Skliar e Quadros 2000

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SKLIAR, Carlos; QUADROS, Ronice Muller de.

Invertendo epistemologicamente o problema da


inclusão: os ouvintes no mundo dos surdos. Estilos da Clínica, São Paulo, v. V, n. 9, p. 32-51,
2000.

Invertendo epistemologicamente o problema da inclusão: os ouvintes no mundo dos


surdos.
Carlos Skliar & Ronice Quadros
Instituição: Programa de Pós-graduação em Educação, Universidade Federal do Rio
Grande do Sul.

E-mail dos autores: [email protected], [email protected]

Resumo
O objetivo deste trabalho é apresentar uma reflexão invertendo epistemologicamente o
problema da inclusão. A questão dos ouvintes no mundo dos surdos serve de referência
para a análise aprofundada entre as quantidades obscenas e manipuláveis e os hibridismos
considerando-se as culturas, as línguas, as identidades e as diferenças. Faz-se, então, uma
discussão sobre o discurso e a prática cultural em torno dos outros, da alteridade,
adquirindo novas dimensões epistemológicas, políticas e pedagógicas.
Abstract
The goal of this paper is to present a reflection changing epistemologically the inclusion
problem. The aspect of the hearing in the Deaf world is the reference for the deeply
analysis between the obscene and manipulable and the hybrids considering the cultures, the
languages, the identities and the differences. It is done, therefore, a discussion about the
discourse and the cultural practices about the others, the alteridade, acquiring new
epistemologies, politic and pedagogic dimensions.

1. Os mundos atuais: entre as quantidades obscenas e manipuláveis e os hibridismos


culturais.
São os tempos atuais de desorientação cultural e/ou de afirmação de novas identidades? De
estabilidade e/ou de perigo e ameaça do público? De inquietude frente ao avassalamento do
global e/ou de conformidade com as pequenas aldeias nas quais vivemos? De exclusão ou
de inclusão? De abrir-se as fronteiras e/ou de viver, temerosos, em meio a elas? De aferrar-
se a alguma/s poucas identidade/s disponível/s e/ou de estalar-se em fragmentos? De
globalização ou de pulverização? De normalização ou de hibridismo?
(Re)construir e (re)conhecer o mundo atual e definir o lugar/espaço/tempo que ocupam os
outros depende, em grande medida, da intensidade das imagens/representações do mundo
que se selecionam, produzem, inventam, dissimulam e/ou ignoram-se através dos nossos
olhares, dos nossos gestos e dos nossos discursos.
Assim, não existe um único mundo disponível senão vários mundos que se impõem e
superpõem, criando novas e complexas perspectivas sobre questões tais como cultura,
línguas, identidades e diferenças.
Ao fixar os olhos e as palavras no mundo de uma boa parte dos meios de comunicação, dos
discursos oficiais e dos informes de organismos e bancos internacionais aparece, quase
sempre em primeiro lugar, um território denso de quantidades indiscretas, manipuláveis e
obscenas.
Os números nos indicam posições, ou ainda melhor, localizações, vanguardas, desventuras,
rumos e destinos que condenam os países e suas populações.
Se troca de posição na ordem mundial, se festejam ou se lamentam os avanços e os
retrocessos no ranking da miséria, do analfabetismo e do desemprego.
Recomendam-se transformações, também obscenas, para que as quantidades se desfaçam,
se minimizem e acabem por extinguir-se.
O mundo tem se transformado em um terceiro mundo (Chomsky, 1996) e o terceiro mundo
parece-nos ser outra coisa: milhões de pessoas que se envolvem em matanças étnicas, que
se matam por falta de água potável, que se destróem diante da desintegração do emprego.
Milhões de mulheres são escravizadas e traficadas, assim como milhões de crianças o são.
Além disso, crianças são transformadas em exército, adotadas por estranhos e subornadas a
ir à escola.
O mundo é narrado e manipulado quase exclusivamente em termos do mapa da pobreza,
uma triste e inevitável conjunção de violências físicas, morais e institucionais. Há
competições de analfabetismo, de corrupção, de assassinatos que se medem a cada minuto.
E em cada momento se elaboram conceitos mais refinados de exclusão, de desigualdade
econômica e de desqualificação e desafiliação social para estabelecer novos números,
quantidades atualizadas, estatísticas modernas. O conceito de exclusão é, ao mesmo tempo,
um non-sense teórico e um consenso social, político e cultural.
Se conseguimos abstrair um instante nossos gestos, nossas palavras e nossos olhares sobre
tais quantidades, começa-se a impor-se uma visão de mundo em parte diferente e em parte
igual a anterior: é a época das preocupações e ocupações politicamente corretas, o mundo
do auto-cuidado e da auto-proteção.
Cuidam-se as palavras delas mesmas, se cuidam as imagens, as leis, o currículo das escolas,
as publicidades, a mensagem empresarial. Vigiamo-nos uns aos outros para não dizer
aquelas palavras, para evitar aqueles gestos, para denunciar aquelas atitudes que não
representam de uma forma benigna os conflitos culturais. Desse modo, os problemas
culturais ficam mascarados em modos ligeiros de dizer e de olhar.
Tranqüilizamo- nos ao encontrar a palavra que não fere, que não designa, que não etiqueta.
É, de certo modo, um mundo CNNizado que orienta e ordena o nosso olhar tranqüilo, de
telespectadores, com imagens exóticas, folclóricas, paisagísticas, cartões postais ingênuos
de países e seus habitantes, todos quase que parecidos entre si; parecidos, porém, não
iguais, parecidos porém não idênticos; em outras palavras, uma mímica daquilo que é
estrangeiro, um desejo de um outro reconhecível, relativamente próximo e, até certo
ponto, reformado, um sujeito de uma diferença que é quase a mesma, porém não
exatamente (Bhabha 1994).
Se otimizarmos esses últimos olhares e discursos, outro mundo faz-se presente: é o mundo
da fibra óptica e da cibernética das subjetividades; um mundo que, ademais, também se
regula pelas quantidades indiscretas, manipuláveis e obscenas.
As guerras virtuais e as pobrezas reais se confundem na programação das televisões.
Oferecem-nos somente soluções para um mundo moderno e pequeno. Estar conectado ou
não, essa é a questão. Desse modo, outra vez, (re)conhecemos os e (re)construímos o
mundo como o lugar/espaço/tempo das velhas e novas exclusões. As fronteiras aparecem,
desaparecem e voltam a aparecer; se multiplicam, se disfarçam travestidas com roupas
novas que somente agora nos falam – e fazem falar - do respeito, da tolerância, da
aceitação, do pluralismo e da diversidade; os limites dessas fronteiras parecem perder-se,
oscilam, se ampliam e mudam permanentemente sua estratégia de representação sobre os
outros. O controle se exerce sobre os corpos, as cores, as linguagens, a pele da alteridade.
Existe um aparato teórico cada vez mais agudo, menos economicista e tautológico 1 nas
definições de exclusão: já não se confunde nem se subordina a idéia de exclusão ao
conceito de pobreza, nem de classe social, nem de renda mínima, porém, ao mesmo tempo
faz-se mais extenso, mais inacessível, menos controlável - fala-se de exclusão social, de
gênero, de idade, de raça, de linguagem, de cultura, de etnia, de abstração, de natureza
informática, de educação, de escolarização, de direito à palavra e à vida na própria cultura,
de trabalho, de saúde, de velocidade e de flexibilidade nas respostas, da interatividade, etc.
Porém, a exclusão não é somente uma fronteira de discursos e silêncios permanentemente
removidos e reposicionados. Não é unicamente o falar desde um suposto centro fazendo as
periferias imaginadas. A exclusão é também um processo cultural, um discurso de
verdade, una interdição, um rechaço, a negação do espaço/tempo/lugar em que vivem os
outros. A/s exclusão/es sempre estão em movimento, nunca permanecem quietas, fixas,
inalteráveis. Cruzam os corpos, as mentes e as línguas de um modo vertiginoso; os
atravessam. Henrique de Lima Filho (1986:15), em um parágrafo muito eloqüente, narra o
vaivém de suas próprias exclusões do seguinte modo:

