Estudos Dialetais e Sociolinguísticos No Brasil

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Sumário

1
Agradecimentos
Agradecemos o incentivo financeiro da Coordena-
ção de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Supe-
rior – CAPES, em especial ao Programa de Apoio a
Eventos no PAÍS – PAEP, que proporcionou a publi-
cação desta obra por meio do Edital Nº 25/2019. E
também o apoio do Programa de Pós-Graduação em
Letras – PPGLET, da Universidade Federal do Ama-
pá – UNIFAP, e do Curso de Licenciatura em Letras
– COLILE, da Universidade do Estado do Amapá –
UEAP.
Comitê Científico
Prof.ª Dr.ª Anne Carolina Pamplona Chagas (EAUFPA)
Prof.ª Dr.ª Bruna Fernanda Soares De Lima Padovani (UEPA/UEAP)
Prof.ª Dr.ª Carlene Ferreira Nunes Salvador (UFRA)
Prof.ª Dr.ª Celeste Maria da Rocha Ribeiro (UNIFAP)
Prof. Dr. Edmilson José de Sá (CESA)
Prof.ª Dr.ª Edna dos Santos Oliveira (UEAP)
Prof. Dr. Eduardo Alves Vasconcelos (UNIFAP)
Prof.ª M.ª Érica do Socorro Reis (UFF)
Prof.ª Dr.ª Gisele Braga Souza (UNICAMP)
Prof.ª M.ª Helen Costa Coelho (UEAP/UFPA)
Prof.ª M.ª Josineia Andrade Ramo Araújo (UFF)
Prof.ª Dr.ª Kelly Cristina Nascimento Day (UEAP/UNIFAP)
Prof.ª M.ª Michelle Araujo de Oliveira (UEAP/UNESP)
Prof.ª Dr.ª Rejane Umbelina Garcez Santos de Oliveira (GeoLinTerm/UFPA)
Prof. Dr. Regis José da Cunha Guedes (UFRA)
Prof. Dr. Romário Duarte Sanches (UEAP/UNIFAP)
Prof.ª Dr.ª Thaís Leal Rodrigues (FAETEC)
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Editora do Núcleo de Estudos das Culturas Amazônicas e Pan-
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www.nepaneditora.com.br | [email protected]

Diretor administrativo: Marcelo Alves Ishii


Conselho Editorial: Agenor Sarraf Pacheco (UFPA), Ana Pizarro (Universidade de
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(Ufac), Francemilda Lopes do Nascimento (Ufac), Francielle Maria Modesto Mendes
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Costa (Ufam), João Carlos de Souza Ribeiro (Ufac), Jones Dari Goettert (UFGD), Leopoldo
Bernucci (Universidade da Califórnia), Livia Reis (UFF), Luís Balkar Sá Peixoto Pinheiro
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Antonacci (PUC-SP), Maria Chavarria (Universidade Nacional Maior de São Marcos, Peru),
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(Unir), Raquel Alves Ishii (Ufac), Sérgio Roberto Gomes Souza (Ufac), Sidney da Silva
Lobato (Unifap), Tânia Mara Rezende Machado (Ufac).
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

E82

Estudos dialetais e sociolinguísticos no Brasil / organização Celeste Maria da Rocha Ribeiro,


Romário Duarte Sanches. – Rio Branco: Nepan Editora, 2021.

217 p.: il. (algumas col.)

E-book em formato PDF.

Inclui referências bibliográficas.

ISBN: 978-65-89135-33-3 

1. Dialetos – Brasil. 2. Linguística – Brasil. 3. Linguística – Estudo e ensino. 4. Dialetos – Estudo e


ensino. I. Ribeiro, Celeste Maria da Rocha. II. Sanches, Romário Duarte. III. Título.

CDD 22. ed. 469.798

Bibliotecária Maria do Socorro de O. Cordeiro – CRB 11/667


Sumário
Apresentação
Celeste Maria da Rocha Ribeiro, Romário Duarte Sanches....................................................... 8

ESTUDOS FONÉTICOS E
MORFOSSINTÁTICOS
Variações no falar amapaense: um olhar para a
desnasalização de ditongo final em verbos de 3ª
pessoa do plural
Gabriel Nunes Yared Lima, Celeste Maria da Rocha Ribeiro.................................................. 12

Bandeira , paz : a monotongação


e a ditongação nos inquéritos experimentais do
Atlas Fonético-Fonológico de Alcântara
Anna Carolina Ferreira Sangiorgi......................................................................................... 26

Tu falas remando ou remano? Um estudo sobre


marcação de gerúndio no português falado no
Amapá
Adriana Gabriela Reis Silva, Romário Duarte Sanches.......................................................... 33

“Manda brasa”: um estudo quantitativo sobre a


variação de sentenças imperativas em São Luís-
MA
Matheus da Silva Lopes, Cibelle Corrêa Béliche Alves, Conceição de Maria de
Araújo Ramos................................................................................................................... 46

Metaplasmos no Português falado por


amapaenses: sob um viés Geolinguístico
Michele Silva de Carvalho, Romário Duarte Sanches............................................................. 57

Aspectos morfossintáticos das unidades


terminológicas da piscicultura
Josué Leonardo Santos de Souza Lisboa.................................................................................. 68

As funcionalidades do uso da estrutura “açu”


no falar baionense
Emerson Deni dos Santos Nogueira Junior, Érica do Socorro Barbosa Reis........................... 80
Na língua, nada se cria, nada se perde, apenas
recrutam-se elementos para novas funções
Danielle de Melo Viana, Robson Borges Rua.......................................................................... 91

ESTUDOS LEXICAIS, CONTATO


LINGUÍSTICO E TRADIÇÃO ORAL
Variação lexical do item banguela nas não
capitais da Região Nordeste do Projeto ALiB
Marcia de Souza Dias, Regis José da Cunha Guedes, Abdelhak Razky................................. 106

Faixa com listras coloridas e curva no céu,


chuva fina e terra umedecida pela chuva nos
dados do Atlas Linguístico do Brasil - ALiB:
Variação semântico-lexical
Genivaldo da Conceição Oliveira.......................................................................................... 114

Designações para cabra-cega: um olhar sobre o


léxico fronteiriço Brasil-Bolívia
Fernando Jesus da Silva....................................................................................................... 130

O contato português-francês e o bilinguismo


societal dos catraieiros na fronteira franco-
brasileira
Lizandra Valéria da Silva Fumelê, Kelly Cristina Nascimento Day...................................... 142

Ladrão: um legado afrodescendente nas


tradições orais mazaganenses
Edna dos Santos Oliveira..................................................................................................... 154

VARIAÇÃO E ENSINO DE LÍNGUAS


O ensino-aprendizagem de língua materna à
luz da concepção Sociolinguística a partir da
utilização de textos poéticos e tirinhas
Allina Tainá dos Santos Lobo, Ana Karolina Damas da Costa, Maria Sebastiana
da Silva Costa...................................................................................................................... 165

Aquendando a sociolinguística: reflexões sobre


o pajubá no ENEM
André Luiz Souza Silva....................................................................................................... 176

Uma proposta de intervenção para a produção


e percepção da oclusiva glotal no ensino de
inglês como língua estrangeira
Mariane dos Santos Monteiro Duarte, Leônidas José da Silva Jr.......................................... 192

Gêneros textuais e transculturalidade em


atividades de produção escrita
Michell Gadelha Moutinho.................................................................................................. 204
Apresentação
Celeste Maria da Rocha Ribeiro
Romário Duarte Sanches

Esta obra reúne estudos dialetais e sociolinguísticos realizados no Brasil. O


objetivo é divulgar pesquisas relacionadas à variação, mudança e diversidade lin-
guística, visando avaliar as bases teórico-metodológicas que dão sustentação a es-
ses estudos.
Deste modo, o e-book está organizado em três partes: i) estudos fonéticos e
morfossintáticos, ii) estudos lexicais, contato linguístico e tradição oral e iii) variação
e ensino de línguas.
Na parte I, Estudos fonéticos e morfossintáticos, encontram-se oito capítulos. O
primeiro capítulo, intitulado “Variações no falar amapaense: um olhar para a des-
nasalização de ditongo final em verbos de 3ª pessoa do plural”, de Gabriel Nunes
Yared Lima e Celeste Maria da Rocha Ribeiro, investiga o processo de desnasaliza-
ção do português que ocorre em ditongo nasal final, pós-tônico, em formas verbais
na 3ª pessoa do plural em três municípios do estado do Amapá.
O segundo capítulo, intitulado “Bandeira [bãˈdeɾɐ], paz [ˈpajs]: a monotonga-
ção e a ditongação nos inquéritos experimentais do Atlas Fonético-Fonológico de
Alcântara”, de Anna Carolina Ferreira Sangiorgi, apresenta fenômenos da monoton-
gação em ditongos decrescentes orais [aj], [ej], [oj] e de ditongação, com base no
corpus do Projeto Atlas Fonético-Fonológico de Alcântara, município do estado do
Maranhão.
O terceiro capítulo, intitulado “Tu falas remando ou remano? Um estudo sobre
marcação de gerúndio no português falado no Amapá”, de Adriana Gabriela Reis
Silva e Romário Duarte Sanches, mostra como se configura a marcação de gerúndio
no português falado por amapaenses, seguindo uma abordagem geolinguística.
O quarto capítulo, intitulado “Manda brasa: um estudo quantitativo sobre a
variação do imperativo no português falado no Maranhão”, de Matheus da Silva Lo-
pes, Cibelle Corrêa Béliche Alves e Conceição de Maria de Araújo Ramos, apresenta
as variantes linguísticas nos modos verbais utilizados na construção de sentenças
com tom imperativo no português falado em São Luís, no Maranhão.
Sumário
9
O quinto capítulo, intitulado “Metaplasmos no português falado por amapa-
enses sob um viés geolinguístico”, de Michele Silva de Carvalho e Romário Duarte
Sanches, descreve os tipos de metaplasmos no falar amapaense, a partir do banco
de dados do Projeto Atlas Linguístico do Amapá -ALAP.
O sexto capítulo, intitulado “Aspectos morfossintáticos das unidades termino-
lógicas da piscicultura”, de Josué Leonardo Santos de Souza Lisboa, analisa aspectos
morfossintáticos, de formação de palavras, com base em unidades terminológicas
presentes no glossário da piscicultura no estado do Pará.
O sétimo capítulo, intitulado “As funcionalidades da construção ‘açu’ no falar
baionense”, de Emerson Deni dos Santos Nogueira Junior e Érica do Socorro Bar-
bosa Reis, analisa o uso da palavra “açu” usada no português falado em Baião, no
estado do Pará, buscando relacionar forma e função numa perspectiva sociofuncio-
nalista.
O último capítulo da parte I, intitulado “Na língua, nada se cria, nada se perde,
apenas recrutam-se elementos para novas funções”, de Danielle de Melo Viana e
Robson Borges Rua, descreve o processo de abstratização aplicado ao quantifica-
dor não-canônico murrada, no português falado na cidade de Oeiras no estado do
Pará. O estudo segue uma abordagem Sociofuncionalista.
Na parte II, Estudos lexicais, contato linguístico e tradição oral, encontram-se cinco
capítulos. O primeiro capítulo, intitulado “Variação lexical do item banguela nas não ca-
pitais da Região Nordeste do Projeto ALiB, de Marcia de Souza Dias, Regis José da Cunha
Guedes e Abdelhak Razky, apresenta o mapeamento geolinguístico do item lexical bangue-
la, falado em cidades interioranas do Nordeste brasileiro, utilizando o corpus do Projeto
Atlas Linguístico do Brasil - ALiB.
O segundo capítulo, intitulado “Faixa com listras coloridas e curva no céu, chuva fina
e terra umedecida pela chuva nos dados do Atlas Linguístico do Brasil-ALiB: Variação se-
mântico-lexical”, de Genivaldo da Conceição Oliveira, mostra a variação lexical presente
no campo semântico fenômenos atmosféricos registrada nos estados da Bahia e do Paraná,
com o objetivo de colaborar para uma melhor compreensão sobre o português brasileiro.
O terceiro capítulo, intitulado “Designações para cabra-cega: um olhar sobre
o léxico fronteiriço Brasil/Bolívia”, de Fernando Jesus da Silva, traz uma amostra do
léxico falado na fronteira Brasil-Bolívia, com o objetivo de apresentar a influência
do português no léxico falado em San Matias. Para isso, o autor recorre aos pressu-
postos teórico-metodológicos da Dialetologia Pluridimensional.
O quarto capítulo, intitulado “O contato português-francês e o bilinguismo
societal dos catraieiros na fronteira franco-brasileira”, de Lizandra Valéria da Sil-
va Fumelê e Kelly Cristina Nascimento Day, apresenta os processos de formação
bilíngue dos trabalhadores denominados catraieiros na fronteira franco-brasileira,
entre as cidades de Oiapoque e Saint-Georges.
O quinto capítulo, intitulado “Ladrão: um legado afrodescendente nas tradi-
ções orais mazaganenses”, de Edna dos Santos Oliveira, traz uma breve discussão
sobre os ladrões de marabaixo/batuque, buscando relacionar as funções e regras
sociais da tradição oral que permeiam a dinâmica cultural de Mazagão Velho, no
Amapá.
Sumário
10
Na última parte do e-book, parte III, Variação e ensino de línguas, encontram-
-se quatro capítulos. O primeiro deles, intitulado “O ensino de língua materna à luz
da concepção sociolinguística a partir da utilização de textos poéticos e tirinhas,
de Ana Karolina Damas da Costa, Allina Tainá dos Santos Lobo e Maria Sebastiana
da Silva Costa, apresenta uma proposta de sequência didática sobre o conteúdo de
variação linguística a partir da utilização do texto poético e das tirinhas, direciona-
da a uma turma do 9º ano de uma escola privada do município de Mãe do Rio, no
estado do Pará.
O segundo capítulo, intitulado “Aquendando a sociolinguística: reflexões so-
bre o pajubá no ENEM”, de André Luiz Souza da Silva, discute a temática do pajubá,
a partir de uma questão do ENEM problematizada em 2018. O autor traz a questão
para o âmbito da sociolinguística aplicada e mostra como tem sido abordado ou-
tros temas com o mesmo teor em livros didáticos e documentos oficiais de ensino.
O terceiro capítulo, intitulado “Uma proposta de intervenção para a produção
e percepção da oclusiva glotal no ensino de inglês como língua estrangeira”, de Ma-
riane dos Santos Monteiro Duarte e Leõnidas José da Silva Junior, mostra os resul-
tados de uma aplicação de treinamento metafonológico da oclusiva glotal [ʔ], em
alunos brasileiros que estão em processo de aprendizagem do inglês como língua
estrangeira.
Por fim, encerramos a obra com o capítulo intitulado “Gêneros textuais e
transculturalidade em atividades de produção escrita”, de Michell Gadelha Mouti-
nho. O autor analisa atividades de produção escrita em livros didáticos de língua
portuguesa e língua inglesa, a partir da perspectiva dos gêneros textuais sob uma
abordagem interacionista sociodiscursiva e transcultural.
Como podemos notar nesta apresentação, os autores nos oferecem uma amos-
tra das pesquisas que estão sendo realizadas em diferentes universidades brasi-
leiras, ratificando, assim, a diversidade linguística do país e contribuindo para a
divulgação do conhecimento científico.
Desejamos a todos uma ótima leitura.
ESTUDOS FONÉTICOS E
MORFOSSINTÁTICOS
Variações no falar amapaense:
um olhar para a desnasalização
de ditongo final em verbos de 3ª
pessoa do plural
Gabriel Nunes Yared Lima1
Celeste Maria da Rocha Ribeiro2

Resumo: A ausência de concordância entre sujeito e verbo através do apagamento da marca de plural em
algumas variedades do português brasileiro vem sendo evidenciada por estudos tais como os desenvolvi-
dos por Hora e Espínola (2004), Naro e Scherre (2007) e Pedrosa (2014). Entre os itens que apresentam
esse apagamento, destacam-se as formas verbais de 3ª pessoa do plural, as quais, conforme esses teóricos,
refletem a variação através da perda de nasalidade no final de formas verbais. Assim, o presente trabalho
se propõe a investigar sobre o processo de desnasalização que ocorre no ditongo nasal final, pós-tônico em
formas verbais na 3ª pessoa do plural em três municípios do estado do Amapá, haja vista essa ocorrência
distanciar-se do que preconiza a norma culta da língua para uso desse fenômeno. Desse modo, realizou-se a
observação, análise e descrição das realizações presentes em registros de fala de sujeitos escolarizados, mo-
radores das localidades de Macapá, Santana e Mazagão. Esses falantes foram estratificados em faixa etária
(18 a 35 anos) e sexo (homens e mulheres). Os registros foram obtidos por meio de entrevistas semiestrutu-
radas, cujo objeto de investigação considerou a variação morfo-fonológica referente à produção do morfema
número-pessoal das formas verbais, como resultante de um som diferente. Assim, esta pesquisa é de caráter
descritivo-interpretativista, considerando a perspectiva morfo-fonológica para observar a articulação foné-
tica e os aspectos morfológicos, além da atuação de variáveis sociais na concretização desse morfema pelos
sujeitos da pesquisa, cujos resultados apontaram para uma produtividade do fenômeno, com tendência de
realização maior entre os homens e nas localidades do estado com traço menos urbano.
Palavras-chave: Desnasalização. Formas verbais. Usos variacionistas.

Introdução
Este capítulo visa apresentar resultados de um estudo realizado pelo Grupo
de Pesquisa Atlas Linguístico do Amapá - ALAP, sediado na Universidade Federal do
Amapá, campus Marco Zero, em Macapá. O corpus foi construído a partir de regis-
1  Graduando do curso de Licenciatura Plena em Letras – Português e Francês da Universidade Federal do Amapá - UNIFAP. E-mail:
[email protected].
2  Doutora em Linguística pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Docente do curso de Letras da graduação e pós-graduação
da Universidade Federal do Amapá - UNIFAP. E-mail: [email protected].
Sumário
13
tros orais de seis informantes, moradores de três localidades do estado do Amapá
(Macapá, Santana e Mazagão), coletado através de narrativas semiespontâneas.
O presente estudo é justificado pelo fato de observarmos a tendência no Bra-
sil de estudos que ora demonstram a variação no uso de formas linguísticas mui-
to estável, ora essa variação apresenta-se num quadro de mudança em progresso
(HORA; ESPÍNOLA, 2004; NARO; SCHERRE, 2007; PEDROSA, 2014). No quadro de
variação estável, verifica-se uma simetria entre o uso de formas prestigiadas e não
prestigiadas socialmente, ocorrendo em ambos os contextos formais e informais.
Vale dizer que, no Amapá, ainda há poucos estudos contemplando fenômenos va-
riacionistas, sobretudo de natureza morfo-fonológica, dificultando, por sua vez, um
real conhecimento das manifestações linguísticas que caracterizam o português
brasileiro (PB) falado neste estado.
Assim, pretendemos apresentar e descrever as variantes fonético-morfológi-
cas que explicitam o fenômeno da desnasalização do ditongo nasal final em verbos
de 3ª pessoa do plural no PB falado no Amapá, a partir de pressupostos teórico-me-
todológicos da variação linguística. Essa análise busca evidenciar diatópica e dia-
genericamente o comportamento do referido fenômeno em falantes amapaenses.
Este capítulo destaca inicialmente um panorama geral sobre o processo de
variação linguística, relacionando-o ao fenômeno em estudo. Em seguida, será
apresentada a metodologia empregada, os resultados observados, destacando as
ocorrências gerais e o papel das variáveis linguísticas e sociais no condicionamento
do fenômeno em questão. Depois, será realizada uma breve discussão relativa aos
achados do estudo e às impressões refletidas nos dados, no tocante ao processo va-
riacionista do fenômeno em foco. Por fim, serão feitas as considerações finais sobre
o tema tratado neste estudo.
O processo de variação linguística
Sabe-se que a diversidade linguística, independente dos usos em que se reali-
za, tende a ser uma temática muito recorrente nos estudos que focalizam a lingua-
gem verbal, pois através do reconhecimento do caráter heterogêneo e dinâmico da
língua, estamos evidenciando o envolvimento de fatores sociais, históricos, político
e ideológicos, uma vez que língua e sociedade estão relacionadas. Labov (1972) e
Labov e Harris (1994) corrobora com essa relação ao defender que, na observação
e descrição de uma língua, sejam considerados tanto fatores linguísticos, como fa-
tores sociais, visto que a inter-relação possibilita observar, investigar e descrever a
sistematicidade da variação inerente às línguas.
O modelo teórico-metodológico denominado Teoria da Variação ou Sociolin-
guística Variacionista foi apresentado por Weinreich, Labov e Herzog (2006) com
o objetivo maior de descrever uma língua e seus determinantes, ratificando a sis-
tematicidade da “variação”, fundamentando-a e contextualizando-a. Essa teoria
consiste, em linhas gerais, na investigação do grau de estabilidade ou do grau de
mutabilidade da variação, através da identificação das variáveis que embasam as
variantes existentes. Vale dizer que a variação e a heterogeneidade da língua são
processos intrinsecamente relacionados à mudança linguística, visto que todo fe-
Sumário
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nômeno passa pelo processo de variação, antes de sofrer mudança; as realizações
linguísticas sofrem a variação e essa pode ou não desencadear a mudança na lín-
gua. Assim, a mudança, é tomada como o processo de substituição e não o resultado
desse processo, daí podermos afirmar que a mudança linguística também é varia-
ção, embora nem toda variação linguística resulte em mudança.
Nesse processo de variação, surgem as variáveis que correspondem a parâ-
metros monitoradores que condicionam e regulam o emprego de formas variantes;
estas, por sua vez, equivalem, de maneira geral, às várias formas de se dizer a mes-
ma coisa em um mesmo contexto e com o mesmo valor semântico. Essas formas
variantes explicitam de forma distinta dois tipos de regras linguísticas (LABOV,
1972) as categóricas que se referem aos princípios invioláveis de uma dada língua
que não podem ser modificados, a fim de não impossibilitar a comunicação e as
variáveis que ocorrem quando mais de uma forma puder ser escolhida pelo falante
para dizer a mesma coisa com o mesmo valor de verdade. Cumpre destacar que o
estudo das regras variáveis é uma das principais tarefas da sociolinguística varia-
cionista, pelo fato de permitir a observação do estado atual e real da língua, através
da frequência de uso de determinadas variantes.
Estudos de natureza variacionista consideram determinadas situações de va-
riação linguística, por meio da análise do comportamento das variantes, já que em
contextos de mudança, uma das formas variantes tende a desaparecer e é substitu-
ída por outra com o passar do tempo. Tarallo (1986, p. 11) destaca que “as varian-
tes de uma comunidade de fala encontram-se sempre em relação de concorrência:
padrão x não-padrão; conservadoras x inovadoras; de prestígio x estigmatizadas”.
Desse modo, uma investigação sociolinguística concretiza-se por meio do estudo
estatístico de fenômenos variáveis, em que se realiza a descrição do comportamen-
to das variantes, destacando os fatores linguísticos e sociais que favorecem seu uso
na comunidade.
Assim, a partir do que foi evidenciado anteriormente, é válido dizer que todo
estudo variacionista deve pautar-se na realização de variantes; por isso, esse capí-
tulo debruça-se sobre o fenômeno da desnasalização da desinência nasal final em
verbos de 3ª pessoa do plural como objeto de investigação, visto que essa variável
tende a apresentar diferentes realizações na língua falada.
O fenômeno em estudo
O português brasileiro, bem como o dialeto lusitano que o originou, é uma das
poucas línguas de origem europeia, assim como o francês, o bretão, o polonês o al-
banês e o gheg, que apresentam as vogais nasais como um aspecto contrastivo em
seu sistema linguístico, entre as 439 línguas contadas por Lewis (2009, apud RO-
THE-NEVES; REIS, 2012, p. 300) como pertencentes ao tronco indo-europeu. Po-
rém, uma das principais características da nasalização entre o português e outras
línguas é a idiossincrasia representada pela formação de um ditongo que apresenta
um segmento oral nasal seguido de uma aproximante.
Vale lembrar que o ditongo nasal pode se apresentar como a sílaba tônica ou
como a sílaba átona em uma forma verbal. Em cada uma dessas possibilidades, a
Sumário
15
diferença prosódica pode representar informações morfológicas importantes para
definir o tempo e o modo em que o verbo é expresso. Como exemplo, tomemos as
formas verbais conjugadas na terceira pessoa do plural “cantaram” e “cantarão”
nas configurações de pretérito perfeito e futuro do indicativo, respectivamente. No-
temos que, fonologicamente, a transcrição dos dois termos difere apenas na toni-
cidade. Em [kɐ̃ .ˈta.ɾɐ̃ ʷ], o ditongo nasal apresenta-se átono, uma vez que a sílaba
tônica recai sobre a vogal temática -a do verbo, enquanto que em [kɐ̃ .ta.ˈɾɐ̃ ʷ], o
ditongo nasal apresenta-se tônico, pois a sílaba tônica recai sobre as desinências
modo-temporais -rão. Em nosso estudo, consideramos apenas a análise do ditongo
nasal pós-tônico.
Note-se que o ditongo nasal pós-tônico em verbos pode ocorrer, ainda, nas
formas dos verbos da 2ª conjugação, como em “vendessem” e “podem”. Vale dizer
que para o corpus desta pesquisa, levaram-se em conta somente as formas verbais
da primeira (como cantam, cantaram, cantavam, cantariam), segunda (como em
venderam, viram, puderam, poderiam) ou terceira conjugações (como em saíram,
foram, iriam), em que as desinências indicativas de número-pessoa acrescentadas
ao verbo se apresentem na forma –am como -[ɐ̃ ʷ]. Quanto ao tempo verbal em que
se concentra essa característica, podemos destacar o presente, o pretérito perfeito
e o pretérito imperfeito e o futuro do pretérito, todos no modo indicativo.
Por sua vez, a desnasalização do ditongo nasal final átono consiste no apaga-
mento do fonema nasal [ɐ̃ ] e na oralização da aproximante aclopada [ʷ] para o fo-
nema oral reduzido [ʊ] para se adequar ao modelo de sílaba perfeita em PB. Esses
processos são demonstrados em Chaves (2017, p. 44), em que se aponta a nasalida-
de como uma marca não frequente, fonologicamente, nas línguas do mundo e que
a tendência para eliminá-las é, portanto, compreensível por seu comportamento
menos estável.
Outro resultado que aponta para o inerente apagamento da vogal nasal que
forma o ditongo nasal final átono são os observados nos estudos apresentados por
Gomes, Mesquita e Fagundes (2013, p. 18), que definem que “a alternância do di-
tongo nasal com vogal oral pode estar relacionada à posição fraca do ditongo em
sílaba átona final, o que possibilita o espraiamento da variante oral reduzida”.
Dessa forma, os estudos teóricos vêm demonstrando que a variação no em-
prego do ditongo nasal átono final, justamente por sua posição silábica, e em for-
mas verbais, é frequentemente observada no português brasileiro e tende a ocor-
rer, geralmente, por meio da desnasalização de ditongo nasal final nos verbos de
3ª pessoa do plural. Levando em conta tais considerações, apresentamos na seção
seguinte o comportamento desse fenômeno na variedade do PB, empregado em
três municípios amapaenses.
Metodologia
Este estudo surgiu após a realização da transcrição grafemática dos dados re-
ferentes às narrativas coletadas junto à aplicação de questionários, que serviriam
de corpus para a elaboração do ALAP. Durante a escuta e a transcrição dessas nar-
rativas, em que os informantes foram instigados a relatar um momento que mar-
Sumário
16
cou suas vidas, observou-se que a desnasalização do ditongo nasal pós-tônico final
em verbos da 3ª pessoa do plural era recorrente e costumava ser produzida, na
maioria das vezes, pelos informantes da segunda faixa etária (acima dos 35 anos)
e moradores das localidades mais afastadas da capital do estado. Além disso, todos
eles apresentavam grau baixo de escolaridade. Assim, a fim de estabelecer um con-
traponto para esses dados, procuramos desenvolver um estudo para ratificar ou
não a ocorrência do referido fenômeno no estado, considerando o seguinte perfil:
6 falantes com idade entre 18 a 35 anos (2 por localidade); Escolaridade: superior
incompleto; Localidades: Macapá, Santana e Mazagão; Sexo: feminino e masculino.
Vale dizer que a escolha desses locais ocorreu por questões geográficas, já que
estão próximos e se interligam por via terrestre; além de que, naquele momento,
não dispúnhamos de meios financeiros para considerar todos os municípios do es-
tado contemplados na primeira fase do ALAP. A figura seguinte retrata a localização
dos referidos municípios no estado amapaense.
Figura 1: Localização geográfica das localidades estudadas

Fonte: SILVA, G. C. C (elaboração). LIMA, G. N. Y. (organização), 2020.

A coleta dos dados ocorreu por meio de relatos semidirigidos com foco em
quatro situações hipotéticas que envolvem afazeres domésticos e atividades so-
ciais de lazer, as quais podem ser facilmente relacionadas às experiências de cada
falante.
Na estrutura dessas situações, estabelecemos um sujeito que demanda o uso
de verbos na terceira pessoa do plural, no tempo pretérito, como em cantam, fize-
ram, foram, comiam, entre outros. Dessa forma, os informantes foram estimulados
a elaborar narrativas, em que empregassem tais formas verbais. As situações hipo-
téticas são as seguintes:
1. Imagine que um grupo de estudantes do ensino médio fez uma excursão a
uma reserva florestal. Você pode descrever, com detalhes, o que você imagina que
eles fizeram durante todo o dia da excursão?
2. Imagine que um grupo de amigos viajou para a sua cidade, sendo que ne-
nhum deles a conhece, e visitaram diversos pontos turísticos. Você pode descrever,
Sumário
17
com detalhes, o que você imagina que eles fizeram, onde foram, que tipo de lugar
conheceram, que tipo de comida provaram durante toda a viagem?
3. Imagine que uma família preparou um jantar para parentes a amigos que os
visitariam. Você pode descrever, com detalhes, como você imagina que eles arru-
maram a casa, que pratos prepararam, como foi a chegada dos convidados e tudo o
que aconteceu durante o jantar?
4. Imagine que um grupo de crianças foi brincar em um parque de diversões
durante uma tarde inteira. Você pode descrever, com detalhes, o que você imagina
que eles fizeram, em quais brinquedos foram, e que outros tipos de diversão eles
encontraram no parque?
Concluídos os relatos e feitas as gravações com cada falante, os dados foram
armazenados em dispositivo móvel de gravação de áudio e, posteriormente, trans-
feridos para o computador; em seguida, procedeu a transcrição fonética dos dados
que apresentavam o fenômeno da desnasalização; depois, foi feita a separação dos
verbos em que o fenômeno foi apresentado. Para este estudo, selecionamos apenas
a variante desnasalizada como em foram /foɾʊ/ do ditongo nasal pós-tônico foram
/foɾɐ̃ ʷ/, excluindo as outras variantes que mantivessem a nasalização. No total fo-
ram obtidas 163 ocorrências para o fenômeno em questão, do total de 316 termos
que evidenciaram tanto as formas nasalizadas como as desnasalizadas.
Os termos mais recorrentes (que apresentaram mais de 3 ocorrências) que
correspondem ao fenômeno estudado produzidos pelos falantes durante as narra-
tivas foram os seguintes:
Gráfico 1: Termos recorrentes correspondentes ao fenômeno na pesquisa

Fonte: Dados de Pesquisa.

Apresentação dos resultados


Uma vez sistematizados os dados, fizemos comparações entre a ocorrência da
variante desnasalizada e a variante apreciada pela norma padrão, nasalizada. Em
um resultado geral, verificamos que as duas variantes morfológicas apresentam
certo equilíbrio entre os informantes de todas as localidades, onde as ocorrências
de desnasalização foram de 52% e as de nasalização de 48%. O Gráfico 2 retrata
esses valores.
Sumário
18
Gráfico 2: Uso geral do fenômeno estudado

Fonte: Dados de Pesquisa.

Conforme apontam os dados do Gráfico 2, quase não há diferença quantitativa


entre a realização da desnasalização em relação à ocorrência de nasalização, sendo
esta de frequência um pouco inferior àquela. Desse modo, esse quadro nos permite
inferir que a diferença entre o uso de nasalização e de desnasalização do ditongo
nasal na 3ª pessoa do plural das formas verbais pelos falantes de Macapá, Santana
e Mazagão não é assimétrica, pois apresenta um equilíbrio, em termos quantita-
tivos, no emprego dessas formas nas localidades em estudo. O que não deixa de
caracterizar uma realidade recorrente em diversas variedades do português bra-
sileiro não-padrão, em que a variante desnasalizada ocorre com mais frequência,
conforme já haviam apontado estudos conduzidos por Hora e Espíndola (2004),
Naro e Scherre (2007) e Pedrosa (2014).
Considerando que foram utilizadas variáveis linguísticas e sociais nesse estu-
do, apresentamos nos tópicos seguintes o comportamento do fenômeno em ques-
tão, a partir de cada variável estudada, a fim de evidenciar a atuação de cada uma
na realização das variantes, entre as cidades observadas.
Variáveis linguísticas
Convém dizer que as variáveis linguísticas consideradas para a observação
e análise dos dados apresentaram ocorrência padronizada para a desnasalização,
configurando-se com a seguinte estrutura:
Classe morfológica: verbos;
Modo e tempo verbais: presente, pretérito perfeito, pretérito imperfeito e futu-
ro do pretérito do indicativo;
Número e pessoa verbais: 3ª do plural;
Tonicidade da sílaba: átona;
Posição da sílaba: final de palavra.
Dessa forma, salientamos que não será realizada análise por variável estrutu-
ral pelo fato de as formas desnasalizadas, nos dados analisados, demonstrarem não
sofrer influência desse tipo de variável, evidenciando uma realização categórica em
relação ao grupo de fatores considerados.
Sumário
19
Resultado da variedade social por localidade pesquisada
Em relação ao emprego das referidas formas, por localidade pesquisada, os
resultados apontaram diferenças no emprego das variantes, em que a cidade de
Mazagão registrou 59% de uso da variante desnasalizada e as demais cidades evi-
denciaram índices bem menores. O Gráfico 3 evidencia esse panorama.
Gráfico 3: Emprego da variante desnasalizada por localidade

Macapá
18%

Mazagão Santana
59% 23%

Fonte: Dados de pesquisa.

De acordo com os dados de nossa pesquisa, Macapá e Santana apontam para


um emprego bem menor da variante desnasalizada, destacando que o fenômeno da
desnasalização nas formas verbais de 3ª pessoa do plural realizam-se de maneira
equivalente entre os falantes de ambas as cidades; o que não ocorre em Mazagão
dado o maior registro de ocorrências do fenômeno entre os falantes desse local.
Esse panorama nos leva a acreditar na influência do aspecto mais urbano da capital
Macapá nos usos linguísticos, uma vez que é aí que se concentra a maior quanti-
dade de escolas e instituições de ensino superior, fator que aponta para a maior
oportunidade de acesso à escolarização, além de ser a maior cidade do estado e
com maior concentração de comércio, instituições e órgãos públicos, serviços en-
tre outros aspectos que podem favorecer um maior contato com falantes da norma
culta/padrão da língua portuguesa.
Desse modo, acreditamos que as ocorrências da capital, neste caso, tendem a
ser replicadas nas localidades vizinhas, como em Santana, visto que são apenas 21
km de distância entre as duas cidades, chegando em média a 20 minutos de viagem
de carro; muitas pessoas moram em Santana, mas trabalham ou estudam em Ma-
capá e vice-versa, portanto, a relação entre os falantes dessas duas cidades é muito
próxima, há uma grande e constante integração e inter-relação dos macapaenses
e santanenses, o que explica, em tese, o comportamento do fenômeno em estudo
nessas cidades. Por outro lado, a interação dos falantes mazaganenses e macapa-
enses é menor, já que a distância entre essas cidades é de 35 km equivalendo cerca
de 40 minutos por transporte terrestre, em linha reta.
Sumário
20
Resultado da variedade social por sexo do falante
Nossos dados mostraram que há influência da variação diagenérica, nas cida-
des estudadas, haja vista a ocorrência, no cômputo geral, de 77% de emprego da
variante correspondente à desnasalização, pelos falantes do sexo masculino e de
apenas 23% pelas falantes do sexo feminino. Esse resultado aponta e confirma a
teoria laboviana de que as mulheres tendem a seguir, na modalidade monitorada
da fala, mais os padrões linguísticos de prestígio do que os homens, por conta das
pressões sociais que se aplicam em relação a sua conduta no meio acadêmico e no
mercado de trabalho e, ainda assim, tendem a apresentar maior alternância entre
variáveis padrão e não-padrão. Ainda segundo o autor, isso ocorre também pela di-
ferenciação de papeis de homens e mulheres na sociedade, ligada aos “padrões de
interação social na vida diária” (LABOV, 1972, p. 348). O Gráfico 4 evidencia esses
índices.
Gráfico 4: Emprego da variante desnasalizada por sexo

Fonte: Dados de pesquisa.

Dessa forma, esses resultados seguem a tendência de estudos dessa nature-


za em que as mulheres se destacam pelo emprego maior das variantes prestigia-
das (FISCHER, 1958; LABOV; 1966; TRUDGILL, 1972), tal como a nasalização, no
caso da presente pesquisa. Esse quadro também tende a ocorrer, segundo Scherre
(1988; 1994), devido à maior sensibilidade feminina, no tocante ao uso de regras
que favorecem o emprego de formas socialmente prestigiadas.
A partir dos resultados obtidos para essa variável social, julgamos interessan-
te analisar essas ocorrências considerando o sexo por localidade estudada. Assim,
apresentamos no gráfico seguinte os percentuais obtidos nessa análise.
Sumário
21
Gráfico 5: Ocorrências do uso de desnasalização por sexo e localidade

Fonte: Dados de pesquisa.

Os resultados do Gráfico 5 ratificam os dados evidenciados no Gráfico 4, que


evidencia o menor uso pelas mulheres da variante desnasalizada, considerada aqui
a não-padrão, nas formas verbais de 3ª pessoa do plural. Considerando as três ci-
dades, verificamos que em Macapá, capital do estado, tanto as mulheres quanto
os homens empregam menos a variante desnasalizada, sendo que os homens em-
pregam mais; em Santana não há diferenças entre homens e mulheres quanto a
este uso; já em Mazagão, localidade mais afastada da capital, homens e mulheres
também se distanciam quanto ao uso das formas desnasalizadas, destacando o em-
prego maior pelos homens; confirmando, assim, a tendência não só das mulheres
utilizarem mais as formas linguísticas consideradas prestigiadas, como também o
grau de contato dos falantes com a capital mais urbanizada, ou seja, quanto menor
o contato menos replicação dos usos; quanto maior o contato maior replicação; o
que está bem perceptível no emprego das variantes desnasalizadas em Mazagão e
Santana, respectivamente.
Breve discussão dos resultados
Destacamos nesta seção algumas considerações relacionadas ao fenômeno da
desnasalização do ditongo nasal final pós-tônico da 3ª pessoa do plural das for-
mas verbais em três cidades amapaenses e quais são os processos fonológicos e
morfológicos que caracterizam essa variação que, geralmente, aparece em outros
estudos ligada ao fenômeno da monotongação, como observado em Naro e Scherre
(2007), cuja pesquisa focalizou o fenômeno da concordância.
Para essa discussão, consideramos os trechos seguintes retirados de alguns
inquéritos obtidos dos falantes de nossa pesquisa, em que a ocorrência da desna-
salização está em negrito.
1. “no que eles tinh[ʊ] que realizar (...), eles desfizer[ʊ] as malas” (Homem,
Macapá);
2. “eles conhecer[ɐ̃ ʷ] todo o monumento (...), eles colocar[ʊ] um ovo” (Mu-
lher, Macapá);
3. “eles tinh[ʊ] que observar (...), eles observar[ɐ̃ ʷ] (...), eles observar[ʊ] era
o quanto” (Homem, Mazagão);
Sumário
22
4. “eles começar[ʊ] a olhar o local (...), eles começar[ʊ] a entrar (...) e vir[ʊ]
avistar[ʊ] várias plantas” (Homem, Santana).
Conforme podemos observar, o processo de perda da nasalidade final entre
os falantes macapaenses, santanenses e mazaganenses ocorre nos verbos de 1ª, 2ª
e 3ª conjugação, na 3ª pessoa do plural do pretérito perfeito e pretérito imperfeito
do indicativo. Os registros de maior incidência dessa perda estão nos verbos de 1ª
conjugação, com 52% de frequência. Além disso, ao contrário do que observam
Hora e Espínola (2004), não é simplesmente feita a utilização das formas verbais
na terceira pessoa do singular para a terceira pessoa do plural, visto que não obser-
vamos a ocorrência de “tinha” para “tinham” ou de “colocou” para “colocaram”, mas
sim a variação do morfema -am para -ʊ, revelando assim, além da desnasalização,
a monotongação do morfema.
Essa constatação vai de acordo com os estudos promovidos por Naro e Scher-
re (2007) e Pedrosa (2014), que observaram os mesmos aspectos nos dados que
coletaram. Segundo Pedrosa (2014) as pesquisas que se debruçam sobre a des-
nasalização evidenciam dois processos constituintes de variação: a oralização do
fonema nasal, representado pelo morfe –a, e o apagamento do fonema glide subor-
dinado ao primeiro, representado pelo morfe -m.
A observação de tal fato demonstra que essa variação possui um traço morfo-
-fonológico próprio e que abrange todas as localidades estudadas aqui, incluindo
a capital, podendo indicar um caso de alomorfia presente em diversas variedades
não-padrão do português brasileiro. Esta forma não-padrão, mesmo não represen-
tada na escrita e em situações de fala monitorada e informal, pode também se apre-
sentar na fala não-monitorada e até mesmo em situações mais formais, revelan-
do haver ocorrência simétrica entre as variantes. Alguns estudiosos, como Castro
(2001), consideram a perda da nasalização final como um aspecto fonético-fonoló-
gico; outros a tratam como fenômeno morfossintático, que teria se transformado
em uma regra fonológica; porém Naro e Scherre (2007, p. 128) informam que tudo
o que se refere aos fenômenos de desnasalização e suas consequências para a va-
riação na concordância verbo/sujeito remontam à fonologia, com posterior expan-
são para a morfologia. Nossas observações, portanto, vão ao encontro dessa última
tese.
Outra questão que nos chama a atenção em relação aos exemplos e aos resul-
tados destacados no Gráfico 3, que aponta as ocorrências por localidade, é a realiza-
ção da variante desnasalizada (não-padrão) ser menor na capital Macapá. Segundo
Scherre e Naro (1998), as variantes não-padrão se concentram principalmente nas
regiões com falantes menos escolarizados e com menor presença da urbanização.
Em contrapartida, convém destacar o maior emprego das formas desnasali-
zadas em Mazagão, apontando também uma provável influência africana no portu-
guês brasileiro (PB) conforme atestam estudos de Castro (2001), Mendonça (1948)
e Lima (2014) sobre a perda da nasalização final, além de Lucchesi, Baxter e Ribeiro
(2009) ao retratar vários fenômenos morfossintáticos no PB que receberam essa
influência. Vale lembrar que Mazagão é uma cidade onde se estabeleceram, ini-
cialmente, muitas famílias com africanos escravizados e esse município herdou e
Sumário
23
cultiva ainda muitas culturas, tradições e hábitos trazidos pelos mazaganistas mar-
roquinos que se fixaram neste local. Portanto, esse panorama permite inferir que
esses aspectos podem ter influenciado no uso do português pelos mazaganenses, o
que pode ser explicitado na ocorrência do fenômeno investigado neste estudo. Po-
rém, queremos ressaltar que não aprofundaremos essa questão da influência neste
momento, visto que foge aos propósitos deste texto, a ideia levantada consiste em
apenas uma hipótese que deve ser revista, ampliada e aprofundada em estudos
posteriores.
Em relação ao emprego da variante padrão, a ocorrência de nasalidade nas
formas verbais de 3ª pessoa do plural, tomamos os trechos seguintes, que apresen-
tam os registros de nasalização, mesmo que a monotongação tenha ocorrido:
1. “eles for[ɐ̃ ʷ] direto (...), eles conhecer[ɐ̃ ʷ] todo o monumento (...), eles ti-
rar[ũ] muitas fotos (...), também for[ɐ̃ ] no marco zero” (Mulher, Macapá);
2. “ao entrarem né chegar[ũ] lá pedir[ʊ] autorização (...), os professores fi-
zer[ũ] direcionamento (...), os professores mediar[ũ] eles” (Homem, Ma-
capá);
3. “eles poderi[ɐ̃ ʷ] ter descido(...) e de lá for[ʊ] pro centro (...), e visitar[ʊ]
por exemplo (...), eles poderi[ʊ] ter se deparado” (Mulher, Santana);
4. “eles passar[ɐ̃ ʷ] (...), eles retornar[ɐ̃ ʷ] (...), e voltar[ɐ̃ ʷ] pras casas” (Mu-
lher, Mazagão).
Vale ressaltar a ocorrência da variante padrão na fala das mulheres, o que
corrobora com Labov (1972) ao afirmar que as mulheres são, ao mesmo tempo, as
principais responsáveis pelos usos inovadores na língua e as falantes que apresen-
tam o maior grau de adequação à norma padrão, visto que, em diferentes situações
comunicacionais e graus de monitoramento, elas transitam entre os usos menos
e mais formais. Esta última situação é o caso do meio universitário, geralmente
monitorado, que pode acabar influindo e vindo à tona, mesmo em casos de conver-
sação espontânea.
Desse modo, diante dos achados gerais desse trabalho podemos dizer que nas
localidades pesquisadas a desnasalização da desinência de 3ª pessoa do plural das
formas verbais do pretérito perfeito e imperfeito comporta-se como um fenômeno
em variação estável e não se realiza de maneira categórica em nenhuma das cida-
des examinadas. Essa variação é mais estável em Macapá. Já em Mazagão, a desna-
salização é mais frequente, sendo empregada em maior proporção pelos falantes
do sexo masculino, apontando uma assimetria em relação às mulheres no tocante
ao emprego da variante não-padrão. As variáveis sexo e localidade mostraram-se
atuantes no condicionamento do fenômeno, em que o uso da variante padrão foi
mais recorrente na fala das mulheres; e na capital Macapá; o emprego da variante
não-padrão está mais presente na fala dos homens e nas cidades menos urbaniza-
das, como Santana e Mazagão.
Considerações finais
Nosso estudo aponta a presença de simetria entre as variantes nasalizadas
e desnasalizadas do segmento morfológico que marca o plural em verbos na 3ª
Sumário
24
pessoal do plural, especialmente os da 1ª conjugação, não deixando de abranger os
verbos das demais conjugações que apresentam essa marca. Indica também que o
aspecto átono dessa marca torna propícia essa variação em consonância com a lei
do menor esforço. Além disso, os dados apontam para dois significativos aspectos
da variação. O primeiro é que a variante desnasalizada é mais recorrente à medida
que se afasta do centro urbano da capital e o segundo é que o sexo é um fator defi-
nitivo para o uso mais aproximado ao da norma padrão entre as mulheres, mesmo
fora da capital, indo de encontro aos estudos de Labov (1972). Convém destacar
que o número de sujeitos da nossa pesquisa é pequeno, mas suficiente para eviden-
ciar o fenômeno de desnasalização focalizado neste capítulo.
De forma geral, os resultados dialogam com estudos realizados anteriormente,
tanto os mais abrangentes geograficamente, como os de Hora e Espínola (2004) e
Naro e Scherre (2007); quanto os mais regionais, como o de Pedrosa (2014). Sobre
esta última autora, concordamos com ela ao dizer que “é muito prematuro afirmar
que a desnasalização de ditongo nasal final que ocorre na fala de alguns sujeitos
nos dias de hoje possa provocar uma mudança na língua...” (PEDROSA, 2014, p. 9),
porém a presença da variação já sinaliza a busca do falante por uma interação mais
eficiente, clara e objetiva. E é por meio dessa busca que o dinamismo da língua atua
significativamente no surgimento de variantes e, certamente, num possível percur-
so de mudança, que só poderá ser confirmada com o passar do tempo.
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Bandeira , paz : a
monotongação e a ditongação nos
inquéritos experimentais do Atlas
Fonético-Fonológico de Alcântara
Anna Carolina Ferreira Sangiorgi1

Resumo: Este estudo objetiva investigar a ocorrência dos fenômenos da monotongação dos ditongos de-
crescentes orais [aj], [ej], [oj] e da ditongação nos inquéritos experimentais do Atlas Fonético-Fonológico
de Alcântara, que se propõe a mapear as variações fonético-fonológicas no município de Alcântara do esta-
do do Maranhão. Intentamos ainda corroborar com estudos variacionistas já realizados por Aragão (2000,
2014), Paiva (1996), Silva (2004), Araújo (1999) e outros sobre o contexto linguístico que favorece a realiza-
ção da monotongação e da ditongação. Nas entrevistas experimentais, utilizamos a metodologia do Projeto
Atlas Linguístico do Brasil – ALiB e aplicamos o Questionário Fonético-Fonológico (QFF) com 159 questões,
entretanto, para constituir o corpus da pesquisa, consideramos as questões 05 – caixa, 06 – tesoura, 24 – pe-
neira, 91 – bandeira, 135 – baixa e 136 – loura, para a monotongação; e 09 – luz, 21 – arroz, 63 – três, 64 – dez,
137 – voz e 155 – paz, para a ditongação. Três informantes escolarizados foram inquiridos, distribuídos em
duas faixas etárias: de 18 a 30 anos, sendo um do sexo masculino e um do sexo feminino; de 50 a 65 anos, um
informante do sexo masculino. A análise dos dados demonstrou que a monotongação e a ditongação fazem
parte da oralidade de alcantarenses, porém não estão relacionados às variações diatópica, diageracional
e diassexual. São fenômenos fonéticos. Com relação ao contexto fonológico seguinte que favorece a ocor-
rência da monotongação do ditongo decrescente [aj] em [a], nosso estudo não está inteiramente de acordo
com os resultados obtidos por outros pesquisadores do mesmo tema, visto que não houve redução diante
do fonema /S/. As demais análises referentes à monotongação e à ditongação são coerentes com estudos já
realizados, como os de Aragão (2000, 2014).
Palavras-chave: Monotongação. Ditongação. Atlas Fonético-Fonológico.

