O documento discute como as ideias de Rousseau sobre os perigos da ciência para a virtude humana ainda são relevantes hoje. Apresenta preocupações de Santos e Feenberg com os efeitos negativos da tecnociência, como catástrofes ambientais e guerras, e como eles ecoam os temores de Rousseau sobre a ciência afastar o homem de sua humanidade e corromper a virtude em busca de lucro. Também mostra como Rousseau antecipou problemas da sociedade de consumo e arrogância dos cientistas.
O documento discute como as ideias de Rousseau sobre os perigos da ciência para a virtude humana ainda são relevantes hoje. Apresenta preocupações de Santos e Feenberg com os efeitos negativos da tecnociência, como catástrofes ambientais e guerras, e como eles ecoam os temores de Rousseau sobre a ciência afastar o homem de sua humanidade e corromper a virtude em busca de lucro. Também mostra como Rousseau antecipou problemas da sociedade de consumo e arrogância dos cientistas.
O documento discute como as ideias de Rousseau sobre os perigos da ciência para a virtude humana ainda são relevantes hoje. Apresenta preocupações de Santos e Feenberg com os efeitos negativos da tecnociência, como catástrofes ambientais e guerras, e como eles ecoam os temores de Rousseau sobre a ciência afastar o homem de sua humanidade e corromper a virtude em busca de lucro. Também mostra como Rousseau antecipou problemas da sociedade de consumo e arrogância dos cientistas.
O documento discute como as ideias de Rousseau sobre os perigos da ciência para a virtude humana ainda são relevantes hoje. Apresenta preocupações de Santos e Feenberg com os efeitos negativos da tecnociência, como catástrofes ambientais e guerras, e como eles ecoam os temores de Rousseau sobre a ciência afastar o homem de sua humanidade e corromper a virtude em busca de lucro. Também mostra como Rousseau antecipou problemas da sociedade de consumo e arrogância dos cientistas.
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Apresentação
O Prelúdio de uma Visão Crítica da
Centralidade Tecnocientífica* Recorrer à obra de Rousseau para abordar a crítica a tecnociência é buscar o início de um posicionamento que tem ganhado espaço nos estudos da filosofia e das ciências sociais. O que procura-se investigar é o sentido e o valor da evolução sócio-técnica para a modernidade, refletindo, assim como Rousseau, se elas tem algum tipo de relacionamento com a virtude humana. A preocupação com os efeitos negativos gerados pelo desenvolvimento científico passou a ocupar as agendas de pesquisas depois de eventos como as guerras biológicas, bombas nucleares e devastação ambiental, ocorridos principalmente depois da segunda grande guerra. O perigo da tecnociência existe e está cada vez mais evidente, porém, como afirma Bazzo, Pinheiro e Silveira (2009), muitos cidadãos ainda tem dificuldades de compreender seus reais efeitos, que por detrás de grandes promessas de avanços tecnológicos, esconde lucros e interesses das classes dominantes. Tal realidade parece evidenciar o temor de Rousseau, por isso, parece conveniente recuperar seu primeiro escrito, buscando uma leitura contemporânea de suas ideias, afim de retomar um alerta que foi dado há 260 anos atrás, ou seja: o desenvolvimento das artes e ciências é capaz corromper a dignidade humana, afastando o homem de sua humanidade. Quando o autor genebrino exprime que a ciência esconde falsas estradas que levam a caminhos mil vezes mais perigosos que a verdade que se busca, (ROUSSEAU, [1749], 2005), mostra que o teor de suas críticas ganham sentido e aplicabilidade atual. De acordo com Santos (1988), é hora de retomarmos os questionamentos sobre as relações entre a ciência e a virtude, nos perguntando se o acúmulo do conhecimento científico tem gerado o enriquecimento ou o empobrecimento prático das nossas vidas, mas efetivamente, se a ciência e a tecnologia promovem a felicidade humana. Para que se possa apontar a pertinência das ideias de Rousseau para o contexto da sociedade tecnológica atual, serão utilizados fragmentos das obras de dois autores contemporâneos: Boaventura de Souza Santos, representando a sociologia da ciência, e Andrew Feenberg, representando a filosofia da ciência. Tais autores foram escolhidos, porque assim como Rousseau, acreditam que a ciência e a tecnologia possuem características capazes de corromper a dignidade humana. A pretensão aqui não é fazer um estudo aprofundado, mas somente demonstrar que o discurso de Rousseau pode ser comparado com a visão pós-moderna crítica da tecnologia. *** Rousseau, no ano de 1749, com 37 anos, era até então pouco conhecido. Certa ocasião estava a caminho de Vincennes, nos arredores de Paris para visitar seu amigo Diderot na prisão, que havia sido detido por conta de algumas publicações consideradas “progressistas” pelas autoridades civis. No caminho, leu no Mercure de France, jornal que circulava na França em sua época, um anúncio da Academia de Dijon oferecendo um prêmio aquele que fizesse o melhor ensaio sobre o tema: Tem o progresso das artes e das ciências contribuído para a purificação ou para a corrupção da moralidade? Nesse exato momento, foi tomado por uma luz reveladora. “Rousseau ficou petrificado; foi tamanha torrente de novas ideias e visões que o acometeram que desmaiou e viu-se incapaz por algum tempo de prosseguir sua viagem” (DENT, 1996, p.17). Decidiu participar, ganhando o prêmio de destaque nesse concurso acadêmico, que como afirma o próprio autor genebrino na Advertência de sua obra, “tornou conhecido meu nome”. Através de um discurso que lembra a maiêutica socrática, a dúvida suscitada no ensaio convida o leitor a refletir sobre a corrupção moral gerada pelas artes e ciências. Como explica Garcia (2005) na apresentação da obra de Rousseau, é apresentando dúvidas e formulando questões que o filósofo iluminista vai extraindo, como num parto, a experiência vivida de seus leitores para que possam compreender os perigos do desenvolvimento das artes e das ciências. O Discurso sobre as ciências e as artes representa o início das reflexões do autor sobre a corrupção do homem inserido no ambiente social, tema constante e melhor desenvolvido em obras posteriores. Para Freitas (2006), em seu primeiro discurso, Rousseau arma o cenário ideal de questionamento e de crítica aos homens de sua própria realidade em sua forma mais degenerada. A pergunta feita pela academia de Dijon: se o restabelecimento das ciências e das artes contribui para aperfeiçoar os costumes, foi rebatida por Rousseau com uma segunda pergunta: há alguma relação entre a ciência e a virtude? Sua resposta negativa causou furor entre os intelectuais de sua época. Dessa maneira, segundo Roger (2005), ele deixa deliberadamente o contexto histórico imposto pela questão e volta à oposição clássica entre a ciência e a virtude. *** Boaventura de Souza Santos, em seu ensaio Um discurso sobre as Ciências na transição para uma ciência pós- moderna, faz referência direta a obra de Rousseau, questionando a validade da sociedade tecnocientífica. “Estamos de novo regressados à necessidade de perguntar pelas relações entre a ciência e a virtude, [...] e temos finalmente de perguntar pelo papel de todo o conhecimento científico acumulado no enriquecimento ou no empobrecimento prático das nossas vidas, ou seja, pelo contributo positivo ou negativo da ciência para a nossa felicidade” (SANTOS, 1988, p. 47). O motivo da retomada ao texto iluminista se caracteriza pelo medo confesso de Santos, que no ano de 1988 afirmava que “através de uma reflexão mais rigorosa dos limites científicos combinada com os perigos cada vez mais verossímeis de catástrofes ecológicas ou de guerras nucleares, provocam o temor de que o século XXI termine antes mesmo de começar” (SANTOS, 1988, p. 46). Essa visão de temor sobre o desenvolvimento da ciência também fica claro no discurso de Rousseau, que afirma metaforicamente que “a natureza nos quis preservar da ciência, assim como a mãe que arrebata uma arma perigosa das mãos do seu filho; que todos os segredos que ela vos esconde são tantos males dos quais vos preserva e que a dificuldade que encontrais em vos instruir não é o menor de seus benefícios” (ROUSSEAU, 2005, [1749], p. 22). Frente a esses perigos gerados pela tecnociência, Feenberg (2003) coloca outro ponto na discussão, que é exatamente o questionamento sobre o sentido da evolução tecnológica. De acordo com o autor, atualmente vive-se numa crise da qual parece não existir fuga: a ciência e a tecnologia dotaram o homem de grande poder instrumental que o faz acreditar que pode alcançar o desenvolvimento, mesmo sem saber o porquê, a direção e o significado desse “desenvolvimento. “Mas quando o século XX avança das guerras mundiais para os campos de concentração e para catástrofes ambientais, fica mais difícil ignorar a estranha falta de sentido da modernidade” (FEENBERG, 2003, p. 145) Na segunda parte do discurso de Rousseau, encontramos uma referência muito importante no que concerne aos perigos da investigação e aplicação científica desenfreada. Rousseau questiona: “Quantos perigos! quantas falsas estradas, na investigação das ciências? Por quantos erros, mil vezes mais perigosos do que a verdade, não será útil, não será preciso passar para alcançá-la?” Mais adiante o autor completa: “Se nossas ciências são vãs no objetivo a que se propõem, são mais perigosas ainda pelos efeitos que produzem” (ROUSSEAU, [1749], 2005, p.26) Nessa linha de pensamento, Feenberg conclui: “O efeito geral desse processo é a destruição do homem e da natureza. Um mundo “estruturado” pela tecnologia é radicalmente alienado e hostil” (FEENBERG, 2003, p. 289). A sociedade do consumo desenfreado, típica do modelo capitalista desencadeado pelo desenvolvimento tecnológico da revolução industrial também foi retratada por Rousseau, mesmo antes dela se constituir genuinamente. Ou se referir à corrupção da virtude, o autor afirma: “O que será da virtude, quando for preciso enriquecer a qualquer custo? Os antigos políticos falavam incessantemente de costumes e de virtude; os nossos só falam de comércio e de dinheiro”. (ROUSSEAU, [1749], 2005, p.28) Feenberg afirma: “O “maestro” moderno exemplar da tecnologia é o empreiteiro que focaliza com ideia fixa apenas a produção e o lucro. O empreiteiro é uma plataforma radicalmente descontextualizada para a ação, sem as responsabilidades tradicionais para com as pessoas e lugares envolvidos com a força técnica no passado” (FEENBERG, 2003, p.94). Outro ponto onde podemos encontrar referências de Rousseau no pensamento da filosofia moderna é sobre a postura arrogante do cientista, que se coloca em posição elevada diante daqueles que não tiveram chance de contemplar suas verdades. Nas palavras de Rousseau, “esses declamadores vãos e fúteis andam por toda a parte, armados com seus funestos paradoxos; solapam os fundamentos da lei e aniquilam a virtude. Sorriem com desdém das antigas palavras pátria e religião e consagram seus talentos e sua filosofia a destruir e aviltar tudo quanto há de sagrado entre os homens” (ROUSSEAU, [1749], 2005, p.27). Santos afirma: “Esta preocupação em testemunhar uma ruptura fundante que possibilita uma e só uma forma de conhecimento verdadeiro está bem patente na atitude mental dos protagonistas, no seu espanto perante as próprias descobertas e a extrema e ao mesmo tempo serena arrogância com que se medem com os seus contemporâneos” (SANTOS, 1988, p. 48). Assim como Rousseau, que acreditava no valor intrínseco dos costumes rústicos e naturais, Santos (2005), ao elaborar seu conceito de ecologia dos saberes, propõe uma aproximação do conhecimento científico/acadêmico, com o conhecimento popular, muito valorizado por Rousseau. Santos afirma que, “a ecologia de saberes é, por assim dizer, uma forma de extensão ao contrário, de fora da universidade para dentro da universidade. Consiste na promoção de diálogos entre o saber científico ou humanístico, que a universidade produz e, saberes leigos, populares, tradicionais, urbanos, camponeses [...] que circulam na sociedade” (SANTOS, 2005, p. 176). DISCURSO QUE ALCANÇOU O PRÊMIO DA ACADEMIA DE DIJON, EM 1750 SOBRE A SEGUINTE QUESTÃO PROPOSTA PELA MESMA ACADEMIA: O RESTABELECIMENTO DAS CIÊNCIAS E DAS ARTES TERÁ CONTRIBUÍDO PARA APRIMORAR OS COSTUMES? Advertência Que será a celebridade? Eis a obra infeliz a que devo a minha. É certo que essa peça, que me valeu um prêmio e me deu nome, será, no máximo, medíocre e, ouso acrescentar, uma das menores deste repositório, Que abismo de misérias não teria evitado o autor, se esta primeira obra tivesse sido recebida como o merecia! Mas era preciso que um favor inicial injusto me trouxesse, aos poucos, uma severidade que ainda é mais injusta. Prefácio Eis aqui uma das maiores e mais belas questões jamais agitadas. Não se trata, de modo algum, neste discurso, dessas sutilezas metafísicas que dominaram todas as partes da literatura e das quais nem sempre são isentos os programas de academia, mas de uma daquelas verdades que importam à felicidade do gênero humano. Prevejo que dificilmente me perdoarão o partido que ousei tomar. Ferindo de frente tudo o que constitui, atualmente, a admiração dos homens, não posso esperar senão uma censura universal; não será por ter sido honrado pela aprovação de alguns sábios que deverei esperar a do público. Por isso já tomei meu partido; não me preocupo com agradar nem aos letrados pretensiosos, nem às pessoas em moda. Em todos os tempos, haverá homens destinados a serem subjugados pelas opiniões de seu século, de seu país e de sua sociedade. Faz-se passar hoje por espírito forte, filósofo, quem, pelo mesmo motivo, ao tempo da Liga não teria passado de um fanático! Quando se quer viver para além de seu século, não se deve escrever para tais leitores. Mais uma palavra e concluirei. Não contando com a honra que recebi, confesso ter, depois de enviá-lo, refundido e aumentado este discurso de modo a torna-lo, de certa maneira, outra obra. Sinto-me hoje obrigado a restabelecê-lo no estado em que foi premiado. Acrescentei-lhe somente algumas notas e deixei duas adições fáceis de serem reconhecidas e que a Academia talvez não tivesse aprovado. Penso que a equidade, o respeito e o reconhecimento exigem de mim esta advertência. Discurso Decipimur specie recti Horác., Da Art. Poét., v. 25
O restabelecimento das ciências e das artes contribuiu
para aprimorar ou corromper os costumes? Eis o que é preciso examinar. Que partido deverei tomar nessa questão? Aquele, senhores, que convém a um homem de bem que nada sabe e que nem por isso se despreza. Sei que será difícil acomodar o que tenho a dizer ao tribunal perante o qual compareço. Como ousar censurar as ciências perante uma das mais sábias companhias da Europa, louvar a ignorância numa Academia célebre e conciliar o desprezo pelo estudo com o respeito pelos verdadeiros sábios? Reconheci estes obstáculos e eles de modo algum me demoveram. Não é em absoluto a ciência que maltrato, disse a mim mesmo, é a virtude que defendo perante homens virtuosos. E mais cara a probidade às pessoas de bem do que a erudição aos doutos. Que temer, pois? As luzes da assembleia que me ouve? Confesso-o que sim, mas será pela constituição do discurso e não pelo sentimento do orador. Os soberanos justos jamais hesitaram em condenar-se a si mesmos em discussões duvidosas e a posição mais vantajosa para o justo direito é a de ter de defender-se contra uma parte íntegra e esclarecida, juiz em causa própria. A esse motivo, que me encoraja, junta-se outro, que me incita - é que, depois de ter sustentado, de acordo com minhas luzes naturais, o partido da verdade, seja qual for meu sucesso, há um prêmio que não poderá faltar-me e que encontrarei no fundo do coração. Primeira Parte É um espetáculo grandioso e belo ver o homem sair, por seu próprio esforço, a bem dizer do nada; dissipar, por meio das luzes de sua razão, as trevas nas quais o envolveu a natureza; elevar-se acima de si mesmo; lançar-se, pelo espírito, às regiões celestes; percorrer com passos de gigante, como sol, a vasta extensão do universo; e, que é ainda maior e mais difícil, penetrar em si mesmo para estudar o homem e conhecer sua natureza, seus deveres e seu fim. Todas essas maravilhas se renovaram, há poucas gerações. A Europa tinha tornado a cair na barbárie dos primeiros tempos. Os povos dessa parte do mundo, hoje tão esclarecida, viviam há alguns séculos em estado pior do que a ignorância. Não sei que algaravia científica, ainda mais desprezível que a ignorância, usurpara o nome do saber e opunha um obstáculo quase invencível à sua volta. Precisou-se de uma revolução para devolver os homens ao senso comum e ela veio donde menos se esperava. Foi o estúpido muçulmano, foi o eterno flagelo das letras que as fez renascer entre nós. A queda do trono de Constantino trouxe à Itália os destroços da Grécia antiga. A França, por sua vez, enriqueceu-se com esses destroços preciosos. Rapidamente, as ciências seguiram as artes, à arte de escrever juntou-se a arte de pensar - gradação que pode parecer estranha e talvez não seja senão demasiado natural - e se começou então a sentir a principal vantagem do comércio das musas, que é o de tornar os homens mais sociáveis, inspirando-lhes o desejo de se deleitarem uns aos outros por meio de obras dignas de sua aprovação recíproca. Como o corpo, o espírito tem suas necessidades. Estas são o fundamento da sociedade, aquelas constituem seu deleite. Enquanto o Governo e as leis atendem à segurança e ao bem-estar dos homens reunidos, as ciências, as letras e as artes, menos despóticas e talvez mais poderosas, estendem guirlandas de flores sobre as cadeias de ferro de que estão eles carregados, afogam-lhes o sentimento dessa liberdade original para a qual pareciam ter nascido, fazem com que amem sua escravidão e formam assim o que se chama povos policiados. A necessidade levantou os tronos; as ciências e as artes os fortaleceram. Potências da terra, amai os talentos e protegei aqueles que os cultivam. Povos policiados, cultivai-os; escravos felizes, vós lhes deveis esse gosto delicado e fino com que vos excitais, essa doçura de caráter e essa urbanidade de costumes, que tornam tão afável o comércio entre vós, em uma palavra: a aparência de todas as virtudes, sem que se possua nenhuma delas. Por essa espécie de polidez, tanto mais amável quanto menos afeta mostrar-se, outrora se distinguiram Atenas e Roma nos dias tão exalçados de sua magnificência e de seu brilho; por ela, sem dúvida, nosso século e nossa nação sobrepujarão todos os tempos e todos os povos. Um tom filosófico sem pedantaria, maneiras naturais e não obstante atenciosas, distanciadas igualmente da rusticidade tudesca e da pantomima ultramontana - eis os frutos do gosto, adquiridos nos bons estudos e aperfeiçoados no comércio do mundo. Como seria doce viver entre nós, se a contenção exterior sempre representasse a imagem dos estados do coração, se a decência fosse a virtude, se nossas máximas nos servissem de regra, se a verdadeira filosofia fosse inseparável do título de filósofo! Mas tantas qualidades dificilmente andam juntas e a virtude nem sempre se apresenta com tão grande pompa. A riqueza do vestuário pode denunciar um homem opulento, e a elegância, um homem de gosto; conhece-se o homem são e robusto por outros sinais - é sob o traje rústico de um trabalhador e não sob os dourados de um cortesão, que se encontrarão a força e o vigor do corpo. A aparência não é menos estranha à virtude, que constitui a força e o vigor da alma. O homem de bem é um atleta que se compraz em combater nu; despreza todos esses ornamentos vãos, que dificultam o emprego de suas forças e cuja maior parte só foi inventada para esconder uma deformidade qualquer. Antes que a arte polisse nossas maneiras e ensinasse nossas paixões a falarem a linguagem apurada, nossos costumes eram rústicos, mas naturais, e a diferença dos procedimentos denunciava, à primeira vista, a dos caracteres. No fundo, a natureza humana não era melhor, mas os homens encontravam sua segurança na facilidade para se penetrarem reciprocamente, e essa vantagem, de cujo valor não temos mais noção, poupava-lhes muitos vícios. Atualmente, quando buscas mais sutis e um gosto mais fino reduziram a princípios a arte de agradar, reina entre nossos costumes uma uniformidade desprezível e enganosa Z o, e parece que todos os espíritos se fundiram num mesmo molde: incessantemente a polidez impõe, o decoro ordena; incessantemente seguem-se os usos e nunca o próprio gênio. Não se ousa mais parecer tal como se é e, sob tal coerção perpétua, os homens que formam o rebanho chamado sociedade, nas mesmas circunstâncias, farão todos as mesmas coisas desde que motivos mais poderosos não os desviem. Nunca se saberá, pois, com quem se trata: será preciso, portanto, para conhecer o amigo, esperar pelas grandes ocasiões, isto é, esperar que não haja mais tempo para tanto, porquanto para essas ocasiões é que teria sido essencial conhecê-la. Que cortejo de vícios não acompanha essa incerteza! Não mais amizades sinceras e estima real; não mais confiança cimentada. As suspeitas, os receios, os medos, a frieza, a reserva, o ódio, a traição esconder-se-ão todo o tempo sob esse véu uniforme e pérfido da polidez, sob essa urbanidade tão exaltada que devemos às luzes de nosso século. Não mais se profanará com juramentos o nome do senhor do universo, mas será ele insultado com blasfêmias, sem que nossos ouvidos suscetíveis se ofendam com isso. Não se enaltecerá o próprio mérito, mas se rebaixará o de outrem. De modo algum se ultrajará grosseiramente o inimigo, mas jeitosamente o caluniaremos. Extinguir-se-ão os ódios nacionais, mas com eles irá o amor à pátria. A ignorância desprezada será substituída por um pirronismo perigoso. Haverá excessos proscritos, vícios desonrados, mas outros serão honrados com o nome de virtudes; impor- se-á tê-los ou afetar tê-los. Elogiará, quem desejar, a sobriedade dos sábios de hoje, quanto a mim, não vejo nisso senão um rebuscamento da intemperança, tão indigno de meu elogio quanto a simplicidade artificiosa de tais sábios. Tal a pureza adquirida pelos nossos costumes; assim tornamo-nos pessoas de bem. Cabe às letras, às ciências e às artes reivindicarem o que lhes pertence numa obra tão salutar. Acrescentarei somente uma reflexão: um habitante de certas paragens longínquas, que procurasse formar uma ideia dos costumes europeus tomando por base o estado das ciências entre nós, a perfeição de nossas artes, a decência de nossos espetáculos, a polidez de nossas maneiras, a afabilidade de nossos discursos, as nossas demonstrações perpétuas de benevolência e esse tumultuoso concurso de homens de todas as idades e de todos os estados que parecem ávidos, desde a aurora até o deitar do sol, de se obsequiarem reciprocamente, descobriria a respeito de nossos costumes exatamente o contrário do que são. Onde não existe nenhum efeito não há nenhuma causa a procurar; nesse ponto, porém, o efeito é certo, a depravação é real, e nossas almas se corromperam à medida que nossas ciências e nossas artes avançaram no sentido da perfeição. Dir-se-á ser uma infelicidade própria de nossa época? Não, senhores; os males causados por nossa vã curiosidade são tão velhos quanto O mundo. A elevação e o abaixamento cotidianos das águas do oceano não foram mais regularmente submetidos ao curso do astro que nos ilumina durante a noite quanto a sorte dos costumes e da probidade aos progressos das ciências e das artes. Viu-se a virtude fugir à medida que sua luz se elevava no nosso horizonte e observou-se o mesmo fenômeno em todos os tempos e em todos os lugares. Vede o Egito, essa primeira escola do universo, esse clima tão fértil sob um céu ferrenho, essa região célebre de onde outrora Sesóstris partiu para conquistar o mundo. Torna-se ela a mão da filosofia e das belas-artes e logo depois se dá a conquista de Cambises, depois a dos gregos, a dos romanos, a dos árabes e, por fim, a dos turcos. Vede a Grécia, povoada outrora por heróis que por duas vezes venceram a Ásia, uma diante de Tróia e outra nos seus próprios lares. As letras nascentes não tinham ainda levado a corrupção aos corações de seus habitantes, mas o progresso das artes, a dissolução dos costumes e o jugo do macedoniano seguiram-se de perto e a Grécia sempre sábia, sempre voluptuosa e escrava, só ganhou com suas revoluções uma mudança de senhores. Toda a eloquência de Demóstenes jamais pôde reanimar um corpo que o luxo e as artes tinham desfibrado. Foi no tempo dos Ênios e dos Terêncios que Roma, fundada por um pastor e ilustrada por trabalhadores, começou a degenerar. Mas, depois dos Ovídios, dos Catulos, dos Marciais e dessa multidão de autores obscenos cujos simples nomes alarmam o pudor, Roma, que outrora fora o templo da virtude, tornou-se o teatro do crime, o opróbrio das nações e o joguete dos bárbaros. Essa capital do mundo cai, finalmente, sob o jugo que impusera a tantos povos e o dia de sua queda foi aquele em que se deu a um de seus cidadãos o título de árbitro do bom gosto. Que direi dessa metrópole do Império do Oriente que parecia, por sua posição, dever ser a do mundo inteiro, desse asilo das ciências e das artes proscritas do resto da Europa, talvez mais por sabedoria do que por barbárie? Tudo que a depravação e a corrupção têm de mais vergonhoso; tudo que as traições, os assassínios e os venenos têm de mais negro; tudo que o concurso de todos os crimes tem de mais atroz - eis o que forma a trama da história de Constantinopla. Aí está a fonte pura da qual foram trazidas até nós as luzes com as quais nosso século se glorifica. Mas, por que procurar em tempos distantes as provas de uma verdade da qual temos, sob nossos olhos, testemunhos subsistentes? Há na Ásia uma região imensa na qual as letras reverenciadas levam às primeiras dignidades do Estado. Se as ciências purificassem os costumes, se ensinassem os homens a derramar seu sangue pela pátria, se incitassem à coragem, os povos da China deveriam ser sábios, livres e invencíveis. No entanto, se não há um vício sequer que não os domine, um crime sequer que não lhes seja familiar, se nem a luz dos ministros, nem a pretensa sabedoria de suas leis, nem a multidão de habitantes desse vasto império puderam resguardá-lo do jugo do tártaro ignorante e