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Revista Discente Ofícios de Clio, Pelotas, vol.

5, n° 8 | janeiro - junho de 2020 | ISSN 2527-0524

Agripina e o diálogo com o poder: reflexões sobre gênero e sexualidade em/na Roma
Antiga

Caroline Coelho, UFRJ1

Resumo
Os estudos sobre questões de gênero e sexualidade no Império Romano têm crescido cada vez
mais no mundo acadêmico. No entanto, cabe ainda entender de que maneira essas
experiências do passado podem ser atribuídas aos conceitos e às situações metodologicamente
novas do presente, e o respectivo desafio do historiador em pensar na dialética dos tempos. O
objetivo deste artigo, portanto, é analisar o papel de Agripina como mulher politicamente
ativa na biografia de Nero, articulando com os conceitos de misoginia, virilidade,
homossexualidade, e, ao mesmo tempo, fazendo uso da própria obra de Suetônio como
instrumento de diálogo temporal.
Palavras-chaves: Gênero; Agripina; Misoginia; Sexualidade.

Abstract
The studies about the issues of gender and sexuality in The Roman Empire are growing every
day in the academic world. However, it remains difficult to not only understand how these old
experiences could be developed into new methodological situations and concepts, but also,
the challenge of the historians to think in those dialectical times. Therefore, this article seeks
to analyze Agrippina's role as a politically active woman in Nero’s biography, by articulating
the concepts of misogyny, virility, and homosexuality, all the while using the Suetonius’s
work as an instrument of dialogue.
Keywords: Gender; Agrippina; Misogyny; Sexuality.

Introdução
A Vida dos Doze Césares é uma obra biográfica escrita por Suetônio no século II d.C.,
que reúne a vida de doze Imperadores romanos e diferentes figuras de relevância da
Antiguidade. Nessa coletânea de biografias, o autor busca retratar diversos eventos que
contribuem para a formação da imagem histórica das personagens. Constituindo-se, assim,
como uma fonte documental muito interessante para a historiografia, não apenas para a
compreensão dos aspectos políticos e econômicos, mas também, e principalmente, para o
entendimento de diversas questões sociais presentes no decorrer do texto.
Em um primeiro momento, será analisada de que forma essa biografia está atrelada
também às perspectivas do presente do autor, que colocou na obra mecanismos de conversa
entre o passado relatado e o tempo em que ele se insere. Serão exploradas, além do gênero

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Graduanda em História na Universidade Federal do Rio de Janeiro e em Direito na Pontifícia Universidade
Católica desde 2016. E-mail: [email protected].

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biográfico, as relações e as semelhanças entre o Imperador Nero (54 – 68 d.C.) e Adriano


(117 – 138 d.C.), para entender como o presente pode configurar-se como instrumento
hermenêutico que comporta conexões com diferentes dimensões temporais que dialogam
entre si.
Logo após a estruturação da obra e suas possíveis abordagens teóricas com o diálogo
de múltiplas temporalidades, adentrar-se-á no estudo sobre a utilização dos termos misoginia
e homossexualidade no tempo passado, fazendo uma análise crítica às questões de gênero na
Antiguidade. A partir disso, será possível retratar como a relação entre o comportamento
feminino idealizado e os discursos de poder sobre a mulher articulam-se com conceitos que
atravessam diferentes realidades e se fazem presentes, tanto na narrativa quanto na tradição
romana que lhes deu origem.
Uma vez elencados no plano metodológico sobre a possibilidade de se falar em
misoginia, será realizada uma análise específica do caso de Agripina e sua proeminente
atuação política no governo de Nero. Desse modo, buscar-se-á compreender como Suetônio
retratou essa personagem, utilizando-se de alguns preceitos retóricos que orientam a
composição da narrativa.

Suetônio: considerações sobre o autor e sua obra


Gaius Suetonius Tranquillus (Caio Suetônio Tranquilo), nascido por volta de 68 e 71
d.C., compôs a obra A Vida dos Doze Césares durante o principado de Adriano. As principais
fontes de informação sobre a vida do biógrafo são uma inscrição existente na cidade de Hippo
Regius no norte da África; referências feitas em cartas trocadas com Plínio e alusões internas
à vida do biógrafo em Caesares e De viris illustribus (PRYZWANSKY, 2008, p. 3). Apesar
de ainda ser objeto de questionamentos entre os pesquisadores, considera-se Hippo Regius
seu local de nascimento, e, posteriormente teria partido para a cidade de Roma, onde teria
sido educado.
De família equestre, Suetônio obteve uma formação em Roma na área de retórica e de
gramática, e, ao longo dos anos, construiu grande envolvimento na cultura e na política de sua
época. Esse fato permitiu que Suetônio convivesse em diferentes círculos de amizade,
podendo, ao longo de sua vida, trocar correspondências com Plínio, o Jovem, culminando em
sua indicação para trabalhar na administração pública.

