Educação e Realidade Amazonica
Educação e Realidade Amazonica
Educação e Realidade Amazonica
www.editoranavegando.com
[email protected]
Uberlândia – MG,
Brasil
ISBN: 978-65-86678-45-1
10.29388/978-65-86678-45-1-0
Vários Autores
CDD – 370
CDU – 37
Educação 370
Navegando Publicações Editores
Carlos Lucena – UFU, Brasil
José Claudinei Lombardi – Unicamp, Brasil
José Carlos de Souza Araújo – Uniube/UFU, Brasil
www.editoranavegando.com
[email protected]
Uberlândia – MG
Brasil
Prefácio 13
Carlos Lucena
Apresentação 15
Organizadores
Eixo I - Questões agrárias, territoriais e do meio ambiente re- 25
cursos minerais e hídricos. Alterações climáticas
I - Ensino de ciências no contexto amazônico: refletindo sobre a 27
educação em ciências
Andria Raiane Coelho Campos – Ednilson Sergio Ramalho de Souza
II - A contribuição da educação jurídica popular para a proteção dos 41
territórios na Amazônia Paraense: o caso juruti velho!
Lincon Sousa Aguiar – Tania Suely Azevedo Brasileiro
III - Mudanças climáticas, biodiversidade e educação na amazônia 71
Ivonely de Brito Pereira – André Dioney Fonseca – Noélia de Sá Rêgo –
Solange Helena Ximenes-Rocha
IV - Conceitualizações de território amazônico e um retrato histórico 91
das questões agrárias no Brasil
Julliany Xavier de Sousa – Simone Kelly Rabelo Martins
Eixo II - O avanço do agronegócio e os impactos do “desenvol- 103
vimento” diante das reflexões sobre sustentabilidade
V - Entre o rio e a floresta: o olhar de dois cablocos sobre a amazô- 105
nia brasileira
Daniel Lima Fernandes – Raimundo Clecionaldo Vasconcelos Neves –
Anselmo Alencar Colares
VI - Agronegócio, desenvolvimento e sustentabilidade: reflexões so- 139
bre a formação dos sujeitos na Amazônia Brasileira
Gisele Silva Gomes – Luclécia Patrocínio de Jesus
̃ sociais, inclusão e di-
Eixo III - Diversidade cultural: questoes 153
reitos humanos
VII - Diversidade cultural na amazônia: desafios e perspectivas 155
Lucas de Vasconcelos Soares – Maria Lília Imbiriba Sousa Colares –
Karolina Carvalho do Amarante – Gilberto César Lopes Rodrigues
VIII - Diversidade cultural e a corporeidade no contexto amazônico 181
Andressa Karoline Santana Teixeira – Franciellen Tapajós Ribeiro –
Hergos Ritor Fróes de Couto
IX - Educação em trânsito: os desafios para inclusão de imigrantes 207
indígenas na rede de ensino
Simone Santana Ferreira – Alan Augusto Ribeiro
X - Panorama da educação integral em tempo integral: estudo do 233
PME e do PNME no contexto municipal
Thaiana Netto Fonseca Baptista – Maria Lília Imbiriba Sousa Colares
XI - A Amazônia (r)existe: protagonismo, luta por direitos humanos 261
261 e contributos da osc seara para a inclusão social
Bárbara Tereza Costa do Nascimento – Cleilma Sousa Rodrigues Riker –
Narelly Tavares Rodrigues e Melo
XII - Pensar a diversidade amazônica no ensino de história 287
Duci Alves de Matos – Anselmo Alencar Colares
XIII - O plurilinguismo e o caso dos índios warao em Santarém/PA 307
Daniela Figueira Alano – Ediene Pena Ferreira
XIV - Educação, realidade amazônica e formação do professor: o 327
particular e o universal
Leane Lima Oliveira
XV - Mestrado em educação escolar indígena: experiências na ama- 343
zônia paraense
Jecilaine Ferreira Silva – George Edson Santos Sardinha –
Hélia Maria Gama da Silva – Hellen Regina Martins Rocha –
Gilberto César Lopes Rodrigues
PREFÁCIO*
13
Afirmações que a terra é plana e não redonda, que a biomedicina é irrele-
vante no combate ao Covid-19, entre outras, prosperam as redes sociais,
não faltando tolos para aclamá-las.
O livro que aqui se apresenta nega os princípios apresentados an-
teriormente. Tendo como referência a centralidade do cientificismo e seu
potencial investigativo da sociedade, realiza uma minuciosa investigação
sobre fenômenos inerentes à Amazônia.
Para esse fim, se divide em três eixos investigativos que se com-
plementam entre si. O primeiro eixo faz referência às questões agrarias, ter-
ritoriais e do meio ambiente, recursos minerais e hídricos, dando ênfase às questões cli-
máticas. O segundo eixo debate o avanço do agronegócio e os impactos do “desen-
volvimento” diante das reflexões sobre sustentabilidade. E, por último, o terceiro
eixo recupera a diversidade cultural, questões sociais, inclusão e direitos humanos.
O resultado das pesquisas aqui apresentados permitem a proble-
matização de questões peculiares inerentes à Amazônia, demonstrando
suas características, particularidades e como elas se inserem em um movi-
mento de totalidade expressa pelo modo de produção capitalista. É com
base nestas afirmações que os convido à leitura deste livro.
Carlos Lucena
Universidade Federal de Uberlândia
CNPQ
14
APRESENTAÇÃO*
*
DOI – 10.29388/978-65-86678-45-1-0-f.15-24
15
Imbiriba Colares, tratando do tema Amazônia: o universal e o singular) e
7 capítulos de autoria de mestrandos do PPGE/UFOPA. Em 2017 foi
lançado o segundo volume, com uma apresentação trazendo a síntese
dos 14 capítulos. O terceiro número, em 2018, no qual foram publicados
12 capítulos e em 2019, o volume 4, foi constituído por 13 capítulos,
sempre oriundos dos aprendizados obtidos no decorrer do desenvolvi-
mento da disciplina, com as leituras indicadas, os debates realizados em
sala de aula e outras estratégias formativas nas quais a contribuição dos
docentes orientadores passou a ser cada vez mais relevante, de tal manei-
ra que passaram a ser coautores dos capítulos.
Este quinto número – em 2020 - mantém os propósitos iniciais e
incorpora contribuições das edições anteriores, em um processo de per-
manente e significativa melhoria nas abordagens, como fruto dos esfor-
ços coletivos para a compreensão da realidade educacional da Amazônia.
Os capítulos expressam o posicionamento dos mestrandos após cursar o
primeiro semestre do curso, no qual são levados a realizar leituras e apri-
morar o projeto de pesquisa. E neste movimento, refletir sobre as expec-
tativas quanto as contribuições de um programa de pós-graduação em
educação no interior da Amazônia, para a modificação de uma realidade
ainda caótica, atestada pelos indicadores de qualidade que revelam tam-
bém as enormes disparidades regionais.
Acreditamos que a leitura, divulgação e socialização de Educação e
Realidade Amazônica será importante para todos os que estudam, pesqui-
sam e atuam na educação, em especial na esfera pública, uma vez que a
reflexão, o debate em torno das concepções e as práticas para a constru-
ção de uma educação pública e de qualidade social são essenciais para a
transformação da realidade educacional e social em nosso país, sobretu-
do no atual contexto de retração dos direitos sociais onde a educação
tem sido drasticamente afetada. Para melhor apresentação dos textos or-
ganizamos esta edição do e-book em três eixos. O primeiro eixo deno-
minado QUESTÕES AGRARIAS, TERRITORIAIS E DO MEIO AM-
BIENTE, RECURSOS MINERAIS E HÍDRICOS. ALTERAÇÕES
CLIMÁTICAS é composto por quatro capítulos.
Andria Raiane Coelho Campos e Ednilson Sergio Ramalho de
Souza no texto ENSINO DE CIÊNCIAS NO CONTEXTO AMA-
16
ZÔNICO: REFLETINDO SOBRE A EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS,
abordam aspectos para refletir sobre o ensino de ciências, a partir do
processo de formação e atuação docente, diante dos desafios para pensar
a educação no contexto amazônica diante da diversidade, das questões
ambientais e dos modelos de desenvolvimento da região, uma vez que, é
fundamental para quem busca conhecer, interpretar e intervir na realidade, a partir
dos processos educacionais.
Lincon Sousa Aguiar e Tania Suely Azevedo Brasileiro, no Capí-
tulo “A CONTRIBUIÇÃO DA EDUCAÇÃO JURÍDICA POPULAR
PARA A PROTEÇÃO DOS TERRITÓRIOS NA AMAZÔNIA PA-
RAENSE: O CASO JURUTI VELHO!” apresenta a contribuição do
Curso de Formação de Lideranças Comunitárias O Direito Achado na
Beira do Rio para a proteção do território do Projeto de Assentamento
Agroextrativista Juruti Velho aborda os fundamentos da Educação Ju-
rídica Popular e sua relação com as teorias críticas do Direito, da Educa-
ção Popular e dos pressupostos metodológicos freireanos.
MUDANÇAS CLIMÁTICAS, BIODIVERSIDADE E EDU-
CAÇÃO NA AMAZÔNIA, com autoria de Ivonely de Brito Pereira,
André Dioney Fonseca, Noélia de Sá Rêgo e Solange Helena Ximenes-
Rocha, traz reflexões sobre as mudanças climáticas aceleradas, suas im-
plicações sobre a biodiversidade e interface com a educação na Amazô-
nia. Destaca que a aceleração das alterações do clima vivenciada atual-
mente apresenta fortes evidências da intervenção humana, levando a co-
munidade internacional a estabelecer mecanismos de controle ambiental.
No campo educacional enfatiza a necessidade de problematizar e pensar
acerca da realidade amazônica, o que requer a construção de políticas
educacionais com currículos que considerem a diversidade e as singulari-
dades da região, na perspectiva da totalidade. O capítulo evidencia, ainda
a necessidade de uma política de formação de professores que problema-
tize e reflita sobre as grandes questões da Amazônia.
CONCEITUALIZAÇÕES DE TERRITÓRIO AMAZÔNICO
E UM RETRATO HISTÓRICO DAS QUESTÕES AGRÁRIAS NO
BRASIL, é a contribuição de Julliany Xavier de Sousa e Simone Kelly
Rabelo Martins. Apresentam a concepção de território não somente
como um local de disputa e domínio sobre os recursos naturais, mas
17
como um espaço coletivo, organizado socialmente que se modela a partir
das práticas materiais e simbólicas do povo que habita a Amazônia. É
dado ênfase ao território amazônico como um espaço de diversidade cul-
tural destacando as peculiaridades dos povos que nele vivem, dentre os
quais estão: indígenas, quilombolas, ribeirinhos, habitantes do campo e
da cidade. Dentre os subtemas elencados destacam-se o as questões agrá-
rias no Brasil e os movimentos sociais engajados na luta pelo direito a
terra.
O segundo eixo - O AVANÇO DO AGRONEGÓCIO E OS
IMPACTOS DO “DESENVOLVIMENTO” DIANTE DAS REFLE-
XÕES SOBRE SUSTENTABILIDADE, constitui-se por 2 capítulos.
Daniel Lima Fernandes, Raimundo Clecionaldo Vasconcelos Ne-
ves e Anselmo Alencar Colares no texto, ENTRE O RIO E A FLORES-
TA: O OLHAR DE DOIS CABLOCOS SOBRE A AMAZÔNIA BRA-
SILEIRA, explicitam que no Brasil, a partir da década de 1930 com a
criação do IBGE se inicia o processo de criação das divisões regionais do
espaço geográfico brasileiro, e nos anos de 1950 ocorre a aprovação do
que seria considerada a primeira política de desenvolvimento regional do
Brasil, em particular da Amazônia. Tal política se estabelece com a cria-
ção da SPVEA, órgão responsável por sua execução. Nos anos 1960 sur-
ge a SUDAM, órgão federal que ficará responsável pela política de de-
senvolvimento regional na Amazônia, sendo extinta no Governo Fer-
nando Henrique Cardoso e recriada no Governo Lula em 2007. Vale res-
saltar que nos anos 2000 a relativa estabilidade macroeconômica, aliada à
emergência do paradigma do desenvolvimento endógeno (relacionado à
valorização do local) impulsionaram o ressurgimento da temática do de-
senvolvimento regional/local. Este artigo, de caráter descritivo, traz uma
revisão bibliográfica das principais abordagens teóricas sobre os concei-
tos de região, desenvolvimento regional, centrando-se na regionalização
da Amazônia e os modelos de desenvolvimento proposto pelo governo
federal para essa região à luz do modelo de desenvolvimento endógeno e
exógeno.
AGRONEGÓCIO, DESENVOLVIMENTO E SUSTENTABI-
LIDADE: REFLEXÕES SOBRE A FORMAÇÃO DOS SUJEITOS
NA AMAZÔNIA BRASILEIRA, com autoria de Gisele Silva Gomes e
18
Luclécia Patricínio de Jesus, discute os problemas socioambientais pre-
sentes na Amazônia brasileira, devido ao modelo de desenvolvimento
econômico executado. Problematiza os processos de formação dos sujei-
tos sociais na atual conjuntura buscando refletir sobre as possibilidades
de ampliação do desenvolvimento sustentável da região como saída para
a preservação do meio ambiente, garantindo uma vida livre e com condi-
ções plenas de subsistência a geração presente e futura.
O terceiro eixo DIVERSIDADE CULTURAL. QUESTÕES
SOCIAIS, INCLUSÃO E DIREITOS HUMANOS, está formado por 9
capítulos. No texto, DIVERSIDADE CULTURAL NA AMAZÔNIA:
DESAFIOS E PERSPECTIVAS, Lucas de Vasconcelos Soares, Maria
Lília Imbiriba Sousa Colares, Karolina Carvalho do Amarante e Gilberto
César Lopes Rodrigues, analisam a Diversidade Cultural na região ama-
zônica do Brasil, identificando, a partir do entendimento teórico-concei-
tual e político-educacional, práticas e desafios presentes nessa realidade.
No aspecto educacional, a existência de um currículo pré-definido, de
âmbito externo, acaba por sucumbir os conhecimentos locais, excluindo
a diversidade cultural de um lugar central no processo ensino-aprendiza-
gem, na formação docente e nos materiais didático-pedagógicos. Apon-
tam-se os desafios sobrepostos a questão da diversidade cultural na regi-
ão: condição histórica de inferioridade, ideia de não pertencimento dos
sujeitos amazônicos e ausência de subsídios para uma vivência efetiva
das diversidades. Por outro lado, propõe as três fases – apropriação, in-
serção e contraposição – em prol de um ajustamento e organização cole-
tiva com vista à transformação social na Amazônia.
DIVERSIDADE CULTURAL E A CORPOREIDADE NO
CONTEXTO AMAZÔNICO, é o capítulo escrito por Andressa Karoli-
ne Santana Teixeira, Franciellen Tapajós Ribeiro e Hergos Ritor Fróes de
Couto. Especificam que diversidade cultural amazônica tem como prin-
cipal caraterística a multidiversidade étnica e cultural que se desenvolveu
ao longo dos séculos de convívio de diversas culturas: indígenas, africa-
nas, nordestinas, europeias, dentre outras. O artigo teve como objetivo
compreender as relações que se estabelecem entre a diversidade cultural
e a abordagem da corporeidade no contexto amazônico. Apresentam
uma visão de homem amazônico em suas múltiplas dimensões, ressaltan-
19
do que ele é corpo e estabelece relações consigo mesmo, com o outro e
o mundo a sua volta, revelando assim sua identidade e subjetividade, re-
fletindo e criando cultura. Considera-se que os encadeamentos entre a di-
versidade cultural e a abordagem da corporeidade são inerentes ao ser
humano, representando uma importante discussão que tem ocorrido aos
poucos no contexto educacional amazônico levando-nos a refletir de que
maneira os problemas e desafios nos incomodam quanto educadores
para que tal conexão seja defendida, reafirmada e desenvolvida por nós e
pelas instituições escolares.
No texto, EDUCAÇÃO EM TRÂNSITO: OS DESAFIOS
PARA INCLUSÃO DE IMIGRANTES INDÍGENAS NA REDE DE
ENSINO, Simone Santana Ferreira e Alan Augusto Ribeiro, descreve a
situação migratória vivida por indígenas venezuelanos Warao no municí-
pio de Santarém, a partir de uma análise dos instrumentos legais interna-
cionais e nacionais de apoio e refúgio, destacando as políticas educacio-
nais nacionais e internacionais para refugiados e as dinâmicas culturais
envolvidas nestes fluxos de deslocamento. A pesquisa foi desenvolvida a
partir de discussões bibliográficas e análises documentais sobre migração,
direito à educação, cultura e etnicidade e inclusão de um grupo específico
no sistema de ensino regular brasileiro. A educação escolar é o cenário
em torno do qual se procura compreender experiências sociais que re-
querem políticas educacionais que atendam demandas culturais, necessi-
dades materiais e distintas subjetividades.
PANORAMA DA EDUCAÇÃO INTEGRAL EM TEMPO
INTEGRAL: ESTUDO DO PME E DO PNME NO CONTEXTO
MUNICIPAL, contribuição de Thaiana Netto Fonseca Baptista e Maria
Lília Imbiriba Sousa Colares, traz o panorama de como a educação inte-
gral em tempo integral vem sendo implementada no município de Santa-
rém/PA, a partir de pesquisa bibliográfica, análise de documentos ofici-
ais - leis, pareceres, decretos e resoluções - e de dados quantitativos. O
recorte temporal compreende o período de 2009 a 2019, tendo como
base a implementação dos Programas Mais Educação – PME - e Novo
Mais Educação – PNME. Esses dois programas configuram as principais
políticas educacionais indutoras de educação em tempo integral no muni-
cípio.
20
Em A AMAZÔNIA (R)EXISTE: PROTAGONISMO, LUTA
POR DIREITOS HUMANOS E CONTRIBUTOS DA OSC SEARA
PARA A INCLUSÃO SOCIAL, Bárbara Tereza Costa do Nascimento,
Cleilma Sousa Rodrigues Riker e Narelly Tavares Rodrigues e Melo, des-
tacam a Amazônia como uma região rica em recursos naturais e atrativa
pela sua biodiversidade, multiculturalidade e heterogeneidade cultural, bi-
ológica e linguística, marcada pela exploração por parte dos grandes inte-
resses, que provocam diversos conflitos e desastres sociais e ambientais.
A partir destes desafios e ao pesquisar sobre questões sociais, direitos hu-
manos e inclusão na Amazônia, nos deparamos com inúmeros proble-
mas, que requerem respostas. Assim, de maneira panorâmica, num pri-
meiro aspecto, aborda problemas relacionados à complexidade das ques-
tões sociais, que ajudam a conhecer a realidade amazônica, em seguida
discorre sobre a relevância dos direitos humanos e, por fim, destaca o
papel das organizações da sociedade civil (OSC), como exemplo de in-
clusão social no contexto amazônico. Outrossim, este artigo, não apre-
senta soluções para os problemas da Amazônia, antes aponta alguns ca-
minhos e exemplos possíveis, e ao mesmo tempo faz reflexões com vis-
tas à mudança a partir do processo educacional e da prática de inclusão.
PENSAR A DIVERSIDADE AMAZÔNICA NO ENSINO
DE HISTÓRIA, de autoria de Duci Alves Matos e Anselmo Alencar Co-
lares resulta das reflexões em torno dos conceitos de Educação, Realida-
de e Amazônia em suas interconexões. Dentre as várias possibilidades re-
flexivas, nos detivemos sobre como a educação e mais especificamente o
ensino de história enquanto disciplina ministrada em sala de aula, pode
contribuir na construção de um pensamento crítico acerca da realidade
Amazônica, tendo em vista seus processos de formação e ocupação, bem
como o olhar voltado para a diversidade que a compõe.
Em O PLURILINGUISMO E O CASO DOS ÍNDIOS WARAO
EM SANTARÉM/PA, Daniela Figueira Alano e Ediene Pena Ferreira
apresentam o mapeamento da realidade sociolinguística de escolas públi-
cas da cidade de Santarém, discutem os conceitos como monolinguismo,
multilinguismo e plurilinguismo. Criticam o mito do monolinguismo que
defende a ideia de que ser brasileiro é falar português, desconsiderando a
realidade pluricultural e, por isso, plurilíngue do Brasil. Constatam que
21
faltam políticas linguísticas no Brasil relacionada a realidade plurilíngue
em escolas públicas de Santarém.
No texto, EDUCAÇÃO, REALIDADE AMAZÔNICA E
FORMAÇÃO DO PROFESSOR: O PARTICULAR E O UNIVER-
SAL, Leane Lima Oliveira faz analisa duas concepções de educação: uma
ingênua e neutra e outra crítica e transformadora, demonstrando a im-
portância do professor definir que concepção de educação deve subsidiar
sua prática pedagógica. Aborda, ainda, características da realidade Ama-
zônica e a necessidade de uma educação que relacione o particular e o
universal, em uma dimensão dialética, visando à formação humana e
emancipadora, fundamentada no conhecimento. Apresenta discussão so-
bre formação do professor e suas implicações para a construção de uma
educação para Amazônia que considere sua diversidade cultural, ambien-
tal e social, entendendo a educação, como o ato de produzir, assumindo
o ponto de partida e o ponto de chegada da prática educativa é a prática
social e o conhecimento na dimensão transformadora e emancipadora.
Fechamos esse volume com o texto MESTRADO EM EDUCA-
ÇÃO ESCOLAR INDÍGENA: EXPERIÊNCIAS NA AMAZÔNIA
PARAENSE, nele há a contribuição de um conjunto de autores, que in-
tegram o Mestrado Profissional em Educação Escolar Indígena ofertado
pela UEPA em colaboração com a Ufopa, Jecilaine Ferreira Silva, George
Edson Santos Sardinha, Hélia Maria Gama da Silva, Hellen Regina Mar-
tins Rocha e Gilberto César Lopes Rodrigues apresentam os relatos de
quatro educadores indígenas sobre suas experiências em realizar mestra-
do em educação escolar indígena na Amazônia Paraense e, ainda, em
tempos de pandemia. O texto apresenta brevemente o Programa de Pós-
graduação em Educação Escolar Indígena e, em seguida, os relatos das
experiências. A coleta de dados envolveu reuniões virtuais via rede de
computadores, uma videoconferência transmitida pelo Youtube e o relató-
rio escrito das experiências individuais, organizado pelo Professor Dr.
Gilberto César Lopes Rodrigues.
As reflexões aqui reunidas, com exceção do capítulo final, foram
enriquecidas pelos debates durante as aulas do componente curricular
educação e realidade amazônica e, desta forma, representam um momen-
to do percurso formativo de novos mestres. Os textos aqui expostos re-
22
presentam o entendimento do coletivo de autores e autoras quanto a im-
portância e necessidade de compartilhar os aprendizados como forma de
contribuição efetiva para (re)pensar a Amazônia em suas múltiplas deter-
minações.
Os Organizadores
23
EIXO I
QUESTÕES AGRARIAS, TERRITORIAIS E DO MEIO
AMBIENTE RECURSOS MINERAIS E HÍDRICOS. ALTERAÇÕES
CLIMÁTICAS
25
I
ENSINO DE CIÊNCIAS NO CONTEXTO AMAZÔNICO:
REFLETINDO SOBRE A EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS*
Introdução
*
DOI - 10.29388/978-65-86678-45-1-0-f.27-40
1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação – Universidade Federal do Oeste do
Pará – UFOPA. Linha de Pesquisa: Conhecimento e formação na educação escolar, sob a orien-
tação do Prof. Dr. Ednilson Sergio Ramalho de Souza. E-mail: [email protected].
2
Doutor em Educação em Ciências e Matemática pela Universidade Federal do Mato Grosso/
Rede Amazônica de Educação em Ciências e Matemática (UFMT/REAMEC). Docente do Pro-
grama de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Oeste do Pará–UFOPA. Lí-
der do GEPEMM (Grupo de Estudos e Pesquisas Educacionais em Modelagem Matemática/
UFOPA). E-mail: [email protected].
27
mento da Ciência- para que através desses possa compreender a realida-
de em está inserido.
A educação é um fenômeno muito amplo e próprio do ser huma-
no que segundo Dermeval Saviani, diz respeito a formação de sujeitos
históricos, críticos e livres. Não finda no processo ensino-aprendizagem
ou na mera transmissão de conteúdo (SAVIANI, 2011). Pensar em Edu-
cação, principalmente na região amazônica, requer compreender todas as
suas particularidades diante da sua extensão territorial, povos e culturas,
suas histórias e identidade próprias.
A Ciência pode ser considerada como uma linguagem construída
por homens e mulheres para explicar o nosso mundo natural
(CHALMERS, 1993). Para que seja integrada na educação básica é ne-
cessário trabalhar a formação do professor de ciências com objetivo de
lhes manter atualizados das temáticas ciências/tecnologias. Facilitando as
práticas na didática dentro da sala de aula e como parte do currículo es-
colar.
O ensino das Ciências na educação básica tem o compromisso
com a educação integral do educando, para que esse possa compreender
e interpretar o mundo, permitindo se perceber como parte (BRASIL,
2011). As ciências da natureza devem desenvolver o pensamento crítico,
e a habilidade de resolver problemas. Porém, nas ciências vários concei-
tos requerem abstração, e tornam-se difíceis para os alunos, pois além de
abstratos, não são intuitivos. O que acarreta dificuldades para fazer cone-
xões entre os fenômenos físicos com o cotidiano.
Sá (2009) coloca que o nosso modo de pensar sobre a escola e no
currículo de ciências são ecos da história impregnada em nós. Nossas es-
colhas decorrem das demandas da sociedade contemporânea, no sentido
de compreender de que modo tais conhecimentos estão presentes na
vida dos indivíduos.
No que se refere o papel formativo do professor que trabalhará
com a disciplina de Ciências na educação escolar, são muitos os desafios,
sobretudo, diante da diversidade amazônica, aonde as discussões educa-
cionais relacionadas a um ensino que contextualize a realidade e suas di-
nâmicas de aprendizagens ainda nos convida a repensar o modo como
estamos abordando o ensino de ciências na região amazônica brasileira.
28
Este texto pretende contribuir de forma reflexiva com as discus-
sões acadêmicas sobre a educação em ciências e formação de professores
na articulação da teoria e prática para ensinar ciências na região amazôni-
ca diante da necessidade de uma educação específica, que atendam as
suas singularidades. Para isso, buscou-se fundamentar o texto a partir de
pesquisa bibliográfica, estudos e reflexões teóricas, bem como, em deba-
tes realizados no âmbito da disciplina “Educação e Realidade Amazôni-
ca”.
29
Os Parâmetros Curriculares Nacionais de Ciências Naturais
(BRASIL, 2001, p. 32) acreditam que a história das Ciências pode contri-
buir nas relações entre a sociedade humana e a natureza, e essa dimensão
histórica pode ser introduzida pelos professores em sala de aula. É im-
prescindível que o ensino de ciências, na educação básica, aconteça den-
tro de atividades que os desafiem e permitam a vivência de processos
construtivos.
A educação é uma prática social de formação de pessoas, na qual
constitui e é constituída de relações sociais, em um contexto contraditó-
rio e dialético, podendo manter ou transformar uma realidade
(OLIVEIRA, 2019), na qual a realidade é dada materialmente, logo, o in-
divíduo tem que produzir para sua existência. A educação escolar é uma
política pública proposta à constituição da cidadania, aonde a escola é o
espaço privilegiado (lócus) de aprendizagem, formação, ensino/trabalho.
Carvalho e Gil Pérez (2003), colocam que os professores de
Ciências, na condição de educadores, precisam possuir conhecimento
num sentido mais amplo. Entendendo-se que a aprendizagem e saberes
da docência têm como fundamento o saber prático. Assim, a prática do
professor passa a ser um conjunto de capacidades que permitem resolver
os problemas reais do espaço escolar (CURADO SILVA, 2007).
Mas, o que seria a formação docente? Segundo Moreira (2007, p.
109):
30
tendem resistir a assumir um perfil reflexivo sobre a sua prática, pois é
mais fácil deixar como está. Assim:
31
Considerando que a qualidade e a profundidade no domínio dos
saberes não são garantidas pela formação acadêmica inicial, mas adquiri-
da com a prática docente em sala de aula, compreendemos que na forma-
ção contínua está a possibilidade de apropriação de novos conhecimen-
tos e habilidades.
Silva e Sá (2016, p. 46) assinalam que a formação docente é pou-
co satisfatória, e em “regiões como a Amazônia, marcada pela diversida-
de socioespacial, a formação e o processo de ensino-aprendizagem ainda
acontecem de forma precária”.
A compreensão do contexto amazônico nos grandes centros ur-
banos nacionais, ainda consideram, apenas contextos extremos, apresen-
tando como uma região, ou de uma natureza intocada, repleta de fragili-
dades, ou uma região em processo de desmatamento, devasta e urbaniza-
da (COLARES, 2011). Em um momento inicial, essa compreensão tem
se distanciado da perspectiva de uma Amazônia isolada de tudo e todos.
Colares e Colares (2019), ressaltam a necessidade de se buscar o reconhe-
cimento dessa diferença, pois é fundamental para uma educação real-
mente inclusiva e atenta para a diversidade.
Mas precisamos avançar com políticas direcionadas para o desen-
volvimento da região e não nos modelos desenvolvidos nacionalmente
em outras regiões do país, e sim, dentro de uma perspectiva de modelos
adequados para a realidade desse território. Faz-se necessário a realização
de estudos sobre todos as problemáticas e, principalmente sobre os pro-
gramas de formação de professores que possam ultrapassar os limites da
cidade e contemplar as várias outras localidades de rios, planaltos e vár-
zeas (SILVA E SÁ, 2016). É imprescindível pensar em educação na
Amazônia a partir da Amazônia.
A formação de professores de ciências para atuar no contexto da
Amazônia brasileira e as relações que a ciência e seu ensino e aprendiza-
gem tem com a história dessa região estão permeadas de significados que
influenciam a formação de professores (VASCONCELOS, 2016). A for-
mação docente é desafio no tange a teoria e a prática quando se objetiva
pensar nessa no contexto amazônico.
32
Desafios para pensar o ensino de ciências no contexto
amazônico
33
A educação em Ciências na Amazônia precisa ser pensada bus-
cando motivações ligadas a realidade de desenvolvimento da região, vol-
tado à sustentabilidade e em propostas inovadoras contextualizadas para
estudante amazônico (SEIFFERT-SANTOS, 2011). Essas motivações
devem estarem centradas em um ensino onde o aluno aprende a partir
do seu conhecimento prévio, para que ocorra a valorização em relação às
atribuições de valores e a observação do contexto sóciocultural. Vale res-
saltar que não se desconsidera o processo cognitivo escolar mas
34
Um recurso importante para a qualidade do ensino de ciências é a
experimentação. A capacitação para tal abordagem deve ser algo prioritá-
rio para docentes que venham lecionar ciências. Uma das maiores dificul-
dades em trabalhar a experimentação nas aulas de ciências está relaciona-
da à um ensino deficiente no que se diz respeito a utilização de metodo-
logias diferenciadas em sala de aula.
No contexto de uma escola no interior da Amazônia, aonde os
recursos são ainda mais escassos, caberia ao docente buscar por alternati-
vas mais acessíveis com realidade, como, por exemplo, os materiais alter-
nativos de baixo custo.
Porém, essas questões não são só um desafio docente, não se tra-
ta de uma simplificação ou adaptação para as coisas funcionarem confor-
mem as pesquisas colocam metodologicamente bem estruturadas, trata-
se de universalizar a educação em ciências, pois essa ainda é muito cen-
tralizada e não dialogam com as reais necessidades das regiões afastadas
dos grandes centros do país. Pois os saberes mudam conforme a socieda-
de que se está inserido.
35
Para trazer uma abordagem dentro do ensino de ciências que vise
as questões mais profundas na Amazônia, é necessário conhecer como
os educandos percebem estas questões dentro do seu ambiente em todas
as suas dimensões.
E esse processo de conhecimento é fundamental para a com-
preensão das dificuldades que se colocam entre as grandes problemáticas
da Amazônia e suas interfaces com a educação, como, por exemplo:
Questões agrarias, territórios e meio ambiente; Biodiversidade; Recursos
hídricos e minerais; diversidade cultural; etc.
Seiffert-Santos citando Freitas (2009, p. 219), chama atenção para
a necessidade de conhecer a região amazônica, no sentido de compreen-
der “que o paradigma ecológico em um desenvolvimento sustentável é
um futuro inevitável tal é a condição do homem no mundo contemporâ-
neo”. O ensino de ciência tem potencial para fazer parte desse contexto
e pode contribuir com novas formas de ensinar ciências com a cultura
local, “sendo tudo isso catalisado com os confrontos ‘natureza x cultura’,
na política nacional e internacional” (SEIFFERT-SANTOS, 2011, p.
219).
No que compreende um currículo escolar na educação básica
voltado para as particularidades, especificidades e diversidade que
compõem o conjunto de elementos culturais e a educação na Amazônia,
o ensino básico nesse contexto, deve expressar as diferenças, as contradi-
ções, as etnias, as formas de sobrevivência, construindo um cenário mais
diversos que incorpore de fato essas singularidades.
Pensar e fazer a Educação em Ciência para Amazônia, respeitan-
do as necessidades nacionais, e associado ao seu pluralismo é um cons-
tante desafio, é assumir a perspectiva de que a “educação não é só ciên-
cia, mais saberes”, uma vez que, pensar em um currículo homogêneo
com uma realidade tão diferenciada, necessita-se de motivação e ação po-
lítica para se realizar e concretizar.
Considerações finais
36
a compreender os atuais processos de mudanças e transformações que a
região vem sofrendo e como esses processos têm refletido na própria so-
ciedade. Requer um posicionamento sobre o nosso “lugar de fala”, en-
quanto amazônidas, nos debates sobre a Amazônia.
Atualmente, existem muitas tendências no Ensino de Ciências,
mas problematizar temáticas no processo de ensino-aprendizagem no
contexto amazônico, requer compreender os “saberes” próprios da regi-
ão amazônica, saberes que existem da fauna e flora a conhecimento de
mitos e lendas que explicam o imaginário.
A partir dessa perspectiva, de reconhecer esses saberes, é propor
um currículo contextualizado capaz de contribuir na formação de sujei-
tos para pensar o seu lugar com respeito e responsabilidade. Mas para es-
sas mudanças comecem é necessário motivação e ação política.
É indiscutível que sem uma educação de qualidade pouco se
avança na melhoria do ensino, na construção do conhecimento e nas to-
madas de decisões que atendam as reais necessidades do povo da região
amazônica.
O desafio docente está em enxergar com mais visibilidade a edu-
cação neste cenário, uma vez que para construir propostas pedagógicas
que atendam as particularidades de uma escola no interior da Amazônia
se faz necessário abarcar também a diversidade e diferentes realidades vi-
venciadas pelos alunos.
Nesse sentido, conhecer teoricamente as concepções e os proces-
sos formativos que articulam com o debate sóciopolitico da educação,
contribuem para reflexões acerca da necessidade de se repensar a prática.
Entendemos que é imprescindível que os professores tenham a
consciência da importância de sua formação e mais ainda do aperfeiçoa-
mento desta que deverá ser continuado, pois essa é um exercício da com-
preensão dos desafios que acontecem dentro do ambiente escolar e do
exercício profissional.
Saviani (2002, p. 48), coloca que “quanto a nós, se pretendemos
ser educadores (especialistas em educação) é porque não nos contenta-
mos com a educação assistemática”. Uma vez que, os conhecimentos e
os seres humanos seguem em transformação, e acompanhar essa evolu-
37
ção remete também ao ensino para que o trabalho docente seja referen-
cia nos campos educacionais.
A Amazônia brasileira não se encontra isolada de tudo, o próprio
ambiente nela mudou. Os meios de comunicação (rádio, televisão, inter-
net) trazem notícias sobre acontecimentos num âmbito global. A distân-
cia entre ciências e sociedades é inexistente, pois a própria ciência é um
produto histórico das interações e ações humanas (SILVA, et. al, 2017).
O desafio de ultrapassar as marcas socialmente e culturalmente
estabelecidas pelo sistema escolar nacional representa para o contexto lo-
cal, que esses conhecimentos fundamentem políticas educacionais e de
formação de professores capazes de atender às necessidades e anseios
das populações amazônicas. Além dos aspectos discutidos ao longo do
texto, dialogar com movimentos sociais, populações locais e os envolvi-
dos no processo de ensino-aprendizagem da educação na Amazônia.
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38
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40
II
A CONTRIBUIÇÃO DA EDUCAÇÃO JURÍDICA POPULAR
PARA A PROTEÇÃO DOS TERRITÓRIOS NA AMAZÔNIA
PARAENSE: O CASO JURUTI VELHO!*
Introdução
*
DOI - 10.29388/978-65-86678-45-1-0-f.41-70
1
Mestrando em Educação na Amazônia pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal do Oeste do Pará. Bacharel em Direito (UFOPA, 2019). E-mail:
[email protected]
2
Professora Titular da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), lotada do Instituto de
Ciências da Educação (ICED), docente permanente dos Programas de pós-graduação em Educa-
ção na Amazônia (PPGE/EDUCANORTE) e do doutorado Sociedade, Natureza e Desenvolvi-
mento (PPGSND/UFOPA). Líder do grupo de pesquisa PRAXIS UFOPA/CNPq. Orientadora
do estudo. E-mail: [email protected]
41
entais e os interesses dos povos e comunidades que habitam tradicional-
mente o espaço. Nota-se a contradição existente no ordenamento jurídi-
co nacional quando percebemos que o mesmo Estado que tem a missão
de proteger os territórios e as culturas é quem impulsiona esses projetos
de grandes impactos.
Um exemplo de conflito territorial na Amazônia Paraense é o
caso da exploração minerária de bauxita em Juruti Velho, no Município
de Juruti/PA, uma cidade tipicamente amazônica, situada na região oeste
do Pará, com ritmo próprio de interação com o tempo e com o espaço,
formada por uma população eminentemente rural e uma economia base-
ada na extração de madeira e plantio de mandioca. A Região de Juruti
Velho é a antiga sede do Município, cuja fundação remete ao ano 1818,
quando foi batizada de Vila Amazônia. Contudo, a ocupação humana
nesta parte da Amazônia se faz presente há séculos, considerando ser
este um dos territórios dos povos conhecidos como Munduruku e Mui-
rapinima.
A dinâmica das relações socioeconômicas desse município foi
fortemente modificada após a descoberta de uma reserva de mais de 700
milhões toneladas de bauxita. A riqueza minerária inseriu Juruti no cir-
cuito internacional de comercialização da bauxita, a partir da instalação
da Alcoa, em 2005. As transformações promovidas pela presença de uma
multinacional trouxeram ou reforçaram problemas como: êxodo rural,
inflacionamento populacional, exploração ilegal de madeira, assoreamen-
to de igarapés, ocupações irregulares de terras, prostituição e abuso sexu-
al contra menores (MARIALVA, 2011).
Nesse cenário, em parceria com as Irmãs Franciscanas de Maris-
tella, uma congregação da Igreja Católica baseada na teologia da liberta-
ção, com relevante papel na articulação política local, o Núcleo de Asses-
soria Jurídica Universitária Popular (NAJUP) Cabano, organizou, entre
março de 2018 e março de 2019, o Curso Formação de Lideranças Comunitá-
rias O Direito Achado na Beira do Rio - experiência relatada em Aguiar
(2020). Esta ação foi cadastrada na Ufopa como projeto de extensão e
teve como objetivo auxiliar as comunidades de Juruti Velho - principal
região impactada pelas atividades minerárias - na defesa de seu território,
a partir da construção de espaços de discussão sobre temas relevantes do
42
Direito e das Ciências Sociais, aplicados ao contexto amazônico e à lin-
guagem popular (ALMEIDA, 2015; LUZ, 2008). Trata-se da promoção
de uma Educação Popular compreendida enquanto instrumento político
de conscientização e politização, voltado para a transformação das estru-
turas opressoras, por meio do trabalho libertador de construção de um
novo saber (FREIRE, 2016; BRANDÃO, 1981).
A turma foi formada por pessoas com perfil de liderança, das
mais experientes às mais jovens, pela indicação das Associações repre-
sentativas das 18 comunidades que compõem a região de Juruti Velho.
Os conteúdos do curso foram organizados em cinco módulos: I - Intro-
dução ao estudo do Direito; II - Introdução ao Direito Constitucional;
III - Direito à Terra e Direito ao Meio Ambiente; IV - Direito dos Povos
e Comunidades Tradicionais; e V - Direito à Cidade e Bem Viver.
Desta forma, esta pesquisa busca responder à seguinte questão:
de que maneira a Educação Jurídica Popular promovida no curso “O Di-
reito Achado na Beira do Rio” contribuiu para a proteção dos direitos
territoriais na região de Juruti Velho? Para respondê-la, inicialmente ca-
racterizou-se as concepções de território e o conflito territorial existente
em Juruti Velho. Em seguida, discutiu-se os fundamentos teórico-meto-
dológicos da Educação Jurídica Popular. Por fim, analisou-se a formação
de lideranças comunitárias de Juruti Velho no âmbito do curso “O Direi-
to Achado na Beira do Rio”.
43
Na tradição, o território desempenha uma função positiva de que
tudo e todos que se encontram nos seus limites ficam sujeito à sua
autoridade e uma função negativa de exclusão de toda autoridade
diversa daquela do Estado, sendo regido pelo princípio da efetivi-
dade, limitando-se ao espaço físico sobre o qual o Estado efetiva-
mente exerce o seu poder soberano, podendo coexistir a soberania
territorial de um Estado com a supremacia territorial de outro (ex.
Canal do Panamá) (STRECK; MORAIS, 2014, p. 170).
44
va "apropriação" (HAESBAERT, 2007, p. 20).
45
está sendo feita sobre o conceito de território é que as relações de poder
ocorrem em perspectivas multiescalares e interescalares.
As disputas pela dominação ou apropriação de um território são
entendidas como territorialização do espaço (HAESBAERT, 2007). A ter-
ritorialização é justamente esse processo de tomar para si, ocupar o terri-
tório de acordo com a lógica que almeja e com os símbolos que fazem
parte de sua realidade. É um processo constante de exercício de poder
sobre o lugar. Na Amazônia, grandes forças do mercado, aliadas com po-
líticas estatais, têm atuado no sentido de desterritorializar os povos e co-
munidades habitam tradicionalmente a região.
46
muito favorável para a implantação de grandes projetos na Amazônia.
Rapidamente a empresa conseguiu o aval do governo do Estado para ini-
ciar as pesquisas e os levantamentos junto às comunidades da região,
chegando a obter, em 2005, a Licença Prévia e a Licença de Instalação.
As autorizações concedidas durante esse período foram alvo de contesta-
ção do Ministério Público Federal e do Ministério Público do Estado do
Pará, por supostamente conter várias irregularidades, notadamente a falta
de legitimidade do Estado do Pará para a concessão das referidas licenças
(SILVA, 2014; MONTEIRO, 2009).
O empreendimento em questão consiste na extração de bauxita,
matéria prima do alumínio. O minério bruto de bauxita, terceiro elemen-
to mais presente na natureza, é uma mistura de argila rica em óxido e hi-
dróxidos de alumínio. O potencial de reserva encontrado em Juruti, con-
forme estudos geológicos disponibilizados pela empresa, são de aproxi-
madamente quarenta e cinco anos, com previsão de produção anual esti-
mada em seis milhões de toneladas e posteriormente de dez milhões de
toneladas de bauxita. A Alcoa opera na linha de produção e gerencia-
mento de usinas de alumínio primário, alumínio industrializado e alumi-
na. Nas últimas décadas, o início de processos de pesquisa na Amazônia
ocorre paralelamente à consolidação da empresa no mercado mundial,
em meio à intensificação do mercado e à ampliação de sua base tecnoló-
gica e de pesquisa (SILVA, 2014).
Com a ameaça da mineradora aos rios e às florestas, as comuni-
dades intensificaram as reuniões e a comunicação entre as áreas que for-
mam a região de Juruti Velho. Eram, majoritariamente, os religiosos que
tentavam alertar sobre os perigos de um empreendimento minerador.
Foram as Irmãs Franciscanas de Maristella que iniciaram a articulação
das redes sociais ao questionarem o projeto e suas benesses. Foram elas
as responsáveis por colocar a Alcoa em evidência no cenário internacio-
nal, ao divulgarem o manifesto “SOS Juruti Velho” na página da internet
do Grupo de Trabalho Amazônico - a maior rede de Organizações Não
Governamentais da Amazônia (WANDERLEY, 2008).