grosseiro, de que lhe terão servido os sábios? Que fruto alcançou com as honrarias de que foram estes cumulados? Porventura, o de ser povoado por escravos e pérfidos? Oponhamos a esse quadro o dos costumes de pequeno número de povos que, preservados desse contágio de conhecimentos maus, por suas virtudes construíram a própria felicidade e constituem exemplo para as demais nações. Tais foram os antigos persas, nação singular no seio da qual se aprendia a virtude como entre nós se aprende a ciência, que com tanta facilidade subjugou a Ásia, sendo a única a possuir tal glória, e cuja história das instituições pode ser considerada um romance de filosofia. Tais os citas, dos quais nos restam elogios tão magníficos. Tais os germanos, a cujo respeito uma pena, cansada de descrever os crimes e as maldades de um povo instruído, opulento e voluptuoso, aliviou-se com descrever-lhes a simplicidade, a inocência e as virtudes. Tal foi, também, a própria Roma, nos tempos de pobreza e de ignorância; tal se mostrou até nossos dias esta nação rústica, tão enaltecida pela sua coragem, que a adversidade não pôde abater, e pela sua fidelidade, que o exemplo não pôde corromper. Não seria absolutamente por estupidez que esses povos preferiram outras atividades às do espírito. Não ignoravam que, em outras regiões, homens ociosos passavam sua vida disputando sobre o bem soberano, sobre o vício e a virtude, e que pensadores orgulhosos, creditando-se a si mesmos os maiores elogios, confundiam os outros povos sob o nome desprezivo de bárbaros; refletiram sobre seus costumes e aprenderam a desprezar sua doutrina. Esquecer-me-ia de que foi no próprio seio da Grécia que se viu surgir essa cidade tão célebre pela sua feliz ignorância quanto pela sabedoria das leis, essa república antes de quase deuses do que de homens, tanto suas virtudes pareciam superiores à humanidade? Oh! Esparta, eterno opróbrio de uma doutrina vã! Enquanto os vícios levados pelas belas-artes se introduziam conjugados em Atenas, enquanto um tirano lá reunia, com tanto cuidado, as obras do príncipe dos poetas, tu escorraçavas para fora de teus muros as artes e os artistas, as ciências e os sábios! O acontecimento marcou essa diferença. Atenas tornou- se a moradia da polidez e do bom gosto, o país dos oradores e dos filósofos; lá a elegância das edificações correspondia à da língua; viam-se, em todas as partes, o mármore e a tela animados pelas mãos dos mestres mais hábeis. De Atenas saíram essas obras surpreendentes que serviram de modelo a todas as épocas corrompidas. O quadro da Lacedemônia é menos brilhante. "Lá", diziam os outros povos, "os homens nascem virtuosos e o próprio ar do país parece inspirar a virtude." De seus habitantes só nos resta a memória de seus atos heroicos. Tais monumentos valerão menos, para nós, do que os mármores interessantes que Atenas nos deixou? É verdade que alguns sábios resistiram à torrente geral e resguardaram-se do vício no trato das musas. Ouçamos, porém, o julgamento que o primeiro e o mais infeliz dentre eles tinha dos sábios e dos artistas de seu tempo: "Examinei", disse, "os poetas e os vejo como pessoas cujo talento se impõe a si mesmos e aos outros, que se fazem passar por sábios, que se tomam como tais e que nada menos são”. "Dos poetas", continua Sócrates, "passei aos artistas. Ninguém ignorava mais as artes do que eu, ninguém estava mais convencido de possuírem os artistas belíssimos segredos. Verifiquei, no entanto, não ser sua situação melhor do que a dos poetas e que: estão, tanto uns quanto outros, no mesmo caso. Porque os mais hábeis dentre eles avultam em sua companhia, consideram-se como os mais sábios dentre os homens. Essa presunção deslustrou completamente seu saber a meus olhos. Foi assim que, colocando-me no lugar do oráculo e perguntando a mim mesmo o que eu mais gostaria de ser, se o que sou ou o que eles são, se saber o que eles aprenderam ou saber que nada sei, respondi a mim mesmo e ao deus: quero ficar como sou”. "Não sabemos, nem os sofistas, nem os poetas, nem os oradores ou os artistas, nem eu mesmo, o que é o verdadeiro, o bom e o belo. Há, porém, entre nós uma diferença, qual seja, a de que, ainda que essas pessoas nada saibam, creem todas saber alguma coisa, enquanto que eu, se nada sei, pelo menos não duvido disso, de modo que toda essa superioridade de sabedoria, que me foi concedida pelo oráculo, reduz-se unicamente a estar bem convencido de que ignoro aquilo que não sei”. Aí está, pois, o mais sábio dos homens no julgamento dos deuses e o mais sábio dos atenienses na opinião de toda a Grécia, Sócrates, fazendo o elogio da ignorância! Seria de crer que, se ressuscitasse entre nós, nossos sábios e nossos artistas fariam com que mudasse de opinião? Não, meus senhores, esse homem justo continuaria a desprezar nossas ciências vãs, em absoluto ajudaria a aumentar essa multidão de livros com que nos inundam de todos os lados, e, como o fez, só deixaria, como único preceito a seus discípulos e a nossos descendentes, o exemplo e a memória de sua virtude. Eis como é belo instruir os homens. Sócrates começou em Atenas, o velho Catão continuou em Roma a deblaterar contra esses gregos artificiosos e sutis que seduziam a virtude e afrouxavam a coragem de seus concidadãos. Mas continuaram a prevalecer as ciências, as artes e a dialética; Roma encheu-se de filósofos e de oradores, descuidou-se da disciplina militar, desprezou-se a agricultura, adotaram-se certas seitas e esqueceu-se a pátria. Às sagradas palavras liberdade, desinteresse, obediência às leis, sucederam os nomes de Epicuro, Zenão e Arcesilas. "Depois que os sábios começaram a surgir entre nós", diziam os próprios filósofos, "eclipsaram-se as pessoas de bem". Até então os romanos tinham-se contentado em praticar a virtude; tudo se perdeu quando começaram a estudá-la. Oh, Fabrício! Que teria pensado vossa grande alma, se, voltando à vida, para vossa infelicidade, vísseis a face pomposa dessa Roma salva por vosso braço e que vosso nome respeitável ilustrou mais do que todas as suas conquistas? "Deuses", teríeis dito, "em que se transformaram esses tetos de choupanas e esses lares rústicos nos quais outrora habitavam a moderação e a virtude? Que esplendor funesto é esse, que sucedeu à simplicidade romana? Que língua estranha é essa? Que costumes efeminados são esses? Que significam essas estátuas, esses quadros, esses edifícios? Insensatos, que fizestes? Vós, senhores das nações, vós vos tornastes os escravos desses homens frívolos que vencestes! São os retóricos que vos governam! Foi para enriquecer arquitetos, poetas, estatuários e histriões que regastes com vosso sangue a Grécia e a Ásia! Os despojos de Cartago são a presa de um tocador de flauta! Romanos, apressai-vos em destruir esses anfiteatros, em quebrar esses mármores, em queimar esses quadros, em escorraçar esses escravos que vos subjugam e cujas artes funestas vos corrompem. Que outras mãos se ilustrem com tão vãos talentos. O único talento digno de Roma é o de conquistar o mundo e de nele fazer reinar a virtude. Quando Cineas tomou nosso senado por uma assembleia de reis, não se deslumbrou nem por uma pompa vã, nem por uma elegância rebuscada; nele não ouviu essa eloquência frívola, o estudo e o encanto dos homens fúteis. Que viu, pois, Cineas de tão majestoso? Ó cidadãos! Ele viu um espetáculo que nem vossas riquezas ou todas as vossas artes jamais darão; viu o mais belo espetáculo que já apareceu sob o céu: a assembleia de duzentos homens virtuosos, dignos de dominar Roma e de governar a terra." Transponhamos, porém, a distância dos lugares e dos tempos e vejamos o que se passou em nossas regiões e sob nossos olhos, ou melhor, afastemos as pinturas odiosas que feririam nossa delicadeza e poupemo-nos o trabalho de repetir as mesmas coisas sob outros nomes. Não foi em vão que evoquei os manes de Fabrício, nem fiz com que esse grande homem dissesse o que não poderia pôr na boca de Luís XII ou de Henrique IV? É verdade que, entre nós, Sócrates absolutamente não teria bebido a cicuta, mas teria bebido, num copo ainda mais amargo, a zombaria insultante e o desprezo cem vezes pior do que a morte. Eis como o luxo, a dissolução e a escravidão foram, em todos os tempos, o castigo dos esforços orgulhosos que fizemos para sair da ignorância feliz na qual nos colocara a sabedoria eterna. O véu espesso, com que cobriu todas as suas operações, parecia advertir-nos suficientemente de que não nos destinou a buscas vãs. Haverá, porém, entre essas lições, algumas que tenhamos sabido aproveitar ou de que tenhamos descuidado impunemente? Povos, sabei, pois, de uma vez por todas, que a natureza vos quis preservar da ciência como a mãe arranca uma arma perigosa das mãos do filho; que todos os segredos, que ela esconde de vós, são tantos outros males de que vos defende e que vosso trabalho para vos instruirdes não é o menor de seus benefícios. Os homens são perversos; seriam piores ainda se tivessem tido a infelicidade de nascer sábios. Como são humilhantes para a humanidade tais reflexões! Como nosso orgulho deve ficar mortificado com elas! Como? A probidade seria filha da ignorância? Seriam incompatíveis a ciência e a virtude? Que consequências não tiraríamos desses preconceitos? Mas, para conciliar essas contradições aparentes, basta examinar de perto a vaidade e o vazio desses títulos orgulhosos, que nos ofuscam, e que damos, em plena gratuidade, aos conhecimentos humanos. Consideremos, pois, as ciências e as artes em si mesmas, vejamos o que deve resultar de seu progresso e não hesitemos em concordar sem restrições quando nossos raciocínios estiverem de acordo com as induções históricas. Segunda Parte Era tradição antiga, levada do Egito para a Grécia, que o inventor das ciências fora um deus inimigo do repouso dos homens. Que opinião deveriam, pois, ter das ciências os próprios egípcios, entre os quais elas nasceram? Explica-se: conheciam de perto as fontes que as tinham produzido. Com efeito, quer folheando os anais do mundo, quer suprindo crônicas imprecisas com buscas filosóficas, para os conhecimentos humanos não se encontrará origem que corresponda à ideia que se gosta de formar a seu respeito. A astronomia nasceu da superstição; a eloquência, da ambição, do ódio, da adulação, da mentira; a geometria, da avareza; a física, de uma curiosidade infantil; todas elas, e a própria moral, do orgulho humano. As ciências e as artes devem, portanto, seu nascimento a nossos vícios: teríamos menor dúvida quanto às suas vantagens, se o devessem a nossas virtudes. O pecado de sua origem marcou-se fartamente em seus objetos. Que faríamos das artes sem o luxo que as nutre? Sem as injustiças dos homens, de que serviria a jurisprudência? Que seria da história, se não houvesse nem tiranos, nem guerras ou conspiradores? Numa palavra, quem desejaria passar a vida em contemplações estéreis, se cada um, não consultando senão os deveres do homem e as necessidades da natureza, só desse seu tempo à pátria, aos infelizes e a seus amigos? Somos feitos, então, para morrer amarrados às bordas do poço para onde a verdade se retirou? Somente esta reflexão deveria dissuadir todo homem que procurasse seriamente instruir-se pelo estudo da filosofia. Quantos perigos e caminhos ilusórios na investigação das ciências! Por quantos erros, mil vezes mais perigosos do que é inútil a verdade, não se tem de passar para chegar a ela! A desvantagem é visível, pois o falso é suscetível de uma infinidade de combinações e a verdade tem uma única maneira de ser. Aliás, quem a procura sinceramente? Mesmo com a melhor boa vontade, quais os indícios que asseguram o seu reconhecimento? Nessa multidão de sentimentos diferentes, qual será o nosso critério para julga-los? E, o que é mais difícil ainda, se por felicidade enfim o encontramos, qual de nós saberá dar-lhe bom uso? Se nossas ciências são inúteis no objeto que se propõem, são ainda mais perigosas pelos efeitos que produzem. Nascidas na ociosidade, por seu turno a nutrem, e a irreparável perda de tempo é o primeiro prejuízo que determinam forçosamente na sociedade. Na política, como na moral, é um grande mal não se fazer de algum modo o bem e todo cidadão inútil pode ser considerado um homem pernicioso. Respondei-me, pois, filósofos ilustres, vós por intermédio de quem sabemos por que razões os corpos se atraem no vácuo; quais são, nas revoluções dos planetas, as relações entre as áreas percorridas em tempos iguais; quais as curvas que têm pontos conjugados, pontos de inflexão e de retrocesso; como o homem vê tudo em Deus; como, sem comunicação, se correspondem a alma e o corpo, tal como o fariam dois relógios; quais os astros que podem ser habitados; quais os insetos que se reproduzem de modo extraordinário - respondei-me, repito, vós de quem recebemos tantos conhecimentos sublimes, se não nos tivésseis nunca ensinado tais coisas, seríamos com isso menos numerosos, menos bem governados, menos temíveis, menos florescentes ou mais perversos? Reconhecei, pois, a pouca importância de vossas produções e, se o trabalho dos mais esclarecidos de nossos sábios e de nossos melhores cidadãos nos proporciona tão parca utilidade, dizei-nos o que devemos pensar dessa chusma de escritores obscuros e de letrados ociosos que, em pura perda, devoram a substância do Estado. Que digo? Ociosos? Quisera Deus que o fossem efetivamente! Os costumes, com isso, seriam mais sãos e a sociedade mais sossegada. Esses vãos e fúteis declamadores andam, porém, por todas as partes, armados com seus funestos paradoxos, minando os fundamentos da fé e enfraquecendo a virtude. Sorriem desdenhosamente das velhas palavras pátria e religião, e dedicam seus talentos e sua filosofia a destruir e aviltar quanto existe de sagrado entre os homens. Não que no fundo odeiem a virtude ou nossos dogmas; é da opinião pública que são inimigos e, para tornar a trazê-los ao pé do altar, bastaria relegá-los ao meio dos ateus. Ó fúria de ser diferente, que poder o vosso! O abuso do tempo constitui grande mal. Outros males, piores ainda, acompanham as letras e as artes. Tal é o luxo, como elas nascido da ociosidade e da vaidade dos homens. O luxo, raramente, apresenta-se sem as ciências e as artes, e estas jamais andam sem ele. Eu sei que nossa filosofia, sempre fecunda em máximas singulares, pretende, contra a experiência de todos os séculos, que o luxo seja o esplendor dos Estados; depois, porém, de ter esquecido a necessidade das leis suntuárias, ousaria ela também negar que sejam os bons costumes essenciais à duração dos impérios e o luxo diametralmente oposto aos bons costumes? Que seja o luxo um indício certo de riquezas; que sirva até, caso se queira, para multiplicá-las; que se deveria concluir desse paradoxo tão digno de ter nascido em nossos dias? E que se tornará a virtude, desde que seja preciso enriquecer a qualquer preço? Os antigos políticos falavam constantemente de costumes e de virtudes, os nossos só falam de comércio e de dinheiro. Um vos dirá que um homem numa determinada região vale a soma pela qual o venderiam na Argélia; outro, seguindo esse cálculo, encontrará regiões nas quais um homem nada vale, e outras em que ele vale menos do que nada. Avaliam os homens como gado. Segundo eles, um homem só vale para o Estado pelo seu consumo; assim, um sibarita valeria bem trinta lacedemônios. Adivinhe-se, pois, qual das duas repúblicas - a de Esparta ou a de Síbaris - foi subjugada por um punhado de camponeses e qual das duas fez a Ásia tremer. A monarquia de Ciro foi conquistada, com trinta mil homens, por um príncipe mais pobre do que o menor dos sátrapas da Pérsia, e os citas, o mais miserável de todos os povos, resistiram aos monarcas mais poderosos do universo. Duas famosas repúblicas disputaram entre si o império do mundo; uma era muito rica, a outra nada tinha e foi esta que destruiu a primeira. O império romano, por sua vez, depois de ter devorado todas as riquezas do universo, tornou-se presa de um povo que nem sabia o que fosse a riqueza. Os francos conquistaram os gauleses, e os saxões a Inglaterra, sem outros tesouros além de sua bravura e de sua pobreza. Um troço de montanheses pobres, cuja cupidez toda se limitava a algumas peles de carneiro, depois de ter dominado o orgulho austríaco, esmagou aquela opulenta e temível casa de Borgonha que fazia os potentados da Europa tremerem. Finalmente, todo o poder e toda a sabedoria do herdeiro de Carlos V, sustentados por todos os tesouros das Índias, acabariam por derrocar no encontro com um punhado de pescadores de arenque. Que nossos políticos se dignem, pois, a suspender seus cálculos para refletir sobre esses exemplos e que aprendam, de uma vez por todas, que com o dinheiro se tem tudo, salvo costumes e cidadãos. De que precisamente se trata, pois, nessa questão de luxo? Trata-se de saber o que é mais importante para os impérios - serem brilhantes e momentâneos, ou virtuosos e duráveis. Digo brilhantes, mas qual o seu brilho? O gosto pelo fausto absolutamente não se associa, nas mesmas almas, com o da honestidade. Não, não é possível que espíritos degradados por um mundo de preocupações fúteis se elevem por uma vez a algo de grande e, se tivessem força, faltar-lhes-ia coragem. Todo artista quer ser aplaudido. Os elogios de seus contemporâneos são a parte mais preciosa de suas recompensas. Que não fará para obtê-las, se teve a infelicidade de nascer entre um povo e no tempo em que os sábios, ficando na moda, colocaram uma juventude frívola em posição de dar o tom; onde todos os homens sacrificaram seu gosto aos tiranos de sua liberdade; em que, não ousando um dos sexos aprovar senão o que é proporcional à pusilanimidade do outro, deixam-se perder obras-primas de poesia dramática e rejeitam-se prodígios de harmonia? O que fará ele, senhores? Rebaixará seu gênio ao nível de seu século e preferirá compor obras comuns, que sejam admiradas durante sua vida, a maravilhas que só serão admiradas muito tempo depois de sua morte. Dizei-nos, célebre Arouêt, quantas belezas masculinas e fortes não sacrificastes à nossa falsa delicadeza, e quanto o espírito da galanteria, tão fértil em pequenas coisas, não vos custou em grandes coisas! Desse modo, a dissolução dos costumes, consequência forçosa do luxo, acarreta por sua vez a corrupção do gosto. Se, por acaso, entre os homens extraordinários por seus talentos, encontra-se um que possua firmeza de alma e se recuse a ceder ao espírito de seu século e aviltar-se com produções pueris, desgraçado dele! Morrerá na indigência e no esquecimento. Não é prognóstico que faço, mas experiência que relato! Carle! Pierre! Chegou o momento em que o pincel, destinado a aumentar a majestade de nossos templos por meio de imagens sublimes e santas, cairá de vossas mãos ou será prostituído por ter de ornar com pinturas lascivas os painéis de uma carruagem. E tu, rival dos Praxíteles e dos Fídias, tu, cujos ancestrais usaram o cisel para fazer deuses capazes de desculpar a nossos olhos sua idolatria - inimitável Pigal, tua mão se contentará em rebocar o ventre de um boneco ou então terá de ficar inativa. Não se pode refletir sobre os costumes sem se comprazer com a lembrança da imagem da simplicidade dos primeiros tempos. É uma bela praia, ornada unicamente pelas mãos da natureza, para a qual incessantemente se voltam os olhos e da qual com tristeza se sente afastar-se. Quando os homens inocentes e virtuosos amavam ter os deuses como testemunhas de suas ações, moravam juntos na mesma cabana, mas, assim que se tornaram maus, cansaram-se com esses espectadores incômodos e os isolaram em templos magníficos. Escorraçaram-nos por fim para aí se estabelecerem eles próprios, ou, pelo menos, os templos dos deuses não se distinguiram mais das casas dos cidadãos. Chegou-se então ao cúmulo da depravação e os vícios nunca foram levados mais longe do que quando foram vistos, por assim dizer, apoiados, na entrada do palácio dos grandes, sobre colunas de mármore e gravados sobre capitéis coríntios. Enquanto se multiplicam as comodidades da vida, as artes se aperfeiçoam e o luxo se espalha, a verdadeira coragem se debilita e as virtudes militares desfalecem: é ainda a obra das ciências e de todas as artes que atuam nas sombras dos gabinetes. Quando os godos arrasaram a Grécia, todas as bibliotecas só se salvaram do fogo devido a uma opinião espalhada entre eles e segundo a qual se deveria deixar aos inimigos móveis tão próprios a desviá- los do exercício militar e a distraí-los com ocupações ociosas e sedentárias. Carlos VIII viu-se senhor da Toscana e do reino de Nápoles quase sem ter desembainhado a espada e toda a sua corte atribuiu essa facilidade inesperada a mais se divertirem o príncipe e a nobreza da Itália com tornarem-se engenhosos e sábios do que se adestrando para se tornarem vigorosos e aguerridos. Com efeito, disse o homem de juízo que relata esses dois traços, todos os exemplos nos ensinam que, nessa política marcial e em todas as que lhe são semelhantes, o estudo da ciência é muito mais adequado a afrouxar e afeminar a coragem do que a fortalecê-la e a animá-la. Os romanos confessaram que a virtude militar se extinguira entre eles à medida que começaram a se conhecer em quadros, em relevos, em vasos de ourivesaria e a cultivar as belas-artes, e, como se fosse essa região famosa destinada a servir continuamente de exemplo aos outros povos, a elevação dos Médicis e o restabelecimento das letras fizeram cair novamente, e talvez para sempre, aquela reputação guerreira que a Itália parecia ter recuperado há alguns séculos. As antigas repúblicas da Grécia, com aquela sabedoria que brilhava na maioria de suas instituições, interditavam a seus cidadãos todos os ofícios tranquilos e sedentários que, enfraquecendo e corrompendo o corpo, rapidamente debilitam a alma. Com efeito, de que maneira poderão enfrentar a fome, a sede, as fadigas, os perigos e a morte, homens que a necessidade abate e que a menor pena desanima? Com que coragem os soldados suportarão trabalhos excessivos aos quais não estão habituados? Com que ardor farão marchas forçadas sob o comando de oficiais que não têm sequer força para viajar a cavalo? Que não me objetem com o valor glorificado de todos esses modernos guerreiros tão habilmente disciplinados. Enaltecem sua bravura num dia de batalha, mas não me dizem em absoluto como suportam o excesso de trabalho, como resistem ao rigor das estações e às intempéries do clima. Basta um pouco de solou de neve, a privação de algumas coisas supérfluas para, em poucos dias, fundir e destruir o melhor de nossos exércitos. Guerreiros intrépidos, admiti de uma vez por todas a verdade, para vós tão difícil de compreender. Sois bravos, eu o sei; triunfaríeis com Aníbal em Cannes e na Trasimena; César convosco teria atravessado o Rubicão e subjugado seu país; mas não seria convosco que o primeiro teria atravessado os Alpes e que o segundo teria vencido vossos antepassados. Os combates nem sempre fazem o sucesso da guerra e há para os generais uma arte superior à de ganhar batalhas. O que corre para o fogo com intrepidez não deixará de ser bem mau oficial; no próprio soldado, um pouco mais de força e de vigor seriam talvez mais necessários do que tanta bravura, que não o salva da morte. E que importa ao Estado que suas tropas pereçam de febre e frio, ou pela espada do inimigo? Se a cultura das ciências é prejudicial às qualidades guerreiras, ainda o é mais às qualidades morais. Já desde os primeiros anos, uma educação insensata orna nosso espírito e corrompe nosso julgamento. Vejo em todos os lugares estabelecimentos imensos onde a alto preço se educa a juventude para aprender todas as coisas, exceto seus deveres. Vossos filhos ignoram a própria língua, mas falarão outras que em lugar algum se usam; saberão compor versos que dificilmente compreenderão; sem saber distinguir o erro da verdade, possuirão a arte de torná-los ambos irreconhecíveis aos outros, graças a argumentos especiosos; mas não saberão o que são as palavras magnanimidade, equidade, temperança, humanidade e coragem; nunca lhes atingirá o ouvido a doce palavra pátria e, se ouvem falar de Deus, será menos para reverenciá-lo do que para temê-lo. Preferiria, dizia um sábio, que meu aluno tivesse passado o tempo jogando péla, pois pelo menos o corpo estaria mais bem disposto. Sei que é preciso ocupar as crianças e que a ociosidade constitui para elas o maior dos perigos a evitar. Que deverão, pois, apreender? Eis uma questão interessante. Que aprendam o que devem fazer sendo homens e não o que devem esquecer. Nossos jardins estão ornados de estátuas e nossas galerias de quadros. Que representam, em vossa opinião, essas obras-primas da arte expostas à admiração pública? Os defensores da pátria? Ou aqueles homens, maiores ainda, que a enriqueceram com suas virtudes? Não. São imagens de todos os desvarios do coração e da razão, cuidadosamente extraídos da mitologia antiga e apresentados precocemente à curiosidade dos nossos filhos, sem dúvida para que tenham, diante dos olhos, mesmo antes de saberem ler, modelos de más ações. De onde nascem todos esses abusos senão da funesta desigualdade introduzida entre os homens pelo privilégio dos talentos e pelo aviltamento das virtudes? Aí está o efeito mais evidente de todos os nossos estudos, a mais perigosa de suas consequências. Não se pergunta mais a um homem se ele tem probidade, mas se tem talento; nem de um livro se é útil, mas se é bem escrito. As recompensas são prodigalizadas ao engenho e fica sem glórias a virtude. Há mil prêmios para os belos discursos, nenhum para as belas ações. Que me digam, no entanto, se é comparável a glória, conferida ao melhor dos discursos premiados nesta academia, ao mérito de ter instituído o prêmio. O sábio de modo algum corre atrás da fortuna, mas não é insensível à glória; quando a vê tão mal distribuída, sua virtude, que um pouco de emulação teria animado e tornado proveitosa à sociedade, cai na indolência e se extingue na miséria e no esquecimento. Eis o que, com o correr do tempo e em todos os lugares, causa a preferência dos talentos agradáveis aos úteis e o que a experiência vem confirmando, à saciedade, desde o renascimento das ciências e das artes. Temos físicos, geômetras, químicos, astrônomos, poetas, músicos, pintores; não temos mais cidadãos ou, se nos restam alguns deles