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Dentre as diversas tarefas assumidas por Suetônio, ele ocupou cargos como o de a
studiis (funcionário responsável por efetuar pesquisas para o imperador antes que ele
respondesse a pedidos; também escrevia discursos e dava conselhos referentes à oratória) e
bibliothecis (guardião da biblioteca imperial). Após a morte de Plínio, o Jovem, ocorrida em
113 d.C., e com o fim do governo de Trajano, em 117 d.C., a proximidade e o contato de
Suetônio com Caio Septício Claro (séc. II d.C.) rendeu a ele uma recomendação para o cargo
de ab epistulis, ou seja, um secretário imperial, que era responsável principalmente pelas
correspondências do imperador (TEIXEIRA, 2013, p. 17).
Durante a época na qual ocupava esses cargos, Suetônio teve a possibilidade de
acessar uma vasta documentação, permitindo que ele escrevesse, durante o período de 119 a
122 d.C.2, A Vida dos Doze Césares (De vita Caesarum). Essa é uma obra biográfica que
retrata um conjunto de acontecimentos do Império, os quais o autor buscou descrever
detalhadamente (SOBRAL, 2007, p. 9). Ao encarar/assumir a tarefa de falar sobre as vidas
dos Césares, Suetônio escolhe minuciosamente os fatos que deverão ser introduzidos na obra
e aqueles que deverão ser excluídos, imprimindo sua posição a respeito dos fatos narrados.
Nesse sentido, o biógrafo irá elaborar uma seleção de características e promover diversos
posicionamentos críticos aos fatos históricos narrados.
De modo diferente da biografia, a História sempre buscou descrever majoritariamente
assuntos políticos e militares, tratando-os na perspectiva cronológica (SUETÔNIO, 1992, p.
26). Em contrapartida, as biografias, enquanto formas literárias, ganharam grande prestígio no
período imperial, pois serviam ao propósito de contar a história dos Césares, descrevendo
diversos aspectos da vida desses personagens. Essas obras representavam, assim, um modelo
diferente de abordagem, podendo ou não seguir uma ordem cronológica, na qual a escolha de
suas informações transmite uma série de características e de vícios do César, guiando a
interpretação do leitor.
As anedotas utilizadas no decorrer do texto não são meras curiosidades, uma vez que a
escolha delas revela uma maneira de traçar a imagem de cada personagem, a forma como o
autor deseja transmitir. Sua utilização faz com o que o leitor tenha conhecimento de uma série
de características, realizações, obras públicas e principalmente as excentricidades de cada
César (TEIXEIRA, 2013, p. 17). Isso significa dizer que, com o intuito de construir uma

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Alguns autores, como J. Gascou propõem a data de publicação entre 123-127.

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imagem favorável (ou pejorativa) dos doze Césares à frente do Império Romano, Suetônio
procura acrescentar, sobretudo, aspectos da personalidade individual de cada um deles
(SUETÔNIO, 1992, p. 26).
Foram ao todo doze biografias, dividas em oito livros, sobre a trajetória de vida,
pública e privada, dos respectivos governantes: Caio Júlio César (c. 100 – 44 a.C.), Augusto
(63 a.C. – 14 d.C.), Tibério (42 a.C. – 37 d.C.), Calígula (12 – 41 d.C.), Cláudio (10 a.C. – 54
d.C.), Nero (37 – 68 d.C.), Galba (3 a.C. – 69 d.C.), Otão (32 – 69 d.C. ), Vitélio (15 – 69
d.C.), Vespasiano (9 – 79 d.C.), Tito (39 – 81 d.C.), Domiciano (51 – 96 d.C.).
Suetônio, na obra A Vida dos Doze Césares, descreve a família, o nascimento, a subida
ao trono, a atividade militar e legislativa, a educação literária, os costumes, a vida moral e a
morte. Concomitantemente a essas questões, o autor apresenta os aspectos favoráveis e
desfavoráveis de maneira cronologicamente criteriosa e intencional. Ao retratar os
comportamentos e seus vícios, Suetônio também contextualiza o ambiente político, social e
cultural de cada imperador. As escolhas se orientam de modo que todos os aspectos relatados
possam revelar para os leitores aqueles governantes que podem ser qualificados como
melhores ou piores (CIZEK, 1977, p. 154-155).
Nessa lógica, há uma gradação na disposição dos vícios e virtudes no texto, de forma
que, ao apresentar os imperadores que podem ser classificados de forma positiva, as virtudes
são descritas após os vícios, amenizando a opinião do leitor, ao fim da leitura. Entretanto, para
os governantes que não poderiam ser classificados de maneira positiva, as virtudes são
demonstradas no início, em contraposição a uma série de vícios que serão exacerbados no
decorrer da leitura, como é o caso de Nero.
Esses acontecimentos narrados tornam, então, importantes fontes históricas para uma
análise fundamentalmente crítica a respeito do caráter de cada personagem, avaliando
verdadeiramente suas boas e más atitudes. Sob esses aspectos, conclui-se que Suetônio
contribuiu fundamentalmente para o surgimento de uma forma diferenciada ao gênero
biográfico, cujo objetivo seria o de retratar o homem em todas as suas realizações, eliminando
as fronteiras entre o caráter e os feitos políticos dos Césares.
Muito embora se encontre diferenças básicas e estruturais entre a História e a obra de
caráter biográfico, composta por Suetônio, não se pode negar o fato de que ambas apresentam
um ponto em comum: o ímpeto de resgate e de construção de uma memória dos

