Uma Crítica A Tardif e Schon
Uma Crítica A Tardif e Schon
Uma Crítica A Tardif e Schon
ISSN: 0101-7330
[email protected]
Centro de Estudos Educação e Sociedade
Brasil
Duarte, Newton
CONHECIMENTO TÁCITO E CONHECIMENTO ESCOLAR NA FORMAÇÃO DO PROFESSOR (POR
QUE DONALD SCHÖN NÃO ENTENDEU LURIA)
Educação & Sociedade, vol. 24, núm. 83, agosto, 2003, pp. 601-625
Centro de Estudos Educação e Sociedade
Campinas, Brasil
NEWTON DUARTE*
Educ. Soc., Campinas, vol. 24, n. 83, p. 601-625, agosto 2003 601
Disponível em <http://www.cedes.unicamp.br>
TACIT KNOWLEDGE AND SCHOOL KNOWLEDGE IN TEACHERS’ EDUCATION
(WHY DONALD SCHÖN DIDN’T UNDERSTAND LURIA)
ABSTRACT: This paper defends that Donald Schön’s works on
professional education in general and more particularly on teachers’
education are based both on an epistemology that devalues scientific
knowledge and on a pedagogy that devalues school knowledge. A
critical analysis of Schön’s concepts of tacit knowledge (or reflection-
in-action) and school knowledge is presented. This critical analysis is
inserted in the context of a criticism of the currently hegemonic
epistemological ideas in the field of studies on teachers’ education.
Key words: Teachers’ education. Epistemology of practice. Reflective
practitioner. Tacit knowledge. School knowledge.
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seqüências em relação à formação para o magistério” (Tardif, 2000).
Nesse artigo, Tardif inicia sua análise pela constatação da existência
de um paradoxo na conjuntura contemporânea relativa à formação de
professores: por um lado haveria um movimento no sentido da
profissionalização do trabalho docente e, por outro, as profissões e a
formação profissional estariam passando por um período de profunda
crise. Essa crise das profissões poderia ser resumida, segundo Tardif,
em quatro pontos: crise da perícia profissional; crise de confiança na
capacidade da universidade em formar bons profissionais; crise do po-
der profissional ou da confiança do público em relação aos profissio-
nais e, por fim, crise da ética profissional. Nesse contexto de pressão
por profissionalização do trabalho docente e, ao mesmo tempo, de
crise das profissões, sobressai a questão da “epistemologia da prática”:
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versitários. Dizendo de maneira polêmica, se os pesquisadores universitários
querem estudar os saberes profissionais da área de ensino, devem sair de seus
laboratórios, sair de seus gabinetes na universidade, largar seus computado-
res, largar seus livros e os livros escritos por seus colegas que definem a natu-
reza do ensino, os grandes valores educativos ou as leis da aprendizagem, e
ir diretamente aos lugares onde os profissionais do ensino trabalham, para
ver como eles pensam e falam, como trabalham na sala de aula, como trans-
formam programas escolares para torná-los efetivos, como interagem com os
pais dos alunos, com seus colegas etc. (Idem, ibid., p. 12)
Dando continuidade a seu artigo, Tardif apresenta uma ca-
racterização dos saberes profissionais dos professores, pautado, se-
gundo afirma, em seus próprios estudos sobre o trabalho docente e
em estudos recentes realizados nos Estados Unidos, nos quais foram
apresentadas sínteses de pesquisas empíricas sobre os saberes docen-
tes. Os saberes profissionais dos professores são então caracterizados
por Tardif como saberes temporais, plurais, heterogêneos, persona-
lizados, situados e, por fim, como saberes que carregam as marcas
do ser humano em conseqüência de o objeto do trabalho docente
ser constituído por seres humanos (idem, ibid., p. 13-18). Esses sa-
beres deveriam então, segundo Tardif, ocupar lugar central nos cur-
sos de formação de professores, o que exigiria não só uma mudança
curricular nesses cursos como também uma verdadeira reforma uni-
versitária, de maneira que a carreira acadêmica concedesse menos
importância ao trabalho de pesquisa no campo das disciplinas aca-
dêmicas e concedesse mais importância ao trabalho de investigação
dos saberes profissionais e de sua utilização nos cursos de formação
de professores. Os cursos deveriam abandonar o modelo “aplica-
cionista”, abandonar a “lógica disciplinar” e passar a trabalhar “se-
gundo uma lógica profissional centrada no estudo das tarefas e rea-
lidades do trabalho dos professores” (idem, p. 19). A conseqüência
desse tipo de proposta para a discussão sobre os cursos de formação
de professores não poderia ser diferente:
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Diante dessa conclusão coerente com o artigo em seu todo,
sou levado a afirmar que a discussão, entre os educadores brasilei-
