Werneck Artigo 2
Werneck Artigo 2
Primeiramente, agradeço o convite para participar deste XII Congresso Brasileiro de Ciências do
Esporte, trazendo algumas contribuições para o debate sobre o tema Educação Física e mundo do trabalho.
Esclareço que minhas considerações sobre esta temática serão feitas a partir da minha trajetória enquanto
estudiosa do lazer na realidade brasileira, objeto ao qual venho me dedicando, na Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG), desde o início da década de 1990. Assim sendo, o objetivo deste texto é efetuar
reflexões sobre a Educação Física e o mundo do trabalho a partir das interfaces estabelecidas, com o lazer, na
realidade brasileira. Para tanto, assume como eixo central de análise alguns aspectos que incidem sobre a
formação/intervenção profissional na área.
Na área da Educação Física são ainda incipientes os estudos sobre o mundo do trabalho e, na
maioria das vezes, as pesquisas sobre o assunto são efetuadas a partir das discussões relacionadas ao lazer.
Afinal, compreender o mundo do trabalho é um dos elementos fundamentais para o entendimento mais amplo
do lazer, sendo este um campo multifacetado que possibilita a realização de estudos e de intervenções por
parte de profissionais de diferentes áreas do conhecimento, dentre as quais a Educação Física.
Este texto foi divido em três partes inter-relacionadas: a primeira procura refletir sobre as
transformações no mundo do trabalho na sociedade contemporânea, bem como suas implicações nos campos
do lazer e da Educação Física no Brasil. A segunda, por sua vez, propõe uma discussão sobre os vínculos
histórica e socialmente estabelecidos entre a Educação Física, o lazer e o mundo do trabalho na realidade
brasileira. Com base nas considerações efetuadas, a terceira e última parte finaliza a discussão apontando um
desafio, considerado importante para que a Educação Física possa cumprir com a sua responsabilidade de
formar profissionais preparados para atuar em equipes integradas e construir ações consistentes, críticas e
criativas.
1
Não sendo registrado, o trabalho informal desobriga empregador e empregado a recolherem contribuições à
Previdência Social e ao Fundo de Garantia por Tempo de Serviço. Permite, ainda, o não pagamento de férias,
do 13o salário e do aviso prévio, entre outros direitos, que acabam poupando à empresa encargos trabalhistas
e fazendo com que o trabalhador abra mão da garantia de seus direitos – mesmo contrariando a lei. Os
ocupados por conta própria também perderam estes direitos e, além disso, tendem a trabalhar cada vez mais,
procurando ganhar o suficiente para manter o padrão usual de vida (WERNECK, STOPPA, ISAYAMA,
2001).
2
trabalho concede novos graus de liberdade para ex-empregadores, os ex-empregados perdem a segurança
antes obtida.
No Brasil este problema vem atingindo, mais especificamente, a chamada classe média. As
camadas mais pobres da população sempre viveram de “bicos”, trabalhos sazonais, comércio ambulante e
outras formas precarizadas de ocupação. A maioria dos brasileiros não somente trabalha, mas também
compra e vive informalmente porque a situação econômica verificada em nossa realidade não oferece
nenhuma outra alternativa. Os altos índices de desemprego constatados na sociedade contemporânea são,
dessa forma, o indício de um problema muito mais profundo, isto é, a deterioração das relações de trabalho,
visualizada nas relações informais de emprego.
Apesar de muitos autores afirmarem que hoje vem ocorrendo uma redução da necessidade de
trabalho humano, esta crença precisa ser repensada, uma vez que justifica, naturalmente, a brutal exclusão
das maiorias dos instrumentos de seguridade social. Não é apenas o desemprego que cresce assustadoramente
em todo o mundo, mas também o subemprego e outras formas de trabalho desprotegido, evidenciando que o
trabalho humano permanece não apenas necessário, mas imprescindível para o êxito da lógica excludente do
capital (ANTUNES, 2000).
Desde a década de 1980, em vários países do mundo, o número de empregados informais vem
ultrapassando o de formais no setor de prestação de serviços, sendo o quadro simplesmente traduzido como
“redução geral do emprego”. Mas essas transformações incluem tanto a exclusão de uma crescente massa de
trabalhadores do gozo de seus direitos legais, como a consolidação de um ponderável exército de reserva,
com o conseqüente agravamento da situação.
