01 - Jean Jacques Rousseau - Discurso Sobre As Ciências E As Artes

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Apresentação

O Prelúdio de uma Visão Crítica da


Centralidade Tecnocientífica*
Recorrer à obra de Rousseau para abordar a crítica a
tecnociência é buscar o início de um posicionamento que
tem ganhado espaço nos estudos da filosofia e das ciências
sociais. O que procura-se investigar é o sentido e o valor da
evolução sócio-técnica para a modernidade, refletindo,
assim como Rousseau, se elas tem algum tipo de
relacionamento com a virtude humana. A preocupação com
os efeitos negativos gerados pelo desenvolvimento
científico passou a ocupar as agendas de pesquisas depois
de eventos como as guerras biológicas, bombas nucleares e
devastação ambiental, ocorridos principalmente depois da
segunda grande guerra. O perigo da tecnociência existe e
está cada vez mais evidente, porém, como afirma Bazzo,
Pinheiro e Silveira (2009), muitos cidadãos ainda tem
dificuldades de compreender seus reais efeitos, que por
detrás de grandes promessas de avanços tecnológicos,
esconde lucros e interesses das classes dominantes.
Tal realidade parece evidenciar o temor de Rousseau, por
isso, parece conveniente recuperar seu primeiro escrito,
buscando uma leitura contemporânea de suas ideias, afim
de retomar um alerta que foi dado há 260 anos atrás, ou
seja: o desenvolvimento das artes e ciências é capaz
corromper a dignidade humana, afastando o homem de sua
humanidade. Quando o autor genebrino exprime que a
ciência esconde falsas estradas que levam a caminhos mil
vezes mais perigosos que a verdade que se busca,
(ROUSSEAU, [1749], 2005), mostra que o teor de suas
críticas ganham sentido e aplicabilidade atual. De acordo
com Santos (1988), é hora de retomarmos os
questionamentos sobre as relações entre a ciência e a
virtude, nos perguntando se o acúmulo do conhecimento
científico tem gerado o enriquecimento ou o
empobrecimento prático das nossas vidas, mas
efetivamente, se a ciência e a tecnologia promovem a
felicidade humana.
Para que se possa apontar a pertinência das ideias de
Rousseau para o contexto da sociedade tecnológica atual,
serão utilizados fragmentos das obras de dois autores
contemporâneos: Boaventura de Souza Santos,
representando a sociologia da ciência, e Andrew Feenberg,
representando a filosofia da ciência. Tais autores foram
escolhidos, porque assim como Rousseau, acreditam que a
ciência e a tecnologia possuem características capazes de
corromper a dignidade humana. A pretensão aqui não é
fazer um estudo aprofundado, mas somente demonstrar
que o discurso de Rousseau pode ser comparado com a
visão pós-moderna crítica da tecnologia.
***
Rousseau, no ano de 1749, com 37 anos, era até então
pouco conhecido. Certa ocasião estava a caminho de
Vincennes, nos arredores de Paris para visitar seu amigo
Diderot na prisão, que havia sido detido por conta de
algumas publicações consideradas “progressistas” pelas
autoridades civis. No caminho, leu no Mercure de France,
jornal que circulava na França em sua época, um anúncio
da Academia de Dijon oferecendo um prêmio aquele que
fizesse o melhor ensaio sobre o tema: Tem o progresso das
artes e das ciências contribuído para a purificação ou para
a corrupção da moralidade? Nesse exato momento, foi
tomado por uma luz reveladora. “Rousseau ficou
petrificado; foi tamanha torrente de novas ideias e visões
que o acometeram que desmaiou e viu-se incapaz por
algum tempo de prosseguir sua viagem” (DENT, 1996,
p.17). Decidiu participar, ganhando o prêmio de destaque
nesse concurso acadêmico, que como afirma o próprio
autor genebrino na Advertência de sua obra, “tornou
conhecido meu nome”. Através de um discurso que lembra
a maiêutica socrática, a dúvida suscitada no ensaio convida
o leitor a refletir sobre a corrupção moral gerada pelas
artes e ciências. Como explica Garcia (2005) na
apresentação da obra de Rousseau, é apresentando
dúvidas e formulando questões que o filósofo iluminista vai
extraindo, como num parto, a experiência vivida de seus
leitores para que possam compreender os perigos do
desenvolvimento das artes e das ciências.
O Discurso sobre as ciências e as artes representa o início
das reflexões do autor sobre a corrupção do homem
inserido no ambiente social, tema constante e melhor
desenvolvido em obras posteriores. Para Freitas (2006), em
seu primeiro discurso, Rousseau arma o cenário ideal de
questionamento e de crítica aos homens de sua própria
realidade em sua forma mais degenerada. A pergunta feita
pela academia de Dijon: se o restabelecimento das ciências
e das artes contribui para aperfeiçoar os costumes, foi
rebatida por Rousseau com uma segunda pergunta: há
alguma relação entre a ciência e a virtude? Sua resposta
negativa causou furor entre os intelectuais de sua época.
Dessa maneira, segundo Roger (2005), ele deixa
deliberadamente o contexto histórico imposto pela questão
e volta à oposição clássica entre a ciência e a virtude.
***
Boaventura de Souza Santos, em seu ensaio Um discurso
sobre as Ciências na transição para uma ciência pós-
moderna, faz referência direta a obra de Rousseau,
questionando a validade da sociedade tecnocientífica.
“Estamos de novo regressados à necessidade de perguntar
pelas relações entre a ciência e a virtude, [...] e temos
finalmente de perguntar pelo papel de todo o conhecimento
científico acumulado no enriquecimento ou no
empobrecimento prático das nossas vidas, ou seja, pelo
contributo positivo ou negativo da ciência para a nossa
felicidade” (SANTOS, 1988, p. 47). O motivo da retomada
ao texto iluminista se caracteriza pelo medo confesso de
Santos, que no ano de 1988 afirmava que “através de uma
reflexão mais rigorosa dos limites científicos combinada
com os perigos cada vez mais verossímeis de catástrofes
ecológicas ou de guerras nucleares, provocam o temor de
que o século XXI termine antes mesmo de começar”
(SANTOS, 1988, p. 46). Essa visão de temor sobre o
desenvolvimento da ciência também fica claro no discurso
de Rousseau, que afirma metaforicamente que “a natureza
nos quis preservar da ciência, assim como a mãe que
arrebata uma arma perigosa das mãos do seu filho; que
todos os segredos que ela vos esconde são tantos males
dos quais vos preserva e que a dificuldade que encontrais
em vos instruir não é o menor de seus benefícios”
(ROUSSEAU, 2005, [1749], p. 22).
Frente a esses perigos gerados pela tecnociência,
Feenberg (2003) coloca outro ponto na discussão, que é
exatamente o questionamento sobre o sentido da evolução
tecnológica. De acordo com o autor, atualmente vive-se
numa crise da qual parece não existir fuga: a ciência e a
tecnologia dotaram o homem de grande poder instrumental
que o faz acreditar que pode alcançar o desenvolvimento,
mesmo sem saber o porquê, a direção e o significado desse
“desenvolvimento. “Mas quando o século XX avança das
guerras mundiais para os campos de concentração e para
catástrofes ambientais, fica mais difícil ignorar a estranha
falta de sentido da modernidade” (FEENBERG, 2003, p.
145)
Na segunda parte do discurso de Rousseau, encontramos
uma referência muito importante no que concerne aos
perigos da investigação e aplicação científica desenfreada.
Rousseau questiona: “Quantos perigos! quantas falsas
estradas, na investigação das ciências? Por quantos erros,
mil vezes mais perigosos do que a verdade, não será útil,
não será preciso passar para alcançá-la?” Mais adiante o
autor completa: “Se nossas ciências são vãs no objetivo a
que se propõem, são mais perigosas ainda pelos efeitos
que produzem” (ROUSSEAU, [1749], 2005, p.26) Nessa
linha de pensamento, Feenberg conclui: “O efeito geral
desse processo é a destruição do homem e da natureza.
Um mundo “estruturado” pela tecnologia é radicalmente
alienado e hostil” (FEENBERG, 2003, p. 289).
A sociedade do consumo desenfreado, típica do modelo
capitalista desencadeado pelo desenvolvimento tecnológico
da revolução industrial também foi retratada por Rousseau,
mesmo antes dela se constituir genuinamente. Ou se referir
à corrupção da virtude, o autor afirma: “O que será da
virtude, quando for preciso enriquecer a qualquer custo? Os
antigos políticos falavam incessantemente de costumes e
de virtude; os nossos só falam de comércio e de dinheiro”.
(ROUSSEAU, [1749], 2005, p.28) Feenberg afirma: “O
“maestro” moderno exemplar da tecnologia é o empreiteiro
que focaliza com ideia fixa apenas a produção e o lucro. O
empreiteiro é uma plataforma radicalmente
descontextualizada para a ação, sem as responsabilidades
tradicionais para com as pessoas e lugares envolvidos com
a força técnica no passado” (FEENBERG, 2003, p.94).
Outro ponto onde podemos encontrar referências de
Rousseau no pensamento da filosofia moderna é sobre a
postura arrogante do cientista, que se coloca em posição
elevada diante daqueles que não tiveram chance de
contemplar suas verdades. Nas palavras de Rousseau,
“esses declamadores vãos e fúteis andam por toda a parte,
armados com seus funestos paradoxos; solapam os
fundamentos da lei e aniquilam a virtude. Sorriem com
desdém das antigas palavras pátria e religião e consagram
seus talentos e sua filosofia a destruir e aviltar tudo quanto
há de sagrado entre os homens” (ROUSSEAU, [1749], 2005,
p.27). Santos afirma: “Esta preocupação em testemunhar
uma ruptura fundante que possibilita uma e só uma forma
de conhecimento verdadeiro está bem patente na atitude
mental dos protagonistas, no seu espanto perante as
próprias descobertas e a extrema e ao mesmo tempo
serena arrogância com que se medem com os seus
contemporâneos” (SANTOS, 1988, p. 48).
Assim como Rousseau, que acreditava no valor intrínseco
dos costumes rústicos e naturais, Santos (2005), ao
elaborar seu conceito de ecologia dos saberes, propõe uma
aproximação do conhecimento científico/acadêmico, com o
conhecimento popular, muito valorizado por Rousseau.
Santos afirma que, “a ecologia de saberes é, por assim
dizer, uma forma de extensão ao contrário, de fora da
universidade para dentro da universidade. Consiste na
promoção de diálogos entre o saber científico ou
humanístico, que a universidade produz e, saberes leigos,
populares, tradicionais, urbanos, camponeses [...] que
circulam na sociedade” (SANTOS, 2005, p. 176).
DISCURSO QUE ALCANÇOU O
PRÊMIO DA ACADEMIA DE DIJON, EM
1750 SOBRE A SEGUINTE QUESTÃO
PROPOSTA PELA MESMA ACADEMIA:
O RESTABELECIMENTO DAS CIÊNCIAS
E DAS ARTES TERÁ CONTRIBUÍDO
PARA APRIMORAR OS COSTUMES?
Advertência
Que será a celebridade? Eis a obra infeliz a que devo a
minha. É certo que essa peça, que me valeu um prêmio e
me deu nome, será, no máximo, medíocre e, ouso
acrescentar, uma das menores deste repositório, Que
abismo de misérias não teria evitado o autor, se esta
primeira obra tivesse sido recebida como o merecia! Mas
era preciso que um favor inicial injusto me trouxesse, aos
poucos, uma severidade que ainda é mais injusta.
Prefácio
Eis aqui uma das maiores e mais belas questões jamais
agitadas. Não se trata, de modo algum, neste discurso,
dessas sutilezas metafísicas que dominaram todas as
partes da literatura e das quais nem sempre são isentos os
programas de academia, mas de uma daquelas verdades
que importam à felicidade do gênero humano.
Prevejo que dificilmente me perdoarão o partido que
ousei tomar. Ferindo de frente tudo o que constitui,
atualmente, a admiração dos homens, não posso esperar
senão uma censura universal; não será por ter sido honrado
pela aprovação de alguns sábios que deverei esperar a do
público. Por isso já tomei meu partido; não me preocupo
com agradar nem aos letrados pretensiosos, nem às
pessoas em moda. Em todos os tempos, haverá homens
destinados a serem subjugados pelas opiniões de seu
século, de seu país e de sua sociedade. Faz-se passar hoje
por espírito forte, filósofo, quem, pelo mesmo motivo, ao
tempo da Liga não teria passado de um fanático! Quando
se quer viver para além de seu século, não se deve
escrever para tais leitores. Mais uma palavra e concluirei.
Não contando com a honra que recebi, confesso ter, depois
de enviá-lo, refundido e aumentado este discurso de modo
a torna-lo, de certa maneira, outra obra. Sinto-me hoje
obrigado a restabelecê-lo no estado em que foi premiado.
Acrescentei-lhe somente algumas notas e deixei duas
adições fáceis de serem reconhecidas e que a Academia
talvez não tivesse aprovado. Penso que a equidade, o
respeito e o reconhecimento exigem de mim esta
advertência.
Discurso
Decipimur specie recti
Horác., Da Art. Poét., v. 25

