Skliar e Quadros 2000
Skliar e Quadros 2000
Skliar e Quadros 2000
Resumo
O objetivo deste trabalho é apresentar uma reflexão invertendo epistemologicamente o
problema da inclusão. A questão dos ouvintes no mundo dos surdos serve de referência
para a análise aprofundada entre as quantidades obscenas e manipuláveis e os hibridismos
considerando-se as culturas, as línguas, as identidades e as diferenças. Faz-se, então, uma
discussão sobre o discurso e a prática cultural em torno dos outros, da alteridade,
adquirindo novas dimensões epistemológicas, políticas e pedagógicas.
Abstract
The goal of this paper is to present a reflection changing epistemologically the inclusion
problem. The aspect of the hearing in the Deaf world is the reference for the deeply
analysis between the obscene and manipulable and the hybrids considering the cultures, the
languages, the identities and the differences. It is done, therefore, a discussion about the
discourse and the cultural practices about the others, the alteridade, acquiring new
epistemologies, politic and pedagogic dimensions.
1
O Banco Mundial (1998), por exemplo, define a exclusão como: “processo pelo qual indivíduos e
grupos encontram-se total ou parcialmente excluídos da participação econômica, social ou política
na sociedade”.
estar, como seja, deste lado. Depois de tudo, a transformação dos números não faz-se
suficiente para acalmar e silenciar identidades: as promessas se evaporam, se desintegram
quando reunimos todos os mundos até aqui imaginados.
Em algum sentido, somente aparentemente paradoxal, a globalização imaginada conduz à
produção e à fragmentação de novas identidades sociais (Hall, 1997) que lêem de maneira
muito diferente o espaço e o tempo que ocupam desde sua própria alteridade.
Homii Bhabha (1994, ob. cit.) utiliza a metáfora da desorientação para descrever o mundo
de hoje: muito mais que uma sensação de confusão, existiria um verdadeiro distúrbio da
direção, um momento de trânsito no qual o espaço e o tempo se entrecruzam para produzir
figuras complexas de diferença e identidade, de passado e de presente, de interior e
exterior, de dentro e de fora.
Pois está aqui também frente aos nossos olhos, nos nossos gestos e nas nossas palavras o
mundo do não designado, do híbrido 2 , da desorientação. Um mundo que se parece mais a
uma geografia de imigrações, a literaturas que provêm da diáspora política e cultural, aos
grandes deslocamentos de comunidades campesinas e indígenas, às prosas e poesias
escritas desde o exílio, às narrativas dos refugiados econômicos, políticos e/ou culturais, em
fim, à cultura narrada desde aquilo que sempre foi considerado à margem, à periferia.
2
Utilizamos a expressão híbrido, hibridismo, etc. não no sentido de irregular ou como composição
dos elementos que se reúnem, mas sim para ressaltar a necessidade de pensar as identidades como
um processo permanente, não sistemático, de construção e desconstrução, em oposição aos
paradigmas homogêneos, coerentes e estáveis da modernidade.
Por tudo isso, o discurso e a prática cultural em torno dos outros, da alteridade, adquire,
hoje, novas dimensões epistemológicas, políticas e pedagógicas.
A pergunta acerca da alteridade e, mais especificamente, a pergunta sobre quem são os
outros, adquire assim uma significativa transcendência filosófica, sociológica, política,
antropológica e cultural.
A/s resposta/s a essa questão não parecem ser demasiado claras – e nunca serão definitivas
- porém, propomos diferenciar e territorializar pelo menos três espaços discursivos que se
referem à alteridade; espaços que dizem e produzem aos outros, desde a “mesmidade” ou
desde a alteridade, em relação às identidades, diferenças, culturas, línguas e modos de
narrar; espaços cujas fronteiras podem ser muito tênues ou débeis; espaços, em fim, de
significados culturais que circulam dentro de culturas e de tempos e lugares específicos.
Adotaremos para estes espaços a seguinte denominação: (a) espaço colonial; (b) espaço/s
multicultural/es e (c) espaço/s da/s diferença/s ou espaço pós-colonial.