ros, sobre a instituição mais adequada para a formação de professo-
res (se a universidade ou se outro tipo de instituição) deveria ser
reformulada, pois, mesmo mantendo-se a formação de professores
no âmbito da universidade, a qualidade dessa formação poderá não
ser assegurada. Em outras palavras, o que estou querendo dizer é
que Tardif propõe uma mudança estrutural não só nos cursos de for-
mação como também na carreira universitária, de maneira que se re-
leguem a um segundo plano os conhecimentos acadêmicos, cientí-
ficos, teóricos. Creio ser fácil perceber que isso tem implicações até
mesmo em termos do número de vagas existentes nas universidades
para contratação de docentes e pesquisadores no campo dos chama-
dos fundamentos da educação. Isso para não falar da questão dos
critérios adotados para análise dos pedidos de financiamento à pes-
quisa educacional (na ótica de Tardif, o que seria considerado uma
boa pesquisa em Filosofia da Educação, por exemplo?). E para que
não se diga que estou exagerando na constatação das conseqüências
da proposta de Tardif, vejamos como ele mesmo encerra seu artigo,
defendendo a necessidade de os professores universitários investiga-
rem suas próprias práticas de ensino:
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lorização do conhecimento teórico, acadêmico, científico, visa a mos-
trar que esse tipo de conhecimento “não vale nada do ponto de vista
da ação profissional”. Note o leitor que Tardif não apresentou a con-
tradição entre “teorias professadas” e “teorias praticadas” como uma
exceção, mas sim como a regra. Em conseqüência, a superação desse
problema não estaria na busca de coerência com a teoria professada,
mas sim no seu abandono e no reconhecimento de que a verdadeira
teoria é aquela que está implícita na prática.
Ao longo de todo o artigo os argumentos de Tardif vão se so-
mando e encadeando-se a fim de conduzir à conclusão sobre a
irrelevância ou até mesmo sobre o caráter prejudicial do saber cientí-
fico/teórico/acadêmico tanto na formação de professores como na pes-
quisa educacional. Não posso deixar de identificar nessa proposição
de Tardif aquele movimento caracterizado por Maria Célia Marcondes
de Moraes como o “recuo da teoria” na pesquisa em educação:
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para a desvalorização do papel do conhecimento científico/teóri-
co/acadêmico na formação do professor. O tema do papel da uni-
versidade e dos conhecimentos teóricos na formação de professo-
res já fora tratado por Perrenoud na conferência de abertura da
XXII Reunião Anual da ANPE d ocorrida em 1999, conferência essa
depois publicada como artigo na Revista Brasileira de Educação,
com o título “Formar professores em contextos sociais em mudan-
ça: prática reflexiva e participação crítica” (Perrenoud, 1999). Nes-
se artigo se lê o seguinte:
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Em última instância, seja qual for seu público, desejamos que todos os pro-
fessores também se tornem formadores, tanto no caso de crianças quanto no
de estudantes mais velhos. Lutar contra a exclusão, contra o fracasso escolar,
contra a violência; desenvolver a cidadania, a autonomia, criar uma relação
crítica com o saber: tudo isso exige que os professores de todos os níveis
transformem-se em formadores. Sem dúvida, esta é a razão fundamental de
privilegiar a postura reflexiva. (Perrenoud, 2002, p. 186-187)
Perrenoud apresenta, num quadro, as características que distin-
guiriam o professor do formador. Mencionarei algumas delas: o pro-
fessor dá prioridade aos conhecimentos, já o formador dá prioridade
às competências; o professor concebe a aprendizagem como assimila-
ção de conhecimentos, já o formador concebe a aprendizagem como
transformação da pessoa; o professor adota uma postura de sábio que
compartilha seu saber, já o formador adota uma postura de treinador
que orienta com firmeza uma autoformação; o professor parte de um
programa, ao passo que o formador parte das necessidades, práticas e
problemas encontrados (Perrenoud, 2002, p. 187). Todas essas dife-
renças entre o professor e o formador coadunam perfeitamente com o
que caracterizei como sendo os quatro princípios valorativos contidos
no lema “aprender a aprender” (Duarte, 2001b e 2001a), o que equi-
vale a afirmar que há uma indissociável ligação, nos trabalhos de
Perrenoud, entre as pedagogias do aprender a aprender (escola nova,
construtivismo) e a formação do professor reflexivo. Como mostrarei
mais adiante neste artigo, tal relação também está presente nos tra-
balhos de Donald Schön.
