Crítica de Arte e Cultura No Mundo Contemporâneo - A Palavra e A Imagem

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A Moderna Diferença

A PALAVRA E A IMAGEM

Organização
Alcinda Pinheiro de Sousa
Alda Correia
Teresa de Ataíde Malafaia
Co-organização
Ana Daniela Coelho
Joana Vidigal
Maria José Pires
Design, paginação e arte final
Inês Mateus l [email protected]
Imagem na Capa
© Maria João Worm 2006
Imagem na Contracapa
© Maria João Worm 2001
Edição
Centro de Estudos Anglísticos da Universidade de Lisboa
Impressão e acabamento
COLIBRI - Artes Gráficas
Tiragem 600 exemplares
ISBN 978-972-8886-08-0
Depósito Legal 262 601/ 07
2007

PUBLICAÇÃO APOIADA PELA

FUNDAÇÃO PARA A CIÊNCIA E A TECNOLOGIA


A MODE R NA DI FE R E NÇA

A Palavra e a Imagem

Alcinda Pinheiro de Sousa


Alda Correia
Teresa de Ataíde Malafaia
Organização

Ana Daniela Coelho


Joana Vidigal
Maria José Pires
Co-organização
CENTRO DE ESTUDOS ANGLÍSTICOS DA UNIVERSIDADE DE LISBOA

Coordenação Científica de João Almeida Flor


Programa de Investigação A MODERNA DIFERENÇA

Investigadoras
Alcinda Pinheiro de Sousa
Alda Correia
Ana Daniela Coelho
Ana Rosa Gonçalves
Joana Vidigal
Luísa Maria Rodrigues Flora
Márcia Bessa Marques
Maria José Pires
Teresa de Ataíde Malafaia
AGRADECIMENTOS
A equipa organizadora de A Palavra e a Imagem agradece ao Coordenador Cientí-
fico do Centro de Estudos Anglísticos da Faculdade de Letras da Universidade de
Lisboa, João Almeida Flor, a forma muito construtiva como contribuiu para definir o
Programa de Investigação e Intervenção A Moderna Diferença.
Ao Hugo Xavier da Cavalo de Ferro Editores agradecemos a generosa dispo-
nibilidade para participar na Mesa Redonda que finalizou o IV Seminário do ciclo
A Palavra e a Imagem, realizado em Maio de 2006, onde participou também o
Professor Jacques Leenhardt e que foi moderada por Alcinda Pinheiro de Sousa e
Teresa de Ataíde Malafaia.
À Luísa Falcão reforçamos os nossos agradecimentos pelo modo profissional e
generoso com que se dispôs a resumir e traduzir as comunicações publicadas em
língua inglesa.
À Salomé Machado agradecemos a colaboração prestada à equipa organizadora.
A revisão do ensaio de Jacques Leenhardt, feita por Silvane Maria Pereira Brandão,
merece-nos também um agradecimento especial.
Lista de participantes no Ciclo de Seminários A Palavra e a Imagem
Maria Salomé Machado
Centro de Estudos Anglísticos da Universidade de Lisboa
Faculdade de Letras - Universidade de Lisboa
Alda Correia
Centro de Estudos Anglísticos da Universidade de Lisboa
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa
Catherine Bernard
Université Paris VII
Maria José Pires
Centro de Estudos Anglísticos da Universidade de Lisboa
Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril
Emily Eells
Université Paris X
Jacques Leenhardt
École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris
Maria João Worm
Alcinda Pinheiro de Sousa
Centro de Estudos Anglísticos da Universidade de Lisboa
Faculdade de Letras - Universidade de Lisboa
Márcia Bessa Marques
Centro de Estudos Anglísticos da Universidade de Lisboa
Academia de Música de Santa Cecília
Ana Rosa Gonçalves
Centro de Estudos Anglísticos da Universidade de Lisboa
Escola Secundária 3 Dra. Laura Ayres, Quarteira
Luísa Maria Rodrigues Flora
Centro de Estudos Anglísticos da Universidade de Lisboa
Faculdade de Letras - Universidade de Lisboa
Landeg White
Universidade Aberta de Lisboa
Ana Daniela Coelho
Universidade de Lisboa
Teresa de Ataíde Malafaia
Centro de Estudos Anglísticos da Universidade de Lisboa
Faculdade de Letras - Universidade de Lisboa
Índice

Lista de Ilustrações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11
Introdução
Alcinda Pinheiro de Sousa, Alda Correia, Teresa de Ataíde Malafaia . . . 13
Idade Média, Renascimento e o Início da Modernidade – Desfazendo Mitos
Maria Salomé Machado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25
Ver o Corpo, Escrever o Corpo: em Mrs. Dalloway de Virginia Woolf
e Água Viva de Clarice Lispector
Alda Correia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33
Empathy and Dissidence in Contemporary English Art and Fiction
Catherine Bernard . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45
Resumo em português . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 63
Frida Kahlo, the Wounded Flesh Made Sign
Maria José Pires . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 67
Resumo em português . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 79
The Victorians at Amiens Cathedral: Translation and Transposition
Emily Eells . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 83
Resumo em português . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 99
Crítica de Arte e Cultura no Mundo Contemporâneo
Jacques Leenhardt . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 103
Fazer acontecer uma história
Maria João Worm . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 115
Nem uma Palavra Só, nem uma Imagem Só, mas a sua Mistura Heterogénea
Alcinda Pinheiro de Sousa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 123
Lendo Marriage A-La-Mode, de William Hogarth
Márcia Bessa Marques . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 147
Dois Rossettis: Christina e Dante Gabriel – “Is she transcribing from his lips?”
Ana Rosa Gonçalves . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 163
A Delicada Resistência de uma Porcelana ou Desta Matéria São Feitos
os Romances. Atonement de Ian McEwan
10 Índice

Luísa Maria Rodrigues Flora . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 177


The Word that Says More than a 1000 Images
Landeg White . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 193
Resumo em português . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 203
Estratégias de Exibição. Frida Kahlo em Lisboa
Teresa de Ataíde Malafaia e Ana Daniela Coelho . . . . . . . . . . . . . . . . . 207
Ilustrações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 221
Lista de Ilustrações

Sir Joshua Reynolds, Lady Caroline Scott as “Winter”, 1777 . . . . . . . . . 223


Jan van Eyck, Arnolfini Wedding Portrait, 1434 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 223
Frida Kahlo, Self-Portrait as a Tehuana (Diego in My Thoughts), 1943 . 224
Frida Kahlo, Self-Portrait with Cropped Hair, 1940 . . . . . . . . . . . . . . . . 224
Frida Kahlo, El Venadito, 1946 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 224
Maria João Worm, Técnica mista sobre papel – três imagens em
dimensões aproximadas do A4, 1996 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 119
Maria João Worm, Acrílico sobre tela, 2001 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 120
Maria João Worm, Linóleo gravado, 2005 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 120
William Blake, The Execution of Breaking on the Rack, 1793 . . . . . . . 140
William Hogarth, Marriage A-La-Mode, c. 1743: 1 ‘The Marriage
Settlement’; 2 ‘The Tête à Tête’; 3 ‘The Inspection’; 4 ‘The Toilette’;
5 ‘The Bagnio’; 6 ‘The Lady’s Death’ . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 225-227
Dante Gabriel Rossetti, The Girlhood of Mary Virgin, 1849 . . . . . . . . . 228
Dante Gabriel Rossetti, Ecce Ancilla Domini, 1850 . . . . . . . . . . . . . . . 228
Dante Gabriel Rossetti, Sketch, 1852 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 229
Dante Gabriel Rossetti, Artist’s Studio, c. 1849 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 229
Fotografia de Ana Daniela Coelho, Objectos do ateliê
Desafiar a Obra (Exposição Memória), CCB, 2006 . . . . . . . . . . . . . 230
Fotografia de Ana Daniela Coelho, Trabalhos do Ateliê
O Olho que Tudo Vê (Exposição Memória), CCB, 2006 . . . . . . . . . 230
Fotografia de Ana Daniela Coelho, Tear de Memórias
(Exposição Memória), CCB, 2006 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 231
Introdução

ISBN 978-972-8886-08-0 • A PALAVRA E A IMAGEM • CEAUL / ULICES 2007


A
Moderna Diferença é um Programa transdisciplinar do Centro de
Estudos Anglísticos da Universidade de Lisboa (CEAUL). Foi conce-
bido, ao longo de 2004, a partir da área dos Estudos Ingleses, por três
investigadoras do Centro, Alcinda Pinheiro de Sousa, Luísa Flora e Teresa de
Ataíde Malafaia. O Programa consolidou-se com base nas experiências adqui-
ridas durante o funcionamento do Programa de Estudos de Identidade, desen-
volvido também no CEAUL, desde 1994.
Pretende A Moderna Diferença ser um Programa de Investigação e
Intervenção na sociedade, construído para pensar, (in)formar e agir sobre o
problema dos conceitos de igualdade e diferença, de identidade e alteridade
e sobre o das suas relações, na idade moderna, e o dos conflitos que radicam
nessas problemáticas relações. Durante a primeira década do século XXI,
decorrendo ainda do pensamento individualista forjado ao longo da nossa
modernidade (e também gerador de um indivíduo que interroga o que lhe é
particular), tais problemas (económicos, políticos, sociais e culturais) agudi-
zam-se, com violência, através do exercício do poder, filtrado pelos média,
por instituições financeiras, industriais, científicas, educativas, religiosas, que
se servem das novas tecnologias.
Queremos, com o Programa, dar ênfase a temas construídos em termos
do binómio cultura humanista/cultura científica, de noções de género e de
raça, da antítese guerra/paz, tal como se materializam em diversas formas de
expressão cultural, nomeadamente linguística, visual, literária e ensaística. A
Moderna Diferença parte ainda do princípio de que os referidos problemas
das definições de igualdade e diferença, de identidade e alteridade e das suas
relações, bem como o dos conflitos que radicam nesses problemas, definiti-
vamente se constituem enquanto objecto de análise sistemática, desde a
segunda metade do século XVIII até à actualidade.
Num quadro teórico-crítico, influenciado por teorias contemporâneas
de classe, género e etnia, vamos considerar os confrontos entre culturas, ma-
terializados em diversas práticas discursivas e visuais, que estudaremos trans-
disciplinarmente, numa perspectiva formal e como documentos. São exemplos
16 Alcinda Pinheiro de Sousa, Alda Correia, Teresa de Ataíde Malafaia

das referidas práticas, por um lado, a escrita jornalística, que as novas tecnolo-
gias estão a desenvolver exponencialmente, a ensaística, o conto, o relato de
viagem e biográfico, o romance, o poema, o drama e, por outro lado, as múl-
tiplas imagens em suporte digital, o design, a fotografia, o vídeo, o cinema, a
arquitectura, a gravura.
Assentes nestes princípios, organizámos, em 2005-06, na Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa, um ciclo de quatro seminários com o título
A Palavra e a Imagem, cujas comunicações agora se publicam.

In the first place, theory is crucial and inescapable because without


theories and hypotheses we would be overwhelmed by a mess of
impressions, by immense quantities of empirical data.
(Walker & Chaplin 1997: 58.)

Uma vez que é imprescindível fundar a investigação no processo de defi-


nir conceitos, começámos por problematizar as acepções de «modernidade»
e «diferença». Quanto ao primeiro conceito, em «Idade Média, Renascimento
e o Início da Modernidade – Desfazendo Mitos», ensaio inicial da presente
colectânea, Maria Salomé Machado defende que «a Modernidade já se
revela, em pleno, a partir do século XV», sendo exemplar «nos trabalhos
multifacetados de Leonardo da Vinci (1452-1519), nos estudos de Copérnico
que explanou as teorias heliocêntricas (1473-1543) e nas teses filosóficas do
humanista Jean Luis Vives (1492-1540).» Assim, afirma a contiguidade entre
as formas renascentistas e as modernas de conceber o indivíduo, o mundo, e
as suas múltiplas relações, ao declarar «que Renascimento e Modernidade
estão profundamente ligados», ainda que «os estudiosos da época Moderna
coloquem sempre o seu início na segunda metade do século XVII, altura em
Introdução 17

que a ciência se liberta das grilhetas impostas pela religião cristã». Maria
Salomé reforça, pois, a teoria de que devemos fazer radicar o dealbar da
Modernidade no Renascimento, tal como explica M. H. Abrams: «Beginning
in the 1940s, a number of historians have replaced (or else supplemented)
the term “Renaissance” with early modern to designate the span from the end
of the middle ages until late in the seventeenth century.» (Abrams [1957]
1999: 264).1
Sobre a acepção de «diferença», Alcinda Pinheiro de Sousa apresentou
uma comunicação ao primeiro do ciclo dos quatro seminários A Palavra e a
Imagem. Tal comunicação esteve na base do ensaio «De Thomas Kuhn, The
Structure of Scientific Revolutions às Questões de Diferença».2 Aí, problema-
tizou o binómio diferença/identidade fundamentalmente em relação ao con-
ceito de paradigma, como este é definido pelo historiador e filósofo da ciência
Thomas Kuhn. Além disso, alargou a referida problematização, considerando
as teorias de Mark Currie que, em Difference, avalia ensaisticamente o
processo de definição de «diferença» entre meados da década de sessenta do
século XX e o início do século XXI, partindo do conceito estruturalista de
signo linguístico. Alcinda concluiu pela necessidade de se considerar hoje,
criticamente, a própria forma de oposição binária para definir diferença/iden-
tidade, forma que, em última instância, impede a conceptualização do livre
proliferar das diferenças.
Seleccionar e problematizar «alguns importantes enquadramentos teó-
ricos diferenciados em que hoje é viável estudar palavra, ou imagem visual,
ou qualquer das relações diferentes que entre ambas se possa estabelecer» foi
também objectivo de «Nem uma Palavra Só, nem uma Imagem Só, mas a sua
Mistura Heterogénea». Neste trabalho, incluído na presente colectânea, Alcinda
Pinheiro de Sousa ensaiou ainda «uma diferenciação dos tipos de imagem
visual a que podemos estar a referir-nos, sobretudo actualmente, quando tal
diferenciação está potenciada, como antes nunca esteve, pelo aceleradíssimo

1 Este problema da definição do conceito de «modernidade» tem sido constantemente equaciona-


do, e em vários quadros teóricos. Como tal, damos relevo aqui a John Cannon, ed. ([1997] 2002).
The Oxford Companion to British History, s.v. “Renaissance”; Peter Childs (2000). Modernism, 12-17;
Raymond Williams ([1976] 1983). Keywords. A Vocabulary of Culture and Society, s.v. “Modern”;
Yolton et al. ([1991] 1995). The Blackwell Companion to the Enlightenment, s.v. “Ancients and
Moderns”.
2 Este ensaio vai ser publicado em «And gladly wolde (s)he lerne and gladly teche». Homenagem a
Júlia Dias Ferreira. No prelo.
18 Alcinda Pinheiro de Sousa, Alda Correia, Teresa de Ataíde Malafaia

desenvolvimento das chamadas novas tecnologias.» Por fim, experimentou


«de modo relativamente limitado mas sistemático, e num exemplo apenas»,
utilizar, por analogia, o conceito químico de mistura «no processo do estudo
da palavra, da imagem, e das suas formas de interagirem.» Deste modo,
Alcinda procurou demonstrar que as classes de combinações (como no exem-
plo seleccionado) «do linguístico com o visual, do simbólico com o icónico
(enquanto componentes com identidades próprias)» se constituem como
misturas que, pela interacção de tais componentes, potenciam «interpretações
diversas das de cada um deles, em separado, e mais profícuas.»
Os ensaios agora publicados avaliam os estudos da palavra, ou da
imagem visual, ou das formas diferentes como elas interagem, em relação a
temas cronologicamente localizados entre o século XVIII e o século XXI.
Assim, «Lendo Marriage A-LA-Mode, de William Hogarth», escrito por Márcia
Bessa Marques, é o primeiro que passamos a considerar. Neste ensaio,
explica-se a maneira como (face ao tempo dele, a primeira metade do século
XVIII) Hogarth combina imagem e palavra: «Trabalhando no contexto da
sátira gráfica, o pintor/gravador entra em diálogo com a crítica social, cultural
e política contemporânea, justapondo técnicas e géneros visuais e literários.»
Todavia, Márcia já enfatizara antes a teoria, então dominante, «de que a
pintura podia transmitir certos momentos narrativos mais eficazmente do que
a palavra escrita». No caso de Hogarth, ela esclarecera ainda que «o espaço
de uma só tela torna-se muito reduzido para desenvolver a sua leitura da
comédia humana», razão pela qual o pintor/gravador concebe a série como
forma de «trabalhar um enredo (quase como se de uma escultura se tratasse),
aprofundar a caracterização das personagens e contrastar cenários contem-
porâneos, que os espectadores/leitores identificassem, em que se reconheces-
sem e em cujos destinos se envolvessem.» Quanto aos seis quadros de
Marriage A-LA-Mode, em particular, Márcia especifica que o projecto de
Hogarth «parte da leitura de um conjunto de discursos em torno dos casa-
mentos arranjados», e dá os exemplos de «a popular tragicomédia homónima
de John Dryden (…), as peças de Aphra Behn, The Lucky Chance; or, An
Alderman’s Bargain (…) e The Forc’d Marriage; or, The Jealous Bridegroom
(…)», passando pelos exemplos de o «romance de Samuel Richardson,
Pamela (…), e a respectiva paródia de Henry Fielding, Shamela (…) até à peça
do actor e amigo David Garrick, Lethe; or Aesop in the Shades (…)».
Reconhecendo a importância da catedral de Nossa Senhora de Amiens
no intercâmbio cultural entre a Grã-Bretanha e a França, no século XIX, em
«The Victorians at Amiens: Translation and Transposition», Emily Eells analisa
o contributo cultural do guia de viagens Hand-book for Travellers in France
Introdução 19

(1843), de John Murray. Efectivamente, a descrição de Amiens por Murray


considera a catedral um modelo da arquitectura gótica, tal como Pugin a
define em Principles of Pointed or Christian Architecture. Salienta, todavia,
Emily que The Bible of Amiens (1884) de John Ruskin é o estudo vitoriano
mais conhecido sobre a catedral, o que não invalida os estudos de William
Morris («Shadows of Amiens»,1856) e Walter Pater («Notre-Dame
d’Amiens»,1894), também eles esclarecedores das relações culturais anglo-
francesas no século XIX. Ponderam, assim, a representação de cenas bíblicas,
assentes numa linguagem visual, que permitia, numa transposição de um
sistema de signos para outro, que as populações da medievalidade as lessem.
Tal como Ruskin, a Bible d’Amiens de Proust prova os modos como a
tradução negoceia a transmissão dos dados culturais contidos num texto.
Assumindo o papel de mediador cultural, insere longas notas de rodapé para
explicar as referências no original inglês, transformando The Bible of Amiens,
aumentando e modificando as suas dimensões, ao ponto de a tornar quase
irreconhecível quando comparada com La Bible d’Amiens.
Assim, as diferenças culturais existentes entre a França medieval e a
Inglaterra vitoriana que esta obra de Ruskin evidencia adquiriram outro
nível de sentido quando Proust, ao traduzir o texto, o enriqueceu com a sua
subjectividade e referências culturais, o que confirma a teoria de Walter
Benjamin, segundo a qual a tradução assegura maior longevidade ao texto
traduzido.
Partindo, em «Dois Rossettis – Christina e Dante Gabriel: ‘Is she trans-
cribing from his lips?’», do reconhecer do desfasamento entre o que Christina
Rossetti parece representar, através do seu papel de modelo de Virgem Maria, o
arquétipo da feminilidade vitoriana, e a sua própria experiência autoral, Ana
Rosa Gonçalves salienta várias formas de resistência de Christina às normas
culturais da sociedade vitoriana. Conduz-nos, por conseguinte, a interro-
garmo-nos acerca da submissão ou não da Poeta à autoridade do irmão,
Dante Gabriel, nomeadamente através da escolha de desenhos deste que
sugerem a tutela intelectual sobre a irmã. Acrescente-se ainda a reflexão que
é proposta sobre as diversas expressões da tradição literária hegemónica,
masculina, e as formas como Christina subverte a sua própria submissão. De
acordo com Ana Rosa, a figura tutelar do irmão impede que o acto de escrita de
Christina fosse considerado transgressor; trata-se de uma constatação, alicer-
çada numa reflexão cuidada, que envolve o próprio acto de escrever. Uma
observação mais atenta das representações, relacionando-as com o poema de
Christina Rossetti, «In an Artist’s Studio» (1856), permite que se reconheça,
por um lado, o modo como o pintor dilui a identidade das modelos que posam
20 Alcinda Pinheiro de Sousa, Alda Correia, Teresa de Ataíde Malafaia

para ele e, por outro, a sublimação da mulher passiva realizada pela Poeta.
«Frida Kahlo, the Wounded Flesh Made Sign» convida, tanto a uma
leitura articulada entre o Prefácio de Angela Carter à colecção de postais,
Images of Frida Kahlo, e a vida da artista, como a incursões na obra ficcional
de Carter. Destaca-se, assim, o desejo da artista plástica se representar, o que
implica reflectir sobre o auto-retrato e remeter para obras ilustrativas de um
percurso, no qual as expressões de teor autobiográfico são uma constante.
Vemos, por conseguinte, reforçada a especificidade identitária de Kahlo, tradu-
zida principalmente no modo como olha para si própria. Da relação que Maria
José Pires estabelece entre os registos ficcionais, plásticos e críticos, emanam
várias formas de narrativa, nomeadamente a da utilização do sofrimento
sentido por Frida nos seus auto-retratos. Este recriar das experiências de teor
emocional encontra-se descrito no modo como Carter lê Frida, como Frida se
lê a si própria e, por fim, como Maria José propõe que as leiamos. Com essa
finalidade, destaca o papel da dor, a criação artística de Frida na sua expres-
são catártica e também a relação que Carter estabelece com outras mulheres
artistas, para quem fama e exibição, neste caso de mexicanidade, coexistiram.
O ensaio de Luísa Flora «A Delicada Resistência de uma Porcelana ou
Desta Matéria são Feitos os Romances. Atonement de Ian McEwan» centra-se
na narrativa e na sua capacidade para interpelar o acto de viver. Isto implica
interrogar o próprio acto de escrever ficção, problematizando-o na sua
legitimidade e articulando-o com um dos temas da obra – a viagem de auto-
-descoberta da adolescente, Briony Tallis. Esta, que pretende ser escritora, verá
o mundo em função daquilo que julga servir a sua escrita, e agirá na vida real,
de acordo com essa conjectura. O romance é sintonizado com uma linhagem
romanesca ocidental que parte, essencialmente, do realismo, mas que remete
para «múltiplos contributos de uma tradição imensa e plural». Luísa Flora
serve-se ainda de entrevistas dadas pelo escritor e de afirmações de Milan
Kundera para evocar a concepção de arte romanesca ilustrada por Atonement
e para avaliar a prática ficcional de McEwan, chamando a atenção para o uso
que este faz do experimentalismo e do realismo: «a ortodoxia, que tem vindo,
sob diversos semblantes, a privilegiar o experimentalismo e a desvalorizar o
realismo como método literário ilude o fundo do problema e é, pelo menos em
autores como McEwan, uma falsa questão, uma não questão».
A mesma interpelação sobre o acto de viver e o acto de escrever é con-
substanciada no ensaio «Ver o Corpo, Escrever o Corpo: em Mrs. Dalloway de
Virginia Woolf e Água Viva de Clarice Lispector» de Alda Correia. O seu ponto
de partida é a reflexão sobre a interpretação do corpo na cultura e
pensamento ocidentais e a distinção feita por Molly Hite entre dois tipos de
Introdução 21

corpo com representações diferentes: o corpo enquadrado em papeis sociais


e o corpo visionário, que ambas as escritoras exploram. A forma conflituosa
como a personagem central de Mrs Dalloway encara a sua própria imagem e
vivência corporal, destacando a alusão ao simbolismo dos quadros, é então
comparada com a utilização da escrita (e da pintura) em Água Viva, como
acto de conhecimento ontológico que constrói e define a personagem e a sua
identidade. Esta construção parte do corpo, da pintura e das palavras como
matéria-objecto, trazendo aquilo que é representado para a própria represen-
tação, num movimento em que a busca absoluta de significado determina a
eliminação de fronteiras entre formas de expressão.
Os artigos «Empathy and Dissidence in Contemporary English Art and
Fiction» e «Crítica de Arte e Cultura no Mundo Contemporâneo» de Catherine
Bernard e Jacques Leenhardt, respectivamente, propõem-se, ainda que não
perdendo de vista os referentes do modernismo, reflectir sobre a pós-moder-
nidade, analisando a relação da palavra com a imagem e tomando como
ponto focal quer o objecto artístico, quer a actividade crítica, quer a narrativa
literária, quer a questão cultural. A arte intensificou, a partir dos anos setenta,
de um modo mais absoluto do que anteriormente, a referência ao seu próprio
sistema específico de significados, ou ao seu próprio estatuto de artefacto
construído, configurando-se em formas de hiperrealidade ou de uma espécie
de autenticidade de sentido negativo. Por outro lado, verifica-se uma forte
tendência para ignorar a separação entre a arte e outras áreas sociais e
culturais, o que traz um pluralismo cada vez mais eclético às obras concebidas,
que podem agora associar-se à vida comum, utilizando-a, desconstruindo-a
ou parodiando-a, sem distinções valorativas. O velho sonho de conhecer o
mundo e a realidade é agora uma quimera, não só porque a verdade é um
produto da interpretação individual, mas também porque a ficção se confun-
de muitas vezes com a realidade.3 Contudo, este conhecimento pode passar
presentemente, por experiências tão estimulantes como a reapropriação da
obra de arte através da exposição no museu, onde o visitante é confrontado
com os traços da actividade humana, a partir dos quais pode construir o seu
lugar dentro da história.
Os ensaios de Catherine Bernard e Jacques Leenhardt ilustram, de uma
forma interessante, o descentramento e a crise de legitimação da pós-moder-
nidade. O primeiro sublinha o uso que os artistas contemporâneos fazem dos

3 A este respeito consultar Astradur Eysteinsson, The Concept of Modernism, particularmente o


capítulo «Reading Modernism through Post modernism» (1990:103-142).
22 Alcinda Pinheiro de Sousa, Alda Correia, Teresa de Ataíde Malafaia

espaços sociais cegos, esquecidos ou excluídos, relacionando aquele uso


com representações sociais, a degradação cultural, o papel da arte no espaço
urbano e político. O exemplo mais notório são as esculturas de Rachel
Whiteread, moldes de casas, em alguns casos expostas junto a um museu ou
uma exposição, que constituem, segundo a artista, um elemento de interac-
ção e questionamento desse espaço artístico convencional, visto como uma
«memória colectiva», uma utopia institucionalizada e definida em parte pela
economia.
O segundo ensaio parte de uma reflexão sobre a função da crítica de arte
na cultura contemporânea para sublinhar, em certa medida, o oposto: a
exposição como uma forma de arte privilegiada na idade da democratização,
o discurso do curador como um discurso crítico e o olhar do visitante como
um «campo aberto» em que se propõe que ele próprio «fabrique a sua história
pela mediação simbólica de diferentes artes existentes».
«Em Estratégias de Exibição. Frida Kahlo em Lisboa», Ana Daniela Coelho
e Teresa de Ataíde Malafaia dinamizam leituras a partir das interpretações
inerentes à exposição como prática cultural.4 Reconhecendo a não neutra-
lidade dos espaços dedicados ao acto de exibir, acompanham o percurso pro-
posto aos visitantes. Com essa finalidade, aproveitam os cenários de visuali-
zação, previamente definidos pela comissária, e convidam os leitores a reflec-
tirem sobre a relação que se estabelece entre os diversos modos de olhar, no
quadro da globalização que favorece a especificidade transnacional de muitas
exposições. Se esses modos se traduzem na ancoragem textual comum a
vários países que acolheram a exposição e na subdivisão em espaços fecha-
dos, de cores distintas, que abordam um percurso dominantemente biográ-
fico, em que as expressões da mexicanidade estão patentes, as actividades
propostas nos ateliers do Centro Cultural de Belém, destinadas aos alunos dos
vários níveis de ensino português, procuram estimular uma interactividade
ausente na exposição. Ausência essa que condiciona a possibilidade dos visi-
tantes construírem a sua visão de Frida Kahlo, no tempo compreendido entre
1907-1954. Reveste-se a reflexão de potencialidades críticas por ponderar o

4 Veja-se, a propósito da exibição presente em diversas práticas culturais, a reflexão de Bella Dicks:
«(...) displays are no longer confined to galleries, museums or other dedicated exhibitionary
venues. Forms of display today occupy visitable, material environments. Cultural meanings are
literally written into landscapes, roads and street furniture, seating, walls, screens, objects and
artworks. Museums represent societies as walk-through exhibitions of material artifacts.» (2003:
17-18).
Introdução 23

espaço da exposição como legitimador de uma interpretação conducente a


formas de exibir e articular perspectivas distintas de Ana Daniela e Teresa que
leccionam, respectivamente, nos ensinos secundário e universitário.
Finalmente o ensaio de Landeg White é, poderíamos dizer, transversal em
relação aos anteriores. Defende que a imagem só mantém a sua força dentro
da mesma cultura e que, logo que se atravessa uma fronteira cultural, podem
ser necessárias bastantes palavras para lhe dar o mesmo poder. Ao reflectir
sobre o multiculturalismo e a forma como o Ocidente concebe a própria
identidade cultural e a articula com o seu cânone artístico, este texto
interroga-se também sobre o valor das esculturas de Whiteread, a relevância
da crítica museológica, a importância da imagem corporal ou a própria
tradição romanesca.
Num registo entre o crítico e o ficcional, o último trabalho que vamos
referir, «Fazer Acontecer uma História», de Maria João Worm, leva-nos de
volta à necessidade de pensar o sentido da palavra «diferença». Antes, porém,
devemos explicar que «Fazer Acontecer uma História» é uma mistura
heterogénea, combinando imagens e palavras, conforme se deduz do que a
própria artista declara, na Introdução: «É importante para mim quando faço
uma exposição saber que cada imagem/texto faz parte de um todo, por isso
peguei em imagens que fiz em tempos e contextos diferentes e com o que sei
agora escrevi uma história para cada uma delas.» Nesta mesma Introdução, o
comunicar de uma história é ensaisticamente definido de forma que
pressupõe a crítica da diferença, em nome da convergência: «Uma história é
comunicada quando existe um encontro não pela diferença mas no que
temos de comum. Hoje sinto que são precisas semelhanças destas, em que
cada um se encontre com a história, sem fazer prevalecer uma interpretação.»
Na última história escrita para a última imagem que escolheu, «Da palavra
Reflexo – De miM para Mim», Maria João tentou recriar, por não poder
definir, o que poderá ser a relação entre palavra e imagem. Esta imagem é a
de um linóleo onde a artista gravou alguns tigres, cujos corpos, ao mesmo
tempo, se diferenciam e convergem. Sobre o que é a matriz de uma gravura
a artista esclarece: «O desenho da matriz quando se trabalha em gravura é
feito em reflexo. Antes de tirar uma prova se se olhar a matriz num espelho
tem-se uma ideia muito aproximada do que vão ser as gravuras.» Este reflectir
da matriz na gravura materializa, por analogia, o pensar de Maria João sobre
a melhor forma de relacionar palavra e imagem: «A acção física de levar à
prensa a matriz reflecte um desenho. Um desenho original que pensa e que
nos mostra impresso esse pensamento. Este é para mim um bom exemplo de
relação viva entre palavra e imagem.»
24 Alcinda Pinheiro de Sousa, Alda Correia, Teresa de Ataíde Malafaia

Referências
Abrams, M. H. ([1957] 1999). A Glossary of Literary Terms. Boston, Mass.: Heinle &
Heinle.
Cannon, John, ed. ([1997] 2002). The Oxford Companion to British History. Oxford:
Oxford University Press.
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Dicks, Bella (2003). Culture on Display. The Production of Contemporary Visitability.
London: Open University Press.
Eysteinsson, Astradur (1990). The Concept of Modernism. Ithaca and London: Cornell
University Press.
Pinheiro de Sousa, Alcinda (2006). «De Thomas Kuhn, The Structure of Scientific
Revolutions às Questões de Diferença». «And gladly wolde (s)he lerne and gladly
teche». Homenagem a Júlia Dias Ferreira. Org. Comissão Executiva do
Departamento de Estudos Anglísticos da Faculdade de Letras da Universidade de
Lisboa. Lisboa: Colibri. No prelo.
Walker, John A. & Sarah Chaplin (1997). Visual Culture. An Introduction. Manchester
& New York: Manchester University Press.
Williams, Raymond ([1976] 1983). Keywords. A Vocabulary of Culture and Society.
London: Fontana Press.
Yolton, John W. et al., eds. ([1991] 1995). The Blackwell Companion to the
Enlightenment. Introd. Lester G. Crocker. Oxford: Blackwell.
Idade Média, Renascimento e o Início da Modernidade
– Desfazendo Mitos

MARIA SALOMÉ MACHADO


(CEAUL-Centro de Estudos Anglísticos da Universidade de Lisboa /
Faculdade de Letras – Universidade de Lisboa)

ISBN 978-972-8886-08-0 • A PALAVRA E A IMAGEM • CEAUL / ULICES 2007


Idade Média, Renascimento e o Início da Modernidade
– Desfazendo Mitos

C
onstitui um fenómeno interessante e até irónico que, em pleno século
XXI, quando investigadores e estudiosos têm à sua disposição as tecno-
logias mais sofisticadas que lhes permitem não só pôr em causa e
reinventar os resultados das pesquisas dos seus antecessores, mas também
proceder à divulgação de novas hipóteses e/ou conclusões, o comum dos
mortais continue a pautar-se por certas ideias antiquadas e preconcebidas
acerca das matérias que os especialistas tanto se empenham em difundir.
Os exemplos mais óbvios remetem para as imagens que se projectam de
imediato na mente do presumível público alvo quando confrontado com
certas designações que se referem a determinadas épocas históricas: Idade
Média, Renascimento e Modernidade. A primeira mantém-se irremediavel-
mente associada ao apodo obscurantismo, a segunda ao prestígio de uma
mudança que se imagina radical no curso dos saberes, a terceira dá origem a
juízos vários na sua maioria contraditórios. Por isso, no intuito de desmitificar
velhas teorias obsoletas que teimam em persistir, vai-se fazer uma tentativa de
redifinir parâmetros e contextos.
Não obstante os conflitos e convulsões, o período medievo preserva no
seu seio as sementes dos vários saberes que germinariam no Renascimento
dando fruto tanto nesta época como nas subsequentes. De facto, desde os
primórdios da incompreendida e mal amada Idade Média e, sobretudo, após
a entronização do Cristianismo como religião oficial por Constantino, que
todos os mosteiros, conventos e abadias possuiam uma biblioteca, mais ou
menos bem fornecida, dispersa pelos vários quadrantes do conhecimento.
Sobre os manuscritos que nelas se encontravam armazenados, debruçavam-
-se os monges, frades e outros membros da Igreja não só com o objectivo de
proceder ao seu estudo mas também de os perpetuar através de novas cópias,
de preferência enriquecidas com iluminuras. No decurso destes trabalhos,
embora a Igreja vigiasse com zelo implacável quem tinha acesso aos documen-
tos, mesmo o mais simples dos copistas não ficava imune ao que transcrevia,
benificiando deste modo ínvio, da influência do valioso espólio de saberes
que o Império Romano desenvolvera.
28 Maria Salomé Machado

Ainda que o clero fosse o maior veículo de preservação das obras da


Antiguidade Clássica, também alguns reis e outros senhores da alta nobreza,
mesmo sendo educados desde a mais tenra infância para se dedicarem quase
exclusivamente às técnicas da guerra, uma vez que os tempos não eram fáceis,
propunham-se, desde o momento em que se registava um mínimo de tranqui-
lidade dentro e fora dos seus territórios, dedicar-se às artes e às letras e/ou
incentivar outros a fazê-lo. Contam-se entre estes patronos/prosélitos Carlos
Magno no século VIII em França, Alfredo no IX em Wessex e os poderosos aris-
tocratas dos ducados franceses como a Aquitânia e a Normandia nos X e XI.
Talvez porque, neste último período de duzentos anos, os limites territoriais dos
grandes senhores gauleses estivessem bem definidos, começaram a realizar-se
saraus nos seus castelos senhoriais. Entre os muitos divertimentos que se prati-
cavam incluiam-se poemas com dois temas básicos. O primeiro tinha a ver com
os feitos heróicos dos cavaleiros ao serviço de Deus e do rei, o segundo com
os encómios à senhora enquanto suzerana inatingível que, cruel, negava os seus
favores ao poeta que a cantava. As rimas dedicadas à dama podem considerar-
se como os primeiros exemplares das cantigas de amor que se foram
desenvolvendo em rituais cada vez mais complexos e acabaram por se difundir
por toda a Europa medieva. A Inglaterra, por seu lado, recebeu a influência
deste elemento lúdico, de forma directa, quando o duque normando Guilher-
me se dispôs a impor, pela força das armas, o seu remoto e duvidoso direito
ao trono deste país atravessando o Canal da Mancha juntamente com o seu
exército em 1066.
A importância que começa a dar-se às artes e às letras nos círculos das
classes mais favorecidas reflectia, de certo modo, o que se passava nas escolas
ligadas às catedrais e às abadias, embora dentro destas o fenómeno se passas-
se noutro contexto e com outro âmbito. Assim se formaram centros de estudo
que foram progredindo e conseguiram impor-se, mesmo com o espartilho
restritivo da escolástica, com a apropriação pelo Cristianismo das teses de
Aristóteles e dos neoplatónicos com o objectivo de emprestar mais força às
suas doutrinas e com a persistência das teorias geocêntricas em detrimento de
perspectivas mais lógicas, e, como mais tarde se provou, mais conformes à
realidade. Estas últimas apoiavam-se no discurso e pesquisas da corrente hele-
nística que se mantinha viva e latente, apesar de ter sido declarada herética e
constituir risco de vida para aqueles que ousavam adoptá-la. Estas instituições,
de certo modo inovadoras, deram origem às Universidades. A primeira
estabeleceu-se em Paris durante o século XII entre 1150 e 1170. Nela ponti-
ficaram, desde o seu início, alguns mestres famosos, entre eles Abelardo, que,
na contemporaneidade, é mais conhecido pela história trágica dos seus
Idade Média, Renascimento e o Início da Modernidade – Desfazendo Mitos 29

amores com Heloisa. Em Inglaterra, parece que Oxford já possuía um núcleo


universitário em 1167 tendo-lhe sido concedida licença para conferir o grau
de doutor em 1214. Quanto a Cambridge, é possível que existisse desde
1208, ainda que a data oficial da sua fundação seja 1284.
Embora até este momento, tenham sido referidas as duas classes domi-
nantes, ou seja, clero e nobreza, com ênfase na primeira, como principais
detentoras do saber, o povo, ainda que, na sua maioria, iletrado, partilhava,
por estranho que pareça, do património de conhecimentos comum às outras
duas. O acesso a este espólio fazia-se através da palavra e da imagem e possuía
várias vertentes que interagiam entre si. Por um lado, havia os sermões ineren-
tes aos actos litúrgicos que emprestavam voz a todo um rico sistema visual
simbólico que estava bem patente tanto na estrutura interna, como na traça
exterior das Igrejas. Por outro, dispunham das representações teatrais que,
com início nos próprios lugares de culto e sob a égide do clero, possuiam
objectivos didácticos. No intuito de prender o interesse da assistência e obviar
à aridez de certos temas, inseriram-se, desde muito cedo, nestas peças de
teatro rudimentares, episódios cómicos. Contudo, foi só a partir do instante
em que o drama extravasou para fora das paredes dos templos e as guildas
passaram a ser responsáveis pelos espectáculos que o mesmo drama adquiriu
o carácter que se lhe conhece hoje – a difusão da mensagem cristã através do
relato da história da humanidade como está consignada tanto no Antigo como
no Novo Testamento. Eram os ciclos de Mistérios e, um pouco mais tarde, com
o desenvolvimento gradual do pensamento abstracto, as Moralidades.
Mas, nem tudo era Cristianismo e a partilha do saber comum fazia-se,
muitas vezes, por via indirecta e no sentido inverso, ou seja, da classe menos
favorecida para as dominantes. De facto, o povo tinha as suas próprias
crenças que remontavam a tradições pagãs milenares e, por muito que o clero
se esforçasse, não conseguia nem erradicá-las, nem ficar imune aos seus
efeitos. Assim, nas festividades de cunho popular que coincidiam com as
estações do ano, para além das peças de cariz cristão, havia teatro de rua e
cortejos alegóricos com origem em reminiscências de antiquíssimos cultos
lendários transmitidos por via oral. Neles se projectavam os feitos de seres
míticos, alguns assustadores, e se confirmava o medo supersticioso por criatu-
ras nocturnas insubstanciais e malévolas cuja tarefa consistia em encher de
temor todos aqueles que tinham a pouca sorte de as encontrar no seu cami-
nho. Por outro lado, os menestréis cuja entrada nos castelos era permitida,
marcavam presença nestes festejos cantando as mesmas trovas com que
haviam deliciado os senhores. Também seria provável que voltassem aos
castros senhoriais levando consigo, nem que fosse como objecto de gáudio e
30 Maria Salomé Machado

troça, algumas informações circunstanciadas do que se passava entre o povo.


Outros visitantes marcavam presença nestes festejos – os goliardos ou
clérigos vagantes que contribuiam para a diversão geral com poemas de
cunho erudito, por vezes em latim, nos quais se exaltava o amor, as mulheres
e o vinho e se fazia referência à roda da fortuna que, no seu eterno movimento
caprichoso e traiçoeiro, tanto se dispunha a favorecer como a prejudicar os
indefesos seres humanos.
Mas, outras personagens importantes representavam papel de relevo
nestas festas: os astrólogos que, muitas vezes, também eram alquimistas e que
prediziam o futuro, os sinistros físicos ou médicos com promessas de curas
milagrosas e os ínvios «boticários» que propunham poções em equilíbrio
precário e instável sobre a linha divisória entre o remédio e o veneno. E os
aristocratas vinham, por vezes, consultá-los para os mais diversos fins.
Portanto, clero, nobreza e povo, embora rigidamente separados enquanto
classes sociais, possuiam a mesma fé básica e as mesmas crendices supersti-
ciosas.
Como as épocas não são compartimentos estanques, o Renascimento,
com r maiúsculo porque cada vez que os homens se dedicavam às artes e às
letras havia renascimentos com r minúsculo, herdou toda esta mentalidade,
não obstante a abertura de horizontes devida a várias circunstâncias favorá-
veis todas elas no século XV: a invenção da imprensa por William Caxton que
permitiu o acesso à palavra escrita e fomentou a prática da leitura, a queda de
Constantinopla que, juntamente com a aprendizagem da língua grega, foi
determinante para a divulgação de certas obras, ainda desconhecidas, da
Antiguidade Clássica, e as viagens por mar com o objectivo de descobrir
novos mundos que mostraram a necessidade do estudo da matemática para
obter instrumentos exactos que procedessem a quantificações precisas e
colmatassem as exigências da arte de marear.
Todos estes factores deram um novo impulso às mais diversas áreas do
pensamento humano promovendo a vontade de aprender e demonstrando
que nem só de guerras e conquistas se faz a glória de um rei e de um reino.
Assim, os monarcas passaram a instruir-se e o seu exemplo levou os seus súbdi-
tos a proceder do mesmo modo. A poesia, embora nela o amor se mantivesse
como tema principal, tornou-se ágil e plástica beneficiando da rica estrutura
mitológica greco-latina. Quanto ao teatro, abandonou, pelo menos aparente-
mente, os temas religiosos e a luta do bem e do mal e, sob a influência da
tragédia, da comédia e da sátira com origem na Grécia e em Roma ganhou
outra dimensão. Os restantes saberes que, mais tarde, se tornariam ciência,
também auferiram de um novo estímulo com resultados muito proveitosos.
Idade Média, Renascimento e o Início da Modernidade – Desfazendo Mitos 31

Face a estes pressupostos, parece ser legítimo deduzir que Renascimento


e Modernidade estão profundamente ligados entre si. Embora os estudiosos da
época Moderna coloquem sempre o seu início na segunda metade do século
XVII, altura em que a ciência se liberta das grilhetas impostas pela religião
cristã, não há dúvida de que o pensamento moderno começou bastante mais
cedo. Numa sugestão arrojada e, porventura, temerária, poder-se-ia insinuar
que este já se encontrava presente nos estudos e pesquisas dos sábios de
Alexandria e que só acabou de vez, no Oriente, com a queda de Constan-
tinopla. Contudo, também é inegável que, na Europa, devido a circunstâncias
várias, aliás já enumeradas, a Modernidade levou mais tempo a desenvolver-
-se. Mas, tal como acontece com os surtos renascentistas que eclodem por
toda a Idade Média, ela é uma presença subterrânea constante e incómoda
sempre pronta a manifestar-se. Assim, e correndo o risco de recuar para além
das datas tradicionalmente propostas, espera-se não cometer uma incorrec-
ção ao sugerir que a Modernidade já se revela, em pleno, a partir do século
XV: por exemplo, nos trabalhos multifacetados de Leonardo da Vinci (1452-
-1519), nos estudos de Copérnico que explanou as teorias heliocêntricas
(1473-1543) e nas teses filosóficas do humanista Jean Luis Vives (1492-1540).
Quanto a Galileu que foi o fundador da ciência experimental em Itália e fiel
discípulo de Copérnico não está votado ao esquecimento. Apesar de a Igreja
ainda ter exigido que ele se retractasse, ele já está muito próximo das datas
oficiais consensualmente aceites (1564-1642) para o início da Modernidade.
Por isso, só um texto menos ecléctico lhe fará justiça.