Na sociedade contemporânea, o setor de serviços é o que mais cresce em todo o mundo, e nele se
insere a área da Educação Física. Este crescimento vem gerando novas possibilidades de trabalho e de renda,
mas é necessário pensar que tipo de oportunidades são essas, e a quem elas realmente beneficiam. Apesar de
alguns profissionais considerarem que recebem uma remuneração justa, ou até mesmo substancial, pelos
serviços prestados como autônomos – atuando, por exemplo, como personal trainer, ou como monitor de
lazer sem vínculo empregatício – ela representa muito pouco diante das perdas sociais implicadas nesta
forma de trabalho informal. Além disso, esta fonte de renda é instável e insegura, pois não concede nenhuma
proteção ou garantia legal ao trabalhador. Sem contar que, no mercado de hoje, a remuneração justa e
substancial constitui uma exceção, e não a regra, uma vez que nem sempre é verificada em todas as
oportunidades que se abrem em nossa realidade. 2
Além do mundo do trabalho ser, hoje, instável e inseguro, ele é também altamente competitivo,
onde o lema que impera é “salve-se quem puder”. Este lema é contido na noção de empregabilidade que,
além de apontar saídas individualistas para o problema, transfere para o profissional a responsabilidade de
estar, ou não, em condições de ser absorvido pelo mercado.
Do ponto de vista do mercado de trabalho, na atualidade o lazer constitui uma das possibilidades
de atuação para os profissionais formados na área da Educação Física. Aliás, segundo vem sendo
amplamente divulgado pela mídia, o lazer é um dos setores “mais promissores do século XXI”. Todavia,
como o lazer não é um campo de atuação exclusivo dos profissionais da Educação Física, os estudos e
intervenções neste campo vêm sendo realizados por vários profissionais e pesquisadores: administradores,
antropólogos, arquitetos, economistas, filósofos, historiadores, pedagogos, professores de Educação Física e
sociólogos, entre outros. Sendo um campo que procura ser constituído em uma perspectiva interdisciplinar, o
lazer exige o concurso de várias disciplinas, não sendo específico de nenhuma área de conhecimento. A
riqueza do lazer – enquanto um campo de formação e de intervenção profissional – advém justamente desse
aspecto, possibilitando um trabalho coletivo que pode ser muito significativo mas que, por outro lado,
representa um exercício altamente complexo.
Dessa maneira, as áreas interessadas no lazer, como um campo de atuação, têm grande
responsabilidade em formar profissionais preparados para trabalhar em equipes interdisciplinares. Por essa
razão, discussões consistentes sobre o lazer precisam estar presentes na formação profissional em Educação
Física, procurando focalizá-lo não apenas como um “negócio promissor”, mas como uma possibilidade de
intervenção profissional revestida de grande responsabilidade política e social. Afinal, o lazer não representa
apenas um instrumento de manipulação ideológica, mas um campo através do qual podemos refletir sobre a
dinâmica social mais ampla. Sendo um suporte de múltiplos significados, o lazer pode oferecer uma via de
acesso para a compreensão dos impasses, das contradições e também das perspectivas que se abrem na nossa
realidade, pois ele está estreitamente vinculado aos demais planos da vida social.
2
Não se deve ignorar que a pressão do desemprego é um elemento decisivo para que uma grande parcela de
pessoas acabe buscando pequenos serviços por conta própria, ou aceitando o emprego informal e outras
formas precarizadas de ocupação.
3
Este entendimento de lazer, embora seja considerado válido e da mais alta importância para muitos
profissionais de Educação Física, para outros (preocupados, sobretudo, em ocupar e “fiscalizar” o mercado
de trabalho), é uma referência discutível. Seguindo esta linha de pensamento, se o lazer pode “pertencer” a
qualquer profissional habilitado a atuar neste campo, é preciso que a Educação Física reafirme seus direitos
enquanto legítima “proprietária” da recreação. Penso que esta visão necessita ser repensada porque, a meu
ver, não detém conhecimento profundo da realidade construída em nosso meio – especialmente considerando
o histórico envolvimento não apenas da Educação Física com a recreação, mas também (e sobretudo) da
Educação e, mais recentemente, do Turismo e da Terapia Ocupacional, entre outras áreas.
