BotAfala Ocupando A Casa Grande

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botAfala
ocupando a Casa Grande

2
botAfala é um projeto de pesquisa educacional baseado nas
artes, que utiliza o hip-hop como linguagem para compor
uma paideia democrática. Desenvolvido por estudantes da
UNILAB do Campus dos Malês da Universidade da
Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira
(UNILAB), o botAfala procura debater questões raciais,
questionar estereótipos de gênero, pensar as relações entre
educação estética e autocriação ética, valorizando os
múltiplos letramentos potencializados pelo hip-hop.

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Copyright © Autoras e Autores
Todos os direitos garantidos. Qualquer parte desta obra pode ser reproduzida,
transmitida ou arquivada desde que levados em conta os direitos das autoras e dos
autores.

Marcos Carvalho Lopes (Organizador)

BotAfala: ocupando a Casa Grande. São Carlos: Pedro & João Editores,
2020. 229p.

ISBN 978-65-87645-44-5

1. A fala. 2. Ocupar a Casa Grande. 3. Racismo. 4. Autores. I. Título.

CDD – 370

Capa: Lucas Margoni


Editores: Pedro Amaro de Moura Brito & João Rodrigo de Moura Brito

Conselho Científico da Pedro & João Editores:


Augusto Ponzio (Bari/Itália); João Wanderley Geraldi (Unicamp/ Brasil); Hélio
Márcio Pajeú (UFPE/Brasil); Maria Isabel de Moura (UFSCar/Brasil); Maria da
Piedade Resende da Costa (UFSCar/Brasil); Valdemir Miotello (UFSCar/Brasil); Ana
Cláudia Bortolozzi Maia (UNESP/Bauru/Brasil); Mariangela Lima de Almeida
(UFES/Brasil); José Kuiava (UNIOESTE/Brasil); Marisol Barenco de Melo
(UFF/Brasil); Camila Caracelli Scherma (UFFS/Brasil).

Pedro & João Editores


www.pedroejoaoeditores.com.br
13568-878 - São Carlos – SP
2020

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SUMÁRIO

6 AGRADECIMENTOS
9 PREFÁCIO: Bumuntu: “eu sou porque nós somos” – João
Wanderley Geraldi
17 INTRODUÇÃO: ocupando a Casa Grande
24 Um desafio que bota a fala
27 Nunca tive um brinquedo para chamar de meu
32 Crônicas de um sem nome
46 Bota a fala
51 BOTA A FALA: cantando o futuro, reconhecendo o
passado
60 Do samba ao hip-hop? E do hip-hop de volta ao samba...
63 Caminhar com meu pai é seguir o caminho...
69 O hip-hop entre o Muntu e o Kintu
74 O Bill Pensador que não virou Gabriel
77 Martinho da Vila, profeta da Lusofonia
86 Foi Bom desse jeito
88 Do estilo romântico ao RAP: botAfala e as novas
influências musicais
95 O dia em que estive sob um clique
99 O grito é o escudo do oprimido
107 Entre o hip hop e o kuduro: uma travessia
115 Lutas e conquistas da mãe de Oronho
118 Compondo uma educação democrática: Paulo Freire,
Amílcar Cabral e Cornel West
128 Afeto
131 botAFala e a invenção de "Africar": visibilidade
segregada e autoridade semântica
151 INTERMEZZO VARIADO
163 LETRAS
189 INFLUÊNCIAS E INDICAÇÕES
211 GLOSSÁRIO
219 REFERÊNCIAS
224 POSFÁCIO – Filomeno Lopes

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AGRADECIMENTOS

O BotAfala é um projeto muito ambicioso, com uma


construção de conhecimentos com respeito a alteridade e
igualdade, objetivando com isso compor uma educação (paideia)
democrática. Durante o meu tempo de inserção neste projeto,
conseguimos concretizar muitos dos nossos objetivos. Um deles é
este livro, feito com muita dedicação. Deixo os meus
agradecimentos ao PIBEAC UNILAB/CNPq e PIBIC
UNILAB/CNPq pelo tempo de patrocínio das bolsas: extensão
(PIBEAC), do período 01/01/2018 a 01/09/2019, e de iniciação
científica (PIBIC), do período 01/09/2018 a 31/08/2019. Estes
investimentos permitiram que pudesse me dedicar a concretização
de alguns objetivos propostos pelo grupo.
Eugênio da Silva Evandeco

Agradeço ao professor Marcos Carvalho Lopes e ao grupo Bota


a fala, pelas cadências musicais e uma navegação auspiciosa pelo
mundo da poesia, rap e do hip-hop.
Lauro José Cardoso

Agradeço ao PAES (Programa de Assistência Estudantil).


Juciane Aparecida

Para todas as pessoas que participaram, acompanharam,


torceram, apoiaram estes quatro anos do botAfala: a comunidade
da UNILAB é a razão de ser deste projeto. O tom, muitas vezes de
entusiasmo, pode parecer injustificado diante das dificuldades do
dia-a-dia e das pequenas derrotas que fazem parte do cotidiano.
Porém, o botAfala celebra e se inspira na obra do filósofo Cornel
West, que personifica a busca de excelência que não se afasta da

6
Agradecimentos

cultura popular, a coragem de dizer a verdade aos poderosos e


esperança lúcida de quem segue lutando dia-a-dia contra o
sofrimento injustificado: obrigado por existir. O professor João
Wanderley Geraldi é alguém que me acompanha e inspira há cerca
de 15 anos, ainda que não nos conheçamos pessoalmente: obrigado!
Agradeço de modo especial ao professor Paulo Sérgio de Proença,
que gentilmente fez a leitura, revisão e texto para “orelha” deste
trabalho. Filomeno Lopes é um dos autores que inspirou nosso
projeto e nos honrou com o posfácio deste trabalho. Dudoo Caribe,
DJ Sankofa, Pingo do Rap e o amigo e mestre Márcio Valverde:
sintam-se culpados por nossos acertos e perdoem nossos erros. Para
Eugenio, Lauro, Juciane, Magno, Patrícia, Suleimane, Tania, João
Dito, Kadija, Chito, Mustasse, MC Vla: obrigado por me ensinarem
com o vosso/nosso hip hop, amizade e diálogo.
Marcos Carvalho Lopes

Primeiramente agradeço a minha família, meus amigos,


principalmente à mana Joana (que sempre amarrou barriga dela
para que a nossa fique cheia; tenho certeza de que, onde quer esteja,
continua se doando por nós) por serem meu alicerce e motivo pelo
qual eu morreria. Por conseguinte, a todos professores e
professoras que já tive e todos aqueles que ajudaram a (re)construir
o Magno que sou e que pretendo ser. E por fim, a UNILAB, ao
Programa de Assistência Estudantil – PAES, a Pró-reitoria de
Extensão Arte e Cultura pela Bolsa concedida por dois anos, aos
companheiros e companheiras do BotAfala, ao professor Marcos
Carvalho Lopes (um amigo para a vida) e de forma especial ao
Estado Brasileiro e a todo seu povo.
Magnusson Da Costa

Meu agradecimento a Deus pela sua benção e por ter colocado


pessoas maravilhosas na minha vida, pessoas que sempre me
apoiaram nos momentos bons e ruins, agradeço também a Unilab e
ao grupo bota fala, por essa oportunidade de desconstrução,
aprendizado e integração com outros povos amigos. Obrigada ama
Ângela Canoquinam e toda família Da Silva, apa M´Bayade Hilaire,
ao meu filho Oronho Gustavo, maninha Segunda Da Silva, Tio

7
botAfala

Sigaa, Coral Ester, família Bedesley, professor Marcos Carvalho


Lopes, Grupo Aninindo, e as três pedras: minha mãe. Peço ao
Senhor que triplique sua Benção nas vossas vidas.
Patrícia N´Zalé

Agradeço profundamente a toda minha família, a minha


companheira, ao meu orientador (Marcos Carvalho Lopes) e aos
meus amigos, em especial, ao Gacimo, meu amigo e irmão, pelo
suporte que têm me dado durante essa minha trajetória acadêmica.
À Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-
Brasileira e as agências financiadoras e concedentes de bolsas nos
projetos de Iniciação Cientifica PIBIC/UNILAB dos quais fui
bolsista nos anos 2015-2016 e 2017-2018. Agradeço imensamente
pela oportunidade. À todos os integrantes do grupo botAfala, meu
muito obrigado por compartilharem os momentos comigo e, por
me darem a oportunidade de juntos construirmos essa nossa
história. GRATIDÃO.
Suleimane Alfa Bá

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PREFÁCIO
Bumuntu: “eu sou porque nós somos”

João Wanderlei Geraldi1

Que bonito deve ser um país sem preconceito cultural! Todo profissional de
criação, entendendo ou não, gostando ou não, concordando ou não, deve
respeitar a criatividade popular.
Misturar culturas é sempre bom.
Criar exige um sacrifício, uma abnegação, uma vontade de
despretensiosamente colaborar com a humanidade. Não basta ler, pensar.
Tem-se que participar, batalhar pela concretização dos sonhos. (Martinho
da Vila, Kizombas, andanças e festanças, 1998, p.19).

Quando a Filosofia sai da biblioteca para a rua, para as gentes e para suas
vidas, retorna sobrecarregada de sentidos que iluminarão novas leituras do
que a herança cultural nos deixou. Sair da biblioteca não é deixar de fazer
filosofia. Mas é pensar filosoficamente. Cansado das “introduções à filosofia”,
já houve no passado quem propôs uma “introdução ao filosofar.
Gerd A. Borheim

Marcos Carvalho Lopes, que realiza a edição deste BotAfala


(às vezes Bota a fala), consegue o feito de sair para ouvir, e ouvindo
aprender a cantar uma outra linguagem com que filosofar com
jovens estudantes universitários da UNILAB – Universidade da
Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira – campus dos
Malês, em São Francisco do Conde.
Uma universidade de integração lusófona reúne estudantes
dos diferentes países das diferentes línguas portuguesas. O
resultado desta polifonia dialetal e cultural, no interior de uma
mesma universidade, torna-a um ‘caldeirão’ de produções

1
Doutor em Linguística. Professor titular aposentado da Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp), professor visitante da Universidade do Porto (Portugal) e de universidades
brasileiras. Faz parte do Conselho Editorial de várias revistas tais como: Cadernos de Estudos
Linguísticos (Unicamp), Palavras (APP/ Portugal), Leitura: Teoria & Prática (ALB),
Filologia e Linguística Portuguesa (USP), Educação & Realidade (UFRGS), Educação &
Contemporaneidade (UNEB), Fórum Linguístico (UFSC). Campinas/SP. E-mail:
[email protected]
9
João Wanderley Geraldi

imaginativas, de explosão de criatividade, construindo para si


mesma um espaço identitário enquanto academia. Digo enquanto
academia porque para produzir conhecimentos não é necessário
que todos rezem pela mesma cartilha dos métodos e dos fazeres
científicos.
É neste contexto que surge o Bota a fala, “um projeto de
extensão e pesquisa educacional baseado nas artes, que utiliza o
hip-hop como linguagem para compor uma Paideia (educação)
democrática”. O nome vem do glossário crioulo do livro No Fundo
do Canto, de Odete Semedo: “Botar a fala/Bôta fala – lançar a voz,
anunciar, dar a sua opinião”. Para lançar a voz há que haver o que
dizer. Logo, quem bota a fala bota para fora opiniões, dá razões
para o que pensa, exige respostas ainda que estas possam não vir.
Ora, lidar com razões é o jogo da filosofia, é o cotidiano do pensar
filosófico.
Assim, um projeto integrando extensão e pesquisa qualitativa
passou a reunir estudantes e professor num trabalho que contou
com as experiências musicais anteriores dos alunos da Guiné-
Bissau, de Angola, de São Tomé e Príncipe e de brasileiros. Estar
atento à experiência exige compartilhar linguagem. E assim a
linguagem do grupo passou a ser aquela do rap/hip-hop, gênero e
estilo que não pode ser simplesmente abordado de “fora”, porque
desvela um modo de vida, e canta a vida ainda que, como disse o
poeta João Cabral de Mello Neto, possa ser “vida severina”.
Para compor um hip-hop é necessário estar disposto ao
autoquestionamento e à crítica, num diálogo sempre tenso entre o
eu-lírico, poeta, e sua comunidade. Como se sabe da história da
independência dos povos africanos de língua portuguesa, as lutas
contra os colonizadores e aquelas desencadeadas entre grupos
tiveram seus efeitos devastadores na população. Conseguida a
independência, houve a tentativa de construção de países
socialistas e as canções punham no horizonte a construção do
estado e a construção de uma sociedade nacional. Sequestrados os
sonhos, restou a realidade, cruel para alguns, benéfica para outros.
O hip-hop foi o gênero para a voz da crítica a que muitos jovens dos
países lusófonos aderiram.

10
Prefácio

Isto significa que o hip-hop expõe um processo de criação em


que estão presentes, sem qualquer álibi, vozes responsáveis: do que
compõe, do que canta, da comunidade de que emerge este discurso
musical.
A ‘composição’ deste livro é especular ao processo criativo dos
jovens que participam/participaram do projeto. Contém sua
polifonia: há artigos assinados pelos estudantes – Magnusson da
Costa, assina três artigos; Lauro José Cardoso, com dois textos,
Suleimane Alfa Bá, também com dois textos e Eugénio da Silva
Evandeco. Entremeando os textos dos alunos, sem assinatura, mas
que o leitor logo descobre serem do editor do livro, aparecem as
reflexões mais teóricas, com os fundamentos do projeto, e também
a própria história do projeto, as andanças e apresentações do grupo.
Serão nestes textos que aparecerão as dúvidas do professor, os
questionamentos do seu fazer, tão constante quanto acontece nas
letras do gênero hip-hop.
Em Nunca tive um brinquedo para chamar de meu,
Magnusson da Costa nos faz saber de sua participação da cultura
hip-hop, mas também da novidade que estar na universidade, em
outro ambiente, trazendo sua linguagem, implica pesquisar as
origens do movimento, descobrir seus teóricos, descobrir roteiros
percorridos no passado e horizontes de futuro: escolhe pois estudar
o hip-hop em seu trabalho de conclusão do curso de graduação.
Em Crônicas de um sem nome, Lauro José Cardoso cria uma
personagem fictícia, um “sem nome”, apaixonado pela mulher que
deixou em seu país. Esta relação amorosa que se desfaz porque nem
ele nem ela foram fieis. A justificativa “Ê non sou de ferro”
aparecerá na fala da mulher bela e exótica que o Sem Nome perdeu.
Uma cena da narrativa chama atenção:

... [Sem Nome] deparou-se com uma situação, em plena rua, que o deixou
revoltado. Uma mulher de meia idade que ele não conhecia de parte alguma,
brasileira, aproximou-se pra “puxar” conversa, e lhe perguntou de uma
forma inacreditavelmente “sem noção”, se o lugar de onde vinha, a África,
as pessoas só moravam em cima das árvores e se, “nós” os africanos
tomávamos ou não tomávamos banho por causa dessa tonalidade de pele tão
“negra”. Com uma expressão mais natural do mundo, pois pra ela esta
“simples abordagem” não tinha nenhum carácter preconceituoso e ofensivo.

11
João Wanderley Geraldi

O Sem Nome, que foi apanhado de surpresa, permaneceu calado durante


poucos segundos, e respondeu de forma séria e sem demonstrar qualquer
agressividade: “Quem mora em árvores são os pássaros e como sou um ser
humano que nem a senhora, mesmo tendo uma “cor” diferente, também tomo
banho!”

Em Caminhar com meu pai é seguir o caminho... Suleimane


Alfa Bá se apresenta: “sou muçulmano, da etnia Fula. Filho de
Mamadu Alfa Bá e de Tete Sane, nascido aos Oito dias de mês de
janeiro de Mil e Novecentos e Noventa e Quatro (08/01/1994), em
Binar, situado em uma das Regiões da Guiné-Bissau, Oio”. Para
além de nos contar de suas experiências anteriores com a música e
de sua participação no projeto, conta também sua vida. Estudou
direito em seu país, numa faculdade particular. Quando o pai fica
desempregado, é obrigado a suspender seus estudos. Mas
querendo continuar sua carreira acadêmica, presta provas para vir
para a UNILAB. É selecionado. Como ele dirá no seu outro texto -
DO ESTILO ROMÂNTICO AO RAP: botAfala e as novas
influências musicais – a simples aprovação não faz emergirem os
recursos necessários para o deslocamento e para a vida no Brasil.
Neste texto narra sua amizade com Gacimo, desde a infância. O
amigo, agora comerciante, dá-lhe as condições financeiras
necessárias. Transcrevo aqui o diálogo para chamar atenção do
leitor para nossas várias línguas portuguesas:

... decidi contar para Gacimo o meu problema, as dificuldades para


conseguir o dinheiro da passagem aérea. Fui na casa dele e contei
tudo. Ele, de imediato me disse;
-Kantu ku pircisa del? (De quanto você precisa?)
Não acreditei no que ouvi no momento, lhe disse:
-Buna tene komu djudan? (Teria como me ajudar?
Ele apenas respondeu:
- kontan só canto ku buna pircisa del?( Só me fala de quanto você
precisa?)...
Contei, e ele, sem pensar muito, me disse:
-Bu pudi fica sucegadu, se Deus kiri, ika na sedu pa falta de dinheiro
k na pui buka konsegui forma na Brasil, bim amanhã u bin toma
dinheiro... (pode ficar tranquilo, se Deus quiser, não será por falta de

12
Prefácio

dinheiro que te impedirá de conseguir se formar no Brasil, passe aqui


amanha para pegar o dinheiro).

Em O Bill Pensador que não virou Gabriel, Magnusson da


Costa nos apresenta MV Bill que “escancarou a realidade das
favelas, lançou a verdade crua no “Soldado do Morro” e ganhou o
título de apologista ao crime. Talvez Bill tenha pouco talento para
ficção; ou o rap que é tão apegado à realidade não a ficção; ou a
melanina que não ajudou; ou é a guettofobia do qual o GOG fala”.
Aqui a referência em contraponto é Gabriel, o Pensador, sem que o
autor faça-lhe uma crítica, mas faz notar que o sucesso de um artista
depende de muitos fatores, e um deles é precisamente seu tema.
Lauro José Cardoso nos narra, em Foi bom desse jeito o seu
encontro com Martinho da Vila, que tantas e tantas vezes escutara
em São Tomé e Príncipe, mencionando “Já tive mulheres de todas
as cores...” e “Canta, canta minha gente...deixa tristeza pra lá”,
quando da entrevista do grupo no programa de Pedro Bial (Rede
Globo). E Magno Costa, em O dia em que estive sob um clique
conta outro encontro, este nada musical e nada artístico, mas típico
da ação policialesca do Brasil:

[o policial] Mandou-me abrir as pernas (e não era para me fuder, tá?),


começou a me apalpar o corpo todo, botou a mão entre minhas pernas, subiu
pra cima, apalpando… não conseguiu nem tocar as minhas bolas de tão
murchas que estavam, deve ter achado que era transgênero. Pediu-me
documentos, mostrei. Viu que era estrangeiro, e perguntou donde era, e eu
disse-lhe; aí amenizou o tom de voz.
-Relaxa, essa é uma abordagem de rotina, aqui no Brasil é comum,
infelizmente. Explicou ele.
-Hum, tá! respondi. Já conseguindo respirar.
-Nunca passou por isso? No seu país não se faz? Perguntou o policial.
Respondi que não. Perguntou o que vim fazer no Brasil, respondi que vim
estudar e expliquei-lhe sobre o projeto da minha universidade e que curso
estava fazendo, que cidade está morando; já estava todo empolgado com
minha palestra, e meu ônibus chegou.

Em ENTRE O HIP HOP E O KUDURO: uma travessia,


Eugénio da Silva Evandeco relata seu encontro, ainda muito jovem,
com a música:
13
João Wanderley Geraldi

A minha vida no mundo da música começou num momento em que o estilo


musical denominado ‘’kuduro’’ estava no seu auge, isto nos meados de 2006.
Na altura, o estilo no qual me refiro aqui era feito apenas por jovens, e muitos
destes jovens envolviam-se em práticas ilícitas. Sendo assim, o conteúdo era
bastante marginalizado pela sociedade angolana, como o funk aqui no Brasil
e o hip hop em diversas partes do mundo, porque os praticantes deste estilo
levavam para as suas músicas suas vivências, as suas práticas antissociais e
sem censurar as suas expressões. Dentre os tantos kuduristas que deram
bastante contributo para esse estilo na época e impulsionaram vários jovens
e adolescentes.

Todos estes textos, ao mesmo tempo narrativos e reflexivos,


vêm entremeados por textos não assinados e seguramente de
autoria do editor: eles dão conta dos estudos que o grupo fez, das
referências teóricas e dos percalços que um projeto como este tem
que atravessar:

O Bota a fala começou em janeiro de 2015, partindo do desafio de utilizar


uma linguagem que os estudantes dominavam e gostavam, desenvolvendo
canções que servissem tanto para das boas vindas aos estudantes
(estrangeiros e brasileiros que chegavam à UNILAB), quanto como uma
forma de denunciar e combater o preconceito, um problema que no cotidiano
surgiu como novidade negativa para aqueles que vieram de países lusófonos
da África para estudar no Brasil. A miragem da democracia racial ainda
engana...

As referências passam por filósofos como John Dewey,


Richard Rorty, Amílcar Cabral, Boaventura de Sousa Santos e
principalmente por Richard Shusterman e Cornel West. A filosofia
da educação que embasou o trabalho tem origem em Paulo Freire e
sua Pedagogia do Oprimido. Para além, o autor afirma: dialogamos
com os letramentos de reexistência de Ana Lúcia Silva Souza; da filosofia
pop de Charles Feitosa; da afroperspectiva de Renato Noguera. Somente
por esta listagem se pode perceber o quanto este grupo estudou e a
o quanto um projeto no ambiente universitário que assume outra
linguagem acaba por exigir muito mais estudos do que uma
introdução ao pensamento de alguns filósofos.
Os temas dos estudos apresentados passam pelas questões da
negritude [A apropriação positiva do nome negro é, na descrição de
14
Prefácio

Mbembe, uma forma de subversão daquilo que é atribuído e muitas vezes


interiorizado como sendo a “consciência ocidental do negro”. Esta
subversão, de certo modo, “explode por dentro” a própria função
preconceituosa do nome “negro”, que redescrito, apropria-se do passado de
escravatura, segregação e colonização, em que os corpos eram utilizados
como objetos sem voz, para afirmar o agora em que se tem o microfone nas
mãos, como aquele em que se afirma/cria um novo sentido, de
protagonismo, de agenciamento]; pelos gêneros musicais - o samba e o
hip-hop; pela lusofonia; pelo preconceito racial, experiência que os
jovens estudantes de África tiveram que aprender a sofrer por aqui;
e pelo estudo da formação da subjetividade, trabalhando com
autores pouco conhecidos em nossa academia.
Este é um livro composto de forma plurimodal, com diferentes
gêneros discursivos, de modo que as vozes falam, concertam entre
si e nos oferecem narrativas, textos argumentativos, letras de hip-
hop, fotos, entrevistas... É muito fôlego numa obra só, mas esta
diversidade espelha a diversidade do que é o hip-hop e do que são
as culturas dos sujeitos autores.
Antes de concluir, trago para cá uma passagem que me tocou:
trata-se de uma análise linguística que corrobora as diferentes
formulações da tese de que a subjetividade é construída na relação
com a alteridade:

O estudioso da religiosidade africana Mutombo Nkulu-N’Sengha descreve,


a partir da língua Luba, uma relação dinâmica entre Muntu, Kintu e
Bumuntu na definição do que é um ser humano. Muntu seria um termo
genérico que na descrição deste autor abriga todos os seres humanos. Já
Bumuntu ressalta a “essência” de um ser humano “autêntico” (termo que
na África do Sul aparece como Ubuntu; e que mantem a mesma concepção
nas palavras Eniyan ou Ywapele em Ioruba). Essa “essência humana” não é
algo dado, mas uma autoconstrução em relação a qual cada um é responsável
e se relaciona com o respeito e a relação com os outros. Neste sentido, quando
se pergunta o que é um ser humano, a resposta africana seria Bumuntu,
designando que “uma pessoa é uma pessoa através de outras pessoas”, ou
noutra expressão, “eu sou porque nós somos”. Estas descrições mostram a
necessidade de identificação e cuidado com o sentimento dos outros, assim
como cooperação e reconhecimento da dignidade de cada ser humano.
Alguém que não age de modo adequado perde ou falha em sua humanidade e
se torna um Kintu, termo que designa objetos inanimados, mas também o

15
João Wanderley Geraldi

mal caráter ou comportamento. Entre Kintu e Muntu haveria uma oscilação,


de tal modo que a ameaça de ser considerado alguém que perdeu a
humanidade tornando-se mero objeto é algo que exige cuidado – ético e
estético – constante em relação ao comportamento: um homem belo/bom é
como um peixe dentro d’água, já o que não tem caráter é como um boneco de
madeira (NKULU-N’SENGHA, 2001, p. 81).
A questão que a tradição bantu coloca para o hip-hop é a de que, ao assumir
o termo “nigga” não se faz o mesmo com a condição de “Kintu”, colocando-
se como produto dentro do jogo e lógica do mercado? A forma como as
mulheres são tratadas nas letras de hip-hop não negam muitas vezes a
condição de Muntu? A resposta para esta questão não é unívoca, mas num
tempo em que somos governados por gangsters, tanto no Brasil como nos
EUA, preservar o sentido de comunidade é um desafio que merece cuidado.
As perspectivas de ostentação podem nos direcionar para a perda daquilo que
nos faz humanos.

Ser “muntu”, constituir-se pelos outros, evitar


responsavelmente tornar-se “kintu”: eis o que me parece ser o
horizonte que conduz o trabalho pedagógico do Prof. Marcos
Carvalho Lopes. Tenho certeza que seus alunos, enriquecidos pela
participação no grupo, retornarão à sua vida modificados tanto
porque carregarão muito mais informações sobre suas próprias
práticas, quanto porque se deixaram constituir de forma distinta em
um país outro.
Por tudo isso, e muito mais, BotAfala provocará escutas
responsivas que sempre levam a falas responsivas nesta corrente
infinita de nossas construções das compreensões das coisas e das
gentes com que coabitamos, cuja pluralidade cultural enriquece a
experiência humana.

Barequeçaba, fevereiro de 2019


João Wanderley Geraldi

16
INTRODUÇÃO:
ocupando a Casa Grande

Na manhã de 21 de maio de 2015, dois ônibus lotados da


Universidade da Integração da Lusofonia Afro-Brasileira
(UNILAB) levaram pelo menos uma centena de estudantes para
ocupar o auditório Jutahy Magalhães na Assembleia Legislativa da
Bahia, em Salvador. Alí foi realizada uma audiência pública
comemorando cinco anos de criação da UNILAB, cuja sede fica em
Redenção no Ceará. Também se comemorava o primeiro ano de
seus cursos presenciais no Campus dos Malês, na cidade de São
Francisco do Conde, munícipio da região metropolitana de
Salvador.
Havia uma alegria diferente naquele dia. Um sentimento
positivo que vinha de fora para dentro, propagando-se pelo ar.
Quem conhece a UNILAB já havia experimentado esse tipo de
sensação. Quem não conhece se espanta. É que a convivência de
estudantes do Brasil com colegas de Guiné-Bissau, Cabo Verde, São
Tomé e Príncipe, Moçambique e Angola traz consigo a promessa de
um espelho, que vai além da língua, numa direção criativa e
utópica. Essa instituição talvez possa redescrever a aventura “lusa”,
com a alegria efusiva e gratuita intensificando o instante, no lugar
da apagada e vil tristeza de uma saudade do que poderia ter sido.
A cadeiras da Assembleia ficaram cheias destes sonhos estridentes,
desta alegria contagiante.
Mesmo em Salvador, ver naquele espaço formal a audiência
em sua maioria negra, africana ou brasileira, também causava um
estranhamento bonito. Entre a fala das autoridades presentes,
houve apresentação de grupos de dança – que não foram tão –
“típicas”. Me lembro de um casal de Cabo Verde, um grupo de
bissau-guineenses, mas não sei se houve samba de roda do
Recôncavo, tão marcante em São Francisco do Conde. Eu estava

17
Marcos Carvalho Lopes

ansioso para ver o Bota a fala fazer sua segunda apresentação,


justamente naquele espaço. Estava mais ansioso que o grupo, afinal,
eles já tinham certa experiência e sabiam da recepção positiva dos
colegas. O hip-hop é a voz da juventude na África.
Quando foram chamados, subiram ao palco colocando-se na
frente da mesa das autoridades. Tânia Brasiguis, Dito BUahsd,
Lauro José, Magno e Suleimane cumprimentaram a plateia de
costas para as autoridades. Explicaram que o Bota a fala era um
projeto de pesquisa e extensão que usava o Hip-Hop como
linguagem para combater o preconceito racial e todas as formas de
discriminação. Depois dessa apresentação, precisavam cantar.
Primeiro, cantaram o refrão de “Bem-vindos”, que dava boas-
vindas aos novos estudantes da UNILAB; já que o beat não entrava
no sistema de som, começaram à capela... de repente a pulsação
tomou o lugar, a marcação da batida fez recomeçarem a canção e a
plateia seguiu de modo efusivo. Então entendi porque na hora da
composição começavam pelo refrão: mais importante que a voz de
cada um era o todo. Ubuntu.
Depois dessa canção de boas-vindas, ingênua e otimista, que
logo logo seria deixada de lado pelo grupo, ensaiaram o refrão de
uma canção, que apresentava a percepção que tiveram de algo que
aprenderam no Brasil: o racismo. A canção rompeu com a
cordialidade ingênua, mostrando os dentes, afirmando a
identidade racial, africana, apelando para a história em comum. Os
versos, fortes e provocativos, causavam reações que o refrão
transformava em congregação. Nada tão simples. É certo o
estranhamento de muitos. É certo que aquela alegria que descrevi
inicialmente continuava presente. Mas agora era uma alegria que
vinha com um sorriso de inteligência e desafio. Hip-hop presente!
Antes de começar sua fala, o professor Kabenguele Munanga
seguiu os procedimentos de bom orador, saudando as autoridades,
mas também contextualizando, articulando e restaurando a
atenção, ao afirmar uma continuidade com a apresentação que o
tinha o precedido: “eu vou agora dizer em prosa aquilo que o grupo
de hip hop acabou de cantar tão bem, isso porque não tenho a
habilidade destes estudantes, que disseram em versos. É a mesma
mensagem, só que em prosa”.

18
Introdução

Este livro é um registro e apresentação do Bota a fala em seu


aniversário de 4 anos, mas também uma tentativa de fazer jus à
atenção e ao carinho com que o projeto foi recebido e desenvolvido
na UNILAB/BA.

Até o momento, o Bota a Fala teve (ao menos) três


fases/formações:
(1) a primeira, que começou a ensaiar em Janeiro de 2015, com
Magno (Magnusson da Costa), S_many (Suleimane Alfa Bá), Lauro
(Lauro José Cardoso), Tânia Brasiguis (Tânia Correia Jaló) e Dito
Buah Sd (João Dito); escreveram as canções “Preconceito” e “Bem-
Vindos”;
(2) a segunda, com Magnusson da Costa, Suleimane Alfa Bá,
Lauro José Cardoso, Kadija Turé (Cadi Turé) e Chito (Victor
Cassamá), realizou as primeiras gravações em estúdio, compôs
“Integração”, algumas canções ainda não gravadas e realizou
diversas apresentações;
(3) a terceira, a patir do segundo semestre de 2017, com
Magnussom da Costa, Suleimane Alfa Bá, Lauro José Cardoso,
Eugênio da Silva Evandeco, Juciane Aparecida e Patrícia Nzalé, que
fez “Africar”, “A gente não para” e “Ocupando a Casa Grande”.

Nesse percurso, até 2018, Magno, S_many e Lauro José foram


nomes constantes no grupo Bota a fala. A entrada e saída de pessoas
em projetos como esse é algo comum e necessário; no entanto,
quando se trata de trabalhar com uma linguagem artística como o
hip-hop, gênero marcado pela contestação ilimitada, é preciso
ponderar que tipo de limites e possibilidades que a instituição
universitária congrega. Algumas das pessoas que fizeram parte do
Bota a Fala resistiram à ideia de que o hip-hop/rap pudesse ser, de

19
Marcos Carvalho Lopes

alguma forma, objeto e tema de estudo. Tomavam a canção como


algo tão orgânico, que é parte de suas vidas, que não permitiria
distância ou mediação. Tentei respeitar esse tipo de postura não
colocando como obrigatória a participação de encontros e eventos
em que procurei apresentar caminhos de reflexão sobre a canção:
apresentando uma narrativa sobre a música popular brasileira e a
ascensão do hip-hop; sobre como no Brasil o rap se vincula a
questões raciais e das periferias; como a experência estética foi
pensada por alguns autores (Cornel West, Richard Shusterman,
Martha Nussbaum e Richard Rorty); como a autocriação
promovida pela cultura de massa se relaciona com possibilidades
de educação moral etc. A não obrigatoriedade talvez não tenha sido
a melhor decisão, já que a convivência e o diálogo sobre textos,
filmes, canções etc. modificam nossa linguagem e constroem
convergências, redescrevem o que somos e inventa um “nós”.
O chamado Projeto Educacional Baseado em Artes parte do
pressuposto de que a própria performance tem valor educativo.
Neste sentido, participando dos ensaios, vendo como cada pessoa
no grupo articulava sua “fala”, dialogando com o contexto e com
uma série de discursos que os cursos de Humanidades e Letras
ofereciam, aos poucos fui aprendendo e modificando a direção do
trabalho. Tomamos a principio a performance como foco,
considerando que não teríamos condições técnicas e econômicas de
fazer boas gravações, também porque partíamos de beats baixados
da internet.
Em verdade, também considerava a distância que separa a
performance como prática viva da relação e recepção das gravações
como algo muitas vezes descontextualizado e que não pede a
articulação de um modo de vida. Se o hip-hop é uma forma de vida,
mais importante do que aquilo que aparece na gravação é a o
processo de criação e articulação deste modo de
autoquestionamento e crítica que, se legitima quando dialoga e
representa uma determinada comunidade.
Nos ensaios iniciais, mais do que provavelmente nas
apresentações, colegas que estudam no Campus seguiam a direção
dos beats e presenciaram o processo de construção das primeiras

20
Introdução

canções do Bota a Fala, o que coincide com o processo de construção


da comunidade da UNILAB no Campus dos Malês.
Neste sentido, pedi ajuda de parceiros para desenvolver um
evento que serviria de palco para o Bota a fala e lugar de integração
e interação com a comunidade de São Francisco do Conde. Junto
com o Sistema Kalakuta, grupo formado por Dudoo Caribe e Dj
Sankofa, em parceria com a prefeitura que, através de Samuel
Azevedo, cedeu as instalações do Mercado Cultural na orla da
cidade para realização de quatro festas que tiveram o nome de
Noite Africana. Outros amigos que apostavam no projeto da
UNILAB, como o poeta e professor Nelson Maca, o funkeiro carioca
Pingo do Rap, participaram também destes eventos. Começávamos
com uma palestra no período da tarde no prédio da UNILAB e mais
tarde a festa no Mercado Cultural ia das 18:00 às 22:00. Então,
geralmente no auge do evento, também estávamos perto do fim.
Sem qualquer financiamento ou verba, sem cobrança de ingressos,
na mesma medida em que aumentava o número de pessoas, mais
difícil ficava administrar os problemas. Por conta de uma série de
fatores tivemos que parar com o evento Noite Africana, o que
deixou o Bota a fala sem um palco para crescer e criar.
A necessidade de registrar gravações que fossem dignas de
divulgação tornou-se algo urgente. Assim, gravamos nos estúdios
de Luis Enrique (Riquinho, no Clara Visão) as canções Preconceito
(que estava pronta e funcionava muito bem nas apresentações) e
Integração (que teve os versos feitos às pressas no estúdio).
Ao mesmo tempo em que pragmaticamente fomos obrigados
a mudar nosso foco, a recepção da gravação dessas canções deu
uma dimensão do interesse que o Bota a fala despertava: divulgada
no importante site Por Dentro da África a canção Preconceito,
motivou postagem do Ministério da Igualdade Racial e chamou
atenção da grande mídia. A facilidade com que o trabalho alcançou
repercussão trouxe a promessa de visibilidade (que não se efetivou
de modo imediato), aumentando o grau de auto-exigência e de
cuidado quanto à condições para apresentações ao vivo. Na prática,
isso fez com que as performances ficassem mais raras e que as falas
acadêmicas, com participação em mesas de debate, tomassem o seu
lugar.

21
Marcos Carvalho Lopes

Em 2017 o Bota a fala alcançou grande visibilidade com sua


participação no programa Conversa com Bial da Rede Globo, que
serviu de mote para falar da Universidade da Integração da
Lusofonia Afro-brasileira (UNILAB) em uma entrevista com o
embaixador da CPLP, Martinho da Vila. Mais tarde, a canção
“Africar” composta pelo grupo foi tema de um desafio colaborativo
em que pessoas de todo país foram convidadas a dançar com seu
ritmo. Tanto a canção quanto o desafio colaborativo foram
motivados pela produção do programa Lazinho com Você,
apresentado por Lázaro Ramos, que em seu primeiro episódio
apresentou um clipe de cerca de um minuto com parte do resultado
(e gente de todo o Brasil dançando Africar).
Essa trajetória precisa ser contada com mais detalhes em um
outro momento. Neste trabalho, reunimos textos escritos pelos
membros do grupo; entrevista; referências e indicações. Textos que
são uma fotografia deste projeto, mas que precisam e devem
estimular mais escritos, sintetizando as referências e tratando de
modo mais cuidadoso o caminho deste projeto. Neste retrato, você
vai ver o Bota a fala Ocupando a Casa Grande e isso é um resultado
da UNILAB, isso é Malês, mas, principalmente, isso é parte de um
futuro que é feito a cada dia por aqueles que crescem enfrentando
as dificuldades e criando alternativas (“a imaginação é o que nos
mantém vivos”). É bom lembrar as palavras proféticas do filósofo
afro-americano Cornel West no livro Esperança na Corda Bamba
(Hope on a Tigtrope), que ensina:

é fácil cair em duas ilusões: primeiro, a noção de que a inclusão


garante maior qualidade. Em segundo lugar, a ideia de que a entrada,
ou a abertura dos portões, resulta em uma redistribuição significativa
dos benefícios culturais. A inclusão possibilita novos diálogos, novas
perspectivas, questões e orientações críticas. No entanto, apenas
disciplina, energia e talento podem produzir qualidade (WEST, 2008,
p. 40).

As cotas raciais nas universidades públicas brasileiras e a criação


da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-
brasileira (UNILAB) são as medidas mais importantes para que o
país pudesse e possa enfrentar o racismo estrutural criando

22
Introdução

possibilidades diferentes de futuro. Mas esses “portões” não foram


abertos sem luta e sacríficio de muita gente. Sigamos na busca por
produzir qualidade e ocupar a Casa Grande.

Links
Vídeo 1: Bem-Vindos na Assembleia Legislativa da Bahia (2015)

Vídeo 2: Preconceito na Assembleia Legislativa da Bahia (2015)

23
Um desafio que Bota a Fala

Assim que comecei a trabalhar na UNILAB criei um projeto de


extensão sobre canção popular e ensino de filosofia. Esta era uma
maneira de trazer para universidade parte de uma pesquisa que
realizo e que já motivou diversos ensaios e o livro Canção, Estética
e Política: ensaios legionários. Já escrevi sobre canções de Noel
Rosa, Caetano Veloso, Cazuza, Engenheiros do Hawaii, Legião
Urbana etc. Mais importante do que um grupo ou cantor específico
tentei pensar sobre o lugar privilegiado que a canção ocupa na
cultura popular do Brasil e a “acusação” de que o rock brasileiro
dos anos 80 seria já parte de uma “degeneração” massificadora que
resultou, a partir dos anos 90, em uma série de vereditos
apocalípticos sobre o fim da MPB ou da canção etc.
De modo geral, desenvolvi uma narrativa que mostra que os
roqueiros dos anos 80 mantiveram em seu discurso o tipo de Utopia
Lírica que é uma característica marcante da MPB. Contudo, a crise
cultural e política da Era Collor – a crise do mercado fonográfico, a
descentralização dos centros de produção musical, as medições de
audiência ao vivo, fazem parte de uma série de fatores que fizeram
com que as canções que se aproximavam mais do desejo popular
ganhassem mais e mais espaço – mostrou que as narrativas
esperançosas e, em certa medida épicas, sobre a transformação do
país em horizontes democráticos, fracassaram. Este fracasso
repercutiu numa grande dificuldade ou mesmo ausência de sentido
na descrição do país feita pela chave lírica: a partir de então, as
canções que tinham um sentido mais político tendiam para a prosa,
aproximavam-se do rap.
Essa é uma tese geral e por isso reducionista. Do reducionismo
provém seu apelo e utilidade. De todo modo, na medida em que
esse veredito de aproximação das canções políticas do rap e da
24
Um desafio que Bota a Fala

prosa se mostra mais justificado, sentia dificuldade maior de


escrever nessa direção. Isso porque sempre tratei das canções como
ouvinte e não como alguém que ia para shows ou tinha acesso a
performances ao vivo. A audição descontextualizada, separada da
performance e dos grupos que sustentam a autenticidade de um
estilo, permite um tipo de distanciamento e de distorção
confortável. No entanto, o hip-hop não funciona a partir deste tipo
de posição teórica. Sempre me pareceu um estilo vinculado a um
modo de vida, que não poderia ser abordado “de fora”.
Na UNILAB temos uma rica convivência entre alunas e alunos
brasileiros com alunas e alunos de diversos países da África
lusófona, principalmente de Guiné-Bissau. Quando desenvolvi
atividades sobre a canção popular brasileira consegui a
participação de um bom número de estudantes. Contudo, a
recepção era distinta, já que o que para as/os brasileiras/os era uma
complexificação de algo que já conheciam, para os africanos muitas
vezes era uma primeira audição. Ora, isso trouxe uma pergunta:
existiria nos países da África lusófona algum estilo musical que se
aproximasse do lugar simbólico que a MPB teve/tem no Brasil, ou
seja, que tomasse para si a necessidade de representar seu país? A
resposta foi “sim”, o hip-hop faz isso!

O hip-hop não era presença distante, meramente auditiva para


a maioria dos estudantes bissau-guineenses, mas sim uma forma de
vida e expressão. Isso era evidente no modo de vestir. A
internacionalização da cultura hip-hop tornava turva a ideia de
“autenticidade”, e a descolonização talvez não pudesse fugir da
rima com a palavra americanização. Para alguém que, como eu,
estuda a filosofia norte-americana, que parte de uma perspectiva
pragmatista, o hip-hop não é um objeto estranho. Basta ver o lugar
paradigmático que o rap tem na estética pragmática de Richard
Shustermam ou o CD de Hip-hop gravado por Cornel West como
tentativa de aproximar-se dos jovens.
Em verdade, logo que percebi essa preferência pelo hip-hop
comentei com alguns alunos como este estilo em muitos casos
propunha uma “filosofia de vida”, e comentei alguns textos sobre
este estilo musical e sua relação com a filosofia. A convergência

25
Marcos Carvalho Lopes

parecia frutífera. Já que existe um grupo de Hip-hop formado por


estudantes na UNILAB de Redenção, era natural fazer algo assim
também no Campus dos Malês. Alguns estudantes me cobraram
isso...
Mas não temos equipamento, não temos condições técnicas, e
agora? Devolvi a provocação: formaríamos o grupo com as
condições do contexto, no esquema faça você mesmo. E é isso! O
desafio inicial era de que, em um mês de ensaios, preparassem uma
apresentação de recepção para os calouros. No primeiro ensaio já
fiquei surpreso e esta sensação se prolonga... o sentido do Bota a
fala está hoje mais nas palavras de seus componentes do que em
algo que pudesse “teorizar”.

Filosofia como modo de vida, botando a palavra em praça


pública para o jogo de pedir e dar razões. Razão com e no compasso
do beat, rimas do pensamento dando sentido ao aqui e inventando
horizontes.
Começamos agora a ensaiar novos passos, conversando sobre
alguns textos, procurando novas pessoas para conversar e ideias
para rimar. Filosofia sem inveja de Homero...

26
Nunca tive um brinquedo para chamar de
meu2

Magnusson da Costa

Nunca tive um brinquedo para chamar de meu. Nasci e cresci


num dos maiores bairros de Bissau – Bandim - e em diferentes
zonas. Minha infância foi entre a ilha de Orango de Grande, nos
arquipélagos dos Bijagós e o “Bairro Plano” (parte de Bairro
Bandim) em Bissau, capital da Guiné-Bissau, construído pelo
governo para os funcionários do Ministério de Plano e
Desenvolvimento nos finais dos anos 1990 (meus pais não eram
funcionários e nem nossa casa era desse projeto; foi construída no
anexo do terreno que sobrou do projeto).
Com o conflito político-militar que assolou o país em 1998,
minha família teve que se refugiar na Ilha de Orango Grande – seu
local de origem. Foi então que conheci um pouco da cultura da
minha etnia, foi ali que estudei a primeira e a segunda classe.
Conheci meus tios e tias, primos e primas... foi exatamente ali que
começou minha paixão pela música.
Minha etnia tem um hábito de que quando a pessoa estiver
bêbada, feliz, triste, a trabalhar, a festejar etc. ela canta. A música
está presente em toda atividade da vida dos bijagós. Por isso, eu
ouvia muito o meu tio (irmão da minha mãe) a cantar quando
estava bêbado ou a trabalhar. Isso me encantava muito. Só então,

2Este texto é uma adaptação da introdução do TCC de Manussom da Costa Hip


Hop, reconhecimento e paideia democrática: Bota a Fala, A.se.front. e a experiência
artística, defendido em 2016 como parte das exigências do bacharelado em
Humanidades da UNILAB. Esse TCC deve ser a próxima publicação do botAfala.