Essa relação entre os estudos no campo da formação de profes-
sores e a descaracterização do professor, o qual deixa de ser visto como
agente da transmissão do saber escolar, também pode ser identificada
no contexto educacional brasileiro. Isabel Alice Lelis (2001) aborda
essa questão em artigo publicado na revista Educação & Sociedade,
intitulado “Do ensino de conteúdos aos saberes do professor: mudan-
ça de idioma pedagógico?”. Já no resumo do artigo essa questão é
explicitada de forma bastante clara:
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ra de um idioma pedagógico, passando-se de uma pedagogia marcadamen-
te conteudista sob a hegemonia de uma razão teórica para uma perspecti-
va que aponta para uma epistemologia da prática.
O adjetivo “conteudista” tem uma clara conotação negativa, a
qual é confirmada pela análise formulada ao longo do texto. Lelis
considera um avanço a ruptura com uma pedagogia que valorizava a
transmissão dos conteúdos pela escola e valorizava também o conhe-
cimento teórico na formação de professores. Em substituição a essa
pedagogia difundida entre os educadores brasileiros na década de
80 do século XX, teria ocorrido, na década de 90, uma mudança
de foco, em grande parte influenciada pela ampla difusão dos tra-
balhos de autores estrangeiros no campo da formação de professo-
res. Segundo Lelis:
(...) sob ângulos diversos, esses autores ajudaram a pensar a constituição dos
saberes dos professores, em uma pauta diversa de uma pedagogia centrada
no saber elaborado ao refletirem sobre os limites da formação prévia e, nela,
dos conhecimentos acadêmicos na constituição do saber docente; ao afirma-
rem a centralidade da instituição escolar enquanto lócus de formação do ma-
gistério; ao revelarem a força da experiência escolar passada enquanto aluno
no desenvolvimento da prática pedagógica; e, finalmente, ao assinalarem o
caráter de improvisação a marcar o trabalho docente. (Lelis, 2001, p. 53-54)
Todo o texto de Lelis é dirigido para a análise da questão
epistemológica e pedagógica que estaria no centro dessa mudança,
isto é, o distanciamento com relação a uma “pedagogia centrada no
saber elaborado”.
Os estudos que tenho realizado sobre as relações entre o
construtivismo e outros ideários pedagógicos1 me levam a afirmar que
Lelis está correta quando afirma que no Brasil os estudos sobre for-
mação de professores realizados na década de 1990 teriam significa-
do uma mudança de enfoque pedagógico na direção de um distancia-
mento com relação a uma pedagogia centrada no saber escolar.
Entretanto, ao contrário de Lelis, que considera esse processo um
avanço, eu o considero um retrocesso. Além disso é também diferen-
te a maneira como analiso as relações entre tal processo de mudança
das referências predominantes no campo da formação de professores
e o contexto político-ideológico da década de 1990. Neste sentido
destacarei duas questões ausentes do trabalho de Lelis. A primeira
questão é a das relações entre a difusão dessa linha de estudos sobre a
formação de professores e o boom construtivista. Não foi obra do aca-
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so o fato de que o construtivismo e a pedagogia do professor reflexivo
tenham sido difundidos no Brasil quase que simultaneamente. Esses
dois ideários fazem parte de um universo pedagógico ao qual venho
chamando de “as pedagogias do aprender a aprender”. Neste sentido,
do ponto de vista pedagógico, os estudos na linha do professor refle-
xivo surgiram na América do Norte e na Europa quase que como uma
ramificação natural do tronco comum constituído pelo ideário
escolanovista. A diferença reside em que o escolanovismo clássico e o
construtivismo concentram seu foco de análise na aprendizagem (ou
construção do conhecimento) realizada pelo aluno ao passo que os es-
tudos sobre o professor reflexivo concentram seu foco de análise na
aprendizagem (ou construção do conhecimento) realizada pelo pro-
fessor. A segunda questão ausente do trabalho de Lelis é a das rela-
ções entre a epistemologia da prática e o universo ideológico
neoliberal e pós-moderno. A disseminação, no Brasil, dos estudos na
linha da “epistemologia da prática” e do “professor reflexivo”, na dé-
cada de 1990, foi impulsionada pela forte difusão da epistemologia
pós-moderna e do pragmatismo neoliberal, com os quais a epistemo-
logia da prática guarda inequívocas relações.2 A própria Lelis (2001,
p. 49) tangencia esse tema quando dá a entender que “o fim do
leninismo e a derrocada da União Soviética entre outros acontecimen-