Um passo muito importante para a articulação política das comu-
nidades de Juruti Velho se deu quando seus moradores descobriram o
risco iminente de perder seu território, por conta de uma ação judicial a
47
tramitar na Justiça Federal. A reação foi rápida e pontual: em uma assem-
bleia com a presença de mais de 2.000 pessoas, ocorrida em 24 de março
de 2004, é erguida, a partir da consciência da sua diversidade sociocultu-
ral e do autorreconhecimento enquanto comunidade tradicional
(WANDERLEY, 2008; MONTEIRO, 2009), a Associação das Comuni-
dades da Região de Juruti Velho (ACORJUVE) para concentrar os esfor-
ços de todas as comunidades da região em busca da regularização fundiá-
ria da área tradicionalmente ocupada por seus ancestrais na modalidade
de Projeto de Assentamento Agroextrativista (PAE).
A fundação da ACORJUVE foi fundamental para a mobilização
da região de Juruti Velho na luta pela sua regularização fundiária. Em 10
de novembro de 2005, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária (INCRA) superou a morosidade que se arrastava há décadas, cri-
ando o PAE Juruti Velho por meio da Portaria SR 30, n. 18, com
109.551 hectares, atendendo a 1.998 unidades familiares (LOPES, 2012).
Apesar da criação do PAE Juruti Velho, os moradores não con-
seguiram barrar a continuidade do empreendimento, mas também não
deixaram que ocorresse de qualquer forma. Em 2009 ocuparam a base de
operações da Alcoa para exigir uma negociação franca com as lideranças
da empresa. A ação resultou em uma reunião com o Presidente da em-
presa na América Latina e Caribe e em um acordo no qual a
ACORJUVE receberia diretamente 1,5% da lavra e mais as Perdas e Da-
nos, que seriam definidas posteriormente – até o momento não foram. A
negociação consiste em uma gigantesca vitória fruto de uma articulação
muito forte das comunidades de Juruti Velho. Contudo, uma década pas-
sada muitas lideranças contestam os benefícios da concessão.
A cidade, que chegou a se empolgar com a promessa de desen-
volvimento trazida pelo empreendimento minerário, logo sentiu o peso
social do neoextrativismo. As escolas, as estradas, os hospitais e os co-
mércios não aguentaram a demanda de trabalhadores que vieram de vá-
rias partes da Amazônia e do Brasil em busca de empregos formais e não
formais gerados a partir da instalação da Alcoa. As transformações pro-
48
movidas pela presença de uma multinacional no Município trouxeram,
ou reforçaram, problemas como: inflacionamento populacional, êxodo
rural, exploração ilegal de madeira, assoreamento de igarapés, ocupações
irregulares de terras, prostituição e abuso sexual contra menores
(MARIALVA, 2011). Portela (2017, p. 120) corrobora e anuncia, denun-
ciando:
49
Fundamentos da educação jurídica popular: remando
para a construção de um diálogo crítico e libertador no
campo do direito
50
pansão do sistema do capital, como também gerar e transmitir um
quadro de valores que legitima os interesses dominantes, como se
não pudesse haver nenhuma alternativa à gestão da sociedade, seja
na forma “internalizada” (isto é, pelos indivíduos devidamente
“educados” e aceitos) ou através de uma dominação estrutural e
uma subordinação hierárquica e implacavelmente impostas
(MÉSZAROS, 2008, p. 35).
51
Contudo, a desinformação da população em relação a seus direi-
tos faz com que haja uma dificuldade para a efetivação do texto legal. O
afastamento das classes populares do universo jurídico é algo que sempre
esteve presente em nosso país. A linguagem do Direito foi pensada pelas
elites para a manutenção de seus privilégios e por isso foi propositalmen-
te construída de forma a dificultar a participação das camadas populares.
O povo não entende muito bem como funciona o Sistema de Justiça
porque ele não foi feito para ser apropriado pelo povo, mas, pelo contrá-
rio, foi criado para controlar seus impulsos contra a ordem estabelecida.
Nesse sentido, a Educação Jurídica Popular “preocupa-se com a
falta de conhecimento desses segmentos sociais excluídos pelo fato de
não se reconhecerem como sujeitos de direitos, fator que vai interferir na
falta de participação popular no cotidiano da vida social e no exercício da
cidadania” (OLIVEIRA, 2015, p. 17). Ela surge como uma concepção
voltada para a ampliação dos debates sobre os direitos e garantias funda-
mentais junto às classes populares com o objetivo de auxiliá-las em seus
processos de luta pela efetivação de direitos e construção de novas cate-
gorias jurídicas. No diálogo sincero e amoroso com as lideranças popula-
res, pretende-se, ao mesmo tempo que se socializa os conhecimentos da
academia e dos tribunais, oportunizar espaços para a construção de no-
vos saberes necessários para a transformação social.
52
nhar dialogicamente grupos e movimentos populares na reivindicação
por seus direitos, de forma a se apresentar como um parceiro político
(LUZ, 2008). A principal fundamentação teórica está no Pluralismo Ju-
rídico (WOLKMER, 2002) e mais especificamente na concepção de O
Direito Achado na Beiro do Rio que é abordada na seção anterior
(SOUSA JUNIOR, 2011). Assim, a Educação Jurídica Popular foge das
correntes tradicionais do Direito e abraça as proposições críticas existen-
tes, ao mesmo tempo em que se coloca como caminho para a construção
de novas teorias e epistemologias jurídicas.
Por outro lado, a Educação Popular é a metodologia pela qual a
Educação Jurídica Popular orienta a sua prática. O caráter diferenciador
da Educação Popular para as outras concepções de Educação é que ela
está voltada para fornecer mecanismos para a construção de uma socie-
dade protagonizada pela classe trabalhadora. Segundo Freire (2018, p.
208) “o grande objetivo da Educação Popular está em atender os interes-
ses das classes populares que há quinhentos anos estão sendo negados”.
O filósofo brasileiro continua seu raciocínio afirmando que, “de um
modo mais radical, a Educação Popular significa, para mim, caminhos,
isto é, o caminho no campo do conhecimento e o caminho no campo
político, através dos quais amanhã – e aí vem a utopia – as classes popu-
lares encontrem o poder3” (FREIRE, 2018, p. 208).
As características principais da Educação Popular são enumera-
das por Carlos Rodrigues Brandão em sua obra denominada O que é Edu-
cação Popular – um dos mais importantes escritos sobre o assunto em nos-
so país:
A partir de uma crítica feita ao sistema vigente de educação (ver
isto em Educação como Prática da Liberdade, de Paulo Freire) e, espe-
cialmente, das formas tradicionais de educação de adultos e de tra-
balhos agenciados de desenvolvimento de comunidades e suas va-
riantes, a educação popular: 1) constitui passo a passo (“aos trope-
ços”, dirão os seus críticos) uma nova teoria, não apenas de educa-
ção, mas das relações que, considerando-a a partir da cultura, esta-
belecem novas articulações entre a sua prática e um trabalho po-
3
Essa relação profunda com o poder interessa bastante à colocação no debate sobre os conflitos
territoriais, onde percebendo o conflito de interesses, a Educação Popular em sua essência se co-
loca ao lado dos oprimidos, isto é, dos moradores tradicionais.
53
lítico progressivamente popular das trocas entre o homem e a so-
ciedade, e de condições de transformação das estruturas opresso-
ras desta pelo trabalho libertador daquele; 2) pretende fundar não
apenas um novo método de trabalho “com o povo” através da
educação, mas toda uma nova educação libertadora, através do tra-
balho do/com o povo sobre ela — este é o sentido em que a edu-
cação popular projeta transformar todo o sistema de educação, em
todos os seus níveis, como uma educação popular; 3) define a edu-
cação como instrumento político de conscientização e politização,
através da construção de um novo saber, ao invés de ser apenas
um meio de transferência seletiva, a sujeitos e grupos populares,
de um “saber dominante” de efeito “ajustador” à ordem vigente
— este é o sentido em que ela se propõe como uma ampla ação cul-
tural para a liberdade a partir da prática pedagógica no momento de
encontro entre educadores-educandos e educandos-educadores; 4)
afasta-se de ser tão somente uma atividade “de sala de aula”, de
“escolarização popular”, e busca alternativas de realizar-se em to-
das as situações de práticas críticas e criativas entre agentes educa-
dores “comprometidos” e sujeitos populares “organizados”, ou
em processo de organização de classe; 5) procura perder, aos pou-
cos (o que nem sempre consegue), uma característica original de
ser um movimento de educadores e militantes eruditos destinado
a “trabalhar com o povo”, para ser um trabalho político sem pro-
jeto próprio e diretor de ações pedagógicas sobre o povo, mas a
serviço dos seus projetos de classe. Este é o sentido em que há,
hoje em dia um consenso de que a missão do educador popular é
participar do trabalho de produção e reprodução de um saber po-
pular, aportando a ele, ao longo do trabalho social e/ou político
de classe, a sua contribuição específica de educador: o seu saber
erudito (o da ciência em que se profissionalizou, por exemplo) em
função das necessidades e em adequação com as possibilidades de
incorporação dele às práticas e à construção de um saber popular
(BRANDÃO, 1981, p. 46-47).
54
sionais de várias áreas, trabalham junto com os movimentos populares e
grupos sociais marginalizados para que esses possam enxergar com preci-
são as forças opressoras que pesam sobre si e pensar autonomamente em
horizontes alternativos. Isto é, tem-se a dimensão de que os educandos
não são sujeitos passivos de um projeto de libertação pensado pelos inte-
lectuais, mas que são eles próprios os protagonistas legítimos para a
construção das estratégias de luta.
O papel do intelectual militante não é outro senão o de facilitar a
compreensão das lideranças populares sobre assuntos de que foram ou-
trora afastadas das discussões por razões históricas, no âmbito da socie-
dade colonial, racista, patriarcal e capitalista. Isso significa entender o ato
de conhecer como uma “tarefa de sujeitos, não de objetos” e que “é
como sujeito, e somente enquanto sujeito, que o homem pode realmente
conhecer” (FREIRE, 2013, p. 28). O Educador Popular não deve subes-
timar a capacidade intelectual das massas, mas deve colocar os seus servi-
ços acadêmicos e profissionais a serviço da problematização da realidade
dos oprimidos. Assim,
55
bertar ninguém, porque “Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta
sozinho. Os homens se libertam em comunhão” (FREIRE, 2016, p.
120).
É nesse contexto que se encaixa a Educação Jurídica Popular:
uma prática educativa e jurídica contra-hegemônica em que advogados
populares, professores e estudantes do Curso de Direito vão ao encontro
das classes populares para dialogar sobre a realidade opressora em que
estão sugeridos, facilitando a compreensão de seus direitos em uma situ-
ação concreta e fornecendo ferramentas para que possam pensar autono-
mamente no enfrentamento de suas dificuldades.
56
(ALMEIDA, 2015) e esquecer-se da técnica jurídica, porque muitas ve-
zes as lideranças já possuem uma compreensão crítica da realidade, mas
lhe faltam ferramentas para seu enfrentamento. Os diálogos não podem
se limitar apenas à promoção de uma crítica bem fundamentada – devem
caminhar no sentido de soluções para os problemas concretos.
Portanto, a Educação Jurídica Popular vai ao encontro do povo
para, com ele, pronunciar o mundo, dar voz àqueles e àquelas que são si-
lenciados pela sociedade, afirmar-se coletivamente enquanto sujeito de
direitos. A questão está no reconhecimento das diversas formas de
opressão da sociedade capitalista, colonial, racista, machista etc. para ori-
entar a luta pela libertação.
57
A assessoria jurídica popular se constitui como uma prática jurídi-
ca diferenciada dedicada à realização de ações para a garantia do
acesso ao direito e à justiça a grupos subalternizados e movimen-
tos ou grupos organizados em torno da luta por direitos, mesclan-
do atividades de assistência jurídica e de educação popular em di-
reitos humanos, organização comunitária e participação popular.
58
Achado na Rua”, concepção de direito de grande reconhecimento dentro
da seara jurídica crítica pensada inicialmente por Roberto Lyra Filho e
consolidada por José Geraldo de Sousa Júnior. Esta é uma visão plural
das relações jurídicas, que reconhece nas práticas dos sujeitos organiza-
dos coletivamente a possibilidade de “determinar o espaço político no
qual se desenvolvem as práticas sociais que enunciam direitos ainda que
contra legem” (SOUSA JUNIOR, 2011, p. 91). Além disso O Direito
Achado na Rua é também o nome de uma coleção de livros pensada para
a formação das AJUPs e também dos movimentos sociais (SOUSA
JUNIOR, 1993).
Desta maneira, em uma releitura amazônica da expressão O Di-
reito Achado na Rua, O Direito Achado na Beira do Rio compreende a
centralidade dos Rios para se pensar as relações sociais, nas cidades da
região amazônica. Montoia e Costa (2019), baseados em Cruz (2004), ao
discutirem a formação da identidade do ribeirinho nas cidades amazôni-
cas, concebem o rio em três importantes dimensões: espaço físico-natural,
como o meio de transporte, a fonte de recursos e ainda como “responsá-
vel” pelo ritmo; espaço simbólico, mediador das “tramas sociais”; e espaço
simbólico, enquanto “matriz do pensamento imaginário, do sistema de
crendices, histórias, lendas, mitos, da cosmologia que insiste em perma-
necer como fator de resistência” (MONTOIA; COSTA, 2019, p. 189).
Em complemento à análise, Cruz (2004) afirma que mesmo com as
transformações causadas pela modernidade nas cidades ribeirinhas da
Amazônia, “temporalidade e a espacialidade continuam marcadamente
simbolizadas pelo rio, com uma vida dinamizada pelas interações materi-
ais, simbólicas e imaginárias diferenciadas com ele” (CRUZ, 2004, p. 51).
“Remando” na direção da construção teórica deste conceito em
movimento, este trabalho analisa o Direito em sua manifestação popular
na Amazônia permeada pelos seus rios, mais especificamente o Direito
Achado na Beira do Lago Muirapinima em Juruti Velho, Juruti/PA. O
Direito Achado na Beira do Rio destaca a Beira do Rio como cenário de
intensa manifestação do Direito nas cidades ribeirinhas da Amazônia,
seja em processos de reivindicação ou de construção de novas categorias.
Ademais, o Curso O Direito Achado na Beira do Rio contou
com cinco módulos: Introdução ao Direito; Direito Constitucional; Di-
59
reito ao Território e ao Meio Ambiente; Direito dos Povos e Comunida-
des Tradicionais e Direito à Cidade e Bem Viver. Os encontros ocorre-
ram no Centro de Formação Irmã Brunhilde localizado na Vila Muirapi-
nima e tinham a duração de três dias (sexta-feira, sábado e domingo). O
primeiro módulo ocorreu em abril de 2018 e o último em abril de 2019.
Cerca de 30 lideranças indicadas pelas 18 associações comunitárias de Ju-
ruti Velho participaram dos diálogos. Formou-se uma turma bastante di-
versa, com a presença de pescadores artesanais, estudantes, professores,
trabalhadores rurais, membros de associações, membros das paróquias,
donas de casa, etc. A logística do curso foi planejada pelas Irmãs Francis-
canas de Maristella, que viabilizaram transporte, alimentação e hospeda-
gem para três facilitadores do NAJUP Cabano acompanharem cada mó-
dulo.
Há que se pontuar que a experiência analisada neste artigo, isto é,
o Curso de Formação de Lideranças Comunitárias O Direito Achado na
Beira do Rio, foi construída em um contexto de grande necessidade de
promoção de debates, mas também de inexperiência metodológica. O
projeto foi protagonizado por estudantes do Curso de Direito da Ufopa
que estavam iniciando a sua formação em Assessoria Jurídica Popular e
Educação Popular, tendo como primeira atividade prática o Curso O Di-
reito Achado na Beira do Rio. Então, houve alguns deslizes naturais para
quem está dando os primeiros passos.
Não obstante, os diálogos ocorridos na Vila Muirapinima possu-
em diversas potencialidades emancipatórias. As trocas de conhecimentos
entre a Universidade e a Comunidade instigaram ambos a pensar critica-
mente outras dimensões de sua própria realidade e buscar novas alterna-
tivas para o fortalecimento das lutas por direitos. Trata-se do primeiro
Curso de Formação de Lideranças Comunitárias de longa duração orga-
nizado pelo NAJUP Cabano em toda a região Oeste do Pará. A partir
dessa experiência foram construídos outros espaços semelhantes, como
o Curso O Direito Achado no Dia a Dia, para moradores da Ocupação
Vista Alegre do Juá, o Curso Direitos Humanos e Consulta Prévia, para
lideranças de povos e comunidades tradicionais de Santarém/PA e tam-
bém o Ciclo de Oficinas de Direito À Cidade nas Escolas, para estudan-
tes de ensino médio da rede pública de Santarém/PA.
60
Neste trabalho, buscou-se analisar as contribuições desse curso
de extensão para a proteção do Território de Juruti Velho, que desde
2005 encontra-se registrado no ordenamento jurídico como Projeto de
Assentamento Agroextrativista (PAE) Juruti Velho. Inicialmente ressalta-
se que, devido à distância entre a Vila Muirapinima em Juruti/PA e a ci-
dade de Santarém/PA4, o primeiro contato com os participantes do cur-
so se deu somente no primeiro módulo – antes disso conversou-se ape-
nas com as Irmãs Franciscanas de Maristella sobre quais conteúdos po-
deriam interessar às comunidades. Dessa forma, ao mesmo tempo em
que os facilitadores se apresentaram e trataram das noções iniciais sobre
o que é Direito, buscaram conhecer melhor a realidade local e compreen-
der quais seriam os principais problemas apontados pelos moradores, a
fim de fortalecer o entendimento de quais deveriam ser os temas geradores
(FREIRE, 2016). Procurou-se ouvir as narrativas para captar os signos e
símbolos utilizados visando adequar a linguagem acadêmica e jurídica ao
linguajar de Juruti Velho, fator de grande relevância para a Educação Po-
pular adaptada ao contexto amazônico (HAGE; CORRÊA, 2019).
A questão do Território surgiu como uma das principais pautas
das comunidades de Juruti Velho. Dentre as ameaças à soberania das po-
pulações tradicionais, destacaram-se a exploração ilegal de madeira e os
impactos decorrentes da exploração minerária de bauxita pela multinaci-
onal Alcoa. Além disso, foi comentado a dificuldade em acionar as políti-
cas públicas para a região devido à falta de interesse de governantes e a
falta de conhecimento dos caminhos a serem seguidos pelas comunida-
des.
Diante dessas problemáticas, após as primeiras palavras trocadas
e pronunciadas, em seguida ao encontro sobre Direitos e Garantias Fun-
damentais, o terceiro módulo do curso abordou o Direito ao Território e
o Direito ao Meio Ambiente. Foram tratados de assuntos como Reforma
Agrária, Relação de Beneficiários, Dominialidade, Posse Agrária, Plano
de Manejo Florestal Sustentável, Plano de Uso, Ocupação da Amazônia,
entre outros. Três momentos desse encontro se destacaram: o debate so-
4
Partindo do Terminal Portuário de Santarém/PA são 12 horas de barco ou 5 horas de lancha até
chegar em Juruti/PA. Ainda são mais duas horas de lancha ou 50 minutos de “voadeira” para
chegar na Vila Muirapinima, em Juruti Velho.
61
bre Certificado de Concessão de Direito Real de Uso (CCDRU); a ofici-
na de elaboração de denúncias aos órgãos competentes; e a dinâmica
para se pensar nas histórias das comunidades com os Territórios – pen-
sar em memórias da infância.
A discussão sobre Direito ao Território foi promovida a partir da
leitura coletiva da CCDRU do PAE Juruti Velho, momento em que mui-
tas lideranças tiveram seu primeiro contato com o documento. O espaço
de trocas de impressões foi importante para se perceber o caminho per-
corrido para se alcançar o acordo, mas também para compreendê-lo
como algo que pode ser retirado das comunidades, caso elas deixem de
permanecer articuladas.
Na oficina de elaboração de denúncias, os facilitadores fizeram
uma apresentação dos principais órgãos públicos responsáveis por atuar
em conflitos socioambientais nas esferas municipais, estaduais e federais,
tais como: Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
(INCRA), Instituto de Terras do Pará (ITERPA), Secretaria Municipal de
Meio Ambiente (SEMMA), Ministério Público do Estado do Pará
(MPPA), Ministério Público Federal (MPF), Defensoria Pública do Esta-
do do Pará (DPPA), Defensoria Pública da União (DPU), Instituto Brasi-
leiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA),
Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).
Em seguida, sortearam casos práticos de violações aos direitos socioam-
bientais e solicitaram que os cursistas elaborassem em grupo os docu-
mentos com as informações necessárias e encaminhassem para o órgão
adequado.
Noutro momento, a dinâmica sobre a relação com o Território
mexeu bastante com o emocional dos participantes do curso, que com-
partilharam entre si bonitas histórias das suas famílias e a relação com a
criação das comunidades. Nestas discussões, surgiram fortes inquietações
sobre pertencimento e tradicionalidade, sobre como os moradores de Ju-
ruti Velho se consideram em relação a sua identidade. Como confirmar
que realmente são comunidades tradicionais5? Essas reflexões não pode-
5
A pesquisa de campo realizada por Monteiro (2009) atestou que as populações de Juruti Velho
se reconhecem como populações tradicionais, não apenas pela ocupação secular da terra, mas
também pela relação mantida com a natureza e a biodiversidade.
62
riam ser trabalhadas superficialmente para se alcançar uma resposta satis-
fatória e então motivou a organização de um módulo específico para dis-
cutir sobre o Direito das Comunidades Tradicionais.
Neste módulo sobre Direito das Comunidades Tradicionais, de-
bateu-se sobre os conceitos de tradicionalidade e identidade e os direitos
consagrados no art. 231 da Constituição e na Convenção nº 169 da Or-
ganização Internacional do Trabalho (OIT), dentre eles, Direito à Auto-
determinação, Direito à Diferença, Direito ao Território (novamente),
Direito à Cultura, Direito à Consulta Prévia, Livre e Informada. Este úl-
timo contou com uma atenção especial para abordar a sua importância
como instrumento de defesa do Território, a exemplo dos casos em que
foi utilizado na região Oeste do Pará, como o dos Protocolos de Consul-
ta dos Quilombolas do Maicá e dos Povos Indígenas Munduruku do Pla-
nalto, que foram utilizados para barrar a construção dos Portos do Mai-
cá.
Num último encontro antes do encerramento do curso, durante
o módulo sobre Direito à Cidade e Bem Viver, estava-se debatendo so-
bre as formas de resistência dos moradores locais aos impactos da mine-
ração e foi lembrado sobre a ocupação da base de operações da Alcoa,
ocorrida em 2009. Pelos relatos milhares de trabalhadores ocuparam a
sede da empresa na Comunidade Capiranga, durante nove dias até conse-
guirem negociar as contraprestações para o funcionamento da explora-
ção minerária. Na oportunidade, conseguiram que 1,5% da lavra fossem
destinadas diretamente à ACORJUVE.
Durante a empolgação, falou-se da vontade de registrar essas me-
mórias para que as próximas gerações tenham conhecimento das lutas
populares que o povo de Juruti Velho já protagonizou. Os membros do
NAJUP Cabano se comprometeram com a ideia e, com apoio do Edital
da Ufopa de incentivo a produções audiovisuais, das Irmãs Franciscanas
de Maristella e dos participantes do Curso O Direito Achado na Beira do
Rio, produziram o documentário 9 dias e nove noites. O projeto contou
com o relato de diversas lideranças antigas das comunidades de Juruti
Velho que protagonizaram a ocupação em 2009. Em fevereiro deste ano
teve seu pré-lançamento na Vila Muirapinima e em julho foi exibido na
III Mostra de Audiovisual da Ufopa.
63
Desta maneira, podemos perceber que a Educação Jurídica Po-
pular promovida pelo NAJUP Cabano junto com as lideranças comuni-
tárias de Juruti Velho constitui-se em uma verdadeira ação cultural para a
liberdade, como propõe Freire (2016, p. 97): “a ação política junto aos
oprimidos tem de ser, no fundo, ‘ação cultural’ para a liberdade, por isto
mesmo, ação com eles”. Entendendo que para a prática da liberdade dos
moradores de Juruti Velho o Lago Muirapinima e todo o território abar-
cado no PAE Juruti Velho, a ação cultural (Educação Jurídica Popular –
Curso de Formação de Lideranças Comunitárias O Direito Achado na
Beira do Rio) em defesa do território constitui-se em ação cultural para a
liberdade.
A avaliação do curso revelou que os encontros na Vila Muirapini-
ma fortaleceram o entendimento das lideranças comunitárias sobre al-
guns temas do direito e com isso auxiliaram no próprio processo de con-
solidação dos cursistas enquanto lideranças de suas comunidades. A mai-
oria dos participantes são procurados pelas associações ou por morado-
res vizinhos para orientações de como resolver determinados conflitos,
especialmente agroambientais e familiares.
Outro ponto destacado foi a habilidade dos facilitadores para a
construção de um ambiente horizontal, onde todos se sentissem à vonta-
de para contribuir com o debate. Essa era uma preocupação enorme do
planejamento do curso - se não fosse a maior! - e foi uma grande felici-
dade poder receber a avaliação positiva nesse aspecto. Um dos principais
objetivos do projeto era proporcionar um espaço onde as lideranças co-
munitárias rompessem o silenciamento em que são constantemente sub-
metidas em espaços de poder e se reconhecessem enquanto sujeitos his-
tóricos donos de um saber próprio, um saber que não é menor ou maior
que outros saberes. Almejou-se tornar possível um espaço onde os traba-
lhadores do campo pudessem ler o mundo e também ter esperança de dias
melhores. Sonhar com outra sociedade (FREIRE, 2016).
Em contrapartida, foi cobrado dos facilitadores o desenvolvi-
mento de mais atividades práticas, técnicas do direito, como a elaboração
de contratos de compra e venda e outros documentos oficiais. Essa é
uma crítica muito interessante para a compreensão do verdadeiro sentido
político da Educação Jurídica Popular. Muitas vezes os educadores estão
64
bastante preocupados com a dimensão “libertadora” da educação, no
sentido mais amplo, de criar mecanismos para a promoção do diálogo
horizontal, e acabam por deixar de lado o comprometimento com o ensi-
no do conteúdo. Almeida (2015) denomina de “ilaraiê da Educação Po-
pular” essa euforia dos estudantes em torno das técnicas pedagógicas da
Educação Popular. Os facilitadores do curso O Direito Achado na Beira
do Rio estavam alinhados com o oferecimento do ensino dos conteúdos
sugeridos pela experiência das lideranças comunitárias de Juruti Velho,
contudo, entende-se haver a necessidade melhorar nesse aspecto.
Considerações finais
65
como no esclarecimento do Projeto de Assentamento Agroextrativista
enquanto modalidade de Reforma Agrária. O módulo sobre Direito dos
Povos e Comunidades Tradicionais problematizou a questão da identida-
de dos moradores locais e debateu quais são os direitos desses grupos es-
pecíficos diante do aparecimento de grandes projetos de “desenvolvi-
mento”. O tema do Direito à Cidade e Bem Viver instigou os cursistas a
refletir sobre os seus horizontes de luta para a Cidade de Juruti/PA e
para a Amazônia.
Assim, os diálogos ocorridos na Vila Muirapinima, apesar de
conterem fragilidades metodológicas, serviram para a problematização da
realidade das comunidades de Juruti Velho e também para o fortaleci-
mento dos sujeitos locais na luta pela apropriação de seu território, no
embate com a dominação exercida pelas forças exógenas – como a em-
presa Alcoa e, em alguns casos, o próprio Estado. Além disso, as trocas
de conhecimentos à beira do Lago Muirapinima estimularam os cursistas
a pensarem permanentemente sobre o seu lugar, a sua cultura e a sua
identidade, a fim de se apossarem efetivamente do que é deles por direi-
to.
Para respaldar este processo, a Educação Jurídica Popular, en-
quanto o conjunto de práticas educacionais propostas por professores,
estudantes e profissionais das Ciências Jurídicas e Ciências Sociais, con-
tribuiu para problematizar a realidade opressora das classes populares,
mas especificamente o caso relatado neste texto, notadamente quanto
aos conflitos que envolveram a necessidade de conhecimento de direitos
e garantias fundamentais. A partir do diálogo sincero e amoroso entre os
saberes científicos e os saberes populares, se almejou potencializar lutas
pela efetivação de direitos desses sujeitos coletivos, ao mesmo tempo em
que se buscou valorizar a humanidade historicamente retirada dos sujei-
tos marginalizados da sociedade juritiense..
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70
III
MUDANÇAS CLIMÁTICAS, BIODIVERSIDADE E
EDUCAÇÃO NA AMAZÔNIA*
Introdução
71
Colares e Colares (2011 e 2018) e documentos de base legal que tratam a
respeito do meio ambiente.
O trabalho encontra-se organizado em cinco tópicos, incluindo a
introdução e as considerações finais. O segundo tópico refere-se às mu-
danças climáticas, no qual se enfatiza a interferência humana sobre a alte-
ração do clima que tem levado os organismos internacionais a discutir e
estabelecer aparatos de controle ambiental, destacando-se que no Brasil o
desmonte dos mecanismos de contenção ambiental tem comprometido
o cumprimento dos tratados internacionais. O terceiro tópico discute a
biodiversidade amazônica e as alterações climáticas, enfatizando-se a ne-
cessidade de se estabelecer parâmetros de controle ambiental com base
na ciência e no respeito à diversidade cultural.
O quarto tópico apresenta a educação no contexto amazônico,
ressaltando-se a importância de problematizar a realidade amazônica e
refletir sobre a diversidade e as singularidades da região no âmbito acadê-
mico e no processo educacional. Destaca-se ainda a relevância da elabo-
ração de políticas educacionais e currículos que considerem as diversida-
des sócio-geográficas e as singularidades regionais. Também nesta unida-
de, enfatiza-se a necessidade de uma formação sólida dos profissionais
da educação que possibilite a problematização e a reflexão sobre as gran-
des questões da Amazônia.
72
Na variabilidade de organismos vivos de todas as origens, com-
preendendo, dentre outros, os ecossistemas terrestres, marinhos e
outros ecossistemas aquáticos e os complexos ecológicos que fa-
zem parte; compreendendo ainda a diversidade dentro de espécies,
entre espécies e de ecossistemas. (BRASIL, 2000, p. 9).
73
acréscimo de 54ppm. Com o aumento das emissões dos gases de
efeito estufa, observado principalmente nos últimos 150 anos,
mais calor passou a ficar retido. (MARENGO, 2006, p. 26-27).
74
das sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, em 1992, realizada no
Rio de Janeiro, também conhecida como Eco-92.
Participaram da conferência 176 países e 1.400 organizações não
governamentais. Nesse encontro foram assinados dois importantes do-
cumentos sobre a questão ambiental, um sobre a biodiversidade e outro
sobre mudanças climáticas. Também, foi instituída a agenda 21 contendo
2.500 recomendações de como agir para atingir o “desenvolvimento sus-
tentável”. Além disso, foi criada a convenção Quadro das Nações Unidas
sobre as Mudanças do Clima, onde ficou acordado que a emissão dos ga-
ses de efeito estufa deveria ser estabilizada (MAGALHÃES, 2006).
Em 1997, na cidade de Kyoto-Japão, realizou-se a terceira Confe-
rência das Nações Unidas sobre o Clima. Nesse encontro foi elaborado o
Protocolo de Kyoto, no qual foram traçadas metas para que os países de-
senvolvidos reduzissem as emissões de gases do efeito estufa. As metas
estabelecidas no Protocolo de Kyoto deveriam ser cumpridas em dois
momentos. No primeiro período, as nações industrializadas deveriam re-
duzir em 5% as emissões de gases de efeito estufa até 2012, tendo como
referência o ano 1990. No segundo período, os países ricos deveriam re-
duzir em pelo menos 18% as emissões de gases de efeito estufa entre os
anos de 2013 a 2020.
Com objetivo de reforçar a capacidade dos países para lidar com
os impactos decorrentes das mudanças do clima, em proporções acelera-
das, em 2015 foi elaborado, na vigésima primeira Conferência das Parte
(COP-21), o Acordo de Paris, com a presença de 195 países que deveri-
am assinar o compromisso de limitar o aumento da temperatura da Terra
em 1,5°C acima dos níveis pré-industriais.
Nessa conferência, o Brasil se comprometeu em reduzir a emis-
são de gases de efeito estufa em 37% até 2025 e em 43% até 2030, tendo
como referência as emissões do ano de 2005. Para isso, o país deveria au-
mentar em sua matriz energética 18% de bioenergia até 2030, restaurar e
reflorestar 12 milhões de hectares de florestas, compromisso ratificado
pelo Brasil em 2016, através do Decreto n°140, de 16 de agosto de 2016.
A partir de então, o Brasil viu-se obrigado a instituir políticas
para diminuir a emissão de gases de efeito estufa para a atmosfera, tendo
como referência a Constituição Federal de 1988, que em seu artigo 225,
75
estabelece um meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito
de todos, e a Lei 12.187/2009, que institui a Política sobre Mudanças do
Clima e estabelece princípios, objetivos, diretrizes e instrumentos para
que isso ocorra.
A esse respeito, Marengo (2019) ressalta que embora o Brasil te-
nha avançado em termos de legislação sobre o clima, as mudanças cli-
máticas têm sido consideradas no ciclo de governos brasileiros como
uma discussão acadêmica ou ideológica, em função de o país ter desisti-
do de sediar a Conferência do Clima em 2019, da ameaça de abandonar
o Acordo de Paris, de ter enfraquecido o Ministério do Meio Ambiente e
os mecanismos que cuidam das questões ambientais e sobre mudanças
climáticas, de incentivar a exploração de minérios em áreas de proteção
ambiental e defender a apropriação de terras por grileiros.
A ausência de mecanismos efetivos para neutralizar as causas das
alterações climáticas pode consolidar um cenário pouco favorável para o
Brasil nos próximos 100 anos, tanto para o meio ambiente como para a
população, principalmente para os grupos mais vulneráveis. Nesse senti-
do, Marengo (2019) enfatiza que a elevação do clima no planeta impacta-
rá negativamente a vida humana, expondo as populações mais vulnerá-
veis a doenças infecciosas e comprometendo a segurança alimentar, a
disponibilidade de água potável e o equilíbrio ambiental.
Acrescenta que as alterações do clima poderão ser mais visíveis e
causar fortes impactos em regiões como a Amazônia, onde poderá ocor-
rer a savanização da floresta equatorial. Em regiões semiáridas, o aumen-
to da temperatura poderá chegar 5°C acima do normal. Até o final do sé-
culo XXI, a caatinga nordestina, por exemplo, poderá ser substituída por
uma vegetação mais árida. Nas zonas costeiras as construções a beira
mar poderão desaparecer, portos poderão ser destruídos e a população
terá que ser remanejada.
Corroborando com essas reflexões, Marques (2020), em artigo
publicado na página da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp),
enfatiza que o desmatamento e as queimadas poderão colocar o Brasil
em situação vulnerável, tornando-se ponto de acesso às próximas pande-
mias:
76
No Brasil a remoção de mais de 1,8 milhão de Km² da cobertura
vegetal da Amazônia e do Cerrado nos últimos cinquenta anos,
para converter suas magníficas paisagens naturais em zonas forne-
cedoras de carne e ração animal, em escala nacional e global, re-
presenta o mais fulminante ecocídio jamais perpetrado pela es-
pécie humana. […] A continuar a devastação, a pecuária e a agri-
cultura de soja levarão em breve à extinção quase 500 espécies de
plantas endêmicas [...]. A Amazônia, que perdeu cerca de 800 mil
km2 de cobertura florestal em 50 anos e perderá outras muitas de-
zenas de milhares sob a sanha ecocida de Bolsonaro, tornou-se,
em sua porção sul e leste, uma paisagem desolada de pastos em
vias de degradação. O caos ecológico produzido pelo desmata-
mento por corte raso de cerca de 20% da área original da floresta,
pela degradação do tecido florestal de, pelo menos, outros 20% e
pela grande concentração de bovinos na região cria as condições
para tornar o Brasil um “hotspot” das próximas zoonoses.
(MARQUES, 2020, n.p.).
77
sete estados da região norte do Brasil (Rondônia, Acre, Amazonas, Ro-
raima, Amapá, Pará e Tocantins), o estado do Mato Grosso e a porção
ocidental do Maranhão. Na região encontram-se também uma variedade
de espécies de plantas, mamíferos, aves, além de abrigar a maior bacia hi-
drográfica do mundo. Essa biodiversidade funciona como uma espécie
de reator para o equilíbrio e estabilidade do planeta. Do ponto de vista
humano, a Amazônia é diversa e apresenta uma rica diversidade cultural
(CORREA; HAGE, 2011).
Apesar de sua importância para o equilíbrio da vida no planeta,
nas últimas décadas, a Amazônia tem sido fragilizada pela ação humana,
que movida pela ganância do capital vê a região como espaço privilegia-
do para exploração de seus recursos naturais. As ações predatórias dos
seres humanos sobre a biodiversidade regional, conforme já mencionado,
contribui para a alteração do clima em escala global, ocasionando danos
ambientais e sociais em proporções irreparáveis. Nobre, Sampaio e Sala-
zar (2007, p. 25) esclarecem que:
78
ra que pode levar a Amazônia a sofrer eventos climáticos extremos. En-
tre estes fenômenos destacam-se: a ocorrência de grandes enchentes e
estiagem que podem provocar inundações e o desaparecimento de núc-
leos populacionais; seca de cursos d’água e a morte de peixes e outras es-
pécies aquáticas; aumento de focos de incêndios e a destruição de ecos-
sistema com morte de inúmeras espécies animais e vegetais; aumento de
pragas que prejudicam as atividades agrícolas; falta de água potável; ame-
aça da agricultura de substância; aparecimento de doenças endêmicas e
infecciosas.
Com objetivo de alertar sobre esse problema, Silvério et al
(2019), do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), emiti-
ram nota técnica enfatizando que coibir o desmatamento e as queimadas
na Amazônia não é apenas uma questão ambiental, mas é garantir que a
população tradicional não seja em pouco tempo dizimada.
79
Essas experiências, porém, não são suficientes para evitar a des-
truição da floresta e da biodiversidade amazônica. Dados do Instituto
Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), por exemplo, mostram que so-
mente no mês de agosto de 2019, os incêndios atingiram uma área de
29.944 quilômetros quadrados da floresta amazônica, equivalente a 4,2
milhões de campos de futebol5, o que torna evidente a necessidade de
uma maior intervenção do Estado brasileiro para inibir essas práticas
destrutivas e a carência de conhecimentos sobre essa temática para dis-
cussão no meio acadêmico e nos espaços educacionais.
80
ainda perdura, de forma positiva ou negativa. As lutas e as con-
quistas, a até mesmo as derrotas, carregam lições a aprendizados
que podem se constituir em verdadeiras chaves para a solução de
problemas da nossa atualidade. (COLARES, 2018, p. 14).
81
considerados: a biodiversidade, a diversidade sociocultural e a diversida-
de produtiva.
Sobre a biodiversidade, Correa e Hage (2011) enfatizam a neces-
sidade de se integrar ao processo educacional o conhecimento sobre as
riquezas naturais da região, que envolve a floresta, os animais, as plantas
medicinais, aromáticas, alimentícias, corantes, mamíferos, aves e outras
potencialidades regionais. Com relação a diversidade sociocultural, lem-
bram que a Amazônia é diversa, composta por diferentes grupos huma-
nos que vivem no espaço urbano e no meio rural. Entre os quais se en-
contram imigrantes, indígenas, quilombolas, ribeirinhos, sem-terra, as-
sentados de “reforma agrária”, pescadores e camponeses.
Sobre as atividades produtivas, enfatizam que a Amazônia apre-
senta uma estrutura complexa, realizando-se no mesmo espaço ativida-
des econômicas familiares, que utilizam tecnologias simples, e formas de
produção capitalistas, voltados para a exportação, que utilizam técnicas
modernas e mais eficientes. Nesse sentido, torna-se relevante pensar um
currículo e práticas educativas que contemplem as grandes questões que
envolvem a Amazônia mencionadas neste texto. Todavia, essa revisão
não poderá ocorrer por meio de medidas provisórias, que valorizam os
saberes de algumas disciplinas em detrimento de outras, mas deve ser
elaborada de forma crítica, analítica, reflexiva e coletiva.
82
nas localidades campesinas da microrregião de Santarém-Pará. Como
bem ressaltam, Silva e Sá (2016, p. 47):
83
do processo educacional. Sendo necessário ampliar o conhecimento so-
bre a região, refletindo acerca das questões que fundamentam os proble-
mas socioambientais enfrentados pelas comunidades ribeirinhas, quilom-
bolas, indígenas, extrativistas, de migrantes e assentados de “reforma
agrária”.
Os conhecimentos produzidos e as reflexões realizadas devem
considerar suas culturas e particularidades, reivindicando e empoderando
esses grupos humanos a reivindicarem a elaboração de políticas públicas
voltadas para atender suas necessidades educativas e garantir a perma-
nência das populações tradicionais amazônicas nos territórios historica-
mente delimitados.
Nesse sentido, as instituições públicas de ensino e os programas
de pós-graduação em Educação podem contribuir para a construção de
uma educação que contemple a heterogeneidade e as singularidades da
Amazônia, na perspectiva da totalidade. Pode também constituir-se em
um espaço de luta em prol dos grupos historicamente e socialmente des-
considerados pelas políticas públicas educacionais, superando o modelo
e práticas educativas fragmentadas que contribui para a manutenção do
pensamento unificado e para ampliação das desigualdades regionais
(COLARES; COLARES, 2011).
Considerando-se que, conforme ressalta Severino (2006), os
compromissos éticos, político da educação é a construção de uma nova
sociedade. Para que isso ocorra é necessário desenvolver os conhecimen-
tos científico, filosófico e ético-estético, com os quais pretende-se contri-
buir ao problematizar e refletir sobre as mudanças climáticas, a biodiver-
sidade e a educação na Amazônia, apresentados no decorrer deste artigo.
Considerações finais
84
períodos geológicos, fica evidente, porém, que as atividades humanas
têm interferido na alteração do clima.
É notório que as alterações climáticas, que ameaçam a biodiversi-
dade e as condições de vida no planeta, têm levado os organismos inter-
nacionais a estabelecerem diálogos, convenções e acordos supranacio-
nais, iniciativas não cumpridas efetivamente em função de pressões dos
setores produtivo-industrial e de grandes corporações capitalistas.
Constata-se que no Brasil o desmonte dos mecanismos governa-
mentais de controle ambientais têm comprometido a efetivação dos
acordos e metas estabelecidas internacionalmente. No contexto amazôni-
co, destaca-se a necessidade de se estabelecer mecanismos de controle
ambiental com base na ciência e no respeito à diversidade cultural.
Destaca-se a necessidade de incluir nos debates acadêmicos e nas
reflexões a diversidade e as singularidades amazônicas, sendo imprescin-
dível a construção coletiva de políticas educacionais com currículos que
considerem as diversidades sociogeográficas e as singularidades da regi-
ão. Por fim, defende-se a necessidade de uma formação inicial sólida e de
um processo contínuo de aperfeiçoamento dos professores para que se-
jam capazes de conhecer, problematizar, refletir sobre as grandes ques-
tões da Amazônia.
Referências
85
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89
IV
CONCEITUALIZAÇÕES DE TERRITÓRIO AMAZÔNICO E
UM RETRATO HISTÓRICO DAS QUESTÕES AGRÁRIAS NO
BRASIL*
Introdução
91
acerca do conceito “território”, sendo que este é classificado como uma
categoria, onde encontram-se também a paisagem, lugar, região e espaço
e todos estes componentes constituem uma das principais bases de estu-
do da Geografia. No entanto, faz-se necessário destacar que “território”
não é um conceito exclusivamente da Geografia, sendo que o termo tam-
bém é utilizado pelas ciências sociais, humanas e da saúde o que o torna
polissêmico e não generaliza o seu conceito somente as questões ligadas
a ciência geográfica.
A partir da concepção da ciência geográfica moderna podemos
afirmar que o território passou a ser concebido como o solo (terra) e o
povo (habitantes) sendo estes os pilares sobre o qual se constrói e está
organizada a sociedade atual chamada de Estado Moderno por Ratzel 3
(1990 [1914]),
92
Em sua obra o geógrafo “Geografia Nova”, defendia principal-
mente o conceito de “território” como o caráter social do espaço através
da noção de “meio técnico-científico informacional”, que seria a trans-
formação do espaço natural realizada pelo homem através do uso das
técnicas.
93
pelo todo, e a caracterização populacional de um “pedaço” da
Amazônia é utilizada como expressão representativa da região
como um todo.
Se antes a Amazônia se via, mas não via o mundo, devido aos seus
apagões estruturais, hoje a Amazônia consegue ver muito do mun-
do, mas a opacidade do capitalismo não nos deixa enxergar nossas
próprias raízes, nossas diversidades culturais e sociais.
6
Sociodiversidade é a posse de recursos sociais próprios, de modelos diferentes de autoridade
política, de acesso à terra ou de padrão habitacional, de hierarquias próprias de valores ou prestí-
gio. É a diversificação de culturas, etnias, raças e ideologias presentes na sociedade.