Referências
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London and New York: Routledge.
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Treasure, Geoffrey 2000: The Making of Modern Europe 1648-1780. London and New
York: Routledge.
Ver o Corpo, Escrever o Corpo: em Mrs. Dalloway
de Virginia Woolf e Água Viva de Clarice Lispector

ALDA CORREIA
(CEAUL-Centro de Estudos Anglísticos da Universidade de Lisboa /
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa)

ISBN 978-972-8886-08-0 • A PALAVRA E A IMAGEM • CEAUL / ULICES 2007


O
corpo tem sido, ao longo da história da cultura e do pensamento
ocidentais, frequentemente desvalorizado em relação à mente.
Enquanto esta é associada ao divino, ao imortal e ao transcendente,
aquele tem sido relacionado com a decadência, a morte e a animalidade.
Com Descartes, o homem torna-se sujeito e o corpo torna-se objecto de
interrogações. Para este pensador, a união entre a alma e o corpo, que torna
possível a acção recíproca de um sobre o outro, ocorre no cérebro, precisa-
mente na glândula pineal, a única parte deste que não é dupla e pode por isso
unificar a sensações, que vêm dos órgãos dos sentidos, que são todos duplos.
Descartes distingue na alma acções e afecções: as acções dependem da von-
tade, as afecções são involuntárias e constituídas por percepções, sentimentos
ou emoções causadas na alma pelos espíritos vitais, isto é, pelas forças mecâ-
nicas que actuam no corpo. Evidentemente, a força da alma consiste em
vencer as emoções e deter os movimentos do corpo que as acompanham. No
entanto, nem todas as emoções são nocivas, algumas são fundamentais para
conservar o corpo e torná-lo mais perfeito.
Mais tarde, a busca de identidade que o século XIX virá trazer, incluirá
uma outra forma de reflexão sobre o corpo. Se, até aí, se tentava compreender
os seus mecanismos para o tratar, educar o espírito e melhorar a sociedade,
agora ele passa a ser pensado e avaliado como mais um elemento do mundo
material ou uma imagem que actua como outras imagens que integram a
cultura. Na fenomenologia, sobretudo em Sartre, o corpo é um intermediário
privilegiado para falar da realidade humana e a relação do homem com o
mundo não pode ser estudada sem o corpo. Merleau-Ponty opõe-se ao dua-
lismo mente-corpo ao falar da experiência do corpo como um “veículo do ser
no mundo”, algo que está “dentro do mundo como o coração no organismo”
porque “forma com ele um sistema”.1 Com Freud, o corpo traz-nos o acesso
à problemática psíquica, pondo a nu a instabilidade, a fragmentação e a

1 M. Merleau-Ponty, Phénomenologie de la Perception (Paris: Gallimard, 1972) 235.


36 Alda Correia

inconsistência da própria noção de sujeito. Também a antropologia contri-


buirá para pôr fim à visão dualista do corpo. Este é agora um produto da
interacção permanente entre o cultural e o social, tanto no plano das práticas,
como no das representações, como refere Florence Braunstein.2 António
Damásio viria mais tarde a entrelaçar todas as flores deste bouquet ao provar
que o cérebro humano se desenvolveu a partir da interacção de mapas corpo-
rais, cerebrais, emocionais, culturais e volitivos. Como ele refere, fazia real-
mente sentido o costume antigo de designar aquilo a que hoje chamamos
mente pela palavra psyche, que também era utilizada para designar a
respiração e o sangue.3
Na arte, e particularmente na literatura, estas transformações traduzem-
-se no desenvolvimento de uma narrativa introvertida, que tanto se concentra
na exploração das continuidades e descontinuidades da mente das persona-
gens, como nas suas percepções físicas ou na relação entre ambas. Este
avolumar da vida interior hipertrofia o corpo, ao mesmo tempo que o leva a
concentrar-se em percepções e objectos externos, no Outro. Pode chegar à
deformação e à desestruturação e aí o “eu” da personagem substitui o seu
vazio corporal. A pintura ilustra com muita clareza esta evolução do corpo;
basta pensar nos impressionistas, em “Les Demoiselles de Avignon” de Picasso
e no quadro de Bacon “Estudos sobre o corpo humano”.
No caso do corpo feminino, toda a questão se punha de forma mais
flagrante. O corpo da mulher tinha sido sacralizado e idealizado no seu papel
de mãe e amante, tendo para tal contribuído o impedimento de acesso à edu-
cação, ao mundo do trabalho e à participação cívica. A divisão mente/corpo
regressava de novo, no caso da mulher. Ela era associada ao corpo em
oposição ao homem, associado à mente. Como Patricia Moran refere em
Word of Mouth,4 as aspirações intelectuais pareciam exigir para muitas
mulheres a negação do seu corpo feminino. Até as conclusões de Freud sobre
a sexualidade da mulher viriam a ser contestadas pelas feministas.
No texto “The Laugh of the Medusa”,5 Hélène Cixous defende que as

2 Florence Braunstein e Jean-François Pépin, O Lugar do Corpo na Cultura Ocidental (Lisboa:


Instituto Piaget, 2001) 140.
3 António Damásio, O Sentimento de Si (Mem Martins: Publ. Europa-América, 2003) 50.
4 Patricia Moran, Word of Mouth, Body Language in Katherine Mansfield and Virginia Woolf
(Charlottesville: Univ. Press of Virginia, 1996) 2.
5 Hélène Cixous, “The Laugh of the Medusa,” Signs: Journal of Women in Culture and Society, 1.4
(1976) 875-893.
Ver o Corpo, Escrever o Corpo 37

mulheres devem em primeiro lugar destruir a imagem do corpo que lhes foi
imposta pelas estruturas patriarcais, como a-sexuadas, histéricas, místicas, um
reflexo do corpo masculino, e numa segunda fase, depois de redescobertos os
seus corpos perdidos, devem pensar e escrever através das suas experiências
físicas, como mulheres. Esta formulação implica a existência de dois tipos de
corpo com representações diferentes, que Molly Hite teoriza como “the body
for others, the body cast in social roles and bound by the laws of social
interaction” e o “visionary body (...) a second physical presence in fundamen-
tal respects different from the gendered body”,6 que pode trazer novas
perspectivas e novas estratégias de representação estética. No artigo em que
apresenta esta distinção, Hite estuda a evolução de um momento a outro nas
obras de Virginia Woolf, sublinhando a importância do corpo visionário na
fase mais madura da escritora, evolução que tinha sido, aliás, já proposta por
Katerina Kitsi-Mitakou no seu livro Feminist Readings of the Body in V. Woolf’s
Novels.7
Os romances Mrs. Dalloway (1925) de Virginia Woolf e Água Viva (1973)
de Clarice Lispector exploram com bastante clareza estes dois conceitos de
corpo e é disso que aqui nos ocuparemos. Mrs. Dalloway é uma das obras de
Virginia Woolf que aborda com maior amplitude a questão social, tanto no
que diz respeito ao sistema e às relações entre classes e tipos sociais, como
no que diz respeito às tensões vividas pela mulher em todo esse contexto. A
relação de Clarissa com o corpo, que reflecte a ansiedade de Virginia Woolf
e também muita da ansiedade da época sobre o corpo feminino, é, na verda-
de, conflituosa: se por um lado ela optou por um casamento convencional e
economicamente seguro, por outro não consegue relacionar-se fisicamente
com o marido, acabando por revelar as suas emoções em relação a Sally e a
Peter. Vejam-se as várias referências à sua castidade, à frieza no casamento, à
paixão por Sally:
Like a nun withdrawing, or a child exploring a tower, she went upstairs
(...) And really she preferred to read of the retreat from Moscow. He
knew it. So the room was an attic; the bed narrow; and lying there
reading, for she slept badly, she could not dispel a virginity preserved
through childbirth which clung to her like a sheet.

6 Molly Hite, “Virginia Woolf’s Two Bodies”, Genders 31, 2000. www.genders.org/g31/g31-hite.html.
7 Katerina Kitsi-Mitakou, Feminist Readings of the Body in Virginia Woolf’s Novels (Thessaloniki:
Giahoudi-Giapouli, 1997).
38 Alda Correia

(...) But this question of love (...) this falling in love with women. Take
Sally Seton. (...) Had not that, after all, been love?
Sally stopped; picked a flower; kissed her on the lips. The whole world
might have turned upside down.8
Este conflito corresponde, segundo Kitsi-Mitakou, à dicotomia contida na
imagem da Virgem Maria, caracterizada pela vivência dos estados opostos de
virgindade e maternidade. Woolf teria partido do mito cristão para explorar a
imagem da virgindade em Clarissa, utilizando comparações frequentes com a
vida monástica e descrições físicas que sublinham a forma alongada, erecta e
fria da protagonista e mesmo a ausência dos seios: “she felt like a nun who
has left the world and feels fold round her the familiar veils and the response
to old devotions”; “feeling herself suddenly shrivelled, aged, breastless”.9
Esta relação conflituosa com o corpo é reforçada através das duas perso-
nagens que podem ser consideradas como duplos, espiritual e corporal, de
Clarissa: respectivamente Septimus Smith e Doris Kilman. Patricia Moran
sublinha que tanto Septimus como Doris se relacionam de forma perturbada
com a alimentação; para ambos esta simboliza a ligação à vivência de um
corpo que os limita. Septimus “could not taste, could not feel. Even taste had
no relish to him”.10 A impossibilidade de sentir, que o levará à morte, o
pecado pelo qual a natureza humana o tinha condenado, estende-se a todo o
corpo, inclusivamente à sexualidade:
Love between man and woman was repulsive to Shakespeare. The
business of copulation was filth to him before the end. But, Rezia said,
she must have children.
(...) So there was no excuse; nothing whatever the matter, except the
sin for which human nature had condemned him to death; that he did
not feel.11
A insensibilidade que afecta Septimus no corpo, na alma e nas suas
relações com os outros é tão redutora quanto a fealdade no corpo de Miss
Kilman. O seu “unlovable body”, aliado à pobreza, afastá-la-á da possibilida-
de de acesso à felicidade, conduzindo-a, ao contrário de Septimus, à revolta
contra a marginalização de que era alvo, contra a desigualdade perante
mulheres como Clarissa, contra o sofrimento por que era obrigada a passar e

8 Virginia Woolf, Mrs. Dalloway, ed. Shakespeare Head Press (Oxford: Blackwell, 1996) 25-28.
9 Woolf 23-25.
10 Woolf 66.
11 Woolf 67 e 69.
Ver o Corpo, Escrever o Corpo 39

finalmente a uma certa sublimação do conflito através do gosto pela comida,


da religiosidade e do conhecimento intelectual:
She could not help being ugly; she could not afford to buy pretty
clothes. (...) With that violent grudge against the world which had
scorned her, sneered at her, cast her off, beginning with this indignity
– the infliction of her unlovable body which people could nor bear to
see. Do her hair as she might, her forehead remained like an egg, bald,
white. No clothes suited her. She might buy anything. And for a
woman, of course, that meant never meeting the opposite sex. (...) Her
food was all that she lived for; her comforts; her dinner, her tea; her
hot-water bottle at night. But one must fight; vanquish; have faith in
God. (...) But no one knew the agony!! He said pointing to the crucifix
that God knew. (...) However, she was Doris Kilman. She had her
degree. She was a woman who had made her way in the world. Her
knowledge of modern history was more than respectable.12
O corpo de Clarissa e a sua vida, que Miss Kilman inveja, não são
encarados de uma forma tão positiva pela própria. No início, ao passear em
Bond Street, Clarissa diz possuir uma “narrow pea-stick figure” e “a ridiculous
little face, beaked like a bird’s”.13 Neste momento, ao observar uma pintura
holandesa, acrescenta que o próprio corpo, com todas as suas capacidades, não
parece ser absolutamente nada, fazendo-a sentir invisível e desconhecida.14
O conflito entre a imagem e vivência real da maternidade15 de Clarissa e
a imagem e vivência da sua virgindade, frieza e sexualidade ambígua, é
ampliado e revertido, pelos pontos de vista de Kilman e Septimus sobre o
corpo. Para além de várias referências à impenetrabilidade e rigidez de
Clarissa,16 a alusão à pintura holandesa e à pintura de Reynolds “Lady
Caroline Scott as Winter” acentuam a imagem de um corpo austero, sóbrio no
primeiro caso ou puramente infantil no segundo. A primeira, feita durante a
tentativa inicial da autora de descrever o corpo de Clarissa, é interpretada por

12 Woolf 96-99.
13 Woolf 10.
14 Woolf 10: “But often now this body she wore (she stopped to look at a Dutch picture), this body,
with all its capacities, seemed nothing, nothing at all. She had the oddest sense of being herself
invisible; unseen; unknown; There being no more marrying, no more having of children now.”
15 Esta questão é analisada sob outros pontos de vista através do casal Smith cuja mulher, Lucrezia,
pretende ter um filho, de Sally Seaton que é mãe de “five enormous boys” ou de Bradshaw que
fala constantemento do filho em Eton.
16 Woolf 29 e 47: “That was her self – pointed; dartlike; definite”; “this coldness, this woodness,
something very profound in her (...) an impenetrability.”
40 Alda Correia

Kitsi-Mitakou como mais um sinal de oscilação entre dois conceitos opostos,


os de apagamento do corpo e valorização das formas físicas, ambos implícitos
na evolução da pintura holandesa.17 A segunda, é assinalada pelo olhar
observador de Miss Kilman, enquanto reflecte sobre o desprezo sentido pelos
Dalloway ao chegar lá a casa, mas é também recordada por Clarissa quando,
na festa, o pensamento lhe traz a figura da preceptora, criando-se assim uma
espécie de efeito de espelho, que relaciona as duas personagens e a visão que
cada uma tem do corpo da outra. A ligação entre Clarissa e Kilman, a simpatia
e o ódio que cada uma sente pela outra18 falam do mesmo conflito, se
pensarmos na relação de ambas com Elizabeth: ao contrário do que acontece
com Clarissa, os sentimentos possessivos e maternais de Kilman por Elizabeth
estão presentes num corpo ao qual o sexo foi negado.
O corpo de Clarissa é, ainda claramente, o corpo inserido em papéis
sociais tradicionalmente atribuídos à mulher, mas também já de algum modo
por ela rejeitados. Descontente com a sua aparência, sentindo-se culpada em
relação a Richard e à filha, incapaz de enfrentar os seus laços com Sally,
procura na festa um protagonismo que mais uma vez aceita e promove os
padrões sociais tradicionais. No final, no entanto, Peter regista o terror, o
êxtase e a excitação que sente perante a simples presença de Clarissa (“For
there she was”). É talvez esse poder misterioso do seu corpo que abrirá a porta
ao corpo visionário das obras seguintes de Woolf e que se encontra bem
representado em Água Viva. Neste texto, considerado por Cixous como um
exemplo do conceito de “écriture féminine”, como uma das poucas excepções

17 Kitsi-Mitakou 65-66: “The allusion to the “Dutch painting” which Clarissa stops to look at while Woolf
is defining her body, far from being accidental, reinforces Clarissa’s image; the severity, plainness,
and asceticism of the figures in fifteenth-century Flemish paintings harmonize with her wooden-
ness and uprightness. Yet, the painting is not defined; neither its title, nor its painter are specified.
The obscurity of the picture, which may range from a fifteenth-century Jan van Eyck or Roger van der
Weyden, to a seventeenth or eighteenth-century Rubens or Rembrandt, allows Woolf to suggest a
whole period in painting. That is, Dutch painting, which at its rise in the early Renaissance subtracts
the body from its natural characteristics by elongating the figures, reducing their depth, and
rendering them two-dimensional, inflexible and unapproachable, and ends up two centuries later
in the apotheosis of the flesh, the corpulent, spherical and massive bodies. The allusion to the
whole Dutch period reflects Clarissa’s oscillation between two antinominal concepts: the extinction
of her body (...) on the one hand, and the redefinition of her body as virginal and breastless on the
other hand. Dutch painting and Christianity at this point converge, and echo Clarissa’s
dichotomized body: both take the body away only to give it back defined through patriarchy.”
18 Miss Kilman diz, embora num contexto ambíguo: “Ugly, clumsy, Clarissa Dalloway had laughed
at her for being that; and had revived the fleshly desires, for she minded looking as she did beside
Clarissa” (p.96); Clarissa refere ao recordar Kilman na festa: “She hated her; she loved her” (p. 130).
Ver o Corpo, Escrever o Corpo 41

de escrita que inscreve a feminilidade, deixamos de ter um corpo condicio-


nado social e culturalmente para termos um corpo, por um lado concentrado
na sua essência vital e nos seus impulsos mais primitivos, situado na fronteira
do corpo físico da protagonista, mas, por outro, em busca de uma compreen-
são definitiva da ontologia da vida. A escrita, em paralelo com a pintura, vai
determinando essa busca, através da auto-descoberta de uma mulher que,
num monólogo contínuo, fala a um narratário identificado como tu. Neste
movimento, nesta busca do significado para além do significado, a persona-
gem utiliza todos os modos de representação e percepção ao seu alcance
(escrita, pintura, música) eliminando as fronteiras entre eles. É isto mesmo que
é dito logo de início:
Escrevo-te toda inteira e sinto um sabor em ser e o sabor-a-ti é abstrato
como o instante. É também com o corpo que pinto os meus quadros
e na tela fixo o incorpóreo, eu corpo-a-corpo comigo mesma. Não se
compreende música: ouve-se. Ouve-me então com o teu corpo intei-
ro. Quando vieres a me ler perguntarás por que não me restrinjo à
pintura e às minhas exposições, já que escrevo tosco e sem ordem. (...)
Hoje acabei a tela de que te falei: linhas redondas que se interpe-
netram em traços finos e negros, e tu, que tens o hábito de querer
saber porquê (...) perguntarás por que os traços negros e finos? É por
causa do mesmo segredo que me faz escrever agora como se fosse a
ti (...) O que pintei nessa tela é passível de ser fraseado em palavras?
Tanto quanto possa ser implícita a palavra muda no som musical.19
A pintura é apresentada como uma actividade anterior à experiência da
escrita, mas ambas pressupõem o corpo e em ambas se procura uma essência
que só se pode encontrar no instante:
Minha pintura não tem palavras: fica atrás do pensamento. Nesse
terreno do é-se sou puro êxtase cristalino. É-se. Sou-me. Tu te és.
(...) Minha experiência vem de que eu já consegui pintar o halo das
coisas. O halo é mais importante que as coisas e as palavras. O halo
é vertiginoso.
(...) Tenho que me destituir para alcançar cerne e semente de vida. O
instante é semente viva.20
Este halo das coisas, a semente viva do instante, atingem-se quando a per-
sonagem narradora nasce, aprofundando a sua própria consciência de existir.

19 Clarice Lispector, Água Viva (Rio de Janeiro: Francisco Alves Ed., 1993) 14-15.
20 Lispector 33, 53 e 16.
42 Alda Correia

O processo é físico, carnal mas todo ele testemunha a procura de algo de


visionário – o elemento puro, o “it” vivo das coisas e da matéria. Nas referên-
cias associadas ao nascimento Lispector reduz o corpo a uma matéria inerte,
primordial, a um plasma criador. Expressões como “estou respirando. Para
cima e para baixo”, “Como é que a ostra nua respira?”, “A impressão é que
estou por nascer e não consigo”, “Maravilhoso escândalo: nasço”, “It é mole
e é ostra e é placenta”, “Estou me fazendo. Eu me faço chegar até ao caroço”,
”O instante é o vasto ovo de vísceras mornas”21 revelam essa identificação a
partir da qual a personagem-narradora continua a interrogar-se sobre a questão
da morte e da vida. Ao perguntar-se se está no âmago da morte e se para isso
está viva, a resposta virá através da ferida, da carne, do doloroso sangue,22 o que
evoca uma vez mais a vertente visceral e orgânica do corpo como resposta a
uma questão existencial. O corpo transforma-se num dom como diz Clarice23
pois só através dele se experimenta a dádiva de existir. A pintura e a escrita,
criadas para ver estritamente o momento, determinam em parte a identidade da
personagem, funcionando assim como actos ontológicos inventados à medida
que esta se questiona. Toda a problemática do texto é apresentada partindo
do corpo da personagem-narradora como matéria, através das linhas que
constroem e estruturam os objectos da pintura (“Mas eu também quero pintar um
tema, quero criar um objecto. E esse objecto será – um guarda-roupa, pois que
há de mais concreto? Tenho que estudar o guarda-roupa antes de pintá-lo.
Que vejo? (...) Aí posso pintar a essência de um guarda-roupa”)24 e a partir da
escrita desta mesma experiência (“Tudo acaba mas o que te escrevo continua.
(...) O que te escrevo é um ‘isto’”).25 O corpo é portanto não só o corpo da per-
sonagem mas o corpo das telas e o corpo escrito do texto, com a sua estrutura
fragmentária, como uma respiração. Todos participam num devir comum procu-
rado e construído à medida que se procura, trazendo aquilo que é representado
para a própria representação. Esta relação é muito clara se nos recordarmos
que a versão inicial de Água Viva se intitulava Objecto Gritante. Carlos Sousa
no seu livro Clarice Lispector - Figuras da Escrita,26 mostra como no dacti-
loescrito Clarice substituiu diversas vezes escrever/escrita por pintar/pintura.

21 Lispector 35-47.
22 Lispector 80.
23 Lispector 93.
24 Lispector 87-88.
25 Lispector 100-101.
26 Carlos Mendes de Sousa, Clarice Lispector – Figuras da Escrita (Braga: Univ. Minho, 2000) 301-309.
Ver o Corpo, Escrever o Corpo 43

A reversibilidade entre a palavra e a imagem, assim como a ausência de


limites corpóreos da personagem evocam a visão que Woolf nos apresenta
dos limites da subjectividade e da identidade. Visto através do famoso
“envelope semi-transparente” o corpo de Clarissa Dalloway revela vertentes
muito diferentes, é descentrado, descontínuo, escapa-nos. O seu mistério é
que apenas existe. O diálogo entre palavra e imagem, tendo como ponto de
referência o corpo, mas dando dele planos diversos que se desdobram e se
tornam até antagónicos, atravessa ambas as obras de formas diferentes, reve-
lando por detrás de todos esses “túneis” uma espécie de núcleo de identidade,
em que a distinção entre o físico e o mental nem sempre é clara. Este núcleo,
resultante do desejo de compreender a verdade, comum às duas escritoras,
é visionário no seu desenraizamento de papeis sociais, mas permite um
entendimento mais claro da condição humana. Como Lispector escreve num
dos últimos parágrafos de Água Viva: “Eis que às três horas da madrugada
acordei e me encontrei. Fui ao encontro de mim. Calma, alegre, plenitude
sem fulminação. Simplesmente eu sou eu”.

Referências
Braunstein, Florence, Jean-François Pépin. O Lugar do Corpo na Cultura Ocidental.
Lisboa: Instituto Piaget, 2001.
Cixous, Hélène. “The Laugh of the Medusa.” Signs: Journal of Women in Culture and
Society 1.4 (1976): 875-893.
Damásio, António. O Sentimento de Si. Mem Martins: Publ. Europa-América, 2003.
Hite, Molly. ”Virginia Woolf’s Two Bodies,” Genders 31, 2000.
www.genders.org/g31/g31_hite.html. 4 Julho 2005.
Kitsi-Mitakou, Katerina. Feminist Readings of the Body in Virginia Woolf’s Novels.
Thessalonoki: Giahoudi-Giapouli, 1997.
Lispector, Clarice. Água Viva. Rio de Janeiro: Francisco Alves Ed., 1993.
Merleau-Ponty, M.. Phénomenologie de la Perception. Paris: Gallimard, 1972.
Moran, Patricia. Word of Mouth, Body Language in Katherine Mansfield and Virginia
Woolf. Charlottesville: Univ. Press of Virginia, 1996.
Sousa, Carlos Mendes. Clarice Lispector – Figuras da Escrita. Braga: Univ. Minho, 2000.
Woolf, Virginia. Mrs. Dalloway. Shakespeare Head Press Edition. Oxford: Blackwell,
1996.
Empathy and Dissidence in Contemporary
English Art and Fiction

CATHERINE BERNARD
(Université Paris VII)

ISBN 978-972-8886-08-0 • A PALAVRA E A IMAGEM • CEAUL / ULICES 2007


M
y intention here is to turn to recent developments in the field of
English art and writing which may afford a different form of purchase
on the dominant reading of modernity and what is all too often
misread under the vast and ill-defined notion of post-modernity. These recent
developments have directed our gaze away from the overexposed common
places of affirmative and consensual culture, whether they be Frank Gehry’s
space Odyssey architecture or the mass marketed heritage culture of Hollywood
adaptations, the facile radicalism of global literature or Bob Wilson’s chic and
glossy opera productions of Wagner; they have, in the field of visual arts,
fiction and documentary writing, tried to reappropriate some of the dark corners
of culture, some of the ill-lit spaces of the English political unconscious. In that
respect, the title of this paper may just as well have read “Looking at the
Overlooked,” in hommage to Norman Bryson’s remarkable essay on still life
painting1 in which he examines the aesthetic hierarchy that until the advent of
modern painting in the middle of the 19th century ruled over painting and
according to which still life was but the poor and distant relative of the grander
and more aristocratic genres: historical painting and mythological scenes. For
Bryson, looking at the overlooked implies that, with the masters of still life, we
turn our gazes to the blind spots of our surroundings, to the areas of expe-
rience which remain all too often mis-represented, when they are not literally
overlooked, ignored, our trained gaze failing to acknowledge them as
meaningful, as signs to be deciphered.
A lot has already been said and written about the subversive and ironical
intent of recent English and American fiction, on its capacity to upheave canon-
ical cultural narratives, especially in the field of African-American fiction or of

1 Norman Bryson, Looking at the Overlooked (London: Reaktion Books, 1990).


48 Catherine Bernard

feminist writing.2 Similarly, a lot has been said about the historical turn of
recent English fiction and its historiographic potential.3 I shall consequently
not return to these well-charted grounds but shall rather turn my attention to
the way part of contemporary English art and writing precisely address – to
redress it maybe – the long and ambiguous tradition, in English literature
especially, of the overlooked, an overlooked that has been excised altogether
from representation or, when present, has featured under the sign of the
repellent and threatening other, the alien within to be contained aesthetically.
These questions have been raised before by both feminist readings of the
canon4 and post-colonial or Marxist readings.5 My modest contribution to this
debate which aims at producing an alternative reading of modernity, will

2 The list of studies devoted to these two specific fields would be too long. Suffice it to mention the
recovery work that has been done by the “New modernist studies” to reread the Modernist canon
and hear the muffled voices of forgotten – as often as not women – writers. See for instance: Carola
M. Kaplan and Anne B. Simpson (ed.), Seeing Double: Revisioning Edwardian and Modernist
Literature (New York: St. Martin’s Press, 1996), Rita Felski, The Gender of Modernity (Cambridge
[Mass.]: Harvard University Press, 1995), Ann L. Ardis, Modernism and Cultural Conflict. 1880-
1922 (Cambridge: Cambridge University Press, 2002), or Stella Dean, Challenging Modernism.
New Readings in Literature and Culture, 1914-45 (London: Ashgate, 2002).
3 One may mention Linda Hutcheon’s now classic essay, A Poetics of Postmodernism (London:
Routledge, 1988), in which she explores at length Graham Swift’s critical rereading of the writing
of history in Waterland. One may also refer to chapter 4 of Steven Connor’s The English Novel in
History. 1950-1995 (London: Routledge, 1996), to Patrick Swinden, The English Novel of History
and Society 1940-1980 (Londres: Palgrave, 1984), David Leon Higdon’s Shadows of the Past in
Contemporary British Fiction (Atlanta: University of Georgia Press, 1985), Margaret Scanlan’s
Traces of Another Time. History and Politics in Postwar British Fiction (Princeton: Princeton
University Press, 1990), Elisabeth Wesseling’s Writing History as a Prophet: Postmodernist Innovations
of the Historical Novel (Amsterdam: Benjamins,199), Susana Onega’s Telling Histories.
Narrativizing History, Historicizing Literature (Amsterdam: Rodopi, 1995), Christina Kotte’s Ethical
Dimensions in British Historiographic Metafiction, Studies in English Literary and Cultural History
(Trier: Wissenschaftlicher Verlag, 2001), Peter Middleton and Tim Woods’s Literatures of Memory.
History, Time and Space in Postwar Writing (Manchester: Manchester U.P., 2000), Brian Bond’s The
Unquiet Front. Britain’s Role in Literature and History (Cambridge: Cambridge University Press,
2002).
4 I am thinking, among other canonical feminist rereadings of the canon, of Elizabeth Bronfen’s Over
her Dead Body. Death, Femininity and the Aesthetic (Manchester: Manchester University Press,
1992) and, in the field of visual arts of the work of Griselda Pollock: see her Differencing the
Canon: Feminism and the Writing of Arts Histories (London: Routledge, 1999) or her Generations
and Geographies in the Visual Arts: Feminist Readings (London: Routledge, 1996).
5 One may mention the by now canonical interpretation of Mansfield Park by Edward Saïd in Culture
and Emperialism (London: Chatto & Windus, 1993) or Terry Eagleton’s reappraisal of Wuthering
Heights in Heathcliff and the Great Hunger: Studies in Irish Culture (London: Verso, 1996).
Empathy and Dissidence in Contemporary English Art and Fiction 49

consist in turning to sites, places, which to my knowldege have so far aroused


little interest in the field of English studies. More specifically I will turn to the
way part of art and literature in England today aim at fostering a reflection
about the cultural economy by reinvesting the more humble sites of culture
long kept in the wings of representation.
With the notable exceptions of Dickens’s Bleak House, Mrs Gaskell’s
North and South and Mary Barton, Lawrence’s Sons and Lovers, and in the 50s
of the Angry Young Men, the actual living space of the working class, and a
fortiori of the lumpen-proletariat rarely features in English fiction. As E.M. Forster
puts it in Howards End, in one of his epigrammatic formulas that cut to the
bone of the cultural body: “We are not concerned with the very poor. They are
unthinkable, and only to be approached by the statisticial or the poet”.6 The very
poor, and even more so the vast and ill-defined class of those in service are
usually kept in the margins of representation. They are reduced to being insub-
stantial silhouettes that are taken for granted by both the social and the fictional
economies. In Mrs Gaskell’s North and South, Margaret, the modern woman,
the broad-minded and generous heroine, has the unsettling intuition that:
There might be toilers and moilers there in London, but she never
saw them; the very servants lived in an underground world of their
own, of which she knew neither the hopes nor the fears; they only
seemed to start into existence when some want or whim of their
master and mistress needed them.7
In her famed 1923 essay “Mr Bennett and Mrs Brown,” Virginia Woolf
was to read the emergence of the Leviathan-like Victorian cook out of her
netherworld as an index of the changing times:
[I]n or about December 1910 human character changed […] In
life one can see the change, if I may use a comely illustration, in the
character of one’s cook. The Victorian cook lived like a leviathan in the
lower depths, formidable, silent, obscure, inscrutable; the Georgian
cook is a creature of sunshine and fresh air; in and out of the drawing-
room, now to borrow the Daily Herald, now to ask advice about a hat.
Do you ask for more solemn instances of the power of the human race
to change?8

6 E.M. Forster, Howards End, 1910 (London: Penguin, 1989), p. 58.


7 Mrs Gaskell, North and South, 1854-1855 (London: Penguin, 2003), p. 364.
8 Virginia Woolf, “Mr Bennett and Mrs Brown,” 1924, Rachel Bowlby (ed.), A Woman’s Essays
(London: Penguin, 1992), pp. 70-71.
50 Catherine Bernard

A lot could be said about this tell-tale passage in which the logic of
representation (“inscrutable”) is revealed to tie in with that of the social and
domestic economy, and in which a disturbing political unconscious may also
be seen at work, according to which the lower classes are – even if ironically –
perceived as the home monster, the ugly and frightening beast hitherto enslaved
but that ominously raises its head and sets itself free of its own accord.
Already, in Culture and Anarchy, Matthew Arnold felt the pressure of
those he defined as “the Populace,” to be distinguished from the aristocratic
Barbarians and the middle-class Philistines. As early as the late 1860s, the time
of Arnold’s publication of his essay, the ”populace” was felt to be about to
burst the circumference of its allotted world, to emerge in full light, Arnold’s
description conveying mixed feelings of fear and fascination:
But that vast portion, lastly, of the working class which, raw and half-
developed, has long lain half-hidden amidst its poverty and squalor,
and is now issuing from its hiding-place to assert an English-man’s
heaven-born privilege of doing as he likes, and is beginning to perplex
us by marching where it likes, meeting where it likes, bawling what it
likes, breaking what it likes, – to this vast residuum we may with great
propriety give the name of Populace.9
Throughout Victorian fiction one can feel this teeming “populace” pressing
against the walls of decent society, threatening to wreak havoc. In Bleak House,
in which one finds the most disturbing account of the life of the Victorian
dispossessed, little Jo’s dwelling in the famed Tom All Alone’s is caught in the
powerful political paradigm of decadence and civil corruption, rotting away,
collapsing and oozing noxious vapours that reach to the heart of a sickening
society. The social other within only surfaces here under the aegis of a form of
neo-gothic fear and trembling that seems to rule out any possibility of
redemption beside sacrifical death, the very sort of death visited on Little Jo.
In the 20th century, with the remarkable exceptions of Lawrence’s Sons
and Lovers, until John Braine in Room at the Top (1957) and Alan Sillitoe in
Saturday Night and Sunday Morning (1958) brought the working class to the
forefront of fiction, these dark corners of England’s collective house featured
essentially as sociological testimonies especially in the works of field pho-
tographers like Bill Brandt. One should also mention, in the 50s and 60s, the
extraordinary project of Jeremy Forsyth on the west end of Newcastle, who

9 Matthew Arnold, Culture and Anarchy, 1867-69 (Cambridge: Cambridge University Press, 1993),
p. 107.
Empathy and Dissidence in Contemporary English Art and Fiction 51

painstakingly documented the life in one street of Newcastle and the changes
brought on by modernization to working-class mores. Later in the 60s,
Magnum photographer Don McCullin was also to bring the dispossesed the
same attention he brought to the documentation of modern war.

***
Such return to / of the real, to borrow art critic Hal Foster’s words10
features larger in more recent developments in art and writing, artists finding
here another way of blurring the frontier between fiction and fact and of
exploring the constructedness of social representation. Denouncing the gospel
of the autonomization of the artwork expounded by part of the Modernists
whether in France or in Britain and Ireland, from Mallarmé to Baudelaire, from
Valéry to Eliot, the artist redefines himself / herself “as ethnographer,”11 in
order to show culture at work and to question the way it naturalizes its
ideological premises.
This may take the concrete form of a shift in the geographical focus as is
the case in Peter Ackroyd’s monumental biography of London: London. The
Biography which relocates the heart of London’s cultural identity in the East
End, the three maps placed at the beginning of the book (the City in 1800, the
City in 2000 and Soho and the West End) implicitly overlapping with, say, that
of Woolf’s upper middle class London in Mrs Dalloway or The Years yet also
widening the geographical and sociological range to include the East end.
Against the glorious narrative of England as it is inscribed in its West end
monuments – monuments in which Woolf already perceived the deadly spirit
of Imperial and reactionary ideology to be fully at work –, Ackroyd proposes
a winding and ever-shifting history of the under world of London, and reclaims
the energy of an archaic popular culture that has remained resilent until its
eradication by capitalist gentrification (see his history of the Docklands in
chapter 7 of the biography: “Fortune not Design”).
As reclaimed by Ackroyd, the spirit of London is footloose, deeply
anarchic, centrifugal. However Ackroyd’s celebration is also fraught with the
nagging certainty that it may today be retrievable only as a ghostly trace:
The decade which saw the emergence of the “yuppies,” for example,
also witnessed the revival of street-beggars and vagrants sleeping
“rough” upon the streets or within doorways […]. The Strand, in

10 Hal Foster, The Return of the Real (Cambridge [Mass.]: The MIT Press, 1999).
11 Ibid., chap. 6.
52 Catherine Bernard

particular, became a great throughfare of the dispossessed. Despite


civic and government initiatives, they are still there. They are now part
of the recognisable population; they are Londoners, joining the
endless parade. Or perhaps, by sitting upon the sidelines, they remind
everyone else that it is a parade.12
To countervene this slow degradation, the biographer turns antiquarian,
as he ponders over the textual traces of the past and delves into the archives
of a dead culture. For all its vigour, Ackroyd’s project is a deeply and
sorrowfully bleak and nostalgic one. His working class London is a ghostly
and as often as not a tragic one, to be reconstructed out of shattered human
archives, fragments shored against the impending ruin of an erstwhile organic
culture, to paraphrase Eliot’s famous line. It is, in that respect only fitting that
at the end of the last photographic folio of London. The Biography should
feature a photograph by Don McCullin of the homeless of Spitalfieds lost in
the helplessness of their insanity and in the squalor of a derelict city. Like
Graham Swift’s elegiac novel Last Orders (1996), which tries to reinvent the
very linguistic fabric of the East end working class, Ackroyd’s biogaphical crypt
reeks of nostalgia.
A similar sense of cultural loss also imbues Iain Sinclair’s idiosyncratic
odyssey around London in Lights Out for the Territory, when it conjures up the
departed spirit of the city from the broken ruins of scrapeyards and abandoned
cemeteries. Both Ackroyd and Sinclair celebrate the rambling energy that also
fuels many Modernist texts – from Joyce’s Ulysses to Woolf’s Mrs Dalloway –,
and which Walter Benjamin was to conceptualize in his seminal image of the
modern man as a “flâneur,” harvesting impressions and images as his/her gaze
roams haphazardly from shop-windows to billboards, from street scenes to
historical landmarks. However they bring the image up to date in a darker key.
Far from heralding a new visual economy, the (post)modern “flâneur” is seen
to be alienated, estranged from a sense of organicity that used, metonymically,
to legitimate individual identity. The working class culture that, for Ackroyd or
Sinclair, fashioned London has become literally residual, consisting of
shattered fragments. Thus Raymond Williams’ worst fears when he defined the
tensions that oppose a residual and an emergent culture seem eventually
confirmed.13

12 Peter Ackroyd, London. The Biography (London: Chatto & Windus, 2000), p. 767.
13 Raymond Williams, “Base and Superstructure in Marxist Cultural Theory” New Left Review, New
Left Review I/82, November-December 1973.
Empathy and Dissidence in Contemporary English Art and Fiction 53

Quite logically such urban mnemonics needs to posit a departed sense of


cultural presence to be opposed to the current economy of simulacra and
illusion, as is exemplified in Sinclair’s violent indictment of the face-lift London
has been undergoing:
If the present Temple stands for anything, it is a symbol of how the City
has lost it; corrupted the integrity of its founding greed, its pattern of
ritual and sacrifice, decent human vices, by yielding entirely to
secrecy, cynicism, surveillance. Unprepared to let the past go, the off-
shore investors and short-term profit takers have deliberately enslaved
every artefacts they can claw out of the ground. Walks are permitted
only on agreed paths. The ancient gates, energy sluices, have been
replaced by tawdry plastic barriers. A policy of deliberate
misalignment (the temple of Mithras, London Stone, the surviving
effigies from Ludgate) has violated the integrity of the City’s sacred
geometry; leaving, in the place of well-ordered chaos, regimented
anonymity – a climate in which corruption thrives. Poisoned weather,
sick skies, confused humans.14
Sinclair’s ranting against the current degradation of culture, against its
fraudulent marketing of memory, initiates a complex play of negativity in which
his apocalyptic vision is of necessity premissed on the construction of a lost
sense of presence. As in much of Ackroyd’s fiction, in particular Hawksmoor
(1985), that nostalgic celebration of a departed experience of presence
harnesses a mythical and supernatural sense of magical patterning to the writer’s
moral crusade against the shady traders that have desecrated a formerly
hallowed ground. Against the degraded hermeneutic economy of the present,
the text also needs to reinstate a powerful, almost authoritarian, discursive
economy based on the constructioon of an arch-allegory including nature itself
in the final moment of pathetic fallacy (“Poisoned weather, sick skies, confused
humans”); a pathetic fallacy that is also central to Martin Amis’s allegorical
program in London Fields (1989), The Information (1995) or Yellow Dog (2003).
In the rediscovery of the vernacular – literally of the indigenous culture,
that also of the suppressed, the slave born at home (verna in latin) –, nostalgia
has become programmatic. So doing, one cannot help thinking that the process
of recollection threatens to fall in the trap of the constructedness it exposes in
relation to the dominant culture. The frontier is indeed tenuous that distinguishes
the necessary recovery of a repressed cultural past and a form of nostalgic

14 Iain Sinclair, Lights out for the Territory (London: Granta, 1997), p. 116.
54 Catherine Bernard

celebration that would convert loss into affirmative identification and thus
reassuringly heal the breach. Such is the ambiguity at the heart even of Raphael
Samuel’s unrivalled and monumental Theatres of Memory15 which retrieves
the broken skeins of popular memory and so doing tries to unravel the very
politics of memory.
It was precisely this contradiction that the sculptor Rachel Whiteread
meant to address and foreground when she conceived House the work that
won her the 1993 Turner Prize. Sollicited by Artangel – the ground-breaking
English commissioning art trust –, Whiteread chose to transplant her production
outside the consecrated space of the white cube of the art gallery. When
answering Artangel’s invitation, she did not alter the idiosyncratic aesthetic
vocabulary she had first elaborated with her series of resin casts of the under-
space of chairs, and then refined with the production of casts of interiors, of
unthinkable spaces, such as the interior of a drawing room. But House took
one step further her twofold reflection on the state of art “after the end of art”
– to resort to Arthur Danto’s terminology – and on the role of art in the city,
after the decline of ideologies and utopias.
Against the doxa of the “demateralization of art” heralded by the American
art critic Lucy Lippard in relation to the development of non canonical neo-
dadaist aesthetic gestures in the 60s, such as short-lived happenings,
Whiteread’s casts flaunted their intractable materiality while, symmetrically,
acknowledging that matter could also prove ghostly and that presence and
absence were but the two mirror facets of experience. Against the supposed
autonomization of modern art, she also repositioned the artwork in the very
fabric of urban and political space. Incidentally, she also revisited and revised
the canonical history of English modern art, generating discrete inter-aesthetic
echoes of the now overlooked works of the painters of the Camden Town
Group (1911) and the London Group (1913) who – under the influence of
Walter Sickert – had focused on the less glorious corners of English society as,
for instance, did Harold Gilman in his Tea in a Bedsitter (1916).
Against the increasingly abstract agenda of in situ art which tended to
depoliticize the relationship between the artwork and its environment,
Whiteread reasserted the necessity or the artist to reflect on her / his insertion
within their environment, the very fabric that made her / his works possible
and marketable. Her decision to produce a cast of the interior of one of the
terraced houses doomed to demolition on Grove Road, in the working class

15 Raphael Samuel, Theatres of Memory (London: Verso, 1996).


Empathy and Dissidence in Contemporary English Art and Fiction 55

East end borough of Bow,16 was more than a meta-aesthetic comment on the
relative exhaustion of the conventional sites of art, whether it be the gallery or
the museum. It also engaged in a controversial dialogue with the great tradition
of monumental and commemorative public sculpture. House did not explicitely
purport to be any form of cenotaph erected to the memory of a culture soon
to be ousted by the irresistible gentrification of East London – a gentrification
in which, ironically, artists and galleries had a key role. It merely intended to
testify to what had once been. From the start, Whiteread’s choice of location
and object constituted a powerful statement on the violent erasure of a
formely deeply-rooted culture. As Iain Sinclair himself shows in the essay he
devoted to Whiteread’s Grove Road, House was an highly sophisticated work
which addressed no less complex issues relating to what the marxist historian
E.P. Thompson analysed as the “making of the English working class,” the
mapping of identity, its sense of collective rootedness and the necessarily
nostalgic dynamics that relate us back to often imaginary collective selves.
By choosing this time to produce a cast of a whole house, instead of
focusing on a single room, or on pieces of furniture, Whiteread also appro-
priated and thematized one of the seminal tropes of English consciousness: i.e.
that of the house as extension of a private and family identity and, symmet-
rically, as synecdoche for a whole community and England at large. The trope
will be familiar to anyone who has read Edmund Burke’s Reflections on the
Revolution in France, in which the founding father of English conservatism
elaborates on the image of England as a country estate to be handed down
from generation to generation improved yet fundamentally unchanged. At the
heart of the running metaphor in Burke’s anti-revolutionary rhetoric lies the
central vision of England as a vast portrait gallery, lying at the heart of the
mansion and recording the stately procession of generations that guarantee
the permanence of the patriarchal order.17 Jane Austen was to pick up the
theme in her idealized vision of Pemberley in Pride and Prejudice to produce
her own complex version of the conservative myth.18 19th century fiction was
to make good use of the same trope to develop a reflection on the exhaustion
of the same patriarchal order, on the passing of an ancient system and on the

16 House stood from October 25 1993 to January 11 1994 and was then demolished.
17 Edmund Burke, Reflections of the Revolution in France, 1790 (London: Pelican, 1968), pp. 119-
122.
18 On that subject see Alistair Duckworth, The Improvement of the Estate: Study of Jane Austen’s
Novels (Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1972).
56 Catherine Bernard

necessity to rebuild the collective mansion: from Dickens’s Bleak House,


Great Expectations or Dombey and Son to Charlotte Brontë’s Jane Eyre. The
Modernists would avail themselves of the metaphor to meditate once more on
the demise of an erstwhile vibrant organicity: from Woolf’s To the Lighthouse
to E.M. Forster’s Howards End and the later variation on the same theme in
Evelyn Waugh’s Brideshead Revisited.19
House thus from the start functions as a complex memory site, since it
necessarily triggers literary associations with other silent houses: Mr Dombey’s
London house whose shuttered windows no longer let the energy of life in,
Miss Havisham’s Satis House which has been turned into a neo-gothic shrine
dedicated to a lost love. More immediately relevant to us today are the asso-
ciations with the boarded up houses doomed to demolition or gentrifictaion
throughout the east-end districts of our western cities. Whiteread was to return
obsessively to the same theme in 1996 in a long series of duotone screenprints
of council estates soon to be demolished or being demolished or after their
demolition when all that remains is a blandly landscaped public park that
retains no trace of the lives that were led there, of the drama and the trauma
of life and its eradication.20 She was to continue exploring the theme of com-
memoration in her once more much discussed Monument (2001), erected on
the only plinth left vacant on Trafalgar Square and which consisted only of an
inverted transparent resin cast of the plinth on which it stood: a mute and
seemingly empty mirror image or our increasingly vacant memories spaces.
Along with Pierre Bourdieu, Whiteread is but too aware that our indi-
vidual identity dovetails with our cultural identity, although it is not entirely
subsumed under it. We are part of the cultural habitus21 we help fashion. We
are, Whiteread’s sculptures seem to insist the metonymies we live in and more
than any other recent work both House and her series of duotone screenprints
tell us the story of an erasure, of a suppression, the suppression of a complex

19 On the subject see my own “Habitations of the Past: Of Shrines and Haunted Houses” REAL.
Yearbook of Research in English and American Literature, Herbert Grabes (ed.), vol. 21 (Tübingen:
Gunter Narr Verlag, 2005), pp. 161-172.
20 One should add that the age of the building does not in any radical way alter the gist of the matter:
as French architects and sociologists have amply shown in recent years, the destruction of modern
tower blocks may be just as traumatic to the inhabitants as the destruction of houses erected in the
middle of the 19th century. See Paul Chemetov Vingt mille mots pour la ville (Paris: Flammarion,
1998).
21 Pierre Bourdieu, Esquisse d’une théorie de la pratique, 1972 (Paris: Seuil, coll. Points, 2000), pp.
272-279.
Empathy and Dissidence in Contemporary English Art and Fiction 57

culture gradually transformed and eventually silenced by a late capitalist culture


that symmetrically capitalizes on the museification of the working class
memory it eradicates. The metonymies that went into making past cultures are
now emptied out as House has been emptied out. If the political repressed
returns it is only as empty allegory, as doomed site, as the ghostly clichés of a
demolished world, as mournful fetish.
No doubt the power of Whiteread’s works lies to a great extent in their
controlled play with negativity, this same negativity which Theodor Adorno
perceived to be at the very heart of both modern affirmative culture and of
Modernism’s power of sublation.22 Its blank, dead walls and the very fact of its
programmed demolition turn it into a powerful allegory of the negative turn of
collective memory. The past can only be preserved as ghost. It returns
obsessively as empty, silent sign.23
As Angela Dimitrakaki suggests of House, Whiteread’s casts of working
class parlours, of terraced houses, or her photographs of demolished tower
blocks function as “phantom-memories.”24 The casts are too anonymous to be
identified; paradoxically this anonymity also triggers and precipitates the
process of identification. They are no-one’s and everyone’s homes, index
homes for Matthew Arnold’s “populace.” Like memories that insisently come
back to haunt us, they are both absent and painfully present. The blank walls
of House deny us entry all the better probably to allow our own recollection
process to roam freely, to penetrate it mentally. Its very silence thus functions
as some sort of trigger releasing a process of infinite recollection, of prolif-
erating associations.
Whiteread’s more recent works also function like Pandora boxes or memory
machines which can harness anyone’s private fragmented and dislocated past
to turn it into a vast identity kit that fits all of us and no-one, that tells of our

22 See his essays collected under the title The Culture Industry (London: Routledge, 1991) and his
essay on Samuel Beckett, “Trying to Understand Endgame,” Notes to Literature, vol. 1, 1958 (New
York: Columbia University Press, 1991), pp. 241-275.
23 In that respect, it intends to show up such institutions as the Geffrye Museum, which stages a sort
of crash course in the history of domestic interior, and is also located in East London for what they
are: affirmative and ultimately alienating exercices in memorial marketing intended to function as
nostalgic and soothing echo chambers of a homogeneous culture that never existed as staged.
24 Angela Dimitrakaki, “Gothic Public Art and the Failures of Democracy. Reflections on House,
Interpretation and ‘the Political Unconscious’” in Chris Townsend (ed.), Rachel Whiteread (London:
Thames & Hudson, 2004), p. 109.
58 Catherine Bernard

intimate and collective selves. Her casts of the space under and in-between
book shelves conjure memories of the books we have read, wish we had read,
would like to read, and of the very mental space these vanished or virtual books
open, a space to be filled in and that can only exist negatively. Similarly, her
recent series of the casts of filing boxes, inspired to her by the boxes she found
in her own mother’s house, turn the sculptures into a complex system of con-
flicting signs: the boxes are both treasure-troves and ominous, slightly threat-
ening indexes evocative of those bureaucratic panoptical systems of control
which we know to have been intrumental to 20th century planned genocides.
When transplanted and monumentalized as they were in Whiteread’s
installation in Tate Modern’s turbine hall in 2005-2006, private memory, the
memories of the overlooked are once more seen to interact with the collective
memory the great national museums are meant to embody.25 Although the
monumentalized scale of the Tate installation adds to the defamiliarizing
power of Whiteread’s casts, all Whiteread’s works are lessons in renewed ways
of looking at the overlooked, at the very fabric of our everyday lives. It is no
wonder then that at the same time as Magnum photographer Martin Parr
produced his uncanny series of photographs of light switches,26 each almost
obscenely testifying to the taste of the house’s owner, Whiteread also produced
her own version of light switches. Anonymous, bland, purely functional and
yet disconnected from their environment, unlike Parr’s clichés, these images
make us see this banal object for the first time, transcending its mere function,
while insisting once more allegorically that art must shed light on the
overlooked, must make us see.
What made House unique was its capacity to address the pragmatic
agenda of contemporary art, to force art back onto the public arena, to heal
the breach between the artwork and society and thus to cancel its autonomiza-
tion. House was one of those “anxious objects” to borrow Harold Rosenberg’s
formula, which desacralize art by provoking a violent estrangement of our
expectations of what art should be. The tags on its walls, which read “Wot for”
and “Homes for all black and white,” were proof enough that art could still
object, could still resist its commodification by the culture industry and that its
task was also to engage, beyond the sheltered precinct of the art world, into a

25 The installation was entitled Embankment, and was part of the Unilever series of sponsored works
commissioned by the Tate. It could be seen from 11th October 2005 to 1st May 2006.
26 Martin Parr and Nicholas Barker, Signs of the Times: A Portrait of the Nation’s Tastes (London:
Cornerhouse Publications, 1992).
Empathy and Dissidence in Contemporary English Art and Fiction 59

political dialogue with society at large.