O espaço colonial, de acordo, entre outros, com Carbonell e Cortés (1998), constitui um
conjunto heterogêneo de interesses e práticas que tem como objetivo principal a
instauração de um sistema de domínio e sua perpetuação. Essa definição não se refere,
claro está, somente ao fato físico da colonização, nem a um simples ato de acumulação e
aquisição de territórios, de sujeitos humanos, de fontes de producción, de narrativas, etc.
Esse espaço tem inaugurado, desenvolvido e imposto um conjunto de estratégias
particulares de representação acerca dos outros, sobre os outros, face aos outros, pelos
outros: assim, a alteridade foi, sucessiva ou concomitantemente mascarada, descoberta e
redescoberta, inventada, inscrita nas fronteiras estritas da inclusão/exclusão, demonizada,
delimitada em suas perturbações, estereotipada, infantilizada, normalizada, medicalizada,
domesticada, desterritorializada, usurpada em seus discursos e suas formas de narrar,
mitificada, assimilada, exilada, localizada no extremo negativo de certas dualidades
culturais, separada institucionalmente, ignorada, objeto de curiosidade científica, de
salvação religiosa e, inclusive, de redenção etnográfica, produzida pela caridade e regulada
pela beneficência, etc.
O lugar da diferença cultural parece não ter lugar. O outro é citado, mencionado, iluminado,
engajado em estratégias de imagem/contra- imagem, etc.
O discurso colonial se constitui a partir de formas de conhecimento, representação e
estratégias de poder e formas de relacioná- las com o ditado das leis, normas e
regulamentos.
A questão posta por Ian Chambers (1994): quem define a autenticidade do outro?, faz-se
particularmente significativa, porque esse outro volta sempre a ser posicionado em uma
diferença domesticada; não tem voz, não se lhe permite falar nem definir sua noção de ser
específico, sua autenticidade. Por isto, o autor afirma que estamos decididamente marcados
pela impossibilidade histórica e ética de falar no lugar do outro “(...) estes ritos ambíguos
funerários invariavelmente nos obrigam a reconsiderar os poderes assimétricos das
representações, e nosso lugar neles”.
As representações têm mudado, essencialmente, as formas de narrar acerca da alteridade
frente ao surgimento de um novo espaço, o espaço multicultural?
Para muitos defensores do multiculturalismo, esta última pergunta somente pode ser
considerada como um jogo de retórica. De fato, o espaço multicultural é definido como
um tipo de consciência coletiva que se opõe a todas as formas de centrismos - etno, falo,
fono, logo, antropo, etc.- que conduz tanto a uma nova teorização e produção de
conhecimento, como a renovadas formas de entender e exercer as estratégias políticas.
É inevitável que o espaço multicultural abriu questionamentos e desenvolveu ações –civis,
políticas e educativas - que não podem ser colocadas em dúvida, nem minimizadas ou
desvalorizadas. Porém, é claro que também não parece ser factível falar de um espaço
multicultural coerente, sólido e sem fraturas, mas sim de vários e diferentes espaços
multiculturais. Tal é a proposta defendida, entre outros autores, por Peter McLaren (1997)
que menciona formas de multiculturalismo que podem ser associadas, politicamente, com
os modos através dos quais a alteridade é representada, a diferencia construída e a
educação organizada.
Somente a título de hipóteses pode dizer-se então, que tanto no espaço colonial como na
forma multicultural conservadora, os outros podem não ser todos os outros, mas sim
somente alguns outros. Tem se instalado um processo de fragmentação da alteridade, que
muito tem a ver com o que alguns autores chamam de multiculturalismo empresarial,
talvez uma nova maquiagem à antiga lógica do mercado e do capital humano.
A alteridade é recategorizada e subdividida em categorias até agora desconhecidas; alguns
outros se aproximam, alguns outros se distanciam cada vez mais: o circuito da cultura
recebe com beneplácito a alteridade consumista e produtiva e vigia os mendigos, as
crianças de rua, a prostituição, os deficientes, etc., que continuam sendo expulsos do
território da alteridade.
A pergunta que aqui surge, de acordo com McLaren (1997, ob. cit.) é sobre quem tem o
poder para exercer significados, para criar a estrutura a partir da qual a alteridade é
definida, para criar as identificações que conduzem a cerceamentos de significados em
interpretações e tradições.