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acontecimentos e das personagens do passado. Mas seria isso um fator de ponte e de conexão
entre os Césares do passado e o Imperador Adriano da época de Suetônio?
Ao constatar que as memórias são trabalhos de reconstituição de um passado cuja
própria inteligibilidade está diretamente atrelada a uma dinâmica do tempo presente, indaga-
se como Suetônio utiliza-se dessa rememoração, enquanto fundamento político, para justificar
e traçar paralelos com o seu tempo presente, durante o governo de Adriano. Nesse sentido, o
estudo da memória dos Césares na obra de Suetônio pode não apenas revelar aspectos
políticos e sociais da época, mas também consegue demonstrar como a memória deverá ser
lembrada.
Conforme leciona a escritora Nicole Loraux, em seu texto Elogio ao Anacronismo,
conviria prestar atenção que, no tempo cronológico da história, é fundamental conceder um
lugar aos fenômenos da repetição (LORAUX, 1992, p. 67). Porque ir ao passado com as
questões do presente é fazer conhecer também o presente e aceitar que este é um dos motores
que impulsionam para a compreensão daquilo que se tornou repetitivo. O anacronismo é,
assim, um mecanismo dialético, que supõe sempre uma conexão entre diversos tempos. Ele
indica a existência de diferentes dimensões temporais, que se relacionam e dialogam entre si.
Ao estabelecer conexões e semelhanças com o próprio presente do autor, em várias
ocasiões há a preocupação, por parte de Suetônio, em retratar a contraposição moralizadora
entre virtude e decadência moral. De modo que essa construção ideológica do texto permita
traçar um exercício de interpretação sobre cada uma das vidas ali presentes e às circunstâncias
políticas vividas após a ascensão de Adriano. A escrita da biografia de Nero, especificamente,
permite ao historiador rastrear inúmeras características do pensamento político do autor,
intensificando ainda mais as semelhanças com o próprio ambiente político da época em que
escrevia essa biografia - no governo de Adriano.
Com isso, Suetônio reserva a Nero um papel importantíssimo no entendimento do seu
estilo biográfico e de suas conexões com seu contexto temporal, pois ao mesclar diferentes
elementos positivos e negativos, exige-se do historiador uma sagacidade em buscar mapear os
pressupostos políticos por trás de tais avaliações. Nesse óbice, convém analisar, ainda que
brevemente, as características do governo de Adriano que permitem traçar certos paralelos
com os fatos narrados na então biografia de Nero.
Adriano, ou Publius Aelius Traianus Hadrianus Augustus, nasceu em Itálica (Bética),
hoje a denominada Espanha (GAIA, 2019, p. 193). Ele foi o terceiro imperador romano da

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Dinastia dos Antoninos, e governou entre os anos de 117 e 138, marcando o apogeu do
Império Romano. Agraciado pelos favores de Plotina (História Augusta, I, 4.1), mulher do
Imperador Trajano, foi adotado por seu tio que, consequentemente, o indicou como seu
sucessor. Durante sua vida antes de Imperador, construiu uma carreira política brilhante,
sendo pretor e cônsul suffectus em 104 e 108, respectivamente. Seguramente, ele poderia ser
considerado como o mais apto para ser o sucessor de Trajano (GAIA, 2019, p. 193).
Ao contrário de seus predecessores, Adriano não se preocupava em dar continuidade à
expansão do Império Romano, mas sim em manter todo o território já conquistado, bem como
a delimitação das fronteiras (GAIA, 2019, p. 194). O fim da política expansionista de Adriano
provocou grandes descontentamentos políticos, o que proporcionou uma conspiração no
Senado.
Adriano apresentava grande interesse por mulheres casadas e jovens livres (História
Augusta, I, 11.7). Além disso, apaixonou-se pelo jovem Antínoo, cujo relacionamento foi
duramente criticado na História Augusta, especialmente pela questão da virilidade. Foi
criticado porque, ao tomar conhecimento da morte de seu amor, ele “chorou-o como faria uma
mulher” (História Augusta, I, 14.5, tradução nossa).
Se, em geral, o sexo ocupa um lugar de destaque na Modernidade, na Antiguidade, as
relações homoeróticas não se apresentavam da mesma maneira. Para a sociedade romana,
poderia ser considerado perfeitamente normal uma relação entre um homem e um puer.
Entretanto, é a expressão acentuada de Adriano que se constitui como desvirilizante e
característica do sexo feminino (THUILLIER, 2013, p. 119-120). Nessas circunstâncias,
percebe-se que o excesso de algo era sempre uma questão para a masculinidade, uma vez que
se mostrava como um comportamento fundamentalmente contrário ao vir.
Outro fator que merece destaque é o papel de Plotina, mãe adotiva do Imperador,
personagem que exerce grande influência política e acredita-se que tenha desempenhado
papel decisivo na sua adoção e na sua ascensão ao trono, já que Trajano não teria escolhido
nenhum outro sucessor ao longo de sua vida.
Em contrapartida, Lucius Domitius Ahenobarbus (nome de nascimento de Nero), ou
Nero Claudius Cæsar Augustus Germanicus, nasceu em 15 de dezembro de 37 d.C. em Anzio,
na Itália, e imperou de 54 d.C. a 68 d.C. Foi o quinto representante da dinastia Júlio-
Claudiana (formada pelos imperadores, Augusto, Tibério, Calígula, Cláudio e Nero).