94
ra, florestas, minerais e etc) de modo a atender suas necessidades mais
básicas como alimentação por meio da agricultura familiar.
Um exemplo desse tipo de relação são dos povos ribeirinhos
que residem no entorno dos rios da Amazônia, pois os mesmos vivem
da cultura pesqueira artesanal sendo que na maioria das vezes a pesca é
somente para o consumo familiar ou comunitário das pessoas que fazem
parte daquela região.
Devido aos avanços do agronegócio que tem por finalidade in-
tegrar a Amazônia a economia não só nacional como mundial as formas
de exploração da natureza e as relações do homem com a mesma muda-
ram nos últimos 30 anos. Com isso, sugiram as diversas formas de explo-
ração dos recursos naturais como: terra para pastagens, fontes de água,
floresta para a retirada de madeira, exploração de plantas para uso medi-
cinal e cosmético, venda de animais silvestres e a corrida pela exploração
dos minérios.
Diante do avanço crescente das grandes fronts agropecuários os
pequenos produtores e agricultores que em sua maioria são posseiros
tem suas terras invadidas ou compradas devido a expansão das fronteiras
agrícolas o que resulta em outra problemática que é a saída dos povos de
sua terra para as áreas urbanas devido as questões agrárias existentes.
95
de uma população que vive na zona rural mas não tem acesso à proprie-
dade de terra enquanto as questões agrarias de acordo com Fernandes
(2008) é “um problema estrutural do capitalismo” causando conflitos,
exclusão, desigualdades sociais, expropriação e, portanto, necessita de
uma política territorial: A reforma agrária.
Pode- se dizer que o monopólio de terras no Brasil tem suas ori-
gens no século XVI com as Capitanias Hereditárias 7 doadas pelo Rei
Dom João III aos nobres de sua confiança quando o Brasil foi divido em
15 lotes de extensões de terra tornando-se propriedades de fidalgos. A
estrutura fundiária Brasileira origina- se daí com os grandes latifúndios
escravistas resultante da má distribuição de terras iniciadas na coloniza-
ção permanecendo até os dias atuais apenas com novas roupagens.
Mais de 500 anos depois da colonização ainda vemos os resulta-
dos desse modelo embora o discurso de que a diminuição dessa desigual-
dade tenha diminuído elas permanecem e os latifúndios no Brasil predo-
minam e os que permanecem no campo vivem em situações difíceis
como pequenos investimentos diante das necessidades do agricultor.
A base do latifúndio brasileiro é composto por trabalho escravo
de início de origem indígena e posteriormente de negros vindo das aldei-
as africanas principalmente nas lavoras de açúcar no nordeste brasileiro
que teve seu auge no século XVI e XVII. As sesmarias ocasionou as
grandes formações dos latifúndios brasileiros.
Com a pressão dos ingleses para a abolição da escravidão e subs-
tituição por trabalho assalariado, em 1850 foi criada a Lei de Terras no
Brasil baseada na relação de igualdade e liberdade defendida na Revolu-
ção Francesa8 assimilado pelo capitalismo nascente onde neste discurso
os trabalhadores devem ser livres para venderem sua força de trabalho
aquém puder pagar o que não ocorria quando o escravo era propriedade,
portanto, sem direito de vender sua força de trabalho. (MARTINS, 1995,
p. 153). Só que o escravo se tornaria livre para vender sua força de traba-
7
As capitanias do Brasil foram uma forma de administração territorial da América portuguesa,
parte do Império Português, pela qual a Coroa, com recursos limitados, delegou a tarefa de
colonização e exploração de determinadas áreas.
8
Revolução Francesa foi um período de intensa agitação política e social na França, que teve um
impacto duradouro na história do país e, mais amplamente, em todo o continente europeu. A
monarquia absolutista que tinha governado a nação durante séculos entrou em colapso em ape-
nas três anos
96
lho e não para tornar- se dono de suas próprias terras. É nesse sentido
que a Lei de Terras no Brasil foi criada.
A Lei de Terras instituía que “qualquer cidadão brasileiro poderia
se transformar em proprietário privado de terras”, desde que pagasse o
valor certo a coroa. Qual seria esse valor certo? Pode- se observar desde
ai o impedimento do acesso à terra embora a lei afirmasse que qualquer
cidadão teria direito a terra, na prática, como nos dias atuais somente
aqueles com poder aquisitivo pode ter acesso à terra.
97
Mas, foi na segunda metade do século XX que esta fusão se am-
pliou significativamente. Após a deposição, pelo Golpe Militar de
64, de João Goulart, os militares procuraram ressoldar esta aliança
política, particularmente porque durante o curto governo João
Goulart ocorreram cisões nas votações do Congresso Nacional
em aspectos relativos à questão agrária, principalmente quando
uma parte dos congressistas votaram a legislação sobre a Reforma
Agrária (OLIVEIRA, 2001, p. 186).
98
Com a Constituição Federal de 1988 o estatuto da propriedade
fundiária legitimou a função social da terra embora os ruralistas tenham
tido ao seu favor emendas constitucionais, os movimentos sociais tam-
bém tiveram importantes conquistas ao que se refere ao direito das terras
em seu art. 184 que trata da desapropriação para fins de reforma agraria
caso a terra em questão não esteja cumprindo sua função social será de-
sapropriado.
Nos anos de 1990 pouco foi feito pela Reforma Agraria e a luta
pela terra sofreu um retrocesso já esperado o governo Collor uma vez
que o governo era neoliberal e a Reforma Agraria não era uma prioridade
justificando porque esta década foi marcada por muitos conflitos agrá-
rios.
O governo de FHC é marcado pela implantação do projeto neoli-
beral no campo brasileiro, onde houve a criminalização dos movimentos
sociais do campo e a criação da reforma agrária de mercado que entre os
objetivos propõe:
99
à terra, implementar ações que conduzissem as famílias a geração de ren-
da, e também dar acesso a essas famílias a direitos fundamentais como:
saúde, educação, saneamento, energia elétrica” (BRASIL, II PNRA,
2003)
Assim como o I PNRA nos governos anteriores, o II PNRA
também foi pouco implementado ao longo dos oito anos de governo
Lula. As metas do II PNRA não foram cumpridas, pois segundo o go-
verno a prioridade eram os assentamentos.
Sabe- se que o capitalismo se expande a partir da renda territorial
onde a terra é comprada, explorada e vendida objetivando sempre o lu-
cro, base do capitalismo explicando assim os conflitos agrários uma vez
que os grandes latifundiários objetivam o lucro sem a preocupação com
as questões sociais e em contrapartida os camponeses buscam suas me-
lhorias e de suas famílias, as lutas pela terra e pela reforma agrária são lu-
tas contra o capital (MARTINS, 1995, p. 177).
A guisa de conclusão
100
A negação de direitos fundamentais sustentada por intermináveis
e até questionáveis revisões das leis ambientais, agrarias, territoriais e so-
ciais com decisões políticas retrocessivas e contraria a minorias e ao
povo rural menos favorecido consiste em expediente de privilégios de in-
teresse econômico pelos setores privados aumentando a desigualdade so-
cial espacial deteriorando o ambiente e as relações humanas dentro do
espaço Amazônico.
Referências
101
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______. João Pedro. O MST e a luta pela terra. In: Teoria e Debate. n. 24,
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102
EIXO II
O AVANÇO DO AGRONEGÓCIO E OS IMPACTOS DO
“DESENVOLVIMENTO” DIANTE DAS REFLEXÕES SOBRE
SUSTENTABILIDADE
103
V
ENTRE O RIO E A FLORESTA:
O OLHAR DE DOIS CABLOCOS SOBRE A AMAZÔNIA
BRASILEIRA*
Introdução
*
DOI - 10.29388/978-65-86678-45-1-0-f.105-138
1
Mestrando em Educação na Amazônia – Programa de Pós Graduação em Educação-PPGE-
UFOPA (2020). [email protected]
2
Mestre em Teologia pela EST (2008). Mestrando em Educação pela UFOPA (2020). E-mail-cle-
[email protected]
3
Doutor em Educação. Professor Titular da Universidade Federal do Oeste do Pará. Docente do
Programa de Pós-graduação em Educação PPGE/UFOPA. Coordenador do Programa de Pós-
graduação em Educação na Amazônia - Doutorado Acadêmico (Associação em Rede - Polo San-
tarém/UFOPA). Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas “História, Sociedade e Educação no
Brasil HISTEDBR/UFOPA”. Presidente da Academia de Letras e Artes de Santarém (ALAS). E-
mail: [email protected]. ORCID: http://orcid.org/0000-0002-1767-5640
105
O conceito de região entre o singular e o universal
106
interesses identificadas a uma certa área e, finalmente, se ela é
sempre uma discussão entre os limites da autonomia face a um
poder central, parece que estes elementos devem fazer parte desta
nova definição em lugar de assumirmos de imediato uma solidarie-
dade total com o senso comum que, neste caso da região, pode
obscurecer um dado essencial: o fundamento político, de controle
e gestão de um território.
107
Por sua vez Pedro Pinchas Geiger (1969) 4 também destaca a relação en-
tre região e regionalização “região, são porções diferenciadas da super-
fície terrestre e a regionalização é a forma atual de formação de regiões,
no sentido estreito da palavra, como uma forma geográfica que surge
apenas em determinada fase histórica de um território”.
Em sua conceituação Pedro Geiger destaca a relação entre o con-
ceito de região ao conceito de território, relação esta que perpassa pela
criação do conceito de região enquanto teoria e a apropriação deste con-
ceito enquanto espaço vivido.
108
Já Delgado de Carvalho (1913), propõe a divisão do Brasil em 5
regiões: Brasil Setentrional ou Amazônia, Brasil Norte-Oriental, Brasil
Oriental, Brasil Meridional e Brasil Central, sua obra Metodologia do En-
sino da Geográfico (1925), destinada a professores, é apontada como a
mais importante contribuição para o ensino da Geografia na primeira
metade do século XX.
Em sua obra Geografia do Brasil, no Tomo I, definiu a regionali-
zação que seria adotada oficialmente pelo IBGE em 1942, base da classi-
ficação vigente até os dias atuais, ocasião em que propõe o conceito de
região natural como sendo a referência para o processo de regionalização
do Brasil, que pode assim ser entendida nas palavras de Carvalho.
109
rando o interesse em que o novo governo tem de centralizar o poder e
diminuir o poder das oligarquias regionais.
No século XX, foram elaboradas pelo IBGE diversas divisões re-
gionais contemplando os conceitos de Zonas Fisiográficas (década de
1940 e 1960), Microrregiões e Mesorregiões Homogêneas (1968 e 1976,
respectivamente) e Mesorregiões e Microrregiões Geográficas (1990).
O IBGE6 utiliza critérios diferenciados em suas regionalizações e
também modifica a alocação dos Estados federados nas grandes regiões,
em 1942, é proposto pela primeira vez à agregação de Unidades da Fede-
ração em Grandes Regiões definidas pelas características físicas do terri-
tório brasileiro e institucionalizadas com as denominações de: Região
Norte, Região Meio- Norte, Região Nordeste Ocidental, Região Nordes-
te Oriental, Região Leste Setentrional, Região Leste Meridional, Região
Sul e Região Centro-Oeste.
Em consequência das transformações ocorridas no espaço geo-
gráfico brasileiro, nas décadas de 1950 e 1960, uma nova divisão em Ma-
crorregiões foi elaborada, em 1970, introduzindo conceitos e métodos
reveladores da importância crescente da articulação econômica e da es-
trutura urbana na compreensão do processo de organização do espaço
brasileiro, que resultaram nas seguintes denominações: Região Norte, Re-
gião Nordeste, Região Sudeste, Região Sul e Região Centro-Oeste, que
permanecem em vigor até o momento atual.
110
mica econômica regional. Por sua vez Roberto Lobato Corrêa em sua
proposta de regionalização considera os limites dos Estados federados.
Segundo afirma (CORREA7, 1989, p.4), para que se possa cons-
truir uma regionalização geoeconômica algumas característica devem
existir para que se possa fazer a diferenciação entre as regiões geoeconô-
micas, tais como, distintas especializações produtivas e de modos de
como essa produção se realiza envolvendo os meios de produção e as re-
lações sociais de produção, diferentes formas materiais criadas pelo tra-
balho social em seu arranjo espacial e diferentes níveis de articulação in-
ter-regional e internacional. Em sua proposta de regionalização geoeco-
nômica para a Amazônia, a proposta do referido autor está assim explici-
tada.
C
omo se observa na proposta de regionalização da Amazônia Roberto
Corrêa inclui Estados do Centro-Oeste (Mato Grosso) e do Nordeste
(Maranhão) em sua totalidade, diferentemente da regionalização propos-
ta por Pedro Geiger. A proposta de se criar uma regionalização feita pelo
IBGE ao longo do processo histórico é criticada pois desconsidera as di-
nâmicas inter-regionais se desloca da realidade e ignora a integração soci-
oeconômica e histórico-geográfica dessas regiões. Segundo Albuquerque
os complexos regionais brasileiros têm a seguinte delimitação:
7
CORRÊA, Roberto Lobato. A organização regional do espaço brasileiro. In: Conferência na X
Semana de Geografia do Departamento de Geociências da Universidade Federal de Santa Catari -
na, Florianópolis, maio de 1989.
111
A Amazônia- Compreende toda a extensão da floresta Amazôni-
ca localizada em território brasileiro. Integrada por todos os esta-
dos da região Norte, além do Mato Grosso (exceto sua porção sul)
e oeste do Maranhão. Centro-Sul- O complexo regional do Cen-
tro-Sul corresponde a quase um terço do território nacional, com-
preende aos estados das regiões Sul e Sudeste (exceto o extremo
norte de Minas Gerais), ao estado de Goiás, Mato Grosso do Sul,
extremo sul do Mato Grosso e extremo sul do Tocantins. Nor-
deste- O complexo regional do Nordeste vai desde a porção leste
do Maranhão até o norte de Minas Gerais, incluindo todos os es-
tados nordestinos. (ALBUQUERQUE, 2013, p.27)
8
A região funcional é aquela definida a partir de sua atividade econômica principal dentro de
uma divisão territorial do trabalho. As regiões funcionais derivam da fragmentação do mundo re -
sultante da divisão internacional do trabalho no interior do capitalismo mundial e se formam na
esteira do processo de modernização seletiva dos territórios nacionais (Santos, 2003).
9
GEIGER, PEDRO PINCHAS. Revista Brasileira de Geografia, Regionalização: Brasília-DF.
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/115/rbg_1969_v31_n1.pdf. Acesso em
30 de julho de 2020.
112
Por sua vez Aziz Ab´Saber10 segundo Albuquerque (2013, p.91)
possui uma proposta que divide o Brasil em domínios morfoclimáticos:
Amazônico, Cerrado, Mares e Morro, Caatinga, Araucárias, Pradarias
Zona Costeira e Faixas de Transição. O referido autor conceitua que o
domínio morfoclimático consiste em um “conjunto espacial de certa or-
dem de grandeza territorial - centenas de milhares de quilômetros qua-
drados de área - onde haja um esquema coerente de feições de relevo, ti-
pos de solo, formas de vegetação e condições climáticos-hidrológicas”. A
wwf Brasil11 uma das maiores ONGs (Organizações Não Governamen-
tais) que atua na Amazônia, descreve em poucas palavras a grandeza do
Bioma Amazônia.
10
ALBUQUERQUE, Maria Adailza Martins de Geografia sociedade e cotidiano: espaço brasilei -
ro, volume 2/ Maria Adailza Martins de Albuquerque, José Francisco Bigotto, Márcio Vitiello.3ª
Ed. São Paulo: Escala Educacional, 2013.
11
WWF BRASIL. Biomas. Disponível em www.wwf.org.br/naturza brasileira/areas
prioritárias/amazonia1/bioma amazonia/. Acesso em 30 de julho de 2020.
113
Em um pequeno trecho de texto, a Amazônia Transnacional ba-
seado no Bioma Amazônia demonstra toda a sua grandeza, possuindo a
maior bacia hidrográfica do mundo, maior rio do mundo, Rio Amazonas
segundo o INPE, o maior aquífero do mundo Grande Amazônia, e uma
mega biodiversidade e socio diversidade. Por sua vez Becker (BECKER,
2009, p.53) destaca a chamada Amazônia Transnacional abrangendo
1/20 da superfície terrestre e a dois quintos da América do Sul, contendo
um quinto da disponibilidade mundial da água doce (17%) e um terço
das florestas mundiais latifoliadas, a Amazônia pode ser considerada o
coração ecológico do planeta.
114
lizadas na alimentação, construção naval, condimentação e farmacopeia
europeia.
O delineamento da Amazônia ocorre quando aumenta a preocu-
pação imperial com a internacionalização da navegação do Rio Amazo-
nas a partir de 1850 se inicia o chamado “Ciclo da borracha”. No perío-
do de 1899 a 1930 se define os limites da região através da diplomacia e
do controle interno do território pelo exército brasileiro.
A autora destaca ainda a existência de três elementos que mere-
cem destaque no período de formação da região: a) uma ocupação tardia
dependente do mercado externo, b) A importância da geopolítica e c) A
experiência e o confronto de modelos de ocupação territorial.
Ressalta a autora que inserção tardia da Amazônia, do
Brasil e de toda a América Latina na chamada economia-mundo capita-
lista ocorre a partir do processo de expansão marítimo comercial de em-
presas europeias na chamada fase do capitalismo comercial, passando a
ser o que a autora chama de “economia de fronteira” conceito este que
ocupa lugar central em toda a pesquisa da mesma em relação a Amazô-
nia, ressalta-se ainda que essa inserção na periferia da chamada econo-
mia-mundo ocorre através de momentos de valorização dos produtos
amazônicos na economia internacional e momentos de estagnação.
Quanto a geopolítica, destaca que garantiu o controle do territó-
rio pelos portugueses, os mesmos ao escolherem locais estratégicos para
fixarem seus fortes que posteriormente se transformaram em povoados,
vilas e cidades e a consolidação do princípio uti possidetis garantindo
pelo Tratado de Madri foi uma primeira vitória na ocupação territorial,
vitória esta que se manteve posteriormente com a autonomia do Brasil
em relação à Portugal, tal fato é destacado por que sem um aumento po -
pulacional correspondente ao tamanho da área ou uma consolidação da
economia foi mantida a soberania da região.
Por fim destaca Becker (2009) que se consolidou duas concep-
ções distintas de ocupação territorial. Uma baseada numa visão externa ao ter-
ritório, que reafirma a soberania, no entanto privilegia a relação com a
metrópole. Exemplos dessa concepção, são representados pela era do
Marquês de Pombal durante o Brasil colônia no Império e no Ciclo da Borracha. A
outra concepção é baseada em uma visão interna do território, e está relacionado
115
com os habitantes locais da Amazônia, representado pelas missões no período
das “drogas do sertão” fato este contribui de forma inequívoca para a ocu-
pação territorial da Amazônia.
116
Quem assume o protagonismo desta ação é o Deputado Federal
Leopoldo Peres do Estado do Amazonas. A inspiração para a criação
desta política vem dos EUA através do Tenesse Valley Authority Act, de
acordo com Segundo Ferreira (2006, p.6), esta política tem as seguintes
características.
117
A primeira proposta de regionalização da Amazônia remonta a
Lei 1.806/53, que dispõe sobre o Plano de Valorização Econômica da
Amazônia (SPVEA), cria a superintendência da sua execução e dá outras
providências, nesta lei está proposta a seguinte delimitação para a chama-
da Amazônia legal, que está circunscrita ao território brasileiro, em seu
Art. 1º destaca os objetivos do plano e no 2º delimita a área da Amazô-
nia.
118
Essa proposta de delimitação vai se manter no tempo com pe-
quenas modificações, decorrentes da criação da Sudam através da Lei
5.173/66- e da recriação da Sudam através da Lei 124/2007- no Gover-
no Luiz Inácio Lula da Silva, após a sua extinção no ano de 2001 pelo
Governo Fernando Henrique Cardoso, destaca-se ainda uma substantiva
mudança na composição do conselho deliberativo da Sudam/Spvea en-
tre as referidas leis.
Art. 2º A Amazônia Art. 2º A Amazônia, para Art. 2o A área de atuação da
brasileira, para efeito os efeitos desta lei, abrange Sudam abrange os Estados
de planejamento eco- a região compreendida pe- do Acre, Amapá, Amazonas,
nômico e execução los Estados do Acre, Pará e Mato Grosso, Rondônia, Ro-
do Plano definido Amazonas, pelos Territó- raima, Tocantins, Pará e do
nesta lei, abrange a re- rios Federais do Amapá, Maranhão na sua porção a
gião compreendida Roraima e Rondônia, e ain- oeste do Meridiano 44.
pelos Estados do Pará da pelas áreas do Estado de
e do Amazonas, pelos Mato Grosso a norte do Composição do conselho
territórios federais do paralelo de 16º, do Estado deliberativo da Sudam
Acre, Amapá, Guapo- de Goiás a norte do parale-
ré e Rio Branco e ain- lo de 13º e do Estado do Art. 8o Integram o Conselho
da, a parte do Estado Maranhão a oeste do meri- Deliberativo da Sudam: I -
de Mato Grosso a diano de 44º. os governadores dos Estados
norte do paralelo de de sua área de atuação; II -
16º, a do Estado de Composição do conselho os Ministros de Estado de-
Goiás a norte do pa- deliberativo da Sudam signados pelo Presidente da
ralelo de 13º e a do República, limitados ao nú-
Maranhão a oeste do Art. 16. O Conselho Deli- mero de 9 (nove); III - 3
meridiano de 44º. berativo é integrado pelo (três) representantes dos Mu-
Superintendente da nicípios de sua área de atua-
SUDAM, pelo Presidente ção, escolhidos na forma a
Composição do do Banco da Amazônia ser definida em ato do Poder
119
conselho deliberati- S.A., por um representante Executivo; IV - 3 (três) re-
vo da Sudam do Estado-Maior das For- presentantes da classe em-
ças Armadas, um da Supe- presarial e 3 (três) represen-
Art. 24. O Superin- rintendência da Zona Fran- tantes da classe dos trabalha-
tendente presidirá a ca de Manaus, um de cada dores de sua área de atuação,
uma Comissão de Estado e Território inte- indicados na forma a ser de-
Planejamento da Va- grante da Amazônia, um do finida em ato do Poder Exe-
lorização Econômica Banco Nacional do Desen- cutivo; V - o Superintenden-
da Amazônia, com- volvimento Econômico, te da Sudam; VI - O Presi-
posta de quinze mem- um do Instituto Nacional dente do Banco da Amazô-
bros sendo seis técni- do Desenvolvimento Agrá- nia S.A - BASA.
cos correspondentes rio, um do Instituto Brasi-
aos setores gerais de leiro de Reforma Agrária,
atividade que integra- um da Fundação de Serviço
rão o Plano, e nomea- Especial de Saúde Pública,
dos pelo Presidente um do Conselho Nacional
da República e nove de Pesquisas e um de cada
representantes dos Ministério a seguir mencio-
Estados e Território nado; - Agricultura, Comu-
Amazônicos um para nicações, Educação e Cul-
cada uma das entida- tura, Fazenda, Minas e
des administrativas Energia, Planejamento, Re-
interessadas, e desig- lações Exteriores, Saúde,
nados pelos respecti- Indústria e Comércio, Tra-
vos governos. balho e Previdência Social e
Transportes.
Fonte: Elaborado com base nas Leis Federais: 1.806/53 -SPVEA- 5.173/66-
criação da Sudam-124/2007- Nova Sudam
120
somente a presença de técnicos, do superintendente e dos governadores.
Já na lei surgem novos personagens: a Superintendência da Zona Franca
de Manaus, do Banco de Desenvolvimento Econômico, do Incra, Fun-
dação de Saúde Pública, Conselho Nacional de Pesquisa e a presença de
11 ministérios. Já em decorrência da Lei 124/2007, temos o surgimento
entre os membros do conselho deliberativo a presença de representante
dos municípios, a representação de 3 membros da classe empresarial e da
classe trabalhadora, superintendente da própria Sudam e do Basa.
Um aspecto que deve ser observado nessa delimitação é que a in-
fluência do projeto do Tenesse Valley Authority Act (EUA) como refe-
rência de projeto de desenvolvimento regional, se confirma pois o referi-
do projeto está totalmente baseado nas bacias hidrográficas daquela regi-
ão, bem como, seus planos de desenvolvimento estão baseados nos re-
cursos naturais existentes na área, tal influência se faz sentir na delimita-
ção da chamada Amazônia Legal.
13
FERREIRA, Pulga Mário Silvio. As origens da política brasileira de desenvolvimento regional:
O caso da superintendência de valorização econômica da Amazônia (SPVEA). Instituto de Eco -
nomia Unicamp. 2016. Disponível em https://www.eco.unicamp.br/images/arquivos/artigos/
3461/TD266.pdf. Acesso em 30 de julho de 2020.
121
Nos anos 1960 o Governo Federal, como estratégia para dimi-
nuir as tensões no campo especificamente nas regiões nordeste e sul e
objetivando iniciar uma frente de expansão populacional e estendendo a
fronteira econômica, ampliar o mercado interno e integrar a Amazônia
ao restante do país os militares estimulam a vinda de trabalhadores rurais
e de empresas para se instalar na Amazônia.
No Quadro 3 temos uma sintetize das diversas formas de financi-
amento do Estado na Amazônia Legal, percebe-se uma evolução nos ins-
trumentos financeiros, evoluímos de uma porcentagem do orçamento
para a consolidação de investimentos através de fundos inseridos na
Constituição do Brasil.
122
contratos jurídicos dela lios, subvenções, contri-
decorrentes; d) o produto buições e doações de enti-
de operações de crédito e dades públicas ou privadas,
de dotações extraordiná- nacionais, internacionais e
rias da União, dos Estados estrangeiras; VII - as ren-
ou Municípios. § 2º As das provenientes de servi-
rendas provenientes das ços prestados; VIII - a sua
percentagens mencionadas renda patrimonial. Parág-
nas alíneas a e b do parág- rafo único. Os recursos
rafo anterior serão recolhi- não utilizados em um exer-
das mensalmente às agên- cício passarão aos exercí-
cias do Banco do Brasil e cios subsequentes. (Reda-
creditadas ao Fundo de ção dada pela Lei nº 5.374,
Valorização Econômica da de 1967)
Amazônia
Fonte: Elaborado com base nas Leis Federais: 1.806/53 -SPVEA-
5.173/66- criação da Sudam-124/2007- Nova Sudam
123
Em seu artigo 24º a lei prevê a participação dos representantes
dos Estados em uma comissão responsável pela elaboração, execução e
monitoramento do plano, mais não existe uma previsão de participação
de representantes dos municípios e entidades da sociedade civil organiza-
da.
Um outro destaque na referida lei é que os aspectos físicos da na-
tureza relacionado ao Bioma Amazônia foi determinante na delimitação
da região da Amazônia Legal, pois os limites da referida região seguem
os limites deste bioma, tal fato fica evidente quando se inclui na referida
região 24% do território do Estado do Maranhão, ou seja o traçado da
região segue os limites do Bioma e não dos Estados Federados, tais
como, o próprio Estado do Maranhão.
Por sua vez a professora Berta Becker (2009), com outras pala-
vras faz o mesmo questionamento, ao finalizar sua obra sobre os desti-
nos da Amazônia, assim descreve sua última fase “A incógnita do Hear-
tland (1985...)”, traduzindo para o português, Heartland quer dizer
“Aquilo que se desconhece e se deseja saber da terra do coração”, pode-
mos concluir que o enigma da margem do rio de João de Jesus de Paes
Loureiro é o mesmo da terra do coração de Berta Becker, a ciência e a
poesia unidas pelo coração. Além do coração a fala do poeta nos traz um
14
LOUREIRO, João de Jesus de Paes. Meditação devaneante entre o rio e a floresta. Revistado
Ppgartes. UFPA, 2016.
124
conceito que é central de Berta Becker em sua pesquisa sobre a Amazô-
nia, o conceito de Fronteira.
Segundo Berta Becker (2009) o ano de 1985 nos traz dois processos
opostos, de um lado o esgotamento do nacional desenvolvimentismo inaugurado na
era Vargas com a intervenção do Estado na economia e no território,
cujo último grande projeto foi o Projeto Calha Norte, no outro lado tem
início a criação do Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS), que é um símbo-
lo da resistência das populações locais – autóctones e migrantes- à expro-
priação da terra.
No período de 1985 a 1996 soma-se a pressão ambientalista in-
ternacional e nacional um vetor tecno-ecológico (VTE), criando na Ama-
zônia uma fronteira socioambiental através da execução de múltiplos proje-
tos. ONGs, organizações religiosas, agências de desenvolvimento, parti-
dos políticos, governos constroem novas territorialidades, tendo como
estratégia básica a utilização das redes de comunicação que lhes permi-
tem se articular com atores em várias escalas geográficas. Dentre esses
atores internacionais destacam-se o G7 (Grupos das 7 economias mais
ricas do mundo), que atua na Amazônia com o PP-G7- Programa Piloto
para a Proteção das Florestas Tropicais Brasileiras, o Banco Mundial, se
cria nesse período o Ministério do Meio Ambiente, dos Recursos Hídri-
cos e da Amazônia Legal.
Esta fronteira socioambiental, cria um modelo de desenvolvimento en-
dógeno, voltado para uma visão interna da região e para os habitantes locais, ten-
do dentre outros objetivos a defesa de um modelo de desenvolvimento
que a partir de soluções locais busca solucionar problemas globais relati-
vo ao Bioma Amazônia a partir da proteção da biodiversidade e da socio
diversidade da Amazônia.
Em 1996, segundo Becker (1999), já no Governo Fernando Hen-
rique Cardoso tem início uma nova fase no processo de ocupação regio-
nal, uma série de políticas paralelas e conflitantes, por isso explica a auto-
ra “a incógnita de heartland”. Neste ano é retomado o Planejamento
Territorial da União, fortalecendo um outro vetor de desenvolvimento
denominado pela autora de termoindustrial (VTI), esse vetor reúne pro-
jeto de atores como empresários, bancos, segmentos de governos estadu-
ais e federal e Forças Armadas, tal vetor se materializa pelos Programa
125
Brasil em Ação (1996) e Avança Brasil (1999), pautados nos eixos nacionais
de integração, estes programas favorecem a retomada de um modelo de for-
ças exógenas que tem por meta a exploração de recursos para exportação,
por esse motivo acaba conflitando com fronteira socioambiental.
Eis segundo Fernando Henrique Cardoso15 trecho do o progra-
ma Brasil em Ação que versa sobre a integração nacional:
15
CARDOSO, Fernando Henrique. Programa Brasil em Ação. Brasília-DF, 1998. Disponível em
https://web.archive.org/web/20110404114243/http://www.abrasil.gov.br/anexos/anexos2/
bact.htm. Acesso em 30 de julho de 2020.
126
sul do Estado do Amazonas, ao longo da Rodovia Santarém-Cuiabá e no
centro leste do Pará, no entanto, esse movimento migratório é intrarregi-
onal e não inter-regional. A valorização da soja, o lucro das madeireiras e
da pecuária tem estimulado a retomada da fronteira.
A resistência e organização das populações tradicionais a expro-
priação de suas terras e identidades contam hoje com apoio de organiza-
ções religiosas, cientistas, nacionais e internacionais, e até de governos de
países estrangeiros, mas esse sucesso político deve se transformar em su-
cesso econômico para as comunidades locais, que necessitam do apoio
do Estado notadamente na infraestrutura.
127
ciclos em sua economia ao longo dos séculos conforme tabela adaptada
abaixo.
17
HOEFLE, Scott William, Santarém, Cidade Portal de Fronteiras Históricas do Oeste do Pará,
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Disponível em https://revistas.ufrj.br/index.php/Espa-
coAberto/article/view/2100. Acesso em 30 de julho de 2020.
128
A atuação dos movimentos sociais liderados pela Igreja
Católica em Santarém
129
torais Sociais da Arquidiocese de Santarém, entre tantos outros movi-
mentos sociais que dialogam com a realidade local e regional.
Por outro lado, tem havido avanços nas lutas populares. Há 10
anos o CITA não era reconhecido. Hoje a organização popular conquis-
tou alguns direitos, como acesso indígena à universidade, demarcação de
terras, já enfrentou um Juiz federal que cinco anos atrás chegou a duvi-
dar e negar a existência dos povos indígenas na região.
Também o Movimento dos quilombolas da região ressurgiu em
sintonia com a luta dos quilombolas nacionais e tem conquistado direitos
à terra; Os STTRs têm lutado contra o agronegócio/agrotóxicos, promo-
vido a agroecologia, e a luta em defesa do território na gleba Lago Gran-
de; O Movimento Tapajós Vivo, tem trabalhado a construção do Proto-
colo de Consulta e Comitês de Bacias Hidrográficas, na região do rio Ta-
pajós, que são duas ferramentas importantes na luta em defesa do territó-
rio ameaçado pelo poder econômico.
Além disso realiza um projeto de implantação de bombeamento
de água por energia solar em comunidades tapajônicas, como forma de
lutar contra as hidroelétricas destruidoras da região; Na Gleba Lago
Grande os movimentos populares estão numa luta firme em defesa do
território ambicionado pela multinacional ALCOA, sedenta de bauxita.
Ali, graças à Federação das Associações da Gleba Lago Grande
FEAGLE, com apoio direto da FASE e do STTR está se conseguindo
frear as ambições da ALCOA.
Pela Pastoral Social há dois grupos bem ativos na defesa dos po-
vos nativos, um a Comissão Pastoral da Terra, presente na Resex Renas-
cer e que apoia os lutadores sociais em Almeirim no confronto com a
Empresa Jari. E a Pastoral dos Pescadores, tem apoiado as lutas dos pes-
cadores contra as geleiras e contra a EMBRAPS que insiste em construir
o porto bem na “boca” do lago do Maicá.
Esses são os principais resultados dos Movimentos sociais/popu-
lares em defesa dos povos e seus territórios, ativos na região. Uns mais,
outros menos, como hoje são a FAMCOS e UNECOS e o GDA. Mas
estão vivos. Até hoje a luta tem sido muito desigual, tanto pelo poder
econômico apoiado pelos governantes, como pela fragilidade dos Movi-
mentos sociais/populares, com falta de uma unidade na luta. Diante des-
130
sa realidade de luta por justiça social, defesa do meio ambiente, ecologia
integral, como agem as lideranças da Igreja?
É necessário repensarmos, sob pena, de negarmos o apelo evan-
gélico o papel da Igreja diante dessas questões. Faz-se necessário refletir
e repensar a ação da Igreja, sob pena de negarmos seu apelo evangeliza-
dor e seu papel histórico como agente de educação, de evangelização so-
cial, comprometida com os mais fragilizados. De que Igreja e de que
Amazônia estamos falando? Como ela está? Para onde vai? O encontro
dos bispos realizado em 2013 em Manaus foi uma retomada dos encon-
tros ocorridos em 1952, 1972 e em 2012.
À luz do Espírito Santo, o resultado desse encontro indicou ca-
minhos, diretrizes e opções para que a Igreja regional pudesse organizar,
iluminar a vida e a missão no chão amazônico. Também, para que ocor-
resse a encarnação na realidade e para que a evangelização fosse liberta-
dora, foram as diretrizes fundantes de um novo rosto da Igreja que pas-
sou a assumir opções marcantes dentro de um contexto de exclusão e
marginalização e de crescentes ameaças às poucas conquistas obtidas nas
últimas décadas. (a negação dos direitos fundamentais).
Assim, para viver a missionariedade e o profetismo da Igreja, fo-
ram assumidos compromissos que devem nortear toda a ação da Igreja
na Amazônia: ser uma Igreja junto aos pobres (não apenas visitante, mas
sendo presença), solidária com os excluídos e abandonados, também em
momentos de enfrentamentos; contribuir para a mudança de mentalida-
de que considera a Amazônia colônia ou periferia do Brasil; estar ainda
mais atenta à realidade desafiadora dos centros urbanos e dos grandes
projetos que avançam a qualquer custo, esmagando toda forma de vida
que se mostra como empecilho ou resistência.
Faz-se necessário, na atual conjuntura, formar e dinamizar comu-
nidades e lideranças missionárias numa pedagogia que considere a vida e
a realidade das pessoas, dando-lhes atenção e acompanhamentos neces-
sários, a fim de que, abracem com convicção o seguimento de Jesus, sen-
do protagonistas da missão; viver o caminho da escuta da voz de Deus
na Palavra Sagrada Escrita e nos gritos do povo denunciando erros e injustiças,
apontando luzes e esperanças e empenhar-se para que a Igreja tenha,
131
cada vez mais, rostos e corações amazônicos, na certeza de que Cristo, o
Missionário do Pai, arma sua tenda na Amazônia.
A Amazônia de que falamos não é a Amazônia idealizada pelos
dominadores (potencializada, sobretudo, pelos meios de comunicação de
massa), dominadores, exploradores, destruidores e aniquiladores dos po-
vos da floresta. É latente a implantação de um projeto de dominação ne-
oliberal, apoiado pelo atual presidente do Brasil Jair Bolsonaro, com po-
líticas de desmontes de direitos fundamentais e de instituições (como o
IBAMA, tendo seus servidores constantemente ameaçados, quando do
cumprimento de suas atividades de proteção na Amazônia). Nota-se que
as ações do governo Bolsonaro está e amparado pelo capital estrangeiro,
como: Banco Mundial e organizações não governamentais – World Con-
servation Union, a World Resources Institute e pelo grupo dos países mais ricos do
mundo.
A Amazônia de que falamos é a Amazônia constituída de índios,
negros, pardos, caboclos e imigrantes que vivem na e da floresta. Que
convivem com os diversos e na adversidade. Que sabem cuidar, zelar e
que defendem com a própria vida seu território. Essa gente tem rosto,
gosto, traço e laços que caracterizam e revelam sua grandeza. Esses po-
vos são muitas vezes invisibilizados pela ausência de políticas públicas e
nós não nos reconhecemos neles, embora vindos deles. Há uma Amazô-
nia da mata e uma Amazônia desmatada, entre outras Amazônias de con-
trastes.
A Amazônia de que falamos está dessacralizada, pobre de espíri-
to. A força do rio não está mais livre. Ele foi barrado. A energia foi cap-
turada e destinada aos complexos minerometalúrgicos, com as linhas de
transmissão atravessando regiões cujas casas se iluminam com lampari-
nas, lampiões e velas. A Amazônia de que falamos é tratada de maneira
descontextualizada dos países dos quais ela é parte. Existe uma Amazô-
nia que resiste, mas, existe uma Amazônia que reexiste. Por quê?
A Igreja local precisa e deve posicionar-se, diante, sobretudo, do
apelo do povo que clama por justiça. Os movimentos e pastorais preci-
sam repensar suas práticas evangelizadoras, pois elas devem estar em sin-
tonia com as diretrizes propostas e sugeridas no encontro dos bispos em
Manaus e nas exortações do Papa Franciso. Não podemos virar o rosto,
132
como se nada pudéssemos fazer. Cada carisma deve ser entendido como
um serviço. Cada um por si é a mentalidade do capitalismo. Lembremos
disso. Os movimentos eclesiais precisam ser e estar efetivamente usando
seu carisma, mas, mergulhado na realidade local. Pensemos nos excluí-
dos.
As Comunidades Eclesiais de Base – CEBs – estão envelhecen-
do, morrendo e não serão revitalizadas, se continuar esse modelo em
curso. Aliás, as CEBs, as Novenas, as adorações são e devem ser espaços
de fortalecimento espiritual para a caminhada. Mas, sente-se que são
mais centros terapêuticos do que formativos. As pessoas estão preocupa-
das com os seus problemas individuais, com respostas para seus dilemas
muitos dos quais de natureza material, econômica, e quase nunca pen-
sando no outro, no coletivo, e na natureza que foi muito bem lembrada
na Campanha da Fraternidade como sendo a nossa casa. Aliás, faz bem
perguntar: que resultados aquela mensagem deixou nas mentes e nos co-
rações? Parece difícil, mas a verdade revelada nessas práticas está ador-
mecendo a capacidade de reflexão do povo, alimentadas pelos nossos pa-
dres, lideranças e do povo de Deus.
Os movimentos sociais, comprometidos realmente, estão sozi-
nhos, como uma voz no deserto. Será que os bispos reunidos em Ma-
naus viram uma realidade e nós estamos vendo outra? A pandemia está
revelando que a realidade que fora jogada para debaixo do tapete, veio à
tona. As máscaras caíram. Os pobres estão como Lázaro esperando cair
de nossas mesas as migalhas de comida.
Porém precisamos fortalecer os movimentos pela luta em favor
da preservação do meio ambiente (instalação do porto da Embraps, dos
tanques de combustíveis na região do bairro do Uruará, ponte de concre-
to na praia do Maracanã), da dignidade das pessoas (apoio a iniciativa de
acolhida das pessoas que vivem em situação de rua na sede do São Rai-
mundo), da luta pela moradia (ocupação do Juá, combate ao uso desor-
denado da ocupação urbana). Essa realidade gera tantos Lárazos que es-
tão cada vez mais distantes até mesmo das migalhas que caem das mesas
dos abastados, tamanha é a distância que os separa.
133
Considerações finais
134
decreto, em escala macrorregional, mesorregional, mesorregiões diferen-
ciadas e regiões integradas de desenvolvimento (RIDES).
Como se observa a PNDR, trabalha no nível nacional e em diver-
sas escalas, o avanço de políticas de caráter endógeno ocorre exatamente
porque modelo da acumulação flexível denominada de Toyotismo, que
se desenvolveu no Japão, que se tornou um modelo alternativo ao For-
dismo (EUA), facilitou o surgimento do paradigma de desenvolvimento
endógeno como ressalta Julio Cesar Bellingieri (2017, p.15)
135
trole social; Avançou na apuração do olhar sobre as regiões, supe-
rando a equivocada associação de que o “moderno” estaria atrela-
do às regiões mais desenvolvidas e o “arcaico” às menos desenvol-
vidas. Nesse sentido, a diversidade regional devia ser apreendida
como um ativo a ser bem explorado economicamente.
Referências
136
CARDOSO, Fernando Henrique. Programa Brasil em Ação. Brasília-DF,
1998. Disponível em: <https://web.archive.org/web/20110404114243/
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137
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138
VI
AGRONEGÓCIO, DESENVOLVIMENTO E
SUSTENTABILIDADE: REFLEXÕES SOBRE A FORMAÇÃO
DOS SUJEITOS NA AMAZÔNIA BRASILEIRA*
Introdução
139
a fim de compreender a universidade contribui na reprodução das práti-
cas que vão encurtar a temporalidade do ser humano na terra, ou ela visa
à melhoria do ambiente para garantir a permanecia da humanidade no
planeta?
O enfoque a partir da universidade foi defido ao considerar o pa-
pel formador da instituição, bem como sua relevância na produção do
conhecimento, de pesquisas e na formação de profissionais que atuarão
em diversos setores da sociedade.
Conceitos necessários
Agronegócio
Desenvolvimento
3
Definição:http://www.bdpa.cnptia.embrapa.br/consulta/busca?
b=ad&id=495833&biblioteca=vazio&bua=autoria:%22RUFINO,%20J.L.%20dos%20S.
%22&qFacets=autoria:%22RUFINO,%20J.L.%20dos%20S.%22&sort=&paginacao=t&pagina-
Atual=1
140
Desenvolvimento deve ser encarado como um processo comple-
xo de mudanças e transformações de ordem econômica, política e,
principalmente, humana e social. Desenvolvimento nada mais é
que o crescimento – incrementos positivos no produto e na renda
– transformado para satisfazer as mais diversificadas necessidades
do ser humano, tais como: saúde, educação, habitação, transporte,
alimentação, lazer, dentre outras.
Desenvolvimento sustentável
141
res de fazendeiros chegam à região. O slogan da época era: “ocupar ter-
ras sem homens por homens sem-terra”. Segundo os noticiários, o presi-
dente visitou e sobrevoou a região do nordeste, principalmente nas áreas
castigadas pela seca. Sua ida ao nordeste resultou em ações de ocupação
da floresta Amazônica
Assim, a terra que “jorrava leite e mel” foi ocupada por imigran-
tes, em sua quase totalidade, nordestinos pobres, que chegavam com a
ilusão de ter registro de trabalho e um pedaço de chão para plantar e tra-
zer o restante da família. Porém, muitos se depararam com trabalho pe-
sado (derrubada da floresta), em condições precárias de sobrevivência,
sendo obrigados a pagar pelas ferramentas (bota, foice, enxada, macha-
do, tesado). Os fomentos do governo eram repassados ao grande fazen-
deiro e, ao pobre, restava o trabalho insalubre, análogo à escravidão.