Whiteread was to take further her ethical and political meditation on art’s
capacity to speak to our collective memory with the memorial she was
commissioned to design in Vienna, in hommage to the Austrian Jews extermi-
nated during the Shoah. Her giant cast of the interior of a library on Judenplatz
offers an intractable and endless allegory about the logic of public and private
memorialization, about the accountability of art, about the relation between
sighting (vision) and siting (the public position of art in the city). The memorial
conjures up private memories of the intimate and personal experience of
reading, but is of course an indirect reference to the autos-de-fé perpretated
by the Nazis. Like House it is obstinately silent yet seems vibrant with the
murmurs of private voices that have been silenced: the voices of writers as
well as readers. It functions both as shrine and as an echo chamber. More
sinisterly of course its blank walls and closed doors are reminiscent of the
death chambers in which a whole culture was gradually eradicated.27

***
By taking her sculptures out of the studio or the impersonal spaces of the
art gallery or the museum, Whiteread intended to relocate art at the heart of
the polis, to turn the artist once more into a valid interlocutor. She also
implicitly meant to make us see how political and cultural the space in which
we live has always been. Other artists also engaged in a similar dialogue with
our everyday space and also intended to make us gaze at the overlooked
spaces of our lives anew. With his work Semi-detached (2004), Michael Landy
also revisited the common places of England’s collective memory. Installed in
the monumental Duveen Galleries of Tate Britain on Millbank, Landy’s work
consisted of the painstakingly reconstituted exterior of a semi-detached house,
similar to those to be seen everywhere in Britain and which have become the

27 For an analysis of the dialectics of presence and absence produced by this work, see James E.
Young, “Rachel Whiteread’s Judenplatz Memorial in Vienna. Memory and Absence” in Townsend
(ed.), pp. 162-172.
28 It is yet another proof of the paradoxical role of art in today’s culture industry that Landy’s work,
for all its adversarial stance was from the start processed by the corporate culture of the museum
and subsumed under its now institutionalized counter-discourse, as testifies the description of the
work still to be found on the Tate’s web site: “Semi-detached, a major site-specific installation,
takes as its focus the artist’s father, a former tunnel miner incapacitated by an industrial accident
twenty-five years ago. Through sculpture, video and sound Landy invokes broader questions of
value and usefulness, employment and purpose.” 30th October 2006.
//www.tate.org.uk/britain/exhibitions/landy/
60 Catherine Bernard

hallmark of Britain’s suburbia.28


The house’s modest, demotic vernacular conflicted forcefully with the
Galleries neo-classical, atemporal architecture. The semi-detached – a house
fit for Arnold’s “populace” to live in – in its turn defamiliarized the monumental
setting in which it seemed both dwarfed and disturbingly intimate. In the
nation’s common house the museum is meant to be, the little carbuncle of a
house struck the visitors as literally out of place; yet it also showed up the
museum’s utopian space for what it really is: an institutionalized utopia that
dictates to our sense of collectiveness and yet which is so central to our
common cultural fabric that we tend to forget how it naturalizes its own logic.
Placed at the heart of the great Galleries meant to function as a hub orienting
the visitors towards the various sections of the collections, it created all sorts
of impediments and blocked the regulated flow of visitors. The world of the
private intruded in the impersonal world of collective – and increasingly
corporate – culture. By showing Semi-detached at Tate Britain, rather than Tate
Modern, where its conceptual agenda would have chimed with the museum’s
aesthetic function, Landy and the museum’s curators made it clear that the
political and ideological purport of the work was of greater import than its
aesthetic intent. Thus the work, for all its conceptual sophistication, proved to
be anything but autonomous from its episteme. On the contrary the power of
its conceptual agenda lay in its healing the breach between polticis and
aesthetics.
Many are the instances of contemporary artists who intend to rehis-
toricize art, to invest the blind spots of society, the overlooked with renewed
heuristic potential. To borrow from Andreas Huyssen’s analysis of the rein-
vestment of the blind alleys of the past and the present by discourse in order
to defeat amnesia: “In this search for history, the exploration of the no-places,
the exclusions, the blind spots on the maps of the past is often invested with
utopian energies.”29
I would like precisely to conclude by turning briefly to another artist who
also tries to reinvest art with such “utopian energies” and once more displaces
the point of view, reinvents that dialectics of dissidence and empathy which
forces us to gaze upon the political unconscious of modern high culture.
Nigerian born and self-styled “post cultural hybrid” Yinka Shonibare has also

29 Andreas Huyssen, Twilight Memories. Marking Time in a Culture of Amnesia (London: Routledge,
1995), p. 88.
Empathy and Dissidence in Contemporary English Art and Fiction 61

fashioned an efficient and simple way of encapsulating the concealed tensions


at the heart of English high culture. Always working with the most vernacular
of fabric: wax-print cotton, Shonibare forces dominant and subaltern cultures
to cohabit within installations whose subjects may range from Victoriana
(Victorian Philanthropist’s Parlour, 1997) to the modern mystique of space
travel (Vacation, 2000), from late Victorian women’s fashion (Gay Victorians,
1999) to colonial sea travels (Vasser Ship, 2004).
The vernacular vocabulary of African traditional print fabric – the sort you
can of course even today find on every East end open air market – functions
here as an index of the political unconscious of Victorianism. Just as, in
Austen’s Mansfield Park, Sir Thomas Bertram’s prosperity and gentility are
directly indexed on the financial returns of his West–Indies plantations
manned by slaves,30 the triumph of Victorian ethics is also seen to be premised
on the domestication of the colonies, even in its most philanthropist form, as
Dickens had already intuited in his satirical portrait of the philanthropist Mrs
Jellyby in Bleak House. The incongruous cohabitation of the two discursive
worlds of subaltern and colonizer brings home, with a vengeance, the complex
and ambiguous relation the Victorians entertained with their colonies.
Violently updating the Victorian fascination for exotic artifacts, the print fabric
howls that orientalism, exoticism itself may be but an indirect manner of
domesticating the other. The controlled syntax of imperialist ideology is
dislocated by such a “howler.” No longer homely, the Victorian parlour for
instance becomes the locus of a battle of tastes that itself is allegorical of a
tension between dominant and subaltern cultures.
Elsewhere, Shonibare opened his exploration of the politial unconscious
of imperialism to a gendered reading of cultural domestication. In Three
Graces (2001), the containment of the feminine body imposed by Victorian
fashion is implictely shown to mesh in with its ancestral aesthetic containment
as it was initiated by Greek mythology and then handed down, through the
history of Western art, by painting and sculpture. Concomitantly, the Western
subjection of the “dark continent” of the feminine – to paraphrase Freud’s
definition of feminine sexuality – is also seen to be in keeping with the
domination of the dark continents of the British Empire.
Ultimately Shonibare’s allegorical analysis of the construction of otherness

30 See Edward Saïd’s well-known analysis of this silence at the heart of Austen’s novel in Culture and
Emperialism.
62 Catherine Bernard

reflects on the constructedeness of dominant ideas of culture, on its enduring


institutionalization. Nowhere is it more blatant than in his probably most
famous work to date, Mr and Mrs Andrews without their Heads (1998).
Beheaded, attired in Shonibare’s trademark print fabric, Gainsborough’s
famous icons of the English gentry are reduced to being mere mannequins,
mere fashion plates of a dead culture that, for all its effort to naturalize its
constructedness, can only outlive itself as relics.
Needless to say that the position of such renowned artists within the
market economy of art begs enless questions regarding the actual impact of
their dissidence, of their critical rereading of the political unconscious. Their
relentless attempts at shedding light empathetically on the overlooked at the
heart of dominant modern culture is nevertheless proof of the iconoclastic
impact of art when it chooses to dislocate its own practice.
Resumo em português
Empatia e Dissidência na Arte e Ficção Inglesas
Contemporâneas

Proponho-me aqui considerar os desenvolvimentos recentes no âmbito


da arte e da literatura inglesas que possam conduzir a uma nova abordagem
não só da modernidade mas também da pós-modernidade, frequentemente
desvirtuada por dela se ter um conceito demasiado lato e pouco claro. Ao
debruçarem-se sobre alguns recantos sombrios da cultura e alguns lugares
obscuros do inconsciente político inglês, esses recentes desenvolvimentos
levaram-nos a desviar a atenção dos lugares comuns e batidos da cultura
afirmativa e consensual no campo das artes visuais, da ficção e da literatura
documental. É assim que esta comunicação poderia ter tido como título
“Looking at the Overlooked”, em homenagem ao notável ensaio de Norman
Bryson sobre a arte de pintar naturezas mortas. Para Bryson, olharmos para
aquilo a que ninguém dá importância implica aprendermos com os pintores
de naturezas mortas a observar o que nos cerca e que nós desconhecemos, a
prestarmos atenção às áreas experimentais, tantas vezes mal interpretadas,
quando não mesmo votadas ao desprezo e ignoradas, nós que, com o nosso
olhar experiente, não somos capazes de reconhecer o valor desses mestres e de
ver que eles constituem sinais cujo sentido deveríamos ser capazes de decifrar.
Volto assim o meu olhar para o que, na arte e literatura inglesas, constitui
a longa e ambígua tradição dos ignorados, daqueles a quem foi negado o
direito a serem representados ou que, quando presentes, surgem marcados
pelo estigma do “outro”, repelente e ameaçador, do que, sendo no seu íntimo
um estranho, tem de ser esteticamente contido.
De facto, a classe trabalhadora e, por maioria de razão, o proletariado
são raramente retratados na ficção inglesa, aparecendo apenas como pano de
fundo, silhuetas sem consistência, que as estruturas social e ficcional assumem
pacificamente como dado adquirido.
64 Catherine Bernard

No século XX, estes nichos recônditos e ignorados da vida colectiva


inglesa emergiam apenas como testemunhas de uma realidade sociológica,
especialmente com Bill Brandt e outros fotógrafos que exerciam a sua profissão
no terreno, nomeadamente Don McCullin, que haveria de dedicar aos pobres e
desalojados a mesma atenção que consagrava a documentar a guerra moderna.
Este regresso ao real, ou do real, para empregar a expressão do crítico de
arte Hal Forster, tem ultimamente assumido maior preponderância no campo
da arte e da escrita. De facto, os artistas viram aqui uma nova possibilidade
de esbater a fronteira entre facto e ficção e de explorar a génese da represen-
tação da própria sociedade. O artista redefine-se a si próprio como “etnógrafo”
para poder mostrar a cultura em acção e para questionar o modo como ela dá
testemunho das suas premissas ideológicas.
Dá-se assim, por vezes, uma alteração da perspectiva geográfica, em
casos como, por exemplo, o de Peter Ackroyd, que na sua obra London. The
Biography (2000) muda o cerne da identidade cultural de Londres para o East
End. Tal como Graham Swift, que no seu romance elegíaco Last Orders (1996)
tenta reinventar a própria tessitura linguística da classe trabalhadora do East
End, também Ackroyd está imbuído de profunda nostalgia.
Uma sensação semelhante de perda cultural envolve Lights Out for the
Territory (1997) de Iain Sinclair. Tanto Ackroyd como Sinclair enaltecem a
energia anárquica que anima muitos dos textos modernistas, desde o Ulisses de
Joyce até Mrs Dalloway de Virginia Woolf – só que, nestes autores, a imagem
actualizada do homem moderno é dada em chave mais sombria.
Como reacção à degradada economia hermenêutica do presente, estes
textos necessitam também de reinstaurar uma economia discursiva de poder,
quase de autoritarismo, baseada na construção de uma arquialegoria que
inclui a própria natureza no derradeiro momento de falácia patética.
Ao redescobrir o vernáculo – literalmente, ao redescobrir a cultura indí-
gena, a dos oprimidos, dos escravos nascidos em casa (verna em latim) – a
nostalgia tornou-se programática. Não podemos deixar de pensar que o proces-
so de recordar corre o risco de se transformar numa estrutura perfeitamente
instalada como a que ele denuncia em relação à cultura dominante. É, na
verdade, ténue a fronteira que separa a necessidade de recuperar um passado
cultural reprimido de uma forma de celebração nostálgica que, transformando
a perda em identificação afirmativa, desse assim a sensação confortável de
colmatar a brecha entre as duas.
Ao conceber House, a obra que, em 1993, lhe valeu o Turner Prize, a
escultora Rachel Whiteread quis focar precisamente esta contradição, trazendo-
-a para primeiro plano. Contra a suposta autonomização da arte moderna,
Empatia e Dissidência na Arte e Ficção Inglesas Contemporâneas 65

também ela reposicionou a obra de arte na própria teia e trama do espaço


urbano e político. Por outro lado, perante a tendência crescente da arte in situ
para despolitizar a relação entre a obra de arte e o meio ambiente, Whiteread
afirmou a necessidade de os artistas reflectirem sobre o modo como se inse-
rem no ambiente que os envolve, pois este constitui a estrutura que possibilita
não só a realização dos trabalhos mas a sua comercialização. Whiteread tam-
bém se apropriou, tematizando-o, de um dos tropos constitutivos do cons-
ciente inglês: a casa como extensão da entidade privada e familiar e, simetri-
camente, como sinédoque da comunidade inglesa vista como um todo.
Os trabalhos mais recentes de Whiteread funcionam igualmente como
máquinas de memórias que conseguem captar o nosso passado fragmentado
e disperso e transformá-lo num grande conjunto de identidades que se adequa
a todos e a ninguém, que revela as nossas pessoas íntimas e colectivas.
Ao trazer as suas esculturas para fora do estúdio ou do espaço impessoal
das galerias de arte ou dos museus, a intenção de Whiteread foi trazer a arte
para o coração da polis para nos fazer tomar consciência da realidade política
e cultural que caracteriza os locais em que sempre vivemos. Outros artistas
houve que entraram no mesmo tipo de diálogo com o quotidiano com o fito
de nos fazer lançar um olhar novo sobre os espaços das nossas vidas em que
habitualmente não reparamos. Temos o exemplo de Michael Landy que, com
a sua obra Semi-detached (2004), também revisitou os lugares comuns da
memória colectiva da Inglaterra.
Muitos são os casos de artistas contemporâneos que querem voltar a dar
à arte a espessura da história, investir nas áreas secundarizadas da sociedade
e instilar um novo potencial heurístico naquelas que estão votadas ao esque-
cimento.
Para concluir, mencionarei outro artista que também tenta reinvestir estas
“energias utópicas” na arte e, uma vez mais, desloca o ponto de vista e rein-
venta a dialética da dissidência e empatia que leva o nosso olhar a fixar-se no
inconsciente político da cultura erudita. O nigeriano Yinka Shonibare, que se
considera um produto “híbrido pós-cultural”, também elaborou um modo
simples e eficiente de encapsular as tensões escondidas no íntimo da moderna
cultura erudita inglesa. Trabalhando sempre com algodão estampado de fabri-
co local, Shonibare consegue fazer coabitar as culturas dominante e subalter-
na em instalações cujos temas vão desde a época vitoriana à mística moderna
da conquista do espaço, e desde a moda feminina do fim do período vitoriano
às viagens por mar dos tempos coloniais. A verdade é que a análise alegórica
que Shonibare faz da construção da alteridade põe em questão a qualidade
das ideias dominantes da cultura e a solidez da sua institucionalização.
66 Catherine Bernard

O modo como tais artistas de renome na economia de mercado da arte


se posicionam levanta inúmeras questões quanto ao impacto da sua dissidên-
cia, da sua releitura crítica do inconsciente político. Contudo, as inexoráveis
tentativas destes artistas de lançar luz sobre tudo o que está votado ao esque-
cimento no interior da moderna cultura dominante constituem prova do
impacto iconoclasta da arte quando esta decide exercer a sua actividade
noutros locais que não aqueles a que estamos tradicionalmente habituados.
Frida Kahlo, the Wounded Flesh Made Sign

MARIA JOSÉ PIRES


(CEAUL-Centro de Estudos Anglísticos da Universidade de Lisboa /
Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril)

ISBN 978-972-8886-08-0 • A PALAVRA E A IMAGEM • CEAUL / ULICES 2007


W
hen reading Angela Carter’s fiction, one clearly finds it to be
pungent and powerful, mocking or lyrical. However, one cannot
forget her other writings and how they can also be observant and
brilliantly entertaining. This occurs in her journalism and shorter writings, now
collected in Shaking a Leg (1997).
As a child of the 1960s, Carter lived through the “extraordinary upheavals
which amounted to a revolution in style, taste, politics – in everything from
fashion, about which she writes brilliantly and funnily, to weighty matters like
class”. (Smith 1997: xiii). Such is the scope of her work. Therefore, the
invitation to write a Preface to the postcards’ collection Images of Frida Kahlo
published in 1989 by Redstone Press is not surprising. Thus, the questions that,
in our opinion, deserve consideration are the ones about what features does
Angela Carter underline in the Preface and how do these reflect her
consciousness when writing it as well as her own positions in life.
The first feature that Carter calls our attention to is Frida Kahlo’s love to
paint her own face and how she did it constantly. This genre, self-portraiture,
allowed Frida to penetrate and dissect the very core of her being. As we know,
in 1925, the eighteen year-old Frida was seriously injured in a disastrous
accident: the impact broke her spine in three places and fractured her right
leg, collarbone, ribs and pelvis. Forced to spend most of her time lying down,
Frida had a specially designed easel that could be attached to her bed so she
would be able to paint, as well as a mirror placed in the canopy above that
allowed her to see herself. Carter also stresses how Frida liked to be pho-
tographed. Although Frida could not do that for herself, she had other people
photograph her. This leads Carter to argue that notwithstanding the portrait
photographs that resemble the face in Frida’s own pictures so closely, “her
eyes seem to have had the power to subvert the camera, making it see her as
she saw herself, as she makes us see what she sees when she paints.”
Immediately after this, Carter describes Frida’s uniqueness in this process of
looking at oneself, “because the face in the self-portraits is not that of a woman
looking at the picture; she is not addressing us. It is the face of a woman
70 Maria José Pires

looking at herself, subjecting herself to the most intense scrutiny, almost to an


interrogation.” (Carter 1998: 434).
This interrogation reminds us of Carter’s visit to Japan and Tokyo’s ritualism,
both portrayed in Fireworks (1974) and more particularly in “Flesh and the Mirror”.
In this short story, the first person narrator tries to rebuild a setting according
to an imaginary blueprint as a backdrop to the plays in her puppet theatre.
While doing so, she faces herself in a mirror on the ceiling of a hotel room:
The magic mirror presented me with a hitherto unconsidered notion
of myself as I. Without any intention of mine, I had been defined by
the action reflected in the mirror. I beset me. I was the subject of the
sentence written on the mirror. I was not watching it. There was
nothing whatsoever beyond the surface of the glass. (…) Mirrors are
ambiguous things. (…) Women and mirrors are in complicity with one
another to evade the action I/she performs that she/I cannot watch, the
action with which I break out of the mirror, with which I assume my
appearance. (Carter 1988: 64-65).
As Lorna Sage points out, this I/she is “purely impersonal”, as Carter
“discards her inner life and her act delivers her back to herself, her own
author.” (Sage 1994, 27). This form of disguise is observed by Carter in Frida’s
urgent self-interrogation. The writer acknowledges Frida’s usage of narcissism
and exhibitionism in order to fulfil her disguise underlining the fact that what
we see is the face of a woman looking into a mirror; a mirror we cannot see,
but one that we must always remember was there. Hence, Carter presents
these self-portrait paintings as a form of self-monitoring: “She watches herself
watching herself. When she does that, she is at work.” (Carter 1998: 434).
Frida confirmed that she portrayed herself because she was alone most of the
time and she was the subject she knew best. One can even assume that Frida
is self-portrait reproduced, since she finds in it the possibility of using the pain
that afflicts her as a form of narrative.
Going back to Carter’s “Flesh and the Mirror”, we notice a similar
awareness when the main character becomes perplexed with her changing
feelings and considers the creation of a life she had watched herself perform.
She deals with the situation in a brilliant and funny way:
I no longer understood the logic of my own performance. My script
had been scrambled behind my back. The cameraman was drunk. The
director had a crise de nerfs and been taken away to a sanatorium. And
my co-star had picked himself up off the operating table and painfully
cobbled himself together again according to his own design! All this
had taken place while I was looking at the mirror.
Imagine my affront. (Carter 1996: 68).
Frida Kahlo, the Wounded Flesh Made Sign 71

The looking into the mirror depicts what Carter later writes in the Preface
regarding Frida’s emotional experience and her attempt to transform “her
whole experience in the world into a series of marvellously explicit images.
She is in the process of remaking herself in another medium than life and is
becoming resplendent. The flesh made sign.” And when we ask ourselves
‘What flesh?’ Carter immediately answers: “The wounded flesh.” Frida herself
was her own raw material. In order to show how Carter believed Frida to be
ahead of her time in many ways, she pinpoints how this artist kept the raw
material raw, since “the wounds never healed over”. (Carter 1998: 434).
When we go back to Carter’s short story “Flesh and the Mirror” and we
read the last paragraph “The most difficult performance in the world is acting
naturally, isn’t it? Everything else is artful.” (Carter 1996: 70) we are remembered
of André Breton, the French surrealist, who described Frida’s work as a ribbon
around a bomb. Her paintings transmit, in a very powerful way, a strong
energy, a great passion and pain. This is probably what led Carter to underline
how much pain is contained in her paintings, when she quotes Frida’s husband,
Mexico’s most celebrated artist, Diego Rivera: “Frida is the only example in
the history of art of an artist who tore open her chest and heart to reveal the
biological truth of her feelings.” Moreover, Carter believes that the unchanging
gaze on the painted face shows an enigmatic stoicism, along with martyrdom
as Frida’s wounds are displayed, reckoning the artist as a “connoisseur of
physical suffering”. (Carter 1998: 434). Therefore, it makes us believe that
when portrayed on canvas, that Frida helped herself to resist the pain as if she
felt a need to paint in order to endure it physically and psychologically (then
becoming more real and confirming her hold on existence).
The second feature Angela Carter points out to concerns Frida’s physical
appearance. She begins by admiring what Frida did with her hair in the
paintings, commenting on how the hair of “the most sensual of painters, hangs
in disorder down her back only when she depicts herself in great pain, or as
a child”, when traditionally wild, flowing hair is associated with sensuality and
freedom. Regarding Frida’s usual hairstyle, Carter gives us a complex picture:
Sometimes her hair is scraped back so tight the sight of it hurts;
or it is unnaturally twisted into knots; plaited with flowers and ribbons
and topknots and feathers in any one of fifty different ways; arranged
in fetishistic, architectural composition of braids. (Carter 1998: 435).
It isn’t hard to imagine the loose hair Carter using terms as the adjective
“scraped” – which implies a harshly rub on –, the verb “hurts”, the expression
“unnaturally twisted into knots” – inferring an artificial control implying pain –,
the excessive “fifty different ways” of plaiting the hair using various accessories,
72 Maria José Pires

and again the unnatural “arranged” and “composition” featured as “fetishistic”


and “architectural”. All these words describe Frida’s hairstyle.
In Frida’s 1940 self-portrait, after her divorce from Diego Rivera, Carter
also refers to the cutting of the hair as a relief for a tortured thing in a sarcastic
comment: “as if she’d finally got rid of an unpleasant, demanding pet.” (Carter
1998: 435). Carter adds a brief reference to a phrase from one of the early
1940s popular songs Frida liked to sing at the top of the painting and the artist
presents it in an ironic way:
Look, if I loved you it was for your hair. Now that you are hairless, I
love you no more.
Frida, who had felt loved, as in the song, only for her feminine features,
decided to put these aside and renounce the feminine image that was expected
of her. She cut off her hair, symbol of the feminine beauty and sensuality, as
she had already done during her previous separation from Rivera, in 1934/35.
She also gave up on her “folkloric Mexican finery with which we associate
her”, so much admired by her husband, and wore a man’s suit, “much too big,
billowing, voluminous” for her that it could have been taken from Rivera’s
wardrobe. The only clearly feminine piece left was a pair of earrings. However,
Carter recalls how Frida liked to pose for photographs en travestie even before
her accident and questions her choice for this 1940 painting: “Has she put on
her enormous ex-husband’s clothes, in order to comfort herself? Or do men’s
clothes no longer fit her, as they once did?” and concludes: “One thing is plain:
whoever no longer loves her like this, she certainly does not love herself. They
were remarried later that year. She grew her hair and braided it again.” (Carter
1998: 435). Nevertheless, let’s not forget Frida’s fascination with identity and
delight in masquerade. Her ethnic costumes and braided hairstyles served to
please Rivera and to conceal her physical ailments. In addition, they also
implied a political statement in support of an authentic and independent
Mexican heritage.
Only after presenting Frida Kahlo in that way does Carter mention the
accident and how it changed the painter’s life, giving her something to paint
about: “Her pain. In fact, the accident itself, horribly, turned her into a bloody
and involuntary art object.” Carter’s reference to the accident and to the fact
that all of Frida’s clothes came off in the crash and the bag of gold powder
carried by another passenger spilled over her, creates what Carter believes to
be “an image from a nightmare, more horribly glamorous than any she
imagined, or recreated.” (Carter 1998: 435). Such an assumption reflects most
of the dualism Frida portrayed in her paintings, either culturally or
sentimentally; as shown through her search for harmony between dualistic
Frida Kahlo, the Wounded Flesh Made Sign 73

principles, such as life and death, male and female, light and dark, ancient
and modern.
Another aspect Carter observes in Frida’s painting is her straightforwardness:
She depicts her body enclosed in one of the plaster-of-Paris corsets
prescribed for her crumbling spine, her torso stuck with tacks, she
paints the fresh incision of the surgeon’s knife; her own blood, and
other people’s, too; her miscarriage; her restless dual nature, part
European, part Mexican; her broken heart. (Carter 1998: 436).
Despite Carter’s admiration for this straightforward form with which Frida
depicts her reality, she also points out to how subtle Frida can be when
painting the deer pierced with arrows. This painting, The Little Deer (1946), is
also seen as an example of Frida’s interest in Eastern religions and mysticism:
her head conjoined with the body of a stag shows such complex assimilation
of sources, since it relates to the artist’s suffering due to her failing health and
turbulent relationship with Rivera, as well as it sums up a world view in which
different cultures and belief systems combine. Thus, the word “carma” inscribed
at the bottom of the canvas becomes a reference to the Eastern concept of
reincarnation; whereas the arrows allude to St Sebastian’s Christian images.
On the other hand, in Aztec culture, the deer is known to symbolise the right
foot – Frida’s injured limb from her childhood – and relates to the animal alter-
ego, a subject that fascinated Frida and that is tied to Angela Carter’s reference
to anthropomorphism – which in turn raises the question of the meaning of
humanity itself, topics that can be found in Nights at the Circus (1984).
As such, Carter recognizes Frida’s ability to make of her “broken,
humiliated, warring self a series of masterpieces of mutilation” like she also
did in real life, the writer presents these circumstances by concluding that
Frida’s narcissism becomes triumphant, a carnival. But she adds, within
brackets, “Never forget the black humour in her paintings”. (Carter 1998:
436). We can say the same thing of some of Angela Carter’s work. Even in this
Preface, similarly to her journalism, the writing is “thoughtful yet immediate,
concise but not shallow” (Smith 1997: xiv) and still ironic and poignant. This
is quite evident when Carter focuses on Frida’s marriage to Rivera as a
“monstrously ambiguous couple – Frida with her moustache, Diego with his
fat man’s breasts. The sexiest couple in Mexico, who did not fuck.” After
explaining how factual her statements are, through a parenthesis, Carter
underlines again their physical differences and how this is so absolutely
obvious in their working interests: “he did the large-scale public works, the
great political murals. She did the colour postcards of heightened states of
mind, the politics of the heart.” (Carter 1998: 436). However, Carter seems to
74 Maria José Pires

acknowledge the originality of this relationship by pointing out that Rivera was
Frida’s muse, alluding to two self-portraits, one of 1943 and the other of 1949,
which “show he of the bullfrog features ensconced upon her forehead, in the
place where I imagine that Cain was marked.” For Carter, these portray
obsession, devotion, and inspiration. Furthermore, she stuns us with this remark:
Muses aren’t supposed to make you happy, after all. Then again men
are warned against marrying their muses. Women sometimes have no
option. (Carter 1998: 436).
Notwithstanding these assumptions, Carter still concludes that Frida
became “a great painter because of, not in spite of, all this.” (Carter 1998:
437). Such a conclusion seems to reflect the way Carter’s Night’s at the Circus
is also built; it begins with a young American journalist, named Jack Walser,
who tries to explode the heroine Fevvers’ reputation as a real woman who also
has real wings and in the end he becomes aware of her liberation, her
emancipation from real-life models of femininity. No wonder in the end the
“spiralling tornado Fevvers’ laughter began to twist and shudder across the
entire globe”; though her laughter might also be at Walser’s credulity: “It just
goes to show there’s nothing like confidence!” (Carter 1994: 295).
In the Preface, Carter also underlines the need women painters face of
making “exhibitions of themselves in order to mount exhibitions”. She does so
by strongly stressing the verb phrase, “are forced”, and as a paradigm presents
their options – “Fame, notoriety, scandal, eccentric dress and behaviour”
(Carter 1998: 437) – as well as their identities: Rosa Bonheur (the XIX Century
French artist considered one of the most renowned animal painters in history,
whose unconventional lifestyle contributed to the myth that surrounded her
during her lifetime, as she smoked cigarettes in public, rode astride, and wore
her hair short); Meret Oppenheim (the Swiss Surrealist painter and sculptor,
whose youth and beauty, free spirit and uninhibited behaviour, precarious
walks on the ledges of high buildings, and the “surrealist” food she concocted
from marzipan in her studio, all contributed to the creation of an image of the
Surrealist woman as beautiful, independent, and creative), Leonor Fini (the
Italian artist who always rejected categorization of any kind and whose
eccentric persona and flamboyant dress was rivalled only by Dali’s), Georgia
O’Keeffe (who would test her physical and psychological independence by
living beyond the fringe of civilization, bucking oppressive social conventions
to become one of the first female American artists to lead a professionally
successful and emancipated life) and finally Frida Kahlo. The examples shown
by Carter all seem to confirm her idea that “Fame is not an end in itself but a
strategy.” As opposed to “are forced”, Carter chooses the same paragraph to
Frida Kahlo, the Wounded Flesh Made Sign 75

explain how “Being famous means she can stake out her own territory, can
even determine, wholly or in part, the way her paintings will be looked at.”
(Carter 1998: 437) (our emphasis).
Frida’s transition to a much mature style and to a public acknowledge-
ment as a major artist “was assisted, not hindered, by her growing fame as the
beautiful wife of the Mexican muralist.” We know how Frida felt lost and
unprotected without Diego, but she was still determined to keep herself strong
as she grew more independent from him. Thus, we believe that Frida’s higher
success and independence was attained at an artistic, emotional and financial
level, the latter she perceived from the moment her first four paintings were
bought by Edward G. Robinson. Similarly, Angela Carter’s second prize, the
Somerset Maugham Award for her third novel Several Perceptions (1968),
brought her the opportunity to spend the money on a visit to Japan, where she
lived a unique experience (1969-1972). She then returned to England to get
divorced and to build her career with help from journalism. As Roland Barthes
wrote at the beginning of Empire of Signs (1970) “Someday we must write the
history of our own obscurity – manifest the density of our narcissism”. Carter
seems to have later reflected on the cultural diversity of her own experience
when dealing with the Marquis de Sade in The Sadeian Woman in the
following passage: “Flesh comes to us out of history (…)” (Carter 1979: 11).
That seems to have been implied in the way Frida Kahlo became famous as a
symbol of what Carter names “Mexicanness”. For her, Frida used anything and
everything, from pre-Columbian jewellery antiques to beads bought from the
market, turning herself into a “folkloric artefact”. Carter also points out to how
different she would be in her contemporary class society, since Frida chose to
wear the most elaborate Mexican traditional dress “at a time when the
Mexican bourgeoisie, from which she came, did not indulge in fancy dress
and even high Bohemia, to which she now belonged, only kept it for parties.”
(Carter 1998: 437). Nowadays, some believe that Frida used this dress option
in two ways: to make a nationalist political point and to make a statement
about her own independence from feminine norms.
Carter’s emphasis is then on how such “enchantment of disguise”, a
“perpectual festival of fancy dress”, overcame Frida. Even after describing
some awkward situations, Carter stresses the artificiality of Frida’s dazzled
smile along with “her living exposition of the vitality of the peasant culture of
Mexico” (Carter 1998: 437) turned into a piece of political theatre; an
appearance that, according to Carter, could easily be trapped in the high
fashion world. Thus, she considers the opening of Frida’s show in Paris (1938),
at which the Franco-Italian designer Elsa Schiaparelli designed a couture line
76 Maria José Pires

and a dress that she baptised “la robe de Madame Rivera”. To promote such a
style, Frida’s hand, covered with jewels, appeared on the monthly cover of the
French Vogue magazine. It is in a two line paragraph that Carter sums up
Frida’s choices, by comparing them to Walt Whitman’s: “Like Walt Whitman,
if she contradicted herself, it was because she contained multitudes.” (Carter
1998: 437). Although we haven’t found contradictions in Carter’s choices of
lifestyle yet, since she considered herself as a feminist writer, living her life
accordingly to her subversive nature, we know that she always acted like a
woman to whom nothing was sacred, not even feminisms. This isn’t hard to
notice when we are dealing with a writer’s work that includes novels, short
stories’ collections, dramatic works for radio, theatre and cinema as well as
journalism and other writings.
When mentioning Frida’s death in 1954, Carter observes how easy it was
for Diego Rivera to turn the blue painted house in Coyoacan into the Museo
Frida Kahlo, mainly because she believed the artist had already “made of their
home a shrine dedicated to their entwined, if complicated, lives.” This makes
sense when Carter considers Frida as a work of art, who produced “art works
inside one another” and then shows us how these reflect on “the unfinished
portrait of Stalin on the easel in her studio, with her wheelchair next to it”, and
the mugs with the couple’s names in the kitchen. Albeit Carter considers “the
magic and artful universe of this house, a beautiful and wholly invented life of
flowers, fruit, parrots, monkeys and other people’s children”, she cannot avoid
a comment on Rivera’s conducting guided tours to Hollywood film stars of the
work of the Revolution in Mexico: “Both husband and wife were more than
the sum of their contradictions.” Reflecting on Frida’s various facets, Carter
arrives at an image of a laughing and enchanting woman and then flirts with
it in this manner: “Yes. I believe that. I believe that she was enchanting.”
(Carter 1998: 438).
In the last paragraph of her Preface to the Frida Kahlo’s postcards’ collec-
tion, Carter sums up what one is able to see on a first glance at the artist’s work:
(…) she painted the strangeness of the world made visible. Her face.
Her friends. A bowl of fruit. Flowers. The victim of a crime passionel.
The sun. A dead child. The curse of love, the disasters to which the
female body is heir. ‘VIVA LA VIDA’, she scrawled on her last painting
when she was about to die. (Carter 1998: 438).
Here we get the portrait of a woman who did not submit to any standard
of beauty, but still defined it; a beauty that underlines women’s absolute
singularity. Such strong praise of Life would later be present in Carter’s last
novel, Wise Children (1991), when the twin heroines end up their seventy-fifth
Frida Kahlo, the Wounded Flesh Made Sign 77

birthday partying along Bard Road, promising to “go on singing and dancing
until we drop in our tracks (…). What a joy it is to dance and sing!” (Carter 1992:
232). This ending celebrates Life when Carter already knew she had lung cancer.
Finally, we consider it ironic that Frida herself was unable to escape the
same consumerist machine that she so fiercely criticised. Deemed as the
quintessential icon of Mexican Surrealism, her paintings nowadays fetch the
highest prices of any Latin American artist.1 Similarly, we may question
ourselves about how Angela Carter, who strived to remain outside the canon,
would react if she ever found out that, in the year following her death, the
British Academy received more requests for doctoral study grants on her work
than on the entire eighteenth century! (Gamble 1997: 1). She surely would
have found her own canonisation amusing!

References
André, María Claudia (2005). “Evita and Frida: Latin American Items for Export” In The
Latin American Fashion Reader, edited by Regina A. Root. New York: Berg
Publishing, 247-262.
Carter, Angela (1988 [1974]). “Flesh and the Mirror” In Fireworks. London: Vintage,
61-70.
–––. (1979). The Sadeian Woman: An Exercise in Cultural History. London: Virago
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–––. (1994 [1984]). Nights at the Circus. London: Vintage (first published by Chatto &
Windus).
–––. (1992 [1991]). Wise Children. London: Chatto & Windus Ltd.
–––. (1998 [1997]). “Frida Kahlo” In Shaking a Leg: Journalism and Writings. London:
Vintage (first published by Chatto & Windus), 433-438.
Gamble, Sarah (1997). Angela Carter: Writing From the Front Line. Edinburgh: Edinburgh
University Press.
Sage, Lorna (1994). Angela Carter. Plymouth: Northcote House in association with the
British Council.
Smith, Joan (1997). “Introduction” In Shaking a Leg: Journalism and Writings. London:
Vintage (first published by Chatto & Windus), xii-xiv.

1 Such is María Claudia André’s point of view presented in the article “Evita and Frida: Latin
American Items for Export” that can be read online. 28th September 2005.
http://www.palgrave-usa.com/pdfs/1859738931.pdf.
Resumo em português
Frida Kahlo, a carne dilacerada feita signo1

Ao lermos a ficção de Angela Carter, facilmente a vemos como lanci-


nante, poderosa e satírica. Contudo, também os seus textos jornalísticos e
outros breves e tipos vários, coligidos em Shaking a Leg (1997), revelam essa
vertente, aliada a uma capacidade fascinante de observação. Como filha dos
disruptivos anos sessenta do século XX, não é surpreendente o convite para
escrever o prefácio à colecção de postais Images of Frida Kahlo (1989)
publicada pela Redstone Press. Assim, coloca-se a questão do modo como as
características do trabalho e da vida de Frida Kahlo evidenciadas por Carter
reflectem a sua ideologia.
O primeiro facto para o qual somos alertados é o prazer e a persistência
com que Frida retrata o próprio rosto, permitindo-lhe penetrar no seu cerne e
dissecá-lo. Carter salienta ainda o apreço que Frida sente ao ser fotografada,
e a escritora realça ainda a capacidade do olhar da artista subverter a acção
da câmara, ao conseguir que a vejamos como ela própria se vê, quando se
retrata. Assim, a originalidade de Frida é descrita como o poder que ela tem
de impor a forma de se ver a si mesma; poder este que lembra a visita de
Carter ao Japão e o modo ritualista como nos dá a ver Tóquio, ilustrado em
“Flesh and the Mirror” (Fireworks, 1974) short-story em que, como Frida,
Carter se auto-questiona constantemente.
A escritora reconhece o uso feito do narcisismo e da exibição por Frida,
para esta efectivar o seu disfarce, uso feito através do modo como vemos o
rosto de uma mulher que olha o espelho, espelho que não vemos, mas que

1 O título advém do próprio prefácio de Carter – “The flesh made sign. The wounded flesh.”
80 Maria José Pires

não podemos deixar de ter presente. É este o sentido de Carter apresentar o


auto-retrato como forma de auto-monitorização. Pode mesmo assumir-se que
Frida é a própria reprodução do auto-retrato, uma vez que é nele que encon-
tra a possibilidade de usar a dor que a aflige como uma narrativa.
A experiência emocional de Frida é vista, por Carter, como uma tentativa
de transformar toda a sua vivência numa série de imagens maravilhosamente
explícitas, num processo de se recriar, que não pelo meio da vida. O corpo
como signo, o corpo ferido. A artista era a sua própria matéria-prima, man-
tendo-se como tal através de feridas que nunca sararam. A pintura dela
transmite uma forte energia, paixão e dor. Carter acredita que o olhar imutável
na face pintada revela um estoicismo enigmático, coincidente com martírio,
pela forma como as suas feridas são apresentadas, reconhecendo-a nela a
conhecedora do sofrimento físico. Neste contexto, Frida faz-nos acreditar que,
ao retratar-se na tela, tal retrato ajuda-a a resistir à dor como se dele necessi-
tasse para a suportar fisica e psicologicamente, assegurando-se da sua própria
existência como pessoa.
A segunda particularidade apontada por Carter é a aparência física de
Frida, em especial o cabelo, apenas solto quando em grande sofrimento ou
quando criança. Assim, no auto-retrato de 1940, após o divórcio de Diego
Rivera, ao apresentar-se de cabelo cortado, Frida elimina o símbolo da beleza
e sensualidade femininas. Não esqueçamos, porém, o fascínio da artista pela
sua identidade nacional mexicana e o deleite pela máscara, perpetuados
através trajes étnicos e penteados entrançados que agradavam a Rivera, e que
permitiam esconder problemas físicos, servindo ainda de testemunho político
a favor de uma herança autêntica e independente do México. Neste sentido,
também o dualismo de Frida retratado no seu trabalho, cultural ou
sentimentalmente, é apontado por Carter, a par da procura de harmonia, pela
artista, entre princípios como vida / morte, masculino / feminino, luz / trevas,
antigo / moderno.
Não obstante a admiração de Carter pela forma directa como a pintura
de Frida retrata a sua realidade, a escritora aponta ainda como a artista é subtil
ao pintar o veado cravado de flechas, The Little Deer (1946), um exemplo do
interesse desta pela religião e pelo misticismo. Como tal, Carter reconhece a
capacidade de Frida se transformar, enquanto ser, numa série de obras-primas
da mutilação, como fizera na vida real, concluindo a escritora que o
narcisismo da artista triunfa, carnavalesco.
Apesar de Carter reconhecer a originalidade da relação de Frida e Diego,
indicando Rivera como musa de Frida, ao aludir a dois auto-retratos (1943,
1949), para a autora do Prefácio, estas pinturas apenas retratam obsessão,
Resumo em português 81

devoção, e inspiração. Todavia, Carter termina por afirmar que Frida se tornou
uma grande pintora devido a todas estas circunstâncias e não, apesar delas,
contribuindo para isso o encanto do seu disfarce, um festival perpétuo de
vestidos trabalhados.
Após reflectir sobre as várias facetas de Frida, no último parágrafo do
prefácio à colecção de postais, Carter resume o que pode ser visto em relance
inicial do trabalho da artista, e alude a ‘VIVA LA VIDA’, frase inscrita num
último quadro de Frida. É-nos dado, assim, o retrato de uma mulher que não
se submeteu a qualquer padrão de beleza, mas que procurou antes redefini-
la através do seu próprio padrão, que evidencia a singularidade absoluta das
mulheres.
Consideramos irónico como a própria Frida Kahlo foi incapaz de iludir o
consumismo que tão veemente criticou. Tida como um ícone do surrealismo
mexicano, hoje em dia os seus quadros alcançam os preços mais altos de
qualquer artista Latino-Americano. De modo semelhante, questionamo-nos
sobre a forma como Angela Carter, que tentou permanecer fora do cânone,
reagiria se descobrisse que, no ano após a sua morte, a Academia Britânica
recebeu mais pedidos para bolsas de estudo sobre a obra dela do que sobre
todo o século XVIII. Seguramente veria esta canonização com divertimento!
The Victorians at Amiens: Translation and Transposition

EMILY EELLS
(Université Paris X)

ISBN 978-972-8886-08-0 • A PALAVRA E A IMAGEM • CEAUL / ULICES 2007


L
ocated between Paris and the English Channel, Amiens has served as the
setting for many of the key events in the drama of Anglo-French history.
It was in Amiens, in the 13th century, that the French King Louis the 9th,
also known as St Louis, formalized the reconciliation between his feuding
barons and King Henry the 3rd of England. Centuries later, in March 1802, the
Treaty of Amiens was signed in a vain attempt to establish definitive peace
between France and the United Kingdom. This paper will consider how
Amiens1 became a hub of cultural exchange between Britain and France in the
19th century, focusing on works signed by three aesthetic theorists, namely
John Ruskin, William Morris, and Walter Pater. The questions it proposes to
address concern translation and transposition, and more specifically how the
Victorians transformed their experience of Amiens into their own culture.
The construction of the railway was a defining development for Amiens
and its role as centre for Anglo-French cultural exchange in the Victorian
period. The train line linking Amiens to the French ports of Boulogne and
Calais was built by 1848, making it easily accessible to the English traveller
and serving as a place of transit on the way between London and Paris. The
commission to build the railway was entrusted to a British company and the
work was carried about by British workers, meaning that the British literally
built their way to Amiens.
The 19th century also saw the birth and growth of travel writing as a
literary genre. The London-based publisher John Murray brought out some of
the first travel guides, publishing his popular Hand-book for Travellers in
France in 1843. The first route it outlines takes the English traveller from Calais
to Paris, via Amiens. The guide-book accompanies the traveller through his or
her encounter with the foreign and unknown, literally introducing them to a

1 The name of the town is used here, and generally in this paper, as a synecdoche to refer to its
cathedral, Notre-Dame d’Amiens.
86 Emily Eells

taste of what is different when it points out that duck pâté is a speciality of
Amiens. Murray’s guide-book underscores cultural difference when it also
advises the English traveller how to behave abroad, which includes the
following pointers about etiquette in church:
Englishmen and Protestants, admitted into Roman Catholic churches,
at times are often inconsiderate in talking loud, laughing, and
stamping with their feet while the service is going on: a moment’s
reflection should point out to them that they should regard the feelings
of those around them who are engaged in their devotion. Above all,
they should avoid as much as possible turning their backs upon the
altar. In a church ladies and gentlemen should not walk arm in arm –
as that is contrary to the usual practice of the people and to their idea
of good manners: they should avoid talking together during the
service.2
Murray’s hand-book presents Amiens in superlative terms, as ‘one of the
noblest Gothic edifices of Europe’. It praises the cathedral by comparing it to
English architecture, for example when it describes the rose window which
‘surpasses every thing of the sort which England can produce’. Similarly, its
description of the cathedral’s deeply recessed sculpted portals stress that the
feature is characteristic of French architecture though it is unusual in English
architecture:
[…] the arches supported by a long array of statues in niches instead
of pillars, while rows of statuettes supply the place of mouldings, so
that the whole forms one mass of sculpture; an arrangement of
constant occurrence in French Gothic, though rare in English.3
The guide-book sustains the comparison with English cathedrals when it
describes the interior of the cathedral whose sense of height is unfamiliar to
the English visitor:
The interior is one of the most magnificent spectacles that architectural
skill can ever have produced. The mind is filled and elevated by its
enormous height (140 feet), its lofty and many-coloured clerestory, its
grand proportions, its noble simplicity. The proportion of height to
breadth is almost double that to which we are accustomed in English
cathedrals.4

2 Handbook for Travellers in France (London: John Murray, 1843), p. xxxviii.


3 Handbook for Travellers in France, p. 5.
4 Handbook for Travellers in France, p. 5.
The Victorians at Amiens: Translation and Transposition 87

Those two points about Amiens – that the sculpted decoration is integrated
into its architectural structure and that its interior cathedral is of inspirational
height – are two of the tenets of the Gothic Revival movement. In the mid
nineteenth century, that movement was dominated in England by the theory
and practice of Augustus Welby Northmore Pugin (1812-1852) who collab-
orated on the design of the Houses of Parliament in London, undoubtedly one
of the most prominently visible examples of the Gothic Revival.
The description Murray’s guide-book makes of Amiens presents it as a
model of Gothic architecture as defined by Pugin in his Principles of Pointed or
Christian Architecture: ‘First, that there should be no features about a building
which are not necessary for convenience, construction or propriety; second,
that all ornament should consist of enrichment of the essential construction of
the building.’5 Pugin cites the flying buttresses of Amiens as a specific example
of how ‘an essential support of the building’ has been made into ‘elegant
decoration’,6 appealing in the following terms to his readers: ‘Who can stand
among the airy arches of Amiens […] and not be filled with admiration at the
mechanical skill and beautiful combination of form which are united in their
construction?’7 Pugin is also awed by the internal vastness of Amiens and
compares it to what he considers to be the ‘deficient […] internal height’8 of
English churches. He believed that English architecture should adapt that
feature of the Gothic cathedral to their own designs, taking care to incorporate
the foreign without affecting the fundamental characteristics of the English:

Internal altitude is a feature which would add greatly to the effect of


many of our fine English churches, and I shall ever advocate its
introduction, as it is a characteristic of foreign pointed architecture of
which we can avail ourselves without violating the principles of our
own peculiar style of English Christian architecture […].9

The neo-Gothic churches modelled on the design of Amiens cathedral are the
most concrete manifestation of how the British were inspired by Amiens and
adapted their impressions of its cathedral into their own work.

