Luciana Scotti - SEM ASAS AO AMANHECER
Luciana Scotti - SEM ASAS AO AMANHECER
Luciana Scotti - SEM ASAS AO AMANHECER
Dedico este livro à pessoa mais espetacular que conheço, meu muito amado
irmão Marcus Tullius
Orelha do Livro:
"Você tem agora em suas mãos dois sonhos: o sonho de uma editora e o de uma
escritora".
Há quase um ano atrás, O Nome da Rosa procurava-se construir de maneira
diferente, buscando idéias e vida para veicular entre seus leitores. Há quase um ano
também, uma menina-mulher procurava alguém que publicasse seu livro, escrito
com muita dificuldade.
Conheci Luciana já numa cadeira de rodas, sem poder falar. O brilho que vi
imediatamente em seus olhos foi a confirmação de que nosso encontro já estava
predestinado.
E trabalhamos duro, durante meses, uma colada à outra, para fazer vingar nossas
vontades. Para editar o extenso material que Luciana havia escrito durante 3 anos,
não podíamos depender da cartela de sinais que ela usa para soletrar suas idéias.
Além de nossos encontros quase semanais do contato físico gostoso e carinhoso,
começamos a nos comunicar pelo computador, conectadas pelas redes da Internet.
Trocamos idéias, textos, comentários, revisões e até segredos.
Assim, fui conhecendo Luciana, sua intimidade, seus pensamentos, suas emoções,
sua voz - e como falar, é exigente, inteligente e divertida, essa menina! Conheci, na
verdade, uma grande guerreira.
Para realizarmos nossos sonhos temos realmente que trabalhar muito. E devemos
também nos apoiar nos anjos e aprender a voar sob suas asas. Quero aqui
agradecer, pela editora O Nome da Rosa, os anjos que nos guiaram e tornaram
esses nossos sonhos possíveis. Um beijo no coração dos anjos Raul de Souza,
David Knobel, Paulo Roberto Sadré e Roberto de Souza. E um beijo no coração de
Maria Izabel dos Santos Souza e Márcia Knobel.
Graças aos anjos e a vocês, leitores, Luciana Scotti poderá ter um futuro.
E, sem dúvida, como uma ativa escritora."
Agradecimentos:
Antes de tudo agradeço aos meus pais, pelo incentivo, apoio e ajuda.
Sem eles, nada seria possível.
Minha adorável amiga Luciana Knobel, obrigada por estar sempre presente,
ser companheira e solucionadora.
Fico imensamente grata ao meu querido Sérgio Preuss, meu sábio auxiliar
desde que este livro era só um sonho, e ao grande amigo Henrique Joji. Sei, por
estar sempre ao meu lado, nos momentos em que mais necessito de seu apoio.
Obrigada, minha prestativa amiga Matilde Gabriel, por vir suprindo com tanta
dedicação as limitações a que estou sujeita.
Agradeço ao Sr. Abraão Worcman, por ter sido o pai desta idéia, e ao casal
Regina e Florestan Fernandes Jr., por me incentivarem a escrever.
Agradeço também à Ana Maria Braga, por ter me aberto as primeiras portas
para eu ter este sonho realizado.
A David Knobel e Márcia Knobel que me ajudaram como puderam desde o
princípio, principalmente na concretização de meu livro, meu mais profundo carinho
e agradecimento. Ainda não os conheço pessoalmente, mas há muito tempo essas
duas pessoas maravilhosas moram no meu coração.
À minha editora e muito amiga Tula Melo, que tornou esta obra concreta e plena,
meu carinho e meu muito obrigada por tudo.
Por fim, agradeço a todas as pessoas que fizeram parte da minha vida e,
neste livro, me permitem contar um pouco de minha história. Não se preocupem,
pois aqui vocês estão como personagens, com nomes fictícios e com
suas verdadeiras identidades plenamente preservadas.
Ao meu leitor
Aos 12 anos fiz de Juliana minha confidente querida. Ju, como gostava de chamá-
la, ouvia, sem contestar, tudo o que eu lhe contava, quase todos os dias, desde as
pequenas até as grandes aventuras que eu ia experimentando. Páginas e
mais páginas escritas, cercadas de desenhos, fotografias, bilhetes, flores secas,
rabiscos, corações. Em 1990, com 19 anos e apaixonada, parei de contar minhas
histórias para essa doce amiga: eu só tinha tempo mesmo para vivê-las. Juliana
acabou esquecida nas gavetas da memória, enquanto minha vida continuava,
esperando somente o tempo de ser feliz.