Um entre vários dos significados, que se nos revela particularmente hegemônico e repetido
faz nessa forma de entender o multiculturalismo, é o da diversidade. O termo diversidade
tem sido adotado com uma freqüência excessiva – tanto na educação, como nos meios de
comunicação, nos vários poderes do Estado e de organismos internacionais e nas empresas
- com o objetivo de retratar as variações humanas presentes nas instituições, porém,
também, como uma estratégia conservadora originada para conter e obscurecer o
significado político das diferenças culturais.
Recentemente começou-se a falar do espaço pós-colonial como o espaço da/s diferença/s.
Ian Chambers (1995: 17, ob. cit.) nos oferece algumas pistas para definir esse espaço:
A representação da diferença não deve ser lida rapidamente como o reflexo de traços
culturais ou étnicos pré-estabelecidos, inscritos, como disse Bhabha (1994, ob. cit.) “(...) na
lápida fixa da tradição”. A articulação social da diferença, desde a perspectiva da própria
diferença, é uma negociação complexa, que intenta dar autoridade aos hibridismos culturais
que surgem nos momentos de transformação histórica e política. Os embates de fronteira
em torno da diferença cultural têm tanta possibilidade de ser consensuais como
conflituosos: podem confundir nossas definições de tradição e modernidade, realinhar as
fronteiras habituais entre o público e o privado, o alto e o baixo, assim como desafiar as
expectativas normativas de desenvolvimento e progresso.
Noutro sentido, e como sugerimos anteriormente, as diferenças tão pouco podem ser vistas
como essências ou traços essencializados. Stuart Hall (citado por Briones, 1998) menciona
os desafios implícitos a toda forma de essencialismo, afirmando que a defesa da totalidade,
como integridade de um coletivo de identidades e fundamentada na lógica de oposições
binárias (nós/outros) tende a negar diferenças de gênero, classe, etnia, etc., dentro dessa
totalidade grupal; que as polarizações de relações sociais complexas entre nós/outros,
simplifica e des-historiza as diferenças sociais, confundindo seu caráter histórico e cultural
com a emergência do biológico; alerta, além disso, sobre a produção de uma naturalização
das inclusões, determinando assim projetos excludentes para o “nós”.
Queremos sublinhar que uma análise desta natureza também pode significar a
problematização de vários níveis das representações presentes dentro da educação da
alteridade deficiente, a educação especial; compreender as matrizes de poder, os discursos
e as práticas que têm dado fundamento histórico e que na atualidade, ainda que pareçam
reverter-se, tendem a perpetuar-se dentro de uma mesma lógica de significação.
Quando dizemos que parecem reverter-se, nos referimos à aparente revolução
paradigmática dentro da educação especial a partir do surgimento dos modelos: o modelo
socio-antropológico e o modelo que é “integracionista”. Somente desejamos apontar aqui
que o primeiro dos modelos mencionado é “traduzido” muitas vezes como uma simples
oposição ao modelo da deficiência, estabelecendo desse modo também totalidades
homogêneas e reproduzindo os binarismos típicos da educação especial.
Em relação ao segundo modelo, e detrás dos discursos pretensamente democráticos de
Educação para Todos, Escola para Todos, igualdade de oportunidades, etc., sua chegada
não tem permitido avançar na avaliação necessária do modelo da deficiência e inclusive,
voluntariamente ou não, tem transportado ou transferido consigo de uma forma acrítica nas
suas concepções pedagógicas mais arraigadas.
Abordaremos, então, o problema da inclusão da alteridade deficiente, invertendo a questão
e apresentando o problema dos ouvintes no mundo dos surdos.
O homem fora uma figura entre dois modos de ser a linguagem; ou antes,
ele não se constituiu senão no tempo em que a linguagem, após ter sido
alojada no interior da representação e como dissolvida nela, dela só se
liberou despedaçando-se: o homem compôs sua própria figura nos
interstícios de uma linguagem em fragmentos.