5 A. Welby Pugin, The True Principles of Pointed or Christian Architecture (1841), p. 1.


6 Pugin, Principles of Pointed or Christian Architecture, p. 5.
7 Pugin, Principles of Pointed or Christian Architecture, pp. 5-6.
8 Pugin, Principles of Pointed or Christian Architecture, p. 75.
9 Pugin, Principles of Pointed or Christian Architecture, p. 75.
88 Emily Eells

John Ruskin’s The Bible of Amiens, published in 1884, is without doubt


the best-known Victorian work on Amiens cathedral. It is indebted to both Pugin
– who inspired Ruskin’s interest in Gothic architecture – and John Murray, as
Ruskin travelled around Northern France in 1848 with his Guide-book in
hand.10 Ruskin’s quirky, unwieldy text on Amiens owes its renown to its French
translator, The French version of Ruskin’s text illustrates the point made by the
translation theorist Lawrence Venuti that ‘[the translator] establishes the
monumentality of the foreign text, its worthiness of translation, but only by
showing that it is not a monument, that it needs translation to locate and
foreground the self-difference that decides its worthiness.’11 Proust’s objective
was precisely to foreground the self-difference of Amiens, by showing his
fellow Frenchmen how an Englishman viewed one of their national monuments.
His translation brings cultural difference into focus as he offers it to his readers
as if it were a kind of looking-glass enabling them to view their own culture
through the eyes of another.
Ruskin introduces Amiens in terms which echo Pugin as he stresses that
Amiens is an example of the pure Gothic:
Gothic clear of Roman tradition, and of Arabian taint; Gothic pure,
authoritative, unsurpassable, and unaccusable; – its proper principles
of structure being at once understood and admitted.12
The last chapter of Ruskin’s volume is written as a kind of guide book to the
cathedral, concentrating on the sculptural program of the western façade
which he calls ‘The Bible of Amiens’. Here, the Bible has been translated into
visual terms in order to make it accessible to the largely illiterate Medieval
population. The ‘Word’ with a capital ‘W’ has become stone. As the chapter title
‘Interpretations’ suggests, Ruskin takes on the role of interpreter, translating the
sculpted images back into words and identifying their Biblical source in his
exegesis. Ruskin’s text thus exemplifies the third category of translation defined
by Roman Jakobson in his essay on translation, namely intersemiotic translation
or the transposition from one sign system into another.13 The sculpted images

10 See J.C. Links, The Ruskins in Normandy: A Tour in 1848 with Murray’s Hand-Book (London: John
Murray, 1968).
11 Lawrence Venuti, The Translator’s Invisibility: A History of Translation (London: Routledge, 1995),
pp. 307-8.
12 John Ruskin, The Bible of Amiens (London: George Allen, 1897), p. 165. [first published 1884].
13 See Roman Jakobson, Essais de linguistique générale (Paris: Minuit, 1963), p. 86. [first published
1959].
The Victorians at Amiens: Translation and Transposition 89

are even constructed as a narrative, as can be seen in the series of events in


Mary’s life in the southern portal of the western façade. The sequence of scenes
– the Annunciation, the Visitation and the presentation of Jesus at the Temple
– is constructed into a kind of pictorial sentence which reads like a medieval
comic strip. It would have been more legible to a medieval viewer than it is
today, as the sculptures were originally painted, and the figures could be
identified thanks to the colour of their clothes.
Ruskin’s aim was to make this iconography comprehensible to modern
readers and he dedicated his volume explicitly to young Christian tourists from
England. His text targeting a specific readership clearly illustrates the
determining role played by the addressee in the literary exchange of translation.
As he is writing for a Protestant readership, Ruskin feels compelled to take the
defence of Catholic Maryolatry, especially evident in Notre Dame d’Amiens,
a cathedral dedicated to the Virgin. There is a stern moral ring to Ruskin’s
words when he asks his readers to be respectful of Catholic worship of Mary
as a saint and when he chastises them for attaching importance to money and
ostentatious, fashionable headgear denoting social status:
And now, last of all, if you care to see it, we will go into the Madonna’s
porch – only, if you come at all, good Protestant feminine reader –
come civilly: and be pleased to recollect […]: that neither Madonna-
worship, nor Lady-worship of any sort […] ever did any human
creature any harm, – but that Money worship, Wigworship, Cocked-
Hat- and Featherworship have done, and are doing, a great deal […].14
Ruskin’s comments here are prompted by the French context, but they
engage in the contemporaneous debate between English Protestantism and
Anglo-Catholicism. Ruskin’s guide-book to a medieval French cathedral thus
contains a layer of commentary on contemporary, national issues.
Ruskin’s commentary on the various representations of the Madonna can
be read as an illustration of how context determines translation, a term I’m
using here to mean the transposition from one sign system into another. The
point is made by Walter Benjamin in his article entitled ‘The Task of the
Translator’ based on the example of the translation of the word ‘bread’, which
is Brot in German and pain in French, although German and French bread
each have their distinctive national flavour.15 Umberto Eco makes the same

14 Ruskin, Bible of Amiens, pp. 240-1.


15 Walter Benjamin, ‘The Task of the Translator’, Illuminations, trad. Harry Zohn (New York: Schocken
Books, 1968), p. 74. [first published 1955].
90 Emily Eells

point in his volume on translation entitled ‘Mouse or Rat’, where he argues


that the cultural connotation of language is a necessary complement to the
lexical definition of a word. He uses the term ‘encyclopedia’16 to refer to what
David Lodge defines as ‘the complex of emotions, associations, and ideas
which intricately relate a nation’s language to its [culture] and tradition’.17 A
study of Amiens cathedral shows how elements from that encyclopedia – most
obviously the historical period and the geographical location – affect the
translation of the Bible into image.
The various representations of the Madonna in Amiens show how the
historical period and the geographical location impact on representation.
Ruskin traces their historical development, beginning with the Madonna
Dolorosa, a Byzantine type which he chooses to illustrate with an example from
the Early Italian Renaissance by using his own drawing based on Cimabue’s
Madonna Enthroned with the Child and St Francis18 as the frontispiece of his
volume on Amiens cathedral. It pictures the face of a forlorn Madonna which
he contrasts with the representation of the Madonna on the central column of
the southern portal of the cathedral’s western façade: ‘the Frank and Norman
one; crowned, calm, full of power and gentleness’.19 He designates this Queen
Madonna using the French term of ‘Madone Reine’.20 In Ruskin’s eyes, Amiens
is epitomized by the ‘Vierge Dorée’ gracing the southern transept door. In
linguistic terms, we could say that this statue has a metonymic function, using
that term ‘metonymy’ in the sense of a relationship of contiguity, as she belongs
to Amiens, she embodies it. Ruskin recognizes her as ‘a good French type’ and
describes her as ‘a Madonna in decadence […] for all, or rather by reason of
all, her prettiness, and her gay soubrette’s smile’.21 The French word ‘soubrette’
is used in light comedy to refer to the lady’s maid, so Ruskin employs it here
to capture the vivacious radiance of this Madonna who is almost coquettish:
‘everybody must like the pretty French Madonna […] with her head a little
aside, and her nimbus switched a little aside too, like a becoming bonnet.’22

16 Umberto Eco, Mouse or Rat? Translation as Negotiation. (London: Phoenix Paperback, 2003), pp.
12-16.
17 David Lodge, ‘The Argument from Translation’ in Language of Fiction (London: Routeledge and
Kegan Paul, 1966), p. 20.
18 In the lower church of San Francesco, Assisi.
19 Ruskin, Bible of Amiens, p. 242.
20 Ruskin, Bible of Amiens, p. 242.
21 Ruskin, Bible of Amiens, p. 176.
The Victorians at Amiens: Translation and Transposition 91

Ruskin’s use of French terms identifies what the calls the ‘Madone Nourrice’
with the country where she is represented, whereas his French translator went
one step further as Proust specifically identified this Madonna as an
‘Amiénoise’, or native of the town.
Ruskin’s guide to the Western façade of the cathedral reveals how the
design of the scenes from the Bible and the symbolically decorative features
reflect the particular context of Northern France where they were sculpted.
The sculptures are at their most purely symbolic in the quatrefoils depicting
the months of the year and in the series of quatrefoils representing the vices
and virtues. It was customary for medieval artists to use scenes from peasant
life to symbolize the different months, and the variations in the agricultural
calendars that can be seen on buildings throughout Europe illustrate how the
relationship between signifier and signified is defined by context. Given
climatic differences, the words signifying the months of the year have different
meanings in different places: on the façade of Amiens cathedral, the month of
‘August’ is represented as a peasant hard at work threshing, which contrasts
with the representation of the same month on the façade of St Mark’s basilica
in Venice, where August is synonymous with siesta. These contrasting repre-
sentations of the same month prove that translation can never be the simple
‘transport’ of a set of signifiers from one language to another, as that operation
also affects the signified, which is transported into a different climate.
Similarly, the symbolic representations of the paired vices and virtues are
dependent on cultural context. In the bleak area of the Somme, the virtue of
Charity is depicted as a woman donating a cloak to a poor cold man,
described in the following terms by Ruskin:
Charity, bearing shield with woolly ram, and giving a mantle to a
naked beggar. The old wool manufacture of Amiens having this notion
of its purpose – namely, to clothe the poor first, the rich afterwards. No
nonsense talked of in those days about the evil consequences of
indiscriminate charity.23
Ruskin here points to the geographical specificity of this representation: the
cloak donated is a product of Amiens, one of medieval France’s leading textile
centres, and its donation is an appreciated act of charity in a place known for
its wind-swept chilly climate. Ruskin’s comment equally invites comparison

22 Ruskin, Bible of Amiens, p. 176.


23 Ruskin, Bible of Amiens, p. 222.
92 Emily Eells

with his own times, when ‘indiscriminate charity’ was discouraged, in favour
of charity which benefited only those judged morally virtuous.
Amiens’s conception of Charity contrasts with the depiction of the same
virtue in more clement climes, for example in Giotto’s frescoes in the Arena
chapel in Padua. In the fertile warmth of Italy, Charity is represented by the
bounty of the earth: her basket is overflowing with corn and flowers and her
prosperity is symbolized by the sacks of golden wheat on which she stands to
reach up to the hand of God. These two representations of Charity again
illustrate how context determines representation, as they engage in a complex
play between signifier and signified. The sculpture in Amiens and Giotto’s
fresco use two different signifiers to symbolize the same virtue because what
is being signified – namely the act of Charity – also varies according to context
and climate.
Ruskin tried to make the moral teaching represented on the cathedral wall
relevant to his readers by using contemporary references in his commentary
on the vices and virtues. When he points to the vice of Churlishness, repre-
sented as a woman kicking the servant who brings her a drink, he compares
that image to the contemporary French cancan dancer, pictured in 19th
century prints.24 In a similar way, Ruskin updates the vice ‘Rebellion’ when he
points out that modern French and English men have the same scornful
attitude to the church as the figure depicted on the sculpted wall of Amiens
cathedral. Ruskin’s comment on this vice draws from English culture and
includes a moralizing aside censuring both the French and the English
Protestant reader: ‘Rebellion, a man snapping his fingers at his Bishop. (As
Henry the Eighth at the Pope, – and the modern French and English cockney
at all priests whatever.)’25 These quatrefoils thus show how translation takes
into account differences in time and place when establishing the relationship
between signifier and signified, confirming Venuti’s point that: ‘A translated
text should be the site where a different culture emerges, where a reader gets
a glimpse of a cultural other’.26
Proust’s Bible d’Amiens demonstrates how translation negotiates the
transmission of the cultural information conveyed by a text. He took on the
role of cultural mediator or go-between, adding numerous, extensive footnotes
to explain the references in the English original. For example, he feared his

24 Ruskin, Bible of Amiens, p. 218.


25 Ruskin, Bible of Amiens, p. 219.
26 Venuti, The Translator’s Invisibility, p. 306.
The Victorians at Amiens: Translation and Transposition 93

French readers might ignore certain facts about the English Reformation, so he
annotated Ruskin’s allusion to Sir Thomas More with the following footnote:
‘Beheaded under order of Henry the eighth because he refused to acknowl-
edge the king’s supremacy’.27 Similarly, Ruskin’s reference to ‘John Bunyan’s
Mr Greatheart’28 prompted Proust to identify him as a character from The
Pilgrim’s Progress.29
The cultural explanations Proust adds to his translation exemplify Jean-
Jacques Lecercle’s theory of Interpretation as Pragmatics.30 Lecercle argues
that literary exchange is carried out on the ALTER model, an acronym based
on the first letters of the words author, language, text, encyclopaedia and
reader. The text is thus in the central position, with the author at the start and
the reader at the end of the working model. The space between them – which
they share with others – comprises language on the one hand and Eco’s concept
of the encyclopaedia, on the other. My study of Proust’s translation of Ruskin
incites me to alter the ALTER model by doubling the ‘t’ to indicate that the
translator shares the central position with the text, negotiating its linguistic and
cultural aspects for the reader. It is fitting that the acronym also suggests that
the translator alters the original version, making it into a different, text, as Proust
transforms The Bible of Amiens, augmenting and modifying its dimensions
almost beyond recognition when he makes it into ‘La Bible d’Amiens’.
Proust’s annotated Bible d’Amiens rewrites the original text, both in
another (foreign) language and in the personal idiom of the translator. It
belongs to a different artistic school from Ruskin’s Bible of Amiens and is
coloured with references to the translator’s native French culture. Whereas
Ruskin numbers the statues on the western façade and presents them in a
catalogue of paratactic notes, Proust prefaces his translation with a lengthy
preface indulging in impressionism and purple prose. He is not concerned
with what is set in stone: his interest is in how the visitor’s vision of the
cathedral is coloured by their own mood as well as by the mood of the day
they see it. Proust’s affinity is with Monet, whose series of paintings of Rouen
cathedral he cites when he describes Amiens as ‘blue in the mist, dazzling in
the morning, sun-drenched and richly golden in the afternoon, pinkish,

27 Marcel Proust [translator], La Bible d’Amiens (Paris: Mercure de France, 1904), p. 181. My
translation.
28 Ruskin, Bible of Amiens, p. 31.
29 Proust, Bible d’Amiens, p. 129.
30 Jean-Jacques Lecercle, Interpretation as Pragmatics (London: Macmillan, 1999).
94 Emily Eells

nocturnal and already chilly at sunset.’31 Proust’s reference to Monet reveals


his own sensitivity to the atmosphere of the place, the quality of the light, and
the tonality of the colours. Monet’s approach was diametrically opposed to
Ruskin’s: his paintings do not replicate the details of the cathedral’s sculpted
stone surface, but rather the diffuse light coming off it. He stepped back to
absorb and capture the overall impression created by the cathedral, whereas
Ruskin examined it closely to ensure that no detail escaped his notice. Thus,
Ruskin’s volume mapping the cultural differences between medieval France
and Victorian Britain acquired another layer of meaning when it was translated
by Proust, who infused the text with his own subjectivity and cultural
references.
Ruskin’s Bible of Amiens owes its survival to its prominent French
translator, whose work confirms Walter Benjamin’s theory that translation
ensures what he calls the ‘überleben’ of the translated text.32 Less well-known,
but of equal interest in a discussion of Amiens as a place of Anglo-French
cultural exchange in the 19th century are the essays on Amiens by William
Morris and Walter Pater which show how cultural difference contributed to
defining and refining their aesthetic theories. Both writers record how the
encounter with the other and the impression the cathedral made on them
contributed to shaping their work, proleptically in the case of Morris who
visited Amiens as a young man, and analeptically in the case of Pater, whose
article on Amiens was published the year he died.
Morris’s essay ‘Shadows of Amiens’ was published when he was only 22
years old in February 1856, meaning that it predates Ruskin’s Bible of Amiens
by thirty years.33 It appeared in The Oxford and Cambridge Magazine, a
journal which he helped to set up while he was a student at Oxford University.
At the same stage of his life, his interest in Gothic architecture was aroused by
a reading of Ruskin’s chapter on “The Nature of Gothic” in The Stones of
Venice (1851-3), which undoubtedly guided his thoughts during his visit to
Amiens. His essay on that visit points to Amiens as an inspiration of the Gothic
revival in architecture, but also hints that it inspired the Arts and Crafts

31 Proust, Bible d’Amiens, p. 32. My translation.


32 Benjamin, Illuminations, pp. 71-3.
33 William Morris, ‘Shadows of Amiens’. The Oxford and Cambridge Magazine (February 1856), pp.
99-110. For a discussion of this article, see Lindsay Smith, Victorian Photography, Painting and
Poetry: The Enigma of Visibility in Ruskin, Morris and the Pre-Raphaelites (Cambridge: Cambridge
University Press, 1995), pp. 85-92.
The Victorians at Amiens: Translation and Transposition 95

movement he later founded. It includes a short section on a Renaissance


depiction of the life of St Firmin, the patron saint of the cathedral, painted on
a wooden panel hanging in the ambulatory. It depicts the life of St Firmin, the
patron saint of the cathedral, and the panel which arrested Morris’s attention
represents the finding and the translation of the saint’s relics. He describes ‘the
priests, bearing the reliquaries […] with their long vestments girded at the
waist and falling over their feet, painted too, in light colours, with golden
flowers on them.’34 The seeds of those Renaissance flowers made a formative
impression on Morris and blossomed in his own work when he went on to
make a name for himself as designer of decorative patterns. The inspiration he
felt in Amiens is evident in his spontaneous reaction to the cathedral:
‘I think I felt inclined to shout when I first entered Amiens cathedral; it
is so free and vast and noble, I did not feel in the least awe-struck, or
humbled by its size and grandeur.’35
This French monument seemed to issue Morris with a passport to freedom of
speech, a means of releasing artistic energy, initially in a non-verbal shout of
pure feeling, with no semantic value.
That energy is channelled into the measured prose of his essay ‘Shadows
of Amiens’ which recounts two different visits to Amiens, and considers how
the memories of the first trip triggered the anticipation of the second one.
Morris uses the term ‘Shadows’ to refer to the photographs of Amiens which
he used to refresh his memory when writing. His essay is therefore a reflection
on the recent invention of photography and the ways in which it affected the
traveller’s experience both before and after the journey. Morris may be
referring to view of the south transept door taken by the Amiens-based
photographer Kaltenbacher,36 whose work is representative of the type of
photograph Morris may acquired when he was there, all the more so as he
describes the scenes sculpted on this portal at length, beginning with the
central figure of the Virgin, holding the baby Jesus. Morris recognizes that the
photograph could only serve as an objective image of the place, devoid of
subjective impressions and personal memories. Photographs had mnemonic
value and can serve as an aide-mémoire to recall an outline or a shape, but

34 Morris, ‘Shadows of Amiens’, p. 102.


35 Morris, ‘Shadows of Amiens’ p. 101. My emphasis.
36 Kaltenbacher did a series of 23 plates commissioned by Ruskin, sold as a separate brochure
accompanying publication of The Bible of Amiens.
96 Emily Eells

Morris realises that they dull the memory of personal, subjective impressions:
[…] for the facts of form, I have to look at my photographs; for facts of
colour I have to try and remember the day or two I spent at Amiens,
and the reference to the former has considerably dulled my memory
of the latter.37
Morris even suggests that the absence of a photograph better preserves his
own impression of the place:
I remember best […] the porch into which I first entered, namely the
northern most, probably because I saw most of it, coming in and out
often by it, yet perhaps the fact that I have seen no photograph of this
doorway somewhat assists this impression.38
His essay therefore traces how he transforms the objective, mechanically
produced photographs sitting on his desk into blurred recollections of his
subjective impressions of Amiens, colouring the black and white images with
his memories and impressions.
Morris anticipates Walter Benjamin’s essay ‘The Work of Art in the Age of
Mechanical Representation’, when he insists that one needs to go to a place
to experience its ‘aura’. His title – ‘Shadows of Amiens’– even foreshadows the
very word which Benjamin uses to define the conditions which produce the
aura effect: ‘If, while resting on a summer afternoon, you follow with your eyes
a mountain range on the horizon or a branch which casts its shadow over you,
you experience the aura of those mountains, of that branch’.39
Walter Pater’s article entitled ‘Notre-Dame d’Amiens’ was published a
decade after The Bible of Amiens, in 1894, the year of his death. Pater seems
to echo back to Ruskin in his opening, superlative praise of Amiens as ‘the
greatest and purest of Gothic cathedrals’, though nowhere in the article does
he cite either Ruskin’s name or his work. He confers on Amiens the title of ‘the
“queen” of Gothic churches’40 and echoes Pugin when he admires the ‘integrity
of the first design’41 which means that ‘at one view the whole is visible,
intelligible’.42 Pater confirms that this cathedral complies with Pugin’s definition

37 Morris, ‘Shadows of Amiens’, p. 103.


38 Morris, ‘Shadows of Amiens’, p. 107.
39 Benjamin, Illuminations, pp. 222-23.
40 Walter Pater, ‘Notre-Dame d’Amiens’, Miscellaneous Studies (Macmillan: London, 1910), p. 112.
[first published in Nineteenth Century, March 1894].
41 Pater, ‘Amiens’, p. 113.
42 Pater, ‘Amiens’, p. 113.
The Victorians at Amiens: Translation and Transposition 97

of the Gothic when he points out that ‘later additions affixed themselves’ to
that ‘first design’ and ‘rich ornament gathered upon it’.
Pater’s essay on Amiens counters Ruskin’s focus on the building as a
construction of sculpted stone and makes his main interest its relationship to
humanity. Pater emphasizes that Notre-Dame d’Amiens was one of ‘those
grand and beautiful people’s churches’,43 built by the commune of Amiens
during a period characterized by ‘certain novel humanistic movements of
religion’.44 He refers to the sculptural decorations as translations into stone but
stresses that the teaching is ‘popular, almost secular’45 as they treat the Bible
as a book about real men and women. He argues that art has at last become
acquired a human interest46 and as a result, what purport to be lessons based
on scripture are in fact ‘the liveliest observations, on the lives of men’.47 Pater’s
particular interest is in how the contemporary viewer sees Amiens cathedral,
which over the centuries has acquired what Proust calls a fourth dimension,
that of time.48 Pater reflects on the quality of the light inside the cathedral
which, having been ‘imprisoned’ there for so long, has become ‘almost sub-
stance of thought, one might fancy, – a mental object or medium.’49 Pater’s visit
to Amiens prompts him to summarize his aesthetic theory in the pithy question
‘the salt of all aesthetic study is in the question, – What, precisely what, is this
to me?’50 As it had done for Morris and Ruskin who feasted there before Pater,
Amiens flavoured and enriched their contributions to Victorian art.

43 Pater, ‘Amiens’, p. 110.


44 Pater, ‘Amiens’, p. 110.
45 Pater, ‘Amiens’, p. 119
46 Pater, ‘Amiens’, p. 120.
47 Pater, ‘Amiens’, p. 119.
48 Marcel Proust, A la recherche du temps perdu (Paris: Gallimard, Bibliothèque de la Pléiade, 1987)
vol. 1, p. 60.
49 Pater, ‘Amiens’, p. 117.
50 Pater, ‘Amiens’, p. 117.
98 Emily Eells

References
Benjamin, Walter. ‘The Task of the Translator’ and ‘The Work of Art in the Age of
Mechanical Reproduction’ In Illuminations, trad. Harry Zohn (New York:
Schocken Books, 1968). First published 1955.
Eco, Umberto. Mouse or Rat? Translation as Negotiation. (London: Phoenix Paperback,
2003).
Handbook for Travellers in France (London: John Murray, 1843).
Jakobson, Roman. Essais de linguistique générale (Paris: Minuit, 1963). First published
1959.
Lecercle, Jean-Jacques. Interpretation as Pragmatics (London: Macmillan, 1999).
Links, J.C. The Ruskins in Normandy: A Tour in 1848 with Murray’s Hand-Book
(London: John Murray, 1968).
Lodge, David. ‘The Argument from Translation’ in Language of Fiction (London:
Routeledge and Kegan Paul, 1966).
Morris, William. ‘Shadows of Amiens’. The Oxford and Cambridge Magazine
(February 1856), pp. 99-110.
Pater, Walter. ‘Notre-Dame d’Amiens’, Miscellaneous Studies (Macmillan: London,
1910), pp. 109- 125. First published in Nineteenth Century, March 1894.
Proust, Marcel. ‘Combray’ In A la recherche du temps perdu, vol.1 (Paris: Gallimard,
Bibliothèque de la Pléiade, 1987). First published 1913.
Proust, Marcel [translator]. La Bible d’Amiens (Paris: Mercure de France, 1904).
Pugin, A. Welby. The True Principles of Pointed or Christian Architecture (London: John
Weale, 1841).
Ruskin, John. The Bible of Amiens (London: George Allen, 1897). First published 1884.
Smith, Lindsay. Victorian Photography, Painting and Poetry: The Enigma of Visibility in
Ruskin, Morris and the Pre-Raphaelites (Cambridge: Cambridge University Press,
1995).
Venuti, Lawrence. The Translator’s Invisibility: A History of Translation (London:
Routledge, 1995).
Resumo em português
Os Vitorianos em Amiens: Tradução e Transposição

Esta comunicação pretende analisar como Amiens (topónimo aqui sempre


usado como sinédoque para designar a catedral de Nossa Senhora de Amiens)
se tornou um centro importante do intercâmbio cultural entre a Grã- Bretanha
e a França no século XIX. Dar-se-á especial atenção a três teóricos da estética,
John Ruskin, William Morris e Walter Pater. Os problemas aqui abordados
dizem repeito à tradução e à transposição e, mais especificamente, ao modo
como os vitorianos assimilaram culturalmente a sua experiência de Amiens.
Em 1843, John Murray, um editor londrino responsável pela divulgação
de alguns dos primeiros guias de viagens, publicou o seu bem conhecido
Hand-book for Travellers in France, cujo primeiro itinerário leva o turista de
Calais a Paris, via Amiens, que este guia apresenta, em termos superlativos,
como sendo “uma das construções góticas mais célebres da Europa”.
Os dois aspectos de Amiens que Murray sublinha na sua obra – por um
lado, a forma como as esculturas que decoram a catedral se integram na
estrutura arquitectónica do edifício e, por outro, o facto de, no seu interior, a
catedral se elevar numa sugestiva verticalidade – são dois dos princípios do
movimento do Revivalismo Gótico. Em meados do século XIX, esse movi-
mento em Inglaterra era dominado pela teoria e prática de Augustus Welby
Northmore Pugin (1812-1852), que colaborou no desenho arquitectónico das
Casas do Parlamento de Londres, sem dúvida um dos exemplos mais óbvios
do Revivalismo Gótico. Também a descrição de Amiens feita no guia de
Murray se refere à catedral como um modelo da arquitectura gótica, tal como
Pugin a define na sua obra Principles of Pointed or Christian Architecture.
The Bible of Amiens de John Ruskin, publicada em 1884, é certamente o
trabalho vitoriano mais conhecido sobre a catedral de Amiens. Foi muito
influenciado, tanto por Pugin – que levou Ruskin a interessar-se pela arqui-
tectura gótica – como por John Murray, cujo guia de viagens acompanhou
Ruskin na sua volta pelo norte de França em 1848.
O último capítulo da obra de Ruskin é escrito no estilo de um guia da
catedral, concentrando-se no conjunto de esculturas da fachada ocidental, a
que ele chama “A Bíblia de Amiens”. Aqui a Bíblia foi traduzida para uma
100 Emily Eells

linguagem visual de forma a torná-la acessível à população medieval, maiorita-


riamente iliterata. O texto de Ruskin exemplifica assim a terceira categoria da
tradução definida por Roman Jakobson no seu ensaio sobre tradução, nomea-
damente a tradução intersemiótica ou a transposição de um sistema de signos
para outro. As imagens esculpidas seguem mesmo uma lógica narrativa, como
se pode ver na série de acontecimentos da vida de Maria no portal sul da
fachada ocidental. A sequência das cenas – Anunciação, Visitação e Apresen-
tação de Jesus no Templo – formam uma espécie de texto em imagens que se
lê como uma tira de banda desenhada medieval. Nesse tempo teria sido mais
fácil de ler do que hoje, pois as esculturas eram originalmente pintadas e
podiam-se identificar as diferentes figuras graças às cores das suas roupas.
As várias maneiras de representar a Virgem em Amiens mostram como a
época histórica e a localização geográfica influenciam a representação. O guia
de Ruskin para a fachada ocidental da catedral é bem prova de como a repre-
sentação das cenas da Bíblia e as características da simbologia decorativa
reflectem o contexto particular do Norte da França onde foram esculpidas.
Estas esculturas atingem o seu nível simbólico mais puro nos quadrifólios que
representam os meses do ano e nas séries de quadrifólios que representam os
vícios e as virtudes. Era habitual os artistas medievais usarem cenas da vida
campestre para simbolizar os diferentes meses e as variações nos calendários
agrícolas que se podem ver em vários edifícios um pouco por toda a Europa
mostram como a relação entre significante e significado é definida pelo con-
texto. De acordo com as variações climáticas, as palavras que significam os
meses do ano adquirem significados diferentes conforme os locais. Na facha-
da da catedral de Amiens, por exemplo, o mês de ‘Agosto’ é representado por
um camponês em plena debulha, o que contrasta com o modo como na
fachada da basílica de S.Marcos em Veneza ele se encontra simbolizado pela
sesta. Estas representações contrastantes do mesmo mês provam que a tradu-
ção nunca pode ser o simples ‘transporte’ de um conjunto de significantes de
uma língua para outra, visto que esta operação também afecta o significado,
que é transportado para um clima diferente.
Ruskin tentou também que o ensinamento moral representado na fachada
da catedral permanecesse relevante para os seus leitores, recorrendo para tal
a referências contemporâneas nos seus comentários aos vícios e virtudes.
Estabelece a comparação, por exemplo, entre a cena esculpida de uma
mulher dando pontapés à criada que a serve (o vício da grosseria) e a imagem
contemporânea de uma corista de cancan das gravuras do século XIX. Uma
vez mais se vê que estes quadrifólios mostram como a tradução, ao estabele-
cer o laço entre significante e significado, leva em linha de conta as diferenças
Resumo em português 101

espacio-temporais, confirmando assim o ponto de vista de Venuti ao afirmar


que um texto traduzido devia ser o espaço onde emerge uma nova cultura e
onde o leitor vislumbra uma outra realidade cultural diferente.
A Bible d’Amiens de Proust prova como a tradução negoceia a transmis-
são dos dados culturais contidos num texto. Assumindo o papel de mediador
cultural ou intermediário, insere longas notas de rodapé para explicar as
referências no original inglês. Temendo, por exemplo, que o público leitor
francês ignorasse certos factos relativos à Reforma em Inglaterra, acrescentou
uma nota à alusão de Ruskin a Sir Thomas More, onde refere que ele fora
mandado decapitar por se recusar a reconhecer a supremacia de Henrique
VIII. Uma referência de Ruskin a ‘John Bunyan’s Mr Greatheart’ leva Proust a
inserir outra nota onde esclarece que Mr Greatheart é uma personagem de
The Pilgrim’s Progress.
As notas contendo explicações culturais que Proust acrescenta à sua
tradução exemplificam a teoria de Lecercle da interpretação como pragmática
[Interpretation as Pragmatics, London: Macmillan, 1999]. Para Lecercle, a
permuta literária realiza-se segundo o modelo ALTER (acrónimo para autor,
língua, texto, enciclopédia e leitor – ‘reader’). O texto está no centro, estando
o autor no início e o leitor no fim do modelo operativo. O espaço que medeia
entre estes – e que é partilhado com outros – compreende, por um lado, a
língua e, por outro, o conceito de enciclopédia de Eco. Depois do meu estudo
da tradução que Proust fez de Ruskin, sinto-me inclinada a alterar o modelo
ALTER, dobrando o ‘T’ para indicar que o tradutor ocupa, juntamente com o
texto, a posição central, pois ele negoceia os seus aspectos linguísticos e
culturais, tendo em vista o leitor. É de toda a justiça que o acrónimo também
sugira que o tradutor altera a versão original, transformando-a num texto
diferente, tal como Proust transforma The Bible of Amiens, aumentando e
modificando as suas dimensões, ao ponto de torná-la quase irreconhecível
quando comparada com La Bible d’Amiens.
Assim, as diferenças culturais existentes entre a França medieval e Ingla-
terra vitoriana que esta obra de Ruskin evidencia adquiriram outro nível de
sentido quando Proust, ao traduzir o texto, o enriqueceu com a sua subjecti-
vidade e referências culturais. De facto, a Bible of Amiens sobreviveu graças
ao seu eminente tradutor, cujo trabalho confirma a teoria de Walter Benjamin,
segundo a qual a tradução assegura maior longevidade ao texto traduzido.
Menos conhecidos, mas com igual interesse numa discussão sobre as
relações culturais anglo-francesas no século XIX, são os ensaios de William
Morris e Walter Pater, que mostram como a diferença cultural contribuiu para
a definição e afinação das suas próprias teorias estéticas. Ambos os escritores
102 Emily Eells

referem como o encontro com o outro e a impressão que lhes causou a cate-
dral influenciaram o seu trabalho – prolepticamente no caso de Morris, que
visitou a catedral quando era jovem, e analepticamente em relação a Pater,
cujo artigo sobre Amiens foi publicado no ano da sua morte.
Em ‘Shadows of Amiens’, o ensaio que Morris escreveu aos 22 anos, após
a sua visita à catedral, o autor considera Amiens como producto do revivalismo
gótico na arquitectura, mas dá também a entender que ela inspirou o movi-
mento ‘Arts and Crafts’ que ele próprio viria a fundar. O ensaio inclui uma
breve referência a uma pintura renascentista sobre madeira, representando
S. Firmino, patrono da catedral, e que se encontra no ambulatório. A parte do
painel que mais atraiu a atenção de Morris foi a que narra a descoberta e a
transladação das relíquias do santo.
Morris usa o termo ‘Shadows’ para se referir às fotografias que tinha sobre
a secretária e que usou como auxiliar de memória quando estava a escrever
o seu ensaio. Este torna-se assim num exercício mental sobre a invenção da
fotografia e o modo como esta influenciou a sua experiência de visitante da
catedral, antes e depois da viagem. As palavras que escreve mostram como
ele transforma aquelas fotografias objectivas e feitas por meios mecânicos, em
registo das suas impressões subjectivas de Amiens, emprestando às imagens a
preto e branco a cor das suas memórias e impressões, mostrando assim ter
captado, com a sua presença no local, a atmosfera que o define.
O artigo de Pater, intitulado ‘Notre-Dame d’Amiens’, foi publicado em
1894, no ano da morte do autor e dez após a publicação de The Bible of
Amiens. Pater parece fazer-se eco de Ruskin ao iniciar a sua descrição de
Amiens em tom altamente elogioso, chamando-lhe ‘a maior e a mais pura das
catedrais góticas’ – embora nem o nome nem a obra de Ruskin apareçam
citados no artigo. Ele dá a Amiens o título de ‘rainha’ das catedrais góticas e,
tal como Pugin, admira a unidade do plano original que faz com que o todo
se torne, de imediato, visível e inteligível. Pater afirma que esta catedral
obedece à definição que Pugin dá do gótico, sublinhando justamente a
existência de elementos que mais tarde foram adicionados ao plano original
e a profusa ornamentação que se veio a acumular.
A visita que Pater faz a Amiens leva-o a resumir a sua teoria estética na
pergunta que está no cerne de todo o estudo da estética: ‘Mas, afinal, o que
significa isto para mim?’
Tal como fizera com Morris e Ruskin que, antes de Pater, já tinham
ficado deslumbrados com a catedral, Amiens tornou mais variada e rica a
contribuição que eles deram à arte vitoriana.
Crítica de Arte e Cultura no Mundo Contemporâneo

JACQUES LEENHARDT
(École des Hautes Études en Sciences Sociales)

ISBN 978-972-8886-08-0 • A PALAVRA E A IMAGEM • CEAUL / ULICES 2007


É
prudente começar uma reflexão sobre a função da crítica de arte na
cultura contemporânea por uma interrogação a respeito da própria
definição da crítica. Para muitos, com efeito, e os artistas às vezes se
encontram entre eles, a crítica é uma atividade parasita.
Diante de tal opinião, é preferível não opor uma defesa em causa própria.
Do meu ponto de vista, somente uma reflexão de caráter histórico permite
esclarecer ao mesmo tempo o porquê e o como da crítica. Ela deve partir da
evolução das próprias artes, da atitude dos artistas ou daquilo que se poderia
chamar de sua “consciência de si como artista” e por fim da evolução do
público de arte. Sabe-se muito bem que o conjunto desses parâmetros sofreu
uma transformação importante na segunda metade do século XVIII, depois
que, na esteira de Shaftesbury e de Baumgarten, a questão da sensibilidade
como forma de conhecimento ganhou um lugar na filosofia ao lado da razão,
sob o nome de estética. Século do triunfo da Razão, o século XVIII é também
aquele que, de Diderot a Rousseau, dará um lugar à sensibilidade entre as
faculdades humanas do conhecimento. A Crítica do Juízo de Kant constitui o
ponto culminante dessa reflexão.
Se perguntamos, então, por que Diderot inventou um gênero literário que
levará o nome de “Salões”, a razão disso é que a arte está em vias de ganhar
um público novo, relativamente independente dos critérios de gosto elabo-
rados na Corte, e que os próprios artistas, pressentindo a autonomia nova que
pode lhes garantir esse público, deixam sua própria sensibilidade se exprimir
mais livremente sobre a tela. O Academicismo domina ainda nos Salões e
sobre o mercado totalmente novo de arte ilustrado pelo quadro de Watteau,
L’enseigne de Gersaint, mas já a multiplicação do público, isto é, a coexistên-
cia de muitos públicos sequiosos de possuir obras de arte, abre uma brecha
na unicidade do gosto.
Esse duplo movimento que afeta tanto os artistas quanto o público abre
um espaço entre esses diferentes atores, daqui para frente desprovido de
regras. A subjetividade do artista tende a conferir a si mesma curso muito mais
livre enquanto que o espectador, ainda marcado por normas cada vez mais
106 Jacques Leenhardt

obsoletas, não sabe mais como apreciar aquilo que vê. Ele se preocupa em
deixar crescer em si mesmo uma liberdade de julgamento até agora não expe-
rimentada, procura ainda as muletas de um critério socialmente aceito no
qual se fiar.
Será preciso esperar Baudelaire para que a crítica de arte coloque clara-
mente seu papel como mediação entre um público, qualificado na época de
burguês, em princípio capaz de reações sensíveis mas insuficientemente livre
para deixar que elas se exprimam por si mesmas, e os artistas, que afirmam
cada vez mais a irreprimível transcendência de sua subjetividade.
Com Baudelaire se estabelecem as categorias fundadoras da prática
crítica no domínio da arte. Uma comunidade de horizonte reúne o artista,
o público e o crítico, que a emoção do pintor fixa a seu modo sobre a tela.
Ela se exprime no objeto estético. O crítico a reformula, por sua vez, numa
linguagem em que investe toda a parcialidade de seu olhar e é ficando mais
perto de sua paixão que ele consegue ser o mais universal, pois essa paixão
subjetiva tem o mesmo fundamento que a do artista e, potencialmente, do
público. Ele encontra por esse viés um acesso próximo da sensibilidade
adormecida e mal exercida do público.
A reformulação sensível da arte na linguagem leva muito evidentemente
uma vantagem considerável sobre a formulação pictórica. Utiliza a mediação
de uma estrutura de comunicação universal, a linguagem, perfeitamente
exercida em cada um. Se os públicos são relativamente cegos àquilo que se
passa no quadro, é porque sua experiência cotidiana não lhes dá, senão rara-
mente, a ocasião de prestar atenção nas diferenças nas quais reside todo o
interesse. Aprendemos a ler e a escrever, não a olhar. O crítico da arte sabe,
ou deveria saber, apreciar uma cor, uma intensidade, uma tonalidade, uma
linha. Deveria achar aí um significado e comunicá-lo na linguagem verbal.
Assim transcrito, o efeito plástico torna-se perceptível para aquele que não
está acostumado com ele e o texto crítico funciona, por sua vez, como uma
escola do ver, uma pedagogia da sensibilidade.
Não obstante, a própria escrita apresenta estados diferentes. Aprender a
ler um texto informativo não desenvolve senão uma parte das potencialidades
da linguagem e da leitura. A escrita é por natureza às vezes descritiva, poética
e metafísica; dito de outra forma, ela descreve um objeto referencial, evoca as
sensações provocadas por esse objeto numa sensibilidade e subsume esse
objeto num conceito, resgata sua validade universal, seu sentido.
Essas três funções se reencontram na prática da crítica de arte. Esta deve
designar o objeto de seu discurso dentro de sua autonomia: um quadro, uma
instalação, a imagem de um corpo, a fotografia de um nevoeiro na contraluz, etc..
Crítica de Arte e Cultura no Mundo Contemporâneo 107

Sabe-se, entretanto, que não existe descrição, nem absoluta, nem pura-
mente objetiva. A imaginação do crítico é, portanto, sempre convidada a com-
pletar esse referente oferecido, a interpretá-lo, isto é, a lhe atribuir um sentido,
a fazê-lo entrar enfim num conjunto significativo mais vasto. A imaginação
crítica toma emprestado da linguagem para fazer sua função “poética”, princi-
palmente sua estrutura metafórica. No discurso crítico, o objeto de arte é
sempre, além daquilo que parece ser, descrito através do modo analógico do
“como”. É isto e outra coisa ao mesmo tempo. Prestígio e prestidigitação da
escrita, o de poder manifestar dois estados da coisa ou da idéia no mesmo ato
verbal. Para quem não vê senão esse ponto de incandescência poética, a
escrita entra, naturalmente, no domínio da filosofia, pois se uma coisa é isso
e ao mesmo tempo pode ser aquilo, somente a imaginação saberá dar conta
dessa complexidade.
Esse estado crepuscular de toda obra de arte sob o olhar do discurso
crítico se liga ao caráter movente e efêmero de toda a realidade humana. A “vida
moderna”, tal como Baudelaire nomeava o estado de movimento browniano
permanente da vida, do mundo apreendido pela consciência, faz da fugacida-
de uma característica essencial das coisas e, por conseqüência, também de sua
representação na arte. É uma das razões pelas quais o inacabamento da obra
se tornou uma qualidade metafísica desta. Ele deixa abertas as portas da ima-
ginação que terá por função atribuir um significado subjetivo àquilo que per-
manecia, na sua essência e na sua objetalidade, propriamente indeterminado.
A determinação do significado, não estando jamais assegurada de forma
definitiva para a própria obra, torna-se apanágio do público, e eventualmente
daquele que é como uma voz provisória deste: o crítico. Oscar Wilde não
dizia, no seu estilo irônico, preferir um mau artista a um que fosse bom
“because I can make more of him than he is” (porque posso fazer dele mais
do que ele é)? Preferir o esboço à obra acabada é dar mais chances ao possí-
vel, é prever o lugar e a importância do crítico e do espectador na realização
do significado da obra.
E isso é verdade tanto da parte dos artistas, que podem desejar conceber
seu trabalho como uma obra aberta e dizer, com Duchamp, que “são os
espectadores que fazem o quadro”, quanto da parte do público cujo gosto se
sabe que vai, há um século, em direção ao esboço do mesmo modo que em
direção à obra terminada. Ele também sente prazer com a incompletude da
obra, com a condição, todavia, que seu caráter enigmático não seja para ele
ocasião de uma renúncia à compreensão.
O texto crítico nunca deixou, desde Diderot até nossos contemporâneos,
de se colocar na posição de mediação que torna necessária uma arte cujos
108 Jacques Leenhardt

códigos estejam constantemente em ruptura com relação ao estado atual do


gosto, isto é, às capacidades espontâneas de compreensão existentes normal-
mente nos públicos.
A escrita e o museu
Quando se pensa em discurso crítico, se imagina um texto impresso nos
jornais e nas revistas. Contudo, a escrita não é mais a única a desempenhar
um papel essencial entre obras e públicos, a assumir a função crítica e a marcar
a difusão social da arte.
A evolução dos sistemas de difusão social da arte produziu, com efeito,
novas instâncias de mediação. A multiplicação dos museus e, há alguns
decênios, dos museus de arte contemporâneos, criou uma situação inédita e
atores críticos novos. Os curadores do museu eram no passado os guardiões
do patrimônio, isto é, de valores socialmente consagrados no domínio da arte.
São hoje freqüentemente, através dos museus de arte contemporâneos (as
Bienais e as exposições), os interventores imediatamente contemporâneos da
criação, diretamente implicados na avaliação e interpretação das obras pro-
postas pelos artistas. O museu veio, portanto, ocupar um lugar que não existia
no tempo dos salões que Diderot e Baudelaire comentavam.
Os salões eram um lugar de encontro social. Todas as imagens que temos
deles nos mostram que eles estão mais próximos do bazar do que do templo.
Ora, o museu não conservou quase nada da função de lugar público onde se
debate a arte, de fórum, assumida antigamente pelos salões. O público e as
obras ali estão separados uns dos outros por uma barreira metafísica que está
ligada à função simbólica que nossa sociedade atribuiu à instituição museoló-
gica. Criado no final do século XVIII, o museu é o receptáculo cerimonioso
de objetos reputados como apresentando a quintessência dos produtos da
humanidade, considerada de um ponto de vista universal e abstrato.
Contrariamente às coleções dos príncipes e prelados, que significavam o
poder material e simbólico de seus proprietários assim como a singularidade
das obras que as compunham, o museu significa a aparição de uma transcen-
dência laica que afirma a universalidade do homem, conforme a tendência
geral de democratização que se manifesta em nossas sociedades.
De fato, o museu se tornou o templo de uma religião da humanidade,
que tende a substituir a religião cristã enfraquecida. O frontispício do Museu
Real de Ontário, em Toronto, traz significativamente esse emblema:
“Os trabalhos de Deus através dos tempos, as artes do homem através
dos séculos”.
“Trabalhos” para um Deus assaz homo faber e “artes” para um homem
completamente homo sapiens sapiens.
Crítica de Arte e Cultura no Mundo Contemporâneo 109

Funções e finalidades dos museus


Essa transcendência laica e democrática colocou questões tremendas à
museologia e é no horizonte delas que se organizou o grande debate entre
uma concepção sagrada do museu como templo e uma abordagem pedagó-
gica como espaço de aprendizagem e discussão. Instrumento democrático, o
museu deve ensinar a todos; templo do universal, ele implica um desvio de
toda circunstância particular.
A descontextualização dos objetos no museu se prende à idéia mesma
de museu, de coleção de objetos reputados como representando o esquema
do mundo. Ela não é senão o sintoma daquilo que a função de templo assu-
miu em relação à de fórum. O esquartejamento no qual o museu está preso
se liga ao fato de que ele se encontra no presente de suas vitrines e de suas
cimalhas, exatamente à articulação do passado, memórias de coisas verda-
deiras depositadas em suas coleções, e do futuro que será cumprido por
aqueles que vêm olhar atrás do vidro dos sarcófagos a dinâmica mesma
da vida.
O museu – e o Panteão é um museu e não um cemitério – é a articulação
do morto e do vivo, sob o ângulo da humanidade como processo de comuni-
cação transgeracional. Lá está o caráter sagrado do museu, mas lá está tam-
bém seu caráter pedagógico, pois não podemos projetar um futuro sem nos
fundar sobre o passado. O museu é uma metáfora do universo sob o ângulo
da temporalidade. Ele religa, como faz a vida, porque separa. Toca no sagrado
tanto quanto religa, como queria a religião laica de Augusto Comte, é pedagó-
gico porque, ao objetivar o passado, permite ao sujeito construir um futuro
para si. Porque me separa daquilo a que adiro, minha terra, minha cultura,
minha família, ele me dá às vezes os meios de viver essas determinações
cotidianas, e de transformá-las.
O dispositivo museológico
Assim definido, o museu é uma máquina que funciona segundo dois
princípios: a visualidade que religa e a vitrine que separa. A visualidade é o
que define a atividade do espectador. A vitrine é o que separa o corpo do
espectador da materialidade da coisa, o que impede que a mão não venha
substituir o olhar (“Favor não tocar”). A vitrine radicaliza a abstração do olhar,
materializa a distância que o constitui como tal. A vitrine é um corte episte-
mológico entre pensar e sentir.
Pode-se, todavia, inverter essas proposições, exercício que elucida o
caráter paradoxal do museu. A vitrine é o que introduz todo objeto na ordem
do sagrado, fabrica um tabernáculo para o objeto mais simples, o enobrece e
o torna tabu. Sem esse distanciamento, que Duchamp explorou com mais
110 Jacques Leenhardt

ciência que todos os outros instalando o objeto industrial anônimo no museu,


não há sagrado, não há arte.
Se, portanto, a vitrine une tanto quanto separa, em planos evidentemente
diferentes, que diremos da visualidade? No espaço onde estão dispostas as
imagens, textos, objetos, arquiteturas, etc., a sensibilidade visual opera reagru-
pamentos, cria liames entre objetos e símbolos dispersos. O museu sugere uma
coerência através de suas categorizações técnicas habituais: pintura, escultura,
desenho; ou então, geográficas e cronológicas: arte egípcia, pintura do século
XVII holandês ou arte contemporânea. Em todos esses casos, cabe ao especta-
dor harmonizar para si mesmo a diversidade dos objetos que lhe são apresen-
tados sob essas categorias bastante imperfeitas: naturezas mortas, uma cena
religiosa, um desfile real, uma alegoria da paz e uma cena de taverna, para o
século XVII holandês, ou ainda uma instalação, um vídeo, uma pintura, para
a arte contemporânea. Como se constituirá uma unidade correspondente à
época ou ao estilo anunciado? E tudo isso dentro de uma arquitetura que será
talvez do século XIX, ou do século XX, museológica ou industrial, numa
mobília também ela variável, com um guarda sonolento, quarenta turistas, e
ele, ele próprio, perdido e tentando encontrar para si um lugar no mundo.
Detenhamo-nos um momento nessa experiência da sensibilidade visual.
Ela reabilita a colagem, não somente porque o visitante deve retomar numa
só experiência uma variedade de imagens e de conceitos que não são muito
harmonizados, mas porque há na própria direção museológica uma colagem
de diversos discursos uns sobre os outros. Uma sala de museu, uma exposi-
ção, torna realmente visível e presente bem mais que o silêncio ensurdecedor
das obras que apresenta. A ela vem se sobrepor o discurso de um curador que
se considerará aqui como um discurso crítico. A vontade demonstrativa que
habita todo organizador de exposição não se choca somente com a evidente
má vontade que faz com que toda obra de arte entre num esquema de sentido
elaborado por um crítico. Além do mais, o comissário da exposição (curador)
é constantemente confrontado por uma instância da qual ele não pode esca-
par: a história da arte. Nesse plano, o conflito é inevitável porque o crítico-
-comissário não pode escapar da história da arte, que é como um superego
da crítica, ao mesmo tempo que sabe que o princípio mesmo dessa história
da arte é contrário àquilo, de seu trabalho como comissário-crítico, que não
pode senão afirmar sua própria historicidade e fundar sobre essa historicidade
partilhada a relação com os públicos que visitarão “sua” exposição.
Diante disso, o espectador produz, quanto a si, um terceiro discurso, para
si mesmo, obrigatoriamente diferente em relação aos discursos institucionais.
A situação museológica apresenta portanto uma particularidade essen-
Crítica de Arte e Cultura no Mundo Contemporâneo 111

cial dentro do dispositivo social da crítica de arte. Durante a leitura de seu


jornal ou de sua revista, o futuro espectador está livre para entender um dis-
curso crítico que goza de uma autonomia, comparável àquela do poema ou
do ensaio. Quando ele se encontra, ao contrário, dentro do museu, o leitor se
transforma em visitante. A presença física de espaços e de cimalhas dá então
uma forma determinada ao discurso da crítica e da história de arte, indepen-
dentemente desse discurso sobre a universalidade que é o da própria institui-
ção museológica. O que esse visitante tem diante dos olhos estabelece uma
multiplicidade de relações com aquilo que leu ou poderia ter lido, com aquilo
que sabe ou poderia saber. Enquanto o templo no qual ele penetrou deveria
fazê-lo sentir a força de uma verdade para além de toda discussão, ei-lo enfren-
tando uma multidão de dúvidas que a circunstância o impede, ainda mais, de
formular. Mesmo o monólogo interior é rarefeito no recinto do museu!
A exposição contra o museu
Há na experiência que o visitante tem dessas multiplicidades de pontos
de vista algo que faz com que a visita se pareça com a leitura de um romance.
Ali também somos confrontados com uma multiplicidade de acontecimentos
e de idéias das quais é preciso extrair uma substância única. É que o romance
é um espaço experimental para o romancista-curador e para o leitor-visitante.
Seria preciso dizer algo semelhante a respeito disso que chamarei de a
exposição para distinguir um acontecimento ligado à exibição de atividades
artísticas ou outras do homem, própria de nossas democracias modernas e
profundamente distinta do museu. Do mesmo modo que o romance acompa-
nha desde a era democrática a construção simbólica e social do cidadão,
também a exposição a acompanha. A exposição seria, desse ponto de vista,
uma forma de arte privilegiada na idade da democratização. Digo uma forma
de arte e não uma maneira de mostrar a arte. Uma forma simbólica, como
Panofsky dizia da perspectiva.
Por seu dispositivo espacial, pela autonomia que ali conservam todos os
objetos, pela impossibilidade de construir um discurso sem falhas com os
elementos expostos, pela pluralidade das “correspondências” que ela
favorece ainda mais que o romance, a exposição faz aparecer uma verdade
essencial: a história da arte ou do homem não constitui uma objetividade
diante da qual se encontraria, passivamente, o espectador, mas um campo
aberto que se propõe a esse espectador para que construa ele mesmo sua
própria história. Não sua própria história da arte (da literatura ou do cinema),
pois esta é a tarefa dos curadores dos museus ou dos historiadores da literatura
ou do cinema, mas sua própria história na arte, no interior do mundo da arte
e da história, pelos meios colocados em obras tão diversas pelos artistas.
112 Jacques Leenhardt

A exposição é uma ocasião de reapropriação das obras de arte (essa


memória artística conservada nos museus) por parte do visitante a quem
seriam dados os meios de fabricar sua história pela mediação simbólica de
diferentes artes existentes. O visitante desde esse momento não está mais
diante do espetáculo de uma história da arte se desenrolando num mundo
separado, abstrato, organizado pela consciência transcendental do universa-
lismo, mas é confrontado pelos traços da atividade humana a partir dos quais
deve, e pode, construir o lugar mesmo de sua atividade dentro da história.
Ao arrancar a obra de arte do museu para colocá-la em exposição, a
evolução democrática, ainda bem longe de estar concluída, romperá com o
enclausuramento do templo museológico. Já podemos constatar que o museu
se abre e, sobretudo, que os espaços dificilmente sacralizáveis (usinas desa-
tivadas, lofts, etc.) servem cada vez mais de locais de exposições. Isso que
permitem esses locais, isso que acompanharia uma cenografia revolucionária,
isso seria a renovação do que Tapiès chamava de “o jogo de saber olhar”.
Seguindo os preceitos baudelairianos, Tapiès quer nos fazer reaprender a
construir, para nós, a exposição:
Dando como exemplo uma obra de Tapiès, Chaise, sigamos ao pé da
letra os preceitos do pintor catalão:
1. essa velha cadeira não parece ser grande coisa. Mas pensem em todo o
universo que há nela;
2. as mãos e o suor de quem cortou essa madeira;
3. a árvore robusta de onde foi extraída;
4. a energia vital dessa árvore na floresta;
5. a densidade das árvores ao lado da montanha;
6. o trabalho amoroso do artesão que a construiu;
7. o prazer de quem a comprou;
8. as fatigas que ela poupou;
9. as dores e as alegrias que aí repousaram;
10. o grande salão ou a pobre sala de jantar no subúrbio que a acolheram.