O dia 2 de maio de 1.994 poderia ter sido como todos os outros. Aliás, não houve
sinal algum de que seria diferente. Era realmente um dia como outro qualquer e não
dei grande importância à luz do Sol ou à das estrelas. Muitas, mas muitas vezes
desejei contar esse dia começando pela fórmula mágica: "Era uma vez..." Desejei
transformar tudo numa ilusão fabulosa, no feitiço desfeito pelo beijo do príncipe,
somente para poder terminar dizendo: "E Luciana foi feliz para sempre..."
Nesse dia, fui trabalhar cedinho, como sempre fazia. Na saída, peguei meu
irmão mais novo na faculdade e, à noitinha, já estava em casa. Minha mãe e eu
tínhamos combinado dar um pulo ao shopping; afinal O Dia das Mães
estava chegando. Enquanto escovava os dentes, senti uma tontura muito forte e
imediatamente entrei em convulsão. Só deu tempo de gritar "SI" Fui levada
imediatamente para o pronto-socorro e acordei quase dois meses depois.
Em coma, a gente sonha: também ouve o que se fala à nossa volta. Não, não
me lembro de ter visto o filme da minha vida passando em segundos, nem um túnel
com luz brilhante ao fundo. Mas me lembro especialmente de uma frase que chegou
de longe e foi ressoando claramente em meus ouvidos.
- Luciana, tá todo mundo lá fora te esperando...
Todo o mundo? Todo o mundo. Minha vida esperava também por mim, para
continuá-la. Continuar a vida ou outra vida?
Hoje estou tetraplégica. Não me movimento. Também não falo. Apenas o
lado esquerdo do meu corpo se mexe...pouco, muito pouco. Quase nada. Mas,
principalmente, não falo. Escrevo num computador, soletro o que antes eram idéias
ágeis e palavras afiadas. Soletro esta história, minha história: " uma vez...."
E chamo por Ju. Onde estará ela?! Agora que não sou mais criança, quem
me contará esta história? Quem me dirá que não foi bem assim que aconteceu?
Quem poderá me garantir que eu serei feliz, bem feliz?!
Pelos traços que deixei nas folhas dos cadernos engavetados, sei que posso
ter de volta minha vida, meus movimentos, e até, quem sabe, a minha própria voz.
Digo isso porque sei que escrevo ainda como uma colegial, conservando o tom
dessas histórias de adolescente escritas no diário. São histórias da minha história,
de uma adolescente encantada com a vida, que não pôde impedir que sua história
se partisse.
É verdade que não perdi a memória. Lembro-me de tudo o que me
aconteceu. O problema é justamente esse! Que sentido dar agora a esses 22 anos
preparados somente para um maravilhoso "E viveram felizes para sempre..."?
Agora, espero por Juliana. Preciso que essa amiga confidente vá me devolvendo
uma parte de minha vida, para que eu possa ir, pouco apouco, me adaptando a este
rumo inesperado. Preciso continuar..
Aqui e ali copiei pedaços do meu antigo diário, contei as novidades, recontei
meus sonhos e encarei meu pesadelo. A Luciana Scotti falou do passado, das
pessoas e dos fato, mas eu ainda estou aprendendo a falar. Deste jeito soletrado,
engasgado, careteado, babado, vomitado. Do jeito que é possível. Perdi a voz, mas
as palavras presas no meu corpo não estão mudas. São palavras de todos os tipos:
revoltadas, esperançosas, desesperadas, amorosas, infelizes, invejosas,
agradecidas... Se elas fossem pássaros, eu diria que estão batendo asas dentro de
mim.
Parte 1
Segunda Parte
Terceira Parte
APRENDENDO A VIVER
Dia 11 de dezembro de 1997
Juliana,
Querida amiga! Lamento ter te deixado por um longo período, mas estava muito,
muito atarefada com minhas coisinhas aqui... Na verdade, voltei só para contar
umas descobertas. Vim te dizer que não sou a mesma e que a Luciana, aquela que
começou a contar suas aventuras reservadamente a você, não existe mais.
Ela era tão feliz, não é mesmo? Embora não soubesse. Ninguém sabe.