27
Magnusson da Costa

quando passei a entender a língua Bijagó, pude perceber as letras


das canções que ele cantava. Percebi que eram muitas vezes o
mesmo refrão e os improvisos de estrofes, ou seja, ele tinha um
único refrão para várias canções. Os temas das letras eram/são a
expressão de seus dilemas, seus mesquinhos, suas lutas etc. que
faziam em estrofes de falas cantadas acompanhados de refrão
melódico e dramático – parecia que estava a chorar; suas letras
eram/são poesias cantadas que refletem seu universo e os seus
desejos.
Gostava muito de ouvi-lo a cantar. Ia com ele para os trabalhos
de campo só para ouvi-lo. Assim eu cresci.
Meu contato com o rap aconteceu em 2003, primeiramente
como ouvinte de grupos como: Cientistas Realistas, FBMJ, Best
Friends, Baloberos, Torres Gêmeos, entre outros. Em 2009 comecei
a participar de concursos de Playback, que eram comuns em quase
todos os bairros de Bissau e nas capitais das regiões. Nos concursos
de playback vence quem mais souber decorar e melhor interpretar
uma canção; na maior parte eram músicas do estilo rap/hip-hop,
sendo o período de explosão duma onda chamada “Nova geração”.
Em 2010, criei um grupo de rap com meu primo-irmão, Hemerju
João de Pina da Silva (Mejú), e meu amigo, Beto Issufi Sago
(Kardinal B). E daí começou meu envolvimento efetivo com o rap.
Gravamos várias canções que visavam uma intervenção social e
política.
Em 2014, vim para o Brasil e me senti inspirado (1) pelo
A.se.front (África sem fronteiras), um grupo de rap criado pelos
estudantes da UNILAB, em Redenção-Ceará, que tem como
objetivo utilizar as linguagens do hip hop para promover a
integração entre os estudantes de vários países que compõem esta
universidade, e (2) por um movimento organizado em Bissau pelos
rappers estudantes da Faculdade de Direito de Bissau (FDB), que se
reuniram e criaram um movimento para cantar suas vidas
estudantis como rappers na Faculdade de Direito. Então havia
muito preconceito sobre ser rapper na Guiné-Bissau; uma das
“justificativas” é que seriam delinquentes, que não queriam
estudar; fizeram questão de provar o contrário, mostrando que o
rap pode estar em qualquer lugar, inclusive na Faculdade. Então,

28
Nunca tive um brinquedo para chamar de meu

juntamente com o professor Marcos Carvalho Lopes e Suleimane


Alfa Bá, criamos o grupo Bota a Fala.
O hip-hop é uma expressão inglesa, que pode ser literalmente
traduzida como “balançar o quadril”, batizando um movimento
que historicamente ganha força nos Estados Unidos a partir do final
dos anos 1970 (SOUZA, 2011: 15); o Bota a fala é um projeto de
extensão e pesquisa educacional baseado nas artes, que utiliza o
hip-hop como linguagem para compor uma Paideia (educação)
democrática. Assim como o A.se.front, desenvolve atividades
através das performances artísticas e produções de artigos
académicos, não separando assim, a teoria da prática. Este trabalho
é importante na medida em que traz um panorama sobre os
movimentos de Hip-Hop Bissau-guineense, as dinâmicas que
aconteceram/acontecem no Hip Hop Guigui e sua utilização como
mecanismo para promoção de uma educação inclusiva e de
participação democrática.
Quando pedi ao professor Marcos Carvalho Lopes que
criássemos um grupo de hip-hop aqui na universidade, não
imaginava que isso podia ser tão complexo, mais do que o grupo
que criei com meus irmãos em Bissau. No Bota a fala percebi outros
horizontes mais amplos que o estilo Hip-Hop proporciona. Em
Bissau eu fazia rap com meus irmãos num espaço improvisado e
com discurso muitas vezes sem conteúdos teóricos, mas, de
vivências cotidianas numa sociedade que era nossa e na qual nos
sentíamos como uma espécie de “heróis” – como qualquer
adolescente; na UNILAB, que é uma Academia, os discursos
precisavam ser diferentes, tendo em conta o lugar institucional que
mudou e a nova sociedade que a gente enfrenta, que exige outro
discurso e outra forma de enfrentamento social. Os minicursos
que o professor Marcos desenvolveu ajudaram muito neste sentido.
Logo que ele percebeu a minha preferência pelo hip-hop
comentou como este estilo propunha uma “filosofia de vida”, e
comentou alguns textos sobre este estilo musical e sua relação com
a filosofia. A partir da experiência no Bota a Fala nasceu o interesse
em pesquisar mais sobre o rap, entender mais a cultura Hip Hop,
pois em Bissau eu era um simples participante desta cultura, mas
tinha pouco conhecimento sobre seu significado, origem, as

29
Magnusson da Costa

dinâmicas que aconteceram até o rap chegar à Bissau e a outros


lugares do mundo.
Assim, o Prof. Marcos me ofereceu o livro Hip Hop e Filosofia,
uma coletânea de Derrick Darby e Tommie Shelby coordenado por
William Irwin, Letramentos de Reexistência da Ana Lúcia Silva
Souza, Batidas, Rimas e vida escolar de Marc Lamont Hill, Se liga
no som de Ricardo Teperman e comentou a experiência do filósofo,
professor então em Harvard, que gravou um álbum de rap para se
aproximar da juventude e usar o discurso deles para transmitir
conhecimentos; também foi citado o afro-americano Doutor Cornel
West (que ganhou notoriedade por também ter atuado na trilogia
Matrix). Estes com certeza foram as inspirações iniciais de minha
pesquisa.
Meu trabalho teve como objetivo oferecer uma
contextualização sobre o rap/hip hop: sua origem; seus elementos;
seus significados; a relação do rap com a educação, forma de vida e
autocriação; um panorama sobre o rap na Guiné-Bissau e a relação
entre os dois grupos de rap criados na UNILAB (A.se.front. e Bota
a Fala) e, por fim, a análise de algumas canções desses grupos, seus
diálogos, aproximações e diferenças.
O choque com a realidade da comunidade negra na diáspora
despertou em mim a necessidade de usar da ferramenta da qual já
tinha domínio desde Bissau, como arma para combater os
problemas enfrentados na nova realidade a que estou sujeito.
Temas como racismo, preconceito e discriminação racial não
estariam na minha agenda de rapper em Bissau.
Ainda, para o desenvolvimento de meu TCC levei em conta a
memória e a experiência (vivência), que o célebre educador e
filósofo pragmatista norte-americano John Dewey entende como
aspecto inicial de qualquer relação que podemos ter com outros
seres vivos. Esta vivência como rapper, que não é singular, mas,
algo vivido com outras pessoas, sendo assim algo orgânico. Meu
gosto pelo rap/Hip Hop e a minha experiência (vivência) foram
pontos de partida (como fala Dewey) de meu trabalho.

30
Nunca tive um brinquedo para chamar de meu

Links:

2MB- Kobra Renda

2MB - I TCHUNA OU I KUÉKA feat. RAINHA INDIRA


(Official Vídeo)

2MB - PROBLEMAS DE GUINÉ BISSAU (VÍDEO OFICIAL)

31
Crônicas de um sem nome
Lauro José Cardoso

Ela tem uma beleza exótica. A são-tomense que provoca


lágrimas de saudade na expressão facial do são-tomense que por
agora se chama Sem Nome. 1m72 é a altura dessa menina que vai
evoluindo para uma jovem de 21 anos, seguidora de um grupo
grandioso de pessoas que odeiam a leitura, o estudo, mas que
conseguiu com a sua infinita alegria africana e intelectualmente
diferente, arrebatar o coração, o cérebro, o estômago, o fígado e
todo o resto físico-mental desse “santolense” pouco descrito acima.
Uma gaja de se tirar o fôlego, sedutora até nos instantes que tem
atitudes de “pleste” perante alguns dos seus familiares e supostas
amigas que sentem inveja da sua belezura corporal.
Um estudante aplicado que conseguiu, esforçada e tardiamente,
ausentar-se do país, para prosseguir a sua carreira académica numa
certa universidade materializada em terreno brasileiro, cuja
aplicabilidade em Ciências Contábeis se achava inaplicável
naquelas ilhas ricas, mas ainda com dificuldades rijas. “Quando
voltar, quero ser alguém importante e útil na minha comunidade”
essa é uma das falas que ele várias vezes utilizou na sala de aulas e
nos corredores da faculdade. Houve dias em que o próprio
duvidava da veracidade dessa afirmação. Pois nem sempre existe
vontade de enaltecer uma pátria que fornece “desvontade” a cada
notícia infeliz que paira nos seus olhos e orelhas. A esperança
apenas existe quando bem alimentada, caso não, ela é pequena
demais pra ser chamada de esperança.
Este pensamento (assim como outros que não precisam ser
descritos agora) povoava a mente enquanto ele preparava um
comentário no Facebook bem criativo e poético – sim, às vezes ele
escreve poesias facebookianas-, para a sua amada que se encontra
a enormes quilómetros de distância. Aquela foto merecia ser

32
Crónicas de um sem nome

comentada (na verdade, todas as fotos e publicações dela) porque é


necessário “marcar terreno” contra as ameaças que poderiam se
desenvolver no seio do bonito relacionamento à distância. Juras de
amor não devem ser poupadas. O medo de perdê-la para um
bandido qualquer, de ser chamado de cornudo, de sentir um ciúme
cego e descontrolado diante dos outros parecia embebedar de
fervilhamentos todos os milímetros desta paixão. Apesar de ser
conhecedor da ideia que diz que o “enamoramento” não deve estar
sobre os auspícios do egoísmo e da possessividade, o seu espírito
taurino gostava de desconhecer esta razoabilidade. “Foda-se, ela
tem que ser minha, e só minha”, tartamudeava com segurança
mesmo quando conseguia traí-la “pensantemente” ao imaginar-se
sozinho com uma brasileira podre de gostosa.
No entanto, houve um dia em que a resistência foi pela grota
abaixo. Deixou-se levar pela cadência sexual e corporal duma tal de
Rayanne, numa memorável balada na residência dum amigo,
consumando a traição antes imaginada e sonhada. Desconhecendo
ele que naquele preciso momento, aquela são-tomense de beleza
exótica que lhe provocava muitas lágrimas de saudade,
coincidentemente entrou num Range Rover pertencente a um
fulano alto, negro acinzentado de nome Rodolfo, que estava de
férias em São Tomé, à procura de tchilamento e curtição. Os dois
foram fazer algo de similar ao que ia sendo feito pelo Sem Nome e
a Rayanne, numa casa de praia da família do Rodolfo que fica na
Praia das Conchas. Duas cenas quentes, com gemidos e treme-
tremes, em cenários diferentes, mais ou menos ao mesmo tempo,
típico de uma novela brasileira, mexicana e o escambau.
Assim que terminou de depositar um gosto e um comentário
poético na foto em que ela aparece na praia (ele foi identificado
nessa postagem, que se intitulava: Pa mê grande amor Sem Nome)
de óculos escuros, com um calçãozinho rosa pequenino, uma blusa
também rosa e cheia de desenhos indescritíveis, acompanhada com
uma garrafa de cerveja Nacional na mão direita, e pose tipicamente
alegre de jovem despreocupada. O Sem Nome sentiu uma mistura
de dever cumprido e tranquilidade espiritual, que brevemente e
devido aos acontecimentos não relatados entre eles, iria provocar
uma espécie de caos sentimental de proporções rocambolescas.

33
Lauro José Cardoso

12 de julho, do ano 2012. Uma data memorável para o Sem


Nome, pois foi nesse dia que conheceu a tal sicrana de beleza
exótica. Durante as festividades alusivas ao trigésimo sétimo
aniversário de São Tomé e Príncipe, ocorridas noturnamente na
praça da independência, onde ele “girava” pra cima e pra baixo
com os seus amigos, cujos apelidos serão revelados nas próximas
alíneas. O Valdiciney, sendo o mais ativo dos três, descobriu na
multidão que se encontrava ao redor da praça, três fofinhas que
pareciam estar à espera de uns “psiu`s” dos homens que por ali
passeavam. E com uma ousadia espantosa, aumentada pelo nível
platónico do álcool, ele fez uma abordagem sedutora a elas.
Arrastando os companheiros para o “viver”.
Três horas depois, o Valdiciney e o Alex já tinham
“desmarcado” com as suas “parceiras do acaso” para um becozinho
isolado. Enquanto o Sem Nome, conhecido na altura pela sua
lentidão e excesso de mufinice, continuava conversando – assuntos
sem pés, sem cabeças - com a sua parceira do acaso, do qual
começava a ficar apaixonado, por isso não tinha coragem de sugerir
um passeio solitário, longe dos olhos das pessoas. Mas o extremo
exotismo da garina se revelou quando ela tomou a iniciativa de
arrastá-lo até ao Snack Bar, lugar dos encontros escondidos.
Acontecendo, num dos acentos do sítio, dezenas de beijos e
amassos que acabaram por provocar um pontapé de saída no
namoro. Que passados três anos, continua de pé embora com
diversas situações malignas, desejosas de ver o relacionamento no
chão.
Debruçado no sofá da sua casa, ele ia recordando esse episódio
inesquecível, lançando sorrisos pra si mesmo, numa manifestação
pura de contentamento nostálgico. Pois o tempo desliza rápido;
hoje ele se encontra distante da sua pátria, das pessoas que mais
ama, porque veio em busca de realizações que o farão regressar com
melhores “armas”, para enfrentar os desafios a serem vivenciados
quando do seu regresso. Tantas coisas precisam ser feitas,
mudanças e transformações dentro duma sociedade
majoritariamente jovem, sedenta de vida e que necessita de
alimentar indivíduos sonhadores, crentes em fazer a diferença,
perspectivando a honestidade como luta contra as mentes

34
Crónicas de um sem nome

corruptas. Nada disso é impossível; afinal, o possível mora tão


perto das nossas ações que basta acreditarmos na possibilidade de
ele existir. “Héhéhé, a nostalgia me levou a ter vários pensamentos
heróicos hoje, espero continuar nesse caminho”, refletiu com os
seus botões ao levantar-se para preparar o mata-bicho. Precisava
iniciar o dia com muita energia, ia preparar uns bons ovos mexidos,
leite para o seu deleite e, claro, tinha de ir comprar pão.
Após ter comprado os pães num supermercado que ficava perto
de casa, voltou e começou a comer. Assim que acabou de colocar o
último pedaço de pão na boca, o seu celular tocou; era Rayanne. Ele
não atendeu. Na verdade, nos últimos dias ela tem insistido
bastante, parece estar a fim de uma relação mais séria, mas o Sem
Nome não pretende levar essa ideia adiante, porque tem a sua
negra de beleza exótica a espera nas ilhas maravilhosas. E já deixou
bem claro pra ela, só que os seus ouvidos insistem em querer ouvir
outra coisa que ele não deseja dizer. Entretanto, o celular voltou a
tocar, mas desta vez era a sua mãe que ligava de São Tomé, o que
causou estranhamento no seu semblante, primeiro porque pensava
que era a Rayanne de novo, segundo porque a Dona Ernestina
nunca ligava pra ele às 7h da manhã.
A notícia que recebeu funcionou como um explosivo dentro do
cérebro. Depois de ter desligado, várias coisas passaram na sua
cabeça. Desde arranjar dinheiro e voltar imediatamente ao seu país
natal a sair pra rua e gritar que nem louco. Tudo para tentar soltar
a agonia que tinha sido interiorizada; todavia, a tranquilidade
venceu e ele conseguiu restabelecer a normal forma de raciocinar.
“Eu não quero acreditar que ela foi capaz de fazer isso”, disse entre
dentes, fazendo um esforço enorme para minimizar a raiva que
sentia naquele momento. O Sem Nome, num ato de desespero
artístico, decidiu expressar toda a ira através dum poema cujo título
é: “Ela está grávida doutro homem”.
Quando se trata de seguir os sonhos, é preciso ter uma mente
aberta em descobrir caminhos que possam materializá-los. Porque
um sonhador sem perspectivas palpáveis resume-se num ser
humano condenado a “andar nas nuvens”, pois não conhece o valor
der ter os “pés no chão”. O Sem Nome vai aprendendo isso, e aos
25 anos de idade, ele consegue orientar cada centímetro do seu

35
Lauro José Cardoso

sonho, catapultando-o para uma conquista final não tão distante da


iminência. É um dos melhores estudantes do curso em Ciências
Contábeis, que obviamente, entrou na sua madeira como um prego,
tendo em conta que desde mais tenra idade, a Matemática era uma
espécie de “safú”, o qual não cansava de comer.
Já se imaginava como um excelente contador das finanças numa
empresa bem renomeada na sociedade. Perspetivando a abertura
duma empresa própria na sua terra natal. Casado e, quem sabe,
com filhos pra criar. Sendo um cidadão exemplar que tem a plena
noção da sua função na comunidade. No entanto, ultimamente, a
parte sentimental tem passado por uma “idade de gelo” que
começou a se climatizar a três meses, quando descobriu que a sua
suposta alma gêmea estava, aliás, se encontra grávida doutro
homem. A garota exótica são-tomense andou a fornicar com o tal
Rodolfo, acabando por engravidar e ele ficou a par dessa
“chifração” toda, por intermédio da sua mãe, Dona Ernestina. Mas
o pior aconteceu depois de os dois terem tido uma longa e pesada
“confusão” pela webcam, onde ela confirmou a consumação da
traição e ainda fez outras confissões, que o deixaram
completamente em modo “malaboia”.
Uma dessas confissões referia-se ao fator “Ê non sou de ferro”,
sendo exatamente essa a frase que o deixou numa pilha de raiva,
pois ele acreditava que a namorada conseguiria permanecer fiel e
intocável até ao seu regresso, demonstrando certo machismo pelo
facto de ter se esquecido, que tal como ele, a garota exótica também
é uma pessoa passível de sentir uma vontade de “subir pelas
paredes” em momentos de carência. O problema é que a gravidade
da situação, para o lado da ex-namorada, foi mais adiante. Por isso,
essa sensação de mal-estar emocional que, apesar de já ter passado
algum tempo, continua atormentando sua cabeça, ao ponto dele ter
“deletado” o número da moça, bloqueado a amizade no Facebook,
jogado no lixo os papéis com os poemas que escreveu pra ela, numa
tentativa de esquecimento absoluto cuja fórmula pode não ser a
mais ideal, mas capaz de contribuir para a ilusão desse objetivo,
pelo menos. Ele até decidiu tentar um lance sério com a Rayanne;
porém, a brasileira gostosa demonstrou um “tô nem aí” demasiado

36
Crónicas de um sem nome

grande, porque a fila andou e havia muitas “caras” à espera dessa


oportunidade desperdiçada por motivos explicados anteriormente.
Contudo, por mais que em termos sentimentais a sua vida esteja
de cabeça pra baixo, esse santolense que tirou imensas lágrimas na
expressão facial por causa da garota exótica, conseguiu esforçar-se
pra não misturar essa problematização amorosa com os estudos.
Afinal, é bom ter a sabedoria de separar as duas coisas, não obstante
o facto de a vida ser um tanto relativa, sempre em movimento, e
não deve ser a desilusão afetiva uma razão realmente plausível para
destruir todas as aspirações que o Sem Nome fez e vai fazendo em
relação a sua carreira profissional. “Muito fácil na teoria…na
prática é outra coisa bem diferente, mas vou tentando” refletia
enquanto tomava um duche, no instante em que lavava o seu rosto
marcado por olhos semi-gordos e nariz de tamanho elevado.
Ele tem uma sessão de Cinema marcada para as 16h da tarde,
com uma amiga guineense chamada Cadijatu, que cursa
bacharelado em Humanidades e tem sido uma confidente que
possivelmente poderá vir a ser uma boia de salvação, em tempos
de quase afogamento passional. “Botou” uma velha t-shirt verde-
canário, após ter vestido a calça jeans rasgada e calçado uma ténis
branca, mas não tão branca, devido tanta sujidade que a vai
deixando “nancô”. E saiu ao encontro da Cadijatu. Juntos iam
assistir a estreia do filme o “Homem-Formiga”.
Curioso. Desde ontem, o Sem Nome tem recebido alguns
telefonemas de São Tomé, mas a pessoa tem desligado assim que
ele começa a falar. Será problema de rede? Talvez, mas as suas
desconfianças estão apontadas para a traidora exótica, que segundo
vários rumores e fofocas, já conseguiu parir um bebé para a
Existência, e passou a morar na casa da mãe do “papé” da
menininha, onde se encontra quase como prisioneira de guerra.
Pois também chegaram aos seus tímpanos diversas mensagens de
que ela tem passado por situações não muito dignas de sorrisos
resplandecentes. Aquele Rodolfo tem tido um comportamento
parecido com o de um polvo, que com os seus tentáculos absurdos,
vai estrangulando toda a felicidade que ela esperava adquirir na
escolha feita. “Deve estar arrependida, por isso anda a ligar”
pensava por dentro, no preciso momento em que o professor lhe

37
Lauro José Cardoso

colocava um enunciado de prova em mãos, para a qual nem tinha


estudado e se preparado como não era costume.
Enquanto caminhava a pé, de regresso a casa, bastante
desiludido com o seu triste desempenho na prova, pois sabia que
poderia ter feito bem melhor, ele deparou-se com uma situação, em
plena rua, que o deixou revoltado. Uma mulher de meia idade que
ele não conhecia de parte alguma, brasileira, aproximou-se pra
“puxar” conversa, e lhe perguntou de uma forma
inacreditavelmente “sem noção”, se no lugar de onde vinha, a
África, as pessoas só moravam em cima das árvores e se, “nós”, os
africanos, tomávamos ou não tomávamos banho por causa dessa
tonalidade de pele tão “negra”. Com uma expressão mais natural
do mundo, pois pra ela esta “simples abordagem” não tinha
nenhum carácter preconceituoso e ofensivo. O Sem Nome, que foi
apanhado de surpresa, permaneceu calado durante poucos
segundos e respondeu de forma séria e sem demonstrar qualquer
agressividade: “Quem mora em árvores são os pássaros e como sou
um ser humano que nem a senhora, mesmo tendo uma “cor”
diferente, também tomo banho!” Após afirmar isso, virou as costas
e foi se embora, deixando a senhora com uma cara de
constrangimento.
Tinha desistido de ir pra casa. Pensou em dar um “salto” até
uma pracinha, que não ficava tão longe do seu “cúbico”. Precisava
espairecer e tomar ar fresco, debaixo daquela árvore que servia de
resguardo para aquela manhã ensolarada, que estava próxima do
meio dia. Desejava refletir frescamente. E a sua reflexão foi para o
facto de o Brasil ser um país composto por uma maioria negra, que
desconhece o seu passado histórico e as relações ancestrais com o
continente africano. Daí que as situações discriminatórias e de
“embranquecimento” mental têm ocorrido nas mais diversas
regiões. O racismo é um problema muito bem enraizado na
sociedade mundial; para quebrá-lo é preciso um trabalho árduo de
“desconstrução” de preconceitos. O Sem Nome sabe disso e deseja
dar o seu contributo.
Já passavam 30 minutos ali sentado naquela relva verde, quando
a sua visão descobriu a Cadijatu vindo ao seu encontro com aquele
sorriso largo, lindo e compreensivo. Estão namorando e ela tem

38
Crónicas de um sem nome

feito muito bem a ele. Depois de terem saído, naquele dia, da sessão
de Cinema, os seus corações estavam ligados pela flecha do Cupido
e abençoados pela deusa Vénus. Mesmo sem esquecer a garota
exótica totalmente, ele sente que aos poucos vai conseguindo
arranjar mecanismos de superação. A “Pipoquinha Negra”, o nome
carinhoso que ele deu pra ela, é uma jovem muitíssimo
companheira que tem encantado o são-tomense, cujo olhar fica todo
envidraçado quando vê aquele rosto guineense sorrindo sem parar.
Cada dia que passa, o sentimento vai aumentando.
Decidiram passear de mãos dadas pela cidade, conversar sobre
assuntos românticos, dar boas risadas juntos e lançar observações
nas questões mais sérias, em que o Sem Nome falou da abordagem
preconceituosa que sofreu na rua e sobre os telefonemas
misteriosos que tem recebido. A Pipoquinha conhece toda a
história, ela tem sido uma confidente ideal, mesmo sentindo que, às
vezes, essas confidências sejam demasiado pesadas, ferindo os seus
próprios sentimentos em relação a ele. Mas sempre tem estado
presente sem pressionar ou exigir mais do que pode. A verdade
dentro dum relacionamento é uma preciosidade, porque só desta
maneira os laços poderão ser construídos com um grau de
legitimidade forte e permanente. Então, uma mensagem entrou no
telemóvel dele, o indicativo é +239. Sem ler a curta mensagem
desde o início, já tinha detetado no final da mesma, o nome do
remetente. Érica, ou seja, a traidora exótica.
Estava correndo numa calçada, à noitinha, pra manter-se em
forma, num ritmo pausado e sem ziguezagues, quando de repente
ele sentiu que havia alguém o perseguindo. A pessoa cuja
perseguição ia sendo materializada, possuía um casaco bege com
capuz, e aproximava-se a passos não apequenados. O Sem Nome
acelerou rapidamente de modo a fugir dessa possível ameaça,
porque no bairro onde vive é frequente haver assaltos e roubos
protagonizados desta forma. Foi um forte descuido da sua parte;
afinal, “dar calças roda” naquele lugar num horário delicado e com
um alto nível de “perigosidade”, pode ser catastrófico. O seu
coração começou a bater num ritmo frenético, se assemelhando aos
batuques que regem a dança puíta, pois o pânico dançava nos seus
pensamentos e emitia sons causadores da fobia invés da folia.

39
Lauro José Cardoso

O desespero ia tomando conta da alma; cada centímetro dos


escassos cabelos na cabeça pressentia que não haveria um método
de escapatória. Então, ele foi apanhado, o seu perseguidor possuía
patins no lugar dos pés, por isso esta rapidez e aproximação
repentina. No entanto, ao tirar o capuz, revelando a sua cara
identitária – que, diga-se de passagem, o deixou muitíssimo
surpreendido -, e após pronunciar o nome que ainda provocou uma
surpresa bem mais avolumada, o Sem Nome acordou do sonho com
gosto de pesadelo. Sim, era apenas um sonho não tão estranho,
devido às últimas reais informações recebidas ultimamente.
Quando se levantou pra pegar no relógio e confirmar a hora,
reparou que faltavam 43 minutos para as 3h da manhã. Era cedo
demais, o sono já tinha “bazado”, mais um dia de insónia; restava
deitar e esperar que “ele” retornasse, mas o conteúdo do sonho não
saía da sua mente. O tal Rodolfo apareceu no seu inconsciente, para
atormentá-lo enquanto dormia, e isso pra o Sem Nome não
significava “boa coisa”.
Uns bons minutos passaram, continuava sem conseguir voltar a
adormecer; logo se levantou outra vez pra pegar num livro.
Tentando que a leitura do “100 anos de Solidão”, de Gabriel Garcia
Márquez, ajudasse a atingir a concepção sonífera mais relaxante.
Todavia, não houve eficácia. Os ramos pensantes do cérebro
desejavam pensar na garota exótica que passou a ter nome: Érica.
Esta garota que já o fez sentir as maiores vibrações de amor, que
provocou muitas lágrimas de saudade e esperança, que o traiu e
agora é mãe de uma menina, vivendo sob o mesmo teto com o tal
Rodolfo, nos tempos atuais, recebe maus tratos do companheiro,
desde ameaças, violências psicológicas e físicas, debaixo dos
olhares da medrosa família do jovem pai, cuja inibição, pouca
vontade de “meter a colher” têm sustentado uma catadupa de ações
“dexemplares” que se não forem impedidas poderão acabar em
tragédia.
O Sem Nome ficou a par desta triste novidade no dia em que
recebeu a mensagem pelo celular, enviada pela própria Érica.
Contando todos os sufocos que ela tem passado, mostrando um
arrependimento por tê-lo traído e pedindo-lhe ajuda para escapar
desta situação caótica. No princípio, a raiva e o ressentimento

40
Crónicas de um sem nome

começaram por falar mais alto. Uma vontade de vingança passou-


lhe pela cabeça, pois queria ter o dom de não mover nenhuma palha
para ajudar a traidora exótica. Mas, os sentimentos por ela, que
estavam adormecidos, voltaram a acordar e ele viu a necessidade
de procurar ajudá-la. Pois a sua preocupação e envolvimento na
questão acabam sendo duplamente mais fortes porque ele sempre
aprendeu e defendeu que as mulheres não devem ser objetos de
pancada, ainda mais, pelo facto de esse caso estar relacionado com
alguém que ele… continua amando.
O problema é que ela não deseja denunciá-lo. Tem receio das
represálias que poderão cair nos seus ombros, considerado o lado
mais fraco. Porque a justiça em São Tomé e Príncipe muitas vezes
protege as pessoas economicamente mais robustas, em detrimento
daquelas mais magricelas. Além disso, o tal Rodolfo, que se
encontra decidido em mostrar a sua real faceta de jovem rico,
irresponsável e cruel, costuma fazer variados anúncios
ameaçadores de morte. Lembrando também que o mesmo, segundo
as boas ou más línguas, anda metido até a sua última fita de
“cundú” no tráfico de drogas, das quais ele também é um usuário
a caminho da dependência. Pois, por detrás daquele bonitinho
rosto tem uma feiura muito fácil de ser detectada quando se passa
a ver mais de perto. O que deve ser feito para tirá-la das mãos desse
monstro? Perguntou a si mesmo antes de adormecer como uma
pedra. Eram 4h16, domingo.

“Estamos em greve”. Foi essa a expressão final utilizada por


uma representante do comando de greve, durante uma assembleia
somente com a presença dos estudantes. A maior parte das
universidades federais do Brasil pautou pela paralisação por causa
do corte no orçamento de estado para a educação. Uma situação
bastante complexa para a comunidade estudantil, que
normalmente é a que mais padece com esses problemas e
reivindicações. No caso particular da universidade onde o Sem
Nome coabita “estudantilmente”, outras questões a mais precisam
ser reivindicadas e postas em cima da mesa, de modo a melhorar as
condições académicas como sustentabilidade para os caminhos
vindouros. No começo, ele não estava a favor da greve, mas à

41
Lauro José Cardoso

medida que o seu conhecimento quanto ao assunto foi


aumentando, o pensamento mudou. Pois, na vida, o ser humano
necessita ter um bom nível de engajamento político para reclamar
o que precisa ser reclamado, dentro dos seus direitos de cidadão.
Uma sociedade permissiva e passiva dificilmente forma indivíduos
que proponham mudanças.
Além disso, essa greve apareceu num momento em que aquele-
que-brevemente terá-o-seu-nome-revelado estava mesmo a
precisar dumas “férias” urgentes. Mesmo sabendo que estar em
greve não implica entrar de férias, ele não pode negar a utilidade
que a mesma proporciona nesse sentido. Os últimos
acontecimentos o têm deixado muito abatido e meio sem
concentração para os estudos. Apesar de ter a plena consciência que
isso “não devia acontecer”, ele sabe que “às vezes acontece”. E a sua
mãe, Dona Ernestina, está preocupada com isso; então, para mantê-
la mais sossegada, ele a vai mantendo desinformada em relação a
certos aspectos, para poder poupá-la dessas preocupações. Porque
conhece muito bem a peça, e sendo um “boló”, filho único, o
sentido de proteção materna assume uma proporção muito mais
elevada. Recordando que aos 9 ou 10 anos de idade, o Sem Nome,
era um garotinho tímido, mimadíssimo, que adorava ficar debaixo
das “saias da mama” e odiava ficar longe dela, até nos instantes em
que dormia na casa do seu primo querido, de quem gostava muito.
Ele chorava “baba e ranho” pra regressar ao aconchego que, na
altura, ficava na roça Agostinho Neto.
Quanto à Érica, a garota exótica que vai perdendo seu exotismo
devido ao excesso de gordura e falta de autoestima, continua presa
naquela situação desesperante. Permanece à mercê dos desmandos
do tal Rodolfo que, segundo as suas ingénuas palavras, tem estado
pacífico, num comportamento latente de violência que lhe deu o
direito de ser digno doutra oportunidade. Mas ele, o Sem Nome,
sente que agora ela anda ocultando verdades, mentindo e
aparentando uma felicidade que não se coaduna com a tristeza
daquele olhar outrora bué alegre, sedutor. Mais um triste exemplo
que acaba sendo encoberto, facilitando a vida daqueles que
cometem esse tipo crime, porque existe uma lei demasiado cómoda,
rígida e teórica que não contribui para coibir ninguém; aliás, até é

42
Crónicas de um sem nome

capaz de incentivar o “bom nome” dessa violência imposta, que


está em vias de crescimento devido a enchente de casos encobertos.
Os seus sentimentos têm sofrido tantas reviravoltas. O caos está
instalado. Toda essa ventania de situações que vai circulando só
fica alimentando uma confusão mental no Sem Nome. Pois, quando
parecia que a Érica já era coisa do passado e a Cadijatu, a
Pipoquinha Negra, ia aparecendo como uma alternativa de fuga,
ele voltou a cair na rede daquela garota exótica, mesmo sabendo
que as chances de tudo voltar a ser como era no início, lá em São
Tomé, estavam praticamente reduzidas a pó. Porém, parece que o
amor nos escolhe e não o contrário. Com os 25 anos de existência,
ele tem sido um “exemplificamento” disso, e por enquanto nada
tem acontecido na perspetiva de alterar essa forma de destino. A
verdade é que a sinceridade num relacionamento é muito bom, mas
tem vezes que o excesso “dela” acaba estragando tudo. A
Pipoquinha acompanhou a estória toda entre mim e a Érica, e isso
de algum modo inibiu os dois de se relacionarem mais
intensamente. Eles estão momentaneamente dispersos. “Acho que
é melhor ficar sozinho”, foi este o desabafo do Sem Nome.
Estava na rodoviária, em Salvador. Já tinha comprado o bilhete
para se deslocar à São Francisco do Conde. Seria uma viagem de
ônibus com cerca de 1h e alguns minutos, com o objetivo de visitar
um grande amigo e compatriota seu. Depois, participar numa festa
que se realizaria por lá e permanecer 3 ou 4 dias na casa dele para
conhecer bem esta cidade no interior da Bahia. Aproveitando esse
recesso forçado para recarregar algumas baterias, enquanto os dias
correm para a surpreendente revelação da sua identidade.
A festa já tinha começado, com pessoas de diversos lugares da
lusofonia, brasileiros, guineenses, cabo-verdianos, moçambicanos,
são-tomenses e angolanos. Era um ambiente multiculturalmente
africano, cheio de animação, em que todos se divertiam ao ritmo
das mais variadas músicas dos seus países, estabelecendo uma
integração festiva cujo exemplo merecia ser levado para outros
campos desta mesma convivência. Porque em hora de borga, má ou
boa vida, a maioria se integra, mas quando o assunto é sério, um
tanto diplomático dentro dum contexto relacionado ao
associativismo, existem brigas e rixas propensas a causar

43
Lauro José Cardoso

inimizades desagradáveis para todos. É certo que um dia cada


indivíduo irá regressar para as suas pátrias, deixando um passado
“desintegrado” pra trás; porém, nunca se sabe se num futuro não
muito distante, essas boas relações, caso bem plantadas, poderão
vir a ser úteis em determinadas fases da vida.
O Sem Nome achava-se numa das extremidades do salão onde
decorria a boda, com a sua camiseta rosa e bermuda azul-meio-
safada, munido de um copo descartável que escondia o doce vinho
“Pérgola”, bastante consumido na Bahia. Ele ia bebendo
lentamente, apreciando as movimentações da festa, pois sempre foi
do tipo que prefere estar observando mais, dançando menos.
Enquanto agitava a cabeça, pra trás e pra frente, com o álcool
produzindo os seus efeitos, o som que entrou de seguida, colocada
por um DJ angolano, fê-lo sentir uma vontade imensa de “bodar”.
“Essa mboa”, de Adi Cudz e Nélson Freitas, potenciou a sensação
de agarrar aquela cabo-verdiana chamada Rute, que no dia anterior
estava “dando em cima”. E foi o que ele fez. Primeiro o convite,
segundo o início da sensual dança e, terceiro, o envolvimento na
tarraxinha imposta pelo “clima quente” que somente precisava
terminar em beijos. As pessoas já estavam comentando, sobre a
forma como o calmo visitante Sem Nome ia se familiarizando no
ambiente. Mas ele não ligou pra nada, só queria usufruir o instante
e esquecer tudo, inclusive do seu nome que daqui a pouco será
revelado.
Lauro. Assim se chama o amigo e compatriota, o qual, ele foi
visitar em São Francisco do Conde. O mesmo se encontrava
surpreendido e contente, em ver que o Sem Nome estava num
divertimento a cem quilómetros por hora. Pois ele tem estado por
dentro dos assuntos que têm causado preocupação no seu “tropa”;
então, foi essa a principal razão de tê-lo convidado para passar um
tempinho em sua casa. Divertir, espairecer e “partir copos”. Os dois
se conheceram na infância, entre brincadeiras, idas e voltas para a
escola primária que fica em Guadalupe, São Tomé e Príncipe. Uma
amizade de muitos anos, que teve seu real afastamento quando o
Lauro não conseguiu à primeira tentativa, uma vaga para vir
estudar no Brasil, mas mesmo assim, eles sempre se comunicavam
pela internet, sendo que, passado um ano, os dois se reencontraram.

44
Crónicas de um sem nome

Apesar de estudarem em universidades diferentes, morando em


cidades também diferentes, ambos arranjam justificações
periódicas pra se esbarrarem.
Entretanto, de regresso à festa, onde dança após dança os bons
e os maus dançarinos iam dançando. Houve um momento em que
o DJ soltou várias puitas de Camilo Domingos, para uma maior
vibração dos são tomenses ali presentes, que apesar de não saberem
reproduzir perfeitamente esses passos tradicionais, fizeram jus aos
seus patriotismos e caíram de cabeça, tronco e membros no
compasso musical e dançante. Ensinando o que sabem para os
outros, das demais nacionalidades, que também mostravam
felicidade e facilidade em aprender. A Rute, que adora dançar, foi
uma das pessoas que melhor se adaptou, sem se desgrudar por um
segundo sequer do Sem Nome, armado em professor sabichão pelo
simples facto de estar “boiado” e acreditar que, naquela noite,
aquela cabo-verdiana gira seria uma conquista fácil. A Pipoquinha
ou a Garota exótica eram lembranças longínquas que pareciam
pertencer à outra realidade. Ele se encontrava numa dimensão
espiritual totalmente liberal, desejando mandar todos os tormentos
pra “safoda”; o seu “eu” viu interesse em deixar alguns
conservadorismos de lado. Mas nem todos estavam gostando dessa
sua incorporação na surrealidade. O ex-namorado da Rute,
pausado num canto, fervia de raiva com o que se passava,
anunciando uma atitude drástica até ao final da boda…
Todavia, essa já é outra estória. Que não vai entrar para o final
das “Crónicas” deste Sem Nome, cuja identidade foi escondida
durante seis semanas. Foram relatadas as verdades, desgostos e
aspirações de um jovem são-tomense na diáspora que, como a
maioria, pretende arranjar métodos académicos para a obtenção
dum diploma e vasto conhecimento que lhe possa abrir novas
portas e horizontes. Perspectivando várias transformações internas,
que o ajudem a crescer como pessoa, mesmo passando por
caminhos tortuosos, onde a falta de rumo serve de motivo para o
desespero. O nome do Sem Nome, na verdade, não existe. Ele pode
ter o nome que o leitor desejar, conforme a imagem que tiver dele.

45
BOTA A FALA

O hip-hop é um grande passo cultural, sem precedentes, dado por


talentosos jovens negros pobres nos guetos do império, que tem
transformado a indústria e a cultura do entretenimento tanto nos Estados
Unidos quanto no resto do mundo. A ironia fundamental do hip-hop é que
se tenha começado a percebê-lo como um fenômeno niilista, machista,
violento e de ostentação, quando na realidade o que lhe deu origem foi uma
feroz repugnância contra as hipocrisias da cultura adulta, uma indignação
em relação ao egoísmo, pela insensibilidade do capitalismo e pela xenofobia.
Cornel West

Bota a fala é o nome de um projeto de extensão – e também de


pesquisa -, que usa o hip-hop como ferramenta pedagógica para
uma educação mais democrática. Em verdade, o projeto surgiu da e
pela iniciativa de Magnusson da Costa, o Magno TWD e Suleimane
Alfa Bá, o S_many, ambos estudantes bissau-guinenses da
Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-
brasileira (UNILAB). Eles eram rappers em Guiné-Bissau, mas,
curiosamente, apesar de apreciarem o trabalho um do outro, não
haviam se reconhecido como cantores: Magno TWD gostava do
hip-hop melódico e romântico de S-many, mas não sabia que o
autor era o seu colega Suleimane; já S-many gostava das
composições polifônicas de crítica dos costumes do 2MB3, grupo de
Magno, mas não conhecia pessoalmente o autor. Convivendo como
estudantes em São Francisco do Conde puderam aprender isso que
tinham em comum.

3Por exemplo, em Kobra Renda descreve o drama de uma família que é cobrada
pelo aluguel atrasado.
46
Crónicas de um sem nome

Da esquerda para a direita: Lauro José, Ditho Buah SD, Tania Brasiguis, Chito (mostrando a língua), Magno TWD e S-many

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Marcos Carvalho Lopes

Ambos foram meus alunos em 2014, se interessaram por


filosofia e participaram de alguns minicursos e oficinas em que falei
sobre a importância da música popular no Brasil como forma de
pensar o país, numa narrativa que falava da dimensão utópica da
canção popular e que “terminava” com o “fim da canção” no rap,
que politicamente representava uma novidade radical de trazer
vozes marginais falando diretamente de política e em primeira
pessoa, da comunidade negra assumindo uma postura de
reivindicação não cordial etc. Nestas conversas fiquei sabendo do
trabalho de Suleimane e Magno e da vontade deles de fazer hip-
hop por aqui.
Topei o desafio: minha dúvida era sobre o que poderíamos fazer
sem equipamentos. Não sabia que si segu falau no fertcha n utru, sibi
i masa pedra. Sem qualquer experiência perguntei sobre como
compunham em Bissau: simples, pegavam o beat, ouviam pelo
celular e criavam a letra, desenvolviam seu canto etc. Já no primeiro
ensaio a coisa começou a render e mais gente veio participar - Tania
Brasiguis, Dito Buanh SD, Lauro, Chito, Kadija etc. - iniciando um
algo que precisava de um nome.
O nome escolhido foi “bota a fala”, expressão que encontrei no
glossário crioulo do livro de poesias de Odete Semedo, No Fundo
do Canto que explica: “Botar a fala/Bôta fala – lançar a voz,
anunciar, dar a sua opinião”. Essa é uma expressão que qualquer
brasileiro poderia entender e também estranhar. Botar a fala me
parecia ser o que faziam a partir dos beats, não somente
expressando suas opiniões, mas também pedindo e dando razões.
Pedir e dar razões é o jogo da filosofia: razão é linguagem, é palavra,
é fala que argumenta. Contudo o sentido da expressão poderia ser
algo como “conversa fiada”, falas que não falam, mas são meros
jogos retóricos sem valor; também a palavra que sagra as oferendas,
uma oração. Caberia ao Bota a fala dar sentido para suas palavras.
Cada qual sendo Tcholonadur –intérprete – de seu futuro e da
invenção da UNILAB em São Francisco do Conde.
Os poemas de Odete Semedo em No Fundo do Canto,
funcionam como tcholonadur da dor da guerra civil que abalou
Guiné-Bissau entre 1998-1999 – como explica Moema Parente
Augel. Numa de suas partes, chamada “Consílio dos Irans” existe

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Bota a fala

alguns poemas em que se promove um diálogo entre Bissau e


Guiné, partes da nação em conflito. Um deles se chama Guiné Bota
a Sua Fala e termina dizendo: “O fim dessa desavença/ é ainda puro
engano/ Muita mentira haverá de pairar/ muita calúnia
misturada/ ao mesmo ar/ que nossos filhos respiram/ Isso é mais
que uma guerra//O engano estará por detrás/ da máscara de cada
um/ não haverá fingimento/ apenas escassa alegria/ muito
arrependimento/ a nosso música... elegia/ e a cada um sua fatia”.
Findo o conflito, a arte permanece nos ensinando por traduzir o
silêncio da dor e esperanças de um povo.
Essa tarefa de tradução tem sido muitas vezes desenvolvida pela
música negra; isso acontece nas obras mais interessantes do jazz,
samba, blues, rhythm-and–blues ou hip-hop. A UNILAB precisa
inventar caminhos para a integração, superar divisões internas e
multiplicando formas de convivência. A convivência entre pessoas
de diversas nações que tem o português como língua oficial precisa
ser construída de um modo em que as diferenças sejam
minimizadas, e o pressuposto da tolerância se torne efetiva
hospitalidade, com abertura para aprender com o outro e se auto-
aprimorar. O hip-hop pode oferecer uma forma de entretenimento
para os jovens, em performances que ritualizam e adensam o
sentido comum, além de resistir e denunciar formas pobres de
existir (marcadas pela xenofonia, preconceito, sexismo etc.). É com
esta esperança que boto estas palavras e lhe convido para saber
mais e ouvir o Bota a fala.

49
Marcos Carvalho Lopes

DJ Robert Foxx, Chito, Magno TWD, Kadija, S_many e Lauro José (Foto de Vinícius Lisboa)

50
BOTA A FALA: cantando o futuro,
reconhecendo o passado4

O hip-hop foi criado por jovens negros urbanos e talentosos nos


Estados Unidos, que fundiram formas musicais do Novo Mundo
africano e estilos retóricos com as novas tecnologias pós-modernas.
Assim como os spirituals, Blues e jazz – as maiores formas de arte que
emergiram dos Estados Unidos –a música hip-hop expressou e
representou a parrhesia socrática (discurso ousado, franco e simples
diante da moralidade convencional e do poder fortificado). Os objetivos
básicos do hip-hop também se desdobram em três: criar uma agradável
diversão e uma arte séria para os rituais dos jovens; criar novas
maneiras de escapar da miséria social; e explorar novas respostas para
o significado e sentimento em um mundo dirigido para o mercado
(WEST, 2006, p.15)

Este texto apresenta o projeto Bota a fala: hip-hop,


reconhecimento e paideia democrática explicando muito
rapidamente (1)sua origem; (2) contextualizando seus pressupostos
teóricos; e (3) apresentando e analisando as duas primeiras canções
compostas pelo grupo, “Bem-vindos”, mixada com a ideia de

4 Este artigo foi publicado inicialmente em REDESCRIÇÕES – Revista


online do GT de Pragmatismo, ano VII, n.3, 2016 com a autoria de todos e
todas que faziam parte do Bota a Fala e contribuíram para construção das
canções analisadas: Marcos Carvalho Lopes, Magnusson da Costa, Tania
Correa Jaló, Kadija Turé, Lauro José Cardoso, Suleimane Alfa Bá, João Dito
Sambu, Victor Cassamá e Ró Gilberto G. Cá.
51
botAfala

lusotopia – de João de Pina Cabral; e “Preconceito”, sampleada com


a descrição da razão negra feita por Achille Mbembe.

O projeto Bota a fala: hip hop, reconhecimento e paideia


democrática surgiu de um desafio feito pelos estudantes da
Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-
brasileira. Um desafio diferente, ou melhor, uma provocação
criativa que gera sentido. Este desafio se “fia” numa lealdade, na
confiança, numa” fé” que é a chave pedagógica de qualquer
educação que valha a pena. Afiamos nossas palavras em comum, em
diálogo que retece os sentidos. Porém, seguindo o encontro, houve
um movimento, um desvio, uma inversão na direção da ação, uma
abertura que desconstrói e redescreve. Explicar em que
circunstâncias isso aconteceu ajuda a entender como a aproximação
com o hip-hop des-a-fiam e como este projeto pretende contribuir
para o desenvolvimento de uma educação (paideia) democrática.
O Bota a fala começou em janeiro de 2015, partindo do desafio
de utilizar uma linguagem que os estudantes dominavam e
gostavam, desenvolvendo canções que servissem tanto para das
boas vindas aos estudantes (estrangeiros e brasileiros que
chegavam à UNILAB), quanto como uma forma de denunciar e
combater o preconceito, um problema que no cotidiano surgiu
como novidade negativa para aqueles que vieram de países
lusófonos da África para estudar no Brasil. A miragem da
democracia racial ainda engana...
O resultado da primeira apresentação foi amplamente
positivo. De lá para cá o grupo já participou de diversos eventos,
bate-papos etc. De todo modo, o sentido do Bota a fala está mais na
autocriação e autodeterminação expressa em suas canções do que
em qualquer teoria prévia. De todo modo, há sempre alguns
pressupostos que mereceriam ser mais bem descritos.

O Bota a fala é um projeto de pesquisa educacional baseado


nas artes, que utiliza o hip-hop como linguagem para compor uma
educação (paideia) democrática. Desenvolvido por estudantes da
UNILAB do Campus dos Malês da Universidade da Integração
Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (UNILAB), o Bota a fala

52
Do samba ao hip-hop? E do hip-hop de volta ao samba...

procura debater questões raciais, questionar estereótipos de gênero,


pensar as relações entre educação estética e autocriação ética,
valorizando os múltiplos letramentos potencializados pelo hip-
hop.
Identificando-se como um projeto de pesquisa educacional
baseado nas artes (Arts-based Teacher Education Project), o Bota a fala
desenvolve uma modalidade de investigação qualitativa no campo
da educação na qual os produtos artísticos e o processo criativo de
construção são reconhecidos como “representando” resultados.
Nesse sentido, partimos do reconhecimento de que uma
performance do grupo apresenta resultados da pesquisa
desenvolvida, aproximando o fazer artístico e acadêmico (TELLES:
2006; DIAS: 2003)
O hip-hop já tem um amplo reconhecimento dentro dos
estudos afro-diaspóricos. Isso, tanto por sua relevância como uma
forma de cultura global, quanto por pedir uma contextualização
local, assim, construindo formas de expressão que misturam
elementos prévios, questionam pressupostos culturais (teóricos,
estéticos, políticos etc.) universalistas e as ideias de originalidade e
propriedade. O hip-hop pode ser um instrumento privilegiado para
a construção de uma forma de educação democrática, que rompa
com os pressupostos academicistas bancários e desenraízados.
Por conta deste potencial como forma de cultura global, o hip-
hop permite a conexão entre culturas diversas que se reconhecem
através da construção de identidades pós-coloniais em que a
cultura afro-diaspórica afirma sua condição de agente. O tipo de
abertura que a performance e a canção proporcionam, ampliam as
possibilidades de reconhecimento e identificação moral.
A identificação moral é um pressuposto para qualquer
educação que pretenda modificar os sentimentos e narrativas,
promovendo um tipo de educação profunda que mereça o nome de
democrática.
Não trataremos aqui de explicar todos os nossos pressupostos
teóricos, mas seguimos a estética pragmatista proposta por John
Dewey e desenvolvida por Richard Shusterman e Cornel West –
inspirada no neopragmatismo de Richard Rorty – para abarcar o
hip-hop; nos apropriamos da concepção de educação de Paulo

53
botAfala

Freire, pensando o oprimido como desenraizado; dialogamos com


os letramentos de reexistência de Ana Lúcia Silva Souza; da
filosofia pop de Charles Feitosa; da afroperspectiva de Renato
Noguera etc.
Aqui apresentaremos as duas primeiras canções compostas
pelo Bota a fala: “Bem-vindos” e “Preconceito”. O desenvolvimento
da letra foi feito como um trabalho ao mesmo tempo coletivo e
individual, já que as estrofes geralmente foram escritas por uma
única pessoa. Por isso mesmo, as letras não deixam de ser
polifônicas e a tentativa, desenvolvida na sequência desta
fala/texto, de descrevê-las de modo narrativo e hibrido
(sampreando seu sentido com aqueles propostos por textos
teóricos) não deve ser tomada como uma reificação, mas como uma
tentativa de complexificar e fazer pensar mais e mais com as
canções.