E Tapiès conclui: “Tudo, absolutamente tudo, representa a vida e sua


importância”.1 É isso que faz a exposição.
“Olhem, olhem atentamente. E deixem-se levar por tudo aquilo que faz
ressoar em vocês seu olhar”.

1 La pratique de l’art. Gallimard, 1974.


Crítica de Arte e Cultura no Mundo Contemporâneo 113

Essa ressonância, espaço interior das correspondências, a exposição pôde


reabri-la quando o museu tendeu à exclusão, tendo privilegiado o fetichismo
do objeto porque considera toda coisa abstrata de seu contexto.
Nisso, isso que chamo de exposição se apresenta como um museu arre-
bentado, um anti-museu (como se dizia anti-psiquiatria). Ela se torna o lugar
privilegiado dessa atividade crítica do despertar, parcial, contemporânea,
ativa e poética que Baudelaire reinvindicava e que é, ainda hoje, a nobre
tarefa da crítica.
Fazer acontecer uma história

MARIA JOÃO WORM

ISBN 978-972-8886-08-0 • A PALAVRA E A IMAGEM • CEAUL / ULICES 2007


Introdução
Apesar de hoje existir, nas artes plásticas, um espaço importante e muito
interessante na relação entre palavra e imagem, com recurso a novas tecnolo-
gias, o que vos vou apresentar resulta directamente do que faço, da minha
experiência com a pintura, gravura e ilustração.
Todo o trabalho que tenho feito tem conjugado sempre palavra e imagem.
Através de cartoon, banda desenhada e ilustração, mas também nas exposi-
ções que fiz de pintura e gravura, em que parti sempre de textos.
Este convite para falar sobre imagem e palavra vem especialmente ao
encontro do último trabalho que tenho vindo a preparar para expor em
Novembro, em que pela primeira vez, numa exposição, parto de textos meus,
o que me tem obrigado a reflectir sobre o meu trabalho de um modo diferente
e donde resultam muitas perguntas, dúvidas e algumas resoluções práticas.
Uma das coisas a que cheguei, na vontade de comunicar exactamente o
que sinto, é que isso é impossível. Mas que através de uma história, do acto
partilhado de contar uma história, talvez possamos aproximar-nos do que
existe mais parecido com comunicar.
Uma história é comunicada quando existe um encontro, não pela diferen-
ça, mas no que temos de comum. Hoje sinto que são precisas semelhanças
destas, em que cada um se encontre com a história, sem fazer prevalecer uma
interpretação.
É importante para mim, quando faço uma exposição, saber que cada
imagem/texto faz parte de um todo, por isso peguei em imagens que fiz em
tempos e contextos diferentes e, com o que sei agora, escrevi uma história
para cada uma delas.
Escolhi palavras que utilizo várias vezes para, a partir delas desenvolver
os textos. São elas história, definição e reflexo.
118 Maria João Worm

Da palavra história
Por vezes a razão, de tanto se pensar a si própria, esquece-se do corpo e
da vida. Quer aceder a um plano para além dela, onde possa permanecer em
forma de eterna verdade alcançável que espera pelo pensador.
Acertar o pensamento com a vida, integrá-lo nela.

A razão tem servido para sistematizar e ordenar o conhecimento, para se


poder questionar e reorganizar. A história da humanidade está pronta a ser
encaixotada por um pensamento racional e vive num grande armazém
imaginário, num acervo maior do que qualquer pensamento racional.
A razão tende a ser disciplinada e arrumada. O caos é a zona que sobeja
depois de se encaixotar o possível. E é também, curiosamente, o nome do
armazém onde toda a história se encontra.
Nós somos culturalmente do grupo de determinada versão da história.
Ouvimo-la e partilhamos esse conhecimento, que também é uma experiência
comum.
As histórias mais populares, quando resistem ao passar do tempo e ficam
posteriormente fixadas na escrita, se se mantiverem fiéis, são suficientemente
fantásticas e de preferência vagas; a tendência natural é perderem as datas e
ficarem acções e, mais importante que os nomes, são as características dos
personagens. E tudo isto contribui para que a sua essência seja intemporal.
São o fio que nos une e prende à origem.
Quando na história da história as datas e os nomes ficam registados e se
sucedem cronologicamente, perde-se a essência na herança demasiado pesa-
da de nomes e números. Existe uma exigência rigorosa que leva o conheci-
mento para fora da vida. Tornando-nos espectadores da história em vez de
intervenientes.
Nós somos também o resultado das histórias e da história. Genetica-
mente herdámos, de sucessivos antepassados, características que foram sendo
trabalhadas e o mundo existe no estado actual, em grande parte, resultado de
pensamentos que se tornaram acções. Enquanto humanos somos responsá-
veis pelo mundo que transformamos.
Herdámos essa capacidade e estamos condicionados por uma direcção
de pensamento.
Fazer acontecer uma história 119

Da palavra definição
Perante um lugar, chega um
pensador perdido e faz um levanta-
mento do lugar. Parte do que chama
princípio e escreve eu estou aqui,
prende um fio ao aqui e segue em
frente desenrolando a sua linha de
pensamento e vai desenhando um
mapa. Faz isso porque não deseja
estar perdido. Quando regressa, o
pensador descansa numa definição.
Chega outro pensador perdido e
cumprimentam-se, trocam palavras.
Através do desenho do mapa, o
segundo pensador aproveita para des-
cansar. Se adormecerem, sonham
cada um por si, mergulhados no
Maria João Worm, Técnica mista sobre
mesmo mistério.
papel - três imagens em dimensões
aproximadas do A4, 1996
120 Maria João Worm

Da palavra reflexo – De miM para Mim.


O desenho da matriz, quando se trabalha em gravura, é feito em reflexo.
Antes de tirar uma prova, se se olhar a matriz num espelho, tem-se uma ideia
muito aproximada do que vão ser as gravuras. Quando nos habituamos a este
processo de rebater as imagens, desenvolve-se uma noção de equilíbrio mais
consciente.
Gosto que seja por reflectir
que se chegue a uma ima-
gem final, que em gravura
reflectir possa ser um gesto
poético. A acção física de
levar à prensa a matriz
reflecte um desenho. Um
desenho original que pensa
e que nos mostra impresso
esse pensamento. Este é
para mim um bom exem-
plo de relação viva entre
palavra e imagem.

Maria João Worm, Acrílico sobre tela, 2001

Maria João Worm, Linóleo gravado, 2005


Fazer acontecer uma história 121

Uma espécie de resumo


Tanto as palavras como as imagens são o material que se usa para ir
construindo um texto ou uma imagem, até se atingir a concretização possível
onde nada se acrescenta.
Um texto, ao ser construído ou ao ser lido, obedece a uma sucessão
temporal. Quem escreve pode ter andado errante, a acrescentar ou a tirar
palavras, mas, uma vez fixado, o texto segue uma ordem que quem lê
partilha, como se se estabelecesse uma experiência cúmplice entre escritor
e leitor. Esta escrita que vai sendo lida palavra a palavra, consome o tempo
da mesma maneira como nos acontece a vida.
As imagens, porque são construídas por sobreposição, apresentam-se de
uma só vez na sua conclusão. Estamos mais perdidos perante uma imagem
porque ninguém nos acompanha na experiência do tempo gasto a fazê-la,
que poderia, ou deveria, ser igual ao tempo necessário que levaria a vê-la.
Na maneira de se apresentar fora do tempo e já feita, uma imagem
levanta problemas de leitura. É desconcertante pensar que uma imagem se
define na coincidência da sua forma com o que é, de uma só vez; isto é
contrário ao tempo que temos forçosamente que gastar para conhecer.
Talvez porque me canso a contradizer o que vou pensando, tenho este
amor especial pelas imagens onde gosto de demorar o olhar.
Onde perder tempo se confunde com ganhar tempo porque se acede a
uma sensação de intemporalidade.
Perante uma imagem, posso encontrar em mim um exercício parecido
com o pensar mas descansado, porque se encerra nele próprio. A imagem está
ali inteira, delimitada e o seu mistério preso nela. E posso ficar simplesmente
a olhar ou a ver, sem outra exigência.
Como em geral na poesia, as imagens encerram o mistério do paradoxo
de se apresentarem inteiras e serem múltiplas, em planos, que acedemos
simultaneamente de um modo indizível.

Penso que deve haver qualquer coisa comum nas vidas todas que passa-
ram e na nossa que agora é. Uma fonte primeira de natureza anterior à defini-
ção de definição mas que não é o mesmo que indefinição. O que procuro nas
imagens e nas palavras é reconhecer o desconhecido e saber que o partilho
profundamente.
Reflectir, não é só ser contemporâneo e pensar, é espelhar o que se mantém
para além do tempo. Penso que os registos todos têm em comum a vontade
de comunicar esse mistério.
E essa vontade atravessa o tempo com dedos longos e sem impressões digitais.
Nem uma Palavra Só, nem uma Imagem só,
mas a sua Mistura Heterogénea

ALCINDA PINHEIRO DE SOUSA


(CEAUL-Centro de Estudos Anglísticos da Universidade de Lisboa /
Faculdade de Letras - Universidade de Lisboa)

ISBN 978-972-8886-08-0 • A PALAVRA E A IMAGEM • CEAUL / ULICES 2007


Uma mistura é uma combinação de duas ou mais substân-
cias em que estas mantêm a sua identidade própria.(...)
Qualquer mistura, seja ela homogénea ou heterogénea,
pode ser obtida ou desfeita por meios puramente físicos,
mantendo os seus constituintes a identidade inicial.
Raymond Chang. Química.1

U
ma palavra, ou uma imagem visual, ou qualquer das relações diferen-
tes que entre ambas se possa estabelecer é hoje analisável em termos
de vários quadros teóricos. Um desses quadros é o da psicologia, no
qual nomeadamente se inscreve Ernst Pöppel como especialista em neuro-
psicologia da percepção, interessado em algumas implicações das respectivas
teorias no campo da avaliação estética.2 Em Grenzen des Bewußtseins. Über
Wirklichkeit und Welterfahrung (Fronteiras da Consciência. Sobre a Realidade
e a Experiência do Mundo), Pöppel demonstra que a imagem percebida não
decorre exclusivamente do estímulo recebido pelos olhos. Para tal, sugere ao
leitor certas experiências com o conhecido cubo de Necker (nome do seu
inventor):

(Pöppel 1985: 57.)3

1 Esta epígrafe é retirada de Chang 1994: 9.


2 A propósito do trabalho deste estudioso, ver Pöppel (1985). Grenzen des Bewußtseins. Über
Wirklichkeit und Welterfahrung, com tradução portuguesa: Pöppel (1989). Fronteiras da
Consciência. A Realidade e a Experiência do Mundo. Ver ainda Pöppel (1993). Lust und Schmerz:
Über den Ursprung der Welt im Gehirn (Prazer e Dor: Sobre o Surgir do Mundo no Cérebro) e
Pöppel (2003). «The Hierarchical Structure of Phenomenal Time and Some Implications for
Philosophical Discourse and Aesthetic Appreciation».
3 O responsável pela ideia do cubo agora reproduzido foi o cristalógrafo suíço Louis Albert Necker
(1786-1861).
126 Alcinda Pinheiro de Sousa

Caracteriza-se este cubo pela possibilidade de ser visto de duas perspectivas


diferentes:
Entweder sieht man das Quadrat, das mehr rechts unten liegt als vorn,
dann ist das Quadrat, das nach links oben liegt, die Rückseite des
Würfels. Oder es ist gerade umgekehrt, wobei dann das Quadrat links
oben vorne wäre.
(Pöppel 1985: 56.)4
Pöppel começa por constatar assim, experimentalmente, o facto de que
o cubo pode ser visualizado, em alternativa, das duas maneiras diferentes, ou
de cima para baixo ou de baixo para cima, o que nos leva a interpretá-lo
como estando a vê-lo de duas perspectivas contrárias. O neuropsicólogo da
percepção passa, depois, à segunda fase da experiência, pedindo-nos que
controlemos e aceleremos a visualização do cubo em sentidos alternada-
mente contrários. A concluir, afirma:
Dieses sehr einfache Experiment demonstriert uns nebenbei, daß wir
mit unserer Wahrnehmung offenbar gar nicht hundertprozentig einer
Reizsituation ausgeliefert sind. Na den Linien auf dem Papier ändert
sich nichts, nur in unserem Bewußtsein ereignet sich etwas, und diese
»inneren« Ereignisse bewirken eine Änderung des Wahrgenommenen.
Die Willensbefehle zwingen dem einfachen Reiz die Weise auf, wie er
mir zu erscheinen hat.
(Pöppel 1985: 57.)5
Como tal, Pöppel, não só releva o papel da consciência relativamente ao do
estímulo da percepção, como dá ênfase à dita consciência no processo
gerador do que é percebido.

4 Traduz-se aqui para português este passo de Grenzen des Bewußtseins, assim como se reproduz
o cubo de Necker, porque, tanto a tradução, como a reprodução do cubo, em Pöppel (1989).
Fronteiras da Consciência. A Realidade e a Experiência do Mundo, estão incorrectas:
Ou se vê o quadrado, que está mais à direita e em baixo como estando à frente, e então
o quadrado, que está à esquerda e em cima, é o lado de trás do cubo. Ou é exactamente
o contrário, de modo que então o quadrado à esquerda e em cima estaria à frente.
(Tradução minha.)
5 Traduz-se ainda o passo transcrito de Grenzen des Bewußtseins:
Esta experiência muito simples demonstra-nos além disso que, evidentemente, não
estamos de modo algum cem por cento entregues, com a nossa percepção, a uma
situação de estímulo. Nas linhas sobre o papel nada se altera, só na nossa consciência
acontece qualquer coisa, e estes acontecimentos «internos» causam uma alteração do
que é percebido. As ordens da vontade impõem ao simples estímulo a maneira como ele
tem de me aparecer.
(Tradução minha.)
Nem uma Palavra Só, nem uma Imagem só, mas a sua Mistura Heterogénea 127

Prosseguindo a análise, este cientista evidencia as formas como seme-


lhantes teorias influenciaram os próprios artistas:
Es ist von Kunsthistorikern (…) gezeigt worden, daß Paul Klee sich
intensive mit Fragen der Wahrnehmungspsychologie befaßt hat.
Besonders der Neckersche Würfel hatte es ihm angetan. In vielen
Werken von Klee kann man sehen, wie er zeischnerisch mit dem
Würfel gespielt und seine Doppelperspektive gestalterisch ausgenutzt
hat. (…) Der Künstler nutzt also die Kreativität des menschlichen
Gehirns, nicht nur seines eigenen, sondern auch das des Betrachters.
Neuerdings gibt es Hinweise, daß sich auch Picasso mit Fragen der
visuellen Wahrnehmung auseinandergesetzt hat und daß beispielsweise
die Entwicklung des Kubismus ohne diesen Blick, über die Grenzen
der künstlerischen Welt hinaus kaum möglich gewesen sein dürfte.
(Pöppel 1985: 57.)6
Um outro artista cujos trabalhos adquirem especial relevo neste contexto é o
gravador holandês M. C. Escher (1898-1972), cuja xilogravura Ar e Água I
(1938) é, aliás, sobrecapa da edição de Grenzen des Bewußtseins.7 Mas, de
acordo com as experiências do chamado cubo de Necker, é em Belvedere,
litografia de 1958, que se torna particularmente visível o papel preponderante
da consciência, relativamente ao do estímulo da percepção, durante o processo
gerador do que é percebido.8

6 Eis a tradução deste outro passo de Grenzen des Bewußtseins agora citado:
Foi mostrado por historiadores da arte (…) que Paul Klee se ocupou intensamente de
questões da psicologia da percepção. Em especial, impressionou-o o cubo de Necker.
Em muitos trabalhos de Klee, pode ver-se como ele jogou graficamente com o cubo, e
como aproveitou formalmente a sua dupla perspectiva. (…) O artista utiliza portanto a
criatividade do cérebro humano, não apenas do seu, mas também do do observador.
Recentemente, surgiram referências a que Picasso também se debateu com questões da
percepção visual, e a que, por exemplo, o desenvolvimento do cubismo, sem este olhar
para além das fronteiras do mundo da arte, dificilmente teria sido possível.
(Tradução minha.)
7 O principal professor de Maurits Cornelis Escher acabou por ser Samuel Jessurun de Mesquita, de
origem portuguesa, e que ensinava técnicas de gravura, o qual veio a ser assassinado, juntamente
com a família, num campo de concentração nazi, depois de terem sido levados de casa no final
de Janeiro de 1944.
8 Quanto a Belvedere, esta questão era já observada no catálogo da Exposição Organizada pela
Embaixada dos Países Baixos e Apresentada em Portugal, pela Fundação Calouste Gulbenkian, em
1981/1982. A tal propósito, ver Escher (Dezembro de 1981 / Janeiro de 1982).
Sobre a análise que Pöppel faz dos trabalhos de Escher, e do cubo de Necker, ver Pöppel 1993:
Kap. 16 „Gestalt und Hintergrund: Die Neugier des Bewußtseins” («Forma e Fundo: A Curiosidade
da Consciência») passim.
128 Alcinda Pinheiro de Sousa

Sinteticamente, pode afirmar-se que Ernst Pöppel está já a explicar, em


1985, em Grenzen des Bewußtseins. Über Wirklichkeit und Welterfahrung
(Fronteiras da Consciência. Sobre a Realidade e a Experiência do Mundo), e
na perspectiva da neuropsicologia da percepção, o carácter complexo do que
é visualizar um objecto, seja ele qual for. Ao mesmo tempo, Pöppel está a
defender a tese do carácter activo do nosso conhecimento: «Was wir sehen
oder hören, was wir be-greifen, ist Ergebnis eines aktiven Erkennens und nicht
eines passiven Registrierens.» (Pöppel 1985: 66.)9 Muito mais tarde, em 1997,
John Walker e Sarah Chaplin, em Visual Culture. An Introduction, viriam
propor a diferenciação entre as noções de visão e visualidade, implicando a
primeira um processo físico e fisiológico, e a segunda um processo obvia-
mente activo também, mas em função de determinismos sociológicos. Subal-
ternizada parece, neste caso, a caracterização neuropsicológica da
actividade que se constitui como ver:
Viewers are not merely pairs of eyes – they have minds, bodies,
genders, personalities and histories. (…) Infants rapidly learn to see
and to become social beings: they learn to speak a language (…) and
they acquire knowledge of the world and of previous imagery. This
knowledge informs and modulates their seeing (…). At this point the
difference between the terms ‘vision’ and ‘visuality’ can be explained.
Theorists have argued that the former refers to a physical/physiological
process in which light impacts upon eyes, while the latter refers to a
social process: visuality is vision socialised.
(Walker & Chaplin 1997: 22.)
Um outro quadro teórico profícuo para o estudo da palavra, da imagem
e/ou das suas relações é o da psicolinguística, interdisciplinar e transdisci-
plinarmente ligado ao da neuropsicologia da percepção que estivemos a
observar. Neste caso, dou ênfase ao trabalho desenvolvido pela equipa de
Isabel Hub Faria, cujos primeiros resultados foram objecto de uma comuni-
cação recente, e já publicada, com o título «Interaction and Competition
between Types of Representation. An Example from Eye-Tracking While
Processing Written Words and Images».10

9 Traduz-se, por fim, o passo de Grenzen des Bewußtseins que se transcreveu: «O que vemos ou
ouvimos, o que percebemos, é resultado de um a-preender activo e não de um registar passivo.»
(Tradução minha.)
10 A referida publicação – Faria, Baptista, Luegi e Taborda (2006) – foi a primeira do projecto de inves-
tigação «Registo e Análise do Movimento dos Olhos durante a Leitura», projecto em curso desde
Dezembro de 2003, no Laboratório de Psicolinguística, Onset-Centro de Estudos de Linguagem,
Nem uma Palavra Só, nem uma Imagem só, mas a sua Mistura Heterogénea 129

De acordo com a teoria defendida na parte introdutória de «Interaction


and Competition Between Types of Representation», aquilo que é percebido
resulta do processamento do estímulo da percepção, desde o olho, mais
especificamente desde a pupila e da retina, até ao cérebro. É explicitado,
assim, o carácter cognitivo da análise a empreender: «International research
undertaken over the last few decades has brought empirical support to the
theoretical perspective that eye movements produced during reading reflect
the cognitive processes that are simultaneously taking place.» (Faria, Baptista,
Luegi e Taborda 2006: 116.)
Observemos agora as questões que foram objecto da experimentação
desenvolvida pela equipa de Isabel Faria sobre as formas de interagirem,
cognitivamente, materiais escritos e visuais:
1. May an instance of written material included in an image act
selectively over other internal properties of that image while perceiving
it, processing it, storing it and retrieving it from memory?
2. Does the processing of written material interact with the visual
processing of a scene? If so, what counts as prominent, so that it may
be kept as such in our memory?
3. Do both types of representation (written and iconic) operate
similarly within working memory (short term memory) and within
semantic memory (long term memory)?
(Faria, Baptista, Luegi e Taborda 2006: 117.)
A experiência concebida pela equipa para responder a estas questões
implicava três conjuntos de imagens, com e sem legenda, que seriam obser-
vados, um a um, por cada informante. Após a observação, o informante devia
recordar as imagens acabadas de ver, e descrevê-las por escrito, com o maior
pormenor possível. Há que reconhecer o facto de o número de informantes
envolvidos na experiência ter sido insuficiente, como é aliás admitido no pró-
prio final de «Interaction and Competition Between Types of Representation»:
«(…) findings should, of course, be backed-up in the near future by studying
a larger group of subjects.» (Faria, Baptista, Luegi e Taborda 2006: 128.) Tem
de se reconhecer, igualmente, que a interpretação teórica dos resultados
obtidos deveria estar mais desenvolvida.

Departamento de Linguística Geral e Românica, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.


Sobre as relações entre palavra e imagem, neste mesmo quadro teórico, ver ainda Baptista
(2005). «Para Uma Análise das Interacções entre a Legenda e a Imagem».
No respeitante ao carácter interdisciplinar da linguística, em geral, ver Faria (2003). «Uma Visão
Interdisciplinar da Linguística, em Fim de Milénio».
130 Alcinda Pinheiro de Sousa

São de referir, contudo, algumas conclusões provisórias da experiência,


no caso de observação da imagem e da respectiva legenda, quanto à forma
como estas interagem:
Although contributing explicitly to categorization and naming, we
verified that the used captions did not prevent the subjects from
accessing other information visually contained in the picture or judged
by the subject as implicit. A certain unexpected ‘control free’ nature of
the used captions could provide a possible explanation for obtaining
similar recalls for a picture from different subjects, seen either with or
without a caption.
(Faria, Baptista, Luegi e Taborda 2006: 125.)
Dir-se-ia, pois, que a legenda contribuiu para que o informante fizesse uma
melhor leitura da imagem, mas não o impediu de proceder a uma estrita
interpretação visual dela, e relativamente livre.
Note-se, por fim, que nenhuma das imagens escolhidas pela equipa de
Isabel Faria era dada enquanto arte, apesar de uma delas ser a de um fonta-
nário, facilmente classificável como peça escultórica da arquitectura urbana.
É provável que, tratando-se de imagens de objectos apresentados como artísti-
cos, surgissem problemas suplementares ao conceber-se e concretizar-se o
processo da experimentação, os quais decorreriam, hipoteticamente, de difi-
culdades em categorizar e avaliar as imagens, tanto pelos autores da
experiência, como pelos seus informantes.11
O estudo da palavra, da imagem e/ou das suas relações, que temos
estado a problematizar, pode fazer-se num outro enquadramento teórico
ainda, o da semiótica. Evidencio, como tal, as teses de Rudi Keller, em A Theory
of Linguistic Signs. Antes, porém, devo fazer notar que este linguista elege um
paradigma de investigação substancialmente diverso dos que considerámos
até aqui. Assim, critica as teorias linguísticas de tipo mentalista, sublinhando,
precisamente, a contingência histórica de qualquer língua. Já em 1994, no livro
On Language Change. The Invisible Hand in Language, Keller expunha o seu
entendimento do objecto de estudo construído por Noam Chomsky: «Real and
interesting is exclusively the individual competence which is ‘represented’ in
the brain of a speaker, or what Chomsky has recently called I-Grammar
(internalised grammar).» (Keller 1994: 55.) A esta construção declaradamente

11 À imagem do fontanário aqui em causa foi atribuída a seguinte legenda: «Fontanário em pedra
com duas bicas adossado ao gradeamento do jardim de S. Lázaro [Porto].» (Faria, Baptista, Luegi
e Taborda 2006: 126.)
Nem uma Palavra Só, nem uma Imagem só, mas a sua Mistura Heterogénea 131

mentalista, contrapunha logo depois a sua, ostensivamente concebida segundo


uma teoria histórica: «(…) the establishment of a conception of language
which does justice to the eternal change in language.» (Keller 1994: 57.)12
Especificamente quanto às suas teses em A Theory of Linguistic Signs,
Keller começa por defender que são três os processos de desenvolvimento dos
signos – o sintomático, o icónico e o simbólico – processos sobre os quais se
arquitecta a nossa competência semiótica. Começando pelos sintomas, Keller
caracteriza-os do seguinte modo:
Symptons are, in a certain sense, the simplest and most archaic
signs. (…) Symptoms (…) play a role in human communication:
blushing is a sign of embarassment (…).
Symptons are signs only in a certain sense for they are not inten-
tionally used. (…) it is their interpretative use that makes them into
signs. (…) Symptons are therefore more elementary signs than icons
and symbols.
(Keller 1998: 103.)
Passando à explicitação do que entende por ícones, e sempre em termos
de uma estratégia comparativa dos processos de desenvolvimento dos signos,
este linguista declara:
(…) natural things or artifacts become icons through their use for the
purpose of communication. Colloquially, one might say that it is through
the “sender’s” doing that something becomes an iconic sign, while
symptoms are created exclusively through an interpreter’s doing.
Typical iconic signs are, for example, the stylized “man” and
“woman” on toilet doors (…).»
(Keller 1998: 108.)
Finalmente, Keller chega à descrição, muito mais complexa do que as
anteriores, daquilo que é um símbolo, de acordo com a sua teoria. Esta é uma
das fases da argumentação em que mais insiste nas diferenças entre as teses
que defende e as de Charles Sanders Peirce. Keller apresenta, assim, o
princípio de que parte para a definição do que é interpretar um símbolo:
«What makes a symbol interpretable is the rule of its use in the language.»
(Keller 1998: 112.) Em seguida, procura caracterizar este princípio, concluin-
do a sua análise através de um exemplo paradigmático:

12 A defesa de que a língua é historicamente relativa configura também Keller (2003). «The Natural
Language: An Example of Spontaneous Order and its Sociocultural Evolution».
132 Alcinda Pinheiro de Sousa

To know what a symbol means is to know under which conditions


it is usable for the realization of which intentions. (…)
The game of chess is appropriate here (…) as a descriptive analogy:
when someone says, “Aha, he wants to take my bishop with his rook,”
she gives you to understand that she believes she has understood the
sense of the move. For this, she must be familiar with the “meaning”
of the bishop, that is, she must know which moves may be made with
the bishop and which may not. Anyone who does not know the rules
of use of the bishop will not stand a chance of understanding the sense
of the moves involving the bishop. Like the sense of an utterance, the
sense of a move is the end to which that move is undertaken.
(Keller 1998: 113, 114.)
De acordo com a sua teoria, Keller pretende tornar claro que não é «the mental
correspondent of the sign» (Keller 1998: 112.), como defende Peirce, que torna
o símbolo interpretável, mas a regra do seu uso na língua.13
O factor estético, embora aludido no quadro desta teoria da comuni-
cação, não é considerado na análise de Keller:
I have suggested a classification of the factors that are taken into account
in our calculations of [communication] costs and benefits regarding
the choice of linguistic means. (…) On the benefits side, we can hope
for informative, social and aesthetic benefits (I want to tell you
something, and at the same time, cultivate our relationship; also I try
to express myself eloquently.)
(Keller 1998: 195.)
Todavia, deve questionar-se esta ausência, quase completa, da menção do
factor estético. Com efeito, tal ausência não se coaduna com a importância
implicitamente atribuída ao benefício estético, no diagrama de Keller (sobre o
cálculo dos custos e benefícios da comunicação) a que o linguista se refere
no passo de A Theory of Linguistic Signs agora citado.
A palavra, a imagem visual, e as diversas formas de interagirem podem
ser estudadas, como verificámos, nos quadros teóricos até aqui considerados
– o da neuropsicologia da percepção, o da psicolinguística e o da semiótica.
Além disso, constituem objectos especialmente analisáveis também no
âmbito das áreas disciplinares da economia, da sociologia, da política e da
cultura. Dois exemplos óbvios são os dos usos da palavra, ou da imagem, ou

13 Quanto à declaração de Keller sobre o objectivo de contrapor as suas definições de sintoma, ícone
e símbolo às que Charles Sanders Peirce dá para indício, ícone e símbolo, ver Keller 1998: 100.
Nem uma Palavra Só, mas a sua Mistura Heterogénea 133

de ambas em interacção pela publicidade e pela propaganda. No enquadra-


mento do que se designa por «Média de Massas e Electrónicos», aqueles dois
exemplos constam precisamente da legenda do seguinte esquema, elaborado
para Visual Culture. An Introduction, por John Walker (historiador de arte e
design) e Sarah Chaplin (a trabalhar em teoria da arquitectura e do design),
esquema modelar neste contexto:

Field of General Production

Field of Cultural Production

Fine Arts Crafts/Design

Field of Visual Culture

Performing Mass and


Arts and Arts Electronic
of Spectacle Media

(Walker & Chaplin 1997: 33.)14


A concluir, saliente-se que, em referência ao esquema acima reprodu-
zido, Walker e Chaplin invocam a teorização de Pierre Bourdieu sobre
produção cultural, exactamente para enfatizarem as condicionantes de ordem

14 No caso da publicidade e do marketing, estes problemas das relações entre o cultural, por um
lado, e o económico, o social e o político, por outro lado, são ponderados por Pinto e Castro
(2002). Comunicação de Marketing.
134 Alcinda Pinheiro de Sousa

económica, social e política que determinam aquele tipo de produção:


Bourdieu maintains that the field of cultural production exists
within a larger field of production, the field of general manufacturing,
economics and politics which he sometimes calls ‘the field of power’.
While the field of culture has a relative autonomy, its boundaries are
permeable, and it is subject to influences and determinants from the
enclosing field. Also, what is at stake in the field of culture is compa-
rable to that of the wider field: the competition for wealth, property,
power and social status. But what distinguishes the cultural field from
the field of economics is that power is often symbolic: it consists of
aesthetic achievements, high status, peer group recognition, and the
award of degrees and honours.
(Walker & Chaplin 1997: 32.)
Apresentou-se aqui uma selecção de alguns importantes enquadra-
mentos teóricos diferenciados em que hoje é viável estudar palavra, ou imagem
visual, ou qualquer das relações diferentes que entre ambas se possa estabele-
cer. Tal selecção teve dois objectivos: primeiramente, enfatizar a sua quantidade
e diversidade, em seguida, mostrar que é defensável agrupá-los em duas grandes
categorias. São elas, por um lado, a das teorias que privilegiam uma concepção
neurológica do conhecimento e, por outro lado, a das que contrapõem a neces-
sidade de se reconhecer o relativismo histórico dos mecanismos cognitivos.

***
Há que proceder agora a uma diferenciação dos tipos de imagem visual
a que podemos estar a referir-nos, sobretudo actualmente, quando tal
diferenciação está potenciada, como antes nunca esteve, pelo aceleradíssimo
desenvolvimento das chamadas novas tecnologias. Já no ano de 1997, em
Visual Culture. An Introduction, trabalho atrás citado, Walker e Chaplin, ao
definirem o que designavam por «Área de Estudo da Cultura Visual», caracteri-
zavam o seu objecto como «amplo» e «heterogéneo». Além disso, e conforme
pode observar-se no seu esquema da página trinta e três, atrás reproduzido,
subdividiam esta área recente de estudo em função de quatro classes distintas
de cultura visual que intitulavam «Belas Artes», «Artes/Design», «Artes Perfor-
mativas e Artes do Espectáculo» e «Média de Massas e Electrónicos».15
Neste contexto, limitar-me-ei a citar uns poucos exemplos apresentados
por Walker e Chaplin para cada uma daquelas classes de cultura visual: a

15 Relativamente à amplitude e heterogeneidade da cultura visual, ver Walker & Chaplin 1997: 32-4.
Sobre a própria noção de diferença (neste caso aplicada aos enquadramentos teóricos em que
Nem uma Palavra Só, mas a sua Mistura Heterogénea 135

pintura, a gravura, e os filmes e vídeos de vanguarda, para «Belas Artes»; o


design urbano, a ilustração e o design de jardim, para «Artes/Design»; o
teatro, a dança/ballet e os fogos de artifício, para «Artes Performativas e Artes
do Espectáculo»; finalmente, a fotografia, o cinema/filme e a Internet para
«Média de Massas e Electrónicos». Não constitui meu objectivo, aqui, proble-
matizar a fluidez epistemológica destas classificações. Contudo, não posso
ignorar que, em finais do século XX, se torna pelo menos polémico incluir a
fotografia nos «Média de Massas e Electrónicos», sem interrogar a sua hipoté-
tica condição de arte, em particular face à pintura. Fazê-lo, parece-me implicar
um critério avaliativo cada vez mais contestável, como é aliás admitido por
Walker e Chaplin.16
***
Na sequência do reconhecimento de que é forçosamente polémico
classificar hoje a fotografia, não como arte, mas como um dos «média de
massas e electrónicos», vou considerar um último enquadramento teórico
para a análise da imagem visual ou de qualquer das relações entre esta e a
palavra – o da história da arte. Pelo rigor conceptual e pela eficácia intelectual
já instituídos nesta área de conhecimento, têm-se distinguido os estudos sobre
o visual produzidos no seu âmbito. Assinalo, por isso, The Story of Art, de E.
H. Gombrich, à escolha de cujo título (em especial, à do uso de «Story» em
lugar de «History») não é, por certo, estranha a ênfase implícita no carácter
eminentemente subjectivo do juízo estético. Este facto pode ser comprovado
se observarmos as palavras do próprio Gombrich, logo na introdução do seu
trabalho: «As there are no rules to tell us when a picture or statue is right it is
usually impossible to explain in words exactly why we feel that it is a great
work of art.» (Gombrich 1984: 17.)
A análise da história da arte proposta por Gombrich permite-nos reconhe-
cer imediatamente a centralidade da imagem visual no quotidiano de todos
os povos, e desde sempre. Um exemplo eloquente que nos apresenta consiste

se pode estudar, hoje, a palavra, ou a imagem visual, ou qualquer das suas múltiplas relações, bem
como aplicada aos vários tipos de imagem visual a que podemos estar a referir-nos, sobretudo hoje
também), ver Pinheiro de Sousa (2006). «De Thomas Kuhn, The Structure of Scientific Revolutions
às Questões de Diferença». Embora posteriormente muito trabalhado, o ensaio agora referido teve
por base parte da comunicação que apresentei ao primeiro da série de quatro seminários, com o
título A palavra e a Imagem, série organizada em 2005 / 06, pelo Programa de Investigação A
Moderna Diferença, do Centro de Estudos Anglísticos da Universidade de Lisboa (CEAUL).
16 Quanto aos exemplos das quatro classes de cultura visual, e sobre a polémica classificação da
fotografia neste enquadramento, ver Walker & Chaplin 1997: 46.
136 Alcinda Pinheiro de Sousa

na defesa da existência de pinturas nos primeiros templos cristãos (as basíli-


cas), defesa feita pelo papa Gregório o Grande, em finais do século VI AD:
He [Pope Gregory the Great] reminded the people who were against
all paintings that many members of the Church could neither read nor
write, and that for the purpose of teaching them, these images were as
useful as the pictures in a picture-book are for children. ‘Painting can
do for the illiterate what writing does for those who can read,’ he said.
(Gombrich 1984: 95.)
Uma vez que muitos cristãos eram incapazes de interpretar a língua escrita,
dado ela ser de tipo simbólico, o papa Gregório o Grande estava absoluta-
mente convencido de que o carácter icónico da pintura resolveria o problema
de comunicação assim gerado. Em seu entender, só desta forma é que a igreja
cristã poderia ampliar e intensificar o ensino dos seus princípios básicos, con-
forme era necessário ao projecto de fortalecimento e supremacia do cristia-
nismo, relativamente às outras religiões.
Julgo pois que, em termos do conhecimento da imagem visual, e de como
interage com a palavra, não é produtivo continuarmos a tentar medir a centra-
lidade dela na cultura ocidental, relativamente a culturas diferentes, nossas
contemporâneas e/ou do passado. Devemos sim considerar o modo como, a
partir de meados do século XX, a qualidade e a rapidez de execução e de
reprodução mecânicas das imagens alterou o impacte delas na nossa cultura,
condicionando-a radicalmente. Além disso, devemos analisar os processos de
manipulação tecnocrata e mercantilista de que as imagens visuais têm sido
objecto preferencial, nesta viragem do século XX para o século XXI.
Aparentemente, as imagens assim executadas, reproduzidas e manipu-
ladas, sobretudo graças às chamadas novas tecnologias, foram constituindo o
instrumento básico que o ocidente tem vindo a utilizar para impor univer-
salmente os seus modelos económicos, sociais, políticos e culturais de funcio-
namento. Com efeito, sendo globalizantes, tais modelos estão a eliminar siste-
maticamente os factores de diferenciação entre os vários povos. Neste contexto,
dois objectos de estudo paradigmáticos, e atrás referidos, são a publicidade e
a propaganda, quer nos sectores económico e social, quer nos da política e
da cultura.
***
Discriminados alguns dos diversos enquadramentos teóricos do estudo
da palavra, da imagem e das suas múltiplas formas de interagirem, separadas
também várias classes de imagens visuais, passo à última fase deste ensaio.
Para tal, vou escolher um objecto de análise esteticamente enquadrável. A
Nem uma Palavra Só, mas a sua Mistura Heterogénea 137

palavra «estética» está entendida aqui, basicamente, como Marita Sturken e


Lisa Cartwright muito bem a definem, e de modo sintético, em Practices of
Looking. An Introduction:
Aesthetics A branch of philosophy that is concerned with beliefs and
theories about the value, meaning, and interpretations of art. The
aesthetic traditionally referred to concepts of the beautiful, but
today refers to what is valid and valuable in the arts.
(Sturken and Cartwright 2001: 349; itálicos meus.)
Esta definição invoca o que já afirmei atrás, a propósito de The Story of Art,
de Gombrich, sobre o carácter subjectivo do juízo estético. Isto é o que se infere,
em especial, do uso de «beliefs» em «(…) branch of philosophy [Aesthetics] that
is concerned with beliefs (…) about the value, meaning, and interpretations of
art». Além disso, Sturken e Cartwright enfatizam, com rigor, a mudança de objec-
to e objectivos operada nas teorias estéticas, sobretudo nas últimas décadas do
século XX. Consistiu esta mudança em passar da avaliação das chamadas obras
de arte, de acordo com modelos académicos de qualidade estética, inquestio-
nados e inquestionáveis, às interrogações desses modelos, e às dos próprios
critérios de validação das artes como tais. É evidente que semelhantes interro-
gações tinham de re-situar os critérios e os modelos de validação e avaliação
estéticas, no contexto histórico da sua produção, conservação e actuação.17
Em breve apontamento, e nos termos estéticos assim caracterizados,
proponho então que observemos um exemplo, apenas, de um dos diferentes
tipos possíveis de uso da palavra escrita, da imagem visual, e das formas como
interagem. Trata-se da mistura constituída pela narrativa escrita da execução
do negro Neptuno, e pelo respectivo desenho, a partir do qual veio a ser feita
a gravura que, mais tarde, se publicou em livro, combinada com aquela
narrativa, como sua ilustração. Acrescente-se que todos estes componentes
foram realizados no dealbar definitivo da nossa modernidade, i.e. nas últimas
décadas do século XVIII. John Gabriel Stedman concretizou a narrativa escrita
e os desenhos ilustrativos, primeiro, no Suriname, depois, na Holanda, e,
finalmente, na Inglaterra; William Blake produziu, em Londres, várias gravu-
ras a partir daqueles desenhos de Stedman, tendo-lhe sido atribuída a do
negro Neptuno.18

17 Sobre estas questões estéticas, ver Gardner (1996). «Aesthetics».


18 No respeitante à narrativa escrita e aos desenhos de Stedman, bem como ao processo da execução
das gravuras e da publicação, em 1796, pelo radical Joseph Johnson, de Narrative of a five years
expedition, against the Revolted Negroes of Surinam in Guiana, on the Wild Coast of South America,
from the year 1772 to 1777, ver White (2001). «Stedman’s Narrative: its Origins & Transformations».
138 Alcinda Pinheiro de Sousa

Deve ainda fazer-se notar que Stedman escreve Narrative, e faz os neces-
sários desenhos, no pressuposto do seu carácter estético, como pode inferir-se
do que afirmam Richard e Sally Price, em introdução a Stedman’s Surinam.
Life in an Eighteenth-Century Slave Society: «Without question, Stedman
considered himself a far better artist than writer, and his contemporaries seem
to have shared his opinion.» (R. Price and S. Price 1992: xl.) Além disso, sobre
o juízo de valor relativo que Stedman faz deste seu trabalho, considere-se o
que ele declara, em Narrative, a propósito das formas como descreve e
desenha dois tipos de macaco que encontra no Suriname: «In the annexed
plate I have delineated both these monkeys, the large quata and the small
saccawinkee, thus trying to correct with my pencil the deficiency that may be
in my pen.» (Stedman’s Surinam 1992: 171.) No presente contexto, limito-me
a validar o assim reconhecido pressuposto estético de Narrative que,
implicitamente, avaliarei quanto à narrativa escrita da execução do negro
Neptuno e à respectiva ilustração.
Feitas estas especificações, parto da hipótese de que a maioria dos
leitores, cuja competência linguística em inglês for suficiente, lê primeiro a
narrativa da execução, até porque ela precede espacial e temporalmente, no
livro, a imagem que a ilustra. Passo, por isso, a transcrevê-la na íntegra, para,
de modo semelhante ao da maior parte dos leitores, começarmos a apreciar tal
narrativa e, depois, a respectiva ilustração, e a forma como as duas interagem:

The third Negro, whose name was Neptune, was no slave, but his
own master, and a carpenter by trade. He was young and handsome, but
having killed the overseer of the estate Altona in the Para Creek in
consequence of some dispute, he justly lost his life with his liberty.
However, the particulars are worth relating, which briefly were that he,
having stolen a sheep to entertain some favorite women, the overseer
had determined to see him hanged, to prevent which he shot him dead
among the sugar canes. This man being sentenced to be broken alive
upon the rack, without the benefit of the coup de grace, or mercy
stroke, laid himself down deliberately on his back upon a strong cross,
on which with arms and legs expanded he was fastened by ropes. The
executioner (also a black), having now with a hatchet chopped off his
left hand, next took up a heavy iron crow or bar, with which blow after
blow he broke to shivers every bone in his body, till the splinters,
blood, and marrow flew about the field. But the prisoner never uttered
a groan or a sigh. The ropes now being unlashed, I imagined him dead,
and felt happy till the magistrates, moving to depart, he writhed from
the cross till he fell in the grass, and damned them all for a pack of
barbarous rascals. At the same time, removing his right hand by the
Nem uma Palavra Só, mas a sua Mistura Heterogénea 139

help of his teeth, he rested his head on part of the timber and asked
the bystanders for a pipe of tobacco, which was infamously answered
by kicking and spitting on him, till I, with some Americans, thought
proper to prevent it.
He then begged that his head might be chopped off, but to no
purpose. At last, seeing no end to his misery, he declared that though
he had deserved death, he had not expected to die so many deaths.
“However, you Christians (said he) have missed your aim, and I now
care not were I to lie here alive a month longer,” after which he sang
two extempore songs, with a clear voice taking leave of his living
friends, and acquainting his deceased relations that in a little more
time he should be with them to enjoy their company forever. This
done, he entered into conversation with two gentlemen concerning his
trial, relating every one particular with uncommon tranquillity, but
said he abruptly, “By the sun it must be eight o’clock, and by any
longer discourse I should be sorry to be the cause of your loosing your
breakfast.” Then turning his eyes to a Jew whose name was De Vries,
“Apropos, Sir (said he), won’t you please pay me the five shillings you
owe me?” “For what to do?” “To buy meat and drink to be sure. Don’t
you perceive that I am to be kept alive?” – which (seeing the Jew look
like a fool) he accompanied with a loud and hearty laugh. Next
observing the soldier who stood sentinel over him biting occasionally
on a piece of dry bread, he asked him how it came that he, a white
man, should have no meat to eat along with it. “Because I am not so
rich,” said the soldier. “Then I will make you a present. First pick my
hand that was chopped off clean to the bones, Sir. Next begin to
myself, till you be glutted, and you’ll have both bread and meat which
best becomes you.” And which piece of humour was followed by a
second laugh, and thus he continued when I left him, which was about
three hours after the execution. But to dwell more on this subject my
heart
– Disdains
Lo! tortures, racks, whips, famine, gibbets, chains
Rise on my mind, appall my tear-stained eye,
Attract my rage, and draw a soul-felt sigh,
I blush, I shudder, at the bloody theme.