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À medida que Nero cria para si um modo de vida grandiloquente durante seu governo,
Suetônio dá uma imagem lúgubre das qualidades dos antepassados de Nero, e começa a
caracterizá-lo como um imperador muito distinto dos seus pares (GRIFFIN, 2001, p. 20-21),
elucidando cada vez mais o ímpeto extravagante do imperador, no trato com o dinheiro
público. Além disso, estabeleceu em seu governo o fim da política expansionista para
aumentar o território e chegou a pensar até na retirada do exército da Bretanha. Acabou
desistindo da decisão para não parecer que estava insultando a glória de seu pai (SUETÔNIO,
1992, p. 143).
Nessa obra biográfica, percebe-se que o próprio autor se envolve bastante com o texto,
detalhando diversos momentos que conferem à narrativa inúmeros questionamentos a respeito
de sua proporcionalidade. De acordo com o padrão narrativo adotado, Suetônio divide a
biografia essencialmente em duas partes. A primeira engloba as características de seu governo
consideradas como positivas, e a segunda parte enfatiza os traços negativos do imperador,
sobrepondo maliciosamente tais características em detrimento aos elogios previamente
apontados. Alguns desses fatos, por exemplo, não seguem uma regra cronológica correta, mas
é a escolha de uma apresentação desordenada que explicita seu objetivo de contrapor as
virtudes e os terríveis vícios, oscilando entre o passado e o presente.
Nero, assim como Adriano, interessava-se pela filosofia e pela poesia grega.
Entretanto, sua mãe, convencida de que tal ciência não era para um Imperador, buscou desviá-
lo do interesse:
Durante su niñez abordó de la filosofía, advirtiéndole que era perniciosa para
una persona destinada a ser emperador […] Así pues, sintiendo una especial
inclinación hacia la poesía, compuso versos por placer y sin esfuerzo, y no
publico bajo su nombre los otros, como algunos piensan. […] Sintió también
una gran afición por la pintura y la escultura.3 (SUET, vit. Ner., 52)

Não obstante, Nero também mantinha relações sexuais com mulheres casadas e
homens livres (SUETÔNIO, 1992, p. 153). Esse fato é notadamente vexatório, já que um
homem viril poderia certamente manter relações com mulheres e com homens, estrangeiros
ou prostitutas, mas desde que pertencessem a um estrato social inferior. Entretanto, ter

3
Tradução: “Durante a infância, ele se interessava por filosofia, mas foi advertido de que era algo pernicioso
para uma pessoa destinada a ser imperador [...] Então, sentindo uma inclinação especial pela poesia, compôs
versos por prazer e sem esforço, e não publicou os outros em seu nome, como alguns pensam. [...] Ele também
gostava muito de pintura e escultura” (Suet., vit. Ner., (52), tadução nossa).

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relações eróticas com homens livres e com mulheres casadas feria a noção de virilidade de si
próprio e, também, do outro indivíduo masculino (VOUT, 2007, p. 18).
Outro vício apontado na narrativa é a relação de Nero com sua mãe Agripina. De
acordo com o autor, o Imperador se via monitorado pela mãe, pois ela exercia controle
político sobre seu governo (SUETÔNIO, 1992, p. 160). Agripina, como demonstra a
narrativa, reformulou os papéis políticos outorgados às mulheres, apresentando-se como uma
constante influência e dotada de grande poder de intervenção. Em razão disso, conforme
afirma Suetônio, Nero, extremamente irritado, não enxergou outra saída a não ser a morte da
mãe.
Essas e outras questões moralizantes encontram-se reunidas na obra de Suetônio,
atendendo para a dinâmica político-social da época na qual o biógrafo escrevia. Pode-se
perceber, assim, que de uma forma bem engenhosa, e atingindo plenamente o objetivo de
narrar alguns fatos controversos, o autor procurou mostrar nesses relatos exatamente seu
ponto de vista sobre como deveria ser retratada a imagem do Imperador.
Nessa lógica, a escrita biográfica de Suetônio busca preservar a inteligibilidade com o
seu próprio presente, procurando despertar nos homens do seu tempo um sentimento de
reflexão introspectiva em relação ao passado. A memória, e sua perspectiva com o passado,
tornou-se uma maneira metodológica de analisar criticamente a obra de Suetônio. Procura-se,
assim, não apenas justificar a seletividade dos vícios e das virtudes, mas também entender os
fundamentos políticos e sociais que embasavam as classificações atribuídas ao Imperador
Nero (e a outros Imperadores), anos depois de seu governo.
Ao constatar que as biografias são trabalhos seletivos de reconstituição de um passado,
demonstrando diferentes motivações políticas, conclui-se que A Vida dos Doze Césares,
mesmo sendo utilizada como fonte histórica, ressaltam o papel do historiador em analisá-la
em conjunto com o contexto, com vistas a assegurar que haja inteligibilidade, determinando
suas próprias limitações. Conforme observado neste estudo, a obra de Suetônio é cercada de
posicionamentos e de comentários em toda a construção narrativa, a respeito do que se achava
certo ou errado. O ímpeto do autor em traçar o caráter de alguém, conforme seu próprio
universo moral, criou a necessidade de refletir na (im)possibilidade dessas ponderações serem
consideradas representações de um quadro inteiro (BARRET, 1996, p. 15). Nessa perspectiva,
seja em relação ao recorte cronológico, ao modelo narrativo ou à representação

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fidedigna/infiel do passado, a leitura da obra, como um parecer biográfico, deve ser entendida
em conjunto com seu contexto histórico e as repetições do presente.

