F.Pessoa Cancioneiro
F.Pessoa Cancioneiro
F.Pessoa Cancioneiro
C/)
·L U
·0
c..
<:(.
A citação em epígrafe deve alertar-nos desde já para esta Pessoa, O Desconhecido de Si Mesmo - e diz respeito ao
coisa curiosa: tão longe levou Pessoa o seu "fingimento" que Pessoa do Cancioneiro :
pôs os heterónimos a falar uns dos outros - de todos, terá
sido porventura Campos o que melhor o conheceu, ao ponto "O Cancioneiro: mundo de poucos seres e muitas som
de, para grande arrelia de Ophélia Queiroz, se ter intrometido bras. Falta a mulher, o Sol central. Sem mulher, o universo
por diversas vezes no seu namoro com o Fernando ... sensível desvanece-se, não há nem terra firme nem água nem
E, porque assim é, vamos considerar que o Pessoa ele incarnação do impalpável. Faltam os prazeres terríveis. Falta a
-mesmo ou ortónimo é também elo de uma constelação de paixão, esse amor que é desejo de um ser único, qualquer
poetas que de comum têm, por exemplo, a enorme admira que seja. Há um vago sentimento de fraternidade com a
ção pelo "mestre" de todos eles, Alberto Caeiro . Assim sendo, Natureza: árvores, nuvens, pedras, tudo suspenso num vazio
se os chamados heterónimos são "outros nomes/personalida temporal. Irrealidade das coisas, reflexo da nossa irrealidade.
des/máscaras"(1) de Fernando Pessoa, também este é más Há negação, cansaço e desconsolo. (...)"
cara, heterónimo dos outros - do "mestre" Caeiro, de
Campos, de Reis, etc. Os dois textos que acabo de transcrever apontam para um
Sobre a poesia do Cancioneiro, assinada pelo seu autor, Fernando Pessoa - sombra, ausência, sol idão, desamparo,
Fernando Pessoa, passo a transcrever duas citações . A pri desconsolo. Apontam também para algumas dessa ausên
meira, de Isabel Pascoal, na sua edição de Poemas de F. cias, sobretudo o texto de Octavio Paz: a da mulher, a dos
Pessoa (colecção Textos Literários, Ed. Comunicação): prazeres, a da paixão.
"Privado do mundo, ausente de si, Fernando Pessoa O que dizem os dois autores é basicamente verdade. No
revela-se - quando percorremos os dados da sua biografia entanto, se a mulher está quase ausente nos versos do
como o lugar da deserção do "eu ", esse lugar onde se arrisca Cancioneiro, há, pelo menos, um belíssimo poema, resplan
progressivamente uma solidão essencial, no sentido de decente de erotismo (o erotismo eventualmente reprimido do
Blanchot, e se vislumbra a perda, narcísica e dramática, de si homem Fernando Pessoa iria "explodir" em Campos, sobre
e do mundo, na ambivalência que se joga entre escrever e tudo nas odes "Triunfal" e "Marítima"). Assim, e antes de mais,
viver." não resisto a transcrever esse poema:
88
Seus seios altos parecem
busca de um outro lugar, um qualquer local esotérico(1 }, cum
(Se ela estivesse deitada)
prindo uma missão de que teria sido encarregado por um "Rei
Dois mantinhas que amanhecem
desconhecido" .
Sem ter que haver madrugada.
E tudo em versos oscilando entre o respeito pelas estrutu
ras versificatórias tradicionais e o "livre", como os que consti
E a mão do seu braço branco tuíram os poemas daquilo que podemos designar de fase
10 Assenta em palmo espalhado experimental, no período de busca de uma poética que pas
Sobre a saliência do flanco sou por vários -ismos, como referi no Capítulo Quarto, e cul
Do seu relevo tapado. minou com a sua teoria e prática do "fingimento" poético.
Versos - todos eles, dos mais musicais da nossa poesia de
Apetece como um barco. língua portuguesa, eufónicos, graças aos ritmos, aliterações,
Tem qualquer coisa de gomo. onomatopeias e outros recursos fónicos.