O restabelecimento das ciências e das artes contribuiu


para aprimorar ou corromper os costumes? Eis o que é
preciso examinar. Que partido deverei tomar nessa
questão? Aquele, senhores, que convém a um homem de
bem que nada sabe e que nem por isso se despreza.
Sei que será difícil acomodar o que tenho a dizer ao
tribunal perante o qual compareço. Como ousar censurar as
ciências perante uma das mais sábias companhias da
Europa, louvar a ignorância numa Academia célebre e
conciliar o desprezo pelo estudo com o respeito pelos
verdadeiros sábios? Reconheci estes obstáculos e eles de
modo algum me demoveram. Não é em absoluto a ciência
que maltrato, disse a mim mesmo, é a virtude que defendo
perante homens virtuosos. E mais cara a probidade às
pessoas de bem do que a erudição aos doutos. Que temer,
pois? As luzes da assembleia que me ouve? Confesso-o que
sim, mas será pela constituição do discurso e não pelo
sentimento do orador. Os soberanos justos jamais
hesitaram em condenar-se a si mesmos em discussões
duvidosas e a posição mais vantajosa para o justo direito é
a de ter de defender-se contra uma parte íntegra e
esclarecida, juiz em causa própria.
A esse motivo, que me encoraja, junta-se outro, que me
incita - é que, depois de ter sustentado, de acordo com
minhas luzes naturais, o partido da verdade, seja qual for
meu sucesso, há um prêmio que não poderá faltar-me e
que encontrarei no fundo do coração.
Primeira Parte
É um espetáculo grandioso e belo ver o homem sair, por
seu próprio esforço, a bem dizer do nada; dissipar, por meio
das luzes de sua razão, as trevas nas quais o envolveu a
natureza; elevar-se acima de si mesmo; lançar-se, pelo
espírito, às regiões celestes; percorrer com passos de
gigante, como sol, a vasta extensão do universo; e, que é
ainda maior e mais difícil, penetrar em si mesmo para
estudar o homem e conhecer sua natureza, seus deveres e
seu fim. Todas essas maravilhas se renovaram, há poucas
gerações.
A Europa tinha tornado a cair na barbárie dos primeiros
tempos. Os povos dessa parte do mundo, hoje tão
esclarecida, viviam há alguns séculos em estado pior do
que a ignorância. Não sei que algaravia científica, ainda
mais desprezível que a ignorância, usurpara o nome do
saber e opunha um obstáculo quase invencível à sua volta.
Precisou-se de uma revolução para devolver os homens ao
senso comum e ela veio donde menos se esperava. Foi o
estúpido muçulmano, foi o eterno flagelo das letras que as
fez renascer entre nós. A queda do trono de Constantino
trouxe à Itália os destroços da Grécia antiga. A França, por
sua vez, enriqueceu-se com esses destroços preciosos.
Rapidamente, as ciências seguiram as artes, à arte de
escrever juntou-se a arte de pensar - gradação que pode
parecer estranha e talvez não seja senão demasiado
natural - e se começou então a sentir a principal vantagem
do comércio das musas, que é o de tornar os homens mais
sociáveis, inspirando-lhes o desejo de se deleitarem uns
aos outros por meio de obras dignas de sua aprovação
recíproca.
Como o corpo, o espírito tem suas necessidades. Estas
são o fundamento da sociedade, aquelas constituem seu
deleite. Enquanto o Governo e as leis atendem à segurança
e ao bem-estar dos homens reunidos, as ciências, as letras
e as artes, menos despóticas e talvez mais poderosas,
estendem guirlandas de flores sobre as cadeias de ferro de
que estão eles carregados, afogam-lhes o sentimento dessa
liberdade original para a qual pareciam ter nascido, fazem
com que amem sua escravidão e formam assim o que se
chama povos policiados. A necessidade levantou os tronos;
as ciências e as artes os fortaleceram. Potências da terra,
amai os talentos e protegei aqueles que os cultivam. Povos
policiados, cultivai-os; escravos felizes, vós lhes deveis esse
gosto delicado e fino com que vos excitais, essa doçura de
caráter e essa urbanidade de costumes, que tornam tão
afável o comércio entre vós, em uma palavra: a aparência
de todas as virtudes, sem que se possua nenhuma delas.
Por essa espécie de polidez, tanto mais amável quanto
menos afeta mostrar-se, outrora se distinguiram Atenas e
Roma nos dias tão exalçados de sua magnificência e de seu
brilho; por ela, sem dúvida, nosso século e nossa nação
sobrepujarão todos os tempos e todos os povos. Um tom
filosófico sem pedantaria, maneiras naturais e não obstante
atenciosas, distanciadas igualmente da rusticidade tudesca
e da pantomima ultramontana - eis os frutos do gosto,
adquiridos nos bons estudos e aperfeiçoados no comércio
do mundo.
Como seria doce viver entre nós, se a contenção exterior
sempre representasse a imagem dos estados do coração,
se a decência fosse a virtude, se nossas máximas nos
servissem de regra, se a verdadeira filosofia fosse
inseparável do título de filósofo! Mas tantas qualidades
dificilmente andam juntas e a virtude nem sempre se
apresenta com tão grande pompa. A riqueza do vestuário
pode denunciar um homem opulento, e a elegância, um
homem de gosto; conhece-se o homem são e robusto por
outros sinais - é sob o traje rústico de um trabalhador e não
sob os dourados de um cortesão, que se encontrarão a
força e o vigor do corpo. A aparência não é menos estranha
à virtude, que constitui a força e o vigor da alma. O homem
de bem é um atleta que se compraz em combater nu;
despreza todos esses ornamentos vãos, que dificultam o
emprego de suas forças e cuja maior parte só foi inventada
para esconder uma deformidade qualquer.
Antes que a arte polisse nossas maneiras e ensinasse
nossas paixões a falarem a linguagem apurada, nossos
costumes eram rústicos, mas naturais, e a diferença dos
procedimentos denunciava, à primeira vista, a dos
caracteres. No fundo, a natureza humana não era melhor,
mas os homens encontravam sua segurança na facilidade
para se penetrarem reciprocamente, e essa vantagem, de
cujo valor não temos mais noção, poupava-lhes muitos
vícios.
Atualmente, quando buscas mais sutis e um gosto mais
fino reduziram a princípios a arte de agradar, reina entre
nossos costumes uma uniformidade desprezível e enganosa
Z o, e parece que todos os espíritos se fundiram num
mesmo molde: incessantemente a polidez impõe, o decoro
ordena; incessantemente seguem-se os usos e nunca o
próprio gênio. Não se ousa mais parecer tal como se é e,
sob tal coerção perpétua, os homens que formam o
rebanho chamado sociedade, nas mesmas circunstâncias,
farão todos as mesmas coisas desde que motivos mais
poderosos não os desviem. Nunca se saberá, pois, com
quem se trata: será preciso, portanto, para conhecer o
amigo, esperar pelas grandes ocasiões, isto é, esperar que
não haja mais tempo para tanto, porquanto para essas
ocasiões é que teria sido essencial conhecê-la.
Que cortejo de vícios não acompanha essa incerteza! Não
mais amizades sinceras e estima real; não mais confiança
cimentada. As suspeitas, os receios, os medos, a frieza, a
reserva, o ódio, a traição esconder-se-ão todo o tempo sob
esse véu uniforme e pérfido da polidez, sob essa
urbanidade tão exaltada que devemos às luzes de nosso
século. Não mais se profanará com juramentos o nome do
senhor do universo, mas será ele insultado com blasfêmias,
sem que nossos ouvidos suscetíveis se ofendam com isso.
Não se enaltecerá o próprio mérito, mas se rebaixará o de
outrem. De modo algum se ultrajará grosseiramente o
inimigo, mas jeitosamente o caluniaremos. Extinguir-se-ão
os ódios nacionais, mas com eles irá o amor à pátria. A
ignorância desprezada será substituída por um pirronismo
perigoso. Haverá excessos proscritos, vícios desonrados,
mas outros serão honrados com o nome de virtudes; impor-
se-á tê-los ou afetar tê-los. Elogiará, quem desejar, a
sobriedade dos sábios de hoje, quanto a mim, não vejo
nisso senão um rebuscamento da intemperança, tão
indigno de meu elogio quanto a simplicidade artificiosa de
tais sábios.
Tal a pureza adquirida pelos nossos costumes; assim
tornamo-nos pessoas de bem. Cabe às letras, às ciências e
às artes reivindicarem o que lhes pertence numa obra tão
salutar. Acrescentarei somente uma reflexão: um habitante
de certas paragens longínquas, que procurasse formar uma
ideia dos costumes europeus tomando por base o estado
das ciências entre nós, a perfeição de nossas artes, a
decência de nossos espetáculos, a polidez de nossas
maneiras, a afabilidade de nossos discursos, as nossas
demonstrações perpétuas de benevolência e esse
tumultuoso concurso de homens de todas as idades e de
todos os estados que parecem ávidos, desde a aurora até o
deitar do sol, de se obsequiarem reciprocamente,
descobriria a respeito de nossos costumes exatamente o
contrário do que são.
Onde não existe nenhum efeito não há nenhuma causa a
procurar; nesse ponto, porém, o efeito é certo, a
depravação é real, e nossas almas se corromperam à
medida que nossas ciências e nossas artes avançaram no
sentido da perfeição. Dir-se-á ser uma infelicidade própria
de nossa época? Não, senhores; os males causados por
nossa vã curiosidade são tão velhos quanto O mundo. A
elevação e o abaixamento cotidianos das águas do oceano
não foram mais regularmente submetidos ao curso do astro
que nos ilumina durante a noite quanto a sorte dos
costumes e da probidade aos progressos das ciências e das
artes. Viu-se a virtude fugir à medida que sua luz se
elevava no nosso horizonte e observou-se o mesmo
fenômeno em todos os tempos e em todos os lugares.
Vede o Egito, essa primeira escola do universo, esse
clima tão fértil sob um céu ferrenho, essa região célebre de
onde outrora Sesóstris partiu para conquistar o mundo.
Torna-se ela a mão da filosofia e das belas-artes e logo
depois se dá a conquista de Cambises, depois a dos gregos,
a dos romanos, a dos árabes e, por fim, a dos turcos.
Vede a Grécia, povoada outrora por heróis que por duas
vezes venceram a Ásia, uma diante de Tróia e outra nos
seus próprios lares. As letras nascentes não tinham ainda
levado a corrupção aos corações de seus habitantes, mas o
progresso das artes, a dissolução dos costumes e o jugo do
macedoniano seguiram-se de perto e a Grécia sempre
sábia, sempre voluptuosa e escrava, só ganhou com suas
revoluções uma mudança de senhores. Toda a eloquência
de Demóstenes jamais pôde reanimar um corpo que o luxo
e as artes tinham desfibrado.
Foi no tempo dos Ênios e dos Terêncios que Roma,
fundada por um pastor e ilustrada por trabalhadores,
começou a degenerar. Mas, depois dos Ovídios, dos
Catulos, dos Marciais e dessa multidão de autores obscenos
cujos simples nomes alarmam o pudor, Roma, que outrora
fora o templo da virtude, tornou-se o teatro do crime, o
opróbrio das nações e o joguete dos bárbaros. Essa capital
do mundo cai, finalmente, sob o jugo que impusera a tantos
povos e o dia de sua queda foi aquele em que se deu a um
de seus cidadãos o título de árbitro do bom gosto.
Que direi dessa metrópole do Império do Oriente que
parecia, por sua posição, dever ser a do mundo inteiro,
desse asilo das ciências e das artes proscritas do resto da
Europa, talvez mais por sabedoria do que por barbárie?
Tudo que a depravação e a corrupção têm de mais
vergonhoso; tudo que as traições, os assassínios e os
venenos têm de mais negro; tudo que o concurso de todos
os crimes tem de mais atroz - eis o que forma a trama da
história de Constantinopla. Aí está a fonte pura da qual
foram trazidas até nós as luzes com as quais nosso século
se glorifica.
Mas, por que procurar em tempos distantes as provas de
uma verdade da qual temos, sob nossos olhos,
testemunhos subsistentes? Há na Ásia uma região imensa
na qual as letras reverenciadas levam às primeiras
dignidades do Estado. Se as ciências purificassem os
costumes, se ensinassem os homens a derramar seu
sangue pela pátria, se incitassem à coragem, os povos da
China deveriam ser sábios, livres e invencíveis. No entanto,
se não há um vício sequer que não os domine, um crime
sequer que não lhes seja familiar, se nem a luz dos
ministros, nem a pretensa sabedoria de suas leis, nem a
multidão de habitantes desse vasto império puderam
resguardá-lo do jugo do tártaro ignorante e grosseiro, de
que lhe terão servido os sábios? Que fruto alcançou com as
honrarias de que foram estes cumulados? Porventura, o de
ser povoado por escravos e pérfidos?
Oponhamos a esse quadro o dos costumes de pequeno
número de povos que, preservados desse contágio de
conhecimentos maus, por suas virtudes construíram a
própria felicidade e constituem exemplo para as demais
nações. Tais foram os antigos persas, nação singular no
seio da qual se aprendia a virtude como entre nós se
aprende a ciência, que com tanta facilidade subjugou a
Ásia, sendo a única a possuir tal glória, e cuja história das
instituições pode ser considerada um romance de filosofia.
Tais os citas, dos quais nos restam elogios tão magníficos.
Tais os germanos, a cujo respeito uma pena, cansada de
descrever os crimes e as maldades de um povo instruído,
opulento e voluptuoso, aliviou-se com descrever-lhes a
simplicidade, a inocência e as virtudes. Tal foi, também, a
própria Roma, nos tempos de pobreza e de ignorância; tal
se mostrou até nossos dias esta nação rústica, tão
enaltecida pela sua coragem, que a adversidade não pôde
abater, e pela sua fidelidade, que o exemplo não pôde
corromper.
Não seria absolutamente por estupidez que esses povos
preferiram outras atividades às do espírito. Não ignoravam
que, em outras regiões, homens ociosos passavam sua vida
disputando sobre o bem soberano, sobre o vício e a virtude,
e que pensadores orgulhosos, creditando-se a si mesmos os
maiores elogios, confundiam os outros povos sob o nome
desprezivo de bárbaros; refletiram sobre seus costumes e
aprenderam a desprezar sua doutrina.
Esquecer-me-ia de que foi no próprio seio da Grécia que
se viu surgir essa cidade tão célebre pela sua feliz
ignorância quanto pela sabedoria das leis, essa república
antes de quase deuses do que de homens, tanto suas
virtudes pareciam superiores à humanidade? Oh! Esparta,
eterno opróbrio de uma doutrina vã! Enquanto os vícios
levados pelas belas-artes se introduziam conjugados em
Atenas, enquanto um tirano lá reunia, com tanto cuidado,
as obras do príncipe dos poetas, tu escorraçavas para fora
de teus muros as artes e os artistas, as ciências e os
sábios!
O acontecimento marcou essa diferença. Atenas tornou-
se a moradia da polidez e do bom gosto, o país dos
oradores e dos filósofos; lá a elegância das edificações
correspondia à da língua; viam-se, em todas as partes, o
mármore e a tela animados pelas mãos dos mestres mais
hábeis. De Atenas saíram essas obras surpreendentes que
serviram de modelo a todas as épocas corrompidas. O
quadro da Lacedemônia é menos brilhante. "Lá", diziam os
outros povos, "os homens nascem virtuosos e o próprio ar
do país parece inspirar a virtude." De seus habitantes só
nos resta a memória de seus atos heroicos. Tais
monumentos valerão menos, para nós, do que os mármores
interessantes que Atenas nos deixou?
É verdade que alguns sábios resistiram à torrente geral e
resguardaram-se do vício no trato das musas. Ouçamos,
porém, o julgamento que o primeiro e o mais infeliz dentre
eles tinha dos sábios e dos artistas de seu tempo:
"Examinei", disse, "os poetas e os vejo como
pessoas cujo talento se impõe a si mesmos e aos
outros, que se fazem passar por sábios, que se
tomam como tais e que nada menos são”.
"Dos poetas", continua Sócrates, "passei aos
artistas. Ninguém ignorava mais as artes do que eu,
ninguém estava mais convencido de possuírem os
artistas belíssimos segredos. Verifiquei, no entanto,
não ser sua situação melhor do que a dos poetas e
que: estão, tanto uns quanto outros, no mesmo caso.
Porque os mais hábeis dentre eles avultam em sua
companhia, consideram-se como os mais sábios
dentre os homens. Essa presunção deslustrou
completamente seu saber a meus olhos. Foi assim
que, colocando-me no lugar do oráculo e
perguntando a mim mesmo o que eu mais gostaria
de ser, se o que sou ou o que eles são, se saber o
que eles aprenderam ou saber que nada sei,
respondi a mim mesmo e ao deus: quero ficar como
sou”.
"Não sabemos, nem os sofistas, nem os poetas,
nem os oradores ou os artistas, nem eu mesmo, o
que é o verdadeiro, o bom e o belo. Há, porém, entre
nós uma diferença, qual seja, a de que, ainda que
essas pessoas nada saibam, creem todas saber
alguma coisa, enquanto que eu, se nada sei, pelo
menos não duvido disso, de modo que toda essa
superioridade de sabedoria, que me foi concedida
pelo oráculo, reduz-se unicamente a estar bem
convencido de que ignoro aquilo que não sei”.
Aí está, pois, o mais sábio dos homens no julgamento dos
deuses e o mais sábio dos atenienses na opinião de toda a
Grécia, Sócrates, fazendo o elogio da ignorância! Seria de
crer que, se ressuscitasse entre nós, nossos sábios e nossos
artistas fariam com que mudasse de opinião? Não, meus
senhores, esse homem justo continuaria a desprezar nossas
ciências vãs, em absoluto ajudaria a aumentar essa
multidão de livros com que nos inundam de todos os lados,
e, como o fez, só deixaria, como único preceito a seus
discípulos e a nossos descendentes, o exemplo e a
memória de sua virtude. Eis como é belo instruir os
homens.
Sócrates começou em Atenas, o velho Catão continuou
em Roma a deblaterar contra esses gregos artificiosos e
sutis que seduziam a virtude e afrouxavam a coragem de
seus concidadãos. Mas continuaram a prevalecer as
ciências, as artes e a dialética; Roma encheu-se de filósofos
e de oradores, descuidou-se da disciplina militar,
desprezou-se a agricultura, adotaram-se certas seitas e
esqueceu-se a pátria. Às sagradas palavras liberdade,
desinteresse, obediência às leis, sucederam os nomes de
Epicuro, Zenão e Arcesilas. "Depois que os sábios
começaram a surgir entre nós", diziam os próprios filósofos,
"eclipsaram-se as pessoas de bem". Até então os romanos
tinham-se contentado em praticar a virtude; tudo se perdeu
quando começaram a estudá-la.
Oh, Fabrício! Que teria pensado vossa grande alma, se,
voltando à vida, para vossa infelicidade, vísseis a face
pomposa dessa Roma salva por vosso braço e que vosso
nome respeitável ilustrou mais do que todas as suas
conquistas? "Deuses", teríeis dito, "em que se
transformaram esses tetos de choupanas e esses lares
rústicos nos quais outrora habitavam a moderação e a
virtude? Que esplendor funesto é esse, que sucedeu à
simplicidade romana? Que língua estranha é essa? Que
costumes efeminados são esses? Que significam essas
estátuas, esses quadros, esses edifícios? Insensatos, que
fizestes? Vós, senhores das nações, vós vos tornastes os
escravos desses homens frívolos que vencestes! São os
retóricos que vos governam! Foi para enriquecer arquitetos,
poetas, estatuários e histriões que regastes com vosso
sangue a Grécia e a Ásia! Os despojos de Cartago são a
presa de um tocador de flauta! Romanos, apressai-vos em
destruir esses anfiteatros, em quebrar esses mármores, em
queimar esses quadros, em escorraçar esses escravos que
vos subjugam e cujas artes funestas vos corrompem. Que
outras mãos se ilustrem com tão vãos talentos. O único
talento digno de Roma é o de conquistar o mundo e de nele
fazer reinar a virtude. Quando Cineas tomou nosso senado
por uma assembleia de reis, não se deslumbrou nem por
uma pompa vã, nem por uma elegância rebuscada; nele
não ouviu essa eloquência frívola, o estudo e o encanto dos
homens fúteis. Que viu, pois, Cineas de tão majestoso? Ó
cidadãos! Ele viu um espetáculo que nem vossas riquezas
ou todas as vossas artes jamais darão; viu o mais belo
espetáculo que já apareceu sob o céu: a assembleia de
duzentos homens virtuosos, dignos de dominar Roma e de
governar a terra."
Transponhamos, porém, a distância dos lugares e dos
tempos e vejamos o que se passou em nossas regiões e
sob nossos olhos, ou melhor, afastemos as pinturas odiosas
que feririam nossa delicadeza e poupemo-nos o trabalho de
repetir as mesmas coisas sob outros nomes. Não foi em vão
que evoquei os manes de Fabrício, nem fiz com que esse
grande homem dissesse o que não poderia pôr na boca de
Luís XII ou de Henrique IV? É verdade que, entre nós,
Sócrates absolutamente não teria bebido a cicuta, mas
teria bebido, num copo ainda mais amargo, a zombaria
insultante e o desprezo cem vezes pior do que a morte.
Eis como o luxo, a dissolução e a escravidão foram, em
todos os tempos, o castigo dos esforços orgulhosos que
fizemos para sair da ignorância feliz na qual nos colocara a
sabedoria eterna. O véu espesso, com que cobriu todas as
suas operações, parecia advertir-nos suficientemente de
que não nos destinou a buscas vãs. Haverá, porém, entre
essas lições, algumas que tenhamos sabido aproveitar ou
de que tenhamos descuidado impunemente? Povos, sabei,
pois, de uma vez por todas, que a natureza vos quis
preservar da ciência como a mãe arranca uma arma
perigosa das mãos do filho; que todos os segredos, que ela
esconde de vós, são tantos outros males de que vos
defende e que vosso trabalho para vos instruirdes não é o
menor de seus benefícios. Os homens são perversos;
seriam piores ainda se tivessem tido a infelicidade de
nascer sábios.
Como são humilhantes para a humanidade tais reflexões!
Como nosso orgulho deve ficar mortificado com elas!
Como? A probidade seria filha da ignorância? Seriam
incompatíveis a ciência e a virtude? Que consequências não
tiraríamos desses preconceitos? Mas, para conciliar essas
contradições aparentes, basta examinar de perto a vaidade
e o vazio desses títulos orgulhosos, que nos ofuscam, e que
damos, em plena gratuidade, aos conhecimentos humanos.
Consideremos, pois, as ciências e as artes em si mesmas,
vejamos o que deve resultar de seu progresso e não
hesitemos em concordar sem restrições quando nossos
raciocínios estiverem de acordo com as induções históricas.
Segunda Parte
Era tradição antiga, levada do Egito para a Grécia, que o
inventor das ciências fora um deus inimigo do repouso dos
homens. Que opinião deveriam, pois, ter das ciências os
próprios egípcios, entre os quais elas nasceram? Explica-se:
conheciam de perto as fontes que as tinham produzido.
Com efeito, quer folheando os anais do mundo, quer
suprindo crônicas imprecisas com buscas filosóficas, para
os conhecimentos humanos não se encontrará origem que
corresponda à ideia que se gosta de formar a seu respeito.
A astronomia nasceu da superstição; a eloquência, da
ambição, do ódio, da adulação, da mentira; a geometria, da
avareza; a física, de uma curiosidade infantil; todas elas, e
a própria moral, do orgulho humano. As ciências e as artes
devem, portanto, seu nascimento a nossos vícios: teríamos
menor dúvida quanto às suas vantagens, se o devessem a
nossas virtudes.
O pecado de sua origem marcou-se fartamente em seus
objetos. Que faríamos das artes sem o luxo que as nutre?
Sem as injustiças dos homens, de que serviria a
jurisprudência? Que seria da história, se não houvesse nem
tiranos, nem guerras ou conspiradores? Numa palavra,
quem desejaria passar a vida em contemplações estéreis,
se cada um, não consultando senão os deveres do homem
e as necessidades da natureza, só desse seu tempo à
pátria, aos infelizes e a seus amigos? Somos feitos, então,
para morrer amarrados às bordas do poço para onde a
verdade se retirou? Somente esta reflexão deveria dissuadir
todo homem que procurasse seriamente instruir-se pelo
estudo da filosofia.
Quantos perigos e caminhos ilusórios na investigação das
ciências! Por quantos erros, mil vezes mais perigosos do
que é inútil a verdade, não se tem de passar para chegar a
ela! A desvantagem é visível, pois o falso é suscetível de
uma infinidade de combinações e a verdade tem uma única
maneira de ser. Aliás, quem a procura sinceramente?
Mesmo com a melhor boa vontade, quais os indícios que
asseguram o seu reconhecimento? Nessa multidão de
sentimentos diferentes, qual será o nosso critério para
julga-los? E, o que é mais difícil ainda, se por felicidade
enfim o encontramos, qual de nós saberá dar-lhe bom uso?
Se nossas ciências são inúteis no objeto que se propõem,
são ainda mais perigosas pelos efeitos que produzem.
Nascidas na ociosidade, por seu turno a nutrem, e a
irreparável perda de tempo é o primeiro prejuízo que
determinam forçosamente na sociedade. Na política, como
na moral, é um grande mal não se fazer de algum modo o
bem e todo cidadão inútil pode ser considerado um homem
pernicioso. Respondei-me, pois, filósofos ilustres, vós por
intermédio de quem sabemos por que razões os corpos se
atraem no vácuo; quais são, nas revoluções dos planetas,
as relações entre as áreas percorridas em tempos iguais;
quais as curvas que têm pontos conjugados, pontos de
inflexão e de retrocesso; como o homem vê tudo em Deus;
como, sem comunicação, se correspondem a alma e o
corpo, tal como o fariam dois relógios; quais os astros que
podem ser habitados; quais os insetos que se reproduzem
de modo extraordinário - respondei-me, repito, vós de
quem recebemos tantos conhecimentos sublimes, se não
nos tivésseis nunca ensinado tais coisas, seríamos com isso
menos numerosos, menos bem governados, menos
temíveis, menos florescentes ou mais perversos?
Reconhecei, pois, a pouca importância de vossas produções
e, se o trabalho dos mais esclarecidos de nossos sábios e
de nossos melhores cidadãos nos proporciona tão parca
utilidade, dizei-nos o que devemos pensar dessa chusma de
escritores obscuros e de letrados ociosos que, em pura
perda, devoram a substância do Estado.
Que digo? Ociosos? Quisera Deus que o fossem
efetivamente! Os costumes, com isso, seriam mais sãos e a
sociedade mais sossegada. Esses vãos e fúteis
declamadores andam, porém, por todas as partes, armados
com seus funestos paradoxos, minando os fundamentos da
fé e enfraquecendo a virtude. Sorriem desdenhosamente
das velhas palavras pátria e religião, e dedicam seus
talentos e sua filosofia a destruir e aviltar quanto existe de
sagrado entre os homens. Não que no fundo odeiem a
virtude ou nossos dogmas; é da opinião pública que são
inimigos e, para tornar a trazê-los ao pé do altar, bastaria
relegá-los ao meio dos ateus. Ó fúria de ser diferente, que
poder o vosso!
O abuso do tempo constitui grande mal. Outros males,
piores ainda, acompanham as letras e as artes. Tal é o luxo,
como elas nascido da ociosidade e da vaidade dos homens.
O luxo, raramente, apresenta-se sem as ciências e as artes,
e estas jamais andam sem ele. Eu sei que nossa filosofia,
sempre fecunda em máximas singulares, pretende, contra a
experiência de todos os séculos, que o luxo seja o
esplendor dos Estados; depois, porém, de ter esquecido a
necessidade das leis suntuárias, ousaria ela também negar
que sejam os bons costumes essenciais à duração dos
impérios e o luxo diametralmente oposto aos bons
costumes? Que seja o luxo um indício certo de riquezas;
que sirva até, caso se queira, para multiplicá-las; que se
deveria concluir desse paradoxo tão digno de ter nascido
em nossos dias? E que se tornará a virtude, desde que seja
preciso enriquecer a qualquer preço? Os antigos políticos
falavam constantemente de costumes e de virtudes, os
nossos só falam de comércio e de dinheiro. Um vos dirá que
um homem numa determinada região vale a soma pela
qual o venderiam na Argélia; outro, seguindo esse cálculo,
encontrará regiões nas quais um homem nada vale, e
outras em que ele vale menos do que nada. Avaliam os
homens como gado. Segundo eles, um homem só vale para
o Estado pelo seu consumo; assim, um sibarita valeria bem
trinta lacedemônios. Adivinhe-se, pois, qual das duas
repúblicas - a de Esparta ou a de Síbaris - foi subjugada por
um punhado de camponeses e qual das duas fez a Ásia
tremer.
A monarquia de Ciro foi conquistada, com trinta mil
homens, por um príncipe mais pobre do que o menor dos
sátrapas da Pérsia, e os citas, o mais miserável de todos os
povos, resistiram aos monarcas mais poderosos do
universo. Duas famosas repúblicas disputaram entre si o
império do mundo; uma era muito rica, a outra nada tinha e
foi esta que destruiu a primeira. O império romano, por sua
vez, depois de ter devorado todas as riquezas do universo,
tornou-se presa de um povo que nem sabia o que fosse a
riqueza. Os francos conquistaram os gauleses, e os saxões
a Inglaterra, sem outros tesouros além de sua bravura e de
sua pobreza. Um troço de montanheses pobres, cuja
cupidez toda se limitava a algumas peles de carneiro,
depois de ter dominado o orgulho austríaco, esmagou
aquela opulenta e temível casa de Borgonha que fazia os
potentados da Europa tremerem. Finalmente, todo o poder
e toda a sabedoria do herdeiro de Carlos V, sustentados por
todos os tesouros das Índias, acabariam por derrocar no
encontro com um punhado de pescadores de arenque. Que
nossos políticos se dignem, pois, a suspender seus cálculos
para refletir sobre esses exemplos e que aprendam, de uma
vez por todas, que com o dinheiro se tem tudo, salvo
costumes e cidadãos.
De que precisamente se trata, pois, nessa questão de
luxo? Trata-se de saber o que é mais importante para os
impérios - serem brilhantes e momentâneos, ou virtuosos e
duráveis. Digo brilhantes, mas qual o seu brilho? O gosto
pelo fausto absolutamente não se associa, nas mesmas
almas, com o da honestidade. Não, não é possível que
espíritos degradados por um mundo de preocupações fúteis
se elevem por uma vez a algo de grande e, se tivessem
força, faltar-lhes-ia coragem.
Todo artista quer ser aplaudido. Os elogios de seus
contemporâneos são a parte mais preciosa de suas
recompensas. Que não fará para obtê-las, se teve a
infelicidade de nascer entre um povo e no tempo em que os
sábios, ficando na moda, colocaram uma juventude frívola
em posição de dar o tom; onde todos os homens
sacrificaram seu gosto aos tiranos de sua liberdade; em
que, não ousando um dos sexos aprovar senão o que é
proporcional à pusilanimidade do outro, deixam-se perder
obras-primas de poesia dramática e rejeitam-se prodígios
de harmonia? O que fará ele, senhores? Rebaixará seu
gênio ao nível de seu século e preferirá compor obras
comuns, que sejam admiradas durante sua vida, a
maravilhas que só serão admiradas muito tempo depois de
sua morte. Dizei-nos, célebre Arouêt, quantas belezas
masculinas e fortes não sacrificastes à nossa falsa
delicadeza, e quanto o espírito da galanteria, tão fértil em
pequenas coisas, não vos custou em grandes coisas!
Desse modo, a dissolução dos costumes, consequência
forçosa do luxo, acarreta por sua vez a corrupção do gosto.
Se, por acaso, entre os homens extraordinários por seus
talentos, encontra-se um que possua firmeza de alma e se
recuse a ceder ao espírito de seu século e aviltar-se com
produções pueris, desgraçado dele! Morrerá na indigência e
no esquecimento. Não é prognóstico que faço, mas
experiência que relato! Carle! Pierre! Chegou o momento
em que o pincel, destinado a aumentar a majestade de
nossos templos por meio de imagens sublimes e santas,
cairá de vossas mãos ou será prostituído por ter de ornar
com pinturas lascivas os painéis de uma carruagem. E tu,
rival dos Praxíteles e dos Fídias, tu, cujos ancestrais usaram
o cisel para fazer deuses capazes de desculpar a nossos
olhos sua idolatria - inimitável Pigal, tua mão se contentará
em rebocar o ventre de um boneco ou então terá de ficar
inativa.
Não se pode refletir sobre os costumes sem se comprazer
com a lembrança da imagem da simplicidade dos primeiros
tempos. É uma bela praia, ornada unicamente pelas mãos
da natureza, para a qual incessantemente se voltam os
olhos e da qual com tristeza se sente afastar-se. Quando os
homens inocentes e virtuosos amavam ter os deuses como
testemunhas de suas ações, moravam juntos na mesma
cabana, mas, assim que se tornaram maus, cansaram-se
com esses espectadores incômodos e os isolaram em
templos magníficos. Escorraçaram-nos por fim para aí se
estabelecerem eles próprios, ou, pelo menos, os templos
dos deuses não se distinguiram mais das casas dos
cidadãos. Chegou-se então ao cúmulo da depravação e os
vícios nunca foram levados mais longe do que quando
foram vistos, por assim dizer, apoiados, na entrada do
palácio dos grandes, sobre colunas de mármore e gravados
sobre capitéis coríntios.
Enquanto se multiplicam as comodidades da vida, as
artes se aperfeiçoam e o luxo se espalha, a verdadeira
coragem se debilita e as virtudes militares desfalecem: é
ainda a obra das ciências e de todas as artes que atuam
nas sombras dos gabinetes. Quando os godos arrasaram a
Grécia, todas as bibliotecas só se salvaram do fogo devido
a uma opinião espalhada entre eles e segundo a qual se
deveria deixar aos inimigos móveis tão próprios a desviá-
los do exercício militar e a distraí-los com ocupações
ociosas e sedentárias. Carlos VIII viu-se senhor da Toscana
e do reino de Nápoles quase sem ter desembainhado a
espada e toda a sua corte atribuiu essa facilidade
inesperada a mais se divertirem o príncipe e a nobreza da
Itália com tornarem-se engenhosos e sábios do que se
adestrando para se tornarem vigorosos e aguerridos. Com
efeito, disse o homem de juízo que relata esses dois traços,
todos os exemplos nos ensinam que, nessa política marcial
e em todas as que lhe são semelhantes, o estudo da ciência
é muito mais adequado a afrouxar e afeminar a coragem do
que a fortalecê-la e a animá-la.
Os romanos confessaram que a virtude militar se
extinguira entre eles à medida que começaram a se
conhecer em quadros, em relevos, em vasos de ourivesaria
e a cultivar as belas-artes, e, como se fosse essa região
famosa destinada a servir continuamente de exemplo aos
outros povos, a elevação dos Médicis e o restabelecimento
das letras fizeram cair novamente, e talvez para sempre,
aquela reputação guerreira que a Itália parecia ter
recuperado há alguns séculos.
As antigas repúblicas da Grécia, com aquela sabedoria
que brilhava na maioria de suas instituições, interditavam a
seus cidadãos todos os ofícios tranquilos e sedentários que,
enfraquecendo e corrompendo o corpo, rapidamente
debilitam a alma. Com efeito, de que maneira poderão
enfrentar a fome, a sede, as fadigas, os perigos e a morte,
homens que a necessidade abate e que a menor pena
desanima? Com que coragem os soldados suportarão
trabalhos excessivos aos quais não estão habituados? Com
que ardor farão marchas forçadas sob o comando de
oficiais que não têm sequer força para viajar a cavalo? Que
não me objetem com o valor glorificado de todos esses
modernos guerreiros tão habilmente disciplinados.
Enaltecem sua bravura num dia de batalha, mas não me
dizem em absoluto como suportam o excesso de trabalho,
como resistem ao rigor das estações e às intempéries do
clima. Basta um pouco de solou de neve, a privação de
algumas coisas supérfluas para, em poucos dias, fundir e
destruir o melhor de nossos exércitos. Guerreiros
intrépidos, admiti de uma vez por todas a verdade, para
vós tão difícil de compreender. Sois bravos, eu o sei;
triunfaríeis com Aníbal em Cannes e na Trasimena; César
convosco teria atravessado o Rubicão e subjugado seu país;
mas não seria convosco que o primeiro teria atravessado os
Alpes e que o segundo teria vencido vossos antepassados.
Os combates nem sempre fazem o sucesso da guerra e
há para os generais uma arte superior à de ganhar
batalhas. O que corre para o fogo com intrepidez não
deixará de ser bem mau oficial; no próprio soldado, um
pouco mais de força e de vigor seriam talvez mais
necessários do que tanta bravura, que não o salva da
morte. E que importa ao Estado que suas tropas pereçam
de febre e frio, ou pela espada do inimigo?
Se a cultura das ciências é prejudicial às qualidades
guerreiras, ainda o é mais às qualidades morais. Já desde
os primeiros anos, uma educação insensata orna nosso
espírito e corrompe nosso julgamento. Vejo em todos os
lugares estabelecimentos imensos onde a alto preço se
educa a juventude para aprender todas as coisas, exceto
seus deveres. Vossos filhos ignoram a própria língua, mas
falarão outras que em lugar algum se usam; saberão
compor versos que dificilmente compreenderão; sem saber
distinguir o erro da verdade, possuirão a arte de torná-los
ambos irreconhecíveis aos outros, graças a argumentos
especiosos; mas não saberão o que são as palavras
magnanimidade, equidade, temperança, humanidade e
coragem; nunca lhes atingirá o ouvido a doce palavra pátria
e, se ouvem falar de Deus, será menos para reverenciá-lo
do que para temê-lo. Preferiria, dizia um sábio, que meu
aluno tivesse passado o tempo jogando péla, pois pelo
menos o corpo estaria mais bem disposto. Sei que é preciso
ocupar as crianças e que a ociosidade constitui para elas o
maior dos perigos a evitar. Que deverão, pois, apreender?
Eis uma questão interessante. Que aprendam o que devem
fazer sendo homens e não o que devem esquecer.
Nossos jardins estão ornados de estátuas e nossas
galerias de quadros. Que representam, em vossa opinião,
essas obras-primas da arte expostas à admiração pública?
Os defensores da pátria? Ou aqueles homens, maiores
ainda, que a enriqueceram com suas virtudes? Não. São
imagens de todos os desvarios do coração e da razão,
cuidadosamente extraídos da mitologia antiga e
apresentados precocemente à curiosidade dos nossos
filhos, sem dúvida para que tenham, diante dos olhos,
mesmo antes de saberem ler, modelos de más ações.
De onde nascem todos esses abusos senão da funesta
desigualdade introduzida entre os homens pelo privilégio
dos talentos e pelo aviltamento das virtudes? Aí está o
efeito mais evidente de todos os nossos estudos, a mais
perigosa de suas consequências. Não se pergunta mais a
um homem se ele tem probidade, mas se tem talento; nem
de um livro se é útil, mas se é bem escrito. As recompensas
são prodigalizadas ao engenho e fica sem glórias a virtude.
Há mil prêmios para os belos discursos, nenhum para as
belas ações. Que me digam, no entanto, se é comparável a
glória, conferida ao melhor dos discursos premiados nesta
academia, ao mérito de ter instituído o prêmio.
O sábio de modo algum corre atrás da fortuna, mas não é
insensível à glória; quando a vê tão mal distribuída, sua
virtude, que um pouco de emulação teria animado e
tornado proveitosa à sociedade, cai na indolência e se
extingue na miséria e no esquecimento. Eis o que, com o
correr do tempo e em todos os lugares, causa a preferência
dos talentos agradáveis aos úteis e o que a experiência
vem confirmando, à saciedade, desde o renascimento das
ciências e das artes. Temos físicos, geômetras, químicos,
astrônomos, poetas, músicos, pintores; não temos mais
cidadãos ou, se nos restam alguns deles dispersos pelos
nossos campos abandonados, lá perecem indigentes e
desprezados. Esse o estado a que estão reduzidos, esses os
sentimentos que encontram, em nós, aqueles que nos dão
o pão e dão o leite a nossos filhos.
Confesso, no entanto, não ser o mal tão grande quanto
poderia ter-se tornado. A providência eterna, colocando
plantas medicinais salutares ao lado de várias plantas
nocivas e, na constituição de inúmeros animais malignos, o
remédio para seus ferimentos, ensinou aos soberanos, que
são seus ministros, a imitarem-lhe a sabedoria. Foi
seguindo tal exemplo que, do próprio seio das ciências e
das artes, fontes de milhares de devassidões, esse grande
monarca, cuja glória de época em época só se tornará mais
brilhante, extraiu essas sociedades célebres, encarregadas
tanto do perigoso depósito dos conhecimentos humanos
quanto do depósito sagrado dos costumes, pela
preocupação que têm de mantê-los, em si próprias, com
toda a pureza, e de exigi-los dos membros que recebem.
Essas sábias instituições, fortificadas pelo seu augusto
sucessor e imitadas por todos os reis da Europa, servirão
pelo menos de freio aos letrados que, aspirando todos à
glória de serem admitidos nas academias, velarão por si
mesmos e se esforçarão por se tornarem dignos, graças a
obras úteis e costumes irrepreensíveis. Aquelas dentre
essas companhias que, pelo prêmio com que homenageiam
o mérito literário, fizeram uma escolha de temas capazes
de reanimar nos corações dos cidadãos o amor à virtude,
demonstrarão que esse amor reina entre eles e darão aos
povos o prazer, tão raro e tão doce, de ver as sociedades
cultas se dedicarem a lançar sobre o gênero humano não
somente luzes agradáveis, mas também instruções
saudáveis.
Que não me oponham, pois, uma objeção que para mim
não passa de nova prova. Tantos cuidados só mostram a
necessidade de torná-los e de modo algum procuram-se
remédios para males inexistentes. Por que deverão estes
ainda trazer, pela sua insuficiência, o caráter de remédios
comuns? Tantas afirmações em favor dos sábios só servem
para enganar quanto ao objeto das ciências e para desviar
os espíritos para sua cultura. Devido às precauções que se
tomam, parece haver trabalhadores demais e temer-se que
faltem filósofos. Não ousarei fazer, nesse ponto, uma
comparação entre a agricultura e a filosofia: seria
intolerável. Que é a filosofia?
Qual o conteúdo das obras dos filósofos mais conhecidos?
Quais são as lições desses amigos da sabedoria? Ouvindo-
os, não os tomaríamos por uma turba de charlatães
gritando, cada um para seu lado, numa praça pública:
"Vinde a mim, só eu não engano!" Um pretende não haver
corpos e que tudo só existe como representação; o outro,
não haver outra substância senão a matéria, nem outro
deus senão o mundo. Este avança não haver nem virtudes,
nem vícios, e serem quimeras o bem e o mal morais;
aquele, que os homens são lobos e podem, com a
consciência tranquila, se devorarem uns aos outros. Oh!
Grandes filósofos, por que não reservais para vossos
amigos e filhos essas lições proveitosas? Teríeis logo a
recompensa e não temeríamos encontrar entre os nossos
alguns de vossos sectários.
Aí estão, pois, os homens maravilhosos a quem foi
prodigalizada durante a sua vida a estima de seus
contemporâneos e reservada a imortalidade depois de seu
transpasse. Aí estão as sábias máximas que deles
recebemos e que, de geração em geração, transmitimos a
nossos descendentes. O paganismo, entregue a todos os
desvarios da razão humana, teria deixado à posteridade
alguma coisa que possa ser comparada aos monumentos
vergonhosos que lhe preparou a imprensa sob o reinado do
Evangelho? Os escritos ímpios, de Leucipo a Diágoras,
pereceram com eles; não se tinha ainda inventado a arte
de eternizar as extravagâncias do espírito humano, mas,
graças aos caracteres tipográficos e à utilização que deles
fazemos, ficarão para sempre os perigosos sonhos dos
Hobbes e dos Spinozas. Ide, obras célebres, das quais a
ignorância e a rusticidade de nossos pais não seriam
capazes; acompanhai, entre nossos descendentes, essas
obras mais perigosas ainda, de que exala a corrupção dos
costumes de nosso século, e levai juntas aos séculos
vindouros uma história fiel das vantagens de nossas
ciências e de nossas artes. Se vos lerem, não deixareis
dúvida alguma sobre a questão que discutimos hoje e, a
menos que sejam mais insensatos do que nós, levantarão
as mãos aos céus e dirão, com o coração amargurado:
"Deus todo-poderoso, tu, que tens nas mãos os espíritos,
livra-nos das luzes e das artes funestas de nossos pais, e
restitui-nos a ignorância, a inocência e a pobreza, os únicos
bens que podem fazer nossa felicidade e que são preciosos
para ti".
Mas, se o progresso das ciências e das artes nada
acrescentou à nossa verdadeira felicidade, se corrompeu os
costumes e se a corrupção dos costumes chegou a
prejudicar a pureza do gosto, que pensaremos dessa
multidão de autores secundários que afastaram do templo
das musas as dificuldades que lhes barravam o acesso e
que a natureza tinha aí espalhado como uma prova para a
força daqueles que seriam tentados a saber? Que
pensaríamos desses compiladores de obras que
indiscretamente forçaram a porta das ciências e
introduziram em seu santuário uma populaça indigna de
aproximar-se delas, enquanto seria de desejar-se que todos
aqueles que não pudessem ir longe na carreira das letras
fossem obstados desde o começo e se lançassem às artes
úteis à sociedade? Alguém que durante toda a vida será um
mau versificador, um geômetra subalterno, ter-se-ia talvez
tornado um grande fabricante de tecidos. Não carecem de
professores aqueles a quem a natureza destinou a fazer
discípulos. Os Verulamios, os Descartes e os Newtons,
esses preceptores do gênero humano, não tiveram
preceptores, e qual o guia que os teria conduzido até onde
os levou seu imenso gênio? Professores comuns só teriam
podido constranger a sua compreensão, forçando-os a
estreitar a capacidade deles próprios. Foi pelos primeiros
obstáculos que eles aprenderam a esforçar-se e que
tentaram transpor o espaço imenso que percorreram. Se é
preciso permitir a alguns homens entregarem-se ao estudo
das ciências e das artes, isso só se fará com aqueles que se
sentirem com forças para andarem sozinhos em suas
sendas e ultrapassá-las; é a esse pequeno número que
cabe elevar monumentos à glória do espírito humano. Mas,
se se quiser que nada esteja acima de seu gênio, impõe-se
que nada esteja aquém de suas esperanças: nisso consiste
o único encorajamento de que necessitam. A alma,
insensivelmente, se ajusta aos seus objetos e são as
grandes ocasiões que fazem os grandes homens. O príncipe
da eloquência foi cônsul de Roma, e o maior talvez dos
filósofos, chanceler da Inglaterra. Crer-se-ia que se ele não
tivesse ocupado senão uma cátedra em qualquer
universidade e se mais não tivesse obtido além de módica
pensão acadêmica, crer-se-ia, repito, que não se
ressentiriam suas obras de sua situação? Que os reis não
desdenhem, pois, de admitir em seus conselhos as pessoas
mais capazes de bem os aconselhar; que renunciem a esse
velho preconceito, inventado pelo orgulho dos grandes, que
diz ser a arte de conduzir os povos mais difícil do que a de
esclarecê-los, como se fosse mais fácil levar os homens a
agir com acerto por sua livre vontade do que obrigá-los a
tanto pela força; que os sábios de primeira ordem
encontrem nas suas cortes asilos dignos; que nelas
obtenham a única recompensa digna deles, que é a de
contribuir com a sua parte para a felicidade dos povos a
quem ensinarão a sabedoria. Então, somente, ver-se-á o
que podem a virtude, a ciência e a autoridade animadas
por uma emulação nobre e trabalhando concordes em favor
da felicidade do gênero humano. Mas, enquanto o poder
estiver sozinho de um lado e, de outro, sozinhas as luzes e
a sabedoria, os sábios raramente pensarão grandes coisas,
os príncipes mais raramente farão belas coisas e os povos
continuarão a ser abjetos, corrompidos e infelizes.
Quanto a nós, homens vulgares, a quem o céu não
concedeu talentos tão grandes e que não fomos por ele
destinados a tamanha glória, permaneçamos na
obscuridade. Não corramos atrás de uma reputação que
nos escaparia e que, na situação atual das coisas, jamais
nos devolveria o seu preço, ainda que tivéssemos todos os
títulos para obtê-la. De que serve procurar nossa felicidade
na opinião de outrem, se podemos encontrá-la em nós
mesmos? Deixemos a outros o cuidado de instruir os povos
sobre os seus deveres e limitemo-nos a bem cumprir os
nossos; não temos necessidade de saber mais.
Oh! Virtude, ciência sublime das almas simples, serão
necessários, então, tanta pena e tanto aparato para
conhecer-te? Teus princípios não estão gravados em todos
os corações? E não bastará, para aprender tuas leis, voltar-
se sobre si mesmo e ouvir a voz da consciência no silêncio
das paixões? Aí está a verdadeira filosofia; saibamos
contentarmo-nos com ela e, sem invejar a glória desses
homens célebres que se imortalizam na república das
letras, esforcemo-nos para estabelecer, entre eles e nós,
essa gloriosa distinção que outrora se conhecia entre dois
grandes povos: um sabia dizer bem e o outro obrar bem.
RESPOSTAS DADAS POR JEAN-
JACQUES ROUSSEAU ÀS OBJEÇÕES
DIRIGIDAS A SEU DISCURSO
Carta ao Sr. Padre Raynal
Diretor do Mercure de France