tos” teriam produzido um questionamento epistemológico com rela-
ção à filosofia da práxis, isto é, o marxismo, questionamento esse que
teria problematizado a “supervalorização da teoria”, o “poder da teo-
ria na explicação e transformação do real” (idem, ibid.). A problema-
tização do poder da teoria na explicação do real seria decorrente da
constatação da “infinitude do real e dos processos de expansão e revi-
são do conhecimento” (idem, ibid.). Não há espaço neste artigo para
me aprofundar nessa questão, mas devo assinalar que nesse momento
de seu texto Lelis se aproxima dos questionamentos epistemológicos
que Hayek (um dos grandes intelectuais do neoliberalismo) dirigiu
ao marxismo. Não estou afirmando, de forma nenhuma, que Lelis
pretenda alinhar-se com as idéias neoliberais. Em outro momento de
seu texto ela se mostra preocupada com o fato de que “vivemos num
momento de clara hegemonia do projeto neoliberal no campo da edu-
cação” (idem, ibid., p. 54). O que estou procurando mostrar é que
inadvertidamente a autora se aproxima, em seus questionamentos
epistemológicos, dos mesmos argumentos usados por Hayek. Por
exemplo, a questão da “infinitude do real” é utilizada por Hayek para
negar a possibilidade do conhecimento numa perspectiva de totali-
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dade. O filósofo Karel Kosik (1976, p. 41), ao tratar da concepção
marxista de “totalidade concreta”, mostra que Hayek estava equivoca-
do quando criticou a epistemologia marxista, pois Hayek afirmou ser
impossível o conhecimento na perspectiva da totalidade em conseqü-
ência da impossibilidade de se conhecerem todos os fatos que com-
põem o real, isto é, em conseqüência daquilo que Lelis chamou de
“infinitude do real”. Kosik mostra que o equívoco desse argumento
reside justamente em que a perspectiva marxista da totalidade não
significa a pretensão de esgotar todos os fatos:
Existe uma diferença fundamental entre a opinião dos que consideram a re-
alidade como totalidade concreta, isto é, como um todo estruturado em cur-
so de desenvolvimento e de autocriação, e a posição dos que afirmam que o
conhecimento humano pode ou não atingir a “totalidade” dos aspectos e
dos fatos, isto é, das propriedades das coisas, das relações e dos processos da
realidade. Como o conhecimento humano não pode jamais, por princípio,
abranger todos os fatos – pois sempre é possível acrescentar fatos e aspectos
ulteriores – a tese da concreticidade ou da totalidade é considerada uma mís-
tica. Na realidade, totalidade não significa todos os fatos. Totalidade signifi-
ca: realidade como um todo estruturado, dialético, no qual ou do qual um
fato qualquer (classe de fatos, conjunto de fatos) pode vir a ser racionalmen-
te compreendido. (Idem, p. 35)
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de poder, Angel Pérez Gómez, em artigo intitulado “O pensamento
prático do professor”, publicado nessa mesma coletânea, deixa claras
as relações entre, por um lado, o espírito anticientífico e subjetivista
da epistemologia pós-moderna e, por outro lado, o espírito pragma-
tista típico da ideologia neoliberal, isto é, a ideologia do capitalismo
contemporâneo:
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cultura, acabam por arrimar-se no contingente e na prática imediata – é o
que se pode denominar de metafísica do presente, ou como define Jameson,
uma história de presentes perpétuos (...). O ceticismo, todavia, não é apenas
epistemológico, mas também ético e político. E importa para nós tanto em
sua versão conservadora, enquanto peça retórica, consciente ou não, de ve-
neração ao mercado, como igualmente em sua versão “crítica” e “radical”. Na
verdade, esses momentos, conservador e crítico, com freqüência se super-
põem de tal modo que, muitas vezes, fica difícil identificá-los em sua con-
fluência. (Moraes, 2001, p. 4)
2. As concepções de conhecimento
tácito e conhecimento escolar em Donald Schön
Inicialmente preciso esclarecer por que não dispensarei especial
atenção à diferenciação feita por Schön entre “conhecer-na-ação” e “re-
flexão-na-ação”. No livro intitulado Educando o profissional reflexivo:
um novo design para o ensino e a aprendizagem, Schön (2000, p. 29-
36) diferencia o que ele chama de “conhecer-na-ação” e o que ele cha-
ma de “reflexão-na-ação”. O “conhecer-na-ação” é mais automático,
rotineiro, espontâneo, isto é, tácito. A “reflexão-na-ação” surgiria a
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partir de resultados inesperados e de surpresas produzidas pela ação.