Introdução
Alcântara está situada na mesorregião do norte Maranhense, na microrregião
da Baixada Ocidental Maranhense, a 2° 23’ 51’’ de latitude sul e 44° 24’ 16’’ de
longitude oeste. A área total do município é de 1.486,7 km² e conta com 22.097

1  Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Maranhão – UFMA. E-mail: carolina.anna@
discente.ufma.br.
Sumário
27
habitantes de acordo com o último censo. A densidade demográfica é de 14,9 habi-
tantes por km² no território alcantarense.
É um dos municípios mais antigos do Maranhão, visto que, de acordo com
Viveiros (1999), a localidade – ocupada por índios – já existia antes mesmo da fun-
dação de São Luís em 1612 pelos franceses. O Instituto Brasileiro de Pesquisa e
Estatística – IBGE também atesta esta informação quando afirma que “não se pode
precisar a fundação de Alcântara, mas o certo é que em 1612 já havia um aglome-
rado de aldeias das quais ela fazia parte com o nome significativo de Tapuitapera
(terra dos índios)” (IBGE, 2010). Entre os anos de 1616 a 1618 teve início a coloni-
zação portuguesa em Tapuitapera e apenas em 1648 foi reconhecida oficialmente
como Vila de Santo Antônio de Alcântara.
O presente trabalho é um recorte da pesquisa de Mestrado em Letras, intitu-
lada “Atlas Fonético-fonológico de Alcântara”, em desenvolvimento, que busca ma-
pear as variações fonético-fonológicas no município investigado e assim contribuir
com as pesquisas do português falado no Maranhão.
Dessa forma, objetivamos investigar a ocorrência dos fenômenos da mono-
tongação e da ditongação nos inquéritos experimentais do Atlas Fonético-Fonoló-
gico de Alcântara, utilizando a metodologia do Projeto Atlas Linguístico do Brasil
– ALiB. Intentamos ainda corroborar com estudos variacionistas já realizados por
Paiva (1996), Silva (2004), Araújo (1999) e outros sobre o contexto linguístico que
favorece a realização de ambos os fenômenos.
Essa tendência em transformar ditongos em vogais simples está presente ao
longo de toda a história do português, inclusive já havia sido verificada tanto em
estudos diacrônicos, que observam a passagem do latim para as línguas român-
ticas, como nos estudos sincrônicos que investigam os atuais falares de diversas
localidades do Brasil.
Aragão (2014), ao tratar do fenômeno da ditongação e da monotongação no
falar das capitais brasileiras, concluiu que não é um fenômeno diatópico, mas sim
completamente fonético. Outros trabalhos corroboram com esse resultado como
Paiva (1996) e Silva (2004). Câmara Jr. (1979) também considera a monotongação
um fenômeno puramente fonético, porque o ditongo, embora seja monotongado na
fala, permanece na grafia formal.
Para pôr em relevo o fenômeno da monotongação, chama-se, muitas vezes, monotongo à
vogal simples resultante, principalmente quando a grafia continua a indicar o ditongo e ele
ainda se realiza numa linguagem mais cuidadosa. Entre nós há, nesse sentido, o monotongo
/ô/, em qualquer caso, e os monotongos /a/ e /ê/ diante de uma consoante chiante: (c)
caixa, como acha, (d)deixa, como fecha. (CÂMARA Jr., 1979, p. 170)

Ditongo e monotongação
O ditongo é definido como uma sequência na mesma sílaba de uma vogal se-
guida de semivogal, também chamada de glide. De acordo com Câmara Jr. (1979),
o verdadeiro ditongo é o decrescente (vogal + glide), enquanto que o ditongo cres-
cente (glide + vogal) é classificado como falso, já que pode variar livremente com o
hiato.
Sumário
28
Para Silva (2017, p. 153), a monotongação é um “fenômeno fonológico em que
um ditongo passa a ser produzido como uma única vogal. A ditongação ocorre com
ditongos decrescentes (...) ou com ditongos crescentes”. Sobre monotongo, Aragão
(2014, p. 4) esclarece que:
O termo monotongo não é usado com frequência, a não ser quando se trabalha com a mo-
notongação. Alguns autores se referem a ele quando tratam de monotongação e/ou diton-
gação para mostrar o processo de redução do ditongo que perde sua semivogal e passa a
uma vogal simples.

Há uma grande quantidade de estudos variacionistas já realizados que des-


crevem a ocorrência desse fenômeno. Em linhas gerais, autores como Paiva (1996),
Araújo (1999), Aragão (2000, 2014), Lopes (2002), Silva (2004), descrevem o con-
texto fonológico seguinte como o fator linguístico favorecedor da regra da mono-
tongação.
Ditongação
A ditongação, vista como característica de algumas regiões do país, é definida
por Silva (2017, p. 93) como um:
Fenômeno fonológico de inserção de uma glide após uma vogal ou transformação de um
monotongo em ditongo. No português brasileiro, a ditongação ocorre, em alguns dialetos,
geralmente em vogais tônicas em final de palavra, como, por exemplo, em português [poh-
tuÈg9eI9s]; ou ocorre em vogais tônicas seguidas de consoantes palatais como em peleja
[peÈleI9Za]; ou ocorre em hiato, como em Andréa [a)ÈdREI9a]ou boa [ÈboU9a], dentre
outros. A ditongação, em português, ocorre em variação com monotongo.

Delimitação e metodologia da pesquisa


Para a realização deste trabalho, usamos a metodologia do Projeto ALiB. Apli-
camos o Questionário Fonético-Fonológico (QFF), com 159 questões elaboradas
para apurar a realização de vários fonemas.
O questionário fonético-fonológico tem um objetivo muito específico: apurar determina-
do(s) tipo(s) de realização que se documenta(m) numa área ou em diferentes áreas, razão
pela qual deve obter, nos vários sítios pesquisados, dados produzidos nas mesmas circuns-
tâncias e nos mesmos contextos fônicos. Persegue o registro da mesma forma como respos-
ta, como se ilustra com as perguntas seguintes:
31. CASCA
Para comer uma banana, o que é que se tira?
139. VELHO
Um sapato que não é novo é _______? (CARDOSO, 2010, p. 96)

Selecionamos as seguintes questões para o estudo da monotongação, de modo


a garantir itens lexicais de cada um dos ditongos decrescentes orais pesquisados
[aj], [ej], [oj]:
05. CAIXA
Quando se compra uma TV, um ventilador, um sapato, ele vem da loja dentro de quê?
06. TESOURA
...o objeto com que se corta tecido?
24. PENEIRA
... aquele objeto que se usa na cozinha para passar farinha?
Sumário
29
83. PREFEITO
Quem se elege para dirigir uma cidade?
91. BANDEIRA
... aquilo que representa o país que verde, amarelo, azul e branco?
117. PEITO
Onde a criança mama na mãe?
135. BAIXA
Qual é o contrário de alta?
136. LOURA
A pessoa que tem cabelos escuros, a gente chama de morena. E a pessoa que tem cabelos
claros e amarelados?

Sobre a ditongação das vogais tônicas em posição final absoluta antes de /s -


z/, investigamos a ocorrência do fenômeno a partir das seguintes questões do QFF
do ALiB:
09 – LUZ
Quando está escuro é porque o quê?
21 – ARROZ
...o que se come no almoço, uns grãozinhos brancos que podem acompanhar o feijão, a
carne?
63 – TRÊS
O que vem depois do dois?
64 – DEZ
O que é que vem depois do nove?
137 – VOZ
Uma pessoa que canta bem, se diz que ela tem uma boa _____?
155 – PAZ
Se a pessoa não quer ser incomodada, a pessoa diz: Me deixe em _____.

Os inquéritos experimentais foram gravados na sede do município, em local


silencioso, com os seguintes equipamentos de captação de áudio: gravador digital
da marca Polaroid e celular Iphone 6 da marca Apple.
O perfil dos informantes está descrito no Quadro 1 e estes foram identificados
como informante 01, informante 02 e informante 03. Não foi possível entrevistar a
informante do sexo feminino, da faixa etária de 50 a 65 anos, pois os dados foram
gravados no período de pandemia da Covid-19. O símbolo “–” significa essa ausên-
cia. Apesar das limitações, as gravações demonstraram resultados relevantes.
Quadro 1: Perfil dos Informantes
Faixa etária 18 a 30 anos Faixa etária 50 a 65 anos
Sexo Masculino INFORMANTE 01 INFORMANTE 03
Sexo Feminino INFORMANTE 02 -
Fonte: Elaborado pela autora.

Apresentação e análise dos dados


Em um primeiro momento, apresentaremos a transcrição fonética dos itens
lexicais coletados para o fenômeno da monotongação (Quadro 2) e, em seguida,
faremos a análise dos dados.
Sumário
30
Quadro 2: Transcrição Fonética dos Itens Lexicais para a monotongação
ITENS LEXICAIS INFORMANTE 01 INFORMANTE 02 INFORMANTE 03
CAIXA k k k
BAIXA   
PENEIRA pen pen não-resposta
BANDEIRA   
PREFEITO   
PEITO   
TESOURA [tʃi'zo [tʃi'zo [te'zow
LOURA   
Fonte: Elaborado pela autora.

Monotongação do ditongo oral decrescente [aj]


Para o item lexical “caixa”, observamos que os informantes 02 e 03 não mono-
tongaram o ditongo oral decrescente [aj]. Em contrapartida, o informante 01 mo-
notongou. Já em “baixa”, todos os três informantes não monotongaram.
Sendo assim, os dados não nos revelaram que o contexto fonológico seguinte
é um facilitador da monotongação, já que não houve redução de [aj] para [a] diante
do fonema /S/.
Monotongação do ditongo oral decrescente [ej]
A partir dos itens lexicais “peneira” e “bandeira”, intentamos corroborar com
estudos variacionistas já realizados por Paiva (1996), Silva (2004), Araújo (1999) e
outros sobre o contexto linguístico que favorece a monotongação. Realmente cons-
tatamos, apesar da não-resposta do informante 3 para a questão 24, que o fonema
/R/ em posição posterior favorece a redução de [ej] para [e].
Não houve monotongação em nenhuma das realizações dos três informantes
para os itens lexicais “prefeito” e “peito”, demonstrando que o fonema /t/ não re-
presenta um contexto facilitador da redução do ditongo oral decrescente [ej].
Monotongação do ditongo oral decrescente [ow]
Os informantes 01 e 02 produziram [tʃi’zo para “tesoura”, ou seja, monoton-
garam, enquanto o informante 03 não monotongou. Dessa forma, os dados mos-
traram que, na maioria das ocorrências, o contexto fonológico seguinte – o fone-
ma /R/ – foi determinante para a redução de [ow] para [o]. Conforme afirma Silva
(2003, p. 99), “o ditongo decrescente [] pode ser reduzido a [o]: ‘couro’ [].
Essa redução se dá na maioria dos substantivos e adjetivos, exceto quando o diton-
go [] ocorre em final de palavra”.
Não consideramos as respostas para a questão 136, pois os informantes res-
ponderam com outra variante do item lexical, que não a esperada, ou seja, “loiro”
em vez de “loura”.
Monotongação e variáveis sociais
Com base nos dados obtidos, observamos que as variáveis sexo e faixa etária
não foram determinantes para a ocorrência dos fenômenos estudados, visto que
os três informantes ora monotongam, ora não o fazem, demonstrando, assim, que
Sumário
31
se trata de uma variação fonética, em conformidade com pesquisas já citadas ante-
riormente.
A seguir, apresentamos no Quadro 3 a transcrição fonética dos dados coleta-
dos para o fenômeno da ditongação.
Quadro 3: Transcrição Fonética dos Itens Lexicais para a ditongação
ITENS LEXICAIS INFORMANTE 01 INFORMANTE 02 INFORMANTE 03
LUZ   
ARROZ   
TRÊS   
DEZ   
VOZ   
PAZ   
Fonte: Elaborado pela autora.

Todos os informantes ditongaram, corroborando com os parâmetros linguís-


ticos observados por Aragão (2014), como o tipo de vogal que ditonga (ocorrência
com as vogais /a e E o u/), contexto posterior favorecedor (os fonemas /s z/) e
extensão da palavra (palavras monossilábicas e dissilábicas são as que mais se di-
tongam).
O perfil dos informantes não se mostrou relevante para a ocorrência do fenômeno,
demonstrando que a ditongação é tipicamente fonética.

Considerações finais
O nosso corpus demonstrou que a monotongação e a ditongação são caracte-
rísticas da oralidade de alcantarenses, porém não se constituem variantes regio-
nais do português, visto que são fenômenos que ocorrem em diversas localidades
do Brasil. Sendo assim, além de não estarem relacionados à variação diatópica,
também não ocorrem devido às variações diageracional e diassexual. Portanto, são
fenômenos fonéticos.
Com relação ao contexto fonológico seguinte que favorece a ocorrência da mo-
notongação do ditongo decrescente [aj] em [a], nosso estudo não está inteiramente
de acordo com os resultados obtidos por Aragão (2000, 2014), Paiva (1996), Silva
(2004), visto que não houve redução diante do fonema /S/. As demais análises
referentes à monotongação e à ditongação são coerentes com os estudos citados.
Os resultados dos inquéritos experimentais apresentados nesse estudo são
relevantes e deverão ser comparados quando o Atlas Fonético-Fonológico de Al-
cântara estiver concluído.
Referências
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Sumário
32
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PAIVA, M. da C. A. Supressão das semivogais nos ditongos decrescentes. In: OLIVEIRA & SILVA, G. M.; SHER-
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SILVA, T. C. Fonética e fonologia do português: roteiro de estudos e guia de exercícios. 7 ed. São Paulo: Contex-
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VIVEIROS, J. de. Alcântara no seu passado Econômico, Social e Político. 3. ed. São Luís: AML/ALU-
MAR,1999.
Tu falas remando ou remano? Um
estudo sobre marcação de gerúndio
no português falado no Amapá
Adriana Gabriela Reis Silva1
Romário Duarte Sanches2

Resumo: O presente capítulo trata da marcação de gerúndio no português falado por amapaenses. Como
suporte teórico, discutimos conceitos do campo da Dialetologia (COSERIU, 1982) e da Geolinguística (CAR-
DOSO, 1999; 2010), além do levantamento bibliográfico de trabalhos sobre a realização do gerúndio em
variedades do português brasileiro (NASCIMENTO; MOTA, 2004; FERREIRA; TENANI; GONÇALVES, 2012;
ARAÚJO; ARAGÃO, 2016; ALMEIDA; OLIVEIRA, 2017; ARAÚJO; LAVOR; VIANA, 2018). A metodologia em-
pregada nesta pesquisa faz parte do Projeto Atlas Linguístico do Amapá - ALAP (RAZKY; RIBEIRO; SANCHES,
2017). Assim, utilizamos uma amostra de fala coletada por meio de questionários aplicados a 40 informan-
tes oriundos de 10 municípios do estado do Amapá. Esses informantes foram divididos em grupos, contem-
plando as seguintes variáveis sociais: sexo (masculino e feminino) e faixa etária (de 18 a 30 anos e 50 a 75
anos). Para análise dos dados, investigamos a carta fonética F04 que compõe o ALAP. A carta apresenta o
mapeamento geolinguístico do gerúndio com base em três itens fonéticos: fervendo, remando e dormindo.
Como resultados obtidos, concluímos que 94% dos dados investigados revelam que os amapaenses fazem
uso do gerúndio (nd) e apenas 6% tendem a apagar o fonema /d/, ou seja, usam as formas ferveno, remano
e dormino.
Palavras-chave: Dialetologia. Geolinguística. Gerúndio. ALAP.

Introdução
A Dialetologia é um campo científico que estuda os dialetos e as variações
linguísticas, distribuídos geograficamente. Trata-se de um estudo sistemático, re-
alizado a partir de traços regionais de uma língua, o qual é possível estabelecer
fronteiras geográficas e linguísticas. No que tange à Geolinguística ou Geografia
Linguística, esta é o método aplicado pela Dialetologia, por isso o seu objeto de
pesquisa também diz respeito às línguas inseridas num determinado contexto ge-
ográfico.

1  Acadêmica do Curso de Letras Português/Inglês da Universidade do Estado do Amapá - UEAP. E-mail: [email protected].
br.
2  Professor do Curso de Letras da Universidade do Estado do Amapá - UEAP. Doutor Letras (Linguística) pela Universidade Federal do
Pará - UFPA. E-mail: [email protected].
Sumário
34
De acordo com Nascentes (1953), o início dos estudos dialetais no Brasil se
deu por volta de 1826, com os trabalhos de Visconde de Pedra Branca, seguido por
Amadeu Amaral, em 1920, com a obra O dialeto caipira, e segue até os dias atuais.
Partindo desse contexto, o objetivo deste trabalho é apresentar uma análise
geolinguística da marcação do gerúndio (nd) na fala de amapaenses, além de verifi-
car se os fatores extralinguísticos (geográfico, idade e sexo) interferem na presença
ou ausência do fenômeno. No caso do apagamento de gerúndio, segundo Cagliari
(2002), isso ocorre quando há a supressão de um segmento da forma básica de um
morfema, como na forma nominal do gerúndio do verbo dormir (dormindo), em
que a oclusiva /d/ é apagada, transformando-se em dormino.
Ao longo das discussões que serão apresentadas aqui, apontaremos outras
pesquisas linguísticas realizadas no Brasil com foco nessa temática, como os traba-
lhos de Nascimento e Mota (2004), Ferreira, Tenani e Gonçalves (2012), Araújo e
Aragão (2016), Almeida e Oliveira (2017) e Araújo, Lavor e Viana (2018).
Com isso, este capítulo encontra-se dividido em seis seções: a primeira traz
uma breve introdução, apresentando a delimitação da área de estudo, o objeto de
pesquisa e a finalidade do trabalho; a segunda seção apresenta o referencial teóri-
co adotado, no caso a Dialetologia e a Geolinguística; a terceira seção, por sua vez,
trata da realização do gerúndio no português brasileiro, abordando conceitos de
diversos autores e sua ocorrência em relação ao apagamento; a quarta seção apre-
senta a metodologia usada para esta pesquisa; a quinta seção mostra os resultados
alcançados, bem como a interpretação geolinguística dos dados; e, por fim, a última
seção aborda as considerações finais.
Dialetologia e Geolinguística
Antes de discorrer sobre o arcabouço teórico da Dialetologia é importante fri-
sar acerca das várias definições de língua e dialeto. Sobre língua, a sua concepção é
entendida não só como um sistema social heterogêneo, instrumento de comunica-
ção e interação, mas como uma instituição social utilizada pela coletividade e para
a coletividade3. A língua também é entendida como parte integrante das culturas4, e
tende a funcionar como um sistema aberto5 que, apesar de ser utilizado por meios
de regras e convenções sociais está em constante mudança. Vale ressaltar que entre
os linguistas ainda não há consenso em relação ao conceito de língua.
Para Saussure (2012 [1916]), por exemplo, a língua (langue) pode ser compa-
rada ao mesmo tempo uma instituição social e particular:
[...] a língua existe na e para a coletividade. É um produto social da faculdade da linguagem
e um conjunto de convenções necessárias adotadas pelo corpo social, a fim de permitir o
exercício desta faculdade entre os indivíduos. A língua é, portanto, uma instituição social e
específica (SAUSSURE, 2012 [1916], p. 38).

O linguista brasileiro, Câmara Jr. (1955, p. 54) defende que a língua é parte
integrante da cultura e se sobressai quando comparado a outros elementos da cul-

3   Saussure (2012 [1916]).


4   Câmara Jr. (1975).
5   Ilari e Geraldi (1985).
Sumário
35
tura como a religião, política, arte etc., pois todos esses componentes culturais ne-
cessitam da língua para se expressar: “assim a língua, em face do resto da cultura,
é - o resultado dessa cultura, ou sua súmula, é o meio para ela operar, é a condição
para ela subsistir”.
Em relação ao conceito de dialeto, Alvar (1973 apud BRANDÃO, 1991, p. 79)
considera como “um sistema divergente de uma língua comum, viva ou desapareci-
da, normalmente com uma concreta delimitação geográfica, mas sem forte diferen-
ciação frente a outras de origem comum”.
Por outro lado, Coseriu (1982, p. 11-12) nos apresenta a diferença entre lín-
gua e dialeto a partir de questões históricas. Na visão do linguista, a língua pode ser
comparada a uma família linguística e o dialeto comporta-se como membro menor
que se insere dentro dessa constituição macro de língua.
[...] um dialeto, sem deixar de ser intrinsecamente uma língua, se considera subordinado à
outra língua, de ordem superior. Ou, dizendo de outra maneira: o termo dialeto, enquanto
oposto a língua, designa uma língua menor incluída em uma língua maior, que é justamen-
te, uma língua histórica (ou idioma). Uma língua histórica – salvo casos especiais – não é
um modo de falar único, mas uma família histórica de modos de falar afins e interdepen-
dentes, e os dialetos são membros desta família ou constituem famílias menores dentro da
família maior (COSERIU, 1982, p. 11-12).

Ferreira e Cardoso (1994) também conceituam dialeto como um subsistema


inserido em outro denominado de sistema abstrato que é a própria língua.
De modo recente, têm-se Siqueira, Magalhães e Gonçalves (2014) que mencio-
nam o dialeto como parte interna da língua. Para eles, a língua é dotada de varian-
tes, que por sua vez, são condicionadas por fatores de natureza social, regional e
estilística, conhecidas como variáveis diastráticas, diatópicas e diafásicas.
Nessa perspectiva, há ciências que têm por objeto de estudo a variação linguís-
tica, dentre elas temos a Dialetologia, a Sociolinguística e a Geolinguística. Grosso
modo, a Dialetologia tem por tarefa estudar a relação existente entre a língua e o
espaço geográfico. A Sociolinguística estuda a relação da língua com a sociedade.
E, por último, a Geolinguística ou Geografia Linguística é o método utilizado para
pesquisa dialetal e variacionista.
No que tange à Dialetologia, segundo Cardoso (2010), é uma ciência que pode
ser definida como um ramo dos estudos linguísticos que surgiu em meados do sé-
culo XIX com a iniciativa de registrar e mapear as variedades linguísticas de uma
determinada comunidade de fala. No Brasil, a Dialetologia teve suas bases lançadas
na primeira metade do século XX com a contribuição de Domingos Borges de Bar-
ros, Visconde de Pedra Branca, que escreve em algumas páginas de um informe, a
pedido de Adrien Balbi, a Introduction à l’Atlas ethnographique du globe, registrado
em 1926.
A partir desse momento, iniciam-se os estudos dialetais do português brasi-
leiro, o qual se destaca O Dialeto Caipira de Amadeu de Amaral, obra publicada em
1992, que surge a partir da preocupação em documentar marcas dialetais faladas
no Brasil. Esse período, de acordo com Cardoso (1999), foi marcado pela aborda-
gem sistemática da Geolinguística, buscando descrever os fenômenos linguísticos
Sumário
36
do português brasileiro não só do ponto de vista semântico-lexical, mas também
fonético-fonológico e morfossintático.
Assim, a Dialetologia caracteriza-se como uma ciência capaz de reconhecer as dife-
renças e semelhanças que uma língua reflete, de estabelecer relações entre as inúmeras
expressões linguísticas documentadas, além de considerar as implicações dos fatores ex-
tralinguísticos determinantes nos atos de fala, isto é, características de cunho sociocultu-
ral, como fatores sociais, idade, sexo, escolaridade etc.
Diante das discussões em torno do conceito de Dialetologia, percebe-se semelhança
com a definição de Sociolinguística. São duas ciências tão próximas que Cardoso (2010,
p. 25) diz que há uma “confluência de objetivos” entre elas, uma vez que esses ramos dos
estudos linguísticos têm por finalidade estudar a variação da língua, controlando também
as variáveis sociais.
Contudo, apesar de apresentarem alguns aspectos similares, como o interesse
pelo mesmo objeto de estudo (variação linguística), a Dialetologia e a Sociolinguís-
tica são duas ciências distintas que atribuem um caráter investigativo particular ao
seu objeto de estudo (CARDOSO, 2010). A Sociolinguística, por exemplo, utiliza-se
do modelo da Teoria da Variação proposta por William Labov. Por outro lado, a Dia-
letologia tem como suporte o método da Geografia Linguística, através da qual se
elaboram mapas dialetais, também chamados de cartas linguísticas, a exemplo das
cartas lexicais, morfológicas, sintáticas, fonético-fonológicas etc.
Sobre a Geolinguística, conforme Brandão (1991, p. 12), é um método que
busca mapear números relativamente elevados de formas linguísticas, abrangendo
a fonologia, o léxico e a gramática de uma língua, onde a pesquisa é realizada. Para
Coseriu (1982), a Geolinguística é considerada um método dialetológico e compa-
rativo que:
[...] que pressupõe o registro em mapas especiais de um número relativamente elevado de
formas linguísticas (fônicas, lexicais ou gramaticais) comprovadas mediante pesquisa dire-
ta e unitária numa rede de pontos de determinado território, ou que, pelo menos, tem em
conta a distribuição das formas no espaço geográfico correspondente à língua, às línguas,
aos dialetos ou aos falares estudados (COSERIU, 1982, p. 79).

Dessa forma, enquanto a Sociolinguística se preocupa em estabelecer uma


relação entre os fatos linguísticos e os fatores sociais, a Dialetologia, por sua vez,
concentra todos seus esforços para descrever os fenômenos linguísticos de acordo
com a sua localização espacial e realidade social.
Atualmente, os princípios gerais da Dialetologia e da Geolinguística se ba-
seiam para além da investigação da variação espacial, levando em consideração
também os aspectos sociais (CARDOSO, 2014). Assim sendo, o pesquisador precisa
ter conhecimento sobre a escolaridade do indivíduo a ser estudado, bem como, sua
renda, profissão, sexo/gênero etc., para poder formular de forma científica uma
análise que condiz com a realidade do fenômeno linguístico pesquisado.
Ao longo dos séculos, a Dialetologia, acompanhada do método geolinguístico,
foi sendo aperfeiçoada. No Brasil, os atlas linguísticos começaram a se constituir e
apresentar peculiaridades diatópicas, diastráticas e etnográficas. O primeiro a apli-
Sumário
37
car este método Geolinguístico no país foi Nelson Rossi, para elaboração do Atlas
Prévio dos Falares Baianos - APFB.
A partir dos anos 1980 surgiram outros atlas regionais, além do projeto na-
cional, o Atlas Linguístico do Brasil - ALiB, que foi instituído em 1996, durante o
Seminário Caminhos e Perspectivas para a Geolinguística no Brasil. Na ocasião, par-
ticipavam vários pesquisadores de diferentes regiões do Brasil (CARDOSO, 2014).
O Projeto ALiB tem diversos objetivos definidos, os quais se destacam: des-
crever a realidade linguística do Brasil, oferecer subsídios para o aprimoramento
do ensino/aprendizagem e melhor interpretação do caráter multidialetal do país,
estabelecer isoglossas visando o tratamento da divisão dialetal do Brasil, examinar
os dados coletados e oferecer esses dados aos lexicógrafos para aprimorarem os
dicionários de língua portuguesa (CARDOSO, 2014).
Com base nisso, a pesquisa geolinguística se difundiu para diversos estados
brasileiros, chegando ao estado do Amapá. De acordo com Sanches (2019), os es-
tudos no Norte do país contribuíram para a construção de atlas estaduais, como o
Atlas Linguístico do Amapá - ALAP, de autoria de Abdelhak Razky, Celeste Ribeiro e
Romário Sanches, publicado em 2017. A obra é de grande importância para o Ama-
pá e tem proporcionado e influenciado novos estudos na área da Geolinguística,
trazendo informações relevantes sobre os aspectos fonético-fonológicos e semân-
tico-lexicais do português falado na região.
O gerúndio no português brasileiro
Nesta seção será abordada uma breve discussão a respeito do conceito da
marcação de gerúndio “nd”, além de apresentar alguns trabalhos de carácter varia-
cionista e dialetal sobre esse fenômeno no português brasileiro.
Cunha e Cintra (2001, p.482) asseveram que o gerúndio é um contorno nomi-
nal do verbo que se caracteriza pela ausência de expressão de tempo e de modo.
Isto é, a formação de gerúndio depende do contexto para se realizar, temporal e
modal. Para Bechara (2001, p. 224), o gerúndio pode ser equiparado com:
[...] um advérbio ou adjetivo (amanhecendo, sairemos = logo pela manhã, sairemos; água
fervendo = água fervente). Nessa função adjetiva o gerúndio tem sido apontado como ga-
licismo; porém é antigo na língua este emprego, quando ocupou o lugar vago deixado pelo
particípio presente, que desapareceu do quadro verbal português para ingressar no quadro
nominal.

Rocha Lima (2001) corrobora a ideia expressa acima, apontando que o ge-
rúndio se equivale ao advérbio devido às circunstâncias em que se apresenta como
tempo, modo, lugar, condição etc., no qual se exprime na sentença proferida pelo
falante. Partindo dessa perspectiva, é possível inferir que o gerúndio apresenta-se
como um advérbio ou função adjetiva e como forma verbal.
Assim, o gerúndio, sendo verbo ou advérbio, pode ter seu desempenho nas
estruturas de classes e funções, em que a primeira é independente de contexto e a
segunda é estabelecida na sua relação contextual entre os elementos que se apre-
sentam numa sentença.
Sumário
38
Quanto às condições de classe e função, Perini (2008) revela que há uma re-
lação paradigmática e uma relação sintagmática, respectivamente, uma vez que,
elas se correlacionam com a obra da presteza linguística, com as regras e com os
princípios que norteiam a construção deste produto.
A seguir, aborda-se um breve levantamento bibliográfico de cinco trabalhos
realizados sobre o português brasileiro, que tratam do apagamento da oclusiva /d/
no grupo (nd), produzidos por Nascimento e Mota (2004), Ferreira, Tenani e Gon-
çalves (2012), Araújo e Aragão (2016), Almeida e Oliveira (2017), Araújo, Lavor e
Viana (2018).
Nascimento e Mota (2004) pesquisaram a ausência de “d” no gerúndio do por-
tuguês brasileiro com base nos inquéritos experimentais do Projeto ALiB. O corpus
de análise foi dividido em duas fases: a primeira constituiu-se de 12 inquéritos
aplicados em três cidades da Bahia, tendo por informantes indivíduos do sexo mas-
culino e feminino, de duas faixas etárias, e com ensino fundamental. A segunda fase
constituiu-se de inquéritos aplicados a outras cidades do país (Belém, Imbituva,
João Pessoa, Marília, Niterói, Porto Alegre e Recife) com o mesmo perfil dos infor-
mantes da primeira fase e acrescentando os informantes universitários. Os resul-
tados de Nascimento e Mota (2004) mostram que a variação do gerúndio consiste
apenas no nível fonético, pois as formas padrão e não-padrão se revezam de acordo
com o discurso, mostrando consciência do falante sobre a emprego do gerúndio.
Em relação à variação diagenérica (sexo/gênero) foi constatado que as mulheres se
apropriam da forma padrão, ao passo que os homens são mais suscetíveis à varia-
ção. As autoras se apoiam nas hipóteses de Fischer (1958) e Labov (2006[2001])
de que a mulher tende a utilizar a forma de maior prestígio.
O estudo de Ferreira, Tenani e Gonçalves (2012) analisa o morfema de gerún-
dio (ndo) na variedade do português do Noroeste Paulista. Para a coleta dos dados,
os autores selecionaram um grupo de informantes do banco de dados Iboruna6, uti-
lizando apenas inquéritos da Amostra Censo (doravante, AC), procedentes da cida-
de de São José do Rio Preto e de seis cidades fronteiriças. Sob uma análise sociolin-
guística variacionista, os resultados mostram que os homens jovens e com poucos
anos de escolaridade são os que mais aplicam o apagamento de /d/ nas formas de
gerúndio padrão. Isto é, os informantes das três primeiras faixas etárias (de 7 a 15
anos; de 16 a 25 anos; de 26 a 35 anos) utilizam o apagamento de /d/ em morfema
de gerúndio; ao passo que os informantes das duas últimas faixas etárias, produ-
zem em menor proporção a redução do gerúndio. A variável sexo/gênero apontou
que indivíduos do sexo masculino tende a redução do fenômeno e indivíduos do
gênero feminino tende ao não apagamento do /d/. De acordo com os autores, o re-
sultado confirmou a premissa variacionista de que as mulheres são relativamente
mais sensíveis às formas de prestígios (forma padrão) do que os homens.
Araújo e Aragão (2016) também analisaram o apagamento de /d/ em gerúndio
nas capitais brasileiras a partir dos dados do ALiB. A amostra foi constituída por 96
informantes do ALiB, com a seleção de 12 capitais brasileiras, pertencentes a três
regiões, são elas: Norte, Sul e Centro-Oeste. Para cada localidade foi coletado dados
6   Mais informações sobre o projeto: http://www.iboruna.ibilce.unesp.br/interna.php?Link=corpo.php&corpo=36
Sumário
39
de fala de 8 informantes, estratificados por sexo/gênero (masculino e feminino),
faixa etária (18 a 30 anos e 45 a 60 anos) e escolaridade (até a 8ª série do ensino
fundamental e ensino superior completo). Partindo das variáveis sociais controla-
das, foi aplicado o Questionário Fonético-Fonológico (QFF) com três questões que
trazem itens no gerúndio, a saber: fervendo (questão 27), remando (questão 52)
e dormindo (questão 148). Os resultados mostram que o Sul é a região que mais
conserva a forma padrão, de maneira oposta do Norte e Centro-Oeste que tendem
ao apagamento do fenômeno em questão. Em relação à variável extralinguística
sexo/gênero, Araújo e Aragão (2016) constataram que as mulheres do Norte e do
Centro-Oeste se mostraram conservadoras no diz respeito ao uso da forma padrão,
isto é, tendem a manter o /d/ em palavras com gerúndio, ao contrário dos homens
que tendem ao apagamento.
Almeida e Oliveira (2017) apresentam um estudo que integra o Projeto Varia-
ção Linguística no Português Alagoano - PORTAL. A pesquisa analisa a alternância
entre a forma plena do gerúndio e o apagamento de /d/. Para a análise dos dados
foram consideradas as variáveis linguísticas como: a extensão do vocabulário, a
conjugação verbal e o contexto fonético-fonológico. Para as variáveis extralinguís-
ticas foram consideradas sexo/gênero e faixa etária. Na coleta dos dados foram en-
trevistados 30 informantes maceioenses, considerando o sexo (masculino e femi-
nino) e três faixas etárias (de 18 a 30 anos; de 40 a 55 anos; e acima de 65 anos de
idade) com 10 informantes por faixa etária. Como resultado, os autores constatam
que mais da metade dos informantes, 58%, mantém a forma /ndo/, ao passo que
uma quantidade em menor porcentagem, 42%, tende a apagar a forma gramati-
calmente padrão. Para a variável social sexo, assim como nos trabalhos anteriores
(FERREIRA; TENANI; GONÇALVES, 2012; ARAGÃO; ARAÚJO, 2016), a manutenção
de /d/ em gerúndio ocorre mais na fala de informantes do sexo feminino do que no
sexo masculino.
Por fim, tem-se o trabalho de Araújo, Lavor e Viana (2018) que pesquisam
o apagamento de /d/ no gerúndio “ndo” a partir de dados do ALiB. A amostra de
dados foi constituída de 36 informantes estratificados em sexo (masculino e femi-
nino), faixa etária (de 18 a 30 e de 45 a 60 anos) e localidade (Alagoas e Piauí). Os
resultados gerais mostram maior frequência para a manutenção do /d/ no morfe-
ma de gerúndio, em Alagoas e em Piauí, quando comparado ao apagamento que se
mostrou em menor proporção. Sobre a variável sexo, o apagamento destaca-se na
fala dos homens, diferentemente das mulheres que apresentam a manutenção do
gerúndio. Já a variável faixa etária, a manutenção prevalece na segunda faixa etária,
em oposição a primeira que tende ao apagamento.
Dos trabalhos descritos acima, de modo geral, pode-se constatar que há maior
índice de ocorrência, nas localidades pesquisadas no Brasil, para a manutenção do
gerúndio, isto é, a marcação do fonema /d/ em vocábulos que trazem “nd” (ARAÚ-
JO; ARAGÃO, 2016; ALMEIDA; OLIVEIRA, 2017; ARAÚJO; LAVOR; VIANA, 2018),
embora haja uma tendência ao apagamento no trabalho de Ferreira, Tenani e Gon-
çalves (2012). No que tange à influência das variáveis extralinguísticas, os estu-
dos têm mostrado resultados significativos na marcação de gerúndio em relação
Sumário
40
ao sexo dos falantes, em que as mulheres são protagonistas no que diz respeito à
manutenção do /d/, ao contrário dos homens que tendem a apagar (NASCIMEN-
TO; MOTA, 2004; FERREIRA; TENANI; GONÇALVES, 2012; ARAÚJO; ARAGÃO, 2016;
ALMEIDA; OLIVEIRA, 2017; ARAÚJO; LAVOR; VIANA, 2018). Quanto à faixa etária,
a manutenção do /d/ se destaca na fala dos mais velhos, já na fala dos mais jovens
é possível perceber certa tendência ao apagamento do /d/. (FERREIRA; TENANI;
GONÇALVES, 2012; ARAÚJO; LAVOR; VIANA, 2018).
Metodologia da pesquisa
O corpus de análise desta pesquisa faz parte do Projeto Atlas Linguístico do
Amapá - ALAP, cujo objetivo central foi o de descrever e mapear o português bra-
sileiro falado em 10 municípios do estado do Amapá, destacando a variação lin-
guística de cada localidade (SANCHES; NASCIMENTO, 2019). O projeto ALAP teve
suas bases lançadas em 2010, sobre a autoria de Abdelhak Razky, Celeste Ribeiro e
Romário Sanches.
A primeira edição do atlas foi publicada em 2017, durante o V Workshop do
ALAP, realizado na Universidade Federal do Amapá - UNIFAP. A obra traz informa-
ções linguísticas bastante relevantes, visto que contempla conhecimentos fonético-
-fonológicos e semântico-lexicais da fala dos amapaenses. O trabalho foi baseado
nos princípios da geolinguística pluridimensional, resultando em 16 cartas foné-
ticas, 73 cartas lexicais e 30 cartas estratificadas. Os mapas mostram aspectos da
variação diatópica e diastrática do português brasileiro falado no estado do Amapá.
Em relação à rede de pontos selecionada para o ALAP, destacam-se 10 locali-
dades. Para isso, foram considerados alguns aspectos como o espaço geográfico, o
contexto histórico, a situação econômica e sociocultural dos municípios, atenden-
do, assim, as recomendações de Ferreira e Cardoso (1994, p. 24) sobre a pesquisa
geolinguística, de que a determinação da área a ser submetida à investigação diale-
tal deve ser estabelecida do seguinte modo:
[...] em razão de sua situação geográfica, de sua história, das interferências de que tem
sido objeto, do tipo de povoamento que nela se processou, da situação econômica atual
e passada, da sua relação com as demais áreas a serem pesquisadas (quando for o caso),
da sua situação demográfica, enfim, pode ter como base um conjunto de caracteres que a
demarcam e a distinguem de outras áreas.