Os historiadores e o tempo: uma abordagem sobre gênero e sexualidade


O grande desafio enfrentado pelos historiadores que buscam tratar sobre gênero e
sexualidade na Roma Antiga é como lidar metodologicamente com as questões de seu
presente nas diversas experiências do passado. Ou seja, de que maneira interpretar um
acontecimento histórico, à luz de uma perspectiva conceitualmente nova, mas sem deixar de
considerar cada prática dentro de suas próprias limitações.
Pensar a dialética dos tempos, enquanto historiador, é pensar o tempo não somente
como forma ou instrumento para o trabalho historiográfico, mas também, em certa medida,
como um aliado para aquele que produz o conhecimento histórico. A anacronia, enquanto
metodologia, pode assumir a convivência e a articulação dos diferentes ritmos históricos, ao
admitir dentro de si mesma uma semelhança de atos entre o presente e o passado. É nessa
equidistância entre os riscos do anacronismo e os benefícios da aplicação de conceitos atuais,
que o historiador pode extrair a maior riqueza do seu ofício.
Entretanto, vale ressaltar que essa relação dialética entre presente e passado é uma
tarefa que exige muita cautela, pois cabe ao historiador, com base nos referenciais adotados
pela cultura em análise, delimitar até onde esses conceitos podem ser apresentados para
determinar certa experiência. Obviamente que os diversos processos históricos não se ajustam
uns aos outros como se fossem peças bem encaixadas, mas de fato podem apresentar
semelhanças entre si, permitindo dialogar com as experiências e com os conceitos,
respeitando as limitações.
À guisa dessa emblemática situação, e levando em conta o caráter delicado da
aplicabilidade de conceitos atuais, surge a problemática de se falar ou não em misoginia e
homossexualidade em Roma Antiga. Por um lado, parece justo e plausível utilizar-se dessas
novas denominações para considerar fatos que existiam de maneira diferenciada na sua
própria temporalidade. Para alguns autores, como Michel Foucault, falar em
homossexualidade, enquanto categoria para Antiguidade, constitui-se como uma maneira
incorreta de relatar as relações homoeróticas (FOUCAULT, 1998, p. 53). Posto que, o termo
homossexual foi cunhado somente no final do século XIX. Conforme aponta o autor, não
caberia a utilização de um conceito atual nessas práticas antigas, já que os romanos não

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concebiam a ideia de orientação sexual como um identificador social, do mesmo modo que,
atualmente, as sociedades ocidentais enxergam.
Consciente do problema do anacronismo historiográfico e da dialética de conceitos,
Reinhart Koselleck, em sua obra Futuro Passado, demonstra como essa questão encontra
êxito no uso de conceitos polissêmicos, atribuídos à possibilidade de definir diferentes
fenômenos e contextos. Koselleck (1992) aponta que a pretensão de aproximar a linguagem
da história reconhece o relativismo da linguagem não como um problema, mas como um dos
aspectos capazes de enriquecer a análise de diferentes práticas, que se reproduzem ao longo
do tempo, acumulando referências passadas e expectativas futuras.
A História, portanto, nesse ponto de vista, deve ser construída e interpretada por meio
do estudo contextualizado da linguagem. Nessa batalha semântica, deve-se entender e
interpretar a polissemia que as palavras e os conceitos compartilham, como instrumentos que
possam ser utilizados para dar sentido a diferentes percepções de realidade (JASMIN, 2005).
Falar em misoginia, ou até mesmo em homossexualidade em Roma Antiga é,
sobretudo, utilizar termos que buscam analisar como essas experiências históricas constituem-
se no seu respectivo contexto, atribuindo a cada uma delas suas especificidades. Conceituar a
misoginia como prática é manifestar a experiência temporal e dotá-la de inteligibilidade no
tempo presente. Assim, consiste em servir-se dos aspectos que vão da percepção do tempo
histórico até às possibilidades de utilizá-lo como aliado para produzir e para mobilizar novos
tipos de interpretações das fontes históricas.
Todo conceito articula-se com certo contexto sobre o qual também pode atuar,
tornando-o compreensível. Por isso, o termo misoginia pode ganhar nova conotação, passando
a designar as práticas do mundo antigo nas quais a noção do ser feminino construía-se de
maneira diferente da concepção atual. As palavras mulher e misoginia podem permanecer as
mesmas, no entanto, o conteúdo por elas designado pode apresentar diversas alterações.
Para Simone de Beauvoir, em sua obra intitulada O Segundo Sexo, o “ser mulher” e as
respectivas implicações que são comumente associadas a essa figura, derivam-se de uma
construção social e histórica, que configura o feminino com base na alteridade, não sendo,
portanto, atribuições ou características inatas e “naturais” do sexo feminino. Por isso, sempre
se refere ao sexo feminino não como um mero e simples fato biológico, mas como “gênero
vivido” culturalmente. Beauvoir (1980, p. 23) entende que a mulher assumiu socialmente, ao
longo dos anos, o lugar do outro; da alteridade negativa; da “falta de”.

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Exatamente por se apresentar como uma identidade socialmente construída,


necessariamente, está determinada e influenciada por seu próprio tempo histórico. Nessas
condições, não se pode esperar que o significado do “ser mulher” seja literalmente o mesmo
na Antiguidade e na atualidade (SILVA, 2016, p. 58). Essas categorias de gênero formam-se a
partir de contínuas variações ao longo do tempo e do espaço, permitindo cada temporalidade
vivenciar sua própria especificidade do termo.
Nesse sentido, buscando entender melhor a questão da misoginia enquanto prática ante
Agripina na obra, faz-se necessário, primeiramente, apontar também como a virilidade e a
homossexualidade estavam entrelaçados com a noção da mulher na Roma Antiga:
Concebida como uma categoria relacional a masculinidade está diretamente
relacionada (por analogia e/ou oposição) a formas sociais assimétricas,
hierárquicas e desiguais, já que usualmente é colocada como fiadora da
condição social, jurídica e sexual, tanto da mulher, quanto daqueles homens
que não se enquadram no padrão de virilidade vigente, as chamadas
masculinidades hegemônicas (SILVA, 2016. p. 78).