“(...) Mais que a hemofilia, vivi a experiência de preconceitos piores e


mais dolorosos. Se os garotos do bairro mineiro me chamavam de sangue
de barata, fui discriminado como ‘cucaracha’ nos Estados Unidos, como
árabe na França e como turco na Alemanha. Já tive de provar que não
era um maldito ‘intelectual’ para militantes operários, provar para
escritores que um cartunista pode ser escritor, provar que um escrito
pode trabalhar na TV e agora tenho que provar que um homem de TV
pode fazer cinema. Já recebi como palavrão o título de ‘coerente’. A
minha barba precocemente branca é um insulto pra a sociedade dos
sempre jovens (...)¿Hemofilia? Bah!!!”.

Ao mesmo tempo que nossos olhares e discursos reforçam o mundo da exclusão,


paradoxalmente encontramo-nos no mundo das inclusões, das promessas integradoras
(Gentili, 1996) – sejam elas econômicas, políticas ou educativas.
A exclusão, nos nossos dias, está travestida de inclusão; aqueles que têm sido
permanentemente localizados do lado de fora das fronteiras, hoje são chamados a entrar e a

1
O Banco Mundial (1998), por exemplo, define a exclusão como: “processo pelo qual indivíduos e
grupos encontram-se total ou parcialmente excluídos da participação econômica, social ou política
na sociedade”.
estar, como seja, deste lado. Depois de tudo, a transformação dos números não faz-se
suficiente para acalmar e silenciar identidades: as promessas se evaporam, se desintegram
quando reunimos todos os mundos até aqui imaginados.
Em algum sentido, somente aparentemente paradoxal, a globalização imaginada conduz à
produção e à fragmentação de novas identidades sociais (Hall, 1997) que lêem de maneira
muito diferente o espaço e o tempo que ocupam desde sua própria alteridade.
Homii Bhabha (1994, ob. cit.) utiliza a metáfora da desorientação para descrever o mundo
de hoje: muito mais que uma sensação de confusão, existiria um verdadeiro distúrbio da
direção, um momento de trânsito no qual o espaço e o tempo se entrecruzam para produzir
figuras complexas de diferença e identidade, de passado e de presente, de interior e
exterior, de dentro e de fora.
Pois está aqui também frente aos nossos olhos, nos nossos gestos e nas nossas palavras o
mundo do não designado, do híbrido 2 , da desorientação. Um mundo que se parece mais a
uma geografia de imigrações, a literaturas que provêm da diáspora política e cultural, aos
grandes deslocamentos de comunidades campesinas e indígenas, às prosas e poesias
escritas desde o exílio, às narrativas dos refugiados econômicos, políticos e/ou culturais, em
fim, à cultura narrada desde aquilo que sempre foi considerado à margem, à periferia.

2. Nós, os outros e a/s alteridade/s.


Cada vez mais as culturas “nacionais”, “oficiais” estão sendo produzidas a partir da
perspectiva das minorias. O resultado desse processo não deve ser apenas compreendido,
como afirmado por Bhabha (1994, ob. cit.) não no sentido de uma proliferação de histórias
alternativas dos excluídos, mas sim como uma necessidade de revisão radical em torno do
conceito de cultura e comunidade humana.
A nossa existência, continua Bhabha, está marcada por uma tenebrosa sensação de
sobrevivência, de viver nas fronteiras do presente, para as quais não parece haver um nome
próprio, mais para lá da atual e controvertido deslizamento do prefixo “pós”: pós-
modernidade, pós-colonialismo, pós- feminismo, etc.