Com isso, para este trabalho, foi considerado os dados coletados por meio do
Questionário Fonético-Fonológico (QFF)7 do ALAP. O banco de dados consultado
conta com entrevistadas gravadas em áudio de 40 informantes amapaenses. As lo-
calidades investigadas foram: Macapá, Santana, Mazagão, Laranjal do Jari, Pedra
Branca do Amapari, Porto Grande, Tartarugalzinho, Calçoene, Amapá e Oiapoque.
A seguir apresenta-se a Figura 1, mostrando as localidades selecionadas.

7   É o mesmo questionário utilizado pelo Projeto ALiB.


Sumário
41
Figura 1: Localidades pesquisadas

Fonte: Sanches (2019).

Os informantes selecionados para pesquisa foram divididos em dois grupos,


considerando as seguintes variáveis sociais: sexo (homem e mulher) e faixa etária
(18 a 30 anos e 50 a 75 anos). Para investigação da marcação do gerúndio no por-
tuguês falado no Amapá foi contemplada a carta F04 do ALAP, que trata do gerún-
dio nos itens fonéticos: fervendo (questão 27), remando (questão 52) e dormindo
(questão 148).
Para descrição e análise quantitativa dos dados fonéticos, foi utilizado o Mi-
crosoft Office Excel para elaboração de tabelas e gráficos, a fim de identificar os con-
dicionantes sociais em relação à presença ou à ausência do gerúndio no português
falado por homens e mulheres de diferentes faixas etárias.
Resultados da pesquisa
Nesta seção, apresentamos os resultados da pesquisa em dois momentos. No
primeiro, descrevemos a variação diatópica (geográfica) sobre a marcação de ge-
rúndio (nd) em uma amostra do português falado em 10 municípios do estado do
Amapá. No segundo momento, mostramos a análise quantitativa sobre o número
de realização do gerúndio na fala de homens e mulheres de primeira faixa etária
(18-30 anos) e de segunda faixa etária (50-75 anos).
Para descrição diatópica, apresentamos abaixo a carta F04 do ALAP que mos-
tra, na parte inferior do mapa, os vocábulos cartografados, e do lado direito, a fre-
quência de presença e ausência do gerúndio, e do lado esquerdo o mapa, os dados
fonéticos encontrados.
Sumário
42
Figura 2: Realização do grupo (nd) no português do Amapá

Fonte: Razky, Ribeiro e Sanches (2017, p. 58).

De acordo com a Figura 2, foram constatados 94% (120 ocorrências) de pre-


sença do gerúndio e apenas 6% (6 ocorrências) de ausência. Assim, entre as locali-
dades pesquisadas há a maior tendência para a marcação do gerúndio no português
falado no Amapá do que o apagamento do fonema /d/. Isso pode ser observado nos
municípios de Macapá, Santana, Mazagão, Laranjal do Jari, Tartarugalzinho, Calçoe-
ne e Oiapoque que apresentaram 100% de frequência do gerúndio.
Contudo, apesar do apagamento do fonema /d/ no gerúndio acontecer em
menor proporção, encontramos essa forma não-padrão na fala de informantes dos
municípios de Pedra Branca do Amapari, Porto Grande e Amapá. Dentre eles, Pedra
Branca do Amapari é a localidade que mais apresenta o apagamento da forma “nd”
com um total de 25% de frequência, seguida de Porto Grande com 16% e Amapá
com 8,3%, conforme mostra o Gráfico 1.
Gráfico 1: Presença e ausência de (nd) por localidade pesquisada

Fonte: Elaborado pelos autores.


Sumário
43
Por conseguinte, como indica o Gráfico 2, sobre a variável idade, foi constatado que
os informantes da primeirea faixa etária (de 18 a 30 anos) tendem a apagar o fonema /d/
da marcação de gerúndio com 7% de frequência e 93% de frequência para presença de
gerúndio. Em comparação com a segunda faixa etária (de 50 a 75 anos), esta realiza o ge-
rúndio com 97% de frequência e 3% de não-realização.
Gráfico 2: Variação social: idade

Fonte: Elaborado pelos autores.

Por fim, o Gráfico 3 apresenta a variável social sexo com seus respectivos re-
sultados. Observamos nos resultados abaixo que essa variável parece não ser es-
tatisticamente significativa, pois a forma padrão se mantém estável com um per-
centual de 95% de presença e 5% de apagamento na fala de informantes do sexo
masculino e feminino.
Gráfico 3: Variação social: sexo

Fonte: Elaborado pelos autores.


Sumário
44
Esse resultado encontrado na fala de homens e mulheres amapaenses é diver-
gente do resultado encontrado em outras pesquisas sobre o gerúndio no português
brasileiro, de que as mulheres tenderiam a usar mais a forma padrão da língua, de
prestígio social, e os homens tenderiam a inovar, utilizando as formas não-padrão.
Considerações finais
Os resultados desta pesquisa mostram que 94% dos dados investigados os
amapaenses fizeram uso do gerúndio (nd) e 6% dos informantes apagaram o fo-
nema /d/ de itens fonéticos fervendo, remando e dormindo, preferindo as formas
ferveno, remano e dormino.
Vale ressaltar, ainda, que na maioria das localidades do estado do Amapá a
manutenção do gerúndio foi realizada com 100% de frequência. E que somente
os municípios de Pedra Branca do Amapari, Porto Grande e Amapá apresentam o
apagamento do fonema /d/.
Em relação às variáveis sociais, tanto homens como mulheres, de diferentes
faixas etárias, realizam com maior frequência o gerúndio. Houve uma pequena ten-
dência no que concerne ao apagamento do fonema /d/ na fala de informantes jo-
vens, mas ainda é preciso coletar um número maior de dados para identificar se é
uma preferência desse grupo social.
Sendo assim, os resultados gerais encontrados nos dados do ALAP coadunam
com os estudos de Almeida e Oliveira (2017) e Araújo, Lavor e Viana (20018), que
também apresentam uma maior frequência para a manutenção do gerúndio no
português falado em Alagoas e Piauí. No entanto, quando se trata das variáveis so-
ciais, os resultados são divergentes em relação à variável sexo que não apresentou
influência na fala de informantes mulheres, como tem sido evidenciado nos estu-
dos de Nascimento e Mota (2004), Ferreira, Tenani e Gonçalves, (2012) e Araújo e
Aragão (2016).
Concluímos que a pesquisa sobre variação fonética no Amapá é de extrema
relevância para os estudos linguísticos como um todo, tendo em vista a diversida-
de linguística brasileira e a carência de estudos variacionistas no Norte do Brasil.
Esses resultados poderão contribuir para o mapeamento do perfil fonético do por-
tuguês falado no Amapá e incentivar novos estudos na área.
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Sumário
45
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VIII: 46-70, 2014. São Paulo: LAEL/PUCSP.
“Manda brasa”: um estudo quantitativo
sobre a variação de sentenças
imperativas em São Luís-MA
Matheus da Silva Lopes1
Cibelle Corrêa Béliche Alves2
Conceição de Maria de Araújo Ramos3

Resumo: Este capítulo é um breve recorte de uma pesquisa sobre a variação de sentenças imperativas no
estado do Maranhão. Por meio dos dados coletados pelo Projeto Atlas Linguístico do Maranhão - ALiMA,
buscamos investigar a existência de variantes nos modos verbais utilizados na construção de sentenças com
tom imperativo na Língua Portuguesa produzidas pelos informantes. À luz das teorias da Dialetologia e da
Sociolinguística, aqui representadas por Cardoso (2010), Labov (2008), Scherre (2007), entre outros, obje-
tivamos compreender e descrever um fenômeno existente e comprovado por outros estudos empreendidos
e publicados em outros estados brasileiros, com ênfase, neste caso, no estado do Maranhão. A metodologia
de coleta e análise dos dados condiz com os projetos Atlas Linguístico do Brasil - ALiB e ALiMA, sendo este
último a base de dados do qual o corpus foi extraído. A pesquisa em andamento envolve cinco municípios
maranhenses, no entanto, optou-se por apresentar neste texto somente a capital do estado, cujo número de
informantes e de variáveis observadas é maior que o das outras localidades. Os resultados obtidos eviden-
ciam que a capital maranhense realiza, em grande parte, o imperativo associado à forma indicativa, assim
como alguns outros estados brasileiros.
Palavras-chave: Dialetologia. Sociolinguística. Variação. Imperativo. Maranhão.

Introdução
Apesar da prescrição gramatical, a língua corrente, isto é, em sua concreti-
zação e uso diário, nem sempre funciona da mesma forma que muitos gramáticos
costumam postular. O modo imperativo do português brasileiro (PB) sofre varia-
ção da mesma forma que muitos outros fenômenos linguísticos. Essa variação se dá
no nível sintático, ou seja, da construção de sentenças, em que o verbo conjugado

1  Mestrando do Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal do Maranhão - UFMA. E-mail: ms.lopes@discente.
ufma.br.
2  Professora doutora do Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal do Maranhão - UFMA. E-mail: cibelle.beliche@
ufma.br.
3  Professora doutora do Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal do Maranhão - UFMA. E-mail: cma.ramos@
ufma.br.
Sumário
47
no imperativo pode adquirir duas formas: uma mais próxima do indicativo e outra
mais tendenciosa ao subjuntivo.
Conforme Cunha e Cintra (2016, p. 462), o modo verbal é “a propriedade que
o verbo tem de indicar a atitude (de certeza, de dúvida, de suposição, de mando,
etc.) da pessoa que fala em relação ao fato que enuncia”. A Língua Portuguesa dis-
põe de três modos verbais: o indicativo, o subjuntivo e o imperativo. O primeiro de-
les expressa uma certeza diante da ação realizada, em curso ou a ser concretizada;
o segundo, denota desejo, súplica e certa dúvida diante de algo; já o último – objeto
de estudo deste trabalho – expressa, etimologicamente (latim = imperare), uma
ordem ou comando. No entanto, a língua, através de diversas estratégias, acaba, efi-
cazmente, suavizando tal ideia, transformando o modo imperativo em exortações e
convites, por exemplo (CUNHA; CINTRA, 2016).
Embora pareça paradoxal a ideia de que um modo verbal possa se servir dos
outros dois existentes, é válido lembrar que o imperativo ocorre na forma afirma-
tiva e na forma negativa. Na forma afirmativa, o imperativo apresenta formas pró-
prias apenas para a segunda pessoa do discurso (singular e plural), sendo comple-
tado, pelas formas subjuntivas; já na forma negativa, o subjuntivo ocupa todas as
lacunas, uma vez que o imperativo não possui formas próprias de construção para
esta forma (CUNHA; CINTRA, 2016).
Essa discussão tem sido abordada por muitos pesquisadores ao longo dos
anos, em diversas partes do Brasil, vide estudos como os de Scherre (2007), que
traz um olhar sincrônico e diacrônico do imperativo no português brasileiro (PB)
até a época. Nas regiões Sudeste e Sul do país, diversas pesquisas empreendidas
atestam a variação do imperativo na fala de brasileiros, prova de que a gramática
normativa não é seguida à risca pelos usuários e de que a variação é inerente a
todas as línguas, sendo um dos fatores que a caracterizam como viva e dinâmica.
Assim, nosso objetivo é analisar a variação do modo imperativo no português
falado no Maranhão, especificamente em São Luís, cuja localidade ainda não possui
muitos trabalhos que sejam expressivos a esse respeito. Para análise, constituímos
um corpus extraído do banco de dados do Projeto Atlas Linguístico do Maranhão
- ALiMA, realizado pelo Departamento de Letras da Universidade Federal do Ma-
ranhão – DELER/UFMA e que objetiva “elaborar o Atlas Linguístico do Maranhão”
e “descrever a realidade do português do Maranhão para identificar fenômenos
fonéticos, morfossintáticos, lexicais, semânticos e prosódicos, que caracterizam di-
ferenciações ou definem a unidade linguística do Estado” (RAMOS, 2005, p. 5).
Portanto, neste capítulo, fizemos uma breve fundamentação teórica concer-
nente à Dialetologia e à Sociolinguística, bem como sua relação com este trabalho,
e a variação do imperativo conforme trabalhos já publicados sobre a temática. Em
seguida, apresentamos a metodologia adotada para coleta dos dados e posterior
análise. Na penúltima seção, damos destaque aos resultados obtidos através das
realizações linguísticas dos informantes de São Luís, de modo a confirmar ou refu-
tar nossas hipóteses. Por fim, faremos nossas considerações sobre esta produção e
os caminhos que pode percorrer futuramente.
Sumário
48
Fundamentação teórica
O imperativo, na Língua Portuguesa, apresenta certa semelhança com a língua
latina, da qual evoluiu. A forma de conjugação dos verbos no imperativo, tendo so-
mente a segunda pessoa do discurso como formas próprias é uma referência direta
à herança latina, que apresentava este modo verbal como independente do indica-
tivo. Segundo Scherre (2007), no latim, as formas imperativas só se distinguiam do
infinitivo verbal por meio da exclusão da última sílaba, como, por exemplo, laxare
(deixar) para laxa (deixa). Assim como nesse exemplo, alguns verbos no PB se-
guem o mesmo padrão, apesar de não ser uma regra para todos, especialmente a
depender da pessoa do discurso sobre quem se está falando, conforme apontado
por Scherre et al. (2007):
Pesquisas sobre o português brasileiro em uso têm evidenciado que a alternância olha/olhe;
abre/abra; faz/faça não apresenta correlação inequívoca com o contexto discursivo de me-
nor ou maior distanciamento, que caracteriza o uso explícito dos pronomes tu ou você em
algumas regiões brasileiras, sem a presença obrigatória da morfologia verbal (cf.: SETTE
1980; SOARES 1980; PAREDES SILVA, 2003; LOREGIAN-PENKAL, 2004; LUCCA, 2005).

Assim, na concepção desses autores, o traço de maior ou menor distancia-


mento entre os interlocutores, isto é, o grau de formalidade discursiva, não confi-
gura um fator preponderante para a variação das formas verbais imperativas no
português brasileiro, haja vista que este difere do português europeu (PE) e do
espanhol, por exemplo – línguas que apresentam o chamado imperativo verdadeiro
(aquele que possui formas próprias para o modo imperativo em segunda pessoa)
(RIVERO, 1994; RIVERO; TERZI, 1995 apud SCHERRE et al, 2007). Reforça-se, por-
tanto, o caráter dialetal inerente a essa temática, uma vez que a variação do im-
perativo está diretamente ligada à reformulação do quadro pronominal do PB e à
sua distribuição espacial, ou seja, uma questão geográfica que traz como principal
linha investigativa a Dialetologia aliada à Sociolinguística.
Seguindo essa linha de pensamento, Scherre et al. (2007) apresentam uma
breve comparação entre o PE e o PB no que tange ao imperativo, sendo o PE uma
língua de classe I (RIVERO, 1994; RIVERO; TERZI, 1995), isto é, uma língua que
possui imperativo verdadeiro e, consequentemente, a impossibilidade de negá-lo
na construção de sentenças com tom imperativo, além de se utilizar de formas su-
pletivas cuja função assume o tom imperativo na construção sintático-discursiva
(forma subjuntiva ou indicativa, por exemplo). Já o PB, também uma língua classe
I, se diferencia de sua matriz europeia quanto à posição do clítico verbal; enquanto
no português europeu, este clítico nunca pode vir em posição inicial ou absoluta
(ex.: Me perdoe pela falta de ontem - ênclise), no português brasileiro, construções
desse tipo são mais comuns do que aquelas com o clítico pós-verbal (ex.: Diga-me
com quem tu andas – próclise).
Nesse sentido, é impossível negar que fatores históricos e culturais contri-
buem para a distinção entre o PE e o PB no que concerne ao imperativo e suas
realizações linguísticas pelos falantes. Na fala de brasileiros, como muitos estudos
atestam, o imperativo é constituído majoritariamente por próclise, isto é, da es-
Sumário
49
querda para a direita no processo de cliticização. Além disso, a distribuição espa-
cial do sistema pronominal reforça essas construções, bem como as variantes do
imperativo verdadeiro (coma, faz, diz) e do imperativo supletivo (come, faça, diga).
Enquanto formas do imperativo verdadeiro predominam no Sudeste, no Centro-Oeste e em
áreas do Sul, formas do imperativo supletivo são mais freqüentes no Nordeste. Além disso,
depreende-se uma situação em que o traço [±distanciamento], verificado na expressão do
imperativo no português europeu, em articulação com o sistema pronominal, não pare-
ce ser relevante ou se evidencia mais difuso e menos codificado no português brasileiro
(SCHERRE et al., 2007).

Estudos voltados à mudança do quadro pronominal no PB podem ajudar a


explicar o motivo da variação do imperativo no Brasil. Como mencionado, a alter-
nância entre tu e você nas cidades brasileiras está diretamente ligada ao uso do
imperativo verdadeiro e do imperativo supletivo. Isso permite distinguir, conforme
Scherre et al. (2007), as regiões cujo uso do imperativo verdadeiro é maior do que
o supletivo e vice-versa. Um estudo realizado por Menon e Loregian-Penkal (2002)
e outro realizado por Loregian-Penkal (2004), ambos citados por Scherre e cola-
boradores (2007), atestam os percentuais de variação dos pronomes de segunda
pessoa do singular na região Sul do país, sendo que as capitais dos três estados
apresentam condições e resultados distintos: Curitiba opta pelo uso exclusivo do
você, enquanto Porto Alegre e Florianópolis apresentam alto percentual de tu (91%
e 77%, respectivamente), embora haja uso do pronome você também nas duas úl-
timas cidades.
Dados coletados na década de 70, e posteriormente analisados, revelam que o
Nordeste brasileiro apresenta um uso maior de formas imperativas supletivas ou,
em alguns casos, de ambas as formas (verdadeiras e supletivas), conforme docu-
mentado em estudos citados por Scherre (2007), inclusive do Projeto NURC4. Cida-
des como Fortaleza, João Pessoa e Recife, áreas de alternância entre tu/você, apre-
sentavam percentuais de 35%, 34% e 51%, respectivamente; enquanto Salvador,
área com maior uso de você até então, tinha média de 28% do uso de imperativo
supletivo (SETTE, 1980; SOARES, 1980; PEDROSA, 1999; ALVES, 2001; SAMPAIO,
2001; JESUS, 2006 apud SCHERRE et al., 2007).
Essas conclusões nos levam a crer que o Maranhão, cuja alternância entre tu e
você também se faz presente, apesar do maior registro de ocorrências desta última
forma de tratamento da segunda pessoa (ALVES, 2010), também pode apresentar
dados de variação nas orações imperativas. O estudo de Alves (2010) dá margem a
essa discussão, uma vez que a autora registra 168 ocorrências de você no município
de São Luís, representando 52,2% dos dados analisados por ela em sua pesquisa,
também realizada a partir de dados do Atlas Linguístico do Maranhão. Pensando
por essa perspectiva, a conclusão inicial seria de que os falantes maranhenses op-
tam por utilizar formas linguísticas imperativas do tipo deixe/abre/vai, hipótese
esta que procuramos confirmar ou refutar na análise do corpus.

4   O Projeto Norma Urbana Culta foi desenvolvido entre as décadas de 70 e 90 em cinco capitais brasileiras: Rio de Janeiro, São Paulo,
Porto Alegre, Recife e Salvador.
Sumário
50
Como o PB permite a construção imperativa precedida de você em duas for-
mas distintas (“Faz você a lição”; e “Faça sua própria lição”), esse é um dado rele-
vante para se pensar a variação concretizada pelos falantes em sentenças ou ver-
bos no modo imperativo. De acordo com a pesquisa de Scherre et al. (2007), essa
última forma se encontra com uso reduzido atualmente, levando em consideração
que mesmo falantes de tu optam por construir sentenças com o verbo conjugado
na 3ª pessoa do singular (ele/ela faz – tu faz).
A seguir, apresentamos os procedimentos metodológicos utilizados para a co-
leta dos dados pelo Projeto ALiMA e os que foram utilizados em nossa análise a
posteriori.
Procedimentos metodológicos
O Projeto Atlas Linguístico do Maranhão - ALiMA nasceu a partir da necessida-
de de mapear os fenômenos geossociolinguísticos e dialetológicos que ocorrem no
estado, seguindo o exemplo de iniciativas como o Atlas Linguístico do Brasil - ALiB,
projeto sociodialetal e geolinguístico ao qual estão vinculados outros atlas estadu-
ais. O intuito é:
[...] o estudo de diversos fenômenos nos diferentes níveis de análise linguística, objetivando
assim um conhecimento geral e sistemático da realidade linguístico-cultural maranhense
que possa subsidiar o exame das possíveis convergências e divergências entre os falares
que compõem o português falado no Brasil (RAMOS et al., 2019, p. 23).

O Projeto ALiMA já publicou obras com artigos compilados que descrevem


as especificidades linguístico-culturais do estado, demonstrando, assim, a impor-
tância do mapeamento dialetal, como forma de fotografia linguística e de subsídio
para discussões científicas com base no uso real da língua. O atlas possui uma rede
de pontos com 16 localidades divididas em 05 mesorregiões. O quadro abaixo sin-
tetiza melhor a distribuição dos espaços geográficos estudados pelo projeto:
Quadro 1: Rede de pontos do Projeto ALiMA
ESTADO MESORREGIÕES MUNICÍPIOS
NORTE São Luís (MA 01), Raposa (MA 02) e Pinheiro (MA 03)
Alto Parnaíba (MA 10), Balsas (MA 09) e Carolina (MA
SUL
08)
MARANHÃO Araioses (MA 14), Brejo (MA 13), São João dos Patos
LESTE
(MA 11), Caxias (MA 12) e Codó (MAS 17)
Imperatriz (MA 07), Turiaçu (MA 04) e Carutapera
OESTE
(MA 05)
CENTRO Bacabal (MA 16) e Tuntum (MA 18)
Fonte: Adaptado de Ramos et al. (2019, p. 25).

Para a coleta dos dados obtidos pelo ALiMA, as seguintes variáveis foram con-
troladas:
• Sexo: os informantes foram divididos em dois grupos – feminino e mascu-
lino, contemplando a dimensão diassexual da pesquisa geolinguística;
• Escolaridade: com exceção de São Luís, que também apresenta indivídu-
os com escolaridade superior completa, em todas as localidades foram se-
lecionados informantes com ensino fundamental incompleto;
Sumário
51
• Faixa etária: o projeto estabeleceu duas faixas etárias para a realização
dos inquéritos – dos 18 aos 30 anos (faixa etária I) e dos 50 aos 65 anos
(faixa etária II) – inserindo a dimensão diageracional;
• Dimensão: para participar da pesquisa, os indivíduos selecionados devem
ser naturais daquela localidade ou não ter se afastado por mais de um ter-
ço da vida, o que consiste na dimensão topostática.
Dessa forma, foram selecionados 04 indivíduos em cada município, dois do
sexo masculino e dois do sexo feminino, e 08 informantes na capital, quatro do sexo
masculino e 04 do sexo feminino, totalizando 68 entrevistados, que compõem a
estratificação social do atlas.
A identidade dos informantes foi preservada da seguinte forma: aos informantes do sexo
masculino atribuímos números ímpares, e aos do sexo feminino, números pares; os núme-
ros de 1 a 4 correspondem aos informantes com ensino fundamental, e de 5 a 8, àqueles
com formação universitária. Com relação à faixa etária, os números 1, 2, 5 e 6 são atribuí-
dos aos sujeitos mais jovens (faixa etária I), e os números 3, 4, 7 e 8, aos mais idosos (faixa
etária II). Para identificação das localidades, foi atribuído um número de dois dígitos a cada
uma delas, antecedido pela sigla MA (RAMOS et al, 2019, p. 24).

Além disso, sobre os instrumentos de pesquisa do Projeto ALiMA, os auto-


res pontuam que “[...] foram realizados inquéritos com a utilização de três ques-
tionários – fonético-fonológico, semântico-lexical e morfossintático –, questões de
pragmática, temas para discursos semidirigidos, perguntas metalinguísticas e um
texto para leitura” (RAMOS et al, 2019, p. 23). Isso evidencia, mais uma vez, a con-
vergência de uma metodologia específica para a pesquisa dialetal e sociolinguística
(CARDOSO, 2010; COELHO et al, 2015) e o alinhamento com o Projeto Atlas Lin-
guístico do Brasil - ALiB, sediado na Universidade Federal da Bahia, que o realiza
em parceria com outras instituições de ensino superior (IES) brasileiras, inclusive
a Universidade Federal do Maranhão (UFMA).
A nossa escolha por São Luís como locus de análise, como mencionado, se deu
pelo fato de esta localidade levar em consideração dois níveis de escolaridade (en-
sino fundamental e ensino superior), o que requer um número maior de informan-
tes do que os demais munícipios, equilibrando as células sociais. Soma-se a isso
a localização geográfica da cidade, seu título de capital do estado e a importância
sociocultural e política que esta tem como tal. Tais motivos nos levaram a crer que
esta seria a melhor opção de localidade para aplicar nosso estudo.
Em nossa análise, optamos por trabalhar com o questionário morfossintático,
com os temas para discursos semidirigidos e com os discursos livres, aqueles que,
em geral, apresentam-se ao final das entrevistas e que constituem um exemplo es-
pontâneo da língua em uso e, por essa mesma razão, configuram uma boa fonte de
dados.
Resultados e discussões: uma análise quantitativa
Em virtude do período disponível para a realização da pesquisa, optamos por
não trabalhar com as rodadas estatísticas nesta análise, nos detendo mais à quan-
tidade de ocorrências de sentenças imperativas com variação, de acordo com as
Sumário
52
entrevistas realizadas pelo Projeto ALiMA aos informantes de São Luís. Entende-
mos que os percentuais são relevantes para o envelope da variação (COELHO et al.,
2015), mas, pelos fatores supracitados, decidimos abordá-la em trabalhos futuros.
Como mencionado, o município em questão apresenta oito informantes, qua-
tro de cada sexo (feminino e masculino), sendo também quatro com ensino fun-
damental incompleto e quatro com ensino superior completo. Assim, foi possível
detectar um índice de ocorrências satisfatório, cujos resultados estão na tabela
abaixo:
Tabela 1: Distribuição de ocorrências de sentenças imperativas por informante
INFORMANTES OCORRÊNCIAS
Informante 01 62
Informante 02 28
Informante 03 54
Informante 04 80
Informante 05 29
Informante 06 18
Informante 07 46
Informante 08 90
Total 407
Fonte: Elaborada pelos autores.

Ao todo, os informantes produziram 407 sentenças imperativas, sendo as


maiores quantidades individuais dos informantes 08, 04 e 01, respectivamente.
Esses dados apareceram de forma “guiada”, isto é, por meio do questionário mor-
fossintático e dos temas para discursos semidirigidos, mas, também, por meio dos
discursos livres – aqueles que, em geral, manifestam-se ao final das entrevistas ou
que complementam a resposta dada a algum item dos questionários. Nessa última
situação, houve uma liberdade maior de produção, haja vista que os entrevistados
relatavam fatos ou situações da vida cotidiana ou de suas realidades particulares
a partir dos questionamentos feitos pelo inquiridor, como forma de detalhar ou
complementar as respostas dadas até então.
Partindo da perspectiva do sexo, temos os seguintes resultados:
Tabela 2: Quantidade de produções dos informantes por sexo
QUANTIDADE DE
INFORMANTE SEXO
SENTENÇAS
01 Masculino 62
03 Masculino 54
05 Masculino 29
07 Masculino 46
02 Feminino 28
04 Feminino 80
06 Feminino 18
08 Feminino 90
Fonte: Elaborada pelos autores.

Nos dados, foram encontradas construções como as apresentadas a seguir:


INF.: Repete de novo. (Informante 01);
INF.: Marca aquele dali. (Informante 01);
INF.: Leva na empresa de correios. (Informante 08);
Sumário
53
INF.: Me desculpe. (Informante 08).

Conforme os números da Tabela 2, o maior quantitativo de produções impe-


rativas é do informante 01 para o sexo masculino, e da informante 08 para o sexo
feminino. Já as menores quantidades são apresentadas pelo informante 05, no gru-
po do sexo masculino, e pela informante 06, no grupo do sexo feminino, respectiva-
mente. Apesar disso, a informante 02 tem um número de produções quase idêntico
ao do informante 05, ficando atrás apenas por uma sentença nos cálculos totais.
Sobre a escolaridade, temos:
Tabela 3: Quantidade de produções de acordo com a escolaridade
Quantidade de
Informante Escolaridade
produções
01 62
02 28
Ensino fundamental
03 54
04 80
05 29
06 18
Ensino superior
07 46
08 90
Fonte: Elaborada pelos autores.

Como mencionado, os informantes 01 e 08 são do sexo masculino e feminino,


respectivamente, e apresentam escolaridades distintas: ensino fundamental, no
caso do informante 01, e ensino superior, no caso da informante 08. Já os infor-
mantes 05 e 06, apesar da oposição de sexos, são da mesma escolaridade – ensino
superior completo.
Alguns exemplos das produções destes dois últimos são apresentados a se-
guir:
INF.: [...] pega o feijão de ontem. [...]. Joga na panela, coloca arroz, mexe e pronto. (Informan-
te 06);
INF.: Eu diria: [...] você pega uma panela, coloca água, sabe fazer arroz... (Informante 05).

No que diz respeito à idade, conforme a classificação do ALiMA, temos:


Quadro 2: Divisão dos informantes por faixa etária
Informantes Faixa etária
01
02 Faixa etária I
05
06
03
04
Faixa etária II
07
08
Fonte: Elaborado pelos autores.

Assim, os indivíduos 01, 05 e 06 são da faixa etária I, enquanto a informan-


te 08 faz parte da faixa etária II. No entanto, nenhum deles produziu um número
maior de sentenças do que esta última entrevistada.
Contudo, o dado mais relevante que buscamos analisar por meio deste tra-
balho foi o das variações das sentenças imperativas, ou seja, qual das variantes os
Sumário
54
indivíduos mais utilizavam: o imperativo verdadeiro ou o imperativo supletivo? É
interessante que, na maioria das ocorrências, os falantes produziram a sentença
sem explicitar o sujeito, isto é, sem demonstrar quais dos pronomes estavam usan-
do para se referir a segunda pessoa. Ainda assim, foi possível perceber uma mescla
no uso do tu e do você nas falas dos entrevistados, quando estas traziam a marcação
explícita do pronome. Em dados momentos, os falantes produziram construções do
tipo “tu empresta” e, em outros, sentenças como “você bota”.
Esse dado corrobora o que foi dito por Alves (2010) a respeito da variação
dos pronomes de segunda pessoa no Maranhão, incluindo a capital do estado, cuja
tendência parece ser maior para o uso da forma mais recente, o você. Alguns in-
formantes também manifestaram uma consciência linguística no que diz respeito
à variação dessas formas de tratamento. Um deles salientou que, para ele, o você
estabelece um certo distanciamento do interlocutor, evidenciando o grau de inti-
midade entre eles – pouco, nesse caso – e concretizando uma formalidade maior
no discurso. Outra entrevistada mencionou que, em sua opinião, os falantes mara-
nhenses utilizam as duas formas linguísticas equilibradamente, diferenciando-se
dos demais estados da federação.
Nos discursos semidirigidos, alguns falantes, ao relatarem acontecimentos
que envolviam outras pessoas, além deles mesmos, pareciam estabelecer certa
proximidade entre as personagens da história ao utilizarem o tu em alguns con-
textos de produção. E isso ocorreu de uma maneira geral, não somente nas senten-
ças imperativas que buscamos investigar. Já em outros momentos, quando se pedia
para que ensinassem alguma receita que soubessem fazer, a maioria das sentenças
era voltada ao uso do você, caracterizando os textos instrucionais, típicos nichos de
orações imperativas. Outro detalhe interessante é que, em quase todos os casos, o
uso do tu era acompanhado de verbos tipicamente conjugados na terceira pessoa
do singular (tu faz, tu bota, tu pega).
Dessa forma, analisando os dados obtidos por meio das entrevistas, é cla-
ra a opção dos entrevistados por formas consideradas imperativas verdadeiras
(SCHERRE et al., 2007), ocorrendo em um número maior do que as formas impera-
tivas supletivas. Além disso, conforme comentado por Scherre et al. (2007), o pro-
nome você admite uma ambiguidade de formas (faz/faça), sendo utilizado nos dois
referidos contextos também pelos informantes, independentemente de as orações
evidenciarem o sujeito ou não.
No entanto, é igualmente válido dizer que alguns fatores parecem influenciar
mais a produção dos falantes e outros menos. Tomemos como exemplo o caso da
escolaridade: os dois informantes mais producentes (01 e 08) são de escolaridades
distintas. No entanto, os menos producentes (05 e 06) pertencem ao mesmo nível
de escolaridade (nível superior). Além disso, a faixa etária de ambos também é a
mesma, o que pode nos levar a supor que os mais escolarizados e mais jovens têm
tendência a uma produção menor no município analisado, independentemente do
sexo. Ainda assim, em ambas as faixas etárias, escolaridades e sexos, notamos a
alternância entre as formas imperativas, havendo predomínio da forma verdadeira
associada ao indicativo, como mencionado.
Sumário
55
Considerações finais
Este trabalho buscou investigar a variação de sentenças imperativas em São
Luís, capital do estado do Maranhão, localizado na região Nordeste do Brasil. Os da-
dos recolhidos pelo Projeto Atlas Linguístico do Maranhão, através da mesma meto-
dologia adotada no Projeto ALiB, foram utilizados para compor o corpus de análise
da pesquisa, que levou em consideração os fatores faixa etária, sexo e escolaridade
como condicionadores extralinguísticos.
A escolha da localidade se deu em virtude da quantidade maior de informan-
tes e da possibilidade de dividi-los em entrevistados com ensino fundamental in-
completo e ensino superior completo, contrastando a formação escolar dos indi-
víduos. Sendo oito informantes, quatro de cada sexo, escolaridade e faixa etária,
os dados alcançados são expressivos não somente pela quantidade de ocorrências
durante as entrevistas, mas também pelos aspectos que nos permitiram observar
com relação ao fenômeno pesquisado.
Os informantes com maior número de produções foram os números 01 e 08
(homem e mulher, respectivamente), sendo o primeiro mais jovem com escolari-
dade fundamental e a segunda mais velha com escolaridade superior. Em contra-
partida, os informantes 05 e 06 – também homem e mulher – produziram menos
sentenças imperativas e ambos fazem parte da mesma faixa etária (faixa I) e esco-
laridade (superior completo), diferenciando-se apenas no fator sexo.
As sentenças nem sempre deixaram claras se os indivíduos estavam utilizando
o pronome tu ou você, mas, quando explicitavam esse aspecto, houve uma preferên-
cia aparentemente maior pelo você, fato já documentado em trabalhos anteriores.
Além disso, entre o imperativo supletivo e o imperativo verdadeiro, os falantes en-
trevistados optaram por utilizar esta última forma, reforçando dados já pesquisa-
dos em outros estados nordestinos e trazidos à tona por autores com Scherre et al.
(2007). Somado a isso, os verbos utilizados nas falas dos informantes foram quase
sempre conjugados na terceira pessoa do singular, acompanhados dos pronomes
de segunda pessoa, mesmo por aqueles indivíduos com escolaridade superior.
Assim, acreditamos que esta pesquisa tem um importante valor para os traba-
lhos com a Língua Portuguesa no Brasil, sobretudo no que diz respeito à Sociolin-
guística e à Dialetologia, além de tornar pública a variedade linguística maranhen-
se, ainda pouco explorada nacionalmente, especialmente no âmbito do imperativo.
Portanto, salientamos que este é um “embrião científico” capaz de gerar novos es-
tudos no futuro e que mostra um pouco da diversidade linguística presente na ca-
pital do estado do Maranhão.
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Federal do Ceará, Fortaleza, 2010.
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Sumário
56
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tuguês brasileiro: contato lingüístico, heterogeneidade e história. Rio de Janeiro: FAPERJ/7Letras, 2003, p.
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RAMOS, C. M. A. Variações lexicais no ALiMA. Revista do GELNE, v. 4, n. 2, p.1-5, mar., 2016.
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SETTE, N. D. Formas de tratamento no português coloquial. Dissertação (Mestrado). Universidade Federal de
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SCHERRE, M. M. P. Aspectos sincrônicos e diacrônicos do imperativo no português brasileiro. Alfa, São Paulo,
v. 51, n. 1. p. 189-222, 2007.
SCHERRE, M. M. P. et al. Reflexões sobre o imperativo em português. DELTA, São Paulo, vol. 23, nº especial,
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SOARES, M. E. As formas de tratamento nas interações comunicativas: uma pesquisa sobre o português fala-
do em Fortaleza. Dissertação (Mestrado). Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
1980.
Metaplasmos no Português falado
por amapaenses: sob um viés
Geolinguístico
Michele Silva de Carvalho1
Romário Duarte Sanches2

Resumo: Este trabalho tem como objetivo descrever os tipos de metaplasmos no falar amapaense a partir
do banco de dados do Projeto Atlas Linguístico do Amapá - ALAP. Têm-se como suporte teórico as discussões
do campo da Dialetologia e da Geolinguística (CARDOSO, 2010), além de questões relacionadas aos meta-
plasmos (KURODA, 2014). A metodologia empregada corresponde aos mesmos parâmetros adotados pelo
Projeto ALAP, com a seleção de 10 localidades: Macapá, Santana, Mazagão, Laranjal do Jari, Pedra Branca do
Amapari, Porto Grande, Tartarugalzinho, Amapá, Calçoene e Oiapoque. Foram considerados 40 informantes,
controlando as variáveis sexo (homem e mulher) e idade (18-30 anos e 50-70 anos). Os dados analisados
dizem respeito a uma amostra do Questionário Fonético-Fonológico (QFF). Os vocábulos analisados foram:
prateleira, caixa, tesoura, varrer, ruim, arroz, colher, liquidificador, abóbora, clara, manteiga, botar, árvores,
planta, elefante, peixe, calor, tarde, três, placa, bicicleta, pneu, vidro, passagem, muito, obrigado, giz, advogado,
inocente, ouvido, caspa, homem, mulher, braguilha, assobio, paz e hóspede. Os resultados mostram a presen-
ça de metaplasmos por aumento, supressão, transposição e transformação, com os seguintes fenômenos:
anaptixe, prótese, aférese, apócope, síncope, metátese, hipértese, sístole, degeneração, desnasalação, rotacis-
mo, ditongação, monotongação, metafonia e nasalação.
Palavras-chave: Metaplasmos. Geolinguística. Amapá.

Introdução
No estado do Amapá (AP), segundo estimativa populacional de 2020 do Insti-
tuto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), possui um quantitativo de 861.773
habitantes. O Amapá faz fronteira com o Pará, o Suriname e a Guiana Francesa.
Apesar de ser uma região propícia aos estudos da língua em contato, em virtude
da influência de variedades de outras comunidades fronteiriças, ainda há poucas
pesquisas nesse campo, sobretudo em relação ao português falado no estado.

1  Graduada em Letras-Inglês pela Universidade do Estado do Amapá – UEAP. E mestranda em Letras pela Universidade Federal do
Amapá – UNIFAP. E-mail: [email protected].
2   Doutor em Linguística pela Universidade Federal do Pará – UFPA e Professor do Curso de Letras na Universidade do Estado do
Amapá – UEAP. E-mail: [email protected]
Sumário
58
Sabe-se que as línguas vêm se constituindo ao longo dos anos, passando por
variações linguísticas de ordem fonológica, sintática e/ou morfológica, que são in-
trínsecas a elas, adaptando-se aos mais diversos fatores, sejam eles internos (es-
truturais) ou externos (sociais). Para compreender as mudanças linguísticas pelas
quais as línguas passam foram realizados diversos estudos no que tange à variação
linguística a partir de áreas do conhecimento como: a Sociolinguística, a Dialetolo-
gia e a Geossociolinguística.
No Brasil, os estudos nas áreas da Dialetologia e da Geolinguística começaram
a surgir na metade do século XX, impulsionados pelas primeiras publicações dos
atlas linguísticos regionais. No entanto, ganharam força com a proposta metodo-
lógica do Projeto Atlas Linguístico do Brasil - ALiB, em 1996. Pode-se dizer que, a
partir de então, inúmeros estudos variacionistas sobre o Português Brasileiro (do-
ravante PB) foram realizados.
Diante disso, este trabalho tem como objetivo descrever os tipos de metaplas-
mos no falar amapaense a partir do banco de dados do Projeto Atlas Linguístico do
Amapá - ALAP. Para isso, o trabalho foi dividido em cinco seções: introdução, dis-
cussão teórica, metodologia, apresentação dos resultados e considerações finais.
Dialetologia e Geolinguística
Uma das áreas do conhecimento que se ocupa de estudos voltados para ques-
tões variacionistas de uma língua natural é a Dialetologia. Esta faz uso da descri-
ção dos dialetos com base na localização geográfica dos falantes. De modo geral,
“a Dialetologia é tratada como uma ciência que surgiu nos fins do século XIX e que
demonstra, até os dias de hoje, um maior interesse pelos dialetos regionais, rurais e
sua distribuição e intercomparação” (FERREIRA; CARDOSO, 1994 apud SANCHES,
2015, p. 18).
Em uma concepção tradicional de Dialetologia, Dubois (2006, p. 185) desig-
na-a da seguinte forma:
O termo dialetologia, usado às vezes como simples sinônimo de geografia linguística, desig-
na a disciplina que assumiu a tarefa de descrever comparativamente os diferentes sistemas
ou dialetos em que uma língua se diversifica no espaço, e de estabelecer-lhes os limites.
Emprega-se também para a descrição de falas tomadas isoladamente, sem referência às
falas vizinhas ou da mesma família (Grifos do autor).

Já em uma perspectiva mais atual, a Dialetologia é vista como “um ramo dos
estudos linguísticos que assume a tarefa de identificar, descrever e situar os dife-
rentes usos em que uma língua se diversifica, conforme a sua distribuição espacial,
sociocultural e cronológica” (CARDOSO, 2010, p. 15).
Dentro do escopo da Dialetologia, encontra-se o método da Geografia Linguís-
tica ou Geolinguística, criado pelos dialetólogos com a intenção de registrar e com-
parar os resultados das pesquisas linguísticas em localidades diferentes por meio
da técnica cartográfica.
Sobre a relação entre Dialetologia e Geolinguística, Aragão (2009, p. 71 apud
GUEDES, 2012, p. 25) afirma que a Dialetologia de hoje não é uma mera geografia
linguística, como era considerada antes, em que se focalizavam as variações re-
Sumário
59
gionais ou diatópicas, apresentando resultados monodimensionais, monostráticos,
monogeracionais e monofásicos. Atualmente, como afirma Cardoso (2010), a Dia-
letologia moderna ampliou o seu campo de observação e hoje considera variáveis
sociais mais complexas como: a diageracional, diagenérica, diassexual, diastrática
e diafásica.
A dimensão diageracional busca mostrar a variação linguística condicionada
pela faixa etária; enquanto que a diagenérica ou diassexual visa estudar variação
linguística condicionada pelo gênero/sexo; já a diastrática considera a variação lin-
guística condicionada pela classe social, escolaridade e/ou profissão; por último, a
diafásica pesquisa a variação linguística condicionada pelo estilo (linguagem for-
mal ou informal).
Metaplasmos no Português Brasileiro
De acordo com Kuroda (2014), o termo metaplasmo vem do grego μετα (além)
+ πλασμóς (formação, transformação), ou seja, trata das modificações fonéticas so-
fridas pelas palavras por meio de sua evolução histórica, como do latim ao portu-
guês contemporâneo.
Sobre os metaplasmos, Botelho e Leite (2005, p. 01) afirmam que essas alte-
rações fonéticas não são simplesmente processos que a língua sofreu na passagem
do Latim para o Português, mas que são fenômenos que continuam agindo e trans-
formando a Língua Portuguesa nos dias atuais.
De modo igual, Kuroda (2014) ratifica que as transformações fonéticas não
se dão por acaso e também não ocorrem por acidente ou por conta de desejos pes-
soais, elas obedecem à mudança natural e espontânea da língua. Esses processos
ocorrem principalmente durante o discurso informal dos indivíduos, momento em
que eles se encontram mais à vontade para falar de forma espontânea.
Os metaplasmos podem ser classificados em quatro tipos, segundo Botelho e
Leite (2005, p. 02): aumento, supressão, transposição e transformação. O metaplas-
mo por aumento ocorre quando se insere um fonema no vocábulo, aumentando
assim a sua forma fonética, como em: asterisco > asterístico. Esse tipo de meta-
plasmo pode ser subdividido em quatro fenômenos fonológicos: epêntese, anaptixe,
epítese/paragoge e prótese. O metaplasmo por supressão ocorre quando se suprime
um fonema do vocábulo, reduzindo assim a sua forma fonética, como em: bêbado >
bebo. Esse tipo de metaplasmo pode ser subdividido em quatro fenômenos fonoló-
gicos: aférese, apócope, síncope e haplologia.
O metaplasmo por transposição ocorre quando há o deslocamento de fonemas em
um vocábulo ou a transposição do acento tônico da palavra, como em: gratuito > gratuíto.
Esse tipo de metaplasmo pode ser subdividido em quatro fenômenos fonológicos: metáte-
se, hipértese, sístole e diástole. Por último, o metaplasmo por transformação ocorre quando
há a transformação de um fonema em outro diferente no vocábulo, como em: pílula > píru-
la. Esse tipo de metaplasmo pode ser subdividido em doze fenômenos fonológicos: dege-
neração, desnasalação, dissimilação, rotacismo, lambdacismo, ditongação, monotongação,
metafonia, nasalação, palatalização, sonorização e despalatalização ou iotização.
Sumário
60
Metodologia
Esta seção busca mostrar os procedimentos metodológicos adotados para a descri-
ção dos metaplasmos presentes na fala de amapaenses. Assim, são descritos a seguir a
rede de pontos, o perfil do informante, o instrumento de pesquisa e a seleção dos dados.
Os pontos de inquérito desta pesquisa são os mesmos selecionados para o ALAP.
Neste sentido, foram consideradas 10 localidades do estado do Amapá, a saber: Macapá
(1); Santana (2); Mazagão (3); Laranjal do Jarí (4); Pedra Branca do Amapari (5); Porto
Grande (6); Tartarugalzinho (7); Amapá (8); Calçoene (9) e Oiapoque (10).
De acordo com Razky, Ribeiro e Sanches (2017, p. 37), as localidades foram selecio-
nadas a partir dos seguintes critérios: a densidade demográfica; a distribuição espacial
das localidades; a importância econômica; e o aspecto sociocultural da localidade. Desta
forma, 10 dos 16 municípios do estado compuseram a rede de pontos do ALAP.
Os informantes selecionados para esta pesquisa também dizem respeito ao
grupo de colaboradores do ALAP. Assim, foram controladas as seguintes variáveis,
como mostra a Quadro 1.
Quadro 1: Perfil dos informantes
Informante Faixa etária Sexo Escolaridade
1 18-30 Masculino Fundamental
1 18-30 Feminino Fundamental
1 50-75 Masculino Fundamental
1 50-75 Feminino Fundamental
Fonte: Elaboração dos autores.