Realmente só damos valor às coisas quando as perdemos, e agora eu vejo quanto
aquela Luciana saboreava a vida e nem pensava nisso. Queria sempre mais e mais,
em busca da felicidade completa...
Esta, que agora te escreve pela última vez, aprendeu, a duras penas, que a
felicidade que todos nós procuramos, pode estar do nosso lado; na verdade pode
estar onde nós quisermos e, como já não ando mais por céus e terras, não falo
mais trocando experiências e jogando charme... Bem, tive que procurar essa
felicidade dentro dos limites da minha cama hospitalar ou vizinha à minha cadeira de
rodas. Ainda não a encontrei, nem ao menos sei se a encontrarei algum dia, mas
é lá que estou procurando.
Fiquei na dúvida, estes últimos anos, procurando em mim a antiga Luciana. Eu
me olhava no espelho, comparava o meu cabelo, fotos, a textura da minha pele, a
paciência, a compreensão, o charme, a risada, e via que as mudanças se operaram
exteriormente e interiormente. Meus pais diziam e dizem que eles tiveram duas
filhas Luciana. Meus amigos, os que sobraram, acoitam uma postura diferente como
se nunca eu tivesse tido intimidade com eles. Os antigos namorados ou
se distanciaram de uma vez e para sempre, ou encontraram uma posição mais
cômoda diante de mim. Virei um ser assexuado. Que remédio então? Fiz o que
todos já fizeram: matar uma Luciana que só vive em mim. Nos gostos, no passado,
nos valores... Só eu parei no tempo; vivi os últimos quatro anos de
passado, pensando: "Recordar é viver". Como me vi sem vida, em uma cadeira de
rodas, e como amo demais os 22 anos dourados que construíram minha vida, relutei
em enterrá-los. Reimaginei diversas vezes uma mesma cena. Agora chega. Eu
agradeço a todos por terem me tratado diferente.
Hoje entendo, por exemplo, a atitude da Priscila. Ela fez de imediato o que estou
fazendo agora. A indiferença dela, que tanto decepcionou a antiga Luciana, é a
mesma que tento ver hoje com outros olhos. Aquela que era a melhor amiga
da Priscila acho que morre definitivamente agora, com o fim deste livro. Muito
embora o melhor dela já tivesse sido perdido em 94. Agora entendo com clareza o
distanciamento de tantas pessoas que diziam que me adoravam. Não era a mim, à
minha essência que adoravam. Adoravam uma casca de mulher: uma garota bem-
sucedida, bonita, falante, que imaginava que, com tantos admiradores e amigos,
jamais ficaria sozinha.
Essa garota, muito revoltada, registrou aqui suas impressões sobre tudo e todos
e agora nos deixa de vez.. Ela já havia morrido. Ela não viveria tetraplégica e muda.
Então, simplesmente deixa de viver...
Ju, entender essa quebra na minha vida não é tão fácil. Se você pensar na
pessoa física, eu sou a mesma pessoa. Bem modificada, é verdade, mas a mesma.
No entanto a maior mudança ninguém pode ver: está na alma.
Até pouco tempo carreguei comigo o amargo gosto do ódio a todos os
neurologistas. Hoje penso diferente, mas ainda considero imperdoável a conduta
dos neurologistas que não conseguiram salvar uma jovem bonita, alegre, sociável; e
eu continuei a existir pura e simplesmente para sustentar amarguras, mágoas,
perdas, lembranças... Quem pensou que a salvou, errou brutalmente. A vida é muito,
muito mais que simplesmente respirar e pensar. E tem gente que nem
isso consegue! Para mim a vida é realmente maravilhosa... amar, curtir, passear,
sentir carinho... tudo é bárbaro. Isso é vida. Até que ponto os médicos podem bater
no peito e dizer: "Nós a salvamos!"?
Eu, atualmente com 26 anos, nada tenho a ver com aquela jovem que fez
faculdade de Farmácia, que era sedutora, que fez amor pela primeira vez com o
Cléber... Enfim, embora algumas pessoas não gostem dessa quebra na minha vida,
eis a solução mais lógica que encontrei para minha existência. De verdade, eu
também não queria minha vida partida. Mas, logicamente, ninguém me toca igual,
me olha igual, se dirige da mesma forma que antes a mim... nem penso mais como
aquela Luciana... Duas coisas vou levar para sempre: as lembranças e os olhos cor-
de-mel que resistiram.