In the adjoining plate [71], see the above dreadful chastisement.


(Stedman 1992: 285-6.)

Vou agora reproduzir a imagem destinada a ilustrar o que lemos.


‘The Execution of Breaking on the Rack’, 1793. Gravura a água forte acabada a aguarela
sobre papel, 17.7x12.9 (cercadura). Atribuída a William Blake. Ilustração para John
Gabriel Stedman, Narrative of a five years expedition, against the Revolted Negroes of
Surinam (London, 1796).
Nem uma Palavra Só, mas a sua Mistura Heterogénea 141

Note-se que, segundo pudemos ler, Stedman remete-nos expressamente para


esta gravura, no final da sua narrativa – «In the adjoining plate [71], see the
above dreadful chastisement.» Semelhante remissão leva a combinarmos os
dois componentes – narrativa escrita e ilustração – e a obtermos, como tal, a
sua mistura heterogénea.
Após uma primeira observação da gravura ilustrativa que reproduzi,
proponho que terminemos a nossa leitura, ponderando as considerações mora-
lizantes finais de Stedman sobre a relatada execução de Neptuno:
Now, how in the name of Heaven human nature can go through
so much torture, with so much fortitude, is truly astonishing, without
it be a mixture of rage, contempt, pride, and hopes of going to a better
place or at least to be relieved from this, and worse than which I verily
believe some Africans know no other Hell. Nay, even so late as 1789,
on October 30 and 31 (at Demerara), thirty-two wretches were exe-
cuted, sixteen of whom in the above shocking manner, without so
much as a single complaint was heard among them, and which days
of martyr are absolutely a feast to many planters.
I should be rather inclined to think that Britain is the standard of
humanity, by being the first nation (whether politically or not) that
attempted the abolition of the slave trade.
(Stedman’s Surinam 1992: 285-6.)

Ao analisarmos comparativamente a ilustração e a narrativa escrita, o que


se evidencia primeiro é o facto de ela dever ser referida a uma fase específica
da acção relatada:
The executioner (also a black), having now with a hatchet chopped off
his left hand, next took up a heavy iron crow or bar, with which blow
after blow he broke to shivers every bone in his body, till the splinters,
blood, and marrow flew about the field.
(Itálico meu.)
Em termos do tempo da narrativa, a imagem fixa deicticamente um gesto – um
presente («now») – que pressupõe o antes, já passado, do relato:
This man being sentenced to be broken alive upon the rack, without
the benefit of the coup de grace, or mercy stroke, laid himself down
deliberately on his back upon a strong cross, on which with arms and
legs expanded he was fastened by ropes.
É, contudo, difícil antecipar na imagem, ou mesmo impossível, e contraditório
até, o devir patético da narração, de que sobressai o diálogo seguinte:
Next observing the soldier who stood sentinel over him biting occa-
sionally on a piece of dry bread, he asked him how it came that he, a
142 Alcinda Pinheiro de Sousa

white man, should have no meat to eat along with it. “Because I am
not so rich,” said the soldier. “Then I will make you a present. First pick
my hand that was chopped off clean to the bones, Sir. Next begin to
myself, till you be glutted, and you’ll have both bread and meat which
best becomes you.”
Semelhante forma de figurar visualmente a execução de Neptuno per-
mite suprimir alguns traços grosseiros da caracterização narrativa escrita dos
que nela tomam parte, ou dos que a ela assistem, e das próprias reacções da
vítima. Este é um exemplo paradigmático:
At the same time, removing his right hand by the help of his teeth, he
rested his head on part of the timber and asked the bystanders for a pipe
of tobacco, which was infamously answered by kicking and spitting on
him, till I, with some Americans, thought proper to prevent it.
Assim, e apesar da crucial tragicidade da acção que o negro protagoniza, ou
precisamente por causa dela, dir-se-ia que a imagem pretende firmar-lhe a
intocada dignidade humana essencial, transfigurando Neptuno no verdadeiro
herói da narrativa: «But the prisoner never uttered a groan or a sigh». A heroi-
cidade do negro Neptuno, propagandeada visualmente pela imagem da sua
execução, parece repercutir também as considerações moralizantes com que
Stedman termina o relato:
Now, how in the name of Heaven human nature can go through
so much torture, with so much fortitude, is truly astonishing, without
it be a mixture of rage, contempt, pride, and hopes of going to a better
place or at least to be relieved from this, and worse than which I verily
believe some Africans know no other Hell.19
Por fim, e quanto ao espaço da acção, a narrativa faz, até certo ponto,
submergir Neptuno e o seu carrasco no amontoado caótico dos que partici-
pam na execução, e dos que a ela assistem:
This done, he entered into conversation with two gentlemen concern-
ing his trial, relating every one particular with uncommon tranquillity,

19 Note-se que o carácter sentimental de Stedman, próprio da sua época, e que de forma latente
configura todo o relato aqui em causa, encontra-se bem apontado por Richard e Sally Price, em
introdução a Stedman’s Surinam:
Stedman was proud of being unusually sensitive, even in an age of pervasive and
modish sentimentality. He described the intensity of his empathy for all creatures from
early childhood, which paralleled his troubled reactions to much of what he later
witnessed in Surinam.
(R. Price and S. Price 1992: xv.)
Nem uma Palavra Só, mas a sua Mistura Heterogénea 143

but said he abruptly, “By the sun it must be eight o’clock, and by any
longer discourse I should be sorry to be the cause of your loosing your
breakfast.”
Pelo contrário, no espaço quase vazio da ilustração, agigantam-se Neptuno e o
carrasco. Em primeiro plano, os instrumentos da tortura, e a parte do corpo
mutilado do negro vêm ao encontro do observador. Além disso, revela-se-nos
a perpendicular que une dois extremos dos instrumentos da tortura – a ponta
da barra de ferro empunhada pelo carrasco (na parte superior da gravura, a
meio) e o machado caído no chão (na parte inferior da gravura, a meio tam-
bém). Esta perpendicular cruza com a horizontal definida pelo lado direito do
corpo jacente de Neptuno, estando acentuada pela linha que, em paralelo e
acima dela, o horizonte traça igualmente. No espaço da gravura, semelhante
eixo cruciforme parece determinar a organização do desenho minimalista dos
protagonistas da execução, e dos respectivos instrumentos, o que, dir-se-ia,
visualmente reforça o estoicismo crístico do herói negro.20

***
A expressão «mistura heterogénea», que figura no título deste ensaio,
pretende aludir a um conceito básico da química. Mediante a epígrafe esco-
lhida, apontei uma primeira definição desse conceito – «mistura é uma
combinação de duas ou mais substâncias em que estas mantêm a sua identi-
dade própria». Acrescento agora que, à «mistura, em que a composição não
é espacialmente uniforme, dá-se o nome de mistura heterogénea». (Chang
1994: 9.) Ao analisar algumas relações entre a narrativa escrita e a respectiva
gravura ilustrativa da execução de Neptuno, o meu objectivo consistiu em
ensaiar, de modo relativamente limitado mas sistemático, e num exemplo
apenas, a utilização, por analogia, do conceito de mistura no processo do
estudo da palavra, da imagem, e das suas formas de interagirem.

20 É de evidenciar que a retórica, tanto visual como linguística, de Narrative of a five years expedi-
tion, against the Revolted Negroes of Surinam in Guiana, foi encenada de forma exímia pelos
partidários da abolição da escravatura, conforme assinalam Richard e Sally Price na mesma
introdução a Stedman’s Surinam:
Johnson understood that the Narrative (with its numerous chilling eyewitness
accounts of barbaric tortures of slaves and its graphic accompanying illustrations) would,
even in its edited form, stand as one of the strongest indictments ever to appear against
plantation slavery. And public reaction bore him out (…)
(R. Price and S. Price 1992: lxi.)
144 Alcinda Pinheiro de Sousa

Quanto ao exemplo que escolhi, a mistura heterogénea é a do relato


escrito que Stedman faz com a ilustração atribuída a Blake, e executada a partir
do desenho do mesmo Stedman. Neste caso, entendo por mistura heterogé-
nea a que adquire uma nova identidade, a partir da tensa interacção entre os
dois componentes, detentores de identidades particulares também. Recor-
demos aqueles componentes, em concreto o passo do relato que a gravura
particularmente ilustra, e a própria ilustração, atrás reproduzida:
The executioner (also a black), having now with a hatchet chopped off
his left hand, next took up a heavy iron crow or bar, with which blow
after blow he broke to shivers every bone in his body, till the splinters,
blood, and marrow flew about the field.
A gravura separou-se, há muito, do relato de que é ilustração, ou seja,
recuperou a sua identidade visual específica. Com frequência, tem sido apre-
ciada isoladamente, e no completo desconhecimento dos seus autores e do
contexto em que foi produzida. Quer isto dizer que, fisicamente separados os
componentes da mistura, a narrativa escrita da execução de Neptuno atrás
citada, tal como a gravura então reproduzida, geram de facto interpretações
que são características de cada uma delas. O que defendo, todavia, é que esta
combinação do linguístico com o visual, do simbólico com o icónico (enquanto
componentes com identidades próprias) se constitui como uma classe de
misturas que, pela interacção desses componentes, potencia interpretações
diversas das de cada um deles, em separado, e mais profícuas. O granito
enquanto mistura, por exemplo, identifica-se pela interacção dos seus compo-
nentes, assim geradora de uma resistência eficaz e de contrastes visualmente
apelativos, de cores e padrões. Por analogia, pode considerar-se a mistura do
relato da execução de Neptuno com a respectiva gravura (mesmo na ausência
do conhecimento dos autores e do contexto da sua produção) intelectual-
mente muito produtiva e esteticamente bem sugestiva, pela tensão estabele-
cida entre, por um lado, a forma supostamente realista da figuração escrita e,
por outro lado, a forma que se quer idealizada da figuração visual.
Nem uma Palavra Só, nem uma Imagem só, mas a sua Mistura Heterogénea 145

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Lendo Marriage A-La-Mode, de William Hogarth

MÁRCIA BESSA MARQUES


(CEAUL-Centro de Estudos Anglísticos da Universidade de Lisboa /
Academia de Música de Santa Cecília)

ISBN 978-972-8886-08-0 • A PALAVRA E A IMAGEM • CEAUL / ULICES 2007


E
mbora sempre tivesse desejado ser reconhecido como pintor, William
Hogarth (Londres, 1697-1764) começou por ser aprendiz de um gra-
vador de prata, mas cedo se cansou do trabalho repetitivo e de imitação
a que estava sujeito, tendo decidido abrir uma oficina de gravação em cobre,
onde imprimia ilustrações para romances baratos, cartões comerciais e anún-
cios de funerais. As suas primeiras ilustrações para livros revelam uma
preferência por obras com um acentuado pendor satírico, de denúncia de
vícios humanos, institucionais e académicos, como New Metarmophosis, de
Charles Gildon (1724), Hudibras, de Samuel Butler (1725-26), e Don Quixote,
de Cervantes (c. 1727). A primeira gravura publicada por iniciativa própria,
The Taste of the Town; or, Masquerades and Operas (1724), anuncia uma preo-
cupação constante e duradoura com a obediência cega a modelos artísticos
estrangeiros e com o desprezo pelo talento autóctone, que se reflecte
nomeadamente na sua campanha em prol da Lei dos Direitos de Autor dos
Gravadores (1735), e que ficou conhecido como ‘Hogarth’s Act’. As suas séries
de gravuras e quadros mais famosos irão desenvolver este tema: a imitação
servil de modelos artísticos e sociais viciados e viciosos conduz inevitavel-
mente à perdição.
Quer nos anúncios para subscrição das suas gravuras, quer nas reflexões
teóricas efectuadas mais tarde, William Hogarth sempre manifestou a cons-
ciência do facto de a realidade (seja como for que se consiga / queira definir)
ser passível de leitura(s), tal como os frutos desse olhar reflectido / reflexivo.
Enquanto pintor, dava preferência a um método que explica o reduzido
número de esboços existentes: partindo da memória de um objecto, Hogarth
precisava apenas de algumas linhas para traduzir a sua leitura da realidade
observada, por ter decidido que não devia limitar-se a copiá-la: ‘but rather
read the language of them (and if possible find a grammar to it)’ (apud
Bindman 1981: 30). Embora frequentemente associado à génese do romance
moderno, sobretudo a Henry Fielding, devido a referências feitas pelos dois
autores e à relação de amizade entre ambos, Hogarth confessa particular-
mente o sentimento de afinidade com o género dramático, sendo a tela inicial
150 Márcia Bessa Marques

encarada como um palco imaginário, a ser preenchido posteriormente com


as figuras, os cenários, os emblemas e as alusões. O próprio artista explicita
este processo criativo na seguinte afirmação: ‘I have endeavoured to treat my
subjects as a dramatic writer; my picture is my stage, and men and women my
players, who by means of certain actions and gestures, are to exhibit a dumb
show’ (apud Craske 2000: 36). A noção de que a pintura podia transmitir certos
momentos narrativos mais eficazmente do que a palavra escrita era partilhada
por outros artistas coevos envolvidos na ilustração de romances, como é o caso
de Joseph Highmore (1692-1780) acerca de Pamela, de Samuel Richardson:
‘such a story is better and more emphatically told in picture than in words,
because the circumstances that happen at the same time, must, in narration,
be successive’ (apud Paulson 1992b: 240).
No entanto, com o talento de Hogarth, o espaço de uma só tela torna-
-se muito reduzido para desenvolver a sua leitura da comédia humana,
surgindo a série como ensejo para trabalhar um enredo (quase como se de
uma escultura se tratasse), aprofundar a caracterização das personagens e
contrastar cenários contemporâneos, que os espectadores / leitores identi-
ficassem, em que se reconhecessem e em cujos destinos se envolvessem.1
Com efeito, séries como A Harlot’s Progress (1731), A Rake’s Progress (1735),
Industry and Idleness (1747), The Four Stages of Cruelty (1751) e Election
(1753-54) testemunham o carácter narrativo da arte de Hogarth, que funciona
como uma sucessão de momentos cruciais na vida da personagem ou das
personagens principais, a qual ultrapassa os limites estreitos da moldura física
para suscitar nos receptores a criação imaginária de uma rotina e de hábitos
que preencham as ausências, os silêncios e o espaço vazio entre imagens e
entre quadros / gravuras na parede. Mark Hallett menciona a produção de
‘reality effect’ (Hallett 2000: 121), possível através da interacção pessoal,
emocional e intelectual do público, demonstrada no modo como Hogarth
naturalmente assumia o conhecimento de personalidades notórias da vida
pública (por exemplo, um famoso charlatão ou um cantor de ópera muito
requisitado), de tipos representativos das várias classes sociais, da paisagem
social da capital, da iconografia greco-latina e cristã – um universo de alusões
e convenções partilhadas a que os espectadores / leitores de hoje apenas

1 Esta estratégia seria adaptada no século seguinte por vários autores, entre os quais aquele que mais
se identifica com Hogarth, Charles Dickens, ao publicar grande parte dos seus romances em
episódios (‘serialised’), em jornais e revistas.
Lendo Marriage A-La-Mode, de William Hogarth 151

podem aceder em segunda mão através de um trabalho cuidadoso e minucio-


so de ‘pictorial archaeology’ (Hallett 2000: 159). A nossa distância irreme-
diável do horizonte de expectativas coevo traduz-se na quantidade de textos,
fontes e paralelos visuais e pictóricos necessários para que cada espectador /
leitor moderno consiga, nas palavras de Jenny Uglow: ‘tell the tale, frame the
narrative and fill the gaps’ (Uglow 1997: xv). Para assegurar o envolvimento
do público com a obra, Hogarth dispensa as inscrições, as legendas, os
comentários; mesmo os títulos individuais só aparecem na proposta de venda
mas não nos quadros, nem nas gravuras. No entanto, a palavra escrita povoa
Marriage A-la-Mode: desde o nome do conde, Squanderfield (que aparece na
árvore genealógica, radicada no conquistador normando), os termos iniciais
do contrato de casamento e a hipoteca, na primeira imagem, ‘The Marriage
Settlement’, passando pelas contas do casal gastador na seguinte, ‘The Tête à
Tête’, pelo convite para o baile de máscaras, pelo título sugestivo do livro (The
Sopha) que o advogado trouxe e pela enumeração de artigos comprados num
leilão num quarto momento, em ‘The Toilette’, e ainda pelo cartão que ostenta
o nome do estabelecimento de carácter duvidoso onde os amantes se encon-
tram na penúltima cena, em ‘The Bagnio’, e finalmente pelo jornal que jaz aos
pés da viúva no último quadro, ‘The Lady’s Death’, onde descobrimos não só
o nome do advogado / amante, Silvertongue, como também o relato da sua
execução pelo homicídio do conde. Por último, sem necessidade de palavras,
os espectadores / leitores coevos sabiam o título de cortesia atribuído ao filho
do Conde (Visconde) e que Squanderfield falece posteriormente, porque, na
quarta imagem (‘The Toilette’), o quarto da nora ostenta agora o diadema
correspondente ao seu novo título.
Quando, no início da década de 1740, William Hogarth começou a
trabalhar na série de quadros que se iria intitular Marriage A-la-Mode (usando
o termo setecentista que designava os casamentos arranjados para proveito
dos pais), o seu projecto parte da leitura de um conjunto de discursos em
torno dos casamentos arranjados, desde a popular tragicomédia homónima
de John Dryden (estreada em 1671 e reimpressa em 1735, sobre o matrimó-
nio entre um cortesão e uma jovem da burguesia), as peças de Aphra Behn,
The Lucky Chance; or, An Alderman’s Bargain (1686)2 e The Forc’d Marriage; or,
The Jealous Bridegroom (1670), passando pelo romance de Samuel Richardson,

2 Na sequência de uma união indesejada, Lady Fulbank queixa-se amargamente: ‘Oh, how fatal are
forc’d marriages, / How many Ruins one such match pulls on!’ (apud Stone 1977: 186).
152 Márcia Bessa Marques

Pamela (1740),3 e a respectiva paródia de Henry Fielding, Shamela (publicado


em 1741, denunciando os contratos matrimoniais) até à peça do actor e
amigo David Garrick, Lethe; or Aesop in the Shades (1740).4
Segundo as investigações mais recentes em história social, torna-se
patente, sobretudo desde a Restauração, uma tendência crescente para o casa-
mento baseado no afecto, no companheirismo e na amizade. No entanto, o
facto de periódicos como The Review, The Tatler e The Spectator incluírem
regularmente artigos e cartas de leitores que se manifestavam veementemente
contra os casamentos de conveniência (comparando-os a uma violação)
revela a existência persistente de um modelo antiquado, particularmente
entre a aristocracia, conciliando o desejo de preservar o nível social da família
e a necessidade de angariar dinheiro para resgatar dívidas ou investir em
projectos grandiosos. As palavras de Lawrence Stone confirmam o peso do
interesse nestas uniões ao caracterizá-las da seguinte forma: ‘primarily a
contract between two families for the exchange of concrete benefits not so
much for the married couple as for their parents and kin’ (Stone 1977: 182).
Nesta perspectiva, a publicação em 1742, em Dublin, de uma obra como The
Irish Register: or a List of the Duchess Dowagers, Countesses, Widow Ladies,
Maiden Ladies and Misses of Large Fortunes in England (Uglow 1997: 376)
testemunha não só a procura de tal lista pelos futuros noivos e respectivos
pais, mas também o carácter consumista deste tipo de relação conjugal. Se
podemos traduzir em importância o espaço ocupado na tela, então o grupo
que aparece à direita da primeira imagem, ‘The Marriage Settlement’, parece
dominar as negociações do contrato, o que se torna visível no peso dos
documentos do acordo de casamento (nas mãos do pai da noiva) e da
hipoteca, mas em que o pai do noivo parece recusar tocar. Embora pareça
superior a tais considerações ignóbeis, o nobre está envolvido numa troca de
favores com um representante de uma classe diferente, unidos por interesses
comparáveis: o dinheiro e a posição social.

3 A obra apela a um novo código moral e conjugal baseado no afecto e respeito, por oposição a um
casamento de conveniência: ‘whenever, for appearance-sake, they are obliged to be together,
every one sees, that the yawning husband, and the vapourish wife, are truly insupportable to each
other; but, separate, have freer spirits, and can be tolerable company’ (Richardson ([1740] 1985:
464). Esta imagem encontra-se literalmente espelhada na segunda, terceira e quarta imagens da
série de Hogarth.
4 A certa altura da peça, a personagem principal, Lord Chalkestone lamenta o seu destino: ‘I married
for a fortune; she for a title. When we had both got what we wanted, the sooner we parted the
better’. (apud Stone 1977: 186).
Lendo Marriage A-La-Mode, de William Hogarth 153

Com o intuito de atrair um público mais refinado (e com mais posses


económicas),5 Hogarth anunciou o tema de Marriage A-la-Mode como ‘a
Variety of Modern Occurrences in High Life’,6 mas a sua alusão a ‘Decency
and Elegancy’ (apud Hallett 2000: 167) é minada no decurso do trabalho, ao
escalpelizar a afectação das duas classes visadas, afundadas num lodo de
cópias mais ou menos fiéis de obras de arte e comportamentos ultrapassados,
árvores genealógicas e dinheiro. Trabalhando no contexto da sátira gráfica, o
pintor / gravador entra em diálogo com a crítica social, cultural e política con-
temporânea, justapondo técnicas e géneros visuais e literários. Em Marriage
A-la-Mode, o casamento aparece como um espectáculo, para exibição, como
um bem precioso, a ser cuidadosamente seleccionado, avaliado, emoldurado,
exposto e imitado / falsificado como uma obra de arte, parte integrante da
cultura comercial contemporânea.
Na primeira imagem, ‘The Marriage Settlement’, os noivos nem sequer
estão ao centro, mas a um canto, relegados para um segundo plano virtual, o
que traduz a sua relevância (isto é, nenhuma) para as negociações a decorrer
no lado oposto da sala. A simetria quase perfeita dos corpos acentua a
distância e separação (um olhando para o seu próprio reflexo no espelho,
antecipando aquele em frente do qual ele morre, e a outra escutando as
palavras sedutoras do advogado e futuro amante), prefigurando o seu afasta-
mento físico na segunda imagem (‘The Tête à Tête’) e o facto de que só se
voltarão a encontrar no momento em que ele é mortalmente ferido pelo
amante dela, em ‘The Bagnio’. Enquanto símbolos tradicionais da fidelidade
conjugal, os cães apareciam frequentemente em retratos de casais; à frente
dos noivos, estes dois animais encontram–se tão acorrentados e conformados
como eles, reflectindo a sujeição abjecta a poderes superiores e inquestio-
náveis: o paterno e o económico.7 Na parede, ocupando o espaço vazio entre

5 Apesar de Hogarth ter fixado para as gravuras um preço semelhante ao da primeira série, A
Harlot’s Progress (meio guinéu no momento da subscrição e igual quantia aquando da entrega), e
inferior ao da segunda, A Rake’s Progress, o pintor teria ficado desiludido com o reduzido sucesso
dos quadros originais, que só foram vendidos em 1751, pelo montante de 120 guinéus, em vez
dos desejados 500.
6 ‘MR. HOGARTH intends to publish by Subscription, SIX PRINTS […] engrav’d b the best Masters
in Paris, after his own Paintings (the Heads for the better Preservation of the Characters and
Expressions to be done by the Author); representing a Variety of Modern Occurrences in High-Life,
and call’d MARRIAGE À-LA-MODE.’ (The London Daily Post and General Advertiser, 29 October
1743, apud Hallett 2000: 167).
7 A subversão do modelo tradicional seria retomada por John Collett, em 1782, num quadro inti-
tulado Marital Discord (Stone 1977: figura 10), onde os cães acorrentados, mas virados um para
154 Márcia Bessa Marques

os dois, surge um retrato de Medusa, numa imitação da obra de Caravaggio


(uma das várias notas aparentemente incongruentes), que, por um lado,
petrifica os noivos nesta submissão a modelos perversos, e, por outro, exprime
o horror dos espectadores que adivinham o desenlace desta união. Entre as
algemas da convenção e o temor da vida em comum, os noivos permanecem
literal e figuradamente emoldurados e presos (framed).
Além de um retrato do Conde Squanderfield, junto à janela (parecendo
vigiar o decurso das obras interrompidas da sua nova mansão ao estilo de
Palladio), todas as outras obras de arte parecem ser cópias de Velhos Mestres,
defraudando as expectativas de artistas locais e coevos, como o próprio
Hogarth. Reforçando esta característica, a sala escolhida pelo nobre para
acolher a celebração do contrato de casamento transborda de imagens de
martírio, sacrifício e execuções, como o sofrimento de S. Sebastião perfurado
por flechas (parodiando as de Cupido), S. Lourenço torturado num assador
(cuja forma e cujo calor podem ecoar os de um leito conjugal indesejado) e
de Santa Inês queimada e decapitada por não se render aos encantos de um
aristocrata, nem se submeter aos clientes de um bordel (ao contrário da
noiva); os assassínios de Abel por Caim, o de Golias por David, o de Holo-
fernes por Judite (numa antevisão da morte das três personagens principais,
longe deste ambiente luxuoso); finalmente, o castigo de Prometeu continua-
mente torturado pela sua ousadia. Nas palavras de Ronald Paulson: ‘[t]he Old
Masters have come to represent the evil that is the subject of the series – not
aspiration but the constriction of old, dead customs embodied in both
classical and Christian myths’ (Paulson 1992b: 222). Entre o fardo dos docu-
mentos que determinam a sua vida futura e a opressão da arte produto de um
passado sujeito a hábitos estrangeiros, o destino dos noivos não se afigura nada
auspicioso. As personagens do triângulo amoroso embrionário consubstancia-
rão estas imagens de martírio no quinto quadro (‘The Bagnio’), onde a alusão
à iconografia cristã raia a blasfémia, ao aproximar as poses dos cônjuges da
deposição de Cristo e do sofrimento de sua mãe. Apesar da presença de uma
tapeçaria retratando o Julgamento de Salomão, neste ponto da série já os
espectadores / leitores perderam as esperanças de que estas crianças possam
ainda ser salvas por alguma potência superior.
Em vez de se debruçar sobre a cerimónia de casamento propriamente
dita, Hogarth escolhe para a segunda cena (‘The Tête à Tête’) o período

o outro, conduzem inevitavelmente o nosso olhar para o casal em questão, afastados literal e
figuradamente, mas tão presos quanto os seus animais.
Lendo Marriage A-La-Mode, de William Hogarth 155

posterior à lua-de-mel, em que a desarmonia se torna evidente: no pequeno-


almoço tardio, nas poses desajustadas dos noivos, na justaposição de quadros
de santos com uma tela de que só conseguimos ver um pé nu (porque o resto,
por ser atrevido de mais, está tapado por uma cortina), a sucessão de espelhos
numa clara alusão ao narcisismo dos donos da casa, a decoração incongruen-
te da lareira (incluindo um busto com o nariz partido, sugerindo a doença que
aflige o jovem),8 a agitação de um empregado devido às contas por pagar, a
espada quebrada (sugerindo um duelo e prefigurando aquele em que o futuro
Conde vai morrer), o lenço que o cão fareja (será que é o mesmo que aparece
na imagem seguinte – ‘The Inspection’ – a ser utilizado numa função não
muito higiénica?), e finalmente o leitmotiv da desordem, do caos iminente, da
aparência prestes a ser perturbada: a cadeira derrubada, revelando uma saída
intempestiva de alguém que não devia lá estar. A mesma imagem irá reapa-
recer no quinto quadro (‘The Bagnio’), junto dos emblemas do engano e da
luxúria (a máscara e as vestes blasfemas de freira e de padre usados pelos
amantes no baile de máscaras), e no último (‘The Lady’s Death’), em resultado
da fúria do cão esfomeado e / ou do desinteresse dos empregados face a um
patrão mesquinho e miserável.
A passagem da segunda para a terceira imagem, ‘The Inspection’, confi-
gura uma mudança abrupta de um ambiente requintado e brilhante (apesar
das inúmeras notas discordantes) para um cenário manifestamente sórdido,
onde os habitantes parecem ter interiorizado a aliança nada confortável entre
a perversidade sexual e a morte (simbolizada na ostentação de um símbolo
claramente fálico: o chifre de uma baleia do Árctico, o qual possuiria poderes
afrodisíacos). Pela primeira vez, Hogarth decide não povoar os seus quadros
com as obras de outros artistas, optando por emblemas fúnebres e os frutos
mais obscuros da chamada investigação científica setecentista. Entre múmias
vítimas de violência física, esqueletos atrevidos, sanguessugas e instrumentos
alegadamente terapêuticos, descobrimos o outro lado da vida do jovem
esposo. Pensa-se que a rapariga será a sua amante, já contaminada pela
‘doença francesa’ (como era conhecida a sífilis), tentando aliviar uma ferida
com um lenço e segurando uma caixa de medicamentos aparentemente
ineficazes, tal como o seu companheiro e a mulher ameaçadora que o ladeia,
provavelmente uma alcoviteira, já totalmente marcada pelos efeitos da sua

8 Significativamente, o nariz era um dos órgãos desfigurados pela sífilis, facto que originou a criação
na Londres setecentista de uma associação invulgar, ‘No Nose’d Club’, reunindo os doentes assim
marcados (Peakman 2004: 20).
156 Márcia Bessa Marques

ocupação. A multiplicação de elementos ilustrativos de memento mori anun-


cia a morte trágica das três personagens principais em locais totalmente
afastados da grandeza e da luminosidade da primeira imagem: o Conde num
estabelecimento de reputação duvidosa, em ‘The Bagnio’, o advogado na
forca e a sua amante na miserável casa paterna, em ‘The Lady’s Death’.
Através das obras de Hogarth, sobretudo no quarto quadro (‘The Toilette’),
conseguimos escutar o desempenho do cantor de ópera (provavelmente um
castrato, outro emblema de selvajaria supostamente executada em nome da
arte), os acordes do flautista, um dos convidados a sorver chocolate e outro
visivelmente deliciado com a interpretação musical, constituindo estas figuras
um grupo separado do resto, particularmente por estar encostado à parede
esquerda, onde está dependurado o quadro que inequivocamente alude à sua
orientação sexual: o rapto de Ganimedes por Júpiter em forma de águia. Na
secção seguinte, vemos um convidado aparentemente desajustado, a ressonar,
ao contrário da sua esposa, manifestamente encantada com o espectáculo
(mais outro casamento desastroso?), o empregado oferecendo bebidas e
Silvertongue sussurrando o convite para um baile de máscaras. Como Mark
Hallett refere: ‘even if it is impossible to know exactly what they are all saying
to each other, the spaces between them can easily be imagined as full of
sounds of their carefully modulated voices. Hogarth, it is clear, knew how to
provide good pictorial acoustics.’ (Hallett 2000: 60). Do mesmo modo, tornam-
-se ensurdecedores a ausência de conversa, os bocejos e os pensamentos
inexprimíveis do casal na segunda imagem, ‘The Tête à Tête’.
O espaço que o advogado Silvertongue foi ocupando progressivamente
ao longo dos meses do casamento é incontestavelmente testemunhado pela
exposição do seu retrato no quarto da Condessa, parecendo presidir aos
acontecimentos. Pelo contrário, o espaço conquistado pela filha entretanto
nascida torna-se manifestamente insuficiente, reduzindo-se a uma minúscula
argola para a dentição, esquecida na cadeira da mãe, o que dificilmente
consegue encobrir a ausência flagrante do retrato tradicional, comemorando
o nascimento de um herdeiro.
Não é então surpreendente a proliferação de quadros alusivos a temas
eróticos da iconografia clássica e cristã, colocados estrategicamente na
parede atrás dos dois amantes, como Io arrebatada por Júpiter em forma de
nuvem, aludindo à infidelidade que invade este quarto, um emblema repetido
nas hastes da estátua de Acteon (transformado em veado por Ártemis e
devorado pelos próprios cães devido à sua concupiscência), para que o
pequeno escravo aponta divertido e cúmplice, e a sedução de Lot pelas duas
filhas (que ele teria oferecido aos habitantes de Sodoma, para proteger dois
Lendo Marriage A-La-Mode, de William Hogarth 157

anjos, não fosse a intervenção divina). Desta forma, os quadros dentro do


quadro ultrapassam a mera função decorativa, tornando-se premonitórios:
‘objects that condition and shape, dominate and form the collector – inanimate
objects that perversely control human lives’ (Paulson 1992a: 268). Não só
servem de comentário à obra, como também podem apontar para aconteci-
mentos passados ou futuros, enquanto indícios visuais do discurso que
espectadores / leitores vão construindo.
O conjunto apresentado oferece a passagem perfeita para o quadro
seguinte, ‘The Bagnio’, que reflecte a degradação, a curta distância entre a
‘High Life’ dos consumidores destes quadros e a ‘Low Life’ dos clientes dos
antecessores dos modernos motéis. Como em muitas das suas outras séries de
quadros e gravuras, Hogarth surpreende as personagens de Marriage A-la-Mode
nos momentos de maior intensidade dramática. O amante, que parecia refina-
do e descuidado no quadro anterior (‘The Toilette’), na expectativa do baile e
da ceia, agora reduz-se a uma figura ridícula, em trajes menores, a fugir pela
janela, depois de ferir o seu rival. Assim, não nos é dado assistir ao baile de
máscaras (até porque a sua ilustração no biombo da quarta imagem – ‘The
Toilette’ – parece ser suficientemente fiel), mas às suas consequências, contras-
tando o brilho e a alegria da festa com a escuridão e a mesquinhez deste esta-
belecimento onde não se fazem perguntas aos hóspedes de curta duração. Do
mesmo modo, somos poupados à execução de Silvertongue, reduzida a uma
notícia de jornal na última imagem, mas não ao suicídio da sua amante, o que
nos permite ver a filha desta pela primeira vez, em ‘The Lady’s Death’. A presen-
ça desta criança consubstancia todas as marcas de doença que invadem a
série desde o início, sobretudo no primeiro momento (‘The Marriage Settlement’),
literalmente emoldurado pelos sinais do desregramento alimentar (indicado
pela gota do Conde, cujo pé aparece enfaixado) e sexual (na ominosa úlcera
no pescoço do noivo, que nunca mais nos é permitido ignorar, já que ele
aparece sempre de perfil). Os dois últimos ramos desta dinastia, condenada a
desaparecer, transmitiram à sua herdeira o estigma da enfermidade e da des-
figuração, corroborando a doutrina do Deus vingativo do Antigo Testamento:
‘que visita a iniquidade dos pais sobre os filhos, e sobre os filhos dos filhos,
até à terceira e à quarta geração’ (Êxodo 34.7). Neste contexto, torna-se
significativa a justificação para os matrimónios tradicionais fornecida pelo
autor de um manual de conduta (publicado em 1688, mas cuja popularidade
se traduz em dezassete edições até 1791). O marquês de Halifax considera
que as mulheres devem respeitar a instituição do casamento, mesmo que esta
lhes pareça injusta tendo em vista: ‘the Preservation of Families from any
Mixture which may bring a Blemish to them’ (Halifax 1688: 20).
158 Márcia Bessa Marques

A degenerescência que desfila perante o nosso olhar torna-se igualmente


topográfica, ao passar da zona ocidental da cidade (onde, desde o Grande
Incêndio de 1666, a aristocracia construíra as suas mansões ao estilo do
arquitecto veneziano Palladio, numa clara aplicação dos princípios arquitec-
tónicos da Roma Imperial) para a parte central (onde estavam instalados os
clubes, as tabernas, ‘coffee houses’ e estabelecimentos de banhos, como Turk’s
Head, onde os amantes se encontram no quinto quadro – ‘The Bagnio’) até
terminar na zona oriental,9 que, por seu turno, atraía os comerciantes, como
o pai da Condessa, de cuja casa se pode avistar a antiga London Bridge, em
‘The Lady’s Death’. A transição efectua-se igualmente da opulência, da
grandiosidade e da abundância da primeira cena, ‘The Marriage Settlement’
(não só perceptíveis no vestuário do Conde, mas também na decoração da
sala, mesmo que à custa de uma hipoteca e de um casamento de conve-
niência), para a sordidez, a avareza e a mesquinhez da casa do comerciante,
em ‘The Lady’s Death’. Estas reflectem-se no uniforme inadequado do empre-
gado, na voracidade do pai ao retirar o anel da filha moribunda, no desespero
de um cão esquelético ao devorar a carne mais barata do mercado, isto é, a
cabeça de porco, no desinteresse do médico ao abandonar a sala, emoldurado
pela porta aberta, e nos vulgares quadros ao estilo holandês (sendo patente a
indiferença dos dois companheiros de taberna e o alheamento de uma outra
figura masculina que nos vira as costas para satisfazer uma necessidade
fisiológica).
Nas casas particulares dos clientes de Hogarth e nas inúmeras lojas de
gravuras coevas, as imagens eram exibidas em duas filas horizontais, sendo
cada uma constituída por três cenas.

1 2 3
4 5 6

Na National Gallery, em Londres, onde os quadros originais estão em exibição,


os especialistas decidiram expô-los de uma forma peculiar, que praticamente
se assemelha a um gráfico, permitindo um movimento diacrónico.

9 Além disso, os ventos predominantes da capital empurravam a sujidade urbana de oeste para leste,
tornando esta parte da cidade menos desejável para as classes mais abastadas.
Lendo Marriage A-La-Mode, de William Hogarth 159

2 5

1 3 4 6

Este movimento inicia-se em baixo com ‘The Marriage Settlement’ (traduzindo


o início da queda e não a previsível ascensão), subindo em diagonal para ‘The
Tête à Tête’, (um momento de grande tensão dramática pelo que não expressa
ou não pode expressar), descendo em seguida, sempre em diagonal, para ‘The
Inspection’, colocado lado a lado com ‘The Toilette’ (favorecendo agora uma
leitura sincrónica, que se assemelha a um díptico da vida do casal e revela a
vida escondida por trás do bocejo da mulher e do cansaço do homem, num
efeito manifestamente cinematográfico). ‘The Bagnio’ surge em cima, equipa-
rado a ‘The Tête à Tête’ (isto é, a última vez que os dois aparecem juntos);
finalmente, The ‘Lady’s Death’ está colocado num nível inferior, no mesmo
plano do primeiro quadro (cujos paralelos já foram referidos), apoiando uma
leitura moralizante e moralista da passagem do Novo Testamento: ‘o salário
do pecado é a morte’ (Romanos 6.23).10
Este modo particular de exibição pode ser lido como um desejo de
evocação da teoria da beleza desenvolvida por Hogarth, baseada numa linha
serpenteante. Em The Analysis of Beauty (1753), o autor explicita estes
princípios, consubstanciados na exigência de variedade, de irregularidade e
de complexidade. A noção de que a linha assim idealizada acompanha a
maneira como o olhar ocidental viaja da esquerda para a direita, de baixo
para cima, parece desvanecer-se se pensarmos que as gravuras invertem a
composição e os acontecimentos e as personagens trocam subitamente de
lugar, alterando as sequências imaginadas pelos espectadores / leitores entre
imagens da série. Por exemplo, na primeira gravura, os noivos afastados
aparecem à direita, oferecendo a passagem perfeita para a segunda gravura,
onde são vistos à esquerda. Por outro lado, nos quadros, a transição da quarta

10 No último ano, a forma de exibição foi alterada, tendo sido adoptada uma linha horizontal, com
o primeiro quadro à esquerda e o último à direita, existindo uma nota explicativa geral dos dois
lados (uma vez que a sala tem duas entradas) e notas individuais à direita de cada imagem. Como
se pode constatar, também as formas de exibição seleccionadas reflectem modos específicos de
leitura da série.

1 2 3 4 5 6
160 Márcia Bessa Marques

imagem (‘The Toilette’) para a quinta (‘The Bagnio’) parece particularmente


apropriada, uma vez que o biombo com a ilustração de um baile de másca-
ras, à direita, colmata o hiato entre as duas cenas, oferecendo um desenlace
imprevisto.
Quer o nosso olhar deslize da esquerda para a direita ou se prenda em
cores ou pormenores apelativos, a nossa liberdade enquanto leitores deste
texto fica assegurada através da forma como podemos combinar as reprodu-
ções, usando técnicas narrativas de analepse ou prolepse, ou subvertendo a
ordem temporal original. Outros espectadores / leitores / artistas aproveitaram
essa liberdade, como Katherine Mansfield, em Marriage à la Mode (1922), e
Paula Rego, em After Hogarth (2000). Enquanto tempo não finito, o gerúndio
lendo denota uma acção incompleta e em desenvolvimento, pelo que conti-
nuará a leitura, esta e outras, verbais e / ou pictóricas.

Referências
Bindman, David (1981). Hogarth. London: Thames and Hudson; rept. 1998.
Craske, Matthew (2000). William Hogarth. London: Tate Gallery.
Halifax, Marquis of (George Saville) (1688). The Lady’s New Year’s Gift: or, Advice to
a Daughter, In Vivien Jones (Ed.) (1990), Women in the Eighteenth Century:
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Dois Rossettis – Christina e Dante Gabriel:
“Is She Transcribing from his Lips?”1

ANA ROSA GONÇALVES


(CEAUL-Centro de Estudos Anglísticos da Universidade de Lisboa /
Escola Secundária 3 Dra. Laura Ayres)

ISBN 978-972-8886-08-0 • A PALAVRA E A IMAGEM • CEAUL / ULICES 2007


T
he Girlhood of Mary Virgin (Figura I)2 e Ecce Ancilla Domini (Figura II)3
são os quadros para que a escritora Christina Rossetti (já com alguns
poemas publicados em edição privada) posa como modelo do irmão, o
poeta-pintor, Dante Gabriel Rossetti. Data o primeiro de 1849 e o segundo de
1850. Inscritos no movimento artístico do século XIX que ficou conhecido
como “the ‘Pre-Raphaelite’ Brotherhood”, The Girlhood of Mary Virgin e Ecce
Ancilla Domini deram a conhecer a mais nova dos Rossetti – Christina – sob
o olhar fraterno de Dante Gabriel: um dos mentores de uma confraria artística,
à qual a designação de «Brotherhood» atribuía um carácter exclusivamente
masculino.4 Se, enquanto musa do irmão mais velho, Christina parece figurar,

1 Título sugerido por um dos versos do poema “In an Artist’s Studio” (1856) de Christina Rossetti, no
qual ela se refere à actividade do irmão Dante Gabriel como poeta-pintor, e que constitui aqui
objecto de análise.
2 Figura extraída de Marsh 1988: 31.
3 Figura extraída de Marsh 1988: 33.
4 Carolyn Hares-Stryker explica, deste modo, o início do que ficou conhecido como “the ‘Pre-
Raphaelite’ Brotherhood”:
To differentiate themselves from the Royal Academy, Millais, Hunt and Rossetti
juxtaposed its august tradition with their own mocking levity. They believed that those
paintings most favoured by the Academy were awash in false sentimentality, contrived,
murky and trivial. (...) The term [‘Pre-Raphaelite’] pinpointed well their belief that it was
after the great Renaissance master Raphael that art had begun to stagnate. Their time had
come and a gathering of like-minded comrades began, something that Rossetti was
particularly keen on. They had named their new society, but now it needed members and
Rossetti, putting to a motion that the word Brotherhood be added to the original
designation of Pre-Raphaelite, oversaw the induction of four additional members in the
winter of 1848. They included Rossetti’s own brother, William Michael Rossetti (...) Thomas
Woolner (...) James Collinson (...) F. G. Stephens (...). Soon two others would become
closely associated with the Brotherhood – Christina Rossetti (...) and Ford Madox Brown (...).
They were never asked, however, to join the mystical seven, because for one thing Christina
could hardly be a ‘brother’ and, for another, because Rossetti liked the cabalistic quality of
the group seven and did not wish to extend the official membership further.
(Hares-Stryker 1997: 18-19)
Note-se que na obra aqui mencionada – An Anthology of Pre-Raphaelite Writings – Hares-
Stryker compila diversos escritos daquele grupo de artistas.
166 Ana Rosa Gonçalves

por meio da representação da Virgem Maria, o arquétipo de uma feminilidade


moralmente virtuosa, mas submissa e passiva, o mesmo não sucede no que
ela escreveu. Na verdade, a autora recusou os limites socioculturais impostos
para o sexo feminino na época dela. Ainda que, por ser mulher, nunca a admi-
tissem formalmente no que se designa por “the ‘Pre-Raphaelite’ Brotherhood”,
enquanto Rossetti, a reputação do irmão dentro daquele grupo de artistas
permitiu-lhe associar-se ao mesmo. É aqui objectivo questionar em que
medida Christina se terá efectivamente submetido à autoridade de Dante
Gabriel, como escritora, num espaço de acção cultural nitidamente contro-
lado por homens: o mercado vitoriano. Do objecto de análise, fazem parte
dois desenhos daquele pintor acerca da irmã, que integram a extensa corres-
pondência epistolar trocada entre ambos. Destinados a circularem no espaço
familiar apenas, estes desenhos são lidos em interacção com o poema “In an
Artist’s Studio” de Christina.
The Rossetti family was a remarkable group. All its members were
endowed with unusual intelligence, were equally at home with the
languages and literary traditions of both England and Italy, and were
united among themselves by close ties of affection and mutual
understanding. The talents and characteristics they shared were
combined with creative gifts of a high order.
(New Encyclopaedia Britannica, 1998: s.v. Rossetti)
De ascendência italiana, Christina e Dante Gabriel são talvez os membros
mais conhecidos da família culturalmente ilustre dos Rossetti.5 Se é verdade,
conforme nos comprova o excerto acima transcrito, que ambos tiveram igual
acesso às tradições literárias nas quais foram educados, acrescentar-se-ia
porém que, na forma de acederem ao mercado do século XIX, se distinguiram
um do outro inúmeras vezes. Podia Christina (e outras como ela) tentar resistir
ao paradigma denominador do feminino, mas num espaço cultural de inter-
venção masculina, que só muito lentamente se entreabria para as Vitorianas,
escrever anunciava ainda um desejo de ascensão antagónico à tradição de
representar a Mulher em casa, idealizando-a. Por muito que o debate público
acerca das desigualdades entre os sexos se tivesse ampliado, numa sociedade
definida em termos masculinos, «ser mulher» opunha-se a «ser homem» e,
como era ela a mais nova dos Rossetti, Christina estava determinada por um
modelo de actuação muito rígido: o da ideologia doméstica vitoriana.

5 Para um estudo mais aprofundado acerca da importância literária da família Rossetti, em


particular, de Dante Gabriel e Christina, ver Cary 1974, em geral.
Dois Rossettis – Christina e Dante Gabriel: “Is she transcribing from his lips?” 167

Insurgindo-se contra os deveres familiares que lhe eram moralmente impostos,


foi em vão que procurou ser admitida na confraria artística protagonizada por
Dante Gabriel. Na verdade, a figura da mulher-escritora colocava em causa o
estereótipo dominante de feminino, mesmo no âmbito de um movimento
estético considerado dissidente. Excluída de “the ‘Pre-Raphaelite’ Brotherhood”,
por ser mulher e uma temível rival, nem assim desistiu Christina de se dar a
conhecer no mercado literário vitoriano. Referindo-se ao começo da activi-
dade dela na poesia, conclui Oswald Doughty: “As a woman she was well
aware that deprivation in life might be one of the pressures that produced art.”
(Doughty 1949: 177). Com efeito, é a tensão dialéctica entre a identidade de
mulher e a de escritora que potencia, desde o início, o acto de Christina
Rossetti escrever.
Quando se examina o século XIX, os obstáculos erguidos em torno da
construção da autoria literária no feminino, por oposição à indissociabilidade
– quase inquestionável – entre o masculino e a escrita, revelam-se significati-
vos.6 De entre os Rossetti, Dante Gabriel sobressaía num duplo contexto: o
estatuto de homem fizera dele o mais prestigiado pela crítica e o único em
quem a família se projectava intelectualmente. Mas, se o início do percurso
literário de Christina se não identificava com o do irmão, tão-pouco podia
dele separar-se. Como as restrições e dificuldades colocadas à entrada das
Vitorianas no mercado literário eram muitas, a escritora decidiu valer-se do
sobrenome. Com o intuito de promover a aceitação do que escrevia, coube a
Christina usar a influência de Dante Gabriel junto das editoras. Daí em diante,
era o irmão mais velho quem assumia a função de seu mentor, tutelando-a.
Recorda-nos Jan Marsh, acerca da relação entre ambos: “He felt protective
towards her, perhaps newly conscious of her restricted choices.” (Marsh 1999:
48). Na perspectiva aqui veiculada, o auxílio literário de Rossetti parece
inevitável, pois dá resposta aos inúmeros limites enfrentados pelas mulheres-
escritoras durante o processo de publicação dos textos. Importa, contudo,
averiguar até que ponto Christina se mostraria vulnerável à autoridade dele.