Devo, senhor, agradecer àqueles que vos transmitiram as


observações que tendes a bondade de comunicar-me e
esforçar-me-ei para delas tirar o melhor proveito. Confesso,
não obstante, que considero os meus censores um pouco
severos quanto à minha lógica e suponho que se
mostrariam menos escrupulosos se tivesse a opinião deles.
Parece-me, pelo menos, que, se tivessem um pouco dessa
exatidão rigorosa que exigem de mim, absolutamente não
necessitaria dos esclarecimentos que vou pedir-lhes.
Parece que o autor, dizem eles, prefere a situação em que
estava a Europa antes do renascimento das ciências;
estado pior do que a ignorância, devido ao falso saber ou à
algaravia que então dominava.
Parece querer o autor dessa observação fazer-me dizer
que o falso saber ou o jargão escolástico seja preferível à
ciência e, contudo, fui eu mesmo quem disse ser pior do
que a ignorância. Mas que entende ele pela palavra
situação? Aplica-a às luzes ou aos costumes, ou confunde
essas coisas que tive tanto trabalho para distinguir? Quanto
ao resto, como nesse ponto estamos no fundo da questão,
confesso que foi bastante inábil de minha parte ter deixado
apenas parecer que tomava um partido.
Acrescenta que o autor prefere a rusticidade à polidez.
É verdade que o autor prefere a rusticidade à polidez
orgulhosa e falsa de nosso século, e diz por quê. É que ele
liquida de vez com todos os sábios e artistas. Seja, posto
que assim se quer - consinto em suprimir todas as
distinções que nesse sentido levantei.
Ele deveria ainda, continuam, assinalar seu ponto de
partida para designar a época da decadência. Fiz mais do
que isso; tornei minha proposição geral. Assinalei esse
primeiro passo da decadência dos costumes justamente no
primeiro momento da cultura das letras em todos os países
do mundo e verifiquei como é sempre proporcional o
progresso desses dois fatos. E, voltando a essa primeira
época, comparar os costumes desse tempo com os nossos.
É o que faria mais longamente num volume in-4º, Sem isso
não veríamos até onde se deveria voltar, a menos que não
seja ao tempo dos apóstolos. Não vejo o inconveniente que
haveria nisso, se o fato fosse verdadeiro. Peço, porém,
justiça ao censor: quereria ele que dissesse ser a época da
mais profunda ignorância a dos apóstolos?
Dizem mais, em relação ao luxo, que se sabe dever ser
ele, em boa política, interditado aos pequenos Estados, mas
ser totalmente diferente o caso de um reino como o de
França, sendo conhecidas as razões.
Não terei, também aqui, motivos para me lamentar? Tais
razões são aquelas que me esforcei para responder. Bem
ou mal, respondi. Ora, em absoluto, não se poderia dar a
um autor maior sinal de desprezo do que lhe respondendo
com os mesmos argumentos que refutou. Mas será
necessário indicar-lhes a dificuldade que deverão resolver?
É a seguinte: que acontecerá à virtude quando for preciso
enriquecer-se a qualquer preço? É isso que lhes perguntei e
que lhes pergunto ainda.
Quanto às duas observações seguintes, a primeira das
quais começa por estas palavras - Por fim, eis o que eu
objeto, etc., e a outra por estas - Mas o que impressiona
mais de perto, etc. -, suplico ao leitor que me poupe o
trabalho de transcrevê-las. A Academia me perguntara se o
restabelecimento das ciências e das artes contribuíra para
aprimorar os costumes. Essa a questão que tinha para
resolver; no entanto, imputam-me o crime de não ter
resolvido outra. Certamente essa crítica é pelo menos
bastante singular. Não obstante, tenho quase de pedir
perdão ao leitor por tê-la previsto, pois é o que poderá crer
lendo as cinco ou seis últimas páginas de meu discurso.
Ademais, se meus censores se obstinam ainda em querer
conclusões práticas, prometo-as, bem claramente
enunciadas, na minha primeira resposta.
Sobre a inutilidade das leis suntuárias para extirpar o luxo
depois de instalado, diz-se que o autor não ignora o que há
para ser dito a esse respeito. Realmente, não ignoro que,
quando um homem está morto, não se deve chamar o
médico.
Nunca se faria ressaltar bastante verdades que chocam
tão frontalmente o gosto geral e impõe-se afastar qualquer
possibilidade de chicana. Não sou dessa opinião e acho ser
preciso deixar os brinquedos às crianças.
Há muitos leitores que gostariam mais delas num estilo
mais simples do que sob essa veste de cerimônia exigida
pelos discursos acadêmicos. Tenho exatamente o gosto
desses leitores. Eis um ponto em que posso concordar com
o sentimento de meus censores, como o faço desde já.
Ignoro qual seja o adversário com o qual me ameaçam no
pós-escrito; seja quem for, não poderia resolver-me a
responder uma obra antes de tê-la lido, nem a me
considerar vencido antes de ter sido atacado.
Quanto ao mais, quer responda aos críticos que me são
anunciados, quer me contente com publicar a obra
aumentada que me pedem, advirto os meus censores de
que, possivelmente, nela não encontrarão as modificações
que esperam. Prevejo que, quando for o momento de
defender-me, conformar-me-ei, sem escrúpulos, com todas
as consequências de meus princípios.
Sei, de antemão, quais as palavras grandiosas com que
serei atacado: luzes, conhecimentos, leis, moral, razão,
decoro, consideração, doçura, polidez, educação, etc. A
tudo isso só responderei com duas outras palavras que
soam ainda mais fortes ao meu ouvido: Virtude! Verdade!
Gritarei sem cessar: Verdade! Virtude! Se alguém nelas só
perceber palavras, nada mais tenho a dizer-lhe.
Carta de J.-J. Rousseau ao Sr. Grimm
Sobre a refutação de seu Discurso pelo Sr. Gautier,
professor de matemática e de história, e membro da
Academia Real de Belas-Letras de Nancy.

Devolvo, senhor, o Mercure de outubro que teve a


bondade de emprestar-me. Li, com muito prazer, a
refutação que o Sr. Gautier teve o trabalho de fazer a meu
Discurso. Não me creio, porém, como o senhor pretende, na
obrigação de respondê-la, e aqui estão minhas objeções:
1º Não posso convencer-me de que, para ter-se razão,
se deva obrigatoriamente falar por último.
2º Quanto mais releio a refutação, mais me convenço
de que não tenho necessidade de dar ao Sr. Gautier
outra resposta além do próprio discurso a que
respondeu. Leia, peço-lhe, num e noutro trabalho, os
artigos referentes ao luxo, à guerra, às academias, à
educação; leia a prosopopeia de Luís, o Grande, e a de
Fabrício; leia, por fim, a conclusão do Sr. Gautier e a
minha, e compreenderá o que quero dizer.
3º Penso, em tudo, tão diferentemente do Sr. Gautier
que, se tivesse de reforçar todos os pontos em que não
estamos de acordo, seria obrigado a combatê-lo mesmo
naqueles pontos que trataria como ele, e isso me daria
uma feição obstinada que bem gostaria de poder evitar.
Por exemplo, falando da polidez, ele dá a entender,
muito claramente, que, para tornar-se homem de bem, é
bom começar por ser hipócrita, e que a falsidade é um
caminho certo para chegar à virtude. Diz, ainda, que os
vícios enfeitados com a polidez não são contagiosos
como o seriam apresentando-se de frente, com
rusticidade; que a arte de penetrar os homens fez
progresso idêntico à de disfarçar-se; que nos
convencemos de não se dever contar com os homens, a
menos que lhes agrademos ou que lhes sejamos úteis;
que se sabe avaliar as ofertas sedutoras da polidez, o
que, sem dúvida, quer dizer que, quando dois homens se
cumprimentam, do fundo do coração um diz ao outro
"eu vos trato como um idiota e rio-me de vós", e o outro
responde-lhe do fundo do seu coração "sei que mentis
despudoradamente, mas vos retribuo com a maior boa
vontade". Se eu tivesse querido empregar a mais
amarga ironia, teria podido dizer quase a mesma coisa.
4º Em cada página da refutação, vê-se que o autor não
entende absolutamente, ou não quer entender, a obra
que refuta, o que certamente lhe é mais cômodo,
porque, respondendo sempre ao seu pensamento e
nunca ao meu, tem a melhor das ocasiões para dizer
quanto lhe aprazo Por outro lado, se minha réplica se
torna com isso mais difícil, torna-se também menos
necessária, pois jamais se ouviu dizer que um pintor que
expõe um quadro ao público seja obrigado a examinar
os olhos dos espectadores e fornecer óculos a quantos
deles necessitem.
Além disso, não estou muito seguro de que me faria
entender, mesmo replicando. Sei, por exemplo - diria ao Sr.
Gautier -, que nossos soldados não são Réaumurs e
Fontenelles e isso é péssimo para eles, para nós e,
sobretudo, para os inimigos. Sei que nada sabem, que são
brutais e grosseiros e, contudo, disse e repito que eles são
entorpecidos pelas ciências que desprezam e pelas belas-
artes que ignoram. Um dos grandes inconvenientes da
cultura das letras consiste em que, iluminando apenas
alguns homens, corrompem, em pura perda, toda uma
nação. Ora, como bem pode ver, senhor, isso seria somente
outro paradoxo inexplicável para o Sr. Gautier, para esse Sr.
Gautier que me pergunta orgulhosamente o que as tropas
possuem de comum com as academias, se os soldados
mostrariam mais bravura estando mal vestidos e mal
nutridos; o que quero dizer ao adiantar que, à força de
enaltecer os talentos, se negligenciam as virtudes; e ainda
levanta outras questões semelhantes, todas demonstrando
a impossibilidade de respondê-las inteligentemente dentro
do critério de quem as enunciou. Creio que concordará não
valer a pena explicar-me uma segunda vez para não ser
melhor entendido do que na primeira.
5º Se quisesse responder à primeira parte da
refutação, seria um nunca acabar. O Sr. Gautier julga
oportuno indicar os autores que devo citar e aqueles que
devo rejeitar. Sua escolha é inteiramente natural: recusa
a autoridade daqueles que depõem em meu favor e quer
que eu recorra aos que ele crê contrários a mim. Em vão
procuraria fazê-lo compreender que é decisiva uma
única testemunha em meu favor, enquanto cem
depoimentos nada provam contra meu sentimento,
porque os testemunhos são partes no processo; em vão
lhe pediria para distinguir entre os exemplos que alega;
em vão lhe exporia que são duas coisas totalmente
diferentes ser bárbaro e ser criminoso e que os povos
verdadeiramente corrompidos são menos os que têm
leis más do que aqueles que desprezam as leis. É fácil
prever a réplica. Como dar fé a escritores escandalosos,
que ousam enaltecer bárbaros que não sabem nem ler
nem escrever? Como sequer supor-se pudor em gente
que anda completamente nua, e virtude naqueles que
comem carne crua? Então será preciso discutir. Eis
Heródoto, Estrabão, Pompônio Meia às turras com
Xenofonte, Justino, Quinto Cúrcio, Tácito; eis-nos nas
buscas em críticos, nas antiguidades, na erudição. As
brochuras transformam-se em volumes, os livros se
multiplicam e a questão é esquecida. É o destino das
disputas de literatura, que, depois de in-fólios de
esclarecimentos, terminam sempre por não mais saber
onde se está. Não vale a pena recomeçar.
Se eu quisesse replicar à segunda parte, isso logo se
faria, mas nada ensinaria a ninguém. O Sr. Gautier se
contenta, ao refutar-me nesse ponto, em dizer sim em
todos os lugares em que digo não, e não em todos aqueles
em que digo sim; não preciso, pois, mais que dizer
novamente não sempre que disse não, sim em todos os
lugares em que disse sim, e suprimir as provas: com isso
responderia com toda a exatidão. Seguindo o método do Sr.
Gautier, não posso, pois, responder às duas partes da
refutação sem dizer demais e de menos; ora, eu muito
desejaria não fazer nem uma coisa nem outra.
6º Eu poderia seguir outro método e examinar
separadamente os raciocínios do Sr. Gautier e o estilo da
refutação.
Se examinasse os raciocínios, ser-me-ia fácil mostrar que
todos levam ao erro, que o autor não compreendeu a
natureza da questão e que de modo algum me entendeu.
Por exemplo, o Sr. Gautier tem o trabalho de me ensinar
que há povos corruptos que não são cultos. Eu, de minha
parte, já duvidara que os calmuques, os beduínos e os
cafres não eram prodígios nem de virtude, nem de
erudição. Se o Sr. Gautier tivesse posto o mesmo cuidado
em apontar-me algum povo culto que não fosse corrupto,
ter-me-ia surpreendido mais. Faz-me sempre raciocinar
como se eu tivesse dito ser a ciência a única fonte de
corrupção entre os homens; se ele, de boa fé, acreditou
nisso, admiro a bondade que teve em responder-me.
Diz ele que o convívio com o mundo basta para adquirir-
se aquela polidez de que se preza um cavalheiro. Conclui
daí, que não se encontra base para glorificar as ciências.
Mas a que nos permitiria ele glorificar? Desde que os
homens vivem em sociedade, houve povos polidos e outros
não. O Sr. Gautier esqueceu-se de dar-nos o motivo desta
diferença.
O Sr. Gautier admira sempre a pureza de nossos
costumes atuais. Essa sua boa opinião certamente muito
honra aos seus costumes, mas não demonstra uma grande
experiência. Dir-se-ia, dado o tom em que fala, que estudou
os homens como os peripatéticos estudavam a física, sem
sair de seu gabinete. Quanto a mim, fechei meus livros e,
depois de ter ouvido falar os homens, observei-os a agir.
Não representa maravilha que, tendo seguido métodos tão
diversos, concordemos tão pouco em nossos juízos.
Reconheço que não se poderia empregar linguagem mais
honesta do que a de nosso século, e é isso que impressiona
o Sr. Gautier. Mas vejo também que não se poderia ter
costumes mais corrompidos, e aí está o que me
escandaliza. Será que pensamos termo-nos tornado
pessoas de bem porque, à força de dar nomes decentes a
nossos vícios, aprendemos a não corar mais com eles?
Diz ele, ainda, que, embora se pudesse provar com fatos
ter sempre reinado com as ciências a dissolução dos
costumes, não se concluirá que a sorte da probidade
depende do progresso delas. Depois de haver dedicado a
primeira parte de meu discurso a provar terem essas coisas
sempre andado juntas, destinei a segunda a mostrar que,
com efeito, uma se prende à outra. A quem, pois, poderia
imaginar que, nesse ponto, responde o Sr. Gautier?
Ele me parece sobretudo muito escandalizado com a
maneira por que falei da educação dos colégios. Comunica-
me que aí se ensina aos moços não sei quantas coisas
belas, que poderão ser de muito auxílio para a sua
distração quando crescerem, mas confesso não perceber
quais as suas relações com os deveres dos cidadãos, aos
quais se deve começar por instruir. "Perguntamo-nos
geralmente: Saberá grego ou latim? Escreve em verso ou
em prosa? Mas o que importa é saber se tornou-se melhor
ou mais prudente, eis o que fica em dúvida. Aludindo a
alguém que passa, gritai a nosso povo: Oh! que homem
sábio!; e a respeito de outro: Oh! que bom homem! - não
deixará de dirigir os olhos e o respeito para o primeiro.
Deveria aparecer um terceiro gritador dizendo: Oh!
cabeças-duras!"
Disse eu que a natureza quis nos preservar da ciência,
como uma mãe arranca uma arma perigosa das mãos de
seu filho, e que o trabalho que nos dá para nos instruirmos
não é o menor de seus benefícios. O Sr. Gautier teria
preferido que dissesse: Povos! Sabei, pois, de uma vez por
todas, que a natureza não quer que vos nutrais com as
produções da terra; o trabalho que exigiu para a sua cultura
é um aviso para que a deixeis inculta. O Sr. Gautier não
imaginou que se tem, com um pouco de trabalho, a certeza
de fazer pão, mas que com muito estudo é bastante
duvidoso que se consiga fazer um homem razoável. Não
pensou, ainda, que essa não passa de mais uma
observação em meu favor, pois, por que terá a natureza
nos imposto trabalhos necessários, senão para desviar-nos
das ocupações ociosas? Mas, dado o desprezo que
demonstra pela agricultura, vê-se facilmente que, se
dependesse dele, todos os trabalhadores desertariam dos
campos para ir argumentar nas escolas, ocupação essa,
segundo o Sr. Gautier e de acordo, creio, com muitos
professores, bastante importante para a felicidade do
Estado.
Raciocinando sobre um trecho de Platão, presumi que
talvez os antigos egípcios não concedessem às ciências a
importância que se poderia crer. O autor da refutação me
pergunta como se pode fazer essa opinião concordar com a
inscrição que Osimândias pusera na sua biblioteca. Essa
objeção teria cabimento quando esse príncipe era vivo.
Agora que está morto, pergunto, por minha vez, onde está
a necessidade de fazer concordar o sentimento do Rei
Osimândias com o dos sábios do Egito. Se ele tivesse
contado e, sobretudo, pesado os votos, quem me diria que
a palavra "venenos" não teria substituído a palavra
"remédios".
Deixemos, porém, essa pomposa inscrição. Esses
remédios são excelentes, concordo, e já o repeti muitas
vezes. Mas será isso motivo para administrá-los
inadvertidamente e sem levar em consideração o
temperamento dos doentes? Certo alimento é muito bom
em si, mas num estômago enfermo só produzirá indigestão
e mau humor. Que se dirá de um médico que, depois de ter
feito o elogio de algumas carnes suculentas, concluir que
todos os doentes deverão fartar-se delas?
Demonstrei que as ciências e as artes debilitam a
coragem. O Sr. Gautier chama a isso um modo singular de
raciocinar e não vê ligação entre a coragem e a virtude.
Não obstante, não é, segundo parece, coisa tão difícil de
compreender. Aquele que já se acostumou a preferir sua
vida ao dever não tardará muito em preferir também as
coisas que tornam a vida fácil e agradável.
Disse que a ciência convém a alguns grandes gênios, mas
que é sempre prejudicial aos povos que a cultivam. O Sr.
Gautier diz que Sócrates e Catão, que censuravam as
ciências, não obstante, eram eles próprios homens muito
sábios, e acha que com isso me refutou.
Disse que Sócrates era o mais sábio dos atenienses e
nisso baseio a autoridade de seu testemunho, o que não
impede o Sr. Gautier de comunicar-me ter sido Sócrates um
sábio.
Ele me censura por ter afirmado que Catão desprezava os
filósofos gregos; fundamenta-se no fato de que Carnéades
se comprazia estabelecendo e destruindo as mesmas
proposições, o que não é muito pertinente acerca de Catão
contra a literatura dos gregos. O Sr. Gautier deveria antes
dizer-nos qual era o país e o ofício desse Carnéades.
Carnéades, sem dúvida, é o único filósofo e o único sábio
que se preocupou em sustentar o pró e o contra; de outro
modo, tudo o que diz o Sr. Gautier não significaria
absolutamente nada. Neste ponto eu recorro à sua
erudição.
Se a refutação não é abundante de bons raciocínios, em
compensação o é de belas declamações. O autor, em todas
as passagens, substitui pelos ornamentos da arte a solidez
das provas que ele prometia ao começar e, prodigalizando
pompa oratória numa refutação, é que me censura por tê-la
empregado num discurso acadêmico.
A que tendem, pois, diz o Sr. Gautier, as eloquentes
declamações do Sr. Rousseau? A abolir, caso fosse possível,
as vãs declamações dos colégios. Quem não se indignará
ao ouvi-la afirmar que temos as aparências de todas as
virtudes e nenhuma delas? Confesso haver um pouco de
lisonja ao dizer que temos todas as aparências delas; mas o
Sr. Gautier, mais do que ninguém, deveria perdoar-me isso.
E por que não temos mais virtude? É porque se cultivam as
belas-letras, as ciências e as artes. Justamente por isso. Se
fôssemos grosseiros, rústicos, ignorantes, gados, hunos e
vândalos, seríamos dignos dos elogios do Sr. Rousseau. Por
que não? Haverá algum desses nomes que exclua a
virtude? Não se cansará de invectivar os homens? Não se
cansarão eles de serem maus? Crer-se-á, sempre, torná-los
mais virtuosos dizendo-lhes que não têm virtude? Crer-se-á
torná-los melhores persuadindo-os de que são
suficientemente bons? Sob o pretexto de aprimorar os
costumes, será permitido destruir-lhes as bases? Sob o
pretexto de esclarecer os espíritos, dever-se-á perverter as
almas? Oh! Doces laços da sociedade, encanto dos
verdadeiros filósofos, amáveis virtudes, é flor vossos
próprios atrativos que reinais nos corações; não deveis
vosso império nem à severidade estoica, nem aos clamores
bárbaros, nem aos conselhos de uma rusticidade orgulhosa.
De início, salientarei uma coisa muito divertida: de todas
as seitas dos filósofos antigos atacadas por mim como
inúteis à virtude, os estoicos são os únicos que o Sr. Gautier
me deixa e que parece até querer pôr de meu lado. Ele tem
razão; não ficarei por isso muito mais orgulhoso.
Mas, vejamos, por um instante, se poderei apresentar
exatamente em outros termos o sentido desta exclamação:
Oh! Doces virtudes, é pelos vossos próprios atrativos que
reinais nas almas. Não tendes necessidade de toda essa
grande pompa de ignorância e de rusticidade; sabeis
chegar ao coração por vias mais simples e mais naturais.
Basta saber a retórica, a lógica, a física, a metafísica e a
matemática para adquirir o direito de possuir-vos.
Outro exemplo do estilo do Sr. Gautier:
Sabeis que as ciências das quais se ocupam os jovens
filósofos nas universidades são a lógica, a meta física, a
moral, a física e a matemática elementar. Se já o soube, já
o esqueci, como fazemos ao nos tornarmos razoáveis. São
essas, pois, de acordo convosco, especulações estéreis?
Estéreis segundo a opinião comum, mas, a meu parecer,
muito férteis de coisas más. As universidades vos devem
um grande favor, por terdes lhes ensinado que a verdade
dessas ciências se retirou para o fundo de um poço. Não
creio ter ensinado isso a ninguém; essa afirmação não é de
minha invenção, ela é tão antiga quanto a filosofia.
Ademais, sei que as universidades não me devem nenhum
reconhecimento e eu não ignorava, ao tomar da pena, que
não podia, ao mesmo tempo, fazer a corte aos homens e
prestar homenagem à virtude. Os grandes filósofos, que as
possuem num grau altíssimo, sem dúvida sentem-se
bastante surpresos por saberem que nada sabem. Creio,
com efeito, que esses grandes filósofos que possuem todas
as ciências em altíssimo grau ficariam muito surpresos por
saberem que nada sabem, mas eu ficaria ainda mais
surpreso se esses homens, que sabem tantas coisas,
porventura soubessem isso.
Noto que o Sr. Gautier, que sempre me trata com a maior
polidez, não poupa nenhuma ocasião de aliciar-me
inimigos; a esse respeito, estende seu devotamento desde
os professores de colégio até o poder soberano. O Sr.
Gautier faz muito bem em justificar os usos da sociedade;
vê-se que não lhe são estranhos. Mas voltemos à refutação.
Todos esses modos de escrever e de raciocinar, que não
vão bem a um homem de tanto espírito quanto me parece
ser o Sr. Gautier, sugeriram-me uma conjetura, que achará
ousada e que acredito razoável. Ele me acusa, certamente
sem nisso acreditar, de não estar completamente
persuadido da opinião que defendo. Eu suponho, com mais
fundamento, estar ele secretamente de acordo comigo: os
lugares que ocupa, as circunstâncias em que se encontra
colocaram-no numa espécie de necessidade de tomar
partido contra mim. As conveniências de nosso século
servem para muitas coisas; ele terá, pois, me refutado
pelas conveniências, mas tomou todas as precauções e
empregou toda a arte possível para fazê-lo de modo a não
persuadir ninguém.
Nesse sentido, começa por declarar, muito fora de
propósito, que a causa defendida por ele interessa à
felicidade da assembleia a que fala e à glória do príncipe
sob cujas leis tem o prazer de viver. É precisamente como
se dissesse: Não podeis, senhores, sem ingratidão para
com vosso protetor, deixar de me dar razão e, mais, é
vossa própria causa que pleiteio hoje perante vós. Desse
modo, de qualquer lado que encareis minhas provas, tenho
o direito de esperar que não apresentareis objeção à sua
solidez. Sustento que todo homem que fala desse modo
deseja antes tapar a boca das pessoas do que convencê-
las.
Se o senhor ler atentamente a refutação, não encontrará
quase uma linha que não pareça lá estar esperando e
indicando sua resposta. Um único exemplo bastará para me
fazer compreender.
As vitórias que os atenienses conseguiram sobre os
persas e sobre os lacedemônios mostram que as artes
podem associar-se à virtude militar. Pergunto se não vai
nisso um estratagema para lembrar o que disse sobre a
derrota de Xerxes e para me fazer pensar no desenlace da
guerra do Peloponeso. Seu governo, tornando-se venal sob
Péricles, adquiriu novo aspecto: o amor pelo prazer asfixia-
lhes a bravura, as mais honrosas funções são aviltadas, a
impunidade multiplica os maus cidadãos, os fundos
destinados à guerra são utilizados para alimentar a incúria
e a ociosidade; que relação tem com as ciências essas
causas de corrupção?
Que faz, nesse ponto, o Sr. Gautier, senão lembrar a
segunda parte de meu Discurso, onde patenteei essa
relação? Observe a arte com que apresenta, como causa,
os efeitos da corrupção, a fim de levar todo homem de bom
senso a subir por si mesmo à primeira causa dessas
pretensas causas. Observe, ainda, como, deixando que o
leitor reflita, finge ignorar o que não se pode supor seja de
fato por ele ignorado e o que todos os historiadores dizem
unanimemente - que a depravação dos costumes e do
Governo dos atenienses foi obra dos oradores. É certo, pois,
que me atacar desse modo é indicar-me muito claramente
as respostas que devo dar.
Todavia, isso não passa de conjetura, que não pretendo
afirmar. O Sr. Gautier talvez não me aprovasse, se quisesse
justificar seu saber a expensas de sua boa fé; mas, se com
efeito expressou-se sinceramente ao refutar o meu
Discurso, como o Sr. Gautier, que é professor de história,
professor de matemática, membro da Academia de Nancy,
não desconfiou um pouco de todos esses títulos que
possui?
Não replicarei, pois, ao Sr. Gautier: é questão resolvida.
Jamais poderia responder com seriedade e seguir ponto por
ponto a refutação - o senhor compreende por quê; e seria
não reconhecer devidamente os elogios com os quais o Sr.
Gautier me honra, empregar o ridiculum acri, a ironia e a
brincadeira de mau gosto. Sinto já meus receios de que
tenha bastante para lamentar-se no tom desta carta. Pelo
menos não ignorava ele, ao escrever sua refutação, que
atacava um homem que não dá à polidez a importância
bastante para aprender a disfarçar com ela seus
sentimentos.
Quanto ao mais, estou pronto a prestar ao Sr. Gautier
toda a justiça que lhe é devida. Seu trabalho parece-me o
de um homem de espírito que possui seus conhecimentos.
Outros, talvez, nele encontrarão filosofia; quanto a mim,
nele percebi muita erudição.
Sou, de todo o coração, senhor, etc.

