Lourdes Ramalho e Uma Visao Alegorica Da

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Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura

LOURDES RAMALHO E UMA VISÃO ALEGÓRICA DA NAÇÃO

Diógenes André Vieira Maciel1

A produção dramatúrgica de Maria de Lourdes Nunes Ramalho


(1923-) tem início como uma espécie de “fazer dentro da vida”, brotando
como (re)fluxo de continuidade em meio à sua própria experiência familiar,
cujos ramos da árvore genealógica apontam para momentos formativos da
poesia popular nordestina, como já discutimos longamente em outras opor-
tunidades (Cf. ANDRADE; MACIEL, 2005). Desde adolescente, quando sua
fatura artística causa furor ao denunciar a estrutura de funcionamento do
internato onde estudava em Recife-PE, Lourdes já estava preocupada em
dar forma à sua memória cultural e à sua visão de mundo: era o limiar de
uma linguagem teatral que, em seu desenvolvimento, se aliou às possibili-
dades de expressão de uma menina-mulher que nunca aceitou aquilo que
podia ser modificado.

Contudo e, talvez, coerentemente ao que afirmamos de início, todo


esse período de formação da sua produção não permaneceu para o presen-
te registrado em papel, tendo em vista que ela ainda não havia desenvolvido
uma autoconsciência de sua atividade criativa, o que acabou nos legando
um vácuo de tempo, no que se refere à materialidade destes primeiros tex-
tos, que se desenrola entre fins da década de 1930 até meados da década
de 1970, momento em que ela, finalmente, começa a, sistematicamente,
manter os manuscritos ou datiloscritos de suas peças, representadas ou
inéditas. Sobre tais peças, portanto – aquelas que se dão como afluentes
da correnteza de suas outras atividades: aluna, depois professora na escola
de sua mãe, Anna Brito, ou as que escreve para amadores, quando passa a
acompanhar o marido magistrado em muitas de suas colocações ou mesmo
quando, por questões também de fundo familiar, passa temporada no Rio de
Janeiro nos anos de 1960, até seu definitivo pouso na cidade de Campina
Grande-PB, na qual será reconhecida como professora, antes de ser cele-
brada como dramaturga –, pouco sabemos, a não ser aquilo o que a própria
autora nos conta: fagulhas de sua memória biográfica, inscrita no torvelinho

1  Universidade Estadual da Paraíba, DLA/PPGLI. Email: [email protected].


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de sua experiência cultural, profissional e pessoal. Mesmo assim, podemos


afirmar, diante de tudo o que ela nos relata, que sua escrita teatral emergia
numa zona limítrofe da necessidade de expressão artística, já bastante viva
e impulsionada pelas condicionantes familiares – que lhe permitiam escre-
ver para a cena no contexto das confraternizações e festividades de casa,
tendo, como primeiros atores, os parentes e depois os próprios filhos – mas,
também, se tornava, como ela sempre destaca, uma opção pedagógica pre-
ferencial, aliada de valia em seu processo didático.

Apenas em meados dos anos 1970, quando surgem textos seus, de-
vidamente montados por grupos organizados, e hoje celebrados em âmbi-
to local/regional e, por que não dizer nacional (como A feira, As velhas e
Fogo Fátuo), é que ela trava, mediante a já mencionada tomada de auto-
consciência artística – na verdade, sob o impulso incentivador de Pascho-
al Carlos Magno, quando de sua presença em um dos festivais de inverno
de Campina Grande –, o percurso rumo à representação do seu contexto
espaciotemporal atreladamente a uma perspectiva popular, ou melhor, na-
cional-popular, dispondo-se a representar o “povo”, à beira do abismo para
o qual parece ser empurrado pela ruína das relações rurais de produção e
da ascensão da modernização, que impõe uma nova feição do capitalismo
tanto ao campo como à cidade, tema sempre recorrente na literatura canô-
nica do Nordeste. Assim, sua obra formaliza esta região brasileira como um
conjunto de fragmentos que se articulam para formar um painel, expresso
na totalidade de seus textos, unindo a perspectiva regionalista (de alguma
maneira, ainda tradicionalista) ao diálogo produtivo com as formas dramá-
ticas, passando pelas convenções da comédia popular e chegando às raias
da tragédia, para reconstruir, artisticamente, um espaço em que relações
sociais sofrem mutações rápidas, com ênfase especial para as dinâmicas
de gênero envolvidas pelas malhas dos papéis de homens e mulheres nos
grupos familiares.