2
Utilizamos a expressão híbrido, hibridismo, etc. não no sentido de irregular ou como composição
dos elementos que se reúnem, mas sim para ressaltar a necessidade de pensar as identidades como
um processo permanente, não sistemático, de construção e desconstrução, em oposição aos
paradigmas homogêneos, coerentes e estáveis da modernidade.
Por tudo isso, o discurso e a prática cultural em torno dos outros, da alteridade, adquire,
hoje, novas dimensões epistemológicas, políticas e pedagógicas.
A pergunta acerca da alteridade e, mais especificamente, a pergunta sobre quem são os
outros, adquire assim uma significativa transcendência filosófica, sociológica, política,
antropológica e cultural.
A/s resposta/s a essa questão não parecem ser demasiado claras – e nunca serão definitivas
- porém, propomos diferenciar e territorializar pelo menos três espaços discursivos que se
referem à alteridade; espaços que dizem e produzem aos outros, desde a “mesmidade” ou
desde a alteridade, em relação às identidades, diferenças, culturas, línguas e modos de
narrar; espaços cujas fronteiras podem ser muito tênues ou débeis; espaços, em fim, de
significados culturais que circulam dentro de culturas e de tempos e lugares específicos.
Adotaremos para estes espaços a seguinte denominação: (a) espaço colonial; (b) espaço/s
multicultural/es e (c) espaço/s da/s diferença/s ou espaço pós-colonial.
O espaço colonial, de acordo, entre outros, com Carbonell e Cortés (1998), constitui um
conjunto heterogêneo de interesses e práticas que tem como objetivo principal a
instauração de um sistema de domínio e sua perpetuação. Essa definição não se refere,
claro está, somente ao fato físico da colonização, nem a um simples ato de acumulação e
aquisição de territórios, de sujeitos humanos, de fontes de producción, de narrativas, etc.
Esse espaço tem inaugurado, desenvolvido e imposto um conjunto de estratégias
particulares de representação acerca dos outros, sobre os outros, face aos outros, pelos
outros: assim, a alteridade foi, sucessiva ou concomitantemente mascarada, descoberta e
redescoberta, inventada, inscrita nas fronteiras estritas da inclusão/exclusão, demonizada,
delimitada em suas perturbações, estereotipada, infantilizada, normalizada, medicalizada,
domesticada, desterritorializada, usurpada em seus discursos e suas formas de narrar,
mitificada, assimilada, exilada, localizada no extremo negativo de certas dualidades
culturais, separada institucionalmente, ignorada, objeto de curiosidade científica, de
salvação religiosa e, inclusive, de redenção etnográfica, produzida pela caridade e regulada
pela beneficência, etc.
O lugar da diferença cultural parece não ter lugar. O outro é citado, mencionado, iluminado,
engajado em estratégias de imagem/contra- imagem, etc.
O discurso colonial se constitui a partir de formas de conhecimento, representação e
estratégias de poder e formas de relacioná- las com o ditado das leis, normas e
regulamentos.
A questão posta por Ian Chambers (1994): quem define a autenticidade do outro?, faz-se
particularmente significativa, porque esse outro volta sempre a ser posicionado em uma
diferença domesticada; não tem voz, não se lhe permite falar nem definir sua noção de ser
específico, sua autenticidade. Por isto, o autor afirma que estamos decididamente marcados
pela impossibilidade histórica e ética de falar no lugar do outro “(...) estes ritos ambíguos
funerários invariavelmente nos obrigam a reconsiderar os poderes assimétricos das
representações, e nosso lugar neles”.
As representações têm mudado, essencialmente, as formas de narrar acerca da alteridade
frente ao surgimento de um novo espaço, o espaço multicultural?
Para muitos defensores do multiculturalismo, esta última pergunta somente pode ser
considerada como um jogo de retórica. De fato, o espaço multicultural é definido como
um tipo de consciência coletiva que se opõe a todas as formas de centrismos - etno, falo,
fono, logo, antropo, etc.- que conduz tanto a uma nova teorização e produção de
conhecimento, como a renovadas formas de entender e exercer as estratégias políticas.
É inevitável que o espaço multicultural abriu questionamentos e desenvolveu ações –civis,
políticas e educativas - que não podem ser colocadas em dúvida, nem minimizadas ou
desvalorizadas. Porém, é claro que também não parece ser factível falar de um espaço
multicultural coerente, sólido e sem fraturas, mas sim de vários e diferentes espaços
multiculturais. Tal é a proposta defendida, entre outros autores, por Peter McLaren (1997)
que menciona formas de multiculturalismo que podem ser associadas, politicamente, com
os modos através dos quais a alteridade é representada, a diferencia construída e a
educação organizada.
Somente a título de hipóteses pode dizer-se então, que tanto no espaço colonial como na
forma multicultural conservadora, os outros podem não ser todos os outros, mas sim
somente alguns outros. Tem se instalado um processo de fragmentação da alteridade, que
muito tem a ver com o que alguns autores chamam de multiculturalismo empresarial,
talvez uma nova maquiagem à antiga lógica do mercado e do capital humano.
A alteridade é recategorizada e subdividida em categorias até agora desconhecidas; alguns
outros se aproximam, alguns outros se distanciam cada vez mais: o circuito da cultura
recebe com beneplácito a alteridade consumista e produtiva e vigia os mendigos, as
crianças de rua, a prostituição, os deficientes, etc., que continuam sendo expulsos do
território da alteridade.
A pergunta que aqui surge, de acordo com McLaren (1997, ob. cit.) é sobre quem tem o
poder para exercer significados, para criar a estrutura a partir da qual a alteridade é
definida, para criar as identificações que conduzem a cerceamentos de significados em
interpretações e tradições.
Um entre vários dos significados, que se nos revela particularmente hegemônico e repetido
faz nessa forma de entender o multiculturalismo, é o da diversidade. O termo diversidade
tem sido adotado com uma freqüência excessiva – tanto na educação, como nos meios de
comunicação, nos vários poderes do Estado e de organismos internacionais e nas empresas
- com o objetivo de retratar as variações humanas presentes nas instituições, porém,
também, como uma estratégia conservadora originada para conter e obscurecer o
significado político das diferenças culturais.
Recentemente começou-se a falar do espaço pós-colonial como o espaço da/s diferença/s.
Ian Chambers (1995: 17, ob. cit.) nos oferece algumas pistas para definir esse espaço:

“Aquí, no mundo pós-colonial, a flecha do tempo, da linearidade, da


nação, da identidade e do ‘progresso’ da história ocidental desviam-se
dos espaços diferentes que aparecem no desenvolvimento singular da
narração mediante a introdução de múltiplos lugares da linguagem, a
narrativa, as histórias deles e delas, e uma heteronomía de pulsos
diferentes”.