P. S. Acabo de ler, na Gazette de Utrecht de 22 de


outubro, uma exposição pomposa sobre a obra do Sr.
Gautier e essa exposição parece feita de propósito para
confirmar minhas suposições. Um autor, que tem alguma
confiança em sua obra, deixa aos outros o cuidado de fazer-
lhe o elogio e limita-se a dela fazer um bom resumo; o da
refutação é feito com tanta habilidade que, embora recaia
em coisas de somenos empregadas por mim para servir de
transição, não há uma única sobre a qual um leitor
judicioso possa ser da opinião do Sr. Gautier.
Segundo ele, não é verdade que a história extraia dos
vícios do homem seu interesse principal.
Poderia apresentar as provas do raciocínio e, para colocar
o Sr. Gautier no seu campo, citar-lhe-ia algumas
autoridades.
Felizes os povos cujos reis fizeram pouco ruído na
história! Se os homens algum dia se tornassem sábios, sua
história de modo algum seria divertida.
O Sr. Gautier diz, com razão, que uma sociedade, mesmo
que fosse composta unicamente de homens justos, não
poderia subsistir sem leis, e daí conclui não ser verdade
que a jurisprudência seria inútil sem as injustiças dos
homens. Um autor tão erudito confundiria a jurisprudência
com as leis?
Poderia ainda abandonar as provas do raciocínio e, para
pôr o Sr. Gautier no seu terreno, citar-lhe-ia fatos.
Os lacedemônios não tinham nem jurisconsultos nem
advogados, suas leis nem sequer eram escritas e, não
obstante, possuíam leis. Recorro à erudição do Sr. Gautier
para saber se as leis eram menos bem observadas na
Lacedemônia do que nos países em que formigam os
jurisconsultos.
Absolutamente não me deterei em todas as minúcias que
servem de texto ao Sr. Gautier e que exibe na Gazette, mas
terminarei com esta observação, que submeto ao vosso
exame:
Demos em tudo razão ao Sr. Gautier e cortemos de meu
Discurso todas as coisas que ele ataca; minhas provas não
perderão quase nada de sua força. Afastemos do trabalho
do Sr. Gautier tudo o que não se refere ao fundo da
questão; dele não restará quase nada.
Concluo sempre não ser preciso responder ao Sr. Gautier.

Paris, 1º de novembro de 1751.


Resposta de J.-J. Rousseau ao Rei da
Polônia, Duque da Lorena
Sobre a refutação feita por esse príncipe ao seu
Discurso