dispersos pelos nossos campos abandonados, lá perecem indigentes e desprezados. Esse o estado a que estão reduzidos, esses os sentimentos que encontram, em nós, aqueles que nos dão o pão e dão o leite a nossos filhos. Confesso, no entanto, não ser o mal tão grande quanto poderia ter-se tornado. A providência eterna, colocando plantas medicinais salutares ao lado de várias plantas nocivas e, na constituição de inúmeros animais malignos, o remédio para seus ferimentos, ensinou aos soberanos, que são seus ministros, a imitarem-lhe a sabedoria. Foi seguindo tal exemplo que, do próprio seio das ciências e das artes, fontes de milhares de devassidões, esse grande monarca, cuja glória de época em época só se tornará mais brilhante, extraiu essas sociedades célebres, encarregadas tanto do perigoso depósito dos conhecimentos humanos quanto do depósito sagrado dos costumes, pela preocupação que têm de mantê-los, em si próprias, com toda a pureza, e de exigi-los dos membros que recebem. Essas sábias instituições, fortificadas pelo seu augusto sucessor e imitadas por todos os reis da Europa, servirão pelo menos de freio aos letrados que, aspirando todos à glória de serem admitidos nas academias, velarão por si mesmos e se esforçarão por se tornarem dignos, graças a obras úteis e costumes irrepreensíveis. Aquelas dentre essas companhias que, pelo prêmio com que homenageiam o mérito literário, fizeram uma escolha de temas capazes de reanimar nos corações dos cidadãos o amor à virtude, demonstrarão que esse amor reina entre eles e darão aos povos o prazer, tão raro e tão doce, de ver as sociedades cultas se dedicarem a lançar sobre o gênero humano não somente luzes agradáveis, mas também instruções saudáveis. Que não me oponham, pois, uma objeção que para mim não passa de nova prova. Tantos cuidados só mostram a necessidade de torná-los e de modo algum procuram-se remédios para males inexistentes. Por que deverão estes ainda trazer, pela sua insuficiência, o caráter de remédios comuns? Tantas afirmações em favor dos sábios só servem para enganar quanto ao objeto das ciências e para desviar os espíritos para sua cultura. Devido às precauções que se tomam, parece haver trabalhadores demais e temer-se que faltem filósofos. Não ousarei fazer, nesse ponto, uma comparação entre a agricultura e a filosofia: seria intolerável. Que é a filosofia? Qual o conteúdo das obras dos filósofos mais conhecidos? Quais são as lições desses amigos da sabedoria? Ouvindo- os, não os tomaríamos por uma turba de charlatães gritando, cada um para seu lado, numa praça pública: "Vinde a mim, só eu não engano!" Um pretende não haver corpos e que tudo só existe como representação; o outro, não haver outra substância senão a matéria, nem outro deus senão o mundo. Este avança não haver nem virtudes, nem vícios, e serem quimeras o bem e o mal morais; aquele, que os homens são lobos e podem, com a consciência tranquila, se devorarem uns aos outros. Oh! Grandes filósofos, por que não reservais para vossos amigos e filhos essas lições proveitosas? Teríeis logo a recompensa e não temeríamos encontrar entre os nossos alguns de vossos sectários. Aí estão, pois, os homens maravilhosos a quem foi prodigalizada durante a sua vida a estima de seus contemporâneos e reservada a imortalidade depois de seu transpasse. Aí estão as sábias máximas que deles recebemos e que, de geração em geração, transmitimos a nossos descendentes. O paganismo, entregue a todos os desvarios da razão humana, teria deixado à posteridade alguma coisa que possa ser comparada aos monumentos vergonhosos que lhe preparou a imprensa sob o reinado do Evangelho? Os escritos ímpios, de Leucipo a Diágoras, pereceram com eles; não se tinha ainda inventado a arte de eternizar as extravagâncias do espírito humano, mas, graças aos caracteres tipográficos e à utilização que deles fazemos, ficarão para sempre os perigosos sonhos dos Hobbes e dos Spinozas. Ide, obras célebres, das quais a ignorância e a rusticidade de nossos pais não seriam capazes; acompanhai, entre nossos descendentes, essas obras mais perigosas ainda, de que exala a corrupção dos costumes de nosso século, e levai juntas aos séculos vindouros uma história fiel das vantagens de nossas ciências e de nossas artes. Se vos lerem, não deixareis dúvida alguma sobre a questão que discutimos hoje e, a menos que sejam mais insensatos do que nós, levantarão as mãos aos céus e dirão, com o coração amargurado: "Deus todo-poderoso, tu, que tens nas mãos os espíritos, livra-nos das luzes e das artes funestas de nossos pais, e restitui-nos a ignorância, a inocência e a pobreza, os únicos bens que podem fazer nossa felicidade e que são preciosos para ti". Mas, se o progresso das ciências e das artes nada acrescentou à nossa verdadeira felicidade, se corrompeu os costumes e se a corrupção dos costumes chegou a prejudicar a pureza do gosto, que pensaremos dessa multidão de autores secundários que afastaram do templo das musas as dificuldades que lhes barravam o acesso e que a natureza tinha aí espalhado como uma prova para a força daqueles que seriam tentados a saber? Que pensaríamos desses compiladores de obras que indiscretamente forçaram a porta das ciências e introduziram em seu santuário uma populaça indigna de aproximar-se delas, enquanto seria de desejar-se que todos aqueles que não pudessem ir longe na carreira das letras fossem obstados desde o começo e se lançassem às artes úteis à sociedade? Alguém que durante toda a vida será um mau versificador, um geômetra subalterno, ter-se-ia talvez tornado um grande fabricante de tecidos. Não carecem de professores aqueles a quem a natureza destinou a fazer discípulos. Os Verulamios, os Descartes e os Newtons, esses preceptores do gênero humano, não tiveram preceptores, e qual o guia que os teria conduzido até onde os levou seu imenso gênio? Professores comuns só teriam podido constranger a sua compreensão, forçando-os a estreitar a capacidade deles próprios. Foi pelos primeiros obstáculos que eles aprenderam a esforçar-se e que tentaram transpor o espaço imenso que percorreram. Se é preciso permitir a alguns homens entregarem-se ao estudo das ciências e das artes, isso só se fará com aqueles que se sentirem com forças para andarem sozinhos em suas sendas e ultrapassá-las; é a esse pequeno número que cabe elevar monumentos à glória do espírito humano. Mas, se se quiser que nada esteja acima de seu gênio, impõe-se que nada esteja aquém de suas esperanças: nisso consiste o único encorajamento de que necessitam. A alma, insensivelmente, se ajusta aos seus objetos e são as grandes ocasiões que fazem os grandes homens. O príncipe da eloquência foi cônsul de Roma, e o maior talvez dos filósofos, chanceler da Inglaterra. Crer-se-ia que se ele não tivesse ocupado senão uma cátedra em qualquer universidade e se mais não tivesse obtido além de módica pensão acadêmica, crer-se-ia, repito, que não se ressentiriam suas obras de sua situação? Que os reis não desdenhem, pois, de admitir em seus conselhos as pessoas mais capazes de bem os aconselhar; que renunciem a esse velho preconceito, inventado pelo orgulho dos grandes, que diz ser a arte de conduzir os povos mais difícil do que a de esclarecê-los, como se fosse mais fácil levar os homens a agir com acerto por sua livre vontade do que obrigá-los a tanto pela força; que os sábios de primeira ordem encontrem nas suas cortes asilos dignos; que nelas obtenham a única recompensa digna deles, que é a de contribuir com a sua parte para a felicidade dos povos a quem ensinarão a sabedoria. Então, somente, ver-se-á o que podem a virtude, a ciência e a autoridade animadas por uma emulação nobre e trabalhando concordes em favor da felicidade do gênero humano. Mas, enquanto o poder estiver sozinho de um lado e, de outro, sozinhas as luzes e a sabedoria, os sábios raramente pensarão grandes coisas, os príncipes mais raramente farão belas coisas e os povos continuarão a ser abjetos, corrompidos e infelizes. Quanto a nós, homens vulgares, a quem o céu não concedeu talentos tão grandes e que não fomos por ele destinados a tamanha glória, permaneçamos na obscuridade. Não corramos atrás de uma reputação que nos escaparia e que, na situação atual das coisas, jamais nos devolveria o seu preço, ainda que tivéssemos todos os títulos para obtê-la. De que serve procurar nossa felicidade na opinião de outrem, se podemos encontrá-la em nós mesmos? Deixemos a outros o cuidado de instruir os povos sobre os seus deveres e limitemo-nos a bem cumprir os nossos; não temos necessidade de saber mais. Oh! Virtude, ciência sublime das almas simples, serão necessários, então, tanta pena e tanto aparato para conhecer-te? Teus princípios não estão gravados em todos os corações? E não bastará, para aprender tuas leis, voltar- se sobre si mesmo e ouvir a voz da consciência no silêncio das paixões? Aí está a verdadeira filosofia; saibamos contentarmo-nos com ela e, sem invejar a glória desses homens célebres que se imortalizam na república das letras, esforcemo-nos para estabelecer, entre eles e nós, essa gloriosa distinção que outrora se conhecia entre dois grandes povos: um sabia dizer bem e o outro obrar bem. RESPOSTAS DADAS POR JEAN- JACQUES ROUSSEAU ÀS OBJEÇÕES DIRIGIDAS A SEU DISCURSO Carta ao Sr. Padre Raynal Diretor do Mercure de France
Devo, senhor, agradecer àqueles que vos transmitiram as
observações que tendes a bondade de comunicar-me e esforçar-me-ei para delas tirar o melhor proveito. Confesso, não obstante, que considero os meus censores um pouco severos quanto à minha lógica e suponho que se mostrariam menos escrupulosos se tivesse a opinião deles. Parece-me, pelo menos, que, se tivessem um pouco dessa exatidão rigorosa que exigem de mim, absolutamente não necessitaria dos esclarecimentos que vou pedir-lhes. Parece que o autor, dizem eles, prefere a situação em que estava a Europa antes do renascimento das ciências; estado pior do que a ignorância, devido ao falso saber ou à algaravia que então dominava. Parece querer o autor dessa observação fazer-me dizer que o falso saber ou o jargão escolástico seja preferível à ciência e, contudo, fui eu mesmo quem disse ser pior do que a ignorância. Mas que entende ele pela palavra situação? Aplica-a às luzes ou aos costumes, ou confunde essas coisas que tive tanto trabalho para distinguir? Quanto ao resto, como nesse ponto estamos no fundo da questão, confesso que foi bastante inábil de minha parte ter deixado apenas parecer que tomava um partido. Acrescenta que o autor prefere a rusticidade à polidez. É verdade que o autor prefere a rusticidade à polidez orgulhosa e falsa de nosso século, e diz por quê. É que ele liquida de vez com todos os sábios e artistas. Seja, posto que assim se quer - consinto em suprimir todas as distinções que nesse sentido levantei. Ele deveria ainda, continuam, assinalar seu ponto de partida para designar a época da decadência. Fiz mais do que isso; tornei minha proposição geral. Assinalei esse primeiro passo da decadência dos costumes justamente no primeiro momento da cultura das letras em todos os países do mundo e verifiquei como é sempre proporcional o progresso desses dois fatos. E, voltando a essa primeira época, comparar os costumes desse tempo com os nossos. É o que faria mais longamente num volume in-4º, Sem isso não veríamos até onde se deveria voltar, a menos que não seja ao tempo dos apóstolos. Não vejo o inconveniente que haveria nisso, se o fato fosse verdadeiro. Peço, porém, justiça ao censor: quereria ele que dissesse ser a época da mais profunda ignorância a dos apóstolos? Dizem mais, em relação ao luxo, que se sabe dever ser ele, em boa política, interditado aos pequenos Estados, mas ser totalmente diferente o caso de um reino como o de França, sendo conhecidas as razões. Não terei, também aqui, motivos para me lamentar? Tais razões são aquelas que me esforcei para responder. Bem ou mal, respondi. Ora, em absoluto, não se poderia dar a um autor maior sinal de desprezo do que lhe respondendo com os mesmos argumentos que refutou. Mas será necessário indicar-lhes a dificuldade que deverão resolver? É a seguinte: que acontecerá à virtude quando for preciso enriquecer-se a qualquer preço? É isso que lhes perguntei e que lhes pergunto ainda. Quanto às duas observações seguintes, a primeira das quais começa por estas palavras - Por fim, eis o que eu objeto, etc., e a outra por estas - Mas o que impressiona mais de perto, etc. -, suplico ao leitor que me poupe o trabalho de transcrevê-las. A Academia me perguntara se o restabelecimento das ciências e das artes contribuíra para aprimorar os costumes. Essa a questão que tinha para resolver; no entanto, imputam-me o crime de não ter resolvido outra. Certamente essa crítica é pelo menos bastante singular. Não obstante, tenho quase de pedir perdão ao leitor por tê-la previsto, pois é o que poderá crer lendo as cinco ou seis últimas páginas de meu discurso. Ademais, se meus censores se obstinam ainda em querer conclusões práticas, prometo-as, bem claramente enunciadas, na minha primeira resposta. Sobre a inutilidade das leis suntuárias para extirpar o luxo depois de instalado, diz-se que o autor não ignora o que há para ser dito a esse respeito. Realmente, não ignoro que, quando um homem está morto, não se deve chamar o médico. Nunca se faria ressaltar bastante verdades que chocam tão frontalmente o gosto geral e impõe-se afastar qualquer possibilidade de chicana. Não sou dessa opinião e acho ser preciso deixar os brinquedos às crianças. Há muitos leitores que gostariam mais delas num estilo mais simples do que sob essa veste de cerimônia exigida pelos discursos acadêmicos. Tenho exatamente o gosto desses leitores. Eis um ponto em que posso concordar com o sentimento de meus censores, como o faço desde já. Ignoro qual seja o adversário com o qual me ameaçam no pós-escrito; seja quem for, não poderia resolver-me a responder uma obra antes de tê-la lido, nem a me considerar vencido antes de ter sido atacado. Quanto ao mais, quer responda aos críticos que me são anunciados, quer me contente com publicar a obra aumentada que me pedem, advirto os meus censores de que, possivelmente, nela não encontrarão as modificações que esperam. Prevejo que, quando for o momento de defender-me, conformar-me-ei, sem escrúpulos, com todas as consequências de meus princípios. Sei, de antemão, quais as palavras grandiosas com que serei atacado: luzes, conhecimentos, leis, moral, razão, decoro, consideração, doçura, polidez, educação, etc. A tudo isso só responderei com duas outras palavras que soam ainda mais fortes ao meu ouvido: Virtude! Verdade! Gritarei sem cessar: Verdade! Virtude! Se alguém nelas só perceber palavras, nada mais tenho a dizer-lhe. Carta de J.-J. Rousseau ao Sr. Grimm Sobre a refutação de seu Discurso pelo Sr. Gautier, professor de matemática e de história, e membro da Academia Real de Belas-Letras de Nancy.
Devolvo, senhor, o Mercure de outubro que teve a
bondade de emprestar-me. Li, com muito prazer, a refutação que o Sr. Gautier teve o trabalho de fazer a meu Discurso. Não me creio, porém, como o senhor pretende, na obrigação de respondê-la, e aqui estão minhas objeções: 1º Não posso convencer-me de que, para ter-se razão, se deva obrigatoriamente falar por último. 2º Quanto mais releio a refutação, mais me convenço de que não tenho necessidade de dar ao Sr. Gautier outra resposta além do próprio discurso a que respondeu. Leia, peço-lhe, num e noutro trabalho, os artigos referentes ao luxo, à guerra, às academias, à educação; leia a prosopopeia de Luís, o Grande, e a de Fabrício; leia, por fim, a conclusão do Sr. Gautier e a minha, e compreenderá o que quero dizer. 3º Penso, em tudo, tão diferentemente do Sr. Gautier que, se tivesse de reforçar todos os pontos em que não estamos de acordo, seria obrigado a combatê-lo mesmo naqueles pontos que trataria como ele, e isso me daria uma feição obstinada que bem gostaria de poder evitar. Por exemplo, falando da polidez, ele dá a entender, muito claramente, que, para tornar-se homem de bem, é bom começar por ser hipócrita, e que a falsidade é um caminho certo para chegar à virtude. Diz, ainda, que os vícios enfeitados com a polidez não são contagiosos como o seriam apresentando-se de frente, com rusticidade; que a arte de penetrar os homens fez progresso idêntico à de disfarçar-se; que nos convencemos de não se dever contar com os homens, a menos que lhes agrademos ou que lhes sejamos úteis; que se sabe avaliar as ofertas sedutoras da polidez, o que, sem dúvida, quer dizer que, quando dois homens se cumprimentam, do fundo do coração um diz ao outro "eu vos trato como um idiota e rio-me de vós", e o outro responde-lhe do fundo do seu coração "sei que mentis despudoradamente, mas vos retribuo com a maior boa vontade". Se eu tivesse querido empregar a mais amarga ironia, teria podido dizer quase a mesma coisa. 4º Em cada página da refutação, vê-se que o autor não entende absolutamente, ou não quer entender, a obra que refuta, o que certamente lhe é mais cômodo, porque, respondendo sempre ao seu pensamento e nunca ao meu, tem a melhor das ocasiões para dizer quanto lhe aprazo Por outro lado, se minha réplica se torna com isso mais difícil, torna-se também menos necessária, pois jamais se ouviu dizer que um pintor que expõe um quadro ao público seja obrigado a examinar os olhos dos espectadores e fornecer óculos a quantos deles necessitem. Além disso, não estou muito seguro de que me faria entender, mesmo replicando. Sei, por exemplo - diria ao Sr. Gautier -, que nossos soldados não são Réaumurs e Fontenelles e isso é péssimo para eles, para nós e, sobretudo, para os inimigos. Sei que nada sabem, que são brutais e grosseiros e, contudo, disse e repito que eles são entorpecidos pelas ciências que desprezam e pelas belas- artes que ignoram. Um dos grandes inconvenientes da cultura das letras consiste em que, iluminando apenas alguns homens, corrompem, em pura perda, toda uma nação. Ora, como bem pode ver, senhor, isso seria somente outro paradoxo inexplicável para o Sr. Gautier, para esse Sr. Gautier que me pergunta orgulhosamente o que as tropas possuem de comum com as academias, se os soldados mostrariam mais bravura estando mal vestidos e mal nutridos; o que quero dizer ao adiantar que, à força de enaltecer os talentos, se negligenciam as virtudes; e ainda levanta outras questões semelhantes, todas demonstrando a impossibilidade de respondê-las inteligentemente dentro do critério de quem as enunciou. Creio que concordará não valer a pena explicar-me uma segunda vez para não ser melhor entendido do que na primeira. 5º Se quisesse responder à primeira parte da refutação, seria um nunca acabar. O Sr. Gautier julga oportuno indicar os autores que devo citar e aqueles que devo rejeitar. Sua escolha é inteiramente natural: recusa a autoridade daqueles que depõem em meu favor e quer que eu recorra aos que ele crê contrários a mim. Em vão procuraria fazê-lo compreender que é decisiva uma única testemunha em meu favor, enquanto cem depoimentos nada provam contra meu sentimento, porque os testemunhos são partes no processo; em vão lhe pediria para distinguir entre os exemplos que alega; em vão lhe exporia que são duas coisas totalmente diferentes ser bárbaro e ser criminoso e que os povos verdadeiramente corrompidos são menos os que têm leis más do que aqueles que desprezam as leis. É fácil prever a réplica. Como dar fé a escritores escandalosos, que ousam enaltecer bárbaros que não sabem nem ler nem escrever? Como sequer supor-se pudor em gente que anda completamente nua, e virtude naqueles que comem carne crua? Então será preciso discutir. Eis Heródoto, Estrabão, Pompônio Meia às turras com Xenofonte, Justino, Quinto Cúrcio, Tácito; eis-nos nas buscas em críticos, nas antiguidades, na erudição. As brochuras transformam-se em volumes, os livros se multiplicam e a questão é esquecida. É o destino das disputas de literatura, que, depois de in-fólios de esclarecimentos, terminam sempre por não mais saber onde se está. Não vale a pena recomeçar. Se eu quisesse replicar à segunda parte, isso logo se faria, mas nada ensinaria a ninguém. O Sr. Gautier se contenta, ao refutar-me nesse ponto, em dizer sim em todos os lugares em que digo não, e não em todos aqueles em que digo sim; não preciso, pois, mais que dizer novamente não sempre que disse não, sim em todos os lugares em que disse sim, e suprimir as provas: com isso responderia com toda a exatidão. Seguindo o método do Sr. Gautier, não posso, pois, responder às duas partes da refutação sem dizer demais e de menos; ora, eu muito desejaria não fazer nem uma coisa nem outra. 6º Eu poderia seguir outro método e examinar separadamente os raciocínios do Sr. Gautier e o estilo da refutação. Se examinasse os raciocínios, ser-me-ia fácil mostrar que todos levam ao erro, que o autor não compreendeu a natureza da questão e que de modo algum me entendeu. Por exemplo, o Sr. Gautier tem o trabalho de me ensinar que há povos corruptos que não são cultos. Eu, de minha parte, já duvidara que os calmuques, os beduínos e os cafres não eram prodígios nem de virtude, nem de erudição. Se o Sr. Gautier tivesse posto o mesmo cuidado em apontar-me algum povo culto que não fosse corrupto, ter-me-ia surpreendido mais. Faz-me sempre raciocinar como se eu tivesse dito ser a ciência a única fonte de corrupção entre os homens; se ele, de boa fé, acreditou nisso, admiro a bondade que teve em responder-me. Diz ele que o convívio com o mundo basta para adquirir- se aquela polidez de que se preza um cavalheiro. Conclui daí, que não se encontra base para glorificar as ciências. Mas a que nos permitiria ele glorificar? Desde que os homens vivem em sociedade, houve povos polidos e outros não. O Sr. Gautier esqueceu-se de dar-nos o motivo desta diferença. O Sr. Gautier admira sempre a pureza de nossos costumes atuais. Essa sua boa opinião certamente muito honra aos seus costumes, mas não demonstra uma grande experiência. Dir-se-ia, dado o tom em que fala, que estudou os homens como os peripatéticos estudavam a física, sem sair de seu gabinete. Quanto a mim, fechei meus livros e, depois de ter ouvido falar os homens, observei-os a agir. Não representa maravilha que, tendo seguido métodos tão diversos, concordemos tão pouco em nossos juízos. Reconheço que não se poderia empregar linguagem mais honesta do que a de nosso século, e é isso que impressiona o Sr. Gautier. Mas vejo também que não se poderia ter costumes mais corrompidos, e aí está o que me escandaliza. Será que pensamos termo-nos tornado pessoas de bem porque, à força de dar nomes decentes a nossos vícios, aprendemos a não corar mais com eles? Diz ele, ainda, que, embora se pudesse provar com fatos ter sempre reinado com as ciências a dissolução dos costumes, não se concluirá que a sorte da probidade depende do progresso delas. Depois de haver dedicado a primeira parte de meu discurso a provar terem essas coisas sempre andado juntas, destinei a segunda a mostrar que, com efeito, uma se prende à outra. A quem, pois, poderia imaginar que, nesse ponto, responde o Sr. Gautier? Ele me parece sobretudo muito escandalizado com a maneira por que falei da educação dos colégios. Comunica- me que aí se ensina aos moços não sei quantas coisas belas, que poderão ser de muito auxílio para a sua distração quando crescerem, mas confesso não perceber quais as suas relações com os deveres dos cidadãos, aos quais se deve começar por instruir. "Perguntamo-nos geralmente: Saberá grego ou latim? Escreve em verso ou em prosa? Mas o que importa é saber se tornou-se melhor ou mais prudente, eis o que fica em dúvida. Aludindo a alguém que passa, gritai a nosso povo: Oh! que homem sábio!; e a respeito de outro: Oh! que bom homem! - não deixará de dirigir os olhos e o respeito para o primeiro. Deveria aparecer um terceiro gritador dizendo: Oh! cabeças-duras!" Disse eu que a natureza quis nos preservar da ciência, como uma mãe arranca uma arma perigosa das mãos de seu filho, e que o trabalho que nos dá para nos instruirmos não é o menor de seus benefícios. O Sr. Gautier teria preferido que dissesse: Povos! Sabei, pois, de uma vez por todas, que a natureza não quer que vos nutrais com as produções da terra; o trabalho que exigiu para a sua cultura é um aviso para que a deixeis inculta. O Sr. Gautier não imaginou que se tem, com um pouco de trabalho, a certeza de fazer pão, mas que com muito estudo é bastante duvidoso que se consiga fazer um homem razoável. Não pensou, ainda, que essa não passa de mais uma observação em meu favor, pois, por que terá a natureza nos imposto trabalhos necessários, senão para desviar-nos das ocupações ociosas? Mas, dado o desprezo que demonstra pela agricultura, vê-se facilmente que, se dependesse dele, todos os trabalhadores desertariam dos campos para ir argumentar nas escolas, ocupação essa, segundo o Sr. Gautier e de acordo, creio, com muitos professores, bastante importante para a felicidade do Estado. Raciocinando sobre um trecho de Platão, presumi que talvez os antigos egípcios não concedessem às ciências a importância que se poderia crer. O autor da refutação me pergunta como se pode fazer essa opinião concordar com a inscrição que Osimândias pusera na sua biblioteca. Essa objeção teria cabimento quando esse príncipe era vivo. Agora que está morto, pergunto, por minha vez, onde está a necessidade de fazer concordar o sentimento do Rei Osimândias com o dos sábios do Egito. Se ele tivesse contado e, sobretudo, pesado os votos, quem me diria que a palavra "venenos" não teria substituído a palavra "remédios". Deixemos, porém, essa pomposa inscrição. Esses remédios são excelentes, concordo, e já o repeti muitas vezes. Mas será isso motivo para administrá-los inadvertidamente e sem levar em consideração o temperamento dos doentes? Certo alimento é muito bom em si, mas num estômago enfermo só produzirá indigestão e mau humor. Que se dirá de um médico que, depois de ter feito o elogio de algumas carnes suculentas, concluir que todos os doentes deverão fartar-se delas? Demonstrei que as ciências e as artes debilitam a coragem. O Sr. Gautier chama a isso um modo singular de raciocinar e não vê ligação entre a coragem e a virtude. Não obstante, não é, segundo parece, coisa tão difícil de compreender. Aquele que já se acostumou a