Uma Crítica A Tardif e Schon

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Educação & Sociedade

ISSN: 0101-7330
[email protected]
Centro de Estudos Educação e Sociedade
Brasil

Duarte, Newton
CONHECIMENTO TÁCITO E CONHECIMENTO ESCOLAR NA FORMAÇÃO DO PROFESSOR (POR
QUE DONALD SCHÖN NÃO ENTENDEU LURIA)
Educação & Sociedade, vol. 24, núm. 83, agosto, 2003, pp. 601-625
Centro de Estudos Educação e Sociedade
Campinas, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=87313721015

Como citar este artigo


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CONHECIMENTO TÁCITO E CONHECIMENTO ESCOLAR
NA FORMAÇÃO DO PROFESSOR
(POR QUE DONALD SCHÖN NÃO ENTENDEU LURIA)

NEWTON DUARTE*

Como as coisas não se mostram ao homem diretamente


tal qual são e como o homem não tem a faculdade de
ver as coisas diretamente na sua essência, a humanida-
de faz um détour para conhecer as coisas e sua estrutu-
ra. Justamente porque tal détour é o único caminho
acessível ao homem para chegar à verdade, periodica-
mente a humanidade tenta poupar-se o trabalho desse
desvio e procura observar diretamente a essência das
coisas.

(Karel Kosik, 1976, p. 21)

RESUMO: O objetivo do texto é mostrar que os estudos de


Donald Schön no campo da formação profissional em geral e da
formação de professores em particular pautam-se numa episte-
mologia que desvaloriza o conhecimento científico/teórico/acadê-
mico e numa pedagogia que desvaloriza o saber escolar. Nesta
direção é feita uma análise crítica das idéias de Schön acerca do
conhecimento tácito e do conhecimento escolar. Essa análise crí-
tica das idéias de Schön é inserida no contexto de uma crítica aos
pressupostos epistemológicos hegemônicos atualmente no campo
dos estudos sobre formação de professores.
Palavras-chave: Formação de professores. Epistemologia da prática.
Professor reflexivo. Conhecimento tácito. Conheci-
mento escolar.

* Livre-docente em Psicologia da Educação, professor da Universidade Estadual Paulista “Jú-


lio de Mesquita Filho” (UNESP , Araraquara) e bolsista de produtividade em pesquisa do
CNPQ . E-mail: [email protected]

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TACIT KNOWLEDGE AND SCHOOL KNOWLEDGE IN TEACHERS’ EDUCATION
(WHY DONALD SCHÖN DIDN’T UNDERSTAND LURIA)
ABSTRACT: This paper defends that Donald Schön’s works on
professional education in general and more particularly on teachers’
education are based both on an epistemology that devalues scientific
knowledge and on a pedagogy that devalues school knowledge. A
critical analysis of Schön’s concepts of tacit knowledge (or reflection-
in-action) and school knowledge is presented. This critical analysis is
inserted in the context of a criticism of the currently hegemonic
epistemological ideas in the field of studies on teachers’ education.
Key words: Teachers’ education. Epistemology of practice. Reflective
practitioner. Tacit knowledge. School knowledge.

omo é sabido, os estudos realizados por Donald Schön, sobre


os processos de formação do “profissional reflexivo” (Schön,
1987, 1997 e 2000), tornaram-se referência para muitas pes-
quisas e propostas no campo da formação de professores. No centro
das proposições de Schön para a formação profissional encontra-se a
distinção entre o conhecimento tácito, o qual Schön denomina tam-
bém como “reflexão na ação”, e o conhecimento escolar. Neste artigo
pretendo problematizar os pressupostos epistemológicos e pedagógi-
cos contidos na oposição que Schön estabelece entre esses dois tipos
de conhecimento. Pretendo argumentar que Schön adota uma peda-
gogia que desvaloriza o conhecimento escolar e uma epistemologia
que desvaloriza o conhecimento teórico/científico/acadêmico. Antes,
porém, de analisar as idéias de Schön, iniciarei este artigo mostrando
que a questão da desvalorização do saber teórico está presente em vá-
rios autores que se tornaram referência no campo dos estudos sobre
formação de professores.

1. A questão epistemológica no centro


do debate sobre a formação de professores
A questão epistemológica que está no centro do debate sobre
formação de professores é explicitada por vários autores. Um deles é
Maurice Tardif, cujo artigo publicado no ano 2000 na Revista Brasi-
leira de Educação, periódico da Associação Nacional de Pós-Gradua-
ção e Pesquisa em Educação (ANPEd), intitulou-se “Saberes profissio-
nais dos professores e conhecimentos universitários: elementos para
uma epistemologia da prática profissional dos professores e suas con-

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seqüências em relação à formação para o magistério” (Tardif, 2000).
Nesse artigo, Tardif inicia sua análise pela constatação da existência
de um paradoxo na conjuntura contemporânea relativa à formação de
professores: por um lado haveria um movimento no sentido da
profissionalização do trabalho docente e, por outro, as profissões e a
formação profissional estariam passando por um período de profunda
crise. Essa crise das profissões poderia ser resumida, segundo Tardif,
em quatro pontos: crise da perícia profissional; crise de confiança na
capacidade da universidade em formar bons profissionais; crise do po-
der profissional ou da confiança do público em relação aos profissio-
nais e, por fim, crise da ética profissional. Nesse contexto de pressão
por profissionalização do trabalho docente e, ao mesmo tempo, de
crise das profissões, sobressai a questão da “epistemologia da prática”:

É, portanto, nesse contexto duplamente coercitivo que a questão de uma


epistemologia da prática profissional acha sua verdadeira pertinência. De
fato, se admitirmos que o movimento de profissionalização é, em grande
parte, uma tentativa de renovar os fundamentos epistemológicos do ofício
de professor, então devemos examinar seriamente a natureza desses funda-
mentos e extrair daí elementos que nos permitam entrar num processo re-
flexivo e crítico a respeito de nossas próprias práticas como formadores e
como pesquisadores. (...) chamamos de epistemologia da prática profissio-
nal o estudo do conjunto dos saberes utilizados realmente pelos professo-
res em seu espaço de trabalho cotidiano para desempenhar sua tarefa.
(Tardif, 2000, p. 10)
A partir dessa definição de epistemologia da prática profissio-
nal, Tardif desenvolve toda sua argumentação no sentido de mostrar
que os cursos de formação no âmbito da universidade não têm dado
conta adequadamente da formação profissional por estarem centrados
no saber acadêmico, teórico, científico. A proposta de Tardif é justa-
mente a de que as pesquisas desenvolvidas no âmbito educacional se
voltem quase que inteiramente para a investigação dos saberes que os
professores utilizariam em seu cotidiano profissional, frisando bem
claramente que “não se devem confundir os saberes profissionais com
os conhecimentos transmitidos no âmbito da formação universitária”
(idem, ibid., p. 11). Esse autor é também bastante taxativo quanto
às conseqüências, para a pesquisa educacional, de sua definição de
epistemologia da prática profissional:

Do ponto de vista metodológico, essa definição exige o que poderíamos cha-


mar de um distanciamento etnográfico em relação aos conhecimentos uni-

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versitários. Dizendo de maneira polêmica, se os pesquisadores universitários
querem estudar os saberes profissionais da área de ensino, devem sair de seus
laboratórios, sair de seus gabinetes na universidade, largar seus computado-
res, largar seus livros e os livros escritos por seus colegas que definem a natu-
reza do ensino, os grandes valores educativos ou as leis da aprendizagem, e
ir diretamente aos lugares onde os profissionais do ensino trabalham, para
ver como eles pensam e falam, como trabalham na sala de aula, como trans-
formam programas escolares para torná-los efetivos, como interagem com os
pais dos alunos, com seus colegas etc. (Idem, ibid., p. 12)
Dando continuidade a seu artigo, Tardif apresenta uma ca-
racterização dos saberes profissionais dos professores, pautado, se-
gundo afirma, em seus próprios estudos sobre o trabalho docente e
em estudos recentes realizados nos Estados Unidos, nos quais foram
apresentadas sínteses de pesquisas empíricas sobre os saberes docen-
tes. Os saberes profissionais dos professores são então caracterizados
por Tardif como saberes temporais, plurais, heterogêneos, persona-
lizados, situados e, por fim, como saberes que carregam as marcas
do ser humano em conseqüência de o objeto do trabalho docente
ser constituído por seres humanos (idem, ibid., p. 13-18). Esses sa-
beres deveriam então, segundo Tardif, ocupar lugar central nos cur-
sos de formação de professores, o que exigiria não só uma mudança
curricular nesses cursos como também uma verdadeira reforma uni-
versitária, de maneira que a carreira acadêmica concedesse menos
importância ao trabalho de pesquisa no campo das disciplinas aca-
dêmicas e concedesse mais importância ao trabalho de investigação
dos saberes profissionais e de sua utilização nos cursos de formação
de professores. Os cursos deveriam abandonar o modelo “aplica-
cionista”, abandonar a “lógica disciplinar” e passar a trabalhar “se-
gundo uma lógica profissional centrada no estudo das tarefas e rea-
lidades do trabalho dos professores” (idem, p. 19). A conseqüência
desse tipo de proposta para a discussão sobre os cursos de formação
de professores não poderia ser diferente:

(...) é preciso quebrar a lógica disciplinar universitária nos cursos de forma-


ção profissional. Não estamos dizendo que é preciso fazer as disciplinas da
formação de professores desaparecerem; dizemos somente que é preciso fazer
com que contribuam de outras maneira e tirar delas, onde ainda existe, o
controle total na organização dos cursos. Essa tarefa é difícil porque exige
uma transformação nos modelos de carreira na universidade, com todos os
prestígios simbólicos e materiais que os justificam. (...) A lógica da socializa-
ção profissional (...) deve progressivamente excluir a lógica disciplinar como fun-
damento da formação. (Idem, ibid., p. 21; grifo meu)

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Diante dessa conclusão coerente com o artigo em seu todo,
sou levado a afirmar que a discussão, entre os educadores brasilei-
ros, sobre a instituição mais adequada para a formação de professo-
res (se a universidade ou se outro tipo de instituição) deveria ser
reformulada, pois, mesmo mantendo-se a formação de professores
no âmbito da universidade, a qualidade dessa formação poderá não
ser assegurada. Em outras palavras, o que estou querendo dizer é
que Tardif propõe uma mudança estrutural não só nos cursos de for-
mação como também na carreira universitária, de maneira que se re-
leguem a um segundo plano os conhecimentos acadêmicos, cientí-
ficos, teóricos. Creio ser fácil perceber que isso tem implicações até
mesmo em termos do número de vagas existentes nas universidades
para contratação de docentes e pesquisadores no campo dos chama-
dos fundamentos da educação. Isso para não falar da questão dos
critérios adotados para análise dos pedidos de financiamento à pes-
quisa educacional (na ótica de Tardif, o que seria considerado uma
boa pesquisa em Filosofia da Educação, por exemplo?). E para que
não se diga que estou exagerando na constatação das conseqüências
da proposta de Tardif, vejamos como ele mesmo encerra seu artigo,
defendendo a necessidade de os professores universitários investiga-
rem suas próprias práticas de ensino:

Na universidade, temos com muita freqüência a ilusão de que não temos


práticas de ensino, que nós mesmos não somos profissionais do ensino ou
que nossas práticas de ensino não constituem objetos legítimos para a pes-
quisa. Esse erro faz que evitemos os questionamentos sobre os fundamen-
tos de nossas práticas pedagógicas, em particular nossos próprios postula-
dos implícitos sobre a natureza dos saberes relativos ao ensino. Não
problematizada, nossa própria relação com os saberes adquire, com o pas-
sar do tempo, a opacidade de um véu que turva nossa visão e restringe nos-
sas capacidades de reação. Enfim, essa ilusão faz com que exista um abis-
mo enorme entre nossas “teorias professadas” e nossas “teorias praticadas”:
elaboramos teorias do ensino e da aprendizagem que só são boas para os
outros, para nossos alunos e para os professores. Então, se elas só são boas
para os outros e não para nós mesmos, talvez isso seja a prova de que essas
teorias não valem nada do ponto de vista da ação profissional, a começar pela
nossa. (Idem, ibid., p. 21; grifo meu)
Concordo que devamos fazer constantemente a crítica aos fun-
damentos de nosso próprio trabalho como professores universitários.
Concordo também que não estamos imunes a contradições entre o
que professamos e o que fazemos. Mas meu questionamento dirige-se
a outro ponto: o argumento de Tardif visa justamente a solapar a va-

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lorização do conhecimento teórico, acadêmico, científico, visa a mos-
trar que esse tipo de conhecimento “não vale nada do ponto de vista
da ação profissional”. Note o leitor que Tardif não apresentou a con-
tradição entre “teorias professadas” e “teorias praticadas” como uma
exceção, mas sim como a regra. Em conseqüência, a superação desse
problema não estaria na busca de coerência com a teoria professada,
mas sim no seu abandono e no reconhecimento de que a verdadeira
teoria é aquela que está implícita na prática.
Ao longo de todo o artigo os argumentos de Tardif vão se so-
mando e encadeando-se a fim de conduzir à conclusão sobre a
irrelevância ou até mesmo sobre o caráter prejudicial do saber cientí-
fico/teórico/acadêmico tanto na formação de professores como na pes-
quisa educacional. Não posso deixar de identificar nessa proposição
de Tardif aquele movimento caracterizado por Maria Célia Marcondes
de Moraes como o “recuo da teoria” na pesquisa em educação:

A celebração do “fim da teoria” – movimento que prioriza a eficiência e a


construção de um terreno consensual que toma por base a experiência ime-
diata ou o conceito corrente de “prática reflexiva” – se faz acompanhar da
promessa de uma utopia alimentada por um indigesto pragmatismo (...).
Em tal utopia pragmatista, basta o “saber fazer” e a teoria é considerada per-
da de tempo ou especulação metafísica e, quando não, restrita a uma orató-
ria persuasiva e fragmentária, presa à sua própria estrutura discursiva.
(Moraes, 2001, p. 3)
Outro autor que também situa a questão epistemológica no
centro do debate sobre formação de professores é Philippe
Perrenoud. Em um livro recente, intitulado A prática reflexiva no
ofício de professor: profissionalização e razão pedagógica, Perrenoud
(2002) afirma que embora a universidade, por desenvolver pesqui-
sas, pareça ser a instituição adequada para a formação do professor
reflexivo, na realidade a formação desse tipo de profissional não
decorre espontaneamente da existência de um ambiente de pes-
quisa, pois a mesma não está dirigida à formação profissional. Se a
universidade deseja formar professores reflexivos então ela deveria,
segundo Perrenoud (2002, p. 89-105), abandonar quatro ilusões
sobre “o estado dos saberes teóricos e sua pertinência para fundar
uma prática profissional”: a “ilusão cientificista”, a “ilusão disci-
plinar”, a “ilusão da objetividade” e a “ilusão metodológica”. A ca-
racterização que Perrenoud faz dessas quatro ilusões aponta, no
fundamental, para a mesma direção que o texto de Tardif, isto é,