Devo antes um agradecimento do que uma réplica ao


autor anônimo que acaba de honrar meu Discurso com uma
resposta; mas o que devo ao reconhecimento não me fará
esquecer o que devo à verdade, nem esquecerei também
que, todas as vezes que se trata da razão, os homens
entram no direito da natureza e retomam sua antiga
igualdade.
O discurso a que tenho de replicar está cheio de coisas
muito reais e muito bem provadas, às quais não cabe
qualquer resposta, pois, embora seja nele qualificado de
doutor, ficaria muito aborrecido de ser incluído no número
daqueles que sabem responder a tudo.
Minha defesa não será por isso menos fácil: limitar-se-á a
comparar as verdades com que me objetaram minha
opinião, pois, se provar que aquelas não impugnam a esta,
já será, creio, tê-la defendido o bastante.
Posso reduzir a dois pontos principais todas as
proposições oferecidas pelo meu adversário: um
compreende o elogio das ciências, o outro trata de seu
abuso. Examiná-los-ei separadamente.
Parece, pelo tom da resposta, que agradaria bastante se
eu tivesse dito das ciências muito mais mal do que com
efeito o fiz. Supõe-se ter-me custado muito seu elogio, que
se encontra no começo de meu Discurso; é, segundo o
autor, uma confissão arrancada à verdade e que não tardei
em desdizer.
Se essa confissão é um elogio arrancado pela verdade,
precisa-se, portanto, crer que eu pensasse das ciências o
bem que delas disse; o bem que o próprio autor da resposta
delas diz não é, pois, contrário ao meu sentimento. Essa
confissão, dizem, é arrancada à força; tanto melhor para a
minha causa, porquanto isso mostra que em mim a verdade
é mais forte do que a inclinação. Mas com que base se
pode dizer que esse elogio é forçado? Por ser malfeito? Isso
seria iniciar um processo terrível contra a sinceridade dos
autores, julgando-os por esse novo princípio. Por muito
curto? Parece-me que eu poderia facilmente dizer menos
coisas num número maior de páginas. É, diz-se, porque me
retratei. Ignoro em que lugar cometi tal falta e quanto
posso responder é que não tive essa intenção.
A ciência é muito boa em si mesmo, eis o que é evidente,
e seria preciso ter renunciado ao bom senso para dizer o
contrário. O autor de todas as coisas é a fonte da verdade;
tudo conhecer é um de seus atributos divinos: adquirir
conhecimentos e espalhar luzes equivale, pois, a participar,
de certo modo, da inteligência suprema. Nesse sentido
louvei o saber e nesse sentido louvo meu adversário. Ele se
estende ainda acerca dos vários gêneros de utilidade que o
homem pode tirar das artes e das ciências e eu teria de boa
vontade feito o mesmo, se isso pertencesse ao meu
assunto. Estamos, assim, perfeitamente de acordo nesse
ponto.
Mas como pode ser que as ciências, cuja fonte é tão pura
e o fim tão louvável, deem origem a tantas impiedades, a
tantas heresias, tantos erros, tantos sistemas absurdos,
tantas contrariedades, tantas inépcias, tantas sátiras
amargas, tantos romances miseráveis, tantos versos
licenciosos, tantos livros obscenos e, naqueles que as
cultivam, a tanto orgulho, tanta avareza, tanta
malignidade, tanta intriga, tanto ciúme, tanta mentira,
tanta torpeza, tantas calúnias, tantas adulações covardes e
vergonhosas? Eu diria que a ciência, apesar de muitíssimo
bela e muitíssimo sublime, não é feita para o homem; que
lhe basta estudar seus deveres e que cada um recebeu
todas as luzes necessárias a esse estudo. Meu adversário
confessa, de sua parte, tornarem-se as ciências prejudiciais
quando se abusa delas, e que muitos delas efetivamente
abusam; eu ajunto, é certo, que delas se abusa muito, que
delas se abusa sempre, e não me parece que se afirme o
contrário na resposta.
Posso, pois, assegurar que nossos princípios e,
consequentemente, todas as proposições que se podem
deduzir, nada têm de opostos. e isso é que tinha de provar.
Todavia, quando chegamos a concluir, nossas conclusões
mostram-se contrárias. A minha afirmava que, posto que as
ciências fazem mais mal aos costumes do que bem à
sociedade, seria desejável que os homens se dedicassem a
ela com menor ardor. A de meu adversário diz que, embora
as ciências causem grande mal, não se deve deixar de
cultivá-las pelo bem que trazem. Recorro não ao público,
mas ao pequeno número de verdadeiros filósofos, para
saber qual das conclusões deve ser preferida.
Restam-me ainda ligeiras observações a fazer sobre
certas passagens dessa resposta, que me pareceram algo
faltas da justeza que, de bom grado, admirei nas outras e,
por isso, puderam contribuir para o erro da conclusão que o
autor delas tira.
A obra começa com algumas mordacidades que só
salientarei na medida em que tocam à questão. O autor me
honra com inúmeros elogios, e, certamente, isso vale por
abrir-me uma bela carreira. Mas há bem pouca proporção
entre essas coisas; um silêncio respeitoso sobre os
objetivos de nossa admiração frequentem ente convém
mais do que louvores indiscretos.
Diz o autor que meu discurso tem muita coisa que
surpreende. Parece-me que se impõe um esclarecimento.
Diz ainda estar surpreendido por vê-lo premiado;
entretanto, não é um prodígio ver premiadas obras
medíocres. Em qualquer outro sentido, tal surpresa seria
tão honrosa à Academia de Dijon quanto injuriosa à
integridade dos acadêmicos em geral; é fácil de ver como
disso tiraria vantagem para minha tese.
Acusam-me, com frases muito agradavelmente
compostas, de contradições entre minha conduta e minha
doutrina. Censuram-me por ter eu mesmo cultivado os
estudos que condeno. Como a ciência e a virtude são
incompatíveis, coisa que me esforço por provar, segundo
pretendem, perguntam-me em tom instante como ouso
servir-me de uma, declarando-me em favor de outra.
Há muita habilidade em fazer com que eu mesmo me
comprometa na questão; essa mordacidade não deixará de
causar embaraços à minha resposta; ou, antes, às minhas
respostas, pois infelizmente tenho de dar mais de uma.
Esforcemo-nos, pelo menos, para que nelas a exatidão
substitua o agrado.
1º Que a cultura das ciências corrompe os costumes
de uma nação, eis o que ousei sustentar e ouso crer ter
provado. Como poderia, porém, ter dito que em cada
homem em particular são incompatíveis a ciência e a
virtude, eu que exortei os príncipes a chamarem para a
sua corte os verdadeiros sábios e emprestar-lhes sua
confiança a fim de que, pelo menos por uma vez, se veja
o que podem, a ciência e a virtude reunidas, dar à
felicidade do gênero humano? Esses verdadeiros sábios
formam um pequeno número, confesso, pois para fazer
bom uso da ciência é preciso reunir grandes talentos e
grandes virtudes. Isso só se pode esperar de algumas
almas privilegiadas, e não se pode esperar de um povo
em seu todo. Não se poderia, pois, concluir, de meus
princípios, que um homem não consiga ser, ao mesmo
tempo, sábio e virtuoso.
2º Mesmo que essa pretensa contradição realmente
existisse, menos legítimo seria constranger-me
pessoalmente por sua causa. Adoro a virtude; meu
coração é testemunha disso e diz-me também,
claramente, como é distante esse amor da prática que
torna o homem virtuoso. Aliás, estou bem longe de
possuir a ciência e, mais ainda, de afetar possuí-la.
Acreditei defender-me dessa imputação com a confissão
ingênua que fiz no começo de meu discurso. Temia,
antes, que me acusassem de julgar coisas
desconhecidas por mim. Facilmente se compreende ser-
me impossível evitar, ao mesmo tempo, essas duas
reprimendas.
Quem sabe se não chegariam até a reuni-las, se me
apressasse a condenar uma delas, por pouco justa que
fosse?
3º Poderia citar, a esse respeito, o que dizem os
padres da Igreja sobre as ciências mundanas que
desprezam e às quais, todavia, recorrem para combater
os filósofos pagãos. Poderia citar a comparação que
fazem delas com os vasos roubados, aos egípcios, pelos
israelitas o. Contentar-me-ei, porém, como última
resposta, em levantar esta questão: se alguém viesse
para matar-me e eu tivesse a felicidade de tomar-lhe a
arma, ser-me-ia proibido, antes de jogá-la fora,
aproveitá-la para expulsá-lo de minha casa?
Se a contradição de que me acusam não existe,
desnecessário será supor que tenha querido somente
distrair-me com um paradoxo frívolo e isso me parece tanto
menos cabível quanto o tom que usei, por inepto que seja,
ao menos não é aquele que se emprega nos jogos de
espírito.
É tempo de deixar de falar sobre o que me toca; nunca se
ganha nada falando de si mesmo, indiscrição que o público
dificilmente perdoa, mesmo quando se é forçado a fazê-lo.
A verdade é tão independente daqueles que a atacam e a
defendem que os autores que discutem a seu respeito
deveriam ignorar-se reciprocamente. Isso pouparia muito
papel e tinta. Mas essa regra tão fácil, para mim, de ser
praticada, absolutamente não o é para meu adversário, e
tal diferença não facilita a minha réplica.
O autor, observando que ataco as ciências e as artes
pelos efeitos que determinam nos costumes, lança mão,
para me responder, da enumeração das aplicações
proveitosas que delas se praticam em todos os Estados. É
como se, para defender um acusado, alguém se
contentasse em provar que ele passa bem de saúde, que
tem grande habilidade ou é muito rico. Desde que
concordem comigo quanto às artes e às ciências tornarem
as pessoas infelizes, não discordarei quanto a serem elas,
sem embargo, muito cômodas - será mais uma
conformidade entre elas e a maioria dos vícios.
O autor vai mais longe e pretende ser-nos ainda
necessário o estudo para admirar as belezas do universo.
Afirma que o próprio espetáculo da natureza, exposto, ao
que parece, aos olhos de todos para a instrução dos
simples, exige muita instrução nos seus observadores para
ser percebido. Confesso que essa afirmação me
surpreende. Ter-se-ia ordenado a todos os homens que
fossem filósofos ou ordenou-se que somente os filósofos
cressem em Deus? Em inúmeras passagens, a Escritura nos
exorta a adorar a grandeza e a bondade de Deus nas
maravilhas de suas obras; não julgo que em qualquer
passagem ela nos mande estudar a física, nem que o autor
da natureza seja menos bem adorado por mim, que nada
sei, do que por aquele que conhece o cedro e o hissopo, a
tromba da mosca e a do elefante. Non enim nos Deus ista
scire, sed tantumodo uti voluit.
Crê-se sempre dizer o que as ciências fazem, quando se
diz o que deveriam fazer. Eis o que, contudo, me parece
bem diferente. O estudo do universo deveria elevar o
homem a seu criador, eu o sei, mas só eleva à vaidade
humana. O filósofo que se jacta de penetrar nos segredos
de Deus ousa associar sua pretensa sabedoria à sabedoria
eterna. Aprova, censura, corrige, prescreve leis à natureza
e limites à divindade, e enquanto, por preocupar-se com
seus vãos sistemas, tem trabalhos infindos para arranjar a
máquina do mundo, o trabalhador, que vê o sol e a chuva
sucessivamente fertilizarem seus campos, admira, louva e
bendiz a mão de que recebe essas graças, sem se
preocupar com a maneira pela qual elas lhe chegam. Não
procura justificar sua ignorância ou seus vícios pela
incredulidade. Não censura as obras de Deus e não se
agarra a seu senhor para fazer brilhar sua suficiência.
Jamais o dito ímpio de Afonso X encontraria abrigo no
espírito de um homem vulgar; tal blasfêmia estava
reservada a uma boca sábia. Enquanto a sábia Grécia
estava cheia de ateus, Elieno observa que nunca um
bárbaro duvidara da existência da divindade. Podemos
notar, do mesmo modo, que em toda a Ásia só há um único
povo letrado, que mais da metade desse povo é ateu,
sendo a única nação da Ásia onde se conhece o ateísmo.
A curiosidade natural do homem, continua a escrever,
inspira-lhe o desejo de aprender. Ele deveria, pois, esforçar-
se por contê-la, como a todas as inclinações naturais. Suas
privações fazem-no sentir suas necessidades. Os
conhecimentos são úteis em muitos aspectos; no entanto,
os selvagens são homens e não sentem essa necessidade.
Suas utilizações impõem sua obrigação. Muito mais
frequentemente, impõem-lhe a de renunciar ao estudo para
ocupar-se com seus deveres. Seus progressos fazem-no
experimentar prazer. É por isso mesmo que deveria
desconfiar deles. Suas primeiras descobertas aumentam-
lhe a sede de saber. Isso, com efeito, acontece aos que têm
talento. Quanto mais ele conhece, mais sente que existem
conhecimentos a adquirir. Isto é, o efeito de todo o tempo
perdido por ele é excitá-lo a perder mais ainda. Mas há
somente um pequeno número de homens de gênio para os
quais a noção de sua ignorância se desenvolve enquanto
adquirem conhecimentos e só a eles o estudo pode
beneficiar. Os espíritos tacanhos, nem bem aprendem uma
coisa, creem tudo saber e não há espécie de tolice que tal
persuasão não os leve a realizar. Quanto mais
conhecimentos adquiridos, mais facilidade existe para bem
agir. Vê-se que, falando assim, o autor mais consultou seu
coração do que observou os homens. Ele adianta ainda ser
bom conhecer o mal para aprender a fugir dele, e dá a
entender que só se pode ter segurança da virtude depois
de tê-la posto à prova. Essas máximas são, pelo menos,
duvidosas e passíveis de discussão. Não é certo que se
esteja obrigado, para aprender a bem agir, a saber por
quantos modos se pode fazer o mal. Temos um guia interior
muito mais infalível do que todos os livros e que jamais nos
abandona no momento da necessidade. Se quiséssemos
ouvi-lo, sempre bastaria para conduzir-nos inocentemente.
E como estar-se obrigado a experimentar as forças para
assegurar-se de sua virtude, se um dos exercícios da
virtude consiste em fugir às ocasiões do vício?
O homem sábio está continuamente atento e sempre
desconfia de suas próprias forças, reserva toda a coragem
para quando tiver necessidade e jamais se expõe sem
propósito. O fanfarrão é quem continuamente se vangloria
daquilo que não pode fazer e, depois de ter desafiado e
insultado todo mundo, deixa-se bater no primeiro encontro.
Pergunto qual desses dois retratos se parece mais com um
filósofo tomado por suas paixões.
Censuraram-me por ter afetado tomar os meus exemplos
de virtude aos antigos. É bem possível que eu encontrasse
outros mais, se tivesse podido reportar-me ainda mais alto.
Citei também um povo moderno e não tenho culpa por só
ter encontrado um. Censuram-me ainda, numa máxima
geral, de paralelos odiosos, nos quais entram, ao que se
diz, menos zelo e equidade do que a inveja aos meus
compatriotas e animosidade contra meus contemporâneos.
Entretanto, ninguém mais do que eu ama sua pátria e seus
compatriotas. Finalmente, só tenho mais uma palavra de
resposta. Apresentei minhas razões e são elas que é
preciso levar em consideração; quanto às minhas
intenções, deve-se deixar o seu julgamento somente a
quem pertencem.
Não posso deixar passar em silêncio uma objeção
considerável que já me foi feita por um filósofo. Não será,
dizem-me aqui, ao clima, ao temperamento, à falta de
oportunidade, à imperfeição do objeto, à economia do
Governo, aos costumes, às leis, a outra causa qualquer,
senão às ciências, que se deva atribuir essa diferença que
às vezes se nota nos costumes em vários países e em
épocas diferentes?
Essa questão compreende noções amplas e exigiria
esclarecimentos muito extensos, que não conviriam a este
trabalho. Ter-se-ia, aliás, de examinar as relações, muito
ocultas mas muito reais, que se encontram entre a
natureza do Governo e o gênio, os costumes e os
conhecimentos, dos cidadãos, e tal coisa me lançaria em
discussões delicadas, capazes de levarem-me bem longe.
Além disso, ser-me-ia muito difícil falar do Governo sem
entregar ótimos trunfos a meu adversário e, pesando bem,
estas são pesquisas que se deveriam fazer em Genebra e
em outras circunstâncias.
Passo a uma acusação muito mais grave do que a
objeção precedente. Transcrevê-la-ei em seus próprios
termos, pois é importante apresentá-la fielmente aos olhos
do leitor.
Quanto mais o cristão examina a autenticidade de seus
títulos, mais ele se tranquiliza na posse de sua crença, mais
estuda a revelação, mais se fortifica nafé. É nas Escrituras
divinas que descobre sua origem e excelência; é nos doutos
escritos dos padres na Igreja que segue, de século em
século, seu desenvolvimento; é nos livros de moral e nos
santos anais que encontra os exemplos e tira sua aplicação.
Como? A ignorância privará a religião e a virtude de luzes
tão puras, de apoios tão poderosos? E ensinaria
atrevidamente um doutor de Genebra que a elas se deve a
irregularidade dos costumes? Ficar-se-ia mais espantado
ainda de ouvir tão estranho paradoxo, se não se soubesse
que a singularidade de um sistema, por perigoso que seja,
não constitui senão uma razão a mais para quem só tem
como regra o espírito particular.
Ouso perguntar ao autor: Como pôde dar tal
interpretação aos princípios que estabeleci? Como pôde
acusar-me de censurar o estudo da religião, eu que censuro
sobretudo o estudo de nossas ciências, vãs por nos
desviarem do estudo de nossos deveres? E que é o estudo
dos deveres do cristão, senão o de sua própria religião?
Eu deveria, sem dúvida, ter censurado expressamente
todas essas sutilezas pueris da escolástica com as quais,
sob pretexto de esclarecer os princípios da religião, se
enfraquece o espírito, substituindo a humildade cristã pelo
orgulho científico. Deveria ter-me levantado com maior
ímpeto contra esses ministros indiscretos que primeiro
ousaram tocar a arca, para fortificar, com seu fraco saber,
um edifício sustentado pela mão de Deus. Deveria ter-me
indignado contra esses homens frívolos que, com suas
miseráveis disputas, aviltaram a simplicidade sublime do
Evangelho e reduziram a doutrina de Jesus Cristo a
silogismos. Mas, trata-se, hoje, de defender-me e não de
atacar.
Vejo que esta disputa deverá terminar pela história e
pelos fatos. Se eu soubesse expor em poucas palavras o
que as ciências e a religião tiveram de comum desde o
começo, talvez isso pudesse decidir a questão quanto a
este ponto.
O povo que Deus tinha escolhido para si jamais cultivou
as ciências e jamais se lhe aconselhou seu estudo; no
entanto, se esse estudo fosse bom para alguma coisa, ele,
mais do que qualquer outro, teria sentido sua necessidade.
Seus chefes, pelo contrário, sempre se esforçaram para
conservá-lo separado, tanto quanto possível, das nações
idólatras e sábias que o circundavam; precaução necessária
menos em relação a um do que a outro grupo, pois esse
povo fraco e grosseiro era muito mais fácil de seduzir-se
pelas trapaças dos padres de Baal do que pelos sofismas
dos filósofos.
Depois de dispersões frequentes entre os egípcios e os
gregos, a ciência teve ainda inúmeras dificuldades para
germinar na cabeça dos hebreus. Josefo e Filão, que em
qualquer outro lugar não teriam passado de dois homens
medíocres, foram entre eles considerados como prodígios.
Os saduceus, identificáveis pela sua irreligião, foram os
filósofos de Jerusalém; os fariseus, grandes hipócritas,
foram os doutores dessa cidade. Estes, ainda que
limitassem quase que toda a sua ciência ao estudo da lei,
faziam tal estudo com todo o fausto e toda a suficiência
dogmáticos. Observavam também, com extremo cuidado,
todas as práticas da religião, mas o Evangelho nos ensina o
espírito dessa exatidão e a importância que se deve dar-
lhe. Finalmente, todos eles tinham pouquíssima ciência e
muito orgulho e não era nisso que mais diferiam de nossos
doutores de hoje.
Na instalação da nova lei, não foi a sábios que Jesus
Cristo quis confiar sua doutrina e seu ministério. Seguiu, em
sua escolha, a predileção que demonstrou em todas as
ocasiões pelos pequenos e pelos simples, e nas instruções
que dava a seus discípulos não se encontra qualquer
palavra de estudo ou de ciência, a não ser para assinalar o
desprezo que ele tinha por tudo isso.
Depois da morte de Jesus Cristo, doze pobres pescadores
e artesãos quiseram instruir e converter o mundo. Seu
método era simples; pregavam sem arte, mas com o
coração comovido, e, de todos os milagres com os quais
Deus honrava sua fé, o mais impressionante era a
santidade de sua vida; seus discípulos seguiram esse
exemplo e o sucesso foi prodigioso. Os padres pagãos,
alarmados, fizeram com que os príncipes compreendessem
estar o Estado perdido porque as oferendas diminuíam.
Surgiram as perseguições e os perseguidores só
conseguiram acelerar os progressos dessa religião que
queriam sufocar. Todos os cristãos corriam para o martírio,
todos os povos queriam ir para o batismo; a história desses
primeiros tempos constitui um prodígio contínuo.
No entanto, os padres dos ídolos, não contentes em
perseguir os cristãos, puseram-se a caluniá-los. Juntaram-se
aos padres os filósofos que não conseguiram vantagens
numa religião que pregava a humildade. É verdade que os
simples tornaram-se cristãos, mas os sábios caçoavam
deles e sabe-se com que desprezo o próprio São Paulo foi
recebido pelos atenienses. Choviam de todas as partes os
motejos e as injúrias sobre a nova seita. Foi preciso tomar a
pena para defender-se. São Justino, o mártir, escreveu a
primeira apologia de sua fé. Atacou-se, agora, os pagãos;
atacá-los era vencê-los. Os primeiros sucessos encorajaram
outros escritores. Lançaram-se na mitologia e na erudição,
a pretexto de exporem a torpeza do paganismo; quiseram
aparentar ciência e erudição: os livros apareceram aos
milhões e os costumes começaram a relaxar-se.
Logo não se contentaram mais com a simplicidade do
Evangelho e da fé dos apóstolos; tinha-se de ter cada vez
mais espírito do que os predecessores. Sutilizaram-se
sobretudo os dogmas; cada um quis sustentar sua opinião,
ninguém quis ceder. Apareceu a ambição de ser chefe de
seita, em todas as partes pulularam as heresias.
O arrebatamento e a violência não demoraram a juntar-se
à disputa. Esses cristãos, tão doces que só sabiam estender
o pescoço ao cutelo, tornaram-se perseguidores furiosos,
piores que os idólatras; todos se atolaram nos mesmos
excessos e o partido da verdade não foi sustentado com
maior moderação do que o do erro. Outro mal ainda mais
perigoso nasceu da mesma fonte: a introdução da antiga
filosofia na doutrina cristã. À força de estudar os filósofos
gregos, acreditou-se neles encontrar relações com o
cristianismo. Ousou-se crer que a religião se tornaria mais
respeitável se revestida pela autoridade da filosofia.
Houve tempo em que era preciso ser platônico para ser
ortodoxo e pouco faltou para que, a princípio Platão, e
depois Aristóteles, fossem colocados no altar ao lado de
Jesus Cristo.
Mas, por mais que gritassem, levados pela correnteza,
foram eles próprios constrangidos a conformar-se com a
prática que condenavam e foi com muita erudição que a
maioria deles discursou contra o progresso das ciências.
Depois de longas agitações, as coisas tomaram por fim
posição mais definida. Por volta do século dez, a chama das
ciências deixou de iluminar a terra; o clero permaneceu
submerso numa ignorância que não quero defender, posto
que não dizia menos às coisas que devia saber do que
àquelas que lhe eram inúteis, mas com ela a Igreja ganhou
ao menos um pouco mais de repouso do que até então
experimentara.
Após o renascimento das letras, não tardaram a
recomeçar as divisões, mais terríveis do que nunca.
Homens sábios suscitaram a disputa, homens sábios a
sustentaram e os mais capazes mostraram-se sempre os
mais obstinados. Foi em vão que se reuniram conclaves dos
doutores dos vários partidos; nenhum deles para aí levou o
amor à reconciliação, nem, talvez, à verdade; todos só
levaram o desejo de brilhar a expensas de seu adversário;
cada qual quis vencer, nenhum quis instruir-se; o mais forte
impunha silêncio ao mais fraco; a disputa sempre
terminava por injúrias e a perseguição foi seu fruto
constante. Só Deus sabe quando terminarão todos esses
males.
As ciências estão florescentes hoje; a literatura e as artes
brilham entre nós. Que lucro tirou disso a religião?
Perguntemo-lo a essa multidão de filósofos que se
orgulham de não possuí-la. Nossas bibliotecas regurgitam
de livros de teologia e formigam entre nós os casuístas.
Outrora possuíamos santos e nenhum casuísta. A ciência se
expande e a fé enfraquece; todo mundo quer ensinar a bem
agir e ninguém quer aprendê-lo. Tomando-nos todos
doutores, deixamos de ser cristãos.
Não, não foi com tanta arte e tamanho fausto que o
Evangelho se estendeu por todo o universo e sua beleza
arrebatadora penetrou nos corações. Esse livro divino, o
único necessário ao cristão e o mais útil de todos, mesmo
para os que não o forem, só precisa ser meditado para
levar à alma o amor de seu autor e a vontade de realizar
seus preceitos. Jamais a virtude falou linguagem tão doce;
jamais a sabedoria mais profunda exprimiu-se com tanta
energia e simplicidade. Não se abandona sua leitura sem se
sentir melhor do que antes. Oh Vós, ministros da lei, que
nele me é anunciada, tende menos trabalho com instruir-
me em tantas coisas inúteis. Deixai todos esses livros
sábios, que não podem convencer-me nem impressionar-
me. Prostrai-vos aos pés desse Deus de misericórdia que
vos encarregastes de fazer-me conhecer e amar, pedi para
vós essa humildade profunda que me deveis pregar. Não
ostentai,
Padres, diante de meus olhos, essa ciência
orgulhosa, nem esse fausto indecoroso que vos
desonra e me revolta; sede, vós mesmos, tocados
pela graça se quiserdes que eu o seja e, sobretudo,
mostrai-me, na vossa conduta, a prática dessa lei,
cujo conteúdo pretendeis ensinar-me. Não tendes
necessidade de melhor sabê-la, nem de mais ensiná-
la a mim; vosso ministério cumpriu-se. Nisso tudo
não cabem belas-letras ou filosofia. Assim convém
seguir ou pregar o Evangelho, e assim seus primeiros
defensores fizeram-no triunfar sobre todas as
nações; non aristotelico more, diziam os Padres da
Igreja, sed piscatorio.
Sei que estou me estendendo muito, mas acreditei não
poder dispensar-me de fazer-me ouvir sobre um tema da
importância deste. Além disso, os leitores impacientes
precisam perceber quanto é cômoda a crítica, pois, no
ponto em que se ataca com uma palavra, são necessárias
páginas para nos defendermos.
Passo à segunda parte da resposta, na qual me esforçarei
para ser mais breve, apesar de não encontrar nela menos
observações a fazer.
Não é das ciências, dizem-me, é do seio das riquezas que,
em todos os tempos, nasceram o ócio e o luxo. Não afirmei
tampouco ter o luxo nascido das ciências, mas que
nasceram juntos e quase nunca um anda sem o outro. Eis
como apresentaria essa genealogia. A primeira fonte do
mal é a desigualdade: da desigualdade saíram as riquezas,
uma vez que as palavras rico e pobre são relativas e em
todas as partes em que os homens forem iguais não haverá
ricos nem pobres. Das riquezas nasceram o luxo e a
ociosidade; do luxo nasceram as belas-artes e, da
ociosidade, as ciências. Em tempo algum as riquezas foram
o apanágio dos sábios. Por isso mesmo, o mal se torna
maior. Os ricos e os sábios só servem para corromper-se
mutuamente. Se os ricos fossem mais sábios ou se os
sábios fossem mais ricos, uns seriam menos covardemente
aduladores, os outros gostariam menos da adulação baixa e
todos, com isso, valeriam mais. É o que se pode verificar
pelo pequeno número daqueles que têm a felicidade de ser
ao mesmo tempo sábios e ricos. Para um Pia tão na
opulência, para um Aristipo acreditado na corte, quantos
filósofos reduzidos a um capote e à miséria, agasalhados
pela própria virtude e ignorados em sua solidão! Não
discordo quanto a haver um grande número de filósofos
muito pobres e, seguramente, muito aborrecidos de o
serem. Não duvido, ainda, que não seja somente à pobreza
que a maioria deles deve sua filosofia; mas, se desejasse
supô-los virtuosos, seria segundo os seus costumes, que o
povo não conhece, que esse mesmo povo aprenderia a
reformar os seus? Os sábios não têm nem o prazer, nem a
oportunidade de reunir grandes bens. Concordo que não
tenham a oportunidade. Amam o estudo. Aquele que não
amasse o seu ofício seria homem bem tolo ou muito
miserável. Vivem na mediocridade. É preciso simpatizar
muito com eles, para nisso encontrar um mérito. Uma vida
laboriosa e moderada, vivida no silêncio da solidão,
ocupada pela leitura e pelo trabalho, certamente não
constitui uma vida voluptuosa e criminosa. Não, pelo
menos, aos olhos dos homens; tudo depende do íntimo. Um
homem pode ser obrigado a levar tal vida e, todavia, ter a
alma bastante corrompida. Aliás, que importa seja, ele
próprio, virtuoso e modesto, se os trabalhos de que se
ocupa alimentam a ociosidade e corrompem o espírito de
seus concidadãos? Sendo as comodidades da vida,
frequentemente, o fruto das artes, nem por isso constituem
o quinhão dos artistas. Não me parece, exatamente, que
eles sejam pessoas que as recusem, sobretudo aqueles que
têm mais oportunidade de obter quanto desejam. Só
trabalham para os ricos. Segundo o rumo que as coisas vão
tomando, não me admirarei de ver, qualquer dia, os ricos
trabalhando para eles. E são os ricos ociosos que
aproveitam e abusam dos frutos de sua indústria. Ainda
uma vez, não vejo como nossos artistas possam ser
pessoas tão simples e modestas. O luxo não poderia reinar
no seio duma classe de cidadãos sem logo imiscuir-se em
todas as outras, sob várias modificações, e em todas elas
determinando as mesmas devastações.
O luxo tudo corrompe, quer o rico que goza dele, quer o
pobre que o cobiça. Não se pode dizer que constitua um
mal em si mesmo usar punhos de renda, uma roupa
bordada e estojo esmaltado. Mas grande mal é fazer caso
dessas bagatelas, considerar feliz quem as possui e
consagrar o tempo e o trabalho, que todo homem deve a
objetivos mais nobres, para pôr-se em situação de adquirir
outros semelhantes. Não tenho necessidade de saber qual
o oficio daquele que se ocupa com tais ideias para saber o
julgamento que devo fazer dele.
Mostrei o belo retrato que se faz dos sábios a tal
propósito, e creio poder transformar em merecimento meu
tal complacência. Meu adversário é menos indulgente: não
somente não me concede nada do que possa me recusar e,
em lugar de condenar o mal que acuso em nossa vã e falsa
polidez, prefere desculpar a hipocrisia. Pergunta-me se eu
desejaria que o vício se mostrasse abertamente.
Certamente eu o desejaria, pois a confiança e a estima
renasceriam entre os bons, aprender-se-ia a desconfiar dos
maus e a sociedade com isso se sentiria mais segura.
Prefiro que meu inimigo me ataque frente a frente, do que
me venha ferir traiçoeiramente pelas costas. Como! Seria
preciso juntar o escândalo ao crime? Não sei; mas bem
desejaria que não lhe juntasse a mentira. São muito boas
para os corruptos todas essas máximas que, há tanto
tempo, nos prezam sobre o escândalo. Querendo-se segui-
las rigorosamente, seria preciso deixar-se pilhar, trair,
matar impunemente e jamais punir alguém, pois constitui
assunto bastante escandaloso um celerado na prisão. A
hipocrisia é uma homenagem que o vício rende à virtude,
homenagem da espécie daquela dos assassinos de César
que se prostraram a seus pés para degola-lo com mais
precisão. Por mais brilhante que seja esse pensamento, por
mais autoridade que lhe dê o nome célebre de seu autor,
nem por isso é mais justo. Poder-se-á porventura dizer de
um larápio que veste a libré de uma casa para poder agir
melhor estar prestando homenagem ao senhor da casa que
rouba? Não; cobrir sua maldade com o manto perigoso da
hipocrisia não é honrar a virtude, é ultrajá-la profanando
seus ensinamentos, é acrescentar a covardia e o embuste a
todos os outros vícios e impossibilitar a si próprio toda e
qualquer volta à probidade. Há caracteres superiores que
até no crime apresentam um não sei quê de altivo e de
generoso que ainda permite ver, no íntimo, uma centelha
desse fogo celeste feito para animar as almas belas. Mas a
alma vil e rasteira da hipocrisia assemelha-se a um
cadáver, no qual não se encontra mais nem ímpeto, nem
calor, nem esperança de vida. Recorro à experiência.
Viram-se grandes celerados recolherem-se em si mesmos,
acabar santamente sua carreira e morrer como
predestinados, mas ninguém até hoje viu um hipócrita
tornar-se homem de bem. Poder-se-ia, racionalmente,
tentar a conversão de Cartouche, mas nunca um homem
prudente tentaria a de Cromwell.
Atribuí ao restabelecimento das letras e das artes a
elegância e a polidez que dominam nossas maneiras. O
autor da resposta diverge de mim quanto a essa afirmação,
o que me admira, porquanto, se ele dá tanta importância à
polidez e faz tanto caso das ciências, não percebo qual a
vantagem de privar uma dessas coisas da honra de
produzir a outra. Examinemos, porém, as provas que
apresenta; reduzem-se elas à que se segue: Em absoluto se
verifica que os sábios sejam mais polidos do que os outros
homens; pelo contrário, frequentemente o são menos;
conclui-se, pois, que nossa polidez não é obra das ciências.
Salientarei inicialmente que aqui se trata menos das
ciências do que da literatura, das belas-artes e das obras
de gosto; nossos letrados, ainda que se diga serem pouco
sábios, mas tão polidos, tão conhecidos, tão brilhantes e
pretensiosos, dificilmente se reconhecerão no ar aborrecido
e pedante que o autor da resposta quer que tenham. Mas
concedamos-lhe essa preliminar; concordemos, se
necessário, em que os sábios, os poetas e os letrados são
todos igualmente ridículos; que os senhores da Academia
de Belas-Artes, os da Academia de Ciências, os da
Academia Francesa são pessoas grosseiras que não
conhecem o bom-tom nem os costumes da sociedade,
excluídas por seu oficio da companhia de escol. O autor
pouco ganhará com isso, e nem por isso terá mais direito a
negar que a polidez e a urbanidade reinantes entre nós
sejam resultantes do bom gosto, a princípio baldeadas dos
antigos e espalhadas entre os povos da Europa, graças aos
livros agradáveis que são publicados em toda parte. Como
os melhores mestres de dança nem sempre são aqueles
que melhor se apresentam, podemos dar ótimas lições de
polidez sem querermos ou sem podermos ser muito
polidos. Esses comentadores enfadonhos que, segundo nos
dizem, conhecem tudo dos antigos, afora a graça e a finura,
não deixaram, por via de suas obras úteis, ainda que
desprezadas, de ensinar-nos a reconhecer as belezas que
não sentiam. Acontece o mesmo com esse deleite do
comércio e com essa elegância dos costumes que se
substituem à sua pureza e que se fizeram notar em todos
os povos no meio dos quais as letras se consideravam
como uma honra; em Atenas, Roma e na China, em todos
os lugares viu-se a polidez, a linguagem e as maneiras
acompanharem sempre, não os sábios e os artistas, mas as
ciências e as belas-artes.
O autor ataca, depois, os louvores que entoei à
ignorância e, acusando-me de ter falado mais como orador
do que como filósofo, descreve por sua vez a ignorância, e
pode-se suspeitar de atribuir-lhe belas cores.
Não lhe nego razão, mas não creio ter errado. Bastará
uma distinção bem justa e verdadeira para fazer com que
concordemos.
Há uma ignorância feroz e brutal que nasce de um
coração mau e de um espírito falso; uma ignorância
criminosa que alcança até os deveres da humanidade, que
multiplica os vícios, que degrada a razão, avilta a alma e
torna os homens semelhantes aos animais - essa a
ignorância que o autor ataca e da qual apresenta um
retrato bastante odioso e bastante parecido. Há outra
espécie de ignorância razoável que consiste em limitar sua
curiosidade à extensão das faculdades que se recebeu ao
nascer; uma ignorância modesta que nasce de um vivo
amor pela virtude e só inspira indiferença por todas as
coisas que não sejam dignas de encher o coração do
homem e que não contribuam para torná-lo melhor; uma
doce e preciosa ignorância, tesouro de uma alma pura e
satisfeita consigo mesma, que põe toda a sua felicidade em
voltar-se sobre si mesma, tornar-se testemunha de sua
inocência e que não sente necessidade de procurar uma
falsa e vã felicidade na opinião que possam fazer de suas
luzes - essa a ignorância que louvei e que peço ao céu
como punição do escândalo que causei aos doutos pelo
desprezo que declarei dedicar às ciências humanas.
Que se comparem, diz o autor, a tais tempos de
ignorância e de barbárie esses séculos felizes nos quais as
ciências difundiram por todas as partes a ordem e a justiça.
Será difícil encontrar esses séculos felizes; encontraremos,
com mais facilidade, outros, nos quais, porém, graças às
ciências, a ordem e a justiça não passaram de palavras vãs,
feitas para serem impostas ao povo, e nos quais a sua
aparência terá sido conservada com tanto mais cuidado,
para que tanto mais se pudesse impunemente destruí-las.
Vemos, atualmente, guerras menos frequentes, porém mais
justas. Em que tempo for, como poderá a guerra ser mais
justa para um dos partidos sem o ser mais injusta para o
outro? Não poderia concebê-lo. Ações menos admiráveis,
porém mais heroicas. Certamente ninguém negará a meu
adversário o direito de julgar o heroísmo, mas não pensará
ele que aquilo que não lhe parece admirável poderá sê-lo
para nós? Vitórias menos sangrentas, porém gloriosas;
conquistas menos rápidas, porém mais firmes; guerreiros
menos violentos, porém mais temíveis, sabendo vencer
com moderação, tratando os vencidos com humanidade; a
honra é seu guia, a glória sua recompensa. Não nego ao
autor haver grandes homens entre nós - ser-lhe-ia bem fácil
fornecer a prova; isso não impede, porém, que os povos
sejam assaz corrompidos. Além do mais, tais coisas são tão
imprecisas que se poderiam quase dizer de todas as
épocas; a resposta é impossível porque se tornaria
necessário folhear bibliotecas e fazer in-fólios a fim de
estabelecer provas pró ou contra.
Quando Sócrates maltratou as ciências, não poderia,
parece-me, ter em vista nem o orgulho dos estoicos, nem o
ócio dos epicuristas, nem o jargão absurdo dos pirrônicos,
porque nenhuma dessas pessoas existia em seu tempo.
Mas esse leve anacronismo não constitui desonestidade de
meu adversário; ele empregou melhor sua vida do que
verificando datas e não está mais obrigado a saber de cor
seu Diógenes Laércio do que eu a saber o que acontece nos
combates.
Concordo, pois, que Sócrates só pensou em salientar os
vícios dos filósofos de seu tempo; mas não vejo como
concluir senão dizendo que nesse tempo os vícios
pululavam com os filósofos. Respondem-me que isso se
deve ao abuso da filosofia e penso não ter afirmado o
contrário. Como! Será, pois, preciso suprimir todas as
coisas de que se abusa? Sim, sem dúvida - responderia sem
hesitar -, todas as que são inúteis, todas aquelas cujo
abuso mais determina o mal do que o bem, o seu uso.
Detenhamo-nos, um instante, nesta última consequência
e evitemos concluir ser hoje preciso queimar todas as
bibliotecas e destruir as universidades e as academias. Não
faríamos senão mergulhar a Europa na barbárie e os
costumes nada ganhariam com isso. É com dor que
pronunciarei uma grande e fatal verdade. Só vai um passo
do saber à ignorância e, frequentemente, as nações estão
em alternativa entre um e outro; nunca se viu, porém, um
povo que tenha se corrompido voltar à virtude. Em vão
pretenderíeis destruir as fontes do mal; em vão subtraríeis
os alimentos da vaidade, do ócio e do luxo; em vão, ainda,
reconduziríeis os homens a essa primeira igualdade
conservadora da ignorância e fonte de toda a virtude; seus
corações, uma vez corrompidos, o serão para sempre; não
há mais remédio, a não ser uma grande revolução quase
tão temível quanto o mal que possa curar, e que é
censurável desejar e impossível prever. Deixemos, pois, as
ciências e as artes adoçarem, de qualquer modo, a
ferocidade dos homens que corromperam; procuremos
disfarçar prudentemente e esforcemo-nos por mudar suas
paixões. Ofereçamos algum alimento a esses tigres, para
que não devorem nossos filhos. As luzes do mau são menos
temíveis do que a sua brutal estupidez; elas pelo menos
tornam-no mais circunspecto relativamente ao mal que ele
poderia causar, por conhecer o dano que ele próprio
sofreria.
Louvei as academias e seus ilustres fundadores e com
prazer repetiria o elogio. Quando o mal é incurável, o
médico aplica paliativos e proporciona remédios menos às
necessidades do que ao temperamento do doente. Cabe
aos sábios legisladores imitarem sua prudência e, não
podendo aplicar aos povos doentes a melhor das polícias,
dar-lhes ao menos, como Sólon, a melhor polícia que eles
possam suportar.
Há, na Europa, um grande príncipe e, o que é mais
importante, um cidadão virtuoso que, na pátria que adotou
e que faz feliz, acaba de constituir inúmeras instituições em
prol das letras. Fez com isso coisa bem digna de sua
sabedoria e de sua virtude. Quando se trata de
esclarecimentos políticos, o tempo e o lugar de tudo
decidem. Impõe-se que, em seu próprio interesse, os
príncipes sempre favoreçam as ciências e as artes. Já dei a
razão disso e, no estado atual das coisas, é preciso que eles
ainda as favoreçam visando ao próprio interesse dos povos.
Se houvesse, atualmente, entre nós, um monarca
suficientemente limitado para pensar e agir
diferentemente, seus súditos permaneceriam pobres e
ignorantes e não seriam, por isso, menos corruptos. Meu
adversário descuidou de tirar vantagem de um exemplo
aparentemente tão frisante e tão favorável à sua causa;
talvez seja o único a ignorá-la ou a não lembrar-se dele.
Que consinta, pois, ser lembrado. Que não recuse às
grandes coisas os elogios devidos; e que, assim como nós,
as admire e não se obstine mais contra as verdades que
ataca.
Última Resposta ao Sr. Bordes
Ne, dum tacemus, non verecundiae sed diffidentiae
causa tacerevideamur. - Cipriano, Contra Demetr.