preferir sua vida ao dever não tardará muito em preferir também as coisas que tornam a vida fácil e agradável. Disse que a ciência convém a alguns grandes gênios, mas que é sempre prejudicial aos povos que a cultivam. O Sr. Gautier diz que Sócrates e Catão, que censuravam as ciências, não obstante, eram eles próprios homens muito sábios, e acha que com isso me refutou. Disse que Sócrates era o mais sábio dos atenienses e nisso baseio a autoridade de seu testemunho, o que não impede o Sr. Gautier de comunicar-me ter sido Sócrates um sábio. Ele me censura por ter afirmado que Catão desprezava os filósofos gregos; fundamenta-se no fato de que Carnéades se comprazia estabelecendo e destruindo as mesmas proposições, o que não é muito pertinente acerca de Catão contra a literatura dos gregos. O Sr. Gautier deveria antes dizer-nos qual era o país e o ofício desse Carnéades. Carnéades, sem dúvida, é o único filósofo e o único sábio que se preocupou em sustentar o pró e o contra; de outro modo, tudo o que diz o Sr. Gautier não significaria absolutamente nada. Neste ponto eu recorro à sua erudição. Se a refutação não é abundante de bons raciocínios, em compensação o é de belas declamações. O autor, em todas as passagens, substitui pelos ornamentos da arte a solidez das provas que ele prometia ao começar e, prodigalizando pompa oratória numa refutação, é que me censura por tê-la empregado num discurso acadêmico. A que tendem, pois, diz o Sr. Gautier, as eloquentes declamações do Sr. Rousseau? A abolir, caso fosse possível, as vãs declamações dos colégios. Quem não se indignará ao ouvi-la afirmar que temos as aparências de todas as virtudes e nenhuma delas? Confesso haver um pouco de lisonja ao dizer que temos todas as aparências delas; mas o Sr. Gautier, mais do que ninguém, deveria perdoar-me isso. E por que não temos mais virtude? É porque se cultivam as belas-letras, as ciências e as artes. Justamente por isso. Se fôssemos grosseiros, rústicos, ignorantes, gados, hunos e vândalos, seríamos dignos dos elogios do Sr. Rousseau. Por que não? Haverá algum desses nomes que exclua a virtude? Não se cansará de invectivar os homens? Não se cansarão eles de serem maus? Crer-se-á, sempre, torná-los mais virtuosos dizendo-lhes que não têm virtude? Crer-se-á torná-los melhores persuadindo-os de que são suficientemente bons? Sob o pretexto de aprimorar os costumes, será permitido destruir-lhes as bases? Sob o pretexto de esclarecer os espíritos, dever-se-á perverter as almas? Oh! Doces laços da sociedade, encanto dos verdadeiros filósofos, amáveis virtudes, é flor vossos próprios atrativos que reinais nos corações; não deveis vosso império nem à severidade estoica, nem aos clamores bárbaros, nem aos conselhos de uma rusticidade orgulhosa. De início, salientarei uma coisa muito divertida: de todas as seitas dos filósofos antigos atacadas por mim como inúteis à virtude, os estoicos são os únicos que o Sr. Gautier me deixa e que parece até querer pôr de meu lado. Ele tem razão; não ficarei por isso muito mais orgulhoso. Mas, vejamos, por um instante, se poderei apresentar exatamente em outros termos o sentido desta exclamação: Oh! Doces virtudes, é pelos vossos próprios atrativos que reinais nas almas. Não tendes necessidade de toda essa grande pompa de ignorância e de rusticidade; sabeis chegar ao coração por vias mais simples e mais naturais. Basta saber a retórica, a lógica, a física, a metafísica e a matemática para adquirir o direito de possuir-vos. Outro exemplo do estilo do Sr. Gautier: Sabeis que as ciências das quais se ocupam os jovens filósofos nas universidades são a lógica, a meta física, a moral, a física e a matemática elementar. Se já o soube, já o esqueci, como fazemos ao nos tornarmos razoáveis. São essas, pois, de acordo convosco, especulações estéreis? Estéreis segundo a opinião comum, mas, a meu parecer, muito férteis de coisas más. As universidades vos devem um grande favor, por terdes lhes ensinado que a verdade dessas ciências se retirou para o fundo de um poço. Não creio ter ensinado isso a ninguém; essa afirmação não é de minha invenção, ela é tão antiga quanto a filosofia. Ademais, sei que as universidades não me devem nenhum reconhecimento e eu não ignorava, ao tomar da pena, que não podia, ao mesmo tempo, fazer a corte aos homens e prestar homenagem à virtude. Os grandes filósofos, que as possuem num grau altíssimo, sem dúvida sentem-se bastante surpresos por saberem que nada sabem. Creio, com efeito, que esses grandes filósofos que possuem todas as ciências em altíssimo grau ficariam muito surpresos por saberem que nada sabem, mas eu ficaria ainda mais surpreso se esses homens, que sabem tantas coisas, porventura soubessem isso. Noto que o Sr. Gautier, que sempre me trata com a maior polidez, não poupa nenhuma ocasião de aliciar-me inimigos; a esse respeito, estende seu devotamento desde os professores de colégio até o poder soberano. O Sr. Gautier faz muito bem em justificar os usos da sociedade; vê-se que não lhe são estranhos. Mas voltemos à refutação. Todos esses modos de escrever e de raciocinar, que não vão bem a um homem de tanto espírito quanto me parece ser o Sr. Gautier, sugeriram-me uma conjetura, que achará ousada e que acredito razoável. Ele me acusa, certamente sem nisso acreditar, de não estar completamente persuadido da opinião que defendo. Eu suponho, com mais fundamento, estar ele secretamente de acordo comigo: os lugares que ocupa, as circunstâncias em que se encontra colocaram-no numa espécie de necessidade de tomar partido contra mim. As conveniências de nosso século servem para muitas coisas; ele terá, pois, me refutado pelas conveniências, mas tomou todas as precauções e empregou toda a arte possível para fazê-lo de modo a não persuadir ninguém. Nesse sentido, começa por declarar, muito fora de propósito, que a causa defendida por ele interessa à felicidade da assembleia a que fala e à glória do príncipe sob cujas leis tem o prazer de viver. É precisamente como se dissesse: Não podeis, senhores, sem ingratidão para com vosso protetor, deixar de me dar razão e, mais, é vossa própria causa que pleiteio hoje perante vós. Desse modo, de qualquer lado que encareis minhas provas, tenho o direito de esperar que não apresentareis objeção à sua solidez. Sustento que todo homem que fala desse modo deseja antes tapar a boca das pessoas do que convencê- las. Se o senhor ler atentamente a refutação, não encontrará quase uma linha que não pareça lá estar esperando e indicando sua resposta. Um único exemplo bastará para me fazer compreender. As vitórias que os atenienses conseguiram sobre os persas e sobre os lacedemônios mostram que as artes podem associar-se à virtude militar. Pergunto se não vai nisso um estratagema para lembrar o que disse sobre a derrota de Xerxes e para me fazer pensar no desenlace da guerra do Peloponeso. Seu governo, tornando-se venal sob Péricles, adquiriu novo aspecto: o amor pelo prazer asfixia- lhes a bravura, as mais honrosas funções são aviltadas, a impunidade multiplica os maus cidadãos, os fundos destinados à guerra são utilizados para alimentar a incúria e a ociosidade; que relação tem com as ciências essas causas de corrupção? Que faz, nesse ponto, o Sr. Gautier, senão lembrar a segunda parte de meu Discurso, onde patenteei essa relação? Observe a arte com que apresenta, como causa, os efeitos da corrupção, a fim de levar todo homem de bom senso a subir por si mesmo à primeira causa dessas pretensas causas. Observe, ainda, como, deixando que o leitor reflita, finge ignorar o que não se pode supor seja de fato por ele ignorado e o que todos os historiadores dizem unanimemente - que a depravação dos costumes e do Governo dos atenienses foi obra dos oradores. É certo, pois, que me atacar desse modo é indicar-me muito claramente as respostas que devo dar. Todavia, isso não passa de conjetura, que não pretendo afirmar. O Sr. Gautier talvez não me aprovasse, se quisesse justificar seu saber a expensas de sua boa fé; mas, se com efeito expressou-se sinceramente ao refutar o meu Discurso, como o Sr. Gautier, que é professor de história, professor de matemática, membro da Academia de Nancy, não desconfiou um pouco de todos esses títulos que possui? Não replicarei, pois, ao Sr. Gautier: é questão resolvida. Jamais poderia responder com seriedade e seguir ponto por ponto a refutação - o senhor compreende por quê; e seria não reconhecer devidamente os elogios com os quais o Sr. Gautier me honra, empregar o ridiculum acri, a ironia e a brincadeira de mau gosto. Sinto já meus receios de que tenha bastante para lamentar-se no tom desta carta. Pelo menos não ignorava ele, ao escrever sua refutação, que atacava um homem que não dá à polidez a importância bastante para aprender a disfarçar com ela seus sentimentos. Quanto ao mais, estou pronto a prestar ao Sr. Gautier toda a justiça que lhe é devida. Seu trabalho parece-me o de um homem de espírito que possui seus conhecimentos. Outros, talvez, nele encontrarão filosofia; quanto a mim, nele percebi muita erudição. Sou, de todo o coração, senhor, etc.
P. S. Acabo de ler, na Gazette de Utrecht de 22 de
outubro, uma exposição pomposa sobre a obra do Sr. Gautier e essa exposição parece feita de propósito para confirmar minhas suposições. Um autor, que tem alguma confiança em sua obra, deixa aos outros o cuidado de fazer- lhe o elogio e limita-se a dela fazer um bom resumo; o da refutação é feito com tanta habilidade que, embora recaia em coisas de somenos empregadas por mim para servir de transição, não há uma única sobre a qual um leitor judicioso possa ser da opinião do Sr. Gautier. Segundo ele, não é verdade que a história extraia dos vícios do homem seu interesse principal. Poderia apresentar as provas do raciocínio e, para colocar o Sr. Gautier no seu campo, citar-lhe-ia algumas autoridades. Felizes os povos cujos reis fizeram pouco ruído na história! Se os homens algum dia se tornassem sábios, sua história de modo algum seria divertida. O Sr. Gautier diz, com razão, que uma sociedade, mesmo que fosse composta unicamente de homens justos, não poderia subsistir sem leis, e daí conclui não ser verdade que a jurisprudência seria inútil sem as injustiças dos homens. Um autor tão erudito confundiria a jurisprudência com as leis? Poderia ainda abandonar as provas do raciocínio e, para pôr o Sr. Gautier no seu terreno, citar-lhe-ia fatos. Os lacedemônios não tinham nem jurisconsultos nem advogados, suas leis nem sequer eram escritas e, não obstante, possuíam leis. Recorro à erudição do Sr. Gautier para saber se as leis eram menos bem observadas na Lacedemônia do que nos países em que formigam os jurisconsultos. Absolutamente não me deterei em todas as minúcias que servem de texto ao Sr. Gautier e que exibe na Gazette, mas terminarei com esta observação, que submeto ao vosso exame: Demos em tudo razão ao Sr. Gautier e cortemos de meu Discurso todas as coisas que ele ataca; minhas provas não perderão quase nada de sua força. Afastemos do trabalho do Sr. Gautier tudo o que não se refere ao fundo da questão; dele não restará quase nada. Concluo sempre não ser preciso responder ao Sr. Gautier.
Paris, 1º de novembro de 1751.
Resposta de J.-J. Rousseau ao Rei da Polônia, Duque da Lorena Sobre a refutação feita por esse príncipe ao seu Discurso
Devo antes um agradecimento do que uma réplica ao
autor anônimo que acaba de honrar meu Discurso com uma resposta; mas o que devo ao reconhecimento não me fará esquecer o que devo à verdade, nem esquecerei também que, todas as vezes que se trata da razão, os homens entram no direito da natureza e retomam sua antiga igualdade. O discurso a que tenho de replicar está cheio de coisas muito reais e muito bem provadas, às quais não cabe qualquer resposta, pois, embora seja nele qualificado de doutor, ficaria muito aborrecido de ser incluído no número daqueles que sabem responder a tudo. Minha defesa não será por isso menos fácil: limitar-se-á a comparar as verdades com que me objetaram minha opinião, pois, se provar que aquelas não impugnam a esta, já será, creio, tê-la defendido o bastante. Posso reduzir a dois pontos principais todas as proposições oferecidas pelo meu adversário: um compreende o elogio das ciências, o outro trata de seu abuso. Examiná-los-ei separadamente. Parece, pelo tom da resposta, que agradaria bastante se eu tivesse dito das ciências muito mais mal do que com efeito o fiz. Supõe-se ter-me custado muito seu elogio, que se encontra no começo de meu Discurso; é, segundo o autor, uma confissão arrancada à verdade e que não tardei em desdizer. Se essa confissão é um elogio arrancado pela verdade, precisa-se, portanto, crer que eu pensasse das ciências o bem que delas disse; o bem que o próprio autor da resposta delas diz não é, pois, contrário ao meu sentimento. Essa confissão, dizem, é arrancada à força; tanto melhor para a minha causa, porquanto isso mostra que em mim a verdade é mais forte do que a inclinação. Mas com que base se pode dizer que esse elogio é forçado? Por ser malfeito? Isso seria iniciar um processo terrível contra a sinceridade dos autores, julgando-os por esse novo princípio. Por muito curto? Parece-me que eu poderia facilmente dizer menos coisas num número maior de páginas. É, diz-se, porque me retratei. Ignoro em que lugar cometi tal falta e quanto posso responder é que não tive essa intenção. A ciência é muito boa em si mesmo, eis o que é evidente, e seria preciso ter renunciado ao bom senso para dizer o contrário. O autor de todas as coisas é a fonte da verdade; tudo conhecer é um de seus atributos divinos: adquirir conhecimentos e espalhar luzes equivale, pois, a participar, de certo modo, da inteligência suprema. Nesse sentido louvei o saber e nesse sentido louvo meu adversário. Ele se estende ainda acerca dos vários gêneros de utilidade que o homem pode tirar das artes e das ciências e eu teria de boa vontade feito o mesmo, se isso pertencesse ao meu assunto. Estamos, assim, perfeitamente de acordo nesse ponto. Mas como pode ser que as ciências, cuja fonte é tão pura e o fim tão louvável, deem origem a tantas impiedades, a tantas heresias, tantos erros, tantos sistemas absurdos, tantas contrariedades, tantas inépcias, tantas sátiras amargas, tantos romances miseráveis, tantos versos licenciosos, tantos livros obscenos e, naqueles que as cultivam, a tanto orgulho, tanta avareza, tanta malignidade, tanta intriga, tanto ciúme, tanta mentira, tanta torpeza, tantas calúnias, tantas adulações covardes e vergonhosas? Eu diria que a ciência, apesar de muitíssimo bela e muitíssimo sublime, não é feita para o homem; que lhe basta estudar seus deveres e que cada um recebeu todas as luzes necessárias a esse estudo. Meu adversário confessa, de sua parte, tornarem-se as ciências prejudiciais quando se abusa delas, e que muitos delas efetivamente abusam; eu ajunto, é certo, que delas se abusa muito, que delas se abusa sempre, e não me parece que se afirme o contrário na resposta. Posso, pois, assegurar que nossos princípios e, consequentemente, todas as proposições que se podem deduzir, nada têm de opostos. e isso é que tinha de provar. Todavia, quando chegamos a concluir, nossas conclusões mostram-se contrárias. A minha afirmava que, posto que as ciências fazem mais mal aos costumes do que bem à sociedade, seria desejável que os homens se dedicassem a ela com menor ardor. A de meu adversário diz que, embora as ciências causem grande mal, não se deve deixar de cultivá-las pelo bem que trazem. Recorro não ao público, mas ao pequeno número de verdadeiros filósofos, para saber qual das conclusões deve ser preferida. Restam-me ainda ligeiras observações a fazer sobre certas passagens dessa resposta, que me pareceram algo faltas da justeza que, de bom grado, admirei nas outras e, por isso, puderam contribuir para o erro da conclusão que o autor delas tira. A obra começa com algumas mordacidades que só salientarei na medida em que tocam à questão. O autor me honra com inúmeros elogios, e, certamente, isso vale por abrir-me uma bela carreira. Mas há bem pouca proporção entre essas coisas; um silêncio respeitoso sobre os objetivos de nossa admiração frequentem ente convém mais do que louvores indiscretos. Diz o autor que meu discurso tem muita coisa que surpreende. Parece-me que se impõe um esclarecimento. Diz ainda estar surpreendido por vê-lo premiado; entretanto, não é um prodígio ver premiadas obras medíocres. Em qualquer outro sentido, tal surpresa seria tão honrosa à Academia de Dijon quanto injuriosa à integridade dos acadêmicos em geral; é fácil de ver como disso tiraria vantagem para minha tese. Acusam-me, com frases muito agradavelmente compostas, de contradições entre minha conduta e minha doutrina. Censuram-me por ter eu mesmo cultivado os estudos que condeno. Como a ciência e a virtude são incompatíveis, coisa que me esforço por provar, segundo pretendem, perguntam-me em tom instante como ouso servir-me de uma, declarando-me em favor de outra. Há muita habilidade em fazer com que eu mesmo me comprometa na questão; essa mordacidade não deixará de causar embaraços à minha resposta; ou, antes, às minhas respostas, pois infelizmente tenho de dar mais de uma. Esforcemo-nos, pelo menos, para que nelas a exatidão substitua o agrado. 1º Que a cultura das ciências corrompe os costumes de uma nação, eis o que ousei sustentar e ouso crer ter provado. Como poderia, porém, ter dito que em cada homem em particular são incompatíveis a ciência e a virtude, eu que exortei os príncipes a chamarem para a sua corte os verdadeiros sábios e emprestar-lhes sua confiança a fim de que, pelo menos por uma vez, se veja o que podem, a ciência e a virtude reunidas, dar à felicidade do gênero humano? Esses verdadeiros sábios formam um pequeno número, confesso, pois para fazer bom uso da ciência é preciso reunir grandes talentos e grandes virtudes. Isso só se pode esperar de algumas almas privilegiadas, e não se pode esperar de um povo em seu todo. Não se poderia, pois, concluir, de meus princípios, que um homem não consiga ser, ao mesmo tempo, sábio e virtuoso. 2º Mesmo que essa pretensa contradição realmente existisse, menos legítimo seria constranger-me pessoalmente por sua causa. Adoro a virtude; meu coração é testemunha disso e diz-me também, claramente, como é distante esse amor da prática que torna o homem virtuoso. Aliás, estou bem longe de possuir a ciência e, mais ainda, de afetar possuí-la. Acreditei defender-me dessa imputação com a confissão ingênua que fiz no começo de meu discurso. Temia, antes, que me acusassem de julgar coisas desconhecidas por mim. Facilmente se compreende ser- me impossível evitar, ao mesmo tempo, essas duas reprimendas. Quem sabe se não chegariam até a reuni-las, se me apressasse a condenar uma delas, por pouco justa que fosse? 3º Poderia citar, a esse respeito, o que dizem os padres da Igreja sobre as ciências mundanas que desprezam e às quais, todavia, recorrem para combater os filósofos pagãos. Poderia citar a comparação que fazem delas com os vasos roubados, aos egípcios, pelos israelitas o. Contentar-me-ei, porém, como última resposta, em levantar esta questão: se alguém viesse para matar-me e eu tivesse a felicidade de tomar-lhe a arma, ser-me-ia proibido, antes de jogá-la fora, aproveitá-la para expulsá-lo de minha casa? Se a contradição de que me acusam não existe, desnecessário será supor que tenha querido somente distrair-me com um paradoxo frívolo e isso me parece tanto menos cabível quanto o tom que usei, por inepto que seja, ao menos não é aquele que se emprega nos jogos de espírito. É tempo de deixar de falar sobre o que me toca; nunca se ganha nada falando de si mesmo, indiscrição que o público dificilmente perdoa, mesmo quando se é forçado a fazê-lo. A verdade é tão independente daqueles que a atacam e a defendem que os autores que discutem a seu respeito deveriam ignorar-se reciprocamente. Isso pouparia muito papel e tinta. Mas essa regra tão fácil, para mim, de ser praticada, absolutamente não o é para meu adversário, e tal diferença não facilita a minha réplica. O autor, observando que ataco as ciências e as artes pelos efeitos que determinam nos costumes, lança mão, para me responder, da enumeração das aplicações proveitosas que delas se praticam em todos os Estados. É como se, para defender um acusado, alguém se contentasse em provar que ele passa bem de saúde, que tem grande habilidade ou é muito rico. Desde que concordem comigo quanto às artes e às ciências tornarem as pessoas infelizes, não discordarei quanto a serem elas, sem embargo, muito cômodas - será mais uma conformidade entre elas e a maioria dos vícios. O autor vai mais longe e pretende ser-nos ainda necessário o estudo para admirar as belezas do universo. Afirma que o próprio espetáculo da natureza, exposto, ao que parece, aos olhos de todos para a instrução dos simples, exige muita instrução nos seus observadores para ser percebido. Confesso que essa afirmação me surpreende. Ter-se-ia ordenado a todos os homens que fossem filósofos ou ordenou-se que somente os filósofos cressem em Deus? Em inúmeras passagens, a Escritura nos exorta a adorar a grandeza e a bondade de Deus nas maravilhas de suas obras; não julgo que em qualquer passagem ela nos mande estudar a física, nem que o autor da natureza seja menos bem adorado por mim, que nada sei, do que por aquele que conhece o cedro e o hissopo, a tromba da mosca e a do elefante. Non enim nos Deus ista scire, sed tantumodo uti voluit. Crê-se sempre dizer o que as ciências fazem, quando se diz o que deveriam fazer. Eis o que, contudo, me parece bem diferente. O estudo do universo deveria elevar o homem a seu criador, eu o sei, mas só eleva à vaidade humana. O filósofo que se jacta de penetrar nos segredos de Deus ousa associar sua pretensa sabedoria à sabedoria eterna. Aprova, censura, corrige, prescreve leis à natureza e limites à divindade, e enquanto, por preocupar-se com seus vãos sistemas, tem trabalhos infindos para arranjar a máquina do mundo, o trabalhador, que vê o sol e a chuva sucessivamente fertilizarem seus campos, admira, louva e bendiz a mão de que recebe essas graças, sem se preocupar com a maneira pela qual elas lhe chegam. Não procura justificar sua ignorância ou seus vícios pela incredulidade. Não censura as obras de Deus e não se agarra a seu senhor para fazer brilhar sua suficiência. Jamais o dito ímpio de Afonso X encontraria abrigo no espírito de um homem vulgar; tal blasfêmia estava reservada a uma boca sábia. Enquanto a sábia Grécia estava cheia de ateus, Elieno observa que nunca um bárbaro duvidara da existência da divindade. Podemos notar, do mesmo modo, que em toda a Ásia só há um único povo letrado, que mais da metade desse povo é ateu, sendo a única nação da Ásia onde se conhece o ateísmo. A curiosidade natural do homem, continua a escrever, inspira-lhe o desejo de aprender. Ele deveria, pois, esforçar- se por contê-la, como a todas as inclinações naturais. Suas privações fazem-no sentir suas necessidades. Os conhecimentos são úteis em muitos aspectos; no entanto, os selvagens são homens e não sentem essa necessidade. Suas utilizações impõem sua obrigação. Muito mais frequentemente, impõem-lhe a de renunciar ao estudo para ocupar-se com seus deveres. Seus progressos fazem-no experimentar prazer. É por isso mesmo que deveria desconfiar deles. Suas primeiras descobertas aumentam- lhe a sede de saber. Isso, com efeito, acontece aos que têm talento. Quanto mais ele conhece, mais sente que existem conhecimentos a adquirir. Isto é, o efeito de todo o tempo perdido por ele é excitá-lo a perder mais ainda. Mas há somente um pequeno número de homens de gênio para os quais a noção de sua ignorância se desenvolve enquanto adquirem conhecimentos e só a eles o estudo pode beneficiar. Os espíritos tacanhos, nem bem aprendem uma coisa, creem tudo saber e não há espécie de tolice que tal persuasão não os leve a realizar. Quanto mais conhecimentos adquiridos, mais facilidade existe para bem agir. Vê-se que, falando assim, o autor mais consultou seu coração do que observou os homens. Ele adianta ainda ser bom conhecer o mal para aprender a fugir dele, e dá a entender que só se pode ter segurança da virtude depois de tê-la posto à prova. Essas máximas são, pelo menos, duvidosas e passíveis de discussão. Não é certo que se esteja obrigado, para aprender a bem agir, a saber por quantos modos se pode fazer o mal. Temos um guia interior muito mais infalível do que todos os livros e que jamais nos abandona no momento da necessidade. Se quiséssemos ouvi-lo, sempre bastaria para conduzir-nos inocentemente. E como estar-se obrigado a experimentar as forças para assegurar-se de sua virtude, se um dos exercícios da virtude consiste em fugir às ocasiões do vício? O homem sábio está continuamente atento e sempre desconfia de suas próprias forças, reserva toda a coragem para quando tiver necessidade e jamais se expõe sem propósito. O fanfarrão é quem continuamente se vangloria daquilo que não pode fazer e, depois de ter desafiado e insultado todo mundo, deixa-se bater no primeiro encontro. Pergunto qual desses dois retratos se parece mais com um filósofo tomado por suas paixões. Censuraram-me por ter afetado tomar os meus exemplos de virtude aos antigos. É bem possível que eu encontrasse outros mais, se tivesse podido reportar-me ainda mais alto. Citei também um povo moderno e não tenho culpa por só ter encontrado um. Censuram-me ainda, numa máxima geral, de paralelos odiosos, nos quais entram, ao que se diz, menos zelo e equidade do que a inveja aos meus compatriotas e animosidade contra meus contemporâneos. Entretanto, ninguém mais do que eu ama sua pátria e seus compatriotas. Finalmente, só tenho mais uma palavra de resposta. Apresentei minhas razões e são elas que é preciso levar em consideração; quanto às minhas intenções, deve-se deixar o seu julgamento somente a quem pertencem. Não posso deixar passar em silêncio uma objeção considerável que já me foi feita por um filósofo. Não será, dizem-me aqui, ao clima, ao temperamento, à falta de oportunidade, à imperfeição do objeto, à economia do Governo, aos costumes, às leis, a outra causa qualquer, senão às ciências, que se deva atribuir essa diferença que às vezes se nota nos costumes em vários países e em épocas diferentes? Essa questão