Foucault, 2000:535
O termo 'ouvinte' refere a todos aqueles que não compartilham as experiências visuais
enquanto surdos. Interessante é que os 'ouvintes' muitas vezes não sabem que são chamados
desta forma, pois é um termo utilizado pela comunidade surda para identificá- los enquanto
não surdos. Lembramos de uma longa discussão em uma lista de discussão na Internet (em
que os participantes incluíam pessoas surdas e ouvintes) sobre a necessidade de cada
interlocutor se identificar enquanto 'ouvinte' ou 'surdo' ao participar das discussões. Vários
ouvintes consideraram tal sugestão incompreensível, pois não achavam relevante tal
identificação. Por outro lado, as pessoas que compreendiam a necessidade surda de
identificarem-se enquanto surdos e ouvintes apoiaram a sugestão. Portanto, o termo
'ouvinte' em oposição a 'surdo' foi uma dicotomia criada pela própria comunidade surda. A
3
Agradecemos os comentários de Bárbara Gerner de Garcia.
razão para isso está relacionada com a discriminação que os surdos sofrem, assim como
observado por Skliar (1998:21):
Os surdos adultos fazem parte da vida dos filhos ouvintes de pais surdos desde os seus
nascimentos. Essas crianças crescem interagindo socialmente com surdos e adquirem a
língua de sinais de forma natural e espontânea. As identidades dessas crianças
desenvolvem-se em meio a surdos adultos e, também, a ouvintes adultos. Aí reflete-se a
contradição na formação da identidade desses “ouvintes”, ao mesmo tempo que essas
crianças desenvolvem experiências essencialmente visuais, e desenvolvem experiências
auditivas. E o fato delas terem acesso às experiências auditivas enquanto ouvintes, tornam-
nas diferentes dos surdos colocando-as a parte da comunidade de forma sutil, assim como
relatam Padden e Humphries na passagem acima. Por outro lado, temos um tipo de
“ouvinte” que diferencia-se dos outros “ouvintes”, pois apesar dos filhos de pais surdos
4
A abreviatura CODA que identifica filhos de pais surdos tem origem nas iniciais das palavras em
inglês – Children of Deaf Adults – que pode ser traduzida como filhos de pais surdos, ou filhos de
surdos adultos.
serem ouvintes, eles têm a experiência visual adquirida juntamente à comunidade surda e
seus familiares.
O que significa então ser “ouvinte” na comunidade surda?
Ser filho ouvinte de pais surdos não retrata claramente o que as pessoas surdas
normalmente referem como “ouvintes”. Nas falas de vários surdos captamos os diferentes
significados dados à palavra “ouvinte”. Interessantemente é que enquanto filhos de pais
surdos, reproduzem-se tais estereótipos mesmo sendo estes ouvintes e excluam-se de tais
significados. Isso ilustra os possíveis significados que tal referência pode tomar. Segue-se
abaixo alguns exemplos reproduzidos por vários surdos:
Aqui retratam-se várias formas de referir às pessoas “ouvintes”, sempre em relação aos
surdos. As falas dos surdos grifadas acima são de pessoas que se identificam enquanto
surdos, ou seja, pessoas que experienciam o mundo visualmente independente de sons. A
experiência e o mundo auditivo está sendo relacionado às pessoas que não têm a
experiência visual surda chamadas, portanto, de “ouvintes”. Essas últimas não sabem a
língua de sinais, falam, falam e falam, não entendem os surdos, não os respeitam, pensam
diferentemente dos surdos e têm vantagens em relação aos surdos na sociedade brasileira.
Tais características retratam as relações estabelecidas entre os grupos sociais em que
ouvintes e surdos convivem. Os surdos, enquanto grupo que tem uma experiência
essencialmente visual e adquire uma língua visual-espacial, identificam-se como “surdos”.
Por outro lado, os ouvintes são identificados como aqueles que têm uma experiência
essencialmente oral-auditiva, embora possam ter outros tipos de experiências visuais. Dessa
forma, reproduz-se uma dicotomia característica na nossa sociedade moderna.
No entanto, vale considerar que tais “ouvintes” mencionados acima referem a diferentes
tipos de ouvintes. Antes de prosseguirmos discutindo sobre os diferentes “ouvintes”,
voltemos nossa atenção a uma outra expressão também comumente usada por surdos:
Notem que mais uma vez, a experiência oral-auditiva está sendo referida nas falas acima.
