Questao Didaticos: Discurso Da Cultura E A Da Identidade em Livros de Frances C O M O Lfngua Estrangeira
Questao Didaticos: Discurso Da Cultura E A Da Identidade em Livros de Frances C O M O Lfngua Estrangeira
Questao Didaticos: Discurso Da Cultura E A Da Identidade em Livros de Frances C O M O Lfngua Estrangeira
Ingrid Perucbi*
Maria José R. Faria Coracini
2.1 Tempo 1
Ver, a w e respeito, Maria José rodrigues F. Coracini, X Acelebn@o do outro", neste volume.
Virios si50 os momentos no livro em que se tem contato com
cidades (famosas) francesas, com as diferentes regioes da França, com ên-
fase especial numa espécie de pluralidade cultural, j i que cada regi5o
apresenta hibitos e historia proprios. Entretanto, tanto com relaçao às
cidades como com relaçao às regioes, discute-se basicamente quais sa0
as mais ensolatadas, as mais gastronômicas, quais sacras mais "culturais"
(no sentido de tipicas) e quais estao mais bem prepatadas para O século
que se inicia. Aqui tamhém, nenhum assunto mais problematizador,
wmo a imigrago ou a historiada wlonizaç50, é motivo de discuss50 sobre
as cidades apresentadas. É como se apenas O turismo interessasse...
Vale observa que O iivro n5o se restringe às honteiras geograficas
da França: ele abre suas comportas para O mundo, mas limita essa aber-
tura aos paises francofonos, onde se fala, portanto, a lingua francesa e
onde se encontram vestigios da cultura francesa corn suas variantes.
Entramos em contato, entao, com paises como, por exemplo, O Mat-
rocos e aTunisia. Tai atitude nos permititia deduzir que avis50 de lingua
e de cultura francesas que O livro diditico husca transmitir extrapola O
âmbito daquilo que "pertence" apenas ao territbrio francês, assumindo
codas as conseqüências que isso possa acarretar (sotaques, vatiaçoes lin-
güisticas, aspectos culturais etc.). Sena possivel interpretar, igualmente,
que avis50 de cultura do livro é aquela que crê que a cultura de um povo
n5o termina em sua fronteira, que h i virias culturas, vitias identidades
e identificaçoes, ou pelo menos, que a cultura proveniente de qualquer
pais se torna hibrida.
Observemos, entao, em algumas piginas do Tempo 1, como
é tratado O aspecto da pluralidade cultural e da francofonia que nele
despontam.
Nas primeiras piginas, visto que esse livro é concebido para
principiantes no estudo do francês, ha uma sensibilizaç50 para a lingua
francesa. Ta1 sensihilizaç50 é feita mostrando O contraste do francês
com outras Iinguas, através de alguns termos transcritos no livro, que
representam virios paises (francofonos, lusofonos, anglofonos etc.),
que, pot sua v a , poderiam evocar, em tese, aquele a que pertence O
aprendiz estrangeiro da lingua francesa.
Na pagina 9 do livro em analise, um ultimo exercicio de sensi-
bilizaçao é proposto. Pot meio de fotos de alguns paises, busca-se saber
se o aluno j i esti apto a reconhecer a Iingua francesa (em meio a tantas
outras Iinguas faladas no mundo), a França e alguns dos paises anterior-
mente citados, por meio do seguinte enunciado: "Na sua opiniao, em
que paises estas fotos foram tiradas?" (Ver, no Anexo 1, a reproduçao
dessa pigina.)
Ao observarmos as fotos desse exercicio, reconhecemos, sem
muita dificuldade, paises como o Marrocos ou aTunisia, a Inglaterra,
o Japao, a Grécia e a Italia, o que decorre mais do reconhecimento das
linguas nacionais desses paises, que se encontram expressas nas fotos,
além dos limites geograficos que wocam, do que, na verdade, por reco-
nhecimento de uma de suas paisagens mais caracteristicas e difundidas
internacionalmente (salvo no caso da França, que é representada pelo
café Les Deux Magots).