Projetada como uma categoria analogicamente contrária ao feminino, a noção de


virilidade possibilita compreender não apenas as relações de poder entre homens e mulheres,
mas também as relações entre os próprios homens. As relações homossexuais, por exemplo,
eram consideradas perfeitamente normais entre um cidadão livre e um puer, ou indivíduos de
estrato socialmente inferior (estrangeiros ou escravos). Todavia, o homoerotismo com homens
livres, e principalmente de forma passiva, feria a noção de virilidade.
As relações entre gênero e sexualidade reproduzem e estão incorporadas nas estruturas
de poder, religião, literatura e de inúmeros outros aspectos da Antiguidade. Existia uma
preocupação social e política de construir nos cidadãos romanos uma masculinidade, como
instrumento de legitimação e representação das posições de poder. Para alguns autores, a
masculinidade e o vir constituíam-se também como status social (WALTERS, 1997).
A aversão ao feminino e ao afeminar-se está consubstanciada nesse ideal de virilidade,
apresentando-se como um conceito complementar oposto, de caráter relacional. O Outro é
sempre o lugar no qual se pretende fixar a mulher, contribuindo de maneira decisiva para sua
marginalização e exclusão dos lugares masculinos:
A virilidade, como se vê, é uma noção eminentemente relacional, construída
diante dos outros homens, para os outros homens e contra a feminilidade,
por uma espécie de medo do feminino, e construída, primeiramente, dentro
de si mesmo (BOURDIEU, 1999, p. 67).

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Ter nascido mulher implica, desde o momento do nascimento, um conjunto de


prescrições que limitam e recortam sua possibilidade de constituir-se como sujeito
pleno. Margarita Díaz-Andreu, em seu artigo Gênero y Antiguedad: propuestas desde la
tradición angloamericana comenta que as fronteiras entre os gêneros, para os antigos, eram
nitidamente percebidas, por isso as críticas proferidas àqueles e àquelas que “transgrediam
regras” (DÍAZ-ANDREU, 2005, p. 42).
Portanto, exatamente por constituir-se mediante o contraste com o ser feminino, essa
concepção de masculinidade possibilita ao historiador sua utilização como ferramenta teórica
para se entender as estruturas de gênero no contexto da Roma Antiga. Concebida de maneira
antagônica social e politicamente, cabia à mulher romana demonstrar passividade e fraqueza.
Àquelas que divergissem dessas características seriam duramente criticadas pelos escritores
da época, como faz Suetônio em sua obra.

Agripina ante os limites estabelecidos pela masculinidade


Julia Agripina Minor, também conhecida como Agripina Menor, filha de Germânico e
Agripina Maior, nasceu em 6 de novembro de 15 d.C. Casou-se três vezes e teve seu primeiro
casamento aos 13 anos de idade, com um homem rico chamado Gnaeus Domitius
Ahenobarbus. Ele era seu primo de segundo grau (BURNS, 2007).
De acordo com Jaspers Burns, Tibério teria arranjado o casamento de Agripina e Cneu
Domício Enobarbo para que fosse um evento comemorado publicamente em Roma. Todavia,
apesar de ter sido homenageado como cônsul, não demorou muito para que sua fama de um
homem cruel e desonesto se espalhasse por Roma (BURNS, 2007). Agripina e Enobarbo
estavam casados há quase dez anos quando nasceu seu primeiro e único filho, em 15 de
dezembro de 37 d.C., meses após a adesão de seu irmão, Calígula, que se tornou imperador
com a morte de Tibério, em 16 de março de 37 d.C. Essa criança chamou-se Lucius Domitius
Ahenobarbus em homenagem ao recém-falecido pai de Domício, e se tornaria o futuro
Imperador Nero, único filho de Agripina.
Para Suetônio, exatamente pelo temperamento depravado e inconsequente que Nero
foi demonstrando enquanto crescia, não teria capacidade para chegar ao trono sem as
maquinações de sua mãe. Conforme aponta ainda na biografia de Cláudio, Agripina teria
manipulado e matado o Imperador para que ele adotasse seu filho e o nomeasse como seu
sucessor (SUETÔNIO, 1992,).

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Em uma passagem da obra, torna-se claro como a escolha das palavras forçam o leitor
a construir uma interpretação depreciativa, caracterizando Agripina como uma mulher
ardilosa e manipuladora, capaz de fazer de tudo para garantir sua permanência próxima às
figuras de poder. Sua ambição política incontrolável teria sido fator determinante para sua
morte no final da narrativa de Nero (BURNS, 2007). A imagem feminina é caracterizada de
maneira odiosa em um discurso misógino que coloca Agripina, na maior parte das vezes,
como vilã.
No decorrer da biografia neroniana, Suetônio afirma que o prestígio e a influência de
sua mãe eram tão grandes ao ponto de fazer com que Nero ascendesse e se destacasse de uma
forma tão grandiosa, que Messalina, mulher de Cláudio, teria enviado funcionários para matá-
lo, pois passou a considerá-lo como um rival. A menção desse episódio torna ainda mais
evidente a intenção do autor em retratar a proeminência de Agripina na política, demostrando
sua capacidade em tornar Nero um Imperador querido pelo povo:
El prestigio y la influencia de su madre, a la que se había levantado el
destierro y rehabilitado, le encumbraron hasta tal punto que, según un rumor
general, Mesalina, esposa de Claudio, envió a unos agentes para que lo
estrangularan mientras dormía la siesta, viendo em él a un rival de
Británico.4 (Suet., vit. Ner., 6.4)

O retrato literário da mulher na cultura romana era sempre apresentado uniformemente


de maneira hostil (GINSBURG, 2006,), pois era vista como uma ameaça às estruturas de
poder previamente estabelecidas, cujo objetivo era garantir ao corpo feminino um lugar
restrito de passividade. Por isso, a obra A vida dos Dozes Césares não foge do seu próprio
contexto, ao demonstrar a figura feminina como perigosa e manipuladora ao cobiçar o poder.
Nos primeiros meses de reinado de Nero, o Imperador conferiu a Agripina o controle
de todos os assuntos, tanto públicos quanto privados (SUETÔNIO, 1992). Consubstanciada a
essa passagem há uma crítica implícita ao governo de Nero, pois, para a sociedade antiga, a
intervenção feminina na política era considerada uma atitude contra sua natureza, sendo vista
como vexatória a submissão do homem em assuntos políticos do Império. As mulheres no
sistema romano não deveriam alcançar ou exercer esse poder.