15 Meu Deus, quando é que eu embarco? Mas para melhor conhecer este poeta há que lê-lo. Vou
Ó fome, quando é que eu como? propor que leiam comigo alguns dos poemas mais belos do
Cancioneiro. (Será que o leitor se importará que me dirija
Mas a ausência da mulher, da paixão veemente, como as directamente a si, tratando-o por tu é que, como se diz num
restantes ausências referidas por Octavio Paz, é um facto. Tal verso de Jacques Prévert, "digo tu àquilo que amo ... " seNe,
como são factos a tristeza ou vaga melancolia, o cepticismo, como desculpa? Então vou fazê-lo.)
o sentimento de saudade, particularmente da infância, e da
vida instintiva do "gato que brinca(s) na rua", a música, pre Ela canta, pobre ceifeira,
sença inefável e fugidia, o sentimento de vazio e da opacidade Julgando-se feliz talvez;
do real Oá presente, por exemplo, nos "Pauis"), o sentimento Canta, e ceifa , e a sua voz, cheia
de ser "estrangeiro", "alheio", sentimento gerador de estra De alegre e anónima viuvez,
nheza, de perplexidade; também a angústia, a inquietação, as
contradições, o tédio, a náusea, o cansaço . E ainda a busca Ondula como um canto de ave
~I
do refúgio possível - o sonho; ou então o sentimento e von No ar limpo como um limiar,
tade de "abdicar", de desistir, de se resignar. E a dificuldade E há curvas no enredo suave '11
de distinguir sonho e realidade, a consciência da enorme dis Do som que ela tem a cantar.
tância entre o que se sonha e o que se realiza, o tudo e o
nada. E o tema, recorrente em Pessoa ortónimo - também, II
Ouvi-Ia alegra e entristece,
mais tarde, em Campos -, da dor de pensar, de ser lúcido, de 10 Na sua voz há o campo e a lida, I
não conseguir "a alegre inconsciência" da ceifeira e simultanea
mente "a consciência disso" - desejo impossível de realizar, já
que "a ciência pesa tanto e a vida é tão breve". Também 8. (1) Ver nota da p. 116.
E ca nta como se tivesse anulada pela intromissão de um ponto de vista subjectivo e
J\llais razões p'ra cantar que a vida. valorativo por parte do Eu poético (ou, como hoje se diz do
sujeito da enunciação), presente em formas de um discurso
Ah, canta, canta sem razão! dubitativo, modalizante, como em ''julgando-se feliz, talvez", o
O que em mim sente 'stá pensando. "pobre ceifeira", a referência à "alegre e anónima viuvez".
15 Derrama no meu coração Na segunda quadra a descrição do canto assume grande
A tua incerta voz ondeando! beleza nas imagens - "Ondula como um canto de ave"
associada a grande beleza fónica conseguida pelo ritmo
Ah, poder ser tu , sendo eu! ondulatório(1) desse mesmo verso e de toda a quadra em
Ter a tua alegre inconsciência, geral, pelas aliterações "como um canto", ou, mais adiante,
E a consciência disso' Ó céu' "ar limpo como um limiar"; as assonâncias em nasais: Ondula,
20 Ó campo! Ó canção' A ciência canto, limpo, limiar, e em timbres abertos das vogais: ave, ar,
limiar, suave, cantar.
Pesa tantO e a vida é tão breve'
Entrai por mim dentro' Tornai Face à suavidade do canto, a sua repercussão sobre o Eu,
Minha alma a vossa sombra leve! na terceira quadra: "Ouvi-Ia alegra e entristece". (De passa
Depois, levando-me, passai' gem, e se ainda não notaste, repara nesta antítese - tão "anti
tética" como é paradoxal o canto alegre numa voz que
(91 4) poucas razões teria para cantar - uE canta como se
tivesse/Mais razões para cantar que a vida".)
Como é de imediato possível ver, este poema apresenta
uma versificação regular: seis quadras rimadas, com versos A segunda parte, constituída pelas três últimas quadras,
regulares de 8 sílabas métricas. Trata-se de um poema ainda apresenta um tom diferente. Neste momento, o Eu poético vai
ligado, um pouco, ao interseccionismo que, na altura, Pessoa dirigir-se directamente ao tu (a mudança do ela ao tu implica
ensaiava com "Chuva Oblíqua". Mas neste poema o intersec necessariamente uma aproximação do Eu à ceifeira) em lin
cionismo não é só exercício de estilo (também não era só isso
em "Chuva Oblíqua", mas neste é mais possível verificá-lo,
como vamos ver.)