Essa busca pela representaçao de diversos paises e respectivas Iin-
p a s , ou esse espaço que é cedido a outros paises que nao sejam a França,
normalmente a unica naçao retratada pelos livros diditicos de FLE, nao
parece, no entanto, constituir uma abertura para outras culturas. Apesar
de se tratar de paises estrangeiros que nao têm o francês como Iingua
nacional e que sao, em grande parte, potências tao mundialmente repre-
sentativas quanto a França, ou paises que se supije estarem mais distantes
da realidade francesa, as fotos transmitem um sentiment0 de que a cul-
tura e a lingua francesas sao "internacionais", ou seja, que elas estao
"globalizadas", que a França é um pais (central) que exporta sua cultura,
seus hibitos, suas comidas e suas gandes industrias: é o efeito de sentido
provocado pelas fotos em que todos os paises estrangeiros aparecem
associados à cultura francesa, quer pela industria evocada e pela Iingua,
expressas por exemplo em outdoors da Peugeot na Grécia, quer somente
pela industria francesa, representada, por exemplo, pela venda de iogur-
tes franceses na Inglaterra.
A pluralidade cultural a que, aparentemente, o livro se propije
se faz presente, como vimos, no aspecto da francofonia, trazendo ou-
tros paises, sempre descritos de maneira superficial, como o Marrocos,
representado na pigina 96 (ver Anexo 2). Os aspectos tratados sa0 su-
perficiais e insuficientes, reduzindo o pais, sua diversidade, ao que ele
possui de "turistico". Embora O texto responsivel pela apresentaçao do
pais nao tenha sido produzido pelos autores do livro diditico, sabe-se
que ele foi extraido, nio da imprensa escrita (que se supoe produzir ma-
térias mais reais ou menos fantasticas), mas de um guia turistico: o mate-
rial é autêntico, é bem verdade, mas a fonte (publicitiria) denuncia
interesse econômico e, portanto, forte seleçao de informaçoes. Assim,
a imagem do Marrocos construida nia corresponde nem à realidade do
pais nem tampouco à imagem que os franceses fazem dele, se conside-
rarmos as reportagens divulgadas pela midia francesa que envolvem o
Marrocos e a França. O Marrocos é, pois, apresentado Sem problemas:
resume-se a fotos de lugares bonitos, florestas, iagos e a uma dada posi-
Ç ~ geogrifica
O no maPa-mundi. Na0 hi, nesse texto, nenhuma expli-
caçio do motivo pelo qual a comunicaçio em francês no Marrocos é
possivel, nenhuma explicaçio sobre o tipo de relaçio que existe entre esse
pais e a França.
Outros pdses tratados pelo livro sao explorados da mesma ma-
neira, ou seja, de forma redutora e pelo viés turistico (supostamente
neutro). Na unidade 4, intitulada "Meu pais", h i uma atividade pro-
posta com base em um mapa-mundi. Apoiando-se no mapa, o aluno
deve primeiramente aprender quais sioos paises, j i destacados no
mapa, onde se fala francês - como Iingua materna, lingua oficial ou
por razoes historicas - e, posteriormente, dizer quais os paises
onde se fala português, inglês, irabe e espanhol. N i o resta duvidas de
que o maior objetivo da atividade em questao é levar ao conhecimento
do aluno a existência de diversos paises onde se fala e se pode falar
francês e, portanto, a abrangência e conseqüente importância do
idioma. Entretanto, isso é feito em detrimento das diferenças, dos
conflitos historicos e culturais que explicam a Iingua oficial, herança
do periodo de colonizaçio, que, certarnente, nao foi e nio é conservada
rai e qual foi recebida (se é que é possivel saher como foi recebida...).
Quanto aos paises que nao têm o francês como Iingua materna nem
oficiai - como a Tunisia, a Argélia ou o Camboja -, estes sio sim-
plesmente apresentados como paises onde se fala francês "por raz6es
historicas". Resta saber quais seriam essas razoes historicas, como se
produziram e que conseqüências tiveram, dados que, obviamente,
nio interessam ao livro diditico, preocupado em motivar O aluno a
aprender francês, o que justifica o uso de recursos proprios do dis-
curso publicitirio.