compreende noções amplas e exigiria esclarecimentos muito extensos, que não conviriam a este trabalho. Ter-se-ia, aliás, de examinar as relações, muito ocultas mas muito reais, que se encontram entre a natureza do Governo e o gênio, os costumes e os conhecimentos, dos cidadãos, e tal coisa me lançaria em discussões delicadas, capazes de levarem-me bem longe. Além disso, ser-me-ia muito difícil falar do Governo sem entregar ótimos trunfos a meu adversário e, pesando bem, estas são pesquisas que se deveriam fazer em Genebra e em outras circunstâncias. Passo a uma acusação muito mais grave do que a objeção precedente. Transcrevê-la-ei em seus próprios termos, pois é importante apresentá-la fielmente aos olhos do leitor. Quanto mais o cristão examina a autenticidade de seus títulos, mais ele se tranquiliza na posse de sua crença, mais estuda a revelação, mais se fortifica nafé. É nas Escrituras divinas que descobre sua origem e excelência; é nos doutos escritos dos padres na Igreja que segue, de século em século, seu desenvolvimento; é nos livros de moral e nos santos anais que encontra os exemplos e tira sua aplicação. Como? A ignorância privará a religião e a virtude de luzes tão puras, de apoios tão poderosos? E ensinaria atrevidamente um doutor de Genebra que a elas se deve a irregularidade dos costumes? Ficar-se-ia mais espantado ainda de ouvir tão estranho paradoxo, se não se soubesse que a singularidade de um sistema, por perigoso que seja, não constitui senão uma razão a mais para quem só tem como regra o espírito particular. Ouso perguntar ao autor: Como pôde dar tal interpretação aos princípios que estabeleci? Como pôde acusar-me de censurar o estudo da religião, eu que censuro sobretudo o estudo de nossas ciências, vãs por nos desviarem do estudo de nossos deveres? E que é o estudo dos deveres do cristão, senão o de sua própria religião? Eu deveria, sem dúvida, ter censurado expressamente todas essas sutilezas pueris da escolástica com as quais, sob pretexto de esclarecer os princípios da religião, se enfraquece o espírito, substituindo a humildade cristã pelo orgulho científico. Deveria ter-me levantado com maior ímpeto contra esses ministros indiscretos que primeiro ousaram tocar a arca, para fortificar, com seu fraco saber, um edifício sustentado pela mão de Deus. Deveria ter-me indignado contra esses homens frívolos que, com suas miseráveis disputas, aviltaram a simplicidade sublime do Evangelho e reduziram a doutrina de Jesus Cristo a silogismos. Mas, trata-se, hoje, de defender-me e não de atacar. Vejo que esta disputa deverá terminar pela história e pelos fatos. Se eu soubesse expor em poucas palavras o que as ciências e a religião tiveram de comum desde o começo, talvez isso pudesse decidir a questão quanto a este ponto. O povo que Deus tinha escolhido para si jamais cultivou as ciências e jamais se lhe aconselhou seu estudo; no entanto, se esse estudo fosse bom para alguma coisa, ele, mais do que qualquer outro, teria sentido sua necessidade. Seus chefes, pelo contrário, sempre se esforçaram para conservá-lo separado, tanto quanto possível, das nações idólatras e sábias que o circundavam; precaução necessária menos em relação a um do que a outro grupo, pois esse povo fraco e grosseiro era muito mais fácil de seduzir-se pelas trapaças dos padres de Baal do que pelos sofismas dos filósofos. Depois de dispersões frequentes entre os egípcios e os gregos, a ciência teve ainda inúmeras dificuldades para germinar na cabeça dos hebreus. Josefo e Filão, que em qualquer outro lugar não teriam passado de dois homens medíocres, foram entre eles considerados como prodígios. Os saduceus, identificáveis pela sua irreligião, foram os filósofos de Jerusalém; os fariseus, grandes hipócritas, foram os doutores dessa cidade. Estes, ainda que limitassem quase que toda a sua ciência ao estudo da lei, faziam tal estudo com todo o fausto e toda a suficiência dogmáticos. Observavam também, com extremo cuidado, todas as práticas da religião, mas o Evangelho nos ensina o espírito dessa exatidão e a importância que se deve dar- lhe. Finalmente, todos eles tinham pouquíssima ciência e muito orgulho e não era nisso que mais diferiam de nossos doutores de hoje. Na instalação da nova lei, não foi a sábios que Jesus Cristo quis confiar sua doutrina e seu ministério. Seguiu, em sua escolha, a predileção que demonstrou em todas as ocasiões pelos pequenos e pelos simples, e nas instruções que dava a seus discípulos não se encontra qualquer palavra de estudo ou de ciência, a não ser para assinalar o desprezo que ele tinha por tudo isso. Depois da morte de Jesus Cristo, doze pobres pescadores e artesãos quiseram instruir e converter o mundo. Seu método era simples; pregavam sem arte, mas com o coração comovido, e, de todos os milagres com os quais Deus honrava sua fé, o mais impressionante era a santidade de sua vida; seus discípulos seguiram esse exemplo e o sucesso foi prodigioso. Os padres pagãos, alarmados, fizeram com que os príncipes compreendessem estar o Estado perdido porque as oferendas diminuíam. Surgiram as perseguições e os perseguidores só conseguiram acelerar os progressos dessa religião que queriam sufocar. Todos os cristãos corriam para o martírio, todos os povos queriam ir para o batismo; a história desses primeiros tempos constitui um prodígio contínuo. No entanto, os padres dos ídolos, não contentes em perseguir os cristãos, puseram-se a caluniá-los. Juntaram-se aos padres os filósofos que não conseguiram vantagens numa religião que pregava a humildade. É verdade que os simples tornaram-se cristãos, mas os sábios caçoavam deles e sabe-se com que desprezo o próprio São Paulo foi recebido pelos atenienses. Choviam de todas as partes os motejos e as injúrias sobre a nova seita. Foi preciso tomar a pena para defender-se. São Justino, o mártir, escreveu a primeira apologia de sua fé. Atacou-se, agora, os pagãos; atacá-los era vencê-los. Os primeiros sucessos encorajaram outros escritores. Lançaram-se na mitologia e na erudição, a pretexto de exporem a torpeza do paganismo; quiseram aparentar ciência e erudição: os livros apareceram aos milhões e os costumes começaram a relaxar-se. Logo não se contentaram mais com a simplicidade do Evangelho e da fé dos apóstolos; tinha-se de ter cada vez mais espírito do que os predecessores. Sutilizaram-se sobretudo os dogmas; cada um quis sustentar sua opinião, ninguém quis ceder. Apareceu a ambição de ser chefe de seita, em todas as partes pulularam as heresias. O arrebatamento e a violência não demoraram a juntar-se à disputa. Esses cristãos, tão doces que só sabiam estender o pescoço ao cutelo, tornaram-se perseguidores furiosos, piores que os idólatras; todos se atolaram nos mesmos excessos e o partido da verdade não foi sustentado com maior moderação do que o do erro. Outro mal ainda mais perigoso nasceu da mesma fonte: a introdução da antiga filosofia na doutrina cristã. À força de estudar os filósofos gregos, acreditou-se neles encontrar relações com o cristianismo. Ousou-se crer que a religião se tornaria mais respeitável se revestida pela autoridade da filosofia. Houve tempo em que era preciso ser platônico para ser ortodoxo e pouco faltou para que, a princípio Platão, e depois Aristóteles, fossem colocados no altar ao lado de Jesus Cristo. Mas, por mais que gritassem, levados pela correnteza, foram eles próprios constrangidos a conformar-se com a prática que condenavam e foi com muita erudição que a maioria deles discursou contra o progresso das ciências. Depois de longas agitações, as coisas tomaram por fim posição mais definida. Por volta do século dez, a chama das ciências deixou de iluminar a terra; o clero permaneceu submerso numa ignorância que não quero defender, posto que não dizia menos às coisas que devia saber do que àquelas que lhe eram inúteis, mas com ela a Igreja ganhou ao menos um pouco mais de repouso do que até então experimentara. Após o renascimento das letras, não tardaram a recomeçar as divisões, mais terríveis do que nunca. Homens sábios suscitaram a disputa, homens sábios a sustentaram e os mais capazes mostraram-se sempre os mais obstinados. Foi em vão que se reuniram conclaves dos doutores dos vários partidos; nenhum deles para aí levou o amor à reconciliação, nem, talvez, à verdade; todos só levaram o desejo de brilhar a expensas de seu adversário; cada qual quis vencer, nenhum quis instruir-se; o mais forte impunha silêncio ao mais fraco; a disputa sempre terminava por injúrias e a perseguição foi seu fruto constante. Só Deus sabe quando terminarão todos esses males. As ciências estão florescentes hoje; a literatura e as artes brilham entre nós. Que lucro tirou disso a religião? Perguntemo-lo a essa multidão de filósofos que se orgulham de não possuí-la. Nossas bibliotecas regurgitam de livros de teologia e formigam entre nós os casuístas. Outrora possuíamos santos e nenhum casuísta. A ciência se expande e a fé enfraquece; todo mundo quer ensinar a bem agir e ninguém quer aprendê-lo. Tomando-nos todos doutores, deixamos de ser cristãos. Não, não foi com tanta arte e tamanho fausto que o Evangelho se estendeu por todo o universo e sua beleza arrebatadora penetrou nos corações. Esse livro divino, o único necessário ao cristão e o mais útil de todos, mesmo para os que não o forem, só precisa ser meditado para levar à alma o amor de seu autor e a vontade de realizar seus preceitos. Jamais a virtude falou linguagem tão doce; jamais a sabedoria mais profunda exprimiu-se com tanta energia e simplicidade. Não se abandona sua leitura sem se sentir melhor do que antes. Oh Vós, ministros da lei, que nele me é anunciada, tende menos trabalho com instruir- me em tantas coisas inúteis. Deixai todos esses livros sábios, que não podem convencer-me nem impressionar- me. Prostrai-vos aos pés desse Deus de misericórdia que vos encarregastes de fazer-me conhecer e amar, pedi para vós essa humildade profunda que me deveis pregar. Não ostentai, Padres, diante de meus olhos, essa ciência orgulhosa, nem esse fausto indecoroso que vos desonra e me revolta; sede, vós mesmos, tocados pela graça se quiserdes que eu o seja e, sobretudo, mostrai-me, na vossa conduta, a prática dessa lei, cujo conteúdo pretendeis ensinar-me. Não tendes necessidade de melhor sabê-la, nem de mais ensiná- la a mim; vosso ministério cumpriu-se. Nisso tudo não cabem belas-letras ou filosofia. Assim convém seguir ou pregar o Evangelho, e assim seus primeiros defensores fizeram-no triunfar sobre todas as nações; non aristotelico more, diziam os Padres da Igreja, sed piscatorio. Sei que estou me estendendo muito, mas acreditei não poder dispensar-me de fazer-me ouvir sobre um tema da importância deste. Além disso, os leitores impacientes precisam perceber quanto é cômoda a crítica, pois, no ponto em que se ataca com uma palavra, são necessárias páginas para nos defendermos. Passo à segunda parte da resposta, na qual me esforçarei para ser mais breve, apesar de não encontrar nela menos observações a fazer. Não é das ciências, dizem-me, é do seio das riquezas que, em todos os tempos, nasceram o ócio e o luxo. Não afirmei tampouco ter o luxo nascido das ciências, mas que nasceram juntos e quase nunca um anda sem o outro. Eis como apresentaria essa genealogia. A primeira fonte do mal é a desigualdade: da desigualdade saíram as riquezas, uma vez que as palavras rico e pobre são relativas e em todas as partes em que os homens forem iguais não haverá ricos nem pobres. Das riquezas nasceram o luxo e a ociosidade; do luxo nasceram as belas-artes e, da ociosidade, as ciências. Em tempo algum as riquezas foram o apanágio dos sábios. Por isso mesmo, o mal se torna maior. Os ricos e os sábios só servem para corromper-se mutuamente. Se os ricos fossem mais sábios ou se os sábios fossem mais ricos, uns seriam menos covardemente aduladores, os outros gostariam menos da adulação baixa e todos, com isso, valeriam mais. É o que se pode verificar pelo pequeno número daqueles que têm a felicidade de ser ao mesmo tempo sábios e ricos. Para um Pia tão na opulência, para um Aristipo acreditado na corte, quantos filósofos reduzidos a um capote e à miséria, agasalhados pela própria virtude e ignorados em sua solidão! Não discordo quanto a haver um grande número de filósofos muito pobres e, seguramente, muito aborrecidos de o serem. Não duvido, ainda, que não seja somente à pobreza que a maioria deles deve sua filosofia; mas, se desejasse supô-los virtuosos, seria segundo os seus costumes, que o povo não conhece, que esse mesmo povo aprenderia a reformar os seus? Os sábios não têm nem o prazer, nem a oportunidade de reunir grandes bens. Concordo que não tenham a oportunidade. Amam o estudo. Aquele que não amasse o seu ofício seria homem bem tolo ou muito miserável. Vivem na mediocridade. É preciso simpatizar muito com eles, para nisso encontrar um mérito. Uma vida laboriosa e moderada, vivida no silêncio da solidão, ocupada pela leitura e pelo trabalho, certamente não constitui uma vida voluptuosa e criminosa. Não, pelo menos, aos olhos dos homens; tudo depende do íntimo. Um homem pode ser obrigado a levar tal vida e, todavia, ter a alma bastante corrompida. Aliás, que importa seja, ele próprio, virtuoso e modesto, se os trabalhos de que se ocupa alimentam a ociosidade e corrompem o espírito de seus concidadãos? Sendo as comodidades da vida, frequentemente, o fruto das artes, nem por isso constituem o quinhão dos artistas. Não me parece, exatamente, que eles sejam pessoas que as recusem, sobretudo aqueles que têm mais oportunidade de obter quanto desejam. Só trabalham para os ricos. Segundo o rumo que as coisas vão tomando, não me admirarei de ver, qualquer dia, os ricos trabalhando para eles. E são os ricos ociosos que aproveitam e abusam dos frutos de sua indústria. Ainda uma vez, não vejo como nossos artistas possam ser pessoas tão simples e modestas. O luxo não poderia reinar no seio duma classe de cidadãos sem logo imiscuir-se em todas as outras, sob várias modificações, e em todas elas determinando as mesmas devastações. O luxo tudo corrompe, quer o rico que goza dele, quer o pobre que o cobiça. Não se pode dizer que constitua um mal em si mesmo usar punhos de renda, uma roupa bordada e estojo esmaltado. Mas grande mal é fazer caso dessas bagatelas, considerar feliz quem as possui e consagrar o tempo e o trabalho, que todo homem deve a objetivos mais nobres, para pôr-se em situação de adquirir outros semelhantes. Não tenho necessidade de saber qual o oficio daquele que se ocupa com tais ideias para saber o julgamento que devo fazer dele. Mostrei o belo retrato que se faz dos sábios a tal propósito, e creio poder transformar em merecimento meu tal complacência. Meu adversário é menos indulgente: não somente não me concede nada do que possa me recusar e, em lugar de condenar o mal que acuso em nossa vã e falsa polidez, prefere desculpar a hipocrisia. Pergunta-me se eu desejaria que o vício se mostrasse abertamente. Certamente eu o desejaria, pois a confiança e a estima renasceriam entre os bons, aprender-se-ia a desconfiar dos maus e a sociedade com isso se sentiria mais segura. Prefiro que meu inimigo me ataque frente a frente, do que me venha ferir traiçoeiramente pelas costas. Como! Seria preciso juntar o escândalo ao crime? Não sei; mas bem desejaria que não lhe juntasse a mentira. São muito boas para os corruptos todas essas máximas que, há tanto tempo, nos prezam sobre o escândalo. Querendo-se segui- las rigorosamente, seria preciso deixar-se pilhar, trair, matar impunemente e jamais punir alguém, pois constitui assunto bastante escandaloso um celerado na prisão. A hipocrisia é uma homenagem que o vício rende à virtude, homenagem da espécie daquela dos assassinos de César que se prostraram a seus pés para degola-lo com mais precisão. Por mais brilhante que seja esse pensamento, por mais autoridade que lhe dê o nome célebre de seu autor, nem por isso é mais justo. Poder-se-á porventura dizer de um larápio que veste a libré de uma casa para poder agir melhor estar prestando homenagem ao senhor da casa que rouba? Não; cobrir sua maldade com o manto perigoso da hipocrisia não é honrar a virtude, é ultrajá-la profanando seus ensinamentos, é acrescentar a covardia e o embuste a todos os outros vícios e impossibilitar a si próprio toda e qualquer volta à probidade. Há caracteres superiores que até no crime apresentam um não sei quê de altivo e de generoso que ainda permite ver, no íntimo, uma centelha desse fogo celeste feito para animar as almas belas. Mas a alma vil e rasteira da hipocrisia assemelha-se a um cadáver, no qual não se encontra mais nem ímpeto, nem calor, nem esperança de vida. Recorro à experiência. Viram-se grandes celerados recolherem-se em si mesmos, acabar santamente sua carreira e morrer como predestinados, mas ninguém até hoje viu um hipócrita tornar-se homem de bem. Poder-se-ia, racionalmente, tentar a conversão de Cartouche, mas nunca um homem prudente tentaria a de Cromwell. Atribuí ao restabelecimento das letras e das artes a elegância e a polidez que dominam nossas maneiras. O autor da resposta diverge de mim quanto a essa afirmação, o que me admira, porquanto, se ele dá tanta importância à polidez e faz tanto caso das ciências, não percebo qual a vantagem de privar uma dessas coisas da honra de produzir a outra. Examinemos, porém, as provas que apresenta; reduzem-se elas à que se segue: Em absoluto se verifica que os sábios sejam mais polidos do que os outros homens; pelo contrário, frequentemente o são menos; conclui-se, pois, que nossa polidez não é obra das ciências. Salientarei inicialmente que aqui se trata menos das ciências do que da literatura, das belas-artes e das obras de gosto; nossos letrados, ainda que se diga serem pouco sábios, mas tão polidos, tão conhecidos, tão brilhantes e pretensiosos, dificilmente se reconhecerão no ar aborrecido e pedante que o autor da resposta quer que tenham. Mas concedamos-lhe essa preliminar; concordemos, se necessário, em que os sábios, os poetas e os letrados são todos igualmente ridículos; que os senhores da Academia de Belas-Artes, os da Academia de Ciências, os da Academia Francesa são pessoas grosseiras que não conhecem o bom-tom nem os costumes da sociedade, excluídas por seu oficio da companhia de escol. O autor pouco ganhará com isso, e nem por isso terá mais direito a negar que a polidez e a urbanidade reinantes entre nós sejam resultantes do bom gosto, a princípio baldeadas dos antigos e espalhadas entre os povos da Europa, graças aos livros agradáveis que são publicados em toda parte. Como os melhores mestres de dança nem sempre são aqueles que melhor se apresentam, podemos dar ótimas lições de polidez sem querermos ou sem podermos ser muito polidos. Esses comentadores enfadonhos que, segundo nos dizem, conhecem tudo dos antigos, afora a graça e a finura, não deixaram, por via de suas obras úteis, ainda que desprezadas, de ensinar-nos a reconhecer as belezas que não sentiam. Acontece o mesmo com esse deleite do comércio e com essa elegância dos costumes que se substituem à sua pureza e que se fizeram notar em todos os povos no meio dos quais as letras se consideravam como uma honra; em Atenas, Roma e na China, em todos os lugares viu-se a polidez, a linguagem e as maneiras acompanharem sempre, não os sábios e os artistas, mas as ciências e as belas-artes. O autor ataca, depois, os louvores que entoei à ignorância e, acusando-me de ter falado mais como orador do que como filósofo, descreve por sua vez a ignorância, e pode-se suspeitar de atribuir-lhe belas cores. Não lhe nego razão, mas não creio ter errado. Bastará uma distinção bem justa e verdadeira para fazer com que concordemos. Há uma ignorância feroz e brutal que nasce de um coração mau e de um espírito falso; uma ignorância criminosa que alcança até os deveres da humanidade, que multiplica os vícios, que degrada a razão, avilta a alma e torna os homens semelhantes aos animais - essa a ignorância que o autor ataca e da qual apresenta um retrato bastante odioso e bastante parecido. Há outra espécie de ignorância razoável que consiste em limitar sua curiosidade à extensão das faculdades que se recebeu ao nascer; uma ignorância modesta que nasce de um vivo amor pela virtude e só inspira indiferença por todas as coisas que não sejam dignas de encher o coração do homem e que não contribuam para torná-lo melhor; uma doce e preciosa ignorância, tesouro de uma alma pura e satisfeita consigo mesma, que põe toda a sua felicidade em voltar-se sobre si mesma, tornar-se testemunha de sua inocência e que não sente necessidade de procurar uma falsa e vã felicidade na opinião que possam fazer de suas luzes - essa a ignorância que louvei e que peço ao céu como punição do escândalo que causei aos doutos pelo desprezo que declarei dedicar às ciências humanas. Que se comparem, diz o autor, a tais tempos de ignorância e de barbárie esses séculos felizes nos quais as ciências difundiram por todas as partes a ordem e a justiça. Será difícil encontrar esses séculos felizes; encontraremos, com mais facilidade, outros, nos quais, porém, graças às ciências, a ordem e a justiça não passaram de palavras vãs, feitas para serem impostas ao povo, e nos quais a sua aparência terá sido conservada com tanto mais cuidado, para que tanto mais se pudesse impunemente destruí-las. Vemos, atualmente, guerras menos frequentes, porém mais justas. Em que tempo for, como poderá a guerra ser mais justa para um dos partidos sem o ser mais injusta para o outro? Não poderia concebê-lo. Ações menos admiráveis, porém mais heroicas. Certamente ninguém negará a meu adversário o direito de julgar o heroísmo, mas não pensará ele que aquilo que não lhe parece admirável poderá sê-lo para nós? Vitórias menos sangrentas, porém gloriosas; conquistas menos rápidas, porém mais firmes; guerreiros menos violentos, porém mais temíveis, sabendo vencer com moderação, tratando os vencidos com humanidade; a honra é seu guia, a glória sua recompensa. Não nego ao autor haver grandes homens entre nós - ser-lhe-ia bem fácil fornecer a prova; isso não impede, porém, que os povos sejam assaz corrompidos. Além do mais, tais coisas são tão imprecisas que se poderiam quase dizer de todas as épocas; a resposta é impossível porque se tornaria necessário folhear bibliotecas e fazer in-fólios a fim de estabelecer provas pró ou contra. Quando Sócrates maltratou as ciências, não poderia, parece-me, ter em vista nem o orgulho dos estoicos, nem o ócio dos epicuristas, nem o jargão absurdo dos pirrônicos, porque nenhuma dessas pessoas existia em seu tempo. Mas esse leve anacronismo não constitui desonestidade de meu adversário; ele empregou melhor sua vida do que verificando datas e não está mais obrigado a saber de cor seu Diógenes Laércio do que eu a saber o que acontece nos combates. Concordo, pois, que Sócrates só pensou em salientar os vícios dos filósofos de seu tempo; mas não vejo como concluir senão dizendo que nesse tempo os vícios pululavam com os filósofos. Respondem-me que isso se deve ao abuso da filosofia e penso não ter afirmado o contrário. Como! Será, pois, preciso suprimir todas as coisas de que se abusa? Sim, sem dúvida - responderia sem hesitar -, todas as que são inúteis, todas aquelas cujo abuso mais determina o mal do que o bem, o seu uso. Detenhamo-nos, um instante, nesta última consequência e evitemos concluir ser hoje preciso queimar todas as bibliotecas e destruir as universidades e as academias. Não faríamos senão mergulhar a Europa na barbárie e os costumes nada ganhariam com isso. É com dor que pronunciarei uma grande e fatal verdade. Só vai um passo do saber à ignorância e, frequentemente, as nações estão em alternativa entre um e outro; nunca se viu, porém, um povo que tenha se corrompido voltar à virtude. Em vão pretenderíeis destruir as fontes do mal; em vão subtraríeis os alimentos da vaidade, do ócio e do luxo; em vão, ainda, reconduziríeis os homens a essa primeira igualdade conservadora da ignorância e fonte de toda a virtude; seus corações, uma vez corrompidos, o serão para sempre; não há mais remédio, a não ser uma grande revolução quase tão temível quanto o mal que possa curar, e que é censurável desejar e impossível prever. Deixemos, pois, as ciências e as artes adoçarem, de qualquer modo, a ferocidade dos homens que corromperam; procuremos disfarçar prudentemente e esforcemo-nos por mudar suas paixões. Ofereçamos algum alimento a esses tigres, para que não devorem nossos filhos. As luzes do mau são menos temíveis do que a sua brutal estupidez; elas pelo menos tornam-no mais circunspecto relativamente ao mal que ele poderia causar, por conhecer o dano que ele próprio sofreria. Louvei as academias e seus ilustres fundadores e com prazer repetiria o elogio. Quando o mal é incurável, o médico aplica paliativos e proporciona remédios menos às necessidades do que ao temperamento do doente. Cabe aos sábios legisladores imitarem sua prudência e, não podendo aplicar aos povos doentes a melhor das polícias, dar-lhes ao menos, como Sólon, a melhor polícia que eles possam suportar. Há, na Europa, um grande príncipe e, o que é mais importante, um cidadão virtuoso que, na pátria que adotou e que faz feliz, acaba de constituir inúmeras instituições em prol das letras. Fez com isso coisa bem digna de sua sabedoria e de sua virtude. Quando se trata de esclarecimentos políticos, o tempo e o lugar de tudo decidem. Impõe-se que, em seu próprio interesse, os príncipes sempre favoreçam as ciências e as artes. Já dei a razão disso e, no estado atual das coisas, é preciso que eles ainda as favoreçam visando ao próprio interesse dos povos. Se houvesse, atualmente, entre nós, um monarca suficientemente limitado para pensar e agir diferentemente, seus súditos permaneceriam pobres e ignorantes e não seriam, por isso, menos corruptos. Meu adversário descuidou de tirar vantagem de um exemplo aparentemente tão frisante e tão favorável à sua causa; talvez seja o único a ignorá-la ou a não lembrar-se dele. Que consinta, pois, ser lembrado. Que não recuse às grandes coisas os elogios devidos; e que, assim como nós, as admire e não se obstine mais contra as verdades que ataca. Última Resposta ao Sr. Bordes Ne, dum tacemus, non verecundiae sed diffidentiae causa tacerevideamur. - Cipriano, Contra Demetr.