Bem-vindos

A ideia de uma Universidade da Integração Internacional da


Lusofonia Afro-brasileira (UNILAB) pressupõe a lusotopia de um
espaço comum de inter-relação, que se justifica e efetiva não
somente a partir do compartilhamento de uma língua, mas também
por uma série de traços culturais, institucionais, políticos que
arquitetam características de um modo de ser-no-mundo como
identidades continuadas, que facilitariam o reconhecimento e a
abertura para relações de proximidade fraternal (amicitia),
constituindo o que João de Pina Cabral chamou de ecumene, uma
rede aberta de interligações. Na descrição de Pina Cabral, a ideia de
lusotopia não é uma forma de utopia, mas um conjunto de
disposições e narrativas que funcionam como constituintes
ontológicos do mundo historicamente compartilhado. Este mundo
da lusotopia surgiu a partir da expansão marítima portuguesa no
século XVI, não se desenvolvendo como estruturas vinculadas
necessariamente com territórios, a linguagens ou nações. A
pressuposição de horizontes de sentido compartilhados efetivou-se
como catalisador para relações de proximidade e reconhecimento,

54
Do samba ao hip-hop? E do hip-hop de volta ao samba...

semelhantes aquelas que se dão na proximidade do parentesco.


Explica Pina Cabral (2010) que

fazer parte da lusotopia como ecumene é ser agente/paciente dos modos de


identificação/diferenciação que são a chave para produzir e reagir ao
catalisador da amicitia. [...] Cada um de nós que possui esses modos de
identificação/diferenciação (isto é, que os transporta no seu passado e que os
assinala de forma essencializada por virtude da sua presença) é co-
constituinte de um espaço/tempo por virtude de fazer parte dele. A lusotopia
como ecumene, portanto, consolida-se através da sua ocorrência. Essa
ocorrência é instanciada no momento de intersubjectividade – quer dizer,
para simplificar, quando duas pessoas que possuem esses modos de
identificação sentem os efeitos do catalisador de amicitia e assumem
reflexivamente a sua presença.

A UNILAB, no entanto, não é somente um lugar que


potencializa a lusotopia, mas que agrega outros fatores
explicitamente; ao afirmar-se “afro-brasileira” procura resgatar
formas de interligação, ecumenes comuns ao Brasil e a África, mas
não somente. De certo modo, a cultura jovem globalizada nos
horizontes pós-coloniais procurou apropriar-se de formas de vida
e expressão da cultura negra norte-americana. O hip-hop, que
promove conexões periféricas e diaspóricas – Halifu Osumare fala
em connective marginalities – aponta para uma internacionalização
que não se assemelha ao universalismo descontextualizado: é
preciso cantar o seu lugar, inventá-lo por meio da palavra. Com a
UNILAB não seria diferente.
A canção “Bem-vindos” foi escrita para ser uma forma de
receber os calouros que chegavam na UNILAB. Nesse sentido, seu
canto cria a legenda para este lugar no qual diversos povos “unidos
pela História” conviveriam como uma família, deixando de lado
suas diferenças. A idealização da “Família UNILAB” não se dá sem
uma nota divergente, polifônica e em uma língua distinta; em
crioulo guinense a resignação para superar as precariedades surge
como na letra de “Bem-vindos” na forma de um provérbio, que
afirma a de solidariedade diante das limitações e dificuldades (“se
isso é o que temos, é isso que vamos comer”). A UNILAB é nossa
universidade. Reivindicar o nós é criar esta comunidade imaginada.
55
botAfala

A experiência de exílio, de quem precisa viver a diáspora,


saindo de casa na procura de um futuro melhor também é
tematizada em “Bem-vindos” como uma luta na qual é necessário
utilizar o intelecto, em que a vitória é uma forma de honrar a família
distante.
Existe uma distância entre a esperança na “Família UNILAB”
e a saudade da família real: a letra antecipan o trabalho de luta/luto
necessário para habituarem-se com as ausências. Esta dupla
projeção, passado-futuro também se “espacializa” entre um fora e
dentro da UNILAB; se o mundo está cada vez mais complicado a
universidade é o lugar no qual se busca um refúgio, não como
distanciamento, mas construindo ferramentas para mudar o
mundo. A UNILAB é o ponto de partida; o projeto Bota a fala é
cantado como caminho de transformação para reconstruir o
mundo. Mas, em que sentido? Em questão está o racismo, a divisão
entre “pretos” e “brancos”. O olhar desfocado precisa ser
aperfeiçoado para superar qualquer divisão: na UNILAB
concretizaria a aproximação entre a universidade e a sociedade,
questionando o apartheid cotidiano, na direção de formas de
inclusão que realmente mereçam este nome.
Na última parte da canção outra voz surge: a do estudante que
chega, responde a saudação e faz um balanço de seus sonhos e
objetivos. Neste trecho, intuitivamente surge a ideia de que é
preciso conhecer o passado e incorporá-lo para construir o futuro
de modo consequente, sankofa. As dificuldades não são negadas,
mas a esperança de construir este lugar é a nota final: a condição
“melhorista” não jogou para baixo do tapete todos os problemas
enfrentados, mas convida aqueles que cantam juntos para que se
reconheçam nesta luta, trabalhando para fazer da “Família
UNILAB” um lugar em que a convivência permite superar as
distâncias.
(Voltando à descrição de lusotopia feita por Pina-Cabral, vale
lembrar que a disposição para relações fraternais não significa
necessariamente relações de amizade; como sabemos, muitas vezes
os conflitos que se dão entre próximos são os mais apaixonados e
violentos. A família UNILAB não deixa de ser um lugar de tensões
cordiais...).

56
Do samba ao hip-hop? E do hip-hop de volta ao samba...

Preconceito

O que significa a autoafirmação de ser negro/preto/africano?


Esta primeira palavra é um gesto de autodeterminação cujo
significado é desafio. Desafio ao primeiro movimento daquilo que
Achelle Mbembe chamou de “razão negra”, como sendo a
“consciência ocidental do negro”, um conjunto de práticas discursivas
que cotidianamente sustentam a descrição do negro “enquanto
sujeito de raça e exterioridade selvagem, passível, a tal respeito, de
desqualificação moral e de instrumentalização prática” (MBEMBE,
2014: 58). Esse primeiro discurso, que se pretendia universal, aos
poucos foi se deteriorando, ganhando tons desafinados, vozes
dissonantes que o contradiziam e contestavam, num segundo texto
que apresenta justamente, a consciência negra do Negro. Esta última
se apresentaria justamente a partir do gesto de autodeterminação,
que vem acompanhado de um “modo de presença em si, olhar
interior e utopia crítica”. Explica Mbembe que “se a consciência
ocidental é um julgamento de identidade, este texto segundo será, pelo
contrário, uma declaração de identidade. Através dele, o Negro diz de
si mesmo que é aquilo que não foi apreendido; aquele que não está
onde se diz estar, e muito menos onde o procuramos, mas antes no
lugar onde não é pensado” (MBEMBE, 2014: 59). Esta, que deveria
ser uma canção sobre “preconceito” – como afirma o título –, é na
verdade uma canção de autoafirmação (que não tem como tônica
nenhuma posição cordial ou de dupla consciência).
A apropriação positiva do nome negro é, na descrição de
Mbembe, uma forma de subversão daquilo que é atribuído e muitas
vezes interiorizado como sendo a “consciência ocidental do negro”.
Esta subversão, de certo modo, “explode por dentro” a própria
função preconceituosa do nome “negro” que, redescrito, apropria-
se do passado de escravatura, segregação e colonização, em que os
corpos eram utilizados como objetos sem voz, para afirmar o agora
em que se tem o microfone nas mãos, como aquele em que se
afirma/cria um novo sentido de protagonismo, de agenciamento.

57
botAfala

Com esta redescrição a própria palavra “negro” se esvazia de


um modo semelhante àquele em que Franz Fanon o utilizou

o termo “Negro” advém mais de um mecanismo de atribuição do que de


autodesignação. Eu não sou negro, declara Fanon, nem sou um negro. Negro
não é nem meu nome nem apelido, e menos ainda a minha essência e
identidade. Sou um ser humano e isto basta. O Outro pode disputar em mim
esta qualidade, mas nunca conseguirá tirar a minha pele ontológica. O facto
de ser escravo, de ser colonizado, de ser alvo de discriminações de toda a
espécie de praxes, vexações, privações e humilhações, em virtude da cor da
pele, não muda absolutamente nada. Continuo a ser uma pessoa
intrinsecamente humana, por mais violentas que sejam as tentativas que
pretendem fazer-me crer do contrário. Este excedente ineliminável, que
escapa a qualquer captura e fixação num estatuto social e jurídico e quem
nem a própria condenação à morte conseguiria interromper, nenhuma
designação, nenhuma medida administrativa, nenhuma lei ou atribuição,
nenhuma doutrina e nenhum dogma poderão apagá-lo. “Negro” é, portanto,
uma alcunha, a túnica com a qual outros me disfarçaram e na qual me tentam
encerrar. Mas entre a alcunha, aquilo que pretendem que ele diga e o ser
humano que deve interioriza-lo, há algo que jamais deixará de fazer parte do
afastamento. E é este afastamento que o sujeito é chamado a cultivar e, até, a
radicalizar (MBEMBE, 2014: p.88).

O que não se apreende é a voz, é o canto, é o gesto de


contestação próprio da linguagem hip-hop. O racista passa a ser
visto como alguém infantilizado, que bem merece assim ser tratado.
A possibilidade de criar novas harmonias na UNILAB, de fazer
deste lugar um espaço que combate e vai contra qualquer forma de
digcriminação é tema do Bota a fala, que explicitamente apropria-
se da arte para multiplicar sentidos: precisamos intervir para
melhorar as coisas, aprimorar o mundo. Este sentido de arregaçar
as mandas ao invés de prender-se a qualquer ressentimento é bem
pragmatista – é o otimismo da vontade tentando superar o
pessimismo da razão.
Quem tem a palavra agora não veio para o Brasil na condição
de escravo, muito pelo contrário, é alguém que pode ironizar a
pretensão dos que se dizem civilizados, sabendo que, ao levantar a
voz causara “espanto”, que sua autodeterminação fere os
pressupostos do universalismo que define o que é ou não

58
Do samba ao hip-hop? E do hip-hop de volta ao samba...

conhecimento. Perguntar ao ouvinte ignorante e preconceituoso,


que ocupa o lugar de quem se prende ao primeiro movimento da
razão negra, se entendeu o que foi dito, é inverter o jogo. Um passo
a mais está em afirmar a co-dependência, e pelas diferenças
reconhecer ubuntu.
Mais uma inversão é tomar as diferenças de cor como
resultado das filiações que partem da negritude: os negros e as
negras são tomados como padrão, aqueles que são a humanidade
original.
A polifonia toma lugar sem um discurso final, apenas a
afirmação de que na UNILAB teremos um espaço em que as
diferenças seriam respeitadas, ou melhor, superadas por esta
autodeterminação. Se temos diferenças culturais e de tons de pele,
mais coisas nos aproximam, muito mais coisas e sentimentos. É
preciso seguir o beat para entender a pulsação; a emoção
compartilhada na performance da canção produz uma harmonia
que materializa esse sentido.

REFERÊNCIAS
MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. Tradução de Marta
Lança. 1ª ed. Lisboa: Antígona, 2014.
OSUMARE, Halifu. “Global Hip-hop and the African Diaspora”.
In: H. Elam, Jr. & K. Jackson, eds., Black Cultural Traffic:
Crossroads in Global Performance and Popular Culture. Ann
Arbor, MI: University of Michigan Press, 2005. p. 266-288.
PINA-CABRAL, João. “Lusotopia como Ecumene” Revista
Brasileira de Ciências Sociais 25 (74), 2010, pp. 5-20.
WEST, Cornel. “Prefácio”. In: DARBY, Derrick e SHELBY, Tommie.
(Org.). Hip Hop e a Filosofia. Da rima à razão. Trad. Martha
Malvelli Leal. São Paulo: Madras, 2006. p.15-16.

59
Do samba ao hip-hop? E do hip-hop de volta
ao samba...
Num artigo de 1982, “On afro-american music: from bebop to
rap”, Cornel West descreve uma mudança de valores que coincide
com a ascensão do hip-hop: o espírito da música afro-americana,
presente nos spirituals, blues, jazz etc. dependia da esperança de que
houvesse alguém que nos oferecesse cuidado – Deus, vizinhos,
familiares; pois é justamente essa pressuposição de transcendência
que é o alvo de crítica de cantores de rap. Se a tradição da música
negra é marcada por transformar a dor em resistência, buscando
superar e resistir aos valores que causam opressão, o hip-hop surgia
em muitos casos parodiando, ironizando e subvertendo este tipo de
anseio, desfigurando qualquer dimensão utópica e mostrando o
avanço do niilismo. Nem todo hip-hop cairia no jogo do mercado,
mas seu desafio estaria justamente em fornecer, para as populações
pobres e trabalhadores, perspectivas morais, análises sociais e
posicionamentos políticos que justificassem sua condição de
herdeiros do fogo profético negro.
Esta afirmação, feita logo no início do desenvolvimento do
hip-hop, é profética e pode ser recontextualizada. O samba
brasileiro – apesar de ter sido tomado como símbolo oficial da
brasilidade mulata – também tem muitas vezes um espírito de
transcendência e um tipo de esperança que tem sua origem na
transformação do sofrimento e da dor de negros pobres
trabalhadores em canção. Contudo, na ausência de um momento de
confronto, como a luta pelos direitos civis, a afirmação negra
através da canção talvez só tenha adquirido “autoconsciência” com
o rap de Racionais, Sabotage etc. que questionavam frontalmente o
espírito cordial, desenvolvendo seu trabalho de modo
independente dos grandes esquemas de gravadora, falando da
periferia para a periferia. Essa hipótese é logo alvo de
questionamento daqueles que acusam o rap de oferecer uma
60
Do samba ao hip-hop? E do hip-hop de volta ao samba...

“autoconsciência” importada, americanizada, trazendo para o país


a retórica de um acirramento de diferenças que por aqui não faz
sentido.
Isso só mostra que a retórica da consciência não é a mais
adequada, assim como não é adequada essa acusação de
“colonização mental” feita por parte daqueles que querem defender
o hibridismo e reconhecem a dimensão global da cultura de massa.
Cornel West percebe a decadência econômica e ausência de
perspectivas para os jovens norte-americanos como elementos que
justificavam o discurso e a postura hip-hop, como um modo de vida
de resistência justificado dentro dos guetos das grandes
metrópoles. Ora, este elemento contracultural e de resistência
repercutiu em diversas periferias do mundo, criando discursos que
procuram contextualizar as questões que interessam para a
comunidade local, deixando em segundo plano os anseios
modernos de originalidade e inovação, para se focar na
comunicação e diversão.
No Brasil, a inegável melhora na qualidade de vida da
população mais pobre, mudança no mercado musical,
distanciamento em relação ao momento de Ditadura, também
geraram efeitos estruturais que repercutiram no hip-hop. É este
quadro diferente que justifica, segundo Ricardo Teperman em Se
liga no Som, o surgimento de uma “segunda geração do hip-hop”,
de Criolo, Emicida etc., que parece muito mais tranquila para
aproximar-se e redescrever as tentativas de “representar o país” –
que marcam a MPB – em discursos e posicionamentos de várias
minorias. Se a origem é o gueto, é diferente o grau de escolaridade
(e, algumas vezes o gênero) de quem toma o microfone. Isso não
significa necessariamente maior consciência, mas talvez maior
capacidade de mimetizar/reconhecer os valores de distinção que
marcam a classe média, maior abertura para dialogar com outros
ritmos e artistas, uma postura menos épica e mais profissional em
relação à participação na mídia. O desafio continua semelhante
àquele descrito por Cornel West: o de manter algum horizonte
utópico de transcendência com valores que confrontem os
preconceitos e apontem para a construção de uma sociedade mais
justa. O perigo é o de tornar-se mero produto, sem conexão com os

61
Marcos Carvalho Lopes

problemas sociais, raciais e políticos do cotidiano de quem vive nas


periferias.
(Talvez nem todos queiram ser profetas, melhor ouvir – de
novo – a canção Complexo de épico de Tom Zé...).

62
CAMINHAR COM MEU PAI É SEGUIR O
CAMINHO...

Suleimane Alfa Bá5

A ideia inicial era produzir um relato sobre as minhas


experiências enquanto membro do grupo botAfala, tratando de
algumas “conquistas” nossas (por exemplo, a participação em dois
programas televisivos, Lazinho Com Você e Conversa Com Bial,
ambos exibidos naquele que é considerado como o maior canal
televisivo do Brasil, a TV GLOBO), falar nossas
realizações/produções musicais e fazer uma breve apresentação
minha.
Quando comecei a redigir esse texto, já terminando o primeiro
parágrafo, senti que algo estava faltando; senti a necessidade de
situar, em primeiro lugar, o meu lugar de fala: de onde eu venho,
como tudo começou, ainda em Bissau e quais as dificuldades
enfrentadas no processo da minha vinda ao Brasil.
Sem nenhuma referência musical na família, a minha breve
trajetória no mundo da música é, em grande parte, reflexo do
menino e homem que sempre fui.
Tímido, curioso e com uma imensa disposição de aprender
coisas novas e, de testar as minhas limitações.

5 Graduado em Bacharelado Interdisciplinar em Humanidades pelo Instituto de


Humanidades e Letras - IHL na Universidade de Integração Internacional da
Lusofonia Afro-Brasileira - UNILAB, Campus dos Malês (2016), São Francisco do
Conde - BA. Graduando em pedagogia e Pós-graduando em Gestão Pública pela
mesma Instituição. Cadastrado no Diretório do projeto de Pesquisa PIBIC/UNILAB
-Richard Rorty, literatura e educação moral: intelectuais e políticas de identidade, na
UNILAB - Campus dos Malês.
63
Suleimane Alfa Bá

Meu nome é Suleimane Alfa Bá, sou muçulmano, da etnia


Fula. Filho de Mamadu Alfa Bá e de Tete Sane, nascido aos oito dias
de mês de janeiro de mil novecentos e noventa e quatro
(08/01/1994), em Binar, situado em uma das Regiões da Guiné-
Bissau, Oio6. Sou africano de nacionalidade guineense. Em Bissau,
morava com meus pais e meus irmãos, no bairro de Antula. Ali,
iniciei os estudos de ensino primário, numa das escolas do bairro,
atual Escola São Francisco d Assis.
Apesar de não existência de cantores/músicos na minha
família, eu sempre gostei da música. Nasci e cresci numa família em
que todos fomos orientados a estudar. Música? Jamais... Ninguém
e nem eu imaginava que ali havia um cantor/rapper.
Após a conclusão dos estudos do ensino primário e de ensino
médio em Areolino Cruz7, não tinha uma ideia formulada sobre os
passos seguintes a dar em termos acadêmicos. Sob orientação
familiar e pelo que eu ouvia dos amigos, sobre como era importante
se formar em uma área que garantisse uma vaga rápida e boa de
trabalho (medicina, engenharia etc.) decidi então fazer um curso
que, hoje, pude perceber que não tinha nada a ver comigo:
Engenharia Informática, pela Universidade Lusófona da Guiné-
Bissau (2011). Após um ano de estudos, a universidade cancelou o
curso com a justificativa de que não havia condições técnicas e
materiais para dar continuidade. Então, decidi fazer uma nova
escolha, e até me arrisco a dizer que foi a das mais certas que já fiz
em termos acadêmicos. Fiz um teste e passei no curso de Direito
pela Universidade Jean-Piaget de Guiné-Bissau (2012). Foram três
anos cursando Direito, de 2012 a 2014.

6 Oio é uma região da Guiné-Bissau. Possui cerca de 215 mil habitantes,


correspondente a 14,85% da população do país. Sua capital é a cidade de Farim. Na
região de Oio, as etnias Balanta e Mandinga representam 43,6% e 32,9% da
população, respectivamente.
Os muçulmanos correspondem a 47,1%, os animistas a 20,8% e os cristãos a 15,8%.
7 A escola Areolino, apesar do nome, não é uma escola católica. É uma escola

privada. É comum ver na Guiné-Bissau filhos de pais trabalhadores pobres a


estudarem nas escolas privadas e até nas universidades. Na Guiné-Bissau há ensino
público gratuito; no entanto, os melhores estabelecimentos do ensino do país são
privados. Por isso, os pais se sacrificam para que seus filhos possam estudar nessas
instituições.
64
Caminhar com meu pai é seguir o caminho...

No meio de segundo semestre, já no terceiro ano do curso, vi


a minha vida acadêmica tomar novos rumos. Sobre isso, há um
pequeno detalhe em relação à instituição na qual estudava que é de
suma importância destacar; quiçá, é o fenômeno responsável por
esse virar de pagina na minha trajetória acadêmica e o início da
minha nova era musical, já num contexto diferente. Jean-Piaget é
uma universidade privada, a mais cara do país. Na altura, quando
ali estudava, meu pai tinha um bom emprego e conseguia suprir
pontualmente as minhas demandas financeiras acadêmicas. Pouco
tempo antes da minha viagem ao Brasil, meu pai ficou
desempregado. E havia um grande risco de eu ficar parado, sem
estudar por um longo período, uma vez que não conseguiria pagar
a mensalidade na instituição.
Pensei rápido e tomei uma decisão. Com objetivo de dar a
continuidade a minha formação acadêmica, decidi encarar um
desafio, de partir na busca de melhores condições de estudo. Por
coincidência, no mesmo período, surgiu uma oportunidade de
estudar no exterior.
A República Federativa do Brasil, através de parcerias que
manteve com os países falantes de língua oficial portuguesa,
concede bolsa de estudos, especificamente na da Universidade da
Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB). Já
conhecia um pouco da UNILAB por intermédio de amigos que ali
estudavam e ainda estudam, mas nunca tive a pretensão de estudar
nela. Queria terminar o curso em Bissau. Porém, como podem
perceber, as circunstâncias mudaram e a história se tornou outra.
“É pegar ou largar”. Foi neste âmbito que me inscrevi no processo;
a primeira fase de seleção ocorreu em Bissau, sob responsabilidade
da Embaixada do Brasil. Salvo erro, fomos um total de 730
candidatos para no máximo de 100 vagas disponíveis para a Bahia
- no campus dos Malês, no qual me inscrevi. Concorria para uma
vaga no curso de Bacharelado Interdisciplinar em Humanidades. A
ideia inicial era terminar o bacharelado e fazer uma especialização
em sociologia jurídica. Foi duro o processo seletivo, havia muitos
candidatos e poucas vagas.
Quando soube que meu nome constava na lista de
classificados para a realização de prova de redação, fiquei frio; na

65
Suleimane Alfa Bá

minha cabeça pairava a imaginação de como seria essa prova de


redação, uma preocupação e tanto. A responsabilidade começava a
se fazer sentir. E, o medo de fracassar falava alto.
No momento da prova de redação, entrei na sala e fiquei mais
de meia hora sem escrever uma palavra na folha de teste, parecia
que as ideias sumiram. O tempo máximo de entrega das provas era
de duas horas. Por um momento, as minhas mãos estavam
trêmulas, efeito de medo de não fazer uma boa redação. Fui um dos
cinco últimos a entregar a prova.
Ao sairmos, de lado de fora da Embaixada, em conversa com
os colegas, havia uns que diziam:
- Sei que fiz uma boa prova e, desta vez, vou conseguir.
Outros ainda arriscavam a dizer...
- Eu já estou no Brasil!...
E eu, preocupado, com medo de não conseguir, só me limitei
a dizer...
- Tenho fé em Deus e sei que tudo na vida tem o seu momento
certo; por isso, se esse é o meu, então serei classificado
Embora ciente da minha crença religiosa, estava claro que,
aqui na terra, o meu esforço também faria muita diferença.
Quando saiu o resultado, fiquei uma semana sem procurar
pela classificação. Escrevendo esse relato, percebo que o motivo
pelo qual não procurava saber da classificação tinha a ver com o
meu medo de fracassar, de não ser aprovado. Foi numa sexta feira,
já no último dia de entrega da carta de confirmação de interesse de
matricula e eu estava precisamente no meu local de estágio, no
Conselho Nacional de Juventude (CNJ); um amigo meu que
também havia feito o mesmo processo, o Robert, se encontrava aí
sentado ao meu lado; de repente, ele falou para um colega ao lado:
- Olha, eu vou para Brasil, fui classificado...
Ouvi a conversa dos dois e abri o meu e-mail, só para ver se
por coincidência me haviam mandado uma mensagem para
informar que eu não fui classificado. Já pensou? Fazer uma prova e
ficar na expectativa de não ser classificado? Pois é, foi exatamente
como eu fiquei. Não por achar que não tinha a capacidade de fazer
uma boa prova, mas porque as chances eram mínimas.

66
Caminhar com meu pai é seguir o caminho...

No entanto, ao abrir o meu e-mail para verificar a


classificação, a surpresa foi grande e agradável. Adivinhem, eu fui
classificado.
De imediato, saí do trabalho (estágio) direto para Embaixada
do Brasil para confirmar se realmente meu nome estava lista dos
classificados, disponível no seu Mural. Quando cheguei e vi que
realmente estava classificado, fiquei quase meia hora sentado,
debaixo de uma árvore, ao lado da embaixada e chorando.
Ninguém conseguia perceber se eram lágrimas de emoção, de uma
conquista, alegria ou se era porque fui desclassificado.
Chorei, mas as minhas lágrimas não foram apenas de alegria
por ter sido classificado. Não foram. E nem foi porque abriram
novas portas, novas oportunidades de realizar algo em termos
acadêmicos e, futuramente, profissionais.
Minhas lágrimas por um certo momento também foram de um
ADEUS, adeus à minha família (meus pais, irmão/irmãs), à minha
namorada e aos meus amigos. Sabia da tarefa que eu tinha para
cumprir e da responsabilidade que assumiria a partir daquele
momento. A minha situação não era diferente de quase todos os
colegas que fizeram o teste e que foram classificados. Tínhamos
todos algo em comum: todos viemos de famílias humilde e pobre.
Assim, o desafio tinha sido lançado. Horas depois, liguei para o
meu pai, informando-lhe da novidade; ele por sua vez, se limitou
apenas a dizer, bem baixinho...
- Parabéns filho, boa sorte.
Logo percebi o porquê de ele ter reagido daquele jeito após ter
dado uma notícia daquelas. A reação dele tinha como explicação
a mesma sensação, o mesmo sentimento que eu tive quando soube
da minha classificação. Entre os meus irmãos, fui e ainda sou o filho
mais próximo do meu pai, mesmo estando fisicamente distante.
Nos sentávamos sempre para conversar, debatendo as questões
políticas do país, assim como fazíamos reflexões sobre a nossa
família. Recebia e ainda recebo seus ensinamentos e a sua benção.
É o meu melhor amigo. Todos os dias às sete horas de manhã
o acordava para comer o matabitchu 8; saíamos juntos para praticar

8O matabitchu é uma expressão em crioulo da Guiné que, em português significa


“tomar café”.
67
Suleimane Alfa Bá

exercícios físicos. Ele é diabético. Isso me preocupa muito. O


médico lhe recomendou a prática de exercício, mas, como ele é o
único que sustenta toda a família de 30 pessoas (incluindo seus
irmãos, seus filhos, amigos que estão morando em nossa casa e na
nossa aldeia e outros ainda vivem em Senegal), não lhe restava o
tempo suficiente de repouso. E muito menos para fazer exercícios.
Com o meu incentivo, ele sempre se sentia motivado. Na
minha companhia, na estrada de Antula (bairro onde praticávamos
exercícios) era o nosso lugar favorito de colocar o papo em dia e
praticar exercícios. Foram esses os motivos das minhas lágrimas e
da reação dele quando lhe informei sobre a minha classificação
A distância, a saudade e a ausência do filho, o amigo e
companheiro da caminhada matinal já começavam a fazer efeito.
Era inevitável. Apesar de tudo, percebia algo diferente nele, uma
sensação de orgulho; afinal, era o primeiro de seus filhos a
conseguir uma bolsa de estudos para estudar no estrangeiro.

68
O hip-hop entre o Muntu e o Kintu

O hip-hop faz parte de uma longa história da música negra,


em que as canções, a dança e a palavra são utilizadas como
caminhos de resistência e denúncia em relação à opressão vivida
pela comunidade negra. No entanto, diferentemente de gêneros
anteriores como o samba, o jazz ou o blues, a denúncia no hip-hop
inclui também o vazio da promessa utópica em alguma entidade
transcendente (comunidade, familiares ou Deus) que pudesse
servir de fonte de esperança. Deste modo, o hip-hop escancara a
crise de valores, o niilismo contemporâneo (diagnóstico feito por
Cornel West).
Numa sociedade dominada pelo consumo, toda as formas de
cultura correm o risco de se tornarem meros produtos, sem sentido
ético ou vinculação com a comunidade. Esse tipo de ameaça é algo
que se confunde com a própria história do hip-hop; quando o ritmo,
estilo, dança que surgiram como parte da forma de vida e
resistência de uma comunidade, foi gravado por pessoas de fora
daquele meio e transformado em mais um produto para consumo.
Ao seguir este mesmo caminho, as performances artísticas dos
rappers, que eram parte de um determinado contexto, têm suas
referências para a comunidade questionadas ou esquecidas. O
sentido de solidariedade e resistência dá lugar para a competição e
a ostentação (sexista, violenta, consumista etc.). Como é comum em
relação a juventude de classe média, a possibilidade de ter acesso a
marcas e produtos torna-se o caminho privilegiado para a
autocriação. Muitas vezes os que conseguem transcender as
limitações de suas comunidades passam a ter como único tema
cantar o próprio sucesso (de um modo que não separa a capacidade
de identificação entre dinheiro, sexo e objetificação).

69
Marcos Carvalho Lopes

É interessante repensar o que está em jogo nesta situação a


partir daquilo que a ética africana tradicional9 concebe como
caminho de autocriação. O estudioso da religiosidade africana
Mutombo Nkulu-N’Sengha descreve, a partir da língua Luba, uma
relação dinâmica entre Muntu, Kintu e Bumuntu na definição do que
é um ser humano. Muntu seria um termo genérico que na descrição
desse autor abriga todos os seres humanos. Já Bumuntu ressalta a
“essência” de um ser humano “autêntico” (termo que na África do
Sul aparece como Ubuntu; e que mantém a mesma concepção nas
palavras Eniyan ou Ywapele em Ioruba). Essa “essência humana”
não é algo dado, mas uma autoconstrução em relação à qual cada
um é responsável e se relaciona com o respeito e a relação com os
outros. Nesse sentido, quando se pergunta o que é um ser humano,
a resposta africana seria Bumuntu, designando “uma pessoa é uma
pessoa através de outras pessoas”, ou noutra expressão, “eu sou
porque nós somos”. Essas descrições mostram a necessidade de
identificação e cuidado com o sentimento dos outros, assim como
cooperação e reconhecimento da dignidade de cada ser humano.
Alguém que não age de modo adequado perde ou falha em
sua humanidade e se torna um Kintu, termo que designa objetos
inanimados, mas também o mal caráter ou comportamento. Entre
Kintu e Muntu haveria uma oscilação, de tal modo que a ameaça de
ser considerado alguém que perdeu a humanidade tornando-se
mero objeto é algo que exige cuidado – ético e estético – constante
em relação ao comportamento: um homem belo/bom é como um
peixe dentro d’água, já o que não tem caráter é como um boneco de
madeira (NKULU-N’SENGHA, 2001, p. 81).

9 O que chamamos aqui de “ética africana tradicional” é uma concepção que tem sua
descrição derivada das línguas bantu, se considerarmos o que hoje é chamado de
tronco linguístico Níger-Congo. Cobre grande parte da África Negra. De todo modo,
a generalização é, justificadamente, motivo de controvérsia, não só por conta dos
diferentes povos e línguas, mas por conta do uso problemático e unívoco da palavra
“tradição”. Neste caso, sigo o autor Mutombo Nkulu-N’Sengha com a ressalva de
que o tipo de comunitarismo que descreve não é uma forma de essência
incomensurável da “africanidade”. Provavelmente, o tipo de individualismo
proposto pela modernidade como sinônimo de desenvolvimento é um fenômeno
muito mais restrito e recente.
70
O hip-hop entre o Muntu e o Kintu

O congolês Nkulu-N’Sengha constrói um quadro para mostrar


como na língua Luba essa concepção cosmológica é ilustrada pelo
uso do prefixo “Ki” que remete a Kintu, demonstrando a
degeneração do comportamento humano, alguém que se porta
como objeto inanimado, de modo não solidário, egoísta, não-
humano: “tata” é bom pai e “ki-tata”, pai ruim; mama, “boa mãe”
e “ki-mana”, mãe ruim; “mulume” o “bom marido” e “ki-lume” o
marido abusivo. Este tipo de tensão e busca pela autoconstrução de
um comportamento ético é marca da cultura africana tradicional.

As duas categorias de ser segundo a cosmologia Luba (NKULU-


N’SENGHA, 2009, p.144)
MU-NTU KI-NTU
Categoria de boa moral e Categoria de má moral e
inteligência estupidez

MUNTU (pessoa responsável, KI-NTU (alguém que não


boa) merece respeito)
TATA (bom pai) KI-TATA (pai ruim)
MAMA (boa mãe) KI-MAMA (má mãe)
MULUME (bom marido) KI-LUME (marido abusivo)
MULOPWE (bom rei) KI-LOPWE (tirano, rei
estúpido)

Poderíamos novamente tentar retomar a descrição da


cosmologia Luba a partir da posição polêmica do filósofo norte-
americano Cornel West quanto ao uso da palavra “nigger” dentro
do hip-hop. O termo “nigger” é extremamente pejorativo, utilizado
para destacar a objetificação da população negra no contexto da
escravidão, termo retomado como insulto racista, atribuindo a
condição de “não-pensante”. O termo, por conta de seu sentido
histórico depreciativo, foi banido do vocabulário cotidiano nos
EUA como uma palavra proibida, algumas vezes apresentada na
imprensa como “n-word”. No entanto, muitas vezes a comunidade
hip-hop utiliza para si mesma essa palavra, adaptada como
“nigga”. Cornel West preferia que a história de ódio e desrespeito
deste termo fosse lembrada e que os rappers deixassem de utilizar

71
Marcos Carvalho Lopes

essa palavra.10 Em verdade, as canções que utilizam o termo


costumam ser censuradas nas rádios e tv’s dos EUA (o que pode ter
um valor promocional interessante).
Em verdade, para Cornel West, muitos negros de classe média
passam a não mais se identificar com as populações negras das
periferias pobres, entrando num processo que, de forma
provocativa, chama de “reniggerization”: esquecem sua identidade
racial ou qualquer identificação com aqueles que sofrem diante das
estruturas racistas de opressão. Para o filósofo norte-americano, o
presidente Barack Obama seria exemplo dessa “reniggerization”:
ele teria se tornado um boneco na mão dos interesses de Wall Street,
sem questionar o encarceramento em massas, as desigualdades
crescentes, a violência policial etc. Obama, que foi eleito como
representante da esperança de mudanças democráticas que moveu
o “fogo profético negro”, herança da luta de W. E. B.Du Bois,
Malcoln X, Martin Luther King, Ida B. Wells, Angela Davis, tornou-
se o presidente dos drones, de um Império que lançou mais de 26
mil bombas por ano.
A questão que a tradição bantu coloca para o hip-hop é a de
que, ao assumir o termo “nigga”, não se faz o mesmo com a
condição de “Kintu”, colocando-se como produto dentro do jogo e
lógica do mercado? A forma como as mulheres são tratadas nas
letras de hip-hop não negam muitas vezes a condição de Muntu? A
resposta para esta questão não é unívoca, mas num tempo em que
somos governados por gangsters, tanto no Brasil como nos EUA,
preservar o sentido de comunidade é um desafio que merece
cuidado. As perspectivas de ostentação podem nos direcionar para
a perda daquilo que nos faz humanos. Não vale a pena aceitar a
condição de nigga (ainda que em Paris).

REFERÊNCIAS

NKULU-N’SENGHA, Mutombo. Bumuntu paradigm and gender


Justice: Sexist and anti-sexist trends in African traditional

10Michael Eric Dyson não concorda com essa condenação da palavra “nigga” e a
considera uma forma de redescrição dentro da comunidade negra que dá sentido
positivo a um termo antes negativo.
72
O hip-hop entre o Muntu e o Kintu

religions. What men owe to women: Men’s voices from world


religions, p. 69-107, 2001.
NKULU-N’SENGHA, Mutombo. Bumuntu. Encyclopedia of
African religion, p. 142-147, 2009.
WEST, Cornel. Curativo Hip-hop. Capoeira-Humanidades e
Letras, v. 2, n. 1, p. 79-81, 2016.
______. On Afro-American popular music: From bebop to
rap. Prophetic fragments, p. 177-188, 1988.
_____. Democracy matters: Winning the fight against
imperialism. Penguin, 2005

73
O Bill Pensador que não virou Gabriel

Magnusson da Costa

O rap brasileiro é pouco conhecido nos PALOPs. Tirando o


samba, o estilo musical brasileiro mais conhecido é o Funk. Quando
o assunto é rap brasuca, o rapper brasileiro que era/é mais
conhecido é Gabriel o pensador; por suas grandes parcerias com os
rappers lusófonos, como Boss AC. A verdade é que não sabíamos
ou sabemos que, enquanto o Gabriel estreava feliz matando o
presidente, Bill que não é Gates estreou traficando informações e
não tiveram o mesmo tratamento.
Sendo assim, sem tentar fazer nenhum tipo de comparação
entre os dois, entendo que cada um teve e tem sua importância na
cena do rap brasileiro, apresento o MV Bill e as parcerias que faz (e
muito bem) com sua irmã KmilaCDD para o público dos PALOPs
que não os conhece, porque um dia um colega comentou que o
Gabriel é o melhor poeta do rap no Brasil; entendo que este
comentário seja movido por falta de outras referências. E aqui
apresento o Bill como um dos contrapontos e não como o único ou
o melhor. Só para fomentar uma briga entre os dois cariocas e
deixar os Racionais assistindo.
Como já conhecem muitas músicas do Gabriel, vou apresentar
só a sua primeira música e algumas do Bill só para tentar empatar.
Não farei aqui nenhuma análise das letras, o que renderia várias
discussões cada uma. Vou apenas apresentar-lhes as músicas e
convidar-lhes a reflexões.
Coitado do Bill. Tão ingênuo achando que as informações que
traficava da Cidade de Deus poderiam sair do Brasil até chegar em
nossos Decks. Gabriel ficcionou deixar a primeira dama viúva com
o tiro na cara do Presidente, e logo foi contratado pela Sony Music.
74
Bill o pensador que não virou Gabriel

MV Bill escancarou a realidade das favelas, lançou a verdade crua


no “Soldado do Morro” e ganhou o título de apologista ao crime.
Talvez Bill tenha pouco talento para ficção; ou o rap que é tão
apegado a realidade não a ficção; ou a melanina que não ajudou; ou
é a guetofobia da qual o GOG fala.
Também quero deixar claro que não tenho nada contra Gabriel
o pensador, acho ele mó foda. Só fico decepcionado por não ter
conhecido o Brasil do MV Bill e Racionais MCs (pelo menos) em
Bissau, que é na minha opinião MUITO mais real. Não nego que as
suas posturas diante das grandes mídias tenham feito com que não
chegassem até nós nos PALOPs, mas acredito que os seus motivos
também precisam ser levados em conta.
Gabriel o pensador e MV Bill são do Rio com a diferença de
um ano de idade do primeiro para o segundo (1973 e 1974). Os dois
têm muito em comum. Ambos são: Rappers, compositores,
escritores, ativistas sociais, cariocas… Mas por que só o Gabriel
chegou a nós em Bissau? Por ser melhor que não é. Mas sei que o
Bill jamais cantaria que está feliz por matar o presidente. Se só o
soldado do Morro já lhe rendeu apologia ao crime, matar o
presidente seria no mínimo o golpe de Estado. Também sei que o
Gabriel não cantaria o “soldado do Morro” não por não ter a
capacidade, mas por não ter a experiencia de viver num morro.
Talvez possa ficcionar como fez com a felicidade de matar o
presidente.
Não quero ser advogado do “Tio Bill”. Seu pensamento está
presente nos seus raps que advogam por si. Gabriel fez muito mais
do que ficção; fez várias músicas que retratam a realidade
brasileira; assim, nos fez conhecer uma parte do Brasil (aquele que
a grande mídia quer nos mostrar), mas tem também outro Brasil
vivido pelo MV Bill na mesma cidade do Rio de Janeiro que
também gostaria de ter conhecido. Esse também conta. É também a
raiz, a luz, a presença e a resistência dos afrodescendentes no Brasil.
E quando Bill decide falar da política brasileira o negócio
fica MUITO SÉRIO...
Neste ano, nos PALOPs, muitos tiveram contato com o Bill e
sua irmã KmilaCDD através da participação do NGA do grupo
Força Suprema (grupo de rap angolano residente em Portugal) na

75
Magnusson da Costa

música “Um só coração” produzido por DJ Caíque que tem


mantido a conexão entre rappers dos PALOPs com o Brasil;
recentemente produziu uma música do grande rapper
moçambicano, Azagaia. Quem não conhecia Bill e KmilaCDD não
devia ter noção do quanto NGA teve privilégio, e ele mesmo
reconhece, reverenciando o mano Bill.
Meu amigo admira a poética musical de Gabriel; e se ele
conhecesse um dos grandes sucessos do Bill e sua irmã, o “Estilo
vagabundo 1, 2, 3, 4”? Não tentar explicar nada, só espero que
escute e faça sua própria análise e me fale o que acha nos
comentários.
O rap brasileiro não se resume só no Gabriel o pensador. Além
dele tem o “Tio Bill” e KmilaCDD e muitos outros. Espero que
curta!

76
Martinho da Vila, profeta da Lusofonia
E quando eu conheci Martinho da Vila, eu achava que
conhecia, mas – ai de mim! - a verdade é que não o suficiente para
ter a medida do que deveria re-conhecer em sua presença. Isso é
algo que acontece comumente, porque os seres humanos são
humanos e criam heróis, ídolos, poetas, pontos de referência que,
como “ideal”, deixam distante a possibilidade de que alguém possa
ser ao mesmo tempo humano sendo herói, ídolo, poeta. Martinho
da Vila me pareceu sempre demasiadamente humano, fazendo o
samba aproximar-se da fala, numa dicção que comunica com
facilidade, um sorriso que inspira simpatia e contagia, mas que não
alimenta metafísica. Eis aí o segredo (Aberto Caeiro demais): o
maior mistério é não haver mistério algum. A grandeza de ser
simples é um contraponto em relação ao que se cultiva na academia,
mas isso não significa que a polifonia gere necessariamente
desarmonia: é preciso aprender com o carnaval, com o samba e
entrar na roda, jogar o jogo de não somente traduzir o melhor no
mais comum, mas buscar a direção prática, de fazer diferença nas
lutas que vale a pena lutar.
Na sua autobiografia, Kizombas, andanças e festanças,
Martinho da Vila principia seu texto com um “Canto Livre” em que
justifica a escrita, mas que serve para muito mais. Três parágrafos
com sentenças meio desconexas, como se o pensamento fosse se
descrevendo em movimentos diversos, são um bom mote para
entender como Martinho se pensa como criador:

“Que bonito deve ser um país sem preconceito cultural! Todo profissional de
criação, entendendo ou não, gostando ou não, concordando ou não, deve
respeitar a criatividade popular.
Misturar culturas é sempre bom.

77
Marcos Carvalho Lopes

Criar exige um sacrifício, uma abnegação, uma vontade de


despretensiosamente colaborar com a humanidade. Não basta ler, pensar.
Tem-se que participar, batalhar pela concretização dos sonhos” (1998, p.19).

Não vou tentar explicar o que é fácil sentir: que a coerência


deste texto é dada por uma vida, com destino construído
criativamente. Foi assim que o compositor se apresentou no samba
Filosofia de Vida que lançou em 2008, quando comemorava seus
70 anos: “Meu destino eu moldei/Qualquer um pode
moldar/Deixo o mundo me rumar/Para onde eu quero ir/Dor
passada não me dói/E nem curto nostalgia/ Eu só quero o que
preciso/ Pra viver meu dia a dia”.
Mas o encontro com Martinho da Vila veio como parte de uma
entrevista em que ele falava sobre sua trajetória de vida, numa
homenagem muito bem feita e de quem o conhecia muito bem:
diante de Pedro Bial ele se soltou e contou histórias de uma forma
contagiante; com o pandeiro na mão, reviveu parte da trilha sonora
que construiu em seu caminho. Logo ele, que normalmente é
esquivo em entrevistas, “conversar não é meu forte”, disse no
lançamento do DVD Filosofia de vida – Martinho da Vila – O
pequeno burguês, de 2010.
Minha posição não foi confortável. Acabei ficando no sofá
entre o Lauro José e o Martinho da Vila. Os dois cruzaram as pernas
e eu resolvi segurar meus joelhos sinalizando que não consegui
ficar relaxado. Minha situação era desconfortável em sentido mais
amplo: de início, o programa traria uma pequena amostra do Bota
a Fala; mas, por fim, a equipe de produção ficou tão fascinada com
aquilo que encontrou no Campus dos Malês da UNILAB em São
Francisco do Conde, que o grupo de hip-hop virou mote para falar
desta universidade e de sua proposta de integração do Brasil com
os países da lusofonia. O que a Universidade da Integração
Internacional da Lusofonia Afro-brasileira tenta desenvolver,
Martinho da Vila encarna. Aos 79 anos, o cantor-compositor e
escritor de diversos livros, enfim é estudante numa faculdade –
particular –, cursa Relações Internacionais. A motivação para
escolher este curso foi tentar aprender um pouco de teoria que lhe
desse mais embasamento para exercer o cargo de Embaixador da
Boa Vontade da Comunidade dos Países Lusófonos (CPLP), cargo
78
Martinho da Vila, profeta da lusofonia

para o qual foi nomeado em 2006, como reconhecimento de seu


mérito na promoção dos valores da Lusofonia.

Numa entrevista de 2016, Martinho da Vila, depois de lembrar


de sua relação com Angola, foi perguntado sobre o que achava da
sinalização do então Ministro das Relações Exteriores, José Serra,
de que fecharia embaixadas brasileiras na África. Martinho
ressaltou o desconhecimento que essa intenção demonstrava: “É
um absurdo completo o Serra ser chanceler. Ele não tem nada a ver
com Relações Internacionais, não tem as características de um
chanceler. Ele tinha era que fazer o que estou fazendo: ir para a
faculdade estudar um pouco para aprender sobre o assunto”. Além
disso, explicou que estava no quarto período do curso de RI
buscando se aperfeiçoar: “A prática das Relações Internacionais eu
tenho há muito tempo. Sou embaixador da boa vontade da CPLP
(Comunidade dos Países de Língua Portuguesa). Quis entrar para
a faculdade para entender mais da teoria. É o que Serra deveria
fazer, para adquirir mais conhecimento. O Niemeyer com 90 anos
estudava. Eu tenho 78. Na minha sala tem gente de 20 anos. Tudo
joia! Eu sinto que eles gostariam que eu fizesse muitas intervenções
durante a aula, mas eu não faço. Estou lá também para fazer um
estudo sobre a faculdade. Não conhecia o mundo universitário”
(AZENHA, 2017).
Com essas informações sobre a trajetória de Martinho e sua
curiosidade de “pesquisador” sobre o mundo universitário, fica
mais fácil entender o mote que a produção utilizou para promover
esse encontro: eu estava lá para falar sobre o Bota a fala e, assim
também, apresentar a UNILAB e sua proposta de integração entre
Brasil e África para um Embaixador da CPLP. Por isso, talvez,
segurei minhas pernas para não tremer nessa tarefa de representar
esse projeto que é tão valioso e promissor quanto é, ao mesmo
tempo, pouco conhecido, e, no atual contexto, frágil.