Não havia preocupação ambiental ou social nas aberturas de es-
tradas no meio da floresta. As mais de 29 etnias indígenas atingidas com
“progresso” não foram consultadas ou ouvidas sobre o impacto que tra-
ria a obra faraônica, conhecida hoje como Transamazônica.
A união alegava desconhecer a existência de moradores, os índios
Araras tiveram parte de suas terras transferidas para uma empresa priva-
da e quando recorreram à justiça tiveram suas terras de volta, apesar da
devolução, a estrada atravessou as suas terras, separando aldeias e frag-
mentando a área (LOUREIRO, 2009).
Conforme Loureiro (2009), a Amazônia do século XX foi como
uma das principais exportadoras de produtos extrativos, in natura. Nesse
período, as políticas dos governos militares promoviam quatro atividades
econômicas na região: extração de madeira, pecuária, pesca industrial e
mineração. Num primeiro momento (1970/1985), predominou a extra-
ção de madeira, pecuária e a pesca industrial; em seguida (1986/2000) –
com repercussão até os dias atuais, impuseram-se a mineração, “moderna
pecuária” e a produção de grãos; eram produtos que apresentavam boas
chances de aceitação no mercado externo, segundo análises econômicas
da época, as quais, entretanto, não levavam em conta os efeitos negativos
das atividades, implicando a exclusão social pela desestruturação da base
produtiva em que se apoiavam as atividades tradicionais.
142
Devido aos incentivos ficais e o sonho do desenvolvimento, a
Amazônia Legal sofreu e segue sofrendo com a destruição da floresta na-
tiva, atingindo o ecossistema e gerando impactos socioambientais.
O desmatamento vem de antes da grilagem e criação de pasto;
seu inicio vem da ocupação de determinada área (terras públicas: reservas
ambientais, indígenas e áreas destinadas à reforma agrária) pelo desmata-
mento, retirando-se árvores com altos valores comerciais de forma pre-
datória, com utilização da mão-de-obra barata, é vendida ilegalmente, a
madeira gerava recursos para a continuidade da devastação, utilizando
maquinário e fogo. Após a retirada da floresta, para conformar a ocupa-
ção, planta-se capim e colocam-se algumas cabeças de gado, dando a en-
tender que a terra é produtiva; por fim, regulariza-se a área desmatada
ilegalmente, com o cadastro ambiental rural e do programa de regulariza-
ção fundiária. O objetivo é gerar documentos de fachada para mostrar
um histórico de ocupação e facilitar a posse definitiva.
Uma vez que a grilagem consolida, terras são vendidas e destina-
das à pecuária. A legislação federal e as estaduais são, desde 2009, mais
flexíveis ao grileiro. (Torres, 2020)
Com isso, a pecuária é a atividade econômica que mais desmata.
O aumento das queimadas e o desflorestamento correspondem a 200 mi-
lhões de toneladas anuais de dióxido de carbono, contabilizando 74%
das emissões de gases, aumentando o efeito estufa e causando mudanças
climáticas. Pesquisas indicam que o desmatamento pode mudar o regime
de chuvas do país – por ironia, prejudicando o próprio agronegócio.
Até 2017, devastaram-se 20% da Amazônia brasileira, sendo que
2/3 dessaa área transformou-se em pasto. Segundo o documentário “Sob
a pata do boi”, o estado do Pará era maior produtor de carne bovina
país.
O relatório da associação brasileira das indústrias exportadoras de
carne – ABIEC (2018) indica que o município com o maior rebanho bo-
vino do país continua sendo São Félix do Xingu (PA), com quase 2,5 mi-
lhões de cabeças de gado; nos últimos 20 anos, o rebanho desse municí-
pio cresceu mais de 800 %.
143
Quadro 1: Os dez municípios com maior rebanho de gado do Brasil.
Rebanho Rebanho Rebanho
em 1998 em 2008 em 2018
Município/Estado
(cabeças) (cabeças) (cabeças)
São Felix do Xingu - PA 242.703 1.812.870 2.238.262
Corumbá - MS 1.557.650 1.935.896 1.885.751
Ribas do rio Pardo - MS 1.029. 95 1.176.151 1.144.805
Cáceres - MT 552.359 823.804 1.072.461
Marabá - PA 192.000 478.100 1.024.102
Vila Bela da Santíssima Trindade - 380.000 803.594 979.374
MT
Porto Velho - RO 132.990 608.664 968.778
Juara - MT 560.494 905.470 951.445
Novo Repartimento - PA 142.200 381.628 899.103
Cumaru 101.590 440.378 845.651
Fonte: Athenagro, IBG, 2018.
144
A expansão da soja no território amazônico se deu a partir do
melhoramento genético do grão e pela migração de agricultores proveni-
entes do centro-sul brasileiro a partir da década de 1990. A alavancada da
produção em cidades do Pará ocorreu com a chegada de obras como as
do porto da Cargill em Santarém – PA, contribuindo para o escoamento
da produção do estado do Mato Grosso.
O crescimento da produção de soja na região decorreu com a
instalação do terminal da Cargill, terras baratas, atraindo produtores ru-
rais de outras regiões. O avanço da soja na região ocasionou diversos
conflitos sociais relacionados à exclusão dos modos de vida que tem ten-
do por base a agricultura familiar. São comuns relatos casas queimadas,
expulsão de famílias, ameaças de morte, intimidações às lideranças locais,
grilagem de terras e a supressão de florestas – fatos que se tornaram
manchetes dentro e fora do Brasil (OSORIO, 2018).
Em 2008, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) apresentou relató-
rio detalhado sobre a situação vivida por comunidades afetadas pelo
plantio da soja:
145
por hectare, de modo que as comunidades locais não se beneficiam da
implantação e do avanço da soja.
Domingues e Bermann (2012, p.9) apontam outro fator impac-
tante negativamente na organização social da região: o deslocamento de
populações para as cidades, devido à introdução da monocultura e esta-
belecimento de grandes propriedades rurais. Todos esses fatores acabam
interferindo negativamente na produção de alimentos tradicionais e ge-
rando aumento do desemprego, comprometendo a segurança alimentar
da população local.
A história de ocupação e exploração econômica da Amazônia
nos ensina que esses modelos de desenvolvimento não trouxeram em-
pregos ou geração de renda, conflitam com a realidade cultural e deterio-
ram os recursos naturais da região.
Medeiros e Pantoja (2015) entendem que é possível avançar um
modelo de desenvolvimento que promova uma Amazônia saudável e
sustentável com base na governança social e territorial, desenvolvimento
e efetivação de produção sustentável e conservação e valorização do ca-
pital natural. Para os autores, é necessário o fortalecimento da economia
florestal como atividade econômica que contribua com a redução e o
controle do desmatamento e da pobreza.
146
Para tanto, a pergunta a fazer é: A universidade contribui na re-
produção das práticas que vão encurtar a temporalidade do ser humano
na terra, ou ela visa à melhoria do ambiente para garantir a permanecia
da humanidade no planeta?
Considerar a formação dos profissionais que atuarão na região
amazônica impõe pensar e desenvolver ações de sustentabilidade, objeti-
vando não o lucro desenfreado em detrimento da natureza, mas a ampli-
ação e manutenção de uma cultura que valorize o homem do campo, que
respeite as comunidades, os povos tradicionais e que possibilite que as
futuras gerações residentes na região amazônica usufruam de toda a ri-
queza e diversidade existente. E, mesmo que existam sujeitos particulares
que compõe a complexidade da região, o seu interesse não deve ser so-
breposto ao interesse coletivo que busca o bem comum. A saber:
Todos e cada um dos seres humanos que existiram até hoje se ex-
pressam fundamentalmente por uma tripla dimensão: são uma in-
dividualidade (Maria, José, João, Antônio); são seres da natureza
(animal) – dependem de ar, água, contida, ferro, cálcio, vitaminas,
sais etc. e, produzem as especificidades desta sua individualidade e
natureza em relação com os demais seres humanos. (FRIGOTTO,
2001, p. 73).
147
do o tempo livre – tempo de liberdade, fruição, gozo.
(FRIGOTTO 2001, p. 72).
148
mento humano e o bem-estar coletivo, independentemente da área do
conhecimento que atua ou atuará. – Pensar a superação total da alienação
considerando o modelo econômico atual além de complexo é também
um processo dialético devido à estrutura de contradição e desigualdade
existente –.
A formação para agir de forma sustentável não deve advir de
uma única área, sendo necessário que todos os sujeitos, principalmente
aqueles fromados por instituições públicas, saibam agir de acordo com
demandas socioambientais. E esse processo exige ação coletiva de pro-
fessores, pesquisadores e estudantes que estejam dispostos a atuar na
produção científica e na sociedade, representando as causas na perspecti-
va de um desenvolvimento sustentável para a Amazônia.
Há que investir em garantias para que os processos de formação
ocorram e se desenvolvam na sociedade. Neste caminho, um passo im-
portante foi iniciado quando o 4Programa de Interiorização da Universi-
dade pública pelo país foi instituído, durante o governo do ex-presidente,
Luiz Inácio Lula da Silva. Neste sentido, como apontam Colares, et al.
(2017, p. 281)
149
73), “a educação [...] não transforma de modo direto e imediato e sim de
modo indireto e mediato, isto é, agindo sobre os sujeitos da prática”.
Considerando a representação da universidade frente à sociedade,
é imprescindível ela assuma seu compromisso com a história e com a
identidade da localidade em que está inserida, realizando interseção entre
as práticas sociais e a necessidade de um desenvolvimento que pense a
subsistência futura da humanidade em todos os aspectos.
Considerações finais
150
ções dignas de vida é neste ponto, um dos ideais para o estabelecimento
de uma prática reflexiva e consciente do desenvolvimento com sustenta-
bilidade.
Referências
151
OSORIO, Raissa Macedo Lacerda. A produção de soja no Oeste do Pará: a
tomada de decisão do produtor rural e as características da atividade
produtiva em meio à floresta amazônica. Tese de Doutorado. Brasília, 2018.
MEDEIROS, Rodrigo; PANTOJA, Eugênio. A história da exploração da flo-
resta foi cheia de erros. Mas ainda dá tempo mudar e criar um futuro para se
orgulhar. Época. 01 de nov. de 2016. Disponível: <https://epoca.globo.com/
colunas-e-blogs/blog-do-planeta/amazonia/noticia/2015/06/o-desafio-do-
desenvolvimento-sustentavel-na-amazonia.html>. Acesso em: jun. 2020.
OLIVEIRA, Gilson Batista de. Uma discussão sobre o conceito de desenvolvi-
mento. Revista FAE, Curitiba, v. 5, n. 2, p. 37-48, maio/ago. 2002. Disponível
em: <https://revistafae.fae.edu/revistafae/article/view/477>. Acesso em:
maio de 2020.
SAVIANI, Demerval. Escola e democracia. 42. ed. Campinas, SP: Autores
Associados, 2012. 5 v. (Coleção Polêmicas do Nosso Tempo).
Sob a pata do boi. Direção: Marcio Isensee e Sá. Produção: Associação o Eco.
Documentários Imazon, 2018. Disponível em: <https://www.video-
campcom/pt/movies/sob-a-pata-do-boi>. Acesso em: 18 jun.2020.
152
EIXO III
DIVERSIDADE CULTURAL:
QUESTÕES SOCIAIS, INCLUSÃO E DIREITOS HUMANOS.
153
VII
DIVERSIDADE CULTURAL NA AMAZÔNIA: DESAFIOS E
PERSPECTIVAS*
Introdução
*
DOI - 10.29388/978-65-86678-45-1-0-f.155-180
1
Mestrando em Educação pelo Programa de Pós-graduação em Educação (PPGE) da Universi-
dade Federal do Oeste do Pará (Ufopa). Graduado em Pedagogia pela Ufopa. Bolsista CAPES.
E-mail: [email protected].
2
Doutora e Pós-doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Pro-
fessora do curso de Pedagogia, do Programa de Pós-graduação em Educação (PPGE) e do Pro-
grama de Pós-graduação em Educação da Amazônia (PGEDA), na Ufopa. Bolsista de produtivi-
dade em pesquisa CNPq, Nível 2. E-mail: [email protected].
3
Mestranda em Educação pelo Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Fede-
ral do Oeste do Pará. Graduada em Pedagogia pela Ufopa. E-mail: [email protected].
4
Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Docente do Progra-
ma de Pós-graduação em Educação (PPGE) da Ufopa. E-mail: [email protected].
155
análise documental, em legislações, políticas e relatórios direcionados ao
tema, partindo do cenário nacional para o local.
Do embasamento teórico utilizado, o estudo apropria-se, inicial-
mente, das discussões de Colares (2018), Gomes (2003), Laraia (2001) e
Sanfelice (2016), seguido por outros estudiosos do tema. Além destes,
contemplam-se importantes documentos de base legal: Constituição Fe-
derativa da República do Brasil de 1988, dentre outros.
Para efeito de organização, o artigo está composto por duas par-
tes: definições teórico-conceituais e políticas da diversidade, compreendendo as
origens formativas do termo “Diversidade Cultural” e sua incorporação
nos documentos de base legal; e espaços de diversidades, destacando as reali-
dades presentes na região, com ênfase nas práticas e desafios postos a
consolidação do direito público.
156
sos, das manifestações intelectuais e artísticas, que caracteriza uma socie-
dade; normas de comportamento, saberes, hábitos ou crenças que dife-
renciam um grupo de outro”. Concomitantemente, define-se a Diversi-
dade Cultural como um “conjunto de características culturais que, obser-
vadas em pessoas circunscritas num mesmo espaço geográfico, caracteri-
za costumes, hábitos sociais ou crenças que variam de uma pessoa para
outra” (Dicionário On-line de Português, 2009).
Desse modo, entende-se que a Diversidade Cultural é constituída
pela existência de várias formas de culturas presentes e diversas entre si
em uma mesma realidade. Essa pluralidade se manifesta em diferentes
formas de ser, pensar e agir da condição humana sobre o meio ao qual
está inserido, utilizando-se das linguagens, tradições, comportamentos,
crenças, valores, estilos, etc., como instrumentos de produção/apropria-
ção/reprodução de culturas ao longo da vida. Assim, podemos com-
preender que ao falar de diversidade cultural, nos colocamos diante de
variados produtos históricos, sociais, culturais e intelectuais, frutos da in-
tervenção humana, repassados no decorrer dos anos de geração em gera-
ção.
Cada grupo social dispõe de um estilo próprio de vida, consoli-
dando uma infinidade de expressões culturais na sociedade, visto que tais
diferenças são responsáveis pela singularidade que existe em cada indiví-
duo, integrantes do todo social. Consequentemente, o conjunto de singu-
laridades forma uma cultura própria, responsável por diferenciar grupos
sociais e realidades. Nesse contexto, estudiosos do tema, entre eles antro-
pólogos e historiadores, tratam do complexo conceito de cultura, com
destaque para os trabalhos de Santos (1987), Chauí (2000) e Laraia
(2001).
De acordo com Santos (1987), o termo Cultura está associado às
atividades agrícolas, oriundo do verbo latino colere (cultivar), destacando
que “[...] há séculos o conceito de cultura foi objeto de preocupação de
vários estudiosos, em busca de compreender as variações de culturas e as
razões da variedade das culturas humanas ao longo do tempo”
(SANTOS, 1987, p. 7). Portanto, fica clara a inviabilidade de compreen-
são da cultura sem a utilização da história que permeia o processo de
evolução dos grupos humanos e suas transformações no meio social.
157
Segundo Chauí (2000, p. 352), o tratamento da antropologia so-
bre o termo cultura define-o como um “[...] modo de vida global de uma
sociedade, incluindo: religião, formas de poder, [...] parentesco, [...] co-
municação, organização da vida econômica, artes, técnicas, costumes,
crenças, formas de pensamento e de comportamento, etc. [...]”. Gui-
ando-se no mesmo campo de investigação (antropológico), Laraia (2001)
ressalta que as diversidades culturais não são resultantes de diferenças bi-
ológicas e/ou geográficas. De acordo com o autor, a primeira definição
do conceito de cultura é datada de 1981 por Edward Tyler (1832-1917),
antropólogo britânico que sintetizou os termos Kultur, atribuído a aspec-
tos espirituais (de origem germânica no século XVIII), e Civilization, de
realização material (com origem francesa no século XVIII), para o vocá-
bulo inglês Culture, indicando que este se trata de “[...] todo complexo
que inclui conhecimento, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer
outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de
uma sociedade” (LARAIA, 2001, p. 27) que independem de uma trans-
missão genética.
Todavia, é importante lembrar que o termo já vinha sendo objeto
de preocupação por vários estudiosos, como John Locke (1632-1704),
autor responsável pela criação da endoculturação, cujo processo se dá na
obtenção de conhecimentos por meio de um aprendizado, e defensor do
relativismo cultural que significa, na visão antropológica, a forma de ver
diferentes culturas livre de etnocentrismo, ou seja, sem julgamento.
Historicamente, a origem da cultura aparece simultaneamente
com o desenvolvimento do equipamento biológico humano. Esse pro-
cesso evolutivo foi resultado das transformações de sobrevivência que
surgiu com as habilidades manuais. Tal habilidade foi possibilitada pela
posição ereta que proporcionou estímulos ao cérebro, segundo estudio-
sos, tornando-o mais volumoso e complexo (LARAIA, 2001). O autor
cita dois exemplos, embasado por outros autores, sobre o termo: 1) Na
visão de Lévi-Strauss, a cultura surgiu a partir do momento que o ho-
mem convencionou a primeira regra, como a proibição do incesto; 2)
Para Leslie White, a cultura surge quando o homem foi capaz de gerar
símbolos, como por exemplo, na questão do luto, simbolizado pela cor
preta no Brasil e pela cor branca na China (LARAIA, 2011).
158
Corroborando ao entendimento sobre a origem e definição da
cultura, trazemos o estudo de Borges (2017) a respeito dos conceitos de
trabalho e humanização em Marx, Engel e Lukács. É desta mesma autora
a afirmativa de que “[...] ao interagir de forma determinada com a nature-
za, o homem foi capaz de se diferenciar do mundo natural e, em parale-
lo, criar outro mundo, ou seja, o mundo da cultura, o mundo humano”
(BORGES, 2017, p. 102). Brotam desse entendimento os primeiros indí-
cios sobre a ontologia do ser social, ou seja, a partir do momento em que
o homem produz sua cultura, este se distancia da natureza, mas sem
abandoná-la. Nesse processo de ruptura, a interação humana com a natu-
reza é dada pela necessidade de sua sobrevivência, por meio da ação
consciente, possibilitada pelo trabalho. Assim, é vislumbre a passagem da
ação natural para a ação social. Portanto, as ações humanas resultam de
processos de aprendizagens, transmitidas nas relações sociais de uma de-
terminada cultura.
Para Laraia (2001), a cultura determina a maneira de vermos o
mundo, possibilitando visões diversas e desencontradas sobre as coisas,
sendo um elemento dinâmico e, ao mesmo tempo, mutável, pois, condiz
com o tempo e o contexto em que é constituído. Na sociedade cada cul-
tura dispõe de uma lógica própria (de organização, valores, etc.), o que
gera muitos embates entre as diferentes realidades sociais, visto que, a
partir de uma visão etnocêntrica, o homem subjuga o outro em detri-
mento de sua cultura, considerando-se superior. Dessa forma, infere-se
que o modo de ser, de conviver, o tipo de relação familiar, entre outros
fatores, é fruto das relações e interações entre as culturas. No entanto,
nem sempre este processo ocorreu/ocorre de forma harmônica, uma vez
que, no decorrer da história, são visíveis as marcas de conflitos e resis-
tências entre diferentes culturas e grupos humanos.
Nas discussões apresentadas por Santos (1987), a diversidade cul-
tural e seus embates constitui-se como um dos pontos chaves para se
compreender os inúmeros preconceitos de cor, raça, etnia, sexo, religião,
etc., condizendo na construção de pensamentos e lógicas próprias de de-
terminada cultura para impor-se, de forma superior e dominante, sobre
outras. Tal ação decorre da naturalização de ideias, comportamentos e
valores oriundos dos povos colonizadores, processo gerador dos fenô-
159
menos de racismo, discriminação, preconceito, genocídio, xenofobismo e
outros, tornando as relações humanas conflituosas. No âmbito da con-
tradição, significa dizer que a humanidade se constituiu a partir de desu-
manidades.
Esse pensamento figurou no Brasil, com ênfase durante o pro-
cesso de colonização, principalmente, com a chegada dos portugueses e
jesuítas em terras indígenas, em busca de riquezas, dominação e com a
proposta de “salvação das almas” (COLARES, 2018), impondo a cultura
colonizadora como a saída para os nativos, condenando seus estilos e
modos de vida. Soma-se a este, o tráfico negreiro, ocorrido no período
da escravidão, onde os negros eram sequestrados, arrancados de suas raí-
zes e direcionados a destinos incertos, desconhecidos, sendo obrigados a
abandonar sua cultura em detrimento de outra (MUNANGA, 2003).
Fruto destes acontecimentos, a diversidade de culturas, de base negra e
indígena, historicamente foi sendo invisibilizada na sociedade, subjuga-
das pela dominação colonial europeia que instituiu paradigmas sociocul-
turais no país, negando as demais (SOARES; MELO, 2017).
O Brasil, considerado um país com uma diversidade cultural he-
terogênea, característica central do povo brasileiro, visível nas mais varia-
das regiões geográficas, manifestações culturais e linguísticas, tradições,
culinárias, danças, costumes, lendas, religiosidades, etc., tem se firmado
no contexto da contradição de sua própria história. Desde as culturas pi-
oneiras identificadas no país, indígenas, africanas e europeias, seguido
por imigrantes asiáticos, alemães, italianos, entre outros, formou-se uma
enorme teia de povos miscigenados, espalhados por todos os cantos do
país, figurando uma multiplicidade de culturas em cada região, estados
e/ou município, que foram firmando-se mediante um cenário político de
tensões e conflitos.
Na região amazônica, lócus central do estudo, é visível um espaço
com rica biodiversidade, de natureza exuberante e que tem sido explora-
da pelos avanços desenfreados da onda neoliberal, esmaecendo o contex-
to humano em prol do acúmulo de riquezas e poder. Nesse cenário, resi-
dem povos de culturas diversas, entre eles: ribeirinhos, quilombolas, indí-
genas, povos da floresta, nordestinos, etc., que necessitam de respeito,
160
reconhecimento, preservação e valorização social (COLARES, 2018).
Para este mesmo autor, a diversidade amazônica se faz presente:
Art. 2º. Nas nossas sociedades cada vez mais diversificadas, torna-
se indispensável garantir a interacção [sic] harmoniosa e a vontade
de viver em conjunto de pessoas e grupos com identidades cultu-
rais plurais, variadas e dinâmicas. As políticas que favorecem a in-
clusão e a participação de todos os cidadãos garantem a coesão so-
161
cial, a vitalidade da sociedade civil e a paz. [...] desta forma, o plu -
ralismo cultural constitui a resposta política à [...] diversidade cul-
tural. Inseparável de um contexto democrático, o pluralismo cul-
tural é propício aos intercâmbios culturais e ao desenvolvimento
das capacidades criadoras que nutrem a vida pública (UNESCO,
2001).
162
§ 2º A lei disporá sobre a fixação de datas comemo-
rativas de alta significação para diferentes segmentos
étnicos [...] (BRASIL, 1988).
163
Quadro 1: Principais políticas educacionais da diversidade no Brasil.
POLÍTICAS EDUCACIONAIS DA DIVERSIDADE NO BRASIL
ANO BASE LEGAL
1988 Constituição Federativa do Brasil – Art. 205 e 210.
1996 Lei Nº 9.394/96 LDB – Art. 3º e 26.
1997 Parâmetros Curriculares Nacionais: Pluralidade Cultural.
2003 Lei Nº 10.639/2003: História e Cultura Afro-brasileira no currículo.
2006 Orientações e ações para a Educação das Relações étnico-raciais.
2007 Programa Ética e Cidadania (Inclusão social).
Lei Nº 11.645/2008: História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena no currí-
2008
culo.
2010 Lei Nº 12.288/2010: Estatuto da Igualdade Racial.
2012 Lei Nº 12.711/2012: Lei de Cotas.
Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares para a Educa-
2013 ção das Relações Étnico-raciais e Ensino de História e Cultura Afro-Brasilei-
ra e Africana.
2014 Lei Nº 13.005/2014: Plano Nacional de Educação – PNE: Art. 2º, III e X.
Fonte: elaborado pelos autores, 2020.
5
Parecer Nº 36/2001: diretrizes operacionais para a educação básica nas escolas do campo; Pare -
cer Nº 003/2004: diretrizes curriculares para a Educação das relações étnico-raciais e ensino de
história e cultura afro-brasileira e africana; Parecer Nº 08/2012: diretrizes para a Educação em di-
reitos humanos; Parecer Nº 13/2012: diretrizes curriculares para a Educação Escolar Indígena; e
Parecer Nº 16/2012: diretrizes curriculares para a Educação Escolar Quilombola.
164
Na visão de Canen (2000, p. 136), a incorporação de uma educa-
ção multicultural implica um olhar mais atento “[...] para a valorização da
pluralidade cultural e a necessidade de superar estereótipos, preconceitos
e hierarquização cultural em currículos e práticas pedagógicas [...]”, rom-
pendo com a protocolarização de um currículo nacional de base neolibe-
ral. Por outro lado, Munganga (2014, p. 35) ressalta que “[...] sem o reco-
nhecimento da diversidade das culturas, a ideia de recomposição do
mundo arrisca-se a cair na armadilha de um novo universalismo”, aban-
donando a ideia do multiculturalismo como proposta de valorização das
inúmeras variações culturais. No entanto, é preciso atentar-se para as re-
lações instituídas nas escolas, sendo que estas:
165
de assegurar sua adequada proteção e promoção [...]” (UNESCO, 2007,
p. 1). Assim, adentra-se num exercício crítico-reflexivo de compreensão,
análise e reformulação de visões sobre os povos e suas variações cultu-
rais. O próximo tópico pauta-se nesse olhar, discutindo práticas, desafios
e perspectivas na Amazônia.
Espaços de diversidades
Fonte: https://www.abcdoabc.com.br/brasil-mundo/noticia/governado-
res-amazonia-firmam-agenda-acordo-europeus-88606, 2019.
166
É importante destacar que perdurou por muito tempo, no campo
da produção científica, o tratamento da Amazônia como um cenário
exótico, potencializador de bens e recursos, propício ao acúmulo de ri-
quezas, de exploração humana pelo trabalho e de embates pelo uso da
terra. Na transição do século XX ao XXI é visível uma ampliação nos
debates, revelando um caráter humano, pautado nos modos de vida dos
povos locais e suas condições de sobrevivência, bem como na divulgação
dos conhecimentos, vivências, culturas e saberes tradicionais amazôni-
cos, visível nas discussões de Colares e Colares (2016 6) e Colares (2018).
Tais estudos sinalizam avanços para a compreensão da diversidade cultu-
ral, propondo novas visões sobre a região e contrariando imagens estere-
otipadas concebidas ao longo de sua história. O exercício de análise do
local torna-se significativo, pois, “[...] sem os estudos regionais e locais, o
nacional será reduzido a mera abstração ou será tomada como nacional a
manifestação local ou regional mais influente [...]” (SAVIANI, 2016, p.
2), contribuindo na redução das inúmeras “[...] distorções que a grande
maioria de todos nós, brasileiros ou não, constrói sobre a Amazônia [...]
acumulando o desconhecimento puro e simples, as visões míticas e os
preconceitos [...]” (SANFELICE, 2016, p. 7).
Uma das principais características da região visibiliza-se nas varia-
ções culturais que dotam de significados a vida, a história e constituem a
essência do povo amazônico, produzidas e replicadas de geração em ge-
ração. Essas diversificações formam a cultura amazônica, manifestada
por crenças, saberes, hábitos, conhecimentos e experiências reais pró-
prias, contemplando a “[...] natureza transformada e significada pelo ho-
mem [...]” (BRANDÃO, 2002, p. 37).
Guiando-se nessa perspectiva, pensar na diversidade cultural da
Amazônia é adentrar num universo de particularidades, na relação entre
passado e presente, a fim de compreender os modos e processos de vi-
das instituídos pelos sujeitos locais e sua disseminação no decorrer do
tempo, verificando como esta cultura vem se alterando e/ou mantendo-
se mediante a evolução da sociedade. Em outras palavras, é fundamental
o exercício de compreender na história uma explicação para o presente
6
Os autores apresentam importantes contribuições para o enfoque de uma Amazônia humana,
utilizando os trabalhos de Violeta Loureiro e Daniel Klein como referências centrais do estudo.
167
desvelado. No caso da Amazônia, ao propor este caminho nos coloca-
mos diante de um desafio ainda maior, levando em conta a sociodiversi-
dade presente (COLARES; COLARES, 2011) e a condição de que são
muitas realidades presentes em uma só, incutindo a ideia de várias “Ama-
zônias” (COLARES, 2018).
Nas discussões de Saviani (2016, p. 1), em um de seus poucos
textos que versam sobre a região, destaca-se que “[...] a característica di-
ferencial da região amazônica é, sem dúvida, a presença de uma multipli-
cidade de povos [...] em seu amplo território, caracterizado pela mais rica
biodiversidade do planeta”. Concomitantemente, Sanfelice também res-
salta uma sociabilidade, menos homogênea, dos povos locais, entre eles:
Com base nestes dois grandes autores, é possível inferir que esta-
mos diante de um cenário de povos miscigenados, formados a partir da
relação entre grupos humanos distintos, caracterizando uma Amazônia
multicultural, pluralista, heterogênea e, ao mesmo tempo, singular. No
âmbito da própria contradição, significa dizer que:
168
lência, injustiças, discriminação, intolerância e outras formas que atentam
contra a dignidade da pessoa humana (COLARES; COLARES, 2011).
Outra particularidade, por sinal, deficitária, mostra-se nas condi-
ções logísticas da região e seus reflexos nos modos de vida das popula-
ções locais que, diariamente, convivem com a ausência de direitos bási-
cos fundamentais: falta de saneamento básico, saúde, educação, seguran-
ça, qualidade de vida, etc., principalmente os ribeirinhos que residem às
margens de rios. Sob tais indícios de vulnerabilidade social, Sanfelice
apresenta uma caracterização sociohistórica desses sujeitos, destacando
que:
Estes são, portanto, povos que se diferem dos demais pela sua
capacidade de organização sociohistórica em prol da sobrevivência, pro-
duzindo culturas e estilos próprios de vida, capazes de resistir ao longo
de sua história e, ainda que de forma mínima, firma-se no sentido do re-
conhecimento no campo do direito público.
Nesse sentido, o estudo do contexto local, em realidades como a
Amazônia, torna-se fundamental para explicitar as mazelas sociais do
Brasil, revelando condições de abandono, descaso e ineficiência dos ór-
gãos e políticas, enfraquecendo o compromisso e o atendimento as mi-
norias. Para Sanfelice, este exercício é válido no sentido de que “[...] todo
o particular se explicita em um contexto mais geral [...]” e, portanto, “[...]
pensar especificidades, singularidades e diversidades, não é pensá-las em
si mesmas. Então, não é uma Amazônia isolada do mundo que se está a
visualizar” (2016, p. 9). Portanto, é necessária a compreensão de que:
169
mas não pode ser confundida como ponto de chegada se o objeti-
vo final é a construção de uma sociedade na qual as pessoas sejam
tratadas sem distinção. E isto não pode ser confundido com a eli-
minação da diferença pela sua exclusão, até porque ser diferente
não significa que também deva ser desigual [...] ( COLARES;
COLARES, 2011, p. 2).
170
Culinária: Pato no tucupi, tacacá, tambaqui, pirarucu, etc.
Produtos típicos: Tucupi, tucumã, guaraná, cupuaçu, castanha, etc.
Medicina popular: pajés, benzedores, parteiras, ervas medicinais, etc.
Religiosidades: Tambor de Mina, Candomblé, Xamanismo, etc.
Mitos, lendas e contos: Curupira, Mapinguari, Cobra grande, Boto, Iara, etc.
Festivais amazônicos: Folclórico de Parintins, Tribos de Juruti, Ópera em
Manaus, Sairé em Alter do Chão, Carnapauxis em Óbidos.
171
ves desafios como a formação de professores, ausência de materiais di-
dático-pedagógicos específicos e a minimização dos saberes locais em
detrimento do conhecimento sistematizado (universal), o que deveria ser
o oposto, sem perder de vista a relação entre estes (COLARES;
COLARES, 2016). Desse modo, o Quadro de Nº 2 apresenta dados so-
bre a Educação Escolar Indígena e Quilombola na Amazônia, especifica-
mente, na região norte do país.
172
Nesse sentido, a partir das discussões realizadas, elegemos três (3)
distintos desafios sobrepostos à questão da Diversidade Cultural na
Amazônia, os quais precisam ser destituídos em prol da melhoria da qua-
lidade de vida, do reconhecimento, do respeito e da valorização dos po-
vos locais e suas expressões culturais. Entre estes, destacam-se: 1) A con-
dição histórica de inferioridade dos povos e da região; 2) A ideia de não
pertencimento dos sujeitos amazônicos as suas raízes culturais; e 3) A au-
sência de subsídios que proporcionem a vivência das diversidades por es-
tes indivíduos. Por conseguinte, apresentam-se algumas proposições so-
bre os itens elencados.
Concernente ao primeiro desafio, da condição histórica de inferi-
oridade dos povos e da região, faz-se necessário e urgente romper com
toda e qualquer ideologia que promova uma imagem negativa sobre a
Amazônia, desviando de um paradigma excludente e reducionista. Para
isso, recomenda-se a produção de estudos direcionados a um enfoque
humano, dos modos de vidas, dos processos culturais e históricos, entre
outros, percursos que evidenciem as particularidades locais. Assim, uma
possível contribuição para superar este desafio se justifica na produção
sistematizada dos conhecimentos locais por aqueles que estão inseridos
nos espaços acadêmicos e educacionais. Para aqueles que não se sentem
aptos à produção, uma alternativa viável se dá na busca por informações
sobre a sua própria história, na inserção em grupos e na formação de li-
deranças locais, constituindo movimentos coletivos em prol dos direitos.
Este momento se configura como a Fase da Apropriação, onde o
indivíduo deve incorporar-se de informações/conhecimentos sobre a sua
realidade para, posteriormente, articular formas de lutas e resistências em
prol de sua condição social. Nessa perspectiva, destaca-se a discussão de
Colares e Colares em que:
173
O segundo desafio, referente à ideia de não pertencimento dos
sujeitos amazônicos as suas raízes culturais, diz respeito à condição de
distanciamento entre as gerações atuais e a sua própria cultura, assumida
pelo grupo social ao qual estão inseridos. Essa realidade mostra-se visível
em inúmeras manifestações culturais que foram se perdendo ao longo
dos anos7, por não ter havido continuidade pelos mais novos, incutindo a
imagem de rompimento do passado com o presente, onde a juventude
(geração atual) prefere aquilo que vem de fora, proporcionado pela mas-
sificadora globalização. Assim, em grande parte dos movimentos cultu-
rais amazônicos, percebemos os mais velhos ainda na condução dos pro-
cessos de organização destes. Logo, se não existe um pertencimento, a
diversidade cultural tende ao desaparecimento no decorrer dos anos.
Um exemplo significativo, no que se refere ao sentimento de per-
tencimento, se mostra no estudo de Rodrigues (2018) ao evidenciar
ações de valorização dos saberes locais, em uma terra indígena, e sua in-
corporação no currículo escolar como forma de preservação e resistên-
cia. Ações como estas reforçam a identidade de grupos sociais e corrobo-
ram na luta pela melhoria da qualidade de vida e da valorização cultural,
momento em que os sujeitos passam a se conscientizar de seus papéis na
transformação social. Portanto, o pertencimento torna-se condição para
a preservação da diversidade. Eis que apresentamos a Fase da Inserção,
processo em que o indivíduo insere-se em sua própria realidade, já cons-
ciente de seu dever e dotado de conhecimentos, assumindo o compro-
misso com a mantença de sua cultura e engajado na luta por valorização.
Por fim, o terceiro desafio, a ausência de subsídios que proporci-
onem a vivência das diversidades, adentra-se na questão do abandono e
da vulnerabilidade social vivenciada pelos grupos humanos situados na
Amazônia, principalmente, aqueles que estão em áreas de difícil acesso,
como indígenas e quilombolas. Também reflete a ausência de elementos
básicos que promovam qualidade no tratamento da diversidade cultural,
necessitando de “[...] análise, avaliação e reformulação no campo teórico-
conceitual das políticas [...]”, em busca de “[...] uma política pública edu-
7
Para melhor compreensão da importância do resgate aos Saberes Culturais e Tradicionais ama-
zônicos, sugerimos a leitura do estudo de Andrade (2014) sobre os contos populares da Amazô -
nia. Disponível em: http://www.ufopa.edu.br/portaldeperiodicos/index.php/revistaexitus/arti-
cle/view/134.
174
cacional na e da Amazônia e suas singularidades” (SOARES; COLARES;
FERREIRA, 2020, p. 78). Desse modo, é fundamental a organização sis-
tematizada dos sujeitos locais na luta por seus direitos básicos, ultrapas-
sando a discriminação e incorporando-os como cidadãos.
Concomitantemente, apresentamos a Fase da Contraposição, mo-
mento em que os indivíduos, agora influenciados pelas duas fases anteri-
ores (conscientes de seu papel, dispondo de conhecimentos e assumindo
sua própria realidade), passam a reivindicar melhorias e direitos básicos, a
organizar-se coletivamente e a questionarem, principalmente, os órgãos e
condutores das políticas públicas, sobre as ausências visíveis em sua reali-
dade. Esta é a última fase por que imbrica a condição de lutas de classes
e empoderamento popular, em um movimento de ação e reflexão. Por-
tanto, a prática social, como ponto de partida – ainda desconhecida na
primeira fase – torna-se também o ponto de chegada – agora reformula-
da em detrimento do coletivo.
Considerações Finais
175
nhos em prol da preservação, valorização, pertencimento, respeito e dis-
seminação da cultura local, firmando-se no âmbito da própria essência
identitária.
Desse modo, é perceptível que estamos diante de um longo cami-
nho, cujas modificações precisam começar pela conscientização individu-
al e, posteriormente, coletiva. Sem dúvidas, este deve ser o papel de cada
estudante, pesquisador e/ou sujeito que se propõe a desmistificar o uni-
verso de singularidades presentes na Amazônia brasileira. Continuaremos
juntos e fortalecidos em prol desta grande causa.
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176
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179
VIII
DIVERSIDADE CULTURAL E A CORPOREIDADE NO
CONTEXTO AMAZÔNICO*
Introdução
181
dificulta seu entendimento por parte dos próprios sujeitos, suas comuni-
dades, e autoridades governamentais. Isso afeta a construção de políticas
públicas educacionais tornando-a um grande desafio a ser superado, res-
peitado, conquistado e assegurado em tempos modernos.
A diversidade cultural amazônica tem como principal caraterística
a multidiversidade étnica e cultural que se desenvolveu ao longo dos sé-
culos da união de diversas culturas: indígenas, africanas, nordestinas, eu-
ropeias, dentre outras, que se estabeleceram pelo marco das riquezas na-
turais, dos rios e do fluxo das águas. Cada cultura aqui existente determi-
na o comportamento do indivíduo e do grupo produzindo uma ampla
extensão de valores culturais, bem como reagindo as diferenças de cada
cultura diante de situações humanas análogas (BRITO; ISPER, 2015).
Sob essas fortes influências propomos refletir uma Amazônia
composta por diversidade de culturas com variadas manifestações corpo-
rais que a produzem. Podemos conjeturar seus fundamentos e valores na
ideia de que o corpo é que dá visibilidade ao ser humano que aqui habita
no qual ele é a sede dos direitos humanos fundamentais que dizem res-
peito ao direito à vida digna tornando-o elemento central na reflexão éti-
ca e política.
Para isso, o presente estudo teve suporte em pesquisas teóricas,
documentais e empíricas e objetivou compreender as relações que se es-
tabelecem entre a diversidade cultural e a abordagem da corporeidade no
contexto amazônico. Cabe ressaltar que para este estudo foi utilizada a
análise documental com base nos pressupostos da fenomenologia bus-
cando o sentido das coisas, dos fenômenos.
A análise qualitativa dos dados permitiu mergulhar na realidade
em geral, especialmente, na educação e no entendimento de corporeida-
de, apreendida pela multiplicidade dos significados que emergem da vida
dos sujeitos amazônicos, seu entorno e do seu mundo, atrelado às inú-
meras formas de percepções e experiências que transcendem as relações
entre os seres humanos. Quanto à diversidade esta se dá entre os saberes
locais e universais que perpassam os processos de construção de conhe-
cimento pelas manifestações culturais dos sujeitos e das intencionalida-
des das ações efetivadas.
182
As interpretações e análises em busca da compreensão do fenô-
meno estudado, no caso deste estudo, relacionado à diversidade cultural
presente na educação e no entendimento de corporeidade como manifes-
tações dos aspectos cognitivos da apropriação desses conhecimentos, ti-
veram como suporte teórico, as percepções de diversos autores. Dentre
eles, destacamos autores que trazem em seu bojo as concepções de feno-
menologia em Merleau-Ponty (2018); Corporeidade em Nóbrega (2010),
Moreira e colaboradores (1995a; 2006); Corpo e Corporeidade na Ama-
zônia em Brito e Isper (2015), Rodrigues e Couto (2020); e Educação na
Amazônia em Colares e Colares (2011) e Rodrigues (2016; 2018). Assim,
tornou-se possível refletir sobre a riqueza e a fecundidade das culturas
amazônicas. Conforme os autores supracitados só ocorrerão mediante ao
diálogo entre as manifestações da corporeidade e os aspectos educacio-
nais que caracterizam o contexto que lhes dá acolhimento.
Inicialmente, apresentamos as definições de diversidade cultural
na perspectiva de alguns autores e apontamos brevemente as organiza-
ções que lutam por sua defesa em nível mundial e nacional. Por conse-
guinte, consideramos que a diversidade cultural deve estar arrolada a
educação, que corresponde ao processo da ação humana em produzir e
transmitir conhecimento para reconhecer 4 e vivenciar as diferenças,
como promoção da igualdade de direitos, onde quer que esteja manifes-
tada, na zona urbana ou rural, nas comunidades quilombolas ou mesmo
nos territórios indígenas. Em seguida, discorremos sobre a diversidade
cultural destacando as práticas educativas que tem ocorrido no contexto
educacional amazônico aproximando ao fenômeno da corporeidade para
compreender como às concepções que se tornaram hegemônicas na mo-
dernidade podem afetar as manifestações da corporeidade no contexto
amazônico desencadeando na escola mecanismos de invisibilização de
corpos e culturas.
Vale salientar que nesse estudo, temos a pretensão de nos unir
aos trabalhos que propõem caminhos para promover a concretização de
ações pedagógicas democráticas que requerem a formação de cidadãos
que se respeitam dentro de um quadro de diferenças, lançando mão so-
4
No sentido de resgatar os valores e origem de culturas perdidas no decorrer da história com a
colonização e escravidão.
183
bre a diversidade cultural e da abordagem da corporeidade trazendo con-
tribuições para os estudos contemporâneos em educação. Dessa forma,
o espaço acadêmico firma a efetivação de seu compromisso em atender
às demandas do contexto amazônico, revelando-se como instituição so-
cial, de fato, comprometida com a cidadania e como lugar de produção
de conhecimento científico, filosófico e cultural.
184
Quadro 1- Definição de Diversidade Cultural: Comparativo entre auto-
res
Fonte: Elaboração própria (2020) com base na análise de artigos dos autores
mencionados acima, pertencentes a obra: Diversidade cultural: políticas, visibili-
dades midiáticas e redes - (2015).
185
frentados para que haja a sustentabilidade ambiental, a inclusão social e o
fim da pobreza na qual se envolvem todas as esferas, a saber: o governo,
a sociedade civil e os setores privados (DUPIN, 2015).
Dupin (2015) continua afirmando que as dificuldades apresenta-
das à Convenção da Diversidade Cultural, tanto no contexto internacio-
nal como no brasileiro, devem ser caracterizadas mediante o ponto de
vista específico: de proteção e de promoção. Isso deve ocorrer de forma
equilibrada atentando-se à diversidade cultural em cada realidade.
O autor ressalva que desde 2003, no Brasil, as ações em prol da
diversidade cultural envolvem o contexto amplo em que o governo brasi-
leiro promoveu políticas públicas baseado em uma definição mais abran-
gente de cultura atendendo toda a esfera social, indo além dos produto-
res ou dos artistas e até técnicos de expressões artísticas. Até o ano refe-
rido, o Ministério da Cultura organizava-se apenas em torno das artes au-
diovisuais, artes cênicas, música, literatura, dentre outras. Porém, outros
segmentos sociais não eram atendidos ou mesmo não tinham acesso a
essa política pública de cultura centralizada a princípio no mecanismo da
renúncia fiscal.
