
Literatura Brasileira Moderna e Contemporânea e publicado diversos estudos sobre lite‑
ratura brasileira dos séculos XIX‑XXI, com destaque para o livro O Erro de Hamlet: Poesia
e dialética em Murilo Mendes (Rio de Janeiro, 7Letras, 2001), para os ensaios coligidos no
volume Repto, Rapto (alguns ensaios) (Porto: Afrontamento, 2014), e para a antologia de
Ana Cristina Cesar Um Beijo que Tivesse um Blue (V. N. de Famalicão: Quasi, 2006).
Madalena Vaz Pinto (Lisboa, 1960). Doutora em Letras pela PUC/Rio, é atualmente Professora
Adjunta da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, na Faculdade de Formação de
Professores em São Gonçalo. Consagra a sua investigação à literatura portuguesa, prin‑
cipalmente aos autores modernos e contemporâneos, tendo publicado vários artigos
em livros e revistas especializadas na área. É organizadora do livro Gonçalo M. Tavares:
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 129
ensaios, aproximações, entrevista (Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2018). É editora da re‑
vista Convergência Lusíada do Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro.
Masé Lemos (Belo Horizonte, 1963) é professora da Escola de Letras da Universidade Federal
do Estado do Rio de Janeiro, UNIRIO. Doutora em Letras pela Universidade Sorbonne
Nouvelle ‑ Paris 3 (2004) com tese sobre a obra de Raduan Nassar, Une poétique de l’in‑
tertextualité, é investigadora do Centre de Recherche Sur les Pays Lusophones ‑ CREPAL
‑ Paris 3. Pesquisa atualmente a poesia contemporânea brasileira, portuguesa e francesa,
desenvolvendo estudos acerca das relações entre poesia, prosa e outras artes. Publicou
diversos ensaios e livros. Coorganizou o livro Poesia e interfaces: operações, composições,
plasticidades (7Letras, 2017).