Para seleção dos informantes foram elencados seis critérios, considerados


por Razky, Ribeiro e Sanches (2017), como: a) ter nascido no município; b) ser filho
de pais nascidos na região; c) não ter morado em outro estado ou região por mais
de um terço de sua vida; d) ter nível de instrução escolar variando de analfabeto ao
ensino fundamental completo; e) possuir boas condições de saúde e de fonação; e
f) ter disponibilidade para a entrevista.
No que tange à seleção dos itens fonéticos, utilizamos os dados do Projeto
ALAP que foram coletados com base no Questionário Fonético-Fonológico (QFF)
do Projeto ALiB (2001), contendo 159 questões. Para a descrição dos fenômenos
analisados nesta pesquisa, foram considerados 37 itens fonéticos: prateleira; caixa;
tesoura; varrer; ruim; arroz; colher; liquidificador; abóbora; clara; manteiga; botar;
árvores; planta; elefante; peixe; calor; tarde; três; placa; bicicleta; pneu; vidro; passa-
gem; muito; obrigado; giz; advogado; inocente; ouvido; caspa; homem; mulher; bra-
guilha; assobio; paz e hóspede.
Apresentação dos resultados
Apresentamos, a seguir, os tipos de metaplasmos encontrados no português
falado por amapaenses, conforme a localização geográfica e o perfil de cada infor-
mante. Para facilitar a compreensão e a identificação dos tipos metaplasmos, foram
elaboradas tabelas mostrando o fenômeno fonológico, o item fonético e o número
de ocorrência do fenômeno.
Sumário
61
Metaplasmos por aumento
Os primeiros resultados obtidos dizem respeito ao metaplasmo por aumento,
os fenômenos identificados foram anaptixe e prótese. Os itens fonéticos que apon-
taram a presença desse tipo de metaplasmo foram pneu, advogado e liquidificador,
conforme a Tabela 1.
Tabela 1: Resultados encontrados para metaplasmos por aumento
pneu > peneu 27
Anaptixe
advogado > adevogado 6
Prótese liquidificador > velhificado 1
Fonte: Elaboração dos autores.

O fenômeno anaptixe, que consiste na inserção de uma vogal entre duas con-
soantes para desfazer um encontro consonantal, esteve presente no item advogado
> adevogado, ocorrendo na fala de seis (6) informantes; dois (2) homens de segun-
da faixa etária nos pontos 1 (Macapá) e 5 (Pedra Branca do Amapari) e três (3)
mulheres de segunda faixa etária nos pontos 2 (Santana), 3 (Mazagão) e 4 (Laranjal
do Jari).
O fenômeno prótese, que consiste na inserção de um segmento no início de
uma palavra, esteve presente no item liquidificador > velhificado, ocorrendo uma
(1) vez na fala de um (1) homem de segunda faixa etária no ponto 2 (Santana).
Metaplasmos por supressão
Os resultados encontrados que dizem respeito aos metaplasmos por supressão foram
aférese, apócope e síncope. Neste sentido, os itens fonéticos que apontaram a presença
desses fenômenos foram: abóbora, elefante, obrigado, advogado, varrer, colher, botar, ca-
lor, mulher e árvore, como mostra a Tabela 2.
Tabela 2: Resultados encontrados para metaplasmos por supressão
abóbora > bóbura 2
elefante > lefanti 2
Aférese
obrigado > brigadu 5
advogado > devogadu 4
varrer > varre 36
colher > colhe 30
Apócope botar > bota 29
calor > calo 28
mulher > mulhe 28
abóbora > abóbra 3
Síncope
árvore > avuri 11
Fonte: Elaboração dos autores.

O fenômeno aférese, que consiste na subtração de um fonema no início de uma


palavra, esteve presente no item abóbora > bóbura, ocorrendo na fala de dois (2)
informantes; um (1) homem e uma (1) mulher de segunda faixa etária no ponto 2
(Santana). No item elefante > lefante, o fenômeno ocorreu na fala de dois (2) infor-
mantes: um (1) homem jovem no ponto 9 (Calçoene) e uma (1) mulher de segunda
faixa etária no ponto 4 (Laranjal do Jarí).
Para o item obrigado > brigadu houve a presença do metaplasmo na fala de
três (3) informantes; dois (2) homens jovens nos pontos 1 (Macapá) e 3 (Mazagão),
Sumário
62
um (1) idoso no ponto 9 (Calçoene) e duas (2) informantes do sexo feminino, uma
jovem e uma idosa no ponto 2 (Santana). Já no item advogado > devogadu, o fenô-
meno teve quatro (4) ocorrências: dois (2) homens idosos nos pontos 8 (Amapá) e
10 (Oiapoque) e duas (2) mulheres idosas nos pontos 2 (Santana) e 3 (Mazagão).
O fenômeno apócope, que consiste na subtração do último fonema de uma
palavra (nesta pesquisa considerou-se itens terminados em [r]), esteve presente
no item varrer > varre, ocorrendo na fala de 36 informantes, sendo 19 ocorrên-
cias na fala de informantes do sexo masculino e 17 na fala de informantes do sexo
feminino. O fenômeno não ocorreu na fala de uma (1) mulher jovem no ponto 7
(Tartarugalzinho) e três (3) informantes não responderam a essa questão do QFF,
sendo duas (2) mulheres jovens nos pontos 3 (Mazagão) e 5 (Pedra Branca) e um
(1) homem idoso no ponto 3 (Mazagão).
O fenômeno síncope, que consiste na subtração de um ou mais segmentos no
meio de uma palavra, esteve presente no item abóbora > abóbra, ocorrendo na fala
de três (3) informantes, sendo duas (2) ocorrências na fala de informantes do sexo
feminino de segunda faixa etária nos pontos 8 (Amapá) e 9 (Calçoene) e uma (1)
presença na fala de um (1) informante homem de primeira faixa etária do ponto 4
(Laranjal do Jari).
Já o item árvore > avuri ocorreu na fala de 11 informantes: três (3) homens de
primeira faixa etária nos pontos 4 (Laranjal do Jari), 6 (Porto Grande) e 7 (Tarta-
rugalzinho); três (3) mulheres de primeira faixa etária nos pontos 3 (Mazagão), 4
(Laranjal do Jari) e 8 (Amapá); três (3) homens de segunda faixa etária nos pontos
2 (Santana), 9 (Calçoene) e 10 (Oiapoque); e duas (2) de segunda faixa etária nos
pontos 2 (Santana) e 4 (Laranjal do Jari).
Metaplasmos por transposição
Os resultados encontrados que dizem respeito aos metaplasmos por transposição
foram metátese, hipértese e sístole. Neste sentido, os itens fonéticos que apontaram a pre-
sença desses fenômenos foram prateleira, braguilha, vidro e ruim, conforme a Tabela 3.
Tabela 3: Resultados encontrados para metaplasmos por transposição
prateleira > partilera 11
Metátese
braguilha > barguilha 31
Hipértese vidro > vridu 2
Sístole ruim > rúim 7
Fonte: Elaboração dos autores.

O fenômeno metátese, que consiste no deslocamento de um fonema dentro da mes-


ma sílaba na palavra, esteve presente no item braguilha > barguilha, ocorrendo na fala de
31 informantes, sendo 16 ocorrências na fala de informantes do sexo masculino e 15 na
fala de informantes do sexo feminino. Não ocorreu na fala de dois (2) informantes: um (1)
homem jovem no ponto 6 (Porto Grande) e uma (1) mulher idosa do ponto 7 (Tartarugal-
zinho). E sete (7) informantes não responderam a essa questão do QFF: dois (2) homens
jovens nos pontos 2 (Santana) e 9 (Calçoene), três (3) mulheres jovens nos pontos 1 (Ma-
capá), 9 (Calçoene), e 10 (Oiapoque), um (1) homem idoso do ponto nove (9) e uma (1)
mulher idosa no ponto 10 (Oiapoque).
Sumário
63
O fenômeno hipértese, que consiste no deslocamento de um fonema de uma sílaba
para outra sílaba na palavra, esteve presente no item vidro > vridu, ocorrendo na fala de
dois (2) informantes do sexo feminino da primeira faixa etária, uma (1) no ponto 4 (Laran-
jal do Jari) e outra no ponto 5 (Pedra Branca).
O fenômeno sístole, que consiste na transposição, por recuo, do acento tônico na
palavra, esteve presente no item ruim > rúim, ocorrendo na fala de sete (7) informantes:
um (1) homem jovem do ponto 4 (Laranjal do Jari), três (3) homens idosos nos pontos 1
(Macapá), 3 (Mazagão) e 7 (Tartarugalzinho) e três (3) mulheres de segunda faixa etária
nos pontos 2 (Santana), 3 (Mazagão) e 9 (Calçoene).

Metaplasmos por transformação


Os resultados encontrados que dizem respeito aos metaplasmos por transfor-
mação foram degeneração, desnasalação, rotacismo, ditongação, monotongação,
metafonia e nasalação. Neste sentido, os itens fonéticos que apontaram a presença
desses fenômenos foram: assobio, passagem, homem, clara, planta, placa, bicicleta,
arroz, três, giz, caspa, paz, prateleira, caixa, tesoura, manteiga, peixe, ouvido, elefan-
te, tarde, inocente, hóspede e muito.
Tabela 4: Resultados encontrados para metaplasmos por transformação
Degeneração assobio > assuviu 11
passagem > passagi 35
Desnasalação
homem > homi 22
clara > crara 1
planta > pranta 2
Rotacismo
placa > praca 5
bicicleta > bicicreta 3
arroz > arroiz 32
três > treis 31
Ditongação giz > giiz 34
caspa > caispa 29
paz > paiz 33
prateleira > pratilera 26
caixa > caxa 22
tesoura > tesora 31
Monotongação
manteiga > mantega 30
peixe > pexi 31
ouvido > ovidu 14
elefante > elefanti 36
peixe > peixi 40
Metafonia tarde > tardi 39
inocente > inocenti 38
hóspede > hóspedi 24
Nasalação muito > muintu 28
Fonte: Elaboração dos autores.

O fenômeno desnasalação, que consiste na transformação de um fonema nasal em


um fonema oral, esteve presente no item passagem > passagi, ocorrendo na fala de 35 in-
formantes, sendo 18 ocorrências na fala de informantes do sexo masculino e 17 na fala de
informantes do sexo feminino. Não ocorreu na fala de cinco (5) informantes: um (1) ho-
mem jovem no ponto 6 (Porto Grande), duas (2) mulheres jovens nos pontos 4 (Laranjal
Sumário
64
do Jari) e 6 (Porto Grande), um (1) homem idoso no ponto 9 (Calçoene) e uma (1) mulher
idosa no ponto 7 (Tartarugalzinho).
O fenômeno rotacismo, que consiste na transformação do fonema [l] no fonema [r],
esteve presente no item clara > crara, ocorrendo apenas uma vez na fala de um (1) homem
idoso residente no ponto 3 (Mazagão). No item planta > pranta houve duas (2) ocorrên-
cias: uma (1) na fala de uma (1) informante do sexo feminino de primeira faixa etária
no ponto 4 (Laranjal do Jari) e outra na fala de um (1) informante do sexo masculino de
segunda faixa etária no ponto 8 (Amapá). No item placa > praca na fala de quatro (4) in-
formantes homens, um (1) jovem no ponto nove (9) e três idosos nos pontos 8 (Amapá),
9 (Calçoene) e 10 (Oiapoque), e apenas uma ocorrência na fala de uma (1) mulher idosa
no ponto 10 (Oiapoque). E no item bicicleta > bicicreta com três (3) ocorrências na fala de
dois (2) homens, um (1) jovem e um (1) idoso no ponto 9 (Calçoene) e uma ocorrência na
fala de uma (1) mulher idosa do ponto 2 (Santana).
O fenômeno ditongação, que consiste na transformação de um hiato ou uma
vogal em um ditongo, esteve presente no item arroz > arroiz ocorrendo na fala de
32 informantes, sendo 17 ocorrências na fala de informantes do sexo masculino
e 15 na fala de informantes do sexo feminino. Não ocorreu na fala de sete (7) in-
formantes: dois (2) homens jovens nos pontos 3 (Mazagão) e 5 (Pedra Branca),
uma (1) mulher jovem no ponto 5 (Pedra Branca) e quatro (4) mulheres idosas nos
pontos 3 (Mazagão), 4 (Laranjal do Jari), 5 (Pedra Branca) e 9 (Calçoene). Apenas
um (1) informante não respondeu a essa questão do QFF: um (1) homem idoso no
ponto 3 (Mazagão).
No item três > treis, a presença de ditongação ocorreu na fala de 31 informan-
tes, sendo 16 ocorrências na fala de informantes do sexo masculino e 15 na fala de
informantes do sexo feminino. Não ocorreu na fala de oito (8) informantes: dois
(2) homens jovens nos pontos 3 (Mazagão) e 7 (Tartarugalzinho), uma (1) mulher
jovem no ponto 5 (Pedra Branca), dois (2) homens idosos nos pontos 7 (Tartaru-
galzinho) e 10 (Oiapoque) e três (3) mulheres idosas nos pontos 3 (Mazagão), 4
(Laranjal do Jari) e 9 (Calçoene). Uma (1) informante não respondeu a essa questão
do QFF; uma (1) mulher jovem no ponto 3 (Mazagão).
O item giz > giiz teve 34 ocorrências, sendo 19 ocorrências na fala de infor-
mantes do sexo masculino e 15 na fala de informantes do sexo feminino. Não ocor-
reu na fala de seis (6) informantes: três (3) mulheres jovens nos pontos 2 (Santa-
na), 5 (Pedra Branca) e 9 (Calçoene), um homem idoso no ponto 10 (Oiapoque) e
duas (2) mulheres idosas nos pontos 3 (Mazagão) e 5 (Pedra Branca).
Já no item paz > paiz houve a presença de 33 ocorrências, sendo 17 ocorrên-
cias na fala de informantes do sexo masculino e 16 na fala de informantes do sexo
feminino. Não ocorreu na fala de sete (7) informantes: dois (2) homens jovens nos
pontos 3 (Mazagão) e 7 (Tartarugalzinho), uma (1) mulher jovem no ponto 5 (Pe-
dra Branca), um homem idoso no ponto 7 (Tartarugalzinho) e 3 (três) mulheres
idosas nos pontos 4 (Laranjal do Jari), 5 (Pedra Branca) e 9 (Calçoene).
O fenômeno monotongação, que consiste na transformação de um ditongo em
uma vogal, esteve presente no item tesoura > tesora, ocorrendo na fala de 31 infor-
mantes, sendo 15 ocorrências na fala de informantes do sexo masculino e 16 na fala
Sumário
65
de informantes do sexo feminino. Não ocorreu na fala de nove (9) informantes, dois
(2) homens jovens nos pontos 1 (Macapá) e 5 (Pedra Branca do Amapari), duas
(2) mulheres jovens nos pontos 1 (Macapá) e 7 (Tartarugalzinho), três (3) homens
idosos nos pontos 1 (Macapá), 2 (Santana) e 5 (Pedra Branca) e duas (2) mulheres
idosas nos pontos 2 (Santana) e 4 (Laranjal do Jari).
Para o item peixe > pexi, o número foi de 31 ocorrências, sendo 17 ocorrên-
cias na fala de informantes do sexo masculino e 14 na fala de informantes do sexo
feminino. Não ocorreu na fala de nove (9) informantes: dois (2) homens jovens nos
pontos 3 (Mazagão) e 8 (Amapá), três (3) mulheres jovens nos pontos 2 (Santana),
6 (Porto Grande) e 7 (Tartarugalzinho), um (1) homem idoso no ponto 4 (Laranjal
do Jari) e três (3) mulheres idosas nos pontos 4 (Laranjal do Jarí), 5 (Pedra Branca)
e 7 (Tartarugalzinho).
O fenômeno metafonia, que consiste na alteração de timbre ou altura de uma
vogal, esteve presente no item elefante > elefanti, ocorrendo na fala de 36 informan-
tes: sendo 18 ocorrências na fala de informantes do sexo masculino e 18 na fala
de informantes do sexo feminino. Quatro (4) informantes não responderam a essa
questão do QFF: um (1) homem jovem no ponto 5 (Pedra Branca), um (1) homem
idoso no ponto 5 (Pedra Branca) e duas (2) mulheres idosas nos pontos 3 (Maza-
gão) e 9 (Calçoene).
Para o item peixe > peixi, a metafonia foi produzida por os informantes. Já no
item tarde > tardi, 39 informantes realizaram o fenômeno. Apenas um (1) infor-
mante do sexo masculino de segunda faixa etária no ponto 1 (Macapá) que realizou
o fenômeno. Já no item inocente > inocenti houve 38 ocorrências, sendo 20 ocor-
rências na fala de informantes do sexo masculino e 18 na fala de informantes do
sexo feminino. Duas (2) informantes não responderam a essa questão do QFF: uma
(1) mulher jovem no ponto 7 (Tartarugalzinho) e uma (1) mulher idosa no ponto 2
(Santana).
Dentre os resultados acima descritos, pode-se observar que, em sua maio-
ria, os metaplasmos encontrados são: apócope, metátese, desnasalação, ditongação,
monotongação, metafonia e nasalação, estes somam quase de 50% dos fenômenos
aqui estudados.
Entre os que tiveram ocorrências mais significativas, que podem caracterizar
tendências para a realização de metaplasmos, encontram-se os fenômenos: diton-
gação (giiz) e monotongação (pexi). No primeiro, verifica-se o total de 19 ocorrên-
cias para informantes do sexo masculino e 15 para o sexo feminino. Já no segundo,
a diferença é de 17 ocorrências para informantes do sexo masculino e 14 para o
sexo feminino. Com isso, percebe-se que os homens têm uma tendência maior para
a produção dos fenômenos.
Sobre a variável faixa etária, o fenômeno sístole (ruim > ruim), nos proporcio-
na a visão de que os informantes da segunda faixa etária possuem mais probabili-
dade de produzirem o fenômeno, com seis (6) ocorrências, enquanto que na fala de
informantes de primeira faixa etária ocorreu somente uma produção.
Sumário
66
Cabe destacar o fenômeno metafonia (peixi), pelo seu número de ocorrências,
que obteve valor categórico de realizações, estando presente na fala de todos os
informantes.
Considerações finais
Diante da apresentação dos resultados, constatou-se que os metaplasmos por
aumento, supressão, transposição e transformação estiveram presentes na fala dos
informantes amapaenses, especialmente os fenômenos fonológicos denominados
como apócope, desnasalação e metafonia, apresentando maior frequência. Já os que
tiveram menor frequência foram: prótese, aférese, síncope, hipértese, sístole e rota-
cismo.
Na descrição geográfica, constatou-se que boa parte dos fenômenos selecio-
nados ocorreu na fala de informantes que moram ao norte do estado (Amapá, Cal-
çoene e Oiapoque) quando comparados com o número de ocorrências de localida-
des próximas a capital, ponto 1 (Macapá). Assim, é possível dizer que quanto mais
distante da capital (área urbana) maior a frequência dos metaplasmos na fala de
amapaenses.
Em relação à descrição social, verificou-se que a presença de metaplasmos na
fala de amapaenses apresentou tendências em relação às variáveis idade, sexo e
escolaridade. Sobre a variável idade, os fenômenos apresentam uma pequena ten-
dência para presença na segunda faixa etária em detrimento da primeira, como o
fenômeno apócope (mulhe), monotongação (pratilera e ovido) e metafonia (hóspe-
di) que ocorreu na primeira faixa etária. Já apócope (bota e calo), metátese (parti-
lera) e monotongação (caxa e mantega) prevaleceram na fala de informantes da
segunda faixa etária.
Em relação à variável sexo, esta apresentou uma variabilidade significativa, na
fala das mulheres, pois, foram identificados os fenômenos anaptixe (peneu), apóco-
pe (bota e mulhe), desnasalação (homi), monotongação (caxa e mantega) e nasala-
ção (muinto), enquanto que na fala dos homens o fenômeno observado foi apócope
(colhe e calo), degeneração (assuviu) e monotongação (pratilera). Já em relação a
variável escolaridade, destacou-se nos seguintes fenômenos: anaptixe (peneu), di-
tongação (caispa), monotongação (mantega) e metafonia (peixi) no ensino funda-
mental.
Referências
BOTELHO, J. M.; LEITE, I. L. Metaplasmos contemporâneos: um estudo acerca das atuais transformações
fonéticas da Língua Portuguesa. Anais do II CLUERJ-SG. Volume único. Ano 2, nº 01, 2005.
CARDOSO, S. A. Geolinguística: tradição e modernidade. São Paulo: Parábola Editorial, 2010.
DUBOIS, J. et al. Dicionário de Linguística. São Paulo: Cultrix, 2006.
GUEDES, R. J. C. Estudo geossociolinguístico da variação lexical na zona rural do estado do Pará. Dissertação
(Mestrado em Letras) - Programa de Pós-Graduação em Letras - PPGL, UFPA, Belém, 2012.
IBGE. Amapá. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/ap/panorama. Acesso em: 15 de abril de
2021.
KURODA, M. S. B. Metaplasmos e a Corrente de Correspondências Fonéticas na Língua Portuguesa do Brasil.
In: Revista Philologus, Rio de Janeiro, n. 58, jan.-abr. p. 168, 2014.
RAZKY, A; RIBEIRO, C. M. R; SANCHES, R. Atlas Linguístico do Amapá. São Paulo: Labrador, 2017.
Sumário
67
SANCHES, R. Variação Lexical nos Dados do Projeto Atlas Geossociolinguístico do Amapá. Dissertação (Mes-
trado em Letras) - Programa de Pós-Graduação em Letras - PPGL, UFPA, Belém, 2015.
Aspectos morfossintáticos das
unidades terminológicas da
piscicultura
Josué Leonardo Santos de Souza Lisboa1

Resumo: O presente trabalho consiste na análise dos aspectos morfossintáticos das unidades terminoló-
gicas no glossário da piscicultura no Pará. Os dados são um recorte da Dissertação de Mestrado de Lisboa
(2015) e são constituídos de entrevistas com piscicultores e trabalhadores braçais do dia a dia das fazendas,
laboratórios e estações de piscicultura. Assim sendo, o objeto de estudo é o léxico especializado e os seus as-
pectos morfossintáticos. A pesquisa está ancorada nos procedimentos teórico-metodológicos da morfossin-
taxe estabelecidos por Gonçalves (2016), Haspelmath e Sims (2010) e Sândalo (2001). O objetivo é analisar
aspectos de formação de palavras, termos no campo piscícola, como os xenoconstituintes, a função de rotu-
lação, processo de adequação categorial, novos rótulos para novas categorizações, blend lexical, clippings,
derivação e estruturação sintática das unidades terminológicas complexas. Os resultados parciais expõem
que o processo estrutural na terminologia é funcional e regular.
Palavras-chave: Unidades terminológicas. Morfossintaxe. Formação de palavras.

Introdução
A pesquisa para a documentação da terminologia da atividade econômica da
piscicultura partiu da coleta de dados orais através de entrevistas concretizadas
nas visitas às fazendas de cultivo, engorda e comercialização, aos laboratórios de
pesquisa e às fazendas ou laboratórios de reprodução induzida, resultando na cole-
ta dos dados orais com os diversos profissionais da área da piscicultura.
Para a consecução deste capítulo foi feito um recorte do total de 358 verbetes
para a análise de alguns termos específicos da piscicultura pelo ponto de vista da
morfossintaxe, por intermédio de uma pesquisa bibliográfica, quanto aos proces-
sos de formação de palavras e termos, já que se está no âmbito da língua especiali-
zada, como fenômenos de ampliação lexical, construção de xenoconstituintes para
cunhar novidades relacionadas à piscicultura, ou seja, novos rótulos para novas

1  É graduado em Letras/Língua Portuguesa - UEPA, mestre em Letras/Linguística - UFPA e doutorando do Programa de Pós-graduação
em Letras/Linguística - PPGL/UFPA. E-mail: [email protected].
Sumário
69
categorizações, blend lexical, clippings, derivação e estruturação sintática das uni-
dades terminológicas complexas.
O capítulo está dividido da seguinte forma, a saber: um tópico sobre os as-
pectos teórico-metodológicos das ciências do léxico: lexicologia, lexicografia, ter-
minologia e terminografia. Além disso, há a apresentação de alguns fenômenos
morfossintáticos no léxico comum e no léxico especializado. No segundo tópico,
apresenta-se a metodologia para a consecução da pesquisa que é resultado de Dis-
sertação de Mestrado e também o método bibliográfico para analisar os termos. No
outro tópico é exposta uma análise concisa, pelo ponto de vista morfossintático,
dos termos da piscicultura.
As ciências do léxico
O léxico é o conjunto das unidades que formam a língua de uma comunida-
de, de uma atividade humana. Assim sendo, o nível lexical é o que melhor retra-
ta aspectos da realidade social, histórica, geográfica, política, ideológica, religio-
sa, tecnológica, científica, cultural, intelectual e econômica; reflete mudanças de
concepções, de relacionamentos, de hábitos, de atividades humanas, de crenças,
de comportamentos etc., pois constitui uma forma concreta de registrar o conheci-
mento do universo.
Tanto na língua geral quanto na língua de especialidade, observa-se a tensão
entre língua, sociedade e cultura, gerando o léxico geral das línguas naturais e o lé-
xico especializado das línguas técnico-científicas das diversas atividades humanas.
Assim, a língua é ao mesmo tempo um sistema de classificação e um sistema de
comunicação (BASILIO, 2011).
A Lexicologia
A área que estuda o léxico geral é denominada de lexicologia e a sua face apli-
cada é a lexicografia. A lexicologia apresenta um aspecto teórico em oposição ao
prático que é a lexicografia, a arte ou a técnica de compor dicionários. Assim sendo,
a lexicologia e a lexicografia configuram duas atitudes e dois métodos em face do
léxico.
A lexicologia é um ramo da linguística que estuda cientificamente o léxico, isto
é, o seu objeto de estudo é a palavra, o componente lexical geral e não especializado
de uma língua. A metodologia do trabalho lexicológico é semasiológico, partindo da
forma para o conteúdo.
Os estudos lexicológicos analisam, depreendem, o conglomerado infinito de
palavras de uma língua relativos à formação, à estruturação, à categorização, ao
funcionamento, à mudança no tempo e espaço, à significação linguística, tendo a
função de decodificar as lexias. Assim, a lexicologia “aborda a palavra como um
instrumento de construção de uma visão de mundo (...) como geradora e reflexo de
recortes culturais” (BARBOSA, 2009, p. 30).
Muitas palavras nasceram e foram inseridas no vocabulário dos brasileiros
desde o ano 2000 até este exato momento, em 2021. Muitos contextos extraver-
bais, comunicacionais, ideológicos, políticos, econômicos, culturais, religiosos, pu-
Sumário
70
blicísticos, esportivos, tecnológicos, familiares etc., divergências, ironias, guerras,
resultados bem-sucedidos ou mal sucedidos, no âmbito local, regional, nacional e
mundial fizeram com que circulassem novas palavras que ainda não foram, ou já
foram, documentadas.
Essa abordagem da palavra, feita pela lexicologia, como instrumento de cons-
trução de uma visão de mundo, de uma ideologia, como geradora de recortes cul-
turais, se dá pela relação indissociável entre língua, sociedade e cultura, pois o
conjunto lexical dos falantes de um dado grupo está imbricado aos aspectos que
circundam a sociedade, possibilitando uma infinita renovação, uma ampliação lexi-
cal e semântica, dada pela lógica da língua, com base nos seus padrões lexicais, ou
por empréstimos linguísticos, neologismos, em diferentes contextos, sendo dinâ-
mica e constante. Assim, a língua não faz apenas parte de uma cultura, ela permite
que nos apropriemos da cultura.
Dentro das ciências do léxico a parte aplicada da lexicologia é a lexicografia,
conhecida como a ciência, a técnica, a prática e a arte de elaborar dicionários. Tal
ação do dizer lexical de um povo, de uma cultura, de uma nação é denominada de
lexicografia prática (WELKER, 2006, p. 70).
O trabalho lexicográfico não é de mera organização de uma lista de palavras,
há todo um método que leva em consideração o contexto ideológico-extraverbal
dos itens lexicais, também descrevendo as categorias do saber lexical de nature-
za fonética, gramatical, conceitual, semântica. Por isso, Biderman (2001, p.17-18)
afirma a relevância dos dicionários quando diz que “o dicionário é um objeto cul-
tural de suma importância nas sociedades contemporâneas, sendo uma das mais
relevantes instituições da civilização moderna”.
É por este método de pesquisa que são analisadas as palavras usadas pelos fa-
lantes para identificar as novas formas de atividades, profissões, atuações em áreas
em expansão, como a denominação de “manutentor” para quem trabalha na área
de manutenção em alguma empresa.
Esta palavra ainda não recebeu a validação necessária pelos lexicógrafos bra-
sileiros, para aparecer registrada nos dicionários. Assim sendo, fica a dúvida, pelos
usuários, para denominar tal trabalhador. Qual é a palavra? É “manutentor”, “man-
tenedor”, “manutenendor”, “mantedor”, “manutedor” ou “manententor”?
A partir do momento em que esta palavra passa a ser analisada pelo lexicógra-
fo, objetiva-se que “manutentor” passe pelos critérios da lexicologia, seja registra-
da pelos lexicógrafos no dicionário para que o trabalhador da área de manutenção
seja reconhecido por uma palavra que o diferencie do sentido de “quem ou aquele
que mantém, que sustenta, que provê”, encontrado nos dicionários nas palavras
“mantenedor” e “mantedor”2.

2  Este exemplo, de como lexicografar, foi extraído da Revista Veja, edição 2368, nº 15, de 09/04/14, na coluna Leitor-blogosfera/
sobrepalavras, p. 36, onde um leitor fez a seguinte pergunta: “trabalho em uma empresa de produção de energia e tenho dificuldades
em denominar quem trabalha na área de manutenção: mantenedor, manutenendor, mantedor, manutedor ou manententor? Qual dos
termos seria correto?”.
Sumário
71
A Terminologia
A área que estuda o léxico especializado é denominada de terminologia e a
sua face aplicada é a terminografia. Krieger e Finatto (2004, p. 20) afirmam que
a terminologia apresenta dois enfoques distintos: o desenvolvimento teórico e as
análises descritivas; e as aplicações terminológicas, que é a produção de glossários,
dicionários, bancos de dados e sistemas de reconhecimento automático de termi-
nologias. Esses procedimentos terminológicos buscam a organização, o armazena-
mento e a divulgação do conhecimento advindo das atividades técnico-científicas
através do compartilhamento dos termos especializados, no âmbito da comunica-
ção humana.
As orientações terminológicas apresentam dois tipos de análise: in vitro e in
vivo. A análise in vitro se deu com Eugen Wüster, com o estabelecimento da Teoria
Geral da Terminologia (TGT) cujo enfoque tinha um princípio normativo, de pa-
dronizar, de alcançar a univocidade dos termos, rechaçando os aspectos comunica-
cionais, pragmáticos e variacionistas da linguagem de especialidade. Para Wuster
(1998, p. 150, apud FAULSTICH, 2001, p. 17) a “variação linguística era toda per-
turbação na unidade linguística”, pois todo e qualquer caso que gerasse a variação
era considerado uma anomalia. O objetivo era eliminar a variação terminológica e
enfatizar que o termo deveria ser monovalente na linguagem de especialidade.
Por outro lado, a análise in vivo deu-se no início na década de 80, com Bou-
langer e com François Gaudin, em 1993, entre outros teóricos, como Faulstich, em
1995, com a fundamentação da socioterminologia, reconhecendo que a análise ter-
minológica deve considerar o contexto de produção e uso dos termos e expressan-
do veementemente a variação nas linguagens de especialidade, pelo fato da termi-
nologia fazer parte da língua, de ser heterogênea, por ser de uso social, sendo assim
passível à variação.
Por ser uma área de estudo do léxico especializado, a terminologia adquire
um valor e um interesse global, primeiro por ter uma influência linguística sobre
os termos especializados de outras áreas técnico-científicas e segundo pelos inte-
resses de diversos profissionais, como os tradutores, documentalistas, lexicógra-
fos, redatores técnicos, jornalistas, entre outros profissionais da linguagem, em se
apropriar da teoria terminológica para o estabelecimento de uma comunicação
mais eficiente entre os especialistas das diversas áreas de atividades humanas e a
sociedade em geral.
O campo terminológico obteve ascensão pelo fato da relevância das línguas
de especialidade atreladas à importância econômica, social, científica, tecnológi-
ca, cultural, manifestada pelas inúmeras atividades humanas que já existiam e que
foram criadas pela dinamicidade da industrialização e da globalização no mundo.
Pontes (1997, p. 44) ratifica isso, quando aponta as causas dessa expansão da ter-
minologia, como a) o avanço das ciências; b) o desenvolvimento da tecnologia; c)
o desenvolvimento dos meios de comunicação; d) o desenvolvimento das políticas
internacionais; e) o desenvolvimento do comércio internacional e f) o progresso
das multinacionais.
Sumário
72
Os termos criados e utilizados nas diversas atividades humanas são marcas
de identidade que apresentam relevância de conhecimentos de tudo que circunda
naquela área, sendo materializada linguisticamente, tendo um valor significativo
real para todos os profissionais da área. Assim, apresentam as funções de repre-
sentação e a de transmissão do conhecimento especializado.
As diversas áreas técnico-científicas apresentam um léxico de especialidade
que reflete interesses, tendências, fenômenos, desenvolvimentos, experiências,
progressos, pesquisas, a heterogeneidade de manejo, cultivo, técnicas, instrumen-
tos de trabalho, comercialização, tanto das atividades quanto dos profissionais da
área.
A terminografia, ou lexicografia especializada, é a face aplicada da terminolo-
gia, que objetiva a produção de instrumentais terminológicos de transmissão das
unidades de interação das atividades técnico-científicas.
O objeto central de descrição, análise e aplicação da terminografia é o ter-
mo, é o dicionário especializado e o seu caráter metodológico é onomasiológico.
Desse modo, entende-se que para o fazer terminográfico ser concretizado em um
instrumento de referência especializada é necessário que o pesquisador conheça
e reconheça os procedimentos teórico-metodológicos da terminologia e da termi-
nografia.
O proceder terminográfico estabelece a análise do seu objeto de estudo, a
renovação dos modelos de tratamento dos dados, a construção de uma metalin-
guagem específica, a metodologia de elaboração de dicionários, a crítica reflexiva
sobre seu trabalho (BARROS, 2004, p. 68).
Bevilacqua e Finatto (2009, p. 49) expõem o fundamento organizacional ter-
minográfico, um trabalho elaborado para um grupo de usuários específicos, mas
que não limita as informações, proporcionando as terminologias àqueles grupos
externos ao domínio especializado; uma obra que apresenta a informação recor-
tada, delimitada, vinculada a um conjunto textual de referência que possibilita ao
consulente à integração de conhecimentos para concretude do entendimento dos
termos.
A Socioterminologia
A Socioterminologia, como termo, apareceu pela primeira vez no início da dé-
cada de 1980, publicado num trabalho de Jean-Claude Boulanger (GAUDIN, 1993,
p. 67).
Segundo Lima e Martins (2014, p. 209), Gaudin estabelece os fundamentos
teóricos da socioterminologia e ratifica: a) um desacordo com o idealismo univer-
salista da terminologia Wusteriana; b) a rejeição ao pensamento averbal, pois a
palavra autoriza a autonomia do pensamento; e c) os estudos terminológicos em
condições in vivo, reais de uso dos termos.
Gaudin (1993, p. 16) afirma que, por meio da prática socioterminológica, a
terminologia considera que o funcionamento real da linguagem é voltada à dimen-
são social das práticas de linguagem nas atividades humanas, ou seja, descreve e
analisa os termos de uma língua de especialidade no contexto real de uso. Desse
Sumário
73
modo, a terminologia passa a ter uma base metodológica, uma visão interdiscipli-
nar e dinâmica. Esse fato conduziu a transposição de uma terminologia prescritiva
à socioterminologia, a um estudo terminológico heterogêneo.
Para a concepção socioterminológica, as línguas de especialidade funcionam
como qualquer língua natural, sem artificialismos, dando prioridade e importância
à dimensão social, ao contexto de produção, à realidade do funcionamento dos lé-
xicos especializados. Com isso, deu-se reconhecimento à variação terminológica, às
variações denominativas e conceituais, nas línguas de especialidade, como afirma
Faulstich (2001, p. 30), de que a terminologia tem como objetivo focalizar o uso do
termo em contextos escritos e orais, identificando as variantes dentro de um ou de
diferentes contextos em que o termo é usado.
A Morfologia
A morfologia é definida como o componente da gramática que trata da estru-
tura interna das palavras (SÂNDALO, 2001, p. 181). Segundo Haspelmath e Sims
(2010, p. 02), a morfologia é o estudo da covariação sistemática na forma e signifi-
cado das palavras. Entende-se que a morfologia tem como domínio a combinação
de signos simples individuais, cada um representando a unidade de uma parte dis-
creta do significado da “palavra” com uma parte discreta de sua forma. A análise
morfológica tipicamente consiste na identificação de (partes) constituintes da pa-
lavra (estrutura interna). Assim como o termo é a unidade pertinente para a termi-
nologia, a palavra é uma unidade máxima da morfologia (SÂNDALO, 2001, p. 188).
Especificamente, a morfologia norteia este trabalho, pois o objetivo desta aná-
lise baseia-se na concepção do fenômeno de ampliação lexical (transpondo à ter-
minologia) de Gonçalves (2016). Ele expressa as tendências atuais da inovação le-
xical, não apontadas por gramáticas tradicionais ou manuais de morfologia. Assim
sendo, a ideia é utilizar essas concepções teórico-metodológicas na terminologia
da piscicultura (LISBOA, 2015). As construções com xenoconstituintes são “ampla-
mente utilizados para cunhar novidades relacionadas à computação, à informática,
ou aos eventos que envolvem, de algum modo, a rede mundial de computadores”
(GONÇALVES, 2016).
Os xenoconstituintes tendem a refletir várias das inovações que moldaram a
formação de palavras em português entrelaçadas à morfologia do inglês. Ou seja,
versa sobre a ampliação lexical que se observa no português. São novas palavras
que vêm surgindo, num primeiro olhar, pela necessidade de comunicação. Vejamos
alguns exemplos: Ciber- [Ciberdúvidas], [Ciberespaço], [Cibercultura]; E-(eletro-
nic) [E-social], [E-esportes]; Tech- [canaltech], [techtudo].
Gonçalves (2016) chama a atenção para as palavras que surgem, de tempos
em tempos, e que, muitas vezes, não damos conta disso. Criar palavras novas ou
modificar o significado de palavras existentes são tarefas rotineiras. Por isso, ele
indaga o porquê de haver a criação de novas palavras. Ele responde afirmando que
“aparecem palavras novas quando novos fenômenos ocorrem ou quando surge um
conceito ou, ainda, um objeto é inventado. Assim temos a necessidade de nomeá-
-los para nos referirmos a eles”.
Sumário
74
Observa-se que este fenômeno da criação acontece tanto no léxico comum
quanto no léxico especializado, como vemos nos exemplos: no âmbito da Termi-
nologia - na linguagem científica: nanofiltração: processo de separação por micro-
membranas. (campo da Biologia); sindemia: enfermidade associada de dois ele-
mentos. Ex.: obesidade e Covid-19. (campo da Antropologia. [sinergia+pandemia]);
infoxicação: dificuldade em digerir o excesso de informação – Fakenews. (campo da
Psicologia); desinfoxicação: usar critérios para não ser influenciado por Fakenews).
(campo da Psicologia); arraçoamento: ação diária de fornecimento de ração balanceada e
alimento complementar aos peixes nos viveiros e tanques. (campo da piscicultura). No âm-
bito do Léxico comum - nas novelas, nas redes sociais, no futebol: choquei: usado
para expressar surpresa. Personagem Cássio em Caras e Bocas (2009); mitou: usa-
do com alguém fez algo sensacional. Ex.: O cara fez um golaço. Ele Mitou!; divar:
usado para enfatizar que alguém está agindo como uma diva. Ex.: Sua irmã divou
na festa ontem; sextou: usado para indicar que chegou a sexta e o fim de semana.
Ex.: Sextou! Bora beber!; destruidora: usado quando a pessoa é poderosa e está no
comando da situação. Ex.: A senhora é destruidora mesmo, hein!
Expressões novas usadas em bordões (palavra ou frase repetida para ser en-
graçada ou emotiva), por exemplo: Deus me livre, mas quem me dera: trecho de mú-
sica; copiou: usado pelo personagem na novela América; lacrou: ideia de mandar
bem ou arrasar em algo. Ex.: Vamos lacrar na pista hoje!; nojo: pessoa que se acha
por algo. Ex.: Hoje eu tô um nojo!; contatinho: número de alguém salvo no celular
para se divertir sem compromisso. Usamos formas novas para nos referirmos, de
forma expressiva ou não, a pessoas ou coisas: roupitcha, corpitcho; estilosada; gato-
sa; periguete; peguete; fada sensata; mensalão; arrozteria; vataruçoba; cachiblema.
Esses exemplos respondem a indagação de por que criarmos palavras novas, é
porque precisamos nomear novas experiências. Logo, a função primordial da cria-
ção lexical é fornecer rótulos para novas categorizações, novas denominações. Este
fato linguístico é denominado de função de rotulação (BASÍLIO, 1987 apud GON-
ÇALVES, 2016, p. 14).
A função de rotulação no léxico comum ou no léxico especializado torna-se
funcional em contextos sociais ou da área do direito em que há uma prática, uma
ação, mas não há um nome para categorizar esta nova experiência, como no exem-
plo da prática sexual ilícita, criminosa de remoção proposital e não consentida do
preservativo no ato sexual. Nos Estados Unidos, esta ação já foi rotulada de “ste-
althing”, que no dicionário tem a tradução de “dissimulação, furtividade”, mas no
campo do direito este termo integra um significado concreto dentro um contexto
ilícito.
Por outro lado, no Brasil ainda não há um léxico ou termo específico para no-
mear esta prática, por isso é usado o termo em inglês, como no exemplo retirado do
site da Revista Veja: “A perigosa (e criminosa) prática sexual do stealthing”.
O uso da palavra vinda do inglês “stealthing” mostra a funcionalidade de rótu-
los que advém de outras línguas: o uso desses empréstimos se tornou tão natural
que os falantes só percebem o estrangeirismo na língua escrita (GONÇALVES, 2016,
p. 13). Vejamos alguns exemplos que são usados nas diversas áreas e nas atividades
Sumário
75
humanas: flex, bullying, nerd, blog, site, haters, spoiler, trollar, cyberbullying, sexting
(sex + texting), stalkear, crush, crush de amizade, shippar, fake News, hashtag, home
office, lockdown, smartphone, coach, personal stylist, personal shopper (pessoa que
busca o melhor preço, compra e leva a mercadoria na casa).
Nos últimos anos, no Brasil, novos rótulos, termos especializados, criativos,
foram estabelecidos para cunhar novas experiências, novos ofícios, problemas psi-
cológicos, novas metodologias devido à pandemia, por exemplo: ofícios recentes
chapeiro (aquele que trabalha na chapa, fazendo hambúrguer); cachorreiro (aquele
que passeia com cachorros); cuidador (pessoa que toma conta de idosos); analista
de mídias sociais (pessoa que cuida do perfil de uma empresa nas redes sociais);
influenciador digital (pessoa que dita tendências postando em seu canal na web-
-Formador de opinião); desenvolvedor web (profissional que desenvolve software,
bancos de dados etc.); desenvolvedor de aplicativos (cria e desenvolve aplicativos
para smartphones); animador (na área de games é a pessoa responsável a persona-
gens desenhados pelos artistas técnicos); especialista em links patrocinados (pro-
fissional que elabora campanhas e as monitora na internet); motorista de aplicativo
(UBER, 99).
Práticas ilícitas na área do direito: sextorsão (prática de extorsão a partir da
ameaça de exposição de supostas fotos ou vídeos sexuais das vítimas na internet);
problemáticas que a psicologia analisa; tecnofílicos (pessoas que acreditam não ser
possível ter vida social sem o intermédio da tecnologia); tecnoestresse (sintomas
de estresse causados pela inabilidade de conviver com as novas tecnologias); info-
nomia (mania de buscar informação); tecnodependência (viciados em tecnologia);
tecnofobia (pessoas que recusam a tecnologia).
A pandemia também proporcionou novas práticas e assim concretizaram-se
novos rótulos na área da medicina como: telemedicina, teleconsulta, telediagnós-
tico, telecirurgia, teleorientação, teleconsultoria, telemonitoramento. Esses termos
tem como significado “o exercício da medicina mediado por tecnologias para fins
de assistência, educação, pesquisa, prevenção de doenças, lesões e promoção de
saúde”. Vejamos o exemplo retirado do Portal Terra: “Telemedicina avança no país
em plena pandemia”3.
Metodologia
Os termos apresentados neste trabalho resultam das teorias e metodologias
da terminologia, da terminografia e da socioterminologia para a coleta, análise e
documentação dos termos especializados e a construção do glossário terminológi-
co da piscicultura no Pará (LISBOA, 2015).
A pesquisa para a documentação da terminologia da atividade econômica da
piscicultura partiu da coleta de dados orais através de entrevistas concretizadas
nas visitas às fazendas de cultivo, engorda e comercialização, aos laboratórios de
pesquisa e às fazendas ou laboratórios de reprodução induzida, resultando na cole-
ta dos dados orais com os diversos profissionais da área da piscicultura.