Dessa forma, para que essa política fosse implementada criou-se
a Secretaria da Identidade e da Diversidade Cultural (SID), com o intuito
de associar os direitos culturais e os direitos humanos, elaborando ações
para ouvir os interessados, pois, é através da identificação à própria cul-
tura que o indivíduo constrói sua identidade, visando assegurar a produ-
ção e difusão de suas manifestações culturais a nível local, nacional e
mundial (DUPIN, 2015).
Apesar deste aparente avanço e conquista, é notório que os desa-
fios ainda são gigantescos. Pois, segundo Dupin:
186
todo o território. Outra necessidade é aperfeiçoar os indicadores e
realizar avaliações de impacto das ações desenvolvidas (2015, p.
50).
187
matamento, a construção de usinas hidrelétricas, instalações de portos
para escoamento e produção agrícola, de combustível e exportação de
petróleo, dentre tantos outros mecanismos que afetam a realidade natural
de uma localidade e consequentemente o povo que ali habita onde cons-
troem sua cultura e identidade.
Yúdice (2015) também destaca que se torna necessário reconhe-
cer que a cultura não é uma esfera própria, mas ela é transversal e per-
meia muitas outras esferas da sociedade. E segue afirmando:
188
bém problematizar os ditos valores sociais e culturais universais”, extra-
polando a noção de identidade nacional e se concretizando por meio das
experiências e vivências sociais e culturais que emergem da vida dos indi-
víduos na sociedade (SILVA, 2011, p. 15).
A aprendizagem cultural transmitida, principalmente, por meio
da educação escolar provoca muitas indagações e provocações merecen-
do ser arquitetada como uma fronteira de disputa de quais esses saberes
sociais, históricos, políticos e culturais devem fazer parte do conheci-
mento, dito universal da humanidade (SILVA, 2011).
Como vimos anteriormente, se o termo diversidade cultural de-
signa todo o modo de vida de um povo, todo o legado social que o sujei-
to recebe do grupo a que pertence, como todas as culturas humanas, a
diversidade cultural amazônica inclui todas as instituições econômicas e
religiosas, seus costumes, o comportamento habitual e as atitudes dos
seus habitantes. Ou seja, todas as maneiras de vida que aprendem como
membros de sua sociedade e que transmitem à sua descendência,
compõem essa rica diversidade regional e local (BRITO; ISPER, 2015).
O povo da Amazônia constrói conhecimentos justamente ao re-
presentar-se pela existência de diferenças na Identidade e diversidade cul-
tural. Em linhas gerais, são elementos essenciais para realçar e valorizar
as características singulares, peculiares e particulares do povo amazônico
(BRITO; ISPER, 2015).
189
O autor ressalta ainda que historicamente os povos que viviam na
floresta deixavam em dúvida se os colonizadores poderiam considerá-los
como humanos ou como bichos, pelo fato de andarem nus, subirem em
árvores e possuírem comportamentos que os aproximavam dos animais
e por não serem letrados. Com o passar dos séculos, essa concepção to-
mou outros rumos, e segundo o autor, buscava-se então o conjunto de
significados que dariam sentido às ações dos sujeitos, e o corpo passou a
ser considerado um riquíssimo arcabouço biológico em que a expressivi-
dade proveniente do corpo seria um conjunto de significados de determi-
nado povo.
Não compreender a importância em refletir sobre o corpo como
a essência e meio pelo qual a cultura é manifestada, poderá causar o agra-
vamento da situação de desigualdades dos grupos humanos. Por esse
motivo, nossa investigação pressupõe discutir o fenômeno da corporei-
dade por entendermos que buscar a ressignificação das ações corpóreas
no espaço amazônico significa reconstruir conceitos e vivências do cor-
po, refletindo o sentido da existência do ser humano no processo de res-
significação da cultura e das identidades amazônicas, enfatizando uma
discussão em que o ser humano é corpo, e está presente em todos os se-
guimentos, especificamente nos educacionais, representado pelos espa-
ços de produção e partilha de conhecimentos, as escolas.
Daí a necessidade, segundo Nóbrega (2010) de juntarmos esfor-
ços para a construção e vivência de uma teoria da corporeidade pautada
na multiplicidade de sentidos dos saberes do corpo e não simplificar o
fenômeno em categorias, mas permitir diversos olhares, abordagens e
aproximações, partindo do diálogo e da comunicação que configuram
esse amplo universo, pois:
190
Não dar importância à cultura local de um determinado povo é
calar seus corpos, por meio dos quais se expressa à cultura. Controlar o
corpo tem a ver com o fim da democracia, da resistência, do respeito, da
ética, da liberdade de expressão, e porque não dizer, o fim do respeito e
seguridade à diversidade cultural. É nesse sentido que a escola se torna
um espaço privilegiado de construção de conhecimento no qual pode-
mos promover a cultura, partilhar os saberes, conhecer as diversas cultu-
ras e aprender a respeitá-la. O diálogo que reflete sobre a corporeidade
do povo amazônico leva em consideração a diversidade cultural presente
na região.
Infelizmente há registros de povos, a exemplo dos indígenas e
afrodescendentes, que perdem sua cultura, sua identidade em detrimento
desse processo histórico de dominação, colonização e segregação causa-
das também pela perda de território. O corpo do povo amazônico se
apresentou durante muito tempo como corpo dócil 5, enganado, subjuga-
do e dominado diante das imposições do colonizador, ocasionando sua
desculturalização6. Por isso, é necessário unirmos forças, para a recons-
trução e resgate das vivências, pautadas na multiplicidade dos sentidos e
saberes do corpo, que permitem diversos olhares, abordagens e aproxi-
mações para se firmar a diversidade cultural nos diálogos existentes den-
tro e fora do ambiente escolar.
Nóbrega (2010) nos diz que o corpo é condição de vida, de exis-
tência e de conhecimento. Nesse sentido, a Corporeidade convive com
os diversos corpos existencializados e nos leva a seguinte indagação:
como consolidar uma educação integral na escola, trabalhando e respei-
tando a diversidade cultural? Ora, é necessário permitir que o aluno seja
protagonista do seu aprendizado e desenvolvimento em seu ambiente
5
Termo utilizado por Michael Foucault que ressalta que dócil é um corpo que pode ser submeti -
do, utilizado, um corpo que entra numa maquinaria de poder que lhe esquadrinha, desarticula e
recompõe (FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Rio de Janeiro: Vozes,
2009b).
6
Segundo o dicionário informal: é o ato ou forma de propagar o desaprendizado e fazer o indiví -
duo desaprender ou aprender de forma errada. Esse conceito faz sentido em Anselmo Colares na
sua tese de doutorado quando ressalta que o colonizador usou de todos os meios para anular
quaisquer formas de organização e de comportamento que não fossem convenientes aos seus in -
teresses, levando civilidade aos índios, pois a seu ver, viviam de forma selvagem (COLARES, A.
A. Colonização, Catequese e Educação no Grão-Pará). Tese de doutorado. Campinas-SP [S.N.],
(2003).
191
natural. Esta afirmação não desconsidera em hipótese alguma a participa-
ção fundamental do professor (a) como mediador do processo de ensino
aprendizagem, pois entende-se que tal profissional docente está apto
para estimular, promover e criar as condições que gere a autonomia, cria-
tividade, criticidade e reflexão das ações construídas pelos discentes e
consequentemente avaliar este processo.
Em consequência, a Corporeidade se apresenta como possibilida-
de de promover a reflexão no que diz respeito aos padrões educacionais
estabelecidos marcados pela negação do corpo como meio de aprendiza-
gem, sendo exatamente por ele que os sujeitos se desenvolvem, “pois, se
educação, como viés de mudança e formação do ser humano, reduz ou
nega a importância do corpo na constituição do conhecimento, deixa de
fazer o seu papel social, democrático e crítico” (RODRIGUES;
COUTO, 2020, p. 117).
Logo:
192
no que aprende a fazer história fazendo cultura” (MOREIRA, 1995a, p.
30).
Porém, há de se ter certo cuidado no tocante ao corpo/corporei-
dade, pois nesse processo:
193
te e produz cultura, que busca a valorização e seu reconhecimento, e não
há de se “excluí-la” do processo de escolarização. Ela se faz presente nos
ambientes escolares de forma explícita, assim pode ser trabalhada por to-
das as disciplinas escolares, no contexto da prática pedagógica, a exem-
plo, das disciplinas de: história, Educação Física, Língua Portuguesa, Lín-
gua Nheengatu7, dentre outras.
Colaborando com a afirmação anterior, Nobrega (2010), no esco-
po de seu trabalho intitulado uma fenomenologia do corpo, faz-nos re-
fletir que a estesia do corpo está presente na educação como um todo e
não somente em componentes curriculares isolados, trata-se de uma dis-
cussão mais ampla, criando condições para que os envolvidos possam re-
ver e acrescentar sentidos, criar, descobrir, sentir, dizer. A mesma está vi-
gente em todos os momentos em que o conhecimento é carregado de
subjetividade e possa pensar o mundo dos seres humanos, nos relatos da
experiência vivida, na escuta e relação com o outro. Entende-se que este-
sia do corpo pode propiciar um espaço para o respeito e preservação das
diversidades culturais.
Nesse contexto, Inforsato (2006) lembra que o termo Educação
tem sua raiz latina, que significa conduzir de dentro para fora, e guia o
corpo para total manifestação de seu potencial, que guarda também o
significado de cuidado, ou seja, cuidar de alguém moldando-o a uma
configuração que mostre seu pertencimento a um grupo ou comunidade.
Nessa conjectura, é importante ressaltar a percepção de docentes
das escolas na Amazônia, por isso, Rodrigues e Couto (2020) ressaltam
que para grande parte dos professores, o corpo se constitui como possi-
bilidade de interação com o outro, sendo um meio que se estabelece
como primeira comunicação com os alunos, pelo qual se desenvolvem as
atividades com lócus no ensino-aprendizagem. Os autores ressaltam em
seu estudo sobre a corporeidade, ao entrevistar docentes envolvidos na
7
Segundo Gilberto Rodrigues em sua tese de doutorado, desde 2010 ocorreu a introdução da
Língua Indígena Nheengatu como componente curricular nas aldeias do T.I Maró, com duas ho-
ras de aula semanais para as turmas do fundamental existentes nas escolas das aldeias, uma exi -
gência das lideranças indígenas Borari e Arapium que solicitaram junto a Secretaria Municipal de
Educação (SEMED) em Santarém-PA a inclusão de conteúdos que contemplassem uma educa -
ção diferenciada. Assim, a SEMED, UFOPA e algumas ONGs da região oferecem cursos e for -
mações em língua indígena colaborando com a reafirmação étnica desses povos (RODRIGUES,
2016).
194
Educação do Campo da Amazônia Paraense, que eles conhecem as parti-
cularidades e singularidades de seus alunos. Os gestos corporais expres-
sados por esses discentes permitem aos professores diferenciá-los contri-
buindo assim para suas intervenções, ao mesmo tempo, observando o
cotidiano das crianças tem-se a noção de como elas se encontram em
suas emoções e aprendizado em que as expressões refletem o progresso
ou não desses alunos, e cada gesto carrega sentidos e significados que
podem ser transparecidos e interpretados pelos docentes.
No entanto, é importante destacar alguns problemas nos quais os
mesmos autores seguem exemplificando que no contexto das escolas ri-
beirinhas na Amazônia, no que se refere a temática da corporeidade, que
essa realidade é mais difícil, pois os professores precisam superar primei-
ramente seus próprios desafios para poder lançar um olhar mais específi-
co aos seus alunos. Estes professores têm mais dificuldades em observar
a concretização do ensino-aprendizagem dos alunos ribeirinhos, pois
também sofrem com o desgaste de precisarem se deslocar realizando
grandes caminhadas e remadas para chegar à escola.
De maneira geral em seu trabalho, Rodrigues e Couto (2020), res-
saltam o sentido atribuído ao corpo na prática docente emergindo alguns
significados nesta realidade, sendo: transmissor e receptor de conheci-
mento; relação de diálogo e respeito; voltado para a leitura; relação entre
família, escola, professor e criança; e corpo sendo movimento, gestos e
comportamento (RODRIGUES; COUTO, 2020).
É necessário ensinar as crianças sobre a realidade a qual seu povo
se insere, incentivando o conhecimento e reconhecimento das diferen-
ças, considerando as questões de gênero e visando a afirmação das iden-
tidades, pois desde cedo o ser humano incorpora as regras, valores, nor-
mas, crenças que refletem por meio do corpo os papéis sociais, e implica
pensar num currículo emancipatório para cada grupo considerando os
aspectos das manifestações da corporeidade e sua contribuição no en-
sino-aprendizagem do povo amazônico.
Corpo e educação tornam-se instrumentos eficazes para garantir
a diversidade cultural de toda uma civilização, bem como do povo que
existe na região amazônica, na qual a base é a aprendizagem e o conheci-
195
mento, e este é transmitido e expressado no corpo pela corporeidade dos
alunos, dos professores e do povo amazônico.
Assim, no processo de educação é importante que os profissio-
nais que atuam nas escolas entendam que os alunos não chegam a elas
vazios, estes carregam consigo muitas experiências do dia-a-dia, do coti-
diano, daí a importância de fundamentação na fenomenologia para pen-
sar a corporeidade. Maurice Merleau-Ponty auxilia na reflexão da corpo-
reidade, educação e fenomenologia, nos ajudando no trato dessa temáti-
ca, pois atribui ao corpo, um conceito de corporeidade vivida, que se dá
pela compreensão em perceber a sua existencialidade, aprendendo, aco-
lhendo as coisas e os acontecimentos em suas múltiplas dimensões. É
um refletir sobre o mundo, o outro e a si com intuito de estabelecer rela -
ções que visam um olhar singular sobre a vida dos seres humanos e o
meio que os cerca (MOREIRA, et al, 2006).
196
nas, cipós, venenos, afrodisíacos e alucinógenos (BRITO; ISPER,
2015, p. 35).
197
ções de gênero e sexo. Reconhecer, aceitar e valorizar a diversidade são
construções de uma sociedade justa (COLARES; COLARES, 2011).
Logo, falar em aprendizagem significativa é falar fenomenologi-
camente de uma educação do fenômeno corpo, é aprender de maneira
humana a ser e conviver como ser humano. É olhar o corpo em todas as
suas tradições culturais, com todos os seus signos tatuados em sua traje-
tória, marcados por estigmas, devendo ser olhados sob novos olhares-
conhecimentos (MOREIRA, 1995).
Na mesma visão, Nobrega (2010) enfatiza que a construção cul-
tural do corpo está atrelada na natureza política da sociedade bem como
sua relação de poder, e isso deve ser tematizado na educação em busca
de novas partilhas relativas aos papéis sociais, a afetividade, ao conheci-
mento das diferentes culturas e suas expressões. Dessa forma, ver-se ne-
cessário um olhar especifico sobre esses diferentes corpos amazônicos,
que são plenos de subjetividade e recortados pela historicidade.
198
Concordamos com os autores quando afirmam que a educação
deve buscar compreender a diversidade para a construção de uma socie-
dade mais justa e democrática, com isso algumas ações devem ser consi-
deradas, como: desvendar as relações de poder estabelecido, compreen-
der a historicidade, considerar a atividade pedagógica como uma possibi-
lidade de colocar em prática a compreensão das questões que integram as
discussões a respeito da ética e da justiça social, valorizar experiências e
conhecimentos distintos, dedicar atenção em integrar todos no ambiente
escolar, dar visibilidade e acentuar o merecido valor para os exemplos
positivos que revelam situações de superação pessoal e coletiva frente a
situações adversas.
Considera-se de extrema importância aceitar a diversidade de cul-
turas ciente que cada uma possui suas particularidades e singularidades,
mas que nenhuma se torna superior a outra.
Retomam-se as palavras de Colares e Colares (2011) para ressaltar que:
199
Dialogando com Brito e Isper (2015, p. 35) e Rodrigues (2016,
2018), temos a compreensão de que os aspectos da corporeidade dados
pelas expressões, sentidos e significados podem ser observados na edu-
cação escolar indígena em que os povos indígenas resistem e lutam por
sua autonomia pelo modo de ser índio.
Dessa maneira destacamos que o corpo através de sua história
produz conhecimento. No entanto, esse processo por diversas vezes não
é valorizado dentro do ambiente escolar, pois como cita Moreira (1995a)
é difícil considerar que somos corpos, quando fomos convencidos que
temos um corpo, as ideologias sempre o ajustam para o cumprimento
das ordens necessárias e isso implica muitas vezes silenciá-lo em suas
manifestações culturais.
Baseado nos escritos de Moreira (1995a) entende-se que é neces-
sário olhar os corpos sujeitos no contexto amazônico em sua intenciona-
lidade, nos múltiplos aspectos de vivência, valores, costumes e crenças,
pois não se podem desprezar os corpos anônimos que estão coabitando
em nossa sociedade. Com isso, para que se obtenha uma concepção glo-
bal do homem amazônico deve-se entender que ele só se dará por meio
do corpo, pois é ele que possui expressão para dialogar e comunicar-se
com outros corpos; é o corpo que revela sua personalidade, identidade e
ao mesmo tempo revela sua cultura no entrelaçamento de uma socieda-
de. Corpo que não é simples habitação do espírito, mas corpo presente
que exerce sua criatividade, liberdade, alegrias, sentimentos mediante
suas práticas corporais.
Por fim, não podemos finalizar este estudo sem destacar que en-
tre as iniciativas de discutir o ser humano em suas diversas manifestações
culturais, está o trabalho de Galúcio e Colares (2018) desenvolvido em
algumas escolas no interior da Amazônia, na cidade de Santarém-Pa. As
autoras investigaram como são desenvolvidos os conteúdos escolares e
sua relação com a diversidade. Elas identificaram que determinadas esco-
las desenvolviam seus projetos, citando ser um deles, o “Festival de Ta-
lentos” realizado entre os anos de 2012 a 2015 envolvendo cerca de
2.220 alunos objetivando trabalhar a integração cultural e a socialização
entre diversas culturas existentes nas comunidades atendidas pela escola.
200
Neste e em outros exemplos mencionados no escopo deste estu-
do podemos perceber que a escola é um lugar para que os educandos re-
flitam sobre seus corpos e sua relação com o corpo do outro e com o
meio ambiente favorecendo a cultura do corpo que no contexto ama-
zônico é essencial para a manutenção e manifestação cultural de vários
povos.
Logo, a educação para a Amazônia deve assumir esse compro-
misso contribuindo para o empoderamento das populações locais, a par-
tir do acesso ao conhecimento historicamente construído e acumulado e
a participação efetiva na tomada de decisão. A valorização das diversida-
des e o respeito às especificidades da região devem estar presentes na de-
finição das políticas.
Nosso corpo é constituído de história, ou seja, possui historicida-
de, tanto orgânica quanto a interações com a cultura em que vive. Dessa
forma, no ambiente escolar deve-se enfatizar a historicidade deste corpo
que se modifica e adquire significados novos mediante suas experiências,
pois cada sujeito adquire percepções de acordo com o mundo que lhe é
específico, mantendo relação com o outro e o espaço que está inserido
(MENDES; NOBREGA, 2009).
De acordo com as autoras, corpo e cultura estão atados e se in-
terpretam por meio da lógica recursiva. Portanto, falar em diversidade
cultural é falar de corpos que guardam e criam história, sendo a diversi-
dade essencial para a manutenção dos seres humanos.
Conclusão
201
Contribuindo com nossas definições destacamos que Couto
(2008, p. 28) parte do entendimento de que o ser humano “é fruto da
cultura na qual está inserido e torna-se difícil conceber o indivíduo des-
vinculado do grupo social a que pertence”. Portanto, compreendemos
que uma identidade de corpo inteiro se afirma diante de todas aquelas
que a ela se apresentam como opostas.
O referido autor segue afirmando que a cultura necessita ser pen-
sada como um sistema que influencia historicamente os grupos humanos
e determinam as relações presentes na comunidade. Ele ressalta que essa
influência atravessa gerações até o ponto de sinalizar um sistema que in-
tegram ações conjuntas, das quais são percebidas através das “suas ex-
pressões, crenças, ideologia, maneira de influenciar o comportamento de
ser e estar” (COUTO, 2008, p. 29).
Através do exposto, podemos instigar a seguinte reflexão: em
nossa realidade educacional amazônica, a Diversidade Cultural tem se di-
fundido? Como destacado ao longo do texto, ainda ocorre paulatinamen-
te por meio de algumas escolas inclusivas que valorizam as culturas,
como destacado sobre as escolas indígenas e escolas que consideram a
cultura afrodescendente. Além disso, destacamos a importância dos gru-
pos sociais, das universidades por meio dos fóruns, ações afirmativas, de-
bates, discussões, dissertações, teses, dentre outras maneiras e ações, vi-
sarem estudos que lutam pelo bem dos povos e de suas culturas.
Essa iniciativa dentro de nossas escolas públicas no interior da
Amazônia, bem como nos territórios indígenas, são pontes construídas
para que as transformações necessárias ocorram em prol da defesa pelo
respeito à diversidade cultural que há em nossa região, sendo esta muito
rica não somente em recursos minerais, fauna e flora, mas também por-
que aqui habitam povos com diferentes percepções, comportamentos e
concepções que enriquecem nossa região pela mistura de etnias, raças,
credos e culturas.
A diversidade cultural é inerente ao ser humano, que é corpo, e
isso representa uma importante discussão a ser considerada, nos levando
a refletir de que maneira os problemas e desafios nos incomodam quanto
educadores para que seja defendida, reafirmada, desenvolvida por nós,
pelas instituições escolares, por todo o povo brasileiro e pelo povo ama-
202
zônico. Por isso, há necessidade de estudos mais aprofundados que con-
tribuam para que esse tema continue sendo abordado em busca de con-
cretas mudanças que venham ocorrer em defesa da diversidade cultural e
da corporeidade no mundo, no Brasil e na Amazônia, nos contextos for-
mais e não formais da Educação que transforma e que procura o desen-
volvimento de seres humanos mais críticos, reflexivos e atuantes onde
quer que estejam inseridos.
Uma visão de homem amazônico em suas múltiplas dimensões
deve considerar que este corpo de acordo com a abordagem da corporei-
dade estabelece relações consigo mesmo, com o outro e o mundo a sua
volta, revelando assim sua identidade e subjetividade, refletindo e criando
cultura. Destacamos ser necessário um olhar sobre esses corpos em suas
tradições, signos, historicidade e linguagens, de forma a criar novos co-
nhecimentos sem que se percam os já construídos ao longo da história
dos povos presentes na Amazônia.
Nesta perspectiva, convida-se a educação para o retorno da or-
dem social, respeitando à diversidade cultural existente na região ama-
zônica na qual o corpo/corporeidade manifesta-se nessa diversidade e
reivindica sua afirmação na sociedade tendo a escola como local privile-
giado para desenvolver tal intento.
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205
IX
EDUCAÇÃO EM TRÂNSITO: OS DESAFIOS PARA
INCLUSÃO DE IMIGRANTES INDÍGENAS NA REDE DE
ENSINO*
Introdução
*
DOI - 10.29388/978-65-86678-45-1-0-f.207-232
1
Mestranda em Educação do Programa de Pós-graduação em Educação pela Universidade Fede-
ral do Oeste do Pará (UFOPA). E-mail: [email protected]
2
Doutor em Educação. Professor do Instituto de Ciências da Educação, da Universidade Federal
do Oeste do Pará (ICED-UFOPA). E-mail: [email protected]
3
O Relatório sobre Migrações Mundiais 2020, o décimo da série de relatórios sobre migrações mundi-
ais, foi produzido para contribuir para aumentar a compreensão da migração em todo o mundo.
Disponível em: https://publications.iom.int/books/world-migration-report-2020. Acesso em: 29
de jul. 2020
207
grantes em diferentes espaços sociais, sobretudo no cotidiano da escola
(Munaro, 2014).
O Brasil possui fronteira com vários países da América Latina,
dentre eles a Venezuela, e tem sido a principal rota de imigração de pes-
soas vindas deste país em decorrência da grave crise política e econômica
que o assola. Dentre as pessoas que deixam a Venezuela, ganhou desta-
que nos noticiários brasileiros 4, por suas especificidades culturais e sua
dinâmica de deslocamento, a imigração dos Warao, grupo indígena con-
siderado um dos mais antigos povos que habitam o continente. Com
costumes nômades e falantes da língua tradicional Warao, têm se deslo-
cado em grandes grupos pelo norte do Brasil, fugindo da fome e das do-
enças que se abateram sobre seu povo, dentro do país de origem. Ao re-
ceberem status de refugiados no Brasil, os Warao podem ter acesso às
políticas públicas destinadas à imigrantes, dentre elas políticas educacio-
nais que são concebidas com o objetivo de integrá-los a sociedade recep-
tora, e, posteriormente, ao mercado de trabalho, para que assim possam
ter certa autonomia para a própria vivência social.
A legislação educacional brasileiras não traz normativas consoli-
dadas sobre a educação escolar para refugiados ou imigrantes. Ao lado
disso, há a dificuldade que envolve as especificidades regionais e a con-
centração das tomadas de decisões centralizadas nas grandes capitais no
sul e sudeste brasileiro. O processo histórico educacional brasileiro é
marcado por um processo de constantes lutas pelo acesso e permanência
de minorias brasileiras ao sistema educacional. Neste texto, abordaremos
a realidade migratório dos indígenas venezuelanos Warao em Santarém
em face dos instrumentos legais de apoio educacional, bem como das
políticas educacionais para estes refugiados mediante a dinâmica cultural
e as necessidades materiais.
4
https://www.oestadonet.com.br/noticia/13209/perseguidos-no-amazonas-e-roraima-indios-
warao-tem-artesanato-valorizado-em-santarem/; https://www.unicef.org/brazil/comunicados-
de-imprensa/unicef-e-prefeitura-de-santarem-juntos-na-resposta-humanitaria-venezuelana;
https://g1.globo.com/pa/santarem-regiao/noticia/2020/05/22/indigena-warao-morre-com-sus-
peita-da-covid-19-e-mpf-recomenda-acoes-urgentes-em-santarem.ghtml
208
A chegada
5
O Grupo de Trabalho da Organização dos Estados Americanos (OEA) sobre migrantes e refu -
giados venezuelanos apresentou hoje seu relatório preliminar, que adverte que a migração forçada
de venezuelanos ultrapassará cinco milhões de pessoas até o final de 2019 e que trata-se da segun-
da maior crise de migrantes e refugiados no mundo, depois daquela causada pela guerra na Síria .
Disponível em: https://www.oas.org/pt/centro_midia/nota_imprensa.asp?sCodigo=P-009/19.
Acesso em: 17 de mai.2020
6
Disponível em:https://www.unicef.org/brazil/crise-migratoria-venezuelana-no-brasil. Acesso
em: 04 de jun.2020
209
do de Delta Amacuro7 na Venezuela, em uma das regiões litorânea mais
importantes do país de acesso ao oceano atlântico, à áreas marítimas, ri-
beirinhas e zonas úmidas como pântanos, manguezais e florestas de vár-
zeas. Praticam a pesca e a coleta de frutos e mel, e tem como principal
produto de subsistência a palma de moriche (Mauritia flexuosa)8. As habi-
tações do povo Warao caracterizam-se como residências com teto de pa-
lha e cabanas construídas sobre palafitas para proteção contra inunda-
ções (Garcia-Castro, 2000, p.79).
A palavra Warao tem sua origem nos termos Waha = pântano e
Arao = habitantes, de modo que uma tradução direta seria: povos dos
pântanos. Esta origem está intimamente ligada ao rio Orinoco, palavra
originária de Wirinoko (Wiri = onde se rema e Noko = local) que tem no
seu significado a ligação com às práticas da locomoção do povo. Porém,
uma outra leitura etimológica defende que a palavra tem sua origem no
termo (Wa = curiara/canoa e Arao = habitantes) levando ao termo mais
conhecido (Warao = povo da canoa) e que dá nome tanto a etnia quanto
a língua tradicional do grupo em questão (Garcia Castro, 2006, p.43).
Os Warao são considerados um dos povos mais antigos do conti-
nente Sul-Americano e conserva elementos culturais bem preservados,
semelhantes aos povos encontrados no século XVI, período da coloniza-
ção. De cultura9 nômade, se desloca em grupos familiares tendo sempre
um líder idoso, o Aidamo10 que também se apresenta como chefe da tri-
bo, sua religião não possui um nome específico, mas suas crenças origi-
nam-se de narrativas tradicionais, de estruturas cosmológicas e de precei-
tos do Xamanismo11. Na estrutura de parentesco, o homem é responsá-
vel pela subsistência e a mulher pelo preparo dos alimentos e distribuição
7
Outras fontes: O estado de Delta Amacuro se divide em quatro municípios: Antonio Díaz, Ca -
sacoima, Pedernales e Tucupita (capital), havendo presença Warao em todos eles. (Kuarika Na-
ruki, 2020, p.6)
8
Disponível em: https://www.infoteca.cnptia.embrapa.br/infoteca/bitstream/doc/1103403/1/
capburiti.pdf. Acesso em: 06 de jun.2020
9
O antropólogo Estadunidense Clifford James Geertz concebe a cultura como um complexo de
significados públicos, inscritos semanticamente. Em suas palavras: “O conceito de cultura que eu
defendo é essencialmente semiótico. Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal
amarrado à teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo estas teias e
suas analises, portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma
ciência interpretativa, à procura de significados” (Geertz, 1978, p.15)
10
É uma posição social hereditária e vitalícia ligada à figura masculina e à chefia de um grupo fa-
miliar formador da comunidade.
210
das ferramentas de trabalho. Os casamentos acontecem de acordo com
as relações de parentesco e as regras de residência são uroxilocais (Garcia
Castro, 2006, p. 45).
Eventos históricos de deterioração das condições de sobrevivên-
cia, invasões de suas terras por agricultores e pecuaristas, além da busca
por melhores condições de subsistência em outros territórios, incluindo
as grandes cidades, intensificou o Êxodo dos Warao 12 para os centros ur-
banos venezuelanos, e posteriormente, com a crise econômica de seu
país, para nações fronteiriças (Rojo, 2000). No Brasil, ao solicitar refúgio,
os Warao chegam sem dominar o espanhol (língua oficial da Venezuela)
e sem a compreensão da língua portuguesa (língua oficial do Brasil) o
que se apresenta como uma barreira consistente ao processo de socializa-
ção e inserção nas relações comunitárias e na obtenção de possibilidades
de participação no mercado de trabalho 13. Em decorrência desta não in-
serção social em outras cidades brasileiras e em Santarém, os Warao têm
vivido em estado de mendicância diante das escassas políticas de assis-
tência social oferecidas. Não são poucas as cenas observadas onde en-
contramos crianças Warao nas ruas, usadas como um meio de obtenção
de alguma subsistência para suas famílias 14.
211
São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos ou-
tros com espírito de fraternidade” (Brasil 2009, p. 04).
É importante demarcar como as leis brasileiras definem a condi-
ção de refugiado. O estatuto dos Refugiados de 1951, define em seu arti-
go 1°:
Será reconhecido como refugiado todo indivíduo que:
I - devido a fundados temores de perseguição por motivos de
raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas en-
contre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não
queira acolher-se à proteção de tal país;
II - não tendo nacionalidade e estando fora do país onde antes
teve sua residência habitual, não possa ou não queira regressar a
ele, em função das circunstâncias descritas no inciso anterior;
III - devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é
obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio
em outro país.
(BRASIL, 1997).
212
proteção. Para o ACNUR, os direitos humanos tanto dos migran-
tes quanto dos refugiados devem ser inteiramente respeitados,
sem perder de vista, porém, a problemática particular em que estes
últimos estão enquadrados16.
213
sobre a realidade dos Warao em Manaus, no estado do Amazonas:
Dos cerca de 500 índios Warao que migraram nos últimos cinco
meses da Venezuela para Manaus, metade mora em barracas de
lona em ruas e embaixo dos viadutos que ficam no entorno do
Terminal Rodoviária, na zona centro-sul da capital amazonense. A
falta de acolhimento humanitário, como prevê a nova Lei da Mi-
gração, criou um drama sem precedentes na cidade cuja economia
vem das ricas indústrias da Zona Franca. Quem passa de ônibus
ou de carro pelas vias a imagem que se vê é similar das favelas que
surgiram quando Calaís, na França, abrigou refugiados Sírios.
214
cidade e indicando sugestões ao governo local para que recebessem os
refugiados, em situação de vulnerabilidade social. A partir deste docu-
mento, o governo municipal iniciou um processo de mobilização em
busca de definições de políticas públicas que atendessem as necessidades
básicas dos Warao. Cabe ressaltar que dois outros documentos foram
elaborados neste sentido: Parecer Técnico Nº 208/201719 e a Peça Perici-
al Nº 01/2017/Antropologia/PR-RR/SP20.
A sugestão número 10 do Parecer Técnico n° 10/2017 recomen-
da: “que sejam elaboradas ações e políticas públicas etnicamente diferen-
ciadas, em conjunto com os Warao, principalmente nas áreas de saúde,
educação, trabalho, moradia e abrigamento”. Ao chegarem ao Brasil, os
indígenas Warao necessitavam de assistência médica, muitos apresenta-
vam a saúde debilitada pelas longas jornadas a pé que fizeram de suas re-
giões até a travessia da fronteira, crianças apresentavam problemas epi-
dérmicos, desnutrição e outras doenças. Dentre outras enfermidades, os
migrantes apresentaram quadros sintomáticos de sarampo, o que exigiu a
aplicação de um plano de prevenção à doença, campanhas de vacinação e
imunização em grande escala. Contudo, mesmo com a vacinação, muitos
indígenas acabaram contraindo a doença em 2018:
215
timo dia 3, que também apontou que outros 7.974 casos suspeitos
estão em investigação. De acordo com a pasta, também existem
casos isolados da doença em unidades da federação, como no
Pará, com 14 casos. O Estado não registrava casos de sarampo
desde os únicos três confirmados em 2010. A doença voltou a
aparecer no Pará em 201821.
21
SARAMPO MATOU BEBÊ WARAO EM BELÈM. O liberal, 2018. Disponível em:
https://www.oliberal.com/para/sarampo-matou-beb%C3%AAs-warao-em-bel%C3%A9m-
1.39634. Acesso em: 19 mai. 2020.
216
essas perguntas, indicaremos um breve olhar cronológico sobre a educa-
ção para populações indígenas que pode ser dividido em três grandes
marcos: a Escola de catequese, o projeto civilizatório e o ensino bilíngue.
A Escola de catequese
O projeto civilizatório
217
por intermédio de uma série de dispositivos de homogeneização
cultural (GARCIA, 2007, p.24).
O Ensino Bilíngue.
218
II - garantir aos índios, suas comunidades e povos, o acesso às in-
formações, conhecimentos técnicos e científicos da sociedade na-
cional e demais sociedades indígenas e não-índias (LDB, 1996).
219
grantes cresceu exponencialmente, passando de 30 para 90 pessoas 23,
ocasionando superlotação no abrigo, o que tornou inviável a permanên-
cia dos indígenas no Centro Franciscano.
Após decisão do MPF e da Ordem dos Advogados do Brasil
(OAB) de Santarém, ficou decidido pela transferência dos indígenas para
a escola municipal Nossa Senhora de Fátima, que se encontrava fora de
funcionamento desde 2013. A escola está situada no bairro Cambuquira,
as margens da BR 163, também conhecida como Santarém/Cuiabá. No
dia 1° de novembro aconteceu a transferência dos Warao para esta esco-
la. A partir desta transferência, os indígenas passaram a ser atendidos
pela Secretaria Municipal de Assistência social (SEMTRAS), através da
Casa de Acolhimento de Adultos e Famílias (CAAF), que é descrito
como um equipamento da SEMTRAS. Como destacou o Fundo das Na-
ções Unidas para a Infância (UNICEF) que tem parceria com a Prefeitu-
ra de Santarém no apoio aos Warao:
220
bro, através do Decreto n° 796/2017 26 a prefeitura estabeleceu, dentre
outras ações, a responsabilidade de várias secretarias com relação à assis-
tência humanitária aos Warao que se encontravam na cidade. O Decreto
796, em seu art. 5º estabeleceu o seguinte: “fica sob responsabilidade da
Secretaria Municipal de Educação – SEMED a inclusão da criança e do
adolescente indígena na rede municipal de ensino, combatendo as situa-
ções de exclusão escolar e trabalho infantil.”
A oferta de educação para refugiados no Brasil é assegurada pela
Convenção de 195127 da ONU, que define direitos e deveres das pessoas
que se encontram em deslocamento pelo mundo e dos países que os aco-
lhem. Esta convenção é reforçada pelo artigo 205 CF/1988, que garante
a educação como um direito de todos. Entretanto, a oferta de educação
escolar aos refugiados, na prática, esbarra em alguns “desafios” que se
apresentam aos governantes, a saber, a língua, os costumes, a discrimina-
ção, a fragilidade do sistema educacional em cidades distantes dos gran-
des centros urbanos (e nos próprios centros urbanos), a dificuldades de
implementação de políticas públicas educacionais voltadas para minorias
ao lado das dificuldades de oferta de educação escolar aos cidadãos brasi-
leiros.
Em Santarém, não se observou um processo diferente de outras
cidades que acolheram precariamente os Warao. Por se tratar de um gru-
po com costumes nômades, o que implica um constante fluxo de migra-
ções dentro do território nacional, incluindo deslocamentos no interior
das cidades que os recebem, somado às barreiras da língua, pois em sua
maioria as crianças não dominam o Espanhol e se comunicam na língua
tradicional de seu povo, a inserção das crianças e adolescentes Warao na
221
rede de ensino escolar municipal se caracterizou de maneira complexa,
problemática e descontínua. Mesmo com o Decreto 796/2017, a matri-
cula regular das crianças e adolescentes na rede pública de ensino apenas
aconteceu um ano e meio após sua chegada ao município de Santarém,
como demonstram reportagens da época:
28
https://www.oestadonet.com.br/noticia/14731/um-ano-e-meio-depois-do-primeiro-fluxo-
migratorio-santarem-tem-10-vezes-mais-venezuelanos-refugiados-no-municipio/. Acesso em: 22
de jul. 2020
29
http://www.agenciasantarem.com.br/noticia/3485. Acesso em: 22 de jul. 2020
222
sem a estrutura financeira e administrativa das capitais e dos grandes cen-
tros urbanos, estes desafios se tornam mais complexos. Dentre estes
“desafios” envolvidos nos processos de inserção dos indígenas, é impor-
tante analisar de que forma acontece a oferta de educação escolar aos
Warao no município de Santarém, região Oeste do Pará.
223
Assim, a comunidade escolar precisou discutir o lugar da criança
indígena existente no sistema de ensino infantil local. As crianças Warao,
como crianças indígenas, ainda eram vistas como indivíduos dependente
de atenção ou frágeis cognitivamente. Por sua vez, os adultos Warao não
viam as crianças com indivíduos dependentes de proteção e cuidados,
trazendo para o trabalho escolar um contraponto a essa “visão fragiliza-
dora da criança”. A criança Warao é vista como um sujeito autônomo e,
desse modo, é visto entre seus familiares como alguém que precisa con-
tribuir com a sua comunidade ativamente, devendo ser inserido no mun-
do do trabalho desde a tenra idade, como se pode observar nas ações das
mães Warao que estão sempre acompanhadas de suas crianças ao prati-
carem a “coleta” nos semáforos das movimentas avenidas urbanas, como
faziam na Venezuela e agora no Brasil.
224
sistema de ensino escolar, as crianças deveriam ficar longe das ruas, den-
tro da escola. Porém, em vários dias da semana, faltavam a escola para
“ir ao centro” acompanhar as mães, o que ocasionou um elevado percen-
tual de ausência escolar durante o ano letivo de 2019.
30
Disponível em: Acionado, Conselho Tutelar vai resgatar menores venezuelanos em situação de
risco nas ruas de Santarém. https://www.oestadonet.com.br/noticia/12522/acionado-conselho-tutelar-vai-
resgatar-menores-venezuelanos-em-situacao-de-risco-nas-ruas-de-santarem. Acesso em: 10 jun. 2020.
225
Em uma turma multiseriada31 foram matriculados 37 alunos e em
determinado período do ano o número de alunos chegou a 43. O grupo
consistia em um núcleo parental que se subdividia em aproximadamente
6 a 8 famílias que se deslocaram juntas. Quando algumas dessas famílias
se deslocou da cidade, isto ocasionou a evasão da maior parte dos estu-
dantes desta turma. É necessário lembrar que uma turma multiseriada se
constitui em “turmas que são compostas por alunos de diferentes idades,
series e níveis de aprendizagem. Neste tipo de organização, apenas uma
professora trabalha com esses alunos na mesma sala de aula e no mesmo
horário” (Medeiros, 2010, p. 29).
A turma era composta por crianças e adolescentes com idades
que variavam de 7 a 19 anos, falantes da língua tradicional de seu povo
Warao, alguns com pouco domínio do idioma oficial de seu país, o espa-
nhol, e a maioria deles com pouco ou nenhum entendimento em relação
a língua portuguesa. Apesar de compartilharem a mesma nacionalidade,
o grupo apresentava grande heterogeneidade, tanto na faixa etária, quan-
to na familiaridade com o ensino.
Cabe destacar a presença de um adolescente de 15 anos e sua
irmã de 11 anos que não pertenciam a etnia Warao mas, e se deslocam
com o grupo. Tanto o adolescente como sua irmã frequentaram a educa-
ção formal na Venezuela, e apresentavam certa facilidade no entendi-
mento da língua portuguesa e alguma familiaridade com a língua escrita.
Uma adolescente Warao que frequentava as aulas acompanhada de seu
bebê de colo e três outras adolescentes com idades entre 14 e 16 anos
também frequentaram a educação formal em suas aldeias antes de sair da
Venezuela, apresentando certa desenvoltura na escrita e entendimento da
língua portuguesa. Porém, pouco se comunicavam em um outro idioma
que não fosse o idioma tradicional de sua etnia. Estes estudantes eram os
que mais se destacavam em sala de aula por mostrarem alguma capacida-
de de entendimento da língua portuguesa. Os demais alunos tinham ida-
des entre 7 e 10 anos com pouco ou nenhum domínio da língua espa-
31
As classes multisseriadas existem principalmente nas escolas do meio rural, visando diminuir a
evasão escolar, ou em projetos específicos, baseados na metodologia da aceleração e no telecurso,
buscando atrair crianças e adolescentes em situação de rua, analfabetas ou defasadas em seus es-
tudos, para que possam aprender e serem convencidos a continuar na vida escolar. Disponível
em: https://www.educabrasil.com.br/classes-multisseriadas/. Acesso em: 12 de jun.2020
226
nhola e em sua maioria não haviam tido contato com a educação formal
em seu país.
Ao assumir a turma em Abril de 2019, o grande desafio narrado
pelo professor mediador foi a barreira da língua, que dificultava a comu-
nicação com a turma. Isto, porém, não impediu o entendimento e a reali-
zação de muitas atividades em sala de aula, com participação dos indíge-
nas Warao através de uma comunicação por meio de gestos e também
do uso de um “portunhol”32. Na sala de aula foram fixados cartazes pro-
duzidos com a participação dos alunos e que apresentavam palavras na
língua original das crianças Warao com termos do seu cotidiano e com
tradução para a língua portuguesa, para que estivessem em contato si-
multâneo com aspectos da sua cultura e do país que os acolhe. Pelo fato
de a maioria dos alunos terem uma noção de espanhol, as professoras fa-
lavam “portunhol”, misturando as duas línguas (português e espanhol);
na sala havia cartazes com algumas palavras ou expressões na língua wa-
rao, para os alunos manterem contato com a língua materna 33.
A teoria histórico-cultural elaboradas por Vygotsky (1896-1934)
afirma que as mudanças na sociedade impactam diretamente no compor-
tamento dos sujeitos, influenciando seus processos de desenvolvimento
cognitivo e, consequentemente, a evolução de seus processos psicológi-
cos. Vygotsky demonstram que a aprendizagem está relacionada ao meio
em que o indivíduo está inserido e sua troca com ele. Desse modo, o
professor tem um papel fundamental no processo de adaptação do indi-
víduo ao ambiente de aprendizagem. Ao acompanhar os estudantes Wa-
rao, a professora responsável e a professora auxiliar da turma se torna-
ram responsáveis pela integração dos Warao dentro do ambiente escolar,
um ambiente culturalmente estranho, ajudando-os a se familiarizar com
o espaço. Também ajudaram a transmitir segurança nos processos de in-
teração com outros membros da comunidade escolar. Mesmo com o
32
Portunhol, uma mistura de português com o espanhol. Sobre o uso do portunhol no brasil,
ver: Observatório da Educação na Fronteira: Política Linguística em Contextos Plurilíngues: desa-
fios e perspectivas para a escola/ Rosângela Morello e Marci Fileti Martins (Organização) - Flori-
anópolis: IPOL: Editora Garapuvu, 2016 248p.