6 É precisamente devido à tradicional hegemonia do masculino, enquanto sujeito da escrita, por


oposição ao feminino, quase sempre convertido em objecto de representação, que Virginia Woolf
implora a todas as escritoras, no final de A Room of One’s Own:
Therefore I ask you to write all kinds of books, hesitating at no subject however trivial
or however vast. (...) For I am by no means confining you to fiction. If you would please
me – and there are thousand like me – you would write books of travel, adventure, and
research and scholarship, and history and biography, and criticism and science.
(Woolf 1945: 107)
168 Ana Rosa Gonçalves

É ao imperativo cultural de a irmã compor sob tutela masculina que


Dante Gabriel parece aludir num desenho que ele lhe enviou em 1852 (Figura
III).7 A acompanhar este desenho existe uma carta, em cujo verso consta uma
longa explicação do mesmo:
On the opposite page is an attempt to record, though faintly, that
privileged period of your life during which you have sat at the feet of
one for whom the ages have been probably waiting. The cartoon has
that vagueness which attends all true poetry. On his countenance is a
calm serenity, unchangeable, unmistakeable. In yours I think I read
awe, mingled however with something of that noble pride which even
the companionship of greatness has been known to bestow. Are you
transcribing from his very lips the title-deeds of his immortality, or
rather perpetuating by a sister art the aspect of that brow where poetry
has set her throne? I know not. The expression of Shakespeare’s genial
features is also perhaps ambiguous, though doubtless not to him.
Westminster Abbey, I see, looms in the distance, though with rather an
airy character.
(Carta de Dante Gabriel a Christina, Agosto de 1852, Rossetti, W.M.
1908: 22)
Dante Gabriel identifica explicitamente a figura do desenho com a irmã
Christina, que invoca diversas vezes na segunda pessoa do singular. De
cabelo apanhado, com um vestido simples que lhe cobre o corpo todo, e
debruçada sobre papel, esta é por ele ajoelhada aos pés de Shakespeare. A
posição do corpo denota sujeição. Colocada estrategicamente no canto
inferior direito do desenho, Christina é submetida à genialidade de
Shakespeare e, por conseguinte, àquele que por se apoiar no seu busto ela
contempla talvez com igual reverência também: o próprio Dante Gabriel. O
ter-se elevado a si mesmo a um plano superior ao dela dá a medida de como
o masculino dominava a tradição literária considerada hegemónica. A inscri-
ção na base da estátua, que exorta Shakespeare a permanecer eternamente na
memória – “We ne’er shall look upon his like again” – justifica o temor da
jovem submissa. De rosto erguido e olhar fixo, dela transparece, no entanto,
uma certa nobreza orgulhosa, que o sobrenome Rossetti elucida talvez.
Reduzida a aprendiz, Christina poderá invocar, como exemplo, a grandeza do

7 Tanto o desenho, como o fragmento da carta que lhe é alusivo foram extraídos da extensa
correspondência privada entre Dante Gabriel e Christina (cf. Rossetti, W. M. 1908: 20-22).
Dois Rossettis – Christina e Dante Gabriel: “Is she transcribing from his lips?” 169

irmão, perpetuando-a no que ela vier a escrever. Na verdade, espera Dante


Gabriel que ela e as outras figuras femininas, por ele retratadas em gestos de
obediência, preservem a sua identidade de poeta-pintor.
Absorvida no acto de aprendizagem, Christina parece rabiscar algo. Eis
porque, na explicação do desenho, Dante Gabriel elabora uma pergunta, à
qual responde com alguma ironia, uma vez que foi ele quem incitou a mais
nova dos Rossetti a não prosseguir na arte de desenhar:
Are you transcribing from his very lips the title-deeds of his immortality,
or rather perpetuating by a sister art the aspect of that brow where
poetry has set her throne? I know not.
(ênfase nossa)
Apesar de simular incerteza, o artista indica a resposta à pergunta transcrita
no preciso momento em que a formula. É por meio da palavra, e não da ima-
gem, que a aprendiz Christina se submete hipoteticamente ao poder daqueles
para quem olha. Todavia, dos seus rivais, apenas um possui o poder de se
fazer literalmente ouvir. Shakespeare está impedido de proferir seja o que for
porque o imortaliza a estátua. Deduz-se, assim, que é o discurso do irmão que
ela regista, configurando o desenho tal gesto de transposição para a escrita
como prática feminina de vassalagem. O mesmo é dizer que a autoria literária
no feminino só é reconhecida, no espaço público, quando se inscreve numa
definição muito restrita de feminilidade. Conforme Linda H. Peterson conclui
acerca da parceria entre ambos: “(...) Rossetti was not without her sense of
what a woman artist might legitimately claim as her territory – and it was more
than Dante Gabriel wanted to allow.” (Peterson 1994: 217). Em última análise,
perante o olhar de Dante Gabriel, somente a tutela dele podia impedir que o
acto de Christina escrever fosse transgressor.
Retomando, uma vez mais, a pergunta da carta atrás citada – “Are you
transcribing from his very lips the title-deeds of his immortality (...)?” – a
escolha lexical de “transcribing”, por Dante Gabriel, poderá talvez entender-se,
no contexto quer do desenho, quer da explicação, como recusa de qualquer
autonomia ou afirmação da identidade da mulher-sujeito. Para confirmar esta
hipótese, considerem-se alguns significados do verbo “transcribe”, em The
New Shorter Oxford English Dictionary: “make a copy in writing, quote or cite
from a specified source”; “attribute or ascribe to another”; “copy or imitate a
person, reproduce” (1993, s.v. Transcribe). Qualquer uma das definições aqui
apresentadas atribui a outro a origem absoluta do que alguém diz ou escreve.
De Dante Gabriel a irmã podia aprender tudo, mas devia sobretudo imitá-lo,
reproduzindo-o, citando-o. Da mesma maneira que num plano sociocultural
a desigualdade das circunstâncias em que mulheres e homens vitorianos
170 Ana Rosa Gonçalves

escrevem os afasta, também aqui existe uma distinção significativa entre o que
os dois Rossettis fazem. Na perspectiva da ansiada sujeição de Christina ao
mestre ideal, a menos que ela repita o que ouve, a figura da irmã é dada como
destituída da capacidade de criar algo verdadeiramente seu. A única tarefa
que ele lhe concede – a do registo e subsequente reprodução do discurso
masculino – implica que, mesmo escrevendo, ela não possui nunca poder de
o contestar ou superar no espaço do mercado literário.
Coincidiria, porém, a verdadeira Christina com a figura feminina ideali-
zada do desenho? Por sua vez, ter-se-ia ela submetido às convenções e mode-
los da tradição literária masculina, reproduzindo-os? E, por que motivo
descreveu Dante Gabriel a irmã assim? Definindo-a através de um olhar
intelectualmente superior (logo, masculino), este mais não fez do que subtraí-
la a si própria. Dir-se-ia que naquela imagem de Mulher está implícita a
concepção da actividade literária feminina que foi autorizada, pelo para-
digma patriarcal, a Christina e a todas as outras Vitorianas como ela. Desde
que nas suas vozes se condensassem as normas e padrões estéticos instituí-
dos, era-lhes permitido escrever. Como John Berger refere a propósito das
diferenças culturalmente construídas entre os sexos:
(...) the social presence of woman is different in kind from that of a
man. A man’s presence is dependent upon the promise of power
which he embodies. If the promise is large and credible his presence
is striking. If it is small or incredible, he is found to have little presence.
(...) By contrast, a woman’s presence expresses her own attitude to
herself, and defines what can and cannot be done to her. Her presence
is manifest in her gestures, voice, opinions, expressions, clothes, chosen
surroundings, taste (...). A woman must continually watch herself. (...)
She has to survey everything she is and everything she does because
how she appears to others, and ultimately, how she appears to men is
of crucial importance for what is normally thought of as the success of
her life.
(Berger 1972: 45-46)
Deslocando a reflexão de Berger do contexto em que foi proferida para o
contexto do desenho aqui analisado, poder-se-á concluir que a construção
assimétrica das categorias de Homem e Mulher se reflecte na perspectiva
mediante a qual Dante Gabriel se dá a ver a ele próprio e à irmã. Também a
esfera de acção de Christina aparece condicionada por aquele de quem ela é
objecto de tutela literária. Note-se como a presença da figura feminina
cumpre unicamente o objectivo de o engrandecer. Mesmo que ela se aplique
muito como aprendiz, a mais nova dos Rossetti desempenha uma função
muito específica: a que serve à realização da glória de Dante Gabriel. A capa-
Dois Rossettis – Christina e Dante Gabriel: “Is she transcribing from his lips?” 171

cidade de escrever que lhe é atribuída liga-se directamente à sua condição de


mulher, daí que, tutelando-a, o irmão pretendesse perscrutar tudo o que ela
produzia. Relativamente ao modo como Dante Gabriel tentou influenciar
Christina, relembra Alison Chapman:
In his revisions and suggested revisions, D. G. Rossetti attempts to mold
Christina Rossetti’s literary persona and poetry to his requirements in
an effort to redefine her poetic form, style, meter, and subject matter.
(Chapman 1997: 142)
Ainda que a autoridade literária do irmão mais velho fosse inquestionável, a
escritora recusou-a repetidas vezes. Se muitas vezes ela se lhe aproximou, ou
tentou, de alguma forma, igualá-lo foi apenas porque, num mercado de pro-
dução e de consumo controlado por homens, não era reconhecida reputação
artística a quem não dominasse bem as técnicas de composição e convenções
literárias pelas quais se regia a crítica vitoriana.
Mencionou-se, até aqui, a forma como no desenho Dante Gabriel Rossetti
representou a submissão da irmã Christina a ele, que é o grande mestre. De
sobrolho carregado, ela fixa-o, atenta, com o olhar. Só que configurá-la assim
absorvida nos ensinamentos dele, não significa que, de um outro plano, esse
olhar continue a ser de reverência. E se, em vez de se partir do centro do
desenho e de cima para baixo, se deslocasse a análise, em primeiro lugar,
para o plano inferior onde se situa Christina?
Diz-nos Michel Foucault, em The Order of Things, que sujeito e objecto
podem inverter infinitamente as suas posições:
(...) no gaze is stable, or rather, in the neutral furrow of the gaze piercing
at a right angle through the canvas, subject and object, the spectator
and model reverse their roles to the infinity (...).
(Foucault 1973: 5)
De notar que, inversamente ao que Dante Gabriel teria convencionado,
também ele pode assumir a posição de objecto e a irmã de sujeito no contexto
do que ele desenhou. A verdade é que esta parece já resistir-lhe por meio do
olhar. Centrado nele próprio só, é a figura feminina quem contempla o artista
e não o contrário. Porque, no desenho, Dante Gabriel se vira narcisicamente
para si – numa pose meditativa, acompanha com um olhar vago o gesto da
mão que segura a pena – o que a irmã regista deixa, por conseguinte, de estar
no campo visual dele. Neste sentido, nada permite assegurar que existe uma
correspondência efectiva entre o que a figura do mestre dita, oralmente, e a
da aprendiz faz por escrito. Em última instância, no que ela escreve, pode
igualmente Christina fazê-lo emergir como objecto do discurso que ele
172 Ana Rosa Gonçalves

próprio lhe impôs. Por muito que Dante Gabriel exercesse sobre a irmã o
poder e alcance que a tradição masculina lhe outorgava, a autoria literária no
feminino era potencialmente subversora. Quanto ao acto de a escritora lhe ir
resistindo por meio do que escreve – a ele, Dante Gabriel, e a muitos outros
homens-poetas e editores – relembram Andrew e Catherine Belsey: “Christina
Rossetti’s story, the record of her resistance to the limitations imposed on
women, and on women as writers illuminates the nature of oppression and
resistances to oppression.” (Belsey, Belsey 1988: 49).
Decidida a disputar a autoridade literária do mais ilustre dos Rossetti,
Christina haveria de escrever sozinha, opondo-se ao que ele lhe fora tutelan-
do, mas sem nunca se insurgir abertamente. De forma muito subtil, e levando-o
sempre a acreditar que aceitava as correcções dele, usa o estatuto de mais
nova para continuar a assistir de perto ao trabalho do poeta-pintor. É a irmã
que Dante Gabriel também incluiu, num desenho onde ele se referiu a si
próprio enquanto artista. Com o título de “Artist’s Studio” (Figura IV),8 Christina
aparece de pé, ligeiramente debruçada sobre a poltrona onde está sentado o
irmão. Com as mãos apoiadas no encosto da cadeira – configurando, impli-
citamente, tal gesto o apoio dela àquele que ali se estende – olha atenta para
a tela onde está retratada uma figura de mulher. Uma vez mais, aqui a sua
presença confirma apenas a grandeza do irmão: com as pernas esticadas, na
parte do cavalete onde se colocam os pincéis e as tintas, ele contempla-se a si
próprio, como artista, quase em êxtase. Para Dante Gabriel, à irmã resta apenas
observar, em silêncio, o que ele pintou, convertendo-a em sua cúmplice.
Christina interveio, contudo. E fê-lo ousadamente, em 1856, com o
poema “In an Artist’s Studio”, no qual interpela Dante Gabriel Rossetti da
seguinte forma:
One face looks out from all his canvasses,
One selfsame figure sits or walks or leans;
We found her hidden just behind those screens,
That mirror gave back all her loveliness.
A queen in opal or in ruby dress,
A nameless girl in freshest summer greens,
A saint, an angel; __ every canvass means
The same one meaning, neither more nor less.
He feeds upon her face by day and night,

8 Figura extraída de Fredeman 1991: 56.


Dois Rossettis – Christina e Dante Gabriel: “Is she transcribing from his lips?” 173

And she with true kind eyes looks back on him


Fair as the moon and joyful as the light:
Not wan with waiting, not with sorrow dim;
Not as she is, but was when hope shone bright;
Not as she is, but as she fills his dream.
(Rossetti, C. 1990: 264)
Apesar de ser uma só – “One face looks” – a figura feminina retratada
condensa o olhar do artista em relação a todas as outras: “queen”, “nameless
girl”, “saint” ou “angel”. Diversas vezes enunciado, o desejo, quase vampírico,
do pintor pela figura que ele incessantemente retrata – “One selfsame figure”
– significa que, de certa forma, qualquer mulher susceptível de merecer o
olhar dele, poderia acabar imortalizada da mesma maneira: “Not as she is, but
as she fills his dream” (itálicos nossos). A ênfase colocada na aprovação
masculina mostra como o pintor anula a identidade e individualidade de
todas aquelas que posam para ele. Na verdade, a descrição do modo como a
figura masculina – explicitamente identificada com Dante Gabriel por Christina
– se apropria do feminino indica que, para o artista, a beleza do corpo se
transforma num factor de indiferenciação entre as mulheres. Porque, na
função de musa, a Mulher é dada em termos ideais – “Fair as the moon and
joyful as the light” – nenhuma outra a conseguirá igualar. A imagem da musa
é, porém, desconstruída por Christina: “he feeds upon her face”. Assim idea-
lizada, a Mulher existe apenas enquanto objecto do desejo masculino.
Foi aqui objectivo tentar perceber como, de entre os Rossetti, Dante
Gabriel tentou moldar o começo do percurso de Christina no mercado
literário vitoriano. Da análise delineada, conclui-se que a mesma Christina
que se dera a ver como musa do irmão, (Figuras I e II), que fora alvo da troça
dele, enquanto mulher-escritora, (Figura III), ou convertida em sua admiradora
(Figura IV), se insurgiu contra ele. Ainda que não abdicasse nunca do prestígio
intelectual e artístico do irmão para entrar no mercado daquele tempo,
Christina fez emergir Dante Gabriel como objecto do que ela própria escrevia
no poema “In an Artist’s Studio”. Cerca de catorze anos depois, também este
último Rossetti se há-de referir a ele próprio, enquanto poeta-pintor, no
poema “Portrait” (1870):


Her face is made her shrine. Let all men note
That in all years (O Love, thy gift is this!)
They that would look on her must come to me.
(Rossetti, D. G. 2003: 132)
174 Ana Rosa Gonçalves

Na perspectiva de que se constrói o poema, a mulher-musa cumpre apenas o


objectivo de devolver a grandeza ao artista, sublimando-o de modo a que ele
permaneça eternamente na memória colectiva. O olhar que lhe é devolvido
pela irmã nunca coincide, porém, com o de Dante Gabriel. Destes dois
Rossettis, unicamente Christina sublima a mulher-sujeito.

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With some Supplementary Letters and Appendices, Edited and with Preface by
William Michael Rossetti, New York: Charles Scribner’s Sons.
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A Delicada Resistência de uma Porcelana ou
Desta Matéria São Feitos os Romances.
Atonement de Ian McEwan

LUÍSA MARIA RODRIGUES FLORA


(CEAUL-Centro de Estudos Anglísticos da Universidade de Lisboa /
Faculdade de Letras - Universidade de Lisboa)

ISBN 978-972-8886-08-0 • A PALAVRA E A IMAGEM • CEAUL / ULICES 2007


A
o que tudo indica graças ao empenho de dois alquimistas, surge, no
início do século XVIII, pela primeira vez na Europa, em Meissen, a por-
celana. O encanto que ainda hoje mantém decorre da sua indubitável
qualidade, fundada na resistência à passagem do tempo e na delicadeza do tra-
balho manual que sucessivas gerações de artesãos lhe têm devotado, garan-
tindo que cada peça de porcelana de Meissen é única, logo insubstituível.
Ao que muito indica graças à ousadia de vários romancistas, surge,
porventura no início do século XVIII, pela primeira vez na Europa, em parte
incerta, o romance. A sedução que ainda hoje exerce decorre da sua índole
única, defendido da passagem do tempo pelo desvelo com que sucessivas
gerações de artífices vêm garantindo a sua característica abertura à incorpo-
ração plural dos mais distintos registos, e pela resistência que o género tem
demonstrado perante os que tentam depreciá-lo.
Uma porcelana de Meissen (quem sabe discreta homenagem ao derradeiro
romance de Bruce Chatwin)1 adquire em Atonement uma função narrativa
primordial. É um vaso de Meissen que, ao quebrar-se, suscita o pretexto para
o reconhecimento por Cecilia e Robbie da paixão que os transfigura, para a
ilusão que conduzirá Briony ao seu crime e, afinal, para toda a situação
narrativa a partir da qual se irá moldar este romance.
Uma situação comum da banalidade quotidiana, o não acontecimento
que o quebrar de um vaso habitualmente constitui, adquire no romance, como
adiante veremos, uma multíplice capacidade de irradiação e um delicado
valor simbólico. Da oficina da banalidade quotidiana tanto pode surgir o
deslumbramento epifânico quanto irromper o horror. Em ambos os casos a
realidade transcende a expectativa. E, perante um romance de 2001, bom será
lembrar como o recurso ao quotidiano enquanto pretexto e instrumento de

1 Utz (1988).
180 Luísa Maria Rodrigues Flora

interpelação e indagação da vivência humana em sociedade é, desde o início,


parte integrante da nossa memória romanesca.

Em 11 de Setembro de 2001, Ian McEwan, entrevistado em Oxford para


The Observer a propósito de Atonement, prestes a ser publicado, declarava:
[Novels are not] about teaching people how to live but about showing
the possibility of what it is like to be someone else. It is the basis of all
sympathy, empathy and compassion. Other people are as alive as you
are. Cruelty is a failure of imagination. (Kellaway §11)
Estas palavras evocavam de modo breve toda uma concepção da arte
romanesca e constituíam, desde logo, uma reflexão bastante apropriada sobre
Atonement. Contudo, pronunciadas como tinham sido uma ou duas horas
antes do ataque às Torres Gémeas, bruscamente adquiriram uma maior
densidade que nos permite reencontrá-las, transfiguradas, em 15 de Setembro
de 2001. Ian McEwan escrevia em The Guardian a respeito dos ataques
terroristas que fora convidado a comentar:
Waking before dawn, going about our business during the day,
we fantasize ourselves into the events. What if it was me? This is the
nature of empathy, to think oneself into the minds of others. These are
the mechanics of compassion: you are under the bedclothes, unable
to sleep, and you are crouching in the brushed-steel lavatory at the rear
of the plane, whispering a final message to your loved one. There is
only one thing to say, and you say it. All else is pointless. You have very
little time before some holy fool, who believes in his place in eternity,
kicks in the door, slaps your head and orders you back to your seat.
23C. Here is your seat belt. There is the magazine you were reading
before it all began.
The banality of these details might overwhelm you. (…) If the
hijackers had been able to imagine themselves into the thoughts and
feelings of the passengers, they would have been unable to proceed. It
is hard to be cruel once you permit yourself to enter the mind of your
victim. Imagining what it is like to be someone other than yourself is
at the core of our humanity. (McEwan, §13-15)

No contexto deste brutal início do século XXI e da leitura de um romance


no qual a protagonista, Briony Tallis, também romancista, também autora, em
tempos se perguntara ‘was everyone else really as alive as she was? For exam-
ple, did her sister really matter to herself, was she as valuable to herself as
Briony was? Was being Cecilia just as vivid an affair as being Briony?’
(McEwan, Atonement 36), os comentários de McEwan antes citados vêm
A Delicada Resistência de uma Porcelana ou 181

conferir à arte romanesca um peso, uma responsabilidade que mais irreflecti-


damente atribuiríamos aos rigores vitorianos do que a quaisquer astúcias
nossas contemporâneas.
Consideremos duas destas declarações de McEwan. ‘Imagining what it is
like to be someone else other than yourself is at the core of our humanity’ e
‘[Novels are] about showing what it is like to be someone else’. Registemos
ainda a declaração da banalidade dos pormenores invocados. O vínculo esta-
belecido por McEwan entre estas afirmações compromete a sua arte com a
tradição do humanismo liberal, tão dominante ao longo dos séculos na ficção
de língua inglesa e, na aparência, tão provocadora durante pelo menos uma
boa parte do século XX. Estaremos porventura em melhores condições para
apreciar o trabalho de Ian McEwan e para entender o seu actual contributo
para a arte do romance se recordarmos aquilo que George Levine, no sempre
admirável The Realistic Imagination (1981), caracterizou como a luta intrín-
seca a qualquer esforço ‘realista’. Esta é, segundo Levine,
the struggle to avoid the inevitable conventionality of language in
pursuit of the unattainable unmediated reality. Realism, as a literary
method, can in these terms be defined as a self-conscious effort, usually
in the name of some moral enterprise of truth telling and extending the
limits of human sympathy, to make literature appear to be describing
directly not some other language but reality itself (whatever that may
be taken to be); in this effort the writer must self-contradictorily dismiss
previous conventions of representation while, in effect, establishing
new ones. (Levine 8).
Atonement corresponde a uma nova interpretação desta mesma luta, na
qual a incorporação de múltiplas convenções anteriores as homenageia e põe
em causa, problematizando no cerne do próprio acto ficcional a sua legitimi-
dade, sem desistir de transfigurar o faz-de-conta em instrumento de interpela-
ção e indagação da condição humana. Ciente da delicadeza que o uso da
linguagem impõe, o escritor está também seguro da resistência dos riquíssi-
mos legados que recebeu. Em Atonement não é apenas um período histórico
e literário que se revisita, como foi frequentemente o caso desde que, em
1969, John Fowles publicou o magnífico The French Lieutenant’s Woman. Ian
McEwan abre o século XXI para o romance inglês.2 Se este romance oferece

2 “Atonement (…) is less about a novelist harking back to the consoling uncertainties of the past than
it is about creatively extending and hauling a defining part of the British literary tradition into the
21st century.” (Dyer 8). Vide também citação Hermione Lee a p. 13 deste ensaio.
182 Luísa Maria Rodrigues Flora

uma pluralidade talvez infinita de abordagens, os limites de tempo aqui dispo-


nível admitem apenas uma parcial e breve apresentação.

Toda a obra de Ian McEwan tem vindo a promover (e perdoem-me usar


palavras minhas quando, em Maio de 2002, na Universidade de Lisboa
o acolhi) ‘a serious dissection of contemporary morals’. Tal indagação é
efectuada através de um registo quase sempre discreto, seco e austero que
estabelece incisivo confronto com o desassossego e a violência que lhe
atravessam os textos. Os pesadelos públicos e privados foram trespassando a
experiência do século XX. A escrita de McEwan vem, cada vez mais, cons-
truindo edifícios romanescos que frequentemente procedem a uma autópsia
da vivência contemporânea no acto mesmo de conduzir um renovado exer-
cício de auto-observação da arte ficcional. Não se veja neste exercício uma
prática narcísica contraditória com a filiação anteriormente atribuída e a
tradição humanista do romance. Tal prática pode, e deve, ser reconhecida
desde o início do género.3
As observações de Ian McEwan em 2001 lembram a entrevista que, em
1984, o ainda jovem escritor fizera em Paris ao já consagrado Milan Kundera.
Apresentando Kundera, McEwan caracterizava-o então de um modo que,
quanto a mim, é hoje cada vez mais adequado ao seu próprio trabalho:
[his] achievement has been to bring both private life and political life
into one (…) framework and to demonstrate how both take their forms
from the same source of human inadequacies. (An Interview, 22)
Tal reflexão parecia conforme à obra que Kundera prosseguia no exílio e
às circunstâncias de uma arte que recusava anular a complexidade do
momento histórico em que ia sendo produzida, assumindo uma pluralidade
de legados estéticos aos quais, até hoje, o escritor se mantém dedicado.4
Contudo, os principais motivos para invocar agora a entrevista de 1984 e, em
seguida, convocar o seu ensaio de 2005, procedem da adequação que encon-
tro entre alguns dos comentários de Kundera e a actividade de qualquer

3 Como também Levine, entre outros, sugere. Atente-se, por exemplo, nas seguintes palavras:
“Much of the power of nineteenth-century realist fiction derives from the integrity of its pursuit of
possibilities that would paradoxically deprive it of its authority and sever it from its responsibility
to reality and audience.” (Levine 9)
4 Cf. A Cortina, 2005. Nova caminhada por considerações antes desenvolvidas sobretudo em A Arte
do Romance (1986) e Os Testamentos Traídos (1993).
A Delicada Resistência de uma Porcelana ou 183

romancista; no caso, Briony Tallis, a personagem que é, de diversos modos,


responsável por Atonement. Ou o romancista Ian McEwan.
each of us, consciously or unconsciously, rewrites our own history. We
are constantly rewriting our own biographies, constantly bringing our
own sense – the sense we want – to events. We are selecting and
shaping – picking out the things that reassure and flatter us, while
deleting anything that might possibly detract. (…) People always see
the political and the personal as different worlds, as if each had its own
logic, its own rules. But the very horrors that take place on the big
stage of politics resemble, strangely but insistently, the small horrors of
our private life. (An Interview, 32-3)

A presente comparação entre as afirmações de Kundera e aspectos


centrais ao romance de McEwan não pretende sobrevalorizar as afinidades
entre os dois escritores ou iludir às distâncias que os separam. Basta referir o
enorme elenco das romancistas que reencontramos como presenças tutelares
em Atonement (Jane Austen, George Eliot, Virginia Woolf, Vera Britain,
Elizabeth Bowen, Rosamond Lehmann, entre outras) e o sistemático esque-
cimento por Kundera, ao longo dos ensaios sobre a arte do romance, de
qualquer valorização da escrita feita por mulheres, para assinalar diferenças
muito pouco insignificantes. Contudo, a prevalência de um modelo patriarcal
na construção de uma memória colectiva e no revisitar de uma tradição
literária por Kundera não constitui objectivo deste trabalho. Afirmando partir
apenas da sua prática como um romancista sem quaisquer ambições teóricas,
ele promove um conjunto de reflexões sobre (um)a linhagem do romance.
No ensaio A Cortina (2005), o escritor torna a Rabelais e Cervantes para
identificar uma tradição que terá em Fielding (em particular no nosso conhe-
cido Tom Jones, 1749) um primeiro pai-fundador ‘de uma nova província
literária’ bem ciente do que era escrever um romance.

Fielding tenta definir essa arte, quer dizer, tenta determinar a sua razão
de ser e delimitar o domínio da realidade que o romance tem para
iluminar, para explorar e para discernir: “o alimento que nós propo-
mos aqui ao nosso leitor não é mais do que a natureza humana.” (…)
naquela altura (…) ninguém teria elevado o romance à categoria de
uma reflexão acerca do homem enquanto tal. (…) o espanto diante
daquilo que é “inexplicável nesta estranha criatura que é o homem”
é, para Fielding, o primeiro incitamento para escrever um romance, a
razão para o inventar. (…) Ao inventar o seu romance, o romancista
descobre um aspecto até essa altura desconhecido, escondido, da
“natureza humana”. (…) Para Fielding, o romance é definido (…) pela
184 Luísa Maria Rodrigues Flora

sua razão de ser e pela extensão da realidade que ele tem para
“descobrir”. A sua forma (…) releva de uma liberdade que ninguém
poderá limitar e cuja evolução será uma perpétua surpresa. (Kundera
14-5)5
Esta indagação de um território a desbravar que o novo género promove
é muito frequente em Kundera. Também McEwan comenta em 1999: ‘all
novels (…) have the quality of an investigation, and the investigation changes
as the material changes.’ (Moss §8). Interpelar a condição humana (que é
também a sua circunstância, que não existe fora da história), interrogar o acto
de viver é, também para McEwan, interpelar o próprio acto de escrever ficção.
As ‘humanas inadequações’ que McEwan descobria, em 1984, no cerne da arte
de Kundera adquirem em Atonement uma angustiante densidade e, também
neste texto, a forma é uma perpétua surpresa. Prosseguindo no reconhe-
cimento de uma linhagem para o romance, Kundera atribui um papel decisivo
a Flaubert e à sua incorporação na arte romanesca da banalidade quotidiana,6
para em seguida incluir Tolstói e o modo como inova, ao antecipar Joyce no
uso do monólogo interior. Não cabe neste ensaio examinar o longo caminho
revisitado por Kundera mas apenas sugerir que uma boa parte desta linhagem
romanesca (que ele traz até aos nossos dias e repetidamente valoriza) é, em
grande medida, partilhada por McEwan. E talvez a nenhum dos seus anterio-
res oito romances se aproprie, tanto quanto a Atonement, a pergunta retórica
que Kundera faz no ensaio já referido:
não será que a arte do romance, com o seu sentido da relatividade das
verdades humanas, exige que a opinião do autor permaneça escon-
dida e que qualquer reflexão deva ficar reservada unicamente para o
leitor? (Kundera, 62)

A prática ficcional de Ian McEwan ocupou-se, desde os primeiros textos


publicados, da crueldade, da perversidade e do sofrimento que se escondem
por detrás da vida quotidiana. Fá-lo através de um estilo escorreito e polido
cuja transparência ilude quem o toma à letra, quem não lhe desvenda a
plurivocidade da linguagem. Porém talvez nunca como em Atonement esta
característica da sua escrita tenha sido levada até tão fundas consequências.

5 cf. ‘The Provision then which we have here made is no other than HUMAN NATURE.’, Fielding,
Tom Jones (Book I, Chapter I, 25), e também Preface to Joseph Andrews, 1742.
6 ‘Só o romance seria capaz de descobrir o imenso e misterioso poder do fútil.’ (Kundera, 25)
A Delicada Resistência de uma Porcelana ou 185

No texto da contracapa, bem resumido, o leitor de Atonement encontra


o cerne da situação narrativa que molda todo o romance.
On the hottest day of the summer of 1935, thirteenth-year-old Briony
Tallis sees her sister Cecilia strip off her clothes and plunge into the
fountain in the garden of their country house. Watching her is Robbie
Turner, her childhood friend who, like Cecilia, has recently come
down from Cambridge.
By the end of that day the lives of all three will have been changed for
ever. Robbie and Cecilia will have crossed a boundary they had not
even imagined at the start, and will have become victims of the
younger girl’s imagination. Briony will have witnessed mysteries, and
committed a crime for which she will spend the rest of her life trying
to atone.

O incidente banal em que Robbie e Cecilia, disputando entre si quem vai


encher de água o vaso de Meissen, acabam por quebrar dois pedacinhos da
porcelana, assume, como no início referi, um significado determinante na
construção da narrativa. A valiosa porcelana de Meissen, oferta do povo que ele
ajudara a salvar a um jovem tenente Tallis que não iria sobreviver aos últimos
dias da 1ª Guerra, não expressa apenas uma memória acarinhada pelo irmão,
ou o heroísmo a que, em breve, toda uma outra geração teria de sujeitar-se e
que o texto reinventa de modo raro. A partir do incidente toda a vida das três
personagens principais, Briony, Robbie e Cecilia, se transfigura, desencadean-
do uma sucessão de acontecimentos que acaba por afectar todo o romance,
ou melhor, que acaba por ser o romance.
Acompanhemos brevemente um excerto da cena junto à fonte. A pers-
pectiva narrativa principal é aqui, como ao longo de quase todo o capítulo 2
da 1ª parte, de Cecilia.

He looked into the water, then he looked back at her, and simply
shook his head as he raised his hand to cover his mouth. By this
gesture he assumed full responsibility, but, at that moment, she hated
him for the inadequacy of the response. He glanced towards the basin
and sighed. For a moment he thought she was about to step backwards
onto the vase, and he raised his hand and pointed (…). She kicked off
her sandals, unbuttoned her blouse and removed it, unfastened her
skirt and stepped out of it and went to the basin wall. He stood with
his hands on his hips and stared as she climbed into the water in her
underwear. Denying his help, any possibility of making amends, was
his punishment. (…) She held her breath, and sank, leaving her hair
fanned out across the surface. Drowning herself would be his
punishment. (Atonement 30)
186 Luísa Maria Rodrigues Flora

No 3º capítulo, é privilegiado o ponto de vista de Briony que observa o


incidente à distância, sem ser observada. Trata-se de uma adolescente com
pretensões a escritora, muito inventiva, com muito tempo de ócio e isola-
mento. Incapaz de entender aquilo que, acidentalmente, testemunha, Briony
pressente no entanto a tensão sexual que se instalara entre a irmã e o amigo
e procura encaixar aquilo que vê nos limites daquilo que conhece. De
imediato começa a moldar uma história.
A proposal of marriage. Briony would not have been surprised. She
herself had written a tale in which a humble woodcutter saved a
princess from drowning and ended by marrying her. What was present-
ed here fitted well. (…) What was less comprehensible, however, was
how Robbie imperiously raised his hand now, as though issuing a
command which Cecilia dared not disobey. It was extraordinary that she
was unable to resist him. (…) What strange power did he have over her.
Blackmail? Threats? Briony raised two hands to her face and stepped
back a little way from the window. She should shut her eyes, she
thought, and spare herself the sight of her sister’s shame. But that was
impossible, because there were further surprises. Cecilia, mercifully still
in her underwear, was climbing into the pond, was standing waist deep
in the water, was pinching her nose – and then she was gone. (…) The
sequence was illogical – the drowning scene, followed by a rescue,
should have preceded the marriage proposal. (Atonement 38-9)
A casa da ficção tem de facto muitas janelas. Desde o princípio do
romance, ficara claro que a Briony não basta ser espectadora. Filha mais
jovem de uma daquelas famílias disfuncionais que atravessam o romance
inglês dos anos 30 e 40, e à qual se adequa o comentário de Orwell a
propósito da classe dirigente do seu país – ‘A family with the wrong members
in control.’ (401), Briony identifica nas inconsistências que descobre na cena
um momento de passagem, ‘some kind of revelation occurred.‘ (Atonement
41). Ainda não sabe interpretar o comportamento da irmã ou o de Robbie mas
sente que algo mudou.
(…) Briony had her first, weak intimation that for her now it could no
longer be fairy-tale castles and princesses, but the strangeness of the
here and now, of what passed between people, the ordinary people
she knew (…) if she had not stood when she did, the scene would still
have happened, for it was not about her at all. Only chance had
brought her to the window. (…) (Atonement 39, 40)
A suspeita que então se instala na futura romancista, a suspeita de que a
realidade ultrapassa as convenções que a ficção pode descobrir para a
interpretar, não inibe Briony de, em miniatura, imaginar o que virá afinal a
A Delicada Resistência de uma Porcelana ou 187

constituir a forma matriz de todo o romance.


(…) she could write a scene like the one by the fountain and (…)
include a hidden observer like herself. (…) She could write the scene
three times over, from three points of view; her excitement was in the
prospect of freedom, of being delivered from the cumbrous struggle
between good and bad, heroes and villains. None of these three was
bad, nor were they particularly good. She need not judge. There did
not have to be a moral. She need only show separate minds, as alive
as her own, struggling with the idea that other minds were equally
alive. It wasn’t only wickedness and scheming that made people
unhappy, it was confusion and misunderstanding; above all, it was the
failure to grasp the simple truth that other people are as real as you.
And only in a story could you enter these different minds and show
how they had an equal value. (Atonement 40)
A claridade dos objectivos e as possibilidades ficcionais agora somente
pressentidas não impedem Briony de, umas horas mais tarde, interpretar e
julgar, erradamente, as aparências. ‘She trapped herself, she marched into the
labyrinth of her own construction’ (Atonement 170). A consistência aparente
de uma narrativa onde tudo encaixa ilude Briony e, nas circunstâncias propí-
cias que o fim do dia acaba por trazer, Briony comete o seu crime ao utilizar
toda a sua persuasão para acusar Robbie da agressão sexual de que fora
vítima a prima de quinze anos. ‘(…) the inspector was careful not to oppress
the young girl with probing questions, and within this sensitively created space
she was able to build and shape her narrative in her own words and establish
the key facts.’ (Atonement 180)
O crime de Briony Tallis pertence a um mundo artificiosamente construí-
do para satisfazer a sua noção imatura de justiça e de harmonia – a violência
da sua imaginação manipula aquilo que aconteceu para violar a realidade,
manipulando-a para erguer o edifício artístico que acabará por constituir todo
o romance. Ainda incapaz de aceitar a relatividade das verdades humanas,
Briony começa por ver o mundo em função daquilo que julga servir a sua
escrita. Na obsessão de em tudo procurar e descobrir material que possa
explorar enquanto escritora, tece uma intriga e não se detém perante quais-
quer dúvidas. A realidade da vida humana impõe-lhe um conhecimento outro
do mundo e de si mesma. A viagem de auto-descoberta que este romance
percorre constitui a ficção de Briony em demanda de uma verdade inacessível
mas que, ao fim e ao cabo, somente através da ficção se pode alcançar. ‘The
truth had become as ghostly as invention.’ (Atonement 41)
Todo o labor de reparação e de expiação que leva Briony a dedicar a
quase totalidade da vida a sucessivas reescritas da sua obra principal impõe,
188 Luísa Maria Rodrigues Flora

justamente, um constante seleccionar e dar forma. Leal até ao fim ao ‘control-


ling demon’ (Atonement 5) que a acompanhara desde o início do romance e
da sua carreira como romancista, Briony aprende a conhecer, reconhecer e
aceitar os pequenos horrores da sua existência privada à medida que vai
aceitando que a vida é bem mais ampla e complexa do que qualquer ficção
pode ambicionar transmitir. A realidade da vida humana impõe-lhe um
conhecimento outro do mundo e de si mesma. A viagem de auto-descoberta
que este romance percorre constitui a ficção de Briony em demanda de uma
verdade inacessível mas que, ao fim e ao cabo, somente através da ficção (se)
pode alcançar. A delicada resistência da forma que escolhe permite-lhe dar a
ver múltiplas perspectivas e situações, apresentar as figuras que povoam o seu
universo ficcional de modo caleidoscópico, construir um puzzle de situações
que, desde o princípio, joga com prolepses e analepses, avança, recua, avança
de novo, constrói narrativas paralelas no tempo e propõe finais alternativos
para a (cada vez menos) idealizada história de amor de Cecilia e Robbie (veja-
-se, por exemplo, as cenas da Parte 2 na fuga de Dunquerque.)
Da adolescente que via o mundo em função daquilo que supunha ser útil
à sua arte e recusava qualquer sugestão de desordem por não ser favorável aos
enredos que inventava (‘Her wish for a harmonious, organised world denied
her the reckless possibilities of wrongdoing. Mayhem and destruction were too
chaotic for her tastes, and she did not have it in her to be cruel.’ Atonement 5),
o leitor irá, em retrospectiva, identificar as marcas de uma escrita que forçara
a realidade a encaixar-se de forma não apenas artificial mas criminosa.
O romance vai-se apresentando à leitura através de diversas personagens,
numa desmultiplicação por vezes caleidoscópica que recorre a técnicas,
convenções e marcas intertextuais recuperadas do passado do género.
Privilegiando o discurso indirecto livre, vai incorporar registos tão diferentes
como as cartas de Robbie e Cecilia, a descrição pormenorizada de um
cenário idílico ou a evocação brutal de um cenário de guerra. Manobra com
destreza a auto-ironia de Briony e as suas preocupações como romancista
através de comentários que só em retrospectiva, em releitura, revelam toda a
sua vertente metatextual.
No interior de uma ficção quase perfeitamente circular, finalmente enqua-
drada numa estrutura que obedece ainda a antigos preceitos de harmonia
estética, Atonement acabará por acolher a perturbação das pequenas vidas
das suas personagens e por revelar o caos e os horrores do palco da 2ª Guerra
Mundial. Umas e outros se articulam no romance de modo enfim consonante.
A escrita do romance como arte polifónica que privilegia o mostrar de
uma pluralidade de pontos de vista, a vocação deste género literário para
A Delicada Resistência de uma Porcelana ou 189

promover um exercício imaginativo que será central à capacidade de nos colo-


carmos na pele dos outros, o recurso à banalidade do quotidiano como instru-
mento de interpelação da vivência humana em sociedade, todas estas carac-
terísticas integram a tradição romanesca ocidental desde o seu início e todas
elas têm sido frequentemente reconhecidas. As qualidades agora enunciadas
fazem parte de um amplo pacto que, com muito engenho, alguns sobressaltos
e mal-entendidos, constitui o legado dominante da ficção romanesca.
A ortodoxia que tem vindo, sob diversos semblantes, a privilegiar o expe-
rimentalismo e a desvalorizar o realismo como método literário ilude o fundo
do problema e é, pelo menos em autores como McEwan, uma falsa questão,
uma não-questão. Livre para utilizar estratégias e técnicas narrativas recupe-
radas de tradições diversas, mesclando legados dessa ficção europeia que o
fascina desde o início da carreira com a estima que lhe permite saudar, não
raro de modo paródico, figuras incontornáveis da tradição romanesca mais
especificamente inglesa, McEwan convoca em Atonement múltiplos contribu-
tos duma tradição imensa e plural. Ao fazê-lo ultrapassa, e muito, aquilo que
Hermione Lee referiu na recensão a que agora apenas aludimos.
‘All through, historical layers of English fiction are invoked – and
rewritten. Jane Austen’s decorums turn to black farce. Forster’s novels
of social misunderstanding – the attack on poor Leonard Bast, Adela
Quested’s false charge of rape – are ironically echoed. (…) Atonement
asks what the English novel of the twentieth-first century has inherited,
and what it can do now.’ (Lee 16)
A vida nunca é susceptível de ser encerrada, cristalizada, numa qualquer
narrativa nem mesmo, ou porventura nem sobretudo, quando se arquitecta
uma estrutura bem organizada, coerente. A força destruidora da ilusão de
Briony é também a energia que permite erguer o edifício ficcional como se de
um edifício de vida se tratasse e que nos permite, através desse processo,
colocarmo-nos no lugar dos outros. Aprender a escrita, no caso de McEwan
como no de Briony, é, ainda e sempre aprender a conhecer-se e aprender a
conhecer o mundo.
Como recorda Raymond Tallis no seu insolente, provocador e polémico
In Defense of Realism (1988):
In summary, to defend realism does not necessarily imply membership
of the arrière garde (…). Nor does it mean that one sees the job of the
late twentieth-century novelist to be to re-write the nineteenth-century
novel; to write in the 1980s as if one were Fontane or Zola or George
Eliot or Galdos; to revive the Flaubertian or the Dickensian world
picture. It is entirely possible that modern realism may lead to the
190 Luísa Maria Rodrigues Flora

abandonment of the narrative modes, characters and themes that


nineteenth-century realists regarded as central. The task of letting
reality into fiction will always demand a questioning attitude to the
language and assumptions of one’s own life and of the world one
knows and will require the author to be as experimental as any of the
more obtrusively experimental anti-realists. (Tallis, 197)
Na sua delicada resistência, quer a porcelana de Meissen quer o romance
perduram.