Nesse sentido, as palavras “ouvintes” e “falantes” estão sendo usadas ao referirem os filhos
ouvintes de pais surdos estendendo-se de modo geral às demais pessoas que têm essa
mesma experiência. Não obstante, observamos que tais palavras podem carregar muito
mais do que a experiência oral-auditiva. Nas falas anteriores, vimos que elas também
refletem desigualdades sociais e diferenças. Os surdos identificam tais ouvintes como
diferentes: eles que não entendem os surdos, eles que não sabem a língua de sinais, eles que
não compreendem os sentimentos dos surdos…
O grupo social surdo trata como diferente àqueles que desconhecem as experiências visuais
vivenciadas pelos surdos como parte de sua cultura e formação de identidade.
Há também uma diferenciação daqueles que, apesar de terem tido as experiências visuais da
comunidade surda, por exemplo, os filhos de pais surdos, tiveram acesso às experiências
auditivas-orais. Neste caso, como mencionado anteriormente, há todas as experiências
visuais, incluindo o domínio da língua de sinais, que fazem com que os filhos de pais
surdos façam parte da comunidade surda. Mas, ao mesmo tempo, há outras experiências, as
auditivas-orais, que fazem com que sejam de certa forma colocados a parte. Os surdos
também referem aos próprios filhos como “falantes”:
No entanto, normalmente os filhos de pais surdos não serão os “ouvintes” ou “falantes” das
falas anteriores significando um grupo que não compreende os surdos. Apesar disso, serão
considerados em vantagem em relação aos surdos, e, muitas vezes, em relação àqueles
ouvintes. Isso acontece por terem acesso às diferentes experiências vivenciadas tanto por
surdos como por ouvintes:
- Tu tiveste sorte de ter um filho ouvinte. Para mim será mais complicado, pois meus dois
filhos são surdos. Quem vai me ajudar?
- Filho ouvinte é bom, ajuda a gente, pois aprende a língua de sinais e consegue traduzir
para nós o que estão falando.
Tais falas caracterizam um tipo de ouvinte diferenciado dos mencionados nas falas
anteriores. São ouvintes que “gostam dos surdos”, pois aprenderam ou estão se esforçando
para aprender a língua de sinais. “Gostar dos surdos” parece estar relacionado com o
respeito a forma mais autêntica de manifestação cultural da comunidade surda, ou seja, à
língua de sinais. Tanto é verdade que os surdos referem aos profissionais que trabalham
com os surdos chamados por eles de “deficientes auditivos” como aqueles que “não gostam
dos surdos” ou “não aceitam os surdos”:
- Ela não gosta de surdos, pois não aceita a língua de sinais. Ela só aceita a fala, o oral.
- Ele não aceita os surdos, pois insiste em nos chamar de DA (deficiente auditivo).
Alguns surdos podem também referir outros “surdos” como “ouvintizados”:
- Ele (surdo) é oral, pensa como “ouvinte”. Sabe apenas poucos sinais.
Notem que mais uma vez, a questão está associada à língua de sinais – a língua visual que
manifesta as formas da cultura surda. Obviamente que o que está sendo considerado
ultrapassa a questão da língua, pois as experiências visuais refletem formas de ver o mundo.
Mas é interessante notar que a linguagem é algo extremamente significativo na
identificação e reconhecimento do ser, pois é através dela que muitas coisas são
determinadas e reproduzidas.
Skliar (1998:15) introduziu o termo 'ouvintismo' como:
Alguns surdos chegam a identificar outros surdos como ouvintizados através do sinal de
“falante” no ponto de articulação do sinal de pensar significando que tais surdos “pensam
como ouvintes”.
Os estereótipos de surdos são “ouvintizados”. Nesse sentido, vale mencionar algumas das
falas de pessoas “ouvintes” ao se dirigirem a um filho de pais surdos:
- Como tua mãe te cuidou quando tu nasceste? Como ela te ouvia chorar?
- Como tu aprendeste a falar?
- Como teus pais te educaram?
- Como tu cresceste?
