O Conceito de Vozes Sociais
O Conceito de Vozes Sociais
O Conceito de Vozes Sociais
Revista Diálogos.
Dossiê temático “Relendo Bakhtin”, v. 5, n. 1, 2017.
ABSTRACT: In the Bakhtinian approach, the concept of social voices is related to
different positions, points of view, ideological postures. In this work, we aim to engage
in a discussion about the development of this category in the writings of the so-called
Circle of Bakhtin. From the debate about social voices, we work the concept of
heteroglossia, understood as the multiplicity and the heterogeneity of social voices
that are interrelated in the universe of dialogical relationships. In this perspective, we
also present, in this article, a discussion about the categories reported speech and
appreciative accents, linguistic and discursive resources that mark evaluative
positions in the fight of the production of meaning and express the confrontation
between different social voices.
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1. INTRODUÇÃO3
concepção do autor guarda certos pontos de contato com a abordagem bakhtiniana, como se
pode constatar: “[...] as vozes dos humanos são os instrumentos constitutivos sobre os quais se
funda, em última instância, a orquestração da sociedade. Como personagens sociais e agentes,
os humanos ‘inventam’ e estruturam a maneira como querem viver, mas também estão
sujeitos às suas próprias criações [...]” (MEY, 2001 p. 27). Em Mey (2001), podemos afirmar
que o conceito de voz é utilizado em sentido lato: “De forma ampla, ‘voz’ é usada
metaforicamente para qualquer atividade relativa ao uso da linguagem.” (MEY, 2001, p.25); e
em sentido restrito: “a correta interpretação das vozes e dos textos pertence a seus donos;
além disso, os ‘textos’ não são nada mais do que uma metáfora daqueles grupos de relações
sociais aos quais, em minha terminologia, é dada uma ‘voz’ para que esta seja falada e lida”
(MEY, 2001, p. 251, 252). Entretanto, embora existam alguns aspectos similares da proposta
de Mey à de Bakhtin, a abordagem do teórico russo, como mostraremos ao longo do artigo, tem
muitas peculiaridades conceituais que se afastam, em certa medida, da abordagem do teórico
inglês.
5 Importante destacar que o pensamento bakhtiniano é constituído não apenas pelos escritos
um grupo de intelectuais que se reunia com regularidade, de 1919 a 1929, na Rússia, nas
cidades de Nevel, Vitebsk e São Petersburgo (Leningrado). Faraco (2009) esclarece, ainda, que
essa denominação foi atribuída posteriormente pelos estudiosos das obras desses pensadores
russos e que a escolha do nome de Bakhtin se justifica, pois, de todos, ele foi quem produziu a
“obra de maior envergadura”. A produção do Círculo de Bakhtin ganhou visibilidade no
Ocidente a partir dos anos 1960 e exerce, ainda hoje, forte influência nos estudos da linguagem
e nas Ciências Humanas em geral. Entretanto, Cunha (2011) destaca que há diferentes
“Bakhtins” e diferentes desenvolvimentos de suas ideias nos diversos contextos de recepção.
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perspectiva de estudos da linguagem, questiona-se a ideia do “Adão mítico” (o
qual, utopicamente, teria sido o primeiro a designar o mundo), pois tudo que é
dito relaciona-se ao “já dito”. Todo discurso é construído a partir do diálogo
com outros discursos.
Cunha (2011, p. 119) ressalta, ainda, que “autores como Sériot (2010)” negam “a ideia de
Círculo de Bakhtin, ‘uma invenção tardia e apócrifa’, em razão de a expressão nunca ter sido
usada na época em que eles se reuniam. Encontra-se um registro, em 1967, do psicolinguista
Leontev, e na forma de discurso reportado, numa entrevista dada por Bakhtin a Duvakin nos
anos 1970. Círculo de Bakhtin dá a ideia de que Bakhtin foi o líder.”