Referimo-nos ao regionalismo, termo às vezes desgastado em


nossa tradição crítica, para além de todos os ranços, tomando-o como
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importante conceito operativo,2 capaz de nos possibilitar o entendimento


de certa tendência dentro de um sistema literário, o que impõe ao leitor-
pesquisador, da obra em tela, uma tarefa: transitar entre o “incômodo”,
causado por algumas certezas esquemáticas – que para alguns poderiam
beirar o “localismo”, o “pitoresco” ou o “exotismo” – ou mesmo pelos vôos
rasantes sobre problemas que pediriam maior desenvolvimento crítico na
forma estética; e a “atração” imediata exercida por textos que superam
qualquer limite e tornam-se, de pronto, obras-primas (caso de As velhas,
um clássico absoluto do teatro nordestino moderno, ou mesmo de A feira),
ao superar aquela área de incômodo, às vezes compulsória à tendência,
atingindo patamares estéticos e éticos na representação dos conflitos sociais
engendrados pelo embate cultura-sociedade, visto “criar uma linguagem
que [supre] com verossimilhança a assimetria radical entre o escritor e o
leitor [neste caso, também podemos dizer do público de teatro] citadino em
relação ao personagem e ao tema rural e regional, humanizando o leitor em
vez de aliená-lo em relação ao homem rural representado” (LEITE, 1995).

Desta forma, cremos ser possível afirmar que é este regionalismo


ramalhiano, em suas oscilações e possibilidades prospectivas, o que marca-
ria, de início, conforme Valéria Andrade (2007), uma possibilidade de classi-
ficação desta obra em ciclos. Segundo esta crítica, haveria um primeiro ci-
clo, constituído por textos em prosa, que se espraia entre o período já dado
e os anos 1980 (a saber, além dos já citados, Os mal-amados, A mulher da
viração, Uma mulher dama, Festa do Rosário, Guiomar sem rir sem chorar,
Fiel espelho meu, entre outros), nos quais se decanta o protagonismo fe-
minino como força propulsora da ação dramática, mesmo que esta não se
centre apenas no conflito de gênero, mas na maneira como tal conflito é de-
sencadeado pela assimetria de poder estabelecida pelo todo complexo das
relações sociais, culturais e econômicas. São textos em que o patriarcado,

2  Sobre a maneira como estamos tomando o conceito de regionalismo na literatura, conferir


o texto de Ligia Chiappini Moraes Leite (1995). Neste trabalho, a autora parte da hipótese de
que “o regionalismo, que setores da crítica literária brasileira consideravam uma categoria
ultrapassada, continuava presente e, até mesmo, tinha se tornado tema de pesquisas muito
atuais, ganhando uma amplitude maior na intersecção dos estudos literários e artísticos,
históricos e etnológicos”. A partir daí, ela toma o regionalismo como fenômeno universal,
revelado ora como tendência ora como movimento, programaticamente organizado, mas também
apreensível na forma artística que concretiza os programas advindos dos movimentos.
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ou pelo menos sua feição mais tradicional, está em xeque – pela modifica-
ção dos paradigmas hegemônicos de masculinidade, postos frente a perfis
femininos que indagam (e nos indagam) sobre o enigma da igualdade e da
diferença, tudo isso disposto pela dramaturga como uma tensão dialética
entre ruína-ascensão (econômica e/ou moral da família).