Além disso, nas últimas décadas muitos profissionais e instituições da área da Educação Física
vêm prestando expressivas contribuições ao incremento da produção teórico-prática sobre o lazer em nosso
meio, o que vem gerando avanços para ambos. Não se trata, assim, de abandonar as discussões e vivências
teórico-práticas sobre o lazer em nome de uma possível apropriação da recreação pela Educação Física, o que
seria um grande retrocesso em face das conquistas que vêm marcando a área: realização de pesquisas sobre o
assunto, constituição de grupos de estudo, elaboração de propostas de intervenção profissional,
implementação de políticas públicas, entre outras ações expressivas que vêm contribuindo com o
estreitamento de vínculos entre o lazer e a Educação Física.
O agente mobilizador desta visão (que defende a recreação como uma ocupação própria da
Educação Física), é o processo de atualização da Classificação Brasileira de Ocupações – conhecido pela
sigla CBO/2000 – iniciado, em 1996, pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). A atualização deste
documento foi requerida em função das profundas mudanças processadas no mundo do trabalho que vêm
exigindo, dos trabalhadores, o desenvolvimento de “novas competências” frente a sua profissão. Segundo o
MTE, o próprio conceito de ocupação vem sendo modificado, substituindo as antigas qualificações fixas por
“sistemas mais versáteis, amplos e flexíveis”, isto é, conforme requerido pela lógica da nova ordem
econômica mundial. 3
De acordo com o MTE, entre outros aspectos, a elaboração da CBO/2000 partiu da necessidade de
uniformizar os títulos e codificar as ocupações brasileiras para fins de pesquisa sobre o mercado de trabalho e
de estrutura ocupacional, apresentando assim uma ordenação das várias categorias ocupacionais.4 Mesmo que
o processo de atualização da CBO/2000 seja passível de várias críticas e questionamentos – assunto ao qual
não me aprofundarei, neste momento, por se tratar de questões emergentes, ainda em fase de elaboração –,
ele nos indica um ponto importante para reflexão: a viabilidade de incluir a ocupação “recreador de
atividades físicas” na Família Ocupacional Educação Física. É o que propõe o Conselho Federal de Educação
Física (CONFEF), a partir dos estudos elaborados pelo Conselho Regional de Educação Física-CREF6/MG,
no corrente ano.5
3
A CBO é o documento normalizador do reconhecimento, nomeação e codificação dos títulos e conteúdos
das ocupações no mercado de trabalho brasileiro. Origina-se do Cadastro Brasileiro de Ocupações do
Ministério do Trabalho e da Classificação Internacional Uniforme de Ocupações (CIUO) da Organização
Internacional do Trabalho, de 1968. A CBO é utilizada para registros administrativos, carteira de trabalho,
imposto de renda, imigração, pesquisas salariais, estatísticas oficiais, definição de políticas de emprego, entre
outros. O objetivo é que a nova CBO seja a única classificação ocupacional brasileira, passando a ser
utilizada também para os registros domiciliares (censo), garantindo também a atualização e a competitividade
da mão-de-obra do país em nível internacional. Maiores informações sobre o assunto podem ser obtidas em
<http://www.mte.gov.br>.
4
Para o MTE, Categoria Ocupacional é um conceito genérico, aplicável a qualquer agrupamento
classificatório de realidades do trabalho. São quatro as Categorias que compõem a estrutura da CBO:
Grandes Grupos, Subgrupos, Grupos de Base e Ocupações. Grande Grupo é a categoria de classificação que
reúne amplas áreas de emprego. Subgrupo trata-se de um agrupamento mais restrito e configura,
principalmente, as grandes linhas do mercado de trabalho. O Grupo de Base (também denominado grupo
primário, grupo unitário e família ocupacional) reúne ocupações que apresentam estreito parentesco, tanto em
relação à natureza de trabalho, quanto aos níveis de qualificação exigidos. Ocupação, por sua vez, é a
unidade do sistema de classificação que engloba postos de trabalho substancialmente iguais quanto a natureza
e as qualificações exigidas.