A viagem pelo mundo da lusofonia foi o acontecimento mais importante que


ocorreu na minha vida. Tive contato com culturas muito ricas e me enriqueci
culturalmente. São milhões de pessoas em países de vários continentes
falando a mesma língua, mas não é só isso, todos se identificam. Embora haja
diferenças, com cada país num estado de desenvolvimento, nenhum cidadão

79
Marcos Carvalho Lopes

acha o outro estranho. Reforço que uns estão na África, e outros na Europa,
América do Sul e Ásia, todos em sintonia (p. 219).

Este é um trecho do livro Os lusófonos, um híbrido de


romance e autobiografia, que Martinho da Vila publicou em 2005,
e, numa versão revisada em 2006. O texto é fácil, tendo como
público-alvo justamente aqueles que não tem hábito de ler: a ideia
é atingir mais gente, apresentando o “mundo da lusofonia” através
de uma narrativa.
A personagem central do romance, Aristides Samora Cabral
Neto, carrega em seu nome referência as lideranças na luta pela
independência dos países da África Lusófona que se tornaram os
primeiros presidentes dos países independentes (Aristides Maria
Pereira (1923-2011), primeiro presidente de Cabo Verde; Samora
Machel (1933-1986), primeiro presidente de Moçambique; o
“Cabral” de Luís Cabral (1931-2009), primeiro presidente de Guiné-
Bissau, quebra a regra por fazer referência ao líder revolucionário
bissau-guineense Amílcar Cabral (1924-1973); e Agostinho Neto
(1922-1979), primeiro presidente de Angola). Aris, alcunha do
protagonista, é um estudioso da lusofonia nascido na ilha de
Príncipe, filho de santomense com português, e o romance narra
sua epopeia pelos territórios de língua oficial portuguesa.
Preocupado em traduzir as vivências do autor de modo
didático, sendo essa sua principal virtude e defeito, o texto por
vezes exagera, como no seguinte diálogo logo no início do romance:

- O que é lusofonia?
- É uma ação efetiva preconizada pelo ex-presidente de Portugal,
Mario Soares, em conjunto com o ex-embaixador do Brasil em
Portugal, José Aparecido da Silva. O principio filosófico visa o
interconhecimento e à interligação afetiva entre os povos
lusoparlantes. A teoria fundamenta a principal filosofia da
comunidade formada por países de língua portuguesa, que envolve
ações de solidariedade e intercâmbio cultural. (p.4).

Os lusófonos pode ser lido como romance, ensaio, em muitos


pontos como autobiografia, guia-turístico cultural, ou uma
minienciclopédia, já que depois da narrativa, o livro traz textos
80
Martinho da Vila, profeta da lusofonia

informativos, alguns escritos por colaboradores, sobre cada um dos


países lusófonos e um breve ensaio do ex-ministro da cultura,
Francisco Weffort, de título “Cultura brasileira mestiça, literatura e
samba”. As palavras de Weffort podem ser consideradas cúmplices
do projeto de Martinho da Vila, mas não sua síntese. Quem tenta
exercer ao mesmo tempo a crítica literária e a poesia, em geral não
consegue atingir o mesmo resultado nos dois campos: a poesia
tende a desvelar aspectos impensados e a prosa, por vezes reifica
pontos de incerteza como teoria. Por isso, no caso de Martinho da
Vila, é melhor não esquecer que o projeto de intervenção deste
romance já havia sido mote para um álbum inteiro em 2000, com o
nome Lusofonia, em que o cantor apresentou canções e
desenvolveu misturas musicais que dialogavam com os países
lusófonos propondo uma síntese utópica em reconhecimento de
que as diferenças dialogariam, produzindo novas misturas. Esse
“projeto profético” aparece no samba-enredo “Lusofonia”, de
Martinho da Vila e Elton Medeiros, que em sua letra começa
ponderando:

Eu gostaria de exaltar em bom Tupi


As belezas do meu país
Falar dos rios, cachoeiras e cascatas
Do esplendor das verdes matas e remotas tradições
Também cantar em guarani os meus amores
Desejos e paixões
Bem fazem os povos das nações irmãs
Que preservam os sons e a cultura de raiz

Martinho da Vila não ignora toda a polémica em torno da


adoção da língua portuguesa como idioma oficial dos países da
África Lusófona: não seria melhor adotar línguas originariamente
africanas, que correspondessem aos costumes e modos de vida
locais? A descolonização das mentes não precisaria trazer também
uma descolonização da língua? O autor não desconhece essas
questões e faz ecoar o projeto de Policarpo Quaresma, no romance
O triste fim de Policarpo Quaresma de Lima Barreto, de tornar o
tupi-guarani a língua oficial do Brasil. Preservar as línguas, sons e
modo de vida da cultura tradicional é uma decisão correta das

81
Marcos Carvalho Lopes

nações irmãs. Mas como fazer isso sem participar do diálogo entre
as nações? A segunda estrofe da canção pondera:
.
A expressão do olhar
Traduz o sentimento
Mas é primordial
Uma linguagem comum
Importante fator
Para o entendimento
Que é semente do fruto
Da razão e do amor

O cantor-compositor pressupõe certa simpatia, que se sente já


pelo olhar, experiência que Martinho teve quando visitou Angola
pela primeira vez em 1972: “Tive certeza da minha ancestralidade
angolana com o estado emocional em que fiquei quando estive em
Angola pela primeira vez e pelas vibrações que sinto, até hoje,
quando piso aquele solo” (1998, p. 68). Esta experiência de
reconhecimento virou canção. Martinho da Vila se apropriou do
ritmo angolano do semba para compor com Rosinha de Valença o
“Semba dos ancestrais” gravado em 1985 no álbum Criações e
Recriações, cuja letra diz: “Se teu corpo se arrepiar/ Se sentires também
o sangue ferver/ Se a cabeça viajar/ E mesmo assim estiveres num grande
astral// Se ao pisar o solo teu coração disparar/ Se entrares em transe em
ser da religião/ Se comeres fungi, quisaca e mufete de cara-pau/ Se Luanda
te encher de emoção// Se o povo te impressionar demais/ É porque são de lá
os teus ancestrais// Pode crer no axé dos teus ancestrais”.
Mas a experiência de Martinho aconteceu justamente num
momento em que se acirrava a luta pela libertação de Angola. O
cantor explicitamente se posicionou a favor da independência e,
quando essa aconteceu, tornou-se uma espécie de mediador
cultural na aproximação do país com o Brasil: em 1980, com o
Projeto Kalunga, de Fernando Faro, foi junto com Clara Nunes,
Ivone Lara, João Nogueira, Geraldo Azevedo, Dorival Caymmi,
Elba Ramalho, Djavan (visita que gerou a canção “Luanda”), Chico
Buarque (onde compôs “Morena de Angola”), Francis e Olivia
Hime etc. Em 1983, Martinho promoveu o movimento inverso,
trazendo para o Brasil diversos artistas de Angola – Velho Bastos,

82
Martinho da Vila, profeta da lusofonia

Mestre Geraldo, Elias Diakimuezo, Paulo Kaita, Dina Santos etc. –


no espetáculo Canto Livre de Angola (que foi gravado como LP).
Através da canção popular Martinho buscou construir pontes
entre Brasil e Angola, e foi cantando que ele conheceu os países
lusófonos. A esperança que ele deposita nas possibilidades de
transformação através da cultura não deixam de manter certa
ambiguidade, mas não são ingênuas, como ele mesmo negrita: “Há
muitas formas de luta. A mais arriscada é feita com o exemplo claro,
com a postura, com a palavra forte. A mais eficiente é feita
indiretamente, sem rancor e conquistando através da cultura,
usando-se as ocasiões oportunas para se mandar mensagens” (1998,
p. 105).
Na esquina em que Martinho da Vila canta a hermenêutica
deve considerar a ambiguidade e a dupla-face de Exu. Como todo
profeta que se preza, Martinho acredita no poder de sua mensagem,
na capacidade da canção, do amor de transcender as divisões, mas
isso não é algo ingênuo, mas uma forma de luta, que não abre mão
nem da paciência da desobediência civil, nem da ira negra que é o
orgulho da autodeterminação, mas funde estes elementos em uma
vida, ou na letra de um samba: “A paciência sempre
Lutherkhingueando/mas Malcolm X é um demônio
incorporando/ Meu coração malandramente te avisando/ Mas
você pensa que eu estou só implorando, por favor!” (Letra de Ai, ai,
ai meu coração, de 1987).
A lusofonia tem suas confusões e promessas, utopias cheias de
obcecação: não há Quinto Império no horizonte desta língua, por
isso, a insistência em navegar e seguir a aventura já marcada por
saudade e melancolia. Não é este um fado ou uma valsa que ganhou
ritmo nos descaminhos dessa trajetória; é algo diferente, um sonho
que sonha um sonho sonhado: dor que ganha forma em canção. A
última estrofe da letra de “Lusotopia” profetiza:

E sonho ver um dia


A música e a poesia
Sobreporem-se às armas
Na luta por um ideal
E preconizar

83
Marcos Carvalho Lopes

A lusofonia
Na diplomacia universal

O que a abordagem da Lusofonia feita por Martinho da Vila


nos ensina? Em primeiro lugar, podemos seguir o pesquisador
André Conforte, destacando o respeito que o autor apresenta para
com a diversidade dos países e suas especificidades. Nesse sentido,
Conforte se vale de uma citação do escritor moçambicano Mia
Couto (apud CONFORTE, p. 69), que vai na mesma direção deste
poeta da Vila:

Os lusófonos são pensados e falados do seguinte modo: Portugal, Brasil e os


PALOPS [Países africanos de língua oficial portuguesa]. Surgimos como um
triangulo com vértices um no Brasil, um em Portugal e um terceiro em
África. Ora, os países africanos não são um bloco homogêneo que se possa
tratar de um modo tão redutor e simplificado. Não se pode conceber como
uma única entidade os 5 países africanos que mantém, entre si, diferenças
culturais sensíveis. As nações lusófonas não são um triângulo, mas uma
constelação em que cada um tem a sua individualidade.

Em segundo lugar, e talvez mais importante, está a lição de


que devemos estudar mais e procurar compreender melhor a
cultura africana, especialmente a de sua parte lusófona, para
entendermos o Brasil. Por exemplo, o CD Lusofonia tem arranjos
complexos que promovem o diálogo e a fusão entre ritmos, mas
também a descoberta de conexões ainda não muito bem estudadas
ou divulgadas; explica o cantor-compositor que, ao fazer uma
versão da canção “Carambola”, de São Tomé e Príncipe, “constatei
que ela é muito semelhante aos calangos fluminenses e aos pagodes
caipiras de São Paulo das catiras e carurus” (2006: p. 26). Quem
ouvir a canção “Traço de União” que Martinho compôs juntamente
com João Bosco, encontrará nela um programa e um esboço de
estudo sobre a influência da África na música popular. Cabe a nós,
acadêmicos e pesquisadores, multiplicar esse tipo de exercício para
outras áreas do saber.

No dia 31 de outubro de 2017 Martinho da Vila recebeu da


Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) o título de Doutor
honoris causa. A justificativa para esse reconhecimento é múltipla,
84
Martinho da Vila, profeta da lusofonia

como é complexa a contribuição de Martinho para a “invenção” da


Lusofonia como mais do que uma utopia. Ora, não é tempo da
UNILAB seguir o exemplo da UFRJ e reconhecer esse embaixador
e profeta da Lusofonia com um doutorado honoris causa justamente
por causa de toda sua convergência com o projeto desta instituição?
Valeu Martinho, Martinho valeu!

Referências
AZENHA, Manuela. “Martinho da Vila, o embaixador do samba”.
Disponível em: http://www.vermelho.org.br/noticia/287157-1.
Consultado em 01/11/2017.
SUKMAN, Hugo. Martinho da Vila: discobiografia. Casa da
Palavra, 2013.
CONFORTE, André. “Martinho e a Lusofonia”. In: VARGENS, João
Batista M. e CONFORTE, André. Martinho da Vila. Tradição e
Renovação. Rio Bonito, RJ: Almadema, 2011.
VILA, Martinho da. Kizombas, andanças e festanças. 2ª. ed. Rio de
Janeiro: Record, 1998.
_____. Os lusófonos. Rio de Janeiro: Ciência Moderna, 2006.
_____. “A influência africana na música popular”. In:
CHAVES, Rita de Cássia Natal; SECCO, Carmen Lúcia
Tindó. Brasil/África: como se o mar fosse mentira. Unesp, 2006.
p.25-27.

Trilha sonora mínima deste texto:


Filosofia de vida
Traço de união
Semba dos ancestrais
Lusofonia
Meu homem
Assim não, Zâmbi
Kizomba, festa da raça
Axé pra todo mundo
Daqui, de Lá e de Acolá
Do além

85
FOI BOM DESSE JEITO
Lauro José Cardoso

De tanto escutar as suas músicas, como por exemplo: “Já tive


mulheres de todas as cores...” e “Canta, canta minha gente...deixa
tristeza pra lá”, à distância, em vários momentos da minha vida,
ouvidas a partir das novelas, programas de rádio, na internet e
outros programas de TV brasileiras que chegavam e chegam a São
Tomé e Príncipe, Martinho da Vila e eu, por ironia ou alegria do
destino, estabelecemos um encontro no programa “Conversas com
Bial”, algo que nunca imaginei que poderia acontecer. Assim que o
encontrei, o tio Martinho olhou pra mim, e quando soube que sou
de São Tomé e Príncipe, não disse nada, aliás, começou logo a
cantar: “Carambolas, nova moça, delícias de São Tomé...”.
Antes desse encontro materializar-se, enquanto estávamos nos
nossos camarins, eu e o professor Marcos, o nervosismo e o
friozinho na barriga se acendiam de forma ininterrupta dentro de
mim. Cada vez que se aproximava o instante em que teríamos que
entrar em “cena”, eu não parava de bocejar. Confesso que comecei
a ficar preocupado: e se continuasse a bocejar em frente as câmeras
no momento em que estivesse frente a frente com o Pedro Bial e o
Martinho da Vila? Afinal, não queria fazer feio na televisão. No
entanto, assim que chamaram os nossos nomes, primeiro o do
professor Marcos e depois o meu, iniciei o meu processo de
libertação e descontração. O momento era aquele, como se diz em
São Tomé “ou vai ou racha”; caminhei em passos lentos para não
tropeçar no palco, aproximei-me do sofá onde já se encontravam o
Bial e o tio Martinho, a plateia estava nos ovacionando vivazmente,
havia cerca de 3 ou 4 câmeras apontadas para nós. Lá estava eu,
Lauro José Cardoso, envolvido com as luzes dos holofotes da rede
Globo.

86
Foi bom desse jeito

Na verdade, parecia que o tempo estava congelado naqueles


minutos, iniciamos o nosso papo, falamos do Bota a fala e da
Unilab-Campus dos Malês, enaltecemos a importância da
universidade para muitos que estão inseridos nela, e convidamos,
publicamente, o músico Martinho da Vila a fazer-nos uma visita em
São Francisco do Conde. Espero que isso aconteça um dia e que eu
esteja na universidade para novamente prestigiar essa importante
figura do samba e da música brasileira. Se foi bom desse jeito, quem
sabe poderá ser melhor ainda.

Links:
Programa na íntegra
Marcos Carvalho Lopes explica como funciona a UNILAB

Lauro José Cardoso conta que sofreu preconceito

Martinho fala sobre sua experiência na universidade

Depoimentos de alunos da UNILAB

Clipe exclusivo para o programa

87
DO ESTILO ROMÂNTICO AO RAP:
botAfala e as novas influências musicais

Suleimane Alfa Bá11

O processo da inscrição e da prova se foi. Estava classificado,


mas o mais complicado ainda estava por vir: conseguir o dinheiro
para pagar a passagem aérea. Meus pais se divorciaram quando eu
tinha 10 anos, minha mãe não trabalhava e, na altura, estava doente.
Meu pai, por sua vez, como havia mencionado anteriormente,
trabalhava, mas na época estava desempregado e com problemas
de saúde. O mundo parecia desabar na minha cabeça, com meus
pais desempregados e ainda com problemas de saúde. Eu passava
noites sem dormir, dias escrevendo cartas pedindo ajuda financeira
para comprar a passagem aérea para o Brasil.
Certo dia, na casa de um amigo de infância, o Gacimo,
percebeu que havia algo acontecendo comigo, porque não me
aparentava como o habitual. Crescemos juntos, somos colegas de
idade e, por coincidência, somos fisicamente caracterizados como
iguais (pelo menos naquela época, antes eu ficar gordo como hoje
sou). Seu pai se chama Alfa, o meu também. É comerciante, sempre
me tratou como um filho. Gacimo, com ajuda do pai conseguiu
abrir o seu próprio negócio. Ele me chamou para conversar em
particular. Me perguntou o que estava acontecendo. Eu não queria
que ele soubesse, lhe disse:
-Nada amigo, não se preocupe, é apenas um probleminha com
a minha namorada, mas que passará logo.

11Bolsista o projeto de iniciação científica PIBIC/UNILAB, no projeto “Richard


Rorty, literatura e educação moral: intelectuais e políticas de identidade” na
UNILAB - Campus dos Malês.
88
Do estilo romântico ao rap

Passaram dias e cada vez mais se aproximava a data de ida ao


Brasil. Continuei escrevendo e entregando as minhas cartas,
pedindo ajuda financeira; mas, de todas que havia entregue, em
nenhuma consegui a resposta que eu tanto almejava receber.
Só então decidi contar para Gacimo o meu problema, as
dificuldades para conseguir o dinheiro da passagem aérea. Fui na
casa dele e contei tudo. Ele, de imediato me disse;
-Kantu ku pircisa del? (De quanto você precisa?)
Não acreditei no que ouvi no memento, lhe disse:
-Buna tene komu djudan? (Teria como me ajudar?)
Ele apenas respondeu:
- kontan só canto ku buna pircisa del? (Só me fala de quanto
você precisa?)...
Contei, e ele, sem pensar muito, me disse:
-Bu pudi fica sucegadu, se Deus kiri, ika na sedu pa falta de
dinheiro k na pui buka konsegui forma na Brasil, bim amanhã u bin
toma dinheiro... (pode ficar tranquilo, se Deus quiser, não será por
falta de dinheiro que te impedirá de conseguir se formar no Brasil,
passe aqui amanha para pegar o dinheiro).
Para mim, tudo parecia a nossa habitual brincadeira. Mas, não
era. Voltei para casa, e contei tudo ao meu pai, assim como fui para
casa da minha mãe e lhe dei a notícia, os dois se comprometeram a
devolver o valor assim que fosse possível.
A ajuda dele foi de suma importância. Sobre isso, um
momento durante nossas últimas conversas antes da vinda me
marcou muito, foi quando me disse:
- “Buka pircisa preocupa ku pagan, mpatiu nan el” (que eu não
precisava me preocupar com a devolução do dinheiro porque era
tudo de graça).
Fiquei parado, sem saber o que dizer, apenas o agradeci por
tudo e, naquele momento, também fiz uma promessa. A ele, eu
disse...
- Nka tene como pagau, mas, um dia, memu kika sedu kubó,
Deus na dan força e condisson pa nfaci algo pabu família (não tenho
como te retribuir, mas, um dia, mesmo na sua ausência, Deus me
dará força e condição para que eu possa fazer algo para sua família.

89
Suleimane Alfa Bá

Devo a Gacimo os meus agradecimentos por tudo que fez pra


mim, e por ter contribuído significativamente na minha vinda ao
Brasil
Tudo parecia estar resolvido, a passagem comprada e a
viagem marcada. Só estava à espera do dia e horário do embarque
para o Brasil. Como é de costume na tradição africana, meu pai
convocou uma reunião com todos os membros da família, inclusive
minha mãe. Eles não se falavam há anos, mas, naquele dia eu vi e
ouvi os dois a conversarem. Sentiram que, na verdade, o
relacionamento pode não dar certo, mas havia algo que os
mantinha ligados e que jamais poderia ser separado, o filho (eu).
Nessa reunião, também se encontravam a minha namorada e
a minha avó paterna Nenne, que tinha mais de 80 anos. Era a mais
velha dentre todos que ali estavam presentes. Meu amigo Gacimo
também fez questão de participar da reunião. Todos falaram, me
deram suas bençãos e eu os agradeci. Meus olhos estavam cheios
de lágrimas, sabia que passaria um longo período fora de casa, na
busca de um futuro melhor.
Na madrugada do dia 04/04/14, quando chegou a hora
mesmo de ida para Senegal-Dakar, todos os meus irmãos estavam
dormindo, queria acordá-los para abraçar um a um, mas eu sabia
que não ia conter as lágrimas novamente; por isso, achei melhor
deixá-los dormindo. E minha avó? Ela estava ali sentada, ao lado
da minha porta, me chamou, segurou a minha mão e disse:
- Pa Deus lebau drito, pabu bai konsegui keku na bai busca,
ami mbedju dja, talvez bu pudi kabin odja li (Que Deus te guie, que
consigas iras procurar, já sou velha, talvez não estarei mais aqui na
sua volta).
Essas palavras ficaram na minha memória; tal como previu,
meses depois da minha chegada ao Brasil, ela faleceu.
Foi um dos momentos mais difíceis da minha vida no Brasil.

Provavelmente, o público leitor do presente relato questionará


o seguinte: (1) o que esse relato pessoal, familiar tem a ver com a
experiencia musical? (2) qual é a relação do mesmo com a minha
inserção no botAfala? (3) e o botAfala, em que parte dessa história
se enquadra?

90
Do estilo romântico ao rap

Para esses possíveis questionamentos, não há uma única


resposta; porém, é de suma importância salientar que tudo está
interligado, começando pelos motivos pelo qual ingressei no
botAfala até a minha imprevisível mudança na forma de cantar.

No Brasil, conheci pessoas, fiz amizades que me ajudaram a


superar os acontecimentos familiares que me abalaram na minha
recém-chegada ao país. Acredito que, até hoje, essas pessoas nem
sabiam o que eu passava ou estava enfrentando.
Algum tempo depois, percebi que precisava fazer algo além de
só estudar para que eu conseguisse voltar a ser eu mesmo. A
sensação era de que alguma coisa estava faltando em mim. Talvez,
a minha cabeça ainda estivesse em Bissau, ou não conseguia
superar a dura realidade do desaparecimento físico da minha avó e
dos problemas de saúde dos meus pais.
De certo modo, através da música, do botAfala, as coisas
começavam a voltar ao normal. Percebi isso na minha interação
social e na forma como me sentia bem naquele que era o início de
uma nova experiencia pessoal, acadêmica e musical.
Num certo dia, ainda morando na pousada da Dona Márcia,
localizado no centro de São Francisco do Conde, ao lado da
Rodoviária, ao escutar uma música que gosto muito no meu celular,
de um grupo de hip-hop de Guiné-Bissau (2MB), uma pessoa ouviu
e me disse que um dos integrantes daquele grupo também estava
morando ali. Que viemos juntos de Bissau e estudaríamos na
mesma universidade.
A princípio não acreditei; mas fui a sua procura. Quando o
encontrei, fiquei sem reação. Nunca imaginei que aquele sujeito
cantava e muito menos uma das canções que mais gosto de escutar.
Era alguém que eu conhecia. A minha história e a dele em relação à
música se misturam em quase tudo. É engraçado, é de se
surpreender e é bom de se escutar e de ser contada. Afinal, ele
também já apreciava minhas músicas, porém, assim como eu, não
imaginava que o Suleimane Alfa Bá cantava e nem que viajou junto
e estava morando no mesmo sitio com o autor da música que ele
também curte.

91
Suleimane Alfa Bá

Era o Magnusson da Costa, que viria a ser o meu colega do


grupo botAfala, o já membro do grupo 2MB, autores de “Kobra
Renda”, a música que estava escutando no dia e que me fez saber
que ele é um rapper. Como disse anteriormente, o conhecia em
Bissau, no entanto, não sabia que é um rapper. Foi uma revelação
surpreendente para ambos saber que o outro cantava. Nessa senda
de revelações, fiquei a saber que era de uma das minhas canções
que o Magnusson mais gostava (e acredito que ainda gosta),
“N’gosta d’bó”, lançada em 2011. Essa música fez sucesso. Passava
sempre nos rádios da capital Bissau. É muito conhecida; porém, o
autor da música, eu, sempre fiquei no anonimato.
Passado algum tempo, durante as nossas conversas sobre
música, surgiu a ideia de formarmos um grupo de hip-hop na
universidade. Foi dali que fomos conversar com o nosso então
professor da filosofia, Marcos Carvalho Lopes. Ele abraçou a ideia
de imediato.
Como em Bissau já cantava, embora sendo um gênero musical
diferente da proposta do grupo que se formara, tive necessidade de
fazer um trabalho de base. Comecei fazendo pesquisas e escutando
músicas do hip-hop do Brasil. Conhecendo o modo como é feito o
rap na Guiné, entendi que precisava também entender de que
forma o rap é feito no Brasil e quais são os principais nomes no
assunto. Dentre os que encontrei, embora não seja o principal nome
do rap brasileiro, Emicida12 foi o rapper com o qual me identifiquei
logo. Já o conhecia em Bissau, o vi algumas vezes pela TV, mas não
apreciava suas músicas com atenção. No entanto, quando tive
acesso a seus trabalhos, percebi que nele eu poderia me inspirar
para compor e cantar rap.

12Leandro Roque de Oliveira, mais conhecido pelo nome artístico Emicida, nascido
em São Paulo no dia 17 de agosto de 1985 (30 anos). É um rapper, repórter e produtor
musical brasileiro. É considerado uma das maiores revelações do hip hop do Brasil
nos últimos anos. O nome "Emicida" é uma fusão das palavras "MC" e "homicida".
Por causa de suas constantes vitórias nas batalhas de improvisação, seus amigos
começaram a falar que Leandro era um "assassino", e que "matava" os adversários
através das rimas. Mais tarde, o rapper criou também uma conotação de sigla para
o nome: E.M.I.C.I.D.A. (Enquanto Minha Imaginação Compuser Insanidades
Domino a Arte).
92
Do estilo romântico ao rap

A forma como ele aborda as questões sociais nas suas músicas


foi o que mais motivou meu interesse pelo seu trabalho.

Criamos o grupo, o botAfala. Lembro que a primeira canção


que ensaiamos e apresentamos foi o “Bem-vindos”, alusiva à
recepção de novos colegas estudantes recém-chegados a Brasil, na
Unilab. Após essa primeira experiência, o grupo cresceu e se
desenvolveu; mais canções foram compostas e até gravadas.

Poderia no presente relato destacar todos os momentos ou


fases do grupo; porém, negritarei apenas dois momentos que
marcaram significativa e positivamente todos nós, enquanto
membros do grupo. A participação do botAfala em dois programas
televisivos em rede nacional, o programa “Conversa Com Bial e
Lazinho Com Você”, ambos exibidos pela TV Globo.
Gravado no dia 20 de junho de 2017, em São Francisco do
Conde-BA, a nossa participação no programa (Conversa com Bial)
foi uma das minhas mais incríveis experiências vivenciadas no
grupo. Brincando, os colegas falam que gosto de aparecer e já
conseguem imaginar uma pessoa que gosta de aparecer tendo a
oportunidade de participar de um programa como aquele? Com
câmeras e drones fazendo registros da matéria para ser exiba na
TV? Pois bem, imagino que conseguem. Foi realmente incrível,
embora cansativo, e algumas coisas me preocupavam; uma delas
foi a ideia de fazermos uma parte da gravação no Casarão da Ilha
de Cajaíba, onde foi feito o videoclipe da música “Integração”.
Para chegarmos à Ilha, teríamos que atravessar o mar. Eu
morria de medo. Não sei nadar. Esse medo não é algo de momento,
sempre tive medo de fazer travessias como aquela. No entanto,
atravessamos.
A gravação foi uma maravilha. Após aquele momento, passei
a ser o telespectador assíduo do programa (Conversa Com Bial), na
expectativa de ver a exibição da matéria. Isso demorou um tempo
para acontecer. Mas, ali estava eu, todas as noites após a aula,
deitado no sofá, assistindo, assistindo e assistindo.
Quando fomos informados pelo professor Marcos de que a
matéria iria ao ar, fui ao mercado, comprei pipocas e chamei o

93
Suleimane Alfa Bá

máximo de amigos que pude para assistirmos o programa na minha


casa. Foi bom e emocionante. Embora com pouca duração, valeu a
pena.
Com o programa do “Lazinho Com Você” a empolgação foi
menor. Deve ser pelo fato de que já havia outra experiência um
pouco semelhante. No dia da gravação da canção que seria enviada
para o desafio na plataforma digital do programa, eu não estava
presente. Me encontrava em Salvador, foi no dia de ramadã e fui
rezar na mesquita com a comunidade islâmica local. Nem havia
preparado a letra para essa música; assim que terminou a reza,
peguei o carro de volta pra São Francisco para participar na
gravação de “Africar”. Cheguei um pouco atrasado, os colegas já
haviam iniciado os trabalhos. Salvo erro, era o último dia para
enviarmos a música. Fizemos tudo às pressas. O professor Marcos
me passou uma parte da letra que havia escrito, apenas acrescentei
algumas frases em crioulo na letra e, seguimos para a gravação.
Nem tive tempo de ensaiar bem, mas o resultado foi surpreendente.
A produção do Eugênio deu a vida à música e todos ficamos
satisfeitos.
Como já me referi antes, o botAfala tem me proporcionado
experiências boas e incríveis. Cada encontro nosso, cada música
composta e gravada e cada apresentação têm sido um grande
aprendizado.
Portanto, espero que ainda possamos construir mais pontes,
possamos criar mais coisas e deixarmos mais registros para que os
futuros botafalenses passam dar continuidade ao trabalho iniciado
por nós.

S-MANY Feat TCHOKA - NGOSTA DI BO

S-MANY feat. PATRÍCIA - DIVÓRCIO (prod. Mente Criativa, part. Chito Kaharam
Killer)

94
O DIA EM QUE ESTIVE SOB UM CLIQUE
Magnussom da Costa

O dia era ensolarado e lindo. Dormi ansioso; tinha uma


gravação duma música com uma amiga na casa de um colega DJ
em Salvador. Sempre que tenho algo importante a resolver no dia
seguinte fico com insônia; não sei se você também.
E a noite anterior não foi diferente. Sempre recorria ao celular
para ver as horas e o tempo parecia congelado, nem parecia que ia
ter sol no dia seguinte.
Logo de manhã, Berlota ligou-me para confirmar se ainda está
de pé o nosso combinado; confirmei que sim. Enviei mensagem à
Tânia e combinamos que: como ela mora perto da rodoviária, que
pegasse o ônibus aí e estarei num ponto no caminho aguardando.
E assim fizemos.
Saímos de São Francisco do Conde umas nove horas e poucos
da manhã para Candeias, e de lá pegamos outro ônibus para
Salvador. Tânia estava nervosa; sempre me lembrava que nunca
tinha estado num estúdio e nunca tinha gravado uma música,
embora gostasse de cantar; e eu tentava dar uma de experiente,
dizendo-lhe que não é nada de outra galáxia e que ia dar tudo certo.
Apesar do nervosismo dela, estava entusiasmada.
Descemos no ponto de ônibus combinado com o DJ e o
encontramos a nos esperar. Seguimos com ele para sua casa. Não
imaginávamos que, com aquele sol íamos escalar o Kilimanjaro.
Entramos nas favelas de Salvador, encaramos umas ladeiras de
rachar as pernas e no final tinha uma escadaria de mais de cem
degraus para subir. Tânia viu aquilo e me disse que não ia
conseguir. Berlota sacana, disse que não era tão alto assim. O pior
de tudo é que tinha umas pausas no meio, na qual podia descansar
e dar dois passos antes de começar a subir (você sabe como é,
95
Magnussom da Costa

escadarias altas né?). Assim que atingimos a primeira pausa, eu e a


Tânia achamos que tínhamos chegado; só que vimos o Berlota
continuar a subir tranquilamente. Tânia falou que estava passando
mal, com tontura; quando virou para trás, viu a profundidade da
altura e piorou. Pediu-me para segurá-la, pois que ia cair; imaginei:
como vou conseguir segurar a Tânia vantajosa assim e eu baixinho
e seco?
-Que Deus me ajude! Implorei.
A Tânia estava muito cansada e chorando (literalmente); fiquei
com muita pena dela e preocupado de ela ter que fazer todo esse
sacrifício e chegar lá em cima e não poder gravar. Chegamos.
Ficamos uma hora sentados no chão da sala derretendo de calor
feito velas.
Começaram as gravações umas catorze horas. DJ Berlota
fumava uns becks e se empolgava com o refrão melódico da música.
O cheiro do bagulho não fazia nada bem à Tânia e a mim e nos dava
mais fome ainda. Era uma sala pequena de jovens do movimento
de Hip Hop e, lógico, pichada com frases de alguns dos seus
admiradores e letras de rap.
Terminamos as gravações pouco depois das quatro da tarde e
imaginamos o caminho de volta. Logo Tânia perguntou ao Berlota:
– Ó Berlota, não tem outro caminho mais fácil não?
-Tem, só que mais puxado. Respondeu o Berlota.
-Bora então por ele. A Tânia retrucou.
Então, metemos o pé ao trabalho. Pegamos uma estrada longa
e despencamos daquela ladeira com uma velocidade de anos-luz
redondos igual bolas de basquete. Chegamos ao ponto de ônibus,
Berlota regressou e aí veio o pior.
De repente, uma viatura da Polícia Militar parou no ponto e
dela desceram três militares – mãos pra cima! gritou um deles
apontando uma arma a um jovem negro sem camisa com short de
estampa de Bob Marley. O policial ordenou-lhe ir a um outro
policial que se posicionou a uns três metros de distância e ele foi
andando.
Fiquei de boa. Não me importei. Até pensei: “bem feito, como
pode ficar num lugar público sem camisa?”. Por um instante, senti-

96
O dia em que estive sob um clique

me aliviado por entender que a polícia devia estar atrás daquele


cara e ele é algum tipo de suspeito (meu preconceito).
O outro policial continuou andando, procurando os
“suspeitos”…
-Mãos pra cima!!!
Virei para lados e olhei pra trás, pensando: – deve ser outro
suspeito ao lado ou atrás de mim -, mas ele me olhou bem firme e
disse que era eu mesmo.
-Eita porra! É hoje! Pensei.
Para quem só via armas no filme e tê-las agora apontadas para
sua cara, tremia-me até o cu. Minhas pernas bambavam. E com
aquela subida e descida de ladeira, fudeu tudo.
Ele me mandou ir àquele policial que estava a três metros para
ser revistado. E como minhas pernas tremiam, maldita hora que
resolvi descer as mãos da cabeça para caminhar.
-Mão pra cima filho da puta, Cê tá doido? - Perguntou aquele
desgraçado com dedo no gatilho pronto para fuder com a bala mais
um “suspeito”.
Naquele instante, o cu já não só me tremia; também piscava
feito vagalume. Rapidamente botei a mão na cabeça de novo e
aqueles três metros me parecia uma maratona de volta a terra; os
menos de cinco minutos duraram-me uma eternidade. Me reduzi
àquele instante, queria eu que o policial tivesse uma paralisia
naquele momento nem que fosse no dedo para não conseguir
apertar o gatilho.
Depois de mil séculos, cheguei nele. Mandou-me abrir as
pernas (e não era para me fuder, tá?), começou a me apalpar o corpo
todo, botou a mão entre minhas pernas, subiu pra cima,
apalpando… não conseguiu nem tocar as minhas bolas de tão
murchas que estavam; deve ter achado que era transgênero. Pediu-
me documentos, mostrei. Viu que era estrangeiro, e perguntou
donde era, e eu disse-lhe; aí amenizou o tom de voz.
-Relaxa, essa é uma abordagem de rotina, aqui no Brasil é
comum, infelizmente - explicou ele.
-Hum, tá! respondi. Já conseguindo respirar.
-Nunca passou por isso? No seu país não se faz? Perguntou o
policial.

97
Magnussom da Costa

Respondi que não. Perguntou o que vim fazer no Brasil;


respondi que vim estudar e expliquei-lhe sobre o projeto da minha
universidade e que curso estava fazendo, em que cidade estava
morando; já estava todo empolgado com minha palestra, quando
meu ônibus chegou.
-Senhor este é meu ônibus, preciso ir. pedi a ele.
-Vai lá, e boa sorte com seus projetos. Ele me disse.
-Obrigado!
E a Tânia nisso tudo? Meteu o pé. Saiu correndo feito louca.
Uma mulher no ponto de ônibus repreendeu ela:
-Cê tá louca? Nunca mais faça isso! Se correr vão achar que tem
algo a esconder e podem atirar em você.
A Tânia, tadinha (já estou com saudades dela), passou o dia
inteiro passando mal, com dores nas pernas, com fome e ainda
encontrou forças para correr.
Entramos no ônibus tremendo e sentamos de mãos dadas sem
ninguém comentar nada. Fiquei só imaginando os motivos de eu
ter sido abordado: “será que é porque estava com a camiseta com
estampa de Bob Marley? Será que o cheiro do bagulho de Berlota e
amigos ficou em mim? Será que é o polchete que estava usando?
Por quê só nós dois? Lembrei do rapaz que fui preconceituoso com
ele. Será que as pessoas no ponto de ônibus estão tendo o mesmo
pensamento que tive do cara? O que temos em comum para ser
‘suspeitos’ e ‘perigo para a sociedade’?

98
O GRITO É O ESCUDO DO OPRIMIDO:
O Rap Global de Boaventura como ekfrase

“Como é possível lutar? Minhas armas as têm os Troianos


e minha mãe me proibiu que armaduras de guerra envergasse
sem que, primeiro, ante os olhos, aqui, novamente a tivesse.”
Ilíada, Canto XVIII, 187-189

Em 2009 o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos


fez a apresentação do que seria a segunda edição do livro Rap
Global (Rio de Janeiro: Aeroplano, 2010) assinado pelo rapper
Queni N.S.L. Oeste, que vive na periferia de Lisboa e é filho de um
mulato angolano “retornado”, herda do pai a sensação de não-
pertencimento. Boaventura informa que o pai de Queni, de nome
Antero, havia tido sua biografia narrada pelo escritor angolano
Manuel Rui no livro Uma casa no Rio de 2007. Um leitor atento e
com o google como aliado descobriria que a citação é equivocada,
já que o livro de Manuel Rui se chama A casa do Rio, é um romance
de 2007. Ora, numa nota de pé de página há o aviso de que além da
apresentação, “Boaventura compôs o texto a partir da audição
obsessiva de vozes ininteligíveis e de infinitos silêncios orais”.
Resumindo, o Rap Global é obra de Boaventura, mas um trabalho
“diferente”, não só pelo artificio do heterônimo.
O Rap Global de Boaventura tem cerca de 90 páginas de
poesia rap (rapoesia), que deveria ser lida “tendo no ouvido o
ritmo da música rap” (p. 6); no entanto, isso não significa que o
autor se valha de alguma métrica ou estrutura rítmica de rimas
evidente: é difícil encaixar tudo que é dito em uma cadência. De
todo modo, é uma escrita muito diferente daquela acadêmica que o
consagrou como epistemólogo, com a proposta de ecologia dos
saberes, valorizando o diálogo Sul-Sul. Romper com essa forma de

99
Marcos Carvalho Lopes

expressão não é algo que se faz impunemente: é como se alguém


que esperávamos encontrar sempre de terno e gravata surgisse em
trajes de banho. Quebrar as expectativas da comunidade é algo que
cobra sempre um preço. Mas porque um sociólogo respeitado ou
respeitável na academia se arriscaria num experimento como este?
Com certeza, alguém que começa sua carreira rompendo as regras
de “etiqueta” acadêmica pagaria pela ousadia com o ostracismo e a
forma brasileira mais comum de críticas: aquela que se faz pelas
costas, nos corredores, desqualificando o próprio debate. Mas, aos
69 anos, Boaventura teve coragem para bancar esse risco, o da
indisciplina.
Ora, Boaventura já procurava um tipo diferente de escrita
quando, em 2004, publicou o livro Escrita INKZ: anti-manifesto
para uma arte incapaz (Rio de Janeiro: Aeroplano, 2004), que
começa com um “Desfácio” situando seu texto fora de uma
tradição: “A minha geração não produziu nada de novo no domínio
das artes. Isto não seria um grande problema se ela tivesse sabido
usar produtivamente a sua esterilidade. Mas não foi o caso. Podia
ter propiciado um novo encontro entre a arte e a vida. Devolver a
arte a quem a trabalha quando trabalha. Mas tal não foi possível
porque há páginas literárias, salas de concerto, departamentos de
arte e de literatura, prêmios, galerias. A minha geração ficou assim
condenada a celebrar a sua própria esterilidade e a usá-la para
consumo interno. Por isso, já vimos tudo e, sobretudo, o déjà vu. Só
não vimos artistas prontos a morrer. A minha geração não conheceu
ninguém desse calibre. Em vez de morte, o cansaço. A minha
geração foi feita de gente-cansaço, família-cansaço, sexo-cansaço,
whisky-cansaço. Cansámos-nos para fugir ao imperativo da arte.
Por fim, cansámo-nos para esquecer o cansaço” (SANTOS, 2004, p.
11). Promover o encontro da arte com a vida significaria desviar-se
dos clubes que se arrogam autoridade para delimitar o fazer
artístico, sublimando uma forma de elitização que reproduz
estruturas de exclusão social: o “mundo da arte” é o de uma elite
autoindulgente.
Em entrevista na época do lançamento do Rap Global,
Boaventura ponderou sobre como este novo livro se encaixava em
sua trajetória de crítica da modernidade e busca de autocriação pela

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O grito é o escudo do oprimido: o Rap Global de Boaventura

palavra: “Tenho escrito cientificamente muito sobre a modernidade


ocidental e tenho criticado sistematicamente os modos como ela,
supostamente autolegitimada por uma promessa exaltante de
emancipação, se transformou numa matriz de regulação e
dominação social que assumiu três formas principais: o
capitalismo, o colonialismo e o socialismo burocrático. Ora isto, que
pretende dizer muito, deixa muito por dizer. Onde estão as pessoas
e os seus dramas íntimos; as lutas de resistência e as resistências na
luta; a criatividade moderna entre a loucura, a violência e o
fanatismo; a ruptura com o ancien régime e todos os novos silêncios
do universo a que chamamos deus e com quem julgamos falar na
farmácia, no ponto de droga, na meditação, nas massagens, no
jogging; a poesia, sempre à beira de não existir; a brutalidade
sedutora da ordem e do progresso; e sobretudo tanta coisa que nem
imaginamos que existe porque existe sobre a forma de ausência e
que no pior (melhor) dos casos nos cria mal-estar, provoca insônias
e nos faz mudar de namorada ou namorado. Ora, nada disto pode
ser dito academicamente (mesmo que o queira descrever em prosa)
se o meu único objeto experimental for eu mesmo. É deste limite e
do inconformismo perante ele que nasce o Rap como nasceram os
meus livros anteriores de poesia”13.
Além desta busca por traduzir o silêncio, existe uma questão
sociológica sem resposta que origina o livro Rap Global: “por que
os jovens não participam da política, mas são os protagonistas do
melhor discurso de protesto nas nossas sociedades, o hip hop?
Então misturei referências filosóficas e sociológicas com a cultura
urbana e o rap”14. Esse jogo de referências, que vai dos quadrinhos
de Wolverine, Liga da Justiça a Marjane Satrapi; a música de Jay-Z,
Kayne West, Mercedes Sosa, José Mario Branco, axé, reggae e funk;
poetas e escritores como Safo, Erza Pound, William Blake,

13 CONDE, Miguel, e SANTOS, Boaventura de Souza.“Boaventura de Sousa Santos


fala sobre ‘Rap Global’”. O Globo, 24/07/2010. Disponível em:
http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2010/07/23/ boaventura-de-sousa-
santos-fala-sobre-rapglobal-310530.asp (Acesso em: 19/08/2017).
14 FREITAS, Guilherme e SANTOS, Boaventura de Souza. “Boaventura de Sousa

Santos lança poemas de 'otimismo trágico'. O Globo. 31/10/2016. Disponivel em:


<https://oglobo.globo.com/cultura/livros/boaventura-de-sousa-santos-lanca-
poemas-de-otimismo-tragico-1-17926559> (Acesso em: 19 ago. 2017).
101
Marcos Carvalho Lopes

Shakespeare, Goethe, Camões, Holderlin, Celan, Gertrude Stein,


Jorge Luis Borges, Neruda, Tagore, Sófocles, Mallarmé, Baudelaire,
Whitman, Rimbaud etc; os filosofemas de Nietzsche, Marx,
Heidegger, Giordano Bruno, Hegel etc. Essa mistura de referências
da cultura erudita e popular é um gesto de quebra de hierarquias
que desnuda a necessidade ética e política de “destruir” os cânones,
que alimentam o status quo da desigualdade social e o estabilizam
como lugar-comum, ao reificar uma ordem de saber que exclui a
maioria. Tomar a erudição como uma série de clichês distorcidos
pela ira subalterna é um procedimento que se filia a tradição do rap,
como um “grito de revolta contra a injustiça social, o racismo e a
violência. Mas é também um grito de revolta contra os gritos de
revolta que até agora deram em nada. Por isso tem de interpelar
toda a tradição eurocêntrica, mesmo a mais transgressiva, fazendo
dela uma amálgama obscena”.
A falta de pudor nessa mistura começa já nos primeiros versos
do “rap global”, numa espécie de “refrão” que será repetido
durante o texto, ainda que com a modificação da ordem de alguns
de seus versos: “jesus caminha/ caminha com alguém/ que pode
ser ninguém/ caminha com alguém/ em las ramblas de granada/
e não acontece nada” (p. 9). Colocar um “jesus” e um “alah” de
letras minúsculas na primeira estrofe pode parecer uma heresia,
mas a provocação maior é dizer que aqueles que caminham ao seu
lado, sendo alguém ou ninguém, se acomodam, já que “não
acontece nada”. Temos aqui uma subversão do Canto VI do poema
“O guardador de rebanhos” de Alberto Caeiro, heterônimo de
Fernando Pessoa, em que um Jesus Cristo, na forma de uma eterna
criança, anda de mãos dadas com o eu-lírico. É agora o niilismo
que é companheiro no cotidiano depois da “morte de Deus”, como
uma máquina em que gritos silenciados que se tornam notícias e a
busca de transcendência uma mera negação que não produz efeitos.
Não há redenção, remédio ou caminho convergente que possa
solucionar, não há aparelho que se possa comprar, mas a busca
continua e se desloca: “perdeste a paciência/ queres estar só/
compras um solidificador/ queres estar triste/ um tristificador/
queres estar alegre/ um alegrificador/ queres estar longe/ um
longificador”(p. 17). E de quando em quando, o texto nos adverte

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O grito é o escudo do oprimido: o Rap Global de Boaventura

contra os tradutores de seu sentido: o objetivo não é multiplicar


teoria nem dar outro mote para os que observam à distância. Neste
canto, a sagração do indivíduo que alimenta a literatura
democrática de Whitman acena, contraposta a ausência de valores
transcendentes, cabe a cada um a rebeldia dos valores: “comete
estritamente/ só os teus erros/ e manda a eternidade/ à puta que
a pariu/ quando o mundo nasceu/ já havia deuses velhos/ que
ninguém viu”(p. 58).
O sublime ou o belo estão longe dos versos de Boaventura,
como um canto anti-lírico, em que o mundo não cabe em si, ou
como diria Cazuza em sua fase final, “enquanto houver burguesia,
não haverá poesia”. Mas aqui a “burguesia” se desdobra em
império, em colonialismo, racismo e sexismo (que se reflete/repete
na própria linguagem falogocêntrica do rap); o autor costuma falar
em hetero-patriarcado. A linguagem de modernidades futuristas,
surrealistas, antropofágicas foram sampleadas, em clichês torcidos
por chistes de ironia. Boaventura crítica os “modernos” poetas da
mudança, que não têm compromisso suficiente para arriscar sua
existência, vendem sua revolta radical, “mas comem iogurtes/ sem
gordura/ e vegetais biológicos/ tem pensamentos bomba/
hecatombes for trade” (p. 31). De quando em quando, em letras
maiores (não maiúsculas, não há letras capitais no texto), como num
outdoor sentencia: “real life tribal brother/ improve comedy”, algo
como, “a vida real, companheiro de tribo, aprimora a comédia”. O
que se busca não é o “Real”, é o assombro. Algo que funcione como
antídoto para as anestesias do cotidiano, a acomodação.
Nessa salada, erros de superfície podem ter ecos profundos, já
que tudo é superfície e não cabe nota de rodapé: “black music/ no
recôncavo baiano/ ile axé/ freestyle rap/ não há linguagem/ no
candomblé/ só há transe” (p. 75). O que esse transe faz aqui é
lembrar que o leão tem sete cabeças, e é preciso dar um passo que
leva do ceticismo para a utopia prática, de quem profetiza agindo.
Nas quase 90 páginas deste Rap Global – diferentemente do
que acredita o autor – é difícil intuir o ritmo para seus versos livres:
o flow e as rimas são feitas de ideias repetidas e retecidas, com
rapidez e urgência antropofágica. Talvez essa dificuldade esteja
ilustrada pelos versos da contracapa “nem mil ritmos/ fazem

103
Marcos Carvalho Lopes

dançar este peso/ de ser em parte/ e só saber em parte”. A


incompletude deixa seu rastro e seu peso, quando o todo não
precisa da “parte”. Ainda assim, o autor diz filiar-se a uma
perspectiva underground de rap, que manteria o gesto crítico
quanto aos poderes hegemônicos. Se não há uma convergência que
justifique os diversos discursos de resistência, o “rap global’ de
Boaventura deve se valer das “conexões marginais” – descritas por
Halifu Osumare, como a capacidade do hip-hop de conectar
periferias de todo mundo – que unem aqueles que resistem. Nas
palavras de Boaventura: “Não há emancipação social; há
emancipações sociais unidas (porque diferentes) por uma aspiração
que uma vez resumi assim: temos o direito a ser iguais quando a
diferença nos inferioriza, temos o direito a ser diferentes quando a
igualdade nos descaracteriza” (CONDE; SANTOS, 2010).
Por essa descrição, o Rap Global parece impossível, assim
como a tentativa do sociólogo português de usar a máscara de um
mestiço filho da descolonização e na diáspora, para escrever um
rap. Mas não é o trabalho da literatura traduzir o silêncio e
repercutir os gritos dos que não tem voz?