É com extrema repugnância que me ocupo de minhas


disputas com leitores ociosos, bem pouco preocupados com
a verdade; a maneira, porém, pela qual acabam de atacá-
la, força-me a, mais uma vez, tomar sua defesa, para que
meu silêncio não seja tomado pela multidão como uma
confissão, nem pelos filósofos como desprezo.
É preciso que me repita, bem o sei, e público não me
perdoará. Mas os sábios dirão: Este homem não tem
necessidade de procurar incessantemente novas razões, é
uma prova da solidez daquelas que apresenta.
Como aqueles que me atacam nunca deixam de fugir à
questão e de suprimir as distinções essenciais que a esse
propósito estabeleci, impõe-se sempre começar por
reconduzi-los até lá. Aqui está, pois, um sumário das
proposições que sustentei e sustentarei, enquanto não
consultar outro interesse além da verdade.
As ciências são a obra-prima do gênio e da razão. O
espírito de imitação produziu as belas-artes, e a experiência
as aperfeiçoou. Devemos às artes mecânicas um grande
número de invenções úteis que aumentaram os encantos e
as comodidades da vida. Eis verdades com as quais de bom
grado concordo. Mas consideremos, agora, todos esses
conhecimentos em relação aos costumes.
Se inteligências celestiais cultivassem as ciências, disso
só resultaria o bem; digo o mesmo dos grandes homens
que são feitos para guiar os outros. Sócrates, sábio e
virtuoso, honrou a humanidade, mas os vícios dos homens
vulgares envenenam os conhecimentos mais sublimes e os
tornam perniciosos às nações; os corruptos muito tiram das
coisas prejudiciais e os bons delas obtêm pouca vantagem.
Se ninguém além de Sócrates tivesse feito filosofia em
Atenas, o sangue de um justo não teria pedido vingança
contra a pátria das ciências e das artes.
É problema a ser examinado, se representaria vantagem
para os homens possuírem a ciência, supondo-se que
aquilo a que eles dão esse nome o merecesse
efetivamente. Mas é uma loucura pretender que as
quimeras da filosofia, os erros e as mentiras dos filósofos
possam jamais servir para alguma coisa. Seremos sempre
enganados pelas palavras? Nunca compreenderemos que
estudos, conhecimentos, saber e filosofia não passam de
vãos simulacros erguidos pelo orgulho humano e indignos
dos nomes pomposos que lhes dá?
À medida que se difunde numa nação o gosto dessas
frioleiras, ela perde o amor pelas virtudes sólidas, pois é
mais fácil distinguir-se pelo palavrório do que pelos bons
costumes, posto que se está dispensado de ser um homem
de bem desde que se seja um homem agradável.
Quanto mais o interior se corrompe, mais o exterior se
resigna. Assim, insensivelmente, a cultura das letras
engendra a polidez. O gosto ainda nasce da mesma fonte.
Sendo a aprovação pública o primeiro prêmio dos trabalhos
literários, é natural que aqueles que deles se ocupam
imaginem meios de agradar e tais cálculos paulatinamente
formam o estilo, aprimoram o gosto e difundem por todas
as partes a delicadeza e a urbanidade. Todas essas coisas
valerão, se quiserem, como suplemento da virtude, porém
jamais se poderá dizer que constituam a virtude e
raramente a ela se associam. Haverá sempre esta
diferença: aquele que se torna útil, trabalha para os outros,
e aquele que só pensa em tornar-se agradável, só trabalha
para si. O adulador, por exemplo, não se preserva de
nenhum trabalho para agradar e, no entanto, só faz mal.
A vaidade e a ociosidade, que engendram nossas
ciências, também engendraram o luxo. O gosto pelo luxo
sempre acompanha o das letras e este frequentemente
àquele. Todas essas coisas sempre representam, umas para
as outras, mui fiel companhia, porque são obra dos
mesmos vícios.
Se a experiência não concordasse com as proposições
demonstradas, dever-se-iam procurar as causas
particulares dessa contradição. A primeira ideia dessas
contradições, porém, nasceu, ela própria, de uma longa
meditação sobre a experiência e, para ver-se até que ponto
as confirma, basta abrir os anais do mundo.
Os primeiros homens foram muito ignorantes. Como se
ousaria dizê-los corrompidos em épocas em que ainda não
se tinham aberto as fontes da corrupção?
Na obscuridade dos antigos tempos e na rusticidade dos
antigos povos, percebem-se, em inúmeros deles, virtudes
assaz grandes, sobretudo uma severidade de costumes que
é marca infalível de sua pureza, a boa-fé, a hospitalidade, a
justiça e, o que é muito importante, um marcado horror
pela depravação, mãe fecunda de todos os outros vícios. A
virtude não é, pois, incompatível com a ignorância.
Ela também não é sempre sua companheira, pois
inúmeros povos bastante ignorantes eram muito viciados. A
ignorância não representa obstáculo nem ao bem nem ao
mal; é unicamente o estado natural do homem.
Não se poderá dizer a mesma coisa da ciência. Todos os
povos sábios foram corrompidos e nisso já vai um tremendo
preconceito contra ela. Mas, como é difícil fazer
comparações de povo a povo, como nelas se precisa incluir
um número muito grande de objetos, como sempre lhes
falta exatidão em algum aspecto, estar-se-á muito mais
seguro do que se faz seguindo continuamente a história de
um mesmo povo e estabelecendo uma comparação entre
os progressos de seus conhecimentos e as revoluções dos
seus costumes. Ora, o resultado desse exame mostra que a
grande época, a época da virtude, foi, para cada povo, a de
sua ignorância e que, à medida em que se tornou sábio,
artista e filósofo, perdeu seus costumes e sua probidade, e
tornou a descer, a tal respeito, ao nível das nações
ignorantes e corruptas que são a vergonha da humanidade.
Desejando-se insistir em encontrar diferenças, posso
reconhecer uma: todos os povos bárbaros, mesmo aqueles
que não possuem virtude, sempre cultuam, no entanto, a
virtude, enquanto que, por progredirem, os povos sábios e
filósofos chegam afinal a colocá-la em ridículo e a desprezá-
la. Quando uma nação alcança por fim esse ponto, pode-se
dizer que a corrupção está no auge e que não se deve mais
ter esperança de remédio.
Esse, o sumário das coisas que afirmei e das quais creio
ter apresentado provas. Vejamos, agora, o sumário da
doutrina que me é oposta.
"Os homens são naturalmente maus; assim o
foram antes da formação da sociedade e em todos os
lugares aos quais as ciências não levaram sua flama;
os povos, abandonados somente às faculdades do
instinto, reduzidos, juntamente com os leões e os
ursos, a uma vida puramente animal, permaneceram
mergulhados na barbárie e na miséria.”
"Somente a Grécia, nos antigos tempos, pensou e
se elevou pelo espírito a quanto recomenda um povo.
Filósofos formaram seus costumes e deram-lhe leis”.
"Na verdade, Esparta foi pobre e ignorante por
instituição e por escolha, mas suas leis
apresentavam grandes defeitos, seus cidadãos uma
tendência considerável para se corromperem, sua
glória foi pouco sólida, e logo perdeu suas
instituições, suas leis e seus costumes”.
"Atenas e Roma também degeneraram. Uma cedeu
ao destino da Macedônia; a outra sucumbiu à sua
própria grandeza, porque as leis de uma vilazinha
não podiam governar o mundo. Se aconteceu não ter
por vezes a glória dos grandes impérios durado tanto
tempo quanto a das letras, foi por estarem no auge
quando as letras neles se cultivaram e por não
permanecer o destino das coisas humanas, durante
muito tempo, no mesmo estado. Concordando, pois,
quanto a ter influído a alteração das leis e dos
costumes nesses grandes acontecimentos, não se
estará obrigado a convir em que as ciências e as
artes contribuíram para isso e pode-se, pelo
contrário, observar que o progresso e a decadência
das letras sempre é proporcional à fortuna e ao
declínio dos impérios”.
"Essa verdade é confirmada pela experiência dos
últimos tempos, segundo a qual, numa monarquia
vasta e poderosa, a prosperidade do Estado, a
cultura das ciências e das artes e a virtude guerreira
concorrem ao mesmo tempo para a glória e a
grandeza do império”.
"Nossos costumes são os melhores que se possam
ter; proscreveram-se inúmeros vícios de nosso meio;
os que nos restam, pertencem à humanidade, sem
qualquer interferência das ciências”.
"Também o luxo nada tem de comum com elas,
não devendo assim ser-lhes atribuídas as desordens
que possa causar. Aliás, o luxo é necessário nos
grandes Estados; neles determina mais bem do que
mal. É útil para ocupar os cidadãos ociosos e dar pão
aos pobres”.
"A polidez deve ser antes computada, entre as
virtudes do que entre os vícios, pois impede que os
homens se mostrem tais como são, uma precaução
bem necessária para torná-los suportáveis uns aos
outros”.
"As ciências raramente atingiram o objetivo que se
propõem, mas, pelo menos, o têm em mira. Avança-
se a passos lentos no conhecimento da verdade, o
que não impede se façam alguns progressos nesse
sentido”.
Finalmente, ainda que fosse verdade que as ciências e as
artes enfraquecessem a coragem, não seriam ainda
preferíveis a essa virtude bárbara e feroz os bens infinitos
que elas nos proporcionam?" Dispenso-me de repetir a lista
inútil e pomposa desses bens, e, para começar, a propósito
deste último ponto, por uma declaração tendente a
prevenir palavras inúteis, afirmo, de uma vez por todas,
que se algo pode compensar a ruína dos costumes, estou
pronto a convir em que as ciências determinam mais bem
do que mal. Voltemos agora ao que falta.
Eu poderia, sem grande risco, supor provado quanto
disse, pois, entre tantas asserções tão afoitamente
levantadas, muito poucas há que atinjam a questão em seu
âmago e, menos ainda, outras de que se pudesse tirar
alguma conclusão valiosa contra a minha opinião, sendo
que algumas dentre elas, se porventura minha causa disso
necessitasse, até forneceriam novos argumentos em meu
favor.
Com efeito:
1º - Se os homens são naturalmente maus, pode
suceder, caso se queira, que as ciências produzam
algum bem quando em suas mãos, mas é bem certo que
elas então determinem mais mal do que bem, pois não
se deve fornecer armas a loucos furiosos.
2º - Se as ciências raramente atingem seu objetivo,
sempre haverá mais tempo perdido do que bem
empregado. E, mesmo se fosse verdadeiro que
tivéssemos encontrado os melhores métodos, a maioria
de nossos trabalhos seria ainda tão ridícula quanto
aqueles de um - homem que, certo de seguir
exatamente a linha de prumo, quisesse levar um poço
até o centro da terra.
3º - Não devemos absolutamente ter tanto medo da
vida puramente animal, nem considerá-la o pior dos
estados em que possamos cair, pois ainda valeria muito
mais parecer com uma ovelha do que com um anjo mau.
4º° - A Grécia deveu seus costumes e suas leis a
filósofos e legisladores. Concordo. Já repeti centenas de
vezes que é bom existirem filósofos, contanto que o
povo não se proponha a sê-lo.
5º - Não ousando afirmar que Esparta não tinha boas
leis, censuram as leis da Esparta por terem tido muitos
defeitos, de modo que, para retorquir às censuras que
faço aos povos sábios por sempre terem sido
corrompidos, censuram-se os povos ignorantes por não
terem atingido a perfeição.
6º - O progresso das letras está sempre em proporção
com a grandeza dos impérios. Seja. Constato que
sempre me falam de fortuna e de grandeza. Eu, por
mim, aludi a costumes e virtudes.
7º - Nossos costumes são os melhores que homens
maus, como nós, podem ter. Talvez. Proscrevemos
inúmeros vícios, não contesto. Não acuso os homens
deste século de terem todos os vícios; eles só têm
aqueles próprios às almas covardes, são apenas
velhacos e negligentes. Quanto aos vícios que exigem
coragem e firmeza, considero-os incapazes de tê-los.
8º - O luxo pode ser necessário para dar pão aos
pobres, mas, se não houvesse luxo, não haveria pobres.
Ele ocupa os cidadãos ociosos. Mas, por que existem
cidadãos ociosos? Quando a agricultura era considerada
uma honra, não havia nem miséria nem ociosidade e
havia muito menos vícios.
9º - Vejo que se toma a peito essa questão de luxo e,
não obstante, finge-se querer separá-la da questão das
ciências e das artes. Concordarei, pois, uma vez que se
deseja tão insistentemente, que o luxo contribui para a
manutenção dos estados, como as cariátides servem
para sustentar os palácios que decoram ou, então, como
essas vigas com as quais se esteiam construções
abaladas e que, frequentemente, acabam por derrubá-
las. Homens sábios e prudentes, saí das casas que se
esteiam.
Isso pode mostrar como seria fácil desviar em meu favor
a maioria das coisas que pretendem opor-me; falando
francamente, não as considero, porém, suficientemente
contestadas para sentir a coragem de prevalecer-me disso.
Afirma-se que os primeiros homens foram maus, donde
se segue que o homem é naturalmente mau. Eis o que não
constitui afirmação de pequena monta; parece que valeria
a pena contestá-la. Os anais de todos os povos, que se
ousa citar como prova, são muito mais favoráveis a uma
suposição contrária e seriam precisos muitos testemunhos
para obrigar-me a crer num absurdo. Antes que essas
tremendas palavras teu e meu tivessem sido inventadas,
antes que existisse essa espécie de homens cruéis e brutais
chamados senhores, e essa outra espécie de homens
madraços e mentirosos que se chamam escravos, antes
que houvesse homens suficientemente abomináveis para
ousar ter o supérfluo enquanto outros morrem de fome,
antes que uma dependência mútua tivesse forçado todos a
se tornarem mentirosos, ciumentos e traidores - gostaria
bastante que me explicassem no que poderiam consistir os
vícios, os crimes que, com tanta ênfase, lhes são
censurados. Asseguram-me que, há muito tempo, já se
desenganaram da quimera da idade de ouro. Por que não
acrescentam, ainda, que há muito tempo já se
desenganaram da quimera da virtude?
Afirmei terem sido virtuosos os primeiros gregos, antes
que a ciência os tivesse corrompido, e não quero retratar-
me nesse ponto, apesar de, observando-os mais de perto,
não deixar de ter minhas desconfianças quanto à solidez
das virtudes de um povo tão palrador, ou da justiça dos
elogios que sentia tanto prazer em prodigalizar-se e que
não vejo confirmados por qualquer outra testemunha. Que
objetam a isso? Que os primeiros gregos, cuja virtude
louvei, eram esclarecidos e sábios, pois foram filósofos que
moldaram seus costumes e lhes deram as leis. Mas, com
esse modo de raciocinar, quem me impedirá de dizer a
mesma coisa de todas as outras nações? Os persas não
tiveram seus magos, os assírios seus caldeus, os hindus
seus ginosofistas, os celtas seus druidas? Ocus não brilhou
entre os fenícios, Atlas entre os líbios, Zoroastro entre os
persas, Zamolxis entre os trácios? E até não pretenderam
muitos que a filosofia tivesse nascido entre os bárbaros?
Seriam, pois, todos esses povos, sábios por esse motivo?
Ao lado dos Milciades e dos Temistocles, encontravam-se,
dizem-me, os Aristides e os Sócrates. Ao lado, se quiserem
pois que importância tem isso para mim? No entanto,
Milcíades, Aristides, Temístocles, que eram heróis, viveram
numa determinada época, e Sócrates e Platão, que eram
filósofos, viveram noutra. Quando se começaram a abrir
escolas públicas de filosofia, a Grécia aviltada e
degenerada já tinha renunciado à sua virtude e vendido sua
liberdade.
A soberba Ásia viu suas forças inumeráveis derrotadas
por um punhado de homens que a filosofia conduzia até a
glória. É verdade, a filosofia da alma conduz à verdadeira
glória, mas não é aprendida nos livros. É esse o efeito
infalível dos conhecimentos do espírito. Peço ao leitor que
atente para essa conclusão. Os costumes e as leis são a
única fonte do verdadeiro heroísmo. As ciências aí nada
têm, pois, a fazer. Em uma palavra, a Grécia tudo deveu às
ciências e o resto do mundo tudo deveu à Grécia. Nem a
Grécia nem o mundo nada deveram, pois, às leis ou aos
costumes. Peço perdão aos meus adversários, mas não há
meio de fazer com que seus sofismas sejam aceitos.
Examinemos ainda, por um momento, essa preferência
que se pretende dar à Grécia em relação a todos os outros
povos e da qual parece que se fez ponto capital. Admirarei,
caso se queira, povos que passam a vida na guerra ou nos
bosques, que dormem deitados na terra e vivem de
legumes. Essa admiração, com efeito, é bem digna de um
verdadeiro filósofo; só a um povo cego e estúpido caberia
admirar os que passam sua vida não defendendo sua
liberdade, mas roubando-se e traindo-se mutuamente a fim
de satisfazer a sua fraqueza ou a sua ambição e que ousam
nutrir sua ociosidade com o suor, o sangue e os trabalhos
de um milhão de infelizes. Mas será entre essas pessoas
grosseiras que se irá procurar a felicidade? Com muito mais
razão seria ela procurada aí, do que a virtude entre os
demais. Que espetáculo não nos apresentaria o gênero
humano composto somente de trabalhadores, de soldados,
de caçadores e de pastores? Um espetáculo infinitamente
mais belo do que aquele do gênero humano composto de
cozinheiros, poetas, impressores, ourives, pintores e
músicos. Do primeiro quadro só se deve excluir a palavra
soldado. A guerra, eventualmente, é um dever e não deve
ser considerada uma profissão. Todo homem deve ser
soldado para a defesa da liberdade, nenhum deverá sê-lo
para imiscuir-se na liberdade alheia, e morrer servindo a
pátria é encargo demasiado belo para confiá-lo a
mercenários. Será preciso, pois, para ser digno do nome de
homens, viver como leões ou como ursos? Se eu tiver a
felicidade de encontrar um único leitor imparcial e amigo
da verdade, peço-lhe que lance um olhar sobre a sociedade
atual e nela observe quais os que convivem como leões e
ursos, como tigres e crocodilos. Seriam erigidas em virtudes
as faculdades do instinto relativas à nutrição, à
perpetuação e à defesa? São elas virtudes, não duvidamos,
quando guiadas pela razão e dirigidas sabiamente; são,
sobretudo, virtudes, quando empregadas na assistência a
nossos semelhantes. Nisso não vejo senão virtudes
animais, pouco conformes à dignidade de nosso ser. O
corpo é exercitado, mas a alma escrava só se humilha e
fenece. Diria, sem dificuldade, percorrendo as pomposas
elucubrações de todas as nossas academias: "Não vejo aí
senão sutilezas engenhosas, pouco conformes à dignidade
de nosso ser. O espírito é exercitado, mas a alma escrava
só se humilha e fenece. Afastai as artes do mundo, dizem-
me noutro lugar, e que restará? Os exercícios do corpo e as
paixões? Vede, eu vos peço, como são sempre esquecidas a
razão e a virtude! As artes deram nascimento aos prazeres
da alma, os únicos dignos ainda de nós. Ou seja,
substituíram outros, muito mais dignos de nós.
Acompanhando-se o espírito de tudo isso, encontrar-se-á,
como nos raciocínios da maioria de meus adversários, um
entusiasmo tão marcado pelas maravilhas do
entendimento, que aquela outra faculdade, infinitamente
mais sublime e mais capaz de elevar e de enobrecer a
alma, nunca é levada em consideração. Aí está o efeito
infalível da cultura das letras. Estou certo de que
atualmente não há um único sábio que não estime muito
mais a eloquência de Cícero do que seu zelo, e que não
aprecie infinitamente mais ter ele composto as Catilinárias
do que ter salvado seu país.
É visível o embaraço de meus adversários todas as vezes
que se impõe falar de Esparta. O que não dariam para que
essa fatal Esparta jamais tivesse existido! E eles, que
pretendem só servirem as grandes ações para serem
celebradas, a que preço não desejariam que as de Esparta
jamais o fossem. É terrível que, no meio dessa famosa
Grécia, que não deveu como se diz, sua virtude senão à
filosofia, o Estado onde a virtude foi mais pura e durou mais
longo tempo tenha sido precisamente aquele em que
absolutamente não existiram filósofos. Os costumes de
Esparta sempre foram apresentados como um exemplo a
toda a Grécia; toda a Grécia estava corrompida e ainda
havia virtude em Esparta; toda a Grécia era escrava e
somente Esparta ainda era livre - é desolador. Mas, por fim,
a orgulhosa Esparta perdeu seus costumes e sua liberdade,
como a tinha perdido a sábia Atenas; Esparta acabou. Que
poderei responder a isso?
Ainda duas observações relativas a Esparta e passarei a
outro assunto. Eis a primeira: Depois de ter estado
inúmeras vezes a ponto de vencer, Atenas foi vencida, é
verdade, sendo surpreendente que não o tenha sido antes,
porquanto a Ática era uma região demasiadamente aberta
e que só poderia defender-se pela superioridade da sorte.
Atenas deveria ter vencido por inúmeros motivos. Era muito
maior e mais povoada do que a Lacedemônia. Tinha
grandes rendas e muitos povos eram seus tributários.
Esparta não tinha nada disso. Atenas, sobretudo pela sua
posição, possuía uma vantagem da qual Esparta estava
privada, e que a colocava em situação de destruir inúmeras
vezes o Peloponeso, sendo que só isso lhe assegurava todo
o império da Grécia. Era um porto vasto e cômodo, era uma
marinha formidável devida à previdência daquele rústico
Temístocles que não sabia tocar flauta. Poder-se-á, pois,
surpreender-se com ter Atenas, possuindo tantas
vantagens, afinal sucumbido. Mas, embora a guerra do
Peloponeso, que arruinou a Grécia, não tenha dado glória
nem a uma nem a outra das repúblicas e tenha sido,
sobretudo por parte dos lacedemônios, uma infração às
máximas de seu sábio legislador, não deve contudo
espantar que, com o decorrer dos tempos, a verdadeira
coragem tenha prevalecido sobre os recursos, nem mesmo
que a reputação de Esparta lhe tenha fornecido inúmeros
deles, que lhe facilitaram a vitória. Envergonho-me, na
verdade, de saber essas coisas e de ver-me forçado a dizê-
las.
Não será menos importante a outra observação. Segue-se
o texto que penso dever apresentar ao leitor.
Supondo-se que todos os Estados que compunham a
Grécia tivessem seguido as mesmas leis que Esparta, que
nos teria restado dessa terra tão célebre? Seu nome,
apenas, teria chegado até nós. Deixaria deformar
historiadores para transmitir sua glória à posteridade; o
espetáculo de suas tremendas virtudes estaria perdido para
nós; por conseguinte, ser-nos-ia indiferente que tivessem
existido ou não. Os numerosos sistemas de filosofia, que
esgotaram todas as combinações possíveis de nossas
ideias e que, se não estenderam bastante os limites de
nosso espírito, ensinaram-nos pelo menos onde se fixavam
eles; essas obras-primas de eloquência e de poesia que nos
ensinaram todos os caminhos do coração; as artes úteis ou
agradáveis que conservam ou embelezam a vida; enfim, a
inestimável tradição dos pensamentos e das ações de
quantos grandes homens contribuíram para a glória e a
felicidade de seus semelhantes - todas essas preciosas
riquezas do espírito perder-se-iam para sempre. Os séculos
ter-se-iam acumulado, as gerações ter-se-iam sucedido
como as dos animais, sem nenhum fruto para a
posteridade, e não teriam deixado atrás de si senão uma
recordação confusa de sua existência. O mundo teria
envelhecido e os homens teriam permanecido numa
infância eterna.
Suponhamos, de nossa parte, que um lacedemônio,
impelido pelo vigor dessas razões, tivesse querido expô-las
a seus compatriotas e tentemos imaginar o discurso que
ele poderia fazer na praça pública de Esparta.
"Cidadãos, abri os olhos e saí de vossa cegueira.
Vejo, com tristeza, que só trabalhais para adquirir a
virtude, para exercitar vossa coragem e manter
vossa liberdade e, no entanto, esqueceis o dever,
mais importante, de distrair os ociosos das raças
futuras. Dizei-me: para que serve a virtude, senão
para causar sensação no mundo? Que vos terá valido
ser pessoas de bem, quando ninguém falar de vós?
Que importará aos séculos futuros que vos désseis à
morte nas Termópilas para a salvação dos
atenienses, se não deixais, como eles, nem sistema
de filosofia, nem versos, comédias ou estátuas?
Apressai-vos, pois, em abandonar leis que só servem
para tornar-vos felizes; pensai somente em fazer
muito falar de vós quando não mais existirdes e
nunca esqueçais que, se não se celebrassem os
grandes homens, inútil, seria sê-lo.”
Aí está, creio, aproximadamente o que teria podido dizer
esse homem, se os éforos o tivessem deixado acabar.
Não é somente nessa passagem que nos advertem
quanto a só servir a virtude para fazer com que falem
daqueles que a possuem. Em outro ponto, enaltecem-nos
ainda os pensamentos do filósofo, por imortais e
consagrados à admiração de todos os séculos, enquanto os
outros veem dissiparem-se suas ideias junto com o dia, a
circunstância ou o momento que as viu nascer. Para três
quartos dos homens, o novo dia apaga a véspera sem que
dela reste o menor traço. Ah! Resta dela pelo menos
alguma coisa no testemunho de uma boa consciência, nos
infelizes que se aliviou, nas boas ações que se praticou e na
memória desse Deus benfazejo que se serviu em silêncio.
"Morto ou vivo", dizia o bom Sócrates, "o homem de bem
jamais esqueceu os deuses." Responder-me-ão talvez, que
não se quis falar dessa espécie de pensamentos, e eu
respondo que não vale a pena falar de todos os demais.
É fácil compreender que, fazendo tão pouco caso de
Esparta, não se chega talvez a mostrar maior estima pelos
antigos romanos. Concorda-se em tê-los como grandes
homens, apesar de não jazerem senão pequenas coisas.
Nesse sentido, confesso que há muito tempo não se fazem
senão grandes coisas. Censura-se não terem sido
verdadeiras virtudes, mas qualidades forçadas, a sua
temperança e a sua coragem. Algumas páginas depois,
confessa-se que Fabrício desprezava o ouro de Pirro e não
se pode ignorar estar a história romana cheia de exemplos
da facilidade de enriquecer que tiveram aqueles
magistrados, aqueles veneráveis guerreiros que faziam
tanto caso de sua pobreza. Quanto à coragem, não
sabemos que a covardia não pode compreender a razão e
que um poltrão não deixa de fugir, mesmo certo de ser
morto ao fugir? Querer fazer com que os grandes Estados
venham a ter as pequenas virtudes das pequenas
repúblicas, dizem, é como querer forçar um homem forte e
robusto a balbuciar num berço. Eis uma frase que não deve
ser nova nas cortes. Teria ela sido muito digna de Tibério ou
de Catarina de Médicis e não duvido que um e outra não
tenham empregado algo semelhante.
Seria difícil imaginar-se necessário medir a moral com um
instrumento de agrimensor. Não se poderia, no entanto,
dizer que a extensão dos Estados seja totalmente
indiferente aos costumes dos cidadãos. Existe, certamente,
alguma proporção entre essas coisas, mas não sei se essa
proporção não seria inversa. Aí está uma questão
importante que merece ser meditada e creio poder ela ser
considerada como ainda indecisa, malgrado o tom mais
desdenhoso do que filosófico com o qual é resolvida, neste
ponto, com duas palavras.
Era esta, continuam, a loucura de Catão; com o mau
humor e os preconceitos hereditários em sua família,
discursou durante toda a vida, combateu e morreu sem
nada ter feito de útil para sua pátria. Não sei se nada fez
pela pátria, mas sei que muito fez pelo gênero humano,
oferecendo-lhe o espetáculo e o modelo da mais pura
virtude que jamais existiu. Ensinou aqueles que amam
sinceramente a verdadeira honra a saber resistir aos vícios
de seu século e a detestar essa horrível máxima das
pessoas na moda que dizem ser preciso fazer como os
demais. Com tal máxima iriam, sem dúvida, longe, se
tivessem a infelicidade de cair em algum bando de ladrões.
Nossos descendentes aprenderão um dia que, nesse século
de sábios e de filósofos, o mais virtuoso dos homens foi
atirado ao ridículo e tratado como louco, por não ter
querido macular sua grande alma com os crimes de seus
contemporâneos, por não ter querido ser um celerado com
César e os outros bandidos de seu tempo.
Acabamos de ver como os nossos filósofos falam de
Catão. Vamos ver como falavam dele os antigos filósofos.
Ecce spectaculum dignum ad quod respicial intentus operi
suo Deus. Ecce par Deo dignum, vir fortis cum mala fortuna
compositus. Non video, inquam, quid habeat in terris Jupiter
pulchrius, si convertere animum velit, quam ut spectet
Catonem, jam partibus non seme! fractis, nihilominus inter
ruinas publicas erectum.
Aqui está o que, noutro ponto, nos dizem dos primeiros
romanos: Admiro os Brutos os Décios, as Lucrécias, os
Virginios, os Cévolas. Já é alguma coisa, neste século em
que vivemos. Porém mais admiraria um Estado potente e
bem governado! Um Estado potente e bem governado! Eu
também, certamente. No qual os cidadãos não fossem
condenados a virtudes tão cruéis. Compreendo; é mais
cômodo viver numa situação em que cada um seja
dispensado de ser homem de bem. Mas, se os cidadãos
desse Estado que se admira, por qualquer infelicidade se
vissem obrigados a renunciar à virtude ou a praticar tais
virtudes cruéis, e tivessem coragem para cumprir seu
dever, isso constituiria uma razão para admirá-los menos?
Tomemos o exemplo que mais revolta nosso século e
examinemos a conduta de Bruto, magistrado soberano,
mandando matar seus filhos que tinham conspirado contra
o Estado num momento crítico, quando pouco se precisava
para subvertê-lo. É certo que, se lhes tivesse concedido
graça, seu colega infalivelmente teria salvado todos os
outros cúmplices e a república estaria perdida. Que
importa? - dir-me-ão. Se é indiferente, suponhamos, pois,
que tivesse acontecido e, tendo Bruto condenado à morte
algum malfeitor, o culpado lhe falasse assim: "Cônsul, por
que me fazes morrer? Terei feito pior do que trair minha
pátria? e não sou também teu filho?" Gostaria que se
dessem ao trabalho de dizer-me o que Bruto poderia ter
respondido.
Bruto, dir-me-ão, deveria ter abdicado do consulado em
lugar de fazer seus filhos perecerem. E eu digo que todo
magistrado que, em circunstância tão perigosa, esquece o
zelo pela pátria e abdica da magistratura, é um traidor que
merece a morte.
Não há meio-termo: era preciso que Bruto fosse um
infame ou que as cabeças de Tito e de Tibério tombassem,
por sua ordem, sob os machados dos litores. Com isso não
quero dizer que muita gente se decidisse como ele.
Embora não se decidam abertamente pelos últimos
tempos de Roma, deixam entender que os preferem aos
primeiros e têm tanto trabalho para perceber os grandes
homens, através da simplicidade desses, quanto o tenho eu
próprio para perceber pessoas de bem na pompa dos
outros. Opõem Tito a Fabrício; omitem, porém, a diferença
de que no tempo de Pirro todos os romanos eram Fabrícios,
enquanto que, sob o reinado de Tito, somente ele era
homem de bem. Esquecerei, caso queiram, as ações
heroicas dos primeiros romanos e os crimes dos últimos,
mas o que não poderia esquecer é ser a virtude glorificada
por uns e desprezada por outros, e que, enquanto havia
coroas para os vencedores dos jogos do circo, não existia
nenhuma para aquele que salvava a vida de um cidadão.
Não se creia, contudo, que tal seja peculiar a Roma. Tempo
houve em que a república de Atenas era bastante rica para
dispensar somas imensas com seus espetáculos e para
pagar muito bem autores, comediantes e até espectadores.
Foi nesse tempo que não se teve dinheiro para defender o
Estado contra os empreendimentos de Filipe.
Chegam, por fim, aos povos modernos e não me darei ao
trabalho de seguir os raciocínios que julgam oportuno fazer
sobre esse assunto. Observarei unicamente que constitui
vantagem pouco honrosa a que se obtém sem refutar as
razões do adversário mas, sim, impedindo-o de dizê-las.
Não acompanharei também as reflexões que se dão ao
trabalho de fazer, sobre o luxo, a polidez, a admirável
educação de nossos filhos; sobre os melhores métodos para
ampliar nossos conhecimentos, a utilidade das ciências e o
deleite das belas-artes, e sobre outros pontos, a maioria
dos quais nenhuma relação tem comigo, sendo que alguns
chegam até a refutar-se entre si. Contentar-me-ei ainda
com citar alguns trechos tomados ao acaso e que me
pareceram necessitar de esclarecimentos. Será preciso que
eu me limite a frases, na impossibilidade de seguir
raciocínios cujo fio não pude apreender.
Pretende-se que as nações ignorantes que tiveram ideias
de glória e de virtude são exceções singulares, que não
podem contribuir para qualquer preconceito contra as
ciências. Muito bem, mas todas as nações sábias, com suas
belas ideias de glória e de virtude, perderam sempre o
amor por elas e a sua prática. Tal coisa acontece sem
exceções. Passemos a prová-lo, Para nos convencermos
disso, lancemos os olhos sobre o imenso continente da
África, no qual nenhum mortal é suficientemente afoito
para penetrar ou suficientemente afortunado para ter feito
tal tentativa impunemente. Assim, por não termos podido
penetrar no continente da África, por ignorarmos o que lá
se passa, levam-nos a concluir que seus povos são
carregados de vícios. Mas, se tivéssemos encontrado o
meio de levar nossos vícios até lá, é que deveríamos
concluir desse modo. Se eu fosse chefe de qualquer um dos
povos da Nigricia, asseguro que levantaria, na fronteira do
país, um patíbulo no qual mataria sem misericórdia o
primeiro europeu que ousasse penetrar nele e o primeiro
cidadão que tentasse de lá sair. A América não nos oferece
espetáculos menos vergonhosos para a espécie humana.
Sobretudo depois que os europeus aí estão. Entre cem
povos bárbaros ou selvagens em ignorância,
encontraremos um único virtuoso. É verdade:
encontraremos pelo menos um, mas jamais se viram povos
virtuosos cultivadores das ciências. A terra deixada inculta
não é inútil; produz venenos e nutre monstros. Aí está o
que ela começa a dar naqueles lugares em que o gosto das
artes frívolas fez com que se abandonasse o gosto pela
agricultura. Nossa alma, poder-se-á também dizer, não é de
modo algum inútil quando a virtude a abandona; produz
ficções, romances, sátiras, versos, nutre vícios.
Se os bárbaros realizaram conquistas, é porque eram
muito injustos. Que éramos nós, então, pergunto-vos,
quando conquistamos a América, feito que tanto admiram?
Mas, a que ponto pessoas que possuem canhões, cartas
marinhas e bússolas podem cometer injustiças! Dir-me-ão
que o acontecimento assinala o valor dos conquistadores?
Assinala somente a sua astúcia e habilidade, mostra que
um homem esperto e sutil pode obter, com seu engenho, o
sucesso que um homem bravo só atinge com seu valor.
Falemos sem parcialidade. Quem julgaríamos mais
corajoso: o odioso Cortez subjugando o México à força de
pólvora, perfídia e traições, ou o infortunado Guaternozin,
estendido sobre carvões ardentes por honestos europeus
desejosos de obter seus tesouros, exprobrando um de seus
funcionários de quem o mesmo tratamento arrancava
alguns queixumes e dizendo-lhe orgulhosamente: "E eu,
estou sobre rosas?"
Dizer que as ciências nasceram da ociosidade é,
visivelmente, abusar dos termos; elas nascem do lazer,
mas preservam da ociosidade. Assim um homem que, à
borda de uma grande estrada, se distraísse atirando em
caminhantes, poderia dizer que ele empregava o seu lazer
garantindo-se contra a ociosidade. Não compreendo essa
distinção entre o lazer e a ociosidade, mas estou bem certo
de que nenhum homem honesto jamais poderá gabar-se de
ter lazer enquanto tiver alguma coisa de bem para fazer,
uma pátria para servir e infelizes para socorrer; desafio,
ainda, que me mostrem, em meus princípios, qualquer
sentido honesto a que possa ser aplicada a palavra lazer. O
cidadão cujas necessidades o prendem à charrua não está
mais ocupado do que o geômetra ou o anatomista. Não
mais do que a criança que constrói um castelo de cartas,
porém, mais utilmente. A pretexto de ser o pão necessário,
impor-se-á que todo o mundo passe a trabalhar a terra? Por
que não? Que passem mesmo, caso necessário; gostaria
mais de ver os homens comerem ervas nos campos do que
se entredevorarem nas cidades. Em verdade, tais como
peço que sejam, assemelhar-se-ão bastante aos animais e,
tais como são, assemelham-se bastante aos homens.
O estado de ignorância é um estado de medo e de
necessidade; tudo é, então, perigo para nossa fragilidade. A
morte ronda sobre nossas cabeças, esconde-se na erva que
calcamos com os pés. Quando tudo se teme e se tem
necessidade de tudo, qual a disposição mais razoável do
que querer tudo conhecer? Basta considerar as
inquietações contínuas dos médicos e dos anatomistas
sobre a sua vida e sua saúde para verificar se os
conhecimentos servem para tranquilizar-nos quanto a
nossos perigos. Como os conhecimentos descobrem
sempre muito mais perigos do que meios para nos
garantirem contra eles, não é de espantar que só
contribuam para aumentar nossos alarmas e tornar-nos
pusilânimes. Os animais, a esse respeito, vivem em
profunda segurança e não se sentem pior por isso. Uma
vitela não tem necessidade de estudar botânica para
aprender a escolher o seu feno e o lobo devora a presa sem
pensar em indigestão. Para responder a isso, ousar-se-á
tomar o partido do instinto contra a razão? É precisamente
o que eu desejo.
Parece, dizem-nos, que há um número excessivo de
trabalhadores e que se teme que faltem filósofos.
Perguntarei, de minha parte, se temem que faltem
indivíduos para exercer as profissões lucrativas. Como se
conhece mal o império da cupidez! Tudo, desde nossa
infância, nos força a condições úteis. E que preconceitos
não se terão de vencer, de que coragem não se carecerá,
para não ser mais do que um Descartes, um Newton, um
Locke!
Leibniz e Newton morreram cheios de bens e de
honrarias, e mereceriam ainda muitas outras. Poderíamos
dizer que foi por moderação que não se elevaram até o
arado? Conheço suficientemente o império da cupidez para
saber que tudo nos leva às profissões lucrativas; eis por
que digo que tudo nos distancia das profissões úteis. Um
Hébert, um Lafrenaye, um Dulac, um Martin ganham, num
dia, mais dinheiro do que todos os trabalhadores de uma
província poderiam ganhar num mês. Poderia propor um
problema muito curioso sobre este trecho de que ora me
ocupo. Seria, separando as duas primeiras linhas e lendo-as
isoladas, adivinhar se são extraídas de meus escritos ou
dos de meus adversários.
Os bons livros são a única defesa dos espíritos fracos, isto
é, das três quartas partes dos homens, contra o contágio do
exemplo. Em primeiro lugar, os sábios jamais escreverão
tantos livros quantos são os maus exemplos dados por eles.
Segundo, haverá sempre mais livros maus do que bons.
Terceiro, os melhores guias que as pessoas de bem possam
ter são a razão e a consciência. Paucis est opus litteris ad
mentem bonam. Quanto àqueles que têm o espírito
ambíguo ou a consciência empedernida, nunca a leitura
poderá servir-lhes para alguma coisa. Enfim, quaisquer que
sejam os homens, só lhes são necessários os livros de
religião, os únicos que nunca condenei.
Pretendem fazer-nos lastimar a educação dos persas.
Notai que é Platão que pretende isso. Acreditei proteger-me
com a autoridade desse filósofo, mas vejo que nada poderá
defender-me contra a animosidade de meus adversários.
Tros Rutulusve fuat, preferem eles estraçalhar-se uns aos
outros do que me dar o menor quartel, e causam mais mal
uns aos outros do que a mim. Essa educação era, dizem,
fundamentada em princípios bárbaros; porque se dava um
professor para o exercício de cada virtude, ainda que a
virtude seja indivisível, porque se tratava de inspirá-la e
não de ensiná-la, de fazer com que se gostasse de sua
pátria e não de demonstrar sua teoria. Quantas coisas não
teria que responder! Mas não se deve fazer ao leitor a
injúria de tudo dizer-lhe. Contentar-me-ei com duas
observações. A primeira dizendo que quem deseja educar
uma criança não começa por dizer-lhe que se deve praticar
a virtude, pois não seria compreendido; ensina-o a ser
verdadeiro e, depois, a ser sóbrio e, depois, a ser corajoso,
etc. e enfim, ensina-lhe que se dá o nome de virtude ao
conjunto de todas essas coisas. A segunda diz que somos
nós que nos contentamos com demonstrar a teoria, mas
que os persas ensinam a prática. Vede meu Discurso,
página 15, nota 2.
Todas as censuras que fazem à filosofia atingem o espírito
humano... Concordo. Ou, antes, ao autor da natureza, que
nos fez tal como somos. Se ele nos fez filósofos, para que
tanto trabalho a fim de nos transformarmos em filósofos?
Os filósofos eram homens e se enganaram; dever-se-á
surpreender-se com isso? Deveremos surpreender-nos
quando eles não se enganarem mais. Lastimemo-los,
aproveitemo-nos de seus erros e corrijamo-nos. Sim,
corrijamo-nos e não filosofemos mais. Mil caminhos
conduzem ao erro, um único à verdade... Aí está
precisamente o que eu dizia. Será preciso ficar surpreso,
por tantas vezes ter-se escarnecido dela e que ela tenha
sido descoberta tão tarde? Ah! Finalmente a encontramos.
Citam-nos um julgamento de Sócrates que trata não dos
sábios mas dos sofistas, não das ciências, mas do abuso
que se pode fazer delas. Que mais pedir àquele que
sustenta que todas as ciências não passam de abusos e
que todos os nossos sábios são verdadeiros sofistas?
Sócrates era chefe de uma seita que ensinava a duvidar. Eu
diminuiria de muito minha admiração por Sócrates se
acreditasse ter ele tido a tola vaidade de ser chefe de seita.
E ele, com justiça, censurava o orgulho daqueles que
pretendem tudo saber. Isto é, o orgulho de todos os sábios.
A verdadeira ciência está bem longe de ser afetação. É
verdade, mas é da nossa que falo. Sócrates é nesse ponto,
testemunho contra si mesmo. Isso me parece difícil de
entender. O mais sábio dos gregos não coraria por sua
ignorância. O mais sábio dos gregos nada sabia de sua
própria opinião; concluí quanto aos outros. As ciências não
têm, pois, suas fontes nos nossos vícios. Nossas ciências
têm, pois, fontes em nossos vícios. Não são, pois, todas
elas nascidas do orgulho humano. Já dei, atrás, minha
opinião a esse respeito. Declamação vã que não pode iludir
senão espíritos prevenidos. Não sei responder a isso.
Falando-se dos limites do luxo, pretendem que, nesse
assunto, não se deve raciocinar partindo-se do passado
para chegar ao presente. Quando os homens andavam
completamente nus, aquele que primeiro resolveu calçar
uns tamancos passou por voluptuoso; de século a século
não se deixou de gritar contra a corrupção, sem
compreender o que se desejava dizer.
É verdade que, até nosso tempo, o luxo, ainda que
reinando sempre, fora pelo menos considerado, em todas
as épocas, como a fonte funesta de uma infinidade de
males. Ficava reservado ao Sr. Melon o ser o primeiro a
publicar essa doutrina envenenada, cuja novidade
granjeou-lhe mais sectários do que a solidez de suas
razões. Não temo ser o único a combater, neste meu
século, essas odiosas máximas que só tendem a destruir e
aviltar a virtude e a fazer ricos e miseráveis, isto é, a
sempre fazer maus.
Creem embaraçar-me terrivelmente perguntando-me até
onde se deve limitar o luxo. Minha opinião é que
absolutamente não se precisa dele. Para além da
necessidade física, tudo é fonte do mal. A natureza já nos
dá muitas necessidades e, no mínimo, representará enorme
imprudência multiplicá-las sem necessidade e colocar,
dessa maneira, a alma em dependência ainda maior. Não é
sem razão que Sócrates, olhando a exposição de uma loja,
felicitava-se de nada ter a ver com tudo aquilo. Apostamos
cem contra um quanto à culpabilidade do primeiro homem
que calçou tamancos, a menos que ele sofresse dos pés.
Quanto a nós, já nos vemos demasiadamente
constrangidos a usar sapatos, para não sermos dispensados
de ter virtude.
Já afirmei, em outro lugar, que não me propunha a abalar
a sociedade atual, a queimar as bibliotecas e todos os
livros, a destruir os colégios e as academias, e devo
acrescentar, aqui, que não pretendo também reduzir os
homens a se contentarem unicamente com o necessário.
Sei, muito bem, que não se deve acariciar o projeto
quimérico de fazer com isso pessoas de bem, mas achei-me
na obrigação de dizer, sem rebuços, a verdade que me
perguntaram. Vi o mal e procurei encontrar as suas causas;
outros mais espertos ou mais insensatos poderão achar o
remédio.
Estou cansado, e descanso a pena para não mais retomá-
la nesta disputa demasiado longa. Sei que um número
muito grande de autores aplicou-se em refutar-me; estou
muito aborrecido por não poder responder a todos, mas
acredito ter mostrado, por intermédio daqueles que escolhi
para isso, que não é o medo que me detém em relação aos
demais.
Esforcei-me por erigir um monumento que, de modo
algum, devesse à arte sua força e solidez, somente a
verdade, a quem o consagrei, tem o direito de torná-lo forte
e, se mais uma vez revido os golpes que lhe desferem,
defendo-o mais por respeito próprio do que para prestar-lhe
socorro de que não necessita.
Que me seja permitido, ao terminar, protestar dizendo ter
sido somente o amor à humanidade e à virtude que me fez
romper o silêncio, e que a amargura de minhas invectivas
contra os vícios, dos quais sou testemunha, não nasce
senão da dor que me inspiram e do ardente desejo que
tenho de ver os homens mais felizes e, sobretudo, mais
dignos de ser felizes.
Carta de Jean-Jacques Rousseau
Sobre uma nova refutação de seu Discurso por um
Acadêmico de Dijon