As diferenças, com toda a imperfeição e as armadilhas políticas que a utilização deste


termo pressupõe, não vem simplesmente a substituir o de diversidade ou pluralidade. E não
o faz, pois não ocupa o mesmo espaço político/discursivo.
Para Tomaz Tadeus da Silva (2000), o conceito de diferença adquiriu importância a partir
da denominada política de identidade e dos movimentos multiculturais. Nesse contexto, a
“diferença” cultural é considerada, simplesmente, como um dado da vida social que deve
ser respeitado. Desde a perspectiva da filosofia da diferença, diz o autor, esse conceito se
opõe às filosofias que se centram na dialética, pois elas resolvem a contradição afirmando
a identidade e a “mesmidade”.
Bhabha (1994, ob. cit.) articula uma distinção importante entre diversidade e diferença.
Critica a noção de diversidade quando é usada dentro do discurso liberal para referir a
importância das sociedades plurais e democráticas. Afirma que junto com a diversidade
sobrevive sempre uma “norma transparente”, construída e administrada pela sociedade que
“hospeda”, que cria um falso consenso, uma falsa convivência, uma estrutura normativa
que contém a diferença cultural, ou seja, “aquela universalidade, que paradoxalmente
permite a diversidade, e mascara as normas etnocêntricas”.
Para Bhabha, a diversidade cultural é a representação de uma retórica radical de separação
de culturas totalizadas, a salvo de toda intertextualidade, protegidas na utopia de uma
memória mítica de uma identidade estável. Assim, transforma-se em um objeto
epistemológico, em uma categoria ontológica; supõe o reconhecimento dos conteúdos e dos
costumes culturais pré-estabelecidos isentos de mescla e contaminação.
Desse modo, a estrutura normativa da diversidade produz uma contenção, uma obstrução e
uma falsificação da diferença cultural. Nesta mesma linha de pensamento John Scott (1995)
afirma que: "a diversidade se refere a uma pluralidade de identidades e é vista como uma
condição da existência humana e não como o efeito de um enunciado da diferença que
constitui as hierarquias e assimetrias de poder”.
Podemos, então, pensar que a cultura é um território de diferenças que requer permanentes
traduções. Neste sentido, Bhabha (1994, ob. cit.) afirma que a cultura é “tradutora”, no
sentido de que resulta importante entender como a cultura significa o que é significado
pela cultura; “transnacional”, porque os discursos estão arraigados em histórias específicas
de descolamentos culturais e viagens para fora – migrações, exílio, etc.-; e possui uma
“temporalidade disjuntiva”, pois cria um tempo de significação, no qual as diferenças não
podem ser negadas porque ocupam de algum modo o mesmo espaço.
As diferenças existem independentemente da autorização, da aceitação, do respeito, da
tolerância, da oficialização ou da permissão outorgada desde a normalidade.
Este último aspecto sobre o significado das diferenças adquire uma dimensão política
essencial que requer maior profundidade: a pretensão de outorgar a alteridade a
legitimidade necessária para ser aquilo que já é, de autorizar oficialmente aquilo que já
existe nos outros desde muitos milênios – como por exemplo, as línguas indígenas, as
línguas de sinais dos surdos, o processo de comunalização a partir de determinadas eleições
sexuais, as produções artísticas e culturais originadas desde a “loucura”, etc. Chambers
(1995, ob. cit.) afirma que a metáfora abstrata do outro tem sido manipulada para outorgar-
lhe somente uma presença que confirme a sua própria premissa e prejuízo.
Assim, a autorização, o respeito, e inclusive a tolerância, estabelecidos desde os
significados da normalidade cultural pretendem constituir-se assim em um tipo de
racionalidade prévia à existência e à construção das diferenças; se levantam, por assim
dizer, como pré-requisitos inevitáveis de poder/saber frente às diferenças. Nas palavras de
Zizek (1995: 177):

“(...) existe uma distância eurocentrista condescendente e/ou respeitosa


para com as culturas locais (...) uma forma de racismo negado, invertido,
auto-referencial, um `racismo com distância´: ´respeito´ a identidade do
Outro, concebendo este como uma comunidade ´autêntica´, fechada, a
qual é multiculturalista, mantém uma distância que se faz possível graças
a sua posição universal privilegiada".

A representação da diferença não deve ser lida rapidamente como o reflexo de traços
culturais ou étnicos pré-estabelecidos, inscritos, como disse Bhabha (1994, ob. cit.) “(...) na
lápida fixa da tradição”. A articulação social da diferença, desde a perspectiva da própria
diferença, é uma negociação complexa, que intenta dar autoridade aos hibridismos culturais
que surgem nos momentos de transformação histórica e política. Os embates de fronteira
em torno da diferença cultural têm tanta possibilidade de ser consensuais como
conflituosos: podem confundir nossas definições de tradição e modernidade, realinhar as
fronteiras habituais entre o público e o privado, o alto e o baixo, assim como desafiar as
expectativas normativas de desenvolvimento e progresso.
Noutro sentido, e como sugerimos anteriormente, as diferenças tão pouco podem ser vistas
como essências ou traços essencializados. Stuart Hall (citado por Briones, 1998) menciona
os desafios implícitos a toda forma de essencialismo, afirmando que a defesa da totalidade,
como integridade de um coletivo de identidades e fundamentada na lógica de oposições
binárias (nós/outros) tende a negar diferenças de gênero, classe, etnia, etc., dentro dessa
totalidade grupal; que as polarizações de relações sociais complexas entre nós/outros,
simplifica e des-historiza as diferenças sociais, confundindo seu caráter histórico e cultural
com a emergência do biológico; alerta, além disso, sobre a produção de uma naturalização
das inclusões, determinando assim projetos excludentes para o “nós”.