4
“O prestígio e a inflência de sua mãe, após ser retirada do banimento e restabelecida, fizeram ele se destacar a
tal ponto, de se tornar público que Messalina, esposa de Cláudio, havia enviado emissários para estrangulá-lo
enquanto tirava uma soneca de meio-dia, pois oconsiderava um rival de Britânico” (Suet., vit. Ner., (6.4),
tradução nossa).

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Notadamente, a ideia de usurpação de símbolos do poder político masculino pelas


mulheres revela-se como importante fator para compreender a personagem Agripina na Vida
dos Doze Césares. A retórica, nesse momento, é utilizada por Suetônio para reproduzir um
estereótipo de transgressão feminina, entendida como um comportamento inverso e
contranatural de seu próprio gênero. Essa postura induz o leitor a acreditar nas ações
impróprias de Agripina durante o governo de seu filho, apresentando, ao mesmo tempo,
características de uma mulher excessivamente controladora e viril. Esse estereótipo,
apresentado de maneira negativa, é também utilizado para demonstrar pejorativamente como
deveriam ser enxergadas as mulheres que ambicionavam o poder no mesmo nível dos
homens, buscando apropriar-se de uma autoridade que naturalmente não possuíam
(AZEVEDO, 2012).
Associada, mormente, à distorção desses lugares simbólicos conferidos ao gênero
feminino, a narrativa biográfica em estudo corrobora para a construção de uma imagem de
Agripina que apaga seus bons feitos no governo de Nero e ressalta as distorções de seu
caráter. Esse posicionamento acaba excluindo quase por completo as mulheres enquanto
personagens e produtoras de História.
Suetônio fala das mulheres relacionando-as com categorias, tais como esposas, mães,
filhas ou até mesmo amantes, transformando seu papel em secundário e subordinado ao do
masculino. É silente a narrativa, por exemplo, das políticas financeiras sábias e pela
administração eficaz que prevaleceu na parte final do reinado de Cláudio e na primeira parte
do reinado de Nero (GINSBURG, 2006).
Não é, portanto, de se estranhar o predomínio de um discurso que impõe um modelo
masculino, já que foi pensado através dos ideais de masculinidade e teve os homens como
protagonistas. Face a tal modelo, aparece Agripina como desviante, como diferente, como o
Outro. São dicotomias que envolvem uma hierarquia valorativa, pois há nesses elementos do
binômio, discursos que determinam o dever ser da mulher e do homem romano.
O acesso das mulheres de elite ao poder era considerado, tanto para os habitantes de
Roma, quanto para o autor da biografia, como uma ameaça à ordem e à instabilidade pública.
No exemplo de Nero, essas questões são retratadas especialmente para enfatizar as falhas no
caráter viril e na inaptidão política do Imperador, sendo ele incapaz de governar sozinho
(AZEVEDO, 2012).

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Além de controlar os assuntos públicos, Suetônio relata que Agripina também


controlava seu próprio filho, travando uma espécie de disputa entre os dois para ver quem
governava mais. A aparente invasão de Agripina na esfera política evoca não apenas o
comportamento de uma mãe imperiosa, mas também de uma figura masculina (GINSBURG,
2006). Novamente, a relação entre a interdição socialmente imposta versus o papel ativo de
Agripina contribui para a construção pejorativa de sua imagem, como uma mulher fascinada
pelo poder.
Agripina é sempre representada como uma ameaça, à medida que demonstra suas
qualidades políticas potenciais. Por isso, a narrativa desenvolve-se de maneira a relatar como
a atuação política leva a seu fim. Suetônio detalha toda a história do seu declínio, passando
primeiramente pelo ressentimento inicial de Nero, oriundo de sua proeminente atividade
política, até propriamente o assassinato de sua mãe.
Com isso, tem-se, na obra, o relato de Agripina como uma mulher perigosa, tornando
seu assassinato extremamente necessário. É passada a ideia de que somente através de sua
morte Nero poderia se ver politicamente livre de sua mãe. A personagem representa um
elemento importante na elaboração da crítica a Nero, pois é com esse estereótipo retórico, da
mulher ambiciosa que usurpa o poder masculino, que Suetônio se utiliza para alçar a figura de
Nero como um mau Imperador:
No podía soportar a su madre, que examinaba y corregía con mucha dureza
sus actos y sus palabras, pero al principio se limitó a echar continuamente
sobre ella el peso del odio popular, fingiendo que se hallaba dispuesto a
abdicar y a retirarse a Rodas; luego, la despojó de todo honor y poder, le
retiró su guardia de soldados y de germanos, y la expulsó de su trato e
incluso del Palacio; […] No obstante, aterrorizado por sus amenazas y por su
violencia, determinó acabar con ella , intentó envenenar la tres veces, pero,
al darse cuenta de que se había prevenido contra ello tomando antídotos,
hizo disponer los artesonados de su techo de forma que, al accionar un
mecanismo, cayeran por la noche sobre ella mientras dormía. 5 (Suet., vit.
Ner., 34)

5
Tradução: Ele não suportava sua mãe, que examinava e corrigia suas ações e palavras com muita dureza, mas a
princípio ele se limitou a jogar continuamente sobre ela o peso do ódio popular, fingindo que estava pronto para
abdicar a se retirar para Rodas; depois,tirou-lhe toda a honra e poder, retirou a guarda de soldados e alemães e a
expulsou de seu tratamento e até do palácio; [...] No entanto, aterrorizado pelas ameaças e violência da mãe, ele
decidiu acabar com a vida dela, tentando envenená-la três vezes. Ao perceber que ela havia sido avisada e tinha
conseguido tomar antídotos, Nero colocou caixotes sobre seu teto, os quais, ao serem ativados por um
mecanismo, cairiam sobre ela à noite, enquanto dormia (Suet., vit. Ner., (34), tradução nossa).