Agora, como deficiente física, fico revoltada com os outros deficientes físicos que
possuem o dom da palavra. Gostaria tanto de falar e ser ouvida. Em vez disso, ouço
as inúteis e irrelevantes reivindicações que eles fazem. Dizem que 10 por cento da
população é deficiente. De que tipo? Mental, tetraplégicos, paraplégicos,
tetraparético, cegos, mudos... ou tudo junto?
É óbvio que as reivindicações dos cegos ou dos paraplégicos não me atendem.
Ônibus com elevadores, telefones públicos adaptados, certamente essas coisas não
servem a 10 por cento da população. Precisamos brigar por coisas
mais abrangentes. Guias rebaixadas para cadeiras de rodas, rampas nos locais
como hospitais, clínicas, consultórios... Lógico que o ideal é todo o mundo ter tudo...
o ideal... Diante de tantas necessidades, o Governo e a sociedade não podem
se esquecer, por exemplo, da educação e se preocupar com entradas em cinemas
para cadeiras de rodas, ou portinhas giratórias em bancos... Ora, damos um jeito!
Sinto-me muito mais ofendida em ir ao dentista e precisar ser carregada até a
cadeira de atendimento do que pedir para que alguém tire meu extrato bancário.
Na minha vida atual, tenho me correspondido e trabalhado pela Internet com
Tula, minha editora, com Héricles, com Eugênia, com Patrícia... com Lucas.
Sempre gostei de conversar com ele. Como disse acima, aquela Luciana brava e
revoltada com a passividade do Lucas deixou de existir. A reação que esperávamos
que Lucas adotasse diante do AVC não aconteceu nem nunca acontecerá. Isso
deixou a Luciana arrasada. Durante anos ela esperou uma atitude
mais companheira, mais cúmplice do Lucas. Uma palavra animadora, solidária;
mesmo que fosse mentira essa cumplicidade, mesmo que ele saísse do quarto dela
e fosse velejar ou encontrar a namorada. Sozinha naquela cama hospitalar ela
sofreria menos; teria a ilusão de não estar só. Ainda me enervo ao ouvir ele dizer:
- Foi um azar, uma tragédia...
Foi mesmo, não nego! Mas será que foi só isso? Nem falo em culpa, pois é claro
que ninguém queria que isso acontecesse. Nem mesmo Gilda, a única que poderia
prever, queria isso.
Sempre achei que tomava a pílula por nós dois, não é mesmo? Tenho isso muito
claro: se eu tenho culpa no que aconteceu, logicamente Lucas também tem. E por
que eu tive de sustentar essa barra sozinha? Onde está o homem sensato por quem
a Luciana era apaixonada? Ele me deixou só nessa "barca mais que furada".
Enquanto tive de me redimir perante todos pelas minhas mentiras, enquanto eu ia ao
shopping de cadeira de rodas, sentindo milhares de olhos inquisitórios; enquanto eu
ouvia uma canção, morta de vontade de cantar, ou enquanto eu chorava,
lamentando meu destino, eu imaginava Lucas rindo numa festa, tomando um banho
de piscina, fazendo amor com alguém...
Fatalidade? Azar? Tragédia? Foi mesmo, já disse, não nego! Mas foi
extremamente fácil culpar o destino, dar de ombros, e seguir a própria vida, não?
Não esperávamos muito, o sofrimento físico veio todo para mim, isso não
podíamos dividir; mas seria muito bem-vinda uma atenuação para o meu sofrimento
psicológico. E vindo de quem? Do Lucas!
Um dia em 1995, me dei conta que eu tinha perdido todos os atrativos que
atraíam facilmente os homens, que só havia me sobrado a inteligência. Logo que
comecei a escrever, escrevi cartas e mais cartas para Lucas; despejando
amor, relembrando nosso passado e querendo provar a mim mesma que com
inteligência e carinho eu Conquistaria de novo o homem mais especial que eu
conhecia. De algum modo isso o comoveu.
Uma noite ele veio no meu quarto, perto da minha cama, e perguntou:
- Posso te beijar?
Fiz que sim e ofereci meus lábios. E isso foi tudo, mas ele não beijou só meus
lábios, beijou minha alma... Lembro-me que fiquei sorrindo à toa por uns dois meses.
Talvez o efeito sobre mim seria outro, se Lucas pegasse na minha mão
e simplesmente dissesse:
- Lu, você não está sozinha.