3. A inversão epistemológica do problema da inclusão.


É pelo menos curioso que, apesar da sensação de desorientação e dos descolamentos e
hibridações incontroláveis de sujeitos, de povos e de culturas, boa parte dos governos e dos
governantes, das instituições oficiais e dos organizações não governamentais insiste com
obsessão em que ninguém tem o direito de desistir da aldeia global, ninguém pode viver em
supostas margens ou periferias, ninguém pode negar-se a estar dentro dos limites já
traçados, ainda mais não seja de uma forma parcial, incompleta, ineficiente ou deficiente.
É neste contexto, pelo menos paradoxal e ambíguo, que se faz possível estabelecer uma
caracterização a respeito dos discursos e das práticas que têm sido produzidas e produzem
um certo tipo específico de alteridade: o da alteridade deficiente, o dos outros deficientes.
E nessa direção que este trabalho propõe uma reflexão cultural, política e educativa sobre
algumas questões que dificilmente já tenham sido abordadas de um modo relacionado. Nos
referimos aos vínculos existentes entre as representações sobre a alteridade deficiente, as
dos outros deficientes, a construção da diferença por parte da alteridade, as localizações
culturais – híbridas, fragmentadas e intercambiáveis - em que se encontram os significados
políticos que circulam a respeito dela e das formas de organização educativas.
Fazer do espaço colonial em relação à alteridade deficiente o foco da nossa discussão,
significa deixar em suspenso, duvidar das estratégias e representações de normatização e
normalização – isto é, a criação do normal ouvinte, do normal inteligente, do normal
corporal, do normal lingüístico, etc. e o processo de atração/pressão que faz como norma -
e faz desconfiar da tradução das vozes da alteridade deficiente por parte dos especialistas;
ou seja, em síntese, faz inverter aquilo que foi sempre considerado como o/os problema/s –
o/os “problema/s” dos surdos, o/os “problema/s” dos deficientes mentais, o/os
“problema/s” dos cegos, etc.- em síntese, uma análise que questione aquilo que é e tem
sido considerado o habitual, o óbvio em um momento e em um espaço histórico/político
determinado.
Se invertemos a lógica habitual poderíamos dizer que aquilo considerado negativo – a
anormalidade, neste caso - não está em um sujeito portador de um atributo esencialista: o
negativo é aquilo que irrompe para deslocar a aparente normalidade (Dutchanske e Skliar,
2000b).
A norma, desde a perspectiva de Foucault (1997) é uma forma através da qual um grupo
se dota de uma medida comum de acordo com um princípio rigoroso de auto-referência,
sem que exista relação com alguma exterioridade.
Ewald (1993) afirma que a normalização é instituir uma linguagem que permitirá entender-
se e conformar uma sociedade; a normalização é a instituição de uma língua comum, uma
maneira de fazer de cada indivíduo um espelho e uma medida do outro. E enfatiza:

“O anormal não é de uma natureza diferente do normal. A norma, o


espaço normativo, não conhecem exterior. A norma integra tudo aquilo
que desejaria exceder –nada, ninguém, seja qual for a diferença que
ostente, pode alguma vez pretender exterior, reivindicar uma alteridade
tal que o torne um outro”.

De acordo com Tomaz Tadeu da Silva (no prelo):

“A normalização é um dos processos mais sutis através dos quais o poder


se manifesta no campo da identidade e da diferença. Normalizar significa
eleger – arbitrariamente - uma identidade específica como parâmetro em
relação a qual outras identidades são avaliadas e hierarquizadas.
Normalizar significa atribuir a essa identidade todas as caraterísticas
positivas possíveis, em relação as quais as outras identidades somente
podem ser avaliadas em forma negativa. A identidade normal é natural,
desejável, única. A força da identidade normal é de tal magnitude que ela
nem sequer é vista como uma identidade, senão simplesmente como a
identidade”.

Queremos sublinhar que uma análise desta natureza também pode significar a
problematização de vários níveis das representações presentes dentro da educação da
alteridade deficiente, a educação especial; compreender as matrizes de poder, os discursos
e as práticas que têm dado fundamento histórico e que na atualidade, ainda que pareçam
reverter-se, tendem a perpetuar-se dentro de uma mesma lógica de significação.
Quando dizemos que parecem reverter-se, nos referimos à aparente revolução
paradigmática dentro da educação especial a partir do surgimento dos modelos: o modelo
socio-antropológico e o modelo que é “integracionista”. Somente desejamos apontar aqui
que o primeiro dos modelos mencionado é “traduzido” muitas vezes como uma simples
oposição ao modelo da deficiência, estabelecendo desse modo também totalidades
homogêneas e reproduzindo os binarismos típicos da educação especial.
Em relação ao segundo modelo, e detrás dos discursos pretensamente democráticos de
Educação para Todos, Escola para Todos, igualdade de oportunidades, etc., sua chegada
não tem permitido avançar na avaliação necessária do modelo da deficiência e inclusive,
voluntariamente ou não, tem transportado ou transferido consigo de uma forma acrítica nas
suas concepções pedagógicas mais arraigadas.
Abordaremos, então, o problema da inclusão da alteridade deficiente, invertendo a questão
e apresentando o problema dos ouvintes no mundo dos surdos.