É possível encontrar dois momentos ou partes na constru (1)
ção deste poema, ocupando cada uma das partes 3 quadras. ~
Assim, numa primeira parte, a focalização incide sobre o ~
Ondula como um canto de ave E há curvas no enredo suave
canto da ceifeira - um ela canta; assume-se uma tentativa de
descrição, logo na primeira quadra do canto (daí a pontuação ~ ~
lógica e as formas de presente do indicativo), tentativa logo No ar limpo como um limiar Do som que ela tem a cantar
guagem fortemente emocionada (a pontuação passa de á canção!" (repare-se nesta espécie de olhar descendente na
lógica a emotiva, com base no ponto de exclamação, em gradação dos substantivos) e prosseguida na última quadra _
frase exclamativas que substituem as declarativas da primeira "Entrai por mim dentro! Tomai/Minha alma a vossa sombra leve!"
parte); os verbos passam às formas próprias do apelo: impe - este é também um desejo de dispersão, de aniquilamento
rativo, principalmente (canta, derrama, entrai, tomai, passai) e que culmina no verso final: "Depois, levando-me, passai!".
infinitivo pessoal, implicando um desejo (poder ser tu, ter a tua
alegre...). (Como se vê começa a ser possível dar razão ao que
Quais os apelos? Quais os desejos de um ser que se eu disse antes sobre a poesia ortónima do Cancioneiro.
afirma "cansado" e a necessitar de um bálsamo para o seu Além do mais é um poema lindíssimo, não é? Mas isso
coração (v. 16)? vou eu dizer de quase todos, por isso não fiques já
Um primeiro desejo: "Canta, canta, sem razão!", seguido impressionado... )
de "Derrama no meu coração/ A tua incerta voz ondeando!"
este é, ainda, um desejo viável e "sensato". Mas segue-se um Vejamos mais alguns poemas em que o "motivo " da
segundo desejo: "Ah poder ser tu, sendo eu!" - esta vontade música está presente. Vamos começar por dois deles, igual
de permuta é tornada inviável porque paradoxal (da ordem do mente belos:
chamado oxímoro). E depois: 'Ter a tua alegre inconsciên
cia/E a consciência disso!" - novo desejo paradoxal.
E porquê tal impossibilidade? O poeta vai dizendo: É que Leve, breve, suave,
"O que que em mim sente 'stá pensando" - o pensamento Um canto de ave
racional está na origem do ser incapaz de verdadeiramente Sobe no ar com que principia
bre o mundo sem preconceitos, sem nada dele saber. Mais 5 Escuto, e passou ...
abaixo continua o poeta: '~ ciência pesa tanto e a vida é tão Parece que foi só porque escutei
breve!" - constatação amarga que parece reforçar a tal dor Que parou.
Raie a madrugada,
97
prazer inefável da música e da harmonia por ela proporcio Tudo aponta, então, para a recorrência dos temas da
nada.(1) perda, da dor de pensar, da impossibilidade de fruir, de
gozar - e é em tom de desalento que confessa: "E já ao ouvi
Os mesmos temas estão presentes no segundo dos poe -Ia sofro a saudade delalE o quando cessar." É que sabe,
mas transcritos, o "Trila na noite uma flauta". De novo, o porque é consciente, lúcido, e não instintivo e sensitivo como
"motivo" condutor - o da música que se ouve na noite. De a ceifeira ou o "gato que brinca(s) na rua/como se fosse na
novo, a extrema eufonia presente, por exemplo, na sucessão cama", que o prazer não dura e dele nada resta, nem a
de consoantes vibrantes e líquidas: Trila/flauta; nas aliterações memória, visto que tudo passa.
em nasais e assonâncias (provenientes da sucessão de tim
bres dos ditongos ditos "doces", -oi/-au: na noite uma flauta. Mas vou ainda dar a conhecer um outro poema de motivo
De notar também alguma irregularidade métrica e o facto de o musical, o "Pobre velha música!".
poeta recorrer por vezes ao processo de enjambement (em
português, "encavalgamento" ou transporte) de versos, como Pobre velha música!
em: "é de algum/Pastor?" e, de um modo geral, nos restan Não sei porque agrado,
Outro processo fónico que se repete é o do ritmo ondula Meu olhar parado.