3   Disponível em: www.terra.com.br. Acesso em: 16 de junho de 2020.


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76
Buscou-se mapear os principais municípios produtores de peixes em cativei-
ro. Para isso foi fundamental a assessoria e orientação dos técnicos, pesquisadores,
professores e engenheiros da pesca da Embrapa, do MPA, da Emater e da UFRA,
que disponibilizaram alguns contatos com os principais piscicultores dos municí-
pios de Peixe-Boi, Igarapé-Açu, São Miguel do Guamá e Belém, quatro municípios,
onde a piscicultura de reprodução, de engorda e comercialização, e de pesquisa e
experimentação são relevantes economicamente e cientificamente.
Para a consecução deste capítulo foi feito um recorte do total de 358 verbetes
para uma análise de alguns termos específicos da piscicultura pelo ponto de vista
da morfossintaxe, por intermédio de uma pesquisa bibliográfica, quanto aos pro-
cessos de formação de palavras e termos, já que se está no âmbito da língua espe-
cializada, como fenômenos de ampliação lexical, construção de xenoconstituintes
para cunhar novidades relacionadas à piscicultura, ou seja, novos rótulos para no-
vas categorizações, blend lexical, clippings, derivação e estruturação sintática das
unidades terminológicas complexas.
Num primeiro momento, são explicados os aspectos teórico-metodológicos
das ciências do léxico, apresentando as características da lexicologia, lexicografia,
terminologia, terminografia, tendo como teóricos pertinentes, a saber: Barbosa
(2009), Biderman (2001), Welker (2006), Gaudin (1993), Faulstich (2001) entre
outros. Pelo ponto de vista teórico-metodológico da morfossintaxe foram utilizados
os teóricos, a saber: Basílio (2011), Gonçalves (2016), Haspelmath e Sims (2010),
Sândalo (2001) entre outros.
Análise morfossintática das unidades terminológicas
O glossário da piscicultura apresenta 358 termos distribuídos em 3 campos
semânticos: reprodução induzida, engorda e comercialização.
A distribuição dos termos da piscicultura conexos a outras atividades espe-
cializadas e à língua geral foi de 87 termos especializados inseridos somente na
área da piscicultura, que equivale a 24%; há 132 termos da piscicultura conexos
à língua geral, que equivale a 37% e 139 termos da piscicultura conexos a outras
atividades especializadas, que equivale 39%.
Serão analisados somente os termos conexos à área da piscicultura, especifi-
camente do campo semântico denominado de reprodução induzida. Os termos da
piscicultura são aqueles que apresentam um grau de especialidade conexo à área
aquícola, especificamente a área piscícola, como, por exemplo, os termos “alevino”,
“crista”, “despesca”, “hipofisação”, “pacu”, “pirarucu” e “tambatinga”.
A reprodução induzida é o segundo campo semântico mais produtivo, são 47
termos que equivalem a 13%. Dentre eles estão “alevino”, “berçário”, “hipofisação”,
“larva”, “ovulação”, “pós-larva” e “reprodução artificial”.
Em relação à estrutura gramatical, há uma predominância de substantivos fe-
mininos, são 179 termos substantivos femininos, que equivalem a 50%. Por exem-
plo, “apossiuga”, “borda”, “canoa”, “despesca”, “estufa”, “fertilização”, “garça”, “hipofi-
sação”, “microalga”, “ovulação”, “piscina de hipofisação” e “ração pra alevino”.
Sumário
77
Os substantivos masculinos apresentam 171 termos que equivalem a 48%,
por exemplo, “aerador”, “balde”, “caminhão-baú”, “disco de Secchi”, “fitoplâncton”,
“ictiômetro”, “lago”, “monge”, “oxigênio”, “pirarucu”, “tanque de alevinagem” e “zoo-
plâncton”.
Por outro lado, tem-se uma ínfima presença de adjetivos masculinos, femini-
nos e verbos. Há 4 adjetivos, sendo 1 adjetivo masculino e 3 adjetivos femininos,
que representam um percentual de 1%. Por exemplo, “granulado”, “granulada” e
“peletizada”. Já os 4 verbos, equivalem a 1%, como por exemplo, “oxigenar a água”,
“passar a tela” e “tirar a média”.
As Unidades Terminológicas Complexas (UTC) apresentam 170 termos que
equivalem a um percentual de 47%. Por exemplo, “aerador mecânico de propor-
ção”, “balança analítica”, “choque térmico”, “despesca de transferência”, “espécie hí-
brida”, “farelo de soja”, “garrafa de oxigênio”, “injetor de chips”, “joelho articulado”,
“laboratório de experimentação”, “macrófita aquática”, “ovo fertilizado”, “piscina de
hipofisação” “qualidade da água”, “ração controle”, “saco com oxigênio”, “tanque de
alevinagem” e “viveiro de reprodutor”.
As formações sintagmáticas são formadas por substantivo + preposição +
substantivo, como “aerador de esguicho”, “balança de campo”, “circulação de água”,
“distribuição de ração”, “eutrofização da água”, “farinha de peixe”, “gradiente de
medição”, “injetor de chips”, “laboratório de experimentação”, “matriz de pirarucu”,
“olho d’água”, “produção de juvenis”, “qualidade da água”, “ração pra alevino”, “re-
produção em cativeiro”, “saco com oxigênio”, “tanque de tela” “viveiro de derivação”
etc.
UTC’s são formadas por substantivo + preposição + substantivo + preposi-
ção + substantivo, como “casa de criação de porco”, “galpão de armazenamento de
ração”,“mangueira de escoamento da água”, “período de procriação dos peixes”,
“tanque de reserva de peixes”, “tanque de reserva de peixe”, “tambor de armazena-
mento de peixe” e “veículo de transporte de insumos”.
As UTC’s são formadas pelo tipo substantivo + adjetivo, como “aerador me-
cânico”, “açude grande”, “bombona perfurada”, “calcário calcítico”, “camada gordu-
rosa”, “eletrificação rural”, “espécie híbrida”, “filtro mecânico”, “galpão suspenso”,
”inseminação artificial”, “joelho articulado”, “macrófita aquática”, “ovo fertilizado”,
“pá escavadeira”, “ração granulada”, “viveiro escavado” etc.
Há também UTC’s que são formadas por verbo + preposição + substantivo,
como “oxigenar a água”, “passar a tela”, “tirar a média”. As UTC’s que são formadas
pelo tipo substantivo + adjetivo + preposição + substantivo, como “aerador mecâ-
nico de proporção” e “aerador difusor de ar”.
As UTC’s que são formadas pelo tipo substantivo + adjetivo + substantivo,
como “aquicultura multitrófica integrada”, “planta aquática flutuante”, “poço semi-
-artesiano”. As UTC’s que são formadas pelo tipo substantivo + preposição + subs-
tantivo +grossa, como “rede de malha grossa”. As UTC’s que são formadas pelo tipo
substantivo + preposição + verbo + substantivo, como “máquina de fazer pão” e
“piscina pra fazer depuração”.
Sumário
78
Quanto à variação, prevalece a variação terminológica lexical, presente em
175 termos, que equivale a 49%, como se vê no exemplo dos termos “argila branca”
e “argila”, “bombona perfurada” e “bombona”, “biometria dos peixes” e biometria”,
“calcário, calcítico” e “calcário”, “crista do dique” e “crista”, “estufa natural” e “estu-
fa”, “ração granulada” e “granulada”, “tanque escavado” e “tanque”, em que, respecti-
vamente, os itens lexicais “branca”, “perfurada”, “dos peixes”, “calcítico”, “do dique”,
“natural”, “ração” e “escavado”.
A variação morfológica obteve 28 termos, que apresentam 8% de representa-
tividade, e a variação sintática obteve 14 termos, num percentual de 4%. A variação
terminológica morfológica é representada no exemplo “carro de mão” e “carrinho”,
“casa” e “casinha”, “zooplâncton” e “zoo”, “fitoplâncton” e “fito”, “aerador de pá” e
“aerador de pás”, “rampa” e “rampazinha”, “carroça” e “carroceria”, em que esses
termos apresentam alternâncias em suas estruturas morfológicas, mas sem cons-
tituir uma alteração no conceito. Observa-se, nesses exemplos de variação mor-
fológica, o processo de derivação (BASÍLIO, 2011), que consiste na adição de um
afixo, no caso sufixo, a uma base ou radical para a formação de uma palavra, que
dentro do contexto da atividade piscícola torna-se um termo concreto e funcional.
Observam-se clippings, que é a redução da palavra para uma de suas partes, como
no exemplo “zooplâncton > zoo”, esse é um processo de formação de palavras, mas
as palavras formadas não possuem significados diferentes do que as combinações
longas a partir das quais são criadas.
A variação terminológica sintática está representada no exemplo “sistema
consorciado” e “sistema de consórcio”, “viveiro barragem” e “viveiro de barragem”,
“ração complementar” e “ração de complemento”. Há nessas unidades terminológi-
cas a alternância ou substituição de uma parte do item lexical por outra, então há
a substituição do item “consorciado”, “barragem” e “complementar”, que são adje-
tivos, pelos itens “de consórcio”, “de barragem” e “de complemento”, uma locução
adjetiva, e vice-versa, sem comprometer o sentido do termo.
Os empréstimos linguísticos no discurso dos profissionais da piscicultura
como os termos estrangeiros, xenoconstituintes, “off flavor”, “kit”, “premix”, “be-
cker”, “chip” “in natura”. Há também “pellet” que fez surgir a forma vernacular “pe-
letizada”, “ração peletizada”, adaptada ao padrão da língua portuguesa. Assim, o
termo “pellet” mantém a forma da língua inglesa e gera uma forma, um termo no
português.
Além disso, percebe-se que houve um tipo de formação de termo por inter-
médio da união de dois termos, apresentando um sentido diferente dos dois ter-
mos individuais, isso na linguística é denominado de blend lexical, no caso seria um
blend terminológico, duas ou mais palavras são fundidas em uma para que os cons-
tituintes combinados sejam cortados ou parcialmente sobrepostos (HASPELMA-
TH; SIMS, 2010). Os termos “tambacu” e “tambatinga” são blends terminológicos,
pois são formações terminológicas resultantes da união de dois termos. Por exem-
plo, tambaqui + pacu, assim como tambaqui + patinga, cada um com um conceito
individual, resulta no termo “tambacu” e “tambatinga”, com um conceito individual
Sumário
79
diferente dos dois termos de formação. Isso demonstra que os cruzamentos de ter-
mos estão presentes no dia a dia da língua de especialidade da piscicultura.
Considerações finais
Este trabalho constitui uma pesquisa sobre a terminologia da piscicultura no
Pará. Conseguiu-se elaborar o glossário dos termos pertencentes à produção pis-
cícola por intermédio de visitas ao ambiente de trabalho, laboratório de reprodu-
ção e fazendas de engorda e comercialização, e entrevistas com os profissionais da
área, para a coleta de dados orais especializados, considerando a análise na varia-
ção terminológica como orienta a socioterminologia.
O objetivo deste capítulo foi a análise morfossintática de formação de termos
e a organização sintática dos termos como fenômenos de ampliação lexical, cons-
trução de xenoconstituintes para cunhar novidades relacionadas à piscicultura, ou
seja, novos rótulos para novas categorizações, blend lexical, clippings, derivação e
estruturação sintática das unidades terminológicas complexas. Além disso, foi ex-
posto um recorte quantitativo dos resultados terminológicos na atividade piscícola
no Pará.
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As funcionalidades do uso da
estrutura “açu” no falar baionense
Emerson Deni dos Santos Nogueira Junior1
Érica do Socorro Barbosa Reis2

Resumo: O presente capítulo tem como temática principal a análise dos usos da estrutura “açu” no falar dos
baionenses, o que leva a investigar como funciona, fundamentalmente em termos semânticos e pragmáticos,
essa estrutura presente no cotidiano dos falantes do município de Baião-PA. A estrutura “açu”, segundo pes-
quisas gramaticais gerais, apresenta-se como morfema de origem Tupi-Guarani que significa algo grande,
avultado. No contexto de fala baionense, passou a aderir outras funcionalidades que diferem desse signifi-
cado. Portanto, pretende-se, assim, analisar o “açu” nos seguintes níveis gramaticais: sintáticos, semânticos
e pragmáticos, ou seja, estudá-lo em relação a sua forma e funções de uso. Além disso, analisar também
estruturas semelhantes a “açu”, tais como “aiçu”, “maisçu”, uma vez que, fizeram-se presentes no corpus cole-
tado, denotando, aparentemente, funções semelhantes ao principal objeto de estudo, fato este que nos leva
a buscar na sociolinguística os pressupostos que norteiam o que diz respeito à variação diamésica. Como
parte da referida análise, levamos em consideração as possíveis motivações linguísticas e extralinguísticas
que fizeram o falante baionense utilizar tais usos. Para se chegar aos propósitos previstos, tivemos como
base principal os pressupostos do Sociofuncionalismo, que traz nomes como Bortoni-Ricardo (2017), Neves
(2018), Martelotta (2011) e Tavares (2013). A pesquisa foi elaborada por meio de levantamento bibliográ-
fico e de coleta de dados realizada com base em conversas de Whatsapp (aplicativo de mensagens instantâ-
neas) e também do Facebook (rede social) Por fim, observou-se que o uso do “açu”, nos contextos analisados,
direciona-nos para a ocorrência do fenômeno de gramaticalização, pois ele perde o status de morfema sufi-
xal e passa a assumir lugar de palavra, reportando-se às questões que cercam funções relacionadas ao susto,
admiração e surpresa. Vale ressaltar que as ocorrências de “açu” e variantes aparecem sempre pospostas à
significativa quantidade de algo ou grandeza presentes no contexto de fala.
Palavras-chaves: Sociofuncionalismo. Falar baionense. Açu.

Introdução
Os seres humanos, em muitos aspectos se parecem, mas proporcionalmente
se diferenciam, o que nos permite dizer que por natureza não somos todos iguais.
Dentre o que nos aproxima temos a linguagem, que dependendo de alguns fatores,
tanto linguísticos quanto extralinguísticos, determinados itens podem apresentar

1  Graduando em Letras/Língua Portuguesa pela Universidade Federal Pará - UFPA. E-mail: [email protected]
2  Doutoranda e mestra em Estudos de Linguagem pela Universidade Federal Fluminense - UFF. E-mail: [email protected]
Sumário
81
variação e diversas funções no momento da oralidade, as quais recebem classifica-
ção dependendo do seu uso.
O presente capítulo aborda, de forma sincrônica e descritiva, a variação lin-
guística e as possíveis funcionalidades de suas variantes existentes na estrutura
“açu”, recorrente na fala dos moradores do município de Baião, no estado do Pará.
Segundo o dicionário on-line3, a estrutura “açu” é de origem tupi guarani e significa
algo grande, avultado, volumoso, contudo, “açu” adquiriu outras formas e funções
no uso dos falantes no município paraense.
Gramaticalmente “açu” é postulado como um morfema sufixal, conforme apa-
rece na palavra “cupuaçu” (cupu-açu) ou Nova Iguaçu (igu-açu), entretanto, ao ana-
lisarmos contextos mais regionais, podemos perceber que este também surge na
posição de palavra ou forma livre, conforme observa-se na Figura 1, retirada de
uma conversa entre falantes oriundos do município de Baião-PA.
Figura 1: Estrutura primária

Fonte: Acervo dos autores.

O uso de “açu” apresenta-se em forma de palavra com função de admiração,


reportando-se ao valor do telefone de marca “a10”, ser altíssimo, na visão do inter-
locutor que demonstra interesse pelo produto.
Questionamentos e dúvidas foram levantadas em relação às possíveis motiva-
ções sobre os novos usos de “açu” presentes no falar baionense. Fato este que nos
levou a desenvolver a referida pesquisa de caráter qualitativo e descritivo, uma vez
que tais resultados tendem a impulsionar a valorização linguística e das marcas
identitárias particulares do falar local e regional.
Para o arcabouço teórico, baseamo-nos no que postula os pressupostos da
junção do Funcionalismo Linguístico (vertente norte americana) com a Sociolin-
guística Variacionista, o que nos direciona ao Sociofuncionalismo, uma vez que, va-
riação e função se fazem presentes, demasiadamente, na referida pesquisa.
Com relação aos objetivos, podemos salientar que o principal deles é analisar
as funcionalidades do “açu” em seus respectivos usos presentes nos contextos de

3  Ver: https://dicio.com.br. Acesso em 05 jun. 2021.


Sumário
82
fala dos moradores do município em questão, levando em consideração as possí-
veis motivações linguísticas e extralinguísticas que levaram os falantes baionenses
a utilizarem tais expressões.
Além deste, temos objetivos secundários que também norteiam esta pesqui-
sa, como: (i) identificar quais as variantes linguísticas da estrutura “açu” presen-
tes na fala dos baionenses, (ii) compreender sua aplicação no contexto de fala dos
mesmos; (iii) entender de que forma ocorreu a mudança linguística de “açu”, uma
vez que este não caracteriza-se apenas como um morfema, pois em determinados
contextos de uso, ele assumiu a posição de palavra que apresenta outras funções
semânticas.
As análises foram feitas a partir dos dados obtidos por meio de prints de con-
versas entre falantes baionenses retiradas do WhatsApp (aplicativo de mensagens
instantânea) e também de publicações do Facebook (rede social). Além disso, para
tais análises, levamos em consideração os conhecimentos que envolvem sintaxe,
semântica, pragmática e discurso, de acordo com a visão do que constitui os pres-
supostos sociofuncionalistas.
A pesquisa se ampara em Bortoni-Ricardo (2017), que aborda dentro da so-
ciolinguística, as variações que a língua pode sofrer com o passar dos anos, além
da herança cultural; Neves (2018) que estuda a Teoria do Funcionalismo Linguísti-
co norte-americano; Martelotta (2011) dentro dos estudos de mudança linguística
que se propõe a fazer algumas reflexões acerca da natureza da mudança que as
línguas naturais sofrem com o passar do tempo (gramaticalização), dos mecanis-
mos pelos quais ele se processa, bem como de suas possíveis motivações; Tavares
(2013) que aborda o Sociofuncionalismo, a partir de um duplo olhar sobre a varia-
ção e a mudança linguística, e a Gramatica de Bechara (2009), por descrever con-
ceitos tradicionais de interjeições (admiração, susto, surpresa...), assim podemos
relacionar, de forma mais clara, os dados encontrados com que retrata a teoria.
Funcionalismo norte-americano/Teoria Centrada no Uso
O  funcionalismo linguístico se diferencia das abordagens formalistas que
norteiam o estruturalismo e o gerativismo, por estudar a linguagem humana sob
aspectos de uso real, tendo como principal interesse de investigação linguística a
função, pois objetiva buscar, no contexto discursivo, as possíveis motivações para
fatos presentes na língua que a tradição gramatical não descreve.
No funcionalismo, a língua é analisada de forma heterogênea e dependente
de todo o contexto que a cerca, dentro das situações comunicativas, considerando,
principalmente, a função das estruturas que auxiliam na formação do texto, afas-
tando-se do conceito de língua como estável e homogênea.
Seu interesse de investigação linguística vai além da estrutura gramatical, buscando na si-
tuação comunicativa - que envolve os interlocutores, seus propósitos e o contexto discur-
sivo - a motivação para os fatos da língua. A abordagem funcionalista procura explicar as
regularidades observadas no uso interativo da língua, analisando as condições discursivas
em que se verifica esse uso (CUNHA, 2017, p. 157).
Sumário
83
Nessa vertente, defende-se que o conhecimento gramatical de um falante tem
origem nas suas experiências particulares com as formas linguísticas em termos de
frequência e contextos de uso, fato este que fortemente pode implicar na fala dos
sujeitos de uma dada região. Podemos, dessa forma, compreender que as análises
baseados em dados de fala ou na modalidade escrita, ambos retirados de um mo-
mento de interação, estão amparadas pelos conceitos que regem as pesquisas de
âmbito funcionalista.
Além disso, “açu” também ocorre, de acordo com os dados coletados, com a
adição posposta de outras estruturas, como, por exemplo, substantivos variados
que funcionam como vocativos (açu barão, açu maninha)
Em relação às variantes, é possível encontrar “açu” nas formas “maisçu” e
“aiçu”, fato este que nos levou a ancorarmos também nos pressupostos da sociolin-
guística variacionista. Logo, podemos considerar o fato de que em algum momento
da fala baionense, o uso de “açu” ganhou semanticamente novas vestimentas, o que
a Sociolinguística caracteriza como variação linguística.
Gramaticalização
Como mencionado anteriormente, o funcionalismo caracteriza-se por uma
concepção dinâmica do funcionamento das línguas. A partir desta visão, (CUNHA,
2017, p. 173) diz que a gramática é vista como um organismo maleável, que se
adapta às necessidades comunicativas e cognitivas dos falantes, ou seja, a gramati-
ca está em constante mudança, ou seja, gramaticalização é um fenômeno relaciona-
do à necessidade de se refazer, o que toda gramática apresenta, para assim, haver
uma melhor comunicação entre os indivíduos de uma determinada sociedade.
Cunha (2017, p. 173) também ressalta que a gramaticalização designa um
processo unidirecional, em que itens lexicais e construções sintáticas, em determi-
nados contextos de fala, passam a assumir funções gramaticais e, uma vez gramati-
calizados, continuam a desenvolver novas funções gramaticais.
Tal fenômeno se aplica ao “açu”, uma vez que o mesmo ganha novos usos, ha-
vendo assim, o processo de gramaticalização, pois “açu” no uso do falante baionen-
se, sai da posição de morfema, como é postulado pela gramatica tradicional, para
assumir uma posição de palavra. Com isso, o elemento deixa de fazer referência a
entidades do mundo biossocial, saindo do seu significado primitivo, para assim,
assumir funções de caráter gramatical.
Assim, a análise de uma manifestação textual requer um olhar minucioso para
a sua estrutura interna, bem como para o contexto em que ela se encontra. Ques-
tões como: quem diz, o que diz, para quem diz, com qual objetivo, de que forma o
faz, com que nível de linguagem, por qual suporte (meio em que o texto se materia-
liza), entre outras, devem permear a referida abordagem.
Sociolinguística variacionista
A sociolinguística é o ramo da linguística que estuda a relação entre a língua
e a sociedade. Incluindo aspectos culturais, expectativas e contexto em relação à
maneira de como a língua é utilizada e os efeitos dessa utilização na sociedade. Isso
Sumário
84
nos direciona a encontrar o que a sociolinguística nomeia de variação, afirmando,
desta forma, que isso ocorre em todas as línguas naturais.
O sociolinguista se interessa por todas as manifestações verbais nas diferentes variedades
de uma língua. Um de seus objetivos é entender quais são os principais fatores que moti-
vam a variação linguística, e qual a importância de cada um desses fatores na configuração
do quadro que se apresenta variável (CESÁRIO; VOTRE, 2017, p. 141).

Portanto, a sociolinguística ocupa-se da língua não somente por si, mas como ela se
modifica para adequar-se aos seus falantes. Ela é subdividida em: Sociolinguística Varia-
cionista, cujo fundador é William Labov; Sociolinguística Interacional, proposta por John J.
Gumperz e Sociolinguística Educacional, pensada por Stella Maris Bortoni-Ricardo.
Nosso foco, neste momento, encaminha-se para a Sociolinguística Variacionista, a
qual busca estudar as possíveis variantes linguísticas que uma palavra pode apresentar,
dependendo da região e da sociedade que ela está inserida, fator este que dialoga com a
nossa pesquisa voltada para o “açu”, já que, por sua vez, ele detém outras formas estrutu-
rais, o que podemos classificar, também, como uma situação de variação linguística.
Dentro dos estudos variacionistas, são apontados três termos importantes para a
sociolinguística que são: variedade, variante e variável esses três pontos são considerados
primordiais para entender as possíveis variações linguísticas que uma palavra ou expres-
são possui dentro de uma comunidade de fala. Fato este que pode ser visto no item em
análise, pois, o mesmo apresenta variantes tanto escrita como na fala.
Segundo Ilari; Basso, (2006) a sociolinguística, também reconhece cinco tipos de
variação: a diatópica, a diacrônica, a diastrática, a diafásica, e a diamésica, este último tipo
de variação tem a ver com o meio de comunicação empregado, ou seja, na fala, em um
documento escrito, em um e-mail, em uma mensagem no WhatsApp, e assim por diante.
A variação diamésica busca, de forma relativa, analisar as variações pertinentes tan-
to na fala quanto na sua escrita, fazendo uma analogia entre ambos os usos. Portanto,
podemos levar em conta, nessa perspectiva, que as variantes “aiçu”e “maisçu”, apesar de
apresentarem diferenças estruturais na modalidade escrita, aparentemente, são utilizada
em contextos demasiadamente semelhantes ao de “açu”.
Por fim, ao observar a existência de uma variação linguística em uma dada comuni-
dade de fala ou região, o pesquisador demarca o contexto de uso, coleta os dados signifi-
cativos, codifica esses dados de acordo com hipóteses elaboradas com base na literatura e
a partir de suas próprias observações, e, por fim, analisa e interpreta os resultados quan-
titativos obtidos.

Sociofuncionalismo: um olhar duplo


A partir da década de 80, surgiram as pesquisas voltadas à vertente sociofun-
cionalista, em uma interface entre a sociolinguística e o funcionalismo linguístico.
Para Tavares (2013) esse diálogo entre ambas as áreas ocorreu devido às teorias
terem princípios em comum como: a heterogeneidade linguística, a realização de
pesquisas tendo como suporte para análise a língua em uso e o reconhecimento da
importância da frequência das ocorrências.
Tavares (2013) diz também que na perspectiva sociofuncionalista, os resul-
tados quantitativos e qualitativos obtidos são explicados através de princípios e
Sumário
85
motivações de natureza cognitivo-comunicativa, cuja fonte principal é o funciona-
lismo norte-americano, já os princípios e motivações de natureza sociocultural e
estilística têm como fonte principal a sociolinguística variacionista.
Assim, pesquisas realizadas a partir dessa dupla perspectiva, possibilitam
descrições e análises de fenômenos linguísticos, focando a atenção para fenômenos
de variação e mudança. Partindo dessa forma de análise, podemos entender como
e de quais maneiras “açu” se manifesta em seu uso, uma vez que o mesmo possibi-
lita fazer uma análise dinâmica dentro desse aparato teórico.
Como apontado anteriormente, a perspectiva funcionalista considera que,
por derivar da experiência do falante com a língua, a gramática é variável e proba-
bilística por natureza (cf. PIERREHUMBERT, 1994; BYBEE, 2010, 2012). Ou seja, a
gramática se torna algo maleável sujeita a sofrer mudanças, fator que está presen-
te nos níveis mais profundos de representação gramatical. Fato este que, segundo
Bybee (2010), é um grande ponto de aproximação entre a linguística baseada no
uso e a sociolinguística variacionista. Para a autora, a sociolinguística pode incor-
porar pressupostos teórico metodológicos da linguística baseada no uso, uma vez
que também propõe que a variabilidade é um fenômeno inerente à língua
Como visto, ambas as áreas são diferentes em suas leis que implicam nos estu-
dos voltados à língua, contudo, elas trazem alguns pontos que as aproximam, como
a gramaticalização, apontada como um ponto chave de ligação entre elas, pois, se-
gundo Tavares (2013) a gramática congrega domínios funcionais variados. Cada
um desses domínios funcionais abarca um conjunto de formas gramaticalizadas,
isto é, de uso rotinizado, que possuem funções gramaticais similares ou idênticas.
Hopper (1991) explica a possibilidade de existência dessas formas gramaticais
com funções colocadas através de um princípio que ele denomina de estratificação.
Segundo esse princípio, como resultado da gramaticalização podem emergir, ao
longo do tempo, dentro dos domínios funcionais da gramática, novas camadas, que
passam a coexistir com as camadas mais antigas, caso estas ainda continuem sendo
usadas. Ou seja, a “estratificação é o resultado sincrônico da gramaticalização su-
cessiva das formas que contribuem para o mesmo domínio” (HOPPER; TRAUGOTT,
2003, p. 125).
O fenômeno de estratificação, fenômeno de variação linguística visto ante-
riormente, pode ser relacionado com o objeto de estudo da sociolinguística varia-
cionista. Uma vez que ela implica na existência de formas variantes, que são duas
ou mais formas utilizadas para a expressão do mesmo significado.
Assim, detalhes da história dessa forma podem refletir em condicionamen-
tos morfossintáticos, semântico-pragmáticos e/ou estilísticos, mesmo quando essa
forma assume significados até distantes daqueles de seu uso fonte. Em decorrência
do passado ou das formas variantes, é fundamental para contextualizar e explicar
seu uso, ocorrendo o que chamamos de variação sincrônica.
Interjeição
Observemos, neste momento, o que uma de nossas gramáticas de Língua Por-
tuguesa apresenta sobre a classe gramatical denominada interjeição, uma vez que,
Sumário
86
em termos morfológicos “açu”, já em forma de palavra, exprime categorias seme-
lhantes ao que as interjeições de nossa língua apresentam.
A interjeição é a expressão com que traduzimos os nossos estados emotivos. Tendo elas
existência autônoma e, a rigor, constituem por si verdadeiras orações. - Podem, entretanto,
assumir papel de unidades interrogativas-exclamativas. - ­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­As interjeições são proferidas em
tom de voz especial, ascendente ou descendente, conforme as diversas circunstâncias dos
nossos estados emotivos (BECHARA 2009, p. 278).

Podemos, assim, salientar que o uso do “açu” é constituído também uma fun-
ção de interjeição, uma vez que seu uso reflete de forma significativa o estado emo-
tivo do seu usuário. Além de assumir papel de interrogativa, levando um teor de
questionamentos e dúvidas a determinadas ocorrências, o que pode ser justificado,
em alguns dados, pelo contexto puramente estrutural que o cerca.
Metodologia
A investigação pelas quais passam os itens analisados baseia-se em print’s co-
letados de conversas de WhatsApp e publicações do Facebook, meio em que “açu”
é também utilizado. Em decorrência disso, atentamos para retirar todos os nomes
das pessoas que apareceram nos print’s, por precaução e manutenção da integrida-
de dos informantes.
Para o desenvolvimento deste trabalho, buscamos pesquisar e estudar a gra-
mática funcional e seus aspectos relacionados às várias formas e significados que
uma palavra pode conter, com base nos estudos de Neves (2018) e outros pesquisa-
dores da teoria funcionalista, como também buscamos estudos no campo da socio-
linguística e da gramatica tradicional, o que caracteriza tal pesquisa como biblio-
gráfica, mas também uma pesquisa sincrônica, uma vez que a análise do objeto em
estudo perpassa no mesmo recorte de tempo.
Além disso, em relação à abordagem da pesquisa, nosso trabalho segue prin-
cípios da abordagem qualitativa, pois é a forma ideal para se compreender a ocor-
rência de um fato social.
Assim, analisamos 28 dados, o equivalente a 28 print’s que são partes de di-
álogos entre os jovens e entre os adultos residentes na cidade de Baião-PA. Por
meio dessas ocorrências, fizemos as análises de “açu”, observando suas caracte-
rísticas linguísticas e extralinguísticas, suas possíveis variações e suas funcionali-
dades dentro do campo sintático, semântico e pragmático do contexto de fala dos
habitantes do município, para assim determinar os possíveis motivos que levaram
o baionense a utilizar o “açu”.
Apresentação do corpus
Durante as análises dos dados para este trabalho, foram identificados usos
funcionais do “açu”, também se constatou possíveis variações estruturais dessa
construção, as quais serão expostas a seguir.
Sumário
87
Figura 2: Ocorrência de “Açu barão”

Fonte: Acervo dos autores.

Primeiramente, nota-se na Figura 2, dado retirado do Facebook, que na ima-


gem se passa em um ambiente de interior, onde crianças se divertem à beira de
um rio. Vejamos também que logo acima, temos duas sentenças relacionadas com
a imagem, em que a primeira faz uma suposição quanto ao ambiente interiorano,
afirmando não ter nada para fazer naquele lugar. Em contrapartida, a segunda sen-
tença faz oposição à ideia anterior, apresentando possíveis atividades que podem
ser feitas neste local.
Partindo dessas características linguísticas e extralinguísticas, o usuário uti-
liza o “açu” para induzir sua impressão de admiração sobre o texto não verbal (a
imagem), fazendo de “açu” uma interjeição por admiração, relacionando às carac-
terísticas do ambiente expondo um número considerável de pessoas na árvore; ao
suposto perigo eminente por se tratar da beira de um rio e de uma árvore que apa-
rentemente está prestes a cair por apresentar uma posição bastante inclinada em
relação ao rio.
Percebe-se também, que o “açu” vem precedido da adição “barão” que é subs-
tantivo, exercendo papel de vocativo, o que nos leva a entender que o autor do
comentário o direciona para os falantes nativos da cidade de Baião, uma vez que
tal forma de se referir a alguém também é utilizada na fala dos baionenses, fortale-
cendo, assim, o seu caráter regional e particular. Portanto, as características tanto
linguísticas e extralinguísticas presentes, levaram o indivíduo a utilização da cons-
trução para impor sua admiração, possibilitando essa função de sentido do “açu”.
Sumário
88
Figura 3: Variante 01 “aiçu”

Fonte: Acervo dos autores.

Na Figura 3, imagem capturada via print do WhatsApp, diz respeito a uma


possível variação. Temos o “aiçu” exercendo novamente a função de interjeição,
causando uma sensação de surpresa por parte do receptor da mensagem, o que
o ponto de exclamação também ajuda a entender dessa forma. Essa surpresa gira
em torno de que na sentença anterior, em que o indivíduo relata a quantidade de
remédios ingeridos, sentido entendido por meio do adjunto adverbial vários, o que
caracteriza uma quantidade consideravelmente grande em relação ao substantivo
remédios, pois é de comum conhecimento que tais substâncias não podem ser in-
geridas dessa forma.
Percebe-se também o complemento nominal tá doido que parece complemen-
tar o papel de admiração em relação ao quantitativo de remédio ingerido por quem
está com dor de barriga. Levando em consideração o fato ocorrido e as circunstân-
cias provenientes desta ação, o “aiçu” é utilizado para expor a sensação de surpresa
do indivíduo ao se deparar com o ocorrido.
Figura 4: Variante 02 “maisçu”

Fonte: Acervo dos autores.

Na Figura 4, também capturado via print do WhatsApp, podemos observar


que ocorre uma outra variação, do “açu”, sendo esta “maisçu”. Neste exemplo, cons-
tatamos mais uma vez que a estrutura exerce uma função de surpresa e de possível
Sumário
89
dúvida por parte do indivíduo em relação ao fato ocorrido, uma vez que há a pre-
sença do complemento tá mentindo né?, fazendo uma espécie de questionamento
acerca do fato relatado, ou seja, a vitória no jogo e, principalmente, o placar, pois se
subentende que não era o esperado.
Discussão dos resultados
Em relação aos resultados alcançados, entendemos que “açu” possa estar pas-
sando pelo processo da gramaticalização, uma vez que ele, enquanto léxico, é ca-
tegorizado como morfema sufixal que significa “algo grande”, no entanto, nos con-
textos informais de fala baionense analisados, até o momento, “açu” aparece com
status de palavra.
Isso nos leva a entender que, em relação às possíveis motivações linguísticas
e extralinguísticas, o falante baionense opta por utilizar “açu” em situações de sur-
presa diante de quantidades elevadas de determinados substantivos, tais como:
remédios, gols, pessoas etc., conforme destacamos nos dados analisados.
Ademais, pudemos constatar nesta pesquisa que “açu” é um termo do falar
baionense que apresenta variantes, uma vez que “aiçu” e “maisçu” parecem cum-
prir sentido semelhante ao de “açu”.
Analisar a língua em uso requer elevar novas posturas em relação ao que já
está descrito e prescrito nas literaturas tradicionais em relação ao estudo de lin-
guagem e à abordagem gramatical canônica, no entanto, tal análise nos possibilita
a olhar para objetos linguísticos característicos de uma dada região, também com
olhares científicos.
Assim, tal pesquisa nos direcionou a entender parcialmente como e porque,
de maneira linguística, “açu” faz parte do falar dos baionenses, assemelhando-se
muito às estruturas que funcionam como interjeições na língua portuguesa, tais
como “nossa! ”, “puxa! ” etc., pois, ao fazermos a substituição de “açu” por essas es-
truturas, nos dados supracitados e analisados anteriormente, a semântica de viés
tradicional diria que não teríamos perda alguma de sentido. No entanto, valendo-se
de estudos que levam em consideração a situação comunicativa como prioritária
na análise, essas estruturas ditas mais gerais entre os falantes de língua materna,
talvez não causassem a mesma intensidade que “açu” demarca.
Além disso, é importante ressaltar a questão da identidade linguística que o
falante de uma dada região apresenta, principalmente quando ele está diante de
situações informais de comunicação, que é o caso das situações dos dados coleta-
dos. Essa questão nos leva a entender, de maneira bem prática, o quanto a língua,
mesmo dentro de suas multiplicidades e diferenças, também nos uni.
Considerações finais
Como apresentado neste capítulo, o uso da estrutura em que perpassa as análises e
estudos presentes, foram de grande relevância para compreender melhor a forma como
se condiciona a linguagem baionense, com foco no “açu”, levando em consideração os fa-
tores linguísticos e extralinguísticos pertinentes na língua e que servem para analisar o
objeto de pesquisa quanto as suas funções.
Sumário
90
Podemos salientar que o uso do “açu”, no contexto do falar dos baionenses, ganha seu
papel como expressão local, recebendo nova forma (de morfema para palavra) e no-
vas funções: valor semântico e pragmático de admiração e surpresa; para expressar
admiração, surpresa e até mesmo susto em relação a quantidades elevadas de algo, tendo
função semelhante à de interjeições. Esse processo de mudança linguística pelo qual se
passa o “açu”, o funcionalismo aponta como gramaticalização, em que uma palavra ou ex-
pressão, sai de seu sentido primitivo e ganha novos significados em determinada língua.
O “açu” também apresentou, como vimos nos dados analisados, variantes
em sua estrutura sintática, essas estruturas apesar de serem diferentes umas das
outras, possuem o mesmo papel semântico no seu uso, como aponta Martelotta
(2011. p. 48), “que duas ou mais formas de ser algo com valor semelhante, são con-
siderados casos de variação”.
Portanto, o uso do “açu” como expressão perpassa uma conjuntura interacio-
nal, em que seu papel na comunicação é compreendido de forma sucinta pelos seus
usuários, para impor seus sentimentos, questionamentos, oposição de ideias, fato-
res que cercam a ideia principal que perpassa pela função de interjeição, presente
no objeto pesquisado.
Referências
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MARTELOTTA, M. E. Mudança linguística: uma abordagem baseada no uso. São Paulo: Cortez, 2011.
NEVES, M. H. M. Gramática funcional: interação, discurso e texto. São Paulo: Contexto, 2018.
PIERREHUMBERT, J. B. Knowledge of variation. CLS, v. 30, p. 232-256. 1994.
TAVARES, M. A. Sociofuncionalismo: um duplo olhar sobre a variação e a mudança linguística. Revista de
Estudos em Língua e Literatura, Itabaiana-SE. Edição Especial ABRALIN/SE, v.17, Jan.-Jun., p. 27- 48., 2013.
Na língua, nada se cria, nada
se perde, apenas recrutam-se
elementos para novas funções
Danielle de Melo Viana1
Robson Borges Rua2

Resumo: O presente capítulo busca investigar o processo de abstratização aplicado ao quantificador murra-
da, conferindo, assim, a maleabilidade da língua e da gramática, além de realizar um levantamento estatísti-
co da variação desse quantificador diante das categorias: elementos sólidos, elementos líquidos e entidade
humana. O objetivo é descrever o quantificador murrada, compreendendo-o como não-canônico, explanan-
do suas possíveis motivações. O trabalho está embasado nas pesquisas de Alfredo (2015), acerca dos quan-
tificadores universais; Salomão (2010), em relação a quantificadores emergentes do uso; Tavares (2013),
com o intuito de fomentar a discussão acerca da abordagem Sociofuncionalista. Pesquisou-se também como
é vista a quantificação pelos gramáticos Bechara (2009) e Lima (2011). A pesquisa caracteriza-se como
desdobramento de um Trabalho de Conclusão de Curso, intitulado “O uso de quantificadores na modalidade
oral no município de Oeiras do Pará: uma abordagem funcionalista”, acerca dos quantificadores falados em
Oeiras do Pará (PA), descrito em Viana (2020). O corpus foi construído através de entrevistas com oeirenses,
focalizando o quantificador murrada, apresentando detalhes de sua emergência e suas motivações de uso.
Os resultados mostram que: murrada (quantificador não-canônico) mantém relação analógica com outros
termos, por exemplo com o quantificador porrada, ambos tendo mesmo esquema imagético; é utilizado em
contextos que há necessidade de expressividade da intensificação, já que deriva de um processo de escala-
ridade (soco > murro > murrada); resulta, pois, de uma abstratização da ação (concreto) para quantificador
(abstrato), ou seja, há um recrutamento de um elemento para desempenhar uma nova função. A resposta
aos questionamentos está, portanto, na análise da língua em uso.
Palavras-chave: Quantificador. Murrada. Sociofuncionalismo. Oeiras do Pará.