5
O grupo de especialistas selecionado, pelo MTE, para a descrição da Família Ocupacional Educação Física,
propõe as seguintes ocupações para os profissionais dessa área (exceto professores do ensino regular):
Avaliador físico; Ludomotricista; Preparador de atleta; Preparador físico; Técnico de desporto individual e
coletivo; Técnico de laboratório e fiscalização desportiva; Treinador profissional de futebol. O CONFEF,
com base no trabalho efetuado por este grupo, defende as seguintes ocupações: Orientador de atividades
corporais; Avaliador físico; Treinador esportivo; Preparador físico e Recreador de atividades físicas. A
4
O MTE esclarece que a ocupação “recreacionista” (ou recreador) não pode ser incluída na Família
Ocupacional Educação Física e, mesmo que ocorra a adoção de um termo qualificador (como, por exemplo,
recreador “de atividades físicas”), as ocupações deste grupo serão, conforme dados fornecidos por PAIVA
(2001), contempladas em uma Família específica na CBO/2000, que possivelmente será descrita em 2002. A
descrição de uma Família consiste de um prévio estudo de escopo, verificando por meio de pesquisas e
entrevistas a pertinência de uma Família Ocupacional e de suas ocupações. Para tanto, é imprescindível
analisar e discriminar as competências desenvolvidas pelos vários profissionais que atuam nesta perspectiva,
seja no âmbito dos aspectos pedagógicos que incidem sobre a recreação na educação infantil, ou sobre o lazer
de clientes, como sublinha PAIVA (2001).
Todo este processo que incide sobre as ocupações relacionadas à recreação, ao lazer e à Educação
Física vem sendo, periodicamente, discutido pelos membros do CELAR/UFMG, e minha posição sobre este
assunto está de acordo com as discussões que realizamos até o momento. Assim, entendemos a Educação
Física como uma área que abrange as vivências corporais, e estas podem ser desenvolvidas na perspectiva do
lazer – como práticas culturais lúdicas realizadas no tempo disponível dos sujeitos. O campo do lazer engloba
interesses diversificados, cuja classificação mais comum é baseada em seis grupos articulados: físico-
esportivos, artísticos, sociais, “manuais”, “intelectuais” (DUMAZEDIER, 1979) e turísticos (CAMARGO,
1986). Dessa maneira, um suposto recreador de atividades físicas não poderia lidar com esses campos
diversificados de interesse, pois sua ação ficaria limitada a apenas um deles.
Por outro lado, se um “recreador de atividades físicas” puder desenvolver competências e
habilidades que o permitam interagir com os diversos campos de interesse do lazer, em equipes
interdisciplinares, precisaria de uma formação mais ampla, o que tornaria esta denominação imprópria para
as possíveis atribuições a serem desempenhadas. Tal orientação reafirma a necessidade de um processo
formativo qualificado, sólido e abrangente, em consonância com as novas demandas da sociedade, e não
apenas com as demandas do mercado.
Tomando como referência a elaboração da CBO/2000, sendo contrária à inclusão da ocupação
“recreador de atividades físicas” na Família Ocupacional Educação Física, a princípio pode parecer que estou
privando a área de uma “oportunidade e tanto”, mas não se trata disso. O que me instiga não é a possibilidade
de assegurar uma fatia do mercado, mas de encontrar novos caminhos de enriquecimento para a formação e
para as intervenções profissionais, nessa área, em uma perspectiva interdisciplinar. Além de fundamental,
considero legítima a participação dos profissionais de Educação Física no campo do lazer. Mesmo que a
recreação e/ou o lazer constituam uma Família Ocupacional específica, o que precisa ser assegurado é que os
profissionais da Educação Física possam continuar tendo uma participação neste campo, e o que justifica este
argumento é a história que vem sendo socialmente construída em nossa realidade, conforme será exposto a
seguir.
Revendo os vínculos historicamente estabelecidos entre Educação Física, recreação, lazer e mundo do
trabalho na realidade brasileira
De um modo geral, são várias as interseções entre a Educação Física, o lazer e o mundo do
trabalho em nossa realidade, mobilizadas principalmente por meio do desenvolvimento de programas de
recreação durante o chamado “tempo livre”. Em nosso país, este encaminhamento vem sendo desenvolvido
pelo poder público, empresas privadas e outras entidades há quase um século.