Esse processo de “reflexão-na-ação” não seria tão espontâneo quanto o
“conhecer-na-ação”, teria “uma função crítica, questionando a estru-
tura de pressupostos do conhecer-na-ação” (idem, p. 33). Entretan-
to, Schön ressalta que “distinção entre os processos de reflexão-na-
ação e conhecer-na-ação pode ser sutil” (idem, p. 34) e assinala que
ambos podem dispensar sua formulação em palavras:
(...) o que está a acontecer na educação reflete o que está a acontecer noutras
áreas: uma crise de confiança no conhecimento profissional, que despoleta a
busca de uma nova epistemologia da prática profissional. Na educação, esta
crise centra-se num conflito entre o saber escolar e a reflexão-na-ação dos pro-
fessores e alunos. Antes de me debruçar mais profundamente sobre esta idéia,
é preciso dizer que ela nada tem de novo. Muito daquilo que acabei de refe-
rir pode ser encontrado nas obras de escritores como Leon Tolstoi, John
Dewey, Alfred Schtz, Lev Vygotsky, Kurt Lewin, Jean Piaget, Ludwig
Wittgenstein e David Hawkins, todos pertencendo, se bem que de formas
diversas, a uma certa tradição do pensamento epistemológico e pedagógico.
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(...) O movimento crescente no sentido de uma prática reflexiva, cujas ori-
gens remontam a John Dewey, a Montessori, a Tolstoi, a Froebel, a
Pestalozzi, e mesmo ao Emílio de Rosseau, encontra-se no centro de um con-
flito epistemológico. (Schön, 1997, p. 80 e 91)
Esse conflito epistemológico entre o conhecimento escolar e a “re-
flexão-na-ação” (ou conhecimento tácito) é analisado por Schön tanto
no que diz respeito à formação do professor como no que diz respeito
às maneiras por meio das quais a escola trabalha com o conhecimento
que os alunos construiriam em seu cotidiano não-escolar.
Schön estabelece uma forte ligação entre o conhecimento táci-
to (conhecimento cotidiano) que o aluno traz para a sala de aula e o
conhecimento também tácito que o professor constrói ao dar atenção
aos processos de conhecimento e de pensamento de seus alunos por
meio da reflexão-na-ação. Schön, apoiando-se no filósofo Michael
Polanyi, afirma que o conhecimento tácito é:
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Para esse autor, a uma determinada abordagem do que seja o co-
nhecimento e o ato de conhecer corresponderia uma abordagem do
que seja a aprendizagem por parte do aluno e do que seja o ensino
por parte do professor. Neste, sentido Schön (1997, p. 81) contra-
põe “duas formas diferentes de considerar o conhecimento, a apren-
dizagem e o ensino”. A primeira abordagem analisada por Schön se-
ria aquela centrada na noção de saber escolar. Vejamos como ele
caracteriza o saber escolar:
Existe, primeiro que tudo, a noção de saber escolar, isto é, um tipo de co-
nhecimento que os professores são supostos possuir e transmitir aos alu-
nos. É uma visão dos saberes como fatos e teorias aceites, como proposi-
ções estabelecidas na seqüência de pesquisas. O saber escolar é tido como
certo, significando uma profunda e quase mística crença em respostas
exatas. É molecular, feito de peças isoladas, que podem ser combinadas
em sistemas cada vez mais elaborados de modo a formar um conhecimen-
to avançado. A progressão dos níveis mais elementares para os níveis mais
avançados é vista como um movimento das unidades básicas para a sua
combinação em estruturas complexas de conhecimento. (...) o saber es-
colar é categorial. Finalmente, existe a idéia muito importante de que o
conhecimento molecular, certo, factual e categorial, é também privilegia-
do. (Schön, 1997, p. 81-82)