33
Disponível em: Grupo de estudos quer mapear situação sociolinguística de escolas públicas do
oeste paraense. https://g1.globo.com/pa/santarem-regiao/noticia/2020/02/19/grupo-de-estu-
dos-quer-mapear-situacao-sociolinguistica-de-escolas-publicas-do-oeste-paraense.ghtml. Acesso
em: 10 de jun. 2020.
227
acompanhamento em sala de aula, havia também o propósito de auxiliar
na construção de alguma autonomia as crianças em seu processo de
adaptação àquela instituição de ensino.
O processo de adaptação entre culturas distintas deve acontecer
de forma a respeitar o tempo e o espaço de cada um e em uma relação de
troca entre os indivíduos. Faustino e Mota (2016, p. 401) afirmam que
“Ao nascer, a criança se insere no ambiente organizado culturalmente
inicia; em um, longo processo, apropriando-se dos conhecimentos neces-
sários à medida que participa das atividades desenvolvidas pelo grupo so-
cial a que pertence”.
Vale assinalar que as famílias Warao, em sua maioria, se deslocam
em grupo em busca de melhores condições de vida. A situação de cons-
tante deslocamento entre as cidades criou uma rede de informações in-
ternas entre os Warao que são repassadas via celular por grupos parentais
que migraram para outros estados do país, facilitando e incentivando o
deslocamento destas famílias para outras capitais. O fenômeno ocasio-
nou um alto índice de evasão na turma formada para atender as crianças
indígenas, o que causou preocupação tanto para a direção da escola
quanto para o governo que, ao se deparar com a situação, percebeu a au-
sência de políticas de conscientização e valorização da educação escolar.
Por se tratar de um grupo indígena, o processo educacional não-escolar
acontece de maneira informal e segue os preceitos do grupo familiar,
sendo transmitido de forma oral pelos parentes mais próximos às crian-
ças, durante o cotidiano familiar, como acontece com outros grupos indí-
genas do Brasil.
228
Essa afirmação nos permite uma reflexão acerca da educação nos moldes
ocidentais que está sendo ofertada a uma população com práticas cultu-
rais distintas e com fluxos de deslocamentos constantes que não conce-
bem a educação da mesma forma que os outros grupos imigrantes exis-
tentes no Brasil, vindos para o país em razão dos mais variados motivos.
A legislação educacional brasileira de amparo à imigrantes segue
recomendações mundiais de varios órgãos que buscam ofertar uma edu-
cação que promova a inserção sociocultural e, posteriormente, proporci-
one o acesso aos serviços sociais básicos, como moradia, educação e
acesso ao mercado de trabalho para que assim conquistem melhores con-
dições de vida. A legislação brasileira assegura aos indígenas educação bi-
língue e processos próprios de aprendizagem, valorizando assim a sua
cultura e promovendo respeito aos povos originários do País.
Considerações finais
229
atendimento as novas configurações 34sociais ainda se apresentam como
um desafio as nações que recebem povos com cultura distintas. Não bas-
ta apenas a garantia de acesso à educação formal de crianças e jovens,
mas também é importante garantir permanência e inclusão do aluno, res-
peitando suas especificidades e para que assim a educação cumpra sua
função social.
Referências
34
https://www.publico.pt/2016/09/20/mundo/noticia/educacao-de-refugiados-e-questao-de-
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230
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232
X
PANORAMA DA EDUCAÇÃO INTEGRAL EM TEMPO
INTEGRAL: ESTUDO DO PME E DO PNME NO
CONTEXTO MUNICIPAL*
Introdução
233
PNE 2014/2024 -, que trata da ampliação progressiva da jornada escolar
para um período de, pelo menos, sete horas diárias, busca-se traçar um
panorama dos índices alcançados em níveis nacional e municipal.
234
alizou os Centros Integrados de Educação Pública – CIEPs 6 -, no Rio de
Janeiro. Embora tenham sido experiências fundamentais para instrumen-
talizar as discussões da educação integral, esses projetos não foram sufi-
cientes no sentido de efetivar uma política pública de implantação de
tempo integral na educação básica (COELHO; MENEZES, 2007).
Foi a partir da Constituição de 1988, que a construção de uma
base legal de amparo à educação integral começou a ser delineada no
Brasil. Embora não haja referência explícita à categoria educação integral,
o texto da Constituição, em seu artigo 6° 7, apresenta a educação como o
primeiro dos dez direitos sociais previstos como base para a formação do
indivíduo (GUARÁ, 2007), aspecto reiterado no artigo 205° 8 que prevê a
educação como direito de todos, devendo ser promovida para o "[...] ple-
no desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania
e sua qualificação para o trabalho". Dessa forma, entende-se que há na
Constituição Federal a condução para o entendimento de uma educação
que objetiva a formação integral do indivíduo (COELHO; MENEZES,
2007).
Nesse sentido, é necessário explicitar o entendimento adotado no
presente trabalho para as categorias educação e educação integral. A
compreensão da primeira categoria é baseada nas concepções de Saviani
(2013), portanto, compreende-se que educação é uma construção históri-
ca, resultado de práticas sociais e diferentes visões de mundo de determi-
nados contextos sociais. Constitui-se, assim, em uma atividade inerente e
indissociável da formação do ser humano – do sujeito histórico -, reali-
zando-se de maneira intencional, ao passo que, é através dos processos
educativos que o indivíduo irá se relacionar com o mundo e assim
6
Instituições públicas de ensino fundamental criadas pelo governador Leonel Brizola (CIEP’s),
no estado do Rio de Janeiro, visando a implementação de uma educação integral em tempo inte -
gral. “Cabe sublinhar que o surgimento dos CIEP’s teve como contexto o período de redemocra-
tização e, embora o projeto tenha recebido muitas críticas de partidos políticos e acadêmicos (de
esquerda e direita), a proposta dos CIEPS suscitou discussão sobre a escola pública, contribuindo
para o avanço do processo de democratização da escola pública (BARÃO, JACOMELI, GON -
ÇALVES, 2019).
7
Art. 6°: São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a
previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na for-
ma desta Constituição (BRASIL, 1988)
8
Art. 205: A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incenti-
vada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo
para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (BRASIL, 1988).
235
apreendê-lo. Para o autor, educação é “o ato de produzir direta e intenci-
onalmente em cada indivíduo singular a humanidade que é produzida
histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens” (SAVIANI, 2003,
p. 13).
A partir do exposto, entende-se que a educação escolar deve
acontecer em conjunto com práticas educativas comprometidas com a
necessidade de ofertar uma formação integral para o indivíduo, levando
em conta as dimensões ética, estética e intelectual vinculadas à formação
emancipadora do educando. Portanto, educação integral só se realiza
quando o tempo destinado a atividades escolares está associado com a
prática qualitativa de ampliação das possibilidades de aprendizagem
(MOLL, 2010).
Para tal ampliação da jornada escolar, é imprescindível que as
práticas educativas sejam capazes de oportunizar a construção de conhe-
cimento alicerçado no raciocínio, na memória, na ética, no esporte, no la-
zer, na imaginação e na afetividade, valores fundamentais que perpassam
pela construção das relações humanas e estão inseridos no contexto tem-
poral e espacial (GUARÁ, 2006; COELHO, 2009). Além disso, tais
práticas precisam estar pautadas em um projeto pedagógico comprometi-
do com a formação de sujeitos críticos, autônomos e capazes de percebe-
rem-se como sujeitos sociais – indivíduos - inseridos em determinado
contexto histórico permeado por contradições. (MORAES, 2009).
Assim, a partir de tal embasamento, pode-se considerar que, com
a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(LDBEN), Lei 9394/96, o Estado brasileiro assume a responsabilidade
legal de formalizar a integralização do tempo de permanência dos discen-
tes em atividades escolares. Em consonância com a Constituição de
1988, a LDBEN, em seus artigos 1° e 2°9, reafirma a importância da edu-
cação escolar integral como uma das bases fundamentais para o pleno
desenvolvimento do educando (COELHO; MENEZES, 2007).
9
Art. 1º A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na
convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e
organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais. Art. 2º A educação, dever da famí-
lia e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem
por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e
sua qualificação para o trabalho (BRASIL, 1996).
236
A LDBEN traz à tona a discussão entre a relação da formação
integral do educando e o tempo de permanência na escola, à medida que
determina a jornada do ensino fundamental (OLIVEIRA; COLARES,
2019). Em seus artigos 34° e 87°, a referida lei assegura que o tempo
mínimo de escolarização no ensino fundamental seja de quatro horas
diárias de trabalho efetivo em sala de aula, devendo ser o tempo progres-
sivamente aumentado para o integral, a critério dos sistemas de ensino.
Apesar do aporte legal, a institucionalização da educação integral
no Brasil ocorre com a criação, no ano de 2001, do Plano Nacional de
Educação - PNE -, Lei n° 10.172, que em acordo com as legislações
mencionadas, instituiu metas com objetivo de efetivar ações da União,
dos Estados e dos Municípios com vistas à ampliação da jornada escolar
para o turno integral. O plano apresentou um diagnóstico da realidade
do sistema educacional brasileiro, nos diferentes níveis e modalidades de
ensino, estabelecendo metas e diretrizes que deveriam ser cumpridas em
um período de dez anos -2001/ 2010-, assim, caracterizando-se como
uma política de Estado (IVO; HYPOLITO, 2009).
Para o PNE o desenvolvimento integral do estudante tem o in-
tuito de diminuir as desigualdades sociais e ampliar as oportunidades de
aprendizagem. De acordo com seu documento normatizador, “amplia-
ção da jornada escolar para turno integral tem dado bons resultados”, já
oportuniza a orientação no “[...] cumprimento dos deveres escolares,
prática de esportes, desenvolvimento de atividades artísticas e alimenta-
ção adequada, no mínimo em duas refeições, é um avanço significativo
para diminuir as desigualdades sociais e ampliar democraticamente as
oportunidades de aprendizagem (BRASIL, 2001)”
No tocante ao tempo destinado ao trabalho escolar, o plano or-
ganizou objetivos e metas a partir de estratégias específicas para a con-
cretização das diretrizes que deveriam ser consideradas na elaboração e
implementação das políticas públicas relativas àquele nível de ensino, tra-
zendo referências claras à escola de tempo integral, como se observa nas
metas 19 e 2110. Dessa forma, pode-se concluir que o PNE reafirma o in-
10
Meta 19: Assegurar, dentro de três anos, que a carga horária semanal dos cursos diurnos com-
preenda, pelo menos, 20 horas semanais de efetivo trabalho escolar; Meta 21. Ampliar, progressi-
vamente a jornada escolar visando expandir a escola de tempo integral, que abranja um período
237
tento de progressão dos períodos destinados à permanência em ativida-
des escolares, rumo à adoção do tempo integral nas escolas.
Para Mol; Maciel; Martins (2017), a partir do ponto de vista con-
ceitual, a primeira definição legal que faz referência implícita à educação
em tempo integral ocorre no Plano Nacional de Educação (PNE –
2001/2010), uma vez que em sua meta 21, o plano dispõe sobre o “au-
mento progressivo da jornada escolar, visando expandir a escola de tem-
po integral, cujo período de atendimento é especificado em 7 horas diá-
rias, com o quantitativo suficiente de professores e funcionários”
(BRASIL, 2001, p21).
O PNE trouxe avanços significativos ao estabelecer a necessida-
de de educação em tempo integral, mas ainda foi incapaz de delinear um
conjunto de ações concretas em âmbito nacional. O plano, ainda que co-
nectado à ideia de uma implementação de educação em tempo integral,
não foi capaz de definir metas e responsabilidades precisas. (GIOLO,
2012.)
A partir da criação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento
da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação
(FUNDEB), iniciou-se, de fato, em âmbito nacional, a implantação da
escola de educação integral, isso porque o fundo destina recursos para o
ensino em tempo integral. “Agora, finalmente, pode-se dizer que há um
aparato legal e um projeto de estado, prevendo recursos para a educação
integral que podem chegar, indistintamente, a qualquer escola de educa-
ção básica, em todo território nacional” (GIOLO, 2012, p.96).
Menezes (2012, p. 141), considera que o FUNDEB é um “[...] di-
visor de águas no que tange à garantia do direito à educação em tempo
integral.”. Para a autora o fundo teve importantes avanços em relação à
LDBEN e ao PNE, “[...] entre outros aspectos, por associar o tempo in-
tegral a todas as etapas da educação básica (educação infantil, ensino fun-
damental e ensino médio)”, a todas as modalidades e tipos de estabeleci-
mento de ensino da educação básica.
Importante observar, que com vistas à distribuição dos recursos
do Fundeb, tornou-se necessário deixar implícito o conceito de educação
de, pelo menos, sete horas diárias, com previsão de professores e funcionários em número sufici -
ente (BRASIL, 2001).
238
básica em tempo integral, para que não houvesse confusão com expe-
riências de educação em jornada ampliada, com diversas extensões de
carga horária. Nesse sentido, era preciso “[...]estabelecer um limite míni-
mo de tempo associado à jornada escolar [...] para que assim, os gover-
nos municipais e estaduais pudessem [..] fazer jus ao recebimento de re-
cursos relacionados ao empenho vinculado à implantação, manutenção e
estímulo ao aumento das matrículas com tempo integral sob sua respon-
sabilidade” (MENEZES, 2012, p.141).
Assim o Decreto n° 6.253/2007 regulamentou, em seu artigo 4°,
a educação básica em tempo integral como sendo a “jornada escolar com
duração igual ou superior a sete horas diárias, durante todo o período le-
tivo, compreendendo o tempo total que um mesmo aluno permanece na
escola ou em atividades escolares” (BRASIL, 2007a).
O FUNDEB foi criado pela Emenda Constitucional nº 53/2006
e regulamentado pela Lei nº 11.494/2007 e pelo Decreto nº 6.253/2007,
em substituição ao Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino
Fundamental e de Valorização do Magistério (FUNDEF), tem vigência
estabelecida para o período de 2007-2020 11. Foi instituído no âmbito de
cada Estado e do Distrito Federal, havendo assim um total de vinte e
sete fundos: um para cada estado e um para o DF.
Em específico à educação em tempo integral, o Fundo prevê que
as escolas públicas com alunos em tempo integral devem receber investi-
mentos proporcionais a serem aplicados sobre o valor por aluno/ano de
cada etapa/modalidade. Em 201912, as escolas públicas de ensino funda-
mental e médio que implementaram a educação integral deveriam rece-
ber um investimento por aluno 30% superior àquele destinado às escolas
que cumprem o tempo mínimo de permanência em atividades educacio-
nais – investimento por aluno (BRASIL, 2018).
O FUNDEB surgiu no contexto do Plano de Desenvolvimento
da Educação (PDE), este foi implementado em abril de 2007 como um
11
No dia 23 de julho de 2020, a Proposta de Emenda à Constituição – PEC - do Fundeb foi
aprovada na Câmara dos Deputados. A PEC passará por votação em dois turnos no Senada,
onde precisará da aprovação de três quintos dos senadores. Caso haja mudanças, a PEC voltará a
Câmara.
12
Os segmentos educacionais, e os correspondentes fatores de ponderação vigentes em 2019, de-
finidos por meio da Resolução MEC nº 1, de 06.12.2018.
239
projeto federal, apresentando como objetivo central investimentos na
educação básica, ensino superior e educação profissional. O PDE conta
com ações que incidem sobre os mais variados aspectos da educação em
seus diversos níveis e modalidades, “uma espécie de guarda-chuva”
(FERREIRA, 2016, p.36) onde se reúnem as principais estratégias – pro-
gramas e projetos - para a educação nacional. Tratando-se de um plano
de governo que pretende operacionalizar uma política de Estado, neste
caso o PNE (IVO; HYPOLITO, 2009).
240
Ainda vinculado à proposta do PDE, é importante citar o novo
Plano Nacional de Educação – PNE -, com vigência de 2014 a 2024, que
propõe em sua meta 6, “oferecer educação em tempo integral em, no
mínimo, 50% (cinquenta por cento) das escolas públicas, de forma a
atender, pelo menos, 25% (vinte e cinco por cento) dos(as) alunos(as) da
educação básica” (BRASIL, 2014), que deve ser consolidada a partir do
estabelecimento de nove estratégias e passa a nortear a política educacio-
nal do país.
Partindo desse panorama legal e normativo sobre a educação in-
tegral e a educação em tempo integral, pode-se perceber que a efetivação
de uma educação pautada na formação integral do indivíduo, com tem-
pos e espaços escolares condizentes, só ocorrerá a partir de políticas edu-
cacionais que saiam do papel e se tornem reais no cotidiano escolar
(OLIVEIRA; COLARES, 2019). Nesse panorama, são notórios os avan-
ços em prol da educação integral, porém é importante ressaltar que nos
documentos legais, planos e programas de governo nem sempre há uma
concepção que integre a educação de formação integral e o tempo inte-
gral. Percebe-se que, em geral, a referência restringe-se ao tempo estendi-
do destinado às atividades escolares.
Para Jacomeli, Barão e Gonçalves (2018, p.38), “[...] pode-se afir-
mar, que educação integral tem significado preferencialmente ampliação
do tempo de aprendizagem”, isso pois, a partir da década de 1990, sobre-
tudo, após a Conferência de Jontiem 13, da qual o Brasil é signatário.
Quando foram estabelecidos pressupostos educacionais que atendem aos
ditames dos organismos internacionais 14, “[...] seja na expansão do mer-
cado educacional, seja na sua crescente “participação” na definição dos
objetivos e meios educacionais, além de seu controle social, organizando
a escola – mesmo a pública – e seu tempo.” (Idem, p.35).
13
Conferência Mundial de Educação para Todos realizada em Jomtien, em 1990.
14
A Conferência de Jomtien foi patrocinada pela UNESCO, PNUD, Banco Mundial e a UNI-
CEF. Teve como co-patrocinadores o Banco Asiático de Desenvolvimento, o Governo da Dina-
marca, o Governo da Finlândia, o BID, Ministério Norueguês de Cooperação para o Desenvolvi-
mento, o Governo da Suécia, FNUAP e USAID. Os patrocinadores associados são o Organismo
Canadense para o Desenvolvimento Internacional, o Centro de Pesquisa para o Desenvolvimen-
to Internacional (Canadá), o Governo da Itália, o Governo da Suíça, a Fundação Bernard Van
Leer (países baixos) e a OMS (BARÃO, 1999, p.96)
241
Embora já se tenha passado três décadas após a Conferência, es-
ses pressupostos ainda repercutem na política educacional brasileira, evi-
denciando o alinhamento do Brasil com as orientações dispostas nos do-
cumentos originados a partir da Conferência - Declaração Mundial de
Educação para Todos e o Marco de Ação para Satisfazer as Necessidades
Básicas de Aprendizagem – onde constam eixos norteadores para educa-
ção vinculados ao processo da política neoliberal e a ideologia da globali-
zação hegemônica. Sem que haja um real enfrentamento dos dilemas so-
ciais, econômicos e políticos que permeiam a realidade brasileira.
(BARÃO; JACOMELI; GONÇALVES, 2019)
Alinhamento este que influencia na elaboração de leis, planos,
programas e políticas públicas educacionais, e neste sentido, “[...] as atu-
ais políticas de educação integral estão articuladas aos referidos pressu-
postos educacionais, e pouco têm avançado em sentido de garantir con-
dição de integralidade formativa [...]” (JACOMELI; BARÃO;
GONÇALVES, 2018, p.44). No Marco de Ação para Satisfazer as Ne-
cessidades Básicas de Aprendizagem, a educação integral é explicitada a
partir do aumento do horário de aprendizagem, como condição de redu-
ção dos níveis de abandono escolar, bem como para a melhoria dos re-
sultados de aprendizagem.
Sendo assim, faz-se fundamental analisar o PME e PNME que
nos últimos anos são destaques entre os programas indutores de educa-
ção integral por meio da ampliação do tempo escolar.
242
tuições com mais de 99 matrículas registradas no censo escolar de 2007
(BRASIL, 2010).
Esse programa apresentava como objetivos centrais a diminui-
ção dos problemas que estão no cerne da educação nacional, como a
evasão escolar e a distorção idade série, buscando melhorar a qualidade
da educação escolar, sobretudo a partir da ampliação do tempo que o
aluno permanece na escola, bem como através da diversificação dos sa-
beres e das vivências presentes nos conteúdos pedagógicos com ênfase
em ciências, artes, esportes e cultura (BRASIL, 2010). Quanto à forma-
ção integral, o PME apresentava dentre suas finalidades, uma proposta
de formação ampliada a partir da oferta de atividades diversificadas. O
PME, coordenado pela Secretaria de Educação Básica (SEB), repassava
recursos financeiros às unidades escolares cadastradas por meio do Pro-
grama Dinheiro Direto na Escola – PDDE – do Fundo Nacional de De-
senvolvimento da Educação – FNDE - , o valor pautava-se no número
de estudantes cadastrados no programa, em concordância com o Censo
Escolar do ano anterior do Censo Escolar (BRASIL, 2009).
Apesar das diretrizes para a melhoria da qualidade educacional no
Brasil, as avaliações realizadas pelo Sistema Nacional de Avaliação da
Educação Básica – SAEB- ainda demonstravam resultados aquém dos
desejados, principalmente na aquisição das habilidades de leitura, escrita
e cálculo. As médias de desempenho dos estudantes, apuradas no Siste-
ma Nacional de Avaliação da Educação Básica – Saeb -, juntamente com
as taxas de aprovação, reprovação e abandono escolar, apuradas no Cen-
so Escolar, compõem o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica
– IDEB -15.
Nesse sentido, há uma reformulação do PME e em 2016 é apro-
vado o Programa Novo Mais Educação (PNME).
243
de 2014, que determinam a ampliação da oferta da educação em
tempo integral e a melhoria da qualidade do fluxo escolar e da
aprendizagem das escolas públicas levou o Ministério a instituir o
Programa. (BRASIL, 2016).
244
nas áreas referidas, como o SAEB, é um dos principais objetivos do pro-
grama.
Dessa forma, afastando-se da concepção de uma educação para a
formação integral, na medida em que, nos documentos oficiais os objeti-
vos de ambos os programas permaneçam conjugados, mas uma análise
mais cuidadosa de suas diretrizes e finalidades, permite a conclusão de
que o foco principal mudou. No PME o foco estava no fomento de uma
educação escolar que contemplasse práticas educativas visando o desen-
volvimento integral do educando, através de experiências socioeducativas
nas dimensões culturais, artísticas, políticas, integradoras do aprendizado
escolar. As atividades desenvolvidas deveriam ter acompanhamento pe-
dagógico, com tempo de permanência em atividades escolares estendido,
com a jornada escolar ampliada para no mínimo sete horas diárias
(SAQUELI, 2018).
O PNME passa a adotar uma visão de educação em molde ins-
trutivo e com ponto focal na melhoria do desempenho e dos resultados
dos estudantes em disciplinas isoladas, relegando o caráter mais amplo de
uma educação escolar que valorize a diversidade de saberes e vivências,
voltada para uma formação humana multidimensional (MÓL; MACIEL;
MARTINS, 2017).
A mudança de programa também teve reflexos no que concerne
ao tempo destinado às atividades escolares, o PME apresentava uma pro-
posta de carga horária igual ou superior a sete horas diárias ou 35 horas
semanais no contraturno, enquanto que o PNME propõe a ampliação da
jornada com carga horária de 5 ou 15 horas semanais no turno e contra-
turno, sendo a opção de livre escolha da unidade escolar.
E nesse sentido, as escolas que ofertarem 5 horas de atividades
complementares por semana realizarão somente 2 atividades de acompa-
nhamento pedagógico, sendo uma de Língua Portuguesa e uma de Mate-
mática, com 2 horas e meia de duração cada uma (BRASIL, 2016), o que
pode ser visto como um retrocesso, uma vez que a estratégia de amplia-
245
ção do tempo escolar transita na contramão do que prevê a meta 6 do
PNE -2014/2024 e suas estratégias, conforme elencado a seguir:
16
Disponível em: <http://paineis.cgu.gov.br/lai/index.htm>
246
Em 2015, houve atraso no repasse de verbas via PDDE - Integral
e, além disso, o pagamento passou a ser realizado em duas parcelas anu-
Ais, o que tornou mais moroso o auxílio financeiro. Importante frisar,
que a partir de 2015, o PME não abriu mais inscrição para novas ade-
sões, “no início de 2016, os cortes na área de educação revelaram um
momento de queda na oferta do Programa Mais Educação [...]”
(PARENTE, 2016, p. 570). Ainda em 2016, a PME é reformulado dando
início ao PNME, que surge em um cenário de instabilidade política, em
que ocorreram reformas educacionais que passaram a comprometer o re-
passe de verbas para a educação.
Ao analisar a Tabela 1 referente às matrículas em tempo integral
no ensino fundamental da rede pública nacional entre os anos de 2010 e
201917, elaborada a partir de dados estatísticos do Censo escolar do Insti-
tuto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira -
INEP -, é possível observar que desde a implementação do PME os índi-
ces de matrículas em tempo integral estavam em ascensão, tendo maior
quantitativo no ano de 2015, quando consta que 19,4 % dos alunos do
ensino fundamental da rede pública nacional estiveram matriculados em
tempo integral. Porém, com a mudança para o PNME, em conjunto com
os cortes de investimento na educação e descontinuidade do repasse de
verbas para o programa, o panorama muda, com queda abrupta dos índi-
ces em 2016. Apesar de nos anos seguintes as matrículas apresentarem
elevação, ainda não se reestabeleceu o patamar alcançado em 2015.
247
2014 23.983.657 4.371.298 18,2
2015 23.323.728 4.534.616 19,4
2016 23.015.916 2.416.573 10,5
2017 22.742.249 3.706.986 16,3
2018 22.511.839 2.453.790 10,9
2019 22.206.624 2.420.522 10,9
Fonte: Elaborada pelas autoras a partir de dados estatísticos do Censo Escolar
disponibilizados pelo INEP.
18
Os dados são disponibilizados no site http://www.observatoriodopne.org.br e os indicadores
apresentam recorte temporal de 2011 a 2019.
248
Gráfico 1: Percentual de escolas públicas da Educação Básica com matrí-
culas em tempo integral – Brasil 2011 a 2019
249
inserida grande parte da Amazônia Legal 19 que é marcada por grande plu-
ralidade cultural, socioeconômica, socioespacial e geográfica, fato que
por si só já impõe desafios para as políticas educacionais, estas precisam
ser planejadas levando em conta a “sociodiversidade e biodiversidade das
populações que habitam essa região” (GOMES; CHAIBE, 2016, p.60).
250
Além das questões relacionadas à diversidade populacional e geo-
gráfica amazônica, fatores econômicos também merecem atenção quan-
do pensamos na construção de políticas educacionais, uma vez que, a
Amazônia, por conta dos seus ricos atributos naturais, é palco de pres-
sões econômicas a partir da execução de grandes projetos – infraestrutu-
ra, energético, mineral, madeireiro, fundiário e agronegócio – que tem
consequências diretas e indiretas sobre as populações locais (COLARES,
2012; VIEIRA, 2015).
O município de Santarém, localiza-se no estado do Pará, no me-
sorregião do Baixo Amazonas, na região Oeste do estado do Pará. Por
conta de sua localização geográfica, sobretudo por ser banhado pelos
rios Amazonas e Tapajós, tornou-se referência para o desenvolvimento
regional. Compreendido na região norte, a realidade do município está
inserida no contexto amazônico, portanto, a partir do exposto, a constru-
ção de políticas educacionais comprometidas com a formação integral,
emancipatória e crítica dos estudantes é fundamental para que eles te-
nham meios de resistir frente às pressões econômicas e políticas, buscan-
do formas de vida socioeconomicamente mais justas, que valorizem as
peculiaridades sociais e culturais e que evitem o comprometimento dos
recursos naturais da região.
Em 2019, a Secretaria Municipal de Educação e Desporto -
SEMED- atendeu a 63.335 alunos, distribuídos em 398 escolas e unida-
des de educação infantil, sendo: 89 unidades escolares na área urbana; 86
unidades no Planalto; 223 na região de rios (SEMED, 2019).
As políticas educativas do Município de Santarém estão regula-
mentadas pelo Plano Municipal de Educação - PME 2015/2025 - apro-
vado pela Lei n. 19.829 de 14 de junho de 2015 (SANTARÉM, 2015), o
qual foi resultado dos debates, discussões e elaboração do mesmo na V
Conferência Municipal de Educação da Cidade de Santarém – PA, reali-
zada nos dias 15 e 16 de maio de 2015 (OLIVEIRA; COLARES, 2019).
Referente à educação em tempo integral, o PME 2015/2025, em
consonância com o PNE 2014/2024, apresenta em sua meta 6 o com-
promisso de “[...] aumentar a oferta de Educação em Tempo Integral em,
no mínimo, 50% das escolas públicas, de forma a atender, pelo menos,
25% dos alunos da Educação Básica.” (SANTARÉM, 2015, p.63).
251
Segundo a SEMED (2019) não existem em âmbito municipal
programas específicos de financiamento de educação de tempo integral.
Os repasses são feitos via Governo Federal por meio do Fundeb e do
PDDE. Quanto à jornada escolar, a SEMED encontra-se organizada a
partir de duas estratégias para a devida ampliação:
252
constituiu na política de educação integral com maior impacto na rede
municipal de ensino, pela quantidade de escolas e pelo número de alunos
atendidos.
O PME teve sua adesão pela Secretaria Municipal de Educação
de Santarém – SEMED - no ano de 2009 através do PDE. Nas primeiras
adesões das Unidades Executoras do programa, houve implementação
em 18 escolas da Zona Urbana, com atendimento total de 2.412 alunos,
o critério para a escolha das escolas participantes neste primeiro ano de
execução do programa foi o baixo desempenho no IDEB (SIQUEIRA,
2016). Em 2013 houve a expansão do programa que passou a atender
também as Escolas do Campo.
Em 2014 o PME já contemplava todas as escolas de Ensino Fun-
damental da SEMED. Importante esclarecer, que, embora houvesse
atendimento em todas as escolas, as matrículas em tempo integral não
compreendem o total de alunos da rede, mas somente àqueles participan-
tes do programa.
A partir de 2015, não houve liberação de recursos para o PME e
as escolas que desenvolveram atividades vinculadas ao programa utiliza-
ram recursos residuais do exercício do ano de 2014, razão pela qual hou-
ve comprometimento do seu exercício. “O cenário econômico e político
e a suspensão dos recursos, gerou um clima de insatisfação e incerteza
sobre a continuidade do Programa” (SIQUEIRA, 2016, p.84). Nesse
contexto, Oliveira e Colares (2019) indicam que, de acordo com dados
disponibilizados pela SEMED, no ano de 2016 as atividades relacionadas
ao PME foram direcionadas à conclusão das ações iniciadas em
2014/2015, “haja vista que nos dois últimos anos não houve a oferta de
adesão ao programa” (OLIVEIRA; COLARES, 2019, p.18).
A evolução percentual de escolas públicas da rede municipal que
apresentavam matrículas em tempo integral pode ser observada no
Gráfico 2, elaborado a partir de dados do Observatório do PNE. O
gráfico permite a conclusão de que em 2016, a educação em tempo inte-
gral em Santarém sofreu reduções drásticas.
253
Gráfico 2: Percentual de escolas públicas da rede municipal com matrí-
culas em tempo integral – Santarém 2011 a 2019
Considerações Finais
254
a reformulação do PME e a implementação do PNME, em conjunto
com cortes de repasses de verbas para educação e, consequente diminui-
ção dos repasses para o Programa Dinheiro Direto na Escola Educação
Integral – PDDE -, os índices de acesso à educação integral sofreram
quedas significativas no ano de 2016, afastando-se do cumprimento da
meta 6 do PNE 2014/2024.
No que tange à concepção de educação integral em tempo inte-
gral, percebeu-se que o aporte legal normativo em âmbito nacional e mu-
nicipal privilegiam o quesito tempo destinado às atividades escolares, no
entanto, essa ampliação não garante que se tenha uma educação integral.
Nesse sentido, o PME foi uma conquista para uma educação vol-
tada para a formação integral do indivíduo, porém sua reformulação em
PNME acarretou mudanças significativas, e, o caráter de instrução am-
pliada a partir da oferta de atividades e experiências socioeducativas nas
dimensões culturais, artísticas, políticas e integradoras do aprendizado es-
colar sofreu modificações, com ênfase às habilidades nas áreas de Língua
Portuguesa e Matemática, a partir da obrigatoriedade de atividades com-
plementares dedicadas as disciplinas, assim, o caráter mais amplo dos
conteúdos pedagógicos fica em segundo plano, sendo um retrocesso di-
ante dos avanços que vinham ocorrendo.
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255
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XI
A AMAZÔNIA (R)EXISTE: PROTAGONISMO, LUTA POR
DIREITOS HUMANOS E CONTRIBUTOS DA OSC SEARA
PARA A INCLUSÃO SOCIAL*
*
DOI - 10.29388/978-65-86678-45-1-0-f.261-286
1
Mestranda do Programa de Pós Graduação em Educação da Universidade Federal do Oeste do
Pará (UFOPA). e-mail: [email protected]
2
Mestranda do Programa de Pós Graduação em Educação da Universidade Federal do Oeste do
Pará (UFOPA). e-mail: [email protected]
3
Mestranda do Programa de Pós Graduação em Educação da Universidade Federal do Oeste do
Pará (UFOPA). e-mail: [email protected]
261
quilombolas (IBGE, 2010; LACERDA; VERONESE, 2017). Atualmen-
te, a Amazônia é considerada o berço da maioria dos povos indígenas,
que ocupam o continente, e nela vivem cerca 23 milhões de brasileiros,
dentre estes, cerca de 55,9% da população indígena brasileira (IBGE,
2010).
Historicamente, a Amazônia foi constituída nos diversos imagi-
nários sociais estrangeiros como paraíso terrestre ou El Dourado. Segun-
do Paes Loureiro, “essa visão magnífica da Amazônia, tem razão de ser
em decorrência de sua real exuberância de natureza e paisagem na Pan-
Amazônia” (LOUREIRO, 2019). Mas nas últimas décadas, esta visão foi
convertida em um tema complexo, com inúmeros dilemas e problemas a
serem resolvidos. E, para melhor compreensão de tais dilemas, faz-se ne-
cessário rememorar o início do processo de invasão, apropriação e vio-
lência, conhecido na sua historiografia como colonização (ANDRADE,
2017).
Descrita incialmente pelo navegador espanhol Vicente Pinzón,
em 1.500, como paraíso terrestre (PORTO-GONÇALVES, 2017), em
razão da sua biodiversidade e multiculturalidade, no decorrer dos séculos,
a Amazônia tem sofrido inúmeros ataques e passa por mudanças, por
causa de uma série de conflitos de interesses econômicos, políticos e so-
ciais, que caracterizam a pós-modernidade. Tais conflitos, evidenciam
uma demanda social pautada na necessidade de dialogar em busca de re-
soluções para os problemas sociais e ambientais impostos à região, afeta-
da nos ecossistemas que formam a sua biodiversidade (ANDRADE,
2018).
Neste aspecto, a dialética que retrata as imagens da Amazônia
como “paraíso terrestre, de pulmão do mundo, de fonte inesgotável de
recursos naturais e de região do futuro; na mesma medida em que se
aproximam de inferno verde, cidades e populações invisíveis, vazio de-
mográfico e cultural, entre outras” (ANDRADE, 2014; PORTO-
GONÇALVES, 2017), é vista de maneira crítica. Pois, evidencia que,
para além das diversas representações, existe uma realidade que é comum
aos habitantes e à natureza amazônica. E em meio a esta realidade estão
os diversos conflitos que provocaram inúmeras consequências ambien-
tais, educacionais e sociais e que, na mesma proporção, afetam as popula-
262
ções mais vulneráveis socioeconomicamente e vítimas do racismo ambi-
ental (ACSELRAD, 2010; LIMA, 2014).
Hodiernamente, a realidade das condições sociais, econômicas e
ambientais em que se encontra a Amazônia, remete ao fato de que falar
sobre estas questões na região, perpassa por vários eixos, por tratar-se de
um tema transversal. É possível dizer que devido às origens no colonia-
lismo e posteriormente no assistencialismo, a questão social no contexto
amazônico mostra-se historicamente atrelada aos interesses de integração
comercial de suas riquezas naturais e ocupação populacional de seus es-
paços. Isto ocorre, especialmente, quando a região é incorporada ao do-
mínio do Estado português e sua ampliação territorial passou a ter prio-
ridade na política e ao longo de sua história, onde evidenciam-se os obje-
tivos específicos na maioria das intervenções propagadas pelo Estado, no
contexto da integração econômica e da ocupação territorial (LACERDA;
VERONESE, 2017).
Este preâmbulo objetiva caracterizar a questão social contempo-
rânea e alguns de seus principais aspectos, principalmente, no que se re-
fere às contribuições para com as populações nativas, onde geralmente se
verifica posturas de desconsideração e desrespeito tanto com a preserva-
ção, quanto com a manutenção dos aspectos e das condições necessárias
ou garantias para a vida destas populações, e de seus aspectos culturais,
diversos e singulares. A partir da entrada dos colonos e da exploração da
mão-de-obra indígena, que ocorre a instalação e intensificação da ativida-
de comercial na região (LACERDA; VERONESE, 2017).
No contexto colonial, historicamente, a exploração tende a apro-
ximar cada vez mais a Amazônia da esfera capitalista comercial. Por con-
seguinte, a era capitalista industrial, que previa relação harmônica e evo-
lutiva entre crescimento econômico e desenvolvimento social, termina
por promover processos degradantes de exploração e inclusão perversa
de seres humanos, que passaram a ser privados de suas necessidades
básicas e de seus direitos fundamentais, gerando um cenário de múltiplas
desigualdades sociais (LACERDA; VERONESE, 2017). Conforme Més-
záros,
263
mínimos da realização humana são insensivelmente negados à es-
magadora maioria da humanidade, enquanto a produção de des-
perdício assumiu proporções proibitivas, de acordo com a mudan-
ça da reclamada “destruição produtiva” do capitalismo no passado
para a realidade mais dominante hoje da produção destrutiva. As
desigualdades sociais gritantes em evidência atualmente, e ainda
mais pronunciadas no seu desvelado desenvolvimento
(MÉSZÁROS, 2005).
Neste exemplo, vemos que são muitos os fatores que têm impul-
sionado uma série de problemas ambientais e sociais na Amazônia e que
existe uma comercialização, onde a supervalorização do capital econômi-
co e o descaso ambiental, incrementam as atividades econômicas, desvin-
culado de uma política ambiental coerente com a realidade, e alteram
consideravelmente as dinâmicas ambientais na região (ANDRADE;
CARIDE, 2016). Assim, dentre as principais atividades que têm contri-
buído e agravado os mais diversos problemas desde meados do século
passado, também destacam-se: as usinas de hidrelétricas construídas em
áreas tropicais; no Estado do Pará, os portos de Itaituba e de Santarém
contribuíram e ainda contribuem para o aumento da derrubada da flores-
264
ta e, consequentemente, para a perda da biodiversidade, assim como as
atividades de mineração, que, historicamente, têm atraído a atenção de
grandes investidores tanto nacionais e como internacionais
(ANDRADE, 2018).
Consequentemente, para além dos megaprojetos de rodovias, de
hidrelétricas e da mineração, a Amazônia é atingida pelas atividades a eles
relacionadas e pelos processos de poluição, degradação e impactos soci-
ais, os quais contribuíram para a perda da biodiversidade e das condições
básicas de subsistência das populações do campo, principalmente os indí-
genas, pescadores artesanais e caboclos ribeirinhos (FEARNSIDE,
2015). E, em meio a tudo isso, estão as estratégias de invisibilização da
população local, a desvalorização da sua cultura e, especialmente, a des-
qualificação dos seus saberes (ANDRADE, 2014).
Todavia, em contrapartida a essas estratégias, os amazônidas re-
sistem na tentativa em desarticular a rede de interesses e poder que su-
pervaloriza o capital econômico, no âmbito da participação e dos movi-
mentos sociais, dentre os quais destacamos: a Revolta da Cabanagem
(1835-1840); o Manifesto do Rio Negro (1970); o Manifesto Ecológico
de José Lutzenberger - “Fim do Futuro? Manifesto ecológico brasileiro”
(1976); a Aliança dos povos da Floresta, liderada por Chico Mendes,
(1980); e o Movimento Xingu Vivo para Sempre (ANDRADE;
CARIDE 2016). Estes movimentos surgiram em resistência aos proble-
mas e questões que têm reforçado uma rede de exclusão social e proble-
máticas ambientais enquanto resultado da colonização, das políticas de
“povoamento” e de comercialização da Amazônia (PORTO-
GONÇALVES, 2017).
Aliada a estes movimentos, a educação tem papel fundamental,
especialmente no que se refere à resistência, quando toma a dimensão de
um processo contraditório e de disputas. Como processo humano por
excelência e dinâmico da sociedade, ela discorre sobre os debates do seu
tempo e produz resistências, continuidades e ideologias, pois “toda edu-
cação expressa os embates de um período histórico, pois é em seu interi-
or que estão em disputa os projetos de formação humana, tanto no pre-
sente, como para o futuro” (SILVA JÚNIOR, 2019). Entretanto restam
aos movimentos e coletivos sociais a construção das condições subjetivas
265
que promovam uma formação político educativa voltada para a emanci-
pação. (SILVA JÚNIOR, 2019).
Neste sentido, considerando os aspectos sociais, culturais, ambi-
entais e produtivos locais em articulação com as realidades nacional e
mundial, bem como a participação do professor e da população no con-
texto amazônico, Ribeiro e Brasileiro (2017) corroboram com esse pen-
samento quando refletem sobre
266
dade com etnias, línguas e suas diferentes manifestações culturais. E, nes-
se contexto, nos remetemos a uma realidade específica conhecida como
Amazônia – região rica em recursos naturais e atrativa por apresentar na
sua constituição tanto da natureza quanto da população uma heteroge-
neidade cultural, biológica e linguística (GOMES; CHAIBE, 2016).
Assim, pensar a Amazônia nos contextos social, educacional e
ambiental dos direitos humanos parece ir em contraposição ao exercício
das suas funções sociais de reprodução do capital, que desumaniza o ser
humano. Diante disso, vem a necessidade de mudança. Contudo, “mudar
estas condições exige uma intervenção consciente em todos os domínios
e a todos os níveis da nossa existência individual e social” (MÉSZÁROS,
2005). Neste sentido, de acordo com Marx, os seres humanos devem
mudar “dos pés à cabeça as condições da sua existência industrial e po-
lítica, e consequentemente toda a sua maneira de ser” (MÉSZÁROS,
2005). Então, pensar em mudança, é também pensar que ela ocorre atra-
vés da educação, a qual exerce papel fundamental, para a efetivação de
qualquer mudança. E mudar significa ter consciência de direitos e de luta
pela dignidade humana.
E ainda, concernente à educação, em sua obra, Mészáros (2005)
contempla uma ordem social qualitativamente diferente, quando defende
que agora tanto é possível embarcar na estrada que nos leva até essa or-
dem como também é necessário e urgente. Pois, segundo ele, as incorri-
gíveis determinações destrutivas da ordem existente tornam imperativo
contrapor aos antagonismos estruturais irreconciliáveis do sistema capi-
talista, uma alternativa positiva sustentável, para a regulação da reprodu-
ção metabólica social, se quisermos assegurar as condições elementares
da sobrevivência humana. Logo, o papel da educação, orientado pela úni-
ca perspectiva positivamente viável de ir para além do capital, é absoluta-
mente crucial a este propósito (MÉSZÁROS, 2005).
267
acesso a uma vida digna de modo a considerar o princípio da igualdade
entre os indivíduos. A este respeito, Sarlet define dignidade humana
como
268
reação combativa aos diversos modos de opressão, o cotidiano hege-
mônico imposto pela sociedade capitalista na organização política e soci-
al do Estado cria abismos, sentenças e limitações. Apresentada sob uma
perspectiva emancipatória, a internacionalização dos direitos humanos
assume, contraditoriamente, conforme aponta Rodrigues um processo de
relegitimação política do liberalismo e, com isso, a relegitimação da ex-
clusão social e da exclusão das minorias culturais, étnicas e sociais, em
face da nova burguesia transnacional e dos valores capitalistas globais
(RODRIGUES, 2007, p. 70)
Se na esfera internacional os direitos humanos correspondem a
um ideal comum a fim de atingir todos os indivíduos e órgãos da socie-
dade, os direitos fundamentais caracterizam um ordenamento jurídico
consagrado em território nacional. De acordo com Santos, é competên-
cia do Estado prover políticas sociais que possibilitem a fruição dos di-
reitos garantidos constitucionalmente, mediante leis, atos administrativos
ou através da prestação de serviços por suas autarquias, de modo a
abranger a coletividade em primeiro lugar (SANTOS, 2018, p. 94). No
Brasil, a Constituição Federal promulgada em 1988 estabelece em seu Tí-
tulo II os Direitos e Garantias Fundamentais seccionados em cinco capí-
tulos, são eles: Direitos Individuais e Coletivos, Direitos Sociais, Direitos
de Nacionalidade, Direitos Políticos e os Direitos Relacionados à Exis-
tência.