Nas primeiras décadas do século XX foram implementados alguns “Serviços de Recreação” para
os trabalhadores, com vistas a promover a ocupação “saudável e útil” das suas horas de lazer. Afinal, à
medida que as leis fixadas em diferentes países provocaram o aumento do tempo livre dos trabalhadores
assalariados, foi também ampliada a preocupação em torno dos usos que poderiam ser feitos deste tempo
extra. 6
Aos olhos dos segmentos hegemônicos (isto é, das elites econômicas e de projeção política, cujos
interesses são privilegiados em diferentes contextos históricos e sociais), as horas adicionais concedidas aos
assalariados poderiam ser perigosamente empregadas em atividades que levassem à delinqüência,
alcoolismo, jogos de azar e todo tipo de vício que provoca a degradação física, moral e social. Segundo
DUMAZEDIER (1979), o grande receio era que o tempo liberado fosse utilizado para a degradação da
personalidade, e não para o florescimento da sociedade. A organização dos lazeres tornou-se, assim, condição
sine qua non para a diminuição do tempo de trabalho, um problema que deveria ser enfrentado,
cuidadosamente, em todos os países do mundo.
O problema dos lazeres dos trabalhadores assalariados foi discutido em vários eventos
internacionais promovidos, principalmente, pela Organização Internacional do Trabalho (OIT). Na
Conferência Internacional do Trabalho realizada em 1924, o Comitê de Correspondência deste órgão
concluiu, entre outros aspectos, que deveriam ser estabelecidos dois objetivos para solucionar este problema:
educação e recreação. Pensava-se que a utilização dos lazeres, com esses dois elementos, iria promover bem-
estar, saúde e educação para o povo – auxiliando, assim, o uso racional e adequado das horas vagas
(SUSSEKIND et al., 1952).
Desde aquela época, a Educação Física representava um elemento imprescindível das propostas de
recreação organizadas para os trabalhadores assalariados auxiliando, consideravelmente, a recuperação da
força de trabalho. Como lembram MELO, FONSECA (1997), já eram conhecidas as contribuições que a
ginástica e a prática de esportes proporcionavam à saúde e, entre outros benefícios, aumentavam a
capacidade funcional do operariado, contribuindo também com a formação de hábitos morais e com a
educação higiênica da população.
No Brasil, foi a partir da década de 1930 que a preocupação com a organização de programas de
recreação específicos para os operários ganhou impulso decisivo, em consonância com a política trabalhista
adotada no governo Vargas. De acordo com as pesquisas de Costa (BRASIL, 1990:11), em 1939 o governo
pretendeu, com o Decreto-Lei 1713, organizar o lazer e o esporte para os servidores públicos federais. Este
Decreto dispôs sobre o Estatuto dos Funcionários Públicos Civis da União, prevendo a criação de “Centros
de Educação Física e Cultural para recreio, aperfeiçoamento moral e intelectual dos funcionários e de suas
famílias, fora das horas de trabalho.”
Como esclarece LENHARO (1986), na Era Vargas procurou-se criar novos conceitos de trabalho e
de trabalhador, no Brasil. Esta pretensão foi uma contrapartida do que já era praticado no setor urbano
industrial: o forjamento do trabalhador despolitizado, disciplinado e produtivo. Embora a organização de
programas de recreação para a população trabalhadora – com finalidades ideológicas – não tenha sido um
movimento homogêneo, linear e impositivo, representou um caminho possível para difundir esses novos
conceitos. Era esta a base de sustentação para o engrandecimento do país, segundo a política trabalhista
desenvolvida na realidade brasileira da época.
Os Clubes de Menores Operários7 e o Serviço de Recreação Operária8, criados respectivamente
em São Paulo (1937) e no Rio de Janeiro (1943), constituem alguns exemplos significativos neste sentido.