Isso, com certeza, diminuiria minha sensação de vazio e tristeza ao olhar um
pedacinho do mundo pela janela do quarto, imaginando a vida correndo solta lá fora
enquanto a solidão me invadia. Mas isso é passado. Lucas passou, a raiva
do distanciamento dele também passou... Não sinto raiva quando penso nele, sinto
apenas uma ponta de amargura. Penso que a Luciana se entregou a um
relacionamento idealizado, muito aquém do que ela merecia.
Como disse, não sou mais aquela Luciana, uma jovem que era tomada pelo
desespero ao sentir o tempo passando e ver que não podia fazer nada. Que olhava
a janela e desejava sair por aí, andar, namorar, viajar... Hoje eu olho a janela e...
olho a janela. Para que ficar remoendo o que perdi? Vai me trazer de volta o viço e a
saúde dos meus queridos 22 anos? Por que pensar no que eu faria se amanhã
acordasse saudável?
Fiz muito isso estes anos todos. Fiquei horas num gostoso deleite, imaginando
como seria se eu achasse um gênio da lâmpada mágica ou se algum milagre me
devolvesse a saúde tão rápido quanto a perdi. Eu ficava imaginando que roupa
eu usaria, aonde iria, quem eu procuraria, o que eu diria... E, depois do devaneio, eu
me via na cama hospitalar, sem fala, sem charme; e me dava conta de que esses
encontros nunca ocorreriam, pelo menos, nunca do jeito que imaginei. E
chorei, chorei muito, até minha alma ficar diferente e suportar mais tranquilamente a
dor que carrego.
Não, não me conformei. Nem tampouco perdoarei aqueles que me condenaram
a esta vida. Uma vida sem opção, só a de viver o melhor possível. E é isso que
estou tentando fazer. Não posso dizer que sou feliz ainda, mas vou respirando
e mantendo o coração batendo. Nessa desgraça toda me sobraram algumas poucas
coisas, entre elas minha mente sã. Graças a ela, pude registrar aqui as idéias que
me assolavam. Digito bem devagar, é faceto. Mas, letra a letra, vou externando
meus pensamentos.
A alma que escreveu este livro não é a mesma que agora escreve estas
palavras. Quem escreveu este livro foi a alma de uma jovem que sonhava viver na
Itália, trabalhar como farmacêutica, casar, ter filhos... Mas, um dia, a vida
me mostrou que quem manda no destino, de verdade, é ela. E a vida realmente é
divina, maravilhosa... e extremamente traiçoeira. Em frações de segundo tudo muda.
Meu destino parecia tão certo, ao alcance das minhas mãos... Um AVC, e fim dos
antigos sonhos.
Sempre me chamou a atenção a fragilidade do destino. Ora, o que somos senão
um monte de planos sedimentados no nada? Eu vivia alegre e fagueira, deitava no
travesseiro e fazia planos e mais planos para um amanhã que nunca veio. Eu voava,
voava por sobre empecilhos que impediam minha realização. De repente, ao
amanhecer, me vi completamente sem asas para continuar meus vôos. E, junto com
as asas, foram-se os planos. Hoje aprendi a buscar realizações menores e descobri
que pequenas alegrias também podem dar satisfação e prazer. Não me conformei,
mas vivo melhor.
Eu sofri muito com a comparação. Eu ia a uma danceteria e lembrava que eu
adorava dançar; via um casal qualquer se beijando e lembrava que nunca mais eu
faria isso; olhava um vestido bonito e me imaginava dentro dele. Foi assim com
tudo que eu via, desde o meu carro até um prato de comida. Vi-me fazendo tudo o
que antes para mim era banal, trivial. Mas parei de comparar e comecei a valorizar
pequenas vitórias.
Um dia eu consegui ir de novo ao banheiro sem medo de cair, em outro voltei a
me alimentar sozinha, depois a beber sozinha...
Cada dia é um novo desafio, uma luta para vencer minhas limitações. Não
posso, a cada segundo que passa, lembrar as coisas que eu fazia. Esses
pensamentos me deixavam muito infeliz e tudo que eu alcançava me parecia
extremamente pouco.
E era mesmo, se comparado ao que eu tinha para construir em minha vida
anterior ao acidente. Por isso, agora não comparo mais a minha vida de hoje à de
outrora, mesmo porque é uma comparação desigual. Vibro com as atuais conquistas
porque para mim, atualmente, são montanhas gigantes que consegui escalar.