O Rap Global é uma tentativa de tradução intersemiótica, ou


seja, busca transformar em palavras impressas uma outra forma de
arte, que mistura ritmo e poesia na construção da canção. Na
tradição literária, o texto poderia ser considerado uma espécie de
ekfrase, uma forma de descrição detalhada que procura fazer com
que o leitor “veja” por meio das palavras uma obra de arte de outro
tipo: música, dança, mas principalmente, pintura. A ideia
tradicional de que a poesia é uma espécie de pintura com palavras
vem dessa tradição da ekfrase. Acredito que se compararmos a
primeira ou mais famosa descrição deste tipo, a feita por Homero
na Ilíada do escudo de Aquiles, com o Rap Global de Boaventura,
vamos entender melhor como essa segunda obra “funciona”.
Vou explicar brevemente o contexto em que, na Ilíada, o
escudo de Aquiles é descrito por meio de uma ekfrase. Aquiles se
desespera ao saber da morte de seu amigo Pátroclo, que foi
assassinado pelo herói troiano Heitor. Pátroclo vestia então a
armadura de Aquiles, que foi espoliada por Heitor. A mãe de

104
O grito é o escudo do oprimido: o Rap Global de Boaventura

Aquiles, a nereida Tétis, procura saber qual é a causa do desespero


de seu filho. Diante da raiva desmedida (hybris) do filho, Tétis,
apesar de saber que o destino dele seria encontrar a morte no
conflito, resolve ajudá-lo, prometendo trazer-lhe uma nova
armadura, feita especialmente pelo deus Hefesto. Aquiles deveria
esperar até o dia seguinte a volta de Tétis, com sua nova armadura,
mas a deusa Hera o avisa de que deveria ir imediatamente ao
campo de batalha, já que o corpo de Pátroclo corria perigo de ser
levado pelos troianos e desonrado. Aquiles pondera que sem uma
armadura pouco poderia fazer, mas Hera lhe diz que vá ao campo
de batalha, que a presença dele inspiraria medo nos troianos.
Aquiles chega próximo do lugar dos combates e com um grito
indescritível – “amplificado” por Atena – provoca terror nos
troianos e permite que os gregos recuperem o corpo de Pátroclo.
Homero narra então o trabalho de Hefesto na construção da nova
armadura de Aquiles, detendo-se no escudo, em que entalhou céus
e mares, estrelas e duas cidades (cheia de detalhes, numa há um
casamento, noutra uma batalha), campos sendo arados, vinhedos,
rebanhos etc. circundado pelo rio-Oceano. O que nos interessa aqui
é que essa obra feita com as palavras der Homero é impossível
fisicamente, é uma descrição detalhada de uma obra de arte, que
mostra o poder investido no escudo de Aquiles pelo cuidado de
Hefesto.
O Rap Global tem algo em comum com o Escudo de Aquiles.
Boaventura já pensava sua escrita INKZ como ekfrase, mas de um
tipo diferente, em que “a descrição é meramente potencial porque
a obra de arte tem que estar ausente para que os leitores comuns e
incomuns criem sobre ela as suas obras de arte”, deste modo é “uma
ekfrase das ausências e das emergências” (SANTOS, 2004, p.14). O
rap não é como a pintura: não se trata de tentar repetir o tipo de
descrição feita por Homero do trabalho de Hefesto, mas de tentar
encarnar e repercutir o grito apavorante de Aquiles. Por se ligar a
ausências e emergências, o Rap Global trata da perspectiva dos que
não podem contar com a solidariedade de deuses, aqueles que
nunca tiveram armadura e mesmo sem proteção, se atrevem a
gritar, traduzindo o indizível em palavras duras. O rap é o grito que
serve de “escudo” para os oprimidos, uma proteção que vem da ira,

105
Marcos Carvalho Lopes

do orgulho de quem continua lutando, ainda que contra a


indiferença do destino.

O Rap Global se justifica pela atitude, o gesto de romper


linguagens e muros e propor traduções, diálogos. Se não é
propriamente um “rap” e se sua característica “global” parece
desenraizada, é no diálogo efetivo que pode ganhar vida e servir de
fonte para outras rimas. Esta é uma forma de efetivar a ideia de
ecologia de saberes, aproximando a academia da linguagem das
ruas, o hip-hop da sociologia. Foi isso que aconteceu em julho de
2014 no espetáculo "Há palavras que nasceram para a porrada", que
apresentou canções que foram resultado do diálogo entre
Boaventura com um coletivo de rappers, que se apropriou e
redescreveu versos do Rap Global em novas rimas. Assim surgiram
as canções: "A Mulher do Cacilheiro" (Capicua); "Líquida"
(Capicua); "cacilheiro/navio negreiro" (Chullage); Nha Povo
(Hezbó MC); Filhos do Vento (Hezbó MC); "Manifesto do S.U.L (Só
a União libertará) no Norte" (Lbc Soldjah); "Odisseia de
desemprego" (Lbc Soldjah).
Rap Global já foi cantado e adaptado para os palcos como uma
espécie de “ópera”. O próprio Boaventura já tomou o microfone
para mandar suas rimas. Mas, ainda assim, este pequeno livro
continua provocando algum desconforto. É que, para que ele
funcione, precisa deixar de ser livro. Precisa ser fonte de onde se
roubam versos, precisa ser traduzido em novos trabalhos que
rompam as fronteiras da academia, na busca de reconhecer as
múltiplas formas de sabedoria e democratizar a educação.

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ENTRE O HIP HOP E O KUDURO:
uma travessia

Eugénio da Silva Evandeco

A música, num conto geral, é um meio de expressão, um


instrumento de poder que usamos para dar fala aos nossos
sentimentos. Já o rap, particularmente, tem uma perspectiva de dar
voz principalmente àquelas almas que se sentem oprimidas, em
contextos onde a liberdade de expressão não é sentida na sua
efetividade, onde a democracia é tida como algo formal, abstrato. O
rap, com discursos mais politizados, traz aquilo que é o quinto
elemento do hip-hop, profetizado pelo grande mestre Afrika
Bambaataa, o conhecimento. É por conta destes discursos críticos
que o rap é marginalizado desde então, além de ser feito,
majoritariamente, por jovens das periferias. O kuduro, apesar de
“diferente”, pela visão de muitos, segue esta mesma perspectiva e,
por isso, existe uma similaridade na forma como ambos são tidos,
ou seja, com desprimor e marginalização. Neste texto vou descrever
minha trajetória dentro destes dois estilos, enquadrado neles numa
situação dicotômica, mas atuando na produção musical, com
dedicação, objetivos e compromissos em ambos.
A minha vida no mundo da música teve início num momento
em que o estilo musical denominado ‘’kuduro’’ atingiu o seu auge
no mercado musical angolano, em meados de 2006. Na altura, o
estilo era feito apenas por jovens e muitos destes tinham certo
envolvimento com práticas ilícitas o que fazia com que seu
conteúdo fosse bastante marginalizado pela sociedade angolana
(como ocorreu com o funk aqui no Brasil e o hip-hop em diversas
partes do mundo). Muitos dos seus fazedores levavam para as
canções suas vivências e práticas, sem censurar algumas

107
Eugenio da Silva Evandeco

expressões, causando choque em um país bastante conservador.


Porém, dentre os kuduristas (termo dado a quem canta Kuduro)
que contribuíram bastante e positivamente para que o estilo se
alavancasse e que, ao mesmo tempo, impulsionaram vários jovens
e adolescentes, destacam-se “os Lambas”, “Puto Prata” e “Bruno
M”.
Nesta época, eu era um acompanhante assíduo. Isso pelo
estilo constituir tendência entre os jovens e adolescentes. Desta
forma, após os três sucessos de Bruno M (“Já respeita nê”, “I am” e
“1 para 2”), decidi entrar na música, já não como ouvinte, mas sim
como fazedor (compositor).
O interesse em seguir a “vibe” ou a linha de pensamento
intrínseca a de “Bruno M” surgiu por conta do cuidado e discurso
politizado que o mesmo enquadrou dentro do kuduro, deixando
um pouco fora as construções rimáticas chamadas de “paranóias”
e que não tinham nenhum compromisso com o povo em termos de
bem-estar social e igualdade. O kuduro ganhou uma redescrição
com a incorporação dos itens citados e com interesses mais
assentados em preocupações sociais e problemas que
assolavam/assolam a nação e a juventude em particular. Esta nova
configuração dentro do estilo ganha o status de “Kuduro padrão”.
A preocupação de Bruno M para com a sociedade justificou-se com
a sua participação na música de Mc k com o título “kamama ou
kuzu”. Nesta canção eles abordam vários problemas que envolvem
os jovens, como má conduta social, dentre outros assuntos.
“Kamama” é o nome de um cemitério localizado em Luanda e
“kuzu” quer dizer “prisão” ou “cadeia” na gíria angolana.
Traduzindo esta frase, ficaria: “cemitério ou prisão”. Ou seja, para
jovens envolvidos nas práticas ilícitas o destino muitas vezes é:
“cemitério ou cadeia”. Além dessa, existem outras canções de sua
autoria, como: “Didas são dicas” e “60 segundos” que têm essa
mesma perspectiva.

INÍCIO

Já dentro do estilo, ainda de uma maneira amadora, a situação


era meio engraçada. Por falta de equipamentos e até porque tinha

108
Entre o hip-hop e o kuduro: uma travessia

apenas 13 anos, a gente improvisava: pegava dois rádios, um para


o beat e outro para a gravação, e começávamos a captação, sem
edição e nada, apenas o beat e a voz. O desenvolvimento era
bastante notável e ao andar do tempo comecei a me interessar mais
em profissionalizar o meu trabalho indo fazer as gravações em
estúdio, com equipamentos mais profissionais apesar de não serem
de grande porte. Já era muita coisa para quem começou com
gravações nos rádios.
Minha mãe, Alice da Silva Chiteculo, não gostava que eu
cantasse. Isso por conta da construção social em torno do Kuduro,
por achar que este um estilo era feito por “bandidos”. Afinal, era
essa a ideia que se tinha.
Como já escrevi, Bruno M era a minha maior referência, não só
por cantar e escrever, mas por produzir também. Criei uma paixão
por essa versatilidade que o envolvia, e, no entanto, a ideia era fazer
igual e mais alguma coisa. Até porque, nas gravações, muitas vezes
os resultados não eram satisfatórios e, com isso, a ideia era produzir
as minhas próprias músicas e ter cuidado maior no momento das
edições, de modo que elas tenham maior grão de aceitação. Daí,
comecei a dar alguns passos na produção musical, mas sem deixar
de cantar. Não era uma produção profissional, porque o fazia sem
muita ajuda e sem técnica. Mesmo aprendendo a produzir, a rotina
de ida e vinda dos estúdios ainda era constante, mas já revestido de
outros interesses: o olhar atento sobre aquilo que os produtores
faziam.

DIVIDIDO ENTE O KUDURO E O RAP

Apesar de fazer kuduro, o interesse pelo rap estava vivo. Nisso


também havia a inspiração em Bruno M, que, desde 1999 até
meados de 2004, foi praticante de rap das ruas de Luanda e nos
mais variados home estúdios da cidade. Por isso a tendência dele
de levar ao Kuduro aquilo que fazia dentro do rap, o que chamo de
compromisso.
Em 2012 ingressei no Instituto médio pré-universitário na
província do Huambo (PUNIV KAPANHO-HUAMBO). Lá,
mesmo estudando, continuei a minha atividade musical. Neste

109
Eugenio da Silva Evandeco

período, o que mais se ouvia era rap; o Kuduro havia perdido um


pouco de espaço no mercado. Sendo um adolescente com bastante
ambição, estava em uma situação de duplicidade, divido entre o
Kuduro e o Rap. Era complicado deixar definitivamente um estilo
e ficar no outro, a tendência era sempre juntar os dois. Eu ficava em
casa e de repente ouvia Kuduro, ia para as ruas e ouvia rap. Isso me
deixava meio confuso. Afinal, qual caminho seguir? Apesar da
confusão, tinha um maior interesse pelo rap. Já recebi críticas
daqueles que se diziam/dizem conservadores do rap, por sair de
um estilo e ir para o outro. O conservadorismo deve impedir
alguém que se identifica com algo ou com uma causa? Essa questão
de autenticidade ainda está bem enraizada no interior dos
fazedores de rap ou que estão ligados ao movimento Hip-hop em
Angola. O que é bom, mas até certo ponto, se justifica pela falta de
compreensão e vinculação sólida com aquilo que foi a história do
surgimento e evolução do hip-hop. A cultura não é estática, ela está
em constantes transformação. O hip-hop é cultura e dentro disto o
rap. Por ser cultura, portanto, sofre transformações. A forma como
se faz o rap hoje não é a mesma que de longos anos atrás. Acredito
que o “mc”, desde que tenha o mesmo interesse que a cultura pede,
tem competência de seguir o que lhe vai na alma.
A autenticidade está no compromisso, porque desde a forma
de fazer rap dos anos anteriores, do mestre Afrika Bambaataa até a
sua fase, o rap ou o movimento em si já havia sofrido uma pequena
alteração. De “Dj”, “Mc”, “Braek” e “Grafite” para “Dj”, “Mc”,
“Braek”, “Grafite” e “Conhecimento”. Ricardo Teperman sintetiza
essa transformação: “Se a partir do fim dos anos 1980 o rap tendeu
a se politizar, particularmente no que diz respeito às várias e
perversas formas da desigualdade social e racial, nos anos
anteriores as letras de rap não tratavam especialmente desses
temas” (TEPERMAN, 2015, p. 27).
Isto é, passou de um simples amontoado de palavras formadas
com a agitação do público para um discurso mais acentuado e
politizado envolvendo temas de luta a favor da igualdade social e
racial.
Trago nesta passagem a ideia de “compromisso” por entender
ser o elemento principal quando falamos de autenticidade, porque

110
Entre o hip-hop e o kuduro: uma travessia

apesar das transformações sofridas dos anos pré e pós Bambaataa,


“o gênero não deixava de ser um forte estruturador de movimentos
pela valorização da cultura negra” (TEPERMAN, 2015, p. 27).
Portanto, a autenticidade está no compromisso: deve ser articulado
aos interesses dessa manifestação, isto é, valorização da cultura
negra, luta pela igualdade social, racial e manutenção da mesma.

Desta maneira, ela não está na forma como o indivíduo às vezes se


apresenta ou de onde vem, isso é uma questão de consciência. Nem
sempre a entrada de alguém que vem de um estilo diferente
significa falta de compromisso e capacidade para gerir os discursos
que envolvem a cultura.
Me sentia meio divido. Quando ia para Luanda de férias tendia
a fazer Kuduro, pelo simples facto de ter começado lá e onde estava
a maior parte dos meus amigos; já quando voltava para o Huambo
tendia a fazer rap, por ter tido a primeira experiência lá.
Nesta época já havia tido uma pequena noção de produção
musical e fazia alguns beats, amadores ainda, mas fui insistindo.
Na minha última viagem para Luanda tive contato com um dos
produtores que trabalhavam as minhas músicas, Dj Pospirro, e pedi
a ele algumas dicas. A partir de suas dicas, comprei alguns
instrumentos de produção, fui baixando alguns samples e plug-ins
e regressei ao Huambo. Lá, dei abertura ao meu primeiro home
estúdio, com o meu grupo musical Young Freshe e passei a
trabalhar com eles.
Como ressaltei, nesse momento eu já fazia algumas produções
musicais aceitáveis e, diante disso, ganhei o nome de “mente
criativa”, por amigos acharem que fazia a magia nos beats.
Nos meados de 2016 apercebi-me da UNILAB (Universidade da
Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira) por
intermédio de um amigo (Martinho Fonseca Munica) e decidi
tentar. Fiz o teste, fui admitido e em 2017 ingressei na UNILAB. Já
no Brasil, conheci pessoas que me falaram um pouco acerca do
projeto Bota a Fala. Uma dessas pessoas apresentou-me ao
professor coordenador do projeto (Marcos Carvalho Lopes) e no
momento recebi o primeiro desafio que era fazer um beat de uma
111
Eugenio da Silva Evandeco

música que já existia (Integração). A ideia era fazer algo mais


autêntico, só do grupo, ganhando assim efetivamente a nossa
autoria, evitando plágio.
Já enquadrado no grupo, fomos fazendo alguns trabalhos até
chegarmos ao desafio de Lázaro Ramos, para o programa “Lazinho
com você”. Semanalmente o programa colocava um desafio e
participamos de alguns deles. O primeiro era um desafio criativo,
sendo assim surgiu o “Africar”.
De princípio parecia ser difícil, mas ao compartilharmos as
nossas ideias no momento da gravação ficava fácil e decidimos
então fazer uma espécie de Afro-house. Foi feita a gravação e em
casa fui fazendo os arranjos. Tínhamos apenas um dia e meio para
enviar a música. No dia seguinte terminei a edição e ela foi enviada
ao programa sem alto grau de expectativa. O que não contávamos
era que a canção teria tanto impacto, porque foi feita às pressas, com
muita dedicação, minha, dos colegas que fazem parte do projeto,
do professor responsável e até daqueles que participaram da
construção de maneira indireta.

Assim como a “dialética de Platão” fala de graus de


desenvolvimento para se chegar ao conhecimento, durante esse
percurso na UNILAB e nesse projeto particularmente, o que venho
fazendo tem me levado a desenvolver a minha capacidade e
criatividade no que tange à produção musical e intelectual também.
Fazer parte desse projeto ambicioso tem sido uma experiência
agradável de troca de vivências, eu contribuindo para o grupo e o
grupo contribuindo para a minha formação acadêmica. Hoje, sendo
um indivíduo pertencente a uma comunidade sócio historicamente
oprimida (negra), é bastante satisfatório saber que contribuo de
alguma forma nas lutas para a emancipação deste “ser” que muitas
vezes é visto apenas como objeto e não possuidor ou capaz de
produzir conhecimento. Lutamos, dentro da perspectiva daquilo
que o Bota a Fala preza, pela igualdade social e racial. Lutamos para
mudar o quadro negativo que envolve o negro, principalmente
para evitar que o índice de ataque aos “corpos negros”, simbólica e
fisicamente, continue assustador; por uma educação (paideia) mais

112
Entre o hip-hop e o kuduro: uma travessia

democrática (considerando que estruturalmente a educação é


bastante elitista ainda e o acesso a ela continua sendo segregado).
Portanto, ocupemos a casa grande rompendo com toda ideologia e
hipocrisia que envolvem o negro. Ideologias que tiram ao mesmo
tempo o nosso protagonismo como seres produtores de
conhecimento e pejora a nossa ancestralidade. Entendo ser este um
dos objetivos principais de estudantes pertencentes a uma
universidade com modelo curricular bastante diferenciado e que
tem uma perspectiva de construção de conhecimentos que rompem
com as barreiras epistemológicas ocidentais, promovendo o
respeito a alteridade.

KUDURO: da marginalização à internacionalização

O kuduro atravessou as barreiras do preconceito. O estilo,


assim como os seus fazedores mostraram que para além daquilo
que muitos pensavam, isto é, para além das ideias que se tinha em
torno deste, existia uma essência boa de solidariedade fora do
sentido pejorativo dado pela sociedade. Em contrapartida, a mesma
música que era digna de discriminação tirou vários jovens que se
envolviam em práticas ilícitas e reprováveis pela sociedade,
enquadrando estes novamente na comunidade, merecendo assim,
respeito e prestígio. Dentre estes destaco os elementos do grupo
musical “os lambas”, o próprio “Bruno M”, os “xtrubantu” entre
outros. “O kuduro cresceu, o kuduro hoje é um estilo que tira jovens
da marginalidade, das ruas, do crime para o palco. Eu sou um
destes jovens. Eu tive uma conduta não muito boa a princípio, mas
felizmente o Kuduro tirou-me dessa má conduta social e hoje estou
aqui em televisão, sou músico, preocupado em contribuir cada vez
mais para a evolução deste país” (Bruno M).
Para além das transformações sociais, ou seja, retirada de
jovens de certas práticas como evidenciado no depoimento
anterior, hoje o gênero musical já é bem aceite dentro e fora do
contexto angolano, além de ser feita em algumas partes do mundo.

113
Eugenio da Silva Evandeco

Vários destes músicos têm alcançado nível internacional,


justificando desta forma o título deste tópico, “da marginalização à
internacionalização”.
Esta é uma descrição muito sintética de um tema que quero
continuar pesquisando.

114
LUTAS E CONQUISTAS DA MÃE DE
ORONHO
Patrícia N´zalé

Meu nome é Patricia N´zalé. Aos 14 anos fui líder coreógrafa do


grupo King´s Kids Joias do Rei, mas sempre tive contato com a
música através da minha mãe, que é cantora evangélica. Por outro
lado, Amaro, músico e produtor, sempre acreditou que tenho
talento pra ser cantora e me ensinou algumas técnicas musicais e
aos 16 anos decidi que queria aprender a cantar. Eu e três amigas
fomos conversar com o músico Buba Embalo e ele aceitou o pedido.
Ensaiávamos todos os sábados. Minha primeira apresentação
musical foi no Espaço Lenox no concerto do grupo Coral Ester.
Fiz minha inscrição no grupo coral Ebinezer, que é o coral da
Igreja Evangelica de Belém. Com o passar do tempo comecei a
cantar nos cultos todos os domingos. Por sorte, me ofereceram uma
bolsa para estudar canto no Cansion. Participei de um grupo de
jovens músicos no qual gravamos um álbum com dez canções. Fiz
os vocais numa canção intitulado “I tchiga tempo”, escrita por mim.
Tive muita ajuda do músico e produtor Edizildo. Ele trabalhou
muito comigo para que tivesse autoconfiança no palco para me
sentir livre quando canto; ensinou-me técnicas e preparação vocal.
Com ajuda dele gravei um álbum intitulado “Clean my mind”.
Nessa minha trajetória com a música nunca tive contato com o
rap. Magnusson da Costa me falou da Unilab; fiz inscrição e vim
para o Brasil. Então ele me convidou para fazer parte do Bota a Fala.
Achei interessante participar, dando chance assim de conhecer
outros horizontes do mundo da música.
Quando cheguei na UNILAB tudo pra min era novo, tive
problemas de adaptação, com fuso horário, alimentação e também
fiz novas amizades. A integração com pessoas de outras
nacionalidades é algo enriquecedor, porém fiquei chocada por não
ver o Brasil que eu esperava conhecer a partir das novelas, e
115
Patrícia N’zalé

perceber muita gente da mesma cor que eu. A principio, me senti


em casa por estar rodeada dessas pessoas, mas logo vivenciei
situações problemáticas. Certo dia fui ao mercado das carnes fazer
compras. Um rapaz negro, que estava alí com uma menina de pele
mais clara, quando passamos começaram logo a murmurar e a
rirem de nós. Me senti mal com aquilo e fui tirar satisfação. Eles
pediram desculpas, pensei que havia acabado, mas foi primeira de
muitas situações desse tipo.
A minha experiência Acadêmica não foi fácil, mas me fez
descobrir a minha força interior e o meu potencial como pessoa. As
aulas eram muito diferentes das que eu tive em Bissau. Liámos os
livros que os professores nos indicavam e nas aulas discutíamos os
conteúdos e nessas discussões eu aprendia bastante. Porém os
fichamentos, as resenhas eram algo novo para mim. O meu
primeiro seminário foi na aula do professor Gerhard [Seibert]. No
momento da apresentação estava tremendo, com medo de fazer ou
falar algo de errado, que não tivesse relação com o texto. Os
seminários me ajudaram muito, não fico mais tremendo como antes
e quanto aos fichamentos, com o tempo percebi que não são tão
díficeis como pareciam.
Por outro lado, a minha experiência como membro de botAfala
está sendo de aprendizado. Graças ao botAfala consegui escrever e
gravar rap, algo que nunca me imaginei fazendo. Agora quero
poder cantar e me aperfeiçoar mais neste estilo musical. O que mais
me chama atenção no nosso grupo é a conexão, a amizade que
temos uns com os outros. Fazemos as letras das músicas, discussões
e análises sobre a canção, sobre livros e outros rappers. Por causa
do projeto botAfala pude fazer parte de varais atividades para as
quais fomos convidados. Antes do botAfala eu não gostava muito
de rap, porque as músicas que passavam no rádio, em sua maioria
eram só palavrões e exibição. Porém, com esse projeto pude
conhecer outro lado do rap, que crítica de forma construtiva, sem
insultos e usando o conhecimento acadêmico para fazer canções.
Me apresentaram Valete e amei a música dele. Comecei a ouvir e
apreciar o rap.
Quando fiquei grávida do meu primogênito Oronho Gustavo,
nome que significa “Rei protegido de Deus”, passei por situações

116
Lutas e conquistas da mãe de Oronho

que eu nunca imaginava passar. Com isso percebi que a gravidez


não é um tabu tão grande no Brasil, como é para os bissau-
guineenses: se a menina ficar grávida antes do casamento é a coisa
mais horrível do mundo. Muitas pessoas me ligavam pra dizer o
quanto fui burra, que eu sou muito inteligente para me descuidar
nesse ponto etc. Eu chorava dia após dia. Pegava o meu
computador para estudar e chorava até não sair mais lágrimas.
Abria o livro e estudava. No momento de ir para as aulas,
enxaguava minhas lágrimas, erguia minha cabeça e ia como se nada
estivesse acontecendo comigo. Por sorte tive apoio do meu parceiro
e pai do meu filho Magnusson. Os meus pais me apoiaram muito,
mas foi díficil para min estando longe de casa, estudando e com um
monte de pessoas enviando mensagens criticando. Mas, graças a
Deus consegui. No último semestre do curso de Humanidades, eu
estava com cinco disciplinas e o trabalho de conclusão do curso
(TCC). Eu estava dando o meu melhor para não dar gosto para as
pessoas que achavam que eu não ia conseguir. Passava noites em
claro. A maior parte do meu TCC escrevi de madrugada, quando
Oronho estava dormindo. Nas horas em que ele esta acordado,
escrevia com ele no meu colo. Às vezes, botava ele amarrado nas
costas e ficava de pé escrevendo. Muitas pessoas me falavam “Paty,
será que vais conseguir”, “é muita coisa para estudar além do
TCC”. Outras diziam “será que vai conseguir se formar nesse
semestre”.
Para dizer a verdade, eu estava sobrecarregada. Além de ser
mãe de um bebe, também tinha que estudar para ter boas notas. Dar
conta de tudo. Consegui me formar e fiz a defesa do TCC. Tirei a
nota máxima, graças a Deus, minha orientadora e as pessoas que
sempre me apoiaram. Aprendi que a UNILAB não ensina só a
integração ou as coisas acadêmicas, mas também te ensina a lutar e
conquistar com mérito próprio.

117
COMPONDO UMA EDUCAÇÃO DEMOCRÁTICA:
Paulo Freire, Amílcar Cabral e Cornel West

“Comprehension is not requisite for cooperation"


(“A compreensão não é um requisito para a cooperação”).
Fala do Conselheiro West, personagem interpretado e escrito para Cornel
West no filme Matrix Reloaded

Na busca por compor uma educação democrática, as vozes de


Paulo Freire (1921-1997), Amílcar Cabral (1924-1973) e Cornel West
(1953-) convergem no sentido de valorizar uma forma de diálogo
socrático combinado com o exemplo prático. Essa exigência prática,
de intelectuais que se vinculam a populações – os oprimidos, a luta
por descolonização da África, o movimento negro norte-americano
– que lutam contra estruturas de opressão e desigualdade, guardam
uma dimensão profética, que pede a conversão, uma forma de
comportamento numa direção transformadora (de si mesmo e da
comunidade).
Cada um destes autores merece um estudo cuidadoso e
detalhado, mas aqui quero destacar somente alguns aspectos
convergentes: (1) a proposta de diálogo que parte da cultura
comum numa direção melhorista; e (2) a necessidade de atuação
profética, que exige participação e exemplo na forma de agir.

De modos diversos, tanto Paulo Freire e Amílcar Cabral


quanto Cornel West, redescrevem a concepção de educação para
uma forma de vida democrática (tomando este termo em um
sentido amplo). Estes autores partem de um contexto de luta por
descolonização e reconhecimento, ampliação e transformação da
ideia de humanidade, para inclusão daqueles que Frantz Fanon
chamou de deserdados da terra.
O pressuposto do diálogo que parte da cultura comum, com o
reconhecimento do valor do saber popular, não deve ser
confundido com a aceitação acrítica e abdicação do dever de

118
Compondo uma educação democrática

educar. Estes autores exigem o compromisso de posicionamento de


forma melhorista em relação a negatividades da cultura, ou seja, quem
educa tem o dever de criticar as crenças que levam a práticas
destrutivas e prejudiciais.
Por isso, Amílcar Cabral, que liderou a luta pela libertação de
Guiné-Bissau e Cabo Verde do domínio colonial português,
defendia a necessidade de reafricanização e combate continuo em
relação à colonização das mentes. Isso não significava ser indulgente
com crenças prejudiciais. Em verdade, a descolonização das mentes
seria um processo muito mais amplo e difícil do que as batalhas
travadas contra as forças imperialistas, uma luta que dependia do
diálogo com a cultura para que as gerações seguintes estivessem
livres de prejuízos que, mesmo aqueles que estavam no front de
batalha anticolonial, possuíam. Nesse sentido, Cabral falou, por
exemplo, sobre a crença nos mesinhos, amuletos mágicos utilizados
por soldados em combate:

A nossa luta é baseada na nossa cultura, porque a cultura é fruto da


história e ela é uma força. Mas a nossa cultura é cheia de fraqueza
diante da natureza. É preciso saber isso. E podemos dizer mais, por
exemplo: há certas danças nossas, que mostram as relações do
homem com a floresta, em que aparece gente vestida de palha, com
ar de pássaros, outros como grandes pássaros, com um grande bico,
gente que corre com medo. Podemos fazer muitas danças com isso,
mas temos que ultrapassar, não fiquemos só por aí. Podemos
guardar a lembrança de todas essas coisas, para desenvolver a nossa
arte, a nossa cultura, que apresentamos aos outros. Mas como já
ultrapassamos isso, sabemos que na floresta, no mato, nós é que
mandamos, nós, os homens, não é nenhum bicho, nem nenhum
espírito que está lá metido. Isso é muito importante. Mas a realidade
cultural da nossa terra é essa. Vários camaradas que estão aqui
sentados têm o mesinho na cintura, convencidos de que isso pode
evitar-lhes as balas dos tugas. Mas nenhum de vocês pode dizer-me
que qualquer dos camaradas que morreram já na nossa luta não
tinha mesinho na cintura. Todos tinham. Somente, na nossa luta,
tivemos que respeitar isso, tivemos que respeitar porque partimos da
nossa realidade, não podíamos de maneira nenhuma dizer aos
camaradas para tirarem o mesinho, caso contrário estaríamos a
tratar os camaradas como se fossem alemães. Os alemães, há muitos
119
Marcos Carvalho Lopes

anos atrás, não iam à guerra sem mesinho. Ainda há alguns que vão
com a imagem de Nossa Senhora de Fátima dentro dum livrinho, é o
seu mesinho; a Bíblia, é o seu mesinho e, antes de começar os
combates, benzem- se. Os tugas vêm com a sua grande cruz no peito,
e no momento em que o combate começa, beijam-na: é o seu
mesinho. E há ainda os que fiam nos nossos próprios mesinhos.
Esse é que é o nosso nível cultural, em relação à realidade concreta
que é a guerra. Por isso nós aceitamo-la, mas que ninguém pense
que a direção da luta acredita que, se usarmos mesinho na cintura,
não morremos. Não morremos na guerra se não fizermos a guerra,
ou se não atacarmos o inimigo em posição de fraqueza. Se
cometermos erros, se estivermos em posição de fraqueza, morremos
de certeza, não há safa. Vocês podem contar-me uma série de casos
que têm na cabeça: - “O Cabral não sabe, nós vimos casos em que
o mesinho é que safou os camaradas da morte, as balas vieram e
voltaram para trás em ricochete”. Vocês podem dizer isso, mas eu
tenho esperanças que os filhos dos nossos filhos, quando ouvirem
isso, ficarão contentes porque o PAIGC foi capaz de fazer luta de
acordo com a realidade da sua terra, mas hão de dizer: “os nossos
pais lutaram muito, mas acreditaram em coisas esquisitas”. Esta
conversa talvez não seja para vocês agora, estou a falar para o
futuro, mas eu tenho a certeza de que a maioria entende o que digo,
e que tenho razão (CABRAL, 1976, p.141-142).

O respeito de Cabral pela cultura de seu povo é demonstrado


na forma de lidar com esses aspectos negativos da cultura sem
“sacudir uma pá de terra em cima daquela compreensão mágica do
real, não era para as pessoas ficarem no nível daquela debilidade,
mas era partir daquela debilidade para poder alcançar sua
superação” (FREIRE, 2016, p.127). Partir da cultura é necessário
para o diálogo democrático, falar com horizontalmente, e não
simplesmente, de modo vertical, falar a.
Para Paulo Freire, o exemplo de Amílcar Cabral foi profundo
e inspirador: o líder da luta pela libertação de Cabo Verde e Guiné-
Bissau seria um pedagogo da revolução, “alguém que encarnou
perfeitamente os sonhos de libertação de seu povo, e os
procedimentos político-pedagógicos para a realização deste sonho”
(FREIRE, 2016, p.118). Esta caracterização faz de Cabral o exemplo
do que deve ser o intelectual orgânico para o educador brasileiro.

120
Compondo uma educação democrática

Paulo Freire não chegou a conhecer Amílcar Cabral, mas


quando esteve em Guiné-Bissau, trabalhando em propostas de
alfabetização no pós-independência, conversou com diversas
pessoas que conviveram com ele. O objetivo de Freire era escrever
um livro sobre Cabral como pedagogo da revolução e ofertá-lo ao
Partido Africano para Independência de Guiné e Cabo Verde
(PAIGC); no entanto, as fitas-cassete com mais de dez entrevistas se
perderam em sua volta do exílio na Europa para o Brasil.
O trabalho de Paulo Freire em África, tentando promover a
educação de adultos no período posterior as lutas por
independência, não alcançaram os resultados almejados. Um
fracasso que o próprio Freire já considerava quando os
governantes, a sua revelia, decidiram-se pelo ensino da língua
portuguesa em regiões em que a língua do colonizador estava
distante das práticas populares. Ora, ainda que o próprio Cabral
considerasse a língua portuguesa instrumentalmente útil, não seria
necessário para promover a descolonização das mentes o ensino da
escrita em línguas locais? O questionamento de Freire veio junto
com o reconhecimento de que aprendeu muito com a África,
percebendo uma cultura em que a oralidade, a música, a dança,
práticas não escritas são pressupostos educativos. Também, a
própria ação prática de reconstrução dos países após os conflitos
tinha um valor pedagógico que precisava ser reconhecido. O
“fracasso” modificou a forma como Freire via a educação,
percebendo-a em um sentido mais amplo.

Paulo Freire foi, nas descrição de Cornel West, um democrata


radical capaz de reconhecer que “algumas vezes é melhor perder e
radicalizar15 o ser humano do que alcançar a vitória e, no processo,
desenvolver pessoas que são obcecadas somente com ganhar, mas
que, quando conseguem vencer, atuam da mesma forma como
agiam as elites contra as quais se insurgiram” (WEST, 2008, p.112).
Para Cornel West, Paulo Freire é o modelo de intelectual
orgânico de nossa época (WEST, 1993a, p.179), marcada pela

15Paulo Ghiraldelli Jr. (2012) acredita que na contemporaneidade o termo oprimido é


inadequado para pensar a perspectiva de Paulo Freire: seria melhor falar em
desenraizado. Neste sentido, radicalizar é favorecer o enraizamento, gerar raízes.
121
Marcos Carvalho Lopes

descolonização do terceiro mundo e ascensão dos EUA como a


grande potência. Freire teria capturado o anseio por descolonização
naquilo que chama de “conscientização”, uma “nova
autopercepção, em que as pessoas não mais veem a si mesmas como
objetos da história, lutando para desenvolver seus próprios “eus”
(selves) e corpos, para reconstruir uma nova nação. E, é claro,
apelando para a velha ideologia europeia do nacionalismo para
canalizar sua energia utópica” (WEST, 1993a, p.134).
Na avaliação de Cornel West, Paulo Freire “acrescenta um
novo significado para a famosa Décima Primeira Tese de Marx
sobre Feuerbach: "Filósofos se limitaram a interpretar o mundo de
diversas maneiras; mas o que importa é transformá-lo". O novo
significado consiste em reformular a reflexão filosófica entre os
povos subalternos a partir de situações de seu dia-a-dia,
reconhecendo a mudança como a criação de novas identidades
coletivas e possibilidades sociais na História, contrapondo-se às
forças viciosas de desumanização. Paulo Freire se atreve a pisar
aonde até mesmo Marx se recusou a caminhar – no terreno no qual
o amor revolucionário dos seres humanos em luta sustenta a fé uns
nos outros e mantém a esperança viva em si mesmo e na história”
(WEST, 1993a, p.180).
Freire parece ter sido mais consequente que Karl Marx na
avaliação do lugar e do papel da religião na esfera pública: se este
último pensava que a religião era o “ópio do povo”, o entorpecendo
e alienando das lutas efetivas, Freire propunha uma forma de
religiosidade revolucionária, comprometida com a transformação
do mundo e o combate das desigualdades.
A aproximação da posição de Freire leva Cornel West a se
afastar das concepções neopragmatistas sobre o horizonte
terapêutico de conversação, proposta que não desenvolveria a
crítica social com seriedade, mantendo-se em um nominalismo
distante do engajamento prático (WEST, 1993 a, p.177). Na
avaliação de West, o educador brasileiro, “em contraste com o
chamado de Hans-George Gadamer pelo diálogo hermenêutico ou
a cobrança de Rorty por uma conversação edificante”, propõe uma
forma de diálogo democrático “antenado com as com operações do
poder concretas (dentro e fora da classe de aula) e enraizado num

122
Compondo uma educação democrática

doloroso e empoderador processo de conscientização. Este


processo abarca um momento de desmistificação crítica no qual as
estruturas de dominação são desnudadas e o engajamento político
é imperativo. Esta fusão única de teoria social, indignação moral e
práxis política constitui um tipo de pedagogia política de conversão
na qual os objetos da história constituem a si mesmos como sujeitos
ativos da história, prontos para fazer uma diferença fundamental
na qualidade das suas vidas, individualmente e coletivamente”
(WEST, 1993a, p.179).
É preciso evitar o perigo de reduzir a conversa sobre
conhecimento a uma fala sobre poder e o erro de tratar o
conhecimento de modo desvinculado do poder (WEST, 2008,
p.123). Isso não significaria misturar de forma indistinta o
engajamento prático com o trabalho pedagógico em sala de aula,
nem abandonar a busca por objetividade e desenvolvimento de
avaliações criticamente balanceadas. Dentro do trabalho educativo
em sala de aula é preciso desenvolver o diálogo socrático
respeitando os diversos pontos de vista e posições ali presentes.
Mas a atitude democrática, consequência de ser verdadeiro consigo
mesmo e com sua própria voz, exige uma atuação política muito
mais incisiva. Neste sentido, o pensador afro-americano concorda
com a afirmação de Paulo Freire, para quem “não há utopia
verdadeira fora da tensão entre a denúncia de um presente
tornando-se cada vez mais intolerável e o anúncio de um futuro a
ser criado, construído, política, estética e eticamente, por nós,
homens e mulheres” (FREIRE, 2014, p.126). Viver e suportar essa
tensão exige um engajamento radical e profético, que não pode ser
prescrito para outras pessoas, já que depende de que cada qual
exerça sua voz.
Não por acaso, quando Paulo Freire descreve Amílcar Cabral
não deixa de negritar essa postura profética: “Os profetas são
aqueles ou aquelas que se molham de tal forma nas águas da sua
cultura e da sua história, da cultura e da história de seu povo e
sobretudo dos dominados de seu povo, que conhecem o seu aqui e
agora e, por isso, podem prever o amanhã que eles mais do que
adivinham, realizam. Isso é o profeta e Amílcar Cabral era isso…
Eu agora diria a nós, como educadores e educadoras: aí daqueles e

123
Marcos Carvalho Lopes

daquelas, entre nós, que pararem com a sua capacidade de sonhar,


de inventar a sua coragem de denunciar e de anunciar…” (FREIRE,
1982, p. 101).
Esta exigência extrema fez com que Richard Rorty (1991)
sinalizasse a confusão que Cornel West – e o filósofo brasileiro
Roberto Mangabeira Unger – fariam entre ser professor e ser
profeta. No caso de Cornel West, a dimensão profética faz parte de
sua identidade religiosa e de seu pertencimento à comunidade
negra norte-americana, na qual as igrejas têm um papel muito
importante nas lutas pelos direitos civis (os Panteras Negras se
reunião numa sala na mesma Igreja metodista frequentada pelo
filósofo em sua juventude). Curiosamente, West reinvindica uma
posição em relação à religião que foi em grande medida
desenvolvida pelo avô materno de Rorty, o teólogo batista Walter
Rauschenbusch, que propôs o Evangelho Social, exigindo do cristão
uma postura ativa de luta por melhora da sociedade, autor que
inspirou Martin Luther King Jr. A forma como Freire e West
pensam o papel da religião na esfera pública aponta numa direção
transformadora de compromisso com o combate às desigualdades.
A perspectiva profética exige também o compromisso com uma
comunidade, algo que, muitas vezes esteve longe das posições de
Rorty (e quando aconteceu, foi nos moldes de um – justificado, mas
questionável – nacionalismo melhorista).
A exigência profética – que é um ponto de convergência entre
Cabral, Freire e West – pede que atuemos na direção do mundo que
anunciamos: não basta a curiosidade intelectual distanciada e
teórica, é preciso engajamento político na luta por transformações
práticas combinada ao respeito por crenças e formas de vida
diferentes das nossas.
No livro Pedagogia da Esperança Paulo Freire narra uma
situação enfrentada por um educador rural no Nordeste, que
depois de muito insistir foi aceito como participante na reunião de
trabalhadores rurais. No entanto, o líder dos camponeses fez a
seguinte ressalva: “Se você veio aqui pensando em ensinar nós que
nós somos explorados, não tem precisão não, porque nós já sabe
muito bem. Agora o que nós quer saber de você é se você vai estar
com nós, na hora do tombo do pau” (FREIRE, 2014, p.98-99). A

124
Compondo uma educação democrática

questão é se a solidariedade vai além da curiosidade intelectual, se


o pesquisador se colocaria como participante na hora do
enfrentamento das forças repressivas.
Cornel West aprendeu bem e aplicou essa lição de Paulo
Freire. O assassinato de Michael Brown 16 gerou em 2014 uma série
de manifestações que ficaram conhecidas como o Outubro de
Fergusson, questionando, além do racismo estrutural17, o uso de
armas letais por parte dos policiais. Em um dos fins de semana de
protestos na cidade de Ferguson no Missourri, como parte da
articulação do evento, um dia antes da data de manifestação nas
ruas, uma multidão se reuniu para ouvir as palavras de Cornel
West. Antes das palavras do convidado, a organização trouxe
vários líderes de diversas religiões que tomaram o palco fazendo
discursos que retomavam a perspectiva não violenta de luta pelos
direitos Civis. A série de discursos causou inquietação e protestos
dos jovens que também queriam o microfone. A partir dessa
reivindicação, o rapper e ativista Tef Poe questionou a validade das
palavras dos líderes religiosos; na medida em que eles não estariam
dispostos a participar ativamente da passeata no dia seguinte e
enfrentar a opressão policial, o que diziam permanecia em um nível
abstrato e longe do embate efetivo. Outros rappers cobraram dos
anciãos planos efetivos de ação. A programação ruiu e a palavra foi
dada a Cornel West. Ele não decepcionou a juventude, também
cobrando os mais velhos, afirmando que a sedução do dinheiro e a
ascenção social levou muitos negros a perderem sua ligação com a
luta contra o racismo e em favor dos trabalhadores pobres, dos
excluídos. Parte da classe média negra estaria passando por um
processo de despersonificação, alienada de sua comunidade,

16
Em 9 de agosto de 2014, Michael Brown (de 18 anos, que se preparava para entrar
na universidade) foi assassinado por um policial branco. Segundo uma testemunha,
Brown estava desarmado e com os braços levantados quando foi alvejado pelo
policial; na versão da oficial, houve uma luta e o anónimo “agente da lei” (o inquérito
seguiu sem que o nome do policial fosse divulgado) atuou em legitima defesa (c.f.
MAGAGNINI, 2016).
17 A violência desmedida contra a população negra não é um acaso em uma cidade

na qual dois terços da população é negra, mas há somente 3 negros dentre os seus
53 policiais (MAGAGNINI, 2016).

125
Marcos Carvalho Lopes

tornada objeto (reniggerised) nas mãos do mercado, sem capacidade


de reconhecer a situação comum: “Tudo que vocês têm a fazer é
dar-lhes grandes posições, dar-lhes algum status, dar-lhes um
pouco de dinheiro, mas quando andam por aí eles ainda estão
intimidados, eles não querem dizer a verdade sobre a situação".
Cornel West percebia em Ferguson um momento de confusão e
despertar de consciência, mas ele não estava ali para ficar no nível
das palavras, disse: “I didn’t come here to speak, I came to get
arrested” ("Eu não vim aqui para falar, vim para ser preso”)
(MAGAGNINI, 2016). Nesta frase, West incorpora o radicalismo de
Martin Luther King.
No dia chuvoso de 13 de Outubro de 2014, aos 61 anos, o
professor Cornel West foi preso na linha de frente da manifestação
pacífica contra a violência policial.18 O intelectual orgânico é aquele
que se coloca como porta-voz da sua comunidade; desse modo, é
inevitável um aspecto profético e de auto-exigência, na coragem
socrática de participar do jogo de pedir e dar razões dentro da
comunidade (elenchus) e falar de modo franco (parrhesia) aos
poderosos.

REFERÊNCIAS

BBC News. “Ferguson Protests: What We Know About Michael


Brown’s Last Minutes.” Section US & Canada, Nov. 25, 2014.