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para a desvalorização do papel do conhecimento científico/teóri-
co/acadêmico na formação do professor. O tema do papel da uni-
versidade e dos conhecimentos teóricos na formação de professo-
res já fora tratado por Perrenoud na conferência de abertura da
XXII Reunião Anual da ANPE d ocorrida em 1999, conferência essa
depois publicada como artigo na Revista Brasileira de Educação,
com o título “Formar professores em contextos sociais em mudan-
ça: prática reflexiva e participação crítica” (Perrenoud, 1999). Nes-
se artigo se lê o seguinte:

A universidade parece ser o lugar, por excelência, da reflexão e do pensamen-


to crítico. Pode-se então ser tentado a dizer que formar os professores segun-
do esse paradigma é uma tarefa “natural” das universidades. Todavia, salvo
em medicina, engenharia e administração, a universidade não está organiza-
da para desenvolver competências profissionais de alto nível. Mesmo nesses
domínios, Tardif mostra que os saberes disciplinares superam o desenvolvi-
mento de competências. Isso levou algumas faculdades de medicina a ope-
rarem uma revolução, introduzindo a aprendizagem por problemas, que co-
loca a abordagem teórica a serviço da resolução do problema clínico desde o
primeiro ano. (Idem, ibid., p. 14)
Quando essa conferência foi proferida por Perrenoud, algumas
pessoas ficaram chocadas com o fato de esse autor questionar que a
universidade seja o melhor local para a formação de professores. Na-
quela ocasião fiquei um tanto surpreso com a reação dessas pessoas
pois o questionamento formulado por Perrenoud é uma conseqüên-
cia lógica dos pressupostos epistemológicos que dão sustentação aos
estudos por ele realizados. Tais pressupostos já estavam bastante cla-
ros na coletânea de textos desse autor intitulada Práticas sociológi-
cas, profissão docente e formação: perspectivas sociológicas (Perrenoud,
1997), cuja primeira edição em português foi lançada em 1993 com
apresentação de António Nóvoa. Além dos pressupostos propria-
mente epistemológicos de Perrenoud, também seus pressupostos pe-
dagógicos endereçam para a desvalorização do saber escolar. Esse au-
tor nunca escondeu seu vínculo ao ideário escolanovista, isto é, às
chamadas “pedagogias ativas” (idem, p. 71-90). Em meu artigo
intitulado “As pedagogias do aprender a aprender e algumas ilusões
da assim chamada sociedade do conhecimento” (Duarte, 2001a),
mostrei que o próprio Perrenoud estabelece uma linha de continui-
dade entre as pedagogias ativas, o construtivismo e a pedagogia das
competências. Nesta perspectiva, defende que os professores trans-
formem-se em formadores:

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Em última instância, seja qual for seu público, desejamos que todos os pro-
fessores também se tornem formadores, tanto no caso de crianças quanto no
de estudantes mais velhos. Lutar contra a exclusão, contra o fracasso escolar,
contra a violência; desenvolver a cidadania, a autonomia, criar uma relação
crítica com o saber: tudo isso exige que os professores de todos os níveis
transformem-se em formadores. Sem dúvida, esta é a razão fundamental de
privilegiar a postura reflexiva. (Perrenoud, 2002, p. 186-187)
Perrenoud apresenta, num quadro, as características que distin-
guiriam o professor do formador. Mencionarei algumas delas: o pro-
fessor dá prioridade aos conhecimentos, já o formador dá prioridade
às competências; o professor concebe a aprendizagem como assimila-
ção de conhecimentos, já o formador concebe a aprendizagem como
transformação da pessoa; o professor adota uma postura de sábio que
compartilha seu saber, já o formador adota uma postura de treinador
que orienta com firmeza uma autoformação; o professor parte de um
programa, ao passo que o formador parte das necessidades, práticas e
problemas encontrados (Perrenoud, 2002, p. 187). Todas essas dife-
renças entre o professor e o formador coadunam perfeitamente com o
que caracterizei como sendo os quatro princípios valorativos contidos
no lema “aprender a aprender” (Duarte, 2001b e 2001a), o que equi-
vale a afirmar que há uma indissociável ligação, nos trabalhos de
Perrenoud, entre as pedagogias do aprender a aprender (escola nova,
construtivismo) e a formação do professor reflexivo. Como mostrarei
mais adiante neste artigo, tal relação também está presente nos tra-
balhos de Donald Schön.
Essa relação entre os estudos no campo da formação de profes-
sores e a descaracterização do professor, o qual deixa de ser visto como
agente da transmissão do saber escolar, também pode ser identificada
no contexto educacional brasileiro. Isabel Alice Lelis (2001) aborda
essa questão em artigo publicado na revista Educação & Sociedade,
intitulado “Do ensino de conteúdos aos saberes do professor: mudan-
ça de idioma pedagógico?”. Já no resumo do artigo essa questão é
explicitada de forma bastante clara:

Este trabalho tem o objetivo de decifrar algumas das tendências da produ-


ção intelectual sobre formação de professores nos últimos vinte anos no
Brasil, chamando a atenção para os “idiomas pedagógicos” que tiveram im-
pacto entre os educadores. No mapeamento da literatura especializada, al-
guns autores/textos foram tomados como exemplares por representarem ló-
gicas de pensamento marcantes a respeito do papel da teoria e da prática
na formação docente. Do balanço efetuado, o que se verificou foi a ruptu-

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ra de um idioma pedagógico, passando-se de uma pedagogia marcadamen-
te conteudista sob a hegemonia de uma razão teórica para uma perspecti-
va que aponta para uma epistemologia da prática.
O adjetivo “conteudista” tem uma clara conotação negativa, a
qual é confirmada pela análise formulada ao longo do texto. Lelis
considera um avanço a ruptura com uma pedagogia que valorizava a
transmissão dos conteúdos pela escola e valorizava também o conhe-
cimento teórico na formação de professores. Em substituição a essa
pedagogia difundida entre os educadores brasileiros na década de
80 do século XX, teria ocorrido, na década de 90, uma mudança
de foco, em grande parte influenciada pela ampla difusão dos tra-
balhos de autores estrangeiros no campo da formação de professo-
res. Segundo Lelis:

(...) sob ângulos diversos, esses autores ajudaram a pensar a constituição dos
saberes dos professores, em uma pauta diversa de uma pedagogia centrada
no saber elaborado ao refletirem sobre os limites da formação prévia e, nela,
dos conhecimentos acadêmicos na constituição do saber docente; ao afirma-
rem a centralidade da instituição escolar enquanto lócus de formação do ma-
gistério; ao revelarem a força da experiência escolar passada enquanto aluno
no desenvolvimento da prática pedagógica; e, finalmente, ao assinalarem o
caráter de improvisação a marcar o trabalho docente. (Lelis, 2001, p. 53-54)
Todo o texto de Lelis é dirigido para a análise da questão
epistemológica e pedagógica que estaria no centro dessa mudança,
isto é, o distanciamento com relação a uma “pedagogia centrada no
saber elaborado”.
Os estudos que tenho realizado sobre as relações entre o
construtivismo e outros ideários pedagógicos1 me levam a afirmar que
Lelis está correta quando afirma que no Brasil os estudos sobre for-
mação de professores realizados na década de 1990 teriam significa-
do uma mudança de enfoque pedagógico na direção de um distancia-
mento com relação a uma pedagogia centrada no saber escolar.
Entretanto, ao contrário de Lelis, que considera esse processo um
avanço, eu o considero um retrocesso. Além disso é também diferen-
te a maneira como analiso as relações entre tal processo de mudança
das referências predominantes no campo da formação de professores
e o contexto político-ideológico da década de 1990. Neste sentido
destacarei duas questões ausentes do trabalho de Lelis. A primeira
questão é a das relações entre a difusão dessa linha de estudos sobre a
formação de professores e o boom construtivista. Não foi obra do aca-