à esfera do sentido, proporcionado, mas não apenas, por Não sei se te ouvi
estes recursos fónicos, desde o início, e após a breve suges Nessa minha infância
tão musical da flauta que trila na noite em movimentos ondu Que me lembra em ti.
"Que importa?" e depois nas marcas de negatividade que se Fui-o outrora agora.
reflexão: "E eu era feliz? Não sei." O que importa nem é Um pouco mais de azul - e eu era além;
mesmo sabê-lo, mas sim o facto expresso no último verso: Para o alcançar faltou-me um golpe de asa.
"Fui-o outrora agora" . Associam-se aqui dois tempos - o Se ao menos eu permanecesse aquém.
100 101
É que ele não tem que dizer, tem , quando muito, de sugerir. Creio que dificilmente se poderia dizer melhor a frustração ,
Porque, não o esqueçamos, "Sentir? Sinta quem lê!" o desencanto pelo sonho não cumprido, a dor da perda, o
fracasso, o desespero, a vontade de aniquilação. Com efeito,
Um outro poema igualmente "magoado" é o poema "Onde nestas 3 estrofes, a oposição entre a expectativa, o sonho
pus a esperança": marcados nas palavras de conotação positiva: esperança,
rosas, casa, jardim, afeição, fonte, floresta - e a realidade - as
Onde pus a esperança, as rosas
rosas murcharam logo - sem razão - secou a fonte. Parece
Murcharam logo.
que o Eu poético é um ser fatal que destrói aquilo que ama.
Na casa, onde fui habitar,
Ou será ele vítima de um Fatum, de um destino que o torna
O jardim, que eu amei por ser
"maldito"? De facto, diz-se nas duas primeiras oitavas, que
Ali o melhor lugar,
constituem um primeiro momento do poema, que, mal conse
E por quem essa casa amei -
gue obter o que o sonho anseia - paz, conforto, afeição,
Decerto o achei,
beleza - tudo seca, tudo se perde. Trata-se uma vez mais do
E, quando o tive, sem razão p'ra o ter. tema da perda e da frustração daí gerada.
Na última oitava é legítima a reflexão e interrogação: para
Onde pus a afeição, secou quê, então, sonhar, ter expectativas? O melhor será desistir
A fonte logo.
103
Minha espada, pesada a braços lassas,
Em mãos viris e calmas entreguei; em sibilantes (-s e -z) - espada pesada a braços lassas -,
E meu ceptro e coroa - eu os deixei mas também em nasais e oclusivas (neste caso o -t, o -p )
Na antecâmara, feitos em pedaços. Toma-me ó noite eterna nos teus braços/E chama-me... ;
Minha espada pesada; o 1.° verso da 1. a quadra acrescenta a
Minha cota de malha , tão inútil,
tudo isto, ainda, o ritmo ondulatório a que começamos a habi
10 Minhas esporas, de um tinir tão fútil ,
tuar-nos em Pessoa.
Deixei-as pela fria escadaria.
Abdicar, entregar em mãos viris e calmas os sinais de rea
leza, que mais não deram que em cansaço e frustração, será
Despi a realeza , corpo e alma,
então a solução. E sobretudo, recolher-se, como filho, no seio
E regressei à noite antiga e calma
acolhedor da noite. (A propósito, o heterónimo Álvaro de
15 Como a pa isagem ao morrer do dia.
Campos escreveu uma belíssima "Ode à Noite", em que se
retoma este desejo de acolhimento, de dispersão, de calma.)
Há muitos mais lindíssimos poemas neste Pessoa do
Cancioneiro . Só posso recomendar (pelo menos ... ) todos ...
Entretanto , vou ainda transcrever dois poemas justamente
Trata-se de um soneto, embora à primeira vista não o conhecidos e reconhecidos como belos e importantes. O pri
pareça. É que o 2.° verso da 1. a quadra é bipartido em dois meiro deles é:
semi-versos. Mas lá temos as duas quadras e os dois terce
tos, os versos decassilábicos e as rimas em abba abba ccd
eed - quase perfeitamente clássico, este soneto.