Acabo de ver, senhor, uma brochura intitulada Discurso


que recebeu o prêmio da Academia de Dijon em 1750, etc.,
acompanhado por uma refutação a esse discurso, feita por
um Acadêmico de Dijon que lhe recusou o seu sufrágio, e
pensava, percorrendo esse trabalho, que, em lugar de
baixar ao ponto de fazer-se editor de meu Discurso, o
acadêmico, que lhe recusou o seu sufrágio, deveria antes
ter publicado a obra a que teria concedido o prêmio - tal
seria uma excelente maneira de refutar o meu.
Aí está, pois, um de meus juízes que não se recusa a
tornar-se meu adversário e que acha bastante mau terem-
me honrado seus colegas com o prêmio. Confesso que eu
mesmo me surpreendi com o prêmio; esforcei-me por
merecê-lo, mas nada fiz para obtê-lo. Aliás, embora eu
soubesse não adotarem os acadêmicos as opiniões dos
autores que premiam, e que o prêmio não é conferido
àquele que se crê ter sustentado a melhor causa, mas
àquele que falou melhor, mesmo supondo-me nesse caso,
estava bem longe de esperar de uma academia essa
imparcialidade da qual nem sempre os sábios fazem uso
nas ocasiões em que se trata de seus interesses.
Mas, se fiquei surpreendido com a equidade de meus
juízes, confesso que não o estou menos com a indiscrição
de meus adversários: como ousam demonstrar tão de
público o mau humor causado pela honra que recebi? Como
não percebem o dano irreparável que, com isso, fazem à
sua própria causa? Que não se iludam pensando que
alguém se vai enganar quanto ao motivo de sua mágoa; se
estão aborrecidos por ter sido meu Discurso laureado, não
é por ser malfeito, pois todos os dias são premiados outros
tão maus quanto esse e eles nada dizem, mas sim por
outro motivo, que atinge mais de perto a sua profissão e
não é difícil de perceber. Bem sabia que as ciências
corrompiam os costumes, tornavam os homens injustos e
ciumentos, e levavam-nos a sacrificar tudo ao seu interesse
e à sua glória vã; acreditei, porém, que tal coisa se fazia
com um pouco mais de decência e de habilidade. Via que
os letrados aludiam incessantemente à equidade, à
moderação, à virtude e, sob a salvaguarda sagrada dessas
belas palavras, se entregavam impunemente às suas
paixões e vícios; jamais acreditei, porém, que tivessem a
audácia de censurar publicamente a imparcialidade de seus
confrades. Em todos os lugares, a glória dos julgadores
consiste em se pronunciarem de acordo com a equidade e
contra seu próprio interesse; só as ciências podem
transformar, naqueles que as cultivam, a integridade em
crime - belo privilégio, o seu!
Ouso dizer que a Academia de Dijon, fazendo muito pela
minha glória, fez muito pela sua; dia virá em que os
adversários de minha causa aproveitar-se-ão desse
julgamento para provar que a cultura das letras pode
associar-se com a equidade e o desinteresse. Os partidários
da verdade responderão, então, a eles: "Aí está um
exemplo particular que parece depor contra nós; lembrai-
vos, porém, do escândalo que esse julgamento causou na
época, na multidão dos letrados, e da maneira pela qual se
lamentaram; extraí disso uma consequência exata de suas
máximas”.
Não é, a meu ver, imprudência desprezível o queixar-se
de ter proposto a Academia seu assunto como problema.
Deixo de parte a pequena possibilidade que haveria de ter
alguém, no entusiasmo universal que hoje reina, a coragem
de renunciar voluntariamente ao prêmio, decidindo-se pela
negativa, mas não sei como há filósofos que ousem
desgostar-se com oferecer-se-lhes vias de discussão: belo
amor pela verdade, esse, que vacila quando se examina o
pró e o contra. Nas pesquisas de filosofia, o melhor meio de
tornar uma opinião suspeita é excluir a opinião contrária.
Aquele que assim age, dá a impressão de má fé e de
desconfiar da excelência de sua causa. A França toda está à
espera da peça que este ano receberá o prêmio da
Academia Francesa; não somente, com toda a certeza,
superará meu Discurso, o que não será difícil, mas não se
poderia mesmo duvidar que será uma obra-prima. No
entanto, em que influirá isso para a solução da questão?
Absolutamente nada, pois cada um, depois de tê-la lido,
dirá: Esse discurso é belíssimo; mas, se o autor tivesse tido
a ousadia de tomar o partido contrário, teria talvez feito
outro ainda mais belo.
Percorri a nova Refutação. É mais uma, porém não sei por
que fatalidade as obras de meus adversários, que trazem
esse título tão decisivo, são sempre aquelas em que sou
pior refutado. Percorri, pois, essa refutação sem ter o menor
arrependimento da resolução que tomei de não mais
responder a ninguém: contentar-me-ei com citar uma única
passagem, pois, baseando-se nela, o leitor poderá julgar se
tenho razão ou não. É a seguinte: Concordaria com que se
pode ser um homem honesto sem talento; mas só se estará
obrigado, na sociedade, a ser um homem honesto? E que
será um homem honesto, ignorante e sem talento? Um
fardo inútil, uma carga no mundo, etc. Certamente não
responderei a um autor capaz de escrever dessa maneira e
acho que pode agradecer-me por isso.
Não haveria também meios, a menos que se quisesse ser
tão difuso quanto o autor, de responder à numerosa
coleção de passagens latinas, versos de La Fontaine, de
Boileau, de Moliêre, de Voltaire, de Regnard, do Sr. Gresset,
nem à história de Nemrod, nem à dos camponeses
picardos, pois o que se poderá dizer a um filósofo que nos
assegura querer mal aos ignorantes porque seu rendeiro da
Picardia, que não é um doutor, lhe paga com exatidão -
para ser verídico - mas não lhe dá bastante dinheiro de sua
terra? O autor se ocupa tanto com suas propriedades, que
fala até da minha. Uma propriedade minha! A propriedade
de Jean-Jacques Rousseau! Na verdade, eu o aconselho a
me caluniar com mais habilidade.
Se eu tivesse de responder a qualquer parte da
Refutação, seria às mordacidades de que está cheia essa
crítica, mas, como elas nada têm com o caso, não me
afastarei da máxima constante, que sempre segui, de
encerrar-me no assunto de que trato sem nele nada pôr de
pessoal: o verdadeiro respeito que se deve ao público
consiste em poupar-lhe não verdades tristes, que lhe
podem ser úteis, mas sim todas as disputazinhas entre
autores, com as quais se enchem as obras de polêmica e
que só servem para satisfazer uma animosidade
vergonhosa.
Querem que eu tenha tomado em Clenard um dito de
Cícero - seja; que cometi solecismos - admito; que cultivo
as belas letras e a música, apesar do mal que penso delas -
caso se queira, concordarei com isso, devendo sofrer numa
idade mais razoável a pena dos divertimentos de minha
juventude. Mas, finalmente, que importa tudo isso, tanto
para o público quanto para a causa das ciências? Rousseau
pode falar francês com dificuldade e a gramática não será
com isso mais útil à virtude. Jean-Jacques pode ter uma má
conduta e a dos sábios não será melhor. AÍ estão todas as
respostas que darei e, creio, todas as que devo dar a essa
nova refutação.
Terminarei esta carta e o que tenho a dizer sobre um
assunto debatido por tão longo tempo, dando a meus
adversários um conselho que certamente desprezarão e,
todavia, seria preferível que pensassem no partido que dele
poderiam tirar: é o de não consultar tão excessivamente
seu zelo, que se esqueçam de consultar suas forças e quid
valeant humeri. Dir-me-ão, sem dúvida, que eu deveria
tomar esse conselho para mim mesmo, o que pode ser
verdadeiro. Haveria, porém, pelo menos uma diferença: eu
estaria sozinho do meu lado, enquanto que, sendo deles o
da multidão, pareceriam os recém-vindos dispensados de
enfileirarem-se ou obrigados a fazer melhor do que os
outros.
Temendo que tal conselho pareça temerário ou
presunçoso, junto aqui uma amostra dos raciocínios de
meus adversários pela qual se poderá aquilatar a exatidão
e o valor de suas críticas. Os povos da Europa, dissera eu,
viviam há alguns séculos num estado pior do que a
ignorância. Não sei que algaravia científica, ainda mais
desprezível do que a ignorância, usurpara o nome do saber
e opunha um obstáculo quase invencível à sua volta.
Precisou-se de uma revolução para devolver os homens ao
senso comum. Os povos tinham perdido o bom senso não
porque fossem ignorantes, mas por possuírem a tolice de
crer saber alguma coisa com os grandes ditos de Aristóteles
e a doutrina impertinente de Raymond Lulle; seria
necessária uma revolução para ensinar-lhes que eles nada
sabem e nós teríamos muita necessidade de outra para
ensinar-nos a mesma verdade. Segue-se o argumento de
meus adversários: Deve-se essa revolução às letras, elas
devolveram o bom senso, de acordo com a opinião do
autor, mas, também segundo ele, corromperam os
costumes; será preciso, pois, que um povo renuncie ao bom
senso para ter bons costumes. Três escritores
subsequentemente repetiram esse belo raciocínio.
Pergunto-lhes, agora, o que preferem que eu acuse: o seu
espírito, por não terem podido penetrar no sentido
claríssimo desse trecho, ou a sua má fé, por fingirem não
entendê-lo? São letrados e, por isso, a escolha não será
duvidosa. Mas o que diremos das interpretações divertidas
que esse último adversário tem o prazer de emprestar ao
desenho do frontispício de meu livro? Acreditaria ter
magoado meus leitores, tratando-os como crianças, ao
interpretar-lhes uma alegoria tão clara, ao dizer-lhes que o
facho de Prometeu é o das ciências, feito para incentivar os
grandes gênios, que o sátiro que, vendo o fogo pela
primeira vez, corre a ele e quer agarrá-lo, representa os
homens vulgares que, seduzidos pelo brilho das letras, se
entregam temerariamente ao estudo, e que o Prometeu,
que grita e o adverte do perigo, é o cidadão de Genebra.
Essa alegoria é justa e bela, ouso considerá-la sublime. Que
se deve pensar de um escritor que meditou sobre ela e não
conseguiu entendê-la? Pode-se pensar que tal homem não
teria sido um grande doutor entre os egípcios, seus amigos.
Tomo, pois, a liberdade de oferecer a meus adversários e,
sobretudo, ao último, esta sábia lição de um filósofo sobre
outro assunto: Sabei que não há nenhuma objeção que
possa fazer maior mal a vosso partido do que as más
respostas. Sabei que se não tiverdes dito nada de valia,
aviltarão vossa causa ao dar-vos a honra de crer que nada
nela se continha de melhor para ser dito.
Sou, etc.
Prefácio de Narciso ou o Amante se Si
Mesmo
Comédia escrita em 1733 e levada à cena em 1752.