7
Em São Paulo, desde o ano de 1935, programas de recreação eram desenvolvidos nos “Parques Infantis”
criados pelo Serviço Municipal de Jogos e Recreios. Ao analisar o problema da mocidade operária e refletir
sobre as nefastas conseqüências do seu abandono social, moral, educacional e recreativo, no ano seguinte
MIRANDA (1984) propôs à Municipalidade paulistana a criação dos Clubes de Menores Operários. Esses
Clubes foram instituídos, em 1937, nos Parques Infantis construídos em bairros de grande concentração
operária (passando a ser denominados “Parques de jogos”), sendo abertos à noite para atender os menores do
sexo masculino que já haviam ingressado no mercado do trabalho. Estes sistemas procuravam criar uma
personalidade vigorosa no adolescente operário, consolidada por meio da prática de jogos, exercícios
ginásticos, esportes e cultivo de determinadas formas de arte. Procuravam, também, aumentar a capacidade
do trabalhador profissional, promover a educação higiênica, aperfeiçoar a vida mental do adolescente, formar
hábitos morais e elevar a consciência cívica dos moços.
8
Visando proporcionar recreação organizada para a população trabalhadora, o Serviço de Recreação
Operária (SRO) integrava as ações do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio e era mantido por uma
pequena parcela do imposto sindical. Convém salientar que, desde o ano de 1942, a Consolidação das Leis do
Trabalho (CLT) vinha sendo elaborada por uma Comissão, entrando em vigor em 10 de novembro do ano
seguinte. Entre outros aspectos, a CLT fixou a duração da jornada em 8 horas diárias e regulamentou a lei de
férias e o descanso semanal para todos os trabalhadores. A criação do SRO foi concomitante à CLT e, mesmo
que ambos não tivessem nenhuma relação, nada mais oportuno do que criar um serviço como este, que
poderia promover a ocupação das horas vagas do operariado e sua família. O SRO era um órgão incumbido
de difundir e coordenar atividades diversificadas (nos Setores culturais, desportivo e de escotismo), muitas
das quais vivenciadas nos “Centros de Recreação” criados pelo Ministério do Trabalho em bairros de grande
densidade operária. Nesses Centros, os trabalhadores e suas famílias encontravam, gratuitamente, bibliotecas,
discotecas, exibições teatrais e cinematográficas, aulas de canto, jogos de salão, sessões de ginástica, campos
de futebol, quadras de voleibol e basquetebol, entre inúmeras outras possibilidades (WERNECK, 2001).
6
Além do mais, experiências como essas abriram novas possibilidades de inserção para os profissionais da
Educação Física. O objetivo desses serviços públicos era colaborar com a formação de corpos disciplinados e
aptos para o trabalho, em um mercado cambiante e flexível que precisava de trabalhadores vigorosos,
preparados e disponíveis para funcionar. O que em outras realizações semelhantes poderia constituir um fim
– os jogos, a ginástica, os esportes –, nesses sistemas representavam um meio de proporcionar recreação,
assistência e educação para o operariado.
Acreditava-se que as atividades físicas e recreativas, devidamente desenvolvidas nas “horas de
alheamento” dos operários, auxiliavam a recuperação do organismo debilitado pelo trabalho. Várias
pesquisas sobre o assunto já vinham sendo realizadas por especialistas do mundo inteiro, comprovando que o
organismo humano poderia resistir a um máximo de desgaste de energia, além do qual o trabalho se
apresentava improdutivo e prejudicial ao indivíduo e à coletividade (e também ao modo de produção
capitalista). De acordo com SUSSEKIND (1946), os esportes desempenhavam relevante papel na solução
dos problemas gerados pelo trabalho sedentário e mecânico, exercendo demarcada influência no físico, no
espírito e na educação social do homem, preparando os indivíduos para o trabalho e para a vida em
coletividade. As sessões de ginástica, os jogos e as competições esportivas organizados para os trabalhadores
operários funcionavam, dessa forma, como um fator de higiene física e mental.
Trabalho, repouso e recreação constituíam, assim, a fórmula ideal para a existência feliz do
operário que produzia o progresso e a riqueza nacional. À recreação “cientificamente empregada, e
competentemente dirigida”, caberia restaurar o equilíbrio biológico entre o espírito e o corpo, fazendo com
que os trabalhadores se sentissem felizes no ambiente em que viviam.9
Não se pode ignorar o fato de que ações como essas pretendiam fazer com que os trabalhadores
estivessem entretidos e esquecessem, mesmo que fosse por apenas alguns instantes, o ambiente de sua
oficina, como afirma SUSSEKIND (1946). Contudo, fazendo com que os operários e suas famílias
esquecessem (e aceitassem) a dura realidade, seria mais fácil promover a paz e a harmonia social,
pressupostos básicos para a manutenção do status quo.