4. Os ouvintes no mundo dos surdos: reflexões sobre identidades e culturas surdas 3

O homem fora uma figura entre dois modos de ser a linguagem; ou antes,
ele não se constituiu senão no tempo em que a linguagem, após ter sido
alojada no interior da representação e como dissolvida nela, dela só se
liberou despedaçando-se: o homem compôs sua própria figura nos
interstícios de uma linguagem em fragmentos.
Foucault, 2000:535

O termo 'ouvinte' refere a todos aqueles que não compartilham as experiências visuais
enquanto surdos. Interessante é que os 'ouvintes' muitas vezes não sabem que são chamados
desta forma, pois é um termo utilizado pela comunidade surda para identificá- los enquanto
não surdos. Lembramos de uma longa discussão em uma lista de discussão na Internet (em
que os participantes incluíam pessoas surdas e ouvintes) sobre a necessidade de cada
interlocutor se identificar enquanto 'ouvinte' ou 'surdo' ao participar das discussões. Vários
ouvintes consideraram tal sugestão incompreensível, pois não achavam relevante tal
identificação. Por outro lado, as pessoas que compreendiam a necessidade surda de
identificarem-se enquanto surdos e ouvintes apoiaram a sugestão. Portanto, o termo
'ouvinte' em oposição a 'surdo' foi uma dicotomia criada pela própria comunidade surda. A

3
Agradecemos os comentários de Bárbara Gerner de Garcia.
razão para isso está relacionada com a discriminação que os surdos sofrem, assim como
observado por Skliar (1998:21):

A configuração do ser ouvinte pode começar sendo uma simples


referência a uma hipotética normalidade, mas se associa rapidamente a
uma normalidade referida à audição e, a partir desta, a toda uma
seqüência de traços de outra ordem discriminatória. Ser ouvinte é ser
falante e é, também, ser branco, homem, profissional, letrado, civilizado,
etc. Ser surdo, portanto, significa não falar - surdo-mudo - e não ser
humano.

A experiência de ser filho ouvinte de pais surdos (CODA) apresenta algumas


peculiaridades que revelam alguns traços dos estereótipos que existem em relação às
pessoas surdas 4 . Padden e Humphries (1988) descrevem os filhos ouvintes de pais surdos
como uma contradição:

“Filhos ouvintes de pais surdos representam uma contradição emergente


na cultura (surda): eles dispõem do conhecimento de seus pais - domínio
da língua e conduta social - mas a cultura encontra formas sutis de dar a
eles um estatuto incomum e a parte.”
(Padden e Humphries, 1988:03)

Os surdos adultos fazem parte da vida dos filhos ouvintes de pais surdos desde os seus
nascimentos. Essas crianças crescem interagindo socialmente com surdos e adquirem a
língua de sinais de forma natural e espontânea. As identidades dessas crianças
desenvolvem-se em meio a surdos adultos e, também, a ouvintes adultos. Aí reflete-se a
contradição na formação da identidade desses “ouvintes”, ao mesmo tempo que essas
crianças desenvolvem experiências essencialmente visuais, e desenvolvem experiências
auditivas. E o fato delas terem acesso às experiências auditivas enquanto ouvintes, tornam-
nas diferentes dos surdos colocando-as a parte da comunidade de forma sutil, assim como
relatam Padden e Humphries na passagem acima. Por outro lado, temos um tipo de
“ouvinte” que diferencia-se dos outros “ouvintes”, pois apesar dos filhos de pais surdos

4
A abreviatura CODA que identifica filhos de pais surdos tem origem nas iniciais das palavras em
inglês – Children of Deaf Adults – que pode ser traduzida como filhos de pais surdos, ou filhos de
surdos adultos.
serem ouvintes, eles têm a experiência visual adquirida juntamente à comunidade surda e
seus familiares.
O que significa então ser “ouvinte” na comunidade surda?

Ser filho ouvinte de pais surdos não retrata claramente o que as pessoas surdas
normalmente referem como “ouvintes”. Nas falas de vários surdos captamos os diferentes
significados dados à palavra “ouvinte”. Interessantemente é que enquanto filhos de pais
surdos, reproduzem-se tais estereótipos mesmo sendo estes ouvintes e excluam-se de tais
significados. Isso ilustra os possíveis significados que tal referência pode tomar. Segue-se
abaixo alguns exemplos reproduzidos por vários surdos:

- Ouvinte não respeita os surdos.


- Ouvinte não sabe a língua de sinais.
- Grupo de surdos é melhor do que grupo de ouvintes que é difícil, pois eles falam, falam,
falam…
- Ouvinte é difícil, pois não entende o que dizemos – nós (surdos) temos que parar e
explicar os sinais. Isso é um processo devagar, se perde tempo, pois é demorado.
- Namorado ouvinte é complicado, pois não entende sinais, não entende sentimento do
surdo.
- Ouvinte não entende como surdo pensa.
- Surdo pensa em sinais, gosta de discutir e bater papo de forma diferente dos ouvintes.
- Eu (surdo) entendo que os ouvintes estão num mundo diferente, com idéias diferentes.
- Ouvinte pensa que enrolar um surdo é fácil.
- Eu (surdo) perco várias oportunidades, porque sou surdo, já os ouvintes têm uma vida
mais fácil.
- Ouvinte pensa que ganha de mim (surdo), porque ouve, mas eu sou inteligente também.
- Filho de pais surdos é bom, pois entende sinais.

Aqui retratam-se várias formas de referir às pessoas “ouvintes”, sempre em relação aos
surdos. As falas dos surdos grifadas acima são de pessoas que se identificam enquanto
surdos, ou seja, pessoas que experienciam o mundo visualmente independente de sons. A
experiência e o mundo auditivo está sendo relacionado às pessoas que não têm a
experiência visual surda chamadas, portanto, de “ouvintes”. Essas últimas não sabem a
língua de sinais, falam, falam e falam, não entendem os surdos, não os respeitam, pensam
diferentemente dos surdos e têm vantagens em relação aos surdos na sociedade brasileira.
Tais características retratam as relações estabelecidas entre os grupos sociais em que
ouvintes e surdos convivem. Os surdos, enquanto grupo que tem uma experiência
essencialmente visual e adquire uma língua visual-espacial, identificam-se como “surdos”.
Por outro lado, os ouvintes são identificados como aqueles que têm uma experiência
essencialmente oral-auditiva, embora possam ter outros tipos de experiências visuais. Dessa
forma, reproduz-se uma dicotomia característica na nossa sociedade moderna.
No entanto, vale considerar que tais “ouvintes” mencionados acima referem a diferentes
tipos de ouvintes. Antes de prosseguirmos discutindo sobre os diferentes “ouvintes”,
voltemos nossa atenção a uma outra expressão também comumente usada por surdos:

- Aquele rapaz é “falante” ou é “surdo”?