18 Cornel West foi alvo de muitas críticas por esta prisão na linha de frente das
manifestações de Ferguson: este não seria o papel de um intelectual, mas de alguém
que tem sede de aparecer para as câmeras. Em grande parte, essas críticas se
relacionam aos discursos duros que West fez em relação ao presidente Obama.
Clarence Sholé Johnson (2016), por exemplo, cobrou de West caminhos pragmáticos
de superação dos problemas e não performances retóricas. Ora, a crítica pode ser
revertida: onde estavam estes intelectuais e o que fizeram eles em relação a crise de
Ferguson? De todo modo, a dimensão profética parece entrar em tensão com a
reinvindicação pragmática de que as teorias sejam ferramentas de resolução de
problemas. Talvez a diferenciação reinvindicada por West entre o engajamento
prático e o trabalho pedagógico/dialógico possa servir para amarrar atos e palavras.
De todo modo, a compreensão teórica não pode ser um pré-requisito para a
cooperação.
126
Compondo uma educação democrática

Disponível em: http://www.bbc.com/news/ world-us-canada-


28841715. Consultado em 10/10/2016.
CABRAL, Amílcar. Unidade e Luta: A arma da teoria. Seara
Nova, 1976.
FREIRE, Paulo. “Educação: Sonho Possível”. In: Brandão, Carlos
R. O. (Org.). Educador: Vida e Morte. 11ª ed. Rio de Janeiro:
Graal, 1982.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Tolerância. 5ª. Ed. São Paulo: Ed.
Paz e Terra, 2016.
______. Pedagogia da Esperança. Um reencontro com a pedagogia
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GHIRALDELLI JR, Paulo. As lições de Paulo Freire: filosofia,
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127
AFETO
Juciane Aparecida da Silva

Meu nome é Juciane Aparecida da Silva, sou do inferninho de


Cuiabá, no Mato Grosso, cidade que chega a 40° quase todos os
dias. Se o termômetro não indica essa temperatura, a sensação
térmica é equivalente. Amo minha cidade e consequentemente o
calor também. Só percebi que gostava dela depois desse
distanciamento, ou seja, quando vim estudar na UNILAB.
Minha relação com a música se deu desde muito cedo. Eu era
uma ouvinte do que meus pais escutavam. Como sou de uma
família bem humilde (periférica), onde tínhamos que vender o
almoço para comer a janta, escutávamos sempre o que tocava nas
rádios. Me lembro muito bem de cantores como Zé Ramalho, Almir
Sater, Milionário e José Rico, Mato Grosso e Mathias, Sergio Reis,
Trio Parada Dura entre outros cantores de sertanejo raiz. No
período que escutávamos esses cantores, por volta de 1999, eu e
meu tio (temos uma diferença de idade de apenas um ano),
vivíamos sonhando em mudar de vida por meio da música e
comprar uma casa, materiais escolares, já que vivíamos pedindo
nas casas dos outros, em mercados e nas feiras, para nossa
sobrevivência. Pedíamos e vendíamos de tudo, desde roupas a
lápis, me lembro como se fosse hoje: nós brincado de cantores pelas
ruas de Cuiabá, ou então dando um show em um palco que era uma
antiga casa que foi desmanchada de que restou apenas o piso de
óleo queimado, como chamamos vermelhão. Nesse palco,
projetávamos o futuro, tentando esquecer a nossa realidade e
sonhando com uma vida melhor. Mesmo com todas as dificuldades
enfrentadas, vivíamos sempre sorrindo e brigando pelas coisas. Já
que éramos crianças, quando saíamos para pedir na cidade eu
sempre me destacava. Parece que as pessoas tinham mais pena de
mim. Na época ficava feliz, já que ganhava e vendia as coisas mais
rápido, mas no final eu sempre ajudava meu tio, dividíamos tudo o
128
Afeto

que ganhávamos, ou seja, todo mundo voltava feliz. Essa infância


difícil se repetiu até os meus 14 anos. Andávamos muito em um sol
escaldante e nos desdobrávamos, pois fazíamos a coleta de
materiais recicláveis também. Vivíamos em festas na cidade,
catando latinhas. Ficavamos até as festas acabarem, geralmente na
volta para casa arrastávamos nossos corpos pelo asfalto e fazíamos
muitas brincadeiras. Era eu, meus tios, minha irmã e minha vó ou
minha mãe brigando com a gente para andarmos mais rápido.
Fazíamos festa quando na volta para casa chovia. Quando eu fui
amadurecendo, descobri porque sempre me destacava e ganhava
mais coisas. Era porque tenho a pele menos retinta. Lembro de
várias vezes das pessoas dizendo que iriam me adotar, coisa e tal;
famílias desconhecidas me chamando pra brincar com seus filhos.
Meu tio tem a pele retinta. Não acontecia isso com ele. Bom! Depois
vi que muitas pessoas são racistas. Aos 17 anos entrei na UFMT,
para o curso de filosofia. Na universidade, a minha relação com a
música mudou. Entrei no coral e conheci o samba, que é minha
paixão, MPB, entre outros ritmos musicais. Foi um momento de
descoberta. Nem conhecia Chico Buarque, Miúcha, Elis Regina,
Cassia Eller, Ney Mato Grosso, Maísa. Com meu ingresso na
universidade pública fiquei me sentindo privilegiada por acessar
algo que não comtemplou os meus familiares durante muito tempo.
Ao longo do curso fiquei infeliz, pois foram acontecendo vários
casos de racismo com um amigo meu. Vivíamos falando que a
grade do curso era muito eurocêntrica. Dessa forma, em 2017
conheci a Unilab, por intermédio de alguns amigos guineenses que
moravam e estudavam na UFMT em Cuiabá. Foi aí que me
apaixonei pelo currículo da universidade e revolvi prestar o Enem
novamente. Ingressei no mesmo ano no campus dos Malês. Nas
primeiras semanas foi muito difícil, já que não conhecia ninguém
no estado da Bahia, muito menos em São Francisco do Conde. Vim
por intermédio de um benefício do governo que é o Id Jovem, onde
jovens até 29 anos de baixa renda conseguem passagem terrestre
gratuitamente. Quando cheguei em Salvador não tinha onde ficar,
já que cheguei por volta de meia noite. Uma mulher que estava
chegando de viagem se familiarizou comigo e fiquei na casa dela
durante um dia até vir para Unilab. Quando cheguei na cidade, era

129
Juciane Aparecida

um sábado e fiquei na casa de 2 meninos guineense que me


acolheram muito bem. Não tive dificuldade de me relacionar com
as pessoas e já cheguei me integrando com os demais alunos. Na
semana do SAMBA19 na Unilab achei que teria samba, mas era
somente uma recepção para os calouros falando sobre os
programas que tinha na universidade. Como não teve o que eu
esperava, fiz samba. Por conta dessa apresentação fui convidada
pelo Magno do Bota a Fala para gravar uma música que seria para
o desafio do “Lazinho com você”. Foi muito boa a gravação e não
imaginei que a nossa música seria selecionada. Fiquei “me
sentindo” quando descobrimos que a canção faria parte do
programa. Na universidade só me chamavam de “Lazinho com
você” ou “Me leva”. Fui motivo de brincadeiras por parte dos
integrantes do Bota a Fala, mas foi importante para esquecer um
pouco a saudade de casa. Depois de Africar fizemos outra música
que foi um funk. Essa sim foi um verdadeiro desafio, pois nunca
me visualizei cantando esse estilo musical. E posso garantir que me
superei. Conhecer o projeto de extensão coordenado pelo professor
Marcos foi o que facilitou a minha integração com os demais alunos
da Unilab e ajudou na minha permanência dentro desse espaço,
pois os alunos e alunas internacionais sempre me chamavam para
comer na casa deles nos finais de semana.
Sou eclética e gosto de vários estilos musicais. Tenho como
referências Tulipa Ruiz, Marcelo Jeneci, Toninho Gerais, Ivone
Lara, Zéca Pagodinho, Bezerra da Silva, Bete Carvalho, Maria
Bethânia, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Rsom, Banda Ellus,
Estrela Dalva, Stillus Pop Som, João Elói, Chico Gil, entre outras
bandas e cantores.
Enfim, sou muito grata às pessoas que conheci na Unilab e às
pessoas que me ajudaram a permanecer e resistir, pois esse contato
com os alunos de outras nacionalidades me ajudou a conhecer um
pouco mais do continente africano e suas diversidades.

19
SAMBA é a sigla do Seminário de Ambientação Acadêmica, que recepciona os calouros e
procura orientar e integrar os alunos na vida da universidade.
130
botAFala E A INVENÇÃO DE AFRICAR: visibilidade
segregada e autoridade semântica

“[...] das histórias que contam pra gente, as pessoas estão divididas em dois
tipos, homens e mulheres. E esses dois tipos, estão divididos em duas cores:
brancos e negros. Só que geralmente as nossas histórias são contadas por
homens brancos. Então, ser mulher e negra, é lembrar o tempo todo que cada
pessoa tem seu próprio desejo, tem sua própria cor. É lutar cada uma de nós
aqui, pra que a gente conte as nossas histórias” (Michele Brau).

Práticas musicais negras embaladas via rádio ou vídeo, gravações ou


performances ao vivo são formas de resistência (oppositional)
principalmente em um sentido fraco, de que mantêm viva algum sentido da
agência e criatividade dos povos oprimidos. No entanto, esse sentimento é tão
vago e distante da resistência política organizada, que se deve concluir que a
maioria da música negra aqui e no exterior se tornou, simplesmente, um dos
principais meios pelos quais as gravadoras americanas colonizaram o tempo
de lazer de consumidores ansiosos (inclusive eu). No entanto, uma vez que a
música negra é tão essencial para a vida negra na América, é difícil imaginar
um movimento negro de resistência em que a black music não desempenhe
um papel importante.
Cornel West (1993).

Em junho de 2017, depois da gravação do programa Conversa


com Bial, de certa forma, o Bota a fala acabou; como algo que se
exaure20. A formação que deu entrevista em São Francisco do

20Esgotamento que se justifica por diversos motivos. O primeiro e mais importante


se vincula a certa dinâmica interna do grupo, que entrou em conflito com o aumento
da demanda e a realidade da falta de estrutura e possibilidades de realizar ensaios,
apresentações e gravações de qualidade. Então, o grupo caiu numa espiral de
exigência que, contextualmente, levava ao silêncio e à denegação. Também o
contexto da universidade pesou como limitação (1) para as exigências de
profissionalização, que parte do grupo, de modo justificado, considerava necessária;
e (2) para o discurso “espontâneo” e distante das implicações proféticas que o hip-
hop tem no contexto brasileiro (esse tema foi objeto da atenção de Magno em seu
131
Marcos Carvalho Lopes

Conde estava exaurida, o grupo precisava se renovar. A entrada de


Eugênio Evandeco foi o primeiro e decisivo impulso deste “novo
começo”. Eugênio é angolano e já era produtor e rapper, mistura
ritmos e cria fusões que justificavam a alcunha de “mente criativa”.
Sua contribuição logo mudou o panorama do grupo: com
experiência ele foi capaz de construir beats, captar e mixar canções
a partir de um equipamento mínimo de gravação. De certa forma,
sua habilidade fez com que o “estúdio
caseiro” ganhasse uma qualidade
insuspeita. Eugênio garantiu a
possibilidade de que o grupo pudesse
exercer sua autoridade semântica:
compor e gravar canções em que letra
e música seriam trabalhadas como um
todo, adequada ao ritmo e fraseado de
cada canto. Este novo começo justifica
que o nome “Bota a Fala” tenha
ganhado uma nova apresentação como
“botAfala”: o foco deixou de estar nas
apresentações ao vivo e passou a ser as gravações.

Em agosto de 2017, depois das férias, retomamos os encontros


conversando sobre o projeto da canção Ocupando a Casa Grande,
que seria uma resposta para críticas que antecipadamente
esperávamos receber, por termos gravado com a Rede Globo, na
Ilha da Cajaíba etc. Neste sentido, nos reunimos e o que deveria ser
um momento de composição acabou sendo uma conversa sobre o
livro Na minha pele de Lázaro Ramos, que então era leitura de
Magno e Suleimane. O livro me lembrou da ideia de Henry Louis
Gates Jr. de que a cultura negra é marcada, ou melhor, regida por
Exu de duas faces: muitas vezes tendo dois discursos simultâneos,
um para dentro da comunidade e outro para fora. Lázaro Ramos
ocupa espaços midiáticos e essa representatividade é muito

TCC). Um segundo fator, de relevância incontestável, foi que a crise do país acabou
afetando todo trabalho acadêmico, mas, de modo muito relevante as atividades de
extensão na UNILAB.
132
botAfala e a invenção de Africar

importante para muita gente. Ele sabe e cuida disso. Também sabe
que o tipo de discurso que pode desenvolver na televisão, dentro
da Rede Globo, é diferente daquele que faz no programa Espelho, na
Rede Cultura, ou nas peças de teatro, em que tem maior poder de
decisão. Lázaro mostra que é preciso ter inteligência e cuidado para
ocupar espaços, escolher papeis e discursos. Queríamos que o Bota
a Fala tivesse o mesmo cuidado. Era uma inspiração, mas também
uma confirmação da importância de “ocupar” a Casa Grande: a
presença do corpo negro significa; a autoridade semântica significa
mais.
Num devaneio, surgiu a ideia de trazer o Lázaro Ramos para
UNILAB; afinal, ele é da Ilha do Pati em São Francisco do Conde, a
UNILAB é uma instituição importante para o movimento negro e
ele estava fazendo lançamentos de seu livro pelo país. Minha
opinião foi a de que deveria haver motivos que justificassem sua
vinda à UNILAB. Este é um movimento que deve ser pensado pelo
artista. Não se trata de um político, que busca o consenso e votos, e
devemos sempre ter cuidado para que essa universidade não se
torne um problemático lugar de “turismo”. O que justificaria a
presença dele na UNILAB? Deveríamos criar essa motivação.
Talvez como paraninfo de uma turma de formandos... mas ainda
assim... a pergunta deveria ser: o que poderíamos fazer para que
essa presença fosse possível/justificada?
Na semana seguinte, por coincidência, soube que Lázaro
Ramos seria apresentador de um programa desenvolvido a partir
de desafios colaborativos semanais na internet. Um dos desafios
daquela semana pedia: “Crie uma música de qualquer ritmo bem
dançante, e que na letra celebre a criatividade, a parceria e o prazer
de fazermos coisas juntos. FORMATO: áudio/vídeo (até dois
minutos)” O prazo de envio é domingo 03/09”. A proposta de
participar foi recebida com entusiasmo pelo grupo, mas o prazo era
muito curto e as primeiras reuniões não renderam, a universidade
não abriria no final de semana e, por uma série de fatores, tivemos
só uma sexta-feira para fazer a canção...
Nesse dia levei o equipamento de gravação, Eugênio
conseguiu um notebook emprestado de um amigo, Magno
apareceu com alguns versos para a letra, o refrão que dizia “Me

133
Marcos Carvalho Lopes

leva, me leva, me leva pra África” era uma criação antiga feita em
cima de uma base enviada pelo DJ Sankofa, mas essa música tinha
seus direitos reservados e não poderia ser utilizada. A solução foi
deixar a criação do beat a cargo do Eugênio, que com sua
experiência misturando ritmos poderia criar algo dançante. Magno
já havia chamado Patrícia N´zalé para cantar no Bota a Fala, mas
essa participação não tinha se efetivado, pela própria inércia do
grupo. Convidou também Juciane Aparecida, caloura que estava
naquela manhã na UNILAB e que já havia se destacado cantando
samba em um evento de recepção de novos estudantes. Nem
Patrícia, nem Juciane cantavam hip-hop; mas o desafio pedia algo
diferente, dançante… Era preciso acertar a letra, aperfeiçoar,
problematizar: fazemos isso conversando. Uma objeção sobre o
refrão era de que a ideia de “back to Africa”, de Marcus Garvey
(como algo físico) a Negritude (como uma reafricanização), me
parecia tão gasta e repetitiva quanto a afirmação da “Mama África”.
Sugeri que mudássemos esse sentido nos versos, pensando como
Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas, quando ele diz que
“o sertão está em toda parte”: poderíamos parafraseá-lo dizendo
que a África está em todo lugar e inventamos a nossa aqui. Isso
redescrevia a volta para África. Mas a multiplicação de sentidos
podia ser maior, com uma multiplicação de vozes. Propus um jogo
de perguntas e resposta em que a “dança”, a “música”, a “cabeça”
é o que levariam para África. Essa ideia ruim foi – ainda bem –
ignorada. A polifonia estaria em combinar as vozes, sotaques e
línguas, cantando o refrão em português e crioulo guineense. Mais
do que isso, aproveitariam para também no refrão dizer “Me leva
pra ficar”. Márcio Valverde, compositor, produtor e músico, que é
técnico na UNILAB e participa do Bota a Fala, sugeriu que o som
polifônico do refrão também poderia gerar um verbo, “africar”,
misturando “África” e “pra ficar”. Este “verbo” era perfeito para
redescrever a relação com a África, fugindo de qualquer fixação,
mas tornando-se uma atividade. Africar era também um ótimo
título para a canção.
Magno passou a primeira parte da letra para Juciane, que foi
montando a melodia e já demonstrando o que é óbvio: é uma
cantora de mão cheia. Criou uma melodia dançante, para a abertura

134
botAfala e a invenção de Africar

das estrofes que descreve uma situação confusa, em que o eu-lírico


diz não saber onde está, desconhecer e questionar o motivo que o
levou para aquele lugar e rejeitar, afastando pra longe, os “cabeças
quadradas” sem imaginação.
A segunda estrofe, que seria cantada por Patrícia N’zalé,
deveria dialogar com esta primeira, mas não estava pronta. O
sotaque de Juciane e Patrícia gerou um contraste entre as duas
estrofes, com caminhos melódicos distintos, como se as duas
dialogassem na diáspora e vindo de África; as vozes se encontram
e se misturam no refrão. Na letra, Magno queria colocar algo sobre
o movimento “vidas negras importam”, falar do genocídio negro.
Conversamos e foi consenso de que esse tema não caberia numa
canção dançante, porque pedia uma fala mais prosaica e grave
como a do rap. Certo, mas a perspectiva tragicômica faz parte da
cultura negra e o blues, o jazz, o samba são mesmo fruto da “tristeza
que balança”. A solução de Magno veio nos versos “criatividade
não pode faltar/ é ela que nos faz sobreviver” que, cantados em
crioulo guineense, reafirmavam o enraizamento e a presença deste
“outro” lugar como pátria utópica que precisa ser construída.
Esse “outro” lugar não cabe na Lusofonia, mas talvez se
encaixe como a promessa daquilo que Achille Mbembe chama de
Afropolitanismo, “o nome para o compromisso com uma reflexão
crítica sobre os muitos modos pelos quais de fato não existe
nenhum mundo sem a África e também não existe África que não
seja parte deste [mundo]” ou o “modo – ou aos muitos modos –
com os quais os africanos ou povos de origem africana entendem a
si mesmos como sendo parte do mundo ao invés de pertencerem a
um mundo à parte” (p. 29). No entanto, me parece que, de modo
diverso da proposta de Mbembe, a afirmação da “língua
guineense” propõe um tipo de enraizamento de lealdades
ampliadas, que não se identifica imediatamente com o
cosmopolitismo em sua visão mais universalista e desenraizada.
Em verdade, sempre partimos de algum lugar ou de alguns lugares,
mas é preciso ter em conta e tentar desvendar o sentido do aforismo
Asante que diz “Kuro kory mu nni nyansa”. Para se aproximar do
significado de “kuro”, que se refere ao “povo” ou “povo natal”,
levando em conta a relativa autonomia das cidades Asante o

135
Marcos Carvalho Lopes

filósofo Kwane Anthony Appiah se vale da palavra grega “polis”.


A tradução deste provérbio seria: “numa polís única não existe
sabedoria”. Africar é partir de um lugar e ir além, na busca da
sabedoria.
Falar de “busca da sabedoria” parece ser um exagero, e é
quando partimos de uma concepção de conhecimento que separa o
sujeito, que conhece e o objeto, que é conhecido. Porém, se
tentarmos tomar como perspectiva a proposta de Leopold Senghor,
o exagero parece menos. Senghor identifica ser e ritmo, e pede para
que na busca do conhecimento tenhamos uma “atitude rítmica”, de
aproximação e internalização do que se quer saber. Essa
perspectiva “ontológica” do ritmo está presente na parte do rap
cantada por Suleimane (que escrevi, ele criou a melodia e finalizou
os versos): na medida em que você dança Africar, se aproxima da
África pelo ritmo da pulsação, internalizaria a condição desta
“sabedoria rítmica”.

Postamos a canção “Africar” respondendo ao desafio e logo


começamos a perceber que algo tinha dado certo: alguns
comentários da equipe do programa elogiando a canção,
agradecendo por ter “aquele pedacinho de África ali”, elogiando a
produção, letra e música etc. Colegas da UNILAB também
saudaram a canção com entusiasmo, comentaram e reagiram de

136
botAfala e a invenção de Africar

modo muito positivo. Mas ainda restava a interrogação se ela teria


chegado até Lázaro Ramos? Será que ele gostou também?
Diante do resultado animador e da resposta inesperada,
tratamos de tentar responder ao desafio colaborativo da semana
seguinte, que pedia a criação de um funk sobre dinheiro.
Novamente na correria devia sair uma canção nova. Depois de uma
primeira reunião já tínhamos o refrão (feito pelo Suleimane) e o beat
(criado por Eugênio em um ritmo que não era a praia dele). A ideia
geral era traduzir em canção aquilo que Halifu Osumare chama de
“conexões marginais”, as condições de pobreza que unificam os
guetos em todos os lugares e faz com que a identificação com o hip-
hop dessas periferias crie uma comunidade global. A letra cita
vários guetos dos PALOP, e celebra “a gente que não para” e
continua lutando contra a falta de grana, a desigualdade. Nos
reunimos durante um dia todo - na minha casa - e o resultado foi a
canção A gente não para.
A gente não para também teve muitas respostas positivas, mas
não na mesma medida que Africar. O botAfala não era mais
surpresa e a primeira canção ainda rendia, escolhida como trilha
sonora em vídeo que com o resumo das melhores contribuições da
semana. A missão parecia cumprida. Mas tivemos uma nova
surpresa: a equipe do Lazinho Com Você lançou o seguinte desafio
para a nova semana:

A gente quer misturar a sua dança com a canção "Africar". Cria aí uma
coreografia bem bacana, sozinho ou com a sua turma, mostrando o swing
de vocês ao som da turma do Bota a Fala de São Francisco do Conde/BA.
Eles postaram essa canção contagiante e agora é a sua vez de dar seu
show de dança! OBS: Grave com o celular na horizontal, num local
aberto ou bem iluminado, de preferência uma paisagem bonita, e manda
pra gente! Vamo bombar nossos parceiros africanos e mostrar todo o
swing brasileiro! FORMATO: Vídeo de até 3 minutos.

137
Marcos Carvalho Lopes

Africar virou mote de um desafio colaborativo para que o


Brasil dançasse e entrasse no ritmo do botAfala. Esse desafio não só
mostrava que a produção tinha gostado, mas que queria repercutir,
fazer mais gente ouvir/dançar. A sensação de reconhecimento
continuou quando Lázaro Ramos em suas redes sociais postou um
trecho da canção dizendo que ela não saia da sua cabeça... e queria
colocar ela na cabeça de todo mundo, chamando para participar do
desafio colaborativo.
Logo começaram a surgir vídeos diversos e muito bacanas,
como o do pessoal do grupo de dança Embaixada d’África, que é
um projeto de extensão da UNILAB-Malês; o grupo Ballet Vip em
Salvador; sapateado em São Paulo etc. Também nestas amostras de
participação é claro que apareceram mostras de nosso velho e
conhecido racismo, celebrado de modo lúdico e ignorante de si
mesmo (algumas vezes, por parte de negros, que não tiveram

138
botAfala e a invenção de Africar

acesso a uma visão mais sofisticada de África). Em parte, senti certo


receio quanto ao resultado: estávamos jogando um jogo no qual não
podíamos criar as regras, o processo era colaborativo, mas o que iria
ao ar seria decidido pela produção.
O desafio de dança ocorreu em setembro e o programa só foi
ao ar no começo de dezembro de 2017. Neste período a produção
fez vários novos desafios e realizou conversas pela internet com as
pessoas que colaboravam, os briefings de coleta de dados tinham
na sua abertura a canção Africar, rebatizada de “Lazinho com
você” ou “Me leva” ou “uhuhuhuh” etc. De todo modo, as
tentativas de imitar a voz da Juciane geraram risos e uma sensação
de cumplicidade. Ia ser legal!

Essa perspectiva positiva se tornou mais justificada quando foi


ao ar no fim de outubro o episódio do programa Conversa com Bial
em que o apresentador Pedro Bial entrevistava Martinho da Vila. A
produção utilizou o Bota a fala para apresentar-lhe a UNILAB;
Martinho da Vila é embaixador da Comunidade dos Países
Lusófonos e muito mais coisas (como já descrevemos em “Martinho
da Vila, profeta da Lusofonia”). O cuidado e o carinho da produção
do Conversa com Bial para que a UNILAB tivesse uma
representação positiva foram evidentes. Ainda assim, obviamente,
tivemos que enfrentar críticas.
Por um lado, os depoimentos das/dos estudantes sobre a
vivência do preconceito causaram mal-estar. São Francisco do
Conde é uma cidade onde a maioria da população se autodeclara
negra, em que a cultura negra é destaque, logo, falar de preconceito
contra negros africanos seria um disparate! Falar de racismo
sempre cria esse tipo de reação, afinal, somos brasileiros...
A participação de um grupo de hip-hop em um programa da
Rede Globo é motivo de desconfiança justificada pela própria
história do movimento no Brasil. Muitas vezes, ao sair da
comunidade o movimento se dilui na cultura, a perspectiva
educacional e engajada vira evasão e a atribuição do rótulo de
“vendido para o sistema”.
Sair da comunidade é correr o risco de ser interpretado de
maneira distante do modo de vida que se representa, o risco de

139
Marcos Carvalho Lopes

virar produto ou de perder o reconhecimento dos pares. A


reinvindicação de ser a verdadeira UNILAB, o verdadeiro Hip-
Hop, a verdadeira comunidade underground... são formas de
barrar o diálogo. É verdade que este gesto pode ser de
ressentimento criativo e, assim, algo bem-vindo. Mas também pode
ser parte de uma cultura do ressentimento que só é destrutiva ao
colocar o “outro” como impuro, vendido, alienado etc. Os “puros”
são perigosos...
As críticas puristas não surgiram de modo explícito dentro da
comunidade da UNILAB no Campus dos Malês, até mesmo porque
todos sabem da necessidade de divulgar o projeto e o nome da
universidade, fortalecer o apoio à instituição e divulgar sua
proposta.
Da sede da UNILAB no Ceará houve a reclamação de que o
programa não mostrou uma instituição de pesquisa com muitos
cursos, mas uma ONG na Bahia para africanos. Nesta crítica se
esconde o pressuposto de que o hip-hop não é um tema digno de
pesquisa para apresentar a universidade (em resposta a exposição
alcançada pelo botAfala, houve uma iniciativa magnânima de criar
uma orquestra na sede! Não vingou, mas outros reivindicaram o
lugar da “verdadeira música”). É fato que a UNILAB no Ceará tem
mais cursos, prédios, verbas, é a sede etc. mas o Campus dos Malês
em São Francisco do Conde, ainda que com a distância e o pouco
investimento, é e luta para ser UNILAB. A briga por autenticidade,
por vezes é uma cegueira do narcisismo das pequenas diferenças,
noutras puro ressentimento ou reivindicação de poder.
Também houve comentários negativos de lugares e pessoas
mais adequadas para este tipo de prática. A onda fascista sempre
acena quando questões raciais são abordadas e não faltou quem
mandasse os africanos de volta pra África! Observando as fotos de
quem assinava os comentários em redes socais podemos ratificar a
tese de que o racismo é um sistema de privilégios: ver negros, ver
africanos na universidade causa... numa universidade brasileira de
integração com a África causa muito mais!
Em grande medida, ter haters é o resultado de algo que chama
atenção e mobiliza desejo. Quem se contrapõe a estruturas culturais
de opressão já deve se acostumar com as vozes estridentes. Num

140
botAfala e a invenção de Africar

trecho da conversa, comentei sobre o niilismo que algumas vezes


acena no hip-hop, quando as críticas se tornam autorreferentes e
destrutivas, sem horizonte de transcendência. A tensão em relação
ao niilismo, que é lugar comum na cultura de modo geral, deveria
ser, para Cornel West, o ponto de partida para autorreflexão das
comunidades negras, que precisam enfrentar a “experiência de
viver dominado por uma pavorosa falta de propósito, de esperança
e (acima de tudo) de amor” (1993, p.31).
Muitas pessoas se identificaram e demonstraram orgulho
dessa universidade brasileira e da transformação do conhecimento
que ela pode proporcionar. É uma promessa ainda frágil
institucionalmente e sob constante ameaça, mas com muita gente
pronta para arregaçar as mangas e trabalhar, inventar esse futuro
melhor. Estamos de pé ainda e seguimos caminhando... O botAfala
busca articular uma forma de lidar com o niilismo apostando no
futuro, equilibrando-se entre o otimismo da vontade e o
pessimismo da razão, como quem age na direção do que quer
construir.

Na segunda quinzena de outubro, Lázaro Ramos em uma


entrevista ofereceu pistas de como seria o seu programa. As
declarações causaram estranhamento, já que pareciam deslocadas,
com uma pretensão exagerada. Afirmou estar “tentando, num
momento de tanta brutalidade, levar para a televisão um programa
que seja uma boa companhia nas tardes de domingo e que ofereça
uma alternativa civilizatória” (STYCER, 2017). Apesar deste
discurso desmedido, ao mesmo tempo ressalta que o programa
seria bem simples, seu valor seria “estar de verdade me
relacionando com as pessoas, ouvindo o que as pessoas estão me
dizendo”. Como e por que tratar de um programa de televisão
como alternativa civilizatória?
A resposta para tentar entender essa diferença foi dada pelo
roteirista do programa Dodô Azevedo no dia do lançamento de
Lazinho com Você, 9 de dezembro de 2017, com a publicação na
Folha de São Paulo do texto “Roteirista de programa de Lázaro
Ramos escreve sobre 1° chefe negro” pode ser lida como uma

141
Marcos Carvalho Lopes

espécie de manifesto e faz parte do gênero ser prenhe de intenções


e...
Dodô Azevedo é negro e, além de roteirista, diretor de cinema,
filósofo, doutor em Letras, é músico e romancista. Ele tem
defendido a necessidade de um reconhecimento radical de que o
Brasil foi fundado no trabalho de negros escravizados, sendo a
herança dessa violência a chave para explicar o país. Quando o Cais
do Valongo, maior porto escravagista dos séculos 18 e 19 foi
reconhecido pela UNESCO como patrimônio cultural, Dodô
escreveu um artigo colocando esse lugar como o útero do país,
enfatizando sua importância: “O maior porto escravagista da
história da humanidade fica no Brasil. Isso explica desde o
superfaturamento em obras aos assassinatos de posseiros no Pará.
Desde a chacina do Carandiru ao apoio da classe média ao regime
militar e a recente popularidade do conservadorismo. O maior
porto escravagista da história da humanidade fica no Brasil”21.
Este lugar fundador continua impensado, não reconhecido. O
racismo estrutura nossa sociedade de um modo inquestionável,
mas aqui o inquestionável é o que não é colocado em questão, é
silenciado. A identidade racial é um tabu, afirmar-se negro,
incorporar a cultura africana é ser inconveniente, e só os negros
convenientes são aceitos no país como exemplos de sucesso. São
exemplares justamente por não colocarem em questão o racismo,
por não se verem como negros. O que há de novidade para Dodô
Azevedo é que os negros começam a ocupar lugar de fala, a
adquirir autoridade semântica para contar suas próprias histórias,
para se autoafirmar e incomodar pela beleza, força e cultura; ser
inconveniente. Estes negros inconvenientes não se rendem à
retórica que desconhece os resultados da diferença de cor de pele
em nossa sociedade, nem se mantém nos scripts previamente
marcados com papéis que reencenam a exclusão e a carência.
Prefiro e preciso citar as palavras de Dodô:

21 AZEVEDO, Dodô. Cais de Valongo é o útero do país.


https://oglobo.globo.com/opiniao/cais-do-valongo-o-utero-do-pais-
21578281#ixzz5PRUDzOZx. O Globo. Publicado em 12/07/2017.
142
botAfala e a invenção de Africar

Geralmente, quando se dá espaço para um negro escrever, pedem para que


escreva sobre a experiência de ser negro. Não parece interessar a opinião de
um negro sobre mais nada do que ser negro, falar de favelas, violência,
pobreza.
Ninguém parece querer saber a opinião de um negro sobre física quântica.
Mesmo com toda a ciência e a visão de mundo africanas serem fundadas, há
milênios, no princípio da dualidade da matéria.
Ninguém parece querer ler, por exemplo, um romance de fantasia escrito por
um negro. Mesmo quando "O Senhor dos Anéis" e toda a mitologia nórdica
têm origem em contos persas ancestrais que compõem o Shahnameh (não
editado no Brasil e mal editado no mundo), no qual todos os personagens têm
a pele escura (AZEVEDO, 2018).

A grande diferença para Dodô Azevedo em ter um chefe negro


não era somente algo simbólico, mas a possibilidade de propor
novas formas de narrar e contar histórias, novas formas de pensar
a relação com outro; possibilidades que teriam seus pressupostos
na filosofia africana.
Neste sentido, no pouco espaço que teve no seu artigo, Dodô
descreve como a liderança dos roteiristas de Elísio Lopes Jr.
construiu um programa que trata de gente e não do homem. Pensar
no homem seria seguir o roteiro da modernidade, que com seu
individualismo, promoveu o desenvolvimento e o progresso, com
a aceitação da violência e exclusão como parte do cotidiano. Pensar
a gente22 –- é já ser com o outro, ser em comum, de modo relacional,
dialógico e solidário. Na perspectiva da gente, a ideia moderna de
que o homem como indivíduo é livre e autônomo, causa
estranheza: afinal não nascemos sempre amarrados pelo cordão
umbilical a uma mãe, uma família, uma comunidade? Não somos
gente?

22O termo me faz lembrar o livro do espanhol Ortega y Gasset O hombre y la gente,
mas essa é uma pista falsa, porque para Gasset, para ser homem é preciso justamente
lidar com a impessoalidade de ser como os outros são, de ser de modo impessoal, de
ser “gente”: sou com minhas circunstâncias, mas preciso me salvar delas para ser
“eu mesmo”. A busca aqui não é de se afastar do que é comum, na busca por um
ponto de vista incomensurável ou de uma torre de marfim individualista, mas de
buscar o melhor neste ser-junto-aos-outros, de sua solidariedade. De certa forma, o
botAfala também dá este recado na canção que aparentemente passou despercebida:
A gente não para. A canção que foi escolhida pela produção para servir de abertura
ao programa foi Gente de Caetano Veloso, que fala desse brilho comum.
143
Marcos Carvalho Lopes

Levar em conta esse ser em comum é propor diálogos; neste


sentido, o programa Lazinho com Você apostou na “cultura do
remix”, um dos elementos fundadores do hip-hop (PRADO;
SARTRIANO, 2018). A cultura do remix dilui a ideia de autoria em
favor de processos criativos solidários; a ênfase está no diálogo, na
mistura criativa, no ser em comum, e não na busca de uma
diferença incomensurável. Foi assim que a proposta de desafios
colaborativos conseguiu envolver 40 mil pessoas, que enviaram
canções, músicas, ideias, esquetes, vídeos etc.
Deste modo, através de dicotomias que diferenciam negro
conveniente/negro inconveniente e homem/gente, Dodô Azevedo
descreve o que seriam os pressupostos que justificariam a pretensão
de que um programa de tarde de domingo fosse uma alternativa
civilizacional. Para que funcionasse era preciso articulá-lo de um
modo reconhecível pelo público:

Uma das ideias que executamos foi um quadro de realizações de sonho, parecido
com os quadros assistencialistas que prometem concretizar o desejo de um
pobre. Só parecido. Em um dado momento, ocorre uma reviravolta: quem
decide qual sonho será realizado são as pessoas que tinham se candidatado para
ter seus sonhos realizados.
Em um passe de magia —certamente negra—, o foco vai de quem tem seu
sonho realizado para quem abre mão de seus próprios sonhos, mas que se realiza
pela concretização do sonho do outro. Gente que resolveu compartilhar seu
privilégio e foi feliz por isso (AZEVEDO, 2018).

O exercício da cultura do remix foi mediado pela equipe de


produção para que as ideias se efetivassem. O deslocamento do
lugar comum pedia diálogo e criatividade de um modo que sempre
significa riscos maiores. O processo colaborativo não seguiu uma
direção épica de selecionar poucos heróis, mas na tentativa de
multiplicar vozes não poderia garantir o espaço e a forma de
reconhecimento midiático (em relação ao qual buscava se
contrapor). A tentativa de equilibrar a carnavalização polifônica e a
estrutura narrativa foi dado pela proposta de questionamentos
éticos/existenciais específicos que costuravam cada episódio junto
com a atuação de Lázaro Ramos, colocando-se como espelho,
buscando ouvir e se colocar no lugar da gente.

144
botAfala e a invenção de Africar

Um dia antes do lançamento do programa, Lázaro Ramos


postou nas suas redes sociais a canção Africar numa versão nova,
remixada pelo músico Filipe Bohlke, conhecido por manter na
internet o canal Foca da Meia Noite (em que reedita canções de
sucesso). No início do segundo bloco do episódio de estreia de
Lazinho com você a canção Africar ganhou um videoclipe de quase
um minuto com pessoas de todo país dançando com coreografias,
estilos, roupas e cores diversas.

O programa Lazinho com Você não atingiu os índices de


audiência esperados pela Rede Globo. O resultado inicial levou a
emissora a reclamar do produto que recebeu: não seria o que havia
encomendado/comprado/financiado. Todos os episódios da
primeira temporada foram exibidos e a continuidade do programa
não aconteceu.
O estranhamento do público em relação ao programa tem
muitas explicações. De todo modo, não vou fazer aqui qualquer
avaliação mais detalhada, mas que para tentar entender o que está
em jogo é preciso fazer uma abordagem múltipla. Para tratar de um
programa de televisão, assim como quando se estuda o Hip-Hop,
não parecem ser suficientes os estudos culturais, se estes surgem de
modo apartado de avaliações sobre as relações capitalistas e de
poder. Seguimos Cornel West neste juízo e na definição destes
termos:

Estudos culturais consistem em análises estruturais e narrativas existenciais


de porque e como os significados são constituídos e os sentimentos são
experimentados. Essas análises e narrativas explicam e descrevem os usos (e
abusos) de sons, linguagens, gestos, posses, imagens e símbolos no
surgimento, sustentação e declínio de formas culturais e estilos pessoais. Os
estudos culturais procedem em maneiras sutis de historicizar, contextualizar
e pluralizar nossos momentos catastróficos no espaço e no tempo. Os estudos
capitalistas enfocam as formas complicadas de poder e influência econômica,
de autoridade financeira e sedução. Estudos capitalistas destacam os modos
e maneiras que acompanham os poderosos processos de comoditização

145
Marcos Carvalho Lopes

(commodification)23 em momentos históricos particulares. Os estudos


capitalistas também acompanham a fetichização das mercadorias –
atribuindo poderes mágicos e messiânicos às coisas materiais, corpos
objetificados ou produtos de luxo – que escondem e ocultam hierarquias e
subordinações sociais. A política contemporânea não é simplesmente o estado
das eleições nos procedimentos ou políticas governamentais ou legislativas.
Mais importante na política contemporânea é o equilíbrio de forças entre
formas poderosas de dinheiro organizado - oligarcas, plutocratas, monopólios
e patrões - e pessoas comuns, menos poderosas e menos organizadas, famintas
por sucesso financeiro e sedentas de reputação pública (WEST, 2011, p.1-2).

Deste modo, a questão da representatividade colocada pelo


programa deve ser articulada com os interesses comerciais da
emissora e dos patrocinadores, do jogo de poder e das relações de
forças de um país estruturalmente racista etc. Será que é possível
propor uma perspectiva alternativa de comportamento a partir de
um programa de televisão? A representatividade não é mais um
produto? Não seria mais uma forma de reduzir valores à forma de
mercadoria e à sociedade do espetáculo que causam sua
deterioração?
Se essas perguntas não podem ser respondidas de modo
definitivo, examiná-las em um breve contraponto com a série
musical Mister Brau ajuda a complexificar o quadro. Mister Brau
estreou em 2015, trazendo uma novidade na televisão brasileira:
um casal de protagonistas negros que ascendem socialmente como
estrelas pop e precisam lidar com a inveja e o preconceito de seus
vizinhos, um casal branco esnobe. Atuando como Mister Brau e
Michele Brau, Tais Araújo e Lázaro Ramos quebraram a tradição
das representações televisivas, em que os negros quase sempre
ocupam papéis subalternos, mas também em que, como explicou
Joel Zito Araújo, “existem poucos exemplos de amor entre dois
negros. A expectativa da sociedade brasileira é que o negro não
tenha orgulho de ser negro e procure escapar da negritude com um
parceiro branco” (apud DOUGLAS, 2018). A série alcançou sucesso

23Mais comum seria traduzir commodification como mercantilização; no entanto, este


é um conceito importante na obra de Cornel West, tendo o sentido marxista da
transformação das pessoas e de todas as relações em mercadorias.
146
botAfala e a invenção de Africar

de público e crítica, sendo saudada em seu ano de estreia com uma


reportagem do jornal The Nation avaliando seu significado:

Para o Brasil, um programa de televisão com um casal negro rico em um


papel de liderança é sem precedentes. Apesar da maioria da população negra
ou mestiça, a televisão brasileira é majoritariamente dominada por brancos,
dentro e fora da tela. Em um país onde 81% da população descreve a TV
como sua principal fonte de lazer, essa ausência está sendo cada vez mais
examinada (DOUGLAS, 2018).

A ausência de rostos negros na programação televisiva


reafirma uma segregação profunda, que através dessas mídias é
perpetuada e naturalizada no imaginário do país. A reportagem
destaca o depoimento do roteirista Tony Goes, para quem a
ascensão de uma classe média negra na última década justifica a
criação de novos produtos, imagens e programas de televisão 24.
A série Mister Brau, que foi planejada para uma temporada,
chegou a sua quarta e última no ano de 2018. É preciso avaliar como
uma forma de “visibilidade segregada” pode ser útil na
reafirmação do discurso de democracia racial. Neste sentido, o
humor de Mister Brau pode ser descrito como uma estratégia de
conciliação, que com a ausência de seriedade surge como
inofensiva; ou como uma forma de estratégia retórica de resistência
com significado duplo e ambíguo (CARTER, 2018). O personagem
Mister Brau em muito também serviu de contraponto e escada para
a articulação de Michele Brau, como uma figura empoderada e
consciente de vivenciar e lutar contra a dupla opressão, de gênero
e de cor (ROSA, 2017).
Talvez a avaliação de Mister Brau não possa deixar de
considerar que o Lázaro Ramos atuou também como um dos
roteiristas do programa25, que junto com Taís Araújo desde 2015

24
Isso não significa que qualquer representação seja aceitável: um ano antes a série
Sexo e as Negas, idealizada e com roteiro de Miguel Falabella, fracassou, sendo
acusada de cair em estereótipos racistas ao buscar retratar quatro negras
empoderadas do subúrbio.
25 A diversidade e a representatividade faziam parte da construção do programa que

contava, além da direção geral de Jorge Furtado, com três diretoras e entre os
roteiristas havia “quatro mulheres e cinco homens, três deles negros”. Mister Brau é
uma experiência que comprova a tese de que diversidade é potência. Não é apenas
147
Marcos Carvalho Lopes

encenam no teatro a peça No topo da montanha, em que contrapõe o


discurso de Malcolm X e Martin Luther King. Em verdade, a
diversidade atrás das câmeras foi um fator valorizado no programa
dirigido por Jorge Furtado,
O sucesso em Mister Brau fez com que o casal ganhasse uma
visibilidade maior, sendo cada vez mais procurados para
campanhas publicitárias, capas de revistas etc. Lázaro Ramos
acredita que “o mercado encontrou em nós rostos que
representavam esse negro brasileiro que decidiu usar como arma a
afirmação de sua cor”; mantendo a esperança de que essa
visibilidade frutifique, “quero observar, quero ver se ela vai passar
do entretenimento para os outros setores da sociedade, como por
exemplo a política. E, se algo a partir disso vier, será uma vitória”
(RAMOS, 2017, p.94).
O último episódio de Mister Brau foi gravado em Angola,
numa volta à África em que os protagonistas reencontravam suas
origens. Exibido em 12 de junho, a série surgiu logo depois da
novela O Segundo Sol que, tendo como cenário a Bahia, estado em
que 80% da população é afrodescendente, tinha somente 2 negros
entre seus 27 atores, nenhum protagonista. O ministério público
notificou a emissora sobre a falta de representatividade, em uma
abordagem educativa que não mudou o sentido da trama: o
racismo estrutural permanece naturalizado na teledramaturgia.
A representação negra dentro da cultura de massa promove
um tipo de produção que incentiva os artistas a abrirem mão da
identidade racial em favor do gosto universal, de formas de
discurso convenientes, de convergência, transição e/ou mistura. A
música negra é uma forma de resistência, mas é necessário que o
que se ouve passe a ser visto e, mais importante, que ganhe voz e
autoridade semântica para redescrever os termos, contar as suas
próprias histórias. Africar é a volta p’ra África que a UNILAB
significa (e dá sentido). Um reencontro criativo com o futuro,
traduzindo o poder transformador da canção em uma possibilidade

um trabalho de equiparação social. É reconhecer talentos e dar oportunidade para


várias vozes serem escutadas no processo de criação...” (LOPES, 2018).

148
botAfala e a invenção de Africar

de nos civilizarmos, como um país que se abre para a poesia. O


novo deste encontro é um espelho de futuro, possibilidade de
sermos melhores. Para chegar a este objetivo é inevitável fracassar,
mas é preciso fracassar cada vez melhor (WEST, 2011b p.93). Esse
não deixa de ser um anseio profético, que pedi para seguirmos, de
modo inconveniente, ocupando a Casa Grande.

REFERÊNCIAS

AZEVEDO, Dodô. Cais de Valongo é o útero do país. O Globo.


Publicado em
12/07/2017.https://oglobo.globo.com/opiniao/cais-do-valongo-
o-utero-do-pais-21578281#ixzz5PRUDzOZx. Consultado em
14/07/2017.
_________. “Roteirista de programa com Lázaro Ramos escreve
sobre 1º chefe negro” Folha de São Paulo. 9/12/2017. Disponível
em:
http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2017/12/1941700-
neo-meu-primeiro-chefe-negro.shtml. Acesso em: 01 mar. 2018 .
CARTER, Eli L. Representing Blackness in Brazil’s Changing
Television Landscape: The Cases of Mister Brau and O Grande
Gonzalez. Latin American Research Review, v. 53, n. 2, 2018.
COWIE, Sam. “Bahia is Brazil's blackest state – but you'd never
guess it from latest TV soap”. The nation. 18/05/2018.
Disponível em:
https://www.theguardian.com/world/2018/may/18/brazil-
segundo-sol-telenovela-white-black-cast-race. Acesso em: 08 set.
2018.
DOUGLAS, Bruce. “Brazilian television slowly confronts country's
deeply entrenched race issues”. The Nation. 7/10/2015.
Disponível em:
https://www.theguardian.com/world/2015/oct/07/brazil-
television-mister-brau-black-couple-race-issues, Acesso em: 08 set.
2018.
LOPES, Fernando. “Mister Brau se despede com crítica à corrupção
e declaração de amor à África...” Disponível em:
http://noticiasdatv.uol.com.br/noticia/series/mister-brau-se-

149
Marcos Carvalho Lopes

despede-com-critica-corrupcao-e-declaracao-de-amor-africa--
19968?cpid=txt Consultado em 08/09/2018.
PRADO, Carol e SARTRIANO, Nicolas. “Como Lázaro Ramos foi
de detrator de redes sociais a influenciador no comando do
programa 'Lazinho com você”. Disponível em:
https://g1.globo.com/pop-arte/noticia/como-lazaro-ramos-foi-
de-detrator-de-redes-sociais-a-apresentador-youtuber-do-lazinho-
com-voce.ghtml. Acesso em: 09 ago. 2018.
ROSA, Milena Alves da. Práticas de resistencia da mulher negra a
partir da personagem Michele em Mister Brau. 2017.
STYCER, Mauricio. Lázaro Ramos quer oferecer “alternativa
civilizatória” aos domingos na TV” Disponível em:
https://mauriciostycer.blogosfera.uol.com.br/2017/10/22/lazaro
-ramos-quer-oferecer-alternativa-civilizatoria-aos-domingos-na-
tv/ . Acesso em: 11 nov. 2017.
WEST, Cornel. “Foreword. On Jay-Z and Hip Hop Studies”. In:
BAILEY, Julius (Ed.). Jay-Z: Essays on Hip Hop's Philosopher
King. McFarland, 2011.
____. “Religión profética y futuro de la civilización
capitalista”. Mendieta, E. y J. Vanantwerpen. In: El poder de la
religión en la esfera pública. Madrid: Trotta, 2011b. P.87-94.
____. “Black Culture and Postmodernism.” In NATOLI, J. e
HUTCHEON, L. (ed.) The Postmodern Reader. Albany: SUNY
Press, 1993. 390–397.