Sem dúvida, a organização da recreação possibilitava diversão, alegria e prazer os trabalhadores
por meio do acesso a diferentes conteúdos culturais, o que era de grande valia para vários segmentos da
sociedade, especialmente para as classes economicamente desfavorecidas. Mas o alcance político, social,
cultural e educativo de empreendimentos como os exemplos aqui salientados ultrapassaram, em muito, a
mera dimensão recreativa.
Não foi apenas o poder público que tomou para si a responsabilidade de oferecer, à população
trabalhadora, programas de recreação que incluíam, com destaque, a Educação Física. Ao longo de todo o
século XX, várias instituições públicas e privadas se empenharam por ampliar oportunidades de lazer para os
trabalhadores e suas famílias, tais como o Banco do Brasil; Avon Cosméticos de São Paulo; Bicicletas Caloi,
Embratel e Grupo Pão de Açúcar, entre inúmeras outras (BRASIL, 1990). Embora não seja objetivo deste
texto analisar essas e outras propostas, eu gostaria apenas de assinalar que foi principalmente no decorrer da
década de 1970 que a organização do esporte e do lazer, em empresas, recebeu grande impulso no Brasil,
reforçando ainda mais os vínculos entre a Educação Física, o lazer e o trabalho.
Entidades patronais de direito privado, como o Serviço Social do Comércio (SESC) 10 e o Serviço
Social da Indústria (SESI) 11, bem como a Associação Cristã de Moços (ACM), foram também algumas
9
LENHARO (1986) sublinha que, nos anos de 1940, trabalho industrial era associado com tristeza, o que
gerava vários problemas sociais. Os serviços de recreação organizados para o operariado poderiam ser,
assim, um combate otimista contra a tristeza ancestral que dominava o povo brasileiro face às condições de
trabalho e de vida a que era submetido, o que demandava efetuar um vínculo entre o dia a dia na fábrica e o
cotidiano externo a ela. Nesse sentido, o operário acabaria trazendo, para o lar, o “bom exemplo” do Estado,
do sindicato, do clube ou da fábrica, instituições geradoras de uma alegria comunicativa e sadia que poderia
animar a esposa e os filhos para a compreensão da nova concepção de vida requerida naquele momento
histórico. Daí a indiscutível importância de se proporcionar, para o operário e sua família, alegria e felicidade
nas suas horas de lazer.
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Ao longo de sua história, a opção do SESC vem privilegiando as atividades que marcam a sua vocação
institucional para a promoção da “paz social”. Por meio do trabalho educativo, o SESC vem visualizando em
diversas práticas culturais, destacando-se o esporte, um caminho interessante de ação. Foi em 1969 que o
SESC definiu, em nível nacional, que o lazer seria uma das diretrizes básicas da instituição, deixando de ser
considerado um problema urbano de metrópoles da região desenvolvida do país.
11
De acordo com RAMALHO (1997), o programa de incentivo ao lazer no SESI começou assim que a
entidade foi instituída no Brasil. Para tanto, bastava marcar a data de um evento esportivo, caminhada ou
7
instituições expressivas neste período, no que se refere às interseções da Educação Física com o lazer e o
mundo do trabalho em nosso contexto. Essas instituições vêm desenvolvendo atividades esportivas e
recreativas em centros sociais, clubes, colônias de férias, eventos e unidades móveis, muitas vezes contando
com substanciais recursos, capazes de garantir infra-estrutura física adequada, materiais diversificados e
contratação de técnicos especializados, entre outros elementos relevantes. Em termos do desenvolvimento de
programas de Educação Física relacionados com o mundo do trabalho, enquanto a ACM e o SESC se
destacam, sobretudo, pelas ações ligadas a programas institucionais de lazer, o SESI procura englobar,
também, o próprio período da jornada de trabalho.
De acordo com os dados divulgados em uma pesquisa realizada por VASCONCELOS (2001),
somente no Estado de Minas Gerais, até o final do ano de 2000, o Programa Ginástica na Empresa (PGE)
adotado pelo SESI contou com a participação de mais de cinqüenta mil trabalhadores e, para muitos
participantes, os dez ou quinze minutos dedicados à atividade física representa “um momento de lazer”
dentro da própria jornada de trabalho.