Notem que mais uma vez, a experiência oral-auditiva está sendo referida nas falas acima.
Nesse sentido, as palavras “ouvintes” e “falantes” estão sendo usadas ao referirem os filhos
ouvintes de pais surdos estendendo-se de modo geral às demais pessoas que têm essa
mesma experiência. Não obstante, observamos que tais palavras podem carregar muito
mais do que a experiência oral-auditiva. Nas falas anteriores, vimos que elas também
refletem desigualdades sociais e diferenças. Os surdos identificam tais ouvintes como
diferentes: eles que não entendem os surdos, eles que não sabem a língua de sinais, eles que
não compreendem os sentimentos dos surdos…
O grupo social surdo trata como diferente àqueles que desconhecem as experiências visuais
vivenciadas pelos surdos como parte de sua cultura e formação de identidade.
Há também uma diferenciação daqueles que, apesar de terem tido as experiências visuais da
comunidade surda, por exemplo, os filhos de pais surdos, tiveram acesso às experiências
auditivas-orais. Neste caso, como mencionado anteriormente, há todas as experiências
visuais, incluindo o domínio da língua de sinais, que fazem com que os filhos de pais
surdos façam parte da comunidade surda. Mas, ao mesmo tempo, há outras experiências, as
auditivas-orais, que fazem com que sejam de certa forma colocados a parte. Os surdos
também referem aos próprios filhos como “falantes”:

- Teu filho é “falante” ou é “surdo”?


- Meu filho é “falante”. Os dois filhos da Maria são “surdos”.

No entanto, normalmente os filhos de pais surdos não serão os “ouvintes” ou “falantes” das
falas anteriores significando um grupo que não compreende os surdos. Apesar disso, serão
considerados em vantagem em relação aos surdos, e, muitas vezes, em relação àqueles
ouvintes. Isso acontece por terem acesso às diferentes experiências vivenciadas tanto por
surdos como por ouvintes:

- Tu tiveste sorte de ter um filho ouvinte. Para mim será mais complicado, pois meus dois
filhos são surdos. Quem vai me ajudar?
- Filho ouvinte é bom, ajuda a gente, pois aprende a língua de sinais e consegue traduzir
para nós o que estão falando.

Existe também um olhar diferenciado àqueles “ouvintes” que aprenderam a língua de


sinais:

- Eu gosto de ir na agência do correio da Cristóvão, pois há um ouvinte lá que é bom.


Ele sabe sinais.
- O João é um ouvinte bom, pois está sempre junto com os surdos para aprender sinais.
Ele gosta dos surdos.

Tais falas caracterizam um tipo de ouvinte diferenciado dos mencionados nas falas
anteriores. São ouvintes que “gostam dos surdos”, pois aprenderam ou estão se esforçando
para aprender a língua de sinais. “Gostar dos surdos” parece estar relacionado com o
respeito a forma mais autêntica de manifestação cultural da comunidade surda, ou seja, à
língua de sinais. Tanto é verdade que os surdos referem aos profissionais que trabalham
com os surdos chamados por eles de “deficientes auditivos” como aqueles que “não gostam
dos surdos” ou “não aceitam os surdos”:

- Ela não gosta de surdos, pois não aceita a língua de sinais. Ela só aceita a fala, o oral.
- Ele não aceita os surdos, pois insiste em nos chamar de DA (deficiente auditivo).
Alguns surdos podem também referir outros “surdos” como “ouvintizados”:

- Ele (surdo) é oral, pensa como “ouvinte”. Sabe apenas poucos sinais.

Notem que mais uma vez, a questão está associada à língua de sinais – a língua visual que
manifesta as formas da cultura surda. Obviamente que o que está sendo considerado
ultrapassa a questão da língua, pois as experiências visuais refletem formas de ver o mundo.
Mas é interessante notar que a linguagem é algo extremamente significativo na
identificação e reconhecimento do ser, pois é através dela que muitas coisas são
determinadas e reproduzidas.
Skliar (1998:15) introduziu o termo 'ouvintismo' como:

… um conjunto de representações dos ouvintes a partir do qual o surdo


está obrigado a olhar-se e narrar-se como se fosse ouvinte. Nessa
perspectiva é que acontecem as percepções do ser deficiente, do não ser
ouvinte, percepções que legitimam as práticas terapêuticas.

Perlin (1998:58) o retoma como 'ouvintização' ao analisar as formas de alienação de


pessoas surdas através de estereótipos de surdos reproduzidos na sociedade.

“Os discursos ouvintistas são feitos de práticas discursivas marcadas por


estereótipos. (…) O discurso surdo inverte a ordem ouvintista, tem peso
da resistência. Rompe e contesta as práticas historicamente impostas
pelo ouvintismo. E o discurso surdo continua na busca de poder e
autonomia” (Perlin, 1998:58)

É neste sentir-se rejeitado em comunicação que nos faz sentir-nos mal em


família. Não há um sentir-se igual. É impossível ser feliz num clima
desses. É o exílio do silêncio a que estamos sujeitos. Sujeitos a sermos
devotados aos ouvintes e sem esperanças… Eu percebo, é claro que a
minha vida deve ser feita em outro grupo, com os surdos. Angústia é este
sentimento. É preciso reconquistar o espaço que nos tiraram. Na verdade
é uma perda angustiante. Nossa presença entre ouvintes não é legal. (R.,
surda de 30 anos)

Alguns surdos chegam a identificar outros surdos como ouvintizados através do sinal de
“falante” no ponto de articulação do sinal de pensar significando que tais surdos “pensam
como ouvintes”.
Os estereótipos de surdos são “ouvintizados”. Nesse sentido, vale mencionar algumas das
falas de pessoas “ouvintes” ao se dirigirem a um filho de pais surdos:

- Como tua mãe te cuidou quando tu nasceste? Como ela te ouvia chorar?
- Como tu aprendeste a falar?
- Como teus pais te educaram?
- Como tu cresceste?