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comunicação dialógica). Assim, as vozes sociais, em confronto no horizonte
dialógico, se constituem a partir da relação com vozes anteriores e, por sua
vez, dirigem-se a outras vozes, ou seja, suscitam uma resposta.
6O ensaio “O Discurso no Romance” (DR) foi escrito nos anos de 1934-35, período em que
póstuma, que reúne ensaios escritos entre décadas de 1920 a 1970. A coletânea foi traduzida
para o português, em 1988, com o título “Questões de Literatura e de Estética: a teoria do
romance” (Cf. CAMPOS, 2012). Lahteenmäki (2005) destaca que dois capítulos do ensaio
haviam sido publicados em 1972, no periódico russo “Voprosyliteratury”. Esse autor ressalta,
ainda, que “é possível pressupor que os manuscritos de DR não tenham sido publicados na sua
íntegra, mas com ‘cortes’. Certas passagens foram editorialmente retiradas do manuscrito
antes da sua publicação e esse fato é revelado nos comentários do editorial sobre as notas de
trabalho que datam dos primórdios de 1950” (LAHTEENMÄKI, 2005, p. 46).
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Deste modo, em cada momento da sua existência histórica, a
linguagem é grandemente pluridiscursiva. Deve-se isso à coexistência
de contradições socioideológicas entre presente e passado, entre
diferentes épocas do passado, entre diversos grupos socioideológicos,
entre correntes, escolas, círculos, etc., etc. Estes "falares" do
plurilinguismo entrecruzam-se de maneira multiforme, formando
novos "falares" socialmente típicos (BAKHTIN, 2010, p.98).
7 Vale ressaltar o contexto em que o ensaio O discurso no romance foi produzido. Conforme
Clark e Holquist (2004, p.287), “termos como ‘linguagem unificada’, ‘centralização’, ‘gêneros
oficiais’, ‘canonização do sistema ideológico’ e ‘linguagem correta’ não poderiam ser escolhidos,
em 1934, de maneira inocente e fortuita”. O regime político da Rússia nos anos 1930
implementava políticas com vistas a unificação e padronização de vários aspectos da vida
social, inclusive no que se refere à língua e à diversidade étnica, entre elas, a exigência de que
a produção literária seguisse um método canônico, que ficou conhecido como “realismo
socialista”.
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dinâmica: a estratificação e o plurilinguismo ampliam-se e
aprofundam-se na medida em que a língua está viva e desenvolvendo-
se; ao lado das forças centrípetas caminha o trabalho contínuo das
forças centrífugas da língua, ao lado da centralização verbo-ideológica
e da união caminham ininterruptos os processos de descentralização e
desunificação (BAKHTIN, 2010, p.82).
dialogizada. O primeiro diz respeito à diversidade de vozes sociais e o segundo está ligado ao
confronto entre essa diversidade de vozes sociais no universo das relações dialógicas.
Entretanto, neste trabalho, utilizamos esses termos como equivalentes, tendo em vista que
essa diversidade de vozes sociais sempre se efetiva no âmbito das relações dialógicas.
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A principal polêmica ocorre porque, com frequência, o termo
heteroglossia (ou plurilinguismo) é compreendido apenas como diversidade de
dialetos e formas linguísticas. Campos (2012) ressalta que autores como
Brandist (2006) e Lahteenmäki (2005) discutem sobre as implicações e
dificuldades de interpretação desse conceito, as quais são decorrentes das
diferentes traduções e formas de recepção dos escritos do Círculo de Bakhtin.
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traços lexicais, gramaticais e fonéticos) dentro de uma dada comunidade
linguística.
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estilístico harmonioso, expressando a posição sócio-ideológica
diferenciada do autor no seio dos diferentes discursos da sua
época (BAKHTIN, 2010, p. 106).