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Durante essa parte da biografia, Nero realiza diversas tentativas para acabar com a
vida da mãe: três envenenamentos, construção de um artifício que deveria permitir que o teto
caísse enquanto ela dormia e, por fim, uma tentativa de afogamento. Todavia, é
principalmente nessa última tentativa, que o foco concentra-se bastante no seu psicológico, ao
aguardar com ansiedade as notícias positivas de seu plano. É em consequência desse
desespero para se livrar da mãe, que Agripina, nem mesmo após morrer, deixa de ser um
problema na vida de Nero, pois mesmo no pós-morte, o autor relata que ela ainda o perseguia
(SUETÔNIO, 1992).
A misoginia na obra constitui-se exatamente pela ideia de um excessivo poder
feminino, que se transformou em uma ameaça à manutenção da ordem no Império. Definindo
o destino da mulher, o homem coloca-se como autoridade, e suas ações passam a cercear
aquilo que se busca dominar. As relações entre os gêneros, baseadas nesse controle e nessa
dominação, são causas evidentes da violência e da discriminação contra o feminino. O fato de
Agripina comportar-se como mulher distante do papel estruturalmente pré-delimitado causou,
nesse caso, o feminicídio. É o ódio que se expressa quando a mulher exerce autonomia ou
quando ascende a posições de autoridade e de poder tradicionalmente ocupados por homens.

Conclusão
Este artigo teve como objetivo investigar acerca de um significado mais amplo e
profundo das construções e abordagens da personagem Agripina na biografia de Nero, na obra
de Suetônio. Buscou-se representar Agripina distante dos estereótipos de mulher controladora
e manipuladora, mas como uma personagem consciente do funcionamento e das manobras
políticas do Império. Faz-se necessário reconhecer as formas de poder que permeavam as
relações de gênero, de um modo geral, e a constituição social da masculinidade,
características que devem ser associadas à análise no contexto da sociedade Antiga.
A proposta colocada no início desta pesquisa foi a de demonstrar como as personagens
femininas, ao serem reproduzidas em um sistema misógino, sofriam, além das diversas
distorções sobre seu caráter, também o silenciamento de seus feitos políticos. A escolha das
palavras é utilizada por Suetônio para transmitir a ideia de transgressão do papel socialmente
construído para a mulher, uma espécie de comportamento inverso e contra a natureza de seu
próprio gênero.

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As mulheres, na Antiguidade, e ainda hoje, são concebidas a partir de uma alteridade.


Ser o Outro não é uma condição determinada pela natureza, mas é uma delimitação cultural e
social que transforma a experiência da mulher. Sua definição se dá, portanto, em oposição ao
masculino e seus papéis serão também determinados por meio desse binômio.
É diante da observância dessas formas que se pensou em analisar a obra biográfica de
Suetônio como uma fonte histórica, mas dotando-a de certos limites. A consciência sobre a
escassez de documentos que tratam especificamente da mulher na Roma Antiga, levou a
questionar até que ponto essas características atribuídas à Agripina podem ser consideradas
unicamente como verdadeiras e representativas de uma realidade:
The study of the ancient past presents its own special problems for the
historian. […] Biography is only one tool alongside others, with its own
peculiar set of limitations and strengths. What cannot be contested is that
intelligent readers, who have no axe to grind and no turf to protect, continue
to use biography as a valid means of enhancing their understanding of the
past.6 (BARRET, 1996, p. 15)

Quando se conhece um pouco das histórias dessas mulheres, por meio das escassas
fontes históricas, percebe-se que ainda existem muitas lacunas, faltam informações,
especialmente sobre sua rotina diária. Falar da mulher na antiguidade nos leva a penetrar em
um mundo em que silêncios e construções simbólicas constituem o cotidiano da História. Por
isso, ao identificar essas formas de dominação, deve-se perceber o gênero com referência à
localidade e à especificidade de cada discurso, desconstruindo e reformulando verdades
consideradas universais.
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Credos, Madrid, 1992.
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Vero, Av ídio Cássio e Cómodo. Trad.: TEIXEIRA, C. A; BRANDÃO, J. L; RODRIGUES,
N. S. Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, Coimbra, 2011.
Referências Bibliográficas

6
Tradução: O estudo da antiguidade apresenta seus próprios problemas especiais para o historiador. [...] A
biografia é apenas uma ferramenta, ao lado de muitas outras, com suas próprias peculiaridades, seu conjunto de
limitações e pontos fortes. O que não pode ser contestado é que, para os leitores inteligentes, aqueles que não
possuem um olhar estritamente ideológico para se fixar, ou um interesse pessoal para proteger, continuem
usando a biografia como um meio válido para aprimorar sua compreensão sobre o passado (BARRET, 1996, p.
15, tradução nossa).

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