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so o fato de que o construtivismo e a pedagogia do professor reflexivo
tenham sido difundidos no Brasil quase que simultaneamente. Esses
dois ideários fazem parte de um universo pedagógico ao qual venho
chamando de “as pedagogias do aprender a aprender”. Neste sentido,
do ponto de vista pedagógico, os estudos na linha do professor refle-
xivo surgiram na América do Norte e na Europa quase que como uma
ramificação natural do tronco comum constituído pelo ideário
escolanovista. A diferença reside em que o escolanovismo clássico e o
construtivismo concentram seu foco de análise na aprendizagem (ou
construção do conhecimento) realizada pelo aluno ao passo que os es-
tudos sobre o professor reflexivo concentram seu foco de análise na
aprendizagem (ou construção do conhecimento) realizada pelo pro-
fessor. A segunda questão ausente do trabalho de Lelis é a das rela-
ções entre a epistemologia da prática e o universo ideológico
neoliberal e pós-moderno. A disseminação, no Brasil, dos estudos na
linha da “epistemologia da prática” e do “professor reflexivo”, na dé-
cada de 1990, foi impulsionada pela forte difusão da epistemologia
pós-moderna e do pragmatismo neoliberal, com os quais a epistemo-
logia da prática guarda inequívocas relações.2 A própria Lelis (2001,
p. 49) tangencia esse tema quando dá a entender que “o fim do
leninismo e a derrocada da União Soviética entre outros acontecimen-
tos” teriam produzido um questionamento epistemológico com rela-
ção à filosofia da práxis, isto é, o marxismo, questionamento esse que
teria problematizado a “supervalorização da teoria”, o “poder da teo-
ria na explicação e transformação do real” (idem, ibid.). A problema-
tização do poder da teoria na explicação do real seria decorrente da
constatação da “infinitude do real e dos processos de expansão e revi-
são do conhecimento” (idem, ibid.). Não há espaço neste artigo para
me aprofundar nessa questão, mas devo assinalar que nesse momento
de seu texto Lelis se aproxima dos questionamentos epistemológicos
que Hayek (um dos grandes intelectuais do neoliberalismo) dirigiu
ao marxismo. Não estou afirmando, de forma nenhuma, que Lelis
pretenda alinhar-se com as idéias neoliberais. Em outro momento de
seu texto ela se mostra preocupada com o fato de que “vivemos num
momento de clara hegemonia do projeto neoliberal no campo da edu-
cação” (idem, ibid., p. 54). O que estou procurando mostrar é que
inadvertidamente a autora se aproxima, em seus questionamentos
epistemológicos, dos mesmos argumentos usados por Hayek. Por
exemplo, a questão da “infinitude do real” é utilizada por Hayek para
negar a possibilidade do conhecimento numa perspectiva de totali-

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dade. O filósofo Karel Kosik (1976, p. 41), ao tratar da concepção
marxista de “totalidade concreta”, mostra que Hayek estava equivoca-
do quando criticou a epistemologia marxista, pois Hayek afirmou ser
impossível o conhecimento na perspectiva da totalidade em conseqü-
ência da impossibilidade de se conhecerem todos os fatos que com-
põem o real, isto é, em conseqüência daquilo que Lelis chamou de
“infinitude do real”. Kosik mostra que o equívoco desse argumento
reside justamente em que a perspectiva marxista da totalidade não
significa a pretensão de esgotar todos os fatos:

Existe uma diferença fundamental entre a opinião dos que consideram a re-
alidade como totalidade concreta, isto é, como um todo estruturado em cur-
so de desenvolvimento e de autocriação, e a posição dos que afirmam que o
conhecimento humano pode ou não atingir a “totalidade” dos aspectos e
dos fatos, isto é, das propriedades das coisas, das relações e dos processos da
realidade. Como o conhecimento humano não pode jamais, por princípio,
abranger todos os fatos – pois sempre é possível acrescentar fatos e aspectos
ulteriores – a tese da concreticidade ou da totalidade é considerada uma mís-
tica. Na realidade, totalidade não significa todos os fatos. Totalidade signifi-
ca: realidade como um todo estruturado, dialético, no qual ou do qual um
fato qualquer (classe de fatos, conjunto de fatos) pode vir a ser racionalmen-
te compreendido. (Idem, p. 35)

Aliás, a epistemologia neoliberal e a epistemologia pós-moder-


na convergem na abordagem que condena a perspectiva marxista de
totalidade, ainda que o façam por distintas razões teóricas e práticas.
Os estudos no campo da “epistemologia da prática” e do “professor
reflexivo” estão fortemente impregnados dos temas e das abordagens
próprios do universo ideológico neoliberal e pós-moderno. Isso fica
muito evidente, por exemplo, na leitura dos textos reunidos por
António Nóvoa na coletânea intitulada Os professores e a sua formação
(Nóvoa, 1997). O artigo de Thomas S. Popkewitz, nessa coletânea,
aborda a relação entre profissionalização e formação de professores,
sendo explícito na defesa da necessidade de se passar, na análise da
questão da profissionalização do trabalho do professor, de uma “tra-
dição iluminista” a uma “tradição pós-moderna” (Popkewitz, 1997,
p. 46). Coerente com sua linha pós-estruturalista foucaultiana de aná-
lise, Popkewitz acrescenta um certo tom de ceticismo às análises da
profissionalização, da formação de professores e dos currículos, apon-
tando para as relações de poder que penetrariam a educação de forma
capilar, na linha da microfísica do poder. Também dentro de uma
linha pós-moderna de análise mas menos preocupado com as relações

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de poder, Angel Pérez Gómez, em artigo intitulado “O pensamento
prático do professor”, publicado nessa mesma coletânea, deixa claras
as relações entre, por um lado, o espírito anticientífico e subjetivista
da epistemologia pós-moderna e, por outro lado, o espírito pragma-
tista típico da ideologia neoliberal, isto é, a ideologia do capitalismo
contemporâneo:

Na vida profissional, o professor defronta-se com múltiplas situações para as


quais não encontra respostas pré-elaboradas e que não são suscetíveis de ser
analisadas pelo processo clássico de investigação científica. Na prática profis-
sional, o processo de diálogo com a situação deixa transparecer aspectos ocul-
tos da realidade divergente e cria novos marcos de referência, novas formas e
perspectivas de perceber e reagir. A criação e construção de uma nova reali-
dade obrigam a ir além das regras, fatos, teorias e procedimentos conhecidos
e disponíveis: “Na base dessa perspectiva, que confirma o processo de refle-
xão na ação do profissional, encontra-se uma concepção construtivista da re-
alidade com que ele se defronta” (Schön). Não há realidades objetivas passí-
veis de serem conhecidas; as realidades criam-se e constroem-se no intercâm-
bio psicossocial da sala de aula. As percepções, apreciações, juízos e credos do
professor são um fator decisivo na orientação desse processo de construção
da realidade educativa. (Pérez Gómez, 1997, p. 110)
A afirmação de que “não há realidades objetivas passíveis de
serem conhecidas” é tipicamente pós-moderna. Por outro lado, o
pragmatismo presente nos argumentos de Pérez Gómez é tipicamen-
te neoliberal. Na verdade não é tão fácil quanto algumas pessoas
pensam separar os ideários pedagógicos afinados com a ideologia
neoliberal daqueles ideários afinados com ideologias pós-modernas
pretensamente “de esquerda”. Em meu livro Vigotski e o “aprender a
aprender”: crítica às apropriações neoliberais e pós-modernas da te-
oria vigotskiana (Duarte, 2001b) abordei essa questão no que se re-
fere às interpretações da psicologia de Vigotski, pautando-me na tese
de que pós-modernismo e neoliberalismo formam duas faces de um
mesmo universo ideológico, ainda que muitos autores pós-moder-
nos se considerem “de esquerda” e vejam a si mesmos como
opositores do neoliberalismo. Ambos, o pragmatismo neoliberal e o
ceticismo epistemológico pós-moderno, estão unidos na veneração
da subjetividade imersa no cotidiano alienado da sociedade capita-
lista contemporânea:

Instaurou-se a época cética e pragmática, dos textos e das interpretações que


não podem mais expressar ou, até mesmo, se aproximar da realidade, mas se
constituem em simples relatos ou narrativas que, presas das injunções de uma

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cultura, acabam por arrimar-se no contingente e na prática imediata – é o
que se pode denominar de metafísica do presente, ou como define Jameson,
uma história de presentes perpétuos (...). O ceticismo, todavia, não é apenas
epistemológico, mas também ético e político. E importa para nós tanto em
sua versão conservadora, enquanto peça retórica, consciente ou não, de ve-
neração ao mercado, como igualmente em sua versão “crítica” e “radical”. Na
verdade, esses momentos, conservador e crítico, com freqüência se super-
põem de tal modo que, muitas vezes, fica difícil identificá-los em sua con-
fluência. (Moraes, 2001, p. 4)

Nesse ambiente ideológico vão aos poucos se mostrando as afi-


nidades existentes entre vários tipos de abordagens educacionais. Por
exemplo, Joe L. Kincheloe (1997) no livro intitulado A formação do
professor como compromisso político: mapeando o pós-moderno, defen-
de uma determinada abordagem sobre a formação de professores, na
qual os estudos de autores como Schön e Zeichner são inseridos num
referencial que se nutre das contribuições do pós-modernismo de au-
tores como Lyotard, Foucault e Derrida; do multiculturalismo de
Peter Mclaren; da “pedagogia crítica” de Henry Giroux; do “constru-
tivismo crítico” de Catherine Fosnot e de vários outros autores. Todos
convergem, na abordagem defendida por Kincheloe (1997), para a
formação do professor como um profissional “pós-formal”.
Concluindo este item, esclareço que não foi minha intenção
apresentar aqui um inventário crítico exaustivo dos estudos contem-
porâneos no campo da formação de professores, mas apenas mostrar
que a desvalorização do conhecimento científico/teórico/acadêmico e
do conhecimento escolar nos estudos de Donald Schön não é um caso
isolado. Trata-se, isto sim, da tendência principal e dominante nesse
terreno dos estudos educacionais. Já é o momento, então, de passar à
análise das idéias de Donald Schön.

2. As concepções de conhecimento
tácito e conhecimento escolar em Donald Schön
Inicialmente preciso esclarecer por que não dispensarei especial
atenção à diferenciação feita por Schön entre “conhecer-na-ação” e “re-
flexão-na-ação”. No livro intitulado Educando o profissional reflexivo:
um novo design para o ensino e a aprendizagem, Schön (2000, p. 29-
36) diferencia o que ele chama de “conhecer-na-ação” e o que ele cha-
ma de “reflexão-na-ação”. O “conhecer-na-ação” é mais automático,
rotineiro, espontâneo, isto é, tácito. A “reflexão-na-ação” surgiria a

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partir de resultados inesperados e de surpresas produzidas pela ação.
Esse processo de “reflexão-na-ação” não seria tão espontâneo quanto o
“conhecer-na-ação”, teria “uma função crítica, questionando a estru-
tura de pressupostos do conhecer-na-ação” (idem, p. 33). Entretan-
to, Schön ressalta que “distinção entre os processos de reflexão-na-
ação e conhecer-na-ação pode ser sutil” (idem, p. 34) e assinala que
ambos podem dispensar sua formulação em palavras:

Assim como o conhecer-na-ação, a reflexão-na-ação é um processo que po-


demos desenvolver sem que precisemos dizer o que estamos fazendo.
Improvisadores habilidosos ficam, muitas vezes, sem palavras ou dão descri-
ções inadequadas quando se lhes pergunta o que fazem. É claro que, sermos
capazes de refletir-na-ação é diferente de sermos capazes de refletir sobre nos-
sa reflexão-na-ação, de modo a produzir uma boa descrição verbal dela. E é
ainda diferente de sermos capazes de refletir sobre a descrição resultante.
(Idem, p. 35)
Se a reflexão-na-ação não exige palavras, ela se enquadra na ca-
tegoria de conhecimento tácito. Para que um conhecimento deixe de
ser tácito ele precisa, antes de tudo, ser expresso por meio da lingua-
gem. Neste sentido, embora a reflexão-na-ação seja, para Schön, mais
consciente que o conhecer-na-ação, a distinção entre ambos no que
se refere ao grau de consciência não é tão significativa que impeça am-
bos de serem considerados tácitos. O próprio Schön (1987) afirma
que a “reflexão-na-ação é tácita e espontânea”.3 Por esta razão não da-
rei neste artigo uma atenção especial a essa distinção entre conhecer-
na-ação e reflexão-na-ação. Mais importante que isso é analisar a opo-
sição entre o conhecimento escolar e o conhecimento tácito.
Há uma relação estreita entre a pedagogia adotada por Schön e
os pressupostos epistemológicos de suas teses sobre a formação de
professores. Ele mesmo explicita essa relação, num texto intitulado
“Formar professores como profissionais reflexivos”:

(...) o que está a acontecer na educação reflete o que está a acontecer noutras
áreas: uma crise de confiança no conhecimento profissional, que despoleta a
busca de uma nova epistemologia da prática profissional. Na educação, esta
crise centra-se num conflito entre o saber escolar e a reflexão-na-ação dos pro-
fessores e alunos. Antes de me debruçar mais profundamente sobre esta idéia,
é preciso dizer que ela nada tem de novo. Muito daquilo que acabei de refe-
rir pode ser encontrado nas obras de escritores como Leon Tolstoi, John
Dewey, Alfred Schtz, Lev Vygotsky, Kurt Lewin, Jean Piaget, Ludwig
Wittgenstein e David Hawkins, todos pertencendo, se bem que de formas
diversas, a uma certa tradição do pensamento epistemológico e pedagógico.

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(...) O movimento crescente no sentido de uma prática reflexiva, cujas ori-
gens remontam a John Dewey, a Montessori, a Tolstoi, a Froebel, a
Pestalozzi, e mesmo ao Emílio de Rosseau, encontra-se no centro de um con-
flito epistemológico. (Schön, 1997, p. 80 e 91)
Esse conflito epistemológico entre o conhecimento escolar e a “re-
flexão-na-ação” (ou conhecimento tácito) é analisado por Schön tanto
no que diz respeito à formação do professor como no que diz respeito
às maneiras por meio das quais a escola trabalha com o conhecimento
que os alunos construiriam em seu cotidiano não-escolar.
Schön estabelece uma forte ligação entre o conhecimento táci-
to (conhecimento cotidiano) que o aluno traz para a sala de aula e o
conhecimento também tácito que o professor constrói ao dar atenção
aos processos de conhecimento e de pensamento de seus alunos por
meio da reflexão-na-ação. Schön, apoiando-se no filósofo Michael
Polanyi, afirma que o conhecimento tácito é:

espontâneo, intuitivo, experimental, conhecimento cotidiano, do tipo reve-


lado pela criança que faz um bom jogo de basquetebol, (...) ou que toca rit-
mos complicados no tambor, apesar de não saber fazer operações aritméticas
elementares. Tal como um aluno meu me dizia, falando de um seu aluno:
Ele sabe fazer trocos mas não sabe somar os números. Se o professor quiser fami-
liarizar-se com este tipo de saber, tem de lhe prestar atenção, ser curioso, ouvi-
lo, surpreender-se, e atuar como uma espécie de detetive que procura desco-
brir as razões que levam as crianças a dizer certas coisas. Esse tipo de profes-
sor se esforça por ir ao encontro do aluno e entender o seu próprio processo
de conhecimento, ajudando-o a articular o seu conhecimento-na-ação com
o saber escolar. Este tipo de ensino é uma forma de reflexão-na-ação que exi-
ge do professor uma capacidade de individualizar, isto é, de prestar atenção
a um aluno, mesmo numa turma de trinta, tendo a noção do seu grau de
compreensão e das suas dificuldades. (Idem, ibid., p. 82)
Pode parecer à primeira vista que, ao referir-se ao professor
que ajuda o aluno “a articular o seu conhecimento-na-ação com o
saber escolar”, Schön estaria valorizando o saber escolar. Isso
desautorizaria minha tese de que a pedagogia adotada por Schön
desvalorizaria o saber escolar. Mas essa conclusão de que Schön va-
lorizaria o saber escolar não se sustenta à luz de uma análise mais
cuidadosa da argumentação apresentada por Schön, especialmente
no que se refere à sua concepção do que seja o conhecimento esco-
lar. Convém, de passagem, esclarecer que utilizo neste artigo indis-
tintamente os termos “conhecimento escolar” e “saber escolar”, até
porque em Schön (1987) o termo utilizado é “school knowledge”.

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Para esse autor, a uma determinada abordagem do que seja o co-
nhecimento e o ato de conhecer corresponderia uma abordagem do
que seja a aprendizagem por parte do aluno e do que seja o ensino
por parte do professor. Neste, sentido Schön (1997, p. 81) contra-
põe “duas formas diferentes de considerar o conhecimento, a apren-
dizagem e o ensino”. A primeira abordagem analisada por Schön se-
ria aquela centrada na noção de saber escolar. Vejamos como ele
caracteriza o saber escolar:

Existe, primeiro que tudo, a noção de saber escolar, isto é, um tipo de co-
nhecimento que os professores são supostos possuir e transmitir aos alu-
nos. É uma visão dos saberes como fatos e teorias aceites, como proposi-
ções estabelecidas na seqüência de pesquisas. O saber escolar é tido como
certo, significando uma profunda e quase mística crença em respostas
exatas. É molecular, feito de peças isoladas, que podem ser combinadas
em sistemas cada vez mais elaborados de modo a formar um conhecimen-
to avançado. A progressão dos níveis mais elementares para os níveis mais
avançados é vista como um movimento das unidades básicas para a sua
combinação em estruturas complexas de conhecimento. (...) o saber es-
colar é categorial. Finalmente, existe a idéia muito importante de que o
conhecimento molecular, certo, factual e categorial, é também privilegia-
do. (Schön, 1997, p. 81-82)

Não é necessária muita argúcia para perceber o tom fortemen-


te negativo dessa caracterização do saber escolar. Compare o leitor
essa passagem com aquela anteriormente citada, extraída do texto
de Pérez Gómez, publicado na mesma coletânea que esse texto de
Schön. Num texto o autor espanhol critica a idéia de uma realida-
de objetiva que possa ser conhecida pela ciência, noutro texto o au-
tor norte-americano critica a idéia de que o saber escolar seja trans-
mitido ao aluno como “fatos e teorias aceites”. Em ambos ressalta o
relativismo e o subjetivismo típicos do espírito anticientífico pós-
moderno. Schön também critica o que considera ser o caráter
“molecular” do saber escolar, o qual seria constituído de “peças iso-
ladas”. Assim caracterizado o saber escolar, quem sairia em sua defe-
sa? Quem defenderia uma pedagogia na qual o professor é visto
como alguém que transmite aos seus alunos peças isoladas? O raci-
ocínio é bastante simples e imediato: se o saber escolar é assim
como o descreve Schön, então passemos a defender uma pedagogia
que não esteja baseada no saber escolar.
Como mostrei, Schön caracteriza o saber escolar como sendo
categorial. Como se sabe, um conhecimento categorial trabalha com

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estruturas lógicas classificatórias do tipo: uma rosa é uma flor, uma
flor é uma planta, uma planta é um ser vivo. Justamente no mo-
mento no qual Schön analisa o saber escolar como um saber
categorial, ele menciona uma pesquisa realizada pelo psicólogo so-
viético Alexander R. Luria:

Por outro lado, o saber escolar organiza-se em categorias. Como exemplo


consideremos o psicólogo russo Luria, que estudou o desenvolvimento
cognitivo em camponeses no momento da coletivização da agricultura.
Luria mostrava-lhes uma coleção de imagens de objetos e dizia: Associem as
coisas que têm a ver umas com as outras. Uma dessas coleções continha uma
serra, um martelo, um machado e um tronco. Quando Luria dizia Associ-
em as coisas que têm a ver umas com as outras, os camponeses afirmavam:
Bom, pode usar-se a serra para cortar a madeira para as fogueiras; pode usar-se
o machado para cortar a madeira para as fogueiras; por isso é possível associar
o tronco, o machado e a serra. Então Luria retorquiu-lhes: Eu tenho um ami-
go que diz que todos os utensílios estão associados. A resposta dos camponeses
foi pronta: O seu amigo deve ter muita lenha para fazer fogueiras!. Agrupar
objetos de acordo com os contextos situacionais é muito diferente do que
agrupá-los numa só categoria. Neste sentido, o saber escolar é categorial.
(Schön, 1997, p. 81)
Ao final deste texto voltarei a essa pesquisa de Luria para mos-
trar por que Donald Schön não a entendeu. Por enquanto devo pros-
seguir com o raciocínio de Schön. Para ele, haveria uma importante
conseqüência pedagógica dessa diferença psicológica entre “agrupar
objetos de acordo com seus contextos situacionais” e “agrupá-los numa
só categoria”. A primeira forma de agrupamento trabalharia com o
que Schön chama de “representações figurativas”, ao passo que a se-
gunda forma de agrupamento trabalharia com “representações for-
mais”. O professor reflexivo seria aquele que adota uma pedagogia não
pautada no saber escolar e concentra sua ação nas “representações fi-
gurativas” contidas no conhecimento-na-ação dos alunos (o conheci-
mento cotidiano, tácito):

Tipicamente, a reflexão-na-ação de um professor implica a questão impor-


tantíssima das representações múltiplas. Já mencionei o exemplo de Luria em
relação à lenha. (...) Todos estes exemplos ilustram a diferença entre o que eu
e Jeanne Bamberger designamos por representações “figurativas” e “formais”.
As figurativas implicam agrupamentos situacionais, contextualizados: as re-
lações que se estabelecem na maior proximidade possível das experiências co-
tidianas. As formais implicam referência fixas, numa palavra, o saber escolar.
Através da reflexão-na-ação, um professor poderá entender a compreensão
figurativa que um aluno traz para a escola, compreensão que está muitas ve-