É com extrema repugnância que me ocupo de minhas
disputas com leitores ociosos, bem pouco preocupados com a verdade; a maneira, porém, pela qual acabam de atacá- la, força-me a, mais uma vez, tomar sua defesa, para que meu silêncio não seja tomado pela multidão como uma confissão, nem pelos filósofos como desprezo. É preciso que me repita, bem o sei, e público não me perdoará. Mas os sábios dirão: Este homem não tem necessidade de procurar incessantemente novas razões, é uma prova da solidez daquelas que apresenta. Como aqueles que me atacam nunca deixam de fugir à questão e de suprimir as distinções essenciais que a esse propósito estabeleci, impõe-se sempre começar por reconduzi-los até lá. Aqui está, pois, um sumário das proposições que sustentei e sustentarei, enquanto não consultar outro interesse além da verdade. As ciências são a obra-prima do gênio e da razão. O espírito de imitação produziu as belas-artes, e a experiência as aperfeiçoou. Devemos às artes mecânicas um grande número de invenções úteis que aumentaram os encantos e as comodidades da vida. Eis verdades com as quais de bom grado concordo. Mas consideremos, agora, todos esses conhecimentos em relação aos costumes. Se inteligências celestiais cultivassem as ciências, disso só resultaria o bem; digo o mesmo dos grandes homens que são feitos para guiar os outros. Sócrates, sábio e virtuoso, honrou a humanidade, mas os vícios dos homens vulgares envenenam os conhecimentos mais sublimes e os tornam perniciosos às nações; os corruptos muito tiram das coisas prejudiciais e os bons delas obtêm pouca vantagem. Se ninguém além de Sócrates tivesse feito filosofia em Atenas, o sangue de um justo não teria pedido vingança contra a pátria das ciências e das artes. É problema a ser examinado, se representaria vantagem para os homens possuírem a ciência, supondo-se que aquilo a que eles dão esse nome o merecesse efetivamente. Mas é uma loucura pretender que as quimeras da filosofia, os erros e as mentiras dos filósofos possam jamais servir para alguma coisa. Seremos sempre enganados pelas palavras? Nunca compreenderemos que estudos, conhecimentos, saber e filosofia não passam de vãos simulacros erguidos pelo orgulho humano e indignos dos nomes pomposos que lhes dá? À medida que se difunde numa nação o gosto dessas frioleiras, ela perde o amor pelas virtudes sólidas, pois é mais fácil distinguir-se pelo palavrório do que pelos bons costumes, posto que se está dispensado de ser um homem de bem desde que se seja um homem agradável. Quanto mais o interior se corrompe, mais o exterior se resigna. Assim, insensivelmente, a cultura das letras engendra a polidez. O gosto ainda nasce da mesma fonte. Sendo a aprovação pública o primeiro prêmio dos trabalhos literários, é natural que aqueles que deles se ocupam imaginem meios de agradar e tais cálculos paulatinamente formam o estilo, aprimoram o gosto e difundem por todas as partes a delicadeza e a urbanidade. Todas essas coisas valerão, se quiserem, como suplemento da virtude, porém jamais se poderá dizer que constituam a virtude e raramente a ela se associam. Haverá sempre esta diferença: aquele que se torna útil, trabalha para os outros, e aquele que só pensa em tornar-se agradável, só trabalha para si. O adulador, por exemplo, não se preserva de nenhum trabalho para agradar e, no entanto, só faz mal. A vaidade e a ociosidade, que engendram nossas ciências, também engendraram o luxo. O gosto pelo luxo sempre acompanha o das letras e este frequentemente àquele. Todas essas coisas sempre representam, umas para as outras, mui fiel companhia, porque são obra dos mesmos vícios. Se a experiência não concordasse com as proposições demonstradas, dever-se-iam procurar as causas particulares dessa contradição. A primeira ideia dessas contradições, porém, nasceu, ela própria, de uma longa meditação sobre a experiência e, para ver-se até que ponto as confirma, basta abrir os anais do mundo. Os primeiros homens foram muito ignorantes. Como se ousaria dizê-los corrompidos em épocas em que ainda não se tinham aberto as fontes da corrupção? Na obscuridade dos antigos tempos e na rusticidade dos antigos povos, percebem-se, em inúmeros deles, virtudes assaz grandes, sobretudo uma severidade de costumes que é marca infalível de sua pureza, a boa-fé, a hospitalidade, a justiça e, o que é muito importante, um marcado horror pela depravação, mãe fecunda de todos os outros vícios. A virtude não é, pois, incompatível com a ignorância. Ela também não é sempre sua companheira, pois inúmeros povos bastante ignorantes eram muito viciados. A ignorância não representa obstáculo nem ao bem nem ao mal; é unicamente o estado natural do homem. Não se poderá dizer a mesma coisa da ciência. Todos os povos sábios foram corrompidos e nisso já vai um tremendo preconceito contra ela. Mas, como é difícil fazer comparações de povo a povo, como nelas se precisa incluir um número muito grande de objetos, como sempre lhes falta exatidão em algum aspecto, estar-se-á muito mais seguro do que se faz seguindo continuamente a história de um mesmo povo e estabelecendo uma comparação entre os progressos de seus conhecimentos e as revoluções dos seus costumes. Ora, o resultado desse exame mostra que a grande época, a época da virtude, foi, para cada povo, a de sua ignorância e que, à medida em que se tornou sábio, artista e filósofo, perdeu seus costumes e sua probidade, e tornou a descer, a tal respeito, ao nível das nações ignorantes e corruptas que são a vergonha da humanidade. Desejando-se insistir em encontrar diferenças, posso reconhecer uma: todos os povos bárbaros, mesmo aqueles que não possuem virtude, sempre cultuam, no entanto, a virtude, enquanto que, por progredirem, os povos sábios e filósofos chegam afinal a colocá-la em ridículo e a desprezá- la. Quando uma nação alcança por fim esse ponto, pode-se dizer que a corrupção está no auge e que não se deve mais ter esperança de remédio. Esse, o sumário das coisas que afirmei e das quais creio ter apresentado provas. Vejamos, agora, o sumário da doutrina que me é oposta. "Os homens são naturalmente maus; assim o foram antes da formação da sociedade e em todos os lugares aos quais as ciências não levaram sua flama; os povos, abandonados somente às faculdades do instinto, reduzidos, juntamente com os leões e os ursos, a uma vida puramente animal, permaneceram mergulhados na barbárie e na miséria.” "Somente a Grécia, nos antigos tempos, pensou e se elevou pelo espírito a quanto recomenda um povo. Filósofos formaram seus costumes e deram-lhe leis”. "Na verdade, Esparta foi pobre e ignorante por instituição e por escolha, mas suas leis apresentavam grandes defeitos, seus cidadãos uma tendência considerável para se corromperem, sua glória foi pouco sólida, e logo perdeu suas instituições, suas leis e seus costumes”. "Atenas e Roma também degeneraram. Uma cedeu ao destino da Macedônia; a outra sucumbiu à sua própria grandeza, porque as leis de uma vilazinha não podiam governar o mundo. Se aconteceu não ter por vezes a glória dos grandes impérios durado tanto tempo quanto a das letras, foi por estarem no auge quando as letras neles se cultivaram e por não permanecer o destino das coisas humanas, durante muito tempo, no mesmo estado. Concordando, pois, quanto a ter influído a alteração das leis e dos costumes nesses grandes acontecimentos, não se estará obrigado a convir em que as ciências e as artes contribuíram para isso e pode-se, pelo contrário, observar que o progresso e a decadência das letras sempre é proporcional à fortuna e ao declínio dos impérios”. "Essa verdade é confirmada pela experiência dos últimos tempos, segundo a qual, numa monarquia vasta e poderosa, a prosperidade do Estado, a cultura das ciências e das artes e a virtude guerreira concorrem ao mesmo tempo para a glória e a grandeza do império”. "Nossos costumes são os melhores que se possam ter; proscreveram-se inúmeros vícios de nosso meio; os que nos restam, pertencem à humanidade, sem qualquer interferência das ciências”. "Também o luxo nada tem de comum com elas, não devendo assim ser-lhes atribuídas as desordens que possa causar. Aliás, o luxo é necessário nos grandes Estados; neles determina mais bem do que mal. É útil para ocupar os cidadãos ociosos e dar pão aos pobres”. "A polidez deve ser antes computada, entre as virtudes do que entre os vícios, pois impede que os homens se mostrem tais como são, uma precaução bem necessária para torná-los suportáveis uns aos outros”. "As ciências raramente atingiram o objetivo que se propõem, mas, pelo menos, o têm em mira. Avança- se a passos lentos no conhecimento da verdade, o que não impede se façam alguns progressos nesse sentido”. Finalmente, ainda que fosse verdade que as ciências e as artes enfraquecessem a coragem, não seriam ainda preferíveis a essa virtude bárbara e feroz os bens infinitos que elas nos proporcionam?" Dispenso-me de repetir a lista inútil e pomposa desses bens, e, para começar, a propósito deste último ponto, por uma declaração tendente a prevenir palavras inúteis, afirmo, de uma vez por todas, que se algo pode compensar a ruína dos costumes, estou pronto a convir em que as ciências determinam mais bem do que mal. Voltemos agora ao que falta. Eu poderia, sem grande risco, supor provado quanto disse, pois, entre tantas asserções tão afoitamente levantadas, muito poucas há que atinjam a questão em seu âmago e, menos ainda, outras de que se pudesse tirar alguma conclusão valiosa contra a minha opinião, sendo que algumas dentre elas, se porventura minha causa disso necessitasse, até forneceriam novos argumentos em meu favor. Com efeito: 1º - Se os homens são naturalmente maus, pode suceder, caso se queira, que as ciências produzam algum bem quando em suas mãos, mas é bem certo que elas então determinem mais mal do que bem, pois não se deve fornecer armas a loucos furiosos. 2º - Se as ciências raramente atingem seu objetivo, sempre haverá mais tempo perdido do que bem empregado. E, mesmo se fosse verdadeiro que tivéssemos encontrado os melhores métodos, a maioria de nossos trabalhos seria ainda tão ridícula quanto aqueles de um - homem que, certo de seguir exatamente a linha de prumo, quisesse levar um poço até o centro da terra. 3º - Não devemos absolutamente ter tanto medo da vida puramente animal, nem considerá-la o pior dos estados em que possamos cair, pois ainda valeria muito mais parecer com uma ovelha do que com um anjo mau. 4º° - A Grécia deveu seus costumes e suas leis a filósofos e legisladores. Concordo. Já repeti centenas de vezes que é bom existirem filósofos, contanto que o povo não se proponha a sê-lo. 5º - Não ousando afirmar que Esparta não tinha boas leis, censuram as leis da Esparta por terem tido muitos defeitos, de modo que, para retorquir às censuras que faço aos povos sábios por sempre terem sido corrompidos, censuram-se os povos ignorantes por não terem atingido a perfeição. 6º - O progresso das letras está sempre em proporção com a grandeza dos impérios. Seja. Constato que sempre me falam de fortuna e de grandeza. Eu, por mim, aludi a costumes e virtudes. 7º - Nossos costumes são os melhores que homens maus, como nós, podem ter. Talvez. Proscrevemos inúmeros vícios, não contesto. Não acuso os homens deste século de terem todos os vícios; eles só têm aqueles próprios às almas covardes, são apenas velhacos e negligentes. Quanto aos vícios que exigem coragem e firmeza, considero-os incapazes de tê-los. 8º - O luxo pode ser necessário para dar pão aos pobres, mas, se não houvesse luxo, não haveria pobres. Ele ocupa os cidadãos ociosos. Mas, por que existem cidadãos ociosos? Quando a agricultura era considerada uma honra, não havia nem miséria nem ociosidade e havia muito menos vícios. 9º - Vejo que se toma a peito essa questão de luxo e, não obstante, finge-se querer separá-la da questão das ciências e das artes. Concordarei, pois, uma vez que se deseja tão insistentemente, que o luxo contribui para a manutenção dos estados, como as cariátides servem para sustentar os palácios que decoram ou, então, como essas vigas com as quais se esteiam construções abaladas e que, frequentemente, acabam por derrubá- las. Homens sábios e prudentes, saí das casas que se esteiam. Isso pode mostrar como seria fácil desviar em meu favor a maioria das coisas que pretendem opor-me; falando francamente, não as considero, porém, suficientemente contestadas para sentir a coragem de prevalecer-me disso. Afirma-se que os primeiros homens foram maus, donde se segue que o homem é naturalmente mau. Eis o que não constitui afirmação de pequena monta; parece que valeria a pena contestá-la. Os anais de todos os povos, que se ousa citar como prova, são muito mais favoráveis a uma suposição contrária e seriam precisos muitos testemunhos para obrigar-me a crer num absurdo. Antes que essas tremendas palavras teu e meu tivessem sido inventadas, antes que existisse essa espécie de homens cruéis e brutais chamados senhores, e essa outra espécie de homens madraços e mentirosos que se chamam escravos, antes que houvesse homens suficientemente abomináveis para ousar ter o supérfluo enquanto outros morrem de fome, antes que uma dependência mútua tivesse forçado todos a se tornarem mentirosos, ciumentos e traidores - gostaria bastante que me explicassem no que poderiam consistir os vícios, os crimes que, com tanta ênfase, lhes são censurados. Asseguram-me que, há muito tempo, já se desenganaram da quimera da idade de ouro. Por que não acrescentam, ainda, que há muito tempo já se desenganaram da quimera da virtude? Afirmei terem sido virtuosos os primeiros gregos, antes que a ciência os tivesse corrompido, e não quero retratar- me nesse ponto, apesar de, observando-os mais de perto, não deixar de ter minhas desconfianças quanto à solidez das virtudes de um povo tão palrador, ou da justiça dos elogios que sentia tanto prazer em prodigalizar-se e que não vejo confirmados por qualquer outra testemunha. Que objetam a isso? Que os primeiros gregos, cuja virtude louvei, eram esclarecidos e sábios, pois foram filósofos que moldaram seus costumes e lhes deram as leis. Mas, com esse modo de raciocinar, quem me impedirá de dizer a mesma coisa de todas as outras nações? Os persas não tiveram seus magos, os assírios seus caldeus, os hindus seus ginosofistas, os celtas seus druidas? Ocus não brilhou entre os fenícios, Atlas entre os líbios, Zoroastro entre os persas, Zamolxis entre os trácios? E até não pretenderam muitos que a filosofia tivesse nascido entre os bárbaros? Seriam, pois, todos esses povos, sábios por esse motivo? Ao lado dos Milciades e dos Temistocles, encontravam-se, dizem-me, os Aristides e os Sócrates. Ao lado, se quiserem pois que importância tem isso para mim? No entanto, Milcíades, Aristides, Temístocles, que eram heróis, viveram numa determinada época, e Sócrates e Platão, que eram filósofos, viveram noutra. Quando se começaram a abrir escolas públicas de filosofia, a Grécia aviltada e degenerada já tinha renunciado à sua virtude e vendido sua liberdade. A soberba Ásia viu suas forças inumeráveis derrotadas por um punhado de homens que a filosofia conduzia até a glória. É verdade, a filosofia da alma conduz à verdadeira glória, mas não é aprendida nos livros. É esse o efeito infalível dos conhecimentos do espírito. Peço ao leitor que atente para essa conclusão. Os costumes e as leis são a única fonte do verdadeiro heroísmo. As ciências aí nada têm, pois, a fazer. Em uma palavra, a Grécia tudo deveu às ciências e o resto do mundo tudo deveu à Grécia. Nem a Grécia nem o mundo nada deveram, pois, às leis ou aos costumes. Peço perdão aos meus adversários, mas não há meio de fazer com que seus sofismas sejam aceitos. Examinemos ainda, por um momento, essa preferência que se pretende dar à Grécia em relação a todos os outros povos e da qual parece que se fez ponto capital. Admirarei, caso se queira, povos que passam a vida na guerra ou nos bosques, que dormem deitados na terra e vivem de legumes. Essa admiração, com efeito, é bem digna de um verdadeiro filósofo; só a um povo cego e estúpido caberia admirar os que passam sua vida não defendendo sua liberdade, mas roubando-se e traindo-se mutuamente a fim de satisfazer a sua fraqueza ou a sua ambição e que ousam nutrir sua ociosidade com o suor, o sangue e os trabalhos de um milhão de infelizes. Mas será entre essas pessoas grosseiras que se irá procurar a felicidade? Com muito mais razão seria ela procurada aí, do que a virtude entre os demais. Que espetáculo não nos apresentaria o gênero humano composto somente de trabalhadores, de soldados, de caçadores e de pastores? Um espetáculo infinitamente mais belo do que aquele do gênero humano composto de cozinheiros, poetas, impressores, ourives, pintores e músicos. Do primeiro quadro só se deve excluir a palavra soldado. A guerra, eventualmente, é um dever e não deve ser considerada uma profissão. Todo homem deve ser soldado para a defesa da liberdade, nenhum deverá sê-lo para imiscuir-se na liberdade alheia, e morrer servindo a pátria é encargo demasiado belo para confiá-lo a mercenários. Será preciso, pois, para ser digno do nome de homens, viver como leões ou como ursos? Se eu tiver a felicidade de encontrar um único leitor imparcial e amigo da verdade, peço-lhe que lance um olhar sobre a sociedade atual e nela observe quais os que convivem como leões e ursos, como tigres e crocodilos. Seriam erigidas em virtudes as faculdades do instinto relativas à nutrição, à perpetuação e à defesa? São elas virtudes, não duvidamos, quando guiadas pela razão e dirigidas sabiamente; são, sobretudo, virtudes, quando empregadas na assistência a nossos semelhantes. Nisso não vejo senão virtudes animais, pouco conformes à dignidade de nosso ser. O corpo é exercitado, mas a alma escrava só se humilha e fenece. Diria, sem dificuldade, percorrendo as pomposas elucubrações de todas as nossas academias: "Não vejo aí senão sutilezas engenhosas, pouco conformes à dignidade de nosso ser. O espírito é exercitado, mas a alma escrava só se humilha e fenece. Afastai as artes do mundo, dizem- me noutro lugar, e que restará? Os exercícios do corpo e as paixões? Vede, eu vos peço, como são sempre esquecidas a razão e a virtude! As artes deram nascimento aos prazeres da alma, os únicos dignos ainda de nós. Ou seja, substituíram outros, muito mais dignos de nós. Acompanhando-se o espírito de tudo isso, encontrar-se-á, como nos raciocínios da maioria de meus adversários, um entusiasmo tão marcado pelas maravilhas do entendimento, que aquela outra faculdade, infinitamente mais sublime e mais capaz de elevar e de enobrecer a alma, nunca é levada em consideração. Aí está o efeito infalível da cultura das letras. Estou certo de que atualmente não há um único sábio que não estime muito mais a eloquência de Cícero do que seu zelo, e que não aprecie infinitamente mais ter ele composto as Catilinárias do que ter salvado seu país. É visível o embaraço de meus adversários todas as vezes que se impõe falar de Esparta. O que não dariam para que essa fatal Esparta jamais tivesse existido! E eles, que pretendem só servirem as grandes ações para serem celebradas, a que preço não desejariam que as de Esparta jamais o fossem. É terrível que, no meio dessa famosa Grécia, que não deveu como se diz, sua virtude senão à filosofia, o Estado onde a virtude foi mais pura e durou mais longo tempo tenha sido precisamente aquele em que absolutamente não existiram filósofos. Os costumes de Esparta sempre foram apresentados como um exemplo a toda a Grécia; toda a Grécia estava corrompida e ainda havia virtude em Esparta; toda a Grécia era escrava e somente Esparta ainda era livre - é desolador. Mas, por fim, a orgulhosa Esparta perdeu seus costumes e sua liberdade, como a tinha perdido a sábia Atenas; Esparta acabou. Que poderei responder a isso? Ainda duas observações relativas a Esparta e passarei a outro assunto. Eis a primeira: Depois de ter estado inúmeras vezes a ponto de vencer, Atenas foi vencida, é verdade, sendo surpreendente que não o tenha sido antes, porquanto a Ática era uma região demasiadamente aberta e que só poderia defender-se pela superioridade da sorte. Atenas deveria ter vencido por inúmeros motivos. Era muito maior e mais povoada do que a Lacedemônia. Tinha grandes rendas e muitos povos eram seus tributários. Esparta não tinha nada disso. Atenas, sobretudo pela sua posição, possuía uma vantagem da qual Esparta estava privada, e que a colocava em situação de destruir inúmeras vezes o Peloponeso, sendo que só isso lhe assegurava todo o império da Grécia. Era um porto vasto e cômodo, era uma marinha formidável devida à previdência daquele rústico Temístocles que não sabia tocar flauta. Poder-se-á, pois, surpreender-se com ter Atenas, possuindo tantas vantagens, afinal sucumbido. Mas, embora a guerra do Peloponeso, que arruinou a Grécia, não tenha dado glória nem a uma nem a outra das repúblicas e tenha sido, sobretudo por parte dos lacedemônios, uma infração às máximas de seu sábio legislador, não deve contudo espantar que, com o decorrer dos tempos, a verdadeira coragem tenha prevalecido sobre os recursos, nem mesmo que a reputação de Esparta lhe tenha fornecido inúmeros deles, que lhe facilitaram a vitória. Envergonho-me, na verdade, de saber essas coisas e de ver-me forçado a dizê- las. Não será menos importante a outra observação. Segue-se o texto que penso dever apresentar ao leitor. Supondo-se que todos os Estados que compunham a Grécia tivessem seguido as mesmas leis que Esparta, que nos teria restado dessa terra tão célebre? Seu nome, apenas, teria chegado até nós. Deixaria deformar historiadores para transmitir sua glória à posteridade; o espetáculo de suas tremendas virtudes estaria perdido para nós; por conseguinte, ser-nos-ia indiferente que tivessem existido ou não. Os numerosos sistemas de filosofia, que esgotaram todas as combinações possíveis de nossas ideias e que, se não estenderam bastante os limites de nosso espírito, ensinaram-nos pelo menos onde se fixavam eles; essas obras-primas de eloquência e de poesia que nos ensinaram todos os caminhos do coração; as artes úteis ou agradáveis que conservam ou embelezam a vida; enfim, a inestimável tradição dos pensamentos e das ações de quantos grandes homens contribuíram para a glória e a felicidade de seus semelhantes - todas essas preciosas riquezas do espírito perder-se-iam para sempre. Os séculos ter-se-iam acumulado, as gerações ter-se-iam sucedido como as dos animais, sem nenhum fruto para a posteridade, e não teriam deixado atrás de si senão uma recordação confusa de sua existência. O mundo teria envelhecido e os homens teriam permanecido numa infância eterna. Suponhamos, de nossa parte, que um lacedemônio, impelido pelo vigor dessas razões, tivesse querido expô-las a seus compatriotas e tentemos imaginar o discurso que ele poderia fazer na praça pública de Esparta. "Cidadãos, abri os olhos e saí de vossa cegueira. Vejo, com tristeza, que só trabalhais para adquirir a virtude, para exercitar vossa coragem e manter vossa liberdade e, no entanto, esqueceis o dever, mais importante, de distrair os ociosos das raças futuras. Dizei-me: para que serve a virtude, senão para causar sensação no mundo? Que vos terá valido ser pessoas de bem, quando ninguém falar de vós? Que importará aos séculos futuros que vos désseis à morte nas Termópilas para a salvação dos atenienses, se não deixais, como eles, nem sistema de filosofia, nem versos, comédias ou estátuas? Apressai-vos, pois, em abandonar leis que só servem para tornar-vos felizes; pensai somente em fazer muito falar de vós quando não mais existirdes e nunca esqueçais que, se não se celebrassem os grandes homens, inútil, seria sê-lo.” Aí está, creio, aproximadamente o que teria podido dizer esse homem, se os éforos o tivessem deixado acabar. Não é somente nessa passagem que nos advertem quanto a só servir a virtude para fazer com que falem daqueles que a possuem. Em outro ponto, enaltecem-nos ainda os pensamentos do filósofo, por imortais e consagrados à admiração de todos os séculos, enquanto os outros veem dissiparem-se suas ideias junto com o dia, a circunstância ou o momento que as viu nascer. Para três quartos dos homens, o novo dia apaga a véspera sem que dela reste o menor traço. Ah! Resta dela pelo menos alguma coisa no testemunho de uma boa consciência, nos infelizes que se aliviou, nas boas ações que se praticou e na memória desse Deus benfazejo que se serviu em silêncio. "Morto ou vivo", dizia o bom Sócrates, "o homem de bem jamais esqueceu os deuses." Responder-me-ão talvez, que não se quis falar dessa espécie de pensamentos, e eu respondo que não vale a pena falar de todos os demais. É fácil compreender que, fazendo tão pouco caso de Esparta, não se chega talvez a mostrar maior estima pelos antigos romanos. Concorda-se em tê-los como grandes homens, apesar de não jazerem senão pequenas coisas. Nesse sentido, confesso que há muito tempo não se fazem senão grandes coisas. Censura-se não terem sido verdadeiras virtudes, mas qualidades forçadas, a sua temperança e a sua coragem. Algumas páginas depois, confessa-se que Fabrício desprezava o ouro de Pirro e não se pode ignorar estar a história romana cheia de exemplos da facilidade de enriquecer que tiveram aqueles magistrados, aqueles veneráveis guerreiros que faziam tanto caso de sua pobreza. Quanto à coragem, não sabemos que a covardia não pode compreender a razão e que um poltrão não deixa de fugir, mesmo certo de ser morto ao fugir? Querer fazer com que os grandes Estados venham a ter as pequenas virtudes das pequenas repúblicas, dizem, é como querer forçar um homem forte e robusto a balbuciar num berço. Eis uma frase que não deve ser nova nas cortes. Teria ela sido muito digna de Tibério ou de Catarina de Médicis e não duvido que um e outra não tenham empregado algo semelhante. Seria difícil imaginar-se necessário medir a moral com um instrumento de agrimensor. Não se poderia, no entanto, dizer que a extensão dos Estados seja totalmente indiferente aos costumes dos cidadãos. Existe, certamente, alguma proporção entre essas coisas, mas não sei se essa proporção não seria inversa. Aí está uma questão importante que merece ser meditada e creio poder ela ser considerada como ainda indecisa, malgrado o tom mais desdenhoso do que filosófico com o qual é resolvida, neste ponto, com duas palavras. Era esta, continuam, a loucura de Catão; com o mau humor e os preconceitos hereditários em sua família, discursou durante toda a vida, combateu e morreu sem nada ter feito de útil para sua pátria. Não sei se nada fez pela pátria, mas sei que muito fez pelo gênero humano, oferecendo-lhe o espetáculo e o modelo da mais pura virtude que jamais existiu. Ensinou aqueles que amam sinceramente a verdadeira honra a saber resistir aos vícios de seu século e a detestar essa horrível máxima das pessoas na moda que dizem ser preciso fazer como os demais. Com tal máxima iriam, sem dúvida, longe, se tivessem a infelicidade de cair em algum bando de ladrões. Nossos descendentes aprenderão um dia que, nesse século de sábios e de filósofos, o mais virtuoso dos homens foi atirado ao ridículo e tratado como louco, por não ter querido macular sua grande alma com os crimes de seus contemporâneos, por não ter querido ser um celerado com César e os outros bandidos de seu tempo. Acabamos de ver como os nossos filósofos falam de Catão. Vamos ver como falavam dele os