Já o segundo ciclo é aquele que se abriria na década de 1990 e es-


taria em desenvolvimento até hoje, privilegiando uma rediscussão da cul-
tura nordestina, tendo agora, como duplo especular, a tradição dramática
ibérica e seus cruzamentos com a cultura popular, conforme a encontramos
plasmada nos folhetos (daí termos cunhado, para designar as formas dra-
máticas resultantes desse processo, o termo dramaturgia em cordel, me-
diante suas amplas conexões com a tradição ibérica e, ao mesmo tempo,
com a tradição do folheto, enquanto suporte ou visada estética (ANDRADE;
MACIEL, 2008), revelada em textos como Charivari, Presépio mambembe,
Romance do Conquistador, O trovador encantado, Guiomar filha da mãe, en-
tre outros). Neste momento, a pesquisa estética, portanto, se voltou para o
desvendamento e a ressignificação das raízes étnico-culturais deste lócus:
cadinho onde se misturam a cultura ibérica do século XVI, em seus fortes
matizes judaicos ou judaizantes, agora assumidos pela dramaturga como
identidade a ser difundida, defendida e compreendida por si e pelo seu
público-destino, cruzando-se com a cultura popular do Nordeste, em suas
dinâmicas contemporâneas.

Em torno destes dois ciclos há textos que orbitam, numa dimensão


construída como espécie de entre-lugar, e aqui nem entraremos na discus-
são sobre a sua dramaturgia para crianças, que compõe uma espécie de
universo paralelo a tudo isso a que vimos nos remetendo.3 Explicaremos

3  Tais textos carecem de um estudo mais acurado e devida sistematização (eles são
inúmeros!). Todavia, já temos duas publicações que dão início a este trabalho: uma organizada
pela própria dramaturga (RAMALHO, 2004), na qual se colecionam 15 textos (a saber, Novas
aventuras de João Grilo, A Velha sem Gogó, Folguedos Natalinos, O Pássaro Real, Malasartes
Buenas Artes, O Diabo Religioso, Maria Roupa de Palha, A Cabra Cabriola, Festejos de Natal, Dom
Ratinho e Dom Gatão, História de Zabelê, Auto de Natal, Porque a noiva botou o noivo na Justiça,
Viagem no Pau-de-Arara), e uma segunda (RAMALHO, 2008, organizada por Valéria Andrade
e Ana Cristina M. Lúcio), na qual se reúnem 04 textos, sendo um deles inédito, em relação à
primeira publicação (o texto título, Novas Aventuras de João Grilo, Anjos de Caramelada e O
Pássaro Real, com o título modificado para Corrupio e Tangará).
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melhor: há textos escritos, provavelmente entre as décadas de 1970 e 1980,


que mostram uma primeira preocupação da dramaturga com a tradição do
folheto, que, como falamos, só foi alvo explicitamente da pesquisa estética
no segundo ciclo. São textos reunidos em um datiloscrito, intitulado “Viva o
cordel”, devidamente assinado à mão, na capa, pela autora, que, conforme
se pode depreender, foi um exemplar enviado ao Serviço de Censura de Di-
versões Públicas/SCDP-PB, do Departamento de Polícia Federal, tendo em
vista todas as páginas possuírem um carimbo, com rubrica à caneta, deste
órgão – índice histórico possível, mesmo que impreciso, até agora.