12Vale ressaltar que o conceito de polifonia é trabalhado, em outras perspectivas, por diversos
autores. Em uma abordagem enunciativa, Oswald Ducrot (1987), tomando como referência o
princípio do dialogismo bakhtiniano, procurou aplicar o conceito de polifonia, a partir da
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análise da presença de diversas vozes em enunciados isolados. O autor faz esse estudo com o
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intuito de questionar o pressuposto da unicidade do sujeito falante. Ducrot considera que essa
pluralidade de vozes presentes na enunciação pode ser analisada a partir de marcas
linguísticas.
13Faraco (2009) destaca que o termo polifonia possui pouca produtividade analítica, pois, no
pensamento bakhtiniano, é mais uma categoria ética e filosófica do que propriamente literária.
Assim, esse autor ressalta que o termo polifonia, em Bakhtin, pode ser compreendido como
uma “metáfora” da “utopia” de um “mundo polifônico”, que seria radicalmente democrático,
pluralista e onde nenhuma voz social subjugaria outra.
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gera, necessariamente, uma realidade polifônica (em que todas as vozes
seriam equivalentes) 14.
14 Cabe destacar, também, que polifonia difere de dialogismo, pois as relações dialógicas são um
de vozes, pois nenhuma se sobrepõe à outra. Nessa perspectiva, nem sempre que há
dialogismo, há polifonia.
15 Nesse contexto, o termo “discurso” também pode ser compreendido como
“enunciado/enunciação”. A remissão à palavra do outro recebe diferentes designações nos
estudos da linguagem, tais como: discurso citado, discurso reportado, discurso de outrem,
palavra outra.
16 A discussão aqui desenvolvida sobre discurso citado na teoria bakhtiniana toma como
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narrativo unem-se por relações dinâmicas, complexas e tensas. A remissão ao
discurso do outro, nesse sentido, não é uma atitude desinteressada, sem
propósito, pois há um confronto entre “o discurso a transmitir e aquele que
serve para transmiti-lo”. É nesse encontro de enunciações que se
materializam os embates da dinâmica social e ele deve ser o foco para a análise
dos sentidos construídos a partir da remissão ao discurso do outro. Não há
como analisar o discurso citado desvinculado de sua relação com o contexto
narrativo.
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No universo das relações dialógicas, os enunciados expressam sempre
uma postura valorativa (axiológica)17, um horizonte social de valor; os
discursos são marcados por apreciações/entonações que manifestam
diferentes posicionamentos. Assim, os sujeitos estabelecem um diálogo com o
discurso do outro – apoiando-o, questionando-o, reacentuando-o, assumindo
uma posição valorativa.
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sentido, os sujeitos têm um papel ativo nesse jogo dialógico de posturas e
posições valorativas. Assim, a retomada da palavra do outro é compreendida
como uma atitude valorativa, que expressa determinados acentos apreciativos
e não como uma atitude desinteressada e isenta de intencionalidades. Esses
acentos revelam um estilo, aqui compreendido não apenas como expressão
individual do enunciador, mas como uma réplica a outros enunciados, uma
expressão dos embates que se efetivam no horizonte das relações dialógicas.
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disposições que podem ocorrer na vida” (BAKHTIN/ VOLOCHÍNOV, 1990, p.
134).
RELAÇÕES DIALÓGICAS
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
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expressam uma postura ativa dos interlocutores, a partir de determinado
horizonte social de valor, na corrente da comunicação verbal. Nesse sentido,
esses diversos horizontes de valores, axiologias, resultam em inúmeros
discursos, atravessador por vozes sociais, que são “complexos semiótico-
axiológicos com os quais determinado grupo humano diz o mundo” (FARACO,
2009, p.51).
Por fim, cabe ressaltar que este trabalho apresenta uma discussão
teórica acerca dessas categorias, na perspectiva bakhtiniana, e pode: servir de
base para analisar, em diferentes tipos de textos/discursos, como as vozes
sociais revelam dialogicamente o embate de diferentes posicionamentos
ideológicos marcados, na materialidade discursiva, por elementos linguísticos
e textuais; contribuir e dialogar com a diversidade de pesquisas que se voltam
para essa abordagem teórica.
REFERÊNCIAS
Revista Diálogos.
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