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zes subjacente às suas confusões e mal-entendidos em relação ao saber esco-
lar. Quando um professor auxilia uma criança a coordenar as representações fi-
gurativas e formais, não deve considerar a passagem do figurativo para o formal
como um “progresso”. Pelo contrário, deve ajudar a criança a associar estas dife-
rentes estratégias de representação. (Idem, ibid., p. 83 e 85; grifo meu)
A ação pedagógica que fizesse a criança passar do conheci-
mento cotidiano e tácito ao conhecimento escolar não deveria,
portanto, ser considerada um progresso. Haveria apenas uma “co-
ordenação” ou uma “associação” de duas diferentes estratégias
representativas. Por essa razão é que Schön critica o caráter privi-
legiado que tradicionalmente tem sido atribuído ao saber escolar.
Assim como Schön entende não haver progresso na passagem do
saber cotidiano do aluno ao saber escolar, também não haveria
progresso na passagem do saber prático do professor ao saber ci-
entífico e filosófico sobre a educação. A formação de professores
deveria, ao invés de concentrar-se no domínio de teorias científi-
cas, voltar-se para o saber experiencial do professor.
Apesar de mencionar a “coordenação” ou a “associação” entre as
duas diferentes formas de representação, uma das quais constitui o
saber escolar, Schön, em todo o seu texto, não deixa dúvidas quanto à
sua visão negativa sobre o saber escolar. Ele chega mesmo a estabele-
cer uma ligação entre o que ele chama de sistema burocrático da es-
cola e o saber escolar:

O sistema burocrático e regulador da escola é construído em torno do saber


escolar. Uma iniciativa que ameace esta visão do conhecimento também
ameaça a escola. Quando um professor tenta ouvir os seus alunos e refletir-
na-ação sobre o que aprende, entra inevitavelmente em conflito com a bu-
rocracia da escola. (Idem, ibid., p. 87)
Ao mesmo tempo, o saber escolar estaria também, segundo
Schön, na base das reformas educacionais autoritárias que não ouvem
as escolas e os professores, da mesma forma como as escolas não ou-
vem os seus alunos:

A estratégia de ensino baseada no saber escolar é análoga à estratégia e con-


cepção do conhecimento implícitas na vaga atual de reformas educativas.
Uma mensagem é difundida do centro para a periferia através de uma lógi-
ca de comunicação e de controle. O conhecimento emanado do centro é im-
posto na periferia, não se admitindo a sua reelaboração. De fato, quando o
governo procura reformar a educação, tenta educar as escolas, do mesmo
modo que estas procuram educar as crianças. (Idem, ibid., p. 82)

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Nessa linha, seria então necessário mudar: 1) a concepção de
conhecimento, passando da valorização do conhecimento escolar à va-
lorização do conhecimento tácito, cotidiano, não-científico; 2) a pe-
dagogia, passando de uma pedagogia centrada na transmissão do sa-
ber escolar para uma pedagogia centrada na atenção aos processos
pelos quais os alunos constroem seu conhecimento; 3) a formação de
professores, passando de uma formação centrada no saber teórico, ci-
entífico, acadêmico para uma formação centrada na prática reflexiva,
centrada na reflexão-na-ação. Nesta perspectiva, o lema “aprender fa-
zendo” da pedagogia escolanovista de inspiração deweyana deveria ser
adotado tanto em relação à educação das crianças e dos adolescentes
como no que diz respeito à formação profissional, incluída a forma-
ção de professores:

O que significa, então, formar um professor para que ele se torne mais ca-
paz de refletir na e sobre a sua prática? Creio que temos mais a aprender
com as tradições da educação artística que com os currículos profissionais
normativos do sistema universitário de vocação profissionalizante. As ins-
tituições de formação artística (os ateliers de pintura, escultura e design, os
conservatórios de música e de dança) têm longas tradições de formação
profissional. Mas é evidente que muitas dessas instituições ou não estão
dentro da Universidade ou vivem desconfortavelmente no seu seio. E isso
por uma boa razão: baseiam-se numa concepção do saber escolar diferente
da epistemologia subjacente à Universidade. As tradições “desviantes” da
formação artística, bem como do treino físico e da aprendizagem profissio-
nal, contêm, no seu melhor, as características de um practicum reflexivo.
Implicam um tipo de aprender fazendo, em que os alunos começam a pra-
ticar, juntamente com os que estão em idêntica situação, mesmo antes de
compreenderem racionalmente o que estão a fazer. Nos ateliers de design
arquitetônico, por exemplo, os alunos começam por desenhar antes de sa-
berem o que é design. (idem, ibid., p. 88-89)
A epistemologia e a pedagogia adotadas por Schön levam, por-
tanto, assim como acontece com outros autores no campo da forma-
ção de professores, ao tema da alegada inadequação da universidade,
tal como ela se encontra estruturada, no que diz respeito à tarefa de
formar profissionais, entre eles os professores. Reafirmo o que já afir-
mei acima: de pouco ou nada servirá a defesa da tese de que formação
de professores no Brasil deva ser feita nas universidades, se não for
desenvolvida uma análise crítica da desvalorização do conhecimento
escolar, científico, teórico, contida nesse ideário que se tornou domi-
nante no campo da didática e da formação de professores, isto é, esse
ideário representado por autores como Schön, Tardif, Perrenoud,

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Zeichner, Nóvoa e outros. De pouco ou nada servirá mantermos a for-
mação de professores nas universidades se o conteúdo dessa formação
for maciçamente reduzido ao exercício de uma reflexão sobre os sabe-
res profissionais, de caráter tácito, pessoal, particularizado, subjetivo
etc. De pouco ou nada adiantará defendermos a necessidade de os for-
madores de professores serem pesquisadores em educação, se as pes-
quisas em educação se renderem ao “recuo da teoria”. Em um texto
que apresentei no Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensi-
no ( ENDIPE ), realizado em 1996 na Universidade Federal de Santa
Catarina, e que foi publicado em 1998 na revista Cadernos CEDES com
o título “Concepções afirmativas e negativas sobre o ato de ensinar”
(Duarte, 1998), afirmei que o escolanovismo e o construtivismo seri-
am concepções negativas sobre o ato de ensinar. Agora estendo a mes-
ma afirmação aos estudos na linha da “epistemologia da prática”, do
“professor reflexivo” e da “pedagogia das competências”, pois esses es-
tudos negam duplamente o ato de ensinar, ou seja, a transmissão do
conhecimento escolar: negam que essa seja a tarefa do professor e ne-
gam que essa seja a tarefa dos formadores de professores.
Para encerrar, passarei agora a uma rápida explicação de por que
afirmei no título deste artigo que Donald Schön não entendeu Luria.

3. Por que Donald Schön não entendeu Luria


Como já mostrei acima, Donald Schön, em certo momento de
seu texto, cita uma pesquisa de Luria, objetivando exemplificar a
contraposição entre o saber tácito (cotidiano) e o saber escolar. Schön
cita Luria como se a pesquisa realizada por este desse apoio à tese de-
fendida por aquele, isto é, a tese de que o conhecimento escolar, por
sua natureza formal e categorial, ficaria aquém do pensamento coti-
diano, ou melhor, do conhecimento tácito, o qual estaria em melho-
res condições para lidar com a riqueza e a complexidade das situações
práticas. Como se pode ver, Schön defende que a escola deve deslocar
seu foco de atenção do conhecimento escolar para o conhecimento tá-
cito (cotidiano), deve deixar de considerar o saber escolar superior ao
saber cotidiano e deve valorizar as formas de percepção e pensamento
próprias da prática cotidiana. Esse tipo de educação escolar é que de-
veria, segundo Schön, constituir o fundamento da formação do pro-
fessor reflexivo. É por esta razão que o saber escolar (o saber acadêmi-
co, teórico, científico) também deveria deixar de ser o fundamento
dos cursos de formação de professores.