Neste volume estão enfeixados quatro títulos, identificados individu-


almente como “cordel”: Judite Fiapo em Serra Pelada, Porque a noiva botou
o noivo na justiça, A guerreira Joanita Guabiraba e Viagem no Pau-de-Arara.
Não é, pois, com espanto que encontramos três destes textos em versões
publicadas no formato convencional do folheto nordestino, respeitando os
princípios desta fórmula editorial e impressos por uma gráfica local (TS Edi-
tora e Gráfica), sem indicação sobre o ano desta impressão. Destes quatro
cordéis, apenas A guerreira Joanita Guabiraba não foi reimpresso. Frente a
isto, poderíamos formular uma primeira pergunta: por que não classificar
estes textos no conjunto do segundo ciclo? A resposta ainda é imprecisa,
mas, talvez porque estes textos ainda sejam apenas a ante-sala do que virá:
sua publicação individual, posterior, no suporte do folheto, marcaria uma
primeira aproximação da dramaturga a este universo, oscilando entre a for-
ma dramática híbrida (que une as convenções formais do folheto àquelas
próprias do gênero dramático) e a fórmula editorial que, em tese, teria um
público leitor diverso, talvez mais amplo, formado pelo hábito de ler/ouvir
tais textos. Obviamente, esta resposta é apenas uma hipótese, tendo em
vista que ainda não podemos aferi-la, mediante um estudo que conside-
rasse sua recepção, no seu contexto ou no presente, frente ao horizonte
de expectativas deste público, também ainda considerado só na teoria. O
que podemos afirmar, com alguma certeza, é que estes textos, mais do que
aqueles que compõem o segundo ciclo, têm características que os aproxi-
mariam mais das formas narrativas do folheto nordestino, que propriamente
das formas do teatro em cordel, que surgem depois. Todavia, há que ser
considerada, sempre, a área intersectiva, que formaliza a forma híbrida, na
medida em que sempre eles se assumem como destinados à montagem te-
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atral, visto a divisão de falas entre personagens e, neste caso, as parcas


didascálias.4

Se há, no primeiro ciclo, um debate aberto com os motivos mais am-


plamente identificados como regionais (quase sempre a seca, as péssimas
condições de vida do nordestino, a luta pela sobrevivência em meio à hostili-
dade do ambiente e da própria dinâmica decorrente dele) e, no segundo, um
diálogo estreito com a cultura ibérica, outro tema recorrente, tangente aos
dois, seria a prevalência de um feminino que se nega a manter-se resignado
frente às determinantes de uma cultura machista e patriarcal. Não é com
exagero que afirmamos a presença significativa de personagens femininas:
são mulheres, mães, esposas e filhas, reivindicando o direito à vivência da
sexualidade, pelo questionamento dos maridos, patrões, pais e até mesmo
a instituição do casamento (aquele arranjado por interesses financeiros das
famílias e/ou outras (in)conveniências, das quais as personagens tentam,
nem sempre com sucesso, se safar). São, ainda, mulheres que se assumem
como detentoras de conhecimento, inclusive sendo portadoras de diplomas:
professoras que querem o direito de ensinar novos modos de ver o mundo,
na sala de aula e na vida.

À parte toda esta digressão, o que nos interessa, para o que preten-
demos iniciar com este trabalho, não são apenas os critérios estilístico-for-
mais ou, meramente, conteudísticos que podem determinar a composição
de cada ciclo, mas um debate específico sobre o que poderemos chamar de
irrupção de um ciclo enclave, mediante um critério formal-conteudístico, ao
qual chamaremos de ciclo das “alegorias nacionais”. Este processo encon-
traria, talvez, um único par, na dramaturgia brasileira, no conjunto cíclico
da obra de Jorge Andrade,5 e a divisão da obra em ciclos, mesmo que não

4  É interessante, ainda, considerar que, depois, já em 2004, dois destes textos voltam a ser
impressos, agora em livro, junto a outros, é o caso de Porque a noiva botou o noivo na justiça e
Viagem no Pau-de-Arara, que aparecem numa coletânea (RAMALHO, 2004 – ver nota anterior).
Como sempre, o texto A guerreira Joanita Guabiraba ficou mais uma vez sem vir a público, e é
este fato que nos chama atenção, dando lugar a uma segunda pergunta: por quê? A esta nós
não temos resposta, nem ao menos hipotética.
5  A discussão dos ciclos na obra do dramaturgo paulista já foi amplamente discutida por
Catarina Sant’Anna (1997). É deste trabalho que tomamos de empréstimo a denominação de
ciclo enclave, naquele caso, utilizada para constituir um ciclo dentro do outro, visto o uso, em
quatro textos, da metalinguagem e seus cruzamentos com a história nacional.
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expressa conscientemente pela autora, revelar-se-ia uma boa estratégia de


enfrentamento interpretativo para seus textos, quando passamos a compre-
endê-los frente a conjuntos que se definem pelos temas mais amplamente
abordados, expressos mediante uma forma dramatúrgica dialeticamente
atrelada aos mesmos, como meio de expressão.