Em relação ao último comentário “- Tua casa deve ser um SILÊNCIO…”, vale mencionar
uma passagem de Padden e Humphries ao falarem dos ruídos nas vidas das pessoas surdas:
5
Fonte: Aurélio Eletrônico V.1.4. 1994 verbetes “deficiência” e “insuficiência”.
“As vidas das pessoas surdas são longe de serem silenciosas, ao
contrário, são vidas cheias de barulhos, ou seja, cheias de estalos, de
zumbidos, de zunidos, de estouros, de rugidos e de gargalhadas”.
(Padden & Humphries, 1988:109)
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Ver Quadros (1999) para mais detalhes sobre a estrutura da língua de sinais brasileira.
entanto, este bilingüismo reflete muitos dos problemas de identidade que surgem. Aos
poucos, eles passam a se dar conta das diferenças sociais, políticas e culturais que cada
língua apresenta dentro da sociedade e precisam aprender a lidar com elas sem abandonar
suas raízes surdas, as que são excluídas.
Incluímos a tais expressões, a reflexão de Wriglee (1996), ao abordar a questão das línguas
de sinais:
As expressões mencionadas, normalmente são utilizadas pelas pessoas surdas que têm que
aprender o português. Ao compararem uma língua com a outra, eles utilizam algumas
destas expressões. A língua de sinais é uma forma lingüística essencialmente visual, isto é,
sem referência sonora. Desta forma, é uma língua que consegue captar e expressar as
experiências visuais características das comunidades surdas.
As experiências visuais são as que perpassam a visão. O que é importante é ver, estabelecer
as relações de olhar (que começam na relação que os pais surdos estabelecem com os seus
bebês), usar a direção do olhar para marcar as relações gramaticais, ou seja, as relações
entre as partes que formam o discurso. O visual é o que importa. A experiência é visual
desde o ponto de vista físico (os encontros, as festas, as estórias, as casas, os
equipamentos…) até o ponto de vista mental (a língua, os sonhos, os pensamentos, as
idéias…). Como conseqüência é possível dizer que a cultura é visual. As produções
lingüísticas, artísticas, científicas e as relações sociais são visuais. O olhar se sobrepõe ao
som mesmo para aqueles que ouvem dentro de uma comunidade surda. Por exemplo,
CODA ao conversarem com surdos, ignoram comentários ou interrupções de outros através
da fala.
Os diferentes tipos de “ouvintes” têm diferentes níveis de compreensão destas experiências
visuais incluindo o respeito e/ou domínio da língua de sinais. Tais experiências tornam
possível a participação em menor ou maior grau na comunidade surda. Isso significa que as
experiências visuais são intrínsecas às identidades e culturas surdas. Assim sendo, as
pessoas que têm mais experiências visuais passam a ser mais aceitas pelos surdos.
Bibliografía:
Dutchansky, Silvia; Skliar, Carlos. O nome dos outros. Porto Alegre: Educação &
Realidade, 2000, no prelo.
Foucault, Michel. Los Anormales. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2000.
Lima Filho, Henrique de. Apresentação do livro Anjos de Barro – História de pais e filhos
especiais. Porto Alegre: EMW Editores, 1986.
Padden e Humphries. Deaf in America: Voices from a Culture. Harvard University Press.
Cambridge, Massachussets.1988.
Perlin, Gladis. Identidades Surdas. Em Skliar, Carlos (org.) A Surdez: um olhar sobre as
diferenças. Editora Mediação. Porto Alegre.1998.
Quadros, Ronice Müller de. Phrase Structure of Brazilian Sign Language. Tese de
Doutorado. PUCRS. Porto Alegre. 1999.
Scott, John. Multiculturalism and the Politics of Identity. In: J. Rachman (Ed.) The identite
in question. New York: Routledge , 3-12. 1995.
Silva, Tomaz Tadeu. Teoria cultural e educação. Um vocabulário crítico. Belo Horizonte:
Autêntica, 2000.
Skliar, Carlos (org.) A Surdez: um olhar sobre as diferenças. Editora Mediação. Porto
Alegre.1998.
Wrigley, Owen. The politics of Deafness. Gallaudet University Press. Washington. 1996.