antigos filósofos. Ecce spectaculum dignum ad quod respicial intentus operi suo Deus. Ecce par Deo dignum, vir fortis cum mala fortuna compositus. Non video, inquam, quid habeat in terris Jupiter pulchrius, si convertere animum velit, quam ut spectet Catonem, jam partibus non seme! fractis, nihilominus inter ruinas publicas erectum. Aqui está o que, noutro ponto, nos dizem dos primeiros romanos: Admiro os Brutos os Décios, as Lucrécias, os Virginios, os Cévolas. Já é alguma coisa, neste século em que vivemos. Porém mais admiraria um Estado potente e bem governado! Um Estado potente e bem governado! Eu também, certamente. No qual os cidadãos não fossem condenados a virtudes tão cruéis. Compreendo; é mais cômodo viver numa situação em que cada um seja dispensado de ser homem de bem. Mas, se os cidadãos desse Estado que se admira, por qualquer infelicidade se vissem obrigados a renunciar à virtude ou a praticar tais virtudes cruéis, e tivessem coragem para cumprir seu dever, isso constituiria uma razão para admirá-los menos? Tomemos o exemplo que mais revolta nosso século e examinemos a conduta de Bruto, magistrado soberano, mandando matar seus filhos que tinham conspirado contra o Estado num momento crítico, quando pouco se precisava para subvertê-lo. É certo que, se lhes tivesse concedido graça, seu colega infalivelmente teria salvado todos os outros cúmplices e a república estaria perdida. Que importa? - dir-me-ão. Se é indiferente, suponhamos, pois, que tivesse acontecido e, tendo Bruto condenado à morte algum malfeitor, o culpado lhe falasse assim: "Cônsul, por que me fazes morrer? Terei feito pior do que trair minha pátria? e não sou também teu filho?" Gostaria que se dessem ao trabalho de dizer-me o que Bruto poderia ter respondido. Bruto, dir-me-ão, deveria ter abdicado do consulado em lugar de fazer seus filhos perecerem. E eu digo que todo magistrado que, em circunstância tão perigosa, esquece o zelo pela pátria e abdica da magistratura, é um traidor que merece a morte. Não há meio-termo: era preciso que Bruto fosse um infame ou que as cabeças de Tito e de Tibério tombassem, por sua ordem, sob os machados dos litores. Com isso não quero dizer que muita gente se decidisse como ele. Embora não se decidam abertamente pelos últimos tempos de Roma, deixam entender que os preferem aos primeiros e têm tanto trabalho para perceber os grandes homens, através da simplicidade desses, quanto o tenho eu próprio para perceber pessoas de bem na pompa dos outros. Opõem Tito a Fabrício; omitem, porém, a diferença de que no tempo de Pirro todos os romanos eram Fabrícios, enquanto que, sob o reinado de Tito, somente ele era homem de bem. Esquecerei, caso queiram, as ações heroicas dos primeiros romanos e os crimes dos últimos, mas o que não poderia esquecer é ser a virtude glorificada por uns e desprezada por outros, e que, enquanto havia coroas para os vencedores dos jogos do circo, não existia nenhuma para aquele que salvava a vida de um cidadão. Não se creia, contudo, que tal seja peculiar a Roma. Tempo houve em que a república de Atenas era bastante rica para dispensar somas imensas com seus espetáculos e para pagar muito bem autores, comediantes e até espectadores. Foi nesse tempo que não se teve dinheiro para defender o Estado contra os empreendimentos de Filipe. Chegam, por fim, aos povos modernos e não me darei ao trabalho de seguir os raciocínios que julgam oportuno fazer sobre esse assunto. Observarei unicamente que constitui vantagem pouco honrosa a que se obtém sem refutar as razões do adversário mas, sim, impedindo-o de dizê-las. Não acompanharei também as reflexões que se dão ao trabalho de fazer, sobre o luxo, a polidez, a admirável educação de nossos filhos; sobre os melhores métodos para ampliar nossos conhecimentos, a utilidade das ciências e o deleite das belas-artes, e sobre outros pontos, a maioria dos quais nenhuma relação tem comigo, sendo que alguns chegam até a refutar-se entre si. Contentar-me-ei ainda com citar alguns trechos tomados ao acaso e que me pareceram necessitar de esclarecimentos. Será preciso que eu me limite a frases, na impossibilidade de seguir raciocínios cujo fio não pude apreender. Pretende-se que as nações ignorantes que tiveram ideias de glória e de virtude são exceções singulares, que não podem contribuir para qualquer preconceito contra as ciências. Muito bem, mas todas as nações sábias, com suas belas ideias de glória e de virtude, perderam sempre o amor por elas e a sua prática. Tal coisa acontece sem exceções. Passemos a prová-lo, Para nos convencermos disso, lancemos os olhos sobre o imenso continente da África, no qual nenhum mortal é suficientemente afoito para penetrar ou suficientemente afortunado para ter feito tal tentativa impunemente. Assim, por não termos podido penetrar no continente da África, por ignorarmos o que lá se passa, levam-nos a concluir que seus povos são carregados de vícios. Mas, se tivéssemos encontrado o meio de levar nossos vícios até lá, é que deveríamos concluir desse modo. Se eu fosse chefe de qualquer um dos povos da Nigricia, asseguro que levantaria, na fronteira do país, um patíbulo no qual mataria sem misericórdia o primeiro europeu que ousasse penetrar nele e o primeiro cidadão que tentasse de lá sair. A América não nos oferece espetáculos menos vergonhosos para a espécie humana. Sobretudo depois que os europeus aí estão. Entre cem povos bárbaros ou selvagens em ignorância, encontraremos um único virtuoso. É verdade: encontraremos pelo menos um, mas jamais se viram povos virtuosos cultivadores das ciências. A terra deixada inculta não é inútil; produz venenos e nutre monstros. Aí está o que ela começa a dar naqueles lugares em que o gosto das artes frívolas fez com que se abandonasse o gosto pela agricultura. Nossa alma, poder-se-á também dizer, não é de modo algum inútil quando a virtude a abandona; produz ficções, romances, sátiras, versos, nutre vícios. Se os bárbaros realizaram conquistas, é porque eram muito injustos. Que éramos nós, então, pergunto-vos, quando conquistamos a América, feito que tanto admiram? Mas, a que ponto pessoas que possuem canhões, cartas marinhas e bússolas podem cometer injustiças! Dir-me-ão que o acontecimento assinala o valor dos conquistadores? Assinala somente a sua astúcia e habilidade, mostra que um homem esperto e sutil pode obter, com seu engenho, o sucesso que um homem bravo só atinge com seu valor. Falemos sem parcialidade. Quem julgaríamos mais corajoso: o odioso Cortez subjugando o México à força de pólvora, perfídia e traições, ou o infortunado Guaternozin, estendido sobre carvões ardentes por honestos europeus desejosos de obter seus tesouros, exprobrando um de seus funcionários de quem o mesmo tratamento arrancava alguns queixumes e dizendo-lhe orgulhosamente: "E eu, estou sobre rosas?" Dizer que as ciências nasceram da ociosidade é, visivelmente, abusar dos termos; elas nascem do lazer, mas preservam da ociosidade. Assim um homem que, à borda de uma grande estrada, se distraísse atirando em caminhantes, poderia dizer que ele empregava o seu lazer garantindo-se contra a ociosidade. Não compreendo essa distinção entre o lazer e a ociosidade, mas estou bem certo de que nenhum homem honesto jamais poderá gabar-se de ter lazer enquanto tiver alguma coisa de bem para fazer, uma pátria para servir e infelizes para socorrer; desafio, ainda, que me mostrem, em meus princípios, qualquer sentido honesto a que possa ser aplicada a palavra lazer. O cidadão cujas necessidades o prendem à charrua não está mais ocupado do que o geômetra ou o anatomista. Não mais do que a criança que constrói um castelo de cartas, porém, mais utilmente. A pretexto de ser o pão necessário, impor-se-á que todo o mundo passe a trabalhar a terra? Por que não? Que passem mesmo, caso necessário; gostaria mais de ver os homens comerem ervas nos campos do que se entredevorarem nas cidades. Em verdade, tais como peço que sejam, assemelhar-se-ão bastante aos animais e, tais como são, assemelham-se bastante aos homens. O estado de ignorância é um estado de medo e de necessidade; tudo é, então, perigo para nossa fragilidade. A morte ronda sobre nossas cabeças, esconde-se na erva que calcamos com os pés. Quando tudo se teme e se tem necessidade de tudo, qual a disposição mais razoável do que querer tudo conhecer? Basta considerar as inquietações contínuas dos médicos e dos anatomistas sobre a sua vida e sua saúde para verificar se os conhecimentos servem para tranquilizar-nos quanto a nossos perigos. Como os conhecimentos descobrem sempre muito mais perigos do que meios para nos garantirem contra eles, não é de espantar que só contribuam para aumentar nossos alarmas e tornar-nos pusilânimes. Os animais, a esse respeito, vivem em profunda segurança e não se sentem pior por isso. Uma vitela não tem necessidade de estudar botânica para aprender a escolher o seu feno e o lobo devora a presa sem pensar em indigestão. Para responder a isso, ousar-se-á tomar o partido do instinto contra a razão? É precisamente o que eu desejo. Parece, dizem-nos, que há um número excessivo de trabalhadores e que se teme que faltem filósofos. Perguntarei, de minha parte, se temem que faltem indivíduos para exercer as profissões lucrativas. Como se conhece mal o império da cupidez! Tudo, desde nossa infância, nos força a condições úteis. E que preconceitos não se terão de vencer, de que coragem não se carecerá, para não ser mais do que um Descartes, um Newton, um Locke! Leibniz e Newton morreram cheios de bens e de honrarias, e mereceriam ainda muitas outras. Poderíamos dizer que foi por moderação que não se elevaram até o arado? Conheço suficientemente o império da cupidez para saber que tudo nos leva às profissões lucrativas; eis por que digo que tudo nos distancia das profissões úteis. Um Hébert, um Lafrenaye, um Dulac, um Martin ganham, num dia, mais dinheiro do que todos os trabalhadores de uma província poderiam ganhar num mês. Poderia propor um problema muito curioso sobre este trecho de que ora me ocupo. Seria, separando as duas primeiras linhas e lendo-as isoladas, adivinhar se são extraídas de meus escritos ou dos de meus adversários. Os bons livros são a única defesa dos espíritos fracos, isto é, das três quartas partes dos homens, contra o contágio do exemplo. Em primeiro lugar, os sábios jamais escreverão tantos livros quantos são os maus exemplos dados por eles. Segundo, haverá sempre mais livros maus do que bons. Terceiro, os melhores guias que as pessoas de bem possam ter são a razão e a consciência. Paucis est opus litteris ad mentem bonam. Quanto àqueles que têm o espírito ambíguo ou a consciência empedernida, nunca a leitura poderá servir-lhes para alguma coisa. Enfim, quaisquer que sejam os homens, só lhes são necessários os livros de religião, os únicos que nunca condenei. Pretendem fazer-nos lastimar a educação dos persas. Notai que é Platão que pretende isso. Acreditei proteger-me com a autoridade desse filósofo, mas vejo que nada poderá defender-me contra a animosidade de meus adversários. Tros Rutulusve fuat, preferem eles estraçalhar-se uns aos outros do que me dar o menor quartel, e causam mais mal uns aos outros do que a mim. Essa educação era, dizem, fundamentada em princípios bárbaros; porque se dava um professor para o exercício de cada virtude, ainda que a virtude seja indivisível, porque se tratava de inspirá-la e não de ensiná-la, de fazer com que se gostasse de sua pátria e não de demonstrar sua teoria. Quantas coisas não teria que responder! Mas não se deve fazer ao leitor a injúria de tudo dizer-lhe. Contentar-me-ei com duas observações. A primeira dizendo que quem deseja educar uma criança não começa por dizer-lhe que se deve praticar a virtude, pois não seria compreendido; ensina-o a ser verdadeiro e, depois, a ser sóbrio e, depois, a ser corajoso, etc. e enfim, ensina-lhe que se dá o nome de virtude ao conjunto de todas essas coisas. A segunda diz que somos nós que nos contentamos com demonstrar a teoria, mas que os persas ensinam a prática. Vede meu Discurso, página 15, nota 2. Todas as censuras que fazem à filosofia atingem o espírito humano... Concordo. Ou, antes, ao autor da natureza, que nos fez tal como somos. Se ele nos fez filósofos, para que tanto trabalho a fim de nos transformarmos em filósofos? Os filósofos eram homens e se enganaram; dever-se-á surpreender-se com isso? Deveremos surpreender-nos quando eles não se enganarem mais. Lastimemo-los, aproveitemo-nos de seus erros e corrijamo-nos. Sim, corrijamo-nos e não filosofemos mais. Mil caminhos conduzem ao erro, um único à verdade... Aí está precisamente o que eu dizia. Será preciso ficar surpreso, por tantas vezes ter-se escarnecido dela e que ela tenha sido descoberta tão tarde? Ah! Finalmente a encontramos. Citam-nos um julgamento de Sócrates que trata não dos sábios mas dos sofistas, não das ciências, mas do abuso que se pode fazer delas. Que mais pedir àquele que sustenta que todas as ciências não passam de abusos e que todos os nossos sábios são verdadeiros sofistas? Sócrates era chefe de uma seita que ensinava a duvidar. Eu diminuiria de muito minha admiração por Sócrates se acreditasse ter ele tido a tola vaidade de ser chefe de seita. E ele, com justiça, censurava o orgulho daqueles que pretendem tudo saber. Isto é, o orgulho de todos os sábios. A verdadeira ciência está bem longe de ser afetação. É verdade, mas é da nossa que falo. Sócrates é nesse ponto, testemunho contra si mesmo. Isso me parece difícil de entender. O mais sábio dos gregos não coraria por sua ignorância. O mais sábio dos gregos nada sabia de sua própria opinião; concluí quanto aos outros. As ciências não têm, pois, suas fontes nos nossos vícios. Nossas ciências têm, pois, fontes em nossos vícios. Não são, pois, todas elas nascidas do orgulho humano. Já dei, atrás, minha opinião a esse respeito. Declamação vã que não pode iludir senão espíritos prevenidos. Não sei responder a isso. Falando-se dos limites do luxo, pretendem que, nesse assunto, não se deve raciocinar partindo-se do passado para chegar ao presente. Quando os homens andavam completamente nus, aquele que primeiro resolveu calçar uns tamancos passou por voluptuoso; de século a século não se deixou de gritar contra a corrupção, sem compreender o que se desejava dizer. É verdade que, até nosso tempo, o luxo, ainda que reinando sempre, fora pelo menos considerado, em todas as épocas, como a fonte funesta de uma infinidade de males. Ficava reservado ao Sr. Melon o ser o primeiro a publicar essa doutrina envenenada, cuja novidade granjeou-lhe mais sectários do que a solidez de suas razões. Não temo ser o único a combater, neste meu século, essas odiosas máximas que só tendem a destruir e aviltar a virtude e a fazer ricos e miseráveis, isto é, a sempre fazer maus. Creem embaraçar-me terrivelmente perguntando-me até onde se deve limitar o luxo. Minha opinião é que absolutamente não se precisa dele. Para além da necessidade física, tudo é fonte do mal. A natureza já nos dá muitas necessidades e, no mínimo, representará enorme imprudência multiplicá-las sem necessidade e colocar, dessa maneira, a alma em dependência ainda maior. Não é sem razão que Sócrates, olhando a exposição de uma loja, felicitava-se de nada ter a ver com tudo aquilo. Apostamos cem contra um quanto à culpabilidade do primeiro homem que calçou tamancos, a menos que ele sofresse dos pés. Quanto a nós, já nos vemos demasiadamente constrangidos a usar sapatos, para não sermos dispensados de ter virtude. Já afirmei, em outro lugar, que não me propunha a abalar a sociedade atual, a queimar as bibliotecas e todos os livros, a destruir os colégios e as academias, e devo acrescentar, aqui, que não pretendo também reduzir os homens a se contentarem unicamente com o necessário. Sei, muito bem, que não se deve acariciar o projeto quimérico de fazer com isso pessoas de bem, mas achei-me na obrigação de dizer, sem rebuços, a verdade que me perguntaram. Vi o mal e procurei encontrar as suas causas; outros mais espertos ou mais insensatos poderão achar o remédio. Estou cansado, e descanso a pena para não mais retomá- la nesta disputa demasiado longa. Sei que um número muito grande de autores aplicou-se em refutar-me; estou muito aborrecido por não poder responder a todos, mas acredito ter mostrado, por intermédio daqueles que escolhi para isso, que não é o medo que me detém em relação aos demais. Esforcei-me por erigir um monumento que, de modo algum, devesse à arte sua força e solidez, somente a verdade, a quem o consagrei, tem o direito de torná-lo forte e, se mais uma vez revido os golpes que lhe desferem, defendo-o mais por respeito próprio do que para prestar-lhe socorro de que não necessita. Que me seja permitido, ao terminar, protestar dizendo ter sido somente o amor à humanidade e à virtude que me fez romper o silêncio, e que a amargura de minhas invectivas contra os vícios, dos quais sou testemunha, não nasce senão da dor que me inspiram e do ardente desejo que tenho de ver os homens mais felizes e, sobretudo, mais dignos de ser felizes. Carta de Jean-Jacques Rousseau Sobre uma nova refutação de seu Discurso por um Acadêmico de Dijon
Acabo de ver, senhor, uma brochura intitulada Discurso
que recebeu o prêmio da Academia de Dijon em 1750, etc., acompanhado por uma refutação a esse discurso, feita por um Acadêmico de Dijon que lhe recusou o seu sufrágio, e pensava, percorrendo esse trabalho, que, em lugar de baixar ao ponto de fazer-se editor de meu Discurso, o acadêmico, que lhe recusou o seu sufrágio, deveria antes ter publicado a obra a que teria concedido o prêmio - tal seria uma excelente maneira de refutar o meu. Aí está, pois, um de meus juízes que não se recusa a tornar-se meu adversário e que acha bastante mau terem- me honrado seus colegas com o prêmio. Confesso que eu mesmo me surpreendi com o prêmio; esforcei-me por merecê-lo, mas nada fiz para obtê-lo. Aliás, embora eu soubesse não adotarem os acadêmicos as opiniões dos autores que premiam, e que o prêmio não é conferido àquele que se crê ter sustentado a melhor causa, mas àquele que falou melhor, mesmo supondo-me nesse caso, estava bem longe de esperar de uma academia essa imparcialidade da qual nem sempre os sábios fazem uso nas ocasiões em que se trata de seus interesses. Mas, se fiquei surpreendido com a equidade de meus juízes, confesso que não o estou menos com a indiscrição de meus adversários: como ousam demonstrar tão de público o mau humor causado pela honra que recebi? Como não percebem o dano irreparável que, com isso, fazem à sua própria causa? Que não se iludam pensando que alguém se vai enganar quanto ao motivo de sua mágoa; se estão aborrecidos por ter sido meu Discurso laureado, não é por ser malfeito, pois todos os dias são premiados outros tão maus quanto esse e eles nada dizem, mas sim por outro motivo, que atinge mais de perto a sua profissão e não é difícil de perceber. Bem sabia que as ciências corrompiam os costumes, tornavam os homens injustos e ciumentos, e levavam-nos a sacrificar tudo ao seu interesse e à sua glória vã; acreditei, porém, que tal coisa se fazia com um pouco mais de decência e de habilidade. Via que os letrados aludiam incessantemente à equidade, à moderação, à virtude e, sob a salvaguarda sagrada dessas belas palavras, se entregavam impunemente às suas paixões e vícios; jamais acreditei, porém, que tivessem a audácia de censurar publicamente a imparcialidade de seus confrades. Em todos os lugares, a glória dos julgadores consiste em se pronunciarem de acordo com a equidade e contra seu próprio interesse; só as ciências podem transformar, naqueles que as cultivam, a integridade em crime - belo privilégio, o seu! Ouso dizer que a Academia de Dijon, fazendo muito pela minha glória, fez muito pela sua; dia virá em que os adversários de minha causa aproveitar-se-ão desse julgamento para provar que a cultura das letras pode associar-se com a equidade e o desinteresse. Os partidários da verdade responderão, então, a eles: "Aí está um exemplo particular que parece depor contra nós; lembrai- vos, porém, do escândalo que esse julgamento causou na época, na multidão dos letrados, e da maneira pela qual se lamentaram; extraí disso uma consequência exata de suas máximas”. Não é, a meu ver, imprudência desprezível o queixar-se de ter proposto a Academia seu assunto como problema. Deixo de parte a pequena possibilidade que haveria de ter alguém, no entusiasmo universal que hoje reina, a coragem de renunciar voluntariamente ao prêmio, decidindo-se pela negativa, mas não sei como há filósofos que ousem desgostar-se com oferecer-se-lhes vias de discussão: belo amor pela verdade, esse, que vacila quando se examina o pró e o contra. Nas pesquisas de filosofia, o melhor meio de tornar uma opinião suspeita é excluir a opinião contrária. Aquele que assim age, dá a impressão de má fé e de desconfiar da excelência de sua causa. A França toda está à espera da peça que este ano receberá o prêmio da Academia Francesa; não somente, com toda a certeza, superará meu Discurso, o que não será difícil, mas não se poderia mesmo duvidar que será uma obra-prima. No entanto, em que influirá isso para a solução da questão? Absolutamente nada, pois cada um, depois de tê-la lido, dirá: Esse discurso é belíssimo; mas, se o autor tivesse tido a ousadia de tomar o partido contrário, teria talvez feito outro ainda mais belo. Percorri a nova Refutação. É mais uma, porém não sei por que fatalidade as obras de meus adversários, que trazem esse título tão decisivo, são sempre aquelas em que sou pior refutado. Percorri, pois, essa refutação sem ter o menor arrependimento da resolução que tomei de não mais responder a ninguém: contentar-me-ei com citar uma única passagem, pois, baseando-se nela, o leitor poderá julgar se tenho razão ou não. É a seguinte: Concordaria com que se pode ser um homem honesto sem talento; mas só se estará obrigado, na sociedade, a ser um homem honesto? E que será um homem honesto, ignorante e sem talento? Um fardo inútil, uma carga no mundo, etc. Certamente não responderei a um autor capaz de escrever dessa maneira e acho que pode agradecer-me por isso. Não haveria também meios, a menos que se quisesse ser tão difuso quanto o autor, de responder à numerosa coleção de passagens latinas, versos de La Fontaine, de Boileau, de Moliêre, de Voltaire, de Regnard, do Sr. Gresset, nem à história de Nemrod, nem à dos camponeses picardos, pois o que se poderá dizer a um filósofo que nos assegura querer mal aos ignorantes porque seu rendeiro da Picardia, que não é um doutor, lhe paga com exatidão - para ser verídico - mas não lhe dá bastante dinheiro de sua terra? O autor se ocupa tanto com suas propriedades, que fala até da minha. Uma propriedade minha! A propriedade de Jean-Jacques Rousseau! Na verdade, eu o aconselho a me caluniar com mais habilidade. Se eu tivesse de responder a qualquer parte da Refutação, seria às mordacidades de que está cheia essa crítica, mas, como elas nada têm com o caso, não me afastarei da máxima constante, que sempre segui, de encerrar-me no assunto de que trato sem nele nada pôr de pessoal: o verdadeiro respeito que se deve ao público consiste em poupar-lhe não verdades tristes, que lhe podem ser úteis, mas sim todas as disputazinhas entre autores, com as quais se enchem as obras de polêmica e que só servem para satisfazer uma animosidade vergonhosa. Querem que eu tenha tomado em Clenard um dito de Cícero - seja; que cometi solecismos - admito; que cultivo as belas letras e a música, apesar do mal que penso delas - caso se queira, concordarei com isso, devendo sofrer numa idade mais razoável a pena dos divertimentos de minha juventude. Mas, finalmente, que importa tudo isso, tanto para o público quanto para a causa das ciências? Rousseau pode falar francês com dificuldade e a gramática não será com isso mais útil à virtude. Jean-Jacques pode ter uma má conduta e a dos sábios não será melhor. AÍ estão todas as respostas que darei e, creio, todas as que devo dar a essa nova refutação. Terminarei esta carta e o que tenho a dizer sobre um assunto debatido por tão longo tempo, dando a meus adversários um conselho que certamente desprezarão e, todavia, seria preferível que pensassem no partido que dele poderiam tirar: é o de não consultar tão excessivamente seu zelo, que se esqueçam de consultar suas forças e quid valeant humeri. Dir-me-ão, sem dúvida, que eu deveria tomar esse conselho para mim mesmo, o que pode ser verdadeiro. Haveria, porém, pelo menos uma diferença: eu estaria sozinho do meu lado, enquanto que, sendo deles o da multidão, pareceriam os recém-vindos dispensados de enfileirarem-se ou obrigados a fazer melhor do que os outros. Temendo que tal conselho pareça temerário ou presunçoso, junto aqui uma amostra dos raciocínios de meus adversários pela qual se poderá aquilatar a exatidão e o valor de suas críticas. Os povos da Europa, dissera eu, viviam há alguns séculos num estado pior do que a ignorância. Não sei que algaravia científica, ainda mais desprezível do que a ignorância, usurpara o nome do saber e opunha um obstáculo quase invencível à sua volta. Precisou-se de uma revolução para devolver os homens ao senso comum. Os povos tinham perdido o bom senso não porque fossem ignorantes, mas por possuírem a tolice de crer saber alguma coisa com os grandes ditos de Aristóteles e a doutrina impertinente de Raymond Lulle; seria necessária uma revolução para ensinar-lhes que eles nada sabem e nós teríamos muita necessidade de outra para ensinar-nos a mesma verdade. Segue-se o argumento de meus adversários: Deve-se essa revolução às letras, elas devolveram o bom senso, de acordo com a opinião do autor, mas, também segundo ele, corromperam os costumes; será preciso, pois, que um povo renuncie ao bom senso para ter bons costumes. Três escritores subsequentemente repetiram esse belo raciocínio. Pergunto-lhes, agora, o que preferem que eu acuse: o seu espírito, por não terem podido penetrar no sentido claríssimo desse trecho, ou a sua má fé, por fingirem não entendê-lo? São letrados e, por isso, a escolha não será duvidosa. Mas o que diremos das interpretações divertidas que esse último adversário tem o prazer de emprestar ao desenho do frontispício de meu livro? Acreditaria ter magoado meus leitores, tratando-os como crianças, ao interpretar-lhes uma alegoria tão clara, ao dizer-lhes que o facho de Prometeu é o das ciências, feito para incentivar os grandes gênios, que o sátiro que, vendo o fogo pela primeira vez, corre a ele e quer agarrá-lo, representa os homens vulgares que, seduzidos pelo brilho das letras, se entregam temerariamente ao estudo, e que o Prometeu, que grita e o adverte do perigo, é o cidadão de Genebra. Essa alegoria é justa e bela, ouso considerá-la sublime. Que se deve pensar de um escritor que meditou sobre ela e não conseguiu entendê-la? Pode-se pensar que tal homem não teria sido um grande doutor entre os egípcios, seus amigos. Tomo, pois, a liberdade de oferecer a meus adversários e, sobretudo, ao último, esta sábia lição de um filósofo sobre outro assunto: Sabei que não há nenhuma objeção que possa fazer maior mal a vosso partido do que as más respostas. Sabei que se não tiverdes dito nada de valia, aviltarão vossa causa ao dar-vos a honra de crer que nada nela se continha de melhor para ser dito. Sou, etc. Prefácio de Narciso ou o Amante se Si Mesmo Comédia escrita em 1733 e levada à cena em 1752.