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estruturas lógicas classificatórias do tipo: uma rosa é uma flor, uma
flor é uma planta, uma planta é um ser vivo. Justamente no mo-
mento no qual Schön analisa o saber escolar como um saber
categorial, ele menciona uma pesquisa realizada pelo psicólogo so-
viético Alexander R. Luria:
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zes subjacente às suas confusões e mal-entendidos em relação ao saber esco-
lar. Quando um professor auxilia uma criança a coordenar as representações fi-
gurativas e formais, não deve considerar a passagem do figurativo para o formal
como um “progresso”. Pelo contrário, deve ajudar a criança a associar estas dife-
rentes estratégias de representação. (Idem, ibid., p. 83 e 85; grifo meu)
A ação pedagógica que fizesse a criança passar do conheci-
mento cotidiano e tácito ao conhecimento escolar não deveria,
portanto, ser considerada um progresso. Haveria apenas uma “co-
ordenação” ou uma “associação” de duas diferentes estratégias
representativas. Por essa razão é que Schön critica o caráter privi-
legiado que tradicionalmente tem sido atribuído ao saber escolar.
Assim como Schön entende não haver progresso na passagem do
saber cotidiano do aluno ao saber escolar, também não haveria
progresso na passagem do saber prático do professor ao saber ci-
entífico e filosófico sobre a educação. A formação de professores
deveria, ao invés de concentrar-se no domínio de teorias científi-
cas, voltar-se para o saber experiencial do professor.
Apesar de mencionar a “coordenação” ou a “associação” entre as
duas diferentes formas de representação, uma das quais constitui o
saber escolar, Schön, em todo o seu texto, não deixa dúvidas quanto à
sua visão negativa sobre o saber escolar. Ele chega mesmo a estabele-
cer uma ligação entre o que ele chama de sistema burocrático da es-
cola e o saber escolar:
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Nessa linha, seria então necessário mudar: 1) a concepção de
conhecimento, passando da valorização do conhecimento escolar à va-
lorização do conhecimento tácito, cotidiano, não-científico; 2) a pe-
dagogia, passando de uma pedagogia centrada na transmissão do sa-
ber escolar para uma pedagogia centrada na atenção aos processos
pelos quais os alunos constroem seu conhecimento; 3) a formação de
professores, passando de uma formação centrada no saber teórico, ci-
entífico, acadêmico para uma formação centrada na prática reflexiva,
centrada na reflexão-na-ação. Nesta perspectiva, o lema “aprender fa-
zendo” da pedagogia escolanovista de inspiração deweyana deveria ser
adotado tanto em relação à educação das crianças e dos adolescentes
como no que diz respeito à formação profissional, incluída a forma-
ção de professores:
O que significa, então, formar um professor para que ele se torne mais ca-
paz de refletir na e sobre a sua prática? Creio que temos mais a aprender
com as tradições da educação artística que com os currículos profissionais
normativos do sistema universitário de vocação profissionalizante. As ins-
tituições de formação artística (os ateliers de pintura, escultura e design, os
conservatórios de música e de dança) têm longas tradições de formação
profissional. Mas é evidente que muitas dessas instituições ou não estão
dentro da Universidade ou vivem desconfortavelmente no seu seio. E isso
por uma boa razão: baseiam-se numa concepção do saber escolar diferente
da epistemologia subjacente à Universidade. As tradições “desviantes” da
formação artística, bem como do treino físico e da aprendizagem profissio-
nal, contêm, no seu melhor, as características de um practicum reflexivo.