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Acontece que Luria (1988 e 1990), ao relatar a pesquisa que
planejou juntamente com Vigotski,4 é bastante explícito quanto à vi-
são que tinha da educação escolar e de seu papel na superação das
limitações próprias do pensamento cotidiano. Essa superação decor-
reria, entre outras coisas, justamente do caráter categorial do saber es-
colar. Na pesquisa realizada por Luria e sua equipe, foram realizados
vários tipos de “entrevistas clínicas” com pessoas em diferentes níveis
de acesso ao conhecimento escolar e vivendo em diferentes realidades
sociais. Foram entrevistadas desde pessoas totalmente analfabetas que
viviam e trabalhavam na zona rural, em uma situação de grande iso-
lamento, até pessoas que já tinham um certo grau de escolarização e
participavam de formas mais socializadas de trabalho. Para explicar
melhor o tipo de pressuposto psicológico com o qual essa pesquisa
trabalhava, Luria menciona pesquisas anteriormente realizadas por
Vigotski, nas quais se mostrou que, diferentemente das crianças que
agrupam objetos de maneira gráfico-funcional (relacionando os
objetos a uma situação prática do cotidiano), os adolescentes agru-
pam os objetos de maneira categorial, isto é, taxionômica, como, por
exemplo, “uma rosa é uma flor, uma flor é uma planta, uma planta é
parte do mundo orgânico” (Luria, 1988, p. 48). Neste sentido, Luria
afirmou o seguinte com relação aos sujeitos de sua pesquisa:

Uma vez que toda atividade é, inicialmente, fixada nas operações gráficas e prá-
ticas, acreditamos que o desenvolvimento do pensamento conceitual, ta-
xionômico, articula-se com as operações teóricas que uma criança aprende a
executar na escola. Se o desenvolvimento do pensamento taxionômico depen-
de da escolaridade formal, nós então esperaríamos ver formas taxionômicas de
abstração e generalização apenas naqueles sujeitos adultos que estiveram expos-
tos a algum tipo de escolaridade formal. Uma vez que grande parte dos sujei-
tos de nossas pesquisas ou não tinham freqüentado a escola ou o fizeram du-
rante um curto período, estávamos curiosos quanto ao princípio que aplicari-
am para agrupar objetos encontrados em sua vida diária. (Idem, ibid.)
Quando Donald Schön citou a pesquisa de Luria, mencionou jus-
tamente o caso de um camponês analfabeto que se recusou a excluir a
tora do grupo formado pelas ferramentas, isto é, uma serra, um macha-
do e um martelo. A resposta dada por esse camponês, de que a tora só
poderia ser excluída do grupo por alguém que tivesse bastante lenha,
mostra que esse sujeito da pesquisa realizada por Luria apresentava um
raciocínio que trabalhava com agrupamentos gráfico-funcionais e não
com o pensamento categorial, taxionômico. Luria (idem, p. 50) diz que
“esta tendência em contar com operações usadas na vida prática foi o

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fator controlador no caso de pessoas analfabetas e que não tinham rece-
bido qualquer educação” (educação escolar). Os sujeitos da pesquisa que
haviam alcançado um certo grau de escolarização apresentavam um pen-
samento não mais dominado pelo agrupamento gráfico-funcional, mas
sim um pensamento capaz de trabalhar de forma categorial:

A maior parte dos sujeitos classificou os objetos não de acordo com princípi-
os verbais e lógicos, mas de acordo com esquemas práticos. Entretanto, esse
pensamento concreto não é inato, nem genericamente determinado. Resulta
do analfabetismo e dos tipos rudimentares de atividade predominantes na
experiência cotidiana desses sujeitos. Quando muda o padrão de vida e se
ampliam as dimensões da própria experiência, quando eles aprendem a ler e
a escrever, a ser parte de uma cultura mais avançada, esta maior complexida-
de de sua atividade estimula novas idéias. Tais modificações, por sua vez, oca-
sionam uma reorganização radical de seus hábitos de pensamento, de modo
que eles aprendem a usar e a compreender o valor de procedimentos teóri-
cos que anteriormente pareciam irrelevantes. (Luria, 1990, p. 106-107)
Então a pergunta é: como Luria avaliava o fato de que o contexto
social da vida das pessoas possa determinar que o pensamento se limite
a operar de forma presa às situações cotidianas? Eis a resposta:

Se as pessoas agrupam os objetos e definem palavras com base em experiên-


cias práticas, poder-se-ia esperar que a conclusão que tiram de uma premissa
dada em um problema lógico dependeria também de sua experiência práti-
ca imediata. Isso dificultaria, e talvez até tornasse impossível, a aquisição de
um novo conhecimento, de maneira discursiva e lógico-verbal. Tal mudança
representaria a transição da consciência sensível para a racional, fenômeno que
os autores marxistas clássicos consideram um dos mais importantes da história hu-
mana. (Luria, 1988, p. 52-53; grifo meu)
Luria entendia, portanto, que pensamento abstrato, teórico,
categorial, o qual se desenvolveria a partir da educação escolar, seria
superior ao pensamento gráfico-funcional:

O pensamento conceitual envolve uma enorme expansão das formas resul-


tantes da atividade cognitiva. Uma pessoa capaz de pensamento abstrato re-
flete o mundo externo mais profunda e completamente e chega a conclusões
e inferências a respeito do fenômeno percebido, tomando por base não só a
sua experiência pessoal, mas também os esquemas de pensamento lógico que
objetivamente se formam em um estágio avançado do desenvolvimento da
atividade cognitiva. (Luria, 1990, p. 135)
Quão longe estão essas idéias defendidas por Luria daquelas de-
fendidas por Schön! Quão opostas são as concepções de Schön e de

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Luria no que diz respeito ao valor do saber escolar, do saber teórico,
abstrato, racional! Quão opostos são pressupostos epistemológicos de
Donald Schön com relação aos pressupostos epistemológicos marxis-
tas de Luria e Vigotski! E aqui chegamos à explicação de por que
Donald Schön não entendeu Luria, por que o autor norte-americano
não se deu conta de que o psicólogo soviético defendia exatamente
uma posição oposta à sua. A resposta está no fato de que Schön ex-
traiu da pesquisa de Luria um exemplo, sem contextualizar esse exem-
plo no conjunto dos pressupostos teórico-filosóficos da pesquisa rea-
lizada por Luria. Os pressupostos epistemológicos de Schön estão
enraizados no pragmatismo de John Dewey, diferentemente dos pres-
supostos epistemológicos da pesquisa de Luria e Vigotski, os quais es-
tão enraizados no marxismo. E, como mostrou George Novack
(1978), em seu livro Pragmatism versus Marxism, há um conflito in-
superável entre essas duas correntes filosóficas. Não se dando conta
desse conflito, Schön não se deu conta da utilização indevida que fez
da pesquisa de Luria.
Concluindo este artigo, esclareço que, ao chamar a atenção para
o equívoco de Schön, meu intuito não é o de desqualificar esse autor,
mas sim o de alertar para a necessidade de análises rigorosas dos fun-
damentos filosóficos dos autores que vêm sendo largamente adotados
pela intelectualidade da educação brasileira. Já é tempo de reagirmos
ao “recuo da teoria”, de unirmos os esforços de todos os que não se
resignaram perante a passageira hegemonia do ceticismo pós-moder-
no e do pragmatismo neoliberal.

Recebido em dezembro de 2002 e aprovado em abril de 2003.

Notas
1. Contei com apoio do CNP q, durante o período de agosto de 1998 a julho de 2002, para
desenvolvimento de pesquisa intitulada “O construtivismo: suas muitas faces, suas
filiações e suas interfaces com outros modismos”.
2. Sobre as aproximações entre as políticas neoliberais no campo da formação de professores
e os estudos sobre professor reflexivo, vide o texto de Alessandra Arce (2001), publicado
no mesmo número da revista Educação & Sociedade em que foi publicado o citado artigo
de Isabel Alice Lelis.
3. “This reflection-in-action is tacit and spontaneous and often delivered without taking
thought, and is not a particularly intellectual activity” (Schön, 1987).
4. Vigotski não pôde realizar com Luria o trabalho de campo, pela fragilidade de sua condi-
ção física em conseqüência da tuberculose que o acometeu.

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