Ora, lazer e trabalho são práticas sociais dialeticamente relacionadas em nosso contexto, mas cada
um possui sua própria identidade, impossível de ser diluída em uma sociedade fragmentada (em seus tempos
e espaços sociais), contraditória e injusta como a nossa. Além disso, como afirma RAMALHO (1999), o PGE
procura promover os seguintes objetivos: prevenção da saúde ocupacional e do estresse; melhoria do
rendimento funcional; redução dos acidentes no trabalho; diminuição dos gastos com despesas médicas,
melhoria das relações interpessoais e aumento da produtividade. Com esses objetivos penso que, mesmo que
o PGE proporcione momentos de descontração e prazer, jamais poderia ser confundido com o lazer.
O lazer, no meu entendimento, representa um direito social, um dos elementos que integra o
efetivo exercício de cidadania comprometido com a autonomia e a participação crítica dos sujeitos, e não
com a lógica excludente do capital. Apesar de o lazer não ser um fenômeno isolado em nosso meio e não
estar imune a esta lógica, ele pode ser um canal de resistência e de engajamento político com grande
potencial para a compreensão das contradições que marcam a nossa dinâmica social. Esta é a visão de lazer
que vem instigando meus estudos e intervenções profissionais na Educação Física.12
Como ressaltou SANTOS (2000), lazer também é política. Por enquanto é, sobretudo, política das
empresas, da lógica excludente do capital. Mas já é possível vislumbrar o atrevimento de alguns grupos e
instituições que interferem, com os meios ao seu alcance, no sentido de estimular a produção de um lazer
mais próximo da sensibilidade popular, isto é, da cultura, e não propriamente do mercado. Como assinalou o
autor, tais iniciativas podem (e devem) ser multiplicadas e estimuladas por diversas vias, podem (e devem)
obedecer a um projeto político mais ousado, transgressor, consistente, coerente e inovador.
Apesar da importância dos programas desenvolvidos por entidades como as citadas anteriormente,
mesmo que os benefícios conferidos aos usuários dos serviços proporcionados sejam de grande valor,
contribuindo com a democratização do acesso aos bens culturais (um dos elementos importantes para o
exercício de cidadania e para a melhoria da qualidade de vida da população em geral), mais alguns aspectos
precisam ser repensados:
Possibilitar o acesso aos bens culturais é suficiente para construir uma outra realidade social,
alargando as possibilidades para que os sujeitos sejam produtores de cultura, tendo em vista a renovação da
nossa vida em sociedade e a emancipação humana e social? Para onde são canalizados os frutos alcançados
com o desenvolvimento de determinadas propostas, ditas de lazer, que se utilizam da Educação Física como
eixo de intervenção no mundo do trabalho? Pretendemos afirmar, em princípio, a liberdade dos sujeitos
particulares, definidores da ordem social que garante a manutenção do status quo, ou dos sujeitos sociais?
Almejando a “paz social” em nossa realidade, tal como ela é – lema de muitas entidades em nosso país –,
ampliamos ou reduzimos as chances para exercitar os princípios de igualdade e eqüidade, justa distribuição
de recursos e reconhecimento mais amplo dos sujeitos sociais?
Responder essas questões é crucial para que a Educação Física continue avançando discussões
sobre o lazer e o mundo do trabalho. Isso requer uma tomada de posição frente às dimensões sociais,
políticas, econômicas, educacionais e culturais que influenciam as vivências construídas no contexto da
Educação Física, muitas vezes restritas à mera prescrição de atividades (aparentemente) desconectadas da
dinâmica social mais ampla.
passeio de bicicleta que a imprensa, “simpática à causa”, fazia a divulgação. A prefeitura fazia a sua parte,
fechando a rua, e a presença dos operários era maciça, contribuindo com o êxito do empreendimento. Foi
desta maneira “informal, alegre e festiva” que a atual política de lazer da instituição foi sendo constituída,
possibilitando aos trabalhadores o acesso a diversos bens culturais, tais como o esporte e as atividades físicas
de um modo geral. De acordo com a autora, “o SESI foi instituído para promover o bem-estar e a paz social
entre o capital e o trabalho” (p.175).
12
Este entendimento de lazer é trabalhado, com mais elementos, em WERNECK (2000).
8
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