150
INTERMEZZO VARIADO

151
botAfala

S_many
Sou Suleimane Alfa Bá, filho de Mamadú Alfa Bá e de Teté Sane. De
nacionalidade guineense, nascido no dia 08 de janeiro de 1994, numa das
vilas de Guiné-Bissau (Binar). Na área da música “HIPHOP” sou
conhecido por S-many, que é uma abreviatura do meu nome de nascença
(Suleimane) no qual “S” significa #Sulei e o “Mane” significa #Many.
O hiphop na minha vida tem muita importância; praticamente este
gênero musical mudou a minha vida. Porque eu era uma pessoa muito
tímida que não conseguia exprimir tudo que sentia. Fato que mudou a
partir do momento em que me dediquei a fazer músicas do estilo hip hop.
O hiphop é como se fosse o elo de ligação entre eu e a sociedade em
geral, isto é, as pessoas recebem as minhas mensagens através da música,
mensagens essas que se destinam a educar, sensibilizar e alertar a
sociedade sobre as desigualdades sociais que hoje existem no mundo em
que vivemos, um mundo no qual predomina mais o preconceito, o racismo
e a discriminação. Mas, fatos do tipo na verdade não deveriam existir, isto
porque todos somos seres humanos. Portanto, pra mim, o hip hop é como
se fosse uma filosofia da vida.
Com este projeto #botaafala, eu espero que todos nós consigamos
atingir os objetivos almejados, como também passar as nossas mensagens

152
botAfala: Ocupando a Casa Grande

para as pessoas da comunidade e ouvi-las também. Não podemos mudar o


mundo, não podemos acabar com as desigualdades sociais, preconceitos,
discriminações ou racismo, mas, não custa tentar.
[2015]

Minhas Lembranças
Suleimane Alfa Bá

Lembro-me
Lembro-me das noites de menos cortesias
Das lágrimas infinitas que caíram naquela madrugada longa enxurrada de
angústia
Lembro-me de homens, mulheres e crianças que ali estavam à procura de um
asilo.
Com fome, sede, mas com esperança de chegar ao destino.
hoje os “senhores” já não sabem mais o sentido da palavra
solidariedade!
Mas, que outrora fizeram o mesmo percurso à procura de estabilidade, riqueza e
Fortuna.
Lembro-me do navio negreiro cheio de escravizados com destino à terra dos
“civilizados”!
Que ontem se diziam ser defensores dos “direitos humanos”.
Lembro-me do sofrimento e das lágrimas que fluíam nos olhos das mães e dos
gritos das crianças que apenas pediam ajuda.
Mas que só receberam injuria!
Pois, para a maioria dos “senhores” a nós só se deve a tolerância!
Quando devia ser a hospitalidade.
Ainda me lembro das crianças que lutaram sem forças contra as águas do oceano!
Dos pais que deixaram órfãos sem abrigo!
Lembro-me de um adeus.
Adeus de quem só almejava encontrar a paz e estabilidade
Para conviver na alegria, harmonia e felicidade.

Tania Brasiguis
Meu nome é Tânia Correia Jaló. Escolhi Tania Brasiguis, porque eu
sonhava muito em conhecer o Brasil, já que gosto muito de assistir novela.
Disso surgiu a inspiração para o nome Brasiguis, que significa Brasileira
e Guineense. Escolhi este nome no projeto Bota a Fala porque não quero
153
botAfala

deixá-lo de lado só porque já estou no Brasil; esse nome faz parte do meu
sonho. Espero que nosso projeto continue firme e forte porque é uma boa
iniciativa e vamos nos empenhar para que possamos chegar aos nossos
objetivos. Vou dar o meu máximo e espero também o mesmo de todos.
[2015]

154
botAfala: Ocupando a Casa Grande

Lauro José

Começo por me fazer representar: sou Lauro José Cardoso, aluno do


BHU-Humanidades na Unilab, campus dos Malês. Um africano vindo das
amáveis ilhas de São Tomé e Príncipe. Carregado de sonhos nas bagagens
e com vontade de encontrar condições para um positivo crescimento
pessoal, “superando as minhas debilidades” (uma frase que usei numa das
músicas que compus). Descobrindo meios para me tornar num ser humano
mais independente e altruísta.
A música. Como é difícil expressar em palavras o que ela representa
na minha forma de pensar e agir. Mas ao mesmo tempo é simples achar
uma palavra que resume essa definição: expressão.
Pois, é através desse vocábulo que todas as inquietações e virtudes são
compreendidas, libertas para que outras pessoas escutem as mensagens,
projetadas do interior e que procuram contribuir para um mundo mais
autêntico, provido de boas vibes e comportamentos.
A arte tem esta capacidade de mover montanhas, ou seja, transmitir
recados para a espiritualidade que reside em cada um de nós. O Bota a fala
foi uma escolha que não hesitei em fazer, porque carrega dentro de si esta
fonte de transmissão que aquece e me inspira a compor várias letras de
música. Uma oportunidade que está sendo agarrada, encarada também
como um desafio pra o meu desempenho artístico.
Adoro destacar o meu lado como compositor. A escrita desempenha
um papel crucial nos meus compassos diários, imaginários e criativos.
155
botAfala

Escrever é vida. Daí a minha obsessão pela Palavra, que de certo modo,
cativou em si mesma a musicalidade de transformar-se em melodia,
expulsa por versos e rimas que reverberam pensamentos questionadores,
nutridos por uma ânsia de construir narrativas através do Hip-Hop.
Cá estou eu, mesmo sem ser um Mc profissional estacado em “terreno
brasileiro” (outra frase de uma das minhas composições), tendo como
principal foco o término do Bacharelado e visando uma especificação em
Antropologia ou Ciências Sociais; sigo acreditando que a música não irá
morrer dentro de mim.
Então, continuarei firme no projeto Bota a fala, dando o melhor que
puder e sobretudo: expressando!

[2015]

156
botAfala: Ocupando a Casa Grande

Iuri Santos Silva do Rosário

Iuri Santos Silva do Rosário, 23, soteropolitano com linhagem familiar de


São Francisco do Conde e padrinho de Oronho Nzalé. Sou formado em
Humanidades na primeira turma de formandos da UNILAB, Campus dos
Malês. Hoje graduando em fase final do curso de Relações Internacionais
pela mesma Instituição com Mobilidade Acadêmica na Universidade
Federal Fluminense.

A construção do respeito e pertencimento pela diversidade musical


negro-africano-diásporica-brasileira deriva de algumas leituras que me
fizeram repensar posturas e entendimentos sobre o que estava posto. Um
dos caras que me ajudou a entender meu pertencimento à diversidade da
musicalidade negro-brasileira foi o Renato Noguera.
No livro O Carnaval e a Filosofia, Noguera escreve um texto
“Alegorias da malandragem: uma estética afroperspectivista do carnaval”
que me ajudou a entender perfeitamente o meu local de fala e de
pertencimento, enquanto negro diásporico e pertencente à maior nação de
rainhas e reis do mundo!
Em particular e de forma singular, começo a perceber a importância da
minha vivacidade ao pertencimento e parto para o estudo empírico e do
questionamento de como praticar a filosofia africana, e é a partir desse

157
botAfala

aspecto que o prestígio pelo Bota a fala aumenta e vem aumentando cada
vez mais.
A calma que transcende em minh’alma reflete a ancestralidade da Mãe
África! E o Bota a fala me faz lembrar sempre disso, reverberando a
grandiosa importância dos meus antepassados.
Intitulo-me como fã número 01 do Bota a fala e nisto há uma relevância
muito grande em minha vida, sobretudo no meu eu. Se conhecer é preciso!
Poetizar através de palavras de sobrevivência e resistência gera ânimo
para continuar na luta. Parar, só para pensar. E isso faz parte das fases.
Assim acredito e toco a minha vida aqui na terra. Transcendentalizando.

PERMANECER, GERIR, LUTAR, IMPEDIR

Permanecer na luta. Gerir influências. Lutar por vida. Impedir o


sistema. Acredito que esses sejam um dos principais pilares que o Bota a
fala carrega em seus princípios de RESISTÊNCIA.
Foi o Bota a fala quem deu a mim e aos meus irmãos boas-vindas à
UNILAB com seu bem-vindo diferenciado:

“Bem-vindos à família UNILAB


Bem-vindos à nossa Universidade
Bem-vindos à São Francisco do Conde
Bem-vindos, bem-vindos ao Brasil”

E para enfatizar a luta, “Abram os portões, estamos chegando. Bota a


fala está entrando para ocupar as Casas Grandes”...
Foi com esse fôlego que eu acompanhei a entrada do Bota a fala na
Assembleia Legislativa do Estado da Bahia em Salvador em 2015; foi com
esse fôlego que eu vi o Bota a fala entrando em um dos programas bem
mais assistidos e referenciados da Rede Globo, o “Conversa com o Bial”,
ao lado do grande sambista brasileiro, Martinho da Vila, em 2017; foi com
esse fôlego que eu vi o Bota a fala entrando para o programa do Lázaro
Ramos com frequência, africaniando tudo! E reflito... “está entrando...”
não pararemos de entrar e de ocupar!
“Convidar a negritude a fazer parte do cortejo”!
O Bota a fala é, também, uma filosofia africana para a vida de nós
negros e negras espalhados pelo mundo, seja na África seja na Diáspora.
Respeitemos e sigamos o legado da nossa história e persistamos resistindo
para impedirmos o sistema de avançar com suas perversidades
estruturadas.

158
botAfala: Ocupando a Casa Grande

AFRICAR é preciso e é mais que um desafio vencido!


A INTEGRAÇÃO nos revela/revelou isso e A GENTE NÃO PARA!
E nem pararemos!
#botaafalateam

Fabiana Gelard
Eu achei que fosse mais fácil falar do Bota a Fala. Mas, ao parar e
pensar no que significa o grupo para mim e para o nosso campus percebi
que as palavras talvez não deem conta de expressar o sentimento. Mas,
para tentar organizar o pensamento; tentarei caminhar cronologicamente,
ainda que o tempo dos sentimentos transformados em palavras não seja
assim tão linear.

Sou do Rio de Janeiro e vir estudar na UNILAB concretizou dois dos


meus grandes sonhos: cursar uma universidade federal e ter acesso a um
estudo que me possibilitasse trabalhar a construção de uma sociedade
antirracista. Então a primeira semana foi a semana dos primeiros encontros
que se perpetuaram em amizades. Lembro-me com assombrosa nitidez do
meu primeiro contato com o Bota a Fala, foi no momento do SAMBA.
Magno, S-Many, Dito, Tânia, Lauro e sua bandeira de São Tomé amarrada
no pescoço... Era tudo muito novo! Eu tentava entender a letra já que eram
tantos falares diferentes, mas era uma grande potência que eu via na minha
frente!
O tempo passou e com ele novas apresentações, novas músicas, a
maturidade do nosso conhecimento enquanto amigos e amigas e enquanto
estudantes, a dureza de se viver fora de nossas casas... O racismo sofrido
pelos participantes do grupo... Tudo isso foi marcando as composições do
grupo! Ahhh, e novos integrantes trazendo consigo novas vivências e
performances! A construção e reconstrução do grupo é a tônica para o
movimento circular, já que é parte de nós, mas gradiente ganhando novos
contornos e espaços!
Integração é uma palavra que está expressa no nome da universidade
e que é sempre motivo de longas conversas no meio estudantil. A
integração cantada pelo grupo não é aquela vazia e fantasiosa, mas sim
aquela que nos une, seja nas nossas amizades e alegrias seja nas nossas
diferenças e dores. É a personificação da unidade na diversidade.

159
botAfala

Cantando a UNILAB, cantando o racismo, cantando a força e a união


as vozes do Bota a Fala ecoam. É a palavra comunitária que ecoa, que
busca no passado os caminhos para a construção de um presente e um
futuro melhor!
Amo cada um de vocês e o todo! Amo sobretudo a oportunidade de
partilhar de perto cada um desses momentos! Obrigada pela partilha, pelo
conhecimento, pela história partilhada!

Chitungane Sebastião Chachuaio

Falar do BotAfala é sem dúvida nenhuma algo bastante desafiador. Pra


começar eu prefiro não chamar o BotAfala de grupo ou uma ação de
pesquisa e extensão, e sim me referir como uma família. Sim, porque foi
isso que ele se tornou. Ao meu ver, BotAfala (sem querer entrar em mérito
de melhor ou pior), foi e tem sido um dos movimentos artísticos e
acadêmicos mais marcantes da nossa universidade, entre as ações e
projetos que vêm sendo desenvolvidos. Isso porque este projeto vem
cumprindo um papel de suma importância na nossa universidade. Não se
trata só de cantar integração, mas de compreender verdadeiramente qual o
papel dela na reconstrução das nossas identidades, e posso afirmar aqui
que o BotAfala nos reconecta uns com os outros (sobretudo pra nós todos
que vemos acompanhando de perto). Eu sou um pouco suspeito de falar
sobre esta família, porque eu senti desde os primeiros anos o papel
transformador que o grupo tem exercido na universidade e na cidade.
Tivemos e temos tido sérios problemas de integração entre nós estudantes,
sobretudo culturais. E é no meio desse problema que BotAfala aparece
levantando a voz sobre as nossas diferenças, que na verdade possuem
também semelhanças em comum. O grupo tem consigo ocupar um espaço
muito além da universidade e isso é importante; essa ponte entre a
comunidade e a universidade por vezes tem sido deixado de lado, mas o
BotAfala está aí pra mostrar que esse desafio ainda que enorme não é
impossível de se materializar. BotAfala, pra finalizar, eu diria que é um
movimento certo, no momento certo e no lugar certo, porque pra quem faz
parte da primeira turma, por exemplo, ter tido os problemas de integração,
sobretudo com a cidade nos primeiros meses, consegue enxergar hoje a

160
botAfala: Ocupando a Casa Grande

grande transformação que ocorreu. BotAFala canta e reafirma nossas


identidades múltiplas e nossas origens.

161
botAfala

162
LETRAS

"Jornada" em ideograma nsibidi

163
Letras

Bem−vindos
Sejam bem−vindos à família UNILAB
Nossos irmãos de Cabo-Verde, Angola,
Moçambique, Brasil, Guiné e São Tomé
Cabó medi nada, kilku tem el ki nona kumé
Somos povos unidos pela História
Por isso, abraça o teu irmão
Abra o seu coração
Aqui não existe raça, cor e muito menos religião
O que prevalece é a nossa união.

REFRÃO:
Bem-vindos à família UNILAB
Bem-vindos à nossa universidade
Bem-vindos a São Francisco do Conde
Bem-vindos, bem-vindos ao Brasil

Eu sei que tá com a saudade da tua família,


mas mantenha foco naquilo que lhe trouxe aqui.
essa luta você tem força, irmão, pra vencer.
pra subires na vida só depende de você.

use a mente, vai avante, seu futuro será brilhante.


use a mente, vai avante, seu futuro será brilhante.
então lute! abó i mais q´ um vencedor,
bu familia sé sintido tudo sta na bó.

REFRÃO

O mundo está complicado


e torna cada vez mais complicado, nossa sociedade
Hey, man, acredite, aqui é o seu lugar
você é parte da solução
traga suas amigas, traga os seus amigos
ABC, a escola é muito mais que isso, man, podes crer
que um dia eu, você, vamos reconstruir o mundo
projeto bota a fala, nossa missão
a escola, man, é nosso ponto de partida
preto, branco, coisas desfocadas
ando you brother, puxa a mente

164
botAfala: Ocupando a Casa Grande

não deixa nada te levar na divisão: aqui é o seu lugar

REFRÃO

Trouxe na minha bagagem muitos sonhos,


vontades de vencer e superar as minhas debilidades.
Cheguei nessa universidade concentrado no objetivo,
com uma nova vibe, sistemas de um ser ativo.
Quando olho para o passado e lembro do meu percurso,
me sinto orgulhoso e disposto para o futuro.
Para mim, um ser que muda perspectivando o melhor,
é aquele que melhor sabe lidar com o pior.

165
Letras

Preconceito
Eu sou negro
Eu sou preto
Eu sou africano
Com muito orgulho
Nada nos pode deter, mesmo que muitos nos digam que não
Sempre de cabeça erguida que vamos conquistar
Se dantes éramos levados para a Europa
Trazidos para as Américas
Usados como cobaias
Trabalhando como escravos
Mas agora é a hora da nossa afirmação
Negro no poder
Negro no poder
Por que tanto preconceito?
Por que tanta discriminação?
Podemos ter diferenças na cultura ou na cor da pele
Mas todos nós pertencemos a uma única raça, “a raça humana”
Pra tu que es negro
Pra tu que não és racista
Ponha as mãos no ar e grita numa só voz
Não ao preconceito!
Não à discriminação!
Não ao preconceito!
Não à discriminação!

Podemos ter a diferença na cultura ou na cor


Unidos pela história somos todos iguais
Podemos ter a diferença na cultura ou na cor
Unidos pela história somos todos iguais
Podemos ter a diferença na cultura ou na cor
Unidos pela história somos todos iguais
Podemos ter a diferença na cultura ou na cor
Unidos pela história somos todos iguais

O racismo é mau, quem negar leva tau-tau,


Eu sou africano, 100% black power
Tipo Tina Turner,
Com uma voz gigante,
Venho de São Tomé, pois aqui somos irmãos, vês?!

166
botAfala: Ocupando a Casa Grande

Sinta a pressão dessa pura mensagem,


Arte e imaginação, sentido sem bandidagem.
UNILAB nas costas, vamos abrir as portas,
Ignorando os preconceitos, firmando novos conceitos.

Sincronia lusófona em terreno brasileiro,


Harmonia autêntica para o mundo inteiro,
Clap-clap, batam as palmas, reflitam sobre o assunto,
Não à discriminação, é esse o bom conteúdo.

Ser negro é bom, transmito isso no som,


Independentemente da cor, escutem bem esse louvor.

Repitam aqui o refrão, deixa entrar no coração,


Somos a equipa de ação, prontos para a intervenção… ya!”

Podemos ter a diferença na cultura ou na cor


Unidos pela história somos todos iguais
Podemos ter a diferença na cultura ou na cor
Unidos pela história somos todos iguais
Podemos ter a diferença na cultura ou na cor
Unidos pela história somos todos iguais
Podemos ter a diferença na cultura ou na cor
Unidos pela história somos todos iguais

Não viemos acorrentados em navios negreiros


como no século passado não…
chegamos aqui, uns de terno e gravata,
relógio no pulso, cabeças raspadas, sei lá…
se isso é que chamam de civilização.

que cara é essa brow? sou diferente?


sou. Pra frente eu vou.
qual é a parte da minha História que você não entendeu?
ser diferente não me faz teu inimigo,
nossas diferenças que fazem do mundo, mundo.
preciso de ti, sei que precisas de mim. brow, sacou?

Brasiguis confirma:

167
Letras

Negro ou negra
também pode ser
pai ou mãe
por isso pode ter
a diferença
na cultura ou na cor
mas na verdade
somos todos iguais

Podemos ter a diferença na cultura ou na cor


Unidos pela história somos todos iguais
Podemos ter a diferença na cultura ou na cor
Unidos pela história somos todos iguais
Podemos ter a diferença na cultura ou na cor
Unidos pela história somos todos iguais
Podemos ter a diferença na cultura ou na cor
Unidos pela história somos todos iguais

Somos todos iguais, meu irmão, deixa de mania


Ouça bem este beat rap, este flow
Dito Buanh SD, pronto eu estou aqui

“eu não sou ninguém brother”


“vai, olha para mim, homem como tu, como qualquer um”
Homem malcriado, deixa de maldade, não me trate assim, vai
Esquece minha raça, minha fala
Não importa se sou pobre e vivo na senzala ou no gueto
O que é certo nem aqui
Todos somos iguais
Vai, respeita seu brother,
bora!

168
botAfala: Ocupando a Casa Grande

Integração

Nós somos povos de Angola, Guiné,


Moçambique, Cabo Verde, São Tomé,
Brasil, Timor, UNILAB
Nós todos somos um povo irmão
Diferentes nações, um só coração,
Amizade, respeito,
Isso é integração!

Sinto-me tranquilo, conheço bem a minha origem


Preconceitos aniquilo com as ideias que persistem
Revolucionário, vivo a identidade
Quem ousar pensar o contrário
Nunca encarou a verdade
Ressalvo que Sankofa é o pensamento que diz
Que valorizar a raiz pra seguir é a matriz
Sempre em frente, mas com olho no passado
Porque assim vale a pena construir para ser ocacionado
A questão da raça não existe, é fantasia
Convém não reforçar essa mera demagogia
A filosofia tem origem na cultura egípcia
Mas sobre maus agouros vindos da eurocentria
A equipa bota a fala rima com muita maestria
Porque somos africanos com nova ideologia
Veja a ideia da paideia nessa nossa epopeia
Seja pop ou rap, sangue negro na veia

Nós somos povos de Angola, Guiné,


Moçambique, Cabo Verde, São Tomé,
Brasil, Timor, UNILAB
Nós todos somos um povo irmão
Direfentes nações, um só coração,
Amizade, respeito,
Isso é integração!

Africano, de origem guineense


Situado na costa ocidental d’África, Guiné-Bissau!
Longe da casa, mas a luta continua
Um dia venceremos

169
Letras

Angola, Cabo-Verde, Moçambique São-Tomé


Brasil, Timor e Guiné
Nada nos separa
Olhe bem para as nossas caras
Orgulho de ser africanos, é que nos representa
Mantenha cabeça erguida, siga só esse refrão
Alegria, amor e amizade na entra na bu coração (entrará no teu coração)
É vida i yassim, aós anós i unson (é assim essa vida, hoje somos um só)

Eu sou uma partícula dessa família


100% africano, metade baiano sou,
UNILAB, toda essa galera é minha família
Brasil-África, uma coisa só
Bahia é terra que a gente gosta
São Francisco do Conde faz toda a diferença
E tô aqui véi, se quiseres vir pode vir
Aqui tudo que alguém pode querer na vida, véi
Você, maneiro, quer ser forte,
Aqui tem UNILAB, venha
Traga sua identidade, sua cultura
Porque aqui é o ponto principal da integração

Nós somos povos de Angola, Guiné,


Moçambique, Cabo Verde, São Tomé,
Brasil, Timor, UNILAB
Nós todos somos um povo irmão
Direfentes nações, um só coração,
Amizade, respeito,
Isso é integração!

Nessa universidade nossa relação é reciprocidade


Esse é um caldeirão, nossas forças são
amor e compreensão
Essa é a UNILAB, para aqueles que não a conhecem
Há pouco tempo plantada e hoje já floresce
Nós somos filhos de Zamora, Agostinho e Amilcar,
Alda e Zumbi e outros homens fortes
E mulheres que não conheci
Experiência que levarei para toda vida
Sobre essa mesa chegará nossa comida
170
botAfala: Ocupando a Casa Grande

Viemos de Bolama, Zambeze e Cabinda,


Água grande, Santiago, Baucal e Curitiba
Um novo olhar e uma nova perspectiva
Essa é uma nova história que está sendo escrita,
Acredite, muitas mentiras já foram ditas
Juntos, essa dificuldade será vencida

Nós somos povos de Angola, Guiné,


Moçambique, Cabo Verde, São Tomé,
Brasil, Timor, UNILAB
Nós todos somos um povo irmão
Direfentes nações, um só coração,
Amizade, respeito,
Isso é Integração!

Inserido numa outra realidade,


Outro país, outro continente, outra cidade.
Sagacidade, Chito, música,
Muita cumplicidade
Sempre concentrado e humilde (monge)
Atitude representativa vinda de longe (come on!)
Saudades de casa, saudades da família,
Obrigada UNILAB pela nova família
Vocês são minha família,
Brasil nova casa e vocês nova família
I love you família
Tamo junto nessa hoje e pra toda a vida,
Conexão, Bota a fala, Unilab e a malta
Palavra sincera, hakuna matata (não há problema)
E a galera responde na mesma frequência
São Francisco do Conde,
Viver aqui faz toda a diferença.

171
Letras

Integração
(versão Mente Criativa)

Nós somos povos de Angola, Guiné,


Moçambique, Cabo Verde, São Tomé,
Brasil, Timor, UNILAB
Nós todos somos um povo irmão
Direfentes nações, um só coração,
Amizade, respeito,
Isso é integração!

Sinto-me tranquilo, conheço bem a minha origem


Preconceitos aniquilo com as ideias que persistem
Revolucionário vivo a identidade
Quem ousar pensar o contrário
Nunca encarou a verdade
Ressalvo que Sankofa é o pensamento que diz
Que valorizar a raiz pra seguir é a matriz
Sempre em frente, mas com olho no passado
Porque assim vale a pena construir para ser ocacionado
A questão da raça não existe, é fantasia
Convém não reforçar essa mera demagogia
A filosofia tem origem na cultura egípcia
Mas sobre maus agouros vindos da eurocentria
A equipa bota a fala rima com muita maestria
Porque somos africanos com nova ideologia
Veja a ideia da paideia nessa nossa epopeia
Seja pop ou rap, sangue negro na veia

Nós somos povos de Angola, Guiné,


Moçambique, Cabo Verde, São Tomé,
Brasil, Timor, UNILAB
Nós todos somos um povo irmão
Direfentes nações, um só coração,
Amizade, respeito,
Isso é integração!

Africano, de origem guineense


Situado na costa ocidental d’África, Guiné-Bissau!
Longe da casa, mas a luta continua
172
botAfala: Ocupando a Casa Grande

Um dia venceremos
Angola, Cabo-Verde, Moçambique São-Tomé
Brasil, Timor e Guiné
Nada nos separa
Olhe bem para as nossas caras
Orgulho de ser africanos, é que nos representa
Mantenha cabeça erguida, siga só esse refrão
Alegria, amor e amizade na entra na bu coração (entrará no teu coração)
É vida i yassim, aós anós i unson (é assim essa vida, hoje somos um só)

Nessa universidade nossa relação é reciprocidade


Esse é um caldeirão, nossas forças são
amor e compreensão
Essa é a UNILAB, para aqueles que não a conhecem
Há pouco tempo plantada e hoje já floresce
Nós somos filhos de Zamora, Agostinho e Amilcar,
Alda e Zumbi e outros homens fortes
E mulheres que não conheci
Experiência que levarei para toda vida
Sobre essa mesa chegará nossa comida
Viemos de Bolama, Zambeze e Cabinda,
Água grande, Santiago, Baucal e Curitiba
Um novo olhar e uma nova perspectiva
Essa é uma nova história que está sendo escrita,
Acredite, muitas mentiras já foram ditas
Juntos essa dificuldade será vencida
Nós somos povos de Angola, Guiné,
Moçambique, Cabo Verde, São Tomé,
Brasil, Timor, UNILAB
Nós todos somos um povo irmão
Direfentes nações, um só coração,
Amizade, respeito,
Isso é integração!

Inserido numa outra realidade,


Outro país, outro continente, outro país, outra cidade.
Sagacidade, Chito, música,
Muita cumplicidade
Sempre concentrado e humilde (monge)
Atitude representativa vinda de longe
Saudades de casa, saudades da família,
173
Letras

Obrigada UNILAB pela nova família


Vocês são minha família,
Brasil nova casa e vocês nova família
Rapazinho de ilha
Tamo junto nessa hoje e pra toda a vida,
Conexão, Bota a fala, Unilab e a malta
Palavra sincera, hakuna matata
A galera responde na mesma frequência
Fidjo de Maria, papé di Marinuelcia...
(Filho de Maria, pai de Marinuelcia)

Dando voz à Integração


tamos juntos nessa luta
diferentes nações numa missão conjunta
Pés firmes no chão focados no objetivo
Unilab uma união
E aqui somos ativos
Sou filha da mamãe África
Sim eu vim de lá
E estou na linha de frente
Tipo Titina Silá
Sou filha da mamãe África
Sim eu vim de lá
E estou na linha de frente
Tipo Titina Silá

Nós somos povos de Angola, Guiné,


Moçambique, Cabo Verde, São Tomé,
Brasil, Timor, UNILAB
Nós todos somos um povo irmão
Direfentes nações, um só coração,
Amizade, respeito,
Isso é integração!

174
botAfala: Ocupando a Casa Grande

Africar
Me leva, me leva, me leva,
Me leva pra africar
Lébam, lébam, lébam (me leva, me leva, me leva)
lébam pá nfika... (me leva pra ficar)

não sei onde estou


me leva pra lá
que negócio é esse
que me trouxe prá cá
cabeça quadrada
saí pra lá

não sei onde estou


me leva pra lá
que negócio é esse
que me trouxe prá cá
cabeça quadrada
saí pra lá

Me leva, me leva, me leva,


Me leva pra africar
Lébam, lébam, lébam (me leva, me leva, me leva)
lébam pá nfika (me leva pra ficar)

África em todo lugar ahhh ahhh,


nós criamos a nossa aqui
Criatividade kila ka falta ahh ahh (criatividade é o que aqui não falta)
el ki mantinu li vivo (é ela que nos mantém vivos)

Africa stana tudu lugar ahh ahh (África está em todos os lugares,
nó kria dinós li (nós criamos a nossa aqui)
Criatividade kila ka falta ahh ahh (criatividade é o que aqui não falta)
el ki mantinu li vivo (é ela que nos mantém vivos)

Me leva, me leva, me leva,


Me leva pra africar
Lébam, lébam, lébam (me leva, me leva, me leva)
lébam pá nfika (me leva pra ficar)

175
Letras

Então aceitei o desafio


Fazer você dançar nesse som
Agora África está aqui
No ritmo dessa pulsação
Lazinho estamos com você
Essi Bota a Fala team (este é time do Bota a fala)

Me leva, me leva, me leva,


Me leva pra África
Me leva pra ficar
Me leva pra africar

176
botAfala: Ocupando a Casa Grande

A gente não para

Eu sou um pobre morador da favela


Na humildade vou levando a minha vida
Com dinheiro em falta
A gente não para! (não!)
Eu sou preto morador da favela
E tenho orgulho da minha comunidade
Com dinheiro em falta
A gente não para! (não!)
A gente não para! (não!)

Vou procurando um quebra-galho


Desde cedo na matina
Ganho muito pouca grana
Mas garanto a minha sina
Nesse mundo de ilusão
O difícil é ter emprego
Sonho com uma realidade
Que nunca me desanima
Vivo esperando da vida
Algo que há tempos se perdeu
Quero direitos e liberdade
Algo que nunca foi meu

Eu sou um pobre morador da favela


Na humildade vou levando a minha vida
Com dinheiro em falta
A gente não para! (não!)
Eu sou preto morador da favela
E tenho orgulho da minha comunidade
Com dinheiro em falta
A gente não para! (não!)
A gente não para! (não!)

O que tem em Sambizanga


Também tem em Mindará
Cada gueto, cada street
Tem seu Palá

177
Letras

Em Acari
em Cajazeiras
Em Camundongos
também tem
Em Capão Redondo
O que falta aqui,
Também falta lá.
Conexões marginais
Aqui neste refrão

Eu sou um pobre morador da favela


Na humildade vou levando a minha vida
Com dinheiro em falta
A gente não para! (não!)
Eu sou preto morador da favela
E tenho orgulho da minha comunidade
Com dinheiro em falta
A gente não para! (não!)
A gente não para! (não!)

Filho do gueto eu sou


Sem dinheiro no bolso eu vou
Ostentar felicidade
Ninguém tira a minha, a minha liberdade
Money katem (não há dinheiro),
Guita katem (não há dinheiro)
Ma vida na kontinua (mas a vida continua)
A gente não para!
Todo dia é a mesma rotina
Todo dia é a mesma rotina
E não nego, enfrento as dificuldades
Eu não nego, sei da desigualdade
Vou seguindo com minha dignidade
E vou seguindo com minha dignidade

Eu sou um pobre morador da favela


Na humildade vou levando a minha vida
Com dinheiro em falta
A gente não para! (não!)
Eu sou preto morador da favela
E tenho orgulho da minha comunidade
Com dinheiro em falta
178
botAfala: Ocupando a Casa Grande

A gente não para! (não!)


A gente não para! (não!)

179
Letras

Josefina26

Ela passa noites acordada, na cabeça só preocupação, pensa em se


suicidar pra não ter mais desilusão.
A vida tem sido ingrata, em cada passo dado, uma sorte complicada,
entorpecia todo seu fado.
Pelo marido foi traída, casamento destruído, sentia-se fera ferida, que
provou do fruto proibido.
Toda autoestima ficou reduzida a zero, ainda por cima perdeu tudo,
inclusive o bom emprego.
Os filhos lhe abandonaram, por causa duma heroína, viciada, mal-
amada, esta é a Josefina.
40 anos na consciência, que parece um subterrâneo, foi órfã desde
criança, isso lhe sacrificou o crânio.
Agora dorme na rua, tornou-se uma indigente, às vezes vira prostituta
pra comprar uma escova de dente.
A loucura não lhe atinge, isso pra ela é um problema, de vez em quando
até finge, pra ver se é digna de pena.
Mas a sociedade não lhe liga, não lhe dá nenhuma atenção, pois se sente
rejeitada, neste sóbrio mundo cão.

Lembranças do passado quando era professora, num ambiente


organizado que só de lembrar ela chora.
Dava aulas com prazer, educava os mais novos, ensinava-lhes a ser
meninos muito mais estudiosos.
Só que houve esta reviravolta, separação, vício e abandono, que a
deixaram hoje solta, como uma barata no esgoto.
Passou de profa. Josefina, para Maria Espandilha, um apelido na sua vida
que lhe descarregou a pilha.
Vai para os caixotes de lixo, em busca do que comer, há muito deixou de
ser sacrifício, mas sim uma forma de sobreviver.
Sem achar nada, contra esta vivência desgraçada, nem num conto de
fadas chegaria uma ajuda, não é piada.
Tem um tempão que as orações não fazem efeito, Deus anda punindo
muito, e o Diabo está satisfeito.
Totalmente descalça, com roupas andrajosas, podia roubar casas, mas pra
ladra não é corajosa.

26 Esta letra, de autoria de Lauro José Cardoso, nunca foi gravada.


180
botAfala: Ocupando a Casa Grande

Recorrentemente vem na mente um suicídio, e a questão bem ciente é


quando ela fará isso.

Ao longe observa a sua netinha tão fofa, tão esperta, bem meiga na sua
carinha.
O filho e a nora parecem estar felizes, o que lhe devora é o facto de estar
fora devido às crises.
Não devia ser assim, mas o seu rebento não perdoou, porque ao vício
disse sim, e nesta Heroína ficou.
Dói demais olhar pra aquilo, uma tristeza intolerável, se medissem isso
em quilo, o número seria incontornável.
Mas ao mesmo tempo se deu por satisfeita, em ver que naquele templo,
seu filho se completa.
A felicidade dele vale mais do que a sua, com o amor de mãe na pele,
deseja todo o bem ao Lucas.
Despede-se com o olhar em lágrimas, não deixou que eles a vissem,
soltou ao vento dádivas: “que os seus sonhos se concretizem”.
Ao virar às costas, pensou no ex-marido, aquele ser nefasto que lhe
explodiu o juízo.
Por outro lado, sabe que a culpa maior é dela, consolo nenhum cabe, cada
um com a sua cela.

Auge da depressão, o que possui é tensão, a caminho da suicida ação, vê


tudo com nada no coração.
Brisa marítima existe, mas ela pouco sente, caminha só e triste, focada
fatalmente.
Antes injetou a droga pela última vez, chapada até as pontas, falsa
coragem e sensatez.
Olhos vermelhos e vidrados na morte que se avizinha, a testa tanto
transpira, nervosismo em banho-maria.
Esta é a Espandilha, antes Josefina, aquela mulher brilhante já não faz
parte da sina.
No limiar do precipício olha pra baixo e vê o mar, irá pra o melhor sítio?
Porque a queda será fatal.
Alucinação permite achar um pouco de calma, a tentação resiste em
breve lhe levará a alma.
Desta forma vai dizendo adeus em todos os sentidos, move todo o corpo
que poderá ter os ossos partidos.

181
Letras

Concentra seu espírito, se prepara para saltar, mas no derradeiro suspiro,


ouve a neta a gritar...Josefina!

Refrão:

“Meu nome é Josefina


Era suposto ser Heroína
Mas minha vida tornou-se ruína
Foi destruída pela Heroína!”

“Josefinaaaaaa...Josefinaaaa”.

182
botAfala: Ocupando a Casa Grande

Ocupando A Casa Grande


Refrão:
Abra os portões
Tamo chegando
Bota a fala tá entrando
pra ocupar a casa grande

vamos ocupar a Casa Grande


soltar todos os grilhões
em nome da nossa gente
que foi vítima de opressões
o instante é de pompa
e muita circunstância
o que a história remonta
é um passado de resistência
hoje ocupo esse espaço
de cabeça tronco e membro
me faço e refaço
me concentro nesse centro
com o poder da música
Enraizamos sagazmente
e vamos na praça pública
fazer a diferença

Abra os portões
Tamo chegando
Bota a fala tá entrando
pra ocupar a casa grande

cochilaram por um instante


nós invadimos a casa grande
quando menos esperavam
a revolução já estava adiante
driblamos, gingamos,
com inteligência penetramos,
Enfrentamos adversidades
e nunca fraquejamos.
Tchun Tcháa,
besouro de mangangá
pela porta da frente

183
Letras

a Casa Grande ocupamos


sim, sim, juízes de internet
podem repetir?
eu tava usando cotonete...
as atualizações da revolução foram realizadas com sucesso
direção de Spike Lee
do right something
quando a coisa tá boa
a coisa tá preta

Abra os portões
Tamo chegando
Bota a fala tá entrando
pra ocupar a casa grande

aqui não tem arrego


e nem indulgência,
não é só emoção,
também temos ciência:
Filomeno, Castiano e Renato Noguera,
Ngoenha, Abdias, Wanderson Flor,
Sueli Carneiro, Lelia e Djamila
Aqui não tem nada marromeno
Destilamos a sua razão,
O seu veneno
Segura essa, nos ta dja dentro
A casa grande agora tá tudo ocupado

Abra os portões
Tamo chegando
Bota a fala tá entrando
pra ocupar a casa grande

ocupamos a casa
rompendo a vossa ideologia
negros do campo
contra toda hipocrisia
trazendo as vozes sofridas
no navio negreiro
e convidando a negritude
a fazer parte do cortejo
isto é autoproteção
184
botAfala: Ocupando a Casa Grande

não confunda com violência


quinhentos anos de opressão
não trago aqui clemência
marginalizam nosso hip-hop
e a nossa cor
dizendo que nossos conteúdos
não têm valor
mesmo assim longe das câmeras
e dos holofotes
a casa ocupamos
sem relevar os boicotes
botamos a fala
e parecemos controversos
porque depois disso o sistema
vem contra os nossos versos

Abra os portões
Tamo chegando
Bota a fala tá entrando
pra ocupar a casa grande

vamos ocupar a casa grande


soltar todos os grilhões

porque depois disso o sistema


vem contra os nossos versos

185
Letras

Nha vida bu leba


REFRÃO
Nha vida bu leba
Nó sonhos bu kéma á
Menina, nka sperabá és dibó
Nó plano bu kebra
Nó amor i foi lindoo
Querida, nmiste pano fika djunto

I ESTROFE
A pouco tempo nos conhecemos
Tantos planos já fizemos
Sei que não vais me deixar, baby girl ahn
Pra sempre vamos ficar
Ey girl, olha pra mim e veja o amor dentro de mim
Os teus olhos me puxam como imãs
Não há quem possa nos deter, acreditas.
Podemos crescer
É melhor a gente entender o que tiver que acontecer
Porque é contigo que eu quero viver
Vem cá, me deixa te tocar e ver a luz do teu olhar
Pa mpudi provau nha paixão
Nmiste preenchi nha lugar na bu coração
Kabu duvida, fia dama ami n’amau
Pa n’cassau, ika pricis nfaci sirmónias
Ku fadi pa nmite noias
Abo inha number one
Sufri bu purdan
Busta lundju dimi
Má bu falta na sintil
Manga de anos passa nha vida continua sedu só desgraça

REFRÃO
Nha vida bu leba
Nó sonhos bu kéma á
Menina, nka sperabá és dibó
Nó plano bu kebra
Nó amor i foi lindoo
Querida, nmiste pano fika djunto

186
botAfala: Ocupando a Casa Grande

II ESTROFE
Baby saiba que, as vezes é difícil entender
E cada passo que marco noto que te estou a perder
Mas, vejo que o culpado disso tudo sou eu
Devo reconhecer e deixar esse orgulho meu
Talvez não tenho feito as coisas certas e agora tu vais
E encontrar alguém como tu, não serei capaz
Por essas e tantas coisas eu peço desculpa
Esqueça as malambas e fique comigo até kalunga
Por mais que finja, sem te não me sinto bem
Podes crer, vou botar no seu dedo o anel
Quero ficar contigo, até a terceira idade
Acho que errei, até pra toda a eternidade
Yeah, mereces isso muito mais e saiba, o que eu fazer pra sua pessoa será
pouco
E eu não sou romântico
Mas, cada um dos meus versos deixa o teu estado louco
Baby eu sei, parece ser exagero
Não te sintas insegura, apenas dá-me o teu coração
Se permitires vou levar-te pro altar
Claro, ah, mas, antes dá-me a sua mão

REFRÃO
Nha vida bu leba
Nó sonhos bu kéma á
Menina, nka sperabá és dibó
Nó plano bu kebra
Nó amor i foi lindoo
Querida, nmiste pano fika djunto

187
Letras

Carta
Nó sai di Guiné p abai buri conhecimento
Aós nó riba pa djuda kumpo terra
Nó sai di Guiné p abai buri conhecimento
Aós nó riba pa djuda kumpo terra

Na nha terra n’aprendi tchiu kila facin mbai yanda mundo


Manga de anos passa, nriba cassa pa djuda kumpo terra
Na nha terra n’aprendi tchiu kila facin mbai yanda mundo
Manga de anos passa, nriba cassa pa djuda kumpo terra

Manga de anos fora de cassa


Ma na Guiné, lá ku nkunsa
N’aprendi tchiu ku famílias, na scola i ku nha colegas de bancada
botAfala ku musica, construindo uma educação democrática
Brasil, gratidão.
Mais um pedagogo pa Nação
Guiné-Bissau no coração
Voltamos e prontos pra dar a nossa contribuição
S-many baby

Na nha terra n’aprendi tchiu kila facin mbai yanda mundo


Manga de anos passa, nriba cassa pa djuda kumpo terra
Na nha terra n’aprendi tchiu kila facin mbai yanda mundo
Manga de anos passa, nriba cassa pa djuda kumpo terra

Mamá Guiné, ali bu fidjus na luta pabu amanhã


Si sabi Deus, ku nó tarbadju Guiné na volta ao topo
Não retrocesso, mais educação, abaixo violência nó terra na bai pa diante
Ku sperança pa juventude e rispito panó mindjeris
Guiné-Bissau, bukana fika sin
Guiné-Bissau, bukana fika sin não, não, não, não

Na nha terra n’aprendi tchiu kila facin mbai yanda mundo


Manga de anos passa, nriba cassa pa djuda kumpo terra
Na nha terra n’aprendi tchiu kila facin mbai yanda mundo
Manga de anos passa, nriba cassa pa djuda kumpo terra

188
influências e indicações

189
Nesta secção colocamos uma lista de algumas pessoas que são
inspiração para o trabalho do botAfala, com algumas indicações
para ler/ver/ouvir. De modo geral, tentamos não repetir o nome
de autores que já apareceram nos textos, como Kabenguele
Munanga, Amilcar Cabral, Paulo Freire, Boaventura Souza Santos,
Martinho da Vila, Tais Araújo, Lázaro Ramos, Dodô Azevedo,
Achille Mbembe, MV Bill etc. Mas essa “regra” acaba sendo
quebrada no caso de autores que consiramos que podem ser
indicações teóricas para quem quer pesquisar o hip-hop. Exemplo
maior dessa exeção é Cornel West, um autor muito importante para
nosso projeto, que por ser pouco estudado no Brasil, merece ganhar
destaque. As indicações são uma forma de alimentar aquele quinto
elemento do hip-hop, que é justamente a busca pela sabedoria, o
compromisso com a autocrítica e busca por aperfeiçoamento. Nesta
mesma direção, sei que fazem falta muitos nomes que são até
citados nas canções do grupo. Só na canção Ocupando a Casa
Grande, temos referêcias para: o diretor de cinema Spike Lee e seu
filme Faça a coisa certa (Do The Right Thing); o capoeirista Besouro
de Manganga (que inspirou um filme e um livro com seu nome);
nomes da filosofia como Sueli Carneiro, Lelia Gonzales, Djamila
Ribeiro, Renato Noguera, Wanderson Flor, Abdias do Nascimento,
Seberino Ngoenha, José Castiano e Filomeno Lopes; a descrição da
Casa Grande e da suposta democracia racial, que remete a Gilberto
Freyre; a noção de negro do campo de Malcolm X... e tantas outras
que estão presentes no som, no jeito de rimar ou cantar os versos.
Essas indicações servem pra aprofundar e complicar... No mini-
cursos, debates, bate-papos, outros nomes estiveram presentes:
estudamos o “rap” de Caetano Veloso; dialogamos sobre Tom Zé,
Gilberto Gil, Milton Nascimento, Cazuza, Legião Urbana, Criolo,
Racionais, Emicida; vimos filmes de Glauber Rocha, Wood Allen,
lemos Platão, aprendi sobre o Real Power, Mindara na Korson e o
cenário do Kuduro e do rap em Angola etc. Esses nomes não são
tudo e nem o mais importante. O que interessa é como as
referências podem e se elas podem servir ao leitor como alimento
pra cabeça: experimente e veja o que gosta ou não.

190
botAfala: Ocupando a Casa Grande

CORNEL WEST

Cornel West em 2018 (By Gage Skidmore, CC BY-SA 3.0,


https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=65877462)

Cornel Ronald West, norte-americano, nasceu em 2 de junho de


1953 em Tulsa, Oklahoma, é filósofo, teólogo, ativista social, crítico
cultural, professor em diversas universidades, controverso,
socrático, engajado, é um dos principais intelectuais públicos
norte-americanos e um pensador incontornável.
Por quê?
A proposta de Cornel West de uma educação (paidéia) democrática
foi uma das inspirações iniciais do Bota a fala. Seus escritos sobre
191
influências e indicações

questões raciais, sabedoria prática (phronesis) e coragem de falar a


verdade aos poderosos (parrhesia), valorização do diálogo com a
juventude aproximando-se da cultura popular (gravando hip-hop,
atuando em filmes, participando de passeatas etc.), indicam um
caminho que queremos para a UNILAB.
Eu ouço/leio/indico:
Para ler:
Indico o livro Questão de Raça publicado no Brasil em 1994; o
Prefácio do livro Hip hop e a filosofia. Na internet você também
pode encontrar traduções de importantes artigos como
“Genealogia do Racismo”, “O dilema do intelectual negro” etc.
Além disso, junto com o filósofo brasileiro Mangabeira Unger
escreveu um pequeno manifesto sobre O futuro do progressismo
americano (publicado em português em 1999).
Para ouvir:
Junto com BMWMB gravou o CD de hip hop "Never Forget: A
Journey of Revelations" em 2007 (com participação de nomes
importantes do cenário musical como Prince, KRS-One etc.). Vale
seguir indicações do autor e ouvir Love Supreme de John Coltrane;
Sarah Vaugh, Stevie Wonder, Marvin Gaye, Curtis Mayfield, James
Brown, The Dramatics, Ella Fitzgerald, Carmen McRae, The
Temptations, Smokey Robinson and the Miracles, Louie
Armstrong, Duke Ellington, Ludwig van Beethoven, Wolfgang
Amadeus Mozart, Michael Jackson, Prince, Bob Marley, B. B. King,
Miles Davis, Thelonus Monk, Mahalia Jackson etc. Compare a ideia
de amor em “Try a Little Tenderness” de Otis Redding e “Say my
name” de Destiny's Child.