Continuo lembrando bastante as coisas que eu fazia, mas não comparo mais, só
dou graças aos céus por ter tido a oportunidade de ter vivido, de faceto. 22 anos de
vida.
Percebe, minha querida amiga, como essa é uma postura diferente? Procuro
não ficar Lamentando o azar de ter perdido tudo, pois penso que tive sorte de ter
tido anos maravilhosos.
A cada dia tenho mais certeza que quem não viveu ou vive o que vivi, ou quem
passa pela vida sem descobrir o sabor que ela tem, é muito mais infeliz que aquele
que perde a vida... mesmo sem saber. Você pode chamar esse pensamento
de conformista até, mas eu acho que essa é a chave para uma vida melhor!
Todos os dias, temos de agradecer o dom da vida, de ter a mens sana in corpore
sano, saborear os prazeres da vida, desde comer uma boa picanha até fazer amor,
conquistar independência, liberdade, realizar um projecto, sentir-se amada...
Eu até tenho alguns desses prazeres mas o importante é que aprendi a valorizá-
los. Descobri que você não precisa sofrer uma tragédia para saborear mais e mais a
vida. Seja esperto! Deseje mais do que você tem, lute, conquiste, mas antes valorize
tudo o que você já tem.
Aprende-se muito numa situação como a minha. Angustia-me a falta de fala,
nunca me acostumarei a essa perda, mas sem ela me vi obrigada a observar. E
quanta coisa passa despercebida sem uma observação atenta! Eu falava,
conversava muito, adorava jogar papo fora! Agora, além de aprender a observar,
aprendi a usar as palavras quando necessário e descobri que o discurso escrito é
muito mais forte que o falado. Portanto, minha amiga, cuidado quando for
escrever algo, pois você pode ofender mais do que gostaria, ir além do que
esperariam. E esse tipo de linguagem não perdoa erros, "é preto no branco"!
Nada justifica esta existência besta, mas mesmo entregue à vida, tetraplégica e
muda, a gente tem de aprender a "tirar leite de pedra" e a extrair algo de bom. Tudo
para viver melhor!
Muitas coisas boas aconteceram nesta minha nova existência. Um apoio
carinhoso vindo do Conselho de Farmácia ou a interferência do Ric, um gentil
advogado amigo do Marcus, naquela história do meu seguro. Coisas como essas
amenizam o meu sofrimento por tudo que perdi e tornam os meus dias mais leves.
Teve um dos sentimentos que me castigou realmente durante os últimos anos. E
não estou falando de amor, aquele que se mostrou, durante esta trajetória, tão frágil
quanto a minha beleza. Estou me referindo ao sentimento mais nobre do ser
humano: a amizade.
Amizade... Não aquela com esse sentido vulgar que todos usam e que imaginei
que existisse. Pensando segundo aquele conceito, eu chamava de amigo todo rosto
simpático que se aproximava de mim, e por isso eu sofri, chorei, me
senti terrivelmente só e fiquei muito decepcionada com todos. O tempo passou e vi o
que eu não via. Hoje, meus poucos, mas valiosos amigos provam que gostam
mesmo de mim. Não me baseio em palavras, que me iludiram durante 22 anos, mas
em atitudes.
São as atitudes que provam isso, não palavras ditas num momento qualquer
que tanto ouvi pela minha vida. E acreditei muito nelas... Hoje um "Te adoro!" não
me ilude mais: quem adora não precisa falar, convive e mostra. Não quero
mais estar cercada de gente aonde quer que eu vá. Na realidade, a Luciana fagueira
e descolada na maioria das vezes estava sozinha sem saber.
Hoje, ela compreende melhor a vida, amando-a como a um doce proibido,
daqueles que a gente não vai mais comer. Respeito esta vida, pois aprendi que ela
possui três qualidades marcantes.
É bela, com um sabor indescritível.
É traiçoeira, pois tudo pode mudar instantaneamente.
É forte, pois vejo seu poder teimosamente me trazer um amanhecer. Um após
outro, dia após dia. E, mesmo sem asas, ela vai me ensinando a voar.
NOTA
Apesar da história de Luciana Scotti ser verdadeira, todas as pessoas nela envolvida
tiveram seus nomes devidamente trocados, estando assim protegidas em
suas verdadeiras identidades.
Os fatos narrados e as opiniões expressas neste livro são de inteira
responsabilidade da autora.
Fim