Há muito se discute o alcance e eficácia dos Direitos e Garantias
Fundamentais no território brasileiro. A constituição jurídica em uma re-
alidade multicultural expõe fragilidades que resultam em danos à coletivi-
dade e a representatividade na formação do sujeito. O sentido equânime
na aplicação do direito jurídico sofre distanciamentos e barreiras sociais
de modo a não abarcar a diversidade étnica que o pluralismo no país
postula. Consoante ao que defende Alves, os direitos fundamentais
269
Desrespeitar os direitos fundamentais de um indivíduo é mais que
mero ato ilícito com consequências jurídicas: significa romper com
a construção de sua personalidade, possuindo implicações tam-
bém extrajurídicas no descobrimento de seu ser. (ALVES, 2017, p.
141)
270
É salutar antever que o posicionamento contra hegemônico não
busca o protecionismo conservador da região, de acordo com Vieira é
inegável a importância do crescimento econômico e em muito o aumen-
to da receita do Estado contribui para a concretização e universalização
de direitos, no entanto, é imprescindível que a distribuição deste cresci-
mento respeite os saberes e características locais, de modo a não acarre-
tar o rompimento com as raízes e heranças étnico-culturais (VIEIRA,
2015, p. 94).
O ordenamento social e ambiental existente na Amazônia vem
sendo descaracterizado a partir da intervenção de megaprojetos. São
muitas as formas de opressão e exploração: hidrelétricas, mono cultivos,
desmatamento, mineração, lutas territoriais e até especulação imobiliária,
mas, o principal fator degradante e de prejuízo socioambiental permane-
ce atrelado ao agronegócio, apesar das evidentes perdas sofridas pela Re-
gião Amazônica, esse modelo extrativista segue sendo a principal bandei-
ra defendida pelo Estado. Segundo relatório elaborado pela Comissão
Pastoral da Terra em Santarém, os impactos socioambientais do avanço
do agronegócio na região, apontou que
[...] até 2010, cerca de 500 famílias deixaram suas terras para dar
lugar a campos de soja no oeste do Pará. Comunidades inteiras
deixaram de existir ou foram diminuídas para dar lugar aos latifún-
dios. O Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais
(STTR) de Santarém e o Projeto Saúde Alegria mapearam, em
2008, cerca de 30 nascentes e igarapés contaminados por agrotóxi-
cos e/ou em processo de assoreamento causado pela falta de mata
ciliar, sem contar os danos às águas subterrâneas. Esses danos se
verificaram em áreas próximas a plantações de soja, que também
contam com registros de problemas de saúde dos moradores lo-
cais consumidores dessas fontes de água. (CADERNOS DA
AMAZÔNIA, 2013)
271
sentido, não há como afirmar que os Direitos Humanos Universais e os
Direitos e Garantias Fundamentais previstos na Constituição Federal de
1988 alcançam a demanda que a realidade amazônica postula, uma vez
que o Estado dissociado do seu dever de proteção à vida é omisso aos
crimes cometidos contra as diversas vivências que o Brasil apresenta. De
acordo com Rodrigues a racionalidade ocidental
272
ou não são capazes de provê-la. Seu crescimento vem em virtude,
também, de práticas cada vez mais efetivas de políticas neoliberal
do capitalismo global, produzindo instabilidade econômica, políti-
ca e social, principalmente nos países do terceiro mundo.
(CASTRO; PENA, 2014)
273
[…] conjunto de organizações sociais que não são nem estatais
nem mercantis, ou seja, organizações sociais que, por um lado,
sendo privadas, não visam a fins lucrativos, e, por outro lado, sen-
do animadas por objetivos sociais, públicos ou coletivos, não são
estatais. (SANTOS, 2001, p. 13)
OSCs na Amazônia
274
Esse movimento organizado da sociedade gera “resistências em
rede”, que, segundo ALMEIDA, SANTOS e SOUSA (2018), fomentam
formas de sobrevivência nos seus lugares de atuação.
275
A união de pessoas que constituiu a SEARA deu-se a partir dos
anos 70, diante da preocupação inicial dos médicos Clara Terko Takaki
Brandão, pediatra e nutróloga, e Rubens Brandão, médico cirurgião, com
os casos de crianças acometidas pela desnutrição no Município de Santa-
rém.
No período de construção da Transamazônica, [...] nos mudamos
para Santarém, no baixo Amazonas. [...] No 1º dia do ambulatório
me deparei com 15 crianças desnutridas graves: marasmo e
kwashiorkor. Foi quando a LBA4 me procurou para ser presidente
do núcleo de voluntariado para fundar 13 creches. Na época hou-
ve uma seca intensa, com falta de água ao lado do maior rio do
mundo, e desnutrição em todos os bairros. Todavia, nenhum pro-
grama de alimentação em toda a região. A verba por criança era de
uma passagem de ônibus por pessoa, e alimentação do café da ma-
nhã ao jantar, material de limpeza e brinquedos. (DRA. CLARA
BRANDÃO, 2019)
276
aprender a comer a farinha de mandioca caroçuda. (DRA.
CLARA BRANDÃO, 2019)
5
Complemento alimentar difundido pela SEARA e por outras OSCs do Brasil e do Mundo para
o auxílio no combate à desnutrição protéico-calórico.
277
educação formal e inscrição no MEC como "Entidade Conveniada" para
atendimento na Educação Infantil; e na educação não escolar em ativida-
des no Centro Integrado de Apoio e Formação Familiar (CIAFF) que
atende adolescentes e jovens no contraturno escolar em atividades de
arte e educação (PORTIFÓLIO INSTITUCIONAL - SEARA).
278
convidada para integrar a coordenação nacional da Pastoral da
Criança. Já estava trabalhando no Ministério da Saúde. Treinamos
líderes de todo o Brasil e de alguns países: Peru, Bolívia, Colôm-
bia, Nicarágua, Moçambique e Angola. (DRA. CLARA
BRANDÃO, 2019)
Considerações finais
279
necessidades dos menos favorecidos, muitas vezes, invisibilizados. E, ao
considerarmos que o “fenômeno educativo manifesta-se, desde a origem
do homem pelo desenvolvimento de processos educativos inicialmente
coincidentes com o próprio ato de viver,[...]” (SAVIANI, 2016, p. 65), o
entendimento desse processo educativo na produção da existência huma-
na, nos mostra que a educação se constitui no “o ato de produzir, direta
e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é his-
tórica e coletivamente produzida pelo conjunto dos homens.”(SAVIA-
NI, 1997, p. 13)
A partir dessa compreensão, destacamos que os diálogos apre-
sentados sobre a Amazônia circundam a necessidade de olhar as “Ama-
zônias” a partir da sua diversidade, “exigindo direitos e não favores”.
(GONÇALVES, 2010, p. 169) e nos argumentos expostos, sintetizamos
a importância das Organizações da sociedade civil que promovem a in-
clusão social, em destaque para a OSC SEARA que na sua gênese revolu-
cionou com um programa de saúde e nutrição genuinamente amazônida,
associado a educação formal na 1ª infância.
Entrementes, esta associação difere do papel da escola no forma-
to dominante como quer o interesse capitalista, o qual
280
[...] uma educação [...] também tem a ver com a luta. Há uma edu-
cação revolucionária antes e outra depois que a revolução se insta-
la. Antes ela não pode ser feita pelo poder que silencia, mas so-
mente dentro dos movimentos sociais populares, dentro dos sin-
dicatos, dentro dos partidos populares não populistas. E através
de educadores que façam a sua conversão, o seu suicídio de classe,
os pedagogos trânsfugas. Quando o grito se encarna no poder en-
tão a educação revolucionária toma outra dimensão, pois o que foi
contestadora passa a ser agora educação sistematizada: trata-se en-
tão de recriar, de ajudar na reinvenção da sociedade. Na fase ante-
rior ela ajudava o grito para a derrubada de um poder hostil às
massas, com alas no poder a educação passa a ser um instrumento
extraordinário de ajuda para a construção da sociedade nova, para
a criação do homem novo. (GADOTTI; FREIRE; GUIMA-
RÃES, 2015, p. 160).
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nacionais, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2015.
285
XII
PENSAR A DIVERSIDADE AMAZÔNICA NO ENSINO DE
HISTÓRIA*
Introdução
*
DOI - 10.29388/978-65-86678-45-1-0-f.287-306
1
Mestranda em Educação da Universidade Federal do Oeste do Pará. E-mail: duci_matos@hot-
mail.com
2
Doutor em Educação. Professor Titular da Universidade Federal do Oeste do Pará. Docente do
Programa de Pós-graduação em Educação PPGE/UFOPA. Coordenador do Programa de Pós-
graduação em Educação na Amazônia - Doutorado Acadêmico (Associação em Rede - Polo San-
tarém/UFOPA). Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas “História, Sociedade e Educação no
Brasil HISTEDBR/UFOPA”. Presidente da Academia de Letras e Artes de Santarém (ALAS). E-
mail: [email protected]. ORCID: http://orcid.org/0000-0002-1767-5640
287
dades humanas aqui existentes. O espaço que concebemos como Ama-
zônia foi e continua a ser alvo de uma acirrada e impiedosa apropriação,
que consome seus recursos naturais, explora e ao mesmo tempo nega à
existência e diversidade das suas sociedades humanas. Aqui a palavra ne-
gação está sendo empregada tanto com referência a humanidade que era
negada aos indígenas, o que resultava no processo de catequização e ex-
ploração de sua mão de obra, quanto à invisibilidade atual dessa popula-
ção frente as tomadas de decisões sem o estabelecimento de diálogos
equitativos.
A forma como a Amazônia se configura na atualidade é fruto de
processos que agiram sobre essa região moldando-a e definindo-a. É, no
entanto, imperativo retirarmos à ingenuidade e percebemos que, longe
de terem permanecido no passado, esses processos de ocupação, apro-
priação e destruição continuam a ocorrer no presente, mascarando-se
por vezes sob formas e discursos de “investimentos” e “desenvolvimen-
to” para a região. Em outras palavras: os problemas enfrentados hoje
tem raízes em processos históricos, e também atuais. Faz-se necessário
serem compreendidos se queremos a eles nos opor. A educação torna-se
essencial para a compreensão e consequente luta, muito embora tenha-
mos ciência da sua limitação e do fato de que:
288
receitas, mas como indicações para que sejam problematizadas e
(re)construídas coletivamente.
O texto que ora socializamos visa contribuir para a formulação
de uma visão crítica da realidade amazônica por meio da disciplina de
história, considerando suas limitações e possibilidades. Para isso traz ini-
cialmente o debate sobre a visão da Amazônia enquanto como território
construído historicamente. Em seguida apresentamos alguns aspectos ge-
rais relativos a disciplina História e seus possíveis contributos para a
construção de uma visão crítica sobre a realidade amazônica, o que im-
plica na problematização da sua diversidade, abordada em outro item, e
culminando com as apreciações quanto aos limites e possibilidades do
ensino de história de maneira que possa oferecer contribuições efetivas
para o pensar criticamente a Amazônia.
289
zaram os discursos sobre essa região, bem como para as consequências
destas construções, chamando atenção para o fato de que:
290
borracha os imigrantes e os despossuídos em geral “engrossaram o cal-
do” dos trabalhadores desempregados nas cidades.
Mais recentemente no século XX os grandes projetos intensifica-
ram a exploração desordenada sobre essa região e seus recursos naturais.
291
mes estoques de recursos naturais que poderiam servir de real im-
pulso ao desenvolvimento regional. (LOUREIRO, 2002, p.118,
grifo do autor)
292
A disciplina História e seus contributos para a constru-
ção de uma visão crítica da realidade amazônica
293
Com relação à Amazônia a educação de caráter escolar, pode nos
levar a pensar e enxergar criticamente, tanto os processos de exploração
aos quais essa região foi e continua sendo submetida e as implicações
para à formação humana, quanto a construção de discursos, referentes à
natureza, culturas e sociedades aqui existentes.
É necessário, porém, ter em vista que como um produto social à
educação, na forma que se apresenta na sociedade atual, espelha e busca
legitimar às forças que já se encontram no poder. Ao abordar a educação
escolar na perspectiva da diversidade, Colares e Pescaria esclarecem que:
294
médio deverão desenvolver: “Estabelecer relações entre continuidade/
permanência e ruptura/ transformação nos processos históricos”, “Posi-
cionar-se diante de fatos presentes a partir da interpretação de suas rela-
ções com o passado”, “ construir a identidade pessoal e social da dimen-
são histórica, a partir do reconhecimento do papel do indivíduo nos pro-
cessos históricos simultaneamente como sujeitos e como produtos dos
mesmos”, “Comparar problemáticas atuais e de outros momentos his-
tóricos” e “Posicionar-se diante dos fatos presentes a partir da interpre-
tação de suas relações com o passado.
Ao tratar sobre os objetivos do ensino de história, para esse ciclo
de ensino, Circe Maria Bittenccourt (2008) aponta como contribuições
desta disciplina para constituição de identidades, associada à formação da
cidadania e mais especificamente ao cidadão político, a formação huma-
nística de respeito pelas diferenças e a formação intelectual
295
(ROCHA, 2004, p. 51). Percebe-se aí uma visão de simplificação do tra-
balho do professor, posto como um mero reprodutor de um conheci-
mento preestabelecido, pronto e acabado; portanto, perpassado de inte-
resses, e a passividade dos alunos visto como repositório de informações,
tendo por único objetivo decorar os assuntos de modo a reproduzi-los
quando necessário.
296
quanto habitantes desta região, por vezes desconhecemos os processos
históricos e as problemáticas atuais enfrentadas pela região da qual faze-
mos parte. Não se trata de culpar a disciplina, uma vez que a educação é
permeada de interesses. Contudo, cabe apresentá-la como possibilidade
de se pensar e problematizar a realidade na Amazônia. Tendo em vista
que o ensino de história não pode reduzir-se a memorização de fatos, a
informação detalhada de eventos, ao acúmulo de dados sobre as circuns-
tâncias nas quais ocorreram. A história não é simplesmente um relato de
fatos periféricos, não é o elogio de figuras ilustres. Ela não é um campo
neutro, é um lugar de debate, e quase sempre de explicitar conflitos. É
um campo de pesquisa e produção do saber que está longe de apontar
para o consenso. Essas são algumas das grandes questões que devem ori-
entar o ensino de História. Na perspectiva mais amplo de se pensar que
pessoas desejamos formar: reprodutores de uma realidade predatória e
geradora de desigualdades, ou agentes transformadores envoltos na cons-
trução de uma sociedade qualitativamente superior, posicionando-se de
maneira crítica, responsável e construtiva contra todas as formas de ex-
ploração que geram e aprofundam o fosso que separa as classes sociais.
297
giões do Brasil e do mundo. Mas, em utilizando-o, temos o dever
de explicitar as singularidades, as questões específicas, sem reduzi-
las a um rol descritivo de situações pitorescas (COLARES, 2011,
p. 189).
298
timar a forma como às suas riquezas foram e continuam sendo expropri-
adas.
O segundo aspecto não menos importante é a invisibilidade da
complexidade e singularidade das sociedades humanas aqui existentes,
em uma visão que na maior parte das vezes tende a considerar a floresta
em detrimento do elemento humano e suas complexas formações na re-
gião uma vez que:
299
políticas públicas. Não foram no passado, e continuam não sendo,
ainda hoje, tratados como atores sociais importantes no processo
das mudanças em curso (LOUREIRO, 2002, p. 114, grifo do au-
tor).
300
Limitações e possibilidades do ensino de história para se
pensar e problematizar a realidade na Amazônia
301
citar a entender a sociedade do passado e a aumentar o domínio da socie-
dade do presente.
Sob esse enfoque, não tem sentido um ensino de História que se
restrinja a fatos e acontecimentos do passado sem estabelecer sua vincu-
lação com a situação presente; como não têm sentido analisar os aconte-
cimentos atuais sem buscar sua gênese e sem estabelecer sua relação com
outros acontecimentos políticos, econômicos, sociais e culturais ocorri-
dos na sociedade como um todo. Não é possível, portanto, analisar fatos
isolados. Para entender seu verdadeiro sentido é imprescindível remetê-
los à situação socioeconômica, política e cultural da época em que foram
produzidas, reconstituídas suas evoluções na totalidade mais ampla do
social até a situação presente. Desta forma a escola poderá oferecer um
ensino que possibilite o conhecimento da temporalidade das relações so-
ciais, das relações políticas, das formas de produção econômica, das for-
mas de produção da cultura, sob todos os seus aspectos.
Bittencourt (2008) caracteriza como currículo formal (ou pré ati-
vo ou normativo) aquele onde o conhecimento apresenta-se em forma
de conteúdo, que vem preestabelecido, onde o conhecimento a ensinar
vem pré-determinado, nesse sentido uma construção política e técnica
permeada de interesses, onde há a necessidade de adaptação para dife-
rentes contextos. No entanto, o processo de transformação do currículo
da esfera técnica política à prática pedagógica, exige a mediação dos pro-
fessores, mesmo considerando que às ações destes, enquanto integrantes
de uma cultura escolar sendo, portanto, sujeitos a cumprimentos de re-
gras e planejamentos.
302
torna maior ainda na medida em que esse profissional desenvolve seu
trabalho em um ambiente que lhe permite estar a sós com seus alunos.
Permitindo-lhes sem que fuja dos conteúdos propostos à abordagem de
outras problemáticas, no caso do ensino de história pode-se ao se abor-
dar uma questão nacional apontar e problematizar, de que forma essa
questão se fez presente na Amazônia e quais as consequências para a atu-
alidade.
Considerações finais
303
como também as sociedades aqui existentes. E, por fim, mas não menos
importante, desenvolver o gosto pela análise dos acontecimentos e a des-
coberta das inúmeras possibilidades de se explorar a riqueza de informa-
ções que estão dispersas nas memórias das pessoas que são as construto-
ras da história, pelo trabalho, e pelas lutas em prol de direitos e da reali-
zação de sonhos.
Referências
304
ROCHA. Ubiratan. Reconstruindo a História a partir do imaginário do aluno.
In: NIKITIUK, Sônia L (org.). Repensando O Ensino De História. 5. Ed.
São Paulo: Cortez, 2004. P. 51-7
SAVIANI, Dermeval. Pedagogia histórico-crítica, quadragésimo ano: no-
vas aproximações. Campinas, SP: Autores associados, 2019.
SOUZA. César Martins de. A região dos desejos e das aventuras: diálogos
sobre os grandes projetos de integração e desenvolvimento na Amazônia nos
séculos XIX e XX. CADERNOS CEON SAÚDE E MEIO AMBIENTE. V.
31 N48 2018.
305
XIII
O PLURILINGUISMO E O CASO DOS ÍNDIOS WARAO EM
SANTARÉM/PA*1
Introdução
*
DOI - 10.29388/978-65-86678-45-1-0-f.307-326
1
Contribuíram para a realização desta pesquisa os acadêmicos do curso de Letras/Ufopa: Carlos
Henrique Xavier de Aguiar; Natália R. A. Almeida; Breno Augusto Pena Ferreira; e a mestranda
Cleylma Rodrigues Riker
2
Mestranda em Educação do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal
do Oeste do Pará PPGE/UFOPA. E-mail: [email protected]
2
Doutora em Linguística. Professora do Instituto de Ciências da Educação da Universidade Fede-
ral do Oeste do Pará. E-mail: [email protected]
307
dígenas do país falam cerca de 180 línguas (chamadas de autócto-
nes), e as comunidades de descendentes de imigrantes outras 30
línguas (chamadas de línguas alóctones). Some-se a estas ainda as
línguas de sinais, com destaque para LIBRAS, língua brasileira de
sinais, e para línguas afro-brasileiras ainda usadas nos quase mil
quilombos o oficialmente reconhecidos no Brasil. Somos, portan-
to, um país de muitas línguas, plurilíngüe (OLIVEIRA, 2009,
p.20).
308
do o nome de Santarém, em homenagem à cidade portuguesa homôni-
ma, e pouco mais de 100 anos depois foi nomeada como cidade, devido
a seu desenvolvimento.
Nos últimos anos, a cidade de Santarém vem recebendo um nú-
mero considerável de imigrantes venezuelanos, sobretudo indígenas. Sil-
va (2017) afirma que isso ocorre principalmente devido à crise econômi-
ca e social, à repressão e à violência às quais a Venezuela está sendo ex-
posta devido a eventos sócio políticos. O Panamá, o Equador e o Chile
têm recebido muitos imigrantes, assim como o Brasil. De acordo com o
autor, Santarém é uma das cidades que mais recebe imigrantes no Brasil,
por estar em uma região estratégica, com acesso por rodovias, rios ou ae-
ronaves.
Essa imigração contribui para a diversidade linguística em Santa-
rém, pois os imigrantes que chegam trazem consigo a sua língua. Segun-
do uma matéria de um jornal de 2017, uma grande quantidade de indíge-
nas da etnia Warao chegou ao município no dia 28 de setembro desse
ano. A maioria deles estava com fome e não tinham sequer roupas para
se vestirem. Foram acolhidos por uma instituição de pessoas em situação
de rua e depois por Igrejas Evangélicas. O governo municipal chegou a
declarar emergência, com a alegação de que a cidade não tinha recursos
para receber um número tão grande de refugiados.
Considerando essa realidade e a necessidade de realizar um ma-
peamento da realidade linguística da região, o Grupo de Estudos Lin-
guísticos do Oeste do Pará – Gelopa, abrigado no Programa de Letras da
Universidade Federal do Oeste do Pará, iniciou o projeto de pesquisa Di-
agnóstico sociolinguístico de escolas públicas do oeste paraense em contexto plurilíngue.
De acordo com o relatório realizado pelo Gelopa, referente aos primei-
ros meses da pesquisa, os indígenas venezuelanos, pertencentes à etnia
Warao, ficaram em abrigo, disponibilizado pela prefeitura, e crianças e
jovens foram todos matriculados em escola próxima. Cerca de 40 vene-
zuelanos foram matriculados na Escola Municipal Eloína Colares, que,
por esse motivo se tornou lócus de pesquisa do grupo. De acordo com o
Gelopa, os matriculados não possuem o domínio da Língua Portuguesa.
Esses indígenas aumentarão o número de crianças e jovens que falam
309
seus idiomas nativos sem dominar o português, tal como os Way-way da
reserva Mapuera do município de Oriximiná
Os casos descritos anteriormente apenas colaboram para desacre-
ditar no mito do monolinguismo abordado por Oliveira (2008; 2009),
uma vez que é perceptível a diversidade linguística presente em todo o
país. É fundamental a criação de estratégias para a transformação deste
quadro, e o primeiro passo é justamente diagnosticar e observar o fenô-
meno do plurilinguismo nas escolas. Seguindo essa linha, a presente pes-
quisa acerca do plurilinguismo presente na escola Eloína Colares se justi-
fica com base nestes argumentos, já que se faz necessária a análise do
funcionamento diversificado da língua neste contexto em que se prioriza
apenas uma língua.
O objetivo geral do presente estudo é o de descrever uma realida-
de linguística da amazônia paraense a partir de dados levantados por pes-
quisadores do Grupo de Estudos Linguísticos do Oeste do Pará no mu-
nicípio de Santarém com a chegada dos imigrantes venezuelanos. Para
tal, foi necessário identificar os alunos monolíngues, bilíngues e plurilín-
gues dentro do contexto escolar, além daqueles alunos que não dominam
a língua portuguesa. Também se investigou o monolinguísmo e o bilin-
guismo dos próprios professores, de modo a diagnosticar a natureza des-
ta diversidade. Foram observadas as origens dos alunos cuja língua ma-
terna não é o português, e qual função teria o português para os alunos
bilíngues que possuem outra língua materna.
310
Segundo o autor citado, os próprios estudos linguísticos, muitas
vezes, perpetuam essa relação multilíngue em nosso território. Ao abor-
dar temáticas como “diversidade linguística”, pode-se imaginar a própria
diversidade existente na Língua Portuguesa, e muitas vezes não se leva
em conta a diversidade de línguas nativas e estrangeiras no território bra-
sileiro. Desta forma, a sociedade aceita a Língua Portuguesa como a “lín-
gua única” e todas as outras vão morrendo ao longo do tempo, por falta
de falantes, estudiosos e professores dessa língua. Assim,
311
línguas em seu território. Segundo as estimativas, existem 6.700 línguas
no mundo e 200 estados-nações oficiais. Esses números mostram clara-
mente que existem mais línguas que países, mas as línguas oficiais nessas
nações é, na maioria das vezes, apenas uma.
Portanto, no mundo inteiro parece que existe a ideia do monolin-
guismo, embora a realidade seja multilíngue. Bassani (2015) demonstra
que esse mito é sustentado por razões políticas, tendo em vista que há
um grupo dominante que escolhe a língua oficial daquele território e a
impõe opressivamente a todos. No Brasil, por exemplo, existem aproxi-
madamente 210 línguas, mas é a Língua Portuguesa padrão que o aluno
precisa aprender na escola para se inserir no mercado de trabalho, na
vida pública e na sociedade de maneira geral. Assim:
312
É necessário ressaltar que a Declaração Universal dos Direitos
Linguísticos, elaborada pela UNESCO, estipula que qualquer indivíduo
possa se expressar linguística e culturalmente, de acordo com seus costu-
mes maternos. Além disso, o documento é enfático no que diz respeito à
assimilação, ou seja, quando um povo abandona sua língua materna pelo
uso de outra, condenando a indução dessa prática. Ou seja, os indivíduos
devem ser livres para utilizarem a língua dominante de um país ou não.
No artigo de número 4, há o seguinte texto:
313
preconceito e outras represálias se não falarem a Língua Portuguesa. As-
sim,
314
Mesmo que os tempos contemporâneos sejam diferentes, obser-
vamos que a história se repete, e a valorização da diversidade linguística
existente na região ainda não é uma prioridade. Ano após ano, as línguas
nativas diminuem cada vez mais devido à assimilação da Língua Portu-
guesa e ao mito do monolinguismo pregado pela Escola estatal. Somente
com a aceitação da realidade plurilíngue da Amazônia e do Brasil é que
se pode promover o multilinguismo existente em nosso país através de
políticas linguísticas.
Metodologia
315
para a identificação das línguas em uso na escola e seus modos de circu-
lação (MORELLO, 2016).
Assim, a próxima etapa da pesquisa foi justamente mapear as es-
colas que receberam ou recebem alunos falantes de outras línguas, sobre-
tudo línguas de indígenas brasileiros e venezuelanos. A Escola Municipal
de Santarém Eloína Colares, no bairro Ipanema, foi escolhida inicialmen-
te para a elaboração do estudo. Foram aplicados alguns questionários e
entrevistas semiestruturadas a gestores, professores e alunos. Todos os
dados foram reunidos e analisados qualitativamente e interpretado à luz
do referencial teórico reunido para a pesquisa. Os resultados foram cui-
dadosamente estruturados na forma do presente artigo científico.
316
De acordo com informações da matéria, a prefeitura acolheu os
refugiados, que foram levados a um abrigo para pessoas em situação de
rua. Alguns também foram abrigados pela Igreja, que ofereceu estadia e
alimentação. Após se estabelecerem, diversas crianças Warao foram ma-
triculadas em instituições educacionais da região, sendo que a escola mu-
nicipal Eloína Colares foi a única que recebeu dezenas de indígenas Wa-
rao. Algumas crianças falavam o idioma nativo e o Espanhol, outras se
comunicavam apenas com a Língua Materna, sendo um desafio para os
professores.
A presente pesquisa foi realizada na escola Eloína Colares, e a
partir de agora serão elencadas todas as observações e resultados de en-
trevista realizados na instituição pode meio de relatórios feitos pelos pes-
quisadores do Gelopa. Primeiramente, é interessante pontuar que há
contatos entre os indígenas venezuelanos, tanto os da escola Eloína,
como os do Abrigo, com falantes da língua portuguesa. As informações
obtidas na escola Eloína pelos pesquisadores do Gelopa mostram que os
alunos que lá estavam costumeiramente se direcionavam ao centro da ci-
dade com seus pais para realizar o que chamam de "coleta" (pedir dinhei-
ro). Neste contexto pode-se observar uma certa necessidade de comuni-
cação. Para que os indígenas Venezuelanos peçam o dinheiro, precisam
estabelecer de alguma forma interação com os falantes de língua portu-
guesa e aprender a outra língua a partir de uma necessidade social.
No abrigo, os indígenas venezuelanos têm celular e televisão, o
que configura uma espécie de imersão dos indivíduos que falam Warao
no universo da língua portuguesa. A televisão está em língua portuguesa
e o celular, mesmo que alterado para espanhol, ainda representa um afas-
tamento do Warao. Na escola Eloína verificou-se que existiam crianças
em idades iniciais. A julgar pela idade, talvez nem estivessem letradas em
seu próprio idioma e, por conseguinte, não estivessem minimamente a
par de sua história, o que os constitui como indivíduos. Em outras pala-
vras, estão em outro país, imersos em outra língua, que pode se consti-
tuir enquanto língua materna, já que elas não têm idade para dominar to-
talmente o Warao.
Dito isto, é possível questionar: como se dá a interação entre pro-
fessores que falam a língua portuguesa e alunos que falam Warao, e que
317
tiveram (nem todos) o mínimo contato com o espanhol? A resposta
pode ser observada em Oliveira (2009), tendo em vista que essa interação
vem de pressões linguísticas advindas de demandas sociais, já que muitos
indígenas venezuelanos precisam interagir para conseguir dinheiro, para
conseguir abrigo. Diversos já estão tendo contato com os meios de co-
municação do país, que necessariamente interagem por intermédio da
língua portuguesa.
Assim, de forma involuntária, por necessidades sociais e pelo
mero fato de estarem no Brasil. Eles interagem ou precisam interagir de
alguma forma, e essas tentativas contribuem para que formulem um arca-
bouço Linguístico que não é essencialmente organizado, mas que contri-
bui para que os alunos entendam minimamente o que a professora está
dizendo ou tentando dizer. Vale ressaltar que essa é uma forma velada de
indução a adesão de uma nova Língua, algo que vai contra a Declaração
dos Direitos linguísticos elaborada pela UNESCO, a qual mencionamos
anteriormente.
Foi possível perceber que a professora, quase sempre que tentava
falar com os alunos, buscava ao máximo dar ênfase às palavras mais im-
portantes na interação. Sempre em seus atos de fala pontuava palavras
essenciais para a interação, normalmente substantivos e verbos. Pouco se
dava ênfase na gramática e palavras que demandam um conhecimento
estruturado da língua, como as proposições "de" e “em”.
Na escola Eloína Colares, no ano de 2019, estavam matriculados
505 alunos, sendo 40 da etnia Warao. Foram feitas, de maio a dezembro
de 2019, 6 visitas na escola. As observações mostram que os alunos da
etnia Warao, na faixa etária que varia de 6 a 19 anos, estavam reunidos
todos na mesma sala, sendo alfabetizados por apenas uma professora e
uma auxiliar. Os alunos, em sua maioria, pertenciam ao mesmo grupo fa-
miliar, o que influenciava na frequência às aulas e na evasão escolar, pois
quando a família decidia migrar para outra cidade a quantidade reduzia
bastante. Em agosto de 2019, de 40 alunos havia apenas 5, e estes per-
tenciam a mesma família que estava na iminência de também partirem.
As professoras utilizavam livros pedagógicos como o do progra-
ma “Se liga”, que eram próprios para a alfabetização, além de uma meto-
dologia adequada por partes das docentes que possibilitou os alunos ve-
318
nezuelanos absorverem boa parte do conteúdo quando comparado com
alunos de tinham o Português como língua materna. A maioria dos alu-
nos tem uma noção de espanhol, e por isso as professoras falavam “por-
tunhol”, uma junção do Português com o Espanhol. Na sala havia carta-
zes com algumas palavras ou expressões na língua Warao, pois a inten-
ção era fazer os alunos se sentirem à vontade, além de não perderem ou
esquecerem a sua Língua.
Algumas crianças já possuem certa interatividade com a língua
portuguesa, pois já estão mais tempo no país. Algumas crianças acompa-
nhavam as mães na atividade de coleta (o ato de pedir dinheiro nos cen-
tros da cidade), o que potencializa a interatividade por meio da língua
portuguesa. Por uma questão cultural, as crianças sentem a necessidade
de estar juntas dos parentes, e por isso a professora afirmou que dificil-
mente se conseguia manter irmãos e primos longe uns dos outros. Se-
gundo a professora entrevistada, os pais tinham grande anseio de ver os
filhos na escola, para que aprendessem a escrever os nomes e começar a
organizar os documentos.
Na sala de aula, a professora, para conseguir interagir com os alu-
nos, utilizava bastante da linguagem gestual a cada ato de fala, como se
estivesse desenhando o que estava enunciando. Em alguns outros mo-
mentos a docente chegava alterar o ato de fala, mesclando o espanhol e o
português. A instrutora tentava também ser bem enfática a cada palavra,
reforçando cada ponto de transmissão de informações para que fosse
compreendida pelos alunos falantes da língua ''warao''. Este contexto re-
flete um choque entre culturas, línguas e formas diferentes de pensar e
simbolizar o mundo. Este choque é complexo, mas que tende a ser pro-
fícuo, desde que existam políticas linguísticas adequadas, configuradas
por pesquisas, como esta, que busca entender os diversos contextos soci-
olinguísticos.
Dos 40 alunos da sala, foi aplicado um questionário a 14, corres-
pondendo a 35% da turma, por serem estes o que tinham condições de
compreender e responder as perguntas. A maioria deles ainda contou
com ajuda de colegas e da professora. Os alunos pertencem majoritaria-
mente ao mesmo grupo familiar e, por serem nômades, isto influenciou
uma grande evasão no segundo semestre ao ponto de a turma ficar com
319
apenas 5 alunos, aumentando para 8 em seguida. No segundo semestre
houve redução da turma e saída da Professora auxiliar. O baixo número
de alunos e a saída do professor da turma do 1º ano levou a Direção a
unir a turma dos alunos warao, que permaneceu apenas com uma profes-
sora.
Portanto, as duas turmas estavam na mesma sala e a Professora
tinha o duplo desafio de alfabetizar os dois grupos de alunos. As duas
turmas juntas somavam cerca de 30 alunos. Após observarmos o elevado
número de evasão escolar, visitamos o Abrigo Municipal e verificamos
que o Município oferece boa estrutura e bom atendimento aos imigran-
tes. Na última visita os alunos não possuem documentação pessoal e
tampouco documentação escolar, e talvez por isso não foram inseridos
no sistema de matrículas, pois o Município de Santarém não possui tur-
mas multisseriadas.
A partir das visitas percebemos que, embora o Município de San-
tarém seja referência em relação ao recebimento e atendimento aos di-
versos imigrantes, em especial os venezuelanos (por isso, muitos retor-
nam para o Município após fazerem tentativas em outros lugares), no
que se refere ao processo educacional, a Semed propõe inserção e intera-
ção dos alunos imigrantes. Todavia, ficou perceptível que falta um proje-
to efetivo de política linguística, sobretudo com preparação de professo-
res para atuarem e liderem com estes alunos e outros em específico.
Embora o Ministério Público recomende que haja um estudo
voltado para a situação dos imigrantes e atendimento aos mesmos, no
que se refere ao ensino, o fato dos venezuelanos serem nômades, traz
uma série de implicações e dificuldades ao sistema de ensino brasileiro.
Não há uma aceitação de que estes alunos em situação de matrícula regu-
lar fiquem dois ou três meses fora da escola e depois retorne normal-
mente à sala de aula e continue seus estudos. Mesmo diante de todas as
dificuldades enfrentadas pelos alunos indígenas venezuelanos como o
choque cultural, linguístico e social, inseridos em um contexto totalmen-
te diferente e atípico, eles surpreenderam e se sobressaíram em atenção,
desempenho, dedicação, evolução e resultados frente aos alunos brasilei-
ros.
320
Para compreendermos essa realidade de forma mais aprofundada,
colocaremos aqui os resultados dos questionários aplicados aos alunos
imigrantes da Escola Eloína Colares. Dos 14 alunos que participaram, 7
eram do sexo masculino e 7 do sexo feminino, tinham entre 11 e 19
anos. Sobre os locais de nascimento, afirmam ser oriundos de Tucupita,
Mariosan, Venezuela ou Baranca. A respeito da língua que dominam, to-
dos os eles dominam o Warao, todos afirmam falar espanhol, 5 afirmam
falar um pouco o português e o restante confirmam que falam bem o
português. A respeito do local em que residem, todos afirmaram que es-
tão morando no abrigo com a família, que inclui pai, mãe, irmãos e avós.
Sobre o tempo em que estão em Santarém, todos disseram que
estão na cidade desde 2018, variando o mês. Sobre o local de onde vie-
ram, as respostas incluíram quatro locais: Venezuela, Punta Pescador,
Boa vista e Manaus. Em relação aos acompanhantes, as crianças afirma-
ram que vieram com a família, pais, irmãos e avós. Quando foram questi-
onados sobre a língua que os irmãos falavam, 6 disseram que era somen-
te Warao, 1 disse que era Warao e Português e 4 disseram que era Warao
e Espanhol.
Eles também foram questionados em relação à Língua que se fala
em casa. 6 disseram que se falava somente Warao e 4 disseram que se fa-
lava Warao e Espanhol. Ou seja, a Língua Portuguesa não é utilizada no
âmbito íntimo dos imigrantes. Sobre o tempo em que estão na escola,
disseram que desde fevereiro de 2019. Também se perguntou se eles fre-
quentavam escola no local em que moravam, somente 1 não frequentou.
Todos responderam que não tinha pais alfabetizados, no máximo escre-
viam o próprio nome.
Quando questionados se eles sabiam ler e escrever, todos afirma-
ram positivamente, com exceção de 2. Dos que sabiam ler e escrever, to-
dos eram alfabetizados em Warao e alguns afirmaram ler em espanhol e
português. Todos concordaram que a Língua Portuguesa é difícil, mas
bonita. Ao serem questionados sobre a língua falada com os colegas de
sala de aula, todos afirmaram que falavam em Warao, e 4 afirmaram que
utilizavam o Warao e Espanhol. Também responderam que se comuni-
cam com os professores através do portunhol, uma mistura de português
com espanhol.
321
Fora da sala de aula, todos os entrevistados ficam no abrigo, e
um deles disse que fica no centro. Dos 14 entrevistados, 9 deles afirma-
ram que saem para passear, somente 1 negou. 1 disse que passeia no
Shopping, 7 passeiam no centro, 1 passeia na praça, 1 passeia no abrigo e
1 passeia pelas ruas. Nesses locais citados, 6 falam Warao, 5 tentam falar
português, e 2 falam espanhol. Sobre a cidade, 6 falaram que é boa e 4
disseram que gostam muito, uma disse que quer ficar e nunca mais voltar
de onde veio. 8 disseram que não querem mais voltar para a Venezuela,
um disse que quer voltar e um disse que quer voltar apenas no próximo
ano.
Sobre a língua materna, 4 disseram que é fácil, e 5 disseram que
gostam muito do Warao. 8 deles disseram que gostam da escola e 2 dis-
seram que é legal. Quando questionados sobre o que gostam, as respos-
tas foram: da sala de aula, do parquinho, professora, dos colegas, lanche,
escrever ler e desenhar. Sobre o que não gostam, a maioria disse que gos-
ta de tudo, e um disse que não gosta da ausência dos colegas. A maioria
considera a professora legal ou boa. Sobre a matéria que eles possuem
mais dificuldade, a maioria disse que é a Língua Portuguesa, um disse
tudo e um disse que não possui dificuldades. Também perguntamos que
língua eles usariam na escola, se pudessem escolher, e todos disseram
que usariam o Warao, mas deixaram claro que querem aprender a língua
portuguesa.
Quando estão juntas e no convívio familiar, elas falam a mesma
língua, o “warao”. Entretanto, são motivadas pelos pais, especialmente
os que pretendem ficar e fixar residência, a aprenderem o Português,
para trabalharem e “não serem enganados” (assim eles dizem). É sabido
que a Constituição Federal (CF/1988) determina que toda criança tem
direito à educação, contudo, as diversas leis que regem as políticas educa-
cionais em nosso País ainda não atendem à realidade plurilíngue, pois o
ensino ainda é monolíngue, voltado para o público homogêneo, descon-
siderando a existência e o crescimento do público heterogêneo.
Diante das observações, podemos concluir que a emigração dos
venezuelanos para Santarém evidenciou a falta de uma política linguística
efetiva e atenciosa para com os estudantes, e sobretudo com as docentes.
Mesmo auxiliadas por materiais pedagógicos, na sala de aula há circuns-
322
tâncias cujas procedências não constam nos livros, como foi esse caso,
com alunos cuja língua materna era outra, oriundos de um contexto emi-
gratório delicado, com uma cultura e vida diferentes. Além de tudo isso,
por serem nômades, havia a dificuldade de ver o resultado do ensino, o
que afetava não só a sala, como também a escola.
Casos como esse tendem a se repetir, por isso uma política lin-
guística se faz necessária para que os emigrantes tenham sua cultura res-
peitada e para que os docentes tenham uma base de como proceder em
determinadas situações e em relação a melhores metodologias aplicáveis.
Essas medidas garantem que a escola não seja prejudicada e, sobretudo,
que haja ainda mais interação e conhecimento cultural.
Conclusão
323
portuguesa, mas para isso não precisam abandonar sua língua e sua cultu-
ra. O primeiro passo para alcançar esse estágio é justamente com a com-
preensão de que estamos imersos em um contexto plurilíngue, e a tenta-
tiva coercitiva de impor a língua portuguesa a populações minoritárias é
opressiva.
Referências
324
PROJETO Diagnóstico Sociolinguístico de Escolas Públicas do Oeste Paraense
em Contexto Plurilíngue. Grupo de Estudos Linguísticos do Oeste do Pará –
Gelopa, 2018.
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ponível em: < http://www.santarem.pa.gov.br/pagina.asp?id_pagina=6>.
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SEIFFERT, Ana Paula. Censos, Diagnósticos, Inventários e Observatórios
Linguísticos: aspectos metodológicos e papel político linguístico. Tese
(doutorado) em linguística. Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de
Comunicação e Expressão. Florianópolis, 2014.
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so em 24 de junho de 2020.
UNESCO. Declaração Universal dos Direitos Linguísticos. Tradução de
Wanda Ramos. Barcelona, 1996.
325
XIV
EDUCAÇÃO, REALIDADE AMAZÔNICA E FORMAÇÃO DO
PROFESSOR: O PARTICULAR E O UNIVERSAL*
Introdução
*
DOI - 10.29388/978-65-86678-45-1-0-f.327-342
1
Mestranda em Educação da Universidade Federal do Oeste do Pará/UFOPA, Linha de Pesqui-
sa: Linha 2. Conhecimento e formação na educação escolar, sob a orientação do Prof. Dr. Luiz
Percival Leme Britto.
327
No segundo momento, reflete sobre a educação na Amazônia,
enfocando a tensão particular e o universal e pensando uma educação na
Amazônia que considere sua realidade, singularidades e especificidades.
No terceiro momento, tece considerações sobre como vem ocor-
rendo com a formação do professor, a partir da aprovação da Lei de Di-
retrizes e Bases da Educação Nacional – LDB, nº 9394/1996, especial-
mente no que tange às disputas entre público e privado, observando que
o recuo da teoria nos cursos de formação inicial tem implicações na
prática pedagógica.
328
de outro, que não se trata de uma dialética idealista, uma dialética
entre os conceitos, mas uma dialética do movimento real. Portan-
to, trata-se de uma dialética histórica expressa do materialismo his-
tórico, que é justamente a opção que procura compreender e ex-
plicar o todo desse processo, abrangendo desde a forma como são
produzidas as relações sociais e suas condições de existência até a
inserção da educação nesse processo. (SAVIANI, 2013, p. 119-
120).
329
que os objetivos da educação são tensos, servindo ora aos interesses da
ideologia dominante, ora aos interesses das classes trabalhadoras. Como
assinala Gramsci (1978), a educação pode produzir a contra-hegemonia,
tendo intelectuais transformadores na linha de frente, como organizado-
res da cultura, criando possibilidades de construção de um ensino justo,
democrático, que considere a diversidade e a pluralidade cultural em co-
nexão e relação com os conhecimentos socialmente construídos. É so-
mente com a aquisição dos conhecimentos sofisticados produzidos pela
humanidade que conseguiremos superar as desigualdades sociais.