O estereótipo de surdez está associado ao significado de deficiência, ou seja, incapacidade,


incompetência, falta, falha, insuficiência… 5 . Isso explica as perguntas acima. Como
pessoas surdas podem ser boas mães? Como podem ser pais? Como poderão ensinar um
filho a falar?…. se são incapazes de… Pacientemente, vários filhos de pais surdos tentam
explicar (com raro sucesso) que as pessoas surdas são capazes de fazer tudo isso com seus
acertos e erros como quaisquer outros pais, mas de forma diferente. Normalmente, outras
perguntas e comentários são feitos:

- Língua de sinais brasileira? Mas gestos não são universais?


- Tu és fruto de um milagre, pois apesar de tudo tu chegaste onde chegaste.
- Tua casa deve ser um SILÊNCIO…

Em relação ao último comentário “- Tua casa deve ser um SILÊNCIO…”, vale mencionar
uma passagem de Padden e Humphries ao falarem dos ruídos nas vidas das pessoas surdas:

5
Fonte: Aurélio Eletrônico V.1.4. 1994 verbetes “deficiência” e “insuficiência”.
“As vidas das pessoas surdas são longe de serem silenciosas, ao
contrário, são vidas cheias de barulhos, ou seja, cheias de estalos, de
zumbidos, de zunidos, de estouros, de rugidos e de gargalhadas”.
(Padden & Humphries, 1988:109)

Os estereótipos das pessoas surdas enquanto deficientes, mutilados, inferiores, incapazes,


sem linguagem… estão nas falas das pessoas, nos seus comentários, nas suas perguntas,
nos seus comportamentos, enfim, nas suas mentes.
Os filhos de pais surdos passam a perceber tais estereótipos quando começam a interagir
com os ouvintes. Eles sofrem e passam por crises de identidade, pois precisam entender as
diferenças existentes entre ser surdo e ser ouvinte, entre ser surdo do ponto de vista surdo e
do ponto de vista ouvinte com os seus estereótipos de surdez.
Os movimentos de resistência das comunidades surdas a tais estereótipos perpassam
experiências diferentes que são visuais. A língua, uma das formas mais expressivas das
culturas surdas, apresenta um papel fundamental nestas lutas. Conforme o comentário
acima, é considerada “gestos” pelas pessoas que desconhecem sua riqueza gramatical, além
de seu papel enquanto elemento fundamental para consolidação das identidades e culturas
surdas. As línguas de sinais, dentre elas, a língua de sinais brasileira, são naturais e
representam uma forma completa de comunicação das histórias surdas. Cada comunidade
surda tem sua própria língua de sinais com suas peculiaridades gramaticais. A língua de
sinais brasileira apresenta uma estrutura gramatical rica 6 e é usada pela comunidade surda
brasileira para expressar idéias, pensamentos, sonhos, arte e estórias.
Interessante que o estereótipo em relação à língua de sinais é de que seja uma linguagem
universal e, na verdade, de que deva ser universal. Várias vezes, apresentamos evidências
de que a língua de sinais realmente é uma língua natural e algumas pessoas ficaram
insatisfeitas insistindo na importância de ser universal. Este estereótipo aplica-se aos
'gestos' por questões históricas relacionando-os ao concreto em oposição ao abstrato
representado pela fala.
No caso dos filhos ouvintes de pais surdos, uma das coisas mais interessantes é o fato de
serem bilingües dominando tão bem a língua de sinais quanto a língua portuguesa. No

6
Ver Quadros (1999) para mais detalhes sobre a estrutura da língua de sinais brasileira.
entanto, este bilingüismo reflete muitos dos problemas de identidade que surgem. Aos
poucos, eles passam a se dar conta das diferenças sociais, políticas e culturais que cada
língua apresenta dentro da sociedade e precisam aprender a lidar com elas sem abandonar
suas raízes surdas, as que são excluídas.

Os comentários de muitos surdos sobre a possibilidade de usar a língua de sinais incluem as


seguintes expressões:

ALÍVIO POSSÍVEL PERFEITA


TRANQÜILIDADE COMPLETA SUAVE
FÁCIL EXPRESSIVA LEVE

Incluímos a tais expressões, a reflexão de Wriglee (1996), ao abordar a questão das línguas
de sinais:

“Gerações de surdos sinalizadores têm demonstrado a existência de uma


língua rica suficiente para ser expressa de diferentes formas, inclusive
através da poesia e de estórias. Os surdos criam sistemas de significados
para explicar como entender seu espaço no mundo. O que a cultura
surda tem feito é mostrar que uma necessidade humana básica para a
linguagem e para a simbolização são essenciais”
(Wrigley, 1996)

As expressões mencionadas, normalmente são utilizadas pelas pessoas surdas que têm que
aprender o português. Ao compararem uma língua com a outra, eles utilizam algumas
destas expressões. A língua de sinais é uma forma lingüística essencialmente visual, isto é,
sem referência sonora. Desta forma, é uma língua que consegue captar e expressar as
experiências visuais características das comunidades surdas.
As experiências visuais são as que perpassam a visão. O que é importante é ver, estabelecer
as relações de olhar (que começam na relação que os pais surdos estabelecem com os seus
bebês), usar a direção do olhar para marcar as relações gramaticais, ou seja, as relações
entre as partes que formam o discurso. O visual é o que importa. A experiência é visual
desde o ponto de vista físico (os encontros, as festas, as estórias, as casas, os
equipamentos…) até o ponto de vista mental (a língua, os sonhos, os pensamentos, as
idéias…). Como conseqüência é possível dizer que a cultura é visual. As produções
lingüísticas, artísticas, científicas e as relações sociais são visuais. O olhar se sobrepõe ao
som mesmo para aqueles que ouvem dentro de uma comunidade surda. Por exemplo,
CODA ao conversarem com surdos, ignoram comentários ou interrupções de outros através
da fala.
Os diferentes tipos de “ouvintes” têm diferentes níveis de compreensão destas experiências
visuais incluindo o respeito e/ou domínio da língua de sinais. Tais experiências tornam
possível a participação em menor ou maior grau na comunidade surda. Isso significa que as
experiências visuais são intrínsecas às identidades e culturas surdas. Assim sendo, as
pessoas que têm mais experiências visuais passam a ser mais aceitas pelos surdos.

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