Introdução
Cotidianamente se está em experiência com o mundo e com as pessoas. Sente-
-se, tateia-se, experimentam-se cores, sabores e cheiros. Tudo é rodeado de lingua-
gem. Dependendo das necessidades do indivíduo para/com esse ambiente externo,
o uso da língua é feito de diferentes formas. Lavoisier, químico francês, construiu a
1  Graduada em Letras/Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Pará, Campus Universitário do Tocantins Cametá - UFPA/
CUNTINS. E-mail: [email protected].
2  Doutor em Letras Vernáculas/Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. E-mail: robson.rua.ufpa@gmail.
com.
Sumário
92
seguinte premissa: “na natureza, nada se perde, nada se cria, tudo se transforma”,
o mesmo ocorre com a língua falada, não se tem perda ou criação, apenas trans-
formação, isto é, os termos lexicais, à medida que são usados, são recrutados para
novas funções.
O falante sente necessidade de ser cada vez mais expressivo, busca formas
que incitam a essa expressividade. Se há uma situação em que um termo não sa-
tisfaz mais a intenção que se quer repassar, o normal será que o locutor procure
outras formas para desempenhar o papel que a forma usada já não mais satisfez.
Como se vê, além das transformações esperadas internamente, a força externa, do
mundo, também pode causar certas mudanças na língua. O indivíduo afeta o mun-
do e o mundo, da mesma forma, o afeta.
Essa necessidade de expressividade faz com que, baseados em palavras ou
orações já existentes, apareçam vocábulos novos ou com funções diferentes das
que costumam desempenhar. É dentro desse contexto que a quantificação aparece.
O ser humano, mesmo tendo dispositivos variados para expressar algo, tem ne-
cessidade de recrutar outros elementos, para que a comunicação seja plenamente
alcançada. Por exemplo: “tinham poucas pessoas na fila” → “tinham pessoas na fila”
→ “tinham muitas pessoas na fila” → “tinham bastante pessoas na fila”, aqui, ilustra-
-se o recrutamento de novas formas a partir das necessidades comunicativas.
Foi por meio da observação destes tipos de dispositivos da língua que se en-
controu um campo rico de pesquisa, a quantificação. O presente capítulo é fruto de
um Trabalho de Conclusão de Curso, defendido no ano de 2020, na Faculdade de
Letras da Universidade Federal do Pará (UFPA/CUNTINS), sob orientação do Prof.
Dr. Robson Rua, acerca dos quantificadores existentes na língua falada de Oeiras do
Pará, município do nordeste paraense. A pesquisa listou diversos quantificadores,
até então pouco conhecidos, se considerarmos os canônicos.
Objetiva-se desdobrar um ponto desta pesquisa, atentar-se-á ao quantifica-
dor murrada que apresentou grande riqueza de análise. Este quantificador foi o
terceiro mais falado, dentre quatro (quantificadores regionais3) destacados para
análise em Viana (2020). Vale destacar que os dados que serão aqui explorados
fazem parte do corpus construído no TCC explicitado anteriormente. Murrada teve
14 ocorrências, os outros três quantificadores analisados em Viana (2020), foram:
mina (22 dados); avortado (16); e montueiro (12). Dito isto, objetiva-se o apro-
fundamento na pesquisa em relação ao quantificador murrada, considerando os
diversos contextos de ocorrência e suas motivações.
Os quantificadores como ponto de partida
De modo geral, a quantificação diz respeito à nominação de conjuntos, esses
nomes são considerados quantificadores. A quantificação pode ser expressa de di-
versas formas, há quantificadores implícitos dentro de uma expressão, expressões
compostas, orações que podem trazer quantidade relativa, termos que não são

3  Considera-se quantificador regional, todo aquele que não foi encontrado em documentos oficiais do léxico de língua portuguesa e
aqueles que, mesmo encontrados, não desempenham as mesmas funções presididas nestes documentos.
Sumário
93
quantificadores, mas temporariamente recebem essa função, os próprios quantifi-
cadores explícitos e entre outros mecanismos.
A quantificação pode estar presente em estruturas que contam diretamente,
assim como em situações que uma quantidade específica não está sendo dita. Po-
demos dizer “tenho dois livros para ler”, ou “encontrei um par de meias na gaveta”,
tanto um quanto o outro são exemplos de quantidade precisa, já as frases “algumas
pessoas foram para a cidade” e “eu vi vários animais na viagem”, exemplificam es-
truturas com quantificação imprecisa.
O que importa é que ambas as frases são formadas com quantificadores que
de alguma forma modificam seus objetos. A quantificação abre um leque de possi-
bilidades no que tange às interpretações, se, por exemplo, mudamos a frase “eu vi
vários animais na viagem” para “eu vi apenas animais na viagem”, o sentido tam-
bém muda. Na primeira, há a possibilidade de o indivíduo ter visto outras coisas
além de animais, já na segunda frase, com a mudança de quantificador, traz uma
restrição, a pessoa viu apenas animais, não tendo a possibilidade que o primeiro
exemplo originou.
Aqui, destacam-se observações de duas visões sobre os quantificadores, a sa-
ber: gramáticos e linguistas. As duas áreas encaram a quantificação de diferentes
formas. Na maioria das vezes, os gramáticos não consideram os quantificadores
como uma classe distinta. Em Lima (2011), eles são chamados como coletivos nu-
méricos nos substantivos (par, dúzia) e numerais (um, meio), estando presentes
também como exceções dentro da classe dos pronomes (todo, algum) e dos advér-
bios, sendo chamados de advérbios de intensidade (muito, mais).
Bechara (2009) já considera o termo quantificador e o vê como um conjunto
de termos com função de designar quantidades, mas não o considera como uma
classe de palavras, isso ocorre também pela área da quantificação ser muito ampla
e carecer de organização de um panorama geral, que abranja o maior número de
contextos possíveis, principalmente aqueles considerados não tradicionais. Uma
das problemáticas da organização da classe dar-se pela escassez de estudos em
paisagens locais e de definições vagas. Para a linguística:
De maneira geral, o que se tem predominado, ao menos em português, é a repetição de um
mesmo vocabulário de termos, sem que se apresente qualquer definição sobre as proprie-
dades de cada classe, além do rótulo dado a ela, e sem nenhuma reflexão a fim de descobrir
se as classes de advérbios herdadas são só essas, ou se são essas mesmas (GUIMARÃES,
2006, p. 6-7).

Alfredo (2015) defende o agrupamento dos diversos elementos para criar


uma classe mais extensa, como os quantificadores. A quantificação divide-se em
contagem – absoluta (dez, mais de seis) e relativa (a maioria, mais de metade) –
medição – absoluta (centímetro, litro, quilo) e relativa (parte, um terço) – e gradu-
ação (melhor do que, -íssimo). O autor também observa que a quantificação apre-
senta grande relação com o objeto quantificado e com seu contexto, influenciando
diretamente as informações ao seu redor, como é o caso das frases acima com os
quantificadores vários e apenas. É preciso considerar os:
Sumário
94
Diversos âmbitos da quantificação, conforme o tipo de ‘objeto’ que pode ser quantificado
(indivíduos, graus de predicação, eventos, intervalos de tempo). A quantificação, assim é
entendida de um ponto de vista mais amplo do que a simples expressão de relações de
quantidades entre conjuntos individuais clássicos (GUIMARÃES, 2006, p. 3-4).

A classe dos quantificadores se divide em duas esferas, como o tipo de quanti-


ficadores e o âmbito de quantificação. A primeira esfera, conforme Alfredo (2015),
divide-se em quantificadores próprios e quantificadores focais. O primeiro englo-
ba as subclasses dos numerais (um, trigésimo, metade, duplo, década), indefinidos
(todo, algo, vários, nenhum) e gradativos (mais/menos, bastante); o segundo en-
globa os inclusivos (também, inclusive) e exclusivos (só, apenas). A segunda esfera
diz respeito aos quantificadores intrínsecos, com leitura quantitativa obrigatória
(cada, todo, ambos); e aos quantificadores não intrínsecos, que não expressam
quantidade, mas pressupõem leitura quantificada (muitos, inclusive, apenas, nem
sequer).
Guimarães (2006) destaca que, para uma melhor classificação da classe dos
quantificadores, é necessário considerar critérios bem definidos, cabe testar quais
análises melhor se encaixam, sempre considerando os contextos de uso. Destaca-se
que vários quantificadores mantêm relações com a intensificação, tanto de termos
como de contextos. Considera-se que “intensificadores seriam os quantificadores
que ocorrem (ou quando ocorrem) em contextos cuja incidência se dá sobre o grau
de predicação” (GUIMARÃES, 2006, p. 3).
Ao tratar de idiomatismos emergentes do uso, Salomão (2010) destaca monte
e chuva, que receberam usos funcionais e passaram a ser largamente usados como
quantificadores. Além destes, há outras tantas expressões de quantificação que
ainda não estão idiomatizadas, mas já são utilizadas. Massas líquidas, por exemplo,
se apresentam como um bom esquema imagético para a construção de quantifica-
dores, tais como: “uma enxurrada de peixes”, “não tem uma gota de educação”, “o
bairro passa por uma onda de assaltos”, “sinto um oceano de emoções”.
Salomão (2010) também considera um quantificador parecido com o murra-
da, que será analisado nesta pesquisa, trata-se de porrada, por exemplo “uma por-
rada de coisas”, ambos vêm de uma mesma raiz imagética. Mais à frente, clarear-se-
-á o conceito de esquema imagético, por enquanto, pode-se exemplificá-lo com os
quantificadores já vistos, monte e chuva. O esquema de monte relaciona-se com o
próprio termo quando funciona como substantivo, que traz a imagem de empilha-
mento e é utilizado para contar entidades que podem sofrer a ação de empilhar; já
chuva, a partir do esquema de inúmeras trajetórias de pingos, geralmente, é utili-
zada para eventos que tenham algum tipo de projeção.
Observa-se, conforme visto acima, que há uma relação entre os quantificado-
res e seus termos e significados de origem, fazendo com que influenciem na escolha
de entidades para quantificar. No caso do quantificador que será analisado – mur-
rada – essa influência faz com que, caso seja utilizada com a categoria de entidade
humana, a expressão soe como agramatical para o falante. Uma confirmação de que
na língua tudo é transformação é que em algum momento, na história linguística,
houve um termo parecido com o que está começando a ser utilizado hoje, a neces-
Sumário
95
sidade do falante vai mudando a função das palavras e suas aparências, conforme
critérios externos e internos à língua.
Salomão (2010) apresenta uma problemática para a pouca padronização dos
quantificadores e o destaque e repetição de termos bem reconhecidos, trata-se da
escassez de corpora com linguagem oral para análise. Quando não há estudos so-
bre a modalidade oral, muitos termos não serão registrados, e mesmo que sejam
utilizados diariamente, receberão pouco reconhecimento. Como se verá a frente, a
gramática é maleável porque recebe influência do discurso, isto significa dizer que
é a partir do uso que a língua irá se estruturar.
A abordagem sociofuncionalista: a gramática como estrutura
maleável e a quantificação como um fenômeno variável
Como forma de refletir o fenômeno da quantificação nessa produção, recorreu-
-se a um empreendimento um tanto promissor na área da linguagem: o casamento
entre a perspectiva funcional da linguagem e a perspectiva da variação linguística.
Uma discussão acerca da aproximação entre essas duas áreas está assentada em
Tavares (2013). A autora se vale tanto do arsenal de informações do paradigma
funcional quanto do arcabouço dos padrões sociolinguísticos, os quais são recruta-
dos nesse artigo como forma de melhor abordar o fenômeno da quantificação.
Em termos funcionais, a visão que se tem de gramática, na maioria das vezes,
direciona-se ao que chamamos de tradicional, ao que é geralmente ensinado na es-
cola. Essa gramática tradicional (GT) vê a língua como estável, não analisando seu
uso, mas se pautando na escrita de escritores consagrados, como é o caso de Lima
(2011). A GT tem grande importância na organização do léxico, mas é preciso des-
tacar que é a gramática que se pauta na língua e não o contrário, ou seja, é a língua
que modifica a gramática e determina suas normas. Cunha et al. (2015) explicam
que:
Quando algum fenômeno discursivo, em decorrência da frequência de uso passa a ocorrer
de forma previsível e estável, sai do discurso para entrar na gramática. No mesmo sentido,
quando determinado fenômeno presente na gramática passa a ter comportamentos não
previsíveis, em termos de regras selecionais, podemos dizer que ele sai da gramática e re-
torna ao discurso (CUNHA et al., 2015, p. 42).

No que diz respeito a essas passagens, há grande movimentação da língua,


de forma que termos se transformem e substituem outros já desgastados. Oliveira
(2020) compara esse círculo com a reciclagem, o falante não criará novas palavras
cada vez que tem necessidade de expressividade, mas sim aproveitará termos já
existentes e dará a eles usos funcionais e novos sentidos, principalmente por pro-
cessos de abstratização. Por isso, acredita-se ser a gramática uma estrutura male-
ável, como Bybee (2010) demonstra quando compara a língua com dunas de areia.
Sumário
96
Figura 1: A relação entre o uso e a língua

Fonte: Viana (2020, p. 23), adaptação do modelo de Bybee (2010).

Acima, aparece um elemento crucial à mudança linguística, que é de respon-


sabilidade do falante, trata-se da interferência no uso da língua. Esta está em cons-
tante movimento porque é utilizada. Bybee (2010) mostra que, ao receber a inter-
venção do vento, a areia muda de posição, o mesmo ocorre quando o falante utiliza
a língua. Se não houvesse interferência, a areia não se movimentaria, é o que acon-
tece com línguas que não são mais utilizadas.
Ainda há algo a se aproveitar desta comparação, quando o vento mexe a areia
e muda sua forma, as dunas continuam sendo as mesmas. Observe que não se criou
uma nova areia, no máximo algum grão se foi com o vento para outro local, sendo
assim, pode-se dizer que os novos contornos são formados a partir de uma mesma
areia e da interferência do vento. A língua apresenta a mesma movimentação, o uso
muda e agita suas palavras, recrutando-as para novas funções, moldando-as toda
vez que há intenção do locutor. Neves (2018) enfatiza que:
É a alta frequência de uso (a repetição) de sequências de palavras ou de morfemas o fator
determinantemente responsável pelas mudanças linguísticas que levam à gramaticaliza-
ção, já que a automatização faz com que tais sequências passem a funcionar como uma
única unidade de processamento. [...] A motivação para a gramaticalização, por outro lado,
está tanto nas necessidades comunicativas não satisfeitas pelas formas existentes, quanto
na existência de conteúdos cognitivos para os quais não existem designações linguísticas
adequadas, devendo observar-se, ainda, que novas formas gramaticais podem desenvol-
ver-se a despeito da existência de estruturas velhas (NEVES, 2018, p. 179-181).

Considera-se que a gramática é uma estrutura maleável por receber influên-


cias do uso. O recrutamento de formas velhas, o acréscimo ou subtração de partícu-
las, a utilização de palavras para novas funções, tudo isso é visto quando se analisa
a maleabilidade da gramática.
Quando se fala em gramática maleável também se considera que a linguagem
seja um produto sociocultural, isto é, sofre modificações conforme a região, cultu-
ra, influências de outros locais, cada lugar tem suas próprias características. Des-
se modo, as gramáticas necessitam codificar aquilo que os indivíduos mais falam,
até porque eles não combinam informações do modo como querem, pois, a língua
apresenta restrições quanto a esse processo.
A análise da estrutura linguística desenvolve-se, pois, a partir dos processos cognitivos,
alguns diretamente ligados com o uso da língua (por exemplo, a categorização), outros
aparentemente não tão ligados (por exemplo, a memória). Essa centração no uso significa
entender-se que os padrões da língua são generalizações obtidas pela repetição dos usos
em interações (produções e compreensões), formando-se redes similares compartilhadas
que constroem o sistema linguístico do falante (NEVES, 2018, p. 129).
Sumário
97
A similaridade entre características ajuda na construção de novas funções
para determinados termos. Geralmente o léxico da língua é formado por vocábulos
utilizados e conhecidos pela maior parte dos falantes, o que se necessita destacar
é que cada região compõe seus termos de maneira própria, ou combinando-os e
lhes atribuindo novas funções. É o que ocorre com os quantificadores. Alguns deles
são conhecidos, mas não muito utilizados em determinadas regiões, que preferem
optar por termos que suprem suas necessidades, isso significa dizer que a quanti-
ficação também é um produto sociocultural.
Os termos específicos de uma determinada região, ainda que sejam particu-
lares dos falantes locais, também são concebidos como motivados, a considerar o
percurso do espaço biofísicossocial para a linguagem. Quando a linguagem reflete
os fatos tais como eles ocorrem no espaço social, o princípio a que se recorre é o da
iconicidade. Há diversos tipos de iconicidade, destacam-se aqui três deles: subprin-
cípio da quantidade, quanto mais informação, maior a forma, e palavras derivadas
tendem a ter forma maior; subprincípio da proximidade, informações mais próxi-
mas no campo do sentido ficam mais próximas no campo da forma e tem ligação
semântica; e subprincípio da ordenação linear, a ordem das orações segue a linha
temporal. A motivação icônica “corresponde ao reflexo, nos elementos estruturais,
de relações análogas existentes na estrutura semântica” (NEVES, 2018, p. 154).
Por fim, cumpre ainda destacar dois conceitos que ajudarão no entendimento
da motivação de uso de murrada, a saber, abstratização e esquema imagético. A abs-
tratização é o percurso que determinada expressão concreta, caminha em direção a
algo mais abstrato, mais subjetivo. Oliveira (2020) exemplifica com a abstratização
de elementos relativos a partes do corpo – “braço da cadeira”, “ele é mão aberta”. A
abstratização envolve, portanto, o recrutamento de elementos para novas funções.
O esquema imagético, como se pôde ver nos exemplos com os quantificado-
res monte e chuva, trata-se de “um conjunto de representações mentais, e cada
um desempenha todo o conhecimento genérico que adquirimos através de nossas
experiências passadas com objetos, situações [...] sequência de ações, e assim por
diante” (DUQUE; COSTA, 2012, p. 77). A língua, portanto, é fruto das experiências
que um indivíduo tem com o ambiente, logo, a gramática também é maleável e so-
fre modificações conforme as intencionalidades do falante.
Em termos variacionistas, o objeto de estudo desse capítulo só reforça a tese
de que a língua é um sistema heterogêneo que contempla regras variáveis (WEIN-
REICH; LABOV; HERZOG, 2006). Essas regras estão condicionadas a fatores não
somente linguísticos como também sociais. Esse é um ponto de intercessão entre
a abordagem funcional e a abordagem variacionista da linguagem. Em outras pala-
vras, ambas se voltam para a língua E4.
Sabe-se que a Língua E contempla aspectos sociais como fatores que auxiliam
no processo de mudança linguística. Anteriormente, apresentou-se a metáfora das
dunas, proposta por Bybee (2010), como um processo de reflexão acerca da mu-

4  Língua E (língua externa), é tomada em oposição à Língua I (língua interna), a qual está relacionada à análise de fatores apenas
internos à língua, tal como ocorre nas abordagens estrutural (Princípio da Imanência Linguística) e gerativa. A Língua E possibilita a
realização de uma abordagem da linguagem a considerar os fatores extralinguísticos e/ou sociais.
Sumário
98
dança. Por ora, são apresentadas variáveis independentes como fatores que condi-
cionam a mudança na língua, a saber: faixa etária, sexo/gênero, grau de escolarida-
de, espaço geográfico, entre outras.
Neste capítulo, direciona-se a atenção para o aspecto do espaço geográfico,
pois é realizada uma descrição da língua, na modalidade oral, de uma região espe-
cífica do estado do Pará, município de Oeiras do Pará. A retomar o objeto de análise
desse trabalho, a quantificação, nos moldes variacionistas, a expressão de quanti-
dade é considerada a variável da pesquisa; ao passo que os termos mina, montuei-
ro, murrada e avortado são considerados as variantes, uma vez que são as formas
individuais que expressam a variável em questão.
Por esse motivo, estabeleceu-se uma interface entre o Funcionalismo e a So-
ciolinguística, com o intuito de conferir uma análise mais expressiva acerca dos
quantificadores apresentados no parágrafo anterior. Pesquisas dessa natureza ain-
da esboçam um movimento acanhado, mas as contribuições que essas duas áreas
podem oferecer, em termos de análise, a um fenômeno da língua, certamente, são
muito valiosas.
Procedimentos metodológicos
Como já dito, a pesquisa é um desdobramento de um TCC sobre os quantifica-
dores usados na modalidade oral no município de Oeiras do Pará. A coleta de dados
ocorreu por meio de entrevistas com munícipes oriundos da zona rural e da zona
urbana. Viu-se a necessidade de entrevistar pessoas de diferentes ocupações para
que se pudessem observar de forma ampla, quais quantificadores eram realmente
utilizados no município, dentre estas, destacam-se: coletor de açaí; pescadores (da
zona urbana e rural) de peixe e camarão; aposentados; e estudantes (ensino médio
e superior), de diferentes idades e sexo.
O município de Oeiras do Pará localiza-se no nordeste paraense, tendo uma
população de pouco mais de 30 mil habitantes. As entrevistas foram feitas no pe-
ríodo de dezembro (2019) a março (2020), nos locais de morada ou ocupação de
cada entrevistado. O cuidado com a questão do local de realização da entrevista
fez-se importante para que os indivíduos se sentissem descontraídos para usar o
seu próprio modo de falar.
Além de serem realizadas no local de convívio dos falantes, as entrevistas en-
volviam assuntos que variavam de acordo com a ocupação e contexto de cada um.
Caracterizando-se, portanto, como uma entrevista semiestruturada, já que houve
intervenção do entrevistador, mas com o objetivo de construir situações em que o
falante pudesse utilizar quantificadores, de acordo com seu contexto e sobre as-
suntos que tinham domínio. A pesquisa de TCC encontrou diversos quantificado-
res, mas focou apenas em quatro, considerados, por Viana (2020) como regionais
ou não-canônicos, mina, montueiro, murrada e avortado, listados na Tabela 1.
Tabela 1: Sistematização de quantificadores não-canônicos de Oeiras do Pará
Quantificador Ocorrência Exemplo
“e aí cada um ficava com uma quantia, tinha dia que a gente
Mina 22
olhava naquele mercado era mina desses mantimento” DSC
Sumário
99
“era cheio daquelas árvore de manga, igual essas uma que
Montueiro 16 tem na praça, que chega a gente olha e tá aquele montueiro
de manga embaixo né...” MVB
“Tem vez que a gente dá uma lavada, pega mesmo... pega
Murrada 14
murrada de carataru, traíra...” MBM
“só que a madeira começou a ficar escassa né, e aí, já num
Avortado 12 tinha muito, que era avortado que eles tirava, não tirava
pouco...” EPM
Fonte: Elaborado pelos autores.

Dentre esses quantificadores apresentados na Tabela 1, foi considerado o


quantificador murrada, que apresenta, assim como os outros, peculiaridades que
podem contribuir significativamente, tanto para o conhecimento da língua oral de
Oeiras do Pará, quanto para a área da quantificação, no que diz respeito à análise
dos quantificadores em posição de uso.
A análise está dividida em dois pontos. Primeiro, foi produzido um estudo
mais geral sobre a emergência de murrada, encarando-o como não-canônico, fazen-
do breves explanações acerca das suas relações com outros elementos da língua. O
segundo ponto focalizou nas motivações do uso de murrada, levando em conta seu
processo de abstratização, os momentos em que se encaixa nos subprincípios da
iconicidade e sua relação com a intensificação.
Análise
Como já observado, os quantificadores são inúmeros e cada um é formado por
uma intencionalidade, seja do falante, seja da própria língua. A linguagem é funda-
mentada pelo uso. Nesse sentido, a quantificação, para uma análise rica, precisa ser
observada por diversos caminhos, em diferentes posições. O que se verá a partir de
agora é a caracterização do quantificador murrada, partindo de pressupostos que
focam no uso e na fala, baseando-se em conceitos funcionalistas e cognitivistas,
tais como analogia, esquema imagético, abstratização, iconicidade, expressividade
e escalaridade (intensificação/gradação).
“Murrada”: quantificador não-canônico
Salomão (2010) afirma que é a partir do uso que a língua se estrutura e, por
isso mesmo, é a partir dele que vale a pena estudá-la. Guimarães (2006) diz que,
para se ter um panorama geral e abrangente das palavras que funcionam como
quantificadores, é necessário olhar para os contextos de ocorrência não tradicio-
nais. Concorda-se com as duas afirmações, e, tomando-as como base, apresenta-se
o quantificador não-canônico murrada, visto na frase abaixo:
MBM: “Dá, dá muito, dá murrada de açaí, só daqueles cachos grande... e aí... aí sim né... mas
depende também do local, tem lugar praí pros centro, que o açaí... ele demora pra dá e não
dá tão avortado”.

Quando se afirma ser murrada um quantificador não-canônico quer se dizer


que ele não foi encontrado nos documentos oficiais sobre o léxico de língua por-
tuguesa, ou pelo menos, não com função de quantificador. Murrada é utilizado em
contextos encontrados na fala de oeirenses (como no exemplo acima), e se apre-
senta como o terceiro quantificador não-canônico mais usado, conforme visto em
Sumário
100
Viana (2020). Já é possível afirmar que murrada tem preferência pela anteposição
ao objeto quantificado, no que diz respeito à posição sintática. Observa-se, a seguir,
a possível origem do quantificador, que para chegar ao que se tem, hoje, passou por
um processo de escalaridade.
Figura 2: Processo de escalaridade do quantificador murrada

Fonte: Elaborada pelos autores.

A escalaridade de murrada se dá, basicamente, por meio de uma gradação


imposta pela necessidade de intensificação do primeiro termo. Um murro é um
mecanismo utilizado pelo falante para se referir a um soco com mais intensidade,
murrada seria, a priori, ainda mais intensificado. No entanto, só o último termo se
torna quantificador. É possível que, nestas passagens, o falante tenha dado uma
nova função ao termo, o que é muito provável, já que os intensificadores são consi-
derados como quantificadores presentes em contextos que envolvem grau.
LFM: “A época da safra é quando dá muito camarão, murrada de camarão... lá por abril,
maio, sempre dá uma safrazinha... tem lugar que os parceiro búia, eles pego porrada seca...”

No dado acima, o contexto envolve intensificação, já que murrada é utilizado


porque a necessidade do falante – de dar um grau maior a quantia – não foi suprida
pelo muito. Vale destacar que, mesmo o murrada passando pela intensificação, não
é utilizado como intensificador, visto que suas características são de quantifica-
dor. Os dados demonstram que murrada é usado em situações de intensificação da
quantificação, algo que confirma sua passagem pela área dos intensificadores. An-
tes de adentrar nas motivações de uso do quantificador, é interessante demonstrar
sua relação com outros vocábulos bem conhecidos, através do conceito de analogia,
proposto por Saussure (2012) e experimentada pela LFCU.
Figura 3: Analogia entre Murrada e Burrada

Fonte: Elaborada pelos autores.

A analogia demostrada na Figura 3 dá-se no âmbito das regularidades entre


as terminações das palavras originadas. A construção de murrada a partir de murro
é possível porque, na língua, já há outras palavras parecidas, como é o caso de burro
e burrada. Outra analogia que possibilita conferir à murrada a função de quantifi-
cação pode ser vista por meio do quantificador porrada, destacado por Salomão
(2010). Os dois quantificadores remontam a um mesmo esquema imagético, a sa-
ber: de uma ação produzida por um agente em direção a um paciente, vai-se, por-
tanto, de algo concreto para algo abstrato.
A motivação do quantificador murrada
Como se viu, a abstratização de murrada se deu por conta da necessidade de
dar novos sentidos ao quantificador, em outras palavras, houve uma reciclagem
Sumário
101
de um elemento para lhe dar novas funções. Na Figura 3, percebe-se que o termo
recrutado passou por um processo de iconicidade de quantidade, ou seja, o termo
derivado tem mais forma do que a originária, uma prova de que murrada seguiu as
regras de evolução da língua. O quantificador também é motivado por outros dois
subprincípios, já destacados, da iconicidade, presentes nos dados abaixo:
LFM: “conforme ía passando aquela micidade de chuva vinha caindo uma grande murrada
de vento, que dava só dessas porrada no lado do casco...”
MBM: “Ah, entendi... é assim, tem época do ano que não dá açaí avortado, aí, geralmente no
inverno né... já no verão já dá murrada... já dá mais avortado...”.

No dado de LFM, temos a iconicidade de proximidade, os termos uma e gran-


de são ligados a murrada no campo do sentido e da forma, já que os dois elementos
dão uma nova caracterização ao quantificador. Na frase de MBM, há a iconicidade
ordenação linear, em que a forma segue a sequência temporal dos fatos, para que se
chegue ao quantificador murrada. Como já afirmado, há uma correlação motivada
entre forma e função. Agora, voltar-se-á a abstratização ilustrada abaixo:
Figura 4: A abstratização e o processo de escalaridade de Murrada

Fonte: Elaborada pelos autores.

Nota-se que a realização de murrada tem relação com uma gradação na inten-
cionalidade do falante. A abstratização ocorre a partir do momento em que essa
escalaridade é posta em curso. Soco e murro são substantivos que designam ações,
esses atos são concebidos como concretos; quando se usa murrada não mais está
se falando de uma ação, mas de um quantificador, portanto, de algo que está no
plano do abstrato. Mas, levando em conta os dados e os conceitos já vistos, murra-
da, mesmo tendo novas funções, mantém traços de seu processo de escalaridade
(intensificação) e de seu início concreto, já que remete ao esquema imagético de
ação concreta.
Quadro 1: Situação comunicativa e relação quantificador-intensificação
Processo comunicativo Exemplos
Enfatizar a intensificação da MBM - “Tem vez que a gente dá uma lavada, pega mesmo... pega
quantia (4) murrada de carataru, traíra...”.
Como segundo termo, para
LFM - “A época da safra é quando dá muito camarão, murrada
intensificar a quantia pretendida
de camarão... lá por abril, maio, sempre dá uma safrazinha...”.
(3)
DRF - “era mina de... negoço de 200, 300 matapi, que eles
Situação intensificada para pescavam, e aí eles eram pouco pescador né... que não era igual
produção de novos sentidos (3) agora, que tu olha pra essas praia é murrada de pescador,
gente que não é nem daqui, pescando...”.
OF - “Bateu o mês de janeiro dá murrada, primeira enxurrada
Simples intensificação do elemento
vai desovar no lago, nosso peixe olha, é a pescada, u mapará, é u
na frase (2)
filhote, a sada, u piranambu, tudo esse peixe é nosso...”.
MBM - “tem vigiar quando a água tá seca... aí é arriscado, que é
Situação pouco intensificada (2) assim, aqui dá murrada de arraia, aí já sabe que se não ficar de
butuca nelas elas te ferram...”.
Fonte: Elaborado pelos autores.
Sumário
102
Os processos comunicativos descritos no Quadro 1, focalizam a motivação
de uso de murrada, dando ênfase a questão da mudança de funções em relação à
intensificação. Entende-se por “enfatizar a intensificação da quantia”, com quatro
ocorrências, todo dado que pretende unicamente a usar murrada para repassar ao
ouvinte que a quantia é enorme, sendo todo o enfoque da frase no quantificador.
Quando o locutor utiliza um termo, mas não alcança sua intenção, tende a se valer
de um segundo termo (iconicidade de quantidade) para suprir a necessidade co-
municativa, é o que ocorre no segundo dado, com os quantificadores muito e mur-
rada, tendo esse processo três ocorrências.
Há grande aceitabilidade pelos sujeitos de usar murrada quando se pretende
intensificar o quantificador para produzir novos sentidos, há três dados com essa
situação comunicativa. No caso do exemplo, só houve necessidade de se utilizar
murrada, porque o falante queria enfatizar sua insatisfação com a quantia exagera-
da de pescadores que não são da região, mas estão ali, se o entrevistado não tivesse
essa intenção, provavelmente não utilizaria murrada.
Com os dois últimos processos comunicativos, que somam quatro dados, há
uma ilustração do quantificador deixando de ter enfoque na intensificação. Em
“simples intensificação da frase”, embora o dado traga ainda intensidade, o locutor
não tem por finalidade focalizá-la, ou seja, murrada pode ser usado em frases com
pouca necessidade de expressividade no que tange a intensificação. Isto ocorre de
forma mais aguda no ponto “situação pouco intensificada’” em que o quantificador
murrada pode ser facilmente substituído por outro com sentido simples, como é o
caso de muito, sem que se perca o sentido pretendido.
Como se pode perceber, a intensificação presente na escalaridade, que ilus-
trou a emergência de murrada, continua a influenciar o quantificador. O mesmo
ocorre com a abstratização em que, mesmo mudando de função, o quantificador
mantém traços do sentido original. Estes traços de concreto são alguns dos res-
ponsáveis pela preferência de categorias para quantificar os elementos escolhidos
por murrada. Considerar-se-á as categorias elementos sólidos e entidade humana;
dos quatorze dados com este quantificador, doze foram para quantificar sólidos e
um para quantificar entidade humana (observe o exemplo com ‘murrada de pesca-
dor’), o que demonstra restrição de duas categorias, por estar ainda ligado ao seu
princípio de ação concreta.
Em relação aos contextos de variação, percebeu-se que o emprego da variante
“murrada” ocorre de forma não homogênea diante de elementos quantificáveis no
município de Oeiras do Pará, distribuídos em três categorias, a saber: elementos
sólidos, elementos líquidos e entidade humana. O Gráfico 1 ilustra essa discussão.
De acordo com o Gráfico 1, pode-se observar que a variante murrada é empre-
gada com maior frequência diante de elementos sólidos (93%); ao passo que diante
de entidade humana, houve um registro muito baixo (7%). Já diante de elementos
líquidos, a variante em questão não apresentou registro nos dados coletados.
Sumário
103
Gráfico 1: Distribuição davariante murrada

Fonte: Elaborado pelos autores.

Uma possível explicação para o emprego elevado da variante murrada diante


de elementos sólidos deve-se à natureza da motivação desse elemento como um
quantificador na língua, uma vez que ele passou por um processo de abstratização,
a considerar o percurso do concreto para o abstrato. Mesmo sendo abstrato, pare-
ce haver resquícios da noção de concreto nesse quantificador, o que motiva o seu
emprego com frequência elevada diante de elementos sólidos, os quais não deixam
de ser concretos.
Considerações finais
Levando em consideração os dois pontos de análises apresentados, pode-se
afirmar que a necessidade do falante é a principal causa de mudança do quantifi-
cador explanado. Esta afirmação só é possível porque se focou no estudo da língua
em uso, já que é pela melhora da comunicação que palavras ganham usos funcio-
nais. Este capítulo tratou dos quantificadores de um modo geral, depois apresentou
a gramática como uma estrutura maleável. E, por fim, baseando-se nestes pontos,
pôs-se a análise em curso.
Os resultados mostraram que murrada (não-canônico): (i) mantém uma rela-
ção analógica com outros termos da língua, como é o caso do também quantifica-
dor porrada (murrada de coisas/porrada de coisas); (ii) é derivado de um processo
de escalaridade, que ocorre por necessidade de expressividade (intensidade); (iii)
é resultado de uma abstratização, que passa de ação (concreto) para quantificador
(abstrato); (iv) o quantificador mantém traços do sentido original, relacionando
em extremo com a intensificação e preferindo categorias sólidas para quantificar.
Como já dito, a necessidade do falante se sobrepôs e, pelos dados, é possí-
vel observar que murrada é bem aceito quando se trata de quantificação na fala
dos moradores do município de Oeiras do Pará. Considera-se que os objetivos aqui
alcançados contribuem significativamente para a área da quantificação e para o
Sumário
104
registro, análise e valorização da língua falada do município, embora ainda haja
muito a ser explorado, já que esta área de estudo é tão rica e vasta.
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ESTUDOS LEXICAIS, CONTATO
LINGUÍSTICO E TRADIÇÃO ORAL
Variação lexical do item banguela
nas não capitais da Região Nordeste
do Projeto ALiB
Marcia de Souza Dias1
Regis José da Cunha Guedes2
Abdelhak Razky3

Resumo: A presente pesquisa teve como objetivo mapear e registrar a variação linguística do item lexical
banguela nas não capitais da Região Nordeste do Projeto Atlas Linguístico do Brasil – ALiB, seguindo os pa-
râmetros diatópico, diagenérico e diageracional, a partir do banco de dados do referido projeto. Este estudo
é embasado nos pressupostos teórico-metodológicos da Dialetologia e da Geolinguística (CARDOSO, 2010;
RAZKY, 1998; RADTKE, THUN, 1996). Com uma metodologia de base quantitativa, neste trabalho realizou-
-se o mapeamento de dados já coletados por pesquisadores do Projeto ALiB nas não capitais do Nordeste
do Brasil, obtidos por meio da aplicação de um Questionário Semântico-Lexical (QSL), aplicado a quatro
informantes por ponto de inquérito, estratificados por sexo, idade e nível de escolaridade. O mapeamento
da variação pluridimensional do referido item lexical demonstrou que a lexia banguela é predominante na
região, corroborando estudos realizados a partir do mesmo banco de dados, sobre as capitais brasileiras e
as não capitais das regiões Sudeste e Norte (GUEDES, DIAS, BRANDÃO, 2018; DIAS, GUEDES, RAZKY, 2019).
Palavras-chave: ALiB. Variação lexical. Item banguela.

Introdução
Nas últimas décadas, pesquisas voltadas ao estudo da variação geolinguística
têm ganhado cada vez mais ênfase em todo o território brasileiro, principalmente a
partir da criação do Projeto Atlas Linguístico do Brasil - ALiB, em 1996. Esse proje-
to surgiu devido à necessidade de registro e estudos de natureza dialetal em nosso
país, com o intuito de mapear e registrar os diversos falares brasileiros em um atlas
de abrangência nacional, apresentando a diversidade da língua portuguesa falada
no Brasil.

1  Graduanda em Letras pela Universidade Federal Rural da Amazônia - UFRA. E-mail: [email protected]
2  Doutor em Linguística pela Universidade Federal do Pará - UFPA. Professor na Universidade Federal Rural da Amazônia - UFRA.
E-mail: [email protected]
3  Doutor em Linguística pela Universidade de Toulouse. Professor na Universidade Federal do Pará - UFPA e na Universidade de
Brasília - UnB. E-mail: [email protected]
Sumário
107
Em 2014, foram lançados os dois primeiros volumes do ALiB, durante o III
Congresso de Dialetologia e Sociolinguística - CIDS, realizado em Londrina/PR.
Essa publicação é composta por dois volumes. O Volume I é constituído de estudos
e informações metodológicas e o Volume II apresenta 159 cartas linguísticas com
dados de 25 capitais brasileiras.
O presente estudo objetiva colaborar com o mapeamento da diversidade le-
xical presente no banco de dados do Projeto ALiB, visando à publicação dos próxi-
mos volumes do atlas.
Segundo Guedes (2012), a Geografia Linguística ou Geolinguística é a parte da
Dialetologia que busca localizar e registrar as inúmeras variações que ocorrem nas
línguas em uso. Trata-se de um método de cartografia criado pelos dialetólogos
que possibilita o registro dos resultados obtidos nos estudos linguísticos, tornando
possível a comparação com os resultados de outras localidades. Isso posto, é pos-
sível realizar o estudo e análise das variações identificadas na fala dos indivíduos
a partir do âmbito geográfico em que estão inseridos, por isso “acredita-se que a
geolinguística tem dado grandes contribuições para o estudo do léxico” (RAZKY;
SANCHES, 2016, p. 72).
Desse modo, o presente estudo representa uma contribuição ao trabalho de
triagem dos dados das não capitais do Projeto ALiB. O estudo do item lexical ban-
guela está sendo realizado pela equipe do Projeto GeoFala, da Universidade Fe-
deral Rural da Amazônia/Tomé-Açu, coordenado pelo professor Dr. Regis Guedes
(UFRA), sob a orientação do Dr. Abdelhak Razky (UFPA/UnB).
O estudo da variação lexical é relevante pelo fato de:
O léxico possibilitar a observação da leitura que uma comunidade faz de seu contexto e a
preservação de parte da memória sócio-histórica e linguístico- cultural da comunidade,
além de permitir o registro e a documentação da diversidade lexical e geolinguística do
português falado no Brasil (PAIM, 2012, p. 282).

O principal objetivo deste trabalho é mapear e registrar a variação linguística diató-


pica, diagenérica e diageracional do item lexical banguela nas não capitais da Região Nor-
deste do Brasil, a partir do banco de dados do Projeto Atlas Linguístico do Brasil - ALiB, a
fim de gerar maior aprofundamento nos estudos geolinguísticos e aprimorar o conheci-
mento sobre o português brasileiro. Para isso, objetivou-se, de forma específica: i) mapear
a pluralidade lexical presente na fala dos colaboradores da Região Nordeste do Brasil, nos
parâmetros diatópico, diagenérico e diageracional; ii) gerar uma carta linguística lexical
experimental do item banguela.

Metodologia
O presente trabalho adotou uma metodologia de base quantitativa, funda-
mentando-se no método geolinguístico, tendo em vista uma perspectiva geosso-
ciolinguística, a partir do qual se realizou um mapeamento geolinguístico de dados
pertencentes ao banco de dados do Projeto ALiB, em que foi considerada somente
a variação lexical do item banguela nas não capitais da Região Nordeste do Brasil.
O Quadro 1, a seguir, apresenta o perfil previsto pelo ALiB para a coleta de
dados, o qual define os requisitos necessários para a participação do informante
Sumário
108
na pesquisa. Para a obtenção dos dados das não capitais, realizaram-se entrevistas
com quatro colaboradores por ponto de inquérito, estratificados por sexo, idade e
escolaridade, como podemos observar:
Quadro 1: Estratificação dos informantes no ALiB – não capitais
Código Perfil
1. AM1 A – 18 a 30 anos / M – Masculino / Analfabetos até 9º ano (Ens. Fundamental)
2. AF1 A – 18 a 30 anos / F – Feminino / Analfabetos até 9º ano (Ens. Fundamental)
3. BM1 B – 50 a 65 anos / M – Masculino / Analfabetos até 9º ano (Ens. Fundamental)
4. BF1 B – 50 a 65 anos / F – Feminino / Analfabetos até 9º ano (Ens. Fundamental)
Fonte: Elaborado pelos autores.
Para fazermos a leitura do código de cada informante, considera-se que os
números de 1 a 4 dizem respeito à quantidade de colaboradores para cada cidade.
As letras A e B se referem à faixa etária dos informantes, sendo a primeira referente
aos mais jovens (A), àqueles que estão entre 18 a 30 anos, e a segunda, aos mais ve-
lhos (B), que estão entre 50 a 65 anos, totalizando 2 informantes do sexo masculino
(M) e 2 do sexo feminino (F).
O Quadro 2, a seguir, apresenta a rede de pontos de inquérito na Região Nor-
deste, totalizando 69 pontos de inquérito, dos quais cinco cidades ficaram sem ex-
posição dos resultados na presente pesquisa, por falta de acesso ao banco de da-
dos, a saber: Imperatriz (MA), Brejo (MA), Campina Grande (PB), Angicos (RN) e
Carmocim (CE).
Quadro 2: Localidades investigadas
ESTADO PONTOS
Alagoas União dos Palmares; Santana Do Ipanema;Arapiraca.
Juazeiro; Jeremoabo; Euclides da Cunha; Barra; Irecê; Jacobina; Barreiras;
Alagoinhas; Seabra; Itaberaba; Santo Amaro; Santana; Valença; Jequié;
Bahia
Caetité; Carinhanha; Vitória Da Conquista; Ilhéus; Itapetinga; Sta. Cruz
Cabrália; Caravelas.
Camocim; Canindé; Crateús; Crato; Iguatu; Ipu; Limoeiro; Quixeramobim;
Ceará
Russas; Sobral; Tauá.
Turiaçu; Brejo; Bacabal; Imperatriz; Tuntum; São João Dos Passos; Balsas;
Maranhão
Alto Parnaíba.
Paraíba Cuité; Cajazeiras; Itaporanga; Patos; Campina Grande.
Exu; Salgueiro; Limoeiro; Olinda; Afrânio; Cabrobó; Arcoverde; Caruaru;
Pernambuco
Floresta; Garanhuns; Petrolina.
Piauí Piripiri; Picos; Canto Do Buriti; Corrente.
Rio Grande do
Mossoró; Angicos; Pau Dos Ferros; Caicó.
Norte
Sergipe Propriá; Estância.
Fonte: Elaborado pelos autores.
Para a realização da coleta de dados foi utilizado um Questionário Semântico-Lexical
(QSL) constituído de 202 perguntas, distribuídas em 14 campos semânticos:  acidentes
geográficos (6 questões), fenômenos atmosféricos (15 questões), astros e tempo (17) ati-
vidades agropastoris (25), fauna (25), corpo humano (32), ciclos da vida (15), convívio e
comportamento social (11), religião e crenças (8), jogos e diversões infantis (13), habita-
ção (8), alimentação e cozinha (12), vestuário e acessórios (6) e vida urbana (9) (COMITÊ,
2001). O item lexical banguela, objeto de análise deste estudo, pertence ao campo semân-
tico corpo humano, do Questionário Semântico-Lexical do ALiB (QSL). Procurou-se obter
as denominações para “a pessoa que não tem dentes” (Pergunta de número 100 do QSL).
Sumário
109
A partir dos arquivos sonoros do banco de dados do ALiB, realizamos a tria-
gem dos dados referentes às variantes do item lexical banguela. Na fase seguinte,
realizamos a transcrição grafemática de todas as respostas encontradas, que foram
inseridas uma planilha do Excel 2010, identificando a localidade e o perfil do in-
formante. Em seguida, somou-se a quantidade de respostas obtidas, bem como o
percentual para cada variável encontrada na Região Nordeste.
Após esse processo, elaboramos uma carta linguística experimental como for-
ma de registrar os resultados alcançados em nível diatópico, que foi cartografada
com a utilização do Adobe Photoshop CC 2018 e do PowerPoint 2010. Também
foram elaborados gráficos, tabelas e quadros, representativos, do número total das
variáveis encontradas e dos percentuais das variações que ocorreram de acordo
com os parâmetros da pesquisa pluridimensional. E, por fim, realizamos uma dis-
cussão dos resultados obtidos.
Resultados e Discussão
A partir dos dados coletados e disponibilizados pela equipe do Projeto Atlas
Linguístico do Brasil - ALiB, foi possível realizar uma breve discussão a respeito da
variação lexical do item banguela presente nas não capitais da Região Nordeste do
Brasil.
Dessa maneira, apresentamos, no Gráfico 1, a quantificação de todas as 265
respostas obtidas, a partir da triagem dos dados coletados, bem como, o total de
ocorrências das variantes registradas.
Gráfico 1: Número de ocorrências para cada variante registrada na Região Nordeste.