Escrevi esta comédia aos dezoito anos e abstive-me de


mostrá-la enquanto senti alguma consideração pela
reputação do autor. Por fim ganhei a coragem de publicá-la,
porém nunca teria a de dizer algo a seu respeito. Não é,
pois, de minha peça, mas de mim mesmo que aqui se trata.
Impõe-se, apesar de meu desagrado, que eu fale de mim;
impõe-se que confesse os erros que me atribuem ou que os
justifique. Sei que as armas não serão iguais, pois me
atacarão com gracejos e eu defender-me-ei com razões,
mas contanto que convença meus adversários, bem pouco
me preocupo com persuadi-los. Esforçando-me por merecer
minha própria estima, aprendi a viver sem a dos outros
que, em geral, vivem muito bem sem a minha. Se tanto me
faz que pensem bem ou mal de mim, interessa-me no
entanto que ninguém tenha o direito de formar de mim um
mau juízo e importa à verdade, sustentada por mim, que
jamais se acuse injustamente seu defensor de a ter
socorrido por capricho ou vaidade, sem amá-la e conhecê-
la.
O partido que tomei, na questão que há alguns anos
examinei, não deixou de conquistar-me uma multidão de
adversários mais atentos talvez ao interesse dos literatos
do que à honra da literatura. Eu previra e suspeitara que
sua conduta, nessa ocasião, faria mais por mim do que
todos os meus discursos. Com efeito, não disfarçaram a sua
surpresa ou tristeza por ver uma academia mostrar-se
íntegra tão fora de oportunidade. A fim de conseguirem
desmerecer o peso de seu julgamento, não lhe pouparam
nem as invectivas indiretas, nem mesmo falsidades.
Também não fui esquecido nas suas declamações. Alguns
resolveram refutar-me às claras: os sábios puderam ver
com que força, e o público, com que sucesso o fizeram.
Outros, mais espertos, conhecendo o perigo de
combaterem diretamente as verdades demonstradas,
habilmente desviaram para a minha pessoa uma atenção
que só se deveria dar às minhas razões, e o exame das
acusações que contra mim intentaram os levou a
esquecerem as acusações mais graves que eu próprio
contra eles levantei. Será, pois, a estes que, mais uma vez,
tenho de responder.
Pretendem que eu não acredite uma palavra das
verdades que sustentei e que, ao demonstrar uma
proposição, não deixo de crer o contrário, isto é, que provei
coisas tão extravagantes que só à guisa de diversão se
podem sustentar. Eis uma bela homenagem que prestam
àquela ciência que serve de fundamento a todas as outras,
e deve-se crer que a arte de raciocinar bem serve à
descoberta da verdade, quando a vemos empregada com
sucesso para demonstrar loucuras.
Pretendem que não acredito numa palavra das verdades
que sustentei. É, sem dúvida, uma maneira nova e cômoda
de responder a argumentos sem resposta, de refutar as
demonstrações até de Euclides, e tudo o que existe de
demonstrado no universo. Parece-me que aqueles que, tão
temerariamente, me acusam de declarar-me contra meu
pensamento não têm muito escrúpulo de falar contra o seu,
pois certamente não encontraram nada em meus escritos
ou em minha conduta que pudesse ter-lhes inspirado essa
ideia, como logo o provarei. Não têm o direito de ignorar
que, desde que um homem fale seriamente, se deve supor
que creia no que diz, a menos que suas ações ou discursos
o desmintam, jamais e mesmo isso não bastará para
assegurar que não acredita em nada.
Podem, pois, gritar quanto desejem que, ao declarar-me
contra as ciências, o fiz contra minhas convicções. A uma
afirmação tão temerária, destituída tanto de comprovação
quanto de verossimilhança, só disponho de uma resposta -
é curta e enérgica, e rogo-lhes que a considerem como
dada.
Pretendem ainda estar minha conduta em contradição
com meus princípios e não se deve duvidar de que
recorrem a essa segunda instância para firmar a primeira,
pois há muita gente que sabe encontrar provas onde não as
há. Dirão, pois, que, compondo eu música e versos, será
deselegante deprimir as belas-artes e que nas belas-artes,
que afeto desprezar, existem inúmeras ocupações mais
louváveis do que escrever comédias. Terei de responder
também a esta acusação.
Em primeiro lugar, mesmo que fosse admitida com todo o
rigor, provaria que me conduzo mal, porém não que falo de
boa fé. Se se pudesse extrair das ações dos homens a
prova de seus sentimentos, ter-se-ia de concluir que o amor
pela justiça está banido de todos os corações e que não
existe um único cristão sobre a terra. Que me exibam
homens que sempre agem consequentemente com suas
máximas e eu aceitarei a condenação das minhas. Esse, o
destino da humanidade - a razão mostra-nos o objetivo e as
paixões desviam-nos dele. Se fosse, pois, verdade que eu
não ajo segundo meus princípios, não se teria motivo para,
somente com base nisso, acusarem-me de falar contra
minhas convicções ou acusarem meus princípios de
falsidade.
Se eu quisesse, porém, aceitar a condenação nesse
ponto, bastar-me-ia comparar os tempos para conciliar as
coisas. Nem sempre tive a felicidade de pensar como
agora. Seduzido, durante muito tempo, pelos preconceitos
de meu século, considerava o estudo a única ocupação
digna de um sábio e encarava as ciências com respeito e os
sábios, com admiração. Não compreendia haver
possibilidade de extraviar-se desenvolvendo continuamente
demonstrações, ou de agir mal falando continuamente de
sabedoria. Somente depois de ter visto as coisas de perto é
que aprendi a pesar-lhes o valor e, embora nas minhas
pesquisas sempre encontrasse satis eloquentiae, sapientiae
parum, foram-me necessárias muitas reflexões,
observações e muito tempo para destruir-se em mim a
ilusão de toda essa inútil pompa científica. Não é de
admirar que, durante esses tempos de preconceitos e de
erros, nos quais tanto considerava a qualidade de autor,
algumas vezes tenha aspirado a obtê-la eu mesmo. Foi
então que compus os versos e a maior parte das obras que
saíram de minha pena e, entre outras, esta comediazinha.
Seria talvez duro censurarem-me hoje estes divertimentos
de minha juventude e errariam pelo menos por me
acusarem de, com isso, ter contraditado princípios que
ainda não eram os meus. Há muito tempo já que não
alimento a menor pretensão a tais coisas, e arriscar, nessas
circunstâncias, a apresentá-las ao público, depois de ter por
tanto tempo a prudência de guardá-las, quer dizer que
desprezo igualmente tanto o louvor quanto a censura que
possam despertar, pois não penso mais como autor delas.
São filhos ilegítimos que se acaricia com prazer, mas
corando por ser seu pai, a quem se dizem os últimos
adeuses, e aos quais se manda fazerem fortuna sem
inquietar-se muito com o que lhes acontecerá.
Mas é raciocinar demais, baseando-se em suposições
quiméricas. Se me acusam, sem razão, de cultivar as letras
que desprezo, defendo-me sem necessidade, pois, mesmo
que o fato fosse verdadeiro, não haveria nisso
inconsequência alguma, e é o que resta provar.
Seguirei, segundo meu hábito, o método simples e fácil
que convém à verdade. Descreverei novamente a situação
da questão, exporei mais uma vez minha convicção e
esperarei que, segundo essa exposição, queiram mostrar-
me no que minhas ações desmentem meu discurso. Meus
adversários, por seu lado, não precisarão ficar sem
responder, eles que possuem a maravilhosa arte de
disputar pró e contra todos os assuntos. Começarão, como
é de seu hábito, por estabelecer outra questão de acordo
com sua fantasia; far-me-ão resolvê-la como lhes convier;
para me atacarem mais comodamente, far-me-ão
raciocinar, não a meu modo, mas ao seu; habilmente
desviarão os olhos do leitor do objeto essencial para fixá-los
à direita e à esquerda; combaterão um fantasma e
pretenderão tê-lo vencido. Mas eu terei feito o que devo
fazer e, portanto, começo.
"A ciência não serve para nada e sempre causa tão
somente o mal, pois é má de natureza. É tão
inseparável do vício quanto a ignorância da virtude.
Todos os povos letrados sempre foram corrompidos;
todos os povos ignorantes sempre foram virtuosos;
numa palavra, só existem vícios entre os sábios, e
homens virtuosos, entre aqueles que nada sabem.
Existe, pois, para nós, um meio de nos tornarmos
pessoas de bem - será apressarmo-nos a proscrever
a ciência e os sábios, queimar nossas bibliotecas,
fechar nossas academias, colégios e universidades, e
tornarmos a mergulhar em plena barbárie dos
primeiros séculos."
Eis o que meus adversários refutaram tão bem; ademais,
nunca disse ou pensei uma única palavra de tudo isso, e
não se poderia imaginar nada de mais oposto ao meu
sistema do que essa absurda doutrina que tiveram a
gentileza de atribuir-me. Aqui está, porém, o que eu disse e
que, de modo algum, refutaram.
Tratava-se de saber se o restabelecimento das ciências e
das artes contribuíra para aprimorar os costumes.
Mostrando, como o fiz, que nossos costumes não se
aprimoraram de modo algum, a questão estava quase
resolvida.
Ela compreendia implicitamente, porém, outra, mais geral
e mais importante, que diz respeito à influência que a
cultura das ciências deve exercer, em qualquer época,
sobre os costumes dos povos. Este o pomo, do qual o
primeiro não passa de consequência, que me propunha
examinar com cuidado.
Comecei pelos fatos e mostrei que os costumes
degeneraram entre todos os povos do mundo na medida
em que se espalhou em seu seio o gosto pelo estudo e
pelas letras.
Isso não bastava, pois, sem poder negar que essas coisas
sempre tivessem caminhado juntas, poder-se-ia negar que
uma tivesse trazido a outra. Esforcei-me, em consequência,
por mostrar essa ligação necessária. Demonstrei que a
fonte de nossos erros, nesse ponto, resulta de
confundirmos nossos conhecimentos vãos e enganadores
com a inteligência soberana que, num só golpe de vista,
discerne a verdade de todas as coisas. A ciência, tomada
de modo abstrato, merece nossa inteira admiração. A louca
ciência dos homens é digna unicamente de escárnio e de
desprezo.
O gosto pelas letras anuncia sempre, num povo, um
começo de corrupção que rapidamente se acelera,
porquanto tal gosto só pode nascer, no seio duma nação,
de duas fontes más, que o estudo de sua parte entretém e
mantém: a ociosidade e o desejo de distinguir-se. Num
Estado bem constituído, cada cidadão tem seus deveres a
desempenhar e esses cuidados muito importantes são-lhe
demasiado caros para deixar-lhe o lazer de vaguear por
especulações frívolas. Num Estado bem constituído, todos
os cidadãos são tão iguais, que nenhum deles pode ser
preferido aos demais como o mais sábio ou mesmo como o
mais hábil, mas, no máximo, como o melhor. Esta última
distinção pode, frequentemente, ser perigosa, dado que
forma impostores e hipócritas.
O gosto pelas letras, nascida do desejo de distinguir-se,
produz, necessariamente, males de perigo infinitamente
maior do que a utilidade do bem que causa, porque, afinal,
torna aqueles que se entregam a ele muito pouco
escrupulosos quanto aos meios de vencer. Os primeiros
filósofos granjearam grande reputação ensinando aos
homens a prática de seus deveres e os princípios da
virtude. Mas, logo tornando-se comuns seus preceitos,
tornou-se também necessário distinguir-se trilhando
caminhos contrários. Essa lei foi a origem dos sistemas
absurdos dos Leucipos, dos Diógenes, dos Pirros, dos
Protágoras, dos Lucrécios. Do mesmo modo, os Hobbes, os
Mandevilles e mil outros fingiram assim distinguir-se entre
nós, e sua perigosa doutrina frutificou de tal modo, que,
apesar de nos restarem verdadeiros filósofos fervorosos no
lembrarem aos nossos corações as leis da humanidade e da
virtude, espantamo-nos ao ver a que ponto nosso século
raciocinante introduziu, nas suas máximas, o desprezo
pelos deveres do homem e do cidadão.
O gosto pelas letras, pela filosofia e pelas belas-artes
enfraquece o amor pelos nossos primeiros deveres e pela
verdadeira glória. Quando os talentos conseguem usurpar
as honras devidas à virtude, cada qual quer ser um homem
agradável e ninguém se preocupa com ser um homem de
bem.
Nasce daí ainda essa outra inconsequência que faz com
que só se recompensem nos homens as qualidades que não
dependem deles, pois nossos talentos nascem conosco e só
as virtudes nos pertencem.
Os primeiros e quase os únicos cuidados que se
dispensam à nossa educação são os frutos e as sementes
desses preconceitos ridículos. Atormentam nossa miserável
juventude para ensinar-nos as letras; conhecemos todas as
regras da gramática antes de ouvir falar dos deveres do
homem; sabemos tudo o que se fez até o presente, antes
que nos tenham dito uma palavra sobre o que devemos
fazer, e, desde que usemos nosso palavrório, ninguém se
preocupa com que saibamos agir ou pensar. Em uma
palavra, só se deve ser sábio nas coisas que não nos
servem para nada e nossos filhos são educados
exatamente como os antigos atletas dos jogos públicos
que, destinando seus robustos membros a um exercício
inútil e supérfluo, sempre se abstinham de empregá-los em
qualquer trabalho proveitoso.
O gosto pelas letras, pela filosofia e pelas belas-artes
desfibra os corpos e as almas. O trabalho de gabinete torna
os homens delicados, enfraquece-lhes o temperamento e
dificilmente a alma guarda vigor quando o corpo perdeu o
seu. O estudo usa a máquina, esgota os espíritos, destrói a
força, enfraquece a coragem, e apenas isso já demonstra
que não é feito para nós, sendo assim que nos tornamos
covardes e pusilânimes, incapazes de resistir tanto à pena
quanto às paixões. Todos sabem como os habitantes das
cidades são pouco capazes de suportarem os labores da
guerra e não se ignora a reputação que têm os letrados
quanto à bravura. Ora, com justiça, nada é mais suspeito
do que a honra de um poltrão.
Tantas reflexões sobre a fraqueza de nossa natureza só
servem frequentemente para desviar-nos dos
empreendimentos generosos. De tanto meditar sobre as
misérias da humanidade, nossa imaginação sobrecarrega-
nos com o seu peso e a previdência demasiada tira-nos a
coragem ao tirar-nos a segurança. Inutilmente pretendemos
munir-nos contra os acidentes imprevistos, se a ciência,
buscando armar-nos com novas defesas contra os
inconvenientes naturais, ainda mais impressionou-nos a
fantasia com a grandeza e o peso desses inconvenientes de
modo a ultrapassar todas as razões e sutilezas vãs que
possuía para defender-nos deles.
O gosto pela filosofia afrouxa todos os laços de estima e
de afeto que ligam os homens à sociedade e talvez seja
esse o mais perigoso dos males por ela concebidos. O
encanto do estudo logo torna insípido qualquer outro
pendor. Além disso, de tanto refletir sobre a humanidade,
de tanto observar os homens, o filósofo aprende a apreciá-
las de acordo com seu valor e é bem difícil consagrar
afeição a quem se despreza. Em breve, resume em sua
pessoa todo o interesse que os homens virtuosos
compartilham com seus semelhantes. Seu desprezo pelos
outros passa a favorecer seu orgulho, e seu amor-próprio
aumenta na mesma proporção que sua indiferença pelo
resto do universo. Tornam-se para ele palavras desprovidas
de sentido, a família e a pátria; não é pai, cidadão ou
homem - é filósofo.
Ao mesmo tempo que a cultura das ciências, de certo
modo, desafoga o coração do filósofo, sujeita num outro
sentido o do letrado, e sempre com igual prejuízo para a
virtude. Todo homem que se preocupa com os talentos
deleitáveis quer agradar, ser admirado e quer ser admirado
mais do que outro; os aplausos públicos pertencem
somente a ele - diria que tudo faz para obtê-las, caso não
fizesse mais ainda para deles privar seus concorrentes. Daí
nascem, de um lado, os rebuscamentos do gosto e da
polidez, a adulação vil e baixa, os cuidados sedutores,
insidiosos, pueris, que, com o decorrer do tempo, aviltam a
alma e corrompem o coração, e, por outro lado, os ciúmes,
as rivalidades, os ódios entre artistas tão renomados, a
calúnia pérfida, a fraude, a traição e tudo o que o vício
possui de mais frouxo e de mais odioso. Se o filósofo
despreza os homens, o artista logo se torna desprezível
para eles, e ambos concorrem, afinal, para torná-las
desprezíveis.
Ainda há mais e esta é a mais impressionante e cruel de
todas as verdades que propus à consideração dos sábios.
Nossos escritores consideram tudo como se fosse uma
obra-prima da política de nosso século - as ciências, as
artes, o luxo, o comércio, as leis e os outros laços que,
estreitando entre os homens os liames da sociedade pelo
interesse pessoal, colocam todos numa dependência
mútua, dão-lhes necessidades recíprocas e interesses
comuns, e obrigam cada qual a concorrer para a felicidade
dos outros a fim de poder alcançar a sua. Certamente essas
ideias são belas e apresentadas com uma feição favorável,
mas, ao examiná-las com atenção e sem parcialidade, nas
vantagens que elas a princípio parecem apresentar,
encontra-se muito a ser refutado.
É, pois, coisa maravilhosa terem-se colocado os homens
na impossibilidade de viver entre si sem se suspeitarem,
suplantarem, enganarem, traírem e destruírem
mutuamente. Importa, daqui por diante, abster-nos de um
dia deixar de nos vermos como somos, pois, para dois
homens cujos interesses concordam, talvez cem mil
possuem-nos opostos, e não existe outro meio para vencer
senão enganar ou perder toda essa gente. Eis a fonte
funesta das violências, das traições, das perfídias e de
todos os horrores que necessariamente exigem um estado
de coisas no qual cada um, fingindo trabalhar para a
fortuna ou a reputação dos demais, só procura elevar a sua
acima e às expensas deles.
Que ganhamos com isso? Muito palavrório, os ricos e os
arrazoadores, isto é, inimigos da virtude e do bom senso.
Em compensação, perdemos a inocência e os costumes. A
multidão rasteja na miséria, todos são escravos do vício. Os
crimes não cometidos já estão no fundo dos corações e,
para serem executados, só lhes falta a segurança da
impunidade.
Estranha e funesta constituição, na qual as riquezas
acumuladas sempre facilitam os meios para acumular
outras maiores ainda; na qual é impossível, para aquele
que nada possui, adquirir qualquer coisa; na qual o homem
de bem não conta com qualquer meio de sair da miséria;
na qual os mais desavergonhados são mais dignificados e
na qual se tem necessariamente de renunciar à virtude
para tornar-se um homem honesto! Sei que os
declamadores já repetiram cem vezes tudo isso, mas o
diziam declamando e eu o digo baseando-me em razões;
eles se aperceberam do mal, e eu descubro as suas causas
e saliento sobretudo uma coisa muito consoladora e útil ao
mostrar que todos esses vícios não pertencem tanto ao
homem, quanto ao homem mal governado.
Essas são as verdades que desenvolvi e que me esforcei
por comprovar nos vários trabalhos que publiquei sobre o
assunto. Seguem-se as conclusões que delas tirei.
A ciência de modo algum é feita para o homem em geral.
Incessantemente, ele, ao procurá-la, se perde e, caso por
vezes a alcance, quase sempre é em prejuízo próprio. O
homem nasceu para agir e pensar, e não para refletir. A
reflexão só serve para torná-lo infeliz, sem fazê-lo melhor
ou mais sábio; faz com que lamente os bens passados e o
impede de gozar do presente; apresenta-lhe o futuro feliz a
fim de, pela imaginação, seduzi-lo e atormentá-lo pelos
desejos, e apresenta-lhe também o futuro infeliz a fim de,
antecipadamente, fazê-lo sentir. O estudo corrompe seus
costumes, altera sua saúde, destrói o temperamento e
frequentemente destrói sua razão; mesmo que lhe
ensinasse alguma coisa, eu o consideraria muito mal
recompensado.
Concedo que existem alguns gênios sublimes que sabem
penetrar através dos véus com os quais se cobre a
verdade, algumas almas privilegiadas capazes de resistir à
idiotice da vaidade, ao ciúme baixo e às outras paixões
geradas no gosto pelas letras. Constitui a luz e a honra do
gênero humano o pequeno número daqueles que têm a
felicidade de reunir essas qualidades. Somente a eles
convém, para o bem de todos, trabalhar no estudo e essa
mesma exceção confirma a regra, pois, se todos os homens
fossem Sócrates, a ciência não lhes seria então danosa,
mas também não teriam nenhuma necessidade dela.
Todo povo que possui costumes e que,
consequentemente, respeita suas leis e não quer requintar-
se em relação aos seus antigos usos deve cuidadosamente
defender-se das ciências e, sobretudo, dos sábios, cujas
máximas sentenciosas e dogmáticas logo ensinarão a
desprezar seus usos e leis, o que uma nação nunca poderá
fazer sem corromper-se. A menor mudança nos costumes,
mesmo que em certos aspectos seja vantajosa, sempre
resulta em prejuízo dos costumes. Porque os costumes são
a moral do povo e, desde que este cesse de respeitá-los, só
restam, como regra, suas paixões e, como freio, as leis que
algumas vezes podem deter os maus, porém jamais torná-
los bons. Aliás, quando a filosofia consegue ensinar o povo
a desprezar seus costumes, logo encontra o segredo de
enganar as leis. Digo, pois, que os costumes de um povo
são como a honra de um homem: é um tesouro que se tem
de conservar, mas que nunca mais se recupera quando se
perde.
Mas, quando um povo já se corrompeu até certo ponto,
quer as ciências tenham, quer não, contribuído para tanto,
será preciso bani-las ou se preservar delas para torná-la
melhor ou impedi-la de tornar-se ainda pior? Esta é outra
questão, em relação à qual me declarei positivamente pela
negativa. Pois, em primeiro lugar, uma vez que um povo
corrupto nunca mais volta à virtude, não se trata mais de
tornar bons aqueles que não o são, mas de conservar assim
aqueles que têm a felicidade de sê-lo. Em segundo lugar, as
mesmas causas que corromperam os povos servem
algumas vezes para prevenir uma corrupção ainda maior;
assim, aquele que estragou o seu temperamento com um
uso imprudente de remédios, vê-se forçado a recorrer ainda
aos médicos para conservar-se com vida. Desse modo, as
artes e as ciências, depois de terem feito os vícios
brotarem, são necessárias para impedi-los de se tornarem
crimes, cobrindo-os de um verniz que não permite que o
veneno se evapore tão livremente. Destroem a virtude, mas
preservam o seu simulacro público, que sempre é uma bela
coisa; em seu lugar introduzem a polidez e a decência, e
substituem o temor de parecer mau pelo de parecer
ridículo.
Minha opinião é, pois, e já o afirmei mais de uma vez,
deixar subsistir e mesmo manter as academias, os colégios,
as universidades, as bibliotecas, os espetáculos e todas as
outras distrações que podem de certo modo divertir a
maldade dos homens e impedi-los de ocupar a ociosidade
em coisas mais perigosas, pois, numa região na qual não se
fizesse mais questão nem de pessoas de bem nem de bons
costumes, seria ainda melhor viver com velhacos do que
com salteadores.
Pergunto, agora, onde está a contradição em cultivar eu
próprio os gostos cujo progresso aprovo. Não se trata mais
de levar os povos a agirem bem, basta distraí-los de
fazerem o mal. Impõe-se ocupá-los com bagatelas para
desviá-los das más ações; em lugar de pregar-lhes, deve-se
distraí-los. Se meus escritos edificaram o pequeno grupo
dos bons, eu lhes fiz todo o bem que dependia de mim e
será talvez servi-los ainda mais utilmente oferecer aos
outros objetos de distração que os impeçam de pensar em
si. Muito me agradaria ter sempre uma peça para ser
vaiada, se a esse preço pudesse, durante duas horas,
conter os maus desígnios de um único espectador, salvar a
honra da esposa ou da filha de seu amigo, o segredo de seu
confidente ou a fortuna de seu credor. Quando não existem
mais costumes, tem-se de pensar unicamente na polícia, e
sabe-se muito bem que a música e os espetáculos
constituem um de seus mais importantes objetivos.
Caso exista alguma dúvida sobre minha justificação -
arrisco-me a dizê-lo tão ousadamente -, não será nem em
relação ao meu público, nem a meus adversários, mas
somente a mim mesmo, pois somente observando a mim
mesmo é que posso julgar se devo incluir-me naquele
pequeno grupo e se minha alma está em situação de
sustentar o fardo das atividades literárias. Mais de uma vez
tive consciência do perigo delas, mais de uma vez
abandonei-as no firme propósito de nunca mais voltar
atrás; renunciando a seu encanto sedutor, sacrifiquei à paz
de meu coração os únicos prazeres que ainda poderiam
satisfazer-me. Se, nas aflições que me oprimem, se, no fim
de uma carreira penosa e dolorosa, ousei retomá-las ainda
por alguns momentos, a fim de encantar meus males, creio
não ter posto nisso demasiado interesse e pretensão para,
a tal respeito, merecer as justas reprimendas que faço aos
literatos.
Para completar o conhecimento de mim mesmo, faltava-
me ainda uma prova e a fiz sem titubear. Depois de ter
reconhecido a situação de minha alma nos sucessos
literários, faltava-me examiná-la na infelicidade. Sei, agora,
o que pensar disso e posso deixar o pior para o público.
Minha peça teve a sorte que merecia e que eu previra, mas,
no quase desgosto que me causou, saí da representação
muito mais contente comigo mesmo e com muito mais
motivo do que se ela obtivera êxito.
Aconselho, pois, àqueles que com tanto ardor procuram
reprimendas para fazer-me, estudarem meus princípios e
observarem melhor minha conduta antes de acusarem-me
de contradição e inconsequência. Se, algum dia,
perceberem que começo a ambicionar os sufrágios do
público, que me envaideço de ter feito lindas canções, que
me envergonho de ter escrito más comédias, que procuro
deslustrar a glória de meus concorrentes, que afeto falar
mal dos grandes homens de meu - século a fim de,
rebaixando-os ao meu nível, conseguir elevar-me ao deles,
que aspiro a lugares da academia, que tenha feito a corte
às senhoras que dão o tom, que incenso a idiotice dos
grandes, que, deixando de querer viver do trabalho de
minhas mãos, lanço na ignomínia o ofício que escolhi e faço
esforços no sentido de conseguir fortuna, se, numa palavra,
notarem que o amor da reputação me faz esquecer o da
virtude, peço-lhes que me advirtam disso, publicamente, e
eu prometo deitar, no mesmo instante, fogo aos meus
escritos e aos meus livros, e concordar com todos os erros
que lhes aprouver censurar-me.
Esperando, escreverei livros, comporei versos e música,
caso tenha para isso talento, tempo, força e vontade, e
continuarei a dizer, com toda a franqueza, todo o mal que
penso das letras e daqueles que as cultivam, tendo certeza
de não valer menos por isso. É verdade que um dia poderão
dizer: "Esse inimigo tão declarado das ciências e das artes,
todavia, fez e publicou peças de teatro", e tal discurso
constituirá, confesso, uma sátira muito amarga, não a mim,
mas a meu século.
Table of Contents
Apresentação
Advertência
Prefácio
Discurso
Primeira Parte
Segunda Parte
Respostas dadas por Jean-Jacques Rousseau às
Objeções Dirigidas a seu Discurso
Carta ao Sr. Padre Raynal
Carta de J.-J. Rousseau ao Sr. Grimm
Resposta de J.-J. Rousseau ao Rei da Polônia, Duque
da Lorena
Última Resposta ao Sr. Bordes
Carta de Jean-Jacques Rousseau
Prefácio de Narciso ou o Amante se Si Mesmo

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