Escrevi esta comédia aos dezoito anos e abstive-me de
mostrá-la enquanto senti alguma consideração pela reputação do autor. Por fim ganhei a coragem de publicá-la, porém nunca teria a de dizer algo a seu respeito. Não é, pois, de minha peça, mas de mim mesmo que aqui se trata. Impõe-se, apesar de meu desagrado, que eu fale de mim; impõe-se que confesse os erros que me atribuem ou que os justifique. Sei que as armas não serão iguais, pois me atacarão com gracejos e eu defender-me-ei com razões, mas contanto que convença meus adversários, bem pouco me preocupo com persuadi-los. Esforçando-me por merecer minha própria estima, aprendi a viver sem a dos outros que, em geral, vivem muito bem sem a minha. Se tanto me faz que pensem bem ou mal de mim, interessa-me no entanto que ninguém tenha o direito de formar de mim um mau juízo e importa à verdade, sustentada por mim, que jamais se acuse injustamente seu defensor de a ter socorrido por capricho ou vaidade, sem amá-la e conhecê- la. O partido que tomei, na questão que há alguns anos examinei, não deixou de conquistar-me uma multidão de adversários mais atentos talvez ao interesse dos literatos do que à honra da literatura. Eu previra e suspeitara que sua conduta, nessa ocasião, faria mais por mim do que todos os meus discursos. Com efeito, não disfarçaram a sua surpresa ou tristeza por ver uma academia mostrar-se íntegra tão fora de oportunidade. A fim de conseguirem desmerecer o peso de seu julgamento, não lhe pouparam nem as invectivas indiretas, nem mesmo falsidades. Também não fui esquecido nas suas declamações. Alguns resolveram refutar-me às claras: os sábios puderam ver com que força, e o público, com que sucesso o fizeram. Outros, mais espertos, conhecendo o perigo de combaterem diretamente as verdades demonstradas, habilmente desviaram para a minha pessoa uma atenção que só se deveria dar às minhas razões, e o exame das acusações que contra mim intentaram os levou a esquecerem as acusações mais graves que eu próprio contra eles levantei. Será, pois, a estes que, mais uma vez, tenho de responder. Pretendem que eu não acredite uma palavra das verdades que sustentei e que, ao demonstrar uma proposição, não deixo de crer o contrário, isto é, que provei coisas tão extravagantes que só à guisa de diversão se podem sustentar. Eis uma bela homenagem que prestam àquela ciência que serve de fundamento a todas as outras, e deve-se crer que a arte de raciocinar bem serve à descoberta da verdade, quando a vemos empregada com sucesso para demonstrar loucuras. Pretendem que não acredito numa palavra das verdades que sustentei. É, sem dúvida, uma maneira nova e cômoda de responder a argumentos sem resposta, de refutar as demonstrações até de Euclides, e tudo o que existe de demonstrado no universo. Parece-me que aqueles que, tão temerariamente, me acusam de declarar-me contra meu pensamento não têm muito escrúpulo de falar contra o seu, pois certamente não encontraram nada em meus escritos ou em minha conduta que pudesse ter-lhes inspirado essa ideia, como logo o provarei. Não têm o direito de ignorar que, desde que um homem fale seriamente, se deve supor que creia no que diz, a menos que suas ações ou discursos o desmintam, jamais e mesmo isso não bastará para assegurar que não acredita em nada. Podem, pois, gritar quanto desejem que, ao declarar-me contra as ciências, o fiz contra minhas convicções. A uma afirmação tão temerária, destituída tanto de comprovação quanto de verossimilhança, só disponho de uma resposta - é curta e enérgica, e rogo-lhes que a considerem como dada. Pretendem ainda estar minha conduta em contradição com meus princípios e não se deve duvidar de que recorrem a essa segunda instância para firmar a primeira, pois há muita gente que sabe encontrar provas onde não as há. Dirão, pois, que, compondo eu música e versos, será deselegante deprimir as belas-artes e que nas belas-artes, que afeto desprezar, existem inúmeras ocupações mais louváveis do que escrever comédias. Terei de responder também a esta acusação. Em primeiro lugar, mesmo que fosse admitida com todo o rigor, provaria que me conduzo mal, porém não que falo de boa fé. Se se pudesse extrair das ações dos homens a prova de seus sentimentos, ter-se-ia de concluir que o amor pela justiça está banido de todos os corações e que não existe um único cristão sobre a terra. Que me exibam homens que sempre agem consequentemente com suas máximas e eu aceitarei a condenação das minhas. Esse, o destino da humanidade - a razão mostra-nos o objetivo e as paixões desviam-nos dele. Se fosse, pois, verdade que eu não ajo segundo meus princípios, não se teria motivo para, somente com base nisso, acusarem-me de falar contra minhas convicções ou acusarem meus princípios de falsidade. Se eu quisesse, porém, aceitar a condenação nesse ponto, bastar-me-ia comparar os tempos para conciliar as coisas. Nem sempre tive a felicidade de pensar como agora. Seduzido, durante muito tempo, pelos preconceitos de meu século, considerava o estudo a única ocupação digna de um sábio e encarava as ciências com respeito e os sábios, com admiração. Não compreendia haver possibilidade de extraviar-se desenvolvendo continuamente demonstrações, ou de agir mal falando continuamente de sabedoria. Somente depois de ter visto as coisas de perto é que aprendi a pesar-lhes o valor e, embora nas minhas pesquisas sempre encontrasse satis eloquentiae, sapientiae parum, foram-me necessárias muitas reflexões, observações e muito tempo para destruir-se em mim a ilusão de toda essa inútil pompa científica. Não é de admirar que, durante esses tempos de preconceitos e de erros, nos quais tanto considerava a qualidade de autor, algumas vezes tenha aspirado a obtê-la eu mesmo. Foi então que compus os versos e a maior parte das obras que saíram de minha pena e, entre outras, esta comediazinha. Seria talvez duro censurarem-me hoje estes divertimentos de minha juventude e errariam pelo menos por me acusarem de, com isso, ter contraditado princípios que ainda não eram os meus. Há muito tempo já que não alimento a menor pretensão a tais coisas, e arriscar, nessas circunstâncias, a apresentá-las ao público, depois de ter por tanto tempo a prudência de guardá-las, quer dizer que desprezo igualmente tanto o louvor quanto a censura que possam despertar, pois não penso mais como autor delas. São filhos ilegítimos que se acaricia com prazer, mas corando por ser seu pai, a quem se dizem os últimos adeuses, e aos quais se manda fazerem fortuna sem inquietar-se muito com o que lhes acontecerá. Mas é raciocinar demais, baseando-se em suposições quiméricas. Se me acusam, sem razão, de cultivar as letras que desprezo, defendo-me sem necessidade, pois, mesmo que o fato fosse verdadeiro, não haveria nisso inconsequência alguma, e é o que resta provar. Seguirei, segundo meu hábito, o método simples e fácil que convém à verdade. Descreverei novamente a situação da questão, exporei mais uma vez minha convicção e esperarei que, segundo essa exposição, queiram mostrar- me no que minhas ações desmentem meu discurso. Meus adversários, por seu lado, não precisarão ficar sem responder, eles que possuem a maravilhosa arte de disputar pró e contra todos os assuntos. Começarão, como é de seu hábito, por estabelecer outra questão de acordo com sua fantasia; far-me-ão resolvê-la como lhes convier; para me atacarem mais comodamente, far-me-ão raciocinar, não a meu modo, mas ao seu; habilmente desviarão os olhos do leitor do objeto essencial para fixá-los à direita e à esquerda; combaterão um fantasma e pretenderão tê-lo vencido. Mas eu terei feito o que devo fazer e, portanto, começo. "A ciência não serve para nada e sempre causa tão somente o mal, pois é má de natureza. É tão inseparável do vício quanto a ignorância da virtude. Todos os povos letrados sempre foram corrompidos; todos os povos ignorantes sempre foram virtuosos; numa palavra, só existem vícios entre os sábios, e homens virtuosos, entre aqueles que nada sabem. Existe, pois, para nós, um meio de nos tornarmos pessoas de bem - será apressarmo-nos a proscrever a ciência e os sábios, queimar nossas bibliotecas, fechar nossas academias, colégios e universidades, e tornarmos a mergulhar em plena barbárie dos primeiros séculos." Eis o que meus adversários refutaram tão bem; ademais, nunca disse ou pensei uma única palavra de tudo isso, e não se poderia imaginar nada de mais oposto ao meu sistema do que essa absurda doutrina que tiveram a gentileza de atribuir-me. Aqui está, porém, o que eu disse e que, de modo algum, refutaram. Tratava-se de saber se o restabelecimento das ciências e das artes contribuíra para aprimorar os costumes. Mostrando, como o fiz, que nossos costumes não se aprimoraram de modo algum, a questão estava quase resolvida. Ela compreendia implicitamente, porém, outra, mais geral e mais importante, que diz respeito à influência que a cultura das ciências deve exercer, em qualquer época, sobre os costumes dos povos. Este o pomo, do qual o primeiro não passa de consequência, que me propunha examinar com cuidado. Comecei pelos fatos e mostrei que os costumes degeneraram entre todos os povos do mundo na medida em que se espalhou em seu seio o gosto pelo estudo e pelas letras. Isso não bastava, pois, sem poder negar que essas coisas sempre tivessem caminhado juntas, poder-se-ia negar que uma tivesse trazido a outra. Esforcei-me, em consequência, por mostrar essa ligação necessária. Demonstrei que a fonte de nossos erros, nesse ponto, resulta de confundirmos nossos conhecimentos vãos e enganadores com a inteligência soberana que, num só golpe de vista, discerne a verdade de todas as coisas. A ciência, tomada de modo abstrato, merece nossa inteira admiração. A louca ciência dos homens é digna unicamente de escárnio e de desprezo. O gosto pelas letras anuncia sempre, num povo, um começo de corrupção que rapidamente se acelera, porquanto tal gosto só pode nascer, no seio duma nação, de duas fontes más, que o estudo de sua parte entretém e mantém: a ociosidade e o desejo de distinguir-se. Num Estado bem constituído, cada cidadão tem seus deveres a desempenhar e esses cuidados muito importantes são-lhe demasiado caros para deixar-lhe o lazer de vaguear por especulações frívolas. Num Estado bem constituído, todos os cidadãos são tão iguais, que nenhum deles pode ser preferido aos demais como o mais sábio ou mesmo como o mais hábil, mas, no máximo, como o melhor. Esta última distinção pode, frequentemente, ser perigosa, dado que forma impostores e hipócritas. O gosto pelas letras, nascida do desejo de distinguir-se, produz, necessariamente, males de perigo infinitamente maior do que a utilidade do bem que causa, porque, afinal, torna aqueles que se entregam a ele muito pouco escrupulosos quanto aos meios de vencer. Os primeiros filósofos granjearam grande reputação ensinando aos homens a prática de seus deveres e os princípios da virtude. Mas, logo tornando-se comuns seus preceitos, tornou-se também necessário distinguir-se trilhando caminhos contrários. Essa lei foi a origem dos sistemas absurdos dos Leucipos, dos Diógenes, dos Pirros, dos Protágoras, dos Lucrécios. Do mesmo modo, os Hobbes, os Mandevilles e mil outros fingiram assim distinguir-se entre nós, e sua perigosa doutrina frutificou de tal modo, que, apesar de nos restarem verdadeiros filósofos fervorosos no lembrarem aos nossos corações as leis da humanidade e da virtude, espantamo-nos ao ver a que ponto nosso século raciocinante introduziu, nas suas máximas, o desprezo pelos deveres do homem e do cidadão. O gosto pelas letras, pela filosofia e pelas belas-artes enfraquece o amor pelos nossos primeiros deveres e pela verdadeira glória. Quando os talentos conseguem usurpar as honras devidas à virtude, cada qual quer ser um homem agradável e ninguém se preocupa com ser um homem de bem. Nasce daí ainda essa outra inconsequência que faz com que só se recompensem nos homens as qualidades que não dependem deles, pois nossos talentos nascem conosco e só as virtudes nos pertencem. Os primeiros e quase os únicos cuidados que se dispensam à nossa educação são os frutos e as sementes desses preconceitos ridículos. Atormentam nossa miserável juventude para ensinar-nos as letras; conhecemos todas as regras da gramática antes de ouvir falar dos deveres do homem; sabemos tudo o que se fez até o presente, antes que nos tenham dito uma palavra sobre o que devemos fazer, e, desde que usemos nosso palavrório, ninguém se preocupa com que saibamos agir ou pensar. Em uma palavra, só se deve ser sábio nas coisas que não nos servem para nada e nossos filhos são educados exatamente como os antigos atletas dos jogos públicos que, destinando seus robustos membros a um exercício inútil e supérfluo, sempre se abstinham de empregá-los em qualquer trabalho proveitoso. O gosto pelas letras, pela filosofia e pelas belas-artes desfibra os corpos e as almas. O trabalho de gabinete torna os homens delicados, enfraquece-lhes o temperamento e dificilmente a alma guarda vigor quando o corpo perdeu o seu. O estudo usa a máquina, esgota os espíritos, destrói a força, enfraquece a coragem, e apenas isso já demonstra que não é feito para nós, sendo assim que nos tornamos covardes e pusilânimes, incapazes de resistir tanto à pena quanto às paixões. Todos sabem como os habitantes das cidades são pouco capazes de suportarem os labores da guerra e não se ignora a reputação que têm os letrados quanto à bravura. Ora, com justiça, nada é mais suspeito do que a honra de um poltrão. Tantas reflexões sobre a fraqueza de nossa natureza só servem frequentemente para desviar-nos dos empreendimentos generosos. De tanto meditar sobre as misérias da humanidade, nossa imaginação sobrecarrega- nos com o seu peso e a previdência demasiada tira-nos a coragem ao tirar-nos a segurança. Inutilmente pretendemos munir-nos contra os acidentes imprevistos, se a ciência, buscando armar-nos com novas defesas contra os inconvenientes naturais, ainda mais impressionou-nos a fantasia com a grandeza e o peso desses inconvenientes de modo a ultrapassar todas as razões e sutilezas vãs que possuía para defender-nos deles. O gosto pela filosofia afrouxa todos os laços de estima e de afeto que ligam os homens à sociedade e talvez seja esse o mais perigoso dos males por ela concebidos. O encanto do estudo logo torna insípido qualquer outro pendor. Além disso, de tanto refletir sobre a humanidade, de tanto observar os homens, o filósofo aprende a apreciá- las de acordo com seu valor e é bem difícil consagrar afeição a quem se despreza. Em breve, resume em sua pessoa todo o interesse que os homens virtuosos compartilham com seus semelhantes. Seu desprezo pelos outros passa a favorecer seu orgulho, e seu amor-próprio aumenta na mesma proporção que sua indiferença pelo resto do universo. Tornam-se para ele palavras desprovidas de sentido, a família e a pátria; não é pai, cidadão ou homem - é filósofo. Ao mesmo tempo que a cultura das ciências, de certo modo, desafoga o coração do filósofo, sujeita num outro sentido o do letrado, e sempre com igual prejuízo para a virtude. Todo homem que se preocupa com os talentos deleitáveis quer agradar, ser admirado e quer ser admirado mais do que outro; os aplausos públicos pertencem somente a ele - diria que tudo faz para obtê-las, caso não fizesse mais ainda para deles privar seus concorrentes. Daí nascem, de um lado, os rebuscamentos do gosto e da polidez, a adulação vil e baixa, os cuidados sedutores, insidiosos, pueris, que, com o decorrer do tempo, aviltam a alma e corrompem o coração, e, por outro lado, os ciúmes, as rivalidades, os ódios entre artistas tão renomados, a calúnia pérfida, a fraude, a traição e tudo o que o vício possui de mais frouxo e de mais odioso. Se o filósofo despreza os homens, o artista logo se torna desprezível para eles, e ambos concorrem, afinal, para torná-las desprezíveis. Ainda há mais e esta é a mais impressionante e cruel de todas as verdades que propus à consideração dos sábios. Nossos escritores consideram tudo como se fosse uma obra-prima da política de nosso século - as ciências, as artes, o luxo, o comércio, as leis e os outros laços que, estreitando entre os homens os liames da sociedade pelo interesse pessoal, colocam todos numa dependência mútua, dão-lhes necessidades recíprocas e interesses comuns, e obrigam cada qual a concorrer para a felicidade dos outros a fim de poder alcançar a sua. Certamente essas ideias são belas e apresentadas com uma feição favorável, mas, ao examiná-las com atenção e sem parcialidade, nas vantagens que elas a princípio parecem apresentar, encontra-se muito a ser refutado. É, pois, coisa maravilhosa terem-se colocado os homens na impossibilidade de viver entre si sem se suspeitarem, suplantarem, enganarem, traírem e destruírem mutuamente. Importa, daqui por diante, abster-nos de um dia deixar de nos vermos como somos, pois, para dois homens cujos interesses concordam, talvez cem mil possuem-nos opostos, e não existe outro meio para vencer senão enganar ou perder toda essa gente. Eis a fonte funesta das violências, das traições, das perfídias e de todos os horrores que necessariamente exigem um estado de coisas no qual cada um, fingindo trabalhar para a fortuna ou a reputação dos demais, só procura elevar a sua acima e às expensas deles. Que ganhamos com isso? Muito palavrório, os ricos e os arrazoadores, isto é, inimigos da virtude e do bom senso. Em compensação, perdemos a inocência e os costumes. A multidão rasteja na miséria, todos são escravos do vício. Os crimes não cometidos já estão no fundo dos corações e, para serem executados, só lhes falta a segurança da impunidade. Estranha e funesta constituição, na qual as riquezas acumuladas sempre facilitam os meios para acumular outras maiores ainda; na qual é impossível, para aquele que nada possui, adquirir qualquer coisa; na qual o homem de bem não conta com qualquer meio de sair da miséria; na qual os mais desavergonhados são mais dignificados e na qual se tem necessariamente de renunciar à virtude para tornar-se um homem honesto! Sei que os declamadores já repetiram cem vezes tudo isso, mas o diziam declamando e eu o digo baseando-me em razões; eles se aperceberam do mal, e eu descubro as suas causas e saliento sobretudo uma coisa muito consoladora e útil ao mostrar que todos esses vícios não pertencem tanto ao homem, quanto ao homem mal governado. Essas são as verdades que desenvolvi e que me esforcei por comprovar nos vários trabalhos que publiquei sobre o assunto. Seguem-se as conclusões que delas tirei. A ciência de modo algum é feita para o homem em geral. Incessantemente, ele, ao procurá-la, se perde e, caso por vezes a alcance, quase sempre é em prejuízo próprio. O homem nasceu para agir e pensar, e não para refletir. A reflexão só serve para torná-lo infeliz, sem fazê-lo melhor ou mais sábio; faz com que lamente os bens passados e o impede de gozar do presente; apresenta-lhe o futuro feliz a fim de, pela imaginação, seduzi-lo e atormentá-lo pelos desejos, e apresenta-lhe também o futuro infeliz a fim de, antecipadamente, fazê-lo sentir. O estudo corrompe seus costumes, altera sua saúde, destrói o temperamento e frequentemente destrói sua razão; mesmo que lhe ensinasse alguma coisa, eu o consideraria muito mal recompensado. Concedo que existem alguns gênios sublimes que sabem penetrar através dos véus com os quais se cobre a verdade, algumas almas privilegiadas capazes de resistir à idiotice da vaidade, ao ciúme baixo e às outras paixões geradas no gosto pelas letras. Constitui a luz e a honra do gênero humano o pequeno número daqueles que têm a felicidade de reunir essas qualidades. Somente a eles convém, para o bem de todos, trabalhar no estudo e essa mesma exceção confirma a regra, pois, se todos os homens fossem Sócrates, a ciência não lhes seria então danosa, mas também não teriam nenhuma necessidade dela. Todo povo que possui costumes e que, consequentemente, respeita suas leis e não quer requintar- se em relação aos seus antigos usos deve cuidadosamente defender-se das ciências e, sobretudo, dos sábios, cujas máximas sentenciosas e dogmáticas logo ensinarão a desprezar seus usos e leis, o que uma nação nunca poderá fazer sem corromper-se. A menor mudança nos costumes, mesmo que em certos aspectos seja vantajosa, sempre resulta em prejuízo dos costumes. Porque os costumes são a moral do povo e, desde que este cesse de respeitá-los, só restam, como regra, suas paixões e, como freio, as leis que algumas vezes podem deter os maus, porém jamais torná- los bons. Aliás, quando a filosofia consegue ensinar o povo a desprezar seus costumes, logo encontra o segredo de enganar as leis. Digo, pois, que os costumes de um povo são como a honra de um homem: é um tesouro que se tem de conservar, mas que nunca mais se recupera quando se perde. Mas, quando um povo já se corrompeu até certo ponto, quer as ciências tenham, quer não, contribuído para tanto, será preciso bani-las ou se preservar delas para torná-la melhor ou impedi-la de tornar-se ainda pior? Esta é outra questão, em relação à qual me declarei positivamente pela negativa. Pois, em primeiro lugar, uma vez que um povo corrupto nunca mais volta à virtude, não se trata mais de tornar bons aqueles que não o são, mas de conservar assim aqueles que têm a felicidade de sê-lo. Em segundo lugar, as mesmas causas que corromperam os povos servem algumas vezes para prevenir uma corrupção ainda maior; assim, aquele que estragou o seu temperamento com um uso imprudente de remédios, vê-se forçado a recorrer ainda aos médicos para conservar-se com vida. Desse modo, as artes e as ciências, depois de terem feito os vícios brotarem, são necessárias para impedi-los de se tornarem crimes, cobrindo-os de um verniz que não permite que o veneno se evapore tão livremente. Destroem a virtude, mas preservam o seu simulacro público, que sempre é uma bela coisa; em seu lugar introduzem a polidez e a decência, e substituem o temor de parecer mau pelo de parecer ridículo. Minha opinião é, pois, e já o afirmei mais de uma vez, deixar subsistir e mesmo manter as academias, os colégios, as universidades, as bibliotecas, os espetáculos e todas as outras distrações que podem de certo modo divertir a maldade dos homens e impedi-los de ocupar a ociosidade em coisas mais perigosas, pois, numa região na qual não se fizesse mais questão nem de pessoas de bem nem de bons costumes, seria ainda melhor viver com velhacos do que com salteadores. Pergunto, agora, onde está a contradição em cultivar eu próprio os gostos cujo progresso aprovo. Não se trata mais de levar os povos a agirem bem, basta distraí-los de fazerem o mal. Impõe-se ocupá-los com bagatelas para desviá-los das más ações; em lugar de pregar-lhes, deve-se distraí-los. Se meus escritos edificaram o pequeno grupo dos bons, eu lhes fiz todo o bem que dependia de mim e será talvez servi-los ainda mais utilmente oferecer aos outros objetos de distração que os impeçam de pensar em si. Muito me agradaria ter sempre uma peça para ser vaiada, se a esse preço pudesse, durante duas horas, conter os maus desígnios de um único espectador, salvar a honra da esposa ou da filha de seu amigo, o segredo de seu confidente ou a fortuna de seu credor. Quando não existem mais costumes, tem-se de pensar unicamente na polícia, e sabe-se muito bem que a música e os espetáculos constituem um de seus mais importantes objetivos. Caso exista alguma dúvida sobre minha justificação - arrisco-me a dizê-lo tão ousadamente -, não será nem em relação ao meu público, nem a meus adversários, mas somente a mim mesmo, pois somente observando a mim mesmo é que posso julgar se devo incluir-me naquele pequeno grupo e se minha alma está em situação de sustentar o fardo das atividades literárias. Mais de uma vez tive consciência do perigo delas, mais de uma vez abandonei-as no firme propósito de nunca mais voltar atrás; renunciando a seu encanto sedutor, sacrifiquei à paz de meu coração os únicos prazeres que ainda poderiam satisfazer-me. Se, nas aflições que me oprimem, se, no fim de uma carreira penosa e dolorosa, ousei retomá-las ainda por alguns momentos, a fim de encantar meus males, creio não ter posto nisso demasiado interesse e pretensão para, a tal respeito, merecer as justas reprimendas que faço aos literatos. Para completar o conhecimento de mim mesmo, faltava- me ainda uma prova e a fiz sem titubear. Depois de ter reconhecido a situação de minha alma nos sucessos literários, faltava-me examiná-la na infelicidade. Sei, agora, o que pensar disso e posso deixar o pior para o público. Minha peça teve a sorte que merecia e que eu previra, mas, no quase desgosto que me causou, saí da representação muito mais contente comigo mesmo e com muito mais motivo do que se ela obtivera êxito. Aconselho, pois, àqueles que com tanto ardor procuram reprimendas para fazer-me, estudarem meus princípios e observarem melhor minha conduta antes de acusarem-me de contradição e inconsequência. Se, algum dia, perceberem que começo a ambicionar os sufrágios do público, que me envaideço de ter feito lindas canções, que me envergonho de ter escrito más comédias, que procuro deslustrar a glória de meus concorrentes, que afeto falar mal dos grandes homens de meu - século a fim de, rebaixando-os ao meu nível, conseguir elevar-me ao deles, que aspiro a lugares da academia, que tenha feito a corte às senhoras que dão o tom, que incenso a idiotice dos grandes, que, deixando de querer viver do trabalho de minhas mãos, lanço na ignomínia o ofício que escolhi e faço esforços no sentido de conseguir fortuna, se, numa palavra, notarem que o amor da reputação me faz esquecer o da virtude, peço-lhes que me advirtam disso, publicamente, e eu prometo deitar, no mesmo instante, fogo aos meus escritos e aos meus livros, e concordar com todos os erros que lhes aprouver censurar-me. Esperando, escreverei livros, comporei versos e música, caso tenha para isso talento, tempo, força e vontade, e continuarei a dizer, com toda a franqueza, todo o mal que penso das letras e daqueles que as cultivam, tendo certeza de não valer menos por isso. É verdade que um dia poderão dizer: "Esse inimigo tão declarado das ciências e das artes, todavia, fez e publicou peças de teatro", e tal discurso constituirá, confesso, uma sátira muito amarga, não a mim, mas a meu século. Table of Contents Apresentação Advertência Prefácio Discurso Primeira Parte Segunda Parte Respostas dadas por Jean-Jacques Rousseau às Objeções Dirigidas a seu Discurso Carta ao Sr. Padre Raynal Carta de J.-J. Rousseau ao Sr. Grimm Resposta de J.-J. Rousseau ao Rei da Polônia, Duque da Lorena Última Resposta ao Sr. Bordes Carta de Jean-Jacques Rousseau Prefácio de Narciso ou o Amante se Si Mesmo
Instrumentos Empregados no Estado Democrático de Direito para persuadir o cidadão a respeito de sua responsabilidade tributária: coerção, incentivo e educação