Para ver:
Trilogia Matrix (Matrix, Matrix Reload e Matrix Revolutions) –
além de uma pequena participação como ator nos dois últimos
filmes da trilogia dos irmãos Wachowskis, fazendo o papel de
Conselheiro West (um dos sábios do conselho de Zião), sua obra foi
uma das inspirações para o roteiro, e, juntamente com Ken Wilber,
comentou todos os episódios em um extra da edição The Ultimate
Matrix Collection.
Vida Examinada (Examined Life) 2008 ‧ Documentário ‧ 1h 30m –
traz depoimentos de importantes nomes da filosofia
192
botAfala: Ocupando a Casa Grande

contemporânea (dentre os quais, Cornel West. Kwane Anthony


Appiah, Martha Nussbaum, Judith Butler, Peter Singer etc.)
examinando tópicos que são fundamentais em seu pensamento e
vida.
Chasing Trane 2016 | 99 minutos – Trata do contexto que moldou
a música de John Coltrane.

193
influências e indicações

MARTHA NUSSBAUM
Quem é?
Martha Nussbaum (1947-) é uma filósofa norte-americana.
Por quê?
Nussbaum tem se destacado pela defesa da imporancia das
Humanidades para a manutenção da democracia e o
desenvolvimento da imaginanção literária, necessária na esfera
pública para que nos coloquemos no lugar dos outros e
desenvolvamos um comportamento político e ético que reconheça
o direito dos demais. Neste sentido, destaca a necessidade de
redescrever o pacto democrático reconhecendo os direitos de
estrangeiros, dos que têm deficiências cognitivas e de outras
espécies.
Eu ouço/leio/indico:
Para ler:
O livro Sem fins lucrativos: Por que a democracia precisa das
humanidades é um manifesto que sintetiza muito do discurso da
autora em desfesa das Humanidades. É interessante destacar que
ela trabalhou junto de Amartya Sen na formulação de uma
perspectiva econômica que considerasse aspectos mais amplos do
que o produto interno bruto, o que resultou na ideia de Índice de
Desenvolvimento Humano.
Para ver:
A entrevista de Nussbaum para a série Beleza e Consolação
encontra-se disponível com legendas em português no youtube.
Nesta mesma série também estão disponíveis entrevistas com
muitos intelectuais importantes, como o vencedor do prêmio Nobel
literatura, nigeriano, Woly Soyinka.

194
botAfala: Ocupando a Casa Grande

RICHARD SHUSTERMAN
Quem é?
Richard Shusterman (1949-) é um filósofo pragmatista norte-
americano de origem judaica.
Por quê?
Richard Shusterman articulou uma estética pragmatista no começo
da década de 90, em diálogo com o rap. Posteriormente,
desenvolveu a somaestética, uma proposta de redescoberta e
valorização do corpo na experiência estética.
Eu ouço/leio/indico:
Para ler:
Em português há uma tradução parcial do livro Pragmatist
Aesthetics, em que o autor dialoga com o hip-hop; no entanto, é
difícil encontrar o livro Vivendo a arte: o pensamento pragmatista
e a estética popular (São Paulo: Ed.34, 1998). Shusterman é um dos
colaboradores do livro Hip Hop e a Filosofia, tem artigos
traduzidos em português em diversas revistas acadêmicas, além do
livro Consciência Corporal, que permite uma aproximação de seu
trabalho mais recente sobre a somaestética. No site do autor você
encontra outros textos e entrevistas sobre estética e cultura popular.

Site de Richard Shusterman:


http://www.fau.edu/artsandletters/humanitieschair/

195
influências e indicações

JOHN DEWEY
Quem é?
John Dewey (1859 —1952) filósofo e educador norte-americano é
um dos pensadores clássicos do pragmatismo.
Por quê?
Geralmente estudado no Brasil como filósofo da educação, a
perspectiva de Dewey acerca da estética destaca a experiência
transformadora como aquilo que define a obra de arte. Deste modo,
o filósofo norte-americano se distancia da lógica do museu,
procurando valorizar o que efetivamente promove transformações
na vida das pessoas, o que o leva a valorizar a cultura popular,
procurando pensar uma educação democrática.
Eu ouço/leio/indico:
Para ler:
O livro Arte como experiência é um bom começo para entender a
perspectiva estética de John Dewey. Pensandores como Martha
Nussbaum, Richard Rorty, Cornel West e Richard Shusteram, cada
um ao seu modo, procuram articular as consequências educacionais
da posição deweyana.

196
botAfala: Ocupando a Casa Grande

HALIFU OSUMARE
Quem é?
Halifu Osumare é professora de Cultura Popular Negra e
coreógrafa, professora aposentada de estudos africanos e afro-
americanos na Universidade da California.
Por quê?
Halifu Osumare realiza um trabalho muito interessante sobre uma
estética africanista, presente na dança e no hip-hop. A pesquisa de
Osumare propõe o conceito de conexões marginais (connective
marginalities, geralmente traduzido como marginalidades
conectivas) para explicar como o rap ultrapassa barreiras
geográficas construindo uma comunicação entre as periferias de
modo global.
Eu ouço/leio/indico:
Para ler:
Um dos capítulos da obra The Africanist aesthetic in global hip-
hop está traduzido no livro O hip hop e as diásporas africanas na
modernidade (organizado por Monica do Amaral e Loudes Carril).

Link:

Site de Halifu Osumare: https://www.hosumare.com/

197
influências e indicações

NELSON MACA
Quem é?
Nelson Gonçalves (1965-), conhecido com Nelson Maca é poeta,
contista, professor universitário, produtor cultural e torcedor do
Vitória-BA.
Por quê?
Poeta que cultiva a palavra viva em diálogo com o hip-hop e a
cultura negra da oralidade, Nelson Maca é um criador e agitador
cultural incansável na promoção do orgulho negro.
Eu ouço/leio/indico:
Para ler:
O livro Gramática da Ira, lançado por Nelson Maca em 2015, é um
trabalho cuidadoso e forte, que procura articular e traduzir a
ira/orgulho negra em diálogo com um panteão de vozes (Richard
Wright, Lima Barreto, Mano Brown, Frantz Fanon, Carlos Moore,
que cria o “nós”, de uma comunidade herdeira de uma tradição de
luta. O autor rompe a dicotomia entre arte e engajamento pensando
que a estética e a ética não podem se afastar.

Link:
CULTNE DOC - Nelson Maca - Coletivo Blackitude

198
botAfala: Ocupando a Casa Grande

LUIZ EDUARDO SOARES


Quem é?
Luiz Eduardo Soares é um cientista social, filósofo, escritor,
dramaturgo brasileiro; tem se dedicado a pensar, desenvolver e
aplicar políticas públicas voltadas para a Segurança Pública.
Por quê?
Luiz Eduardo Soares conseguiu quebrar as barreiras entre a
academia e a sociedade, ampliando o alcance de sua atividade
intelectual, tanto no sentido efetivamente político, quanto
escrevendo narrativas que dramatizam os problemas da segurança
pública no país.
Eu ouço/leio/indico:
Para ler:
Em 2005, Luiz Eduardo Soares publicou em coautoria com o rapper
MV BILL e o produtor cultural Celso Athayde, o livro Cabeça de
Porco que é uma das inspirações para o formato deste livro. Cabeça
de Porco combinou os relatos de MV Bill e Celso Athayde de visitas
a favelas em várias cidades do país (que geraram depois o
documentário e o livro Falcão, meninos do tráfico), nas quais
procuravam retratar as condições e possibilidades dos jovens que
se envolviam com o crime organizado. As descrições vivas se
combinavam com a reflexão de Luiz Eduardo Soares, que não
surgia como uma “teoria”, mas como narrativas em que procurava
pensar o papel do hip-hop, a invisibilidade dos negros e daqueles
que vivem na periferia, o racismo estrutural etc.
Para ver:
O documentário Notícias de Uma Guerra Particular tem como
mote central um depoimento de Luiz Eduardo Soares; já os filmes
Tropa de Elite 1 e 2 dialogam com as narrativas de Elite da Tropa
1 e Elite da Tropa 2, que tem co-autoria de Soares e fazem parte do
mesmo projeto de intervenção sobre a segurança pública (embora
os filmes de Padilha, especialmente o primeiro, tenham deslizado
para uma direção épica problemática em sua representação da
violência).

199
influências e indicações

ANA LÚCIA SILVA SOUZA


Quem é?
Ana Lúcia Silva Souza tem doutorado em linguística aplicada,
mestrado em ciências sociais. Foi professora e pró-reitora de
extensão na UNILAB.

Por quê?
A professora Analu tem um trabalho que é referência para quem
quer estudar o Hip-hop pensando as suas potencialidades
educativas. Nesta direção, ela fundou na UNILAB um projeto que
tomava o rap como linguagem de integração entre os vários povos
que fazem parte da instituição. O Bota a fala surge na mesma
direção apontada por esse trabalho.
Eu ouço/leio/indico:
Para ler:
O livro Letramentos de reexistência, poesia, grafite, música, dança:
HIP-HOP de Ana Lúcia Silva Souza é um trabalho que mostra o
papel educativo do hip-hop no sentido do que Cornel West
chamaria de paidéia democrática.

Para ouvir:

200
botAfala: Ocupando a Casa Grande

O grupo A.Se.Front (África sem Fronteiras) criado a partir de um


projeto de extensão desenvolvido por Ana Lúcia na UNILAB
lançou em 2015 “Não diga não vale a pena” com represententes de
todos os países quem compõem a instituição.

Escute o A.Se.Front

201
influências e indicações

SISTEMA KALAKUTA

DUDOO CARIBE e DJ SANKOFA


Quem são?
Dudoo Caribe e DJ Sankofa são DJ’s que desenvolvem um
trabalho de formação de público, propagação e difusão da música
africana.

Por quê?
O trabalho da dupla, através de suas pesquisas musicais, é
promover um resgate com olhar contemporâneo, sem perder o foco
na sua origem. Os gêneros tocados em suas apresentações são,
principalmente, Juju Music, Highlife, Afrobeat, Soukous, Afrofunk,
Voodoo Funk. Sistema Kalakuta realiza também outras ações, como
projetos que envolvem o diálogo com outras linguagens e
expressões artísticas: dança, artes visuais, literatura oral, sempre
com o foco no que diz respeito às diásporas africanas.
Eu ouço/leio/indico:

202
botAfala: Ocupando a Casa Grande

Para ler:
Para ouvir:
O melhor é procurar ouvir ao vivo o som de Dudoo Caribe ou do
DJ Sankofa. Para quem não tem essa possibilidade, a melhor dica é
ouvir o programa “Rádio África”, que vai ao ar pela Rádio
Educadora FM de Salvador, toda quinta-feira às 21h. O programa
existe há cerca de 10 anos e é apresentado pelo DJ Sankofa. Os
episódios ficam disponíveis para audição no site da Rádio
Educadora.
http://www.irdeb.ba.gov.br/educadoraonline
Para ver:
Fela Kuti é com certeza uma referência comum para o Sistema
Kalakuta. Para se aproximar de Fela Kuti, além de ouvir seu som,
vale assistir documentários como Fela Kuti: Música como arma ou
ler o livro Fela, esta puta vida, biografia escrita por Carlos Moore.

203
influências e indicações

PINGO DO RAP
Quem é?
Vanderlei Querino Geraldo, conhecido como Pingo do Rap, é um
cantor e compositor de funk carioca.
Por quê?
Pingo do Rap fez parte do grupo Força do Rap, que nos anos 90 fez
parte da explosão inicial do funk carioca e, com canções românticas
e ingênuas, alcançou grande sucesso. Pingo continuou
desenvolvendo sua trajetória como rapper, sendo um dos que
promovem em Acari a festa Favelaria. Pingo esteve na UNILAB em
2016 falando sobre sua trajetória e cantando algumas de suas
canções (juntamente com Nelson Maca e DJ Gug).
Eu ouço/leio/indico:
Para ouvir:
Escute as canções Vaca Magra, Barraco no Morro e Quebra-
Cabeça.
Link:
Nelson Maca e Pingo do Rap na UNILAB em 2015

204
botAfala: Ocupando a Casa Grande

BRUNO M

Bruno M é o nome artístico de William Bruno Diogo do Amaral.


Bruno M dedica-se à música desde os tempos mais remotos da sua
adolescência. Desde 1999 aos meados de 2004, foi praticante de rap
das ruas de Luanda aos mais variados home studios da cidade.
Além da música, é formado em Direito pela Universidade
Independente de Luanda.
Por quê?
Por ser crítico e bastante verdadeiro em suas canções, rapper e
kudurista ao mesmo tempo (se identificou mais como kudurista
nos últimos anos), eu trouxe ele aqui como referência por que não
faz diferente daquilo que o Bota a fala faz. O objetivo de Bruno M
na música, e não só, foi sempre despertar a sociedade angolana e
principalmente jovens a intervirem mais nos problemas sociais, até
porque ele antes de fazer sucesso na música foi membro de uma
das gangs mais temidas de Luanda; por isso viu-se na
obrigatoriedade de ajudar os jovens a pensar e refletir que aquele
não era o melhor caminho. Intervir nos problemas sociais para uma
Angola e África livre da opressão sempre foi o objetivo de Bruno
M, sem esquecer-se do resgate das raízes.
Eu ouço/leio/indico:
Para ouvir:
Bruno M apesar de kudurista não deixou a veia rapper e em 2011
teve uma participação no álbum de MCK na música intitulada
“kamama ou kuzu”, um calão bastante usado em Angola que
significa “cemitério ou cadeia”; indico esta música. Além disso, no
seu segundo álbum intitulado “Batida única vol. 2” lançado em
2015, existem músicas bastante interessantes e indico o álbum
completo principalmente a música “Dicas são dicas”. Nesta música
ele junta duas canções e ambas têm o mesmo viés. Retrata alguns
dos problemas que afligem a África e é bastante interessante. Trago
Bruno M aqui como referêcia por ser bastente crítico, não só com o
sistema angolano, mas universal, mesmo em um estilo em que não
se fala muito disso.

205
influências e indicações

READY NEUTRO

Ready Neutro é o nome artístico de Kieza Domingos, angolano,


nascido em Luanda e um impulsionador da cultura Hip Hop desde
o ano 2000. Todo seu envolvimento começou com Freestyle que o
levou a obter notoriedade em campeonatos e eventos de rua ligados
ao Hip hop.
Por quê?
Ready Neutro, como mostra o parágrafo acima, é um dos grandes
impulsionadores do hip hop em Angola; desde sempre vem
lutando para o engrandecimento desta cultura. O Bota a Fala em
parte tem esta mesma luta e o que o grupo traz em suas músicas, o
músico em questão traz também.
Eu ouço/leio/indico:
Para ler:
Indico o livro Luz da realidade lançado em 2014. O livro traz a
realidade dos guetos (favelas) de Luanda com principal destaque
para o Rangel, seu município. O autor apresenta a realidade dos
guetos e favelas porque a mídia local tenta de várias formas ofuscar
isso e passar uma Luanda linda e bela, que é o que muito deles
querem e, sendo assim, não se preocupam com os problemas que
existem nesses guetos.
Para ouvir:
Para ouvir, indico a mixtape efeito neutro lançada em 2011. A obra
contém uma canção bastante interessante, assim como as restantes,
com o título “Geração da utopia”; indico para ouvir. Indico também
o álbum “TENDR” (Tudo em nome das ruas). O álbum teria sido
barrado quando da sua venda na praça da independência pelo
simples facto de conter músicas (como cozinhas do inferno) com
críticas à sociedade e ao governo local. O álbum foi lançado na
mesma data que o livro e ambos trazem as realidades de vários
guetos de Luanda.

206
botAfala: Ocupando a Casa Grande

CFKAPPA

CFKAAPA é o nome artístico de Cláudio Fernando Kiala, angolano,


nascido em Luanda aos 26 de julho de 1992. Um dos grandes nomes
do mercado angolano não só na música, mas na literatura também.
É escritor e faz parte da união dos escritores angolanos.
Por quê?
Cfkappa nas suas músicas aborda questões muito semelhantes ao
que é foco para a Unilab e o Bota a fala. Questões de racismo,
desigualdade social, fome no mundo, drogas, discriminação,
poesia, exercícios com rimas, tomam conta da sua música. Porém,
tudo se centra num ponto: a verdade.
Eu ouço/leio/indico:
Para ler
Indico o seu primeiro livro intitulado Perdido na escuridão,
publicado em 2010. É uma obra inspirada nos mais diversos
problemas sociais em Angola e apresenta para o leitor uma mistura
de drama, reflexão e crítica. Além desse, tem também o livro O
homem que antecipou a sua morte, ambos com o mesmo viés.
Para ouvir:
Para ouvir indico o seu primeiro álbum “Um em um milhão”,
lançado em 2011, com uma repercussão muito boa. Em 2012 lançou
um projeto na internet com onze músicas disponíveis
para download gratuito. O álbum foi batizado de Vinte, idade do
jovem na altura e, segundo ele, foi bem mais introspectivo.
(Eugênio da Silva Evandeco)

207
influências e indicações

MCK

Mck é rapper, angolano, nasceu em 16 de março 1981 em Luanda,


é formado em Filosofia e é conhecido especialmente pelo seu
sentido crítico, patente em todas as suas letras.
Por que?
MCK passa em suas músicas uma mensagem forte por uma
"Angola melhor e diferente". Ao rap deve o sentido de orientação
que a sua vida tomou. O Rap despertou o interesse pelo resgate das
raízes, resgate cultural do panafricanismo. Tem como lema justiça,
paz e liberdade em um país onde o sistema é completamente
opressor. A ideia de trazer aqui o Mck como referência é justamente
pelo que a Unilab e o Bota fala prezam e defendem: igualdade social
e os direitos humanos. Mck traz em suas músicas questões de raça,
gênero e não só, ou seja, problemas sociais, destacando aqui a
música “Na fila do banco”. Nesta música há três temas que são
praticamente proibidos na nossa sociedade (angolana), o racismo,
o tráfico de drogas e a prostituição.
Eu ouço/leio/indico:
Para ouvir:
Para ouvir indico as seguintes obras: Trincheira de ideias, o primeiro
álbum do rapper. O mesmo álbum contém a música “A Téknica, as
Kausas e as Konsekuências”. Na altura, a guarda presidencial da
república matou o jovem Arsénio Sebastião "Cherokee" por cantar
essa música, pelo simples facto de ela ter conteúdos que de alguma
forma incomodavam o sistema. Indico também os álbuns: Nutrição
espiritual, lançado em 2006, V.A.L.O.R.E.S, Proibido ouvir isto de
2012. Entre as várias músicas que tem, fez também a versão de
Gabriel O Pensador Eu queria morar na favela para Eu queria morar em
Talatona
(Eugênio da Silva Evandeco)

208
botAfala: Ocupando a Casa Grande

Azagaia
Azagaia, ou simplesmente Edson da Luz, é moçambicano, nasceu
em Namaacha, província de Maputo, em 06 de maio de 1984.
Rapper, Design e estudante da universidade pedagoga em Maputo.
Por quê?
O seu estilo musical é mais ligado à crítica social e até certo ponto
política; destaco aqui um dos seus álbuns mais polêmicos, o
Babalaze. Assim como os outros citados acima, Azagaia não faz
diferente, luta pela África e Moçambique em particular. É contra o
sistema opressor e traz isso em suas músicas.

Eu ouço/leio/indico:
Para ouvir:
Indico o álbum Babalaze, lançado em 2007, bastante interessante.
Indico também a música “Abc do preconceito”, de 2013, do álbum
Cubaliwa entre outros trabalhos.

(Eugênio da Silva Evandeco)

209
influências e indicações

E mais dicas para ouvir:

Angola: MCK , Yannick Afroman, Kid MC


Brasil: Djonga, Emicida, MV Bill,
Guiné-Bissau: Dom Pina da MC Mário, Raça Preto, Os
Baloberos da Guiné
Azagaia (Moçambique), Valete (Portugal), Hélio Batalha (Cabo
Verde), Kendrick Lamar (EUA)...
Magnusson da Costa

Guiné-Bissau: Mano Dogo, MC Mário, Os Baloberos da Guiné-


Bissau, Raça Preto, Rhimman, N’pans
Angola: Yannick Afroman
Brasil: Emicida (Brasil), Valete (Portugal), Hélio Batalha (Cabo
Verde), Usher (EUA), Azagaia (Moçambique) ...
Suleimane Alfa Ba

Ready Neutro: “cozinhas do inferno”


Bruno M: dicas são dicas/igualdade
Azagaia: povo no poder Dji Tafinha e kid Mc: regate cultural
Azagaia: Malhazine Brigadeiro 10 pacotes: Nito Alves Valete:
Monogamia Xtremo signo: reportagem Nga: 35 Mck: na fila do
banco...
Eugênio da Silva Evandeco

210
GLOSSÁRIO botAfala

211
africar - verbo criativo, para fazer você dançar, religar todos os
sentidos, sintonizando-se com o ritmo que nos leva para a África.
A palavra surge em uma canção de mesmo nome como uma forma
de se desviar/sintetizar tanto do ideal de back to África físico, de
Marcus Garvey quanto o de retorno imaginário, da negritude de
Aimé Cesáire. Não se trata de remeter a nenhuma essência, nem a
alguma forma de identidade essencializada, mas de deslocar e
multiplicar sentidos e centros, como o ritmo da canção sinaliza.
Esse sentido ativo, da África em todo o lugar, foi captado e
articulado pela produção do programa Lazinho com Você ao
propor um desafio colaborativo em que pessoas e grupos de todo
Brasil foram convidados para dançar essa canção: “gaúchos”, com
roupa folclórica; pernambucanos misturando passos do frevo; o
sapateado na Avenida Paulista; um grupo de dança nas ruas
históricas de Salvador; estudantes da UNILAB em São Francisco do
Conde etc. todos deram sentido a este verbo. “Africar”, como
pensamos, não é sinônimo de “africanar” nem de “africanizar”.

ar(e)te – o crítico e poeta goiano Gilberto Mendonça Teles acredita


que o campo semântico da palavra latina arts (técnica) e da grega
areté (geralmente traduzida como excelência, virtude) permitem
uma aproximação quando se pensa a origem da palavra arte.
Adquirir/alcançar excelência é resultado de uma vida que atinge o
seu máximo potencial, o que não se faz sem domínio e cuidado com
a técnica. Deste modo a ideia de ar(e)te explora o entrelaçamento
da arte, vida e técnica numa perspectiva pragmatista, que dialoga
com as descrições de John Dewey, buscando ser versões melhores
de nós mesmos.

autoridade semântica – a aquisição de autoridade semântica é um


ideal educativo proposto por Richard Rorty como uma forma de
redecrever as propostas de formação crítica e/ou da consciência. A
capacidade de ter uma fala autorizada e reconhecida depende da
possibilidade e capacidade de articular e assumir a “primeira
pessoa”, redescrevendo em seus próprios termos ou
recontextualizando as narrativas que significam seu mundo. Esta
ideia está presente no hip-hop como a necessidade de situar e

212
botAfala: Ocupando a Casa Grande

pensar o seu próprio contexto articulando uma fala que deve ter
técnica, ritmo, rimas etc.

Bota a fala/botAfala – “Bota a fala” ou “bota fala” é uma expressão


comum ao crioulo de Cabo Verde e Guiné-Bissau, sendo tanto o
apelo para que alguém tome a palavra para dizer algo, ou usar a
fala como uma forma de bênção, como fazem as benzedeiras, ou
mesmo denunciar a conversa fiada de alguém. Encontramos a
palavra como título de um poema de Odete Semedo. O nome
retoma o método de composição do grupo, que de início partia de
beats prontos retirados da internet, focando-se na performance ao
vivo, assim como remete à valorização da palavra, um traço comum
na cultura africana e no jogo de pedir e dar razões da filosofia. Com
a mudança de formação e a mudança de focos para a gravação, com
a produção dos própios beats, renomeamos o grupo como botAfala,
destacando visualmente este novo momento.

compromisso socrático- a coragem socrática de dizer a verdade


para os poderosos, falando francamente aquilo que pensa, sem ficar
preso à moral tradicional, é um dos elementos que o hip hop
valoriza e que o tornam uma prática perigosa para as elites. Como
explica West: “Diante das manipulações e mentiras da elite,
devemos recorrer ao socratismo. O compromisso socrático de
questionamento requer autoanálise implacável, assim como a
crítica as instituições de autoridade, motivada por uma busca
incessante da integridade intelectual e consistência moral. Fica
manifesta num discurso intrépido (parrhesia) que perturba,
desconcerta e retira as pessoas do sonambulismo sem sentido
crítico. Como disse Sócrates na Apologia de Platão “Falar
claramente [parrhesia] é a causa de minha impopularidade”

conversão psíquica- Malcolm X ensinou que as pessoas negras


deveriam se libertar das perspectivas fornecidas pela supremacia
branca e modificar seu olhar, concebendo valores por elas mesmas.
Deste modo as pessoas negras “se afirmariam como seres humanos,
não mais enxergando seus corpos, mentes e almas segundo a ótica
dos brancos, e se julgariam capazes de assumir o controle de seu

213
glossário

próprio destino” (WEST, 1994, p.113). Cornel West descreve a ideia


de conversão psíquica como uma espécie de dialética entre a certas
posições de W. E. B. Du Bois, Malcolm X e Martin Luther King.
Enquanto Du Bois fala de dupla consciência, “na sensação de olhar
para si mesmo através dos olhos dos outros, de medir a própria
alma com a bitola de um mundo que se entretém assistindo com
desprezo e pena”; Malcolm X rompe com essa divisão ao propor a
oposição entre o “negro da casa grande”, que se identifica, ama e
protege o patrão e o negro do campo, que resiste e odeia a
dominação branca. Cornel West problematiza as limitações do
maniqueísmo dessa descrição retórica de Malcolm X (existiriam
negros do campo com mentalidade de negros da Casa Grande e
vice-versa); assim como a aversão ao hibridismo e à cultura popular
do líder muçulmano (rejeitando a potência transformadora da
música negra). Para não cair em posições maniqueístas e
autoritárias, seria preciso redescrever a ideia de conversão psíquica
de Malcolm X em diálogo com Martin Luther King, que não se
afastava da música e da cultura popular negra, apostando na
possibilidade de construir uma democracia plena que não se
pautasse pela divisão racial. Cornel West clama pela organização
de “redes e grupos nos quais a comunidade negra , seu caráter
humano, amor, zelo e solicitude possam criar raízes e crescer
(…). Esses espaços – que vão além da música e religião negra no
que elas têm de melhor – rejeitam ideologias maniqueístas e
disposições autoritárias, em favor de perspectivas morais,
análises cuidadosas sobre riqueza e poder e estratégias
concretas de coalizões baseadas em princípios e alianças
democráticas. Essas perspectivas, análises e estratégias nunca
deixam de levar em consideração a ira dos negros, porém
direcionam essa ira para alvos apropriados: todas as formas de
racismo, machismo, homofobia ou justiça econômica que
prejudicam as oportunidades das ‘pessoas comuns’ (...) para
viver com dignidade e decência. A pobreza, por exemplo, pode
ser um alvo para a ira negra, tanto quanto a identidade
degradada” (WEST, 1994, p.123). (Um bocado de filmes pode
ajudar a pensar essas posições. Nos filmes Malcolm X e Matrix
podemos encontrar uma tentativa de apresentação dessa noção de
214
botAfala: Ocupando a Casa Grande

conversão psíquica. Spike Lee, além de mostrar a conversão


psíquica do profeta da ira negra, chega a criar uma cena para
mostrar um diálogo imaginário entre Malcolm X e um intelectual
que se divide em relação à perspectiva da supremacia branca. Já as
irmãs Wachowski tomam a perspectiva da supremacia branca
como parte da própria estrutura de subjugação geral: não por acaso
os que já nascem libertos são negros, os agentes da “matrix” são
homens brancos etc. Veja o filme pensando nessa dimensão racial.
Fechando esse longo parêntese, veja como a divisão entre negro da
Casa Grande e negro do campo aparece em Django Livre de
Tarantino).

filodramática - o filósofo bissau-guineense Filomeno Lopes


defende que no contexto de seu país, comum a grande parte da
África, em que o acesso a livros e a possibilidades editoriais são
limitadas, é preciso redescrever a filosofia em diálogo com o teatro,
a música, a dança etc. buscando possibilidades de desenvolver uma
forma de pensamento que alcance mais pessoas. Nesse sentido, a
filosofia deveria tomar a forma de uma filodramática. Filomeno
Lopes desenvolve essa ideia em seu trabalho como músico (com o
grupo Fifito & Bumbulum), dirigindo documentários ou
dialogando com artistas que já teriam tomado este caminho, como
Bonga Kwenda. A articulação da filosofia em filodramática através
da canção é um objetivo também do Bota a fala (o que também
converge para a paidéia democrática proposta por Cornel West).

ira/ orgulho – uma das atividades que desenvolvemos no Campus


dos Malês que podem ser vistas como proto-botAfala foi um grupo
de leitura que, em dez meses, discutiu e leu toda a República de
Platão. Quando Platão descrever thymos como a coragem que
governaria a alma daqueles que devem ser os guardiões de sua
cidade ideal, o termo é geralmente a traduzido como coragem. Mas
a parte da alma que guia os guerreiros pode também ser traduzida
como ira ou orgulho. Em verdade, a aproximação semântica entre
ira e orgulho fica evidente quando pensamos em Malcolm X como
o profeta da ira negra (veja o capítulo do livro Questão de Raça de

215
glossário

Cornel West “Malcolm X e a ira negra”). O hip-hop também


canaliza muito da ira/orgulho negro num efeito curativo em
relação à autoestima fundamental para autoafirmação crítica.
Também é verdade que os excessos da ira/orgulho podem levar a
soberba e ostentação. Tudo isso deve ser motivo de cuidado e
atenção. Mais dicas sobre este tema? O livro de Michael Eric Dyson,
Orgulho, coloca em questão tanto o orgulho negro quanto a
soberba da supremacia branca, dialogando com a cultura hip-hop e
norte-americana; já o poeta Nelson Maca em seu livro Gramática
da Ira articula em versos a pedagogia deste sentimento.

jazz – o freestyle do hip-hop não deixa de ter relação com a forma


como os músicos de jazz improvisam musicalmente de modo
sofisticado. Essa capacidade de procurar se adequar às
circunstâncias produzindo uma fala que dialoge com seu contexto
é reivindicada por Cornel West como elemento de um modo de
vida intelectual. Neste sentido, o jazz não é uma forma de música,
“é mais um modo de existir no mundo, um modo improvisador, de
reações camaleônicas, fluidas e flexíveis perante a realidade,
infenso a pontos de vistas extremistas, pronunciamentos
dogmáticos ou ideologias hegemônicas. Ser um guerreiro da
liberdade nos moldes do jazz significa galvanizar e ativar as
pessoas desesperançosas e fartas deste mundo, criando formas de
organização cujas lideranças, sujeitas à responsabilidade
democrática, promovem o intercâmbio crítico de ideias e uma
ampla reflexão. A interação de individualidade e unidade não se
caracteriza pela uniformidade e unanimidade impostas de cima, e
sim por um conflito entre diversos agrupamentos que chegam a um
consenso dinâmico, sujeito a questionamento e crítica. Como
acontece com o solista de um quarteto, quinteto ou banda de jazz,
incentiva-se a individualidade a fim de sustentar e intensificar a
tensão criativa com o grupo – uma tensão que produz níveis mais
elevados de desempenho, para atingir o objetivo do projeto
coletivo. Esse tipo de sensibilidade crítica e democrática opõe-se a
todo e qualquer questionamento de fronteiras e limites para ser
“negro”, “homem”, “mulher” ou “branco” (WEST, 1993, p.122-
123)”. Essa perspectiva jazzística é utilizada por West em suas falas

216
botAfala: Ocupando a Casa Grande

públicas, acadêmicas, aulas etc. Isso não significa que você não deve
se preparar ao máximo, mas que sua fala, além de articulada, deve
dialogar com o contexto, produzir convergência e empatia
democrática.

oprimido/ desenraizado – O que Paulo Freire decreve em sua


Pedagogia do Oprimido como sendo “oprimido” – segundo Paulo
Ghiraldelli Jr. – é hoje melhor entendida se falássemos em
“desenraizado”, ou seja, a opressão em grande medida se relaciona
com a descontextualização do conhecimento, pressupondo que o
estudante não possui qualquer saber prévio, uma cultura. Articular
estes saberes prévios com a cultura da academia é o desafio
pedagógico. Em verdade, o enraizamento na cultura e nos
problemas locais é um dos elementos que a cultura hip-hop
pressupõe: não se trata da posição ressentida, mas de orgulho/ira
que reflete e reivindica.

paidéia democrática – para Cornel West a proposta de uma


educação profunda, de autocriação (cultivo do “eu”) em uma
direção democrática, em que a capacidade e coragem crítica
socrática e a compaixão, dialogando de forma melhorista com a
cultura popular (música, filmes, vídeos etc.) que hoje, em grande
medida, faz parte da educação dos jovens. West se inspira na busca
de Horácio (Poética, 335) por combinar o prazer com o efeito
prático, o deleite com a utilidade.

percepção tragicómica – Cornel West em Democracy Matters lista


três elementos que compõem seu modo de filosofar: a percepção
tragicômica, o compromisso socrático e a perspectiva profética. A
percepção tragicómica seria a capacidade de reconhecer os
infortúnios, as derrotas, a dor da morte, mantendo a capacidade de
rir de si mesmo, a esperança para continuar lutando. A música
criada na diáspora traz a marca desta perspectiva tragicómica, pois
diante da opressão, da violência, produziram cantos que eram ao
mesmo tempo resistência e esperança, uma forma de purgar a
tristeza e traduzir a dor em força para continuar lutando/vivendo.
O poeta e compositor Vinicius de Moraes define o samba como a

217
glossário

tristeza que balança; este mesmo diagnóstico vale para o jazz, o


blues, o hip hop etc. enquanto formas de religar a comunidade. Nas
palavras de West: “O tragicômico está na habilidade para rir e
manter o sentido de bem-aventurança em viver, para preservar a
esperança ainda que dando de cara com ódio e a hipocrisia, ao invés
de cair no niilismo do pânico paralisante”.

perspectiva profética- a perspectiva profética é um elemento


comum ao hip hop, em que as/os rappers muitas vezes pregam
suas crenças, buscando conduzir a comunidade para uma
transformação. A ligação com a comunidade que se busca
representar/pensar pede também que as palavras sejam
exemplicadas em atos: é preciso tentar incorporar a diferença que
se profetiza. Este compromisso com a justiça em relação a pessoas
oprimidas é algo comum a religião judaica, cristã e muçulmana.
Nessa direção profética é preciso corporificar o testemunho “em
atos humanos de justiça e bondade que deem atenção para as fontes
injustas de dor e miséria humana. O testemunho profético chama
atenção para as causas do sofrimento injustificado e a miséria
desnecessária. Ressalta especialmente a maldade de ser indiferente
diante da maldade pessoal e institucional”.

218
botAfala: Ocupando a Casa Grande

ADRINKAS

NEA ONNIM NO SUA A, OHU


"Quem não sabe pode saber através da
aprendizagem"

Símbolo do conhecimento, educação ao longo da


vida e busca contínua pelo conhecimento

NKONSONKONSON
"Elo de corrente"
Símbolo de unidade e relações humanas

Um lembrete para contribuir para a


comunidade: na união reside a força

WOFORO DUA PA A

"quando você sobe uma boa árvore"

Símbolo de apoio, cooperação e incentivo

A partir da expressão "Woforo dua pa a, na yepia wo" que significa


"Quando você sobe uma boa árvore, você recebe um empurrão". Mais
metaforicamente, significa que quando você trabalha por uma boa causa,
você receberá apoio.

219
glossário

SESA WO SUBAN

Mudar ou transformar seu caráter

Este símbolo combina dois símbolos adinkra, a


"Estrela da Manhã", que pode significar um novo
começo para o dia; colocada dentro da roda,
representando rotação ou movimento
independente.

SANKOFA

"Volte e pegue"

Símbolo que mostra a importância de aprender com o


passado.

220
botAfala: Ocupando a Casa Grande

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223
Posfácio

POSFÁCIO

Filomeno Lopes27

Caríssimos,

A seriedade dos argumentos tratados neste texto leva-nos a


questionar sobre “o lugar” (ambiente universitário), os “sujeitos”,
(alunos, professores e pessoal universitário) e o “objecto” do
“BotaFala” (a filosofia). Não se trata portanto de um “Bota Fala na
Bantabá”, enquanto expressão e lugar da cultura do diz-que-diz,
das fofocas, das intrigas, das armadilhas, das traições, enfim de
tudo aquilo que é o imperativo da cultura de morte, do imperativo
da cultura do “ocaso do Sol vital”. O ambiente universitário é um
lugar, um “Cerco” de iniciação à autenticidade da “vida solar” que
conduz ao triunfo da vida sobre a morte; um lugar, por excelência,
de “capacitação” humana integral. A faculdade de filosofia, é o
lugar por excelência desta capacitação ou desta educação à “arma
da teoria”, a saber “pensar para melhor agir” e a “agir muito para
melhor pensar”(Amílcar Cabral). A filosofia é por isso um
horizonte pedagógico que em companhia e em diálogo permanente
com os nossos “Mestres de iniciação” (professores e todo o pessoal
universitário na sua íntegra, que compreende também os que

27
Bissau-guinense radicado em Roma, é estudioso de teologia, com doutorado em
filosofia e comunicação social; trabalha como jornalista na Rádio do Vaticano e é
autor de Filosofia intorno al fuoco. Il pensiero africano contemporâneo tra
memoria e futuro (Bologna: editrici missionaria Italiana, 2001); Filosofia senza
feticci (Roma: Edicione Associate, 2004); E se l’Africa scomparisse dal
mappamondo? (Armando Editore, 2009); Bonga Kwenda: um combatente africano
da liberdade africana (Torino: L’ Harmattan, 2013); Filodramática : os PALOP,
entre a filosofia e a crise de conciência histórica (Prior Velho : Paulinas Editora,
2018) entre outros títulos. Também é membro do grupo “Fifito & Bumbulum” que
usa a arte como recurso para uma filodramática que promove uma pedagogia
sensível de educação para a paz, reconciliação e diálogo.
224
Filomeno Lopes

cuidam da limpeza das nossas salas de Aula), vamos percorrendo


enquanto iniciandos, alunos, nesta busca da “palavra libertadora”
ou do “Bota Fala”. Neste sentido o “BotaFala” é um “Cerco” de
iniciação a sermos antes de mais “auditores, ouvintes da palavra do
outro”(recordando que temos duas orelhas e dois olhos); e por
outro lado a sermos bons conhecedores da “força libertadora” ou
“destrutiva” da Palavra Humana ou do Verbo Humano
(recordando sempre que possuímos uma só boca e uma só língua).
A palavra mata ou edifica, liberta ou escraviza, reforça ou diminui
a “força vital” (Tempels) do outro/a; é sempre carregada de
consequências, sejam elas negativas ou positivas. Daí o imperativo
de aprender a falar com rigorosidade, com sempre cada vez maior
conhecimento de causa, pois a palavra é como água ou sangue que
uma vez versado por terra, não se pode mais recolher: o que disse
já o disse; posso até pedir perdão, mas não posso recuperar o que
foi já dito e isso terá seguramente as suas consequências. Quantas
pessoas já foram mortas, vítimas deste “Bota Fala de Bantabá”, do
“fulano fala”, do diz-que-diz intriguista, fofoqueiro etc.? A filosofia
é a arte portanto de saber ser “ouvinte e guardião/a da palavra
libertadora do outro/a” e por conseguinte, guardião/a do rosto e
das costas do outro/a, já que a palavra, a “Fala”, é sempre palavra,
a “Fala” de alguém; e ninguém de nós jamais foi capaz de ver o seu
rosto, os seus olhos nem tão pouco as próprias costas: esta é uma
tarefa que cabe sempre ao “outro/a”.
Quando a filosofia se serve do horizonte pedagógico
comunicativo da filodramática, através da música e da arte, como
forma de massificar, vivificar e ritmar conceitos aparentemente
incompreensíveis para os demais e por forma a que elas possam
falar, acordar, não só à mente mas também ao coração de todos os
ouvintes, como é o caso aqui, neste “BotaFala”, ela então se
transforma em ocasião de escuta e do “grito dos sem-voz”, um
poderoso percurso de educação ao serviço da causa dessa nossa
humanidade comprometida, dos mais indefesos. Os versos
poéticos e musicais aqui expressos, representam neste sentido, um
“BotaFala” libertador e claro: nas sendas de Sony Labou Tamsi,
cada um/a, à sua maneira, foi capaz de dizer: “eu escrevo e canto,
portanto eu grito, para forçar o mundo a vir ao mundo”: somos

225
Posfácio

responsáveis da palavra(Fala) do outro/a. O “BotaFala” é por isso


mesmo, um Cerco de iniciação à força da aurora do Sol que conduz
ao Ubuntu e ao Maat (ao sentido da Verdade – do Equilíbrio – e da
Justiça) ao mesmo tempo. O diploma de filosofia que recebemos no
final deste percurso iniciático, mas de vocação permanente, é como
aquela “faca” que os iniciandos Balantas da Guiné-Bissau recebem
no dia do abandono da barraca do Fanado, o rito iniciático de
circuncisão, que representa um sinal visivo com vocação de ser um
diploma de maturidade humana numa sociedade de tradição oral.
Esta “faca”, uma vez retirada da sua bainha, não pode ser remetido
na bainha sem o sangue; ela de facto é um símbolo entregue ao
iniciando para lhe recordar da força e do perigo que representa
boca e a língua humana e portanto a nossa fala humana numa
comunidade de vida; um chamamento enfim, ao sentido da
vigilância, da responsabilidade, do equilíbrio, da verdade, da
justiça perante e no uso da Palavra, da Fala Humana no nosso dia
a dia como ouvintes e guardiões/as da fala, do rosto e das costas
do outro/a. Por isso, em situações de litígios acontece que muitos
quando desistem do acto de faquear o outro/a, causam uma ferida
no próprio corpo com essa mesma faca. Isso porque aquele
instrumento de vida e de morte, uma vez chamado em causa, não
poder voltar para o seu lugar sem sangue: a palavra, a fala, é
precisamente isso: como água e sangue, que uma vez versada por
terra não se pode recolher como dizíamos atrás. Um iniciado, uma
pessoa madura é alguém com postura, que sabe controlar a sua
língua, a sua palavra, uma pessoa equilibrada e certa que quem tem
sempre pressa de dizer o que pensa, acaba muitas vezes, e quase
sempre por morder a própria língua. Por isso aprende severamente
a falar dos outros e dos factos da vida em geral, sempre com
conhecimento de causa.
Acho particularmente não só interessante, mas fundamental, o
facto que no início desta obra de “epistemologia de partilha”, agora
com os leitores, vocês tenham colocado, o legado filosófico do
ubuntu, expressão e sinal da vossa maturidade que no fundo, a vida
são os outros. Costumo pensar que, até quando ninguém de nós é
capaz de dar luz a si próprio/a, crescer sozinho até a fase da
maturidade e por fim sepultar-se sozinho, no caso da morte, não

226
Filomeno Lopes

haverá nunca nada que possa ser exclusivamente “meu” e que não
seja também do “outro/a” e portanto “nosso”; nada
exclusivamente “meu” que não seja rigorosamente “nosso” ao
mesmo tempo, seja no bem como no mal. É precisamente por isso
que um dos legados da filosofia ubuntu é a consciência que a vida
são os outros e que o melhor remédio para todos os problemas,
esperanças e alegrias dum ser humano, é o “outro ser humano”. A
filosofia é somente um percurso iniciático que estamos a seguir para
chegarmos aos outros/as como sol vital e não como ocaso da vida;
para aprendermos a servir a humanidade com mais conhecimento
de causa, fazendo nosso o mote do comediógrafo Publio Terenzio
Afro : “ Homo sum, humani nihil a me alienum puto” (sou um
homem e tudo quanto é humano me diz respeito), num mundo da
globalização da indiferença.
Um provérbio do povo Bâmbara do Mali nos recorda que
ninguém de nós nasce já pronto” como homem, mulher, como
humano. E de facto, “Mamã deu luz, não significa Mamã findou”.
Depois de dar luz ao mundo uma criança, é preciso educá-la:
educar ou perecer, disse Joseph Ki-zerbo. E, se são necessárias só
duas pessoas para ter um filho/a, para educá-lo/a é necessária toda
a aldeia, expressão de universo in miniatura. A educação é
fundamentalmente uma questão antropo-epistemológica e sócio-
cultural; ela tem a ver com o saber, que é aquela luz do Sol que está
radicado no íntimo da caverna da mente e do coração de homens e
mulheres; é a herança de tudo quanto os nossos antepassados
puderam acumular no arco dos tempos – desde a antiguidade
Egipto-faraónica até hoje -, em termos de conhecimento e de
domínio da luz solar vital e nos legaram como herança. Por isso
mesmo o saber autêntico é sempre algo de sinfónico, não unívoco,
mas também interdisciplinar e intercultural, um produto de um
“nós juntos”. E nas sendas de Amílcar Cabral podemos afirmar que
a arma principal da luta pelo triunfo da vida sobre a morte, “está
efectivamente na superação constante, no estudo constante, naquilo
que ao fim ao cabo se chama educação”(Cabral).
Ao dar os meus parabéns a todos aqueles que vos conduziram,
orientaram com tanta abnegação nesta “longa marcha” da
filodramática e de modo particular o Prof. Marcos, permitam-me

227
Posfácio

enfatizar que o essencial da filodrámatica consiste, precisamente,


em guardar no mais profundo da caverna do próprio coração o
segredo que o saber é um dom (pois aprendemos sempre dos
outros) e como tal é colectivo, interdisciplinar, intercultural e para
servir os outros, a colectividade; não é algo para ser exibido como
infelizmente acontece nos nossos países; mas é acima de tudo, a
capacidade de traduzir na prática, o ensinamento do provérbio que
nos recorda, enquanto simples seres humanos que coabitam como
humanos no mundo, o seguinte: “Atravessai sempre o rio em massa
e não tereis nada a temer sobre os lagartos”. Os PALOP foram
grandes aos olhos do mundo inteiro, quando precisamente
atravessavam em massa e portanto unidos, de mãos dadas, os rios
para o “BotaFala da Liberdade e Libertação”, atacar em conjunto,
em equipe, os colonizadores, destruir a era colonial, e conseguir a
Independência e autodeterminação dos nossos países e povos.
Depois da independência até hoje, começamos a trilhar percursos
do individualismo, do falar sem conhecimento de causa, do
egoísmo pessoal e aos poucos fomos caindo nesse túnel da pobreza
antropológica e estrutural que nos “envelopa” a vários anos
levando-nos a esquecer a nossa principal tarefa de sermos
servidores e guardiões/as da voz do outro, dos mais
desfavorecidos e “danados da terra” (Fanon). Facto é que até agora
fomos capazes de nos unir só para a fase da destruição (escravatura
e colonialismo); desde a independência até hoje, não fomos capazes
de unir para construirmos os ideais filosóficos que nortearam todo
o processo da luta de libertação dos PALOP: a construção da paz,
progresso e felicidade dos nossos países e povos. Oxalá que a vossa
geração possa de facto constituir uma ponte de trânsito e de retoma
destes percursos unitários e de diakonia na construção da história
e historicidade dos nossos países. Por isso, a todos, os meus
parabéns e sinceros votos de saúde e de capacitação.

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TEXTO DA ORELHA

"Uma bonita história de afirmação pessoal e étnica está


sendo escrita por alunas e alunos do Projeto de Extensão
BotAfala, da Unilab-BA. Este livro registra parte dela, com
depoimentos, narrativas de vida, testemunhos emocionantes.
Jovens estudantes brasileiras(os) e africanas(os) se
encontraram nessa Universidade, verdadeiro território
lusófono de afirmação étnica. Além da disposição de estudar,
trouxeram na bagagem muito talento musical,
principalmente rap e hip hop – e muita vontade de, com sons
e tons de esperança e denúncia, construir um mundo melhor.
Sob orientação do Prof. Dr. Marcos Carvalho Lopes, que
estuda convergências entre Filosofia e Música, o Projeto
BotAfala está dando o que falar".
Paulo Sérgio de Proença, professor da UNILAB/BA

TEXTO DA CONTRACAPA:

“Notável pela qualidade e maravilhoso pela intenção.


São iniciativas como estas que me dão coragem e energia para
continuar a renovar as ciências sociais”.
Boaventura Souza Santos

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