Nesse mesmo capitulo, é proposta uma atividade escrita basea-
da em um texto sobre a francofonia que reproduzimos a seguir:
La francophonie
Pour lesvêtements: entre 100 et 400 F. Ils achètent surtout des chaus-
sures et des pulls. Lesjeans restent "Ie must": 91 % des jeunesportcnt
desjeans. [...] Les jeunes de moins de 25 ans reçoivent aussi beaucoup
de cadeaux. Leurs parents et amis leur offrent le plus souvent: un
walkman, un radiocassette, un blouson, parfois même une mobylette
ou une moto (p. 88).'
50 millions de consommateurs
Fm português: "Os jovens ganham pouco, mas consomem muito -Para as roupas: en-
- . .
tre 100 c 400 E Eles cornDram sobrerudo calcados e aeasalhoa. Os iranr Dcrmanecem 'O
muri: 91%dos jovens usamjtanr. [...] Os jovens de mcnos de 25 anos tecehem também
muitos presentes. Seus pais e amigos freqüentemente lhes aferecem: mm w a l h n n , um
radiocassete, um blus50, As v a e s até uma mobilcte ou uma moto".
essentiellement des hamburg~rs.Comme boisson, ilr boivent surtout du
coca, de i'orangine et du soda pour marquer leur différence avec le monde
des adultes. La bière et le café viennent en second (p. 89).'
"50 milhoes de consumidores - Os jovens com menos de 25 anos gastam por trimes-
tre: no restaurante, 330 F. Eles preferem as pizzas, depois os grelhados; 4% dentre eles
comem essencialmente hamhtirgueres. Como bebida, tamam principalmente coca-cola,
orangina e soda para marcar sua diferenga com o mundo dos adultos. A cerveja e o café
vêm em segundo lugar" [grifos nossos].
Este texto nasceu de uma certa inquietaçao a respeito da retra-
taçao dos aspectos culturais pelos livros diditicos de FLE, assim como
de uma inquietaçiio com O fenômeno atual da globalizaçao e a sua in-
cidência sobre O discurso diditico.
Observamos, por meio da analise dos livros Tmpo 1 e Libre échange
1, que os aspectos culturais abordados apontam para uma noçio de
cultura enquanto reuniao de tudo O que de melbor se produziu por uma
comunidade, nesse caso, a França. Assim, ressaltam-se nos livros as pro-
duç6es artisticas e técnicas francesas, vitorias e momentos historicos,
simplificados e isolados, que dao prova da "grande" organizaçao do pais.
A cultura ainda é entendida como folclorizaçiio (pela retrataçao
de comidas tipicas, esportes tipicos, costumes, historias particulares
etc.) e, portanto, como preexistente ao sujeito; como "cultura do co-
tidiano", de hibitos sociais dos franceses e como cultura "turistica" (das
belas paisagens, da retrataçao de um pais que se mostra perfeito).
Em meio a essas imagens, que estratificam a cultura, assumin-
do-a como conjunto, sen50 fixo, ao menos estivel, de valores, de com-
portamentos sociais (como se vestir, comer, cumprimentar etc.), en-
fim como se referindo a blocos de construçao e ao ciment0 que man-
tém os membros de um grupo, sociedade ou naçao, unidos (Schmitz,
1995, p. 8), encontramos indicios das conseqüências da globalizaçao
que j i se fazem sentir no dia-a-dia. O Tempo 1 é um material que se
mostra fortemente constituido pelo ideirio da globalizaçao e que pos-
sui uma abordagem de ensino que niio restringe a cultura da lingua
francesa ao territbrio francês, mas abre espaço para a representaçiio de
outros paises. Vimos, no entanto, que essa visiio "globalizante" ou essa
"abertura' para O mundo niio coloca, num mesmo patamar valorativo,
a França e os demais pdses de lingua francesa. A França sempre aparece
como O centro, um pressuposto para tudo O que envolve a lingua e
cultura francesas. Vimos igualmente que a imagem transmitida é a de
que a França influencia O mundo, enquanto é muito pouco influen-
ciada por ele, O que certamente nao condiz com a realidade, mas com
O desejo do povo francês de preservar sua propria cultura, de apagar