Comporiam, então, este ciclo enclave os seguintes textos: Guiomar


sem rir sem chorar, A guerreira Joanita Guabiraba e Guiomar filha da mãe,
todos formalizados mediante o recurso ao épico-narrativo, seja na prosa do
primeiro, na verdade um monólogo, seja nos outros dois que, ao recorrerem
ao cordel como estratégia estético-formal, abraçam também os recursos
epicizantes, coerentemente ao princípio narrativo deste gênero. Ao afirmar-
mos, portanto, a predominância da narrativa, que irrompe na forma dramá-
tica como precipitação do conteúdo, inserimos a obra de Lourdes Ramalho
dentro de uma linhagem que, desde as raízes mais remotas do teatro no
Ocidente até a contemporaneidade, rumou para o épico como possibilida-
de de resolver a contradição da épica interna à forma dramática, mediante
representação/formalização de conteúdos mais amplos do que aqueles que
“caberiam” dentro dos limites da dramática fechada. Diante deste raciocínio,
podemos entender que, ao “narrar” versões contra-hegemônicas da história
nacional nestes textos acima indicados, a dramaturga, pela alegoria,6 refaz
criticamente o percurso traçado, por exemplo, pela nossa ficção romântica,
do século XIX, e aproxima-se da perspectiva da nossa vanguarda antropo-
fágica da primeira metade do século XX, tão afeita à paródia como possibili-
dade de re-ler a historiografia ou mesmo a tradição literária canônica.

Nos chamados “romances nacionais” do século XIX, política e his-

6  A alegoria estava presente, por exemplo, em formas dramáticas como aquelas do


auto medieval ou no drama barroco, ou mesmo na tradição do teatro popular. Diante das
interpretações convencionais, a alegoria seria, para Doris Sommer (2004, p. 61), uma narrativa
como dois níveis paralelos de significados, diferenciados “temporalmente, sendo que um revela
ou ‘repete’ o nível do sentido anterior (seja tentando desesperadamente se tornar o outro, seja
observando, a partir de uma distância metanarrativa, a futilidade de qualquer desejo de um
sentido estável)”. Ou seja, no percurso espaciotemporal, não teríamos apenas uma “simples
questão de viagem de ida e volta até os mesmos dois pontos ou linhas, mas se parece mais
com o movimento de uma laçadeira, já que o fio da história se volta para trás e se faz a partir
de uma laçada anterior” (p. 59). Desta feita, alegoria pode ser entendida como uma “estrutura
narrativa em que uma linha é vestígio da outra” (p. 61).
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tória eram conduzidas, em termos de ficção, por uma noção de amor he-
terossexual ‘natural’, capaz de soterrar a memória do conflito dos tempos
coloniais, ocasionando, como já bem formulou Doris Sommer (2004), uma
associação metonímica entre “amor romântico” (sob as bênçãos e, até
mesmo, os auspícios do Estado) e a “legitimidade política” (fundada na no-
ção de amor, decretada pelo casamento, que funda um molde/modelo de
nação-família). Por seu turno, no ciclo enclave ramalheano esta perspecti-
va assume um desenvolvimento espiralado, partindo e voltando para uma
concepção de nação, sob o signo do matriarcado: Joanita Guabiraba e as
duas Guiomares (uma filha da outra), apontam para um novo modelo de
nação, passível de ser construído mediante a solidariedade feminina, frente
à mundividência destrutiva, parasitária e predatória do patriarcado e seu
complemento mais óbvio, o capitalismo.