Nessa direção, Libâneo convida-nos a tomar posição rumo ao
rompimento com a concepção de educação enquanto processo individu-
alista, a-histórico e sem conexão com a reflexão da realidade, tendo por
base a educação como prática educativa e humana, que ocorre no âmbito
histórico e social. Para Saviani (2019), o papel do professor vai além da
transferência do objeto de conhecimento, levando o aluno a pensar e a
ser o sujeito da aprendizagem, crítico e refletindo sua realidade. Nesse
processo, a educação escolar tem a função de instrumentalizar os alunos
a superar as condições de desigualdades sociais, através do conhecimen-
to.
330
vém de sua cultura e da relação de trabalho com a terra, com a mata e
com as águas, além das vivências comunitárias, e se expressam em di-
mensões educacionais, religiosas, medicinais, culturais e históricas.
331
A Amazônia está submersa a disputas de interesses influenciados
pelos interesses capitalistas. Dentre os fatores relevantes, destacam-se as
disputas pela posse de terras, a destruição do ambiente pelo desmata-
mento e queimadas, a construção de hidrelétricas, a abertura de rodovias
e estradas, a invasão de terras indígenas, a extração de minérios, o agro-
negócio, entre outras formas de exploração dos recursos naturais da
Amazônia, que geram lucro para o capital nacional e internacional. Fren-
te a essa realidade, desconsideram-se os interesses das populações locais
e desrespeita-se a diversidade ambiental, social e cultural da região. Per-
cebemos isso nas políticas educacionais que são pensadas, elaboradas e
implementadas de maneira vertical pelos governantes, que desconside-
ram toda heterogeneidade e especificidades culturais, sociais e ambientais
existentes nessa região.
É indiscutível a necessidade de elaboração de políticas públicas
de proteção ambiental e cultural e social, com políticas que considerem
os interesses dos povos dessa região. A Constituição Federal do Brasil de
1988, art. 210 estabelece que “serão fixados conteúdos mínimos para o
ensino fundamental, de maneira a assegurar a formação básica comum e
respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais”. Nesse
sentido, existe preocupação em garantir o trabalho com a diversidade
cultural, respeitando tanto a diversidade nacional como regional. Tam-
bém a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1996, atenta
para isso e determina que se deve se incluir no currículo da Educação
Básica uma parte de conteúdos que prevê a diversidade cultural e regio-
nal no contexto do território brasileiro.
Contudo, apesar de contemplado nos textos legais da Constitui-
ção Federal de 1988 e Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de
1996, o anseio do trabalho com a diversidade aparece de maneira tímida
e superficial, não obstante as lutas de movimentos dos povos indígenas,
movimento negro e movimento feminista, entre outros, que propugna-
ram, nas conferências municipais, estaduais e nacional de educação, reali-
zadas entre 2010 a 2014, com objetivo, discutir com a sociedade, ações,
metas e estratégias do Plano Nacional de Educação – PNE, para que tais
temas ganhassem evidência e relevância no currículo escolar.
332
Entretanto, nem todas as pautas relativas à diversidade foram
contempladas no documento final do PNE, sob a Lei nº 13.005 de 2014.
A leitura atenta e crítica do documento revela continuidades de desigual-
dades históricas no que se refere ao trabalho com a diversidade no âmbi-
to da educação brasileira e amazônica. Há muita reflexão a ser feita para
instituir uma educação que considere a realidade Amazônica em sua sin-
gularidade e a necessária articulação com os conhecimentos historica-
mente acumulados pela humanidade.
De acordo com Arroyo e Gomes (2017), ao introduzir o direito à
diversidade como uma de suas diretrizes, o PNE (2014 – 2024) o reco-
nhece como um dos direitos básicos da sociedade brasileira, mas nem to-
das as reivindicações dos movimentos sociais e as pautas defendidas nas
conferências municipais, estaduais e nacional de educação, foram con-
templadas nas metas e estratégias do referido plano. Muitas delas, especi-
almente sobre educação e diversidade, permanecem transversalisadas de
maneira conservadora ou foram invisibilizadas.
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC), aprovada em 2017,
estabelece as competências e habilidades que todo estudante deve ter ad-
quirido ao final da formação escolar básica. Essas competências pres-
supõem capacidade de resolver problemas e a trabalhar em equipe, dire-
cionando a educação para a formação integral e para uma sociedade jus-
ta, democrática, inclusiva, que respeite as diferenças étnicas e culturais.
Portanto, todo o trabalho deve ser feito com respeito à diversidade, per-
manecendo o caráter transversal; do modo como ficou, não existe obri-
gatoriedade considerar a diversidade.
Trabalhar com diversidade e as questões ambientais na educação
amazônica implica decisão política, respeito, tolerância e empatia entre
educadores e alunos, bem como espaço a atender as várias demandas que
diversidade e sustentabilidade trazem. É preciso falar da história de cada
povo, cultura, modos de vida, linguagens, culinária, modos de sobrevi-
vência, sobre seus sentimentos e conflitos, oferecendo oportunidades
para que os conhecimentos da realidade dos estudantes sejam trabalha-
dos (ou para despertar a produção de novos conhecimentos), sempre va-
lorizando a história e cultura dos povos e fazendo relação dos objetos de
conhecimentos da Base Nacional Comum com os conhecimentos locais.
333
Esse trabalho fazendo relação entre os conhecimentos universais e os
conhecimentos da realidade da Amazônica é fundamental na sala de aula,
e deve estar no planejamento dos professores.
O trabalho pedagógico respeitando as diversas dimensões da
educação e sua relação com a diversidade cultural e social na Amazônia é
tarefa árdua. Nessa direção, é necessário se opor à centralidade conferida
à lógica do ensino de conteúdos tidos como universais, desconsiderando
a relação que eles e as lutas epistemológicas, políticas e sociais. Nessa
perspectiva, percebem-se as possibilidades de pensar uma educação ade-
quada para os povos da região Amazônica, sem negar a importância dos
saberes universais, mas garantindo o trabalho educacional com as especi-
ficidades e singularidades.
O conhecimento é universal, porém sua apropriação historica-
mente se restringiu a um grupo, hegemônico e excludente. Entretanto, os
outros tipos de conhecimentos (saberes e conhecimentos da realidade)
são construções históricas e sociais e também válidos e devem ser reco-
nhecidos e respeitados.
334
A formação dos professores e sua relação com a educa-
ção na Amazônia
335
As diretrizes curriculares nacionais (DCNs) para formação de pro-
fessores da Educação Básica no Curso de Pedagogia, Resolução
CNE/CP nº01, de 15 de maio de 2006 (Brasil, 2006), reduziram a
carga-horária das disciplinas teóricas para ampliar as das práticas e
gestão. As Tecnologias de Informação e Comunicação colaboram
com a instrução programada de tutores econômicos a produzir
um ensino eficaz e a formação em massa de “professores de resul-
tados”.
336
Para isso, tem urgência a busca de um consenso nacional entre
educadores, dirigentes de órgãos públicos, políticos, pesquisadores
e sindicatos, sobre a valorização da escola, do conhecimento esco-
lar e, por consequência do trabalho dos professores. São esses os
agentes centrais da qualidade do ensino e da educação. Se a educa-
ção escolar obrigatória é condição para se formar a base cultural
de um povo, são necessários professores que dominem os conteú-
dos da cultura e da ciência e os meios de ensiná-los e que usufru-
tam de condições favoráveis de salário e de trabalho, bagagem cul-
tural e científica, formação pedagógica, autoestima e segurança
profissional. (LIBÂNEO, 2016, p. 60).
337
direção oposta aos interesses do capital, em direção aos interesses das
classes contra hegemônicas.
338
cer do homem. A história, na verdade, não existe sem os dois.
Não é, de um lado, um processo mecanicista, em que os homens
sejam meras coincidências dos fatos; de outro. O resultado de pu-
ras ideias de alguns homens, forjadas em sua consciência. Pelo
contrário. Como um tempo de acontecimentos humanos, a histó-
ria é feita pelos homens, ao mesmo tempo em que se vão fazendo
também. E, se o que-fazer educativo, como qualquer outro quer-
fazer dos homens, não pode dar-se a não ser “dentro” do mundo
humano, que é histórico-cultural, as relações do homem-mundo
devem constituir o ponto de partida de nossas reflexões sobre
qualquer quer-fazer. [...] O homem é homem e o mundo his-
tórico-cultural na medida em que ambos inacabados, se encon-
tram numa relação permanente, na qual o homem, transformando
o mundo, sofre os efeitos de sua própria transformação.
(FREIRE, 1980, p. 69-87).
339
contramão, no que se refere às formação intelectual. (EVANGELISTA;
SHIROMA, 2015).
Pensar a educação na Amazônica nesse contexto nos obriga re-
fletir sobre a necessidade de uma formação dos professores sob outra ló-
gica.
340
cultura intelectual e social. Dessa maneira, a apropriação do conhecimen-
to através da formação inicial e continuada, a inserção na realidade, a
prática social como ponto de partida e ponto de chegada são fundamen-
tais, para os profissionais da educação que atuam na Amazônia.
Conforme Colares e Colares (2016), é longo o caminho a ser per-
corrido, mas já existe um indicador de que esse trabalho começou a ser
pensado através de reflexões teóricas e práticas de pesquisadores que tra-
tam do tema “Educação e realidade Amazônica” e atuam na educação da
região. Nesse contexto, os educadores que se posicionam na perspectiva
da educação crítica, transformadora e emancipadora, estão convidados a
fazer parte desse processo. Como nos alerta Rodrigues (2018), “a escola
é uma flecha”, onde o conhecimento é fator decisivo de mudança de
postura e consciência política para uma prática transformadora dos pro-
fessores como formadores e produtores de cultura, numa perspectiva
contra hegemônica.
Referências
341
EVANGELISTA, Olinda; SHIROMA, Eneida. Formação humana ou produ-
ção de resultados? Trabalho docente na encruzilhada. Revista Contemporâ-
nea de Educação, v. 10, p. 89-114, 2015.
FREIRE, Paulo. Educação ou comunicação? Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1980.
GRAMSCI, Antônio. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Ja-
neiro: Civilização Brasileira, 1978.
KLUSKA, Caren Alessandra. Educação na Amazônia diante de suas singu-
laridades. In: COLARES, Anselmo Alencar; COLARES, Maria Lília Imbiriba
Sousa (org.) Educação e realidade amazônica. Uberlândia: Navegando Publica-
ções, 2016, p. 59-72.
LIBÂNEO. José Carlos. Pedagogia e pedagogos, para quê? São Paulo: Cor-
tez, 2010.
______. Políticas educacionais no Brasil: desfiguramento da escola e do conhe-
cimento escolar. Cadernos de Pesquisa (Fundação Carlos Chagas), v. 46, p.
38-62, 2016.
RODRIGUES, G. C. L. Surara Borari, Surara Araparim – a educação esco-
lar no processo de reafirmação étnica dos Borari e Arapium da terra indí-
gena dos Borari e Arapium da terra indígena do Maró. (Tese de doutora-
do). FE/Unicamp. Campinas, SP, 2016.
______. Quando a escola é uma flecha: Educação Escolar Indígena e Territori-
alização na Amazônia. Revista Exitus, v. 8, nº 03, p. 396-422, 2018.
SAVIANI, Dermeval. Pedagogia histórico-crítica, quadragésimo ano: no-
vas aproximações. Campinas, SP: Autores Associados, 2019.
______. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 11ª. Ed. Cam-
pinas, SP: Autores Associados, 2013.
SEVERINO, Antônio Joaquim. A busca de sentido da formação humana: tare-
fa da Filosofia da Educação. Educação e Pesquisa. São Paulo, v, 32, n. 3, p.
619-634, 2006.
342
XV
MESTRADO EM EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA:
EXPERIÊNCIAS NA AMAZÔNIA PARAENSE*
*
DOI - 10.29388/978-65-86678-45-1-0-f.343-365
1
Mestranda do Programa de Pós-graduação em Educação Escolar Indígena da UEPA, UFPA,
UNIFESSPA e UFOPA. Graduada em Pedagogia na Universidade Federal do Oeste do Pará em
2018. Email: [email protected]
2
Mestrando do Programa de Pós-graduação em Educação Escolar Indígena da UEPA, UFPA,
UNIFESSPA e UFOPA. Graduado em Licenciatura em Física na Universidade Federal do Pará
em 2009. Email: [email protected]
3
Mestranda do Programa de Pós-graduação em Educação Escolar Indígena da UEPA, UFPA,
UNIFESSPA e UFOPA. Graduada em Licenciatura Plena em Letras e Especialista em Gênero
do Discurso e Literatura, pela Universidade Luterana do Brasil, (ULBRA). Especialista em
Linguagem Educação Infantil e Séries Iniciais, Universidade Federal do Pará, (UFPA),
Especialista em Ensino Interdisciplinar das Ciências e Meio Ambiente. Universidade Federal do
Oeste do Pará (UFOPA). Email: [email protected]
4
Mestranda do Programa de Pós-graduação em Educação Escolar Indígena da UEPA, UFPA,
UNIFESSPA e UFOPA. Email: [email protected]
5
Professor no Programa de Pós-graduação em Educação da UFOPA; Professor no Programa de
Pós-graduação em Educação Escolar Indígena da UEPA, UFPA, UNIFESSPA e UFOPA. email:
[email protected]
343
através de uma associação contendo a UEPA, a UFPA, a UFOPA e a
UNIFESSPA, com a UEPA coordenando.
A proposta se consolidou em torno da criação do Programa de
Pós-graduação em Educação Escolar Indígna (PPGEEI) na estrutura
acadêmica da UEPA, campus de Belém, organizado em forma de mes-
trado profissional, e dividido em duas linhas de pesquisas: (i) Currículo,
Modos de Fazer e Avaliação em Educação Escolar Indígena e (ii) Plane-
jamento, Produção de Materiais Didáticos na Escola Indígena. Apesar da
sede em Belém, optou-se por ofertar as vagas no interior, nas cidades de
Marabá e Santarém, realizando as disciplinas nessas cidades com a culmi-
nância em Belém.
O primeiro edital de seleção foi lançado no final do primeiro se-
mestre de 2019 disponibilizando vinte vagas exclusivas para “indígenas
portadores de diploma de Licenciatura Plena” (EDITAL, 2019, p.1), sen-
do dez vagas para Santarém e dez para Marabá.
Finalizado o processo de seleção o polo de Santarém recebeu
oito educadores indígenas envolvendo as etnias Arapiun, Kumaruara,
Borari e Curuaia. No polo de Marabá foram contemplados dez candida-
tos das etnias Karajá, Xikrin, Xipaia, Juruna, Gavião, Aikewara e Xikta-
no. Apesar de vinte vagas oferecidas, foram preenchidas dezoito, abran-
gendo doze mulheres e seis homens.
No segundo semestre de 2019 iniciou-se a oferta das disciplinas.
Em dezembro, ocorreu o primeiro encontro de professores e alunos em
Belém por ocasião do “I Seminário do Programa de Pós-graduação em
Educação Escolar Indígena” sob o tema “Pesquisa na Pós-graduação em
Educação Escolar Indígena: protagonismo e resistência”. O evento en-
volveu socialização de produções dos mestrandos, avaliação do semestre
e estabelecimento de metas para 2020.
Porém, devido a pandemia do coronavírus as atividades foram
suspensas provocando atraso na programação de aulas, no trabalho de
campo e de pesquisa dos mestrandos. Muitos voltaram para suas aldeias.
Decorrente dessa inesperada situação decidimos apresentar uma video-
conferência transmitida pelo YouTube com o título “Experiências Indí-
genas de Cursar Mestrado em Tempos de Pandemia”, ocasião em que
projetamos a escrita deste artigo.
344
Após a videoconferência, e tendo em vista que a realização do
mestrado profissional em educação escolar indígena, a partir de universi-
dades públicas situada na Amazônia, seja a primeira experiência do gêne-
ro na Amazônia brasileira, o que anima a produção de conteúdo nessa
área, optamos por registrar de modo escrito as experiências narradas na
live. Quatro alunos das etnias Borari, Kumaruara e Arapium aceitaram o
desafio e seus relatos compõem este artigo.
Em tempo, recebemos o convite para compor um capítulo do li-
vro Educação e Realidade Amazônia, organizado a partir da disciplina de
mesmo nome ofertada pelo Programa de Pós-graduação em Educação
da Universidade Federal do Oeste do Pará, para somar aos textos e pes-
quisas dos alunos de mestrado desse programa. Convite que motivou
ainda mais o projeto de publicar as experiências narradas na live. Registra-
mos os agradecimentos aos ‘professores-casal’ Anselmo e Lilia Colares
pelo convite e empenho para a concretização deste livro.
345
com minha comunidade em busca de melhorias na educação, o que esta-
mos seguindo, mesmo que em passos lentos, mas esperançosos, de con-
quistarmos uma educação realmente diferenciada e de qualidade.
A preservação ambiental e territorial foi que me fez buscar o meu
autorreconhecimento, em procura dos meus direitos, conhecer melhor o
que consta na Constituição Federal sobre os direitos étnicos. Baseado
nas histórias escrita e falada dos Borari, dos mais velhos, e na cultura vi-
venciada que sempre foi muito forte e presente no dia a dia da comuni-
dade, assim como a forma de vida, a Piracaia, a cerâmica, os vestígios ar-
queológicos, os artefatos encontrados nas terras do território, o uso das
plantas medicinais, todos esses costumes herdados dos nossos ancestrais,
nos fez garantir o reconhecimento como povo indígena da etnia Borari.
Experiência indígena, eu traduzo como se eu tivesse uma agenda
diária com alguns elementos, por exemplo: sou rodeada de igarapés, de
rio, de peixe e pescadores (meu irmão), de caça e caçadores, de plantas e
conhecedores dessas plantas, (minha mãe). Tudo isso me faz pensar a
vida um pouco diferente, me faz ter um olhar diferente pra natureza e
para as pessoas que convivo, tenho uma forma de existir. Com a expe-
riência de viver em uma Aldeia que acabou virando ponto turístico do
mundo e agora com os estudos, sei que há uma diversidade de pessoas
no mundo com sua cultura própria, seus costumes. Hoje luto por esse
respeito que deve haver entre todos, pelo território, por rios saudáveis,
porque acredito que ‘ser indígena é arriscar a própria vida, para valorizar
a nossa identidade, e nossa missão é esforçar-nos para que os filhos dos
nossos netos usufruam dos bens e da beleza da natureza nos séculos vin-
douros’.
“Estar no mestrado” é poder fazer parte de uma história que
muito se lutou, é um sinônimo de liderança. Sinto que é hora de liderar
com o zelo que um líder deve ter. A consciência dessa responsabilidade
com todos, me fortalece a continuar essa caminhada. Tive como aprendi-
zagem a forma de luta dos parentes, que mesmo sendo de etnias e cida-
des diferentes, costumo dizer: “são histórias iguais, vividas em lugares di-
ferentes.” A conclusão desse mestrado é a habilitação para um retorno à
vida na comunidade e na família com a responsabilidade de colaborar
como liderança. Essa liderança tem valores com a honra do passado,
346
com os que lutam comigo no presente, e ainda, um compromisso com a
geração futura.
Porém são tempos de pandemia que trouxe tempos incertos e
para nós indígenas o objetivo é salvar vidas. O isolamento social é uma
prática comum usada pelos indígenas como estratégia em momento de
vulnerabilidade e para que fujam das doenças do “branco”, seja espiritu-
al, material ou corporal, onde a ganância está destruindo vidas e culturas.
Os valores fundamentais de uma família e de um povo, como a solidarie-
dade e o cuidado com as pessoas, no atual modelo de vida social, político
e econômico, são de extrema importância para a garantia da sobrevivên-
cia de todos.
Estou com a minha família em casa, no lago do Jacundá em Alter
do Chão, onde moramos desde que nascemos. Nossa família permanece
isolada, só sai uma pessoa se for por extrema necessidade, pois minha
mãe tem 73 anos, minha filha tem 6 anos, e sobrinhos abaixo de 3 anos.
Quem estava para cidade continua na cidade, pois, sabemos bem qual é o
risco de receber pessoas de fora.
Já vivemos encurralados e refugiados no nosso próprio território
há muito tempo, mas esse isolamento forçado nos fez mais resistente,
não é o que queremos, mas, hoje passamos a dar mais valor aos nossos
velhos, aos nossos sábios, as nossas práticas deixadas pelos nossos ances-
trais. Já plantamos macaxeira, melancia, jerimum, plantamos árvores, vol-
tamos a pescar com mais frequência. Muitas famílias indígenas de Alter
também estão vivendo assim. É uma forma de respeito com a vida.
Com a pandemia foi possível viver com mais intensidade esse
aprendizado que vem de muitos tempos, desde os nossos ancestrais, o
isolamento como proteção. O que traz uma reflexão direta, nos possibili-
tando um ponto de vista diferente sobre a pandemia, como uma maneira
forçada de enxergar a vida, e tudo que temos. Em um momento que to-
dos estavam valorizando seu ego e a individualidade, passando a dar im-
portância a vida coletiva como prioridade, o cuidar um do outro. Para
nós Borari, tornou-se fundamental a valorização do vínculo familiar que
estava invisível, onde um passou a se importar um com outro, consul-
tando-os através de grupos de WhatsApp e ligações pessoais.
347
Os hábitos familiares, que já estavam aos poucos se perdendo de-
vido o intenso contato com a globalização, passou-se a ser mais valoriza-
do. Entre eles estão, a relação com os mais velhos, os contatos com os
sábios da família, a efetividade entre a vida e os saberes adquiridos por
eles, seja o cuidado com os alimentos, na importância de uma produção
e o manuseio próprio, e com a saúde, prevenindo através do uso de plan-
tas medicinais, como um ritual de curas, valorizando assim a vivência
dessa prática de vidas, pois essas práticas nos trazem ensinamentos his-
tóricos, de valor a humanidade como povos indígenas.
Desde o início da quarentena, começamos a pensar em como nos
manifestar como povo, onde os estudantes indígenas foram fundamen-
tais na iniciativa, partindo de referências já vividas com o coletivo. Reco-
nhecendo quais fenômenos já vividos historicamente pelos indígenas,
desde a colonização, a população indígena sofreu intocáveis surtos de
doenças, o que causou uma significativa diminuição, levando muitos gru-
pos a extinção e ao genocídio. Em seguida, pensou-se em que estratégias
conhecidas historicamente relacionadas ao corpo, bem-estar, proteção e
saúde, que poderiam ser usadas atualmente.
Além de ser filha, mãe, esposa, sou gestora de uma associação
com mais de 200 famílias cadastradas. Foi necessário rever os encami-
nhamentos da associação que estavam previstas para outros objetivos e
reencaminhar, tudo para o combate ao Corona Vírus. Conseguimos com
muito esforço um auxílio como complemento alimentar para as famílias,
doando cestas básicas e outra só com produtos de higiene e limpeza pes-
soal.
Para falar em “Tempos de pandemia”, sabemos que pandemia
acontece quando uma epidemia se estende a níveis mundiais, nesse caso
por ser um vírus invisível, diferente dos carapanãs, não conseguimos ver.
Vi nos grupos, alguns parentes que ainda não estão levando a sério, e ou-
tros solicitando posicionamentos mais firmes para isolar as aldeias. Os
casos começaram a se alastrar e a preocupar, fui aos poucos reconhecen-
do que é muito sério. É uma situação nunca vivida.
O caso do óbito divulgado em Alter foi difícil de analisar nos pri-
meiros dias, muitas informações desencontradas. A preocupação só au-
mentou, e também os cuidados. Alguns parentes tiveram sintomas gri-
348
pais, tudo gerou uma preocupação do coletivo, optando pelo isolamento
social. A SESAI passou a acompanhar e fazer monitoramentos. O uso de
máscaras e a limpeza passaram a ser rotina nessa luta.
O momento da pandemia trouxe à tona a maneira que a humani-
dade está lidando com o planeta, a falta de respeito com o meio ambien-
te, o cuidado com o outro, como chama a atenção Ailton Krenak:
349
A situação com o coronavírus em Alter do Chão, está muito di-
fícil, principalmente para nós indígenas e demais famílias em situação de
vulnerabilidade social. O custo de vida é muito alto, para nós que esta-
mos aqui em alta e baixa temporada, já sabemos lidar com a situação, de
um jeito ou de outro conseguimos sobreviver e saber viver com o que te-
mos, mas temos famílias que de uma forma ilusória, escolheram Alter do
Chão para viver até ficar rico e, com o coronavírus, não conseguiram
mais se manter com o custo de vida alto que temos aqui.
Alter do Chão tem indígenas, ribeirinhos, pescadores, beneficiá-
rios do bolsa família, vivemos de farinha e peixe pego na hora.
Imagem 3: Pescador.
350
isso, conseguimos convencer os empresários que não havia condições de
realizar Sairé este ano. As construções de prédios não pararam, os ônibus
veem lotados com operários, vem e voltam todos os dias. Precisamos
ainda que permaneçam em confinamento, evitando aglomerações para
que o vírus não continue se propagando.
O que os meus olhos observam ao longo dessa pandemia, é algo
que reflete essa responsabilidade. Temos que lutar pelo bem viver dessa
grande maloca e todos que vivem nela. Como contribuição daqui para o
mundo digo que devemos seguir lutando pela preservação da vida do
nosso povo e por tudo que nos rodea. Isso vai refletir em um ar melhor
para respirar tanto aqui como para o outro lado do mundo. Em Alter
tem vidas e essas vidam importam.
351
Franca no rio Arapiuns; em 2017 retornei p Ipaupixuna. Em 2018, traba-
lhei na aldeia Tupinambá de Limãotuba no Tapajós e em 2019 trabalhei,
de maneira breve, na Aldeia Tupaiú de Aningalzinho. Atualmente sou
professor na Escola Indígena Borari Antônio de Sousa Pedroso em Alter
do Chão, onde faço a pesquisa que irá compor minha dissertação de
mestrado.
Sou membro da Associação Indígena Iwipurãga (lugar bonito) de
Alter do Chão, membro do Conselho Indígena Tapajó-Arapiuns. Atuan-
do nas mais diversas lutas juntos ao movimento indígena, principalmente
no âmbito da educação. Já fui coordenador do Grupo Consciência Indí-
gena - GCI em 2017, onde através dos vários encontros do grupo forta-
leci cada vez mais minhas origens indígenas. Em 2018, fui escolhido
como membro da coordenação do grupo de professores indígenas do
território etnoeducacional, onde temos um grande desafio de criar uma
associação de profissionais indígenas da região. A experiência de estar no
pós graduação significa buscar uma qualificação profissional em nível de
Mestrado, uma vez que estou atuando nas escolas indígenas do território
e preciso me qualificar cada vez mais. Essa pós-graduação é de funda-
mental importância para os professores-pesquisadores, pois proporciona
uma ampliação de propostas de ensino intercultural no âmbito da educa-
ção básica e da educação superior. Os aprendizados são muitos, em par-
ticular a minha linha de pesquisa é sobre o Currículo, nela busco investi-
gar o caráter diferenciado da educação escolar indígena, de formação, e
implementação de propostas curriculares que atendam a projetos coleti-
vos específicos dos povos indígenas. Além disso, conforme as diretrizes
do curso de mestrado, buscamos contribuir na elaboração e implementa-
ção de propostas de intervenção pedagógica alinhadas com o protagonis-
mo indígena e; elaboração e implementação de variadas formas de gestão
e avaliação, diferenciadas e adequadas a realidade de cada povo, tendo
como referência a educação escolar indígena no processo de afirmação
da identidade, do território e da resistência que caracteriza os povos indí-
genas, em especial para a percepção do direito a escola diferenciada e ao
respeito às formas de organização e de vida indígena, com o objetivo de
produzir saberes a partir da interação entre os saberes tradicionais indíge-
nas e os saberes da ciência clássica, na forma de diálogo intercultural, e
352
sob a perspectiva da afirmação da nação brasileira pluriétnica, intercultu-
ral e de direitos de todos.
A outra linha de pesquisa abrange o planejamento e produção de
materiais didáticos na escola indígena, esta linha reúne estudos que con-
templam aspectos do planejamento e da produção de cultura material em
educação escolar indígena apropriados a realidade da escolarização de
povos indígenas, contemplando a relação entre tecnologias tradicionais
indígenas e tecnologias de ensino na produção de materiais didáticos;
produção de conhecimentos a partir interação indígena – não indígena e;
produção de arcabouço didático em educação escolar indígena, com o
objetivo de estruturar modelos educacionais que atendam às especificida-
des da educação escolar indígena na Amazônia.
Porém fomos surpreendidos no curso do mestrado pela Pande-
mia, quarentena, isolamento social, lockdown, etc., palavras e assuntos da
nossa nova realidade. Ainda não surgiu uma vacina, mas o mundo busca
conter a disseminação da COVID 19 para ganhar tempo, nosso dia-a-dia
mudou de repente. Nós, povos indígenas, temos sido dizimados por epi-
demias ao longo da história. São inúmeras as condições que fazem com
que sejamos mais vulneráveis a doenças e ao risco extermínio. Além des-
sas preocupações, também temos que enfrentar as problemáticas ligadas
ao nosso território borari de Alter do Chão, as questões ambientais e soci-
ais, como construções as margens do Lago Verde, invasões ilegais de gri-
leiros, desmatamentos, entre outras, colocam em risco nossos direitos, a
segurança alimentar e, consequentemente, as nossas vidas. Além disso, as
formas de organização social em Alter do Chão, a convivência com turis-
tas vindos de todas as partes do Brasil e do mundo, as numerosas famí-
lias, o compartilhamento de utensílios entre os parentes, também facili-
tam na disseminação de doenças respiratórias e infecciosas, como é o
caso da COVID-19. Os problemas que o não-indígena enfrenta com o
sistema de saúde (SUS) para prevenir, diagnosticar e tratar os casos mais
críticos se potencializam quando nos referimos aos indígenas, principal-
mente, devido às especificidades e dificuldades de articulação enfrenta-
dos pelo subsistema de Saúde Indígena (SESAI). A principal estratégia
encontrada pelas aldeias da região para se prevenir nesse período de pan-
demia foi o de evitar a entrada e saída de pessoas. Porém, há dificuldades
353
enfrentadas pelas famílias com relação a alimentação, insumos e recursos
que são adquiridos em comércios de urbanos. Vale lembrar que somente
agora algumas famílias estão recebendo o auxílio emergencial e as cestas
básicas destinadas aos alunos da educação básica do município e do esta-
do.
Assim, nossa vontade de estar na universidade fazendo uma pós-
graduação, buscando o conhecimento acadêmico mesmo em tempos di-
fíceis não pode mudar. Apesar da suspensão das aulas presenciais, nós
mestrandos estamos acompanhando os eventos online, as lives e debates
sobre a rumos da educação e outros temas de interesse dos estudantes. O
que podemos esperar é que essa pandemia passe logo, e que as pessoas
fiquem bem e em breve possamos nos rever pessoalmente.
Fazer essa reflexão é fazer busca histórica. Sou Hélia Maria Gama
da Silva, da etnia Kumaruara e falar de minha trajetória acadêmica é co-
nhecer algo vivenciado em uma longa jornada que merge em um mundo
desconhecido para mim, isso no início. Que vem ser o mundo das letras,
da leitura e da escrita que foi muito difícil, para eu conhecer, entender,
compreender e interpretar de forma coerente, esse novo aprender.
O Brasil, é um país que traz enraizado na história, um histórico
de ensino inconsistente, e para o índio pior ainda, quando conseguia ou
consegue até hoje implantar escola em aldeia indígena elas chegam de
forma precária. Como bem reza a história, os catequizadores quando
aqui chegaram, catequizavam os índios para exercer a obediência, servir
os colonizadores nas lavouras, nos serviços domésticos, ler a bíblia etc.
Nunca na história, já se pensou em construir escola para índio pensando
em valorizar, seus valores culturais, econômico, sua crença, seus costu-
mes e etc. Diferente do que rege as leis que estão lá no papel.
Assim era a escola para índio, o indígena catequizado, que mal sa-
bia conduzir a leitura na bíblia, já era indicado a ser professor. E na mi-
nha aldeia não foi diferente, isso eu vive, e mais difícil era chegar na es-
cola, porque tinha que caminha mais de uma hora. Pois minha família vi-
via mais isolado da aldeia central, nesse vai e vem, não conseguia apren-
354
der nada, nem as letras do A, B, C, mas também não se ensinava nada. O
que aprende mesmo de verdade, foi a conviver e respeitar momentos
agradáveis com a floresta.
A natureza ensina o que ela tem de mais sagrado para os filhos da
floresta, na longa jornada conhecia cada pé de árvore, as flores através do
aroma suave que espalhava pelo ar e me transmitiam serenidade, liberda-
de, tranquilidade, paz e as coletava para fazer colar, brinco, coroa, pulsei-
ra, eram os adornos. Os animas também eram nossos parceiros, as árvo-
res frutíferas de onde coletava vários tipos de frutas; como o acau, mara-
cujá do mato, muruci, jutaí, ingá de macaco, etc. são inúmeras as frutas
silvestres que o índio se alimentar na mata.
O espírito da mata nos ensina há conviver com esse desconheci-
do, que devemos conhecer, respeitar e interpretar cada movimento pre-
sente nos seres que a compõe, nos cantos dos pássaros, nos ruídos dos
animais, na serenidade da água do igarapé, no frescor da floresta e do
vento que nos acolhem e etc. Para o indígena, é essa relação harmoniosa
que o ser humano deve ter com a natureza. A leitura que se faz da flores-
ta é atmosférica presente na cultura indígena, mas isso só tem sentido
para quem nasce, cresce entre meio a floresta, “os índios possuem um
domínio material e espiritual do mundo e que o transmitem sem escrita,
sala de aula ou professores”. (FUNARI e PIÑÓN, 2011, p.70).
Aos sete anos sai da aldeia para servir o branco na cidade, fala-
ram aos meus pais que iam me levar para “estudar”. Porém era mais uma
das formas de nos escravizar, foram anos de exploração, sofrendo todos
os tipos de descriminação e abuso. Nessa leva de maus tratos, ia para a
escola sim, mas não conseguia aprender se quer a decifrar os códigos das
letras, no contexto da leitura e escrita, mesmo assim passava de ano sem
saber ler, escrever e resolver as quatro operações. Pois vivia exausta de
tanto trabalhar e não conseguia acompanhar a explicação do professor,
sou reflexo desse ensino, sistêmico, colonizador, maldito desse país, e
das pessoas desalmadas que me deixaram marcas profundas discrimina-
tórias.
Mas a vontade de desvendar o mundo da escrita e da leitura era
grande a curiosidade, já chegando aos trinta conclui o magistério, aos
quarenta, entrei no curso superior, também sofri muita discriminação,
355
mas com esforço e dedicação consegui vencer os vermes racistas. Cursei
Licenciatura plena em Letras e Especialização em Gênero do Discurso e
Literatura, pela Universidade Luterana do Brasil, (ULBRA). Mas consci-
ente de que precisava ter no currículo um diploma Federal, e cursei; Es-
pecialização em: Linguagem/Educação Infantil e Séries Iniciais, pela
Universidade Federal do Pará (UFPA) e outra Especialização em: Ensino
Interdisciplinaridade das Ciências e Meio Ambiente, pela Universidade
Federal do Oeste do Pará (UFOPA).
O que trago como experiência quanto professora indígena, no
início foi muito difícil, porque fui trabalhar em escolas não indígena, com
turmas de quinto e sexto ano. Detalhe tinha que ministrar todas as disci-
plinas, mais um desafio, tive que estudar as disciplinas para fazer os pla-
nos de ensino, além disso eu era a responsável da escola e ainda tinha
que fazer merenda e servir. Mais uma vez vivencio o descaso pela educa-
ção no país.
Prestei serviço a (UFOPA) no PAFOR, foi uma excelente expe-
riência em que pude ver a realidade dessa modalidade de ensino, também
com muitas brechas indesejáveis a formação de professores. Somente em
2015, fui trabalhar no modular indígena, nessa nova conquista, me sentir
realizada em trabalhar com o meu povo e ver a realidade desse ensino.
Também é ensino sistematizada fora da realidade do indígena. Mas co-
nhecendo a problemática, fui adequando o planejamento de ensino con-
forme a realidade de cada povo, sem fugir do contexto global, mesmo
porque esse aluno vai sair da aldeia e enfrentar o mundo acadêmico.
Como exemplo falar de Literatura para os discentes indígenas, foi quan-
do surgiu a ideia de trabalhar as histórias locais contadas pelos sábios da
aldeia.
E, a partir dessa dinâmica criei o projeto de pesquisa sobre as
narrativas que venho desenvolvendo nas escolas indígenas com alunos
do ensino Médio, e esse projeto abriu espaço para adentrar no curso de
Mestrado. Mesmo porque fazer essa retomada das narrativas no contexto
Literário é direito constitucional, conforme a Constituição de 1988, que
nos garante uma educação diferenciada, Erika Guesse contempla em seu
artigo:
356
[...]professores indígenas têm se dedicado a escrita de diversos ma-
teriais que são utilizados nas escolas indígenas, que estão sendo li-
dos nas aldeias e fora delas sob uma perspectiva literária. Para os
índios, a escrita de seus mitos são muitas significativa, com forma
de preservar e divulgar um legado cultural fundamental para a vida
em comunidade. As histórias, que antes eram transmitidas de gera-
ção em geração, através da oralidade, hoje também estão sendo fi-
xadas através da escrita e recebendo o estatuto de Literatura
(GUESSE. 2011.p.01).
357
dos e os ocidentais, numa relação densa, critica e mais igualitária
(FERNANDES e CANDAU, 2010, p.27).
358
conhecimento, os saberes, o mundo simbólico, as imagens do co-
lonizado e impõe novos. (FERNANDES e CANDAU, 2010,
p.17)
359
ção contra o novo covid 19, e temos bastante atenção com os idosos. A
SESAI fez teste com vários indígenas cá na aldeia, e graças a Tupã e a
prevenção não deu nem um caso positivo.
Tememos por essa doença maldita, pois é o segundo surto de do-
ença epidemiológica que estou vivenciado com meu povo, por volta dos
anos 60, foi a febre amarela que dizimou inúmeras crianças, e agora esse
mal está afetando mais os idosos. Meus antepassados já previam esse
acontecimento, coisas ruins estão por vir ainda, vamos ficar atento aos
sinais, a Sesaí está dando apoio também as aldeias na medida do possível.
Diante de vários pontos reflexíveis neste trabalho, participar des-
sa live foi muito significante pra mim, pude expressar um pouco da mi-
nha vivência acadêmica, do profissional, mestranda em Educação Profis-
sional Escolar Indígena, do meu povo na pandemia. Vejo esse momento
como um reencontro com minhas origens, estando em isolamento com
minha família na aldeia, reconstruindo nossos saberes e vivenciando-os.
Só agradeço ao professor Gilberto, por essa brilhante iniciativa, fez sair
do mundo da Covid19 e focar em outros horizontes.
360
sublimes de contribuir para o desenvolvimento da sociedade em suas de-
mandas cotidianas. Dessa forma, prestei vestibular e fui aprovada para o
curso de Geografia na então recém-chegada Universidade Vale do Aca-
raú (UVA), que tinha sua matriz no Estado do Ceará.
Ao ingressar no primeiro semestre do curso no ano de 2006, par-
ticipamos de diversas atividades acadêmicas, dentre elas destacam-se:
simpósios, seminários, estágios supervisionados e outras atividades extra-
curriculares, na qual culminou em formação no ano de 2009. Os estágios
citados puderam proporcionar-me vivências reais das demandas escola-
res típicas da sociedade brasileira e, junto as demais atividades acadêmi-
cas, fortaleceram-me para o interesse pela docência e a decidir os rumos
que seguiram a formatura.
Eu percebi a importância da educação continuada para o desen-
volvimento da educação no país e para a valorização do próprio profissi-
onal da Educação, ingressei em um curso de Pós-Graduação ofertado
pelo Centro Universitário Internacional (UNINTER), onde pude apri-
morar conhecimentos acerca das práticas docentes, em vista as demandas
da disciplina de Geografia e História, dialogando com nossas tendências
e técnicas metodológicas de ensino e pesquisa. Esse curso de pós-gradu-
ação resultou em um artigo intitulado, A importância do Ensino de His-
tória e Geografia voltada para as questões do Lixo no Brasil e o Ensino
fundamental II”.
Por ser Educadora e reconhecida como indígena da região do Ta-
pajós, ao longo de minha vida profissional fui percebendo que faltava
algo para completar a minha realização pessoal e profissional, de maneira
a dialogar com minhas origens. Dessa forma, ingressei no curso de Li-
cenciatura Intercultural Indígena ofertado pela Universidade do Estado
do Pará (UEPA), em 2013 concluído em 09 e junho de 2017.
Desde o início do curso participei de diversas atividades que con-
tribuíram de maneira significativa para a minha concepção acerca da edu-
cação indígena, enquanto educação que deve ser ofertada de maneira bi-
língue e intercultural, na qual possa proporcionar aos povos indígenas e
suas comunidades a recuperação de suas memórias históricas; a reafirma-
ção de suas identidades étnicas; a valorização de suas línguas e ciências.
361
Identificada e totalmente integrada ao Curso, procurei realizar
com compromisso étnico as atividades acadêmicas, o que me levou a ser
contemplada com bolsa de estudos do Programa de Ação Saberes Indí-
genas na Escola (UEPA/UFAM/IFAM/CAPES/SECADI/MEC). Nes-
sa ocasião, nos destacamos pela produção de Material Didático de Meto-
dologias de Ensino na Escola Indígena.
Destacam-se ainda como atividades acadêmicas, as Oficinas de
Materiais Didáticos Bilíngue (Nheengatu/português) para educação esco-
lar indígena da região do Tapajós – Arapiuns pelo Programa Campus
Avançado em 2014. As atividades do Projeto Político e Pedagógico em
Escolas Indígenas do Território Etnoeducacional Tapajós Arapiuns em
2014, e a participação nos seminários de Educação Escolar Indígena e
Produção Acadêmica no Território Etnoeducacional Tapajós-Arapiuns.
O que resultou no projeto de dissertação: Os impactos socioculturais no
Território Korodoyb: Uma experiência pedagógica com alunos do 6ºano
da Escola Dom Pedro II. Obtive a premiação de honra ao Mérito por ter
alcançado o segundo melhor desempenho acadêmico no curso de Licen-
ciatura Intercultural Indígena e também o prêmio melhor TCC, participei
como preceptora da Turma de Licenciatura Intercultural Indígena ,no
subprojeto de Residência Pedagógica Entre a Teoria e Prática: a forma-
ção de professores indígenas no entrelugar para a vivência pedagógica
firmada na interdisciplinaridade e na interculturalidade.
Vale ressaltar, que o artigo contemplado no presente instrumento
é o resultado do meu Trabalho de Conclusão de Curso do Curso Inter-
cultural Indígena da Universidade do Estado do Pará no ano de 2017 e
que abordou as questões relacionadas a territorialização de terras indíge-
nas e construção de materiais didáticos para a educação indígenas, temas
estes que são o ponto central de minhas lutas a favor dos povos indíge-
nas.
Outro fator relevante ainda, é que tal pesquisa continua, só que
agora no Curso de Mestrado Profissional em Educação Escolar Indíge-
na, da Universidade do Oeste do Pará, com o tema: A Cartografia Social
Da Aldeia de Açaizal: Um instrumento de espacialização do Povo Mun-
duruku, na linha de pesquisa de Produção de materiais didáticos para a
escola Indígena: o desafio diante do contexto. Nossa luta nunca parará,
362
enquanto as terras indígenas não forem respeitadas, e remanejadas para
aqueles que por notoriedade tem o direito.
363
Considerações finais
Não tem sido tempos fáceis para o ensino superior público brasi-
leiro, para mestrados em educação distantes dos grandes centros urba-
nos, para os defensores da preservação da Amazônia, muito menos para
indígenas que agregam todos esses fatores em si e ainda tem a coragem
de se lançarem na difícil tarefa de cursar mestrado. Esse texto procurou
mostrar essa dificuldade a partir de quatro relatos de educadores indíge-
nas atuantes na Amazônia paraense agravado pela novidade do enfrenta-
mento da pandemia.
Apesar das dificuldades relatadas é possível perceber a bravura
com que esses educadores enfrentam os desafios da pesquisa em educa-
ção, da pesquisa em nível de mestrado e de fazer isso ao mesmo tempo
em que resistem a um governo inepto, quando não se põe inimigo direto,
e a uma doença devastadora aos povos indígenas. Essa bravura revela os
motivos pelos quais os indígenas dessas terras ainda não se extinguiram
apesar de cinco séculos de massacre.
Referências
364
FERNANDES, Luiz de Oliveira, MARIA, Vera Ferrão Candau. Pedagogia
Decolonial e Educação Antirracista e Intercultural no Brasil. Belo Hori-
zonte: Educação em Revista, v. 28. nº 01, p. 15-40, 2010.
KRENAK, Ailton. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
WALSH, C. Interculturalidad crítica y pedagogía de-colonial: In-surgir, re-
existir y re-vivir. En: Candau V. (Edit.), Educação Intercultural hoje en América
latina: concepções, tensões e propostas, Brasil: 2010.
365
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