Fonte: Elaborado pelos autores.

Foram identificadas 14 variantes para o item banguela: banguela, desdentado,


sem dente, boca murcha, boca mole, boca de babalu, pneu, desprovida de dente,
porteirinha, boca de sovaco, boca funda, boca lisa, martelo e boca fura. Desse modo,
de acordo com o Gráfico 1, podemos observar que, dentre as variantes encontra-
das, a predominante é a lexia banguela, correspondendo a um número de 214 ocor-
rências, do total de 265 respostas.
Na sequência, temos outras duas variantes que ganharam destaque nos fala-
res dos informantes da Região Nordeste: “sem dente” e “desdentado”, atingindo um
total de 20 e de 17 ocorrências, respectivamente. Já as variantes “boca murcha” e
“boca mole” obtiveram um menor índice de ocorrências, 3 e 2 (duas) ocorrências,
Sumário
110
respectivamente,. As outras 9 variantes encontradas tiveram um registro ainda me-
nor que as demais, sendo, cada uma, registrada como ocorrência única.
Desse modo, pode-se afirmar então que a variante banguela demonstrou pre-
domínio no falar nordestino, conforme o esperado, tendo em vista estudos realiza-
dos por nós anteriormente, a partir do banco de dados do Projeto ALiB (GUEDES,
DIAS, BRANDÃO, 2018; DIAS, GUEDES, RAZKY, 2019). Podemos melhor identificar
essa preponderância observando o Gráfico 2 abaixo, que demonstra, de forma re-
presentativa, o percentual atingido por cada lexia identificada.
Gráfico 2: Percentual das variáveis registradas na Região Nordeste

Fonte: Elaborado pelos autores.

Para a elaboração do Gráfico 2, consideramos as variantes mais recorrentes


na fala dos colaboradores da presente região aqui analisada. As demais variantes,
com menor índice de ocorrência, estão agrupadas na legenda “Outras”, e assim se-
guirá para os próximos gráficos a serem apresentados nesse estudo.
A carta experimental, Figura 1, nos possibilita identificar, de forma mais pre-
cisa, essa distribuição diatópica das variantes referentes à lexia banguela, registra-
das em cada ponto de inquérito.
Figura 1: Carta experimental

Fonte: Elaborado pelos autores.


Sumário
111
O gráfico presente na Figura 1, representa o número de ocorrências para cada
lexia registrada, como citado anteriormente. Já a Tabela 1, abaixo, demonstra o per-
centual obtido por cada uma das variantes mais recorrentes nos estados da Região
Nordeste. Assim, notamos que a lexia banguela é predominante entre as variantes
registradas, tanto se tomados os dados por estado, individualmente, ou conside-
rando a Região Nordeste de modo geral.
Tabela 1: Percentual para cada variante de acordo com o espaço geográfico dos informantes
PERCENTUAL DAS LEXIAS OBTIDO EM CADA ESTADO
Sem Boca
Banguela Desdentado Outras
dente murcha
Alagoas 100% - - - -
Bahia 84% 2% 9% 1% 4%
Ceará 86% 9% 3% - 2%
Maranhão 46% 25% 14% 4% 11%
Paraíba 93% - - - 7%
Pernambuco 86% 4% 5% - 5%
Piauí 56% 13% 25% 6% -
Rio Grande do Norte 82% - 9% - 9%
Sergipe 100% - - - -
Fonte: Elaborada pelos autores.

Além de destacar esse predomínio em todos os estados, é relevante frisar que


nos estados de Alagoas e Sergipe, a variante banguela atingiu 100% das respostas,
ou seja, não foi registrada nenhuma outra variante nessas localidades, conforme a
Figura 1 e Tabela 1, expostas anteriormente.
No entanto, nos demais estados foram registradas pelo menos duas lexias dis-
tintas, como é o caso do estado da Paraíba, destacando a variante banguela, com
93% do total de respostas, enquanto que as demais variantes encontradas equiva-
lem apenas a 7% de ocorrência na fala dos colaboradores.
Por outro lado, na Bahia e no Maranhão houve registro das variantes com
maior índice de ocorrência na região (banguela, desdentado, sem dente e boca
murcha), bem como de variantes que registraram poucas ocorrências. Todavia,
vale ressaltar que apenas no estado do Maranhão a variante banguela não chegou
a atingir um percentual acima de 55%, como aconteceu nos demais estados, alcan-
çando apenas 46%.
Já no Ceará e em Pernambuco, não houve registro para boca murcha, mas ape-
nas as lexias banguela, desdentado e sem dente, bem como outras variantes com
menos ocorrência nos falares dos informantes da região. Em ambos os estados, a
variante banguela chegou a alcançar um percentual de 86% do total de respostas
registradas.
No estado do Piauí, por sua vez, houve ênfase para as principais variantes
encontradas na Região Nordeste. Contudo, no Rio Grande do Norte não houve re-
gistro das variantes desdentado e boca murcha, registrando-se apenas as variantes
banguela, com 82%, sem dente, com 9%, e 9% para as demais lexias identificadas
nos falares nordestinos.
Sumário
112
Quanto ao estudo da variável diagenérica (sexo) e diageracional (idade), re-
ferente às respostas obtidas na região mapeada neste estudo, obtivemos o seguin-
te gráfico, representativo a das ocorrências da lexia “banguela” (214 ocorrências),
tendo em vista a sua predominância.
Gráfico 3: Variável diagenérica e diageracional para lexia banguela

Fonte: Elaborado pelos autores.

Como se pode observar, em referência à variável diagenérica, a variante ban-


guela ficou mais evidente no falar dos informantes do sexo masculino (109 ocor-
rências) do que do sexo feminino (105 ocorrências), o que ocorre também na re-
presentação dos falares dos colaboradores mais jovens, conforme aponta o Gráfico
3.
A lexia desdentado aparece com maior frequência nos falares das mulheres
mais velhas, enquanto que a variante sem dente apresentou percentual equivalen-
te para ambos os sexos, porém a ocorrência de sem dente, no nível diageracional,
esteve mais presente entre os informantes da segunda faixa etária.
Para a variante boca murcha, as ocorrências se deram com maior percentual
entre os colaboradores do sexo feminino. Já do ponto de vista diageracional, ocor-
reu o contrário, com maior índice de recorrência entre o sexo masculino.
Por fim, as demais lexias registradas, com menos ocorrências, evidenciaram-
-se mais no falar dos homens mais velhos.
Considerações finais
Neste trabalho, realizou-se o mapeamento da variação lexical do item ban-
guela nas não capitais da Região Nordeste, a partir do corpus do Atlas Linguístico
do Brasil – ALiB, no qual foi possível realizar a confecção de uma carta experimen-
tal, como registro dos resultados obtidos em nível diatópico. Prevendo um estudo
pluridimensional, também trabalhamos a variação lexical nos níveis diagenérico
(sexo) e diageracional (idade), que foi registrada a partir do Gráfico 3, consideran-
do o número de ocorrências registradas para a lexia banguela, uma vez que essa
variante se mostrou mais produtiva entre os colaboradores nordestinos, e, aparen-
temente, segue uma tendência que se estende por todo o território nacional.
Sumário
113
Os resultados também apontam que a lexia banguela ocorreu com maior fre-
quência, em nível diagenérico, na fala dos homens. Em nível diageracional, predo-
minou nos falares dos colaboradores da primeira faixa etária.
A continuação da triagem desse item lexical nas demais regiões dispostas no
Projeto ALiB, bem como nas capitais, possibilitará uma visão geral da variação des-
se item lexical em todo o território nacional.
Referências
CARDOSO, S. A. Geolinguística: tradição e modernidade. São Paulo: Parábola, 2010.
COMITÊ DO ALiB. Questionários. Comitê Nacional do Projeto ALiB – Atlas Linguístico do Brasil. Londrina:
UEL, 2001.
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VIII Seminário de Geossociolinguística - SEGEL, 2020, Belém. Anais do VIII Seminário de Geossocioterminolo-
gia - SEGEL. Belém: UFPA, 2019. v. 1. p. 100-116.
GUEDES, R. J. da C. Estudo Geossociolinguístico da variação lexical na zona rural do estado do Pará. Disserta-
ção (Mestrado em Letras). Instituto de Letras e Comunicação, Universidade Federal do Pará, 2012.
GUEDES, R. J. C.; DIAS, M. S.; BRANDAO, J. L. Variação do item banguela nas não capitais da região sudeste
do projeto ALIB. In: VI CIELLA - Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia,
2018, Belém. VI CIELLA - Caderno de Resumos: Estudos Linguísticos, 2018. v. 1. p. 50-51.
PAIM, M. M. T. A variação diageracional nos dados do Projeto ALiB. In: CARDOSO, S. A. MOTA, J. A.; PAIM, M.
M. T. (Orgs.). Documentos 3: projeto atlas linguístico do Brasil. Salvador: Vento Leste, 2012. p. 281-302.
RADTKE, E.; THUN, H. Dialectologia pluridimensionalis romanica. Kiel: Westensee-Verlag, 1996.
RAZKY, A. O Atlas Geo-Sociolinguístico do Pará: abordagem metodológica. In: AGUILERA, V. de A. (Org.). A
geolinguística no Brasil: caminhos e perspectivas. Londrina: Eduel, 1998, p. 155-164.
RAZKY, A; SANCHES, R. D. Variação geossocial do item lexical riacho/córrego nas capitais brasileiras. Grago-
atá, Niterói, n. 40, p. 70-89, 1. sem. 2016.
Faixa com listras coloridas e
curva no céu, chuva fina e terra
umedecida pela chuva nos dados do
Atlas Linguístico do Brasil - ALiB:
Variação semântico-lexical
Genivaldo da Conceição Oliveira1

Resumo: Este trabalho apresenta os resultados da análise das denominações registradas, nos estados da
Bahia e do Paraná, no campo semântico fenômenos atmosféricos com o objetivo geral de colaborar para um
melhor conhecimento do Português Brasileiro, tal como se apresenta nas cidades que constituem a rede de
pontos do Atlas Linguístico do Brasil - ALiB nesses dois estados. Baseamos nosso estudo nos princípios teó-
ricos da Dialetologia, Sociolinguística, Lexicologia e Lexicografia. O corpus está conformado por um extrato
dos dados do ALiB constituído das perguntas 17 a 19 do Questionário Semântico-Lexical - QSL e se utiliza
do método da Geolinguística para a análise espacial dos dados. Enfatizamos o aspecto diatópico, contudo,
recorremos, de maneira periférica, à análise de outras variáveis como a diastrática e a diageracional.
Palavras-chave: Dialetologia. Geolinguística. Sociolinguística. Variação.

Introdução
A variedade linguística depende de variedades geográficas ou diatópicas,
bem como de variedades socioculturais. As variedades diatópicas acontecem em
um plano horizontal da língua e se originam dos dialetos ou falares locais, que se
mostram por meio de uma linguagem aparentemente comum do ponto de vista
geográfico. Estas variedades se distinguem em linguagem urbana e a linguagem
rural. A linguagem urbana é influenciada por fatores culturais como a escola, meios
de comunicação de massa e literatura e está mais próxima da linguagem comum.
A linguagem rural é mais isolada e conservadora e vem desaparecendo com a che-
gada da civilização. A Dialetologia e a Geografia Linguística tem se empenhado em
catalogar e analisar as particularidades linguísticas de comunidades rurais. As va-

1  Mestre em Linguística pela Universidade do Texas, em Austin, USA. Doutor em Língua e Cultura pela Universidade Federal da Bahia -
UFBA. Professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia - UFRB. E-mail: [email protected].
Sumário
115
riedades socioculturais surgem em um plano vertical dentro de uma comunidade
urbana ou rural e podem estar atreladas a fatores relacionados ao falante – ou ao
grupo a que pertence ou à situação ou a ambos ao mesmo tempo.
Este estudo investiga a relação entre o léxico referente à área semântica fenô-
menos atmosféricos documentada no estado da Bahia e no estado do Paraná, com
base no corpus do Atlas Linguístico do Brasil - ALiB a partir de dados de 164 infor-
mantes, distribuídos da seguinte maneira: 16 nas duas capitais, 84 nas cidades do
interior da Bahia e 64 nas cidades do interior do Paraná. Nesta pesquisa, analisa-
mos as respostas das questões 17 a 19 do Questionário Semântico-Lexical - QSL
do ALiB. Identificamos e estabelecemos as semelhanças e diferenças encontradas
neste recorte estudado nos dois estados com base teórica na abordagem apresen-
tada pela Geolinguística. Utilizamos, também, pressupostos teóricos da Dialetolo-
gia, Sociolinguística e Lexicologia. Analisamos esse recorte do ALiB entre a Bahia
e o Paraná, dois estados brasileiros que não apresentam contiguidade geográfica e
exibem tipos de povoamento diferentes, para observar se o léxico fornecido pelos
informantes apresentam mais homogeneidade ou heterogeneidade.
Dialetologia e seu percurso histórico: uma breve análise
A Dialetologia identifica, situa e descreve os usos diferentes em que a língua
varia de acordo com sua disposição espacial, histórica e sociocultural, responden-
do a um pensamento mais amplo, pois, como afirma Cardoso (2010, p. 27):
O interesse pelo estudo da diversidade de usos da língua e a evidência de certa preocu-
pação universal com as diferenças dialetais perpassam a história dos povos em todos os
momentos, ora como simples constatação, ora como instrumento político, ora como meca-
nismo de descrição das línguas.

A Dialetologia é, como a própria palavra sugere, o estudo dos dialetos. Na lin-


guagem coloquial, diz-se que um dialeto é uma língua não padrão, que geralmente
se associa a grupos que não ostentam prestígio ou uma língua que não tem tradição
escrita. Entretanto, Chambers e Trudgill (1994, p. 19) não aprovam estes conceitos
e dizem que “todos os falantes são falantes de, pelo menos, um dialeto”2 e que a
forma padrão de uma língua constitui-se em si um dialeto. Esta definição, contudo,
esbarra em um problema: como distinguir língua de dialeto? Estes autores afir-
mam que uma língua é um conjunto de dialetos mutuamente inteligíveis, embora
salientem que tal definição não seja totalmente satisfatória porque esta tal inteligi-
bilidade nos traz alguns problemas. Eles citam as línguas norueguesa, sueca e dina-
marquesa como três línguas distintas, mas mutuamente inteligíveis. Em contrapar-
tida, a língua alemã, considerada como uma única língua, apresenta problemas de
comunicação entre os diferentes falantes do alemão, usuários de distintos dialetos.
A inteligibilidade entre as línguas escandinavas apresenta graus para mais ou para
menos e pode não se apresentar igual nas duas direções.
Segundo Chambers e Trudgill (1994), os dinamarqueses, por exemplo, enten-
dem melhor os noruegueses do que os noruegueses conseguem entender os dina-
marqueses. Neste sentido, comparamos o português brasileiro e o espanhol falado
2   “… todos los hablantes lo son al menos de un dialecto...”. Tradução nossa.
Sumário
116
na América Latina. É muito comum escutar um falante do espanhol reclamar que
não entende o brasileiro ao passo que se escuta um brasileiro dizer que entende
claramente o espanhol. A inteligibilidade entre línguas apresenta estes problemas,
além da exposição dos ouvintes a outra língua, o nível de escolaridade, bem como o
esforço que estes podem fazer para entender a outra língua. Apesar de todas estas
observações, parece claro que o norueguês, o dinamarquês, o sueco, o alemão, o
português brasileiro e o espanhol são línguas distintas, por razões políticas, geo-
gráficas, históricas, sociológicas e culturais, bem como por razões linguísticas.
Chambers e Trudgill (1994) também traçam um paralelo entre o conceito de
dialeto e sotaque. Para eles, sotaque tem a ver com a forma que um falante pronun-
cia a língua e, portanto se aplica à variedade fonética ou fonológica da língua. Por
outro lado, dialeto, refere-se às variedades que são diferentes do ponto de vista
gramatical ou lexical, além do fonológico. Contudo, eles esclarecem que os sotaques
e os dialetos frequentemente se fundem uns com os outros sem que tenham uma
separação definida. Estes autores afirmam que, embora estas observações acerca
de diferenças dialetais sejam muito comuns, o estudo dos dialetos só começa de
maneira sistemática na segunda metade do século XIX.
Finch (2000, p. 215)3 afirma que um “dialeto é uma variedade linguística res-
trita a um espaço geográfico com formas sintáticas e itens vocabulares distintos”.
Para ele, geralmente, “distingue-se de sotaque; o qual se refere apenas a aspectos
de pronúncia, embora em algumas ocasiões, o dialeto vagamente inclui o sotaque”.
Muitos dialetos são regionais em sua origem e pertencem a uma área específica.
Como podemos ver, há confluência de ideias sobre a acepção de dialeto entre
Finch (2000) e Chambers e Trudgill (1994). Finch (2000) acrescenta que a Dia-
letologia mudou seu foco do estudo sobre dialetos tradicionais para o estudo dos
dialetos modernos, urbanos. Segundo ele, um dos nomes mais importantes tem
sido o do sociolinguista americano William Labov, cujo trabalho inicial sobre a fala
de novaiorquinos influenciou uma geração de sociolinguistas.
A Dialetologia era vista nos seus primórdios sob uma perspectiva preponde-
rantemente diatópica. Os primeiros estudos dialetológicos eram predominante-
mente focalizados dentro de um espaço e tinham uma abordagem monodimensio-
nal. Aos poucos, a monodimensionalidade foi perdendo sua hegemonia para um
estudo mais pluridimensional. De acordo com Cardoso (2010, p. 15), a “Dialetologia
é um ramo dos estudos linguísticos que tem por tarefa identificar, descrever e situ-
ar os diferentes usos em que uma língua se diversifica, conforme a sua distribuição
espacial, sociocultural e cronológica”. O estudo dialetológico obedece a três passos
importantes: identificar, descrever e situar a variação linguística. Após a realização
do primeiro passo, que é a identificação do fenômeno linguístico, passa-se a des-
crevê-lo fazendo o levantamento das variantes. Descrever é enumerar as variantes
lexicais possíveis e que tenham o mesmo valor de verdade, como em macaxeira,
aipim e mandioca. A Dialetologia inventaria, sistematiza e descreve estas variações.

3  “Dialect is a geographically based language variety with distinct syntactic forms and vocabulary items”. “It’s usually distinguished
from accent, which refers solely to features of pronunciation, although on occasions dialect is loosely used to include accent”. Tradução
nossa.
Sumário
117
Chambers e Trudgill (1994, p. 139) afirmam que uma das maiores preocupa-
ções da Dialetologia tradicional ou Geografia Linguística tem sido a determinação
de isoglossas, dos limites entre duas regiões que diferem em algum traço linguís-
tico entre si. Ao analisar o significado literal de isoglossa “iso → igual” e “glossa →
língua”, eles observam que isoglossa, supostamente, “quer expressar o fato de que
uma linha traçada através de uma região mostrará duas áreas em cada uma das
quais coincide algum aspecto do uso linguístico, mas que difere uma da outra”4.
Ferreira e Cardoso (1994) observam que um feixe de isoglossas demarca um
dialeto. É, portanto, um conjunto de isoglossas que se somam e exibem uma relativa
homogeneidade dentro de uma comunidade linguística em confronto com outras.
Elas adicionam que, devido a esta relativa homogeneidade, podemos crer que não
há limites rígidos entre as línguas, uma vez que toda língua histórica é constituída
por um conjunto de dialetos. Isto corrobora o pensamento de Chambers e Trudgill.
O espaço físico exibe variedades linguísticas que ocorrem de uma região para
outra. O interesse por este tipo de informação não está apenas em registrar dados
intercomparáveis, mas também em registrar a ausência de tais dados. Podemos,
então, dizer que são intercomparáveis tanto os dados presentes em uma região
e outros presentes em outras, como também os dados existentes em uma região
comparados à sua ausência em outra.
Com base em Cardoso (2010), observamos que há duas características impor-
tantes na origem da Dialetologia independentemente do princípio metodológico
usado. A primeira característica é o reconhecimento das diferenças ou das seme-
lhanças que a língua transmite. Outra característica é o estabelecimento das rela-
ções entre as diversas manifestações linguísticas documentadas ou entre elas e a
ausência de dados registrados, circunscritos a espaços e realidades prefixados.
A Dialetologia não pode desconsiderar fatores extralinguísticos, próprios do
falante, da mesma maneira que não pode desconsiderar as implicações que estes
fatores acarretam nos atos da fala. De maneira que idade, sexo, escolaridade e ca-
racterísticas socioculturais se tornam elementos de pesquisa que convivem com a
busca de identificação de áreas dialetais. Neste ponto, é possível ver uma conflu-
ência de propósitos entre a Dialetologia e a Sociolinguística uma vez que ambas as
disciplinas estudam a variação linguística. Portanto, os enfoques diatópico e socio-
linguístico estão presentes tanto na Dialetologia quanto na Sociolinguística. Toda-
via, o que as distingue é a forma de tratar os fenômenos e a perspectiva que cada
uma imprime à abordagem dos fatos linguísticos.
A Dialetologia tem como base da sua descrição a localização espacial dos fatos
estudados, demonstrando seu caráter eminentemente diatópico, embora considere
fatores sociais. Por outro lado, Cardoso (2010, p. 26) observa que “a Sociolinguísti-
ca centra-se na correlação entre fatos linguísticos e os fatores sociais, priorizando
as relações sociolinguísticas” embora estabeleça a intercomparação entre dados do
ponto de vista espacial. A Dialetologia tem duas diretrizes que são “a perspectiva
diatópica e o enfoque sociolinguístico”.
4   “Presumiblemente quiere expresar el hecho de que una línea trazada a través de uma región mostrará dos áreas em cada uma de las
cuales coincide algún aspecto del uso linguístico, pero que difiere una de la otra” (Tradução nossa).
Sumário
118
Ao longo do século XVIII, alguns trabalhos começam a construir os caminhos
da Dialetologia. Um desses trabalhos é realizado pelo abade Grégoire que realiza na
França em 1790 uma enquete com a finalidade de conhecer os patois. Contudo, é no
século XIX, que os rumos da Dialetologia e de seu método geolinguístico são deline-
ados. Cardoso (2010) menciona vários trabalhos que ajudaram a construir os ca-
minhos da Dialetologia. Vale citar a publicação, em 1841, por Bernardino Biondelli,
do Atlas Linguistique de L’Europe, inspirado no Atlas Ethnographique du Globe de
Adrien Balbi (1826).
No Brasil, a história da Dialetologia é marcada pela presença de estudiosos
como Amadeu Amaral e Antenor Nascentes que publicaram alguns dos primeiros
trabalhos sobre a Dialetologia brasileira. Ferreira e Cardoso (1994, p. 37), tomando
por base a divisão em duas fases realizada por Nascentes, observam que “podemos
dividir a história dos estudos dialetais em três grandes fases”.
A primeira fase compreende o período de 1826 a 1920, que culmina com a
publicação de O dialeto caipira de Amadeu Amaral. A tônica deste período foi o
estudo do léxico relativo ao português do Brasil e a criação de vários dicionários,
vocabulários e léxicos de caráter regional. Dentre eles, podemos citar o Dicionário
da língua brasileira com o uso de nomes próprios do Brasil, de Luís Maria Silva, em
1832 e o Vocabulário popular de P. H. Souza Pinto em 1912 que mostra regionalis-
mos do estado de Minas Gerais. Ferreira e Cardoso (1994) afirmam que a segunda
fase se inicia com a publicação de O dialeto Caipira de Amadeu Amaral. Neste pe-
ríodo, há um grande número de trabalhos que tratam da gramática, embora haja
também vários de cunho lexicográfico. Desta segunda fase, podemos destacar dois
trabalhos iniciais: O dialeto caipira em 1920, como já mencionamos, e O linguajar
carioca de Antenor Nascentes em 1922.
Em O dialeto caipira, Amadeu Amaral chama a atenção para a pesquisa in loco
para dissipar falsas hipóteses e conclusões que não refletiam a verdadeira realida-
de linguística. Ele traça, para futuros pesquisadores da Dialetologia, passos básicos
para um trabalho mais criterioso: a observação imparcial, sistemática no trabalho,
a retratação fiel da realidade a partir do que as amostras coletadas permitiam e
a verificação pessoal dos fatos para eliminar tudo que fosse hipotético e incerto.
Amadeu Amaral abriu, assim, o caminho para os estudos dialetais no Brasil com
linhas gerais para um estudo monográfico de uma região. Antenor Nascentes, em O
linguajar carioca, começa traçando linhas gerais para a compreensão do português
brasileiro que ele chama de o falar brasileiro e situa o linguajar carioca neste grupo.
Para Nascentes (1953), a enorme extensão territorial do Brasil, sem fáceis meios
de comunicação interior, quebrou a unidade do falar, fragmentando-o em subfala-
res. Esta fragmentação é também influenciada pelo modo diferente de povoamento
de cada região. É palpável a diferença entre a fala cantada do nortista e a fala des-
cansada do sulista. A estas obras O dialeto caipira e O linguajar carioca, podemos
adicionar tantas outras nesta segunda fase, como o Vocabulário gaúcho de Roque
Callage em 1926 e O vocabulário pernambucano, de Pereira da Costa, em 1937 que
enfocam o léxico regional, seguindo a linha dominante na fase anterior.
Sumário
119
A terceira fase se inicia em 1952 e se distingue pela elaboração de trabalhos
baseados em corpus constituído de forma sistemática e surge, então, neste momen-
to, a preocupação com a execução e desenvolvimento dos estudos da Geolinguística
no Brasil e com a produção de um atlas linguístico do Brasil. Nesse sentido, o gover-
no brasileiro toma a iniciativa de atribuir à Comissão de Filologia, da recém-criada
Casa Ruy Barbosa, por meio do decreto 30.643, à responsabilidade pela produção
do atlas linguístico do Brasil. A terceira fase da história dos estudos dialetais tem,
assim, como marca identificadora, o começo dos estudos sistemáticos no campo da
Geografia Linguística. Entretanto, Mota (2006) complementa a proposta de Ferrei-
ra e Cardoso (1994) com uma quarta fase. Esta quarta fase começa com a retomada
do Projeto Atlas Linguístico do Brasil em 1996. Essa nova fase coincide com a incor-
poração dos princípios implementados pela Sociolinguística, a partir da década de
60 do século XX, abandonando-se a visão monodimensional que era predominante
na Geolinguística que atualmente chamamos de tradicional. Cardoso (2009) ob-
serva que é importante reiterar que a implantação do Projeto Atlas Linguístico do
Brasil em 1996 é o marco mais significativo para estabelecer esta quarta fase dos
estudos dialetológicos, atrelados ao estudo da variação linguística, que transcende
limites geográficos e está presente em todas as comunidades de fala.
Variação Linguística
Formas linguísticas em variação estão presentes em todas as comunidades de
fala. Estas formas são chamadas de variantes que são, na verdade, maneiras dife-
rentes de falar a mesma coisa no mesmo contexto e com o mesmo valor de verda-
de. Estas variantes, por sua vez, estão sempre competindo dentro da comunidade
de fala à qual pertencem. Desta maneira, temos as variantes padrão e não-padrão,
aquelas que são conservadoras contra as que são inovadoras e as variantes que re-
cebem algum tipo de estigma em oposição àquelas de prestígio. Geralmente, uma
variante padrão é considerada conservadora e possui maior importância sociolin-
guística dentro da comunidade. Em contrapartida, uma variante inovadora tende
ser não-padrão e é, portanto, estigmatizada pelos falantes da comunidade a que
pertence. A título de ilustração, trazemos a presença do segmento fônico /s/ como
marca de plural no sintagma nominal que é a forma padrão, conservadora e, por-
tanto, de prestígio. Ao passo que a não marcação do plural /s/ no sintagma nominal
é estigmatizada.
Labov (2008, p. 260) observa que “no curso da evolução linguística, a mudan-
ça caminha para se completar, e regras variáveis se tornam invariantes. Quando
isso acontece, há outra mudança estrutural que compensa a perda de informação
envolvida”. Isto significa dizer que se uma regra variável for constante, ela oferece
aos aprendizes da língua informação suficiente para manter as distinções básicas
e as formas subjacentes. Portanto, nem tudo que varia sofre mudança, mas toda
mudança linguística pressupõe variação uma vez que mudança é variação. Para
Coseriu (1979, p. 64), a língua não muda completamente, porque se refaz. O falante
não cria integralmente a sua expressão, mas utiliza o sistema que lhe é oferecido
pela comunidade, além disso, aceita também a realização que a norma tradicional
Sumário
120
lhe fornece. Ele não inventa totalmente sua expressão, mas utiliza modelos ante-
riores porque este indivíduo é um ser histórico e porque a língua pertence a sua
historicidade. Isto quer dizer que a expressão que é usada pelo falante tem uma
história que a precede.
A diversidade linguística está relacionada não apenas com a questão territo-
rial, mas também com a questão da desigualdade social. Bagno (2000) observa que:
No Brasil, embora a língua falada pela grande maioria da população seja o português, esse
português apresenta um alto grau de diversidade e de variabilidade, não só por causa da
grande extensão territorial do país – que gera as diferenças regionais, bastante conhecidas
e também vítimas, algumas delas, de muito preconceito- mas principalmente por causa da
trágica injustiça social que faz do Brasil o segundo país com a pior distribuição de renda
em todo mundo. São essas graves diferenças de status social que explicam a existência, em
nosso país, de um verdadeiro abismo linguístico entre falantes das variedades não-padrão
de português brasileiro – que são a maioria de nossa população – e os falantes da (suposta)
variedade culta, em geral mal definida, que é a língua ensinada na escola (BAGNO, 2000, p.
16).

Idade, sexo, raça (ou cultura), profissão, posição social, grau de escolaridade
são alguns dos fatores que desencadeiam variedade linguística. Para Preti (2003),
as variantes decorrentes de faixas etárias, considerando o locutor adulto, restrin-
gem-se mais ao vocabulário. Para ele, a chamada linguagem jovem se refere a um
vocabulário gírio, cujos limites são meio vagos. Este autor diz que a oposição entre
a linguagem do homem e a linguagem da mulher pode indicar diferenças evidentes,
sobretudo no léxico por conta de tabus morais. Contudo, ele aponta que essa oposi-
ção vem perdendo sua significação, especialmente nas cidades grandes, porque os
meios de comunicação de massa, o teatro, a transformação dos costumes e padrões
morais têm exercido um papel nivelador expressivo. Outro fator é a profissão do in-
divíduo que funciona no campo da linguagem técnica em que os falantes usam um
vocabulário condizente com sua atividade. Além disso, a posição social requer que
o falante tenha um cuidado especial com a linguagem que usa visando ter destaque
dentro do grupo em que atua.
No momento em que nos referimos aos fatores que ocasionam o surgimen-
to de variantes linguísticas, apontamos sempre que tais fenômenos ocorrem den-
tro de uma comunidade de fala, que é assim conceituada por Moreno Fernandez
(1998):
Uma comunidade de fala é formada por um conjunto de falantes que compartilham efe-
tivamente, pelo menos, uma língua, contudo, além disso, compartilham um conjunto de
normas e valores de natureza sociolinguística: compartilham as mesmas atitudes linguísti-
cas, as mesmas regras de uso, um mesmo critério na hora de valorizar socialmente os fatos
linguísticos, os mesmos padrões sociolinguísticos. Os membros de uma comunidade de fala
são capazes de se reconhecerem quando compartilham opiniões sobre o que é vulgar, o
que é familiar, o que é incorreto, o que é arcaizante ou antiquado. Por isso, o cumprimento
das normas sociolinguísticas que obriga o pertencimento a uma comunidade pode servir
de marca diferenciadora, de marca de grupo, e por isto os membros de uma comunidade
costumam acomodar seu discurso a normas e valores compartidos. Uma comunidade de
Sumário
121
fala é basicamente uma comunidade de consenso, de sintonia entre grupos e indivíduos
diferentes, onde conflitos são minimizados (MORENO FERNÁNDEZ, 1998, p. 19-20)5.

A variação linguística acontece em diversos níveis da fala dentre os quais a


variação fonética e fonológica parece ser a mais estudada e, portanto, mais conhe-
cida. As variantes de um fonema, geralmente, não supõem nenhuma mudança de
significado. A variação gramatical, ou seja, morfológica e sintática, tal qual a foné-
tico-fonológica, pode ocorrer por conta de fatores linguísticos ou pela combinação
destes com os fatores sociais. De modo autoexplicativo, as variáveis morfológicas
afetam elementos da morfologia, cuja variação raras vezes implica níveis sintáticos
e pragmáticos e que costumam ser determinadas por fatores tanto sociolinguísti-
cos e estilísticos quanto por fatores históricos e geográficos.
Uma das dificuldades para o estudo da variação lexical é a determinação de
correspondência entre variantes. Esta análise encontra problemas, especialmen-
te no nível semântico-lexical, quanto à existência ou impossibilidade de explicar
as equivalências por um viés teórico da sinonímia. Moreno Fernández (1998, p.
29) observa que “a Sociolinguística tem se tornado, quase por necessidade episte-
mológica, uma defensora da existência da sinonímia, pelo menos no nível do dis-
curso”. As unidades léxicas podem se encontrar semanticamente neutralizadas no
discurso. Contudo, há dificuldade em demonstrar que duas ou mais variantes são
equivalentes. Por conta da escassa frequência com que variantes lexicais alternam
no discurso, alguns estudiosos têm optado por localizar variáveis fora do discurso
natural e continuado por meio de pesquisas e questionários.
Geografia Linguística
As primeiras tentativas de sistematizar a análise sobre diferenças dialetais
surgiram como uma reação aos avanços da Filologia e outros estudos sobre as lín-
guas. Foram os neogramáticos que começaram a busca por princípios gerais da
mudança linguística. Para eles, as mudanças fonéticas são governadas por uma re-
gra e o princípio seguido é que todas as mudanças fonéticas não admitem exceções.
Como consequência disso, houve o desenvolvimento da geografia linguística, uma
metodologia, ou seja, um conjunto de métodos para compilar de maneira sistemá-
tica as demonstrações das diferenças dialetais. A Geografia Linguística (Geolinguís-
tica) procura criar uma base empírica sobre a qual se possam extrair conclusões a
respeito da variedade linguística que ocorre em um lugar determinado. A Geolin-
guística revelou uma heterogeneidade que não se concebia antes e, portanto, joga-
va por terra toda e qualquer pressuposição de ausência de exceções.
Segundo Cardoso (1998), a Geolinguística no Brasil ganha corpo em meados
do século XX quando surgem as primeiras manifestações pela produção de um atlas
linguístico do Brasil. A partir deste ponto, a pesquisa no campo da Dialetologia tem
5  “Una comunidad de habla está formada por un conjunto de hablantes que comparten efectivamente, al menos, una lengua, pero
que, además, comparten unas mismas actitudes linguísticas, unas mismas reglas de uso, un mismo criterio a la hora de valorar
socialmente los hechos linguísticos, unos mismos patrones sociolinguísticos[...] Los miembros de una comunicadad de habla son
capaces de reconorcerse cuando comparten opinión sobre lo que es vulgar, lo que es familiar, lo que es incorrecto, lo que es arcaizante
o anticuado. Por eso el cumplimiento de las normas sociolinguísticas al que obliga la pertenencia a uma comunidad puede servir de
marca diferenciadora, de marca de grupo, y por eso los miembros de una comunidad suelen acomodar su discurso a las normas y
valores compartidos[...] Una comunidad de habla es básicamente una comunidad de consenso, de sintonia entre grupos e indivíduos
diferentes, donde el conflicto está minimizado” (Tradução nossa).
Sumário
122
se desenvolvido. Estas pesquisas não caminharam em direção à elaboração de um
atlas de abrangência nacional, mas buscavam mostrar realidades regionais, com
diversos trabalhos publicados em vários pontos do país, efetivando atlas linguísti-
cos por região. O primeiro atlas publicado em território brasileiro foi o Atlas Prévio
dos Falares Baianos – APFB, em 1963 de autoria de Nelson Rossi, Carlota Ferreira e
Dinah Isensee.
Atlas Linguístico do Brasil - ALiB
Em 1996, retoma-se a ideia de construção de um atlas nacional com o surgi-
mento do Projeto Atlas Linguístico do Brasil – AliB, durante o Seminário Nacional
Caminhos e Perspectivas para a Geolinguística no Brasil, realizado em Salvador, na
Universidade Federal da Bahia (UFBA), quando se constituiu um comitê nacional
para elaboração do atlas. Este comitê, presidido pela Professora Dr.ª Suzana Car-
doso da UFBA, conta com a participação de autores de atlas já publicados e em an-
damento. O ALiB documenta dados linguísticos no Brasil de Norte ao Sul, do Leste
ao Oeste e descreve a realidade linguística do Português Brasileiro, enfatizando a
identificação das diferenças diatópicas, que podem ser fônicas, morfossintáticas
e léxico-semânticas dentro da perspectiva da Geolinguística. São 250 pontos que
constituem sua rede de localidades que reúnem 1.100 informantes documentados.
O informante tem perfil que está atrelado ao espaço em que ele vive.
Bahia e Paraná
A Bahia se localiza no sul da Região Nordeste do Brasil, limitando-se ao Leste
pelo oceano Atlântico, ao norte com Sergipe, Alagoas, Pernambuco e Piauí, ao sul
com os estados de Minas Gerais e Espírito Santo e oeste com Goiás e Tocantins. 6
Segundo Reis (2009, p. 19), a província da Bahia era uma das mais prósperas
regiões canavieiras das Américas no século XIX. Os engenhos de açúcar, puxados
por mão-de-obra escrava, estavam situados especialmente no Recôncavo, região
fértil e úmida que envolve a Baía de Todos os Santos. Reis (2009) afirma que Sal-
vador ocupa um dos extremos desse conjunto geográfico. O território baiano co-
meçou a se estruturar pela faixa costeira, ainda no século XVI, partindo da cidade
de Salvador e das vilas de Porto Seguro e de São Jorge dos Ilhéus. Ramos (2008)
afirma que a partir desses três primeiros núcleos de povoamento, avançou-se pelo
litoral em direção ao norte e ao sul, com isso começaram surgir outros núcleos
populacionais em torno dos engenhos de açúcar e de pequenas propriedades de
criação de gado.
O Paraná se localiza no Sul do Brasil, limitando-se ao norte com o estado de
São Paulo, a leste com o oceano Atlântico, ao sul com o estado de Santa Catarina e a
oeste com o estado do Mato Grosso e com as repúblicas do Paraguai e Argentina.7
Aguilera (2002), fundamentada em Cardoso e Westphalen (1986), afirma que a
história do Paraná compreende a composição de três comunidades regionais:

6   Disponível em: https://www.sogeografia.com.br/Conteudos/Estados/Bahia/. Acesso em: 08 de março de 2021.


7   Atlas Linguístico do Paraná. Vol. I. p. 21
Sumário
123
O Paraná Tradicional, que se esboçou no século XVII, com a procura do ouro, e se estrutu-
rou no século XVII sobre o latifúndio campeiro dos Campos Gerais, com base na criação e
comércio do gado e, mais tarde, nas atividades extrativistas e no comércio exportador da
erva-mate e da madeira, e as do Paraná Moderno, já no século XX, sendo as do Norte, com
a agricultura tropical do café e que, a princípio, pelas origens e interesses históricos, ficou
mais diretamente ligada a São Paulo, e a do Sudoeste e Oeste, dos criadores de suínos e
plantadores de cereais que, pelas origens e interesses históricos, ficou a princípio mais
intimamente ligada ao Rio Grande do Sul (AGUILERA, 2002, p. 19).

Durante os séculos XVI e XVII, houve uma disputa pela posse do território
paranaense pelas missões jesuíticas espanholas e pelas bandeiras paulistas sob or-
dens do governo português. Durante estes dois séculos, vários núcleos de povoa-
mento começaram a surgir ao longo dos principais rios.
Metodologia
Este trabalho se fundamenta na metodologia e no corpus do Projeto Atlas Lin-
guístico do Brasil - ALiB no que tange à área semântica fenômenos atmosféricos do
Questionário Semântico-lexical (QSL). Neste estudo priorizamos a variação diató-
pica, mas, seguindo os passos da Geolinguística Pluridimensional, também consi-
deramos aspectos relativos às variações diastrática, diageracional e diassexual.
Corpus
O corpus está constituído pelas respostas às questões 17, 18 e 19 do Questionário
Semântico-Lexical do Atlas Linguístico do Brasil aplicado em 22 cidades na Bahia e 17 no
Paraná.

Localidades da Bahia
As localidades da Bahia, que perfazem o total de 22 pontos, estão distribuídas
em suas mesorregiões8. O número entre parênteses se refere ao atribuído à loca-
lidade na rede de pontos do ALiB.
• Mesorregião Centro Norte Baiano – Itaberaba (090), Jacobina (086), Irecê
(085);
• Mesorregião Centro Sul Baiano – Caetité (096), Itapetinga (100), Jequié
(095), Seabra (089), Vitória da Conquista (098);
• Mesorregião Extremo Oeste Baiano – Barreiras (087), Santana (092);
• Mesorregião Metropolitana de Salvador – Capital – Salvador (093), Santo
Amaro (091);
• Mesorregião Nordeste Baiano – Alagoinhas (088), Euclides da Cunha
(083), Jeremoabo (082);
• Mesorregião Sul Baiano – Caravelas (102), Ilhéus (099), Santa Cruz de Ca-
brália (101), Valença (094);
• Mesorregião Vale São-Franciscano da Bahia – Barra (084), Carinhanha
(097), Juazeiro (081).

8   Mesorregião. Unidade territorial homogênea, em nível maior que a microrregião, porém menor que o estado ou território, e resultado
do grupamento de microrregiões (FERREIRA, 1986).
Sumário
124
Localidades do Paraná
O conjunto de localidades do Paraná, que perfaz o total de 17 pontos, está dis-
tribuído em suas mesorregiões. O número entre parênteses se refere ao atribuído
à localidade na rede de pontos do ALiB.
• Mesorregião Centro Ocidental Paranaense - Campo Mourão (212), Terra
Boa (209);
• Mesorregião Centro Oriental Paranaense – Piraí do Sul (214);
• Mesorregião Centro-sul – Guarapuava (219); Mesorregião Metropolita-
na de Curitiba – Capital – Curitiba (220), Adrianópolis (216), Lapa (222),
Morretes (221);
• Mesorregião Noroeste Paranaense – Nova Londrina (207), Umuarama
(210);
• Mesorregião Norte Central Paranaense – Cândido de Abreu (213), Londri-
na (208);
• Mesorregião Norte Pioneiro Paranaense – Tomazina (211);
• Mesorregião Oeste Paranaense – São Miguel do Iguaçu (217), Toledo (215);
• Mesorregião Sudeste Paranaense – Imbituva (218);
• Mesorregião Sudoeste Paranaense – Barracão (223).
Informantes
Em cada ponto de inquérito no interior dos dois estados foram entrevistados
quatro informantes, dois homens e duas mulheres em duas faixas-etárias (18-30
anos e 50-65 anos). Nas capitais dos estados foram entrevistados oito informantes,
quatro dos quais têm nível universitário. Informantes de 1 a 4 possuem nível funda-
mental e de 5 a 8 nível universitário. Os números ímpares se referem aos homens e
os números pares se referem às mulheres; os números 1-2 e 5-6 são atribuídos aos
informantes agrupados na primeira faixa etária e 3-4 e 7-8 à segunda faixa etária.
Questionário
O corpus desta pesquisa se fundamenta nos dados originados da aplicação do
Questionário Semântico-Lexical (QSL) integrante dos Questionários 2001 (COMI-
TÊ, 2001), constituído de 207 questões divididas em quinze áreas semânticas das
quais selecionamos a área semântica fenômenos atmosféricos.
No Quadro 1, disposto em quatro colunas, apresentamos as três questões uti-
lizadas, com a seguinte distribuição: a primeira coluna mostra o número da ques-
tão; a segunda exibe o item semântico-lexical que se busca; a terceira coluna indica
a maneira como foi formulada a pergunta; a quarta coluna indica a área semântica
a que se refere cada pergunta.
Quadro 1: Extraído do QSL utilizado
QSL
Item Semântico-Lexical Formulação da Pergunta Áreas Semânticas

Sumário
125
Quase sempre, depois de uma chuva,
aparece no céu uma faixa com listras
17 ARCO-ÍRIS
coloridas e curvas (mímica). Que nomes
dão a essa faixa?
FENÔMENOS
18 GAROA ... uma chuva bem fininha?
ATMOSFÉRICOS
Depois de uma chuva bem fininha,
TERRA UMEDECIDA quando a terra não fica nem seca, nem
19
PELA CHUVA molhada, como é que se diz que a terra
fica?
Fonte: Elaboração do autor.