Trata-se também de um longo apelo à noite eterna, mater o menino da sua mãe
nal, antiga e calma, no sentido de nela procurar refúgio e o
lenitivo possível para o cansaço. Um poema construído sobre No plaina abandonado
símbolos e uma longa metáfora: a do rei que abdica e renun Que a morna brisa aquece,
cia vo luntariame nte aos símbolos da realeza: o trono, a
De balas traspassado
espada, o ceptro, a coroa, a cota de malha, as esporas. E
- Duas, de lado a lado - ,
porquê? Porque tais símbolos de realeza são-no também de
S Jaz morto, e arrefece.
frustração: assim o trono é feito de sonhos e cansaços; a
espada é pesada a braços lassas ; a cota de malha é tão inútil,
Raia-lhe a farda o sangue.
as esporas têm um tinir tão fútil.
De braços estendidos,
De passagem, terás dado certamente conta da grande
musicalidade conseguida não só pelas rimas externas, como Alvo, louro, exangue,
pelas internas (braços lassos) , pelas assonâncias, sobretudo Fita com olhar langue
10 E cego os céus perdidos.
104
Tão jovem! que jovem era!
com narrador - o poeta; narração de uma história; acção - a
(Agora que idade tem?)
morte na guerra; personagens; espaço - piai no
Filho único, a mãe lhe dera
abandonado/ lá longe, em casa; e tempo - passado. O narra
Um nome e o mantivera:
dor é subjectivo, visto emitir juízos de valor sobre o que conta
15 "O menino da sua mãe". e até sobre os motivos desta morte prematura. Em todo o
caso, naturalmente que aqui, sob forma narrativa, se transmi
Caiu-lhe da algibeira
tem sentimentos (mesmo que "fingidos" no sentido de fingi
A cigarreira breve.
mento pessoano), emoções, ideias - logo, expressão do Eu,
Dera-lhe a mãe. Está inteira
lirismo.
E boa a cigarreira.
Nas duas primeiras quintilhas, conta-se, descreve-se a
20 Ele é que já não serve. situação vivida pelo protagonista e também se faz o retrato da
personagem no momento actual. A descrição é feita em ter
De outra algibeira, alada
mos realistas, "fortes", como convém a quem quer fazer ver.
Ponta a roçar o solo
Nas estrofes seguintes, predomina a emoção, o discurso
A brancura embainhada
judicativo ou valorativo. O jovem, cuja juventude e perda dela
De um lenço... Deu-lho a criada
são referidas em frases exclamativas, que já não tem idade
25 Velha que o trouxe ao colo. (como se refere entre parênteses - discurso parentético que
realça a mensagem nele contida) é, afinal, "filho único", cujo
Lá longe, em casa, há a prece:
nome é, por vontade materna, O menino da sua mãe - é um
"Que volte cedo, e bem!"
menino-símbolo de uma mãe-símbolo e ambos personagens
(Malhas que o Império tece!)
colectivas. Regressa-se nas 4. a e 5. a quintilhas à descrição e à
Jaz morto, e apodrece ,
emoção: a cigarreira breve, símbolo do que não morre, do que
30 O menino da sua mãe. fica de uma vida, essa sim, breve (deves ter reconhecido a
figura estilística da hipálage); o lenço bordado dado pela criada
velha/que o trouxe ao colo.
A última quintilha lança um olhar sobre o espaço familiar:
Este poema em seis estrofes de cinco versos (quintilhas), "Lá longe, em casa, há a prece:/"Que volte cedo e bem!" Só
de versos regulares de 6 sílabas e rimados - esquema abaab, que a prece é, sem que lá em casa o saibam, inútil, agora que
que se repete nas diferentes quintilhas, ainda que com rimas "o menino da sua mãe" ''iaz morto e apodrece" (este verbo
diferentes - destoa um pouco no conjunto do Cancioneiro substitui e intensifica o realismo do arrefece da 1. a estrofe).
por, aparentemente, abordar um tema social - o da guerra e Pelo meio, novo discurso parentético que aponta subtilmente
dos meninos injustamente roubados à idade ("Agora que a causa que está por detrás desta morte prematura (Malhas
idade tem?"), às mães e às velhas amas, à infância, afinal. que o Império tece!), ou seja, hoje e sempre, as vítimas que o
Trata-se, efectivamente, de um poema de base narrativa, desejo de Impérios faz.