Referências
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Friend Mr. Abraham Adams and An Apology for the Life of Mrs. Shamela
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–––. Tom Jones. The authoritative text, contemporary reactions, criticism. Second ed.
Ed. Sheridan Baker. New York: Norton, 1995 (1973).
Kellaway, Kate. “At Home with his Worries”. The Observer. 16 Sept. 2001. <http://
observer.guardian.co.uk/review/story/0,6903,552417,00.html> 27 Sept.06.
Kundera, Milan. A Arte do Romance. Trad. Luísa Feijó e Maria João Delgado. Lisboa:
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–––. Os Testamentos Traídos. Trad. Miguel Serras Pereira. Porto: Asa, 1994 (1993).
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Lee, Hermione. “If your memories serve you well…”. The Observer Review. 23 Sept.
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Levine, George. The Realistic Imagination: English Fiction from Frankenstein to Lady
Chatterley. Chicago: The University of Chicago Press, 1981.
McEwan, Ian. “An Interview with Milan Kundera”. Trans. Ian Patterson. Granta. 1984.
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–––. “Only love and then oblivion: Love was all they had to set against their
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<http://books.guardian.co.uk/print/0,4257871-99939,00.html> 27 Sept.06.
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A Delicada Resistência de uma Porcelana ou 191

Moss, Stephen. “Forget about the plot, find a quiet place to think and buy an A4
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<http://books.guardian.co.uk/print/0,,3944494-99930,00.html> 27 Sept.06.
Orwell, George. The Lion and the Unicorn: Socialism and English Genius (19 February
1941). The Complete Works of George Orwell, Ed. Peter Davison assisted by Ian
Angus and Sheila Davison. Vol.12. London: Secker & Warburg, 1998. 391-434.
Tallis, Raymond. In Defence of Realism. London: Edward Arnold, 1988.
“The Word that Says More than 1000 images”

LANDEG WHITE
(Universidade Aberta de Lisboa)

ISBN 978-972-8886-08-0 • A PALAVRA E A IMAGEM • CEAUL / ULICES 2007


W
hat I want to discuss today is not based on a piece of academic
investigation but on my own experience of writing and publishing
poetry. I’ve had, and still have, an academic career, which I value.
But I’m also aware that, whatever the merits of my academic writings, all my
best work these days, in terms of thought and feeling, is expressed in poetry.
When a topic is proposed to me, my first thought is, ‘What does my poetry say
about this?’ Whether this is a good thing or a bad thing is not a matter my
poetry tells me anything about, and I admit it may be debateable. But when
the title of this Ciclo was first mentioned to me by Professora Alcinda Pinheiro
de Sousa, I knew immediately what I want to talk about, and gave her my own
title spontaneously.
Of course, ‘The word that says more than 1000 images’ is deliberately
provocative. I’m not for one moment denying there are images that say more
than 1000 words, images of such power that, to speak only of photo jour-
nalism, they have changed the course of the world. But we live in an age that
worships images, in a manner amply illustrated by the stock phrase I am
parodying, and too little attention is paid to just how limited and limiting
images can be. In certain respects, that have been important in my own career,
images fail.
To set out why, I need to say a little about myself. I was born in south
Wales but left there just after my third birthday. My father was a minister of
religion in the Baptist denomination, and he kept moving between churches
following what they called the Call. So my childhood was spent first on the
Wirral peninsula in Cheshire, then in Rutherglen near Glasgow, then in
Birkenhead on Merseyside, and finally in Boreham Wood in Hertfordshire,
each move involving a new home, new school, new sets of friends and so on.
When I graduated from Liverpool University, my first job in 1964 was at the
Trinidad campus of the University of the West Indies. From there I moved to
the University of Malawi, from where I was deported in 1970, then to Fourah
Bay College in the University of Sierra Leone, Africa’s oldest degree-giving
institution, then to the University of Zambia and finally, after a brief spell at
196 Landeg White

the University of Kent at Canterbury, to the University of York where I spent


fourteen years. I moved to Portugal with my family in 1994, and now live in
Carapinheira, near Mafra and teach at the Universidade Aberta.
These, then, are the places where I’ve lived, worked, fell in love, raised
my sons, fought my battles including one of great importance, and inevitably,
therefore, these are the places I’ve written about, both in poetry and in other
forms including scholarly work. But I write only in English and my audience,
such as it is, is in the English-speaking world. Most of my smattering of readers
have never been to the West Indies or Africa or spent much time in Portugal.
I, as writer, stand between them and my subject matter, and I would like you
to reflect just a moment on the significance of this.
There are some writers, such as Jane Austen or Eça de Queiroz, who seem
so close to the world of their characters, and the characters in turn so close to
the world of their readers, that they seem as it were to operate in a closed
circle. It’s the modern reader feels a little outside, but such is the magic of
Austen’s or Eça’s style, there’s little difficulty in gaining entry. Jane Austen’s
characters, for instance, talk a great deal about books they have been reading
– Pope and Cowper, Johnson, Scott and Byron. If, say, in Persuasion, one of
them mentioned she had been reading Sense and Sensibility or Pride and
Prejudice, we wouldn’t be unduly surprised. Similarly in Os Maias, if mention
was made of O Crime de Padre Amaro, we might feel Eça was showing off a
little, but it’s the sort of book characters like Ega or Carlos would be likely to
read (with some adjustment to the chronology).
Compare their situation with that of with the English poet John Clare.
Clare was born in 1793 in the village of Helpston in Northamptonshire into a
peasant family, being under his mother’s influence the only child in the village
able to read and write. When he began writing poetry in imitation of Cowper
and Goldsmith, he was quickly marketed by John Taylor, also Keats’s publisher,
as ‘the peasant poet’. But he found himself writing about people and places in
rural Northamptonshire for a middle-class audience in London, and the
tension between his subject matter and his readers broke him. He wanted to
write about loss, about the enclosure system and agricultural depression, the
depopulation of the countryside while the few remaining peasants were
forced to become underpaid labourers on land they had formerly farmed. But
his audience wanted poems about happy peasants living in cottages with roses
round the door, and anything else smacked of Jacobinism. So Clare retreated
voluntarily to his asylum, where he wrote and wrote for the rest of his life. It
was only in the 1960s that the huge body of work he produced was finally
available in scholarly editions, and his status as a major poet of the late
“The Word that Says More than 1000 images” 197

Romantic period was affirmed.1 It’s fair to note he had other sources of
personal distress, but the unbridgeable gap between his themes and his
readers was the prime reason for his choice of silence.
The Leeds-born poet Tony Harrison illustrates something similar. Born
into a working-class family, his father a baker, he won scholarships to Leeds
Grammar school and Oxford University, reading Classics. When he published
his first book of poetry, he showed a copy to his mother who, as he says,
turning the pages distastefully and wincing at some of the language,
commented ‘we didn’t bring you up to write mucky books’. Harrison has
always honoured his family and the class he was born in, but the gap was
always there, and in poems like ‘V’ has become a central theme.
For writers in English from former British colonies, this predicament is
even more acute. V.S. Naipaul began his career by writing about Trinidadians
for an audience in Britain. His situation was doubly complicated in that he
was of Indian origin and, until he went to India, always felt more Indian than
West Indian. Most of his life has been spent in Britain (he is too ‘British’ for
American readers), but he has always seemed far more of a Brahmin than an
Oxford man. Few of the characters he writes about would ever read novels,
and he cannot avoid being the interpreter of one group of people to another,
his audience – lacking any other touchstone – having to trust the integrity of
his narrative skills.
To compare great things with small, this is essentially my own situation,
writing about subjects that are here for an audience that is over there. This has
many ramifications, involving the tactics needed to gain the trust of one’s
readers, and among them is my topic, the subject of this presentation on ‘the
word that says more than a thousand images’. The point I want to emphasise
is essentially very simple; it is that images work best within cultures. They
don’t easily cross cultural boundaries, a culture perhaps being the particular
sphere where images resonate without requiring further explanation. Once an
image crosses a cultural boundary, however, you need words, often a awful lot
of them, to explain what’s going on.
Let me set you a challenge. Can you think of any image that is absolutely
universal, that is understood in the same way across all boundaries of race,

1 Definitively in the editions by E. Robinson and G. Summerfield of The Later Poems of John Clare
(Manchester, 1964), John Clare: the Shepherd’s Calendar (Oxford, 1964), and Selected Poems and
Prose of John Clare (Oxford, 1966). A bizarre consequence is this history, aided by equally bizarre
laws, is that Robinson claims copyright in Clare’s works.
198 Landeg White

culture and creed? I’ve been trying to answer this question for a couple of
years now, and so far have failed. The first I came up with was the image of a
mother nursing a baby. After all, babies are born in the same way in all parts
of the world, and despite bottle-feeding and cleavages and bra burning and so
on, everyone still knows what a woman’s breasts are really for. Leaving aside
its Christian implications (Madonna and the Holy Child), isn’t the image of
Mother-with-baby the ultimate image of human love and weakness,
recognisable everywhere without distinction? I’m afraid, the answer is no.
Throughout southern Africa, for example, the definitive image of maternal
tenderness is of a mother with a baby on her back and a hoe in her right hand,
working to support her family. In Mozambique in 1975, on murals every-
where, this was modified to the silhouette of a woman with a baby on her
back, a hoe in one hand and a Kalashnikov in the other. Of course, women
may be seen at any time suckling their babies, but the image that appeals is
not of a woman with the leisure to do this, while someone else is perhaps
working for her, but of the woman ready to produce food. I have at home a
rather lovely batik of an African woman with a child at breast. But it was
painted by an English artist called Phyllis McDowall, our close neighbour in
Lusaka. My European friends admire it; my African friends, even those used to
Christian art, are a little embarrassed. This is not an image to draw attention
to. And if we move north into the Muslim world of north Africa or the Middle
East, the image is completely taboo, both because it is an image and because
no women should expose her in such a manner to male gaze.
Next, I thought of the sun. ‘Look on the rising sun’, said Blake, ‘There
God does live / And gives His light and gives His heat away’. Isn’t some such
feeling, whatever gods may be invoked, recognised universally? We all
welcome the sun, banishing night and cold with the birth of a new day. Once
again, though, words became necessary to mediate meaning. In Blake’s poem,
the mother and child (again!) are sitting in the shade of a tree, deliberately
avoiding the sun’s heat, and it is this fact that supplies the mother with the
central metaphor of her lesson to her son – that his black skin enables him
better to bear the beams of God’s love. It’s not an argument that works in
northern Europe where (to change the song) we ‘leave our troubles on the
doorstep’ and just direct our feet ‘to the sunny side of the street’.
I could give other examples of this hitherto frustrated search, but I want
instead to illustrate my contention about ‘the word that says more than a
thousand images’ by discussing one of my own poems in which this theme is
prominent. When I first came to Portugal, I lived for a while in Alcabideche,
in the Conselho de Cascais, and I became fascinated by the figure of Abu
“The Word that Says More than 1000 images” 199

Zeide Mohamede Ibne Mucana, the Arab poet who lived there in the eleventh
century and who is al-Qabdaq’s first named inhabitant. There’s only a
smattering of his poetry available in English translation, but what there is
evokes a profoundly sympathetic figure, and certainly no fundamentalist
ayatollah. Here’s A.J. Arberry, for example, translating a poem called “Dawn”:
Pour the wine, and quickly, ere
Sounds the solemn call to prayer.2
What fascinated me about Mucana was to reflect on how different
Alcabideche was in his day. Geographically, for example, it lay on the
northern border of a polity that extended across the Straits of Gibraltar and as
far south as the Senegal River. (Watching those recent television pictures of
boat loads of immigrants setting out from the estuary of the Senegal to try to
make it to Europe, I reflected this would have been a normal journey in the
eleventh century). For Mucana, it was from the north the threats came, for
people he would have called Kaffirs, or unbelievers, those barbarian Christians
living beyond Coimbra. How did he think of the climate, the rotation of the
seasons? We are so used to the pattern of spring, summer, autumn and winter,
yet living in Alcabideche in the early 1990s, what I was seeing was a dry
season extending from May to October, a short rainy season, followed by the
verão do San Martinho, and then further rains until April. People’s activities
followed this pattern, going out with their hoes in October to plant their
legumes and cabbages, followed by a second planting season in February, and
fixing their houses and getting married in July and August – in short, an Africa
division of the year.
So what, then, did something like the swallows’ departure signal to
Mucana? In English literature, it is one of the most profoundly evocative
images, signaling the end of summer and the slow decline to darkness and
cold. Presumably, for him, they signaled the end of the dry season. Or those
crocuses that spring up everywhere on roadside embankments round
Alcabideche, are they spring or autumn crocuses, or do we need another
language to describe them, connecting them with the impending rains? I think
you take my point. For me, as a poet writing in English, images of swallows
and crocuses send one kind of signal. To explore what they might mean in
another culture takes an imaginative leap only to be expressed in words.

2 A.J. Arberry, Moorish Poetry: a Translation of The Pennants, an anthology compiled in 1243 by the
Andalusian Ibn Sa’id (Cambridge University Press, 1953), p. 47.
200 Landeg White

In the poem that follows, the introduction and the first part are
translated from the French of Henri Peres.3 Aby Bakr al-Muzaffar, Prince of
Badajoz, died in 1068.

October’s Sickle Moon4


(for Abu Zeide Mohamede Ibne Mucana)
(The pull of the soil was always very strong for the Andalusian poets who, for
the most part, were of country origin ... Such was the case of Ibne Mucana
al-Isbuni. Having lived at Seville at the court of the Abbadides, then at Grenada
at the court of Zirides, he knew the inanities of the courtier’s life and relinquish-
ing the bogus fame of the royal salons he returned to his village of Alcabi-
deche, close by Sintra, to end his life cultivating his field. ‘I saw him’ said one
of his fellow countrymen who recounted to Ibne Bassam his encounter with
the old poet, now deaf, his sickle in his hand. ‘I approached him and when I
had taken him by the hand he made me sit down to look at the field ... I asked
him to recite some poetry and he improvised.’)

1.
‘Dwellers at al-Qabdaq, husband well your seeds
whether of onions or pumpkins.
A man of purpose needs a windmill turning
with the clouds, not with water.
Al-Qabdaq doesn’t produce, even in a good year,
more than twenty sacks of corn.
Any more than that, the wild pigs come down
from the forest in regular armies.
She is meagre with anything good or useful,
just like me, as you know, I have a poor ear.
I abandoned the kings in their finery, I refused
to attend their processions and parted from them.
Here you find me at al-Qabdaq, harvesting thorns
with my sharp and agile sickle.
If someone said, ‘Is it worth this trouble?’

3 Henri Peres, La Poésie Andalouse, en Arabe Classique, au Xie Siècle (Paris, 1953), pp. 200-201.
4 The first part of the poem appeared in The View from the Stockade (Dangaroo Press. 1981), then
both parts in South (CEMAR, F. da Foz, 1999) and, more accessibly in Where the Angolans are
Playing Football: Selected and New Poetry (Parthian Books, 2003).
“The Word that Says More than 1000 images” 201

you’d answer, ‘The noble man’s ensign is freedom’.


Abu Bakr al-Muzaffar’s love and good deeds were my guide
so that I left for a garden in springtime.’

2.
We meet the old deaf poet with a sickle, crofting
The northern border of a country whose south
Is the River Senegal. He has turned his back on
Kings in their finery, comparing men of purpose
With windmills, circling with the clouds, not
Water – though we may be sure these rains, after
The scorched weeks of house-repairs and weddings,
This season of the pumpkin and onion seeds he
Celebrates in his poem, when olives ripen and lamplike
Oranges burnish the quick dusk at the Call to Prayers,
We may be sure October’s crocuses are a sign.

He lives when the Straits open on nowhere, perilous


To sailors pitched west in the inland sea but
No border. After the drought, October’s rains.
Then the winds blow from Guinea and heat returns.
For him, this is Morocco and ordinary. The world
Is neither Europe nor Africa. These slopes of heather
And copper bracken, these drifting wine-coloured
Leaves as the swallows gather on whatever in his
World are telephone wires, they speak of the rains.
Then the golden windfall oranges tumble among
Daffodils, signalling harvest and another season

Building families. He has two fears: the wild boars


From Sintra mountain, foraging through his corn
In packs, and Portugal, the kaffir north. Rightly,
For we came and took purchase. Today, after
Autumn’s virginal crocuses and the swallows’ flight
South, our chestnuts blaze every colour of Fall.
We have baptised his seasons (Por São Martinho,
Prova teu vinho), and ceased believing. Our cliffs
Bristle with immigration patrols. His stone windmills
Are chic retirement homes for the circling rich.
202 Landeg White

Yet dawn brings walls of morning glory, houses


Shining at jigsaw angles, the oliveira’s feather-
Light windmill, the church on the mound where
Water, which explains all, still springs from the rock.
All day our houses soak up sun, surrendering
Colour, storing heat in a stunned precision of light
And shade. Over-exposed, even the windmill falters.
Beyond everything, the Atlantic’s razor blade.
Our dusks are green wine. In the windmill’s spinning
Penumbra, olive trees smoulder. Houses blaze
Separate textures. The dry-stone cabbage allotments

Glow like skylights, where we encounter the old


Poet extemporising in strict metre his satires
On the wretched soil of his birthplace. He has
Abandoned processing with kings. He has brought
To this onion patch Aristotle and Galen, turning
At each line’s end to complete the couplet.
He husbands seeds. He grinds with the wind,
Spinning the cog-wheeled poetry of his freedom
In this all-man’s-land, neither Europe nor Africa.
Tonight, as October’s sickle moon sprints
Through marbled rain clouds, his windmills sigh.
Resumo em português
A palavra que diz mais do que 1000 imagens

O título desta comunicação é provocatório. Não nego que haja imagens


de tal modo poderosas que provocaram alterações profundas no mundo.
Vivemos numa época que idolatra as imagens, sem sequer se preocupar em
ver como elas podem ser limitadas e limitantes. A verdade é que, em certos
aspectos, as imagens não resultam.
Há escritores, como Jane Austen ou Eça de Queiroz, que parecem estar
tão perto do mundo das suas personagens, e as suas personagens tão perto do
mundo dos seus leitores, que as imagens mais parecem funcionar em circuito
fechado. Comparemo-las então com o que se passa com John Clare, um poeta
inglês nascido no seio de uma família do meio rural, a única criança a saber
ler e escrever na aldeia onde vivia. Quando Clare começou a produzir poesia,
deu consigo a escrever sobre pessoas e locais em Northamptonshire para um
público leitor da classe média londrina. O seu intento era escrever sobre os
prejuízos, o sistema de cercas e a depressão na agricultura, mas o público
leitor queria poemas que falassem da felicidade da vida campestre, de casas
com trepadeiras de rosas, pois tudo o que fosse diferente cheirava-lhe a jaco-
binismo. Então, Clare resolveu refugiar-se na solidão, e aí viveu e escreveu a
vida toda, sem nada publicar.
Tony Harrison, um poeta natural de Leeds, ilustra algo de semelhante.
Oriundo da classe trabalhadora, ganhou bolsas que lhe permitiram frequentar,
tanto a escola secundária como a universidade, em Oxford, onde cursou
estudos clássicos. Tendo mostrado à mãe um exemplar do seu primeiro livro,
ouviu dela o comentário: “Não te educámos para vires a escrever livros sórdi-
dos”. Temos ainda o caso de V. S. Naipaul, que se estreou a escrever sobre a
vida em Trinidad para um público britânico, situação duplamente compli-
cada, pois ele sempre se sentiu mais indiano do que natural das Antilhas.
204 Landeg White

Poucas são as suas personagens que lêem romances, e ele não consegue
deixar de ser o interprépete entre as pessoas dos dois lados.
A questão que quero aqui sublinhar é o facto de as imagens funcionarem
melhor no interior das suas próprias culturas. Não lhes é fácil atravessar as
fronteiras culturais, podendo talvez definir-se uma cultura como sendo aquele
determinado mundo onde as imagens falam por si, sem precisarem de expli-
cação. Contudo, quando uma imagem atravessa uma fronteira cultural, temos
de nos socorrer de palavras, às vezes até de muitas, para explicar o que
queremos dizer.
Haverá alguma imagem que seja entendida do mesmo modo por raças,
culturas e credos diferentes? Tomemos como exemplo uma mãe amamen-
tando um bébé. Não será esta imagem da ‘Mãe e seu filho’ a imagem universal
do amor humano e da fragilidade, que todos identificam sem distinções? A
reposta é: “Não”.
Em toda as regiões do sul do continente africano, a imagem por
excelência da ternura maternal é dada por uma mãe transportando uma
criança às costas e um sacho na mão direita – não por uma mãe que dá
calmamente de mamar ao filho enquanto outros trabalham, mas uma mãe
que trabalha para alimentar a sua família. Se formos mais para norte e
entrarmos no mundo muçulmano da África do Norte e do Médio Oriente, a
imagem é tabú, não só como imagem, mas porque nenhuma mulher se pode
assim expor aos olhares masculinos.
Consideremos o sol. “Olhai o sol nascente / Aí habita Deus / Que nos dá
a Sua luz e o Seu calor”, diz Blake. Não será tal sentimento, quaisquer que
sejam os deuses invocados, universalmente identificado? A verdade é que é
preciso de novo recorrer a palavras como mediadoras do sentido. No poema
de Blake, a mãe e a criança estão sentadas à sombra, protegidas do calor do
sol, mas no norte da Europa (num outro poema),”dirigimos os nossos passos...
para o lado soalheiro da rua”.
Há alguns anos, deixei-me fascinar por Abu Zeide Mohamede Ibne
Mucana, poeta árabe do século XI que viveu em Alcabideche, o primeiro
habitante conhecido pelo nome em al-Qabdaq. Quão diferente era
Alcabidche no seu tempo! Geograficamente, situava-se na fronteira norte de
um estado que se estendia para sul até ao rio Senegal. Para Mucana, a ameaça
vinha do norte, daqueles cristãos bárbaros que viviam para lá de Coimba.
Que ideia tinha ele do clima, da rotação das estações? Nós estamos habitua-
dos à sucessão da primavera, verão, outono e inverno, mas Alcabideche é
caracterizada por uma estação seca, que vai de Maio a Outubro, uma breve
estação de chuvas, seguida pelo “verão de S. Martinho”, e mais chuvas até
Resumo em português 205

Abril. As pessoas pautavam as suas actividades por este ritmo: semeavam hor-
taliças e couves em Outubro; faziam um segunda semeadura em Fevereiro;
em Julho e Agosto arranjavam as casas e casavam-se – em resumo, dividiam
o ano à maneira africana.
Que significado tem para Mucana o sinal a que as andorinhas obedecem
para emigrarem? Na literatura inglesa, esta é uma das imagens mais ricas para
evocar o fim do verão e a chegada das noites escuras e do frio. Presumi-
velmente, para ele, tal imagem assinalava o fim da estação seca. Ou então,
aquelas flores de açafrão que nascem por todo o lado nos taludes em redor
de Alcabideche, serão elas flores de primavera ou de outono, ou precisamos
de as descrever, associando-as ao avizinhar-se das chuvas? Para um poeta de
língua inglesa, as imagens de andorinhas e do açafão enviam um determinado
sinal, mas para perceber até ao fundo o significado que elas podem ter numa
outra cultura, é preciso uma certa agilidade de imaginação, que só as palavras
conseguem exprimir.
No poema que se segue, a introdução e a primeira parte foram traduzi-
dos a partir de uma versão francesa de Henri Peres1. Aby Bark al-Muzaffar,
Príncipe de Badajoz, morreu em 1068.

1 Henri Peres, La Poésie Andalouse, en Arabe Classique, au Xe Siècle (Paris, 1953), pp. 200-2001
Estratégias de Exibição. Frida Kahlo em Lisboa

ANA DANIELA COELHO


(Universidade de Lisboa)

TERESA DE ATAÍDE MALAFAIA


(CEAUL-Centro de Estudos Anglísticos da Universidade de Lisboa /
Faculdade de Letras - Universidade de Lisboa)

ISBN 978-972-8886-08-0 • A PALAVRA E A IMAGEM • CEAUL / ULICES 2007


C
onviver com os Vitorianos habituou-nos a considerar as diversas
estratégias de exibição seleccionadas para exporem os objectos que
consideravam arte ou troféus do império. O levantamento de registos
da Royal Academy ou dos Museus de South Kensington ilustram o cuidado na
forma como então se exibia e muitas das exposições exemplificam vários
modos de olhar os outros (Mitchell 2002: 86), nomeadamente as representa-
ções dos povos colonizados que funcionavam como símbolos da cultura
imperialista.1
A investigação na British Library, em Março de 2006, sobre as brochuras
e os catálogos de algumas exposições realizadas durante a segunda metade
do século XIX e princípios do século XX permitiu avaliar os modos distintos
como os curadores organizavam as colecções a serem expostas. Não obstante
reconhecermos, em muitos casos, o reflexo da respectiva autoridade, admiti-
mos que, ao serem visitadas, as exposições podem corresponder a espaços de
contestação, ou, pelo menos, de questionação do poder implícito, na medida
em que neles convivem ideologias e representações diversas. Aí se vê, tanto
o poder de seleccionar para exibir e/ou catalogar, como de representar o
outro, tornando “visíveis histórias anteriormente invisíveis”, tal como Tony
Bennett afirmou a propósito do British Museum e do Victoria and Albert
Museum e das políticas de inclusão e de exclusão determinadas pelas
relações de poder inerentes ao acto de exibir (Bennett 1995).
Se tínhamos, na época vitoriana, o olhar britânico/europeu sobre o outro,
procurando o exótico, a visita à exposição de Frida Kahlo em viagem pela
Europa também nos recordou, através da forma como foi exibida em Lisboa
(de 24 de Fevereiro a 21 de Maio de 2006), estratégias de exibição próximas
das habitualmente atribuídas aos Vitorianos.

1 Cf. “(…) Imperialism means the practice, theory, and the attitudes of a dominating metropolitan
centre ruling a distant territory.” (…) “Colonialism, which is almost always a consequence of
imperialism, is the implanting of settlements on a distant territory.” (Said 1993: 8).
210 Ana Daniela Coelho / Teresa de Ataíde Malafaia

Installation implies interpretation, for in the extreme sense, display is


distortion. As soon as a specimen passes through the door of a museum
and is placed on exhibition it enters a foreign environment and embarks
on a new function. The curator assumes the role of chaperone to this
specimen, introducing a new-comer to a changed sphere and to an
unknown circle of acquaintance. (Thomas 1940: 24).

Efectivamente, museus, galerias de arte e exposições não podem ser ava-


liados como locais neutros, verdadeiros receptáculos onde estão depositados
objectos. Complementarmente, no domínio das estratégias curatoriais, assisti-
mos já há alguns anos ao aumento da vertente transnacional, promovendo-se
a dimensão itinerante (Deliss 1996: 285), na qual a experiência da transcultu-
ralidade está frequentemente implícita. Neste enquadramento de índole
teórica, assistimos, nos últimos tempos, ao aparecimento de novos discursos
sobre os modos como museus e galerias exibem as obras de arte, começando
pela própria divulgação nos media e nos respectivos sites oficiais, segundo
pudemos observar no site do Centro Cultural de Belém, em Exposições Tem-
porárias – FRIDA KAHLO 1907-1954. Vida e Obra, comissariada por Josefina
Garciá Hernandez, Museu Dolores Olmedo, México e apoiada pela Casa da
América Latina e pela Embaixada do México.2 Ainda que, na maior parte dos
suportes de divulgação,3 estivesse mencionado que, depois da Tate Modern
(Londres) e da Fundación Caixa Galicia (Santiago de Compostela), era a vez
de Lisboa receber “a maior e mais completa exposição sobre Frida Kahlo
realizada nas últimas décadas, com obras provenientes do Museu Dolores
Olmedo, no México a colecção mais importante que existe no mundo sobre
a artista mexicana”, de facto, as exposições apresentaram dimensões dife-
rentes consoante os países. No caso português, a exposição veio estruturada
de Espanha e apresentava um desdobrável, em português e inglês, com uma
introdução em que Frida Kahlo era sinteticamente apresentada pela comissá-
ria, um mapa da exposição e uma cronologia da vida e obra da artista, para
além de informações gerais sobre o centro de exposições, nomeadamente
sobre os ateliês, organizados pelo Serviço Educativo. Como representações,
apenas duas: A Coluna partida (1944) e Auto-retrato com macaco (1945),

2 Veja-se http://www.ccb.pt/ccb/. A exposição começou a ser anunciada no site oficial do Centro


Cultural de Belém cerca de quatro meses antes, mas não foi disponibilizada grande informação
sobre os conteúdos, como aconteceu com o site da Tate Modern.
3 Referimos o site oficial do Centro Cultural de Belém, o programa das actividades, bem como o
catálogo e a brochura, da exposição, excluindo o respectivo cartaz.
Estratégias de Exibição. Frida Kahlo em Lisboa 211

ambas a preto e branco. O referido desdobrável estava gratuitamente à dispo-


sição dos visitantes, enquanto o catálogo tinha de ser adquirido. Durante a
visita, não era disponibilizado ao público qualquer apoio tecnológico, o que
poderia dar aos visitantes a sensação de algum controlo sobre os objectos em
exibição, na medida em que as exposições, colocadas num determinado
espaço, usam-no e organizam-no. De facto, à semelhança dos Vitorianos, nos
últimos anos, os museus procuram atrair visitantes através das exposições
temporárias, assistindo-se, em muitos casos, à expansão das instalações exis-
tentes, assim como afirma Emma Barker:
For much of the twentieth century, however, museums concentrated
on their permanent collections rather than on staging exhibitions. They
played a comparatively minor role in the previous great age of
exhibitions, from the mid-nineteenth to the early twentieth centuries;
exhibitions were then typically held in purpose-built structures or
commercial premises. Having become a defining feature of contem-
porary museum culture, they now arguably dominate the public
perception of art. (Barker 1999: 103).

No entanto, relativamente ao Centro Cultural de Belém, houve sempre


espaços destinados a exposições temporárias, bem como distribuição gratuita
de folhetos explicativos. Neste caso, o desdobrável (sempre o mesmo durante
o período da exposição) dava indicações explícitas aos visitantes sobre o
percurso a seguir, traduzido no mapa da exposição com setas que indicavam
uma via de acesso à obra de Frida Kahlo. Tal constatação leva-nos a ponderar
pressupostos actualmente postos em causa, dado existirem princípios críticos
aplicáveis às culturas em exibição que defendem que os visitantes não devem
ser obrigados a realizar um percurso pré-definido, ainda que se constate que
qualquer prática seleccionada pode originar limitações de acessibilidade,
tanto espaciais, como interpretativas:
Exhibitions limit both the curator and the public to a spatial environment
in which a form of visual conceptualisation becomes the prime
interpretative activity. They succeed best by providing a dynamic form
for the exchange of ideas, if the installations and subsequently the
perspective on the thematics are transient. If the constellation of issues
raised in the research pertaining to the exhibition itself transforms as a
result of the critical debates ensuing from the show and related to it on
a wider international scale, then the exhibition no longer becomes
relevant as an operative site. (Deliss 1996: 284).

Convivemos, neste caso, com quatro espaços rectangulares, alicerçados


numa sequência definida e institucionalmente legitimada (Deliss 1996: 277),
212 Ana Daniela Coelho / Teresa de Ataíde Malafaia

que assentavam num percurso cronológico tradicional, 4 mostrando a vida e a


obra de Frida Kahlo através de uma escolha linear de representações. Corres-
pondiam os referidos espaços, por conseguinte, à Infância/Juventude, Paixão
por Diego Rivera, Casa Azul, Diário/Morte, espaços esses complementados
por duas instalações intituladas Altar dos Mortos e Trajes, bem como, final-
mente, pela projecção de vídeos sobre a artista, nos quais não vislumbrámos
perspectivas críticas. Se, no desdobrável, o mapa era a segunda informação, no
catálogo da exposição, o mapa, a cores, encontrava-se na penúltima página.
As indicações quanto ao percurso eram inequívocas, ainda que a entrada e a
saída da exposição fossem comuns e o espaço de projecção distinto. Não obs-
tante compreendermos que a dimensão cronológica tenha sido a privilegiada e
fosse coerente com o tema anunciado, questionamos até que ponto os sinais vi-
suais presentes e a fragmentação do espaço, enfatizada pelas cores distintas e
fortes das diversas salas, não estilhaçou o discurso e, por conseguinte, limitou
o olhar dos visitantes, mesmo reconhecendo que a instituição detém sempre o
poder que legitima a proposta de leitura seleccionada.5 Havendo hoje a preocu-
pação em que as paredes sejam claras, encontrámos na exposição a premissa
oposta, traduzida na presença de cores fortes, certamente para acentuar não só
a ligação afectiva de Frida à cultura mexicana, mas também o modo como as
referidas práticas a influenciaram. Na nossa opinião, existiu um excesso de cor
(não se deve esquecer que toda a estrutura veio já de Santiago de Compostela,
Fundación Caixa Galicia) e, no domínio da análise da cor, a referida monta-
gem só teve justificação inquestionável no espaço denominado Casa Azul.

Os ateliês pedagógicos
Na exposição de Frida Kahlo patente em Lisboa havia ainda a possibili-
dade de efectuar uma visita guiada, em que, sempre com um enquadramento
biográfico, se propunha a análise tanto do universo plástico da artista como
dos motivos recorrentes na sua obra. A estas mesmas visitas guiadas, desti-
nadas ao público geral, juntavam-se outras destinadas ao público escolar, ao
qual eram também oferecidos vários ateliês.
Para esta exposição em particular, o Serviço Educativo do Centro Cultu-
ral de Belém propunha três ateliês: Máscaras para um rosto (destinado ao 1º

4 Veja-se, a título de exemplo, a exposição Gothic Nightmares. Fuseli, Blake and the Romantic
Imagination, Tate Britain (15 de Fevereiro a 1 de Maio 2006), onde a perspectiva cronológica foi
igualmente favorecida.
5 Cf. “Over the last ten years, artists and cultural managers have relied on the institution as the bearer
of the legitimising discourse.” (Deliss 1996: 277).
Estratégias de Exibição. Frida Kahlo em Lisboa 213

e 2º ciclos do Ensino Básico), Desafiar a obra (destinado ao 3º ciclo do Ensino


Básico) e O olho que tudo vê (destinado ao Ensino Secundário). Importa aqui
dizer que, ainda que o Serviço Educativo do Centro Cultural de Belém tivesse
destinado um determinado ateliê para cada nível de ensino, cabia sempre aos
professores a escolha do ateliê a frequentar com os seus alunos.
No ateliê destinado ao 1º e 2º ciclos do Ensino Básico, Máscaras para um
rosto, era proposto que, após a visita guiada, cada aluno criasse uma nova más-
cara para Frida Kahlo, intervindo sobre uma fotocópia da fotografia da artista
e recuperando motivos da exposição. Dos alunos esperava-se que filtrassem a
informação transmitida durante a visita, criando um novo objecto artístico que
integrasse elementos relacionados não só com a artista, mas também com a
cultura mexicana e o ambiente político da época. Para tal, os alunos
dispunham de materiais como lápis de cera, papéis coloridos, fitas, cola, etc..
No final, cada aluno guardava a sua máscara como recordação da exposição.
No ateliê destinado ao 3º ciclo do Ensino Básico, Desafiar a obra, os
alunos eram conduzidos à sala de actividades antes mesmo de verem a
exposição e divididos em grupos de três ou quatro. A cada grupo era entregue
um dos seguintes objectos: prego, fita, écharpe, paleta, cone, açúcar, alfinete.
Cada grupo devia então escrever numa folha três palavras que associasse a
esse mesmo objecto. Depois desta actividade inicial, os alunos seguiam para
a exposição, levando consigo a folha com as palavras escolhidas. Durante a
visita guiada, sempre que um dos objectos surgisse representado numa das
obras, o grupo respectivo era chamado a ler as suas três palavras. De entre
essas três palavras, os restantes grupos escolhiam uma e escreviam-na na sua
folha. No final da visita, era pedido a cada grupo que construísse uma frase
utilizando as várias palavras coleccionadas ao longo da visita, com o objec-
tivo de criar um cadavre exquis.6 Pretendia-se com esta actividade aproximar

6 Esta actividade deu origem a resultados interessantes e variados, com algumas frases a aproximarem-
-se de um cadavre exquis, enquanto outras demonstram um esforço para lhes incutir sentido.
Vejam-se alguns exemplos:
“A festa com o pincel a tinta com o pintor branco.”
“Ela é vaidosa, pequena e pinta com os pincéis.”
“A sua natureza era limitada pela dor.”
“A beleza de um líquido de Verão doce e amarelo é a moldura de um mistério.”
“O olhar, o olhar…em todos os quadros, o seu olhar parece que desafia o público a tentar
compreender aquilo que ela sente.”
“A artista pinta líquidos doces no mistério do círculo redondo.”
“No cone da morte prendeu a sua dor como acessório.”
“Frida Kahlo expressava a sua dor através da pintura e retratava ainda os acessórios típicos da
sua região.”
214 Ana Daniela Coelho / Teresa de Ataíde Malafaia

a obra de Frida Kahlo do Surrealismo, movimento ao qual contudo esta


sempre se recusou pertencer.
No ateliê destinado ao Ensino Secundário, O olho que tudo vê, partindo
da ideia que “para Frida Kahlo (…) os olhos são a figuração do seu imaginário e
estados emocionais”,7 propunha-se que, após a visita guiada, os alunos projec-
tassem a sua visão da exposição num desenho limitado pelos contornos de um
olho. Os alunos deviam integrar no seu desenho elementos da exposição, mas
também mostrar a sua própria experiência da visita. Sendo esta também uma
actividade plástica, diferenciava-se da destinada ao 1º e 2º ciclos do Ensino
Básico pelo facto de não existir aqui uma prévia delimitação do desenho a criar,
uma vez que aos alunos era disponibilizada, como tela, uma folha em branco.
Para além destes três ateliês, todos os alunos podiam ainda participar na
realização de um tear gigante, intitulado Tear de memórias, que pretendia ser
um testemunho colectivo construído por emoções e sensações associadas às
cores, materiais e motivos da exposição.
Os trabalhos resultantes destes dois últimos ateliês, depois de reunidos e
seleccionados, bem como o Tear de memórias foram depois integrados numa
exposição intitulada Memória, inaugurada no dia 18 de Maio de 2006, Dia
Internacional dos Museus. Esta reunia exemplos de vários trabalhos realizados
pelos alunos ao longo do ano, em ateliês associados a diversas exposições
presentes no Centro Cultural de Belém.
Complementarmente aos ateliês, o Centro Cultural de Belém desenvolve
também, para cada exposição, um Caderno do Docente, destinado aos pro-
fessores que visitam a exposição com alunos. Este pretende ser um guia,
disponibilizando informações relativamente à exposição e às actividades a ela
associadas. Neste caso, consistia numa nota biográfica de Frida Kahlo, numa
breve descrição dos vários núcleos da exposição, com informações de carác-
ter cultural, histórico e biográfico, bem como destaque para determinadas
obras e, finalmente, em informações relativas às várias actividades pedagó-
gicas. Ainda que se trate de uma iniciativa de louvor, por procurar preparar
uma primeira visita do professor e formá-lo para uma eventual visita com os
seus alunos, é de lamentar o número de erros de impressão (e não só), dema-
siado comuns neste e noutros documentos associados a esta exposição.
No que diz respeito mais concretamente aos ateliês organizados para
esta exposição em particular, foram muito solicitados pelas escolas e pareceram,
de um modo geral, funcionar bem junto dos alunos. Assim, na sua maioria, os

7 Exposição Memória, Centro Cultural de Belém.


Estratégias de Exibição. Frida Kahlo em Lisboa 215

alunos participavam com entusiasmo nas actividades propostas, mostrando


interesse na actividade em si, ao mesmo tempo que procuravam relembrar e
integrar elementos observados durante a visita à exposição. Dir-se-ia portanto
que estes ateliês atingiram os objectivos aos quais se propunham. Se bem que
isto possa ser verdade, interrogamo-nos até que ponto estes objectivos seriam
os mais desejáveis a atingir. Parece-nos que a resposta dos alunos às activida-
des é de alguma forma aquela que estava planeada e pré-programada. No
geral, as actividades bem como a própria visita guiada não deixavam espaço a
uma verdadeira liberdade interpretativa e criativa por parte dos alunos. Mesmo
que as actividades se propusessem desenvolver a expressão dos alunos, quer
de uma forma plástica, quer de uma forma escrita, as suas criações eram guiadas
por regras de jogo muito bem definidas. Esperava-se que estas regras fossem
escrupulosamente seguidas e que das actividades se obtivessem determinados
resultados, caso contrário as expectativas dos monitores saíam claramente
frustradas. Ainda que não neguemos a necessidade de regras orientadoras e
objectivos determinados para as actividades a desenvolver, especialmente com
alunos destas idades, o facto é que se deixou pouco ou nenhum espaço de
manobra quer para a adaptação às necessidades e características dos alunos,
quer para a liberdade e a descoberta, princípios pedagógicos de base nos dias
de hoje. Igualmente, no que diz respeito à visita guiada, e mesmo que os alunos
fossem chamados a dialogar com a monitora, se continuava com uma tradição
expositiva – que transmitia uma determinada interpretação das obras, mas
falhava na explicitação da organização da própria exposição (e que funcio-
nava também como mais uma compartimentação a que os nossos alunos já
estão habituados) –, em vez de se apostar numa livre, ainda que auxiliada,
interpretação das obras.8 De igual modo, também aqui se nota que a ausência
de materiais tecnológicos a serem utilizados pelo público anulava a possibili-
dade de uma interacção com os objectos de arte expostos, deixando os alunos
limitados a um olhar distante e orientado pelas informações transmitidas.
Assim se conclui que, depois de uma atenta observação, os ateliês desen-
volvidos para a exposição de Frida Kahlo em Lisboa partilharam também
daquela que é uma determinada estratégia de exibição, com a particularidade
de que incutiam mais directamente sobre o seu público uma determinada
forma de olhar o trabalho desta artista.

***

8 Não negamos a importância da contextualização histórica, cultural e biográfica, mas conside-


ramos que uma maior liberdade interpretativa devia ser dada aos alunos, em vez de lhes dizer o
que deviam ver em cada obra, impondo-lhes aquela que é a visão de outro.
216 Ana Daniela Coelho / Teresa de Ataíde Malafaia

Ora, retomando o tema das estratégias de exibição, salientamos ainda a


importância do modo como o conteúdo da exposição, isto é, os objectos
estão expostos e, no caso em estudo, todas as obras obedeciam a uma distri-
buição sequencial e encontravam-se situadas a um nível intermédio de visão.
Os visitantes dispunham também de alguns painéis informativos de teor domi-
nantemente biográfico e sociopolítico e, de acordo com a concepção actual,
uma ancoragem textual mínima das obras, traduzida no nome do/da artista,
título, meios utilizados, data, encontrando-se a maior parte protegida por
acrílico. A articulação entre fotografia e pintura estava presente, com especial
ênfase no retrato/auto-retrato, não obstante a primeira forma ter sido privile-
giada na apresentação da infância e da juventude de Kahlo, documentando
criteriosamente a natureza de Frida Kahlo, filha de mãe mexicana mestiza e
de pai alemão. Aliás, essa expressão multicultural destacava-se como fio
condutor, havendo convívio entre tradições europeias e indígenas, segundo
Retrato de Alicia Galant (1927) e O Autocarro (1929) ilustravam. Efectiva-
mente, as manifestações multiculturais eram igualmente visíveis no domínio
biográfico, nas viagens realizadas, nas exposições nos EUA, em França, em
Inglaterra, no México e também nas relações mantidas, nomeadamente com
Diego Rivera, Tina Modotti, André Breton, Leon Trostki, Natalia Sedova, entre
outros.
A partir da segunda sala, subordinada ao tema Paixão por Diego Rivera,
a pintura e o desenho estavam mais presentes, mas a sua relação com o
muralista encontrava-se manifestamente enfatizada, na medida em que este
teve grande relevância na vida de Frida. Não obstante ser evidente que o
casamento constituiu o lançamento inicial da carreira de Frida, a obra exposta
permitiu concluir que esta se consolidou pela sua força e qualidade artística.
As obras seleccionadas revelavam a expressão emocional da artista, nomea-
damente as representações, desde litografias a pintura a óleo, em que a temá-
tica do aborto é dominante porque causadora da sua maternidade frustrada.
Quanto a esta temática, para além de uma litografia Frida e o aborto (1932),
sua única incursão nessa forma de arte, destacamos Hospital Henry Ford
(1932), em que é evidente a influência dos ex-votos mexicanos.
Na exposição, existiam dois espaços, não directamente relacionados
com Frida Kahlo, mas que se revestiam da maior importância para compreen-
dermos a artista. Tratava-se do Altar dos Mortos e Trajes. Salientamos, no âm-
bito da análise sobre as estratégias escolhidas, a apresentação de algumas
tradições culturais mexicanas, traduzidas nas oferendas aos mortos. Nessas
práticas culturais, por um lado, temos presente a herança pré-colombiana e,
por outro, as alterações decorrentes da colonização espanhola. O referido
Estratégias de Exibição. Frida Kahlo em Lisboa 217

processo conduziu a que práticas até então realizadas no espaço público


passassem para o espaço privado, onde se colocavam os altares. Temos, assim,
a par da expressão plástica de Frida Kahlo, artista hoje reconhecida global-
mente, a exposição de elementos da cultura popular mexicana, por exemplo
dos ex-votos, que foram determinantes na formação da artista e enformam a
respectiva obra. Sugerimos, neste contexto, A minha ama e eu (1937), obra
exposta em Casa Azul. Para além de estar representada uma criança, Frida,
com corpo de bebé e rosto de adulta, salientamos a figura da ama, aparente-
mente com uma máscara pré-colombiana. A temática do leite é também
dominante, tanto na ama como na chuva leitosa que beneficia a vegetação.
É, igualmente, em Casa Azul que encontramos as duas obras seleccionadas
para divulgar a exposição, o que faz todo o sentido, na medida em que Rivera
a dedicou, em 1955, ao povo mexicano, em homenagem a Frida.
Complementarmente, se encontramos na obra de Kahlo um equilíbrio
instável em termos de género, enquanto construção sociocultural, os trajes de
Tehuana expostos mostravam a natureza sensual e a beleza das mulheres,
bem como a energia que tanto Frida Kahlo como Dolores Olmedo quiseram
exemplificar, ao adoptá-los, entre 1930 e 1940. A dimensão internacional de
Kahlo, manifestada em múltiplas exposições, reforçou precisamente a expres-
são do mexicanismo enquanto consciência nacional e o reconhecimento das
tradições mexicanas, aliás omnipresentes na sua obra. Adoptando os trajes
tradicionais, Kahlo divulgou expressões culturais mexicanas na altura em que,
depois da revolução, o país reencontrava a sua herança. Constatámos, no
entanto, que a dimensão revolucionária de Frida Kahlo, era a menos patente
na exposição. Para além disso, ao analisarmos as representações disponíveis
para venda, verificámos que a selecção de postais não correspondia às obras
expostas, tendo como origem registada o Centro Comercial Interlomas/Centro
Urbano San Fernando e não o Banco de México Diego Rivera & Frida Kahlo
Museums Trust. A referida constatação permitiu, todavia, confirmar a dimensão
global inicialmente apontada e problematizar questões relacionadas com a
ubiquidade da imagem e com as indústrias culturais subjacentes à referida
prática.
Por fim, tínhamos o culminar da dimensão biográfica – certamente o
significado que a exposição pretendeu enfatizar – com o Diário, em edição
facsimilada, que oferece aos visitantes um conjunto de reflexões e de símbolos.
Colocado no último espaço, e com algumas páginas projectadas, acentuava a
inequívoca expressão conclusiva, ainda reforçada pela representação O Círculo
(c. 1954), em formato redondo, na qual vemos um corpo des-integrado,
expressão, sem dúvida, recorrente na exposição.
218 Ana Daniela Coelho / Teresa de Ataíde Malafaia

Efectivamente, de acordo com Stuart Hall, é através dos enquadramentos


de interpretação que conferimos significado aos objectos, pessoas e
acontecimentos (Hall 1997: 2). Defendemos, por conseguinte, que no espaço
do museu ou da galeria é fundamental que sejam ponderados os modos e as
estratégias de exibição e, nesse sentido, Frida Kahlo em Lisboa tornou-se uma
manifestação apetecível para os visitantes, devido à confluência multicultural
que representou. A visita atenta à exposição de Frida Kahlo torna, deste modo,
bem claro que se tratava de uma versão sobre a artista, produzindo nos visitan-
tes um determinado conhecimento. De facto, o acto de exibir implica, tanto
a escolha de estratégias para o concretizar, como conferir significado aos
objectos expostos, dando-lhes uma visibilidade fundamentada num discurso
legitimador. Complementarmente, a cultura em exibição vive igualmente das
políticas culturais, dos patrocinadores, do público e da comunicação social.
Nos últimos tempos, assiste-se a uma maior ênfase dada ao visitante
como consumidor, com alteração dos próprios espaços,9 o que tem vindo a
modificar os modos como opera a produção cultural, em que as estruturas
selectivas assumem um papel fulcral. Concluímos, desse modo, que a posição
institucional (do centro de exposições, do museu, da galeria) permite que
sejam “construídas” novas representações e esquecidos, frequentemente, os
contextos de origem. Relembramos, por exemplo, a exposição de arte
africana na Fundação Calouste Gulbenkian em Lisboa “Looking Both Ways –
Das Esquinas do Olhar”, em 2005, a exposição de fotografia do Brasil no
Musée de la Vie Romantique – Maison Renan Scheffer, em Paris, e depois
numa galeria do Palácio da Ajuda. As estratégias de exibição escolhidas para
a exposição de Frida Kahlo em Lisboa são um bom exemplo da construção
mencionada, na medida em que, ao eleger a fotografia (do pai de Frida ou da
própria artista) como representações autênticas, documentos aparentemente
rigorosos de um percurso, e pretendendo anular o olhar que foca, reforçam a
escolha e a subjectividade de quem exibe. Na articulação entre as estratégias
de exibição e as várias práticas de olhar, surgem novas interpretações.
Constroem-se, por conseguinte, novos significados, significados esses que a
credibilidade do espaço de exibição justifica, mesmo que interpretados por
jovens alunos que recriam significados e, assim, avaliam as propostas cultu-
rais que Frida Kahlo em Lisboa oferece.

9 Cf., a título de exemplo, o Musée du Louvre, o British Museum, a National Gallery com a Sainsbury
Wing, inaugurada em 1991.
Estratégias de Exibição. Frida Kahlo em Lisboa 219

Referências
Barker, Emma, Ed. (1999). Contemporary Cultures of Display. New Haven, London:
Yale University Press, The Open University.
Bennett, Tony (1995). The Birth of the Museum. History, theory, politics. London, New
York: Routledge.
Caderno do Docente: Frida Kahlo – Vida e Obra (2006). Lisboa: Serviço Educativo do
Centro Cultural de Belém.
Deliss, Clémentine (1996). “Free Fall – Freeze Fame. Africa, exhibitions, artists”. In
Greenberg, Reesa, Bruce W. Ferguson, Sandy Nairne, Eds. (1996). Thinking
About Exhibitions. London, New York: Routledge. 275-294.
Lidchi, Henrietta (1997). “The Poetics and Politics of Exhibiting Other Cultures”. In
Stuart Hall (1997). Representation. Culture Representations and Signifying
Practices. London: Sage.
Mitchell, W. J. T. (2002). “Showing Seeing: A Critique of Visual Culture”. In Nicholas
Mirzoeff, Ed. The Visual Culture Reader. London, New York, 86-101.
Said, Edward (1993). Culture and Imperialism. London: Vintage.
Thomas, Trevor (1940). “Artists, Africans and Installation”. Parnassus. 12/4. 24.
Ilustrações

ISBN 978-972-8886-08-0 • A PALAVRA E A IMAGEM • CEAUL / ULICES 2007


Ilustrações 223

Sir Joshua Reynolds, Lady Caroline Scott as “Winter”, 1777

Jan van Eyck, Arnolfini Wedding Portrait, 1434


224 A Palavra e a Imagem

Frida Kahlo, Self-Portrait as a Tehuana


(Diego in My Thoughts), 1943

Frida Kahlo, Self-Portrait with Cropped Hair,


1940

Frida Kahlo, El Venadito, 1946


Ilustrações 225

William Hogarth, Marriage A-La-Mode, c. 1743: ‘The Marriage Settlement’

William Hogarth, Marriage A-La-Mode, c. 1743: ‘The Tête à Tête’


226 A Palavra e a Imagem

William Hogarth, Marriage A-La-Mode, c. 1743: ‘The Inspection’

William Hogarth, Marriage A-La-Mode, c. 1743: ‘The Toilette’


Ilustrações 227

William Hogarth, Marriage A-La-Mode, c. 1743: ‘The Bagnio’

William Hogarth, Marriage A-La-Mode, c. 1743: ‘The Lady’s Death’


228 A Palavra e a Imagem

Dante Gabriel Rossetti, The Girlhood of Mary


Virgin, 1849

Dante Gabriel Rossetti, Ecce Ancilla Domini, 1850


Ilustrações 229

Dante Gabriel Rossetti, Sketch, 1852

Dante Gabriel Rossetti, Artist’s Studio, c. 1849


230 A Palavra e a Imagem

Fotografia de Ana Daniela Coelho, Objectos do ateliê Desafiar a Obra (Exposição


Memória), CCB, 2006

Fotografia de Ana Daniela Coelho, Trabalhos do Ateliê O Olho que Tudo Vê


(Exposição Memória), CCB, 2006
Ilustrações 231

Fotografia de Ana Daniela Coelho, Tear de Memórias (Exposição Memória), CCB,


2006

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