Implicam um tipo de aprender fazendo, em que os alunos começam a pra-
ticar, juntamente com os que estão em idêntica situação, mesmo antes de
compreenderem racionalmente o que estão a fazer. Nos ateliers de design
arquitetônico, por exemplo, os alunos começam por desenhar antes de sa-
berem o que é design. (idem, ibid., p. 88-89)
A epistemologia e a pedagogia adotadas por Schön levam, por-
tanto, assim como acontece com outros autores no campo da forma-
ção de professores, ao tema da alegada inadequação da universidade,
tal como ela se encontra estruturada, no que diz respeito à tarefa de
formar profissionais, entre eles os professores. Reafirmo o que já afir-
mei acima: de pouco ou nada servirá a defesa da tese de que formação
de professores no Brasil deva ser feita nas universidades, se não for
desenvolvida uma análise crítica da desvalorização do conhecimento
escolar, científico, teórico, contida nesse ideário que se tornou domi-
nante no campo da didática e da formação de professores, isto é, esse
ideário representado por autores como Schön, Tardif, Perrenoud,
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Zeichner, Nóvoa e outros. De pouco ou nada servirá mantermos a for-
mação de professores nas universidades se o conteúdo dessa formação
for maciçamente reduzido ao exercício de uma reflexão sobre os sabe-
res profissionais, de caráter tácito, pessoal, particularizado, subjetivo
etc. De pouco ou nada adiantará defendermos a necessidade de os for-
madores de professores serem pesquisadores em educação, se as pes-
quisas em educação se renderem ao “recuo da teoria”. Em um texto
que apresentei no Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensi-
no ( ENDIPE ), realizado em 1996 na Universidade Federal de Santa
Catarina, e que foi publicado em 1998 na revista Cadernos CEDES com
o título “Concepções afirmativas e negativas sobre o ato de ensinar”
(Duarte, 1998), afirmei que o escolanovismo e o construtivismo seri-
am concepções negativas sobre o ato de ensinar. Agora estendo a mes-
ma afirmação aos estudos na linha da “epistemologia da prática”, do
“professor reflexivo” e da “pedagogia das competências”, pois esses es-
tudos negam duplamente o ato de ensinar, ou seja, a transmissão do
conhecimento escolar: negam que essa seja a tarefa do professor e ne-
gam que essa seja a tarefa dos formadores de professores.
Para encerrar, passarei agora a uma rápida explicação de por que
afirmei no título deste artigo que Donald Schön não entendeu Luria.
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Acontece que Luria (1988 e 1990), ao relatar a pesquisa que
planejou juntamente com Vigotski,4 é bastante explícito quanto à vi-
são que tinha da educação escolar e de seu papel na superação das
limitações próprias do pensamento cotidiano. Essa superação decor-
reria, entre outras coisas, justamente do caráter categorial do saber es-
colar. Na pesquisa realizada por Luria e sua equipe, foram realizados
vários tipos de “entrevistas clínicas” com pessoas em diferentes níveis
de acesso ao conhecimento escolar e vivendo em diferentes realidades
sociais. Foram entrevistadas desde pessoas totalmente analfabetas que
viviam e trabalhavam na zona rural, em uma situação de grande iso-
lamento, até pessoas que já tinham um certo grau de escolarização e
participavam de formas mais socializadas de trabalho. Para explicar
melhor o tipo de pressuposto psicológico com o qual essa pesquisa
trabalhava, Luria menciona pesquisas anteriormente realizadas por
Vigotski, nas quais se mostrou que, diferentemente das crianças que
agrupam objetos de maneira gráfico-funcional (relacionando os
objetos a uma situação prática do cotidiano), os adolescentes agru-
pam os objetos de maneira categorial, isto é, taxionômica, como, por
exemplo, “uma rosa é uma flor, uma flor é uma planta, uma planta é
parte do mundo orgânico” (Luria, 1988, p. 48). Neste sentido, Luria
afirmou o seguinte com relação aos sujeitos de sua pesquisa:
Uma vez que toda atividade é, inicialmente, fixada nas operações gráficas e prá-
ticas, acreditamos que o desenvolvimento do pensamento conceitual, ta-
xionômico, articula-se com as operações teóricas que uma criança aprende a
executar na escola. Se o desenvolvimento do pensamento taxionômico depen-
de da escolaridade formal, nós então esperaríamos ver formas taxionômicas de
abstração e generalização apenas naqueles sujeitos adultos que estiveram expos-
tos a algum tipo de escolaridade formal. Uma vez que grande parte dos sujei-
tos de nossas pesquisas ou não tinham freqüentado a escola ou o fizeram du-
rante um curto período, estávamos curiosos quanto ao princípio que aplicari-
am para agrupar objetos encontrados em sua vida diária. (Idem, ibid.)
