Os Sonhos - Via Régia para o Inconsciente

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Os sonhos: via régia para o inconsciente

Freud quis estender sua descoberta do inconsciente de modo que ela não se restringisse
ao campo da patologia. Essa amplitude se revelou em três obras fundamentais,
“canônicas em matéria de inconsciente”, segundo Lacan: A interpretação dos sonhos, A
psicopatologia da vida cotidiana e Os chistes e sua relação com o inconsciente. Esses
textos,
publicados na aurora da obra de Freud, marcam a onipresença do inconsciente para
além dos processos patológicos, revelando que a estrutura desses processos é a m esm a
encontrada nos fenôm enos m ais banais da vida cotidiana. São três livros que — tal com o
os três toques de um tambor, os três toques do suj eito que bate à porta, ou ainda as três
sinetas do teatro que avisam a entrada em cena — anunciam a descoberta do
inconsciente. Mais tarde, esse raio de ação do inconsciente se amplia nos trabalhos em
que aborda a psicologia das m assas e o problem a do m al-estar na cultura.
Segundo Freud, Aristóteles j á tinha apreendido a importância dos sonhos, na medida
em que anteviu neles a revelação da natureza demoníaca do homem . Os sonhos são a via
régia para o inconsciente, pois representam a realização de um desejo recalcado. Já
vimos que não há recalque sem retorno do recalcado. Então, se um desejo foi expulso da
consciência, m esm o no sonho ele só pode reaparecer sob a forma de disfarce, o que faz
com que o suj eito não reconheça o que não quer saber. É nesse sentido que, para a
psicanálise, todo sonho se apresenta com o um enigm a. O sonho, um a linguagem cifrada
que exige decifração e não visa com unicar nada a ninguém , é composto por im agens
com valor de palavra, que se associam com o um verdadeiro rébus (enigma composto de
imagens) para tecer um a m ensagem .
Há um trabalho a ser feito pelos m ecanism os do sonho, que são os m esm os que
regem o funcionamento do inconsciente: a condensação e o deslocamento. A função
desses m ecanismos é distorcer o desejo recalcado, burlando dessa form a a censura.
Portanto, quanto mais rigorosa for essa censura, maior e mais engenhoso será o disfarce.
Para compreenderm os melhor a função desses mecanism os no trabalho do sonho, é
preciso levar em consideração dois conteúdos: o manifesto e o latente.
O conteúdo manifesto é o m odo pelo qual o sonho se apresenta para nós quando
despertamos, e o conteúdo latente se refere aos pensamentos inconscientes. O conteúdo
m anifesto e os pensamentos do sonho (conteúdo latente) são, portanto, duas versões
diferentes do desej o inconsciente. Ou, com o diz Freud, o conteúdo manifesto é um a
transcrição dos pensamentos inconscientes em outro m odo de expressão. Assim ,
podem os concluir que o conteúdo latente está para o original assim com o o conteúdo
m anifesto está para sua tradução.
Mas o que são a condensação e o deslocamento? Além de serem m ecanism os que
estão a serviço do trabalho do sonho, apresentam -se sempre num a rede de
sobredeterm inação. A condensação tem como principal atributo a síntese. Eis o m otivo
de Freud chamar atenção para o fato de que os sonhos se apresentam breves, concisos e
lacônicos em com paração com a série dos pensam entos oníricos revelados em sua
interpretação. O relato de um sonho de apenas um parágrafo pode ter várias páginas de
interpretação. O deslocamento se caracteriza por um a transferência de intensidades
psíquicas. Um elemento sem valor psíquico retira a atenção de outro verdadeiramente
importante em relação ao desej o do suj eito. Um delicioso exem plo de deslocamento é
dado pelo próprio Freud: quando foi aos Estados Unidos, dizia ter ido não para dar
conferências e difundir a psicanálise, mas para “ver o porco-espinho e para ver também
antigüidades cipriotas”!
Tomem os outro exem plo de Freud, o sonho intitulado “Monografia Botânica”: ele
havia escrito uma m onografia sobre um gênero não especificado de plantas; na
encadernação do livro havia uma planta seca e, ao virar uma página, aparecia um a
lâmina colorida dobrada. Botânica e m onografia condensam no nível manifesto todos os
pensam entos que deram origem ao sonho.
O termo botânica é associado por Freud à figura do Professor Gärtner [Jardineiro], à
aparência “florescente” de sua m ulher e às suas pacientes Flora e Sra. L. A figura de
Gärtner o remete para sua conversa com Königstein no laboratório, onde as duas
pacientes, Flora e Sra. L., foram mencionadas, e tam bém para o episódio da cocaína, o
qual, com o já vimos, fez com que se sentisse traído pelo oftalmologista Carl Koller, que
om itiu deliberadam ente a precedência das pesquisas de Freud sobre o caráter anestésico
dessa substância. O nom e Flora faz com que se lembre das flores favoritas de sua
m ulher. A palavra flores, por sua vez, o leva à recordação de um episódio que se passou
na escola secundária e de um a prova que fez na universidade. Um dos tem as abordados
na conversa com o Dr. Königstein foi sobre seu passatem po favorito, que era colecionar
antigüidades. Este tema o faz lembrar de uma de suas brincadeiras prediletas: dizer que a
alcachofra era sua flor favorita. As alcachofras o conduzem aos pensamentos sobre a
Itália e a um a cena de sua infância, que m arcou suas relações íntimas com os livros.
O termo monografia é associado com a parcialidade de seus estudos e com o preço
que paga por seu passatem po preferido. Quanto à lâm ina colorida, Freud a relaciona às
críticas de seus colegas e à lem brança infantil em que ele rasgava um livro com lâm inas
coloridas. Assim, este conteúdo, sintetizado na imagem de um livro, onde se destacam a
capa e a primeira página vinculadas às palavras monografia e botânica, é inteiramente
diverso dos pensam entos inconscientes que motivaram o sonho. A função desse
deslocam ento é, então, distorcer a realização do desej o inconsciente no sonho. As
imagens com pósitas que comparecem nos sonhos — e um a das características maiores
dos sonhos destacadas por Freud é a de que eles são constituídos em grande parte por
imagens — têm a função de bloquear a verdade. Com o diria Lacan em 1975 num a
conferência em Yale, uma imagem sempre bloqueia a verdade.
Freud conclui que o núcleo central, no nível m anifesto do sonho, é a palavra botânica.
Porém , no nível latente, os pensam entos que engendram o sonho têm com o palavra-
chave o termo monografia. É a este que estão relacionados o desej o de resolver os
conflitos que surgem no trabalho, de ser reconhecido e o sentim ento de culpa causado
pelos sacrifícios para sustentar seu passatempo.

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