É um poema que nos põe perante o absurdo da guerra e Quanto é melhor, quanto há bruma,
por uma infância perdida por razões absurdas - a guerra ou Mas o melhor do mundo são as crianças,
talvez, quem sabe?, o desabar dos sonhos, a perda da ino Flores, música, o luar, e o sol, que peca
cência. Só quando, em vez de criar, seca.
Vou terminar com um último poema, por sinal dos últimos
que Pessoa terá escrito: o mais do que isto
25 É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finan ças
Nem consta que tivesse biblioteca .. .
Liberdade
(Falta uma citação de Séneca)
Independentemente de se saber se há ou não alusão irónica
Ai que prazer
(há.. .) ao Dr. Salazar, omnipotente Ministro das Finanças (que
Não cumprir um dever,
de Finanças se calhar saberia muito) e ditador letrado (parece
Ter um livro para ler
que ele lia mesmo muito, .. .), a verdade é que este canto à liber
E não o fazerl
dade de ler ou não ler, de fazer o que temos vontade de fazer é
Ler é maçada.
de uma enorme frescura. É o louvor - que Caeiro, o Mestre,
Estudar é nada.
teria certamente muito gosto em subscrever -, das coisas natu
O sol doira
rais, consubstanciadas no sol, no rio, na brisa, nas crianças
Sem literatura.
"o melhor do mundo", das flores , da música, do luar, da vida
livre, sobre o saber que vem nos livros , mas também, ainda
O rio corre, bem ou mal, que em menor grau , certamente, sobre a arte - a poesia, as
la Sem edição original. danças ou a bondade.
E a brisa, essa , Um convite, afinal : Sejamos livres de fazer ou não fazer o
Oe tão naturalmente matinal, que, desculpem a linguagem, nos dá na real íss ima gana!
Como tem tempo não tem pressa... Quanto ao resto, melhor será esperar por D. Sebastião, quer
venha ou não!
Livros são papéis pintados com tinta. Claro que, por detrás da mensagem, está presente neste
15 Estu dar é uma coisa em que está indistinta poema uma profunda e subtil ironia - e uma guerra a todos
A distinção entre nada e coisa nenhuma. os que gostam de impor os seus valores e a sua ordem.
109
Mas, acima de tudo, sê livre! Recupera (tenta recupe 1. Um Pessoa em busca de caminhos poéticos:
rar) a inocência de menino! Será isso que o mestre Caeiro, - via simbolista/paúlica
como veremos lá para diante, passou a vida a "dizer". - interseccionista
- "fingimento" e criação heteronímica (1914)
QUADRO-síNTESE - CANCIONEIRO - esoterismo
Estilo
2. Pessoa, "lugar da "deserção" do eu e da consequente
Motivos Nível perda, narcísica e dramática, de si e do mundo" - o drama
poéticos/temas Nível fónico morfossintáctico e da identidade perdida: "quem me dirá quem sou?"
semântico
- nostalgia do Eu, de um grande sentido da - adjectivação expres 3. Respostas possíveiS:
bem perdido (tema da musicalidade: siva;
- resposta religiosa, metafísica, esotérica
perda); - versificação regu- - utilização expressiva
- refúgio na noite, no sonho, na música
- ceptiCismo; lar e tradicional; de modos e tempos
- melodia
- estranheza, perplexidade; - associações inespe
- música das palavras
- dificuldade em distinguir radas - por vezes des
sonho e realidade; vios sintácticos;
(esquema adaptado e baseado em esquemas Cansaço: ver poema "Cansa ser, sentir dói, pensar destrói".
idênticos de António Morato e de José Manuel de Melo) Podes encontrá-los em boas Antologias.
110 111
e também: CAP[TULO StTIMO
- da inquietação perante o enigma do mundo, indecifrável
porque opaco MENSAGEM
- da solidão interior
- das contradições pensar/sentir; querer/fazer; espe Um "supra-Camões"?
rança/desencanto
(1) Ver poema "Não sei se é sonho se realidade" . Podes encontrá-lo em boas
Antologias .
112