Dialogando, no primeiro texto, com mitos fundantes ainda centra-


dos na esfera exótica e primitiva das amazonas, como também com uma
espécie de cronotopo idílico indianista, temos a construção da alegoria da
nacionalidade enquanto narrativa de origens que, cruzando o passado mí-
tico-literário com os dados de uma história do presente, erige uma contra-
história que reconta, ao mesmo tempo, o percurso do avanço do capitalismo
(em suas várias faces e fases) e o projeto de construção de uma Pátria de
“paz, justiça e amor”, só possível mediante a perspectiva de uma mulher-
mãe, que, junto a suas filhas (e os filhos delas), após a seca e o abando-
no, conseguiram, com a terra irrigada pela última chuva, plantar “novas
sementes” e erguer uma “nova nação”. Nos outros dois textos, aponta-se
para a profissionalização da mulher, para sua emancipação pelo trabalho
com o magistério, notadamente por serem as duas Guiomares professoras
de história, da terra “verde e amarela”, capazes de enxergar, cada uma em
seu contexto, as contradições de ordem econonômico-social, como também
os descaminhos da vida cultural brasileira frente à “invasão” de costumes
e produtos importados. As Guiomares, pobres e com seus salários parcos,
todavia conseguem ampliar o seu olhar para refletir sobre as tensões do
período da Ditadura Militar, em analogia (mais que óbvia) com a Inquisição
ibérica, como também olham para o presente, em busca de erigir uma cons-
ciência de que o povo nordestino é tão migrante, tão perseguido, tão exilado,
quanto o judeu sefardita, que nestas praias aportou. Por serem professoras,
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querem nos ensinar: não só sobre elas, sobre nós mesmos, mas sobre nossa
identidade enquanto nação, que não é apenas “hinos, bandeiras, limites... e
outros tantos simbolismos!”.

Estas são apenas algumas primeiras e rápidas anotações, que po-


dem, a seguir, servir como norte para uma reflexão mais ampla e com mais
fôlego crítico-interpretativo sobre estes textos que, certamente, carecem de
problematização seja no que se refere ao “incômodo” diante de algumas de
suas abordagens, seja pela “atração”, que, superando o incômodo, os lan-
çam no rol de textos essenciais do teatro nordestino, para além de qualquer
bairrismo ou simples contemplação do pitoresco regional.
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Bibliografia

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revisitada. In: RAMALHO, Maria de Lourdes Nunes. Teatro de Lourdes Ramalho: 2
textos para ler e/ou montar. Campina Grande/João Pessoa: Bagagem/Idéia, 2005.
p. 07-14.

ANDRADE, Valéria. Lourdes Ramalho na cena teatral nordestina: sob o signo da


tradição reinventada. In: MACIEL, D. A. V.; ANDRADE, V. (orgs.). Dramaturgia fora da
estante. João Pessoa: Ideia, 2007. p. 207-222.

LEITE, Ligia Chiappini Moraes. Do beco ao belo: dez teses sobre o regionalismo na
literatura. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 08, n. 15, 1995, p. 153-159.

MACIEL, D. A. V. e ANDRADE, V. A dramaturgia/teatro em cordel de Lourdes Ramalho.


In: GOMES, A. L. e MACIEL, D. A. V. (orgs.). Dramaturgia e teatro: intersecções.
Maceió: EDUFAL, 2008. p. 101-130.

RAMALHO, Lourdes. Maria Roupa de Palha e outros textos para crianças. Org. Valéria
Andrade e Ana Cristina Marinho Lúcio. Campina Grande: Editora Bagagem, 2008.

RAMALHO, Lourdes. Teatro infantil: coletânea de textos infanto-juvenis. Campina


Grande: RG Editora e Gráfica, 2004.

SANT’ANNA, Catarina. Metalinguagem e Teatro: a obra de Jorge Andrade. Cuiabá:


EdUFMT, 1997.

SOMMER, Doris. Ficções de fundação: os romances nacionais da América Latina.


Tradução de Gláucia Renata Gonçalves e Eliana Lourenço de Lima Reis. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2004.

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