Quando Donald Schön citou a pesquisa de Luria, mencionou jus-
tamente o caso de um camponês analfabeto que se recusou a excluir a
tora do grupo formado pelas ferramentas, isto é, uma serra, um macha-
do e um martelo. A resposta dada por esse camponês, de que a tora só
poderia ser excluída do grupo por alguém que tivesse bastante lenha,
mostra que esse sujeito da pesquisa realizada por Luria apresentava um
raciocínio que trabalhava com agrupamentos gráfico-funcionais e não
com o pensamento categorial, taxionômico. Luria (idem, p. 50) diz que
“esta tendência em contar com operações usadas na vida prática foi o
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fator controlador no caso de pessoas analfabetas e que não tinham rece-
bido qualquer educação” (educação escolar). Os sujeitos da pesquisa que
haviam alcançado um certo grau de escolarização apresentavam um pen-
samento não mais dominado pelo agrupamento gráfico-funcional, mas
sim um pensamento capaz de trabalhar de forma categorial:
A maior parte dos sujeitos classificou os objetos não de acordo com princípi-
os verbais e lógicos, mas de acordo com esquemas práticos. Entretanto, esse
pensamento concreto não é inato, nem genericamente determinado. Resulta
do analfabetismo e dos tipos rudimentares de atividade predominantes na
experiência cotidiana desses sujeitos. Quando muda o padrão de vida e se
ampliam as dimensões da própria experiência, quando eles aprendem a ler e
a escrever, a ser parte de uma cultura mais avançada, esta maior complexida-
de de sua atividade estimula novas idéias. Tais modificações, por sua vez, oca-
sionam uma reorganização radical de seus hábitos de pensamento, de modo
que eles aprendem a usar e a compreender o valor de procedimentos teóri-
cos que anteriormente pareciam irrelevantes. (Luria, 1990, p. 106-107)
Então a pergunta é: como Luria avaliava o fato de que o contexto
social da vida das pessoas possa determinar que o pensamento se limite
a operar de forma presa às situações cotidianas? Eis a resposta:
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Luria no que diz respeito ao valor do saber escolar, do saber teórico,
abstrato, racional! Quão opostos são pressupostos epistemológicos de
Donald Schön com relação aos pressupostos epistemológicos marxis-
tas de Luria e Vigotski! E aqui chegamos à explicação de por que
Donald Schön não entendeu Luria, por que o autor norte-americano
não se deu conta de que o psicólogo soviético defendia exatamente
uma posição oposta à sua. A resposta está no fato de que Schön ex-
traiu da pesquisa de Luria um exemplo, sem contextualizar esse exem-
plo no conjunto dos pressupostos teórico-filosóficos da pesquisa rea-
lizada por Luria. Os pressupostos epistemológicos de Schön estão
enraizados no pragmatismo de John Dewey, diferentemente dos pres-
supostos epistemológicos da pesquisa de Luria e Vigotski, os quais es-
tão enraizados no marxismo. E, como mostrou George Novack
(1978), em seu livro Pragmatism versus Marxism, há um conflito in-
superável entre essas duas correntes filosóficas. Não se dando conta
desse conflito, Schön não se deu conta da utilização indevida que fez
da pesquisa de Luria.
Concluindo este artigo, esclareço que, ao chamar a atenção para
o equívoco de Schön, meu intuito não é o de desqualificar esse autor,
mas sim o de alertar para a necessidade de análises rigorosas dos fun-
damentos filosóficos dos autores que vêm sendo largamente adotados
pela intelectualidade da educação brasileira. Já é tempo de reagirmos
ao “recuo da teoria”, de unirmos os esforços de todos os que não se
resignaram perante a passageira hegemonia do ceticismo pós-moder-
no e do pragmatismo neoliberal.
Notas
1. Contei com apoio do CNP q, durante o período de agosto de 1998 a julho de 2002, para
desenvolvimento de pesquisa intitulada “O construtivismo: suas muitas faces, suas
filiações e suas interfaces com outros modismos”.
2. Sobre as aproximações entre as políticas neoliberais no campo da formação de professores
e os estudos sobre professor reflexivo, vide o texto de Alessandra Arce (2001), publicado
no mesmo número da revista Educação & Sociedade em que foi publicado o citado artigo
de Isabel Alice Lelis.
3. “This reflection-in-action is tacit and spontaneous and often delivered without taking
thought, and is not a particularly intellectual activity” (Schön, 1987).
4. Vigotski não pôde realizar com Luria o trabalho de campo, pela fragilidade de sua condi-
ção física em conseqüência da tuberculose que o acometeu.
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