Análise de dados
Nesta seção, apresentamos a descrição e análise dos dados, estruturadas em
itens que priorizam a perspectiva diatópica, mas contemplam, também, aspectos
de natureza sociolinguística.
Salvador e Curitiba: a realidade das capitais
Para o conceito referente a uma faixa com listras coloridas e curvas que quase
sempre, depois de uma chuva, aparece no céu, na questão 17, obtivemos a variante
arco-íris de maneira hegemônica nas duas capitais representando 100% das ocor-
rências.
A questão 18 apura denominações para uma chuva bem fininha. Registramos
garoa como resposta com maior produtividade nas duas capitais, embora um in-
formante em Salvador a use, mas diga que tal lexia é uma variante diatópica carac-
terística do Sul do país, como vemos na fala transcrita a seguir:
INF. – Garoa, eu já digo mais por conta de amigos paulistas, não cresci ouvindo nada disso.
Diz chuvisco, aqui se dizia chuvisco que minha família dizia era um chuvisco, garoa já é
coisa do sul, dos amigos do sul (093/7).

Em Curitiba, embora não tenha ocorrido chuvisco, o informante 220/5 men-


ciona tá chuviscano, como se vê no trecho a seguir transcrito:
INQ.- E como é que vocês chamam uma chuva bem fininha?
INF.- Garoa, garoa ou falam tá chu.... tá chuviscando também. (220/5).

Embora o informante tenha usado a expressão verbal está chuviscando, con-


sideramos que a lexia chuvisco também está presente no ponto 220, não apresen-
tando variação diatópica. Houve 17 ocorrências para esta questão. Garoa obteve
14 ocorrências das quais seis aconteceram em Salvador e oito em Curitiba, repre-
sentando 82,4% do total das ocorrências. Chuvisco – considerando também está
chuviscando – foi fornecido por dois informantes em Salvador e um informante em
Curitiba, representando 17,6% do total. Na questão 19, úmida teve predominância
com cinco ocorrências em Salvador e sete em Curitiba, representando 100% dos
registros.
A realidade do interior dos dois estados
Para a questão 17, registraram-se 86 ocorrências, observando-se que 82 dos
84 informantes do interior da Bahia forneceram arco-íris com sua resposta princi-
pal, o que representa 95,4% do total das ocorrências. Os informantes 096/4, 098/2
Sumário
126
e 083/4 apresentam outras variantes como arco da velha e olho de boi. Apenas o in-
formante 102/4 respondeu arco da velha como primeira resposta. Há apenas uma
abstenção para a questão 17. Arco da velha com 3 registros representa 3,5% ao
passo que olho de boi com apenas um registro indica 1,1% do total das ocorrências.
As 7 mesorregiões da Bahia trazem 71 ocorrências e 15 abstenções para a
questão 18. A lexia garoa tem preponderância em todas as regiões com 32 registros,
representando 45,1% das ocorrências. Em segundo lugar, temos chuvisco com 15
registros, correspondendo a 21,2%. Para 10 informantes, uma chuva bem fininha é
a neblina, o que indica 14,1% das ocorrências. Com um número de registros muito
menor, temos a expressão chuva de inverno com três ocorrências, representando
4,2% do total. Sereno representa uma porcentagem um pouco maior com quatro
registros: 5,6%. Chuva de peneira ou peneirinha, como diz o informante 102/4, vem
com duas ocorrências, o que corresponde a 2,8% do total. Consideramos dar uns
pinguinhos e pingar como uma variante só. O que consideramos aqui é o verbo pin-
gar para a contagem do número de ocorrências uma vez que o vemos no substantivo
pinguinho, usado no diminutivo. Temos, então, três ocorrências para pingar, o que
representa 4,2%. As variantes poeira de chuva e chuva fraca receberam um registro
cada uma, portanto, cada uma delas corresponde 1,4% do total das 69 ocorrências.
A questão 19 contou com 64 ocorrências e 20 abstenções. A lexia úmida conta com
55 registros e aparece hegemonicamente em todas as mesorregiões da Bahia, re-
presentando, assim, 85,9% do total das ocorrências. Borrifada e sarolha aparecem
com quatro ocorrências, com percentual de 6,3% para cada. Tivemos apenas um
registro para esfarelada, o que corresponde a 1,5% do total das ocorrências.
No Paraná, há 61 ocorrências e seis abstenções para a questão 17. Arco-íris
está documentado em todas as regiões do Paraná com 58 registros, representando
95,1% das ocorrências. Arco da velha representa apenas 4,9% do total das 61 ocor-
rências.
Para questão 18, registramos 56 ocorrências e nove abstenções (14%). Garoa
apresenta maior produtividade com 48 ocorrências e representa 85,8% do total.
Chuviscar - ou chuvisco - conta com sete registros e corresponde a 12,5% do total.
Neblina aparece com um registro e indica 1,7% do total das 56 ocorrências. A ques-
tão 19 apresentou como única resposta úmida e contou com o total de 59 ocorrên-
cias e apenas 5 abstenções.
Uma visão plural entre a Bahia e o Paraná
Descritas as realidades da Bahia e do Paraná, nesta seção procuramos anali-
sar, de forma comparativa as duas áreas estudadas. O Quadro 2 mostra as lexias e
expressões freseológicas coincidentes nas cidades do interior da Bahia e Paraná,
bem como lexias fornecidas apenas por informantes do interior da Bahia ou do
interior do Paraná, dispostas de acordo com os seguintes critérios: na primeira
coluna, temos o número da questão; na segunda coluna, mostramos todas as ex-
pressões fornecidas tanto por informantes baianos quanto por informantes para-
naenses; na terceira coluna, temos as expressões que apresentam a variação dia-
Sumário
127
tópica registradas apenas na Bahia e na quarta coluna registramos as expressões
fornecidas apenas pelos informantes no interior do Paraná.
Quadro 2: Coincidências e diferenças entre Bahia e Paraná
QUESTÕES BAHIA/PARANÁ BAHIA PARANÁ
17 Arco-íris, arco da velha Olho de boi _______________
Chuva de inverno,
pingar, poeira de chuva, Chuva de molhar bobo,
Garoa, chuvisco/chuviscar,
18 sereno, chuva fraca, chuva de espantar
neblina
chuva de peneira/ burro
peneirinha
Borrifada, esfarelada,
19 Úmida _______________
sarolha
Fonte: Elaboração do autor.

No Quadro 2, temos o confronto da realidade lexical entre Bahia e Paraná. As


lexias ou expressões fraseológicas coincidentes na Bahia e no Paraná são aquelas
geralmente de maior produtividade dentro das mesorregiões baianas e paranaen-
ses. As formas que representam variação diatópica normalmente receberam um
número menor de registros comparados com as variantes que não apresentam va-
riação e estão distribuídas por todas as regiões de ambos os estados.
Arco-íris, úmida e neblina aparecem em todas as mesorregiões dos dois esta-
dos. O verbo estiar não aparece no sul da Bahia, nem no centro-sul e sudeste para-
naense. A variante garoa não foi registrada na região Metropolitana de Salvador e
sereno não aparece no sudeste do Paraná.
Registramos, para a questão 17, a expressão olho de boi (083/4) no nordeste
baiano. Em resposta à questão 18, encontramos as seguintes denominações: chuva
de inverno (086/1-4, 090/3) no centro-norte baiano; pingar (085/1-2) no centro-
-norte baiano e (084/2) no Vale São-Francisco da Bahia; poeira de chuva (095/4)
no centro-sul baiano; sereno (095/1) centro-sul baiano e (087/3) no extremo oeste
baiano e (082/3, 088/2) no nordeste baiano; chuva fraca (091/1) em região metro-
politana de Salvador; chuva de peneira/peneirinha (101/4, 102/4) no sul baiano;
chuva de molhar bobo (207/4) no noroeste paranaense; chuva de espantar burro
(217/1) no oeste paranaense.
Para a questão 19, registramos borrifada (090/1) no centro-norte baiano e
(096/3) no centro-sul baiano e (091/4) na mesorregião metropolitana de Salvador
e (084/3) Vale São-Franciscano da Bahia; esfarelada (089/3) no centro-sul baiano;
sarolha (085/4, 090/3) no centro-norte baiano.
Variáveis sociais: um olhar sociolinguístico sobre o tema
No que concerne às questões relativas a fenômenos atmosféricos (17 a 19),
em Salvador e em Curitiba, verificamos que arco-íris, garoa, chuvisco, úmida não
apresentam variação social.
Para as cidades do interior, observamos que as variantes arco-íris, garoa, úmi-
da, não se caracterizam como de uso específico de grupo social, apresentando-se
como gerais na Bahia e no Paraná.
Para o conceito de uma faixa com listras coloridas e curvas que aparecem no
céu, seis informantes forneceram a expressão arco da velha. Destes seis informan-
Sumário
128
tes, quatro são da segunda faixa etária, o que nos dá a ideia de certo conservado-
rismo para esta expressão. Segundo os informantes 211/1 e 216/3, arco da velha
era usado pelo “pessoal antigo”. Temos a seguir os diálogos entre os inquiridores
do ALiB e estes informantes:
INF.- Arco-íris.
INQ.- Tem algum outro nome? Não? Você não ouviu nenhuma pessoa mais antiga falando
de outro nome?
INF.- Um arco da velha.
AUX.- É, tem esse nome também.
INQ.- Mas é só as pessoas mais antigas que falam ou o pessoal às vezes fala?
INF.- Não, as crianças sempre que... os pessoal mai velho vão falano. (211/1).
INF.- Arco-íris.
INQ.- Tem outros nomes?
INF.- Qu’eu saiba também não, pode até tê, mais eu num conheço.
INQ.- Quando o senhor era mais novo o senhor nunca ouviu um nome diferente das pessoas
assim...
INF.- Arco da véia, arco da véia, arco de véio, num sei como que é.
INQ.- Quem chamava assim? INF.- Um pessoal mais antigo, né ,mais a gente já aprendeu que
era arco-íris né. Que eles dizia que bebia água lá em tal lugar, num sei que lá.
INQ.- Como que é que eu não conheço?
INF.- O povo contava, né, a história né, que diz que tava bebendo água lá no tal córrego,
outro lá que ele faz assim e cái né, dá a impressão que ele caia n’água, mais acho que num é
nada. Acho que é o reflexo da água. Da própria água que faz aquilo, né. (216/3)

Considerações finais
Neste trabalho identificamos, analisamos e descrevemos a variação linguísti-
ca encontrada nos estados brasileiros, Bahia e Paraná, localizados, respectivamen-
te, nas regiões Nordeste e Sul do Brasil, com vistas a mostrar a homogeneidade ou
heterogeneidade desses dois falares brasileiros no que diz respeito à área semânti-
ca fenômenos atmosféricos.
O estudo está fundamentado em um corpus constituído por 164 inquéritos
realizados nos 22 pontos da Bahia e 17 do Paraná, com base nos pressupostos da
Dialetologia, Lexicologia e Sociolinguística.
Para a questão 17, arco da velha ocorre apenas no centro-sul e sul baiano e
olho de boi no nordeste da Bahia. No Paraná, arco da velha ocorre no centro-oci-
dental e no norte pioneiro. Objetivando tornar mais acessível à consulta aos dados
constantes dessa pesquisa, apresentamos um índice onomasiológico que reúne to-
das as variantes registradas para cada item.
Considerando as questões iniciais, o léxico documentado na Bahia e Paraná
oferece características particulares que delimitam áreas e pode refletir a nature-
za da constituição histórica de cada um desses estados. Verificamos que no plano
da análise diatópica, podemos destacar como resultado mais relevante o fato de a
distribuição das variantes terem um caráter mais homogêneo do que heterogêneo,
considerando os dados de Salvador e Curitiba, bem como de todas as cidades do
interior dos dois estados.
Sumário
129
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Designações para cabra-cega: um
olhar sobre o léxico fronteiriço
Brasil-Bolívia
Fernando Jesus da Silva1

Resumo: Este trabalho traz um recorte da tese de doutoramento, em andamento, sobre o léxico da fronteira
Brasil-Bolívia, mais precisamente entre Cáceres/San Matias. Busca-se demonstrar a influência do português
no léxico do campo semântico “jogos e diversões infantis”, através de uma análise quantitativa e qualitativa
das lexias registradas nesse espaço fronteiriço para designar a “brincadeira em que uma criança vendada
tenta agarrar outra, que a irá substituir”. Para isso, recorreu-se aos pressupostos teóricos e metodológicos
da Dialetologia Pluridimensional (THUN, 1998). Além da Dialetologia Pluridimensional, considerou-se os
trabalhos de Silva (2012), Cascudo (2005), Ramírez Luengo (2012), Lipski (2011) e Cuéllar e Yavarí (2008).
A pesquisa foi realizada em quatro pontos de inquérito, sendo dois no município de San Matias (01 - Zona
urbana e 02 - San Juan de Corralito) e dois em Cáceres (03 - Corixa e 04 - Zona urbana). No total, foram
entrevistados 24 informantes entre brasileiros e bolivianos por meio da aplicação de inquéritos com base
no Questionário Semântico-lexical (QSL) do Projeto Atlas Linguístico do Brasil - ALiB. Para o tratamento dos
dados e produção cartográfica, utilizou-se a ferramenta computacional SGVCLIN. Com base nas análises,
obteve-se como resultado uma grande produtividade da lexia cobra-cega em três pontos, sendo dois do lado
brasileiro e um do lado boliviano, especificamente, na comunidade rural de San Juan de Corralito, indicando,
com isso, uma forte influência cultural e linguística do Brasil sobre o município de San Matias.
Palavras-chave: Dialetologia Pluridimensional. San Matias. San Juan de Corralito. Léxico. Jogos infantis.

Introdução
As brincadeiras infantis constituem um importante elemento para compreen-
der as diferenças culturais entre comunidades fronteiriças. Entretanto, olhar para
a fronteira entre San Matias (Bolívia) e Cáceres (Brasil) significa perceber que no
universo lúdico entre bolivianos e brasileiros, há mais semelhanças que diferenças,
principalmente no modo como designam as brincadeiras.
Nesse espaço fronteiriço, sempre houve um forte contato cultural e linguísti-
co entre portugueses e espanhóis, posteriormente, entre brasileiros e bolivianos,
razão que justificaria um compartilhamento lexical, resultado de empréstimos ou

1  Doutorando em Linguística pela Universidade do Estado de Mato Grosso - UNEMAT. Docente da Universidade Federal de Mato Grosso
- UFMT. E-mail: [email protected]
Sumário
131
simplesmente reflexo de usos linguísticos que revelam uma fronteira porosa, sem
“limites para a língua” (RAMÍREZ LUENGO, 2012).
Este trabalho se inscreve dentro dos pressupostos teórico-metodológicos da
Dialetologia pluridimensional (THUN, 1998), com foco na dimensão diatópica (es-
paço), tomando como base o Questionário Semântico-lexical (QSL) do Projeto Atlas
linguístico do Brasil - ALiB, no campo semântico “jogos e diversões infantis”, através
da questão nº 161 que busca saber a designação para “(...) a brincadeira em que
uma criança, com os olhos vendados, tenta pegar as outras” (COMITÊ, 2001, p. 34).
Assim, o presente capítulo procura mapear as variantes lexicais registradas
nesse espaço de contato linguístico, principalmente as que foram produzidas pe-
los matienhos2, a fim de verificar o índice de produtividade de lexias tomadas do
português brasileiro, e, consequentemente, evidenciar sua influência sobre o léxico
dos matienhos.
San Matias e Cáceres: cidades-gêmeas
O município de San Matias está localizado na parte oriental da Bolívia, no ex-
tremo leste do Departamento de Santa Cruz, dentro do espaço geográfico que cons-
titui a Chiquitania3. É capital da Província Angel Sandoval e está distante a 750 km
de Santa Cruz de la Sierra, capital do Departamento de Santa Cruz.
A respeito de Cáceres, o município brasileiro está situado a sudoeste de Mato
Grosso, integrando a microrregião do alto Pantanal, localizada a 215 km da capital
Cuiabá. Os dois municípios receberam recentemente o título de cidades-gêmeas,
conforme a Portaria nº 1.080 de 24 de abril de 2019 do Ministério da Integração
Nacional do Brasil (MI)4.
Figura 1: Mapa de San Matias e Cáceres (Bolívia/Brasil)

Fonte: Elaborado pelo autor.

Podemos visualizar na Figura 1, a Província Angel Sandóval e, no seu extremo


leste, a localização de San Matias (ponto 01), seguida da comunidade de San Juan
2  Referente aos moradores de San Matias (Bolívia).
3  Chiquitanía: extensa região localizada na zona de transição entre a Amazônia, o planalto brasileiro, o Pantanal, o Gran Chaco e os
Andes no atual departamento de Santa Cruz, Bolívia - abrigou historicamente línguas pertencentes a sete famílias linguísticas: Macro-
jê, Tupí, Arahuaca, Zamuco, Bororo, Chapacura e Indo-Europeu (NIKULIM, 2019, p.6) (Tradução nossa).
4  Disponível em: <https://www.in.gov.br/web/dou/-/portaria-n%C2%BA-1.080-de-24-de-abril-de-2019-85673267> Acesso em: 13
de maio 2021.
Sumário
132
de Corralito, também conhecida como Curicha (ponto 02). O traçado em vermelho
representa a BR 070 que liga a zona urbana do município de Cáceres (ponto 04)
até a comunidade brasileira de Corixa (ponto 03), localizada na divisa com San
Matias. A delimitação entre os dois países, ou seja, entre os dois municípios, dá-se
através de marcos, tais como, pequenos obeliscos de cimento pintados em branco,
fixados em locais notáveis, como podemos observar na Figura 2, no canto superior
esquerdo:
Figura 2: Marcos da divisa Bolívia/Brasil

Fonte: Acervo pessoal do autor.

Cáceres e San Matias possuem uma história de contato linguístico que remon-
ta ao período imperial e que reflete nos dias atuais uma relação paradoxal de inte-
gração, ao mesmo tempo, de marginalização do espaço fronteiriço. Essa marginali-
zação é produto de discursos produzidos, sobretudo, pela mídia local, que colocam
essa região, apenas como rota do narcotráfico internacional, apagando com isso,
aspectos culturais e linguísticos que constituem as comunidades transfronteiriças
de Corixa e San Juan de Corralito (SILVA, 2012).
Trata-se de um espaço historicamente difuso, de línguas dispersas, marca-
do por diferentes formas de contatos que produziram como efeito, um continuum
dialetal que confronta a ideia de unidade, de nação, de limite, do que é nacional
ou estrangeiro (CHAMBERS; TRUDGILL, 1994). Nesse sentido, o uso do português
ultrapassa os limites territoriais, deixa de ser “somente língua do Brasil”, mas tam-
bém da Bolívia, através de comunidades constituídas historicamente por relações
familiares entre brasileiros e bolivianos que falam uma variedade de português
que designamos como sendo Português Fronteiriço Boliviano (PFB). Sobre a noção
de unidade linguística, Di Renzo (2005, p.74) explica que:
[...] o princípio de unidade é concomitante à existência do Estado. E aí se inclui a unidade
lingüística, pois é língua do Estado aquela que o Estado proclama, atitude que produz o
efeito de apagamento da diversidade lingüística existente pela imposição de uma política
de língua. Por isto, é necessário criar instituições que ensinem, inculquem, implantem e
divulguem essa língua.
Sumário
133
Dessa maneira, olhar para o PFB faz pensar que a realidade linguística de San
Matias não se constitui apenas do espanhol e de línguas indígenas locais, visto que
está presente diariamente no convívio entre as comunidades rurais fronteiriças.
Na pesquisa desenvolvida verificou-se que o PFB tem como base a variedade
cacerense, composto por um léxico enriquecido de palavras e expressões de dife-
rentes regiões brasileiras, por influência do comércio, especialmente, da influência
de canais de televisão, como a rede Globo.
De acordo com Cuéllar e Yavari (2008), o primeiro canal de TV transmitido
em San Matias foi da antiga Rede Tupi. Durante muito tempo, os matienhos estive-
ram expostos apenas a emissoras brasileiras. Muitas crianças cresceram ouvindo
expressões e palavras que foram sendo hispanizadas e incorporadas ao léxico local.
Além disso, o contato cultural, familiar, religioso, comercial fez com que a influência
do português se tornasse cada vez mais imperativa em função da dependência de
San Matias em relação a Cáceres em diversos serviços, sobretudo, na área da saúde.
Embora a influência do português seja notável, é importante diferenciar a re-
alidade linguística de contato entre a zona urbana e a zona rural de San Matias. Na
zona urbana, prevalece o uso do espanhol na maioria dos contextos comunicacio-
nais. Porém, na zona rural, as comunidades mantêm o uso indiscriminado das duas
línguas, prevalecendo em muitas situações o PFB, como é o caso da comunidade
rural de San Juan de Corralito.
O uso expansivo do português fez com que inúmeras palavras fossem incorpo-
radas ao léxico do espanhol falado em San Matias – doravante espanhol matienho-,
ao ponto de não serem interpretadas como estrangeirismos. Na maioria das vezes,
a consciência do empréstimo linguístico se dá sob ação da escola, portanto, no con-
texto do ensino da língua nacional, que vai influenciar as atitudes linguísticas dos
moradores sobre o que “faz parte” ou não da língua espanhola, desenvolvendo, as-
sim uma atitude positiva ou negativa sobre determinados usos ou palavras (SILVA,
2012).
Nesse sentido, a atitude de reconhecimento ou negação de determinadas le-
xias passa pelo filtro escolar. Durante a pesquisa, notamos que os informantes com
escolaridade de nível superior completo/incompleto tiveram um comportamento
linguístico mais resistente frente ao uso de palavras tomadas do português em re-
lação aos que tinham apenas o ensino básico, como os moradores de San Juan de
Corralito.
Dessa maneira, queremos evidenciar, por meio do léxico, que o contato com
o português singularizou o espanhol matienho, gerando uma variedade de portu-
guês fronteiriço falada no extremo leste do oriente boliviano, isto é, em San Matias.
O léxico matienho: um olhar diatópico
San Matias se caracteriza por ser um município plurilíngue, pois, além do uso
do português e do espanhol, línguas como quéchua, aymara e chiquitano também
formam parte da realidade linguística local, principalmente da zona urbana, visto
que na zona rural fronteiriça predomina-se o uso do PFB. No caso específico entre
o português e o espanhol, verificamos que o contato entre essas duas línguas fez
Sumário
134
emergir no tempo/espaço diferentes efeitos, tais como, mudança de código, mistu-
ras, sobretudo, empréstimos linguísticos.
O estudo do contato linguístico entre essas duas línguas tem sido realizado
com mais frequência na Região Sul do Brasil, bem como na região que constitui
a tríplice fronteira (Brasil, Argentina e Paraguai). Em relação à extensa fronteira
entre o estado de Mato Grosso e a Bolívia, não há quase estudos linguísticos, prin-
cipalmente dialetológicos e sociolinguísticos, razão que suscitou a pesquisa nessa
região a partir da Dialetologia Pluridimensional.
Os estudos dialetológicos têm demonstrado ao longo dos anos a diversidade
linguística lexical de uma região para a outra através da cartografia, ou seja, da pro-
dução de mapas, também designados como cartas linguísticas.
A Geolinguística ou Geografia linguística se constituiu como um importante
método para a Dialetologia, pois permite compreender a língua a partir de sua di-
mensão diatópica, ou seja, do modo como se distribui no espaço. Isso significa di-
zer, que pela cartografia é possível determinar usos e fenômenos linguísticos locais,
regionais, compartilhados ou não, permitindo com isso, a construção de isoglosas5.
De acordo com Moutón (1996), a Dialetologia busca estudar a variação da lín-
gua dentro de um espaço determinado, que por sua vez, é refletido posteriormente
sobre mapas (cartografia linguística), cujo conjunto delas forma um atlas linguísti-
co. Além disso, esclarece que, a Geografia linguística não é uma ciência em si, mas
um método dialetológico surgido no final do século XIX e início do século XX.
Brandão (1991) explica que o método cartográfico foi se aperfeiçoando com o
passar do tempo, abrangendo diferentes espaços, sobretudo, combinando os prin-
cípios da geografia linguística com os da sociolinguística.
Segundo Thun (1998), a dialetologia e a sociolinguística estiveram separadas
por um bom tempo, embora tivessem o mesmo objetivo, ou seja, compreender o
fenômeno da variação. Entretanto, com o avanço dos estudos linguísticos, procu-
rou-se um trabalho interdisciplinar, dando surgimento a Dialetologia Pluridimen-
sional e Relacional, que tem dentro de seus pressupostos teórico-metodológicos a
relação entre a dimensão diatópica (dialetologia tradicional), com dimensões so-
ciais (sociolinguística), para produzir uma descrição mais completa dos fenômenos
linguísticos, apresentando os condicionadores extralinguísticos.
Nesse sentido, podemos dizer que o método cartográfico se constitui como
um importante caminho para conhecer a diversidade linguística de uma região,
suas nuances, os graus de variação, e mais precisamente, os efeitos do contato lin-
guístico.
Dessa maneira, a Dialetologia Pluridimensional aparece como uma disciplina
que permite olhar para a variação linguística – neste caso, a variação lexical – sob
“lupas” distintas, ou seja, considerando diferentes fatores extralinguísticos envol-
vidos. Na tese de doutoramento, o objetivo é analisar a variação lexical, correla-
cionando diferentes dimensões: diatópica, diageracional, diassexual e diastrática

5  Uma isoglossa é uma linha que assinala num mapa linguístico o limite entre a presença e a ausência de determinado traço ou
fenômeno linguístico. As isoglossas separam áreas linguísticas mais ou menos uniformes. Os feixes de isoglossas podem servir para
separar variedades linguísticas (BAGNO, 2017, p.209).
Sumário
135
(THUN, 1998). Este trabalho se centra somente na dimensão diatópica, pois in-
teressa demonstrar como as lexias estão distribuídas no espaço fronteiriço e sua
produtividade para subsidiar as análises.
De acordo com Possenti (2001, p. 170), “a história das línguas é em grande
parte uma história de empréstimos”. Nesse sentido, olhar para o espanhol matie-
nho significa reconhecer a forte influência que o português tem exercido ao longo
dos anos, afetando a realidade local e produzindo novos efeitos de sentido sobre
as palavras e as escolhas lexicais dos sujeitos fronteiriços. Dessa maneira, pode-
mos afirmar que o contato cultural e linguístico com o Brasil produziu com o tem-
po uma identidade linguística híbrida, manifestada no léxico local, nessa parte da
fronteira Brasil/Bolívia, como se poderá ver adiante.
A brincadeira Cabra-cega
De acordo com Ferreira (1993, p. 89), cabra-cega é uma “brincadeira em que
uma criança vendada tenta agarrar outra, que a irá substituir”. No dicionário virtual
da língua espanhola da Real Academia Española (RAE), tem-se a seguinte entrada:
“juego en el que uno de los participantes, con los ojos vendados, trata de atrapar a
alguno de los otros y adivinar quién es, y si lo logra, el atrapado pasa a ocupar su
puesto”6.
Cascudo (2005) explica que se trata de uma brincadeira muito comum em
Portugal e na Espanha. Em pesquisas ao banco de dados lexicais do Tesouro do léxi-
co patrimonial galego e português7, verificou-se o registro dessa lexia em diferen-
tes partes de Portugal e do Brasil. Na Espanha, o jogo é designado popularmente
como gallina ciega. Na Figura 3, é possível observar a representação da brincadeira
na tela do pintor espanhol Francisco de Goya:
Figura 3: La gallina ciega8

Fonte: Francisco de Goya (1789).

6  Jogo em que um dos participantes, com os olhos vendados, tenta agarrar um dos outros e adivinhar quem é, e se conseguir, a pessoa
presa toma o seu lugar (Tradução Nossa). Disponível em: https://dle.rae.es/gallo?m=form#9Fm6Ljh Acesso em: 05/04/2020.
7  Disponível em: http://ilg.usc.gal/tesouro/pt/search#search=normal&mode=lema&q=cabra-cega Acesso em: 05/04/2021
8   O quadro “La Gallina ciega”, de Francisco de Goya, foi pintado em 1789 para decorar os quartos das futuras filhas de Carlos IV,
no Palácio El Pardo. Disponível em: <https://www.museodelprado.es/coleccion/obra-de-arte/la-gallina-ciega/0e23d968-5a4a-426f-
ab7b-075d1dc1c03b> Acesso em: 05 de abril 2020.
Sumário
136
Ainda de acordo com Cascudo (2005), a origem do jogo gallina ciega está re-
lacionada aos jogos latinos, denominados Musca aenea (Mosca de metal). Para o
autor, muitos jogos de origem europeia foram trazidos para a América através da
colonização, diferenciando-se conforme a região e a língua.
O jogo da cabra-cega está presente em grande parte do Brasil e dos países
hispanofalantes. Na Bolívia, por exemplo, o jogo é designado popularmente como
gallinita ciega, uma variante de gallina ciega no diminutivo (VILA, 2002). Já no Bra-
sil, além de cabra-cega, recebe outras designações, como cobra-cega (ALENCAR;
ISQUERDO, 2019).
Metodologia
O inquérito aplicado tanto em Cáceres quanto em San Matias tem como refe-
rência o Questionário Semântico-lexical (QSL) do Projeto Atlas Linguístico do Brasil
- ALiB. Das 13 (treze) questões que compõem o campo semântico “Jogos e diversões
infantis”, trabalhou-se na pesquisa com 10 questões que buscaram contemplar as
possíveis variantes para as unidades lexicais: cambalhota (questão 155), bolinha de
gude (questão 156), estilingue (questão 157), pipa (questão 158), esconde-escon-
de (questão 160), cabra-cega (questão 161), pega-pega (questão 162), gangorra
(questão 165), balanço (questão 166) e amarelinha (questão 167). Desse total, foi
selecionado para a análise as denominações para o item lexical cabra-cega.
Os dados foram obtidos através de entrevistas realizadas em quatro pontos de
inquérito, a saber: (i) zona urbana de San Matias (ponto 01); (ii) San Juan de Cor-
ralito (ponto 02); (iii) Corixa (ponto 03), e (iv) zona urbana de Cáceres (ponto 04).
San Juan de Corralito e Corixa constituem comunidades rurais fronteiriças.
A escolha desses pontos se deu pelo fato de constituírem um continuum ge-
ográfico entre a zona urbana de Cáceres (Brasil) até a zona urbana de San Matias
(Bolívia), entremeadas por duas comunidades rurais localizadas na divisa entre os
dois países, constituindo, dessa maneira, o espaço fronteiriço investigado. Trata-se
de um espaço que interliga brasileiros e bolivianos diariamente e que conflui rela-
ções históricas de contato cultural, social, principalmente, linguístico.
A pesquisa contemplou 24 informantes nativos, sendo 12 brasileiros (cace-
renses) e 12 bolivianos (matienhos), estratificados em: (i) sexo (masculino/femini-
no); (ii) grupos etários, sendo o grupo A (18 a 35 anos) e o grupo B (45 a 65 anos).
Além disso, o perfil dos informantes foi categorizado conforme a escolaridade em
dois grupos, a saber, o grupo E1 (ensino fundamental/médio incompleto/comple-
to) e o grupo E2 (ensino superior completo/incompleto), sendo esse último, inexis-
tente na zona rural fronteiriça9.
A partir do Software para geração e visualização de cartas linguísticas [SGV-
CLin] (ROMANO; SEABRA; OLIVEIRA, 2014), foi possível cartografar o espaço estu-
dado e produzir relatórios que permitiram estabelecer comparações entre as lexias
registradas nos pontos de inquérito. De posse delas, buscou-se realizar uma análi-

9  Infelizmente não foram encontrados na zona rural tanto de San Matias quanto de Cáceres, informantes com ensino superior completo/
incompleto. Assim, foram entrevistados 08 informantes da zona urbana, sendo 04 com E1 e 04 com E2. No caso da zona rural, 04
informantes apenas com E1, somando 12 informantes por cada zona, totalizando dessa maneira 24 informantes entre brasileiros e
bolivianos.
Sumário
137
se quantitativa das variantes documentadas, logo, a distribuição lexical no espaço
fronteiriço, e desse modo demonstrar a vitalidade das formas na área considerada,
evidenciando, assim, a influência que o português exerce sobre San Matias, especi-
ficamente, sobre San Juan de Corralito.
Análise dos dados
A comunidade de San Juan de Corralito está localizada na divisa com o Brasil,
logo, a relação entre brasileiros e bolivianos é mais frequente. Além disso, a refe-
rida comunidade utiliza o português (PFB) diariamente tanto no âmbito familiar
como em atividades laborais, visto que muitos bolivianos trabalham em fazendas
no Brasil.
No caso da zona urbana, a língua predominante é o espanhol, porém, devido
o contato com San Juan de Corralito e com inúmeros brasileiros que chegam para
realizar compras ou mesmo para seguir viagem com destino a Santa Cruz de la
Sierra, o português acaba sendo utilizado também, razão que explicaria a presença
de inúmeras lexias tomadas de empréstimo do português.
Para verificar a influência do português no campo semântico-lexical “jogos
e diversões infantis”, apresentamos a seguir, uma carta linguística que demonstra
uma grande produtividade de formas tomadas de empréstimo e que constituem o
léxico dos matienhos. Por meio da aplicação da questão 67 do QSL, buscamos ob-
ter as variantes lexicais para “(...) a brincadeira em que uma criança, com os olhos
vendados, tenta pegar as outras”. Obtivemos como respostas 04 lexias, a saber: ca-
bra-cega, cobra-cega, gallinita ciega e cai no poço.
Figura 4: Carta linguística: Cabra-cega

Fonte: Elaboração do autor.

Observa-se que na 01-Zona urbana de San Matias prevaleceu gallinita ciega,


com 100% de produtividade, refletindo a designação usada em outras partes do
território boliviano (VILA, 2002). Já em 02-San Juan de Corralito, verifica-se a pre-
sença de duas variantes tomadas de empréstimo do português: cobra-cega, com
67% de produtividade, e cabra-cega, com 33%. A ausência da variante gallinita
ciega em 02-San Juan de Corralito produz um indício de forte influência cultural
brasileira no repertório lúdico dos moradores dessa comunidade.
Sumário
138
A diferença de escolha das lexias entre as duas zonas reflete o contato históri-
co-cultural entre as comunidades de 02-San Juan de Corralito (Bolívia) e 03-Corixa
(Brasil) devido à proximidade geográfica - já que estão divididas por um “corixo10”-,
bem como as relações interfamiliares ocorridas com o passar do tempo entre bra-
sileiros e bolivianos.
De acordo com Lipski (2011, p.91), “só na fronteira Uruguai-Brasil e na pro-
víncia argentina de Misiones têm-se formado variedades mistas como língua estável
de toda a comunidade”. No caso de San Matias, foi registrado durante a pesquisa o
mesmo fenômeno em 02-San Juan de Corralito, visto que os residentes empregam
o português não somente quando falam com brasileiros, mas entre si, diariamente,
no convívio familiar, laboral e sociocultural, levando ao não discernimento se de-
terminada lexia pertencente ao português ou ao espanhol.
Na 01-zona urbana de San Matias, o português é empregado na maioria das
vezes quando se tem que falar com brasileiros, portanto, seu uso está condicionado
a contextos específicos de comunicação, como o comércio e o turismo, prevalecen-
do o espanhol sobre o português, diferente de 02-San Juan de Corralito, em que
prevalece o português sobre o espanhol. Dessa maneira, o português se apresenta
como língua de prestígio da comunidade, entretanto, é estigmatizada pelos mora-
dores da zona urbana, razão que explicaria, por exemplo, a alta produtividade de
gallinita ciega.
Pode-se acrescentar ainda, como explicação, o fato de manter um maior vín-
culo cultural com sua capital departamental Santa Cruz de la Sierra e com os mi-
grantes vindos da região ocidental do país (altiplano) para essa parte da fronteira,
trazendo consigo, todo um arcabouço cultural tradicional da Bolívia. Assim, muitas
crianças da 01-Zona urbana aprenderam a jogar gallinita ciega, ao passo que, em
02-San Juan de Corralito, por sua particularidade geográfica e cultural com o Brasil,
aprenderam a brincar de cobra-cega.
Muitos moradores de 02-San Juan de Corralito – principalmente as crianças-
desconhecem se cobra-cega é do português quando falam espanhol, visto que, já
está introduzida culturalmente no repertório da comunidade. A essa situação simi-
lar na fronteira Brasil/Uruguai, Lipski (2011, p.91) traz a seguinte explicação:
[...] quando falam português, introduzem elementos do espanhol de forma inconscien-
te, frequentemente em violação das restrições sintáticas que regem as mudanças de código
entre pessoas bilíngues. A linguagem mista oferecida como “português” é produzida pela
combinação da aquisição parcial do português e o fato do espanhol e o português serem
línguas altamente cognatas, com muitas configurações idênticas que pode ser ambíguas no
discurso bilíngue e que favorecem uma densidade de mudança de código inter-oracional
maior que nos casos de línguas tipológicamente mais distintas” (grifo nosso).

O uso dos dois idiomas em 02-San Juan de Corralito produz como efeito inte-
rinfluências linguísticas - empréstimos lexicais-, que constitui o que Lipski (2011)
chama de variedades mistas. Dessa maneira, o PFB constituiria um exemplo desse
tipo de variedade, pois, se apresenta tipologicamente semelhante ao espanhol.

10  Tanto Curicha (San Juan de Corralito) quanto Corixa (Cáceres) derivam da palavra Curiche (do arauac. curi “negro” e o sufixo cho
“gente”) significando pântano ou lagoa (NARANJO, 1975, p. 48).
Sumário
139
Entretanto, é importante destacar que as lexias registradas nesse espaço fron-
teiriço para essa brincadeira, revelam que não há uma produtividade recíproca le-
xical entre os 04 pontos, como se poderia esperar dado a localização geográfica,
a relação cultural entre os dois municípios e ao fato de o português e o espanhol
serem línguas altamente cognatas.
O gráfico abaixo demonstra essa disparidade, em que se observa quantitativa-
mente a produtividade das variantes de cabra-cega em cada ponto investigado. Ao
comparar cada ponto, verifica-se que há um continuum lexical para designar essa
brincadeira que vai desde a 04-Zona urbana de Cáceres até 02-San Juan de Corra-
lito (San Matias).
Gráfico 1: Produtividade das denominações para “cabra-cega” em San Matias e Cáceres

Fonte: Elaboração do autor.

Nota-se que para a designação da brincadeira em questão, tanto em 03-Co-


rixa quanto na 04-Zona urbana de Cáceres não houve registro de gallinita ciega,
ao contrário, prevaleceram as lexias do português, sendo cobra-cega com maior
produtividade em ambos os pontos, e com menor produtividade a lexia cai no poço,
com 11,11 %.
A brincadeira cai no poço, embora diferente do jogo cabra-cega na forma e
nos comandos, possuem em comum a ação de vendar o participante no processo
de adivinhação, talvez por essa razão, tenha aparecido nas respostas dos informan-
tes. Tudo leva a crer que possam ter se confundido com as brincadeiras. Cai no
poço pode ser nessa região mais uma variante de cabra-cega, dentre tantas outras
documentadas em diferentes atlas linguísticos regionais do Brasil. Um detalhe im-
portante, é que a referida lexia só foi documentada na 04-Zona urbana de Cáceres,
prevalecendo cobra-cega em 03-Corixa.
Portanto, a partir dos dados obtidos, tem-se cobra-cega como a lexia predo-
minante tanto do lado brasileiro quanto boliviano, especialmente, em 03-San Juan
de Corralito, reforçando a hipótese inicial da influência do português sobre o mu-
nicípio de San Matias.
Sumário
140
O uso de cobra-cega para além do território brasileiro demonstra que no uni-
verso lúdico entre os matienhos e cacerenses, há muito mais semelhanças que di-
ferenças no âmbito lúdico, sobretudo, quando consideramos o espaço rural fron-
teiriço, dado ao fato de 02-San Juan de Corralito e 03-Corixa compartilharem uma
relação cultural e linguística maior que a 01-Zona urbana de San Matias.
Considerações finais
Com base na análise dos dados, pode-se pressupor que as designações cobra-
-cega e cabra-cega fazem parte do universo lúdico entre brasileiros e bolivianos
nesse espaço fronteiriço. Entretanto, há uma diferença quanto à recepção dessas
lexias, isto é, na 01-Zona urbana de San Matias, prevaleceu a forma do espanhol
gallinita ciega, o que se pode depreender uma influência maior da cultura nacional,
uma aproximação daquilo que se considera como legítima brincadeira boliviana.
Contrariamente a essa perspectiva, 02-San Juan de Corralito demonstra, pela
alta produtividade de cobra-cega uma aproximação maior a cultura brasileira, visto
que compartilha vivências e memórias com a comunidade de 03-Corixa.
Verificou-se que nos pontos pesquisados em Cáceres, os moradores não com-
partilham a designação do espanhol gallinita ciega, o que faz supor um gesto de
distanciamento, que pode ser fruto do modo como San Matias foi ao longo do tem-
po significada como um lugar perigoso, refletindo sobre a língua, uma atitude lin-
guística mais negativa por parte dos cacerenses.
A dependência de San Matias em relação a Cáceres possibilitou um intercâm-
bio cultural bastante produtivo para os matienhos, razão que explicaria, por exem-
plo, a presença de cobra-cega no repertório lexical boliviano, que para além de um
simples empréstimo, faz parte da memória dos moradores.
Embora gallinita ciega e cobra-cega sejam brincadeiras similares, a escolha
lexical por parte dos matienhos é de ordem identitária. Os moradores urbanos
-também afetados pela influência brasileira- procuram manter um vínculo maior
com tudo àquilo que se pode considerar como “nacional”, e o uso da denominação
gallinita ciega reflete essa realidade.
Já para os moradores de San Juan de Corralito, cobra-cega e cabra-cega são
jogos e brincadeiras que refletem o “ser fronteiriço” sem deixar de ser boliviano,
uma vez que agrega para a comunidade valores simbólicos do contato que estão
presentes no dia a dia, como a família, a amizade, a integração intercultural entre
os dois países.
Portanto, conclui-se que há fortes evidências de uma influência cultural bra-
sileira sobre San Matias, como foi demonstrada a alta produtividade de cobra-cega
em San Juan de Corralito.
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O contato português-francês e o
bilinguismo societal dos catraieiros
na fronteira franco-brasileira 1

Lizandra Valéria da Silva Fumelê2


Kelly Cristina Nascimento Day3

Resumo: As regiões de fronteira entre nações constituem ambientes propícios para a emergência de situ-
ações de bilinguismo. Nesse contexto, o presente trabalho tem como objetivo apresentar o(s) processo(s)
de formação bilíngue dos trabalhadores denominados catraieiros que operam a travessia de passageiros
através de catraias na fronteira franco-brasileira, entre as cidades de Oiapoque e Saint-Georges. O supor-
te teórico-metodológico utilizado nesse estudo tem como base aportes da Sociolinguística, discutidos por
Labov (1966), estudos do Contato Linguístico, a partir das contribuições de Weinrich (1953) e Romaine
(1997), e as noções de bilinguismo a partir de uma perspectiva societal, conforme discussões apresentadas
por Mackey (1972), Hamers e Blanc (2000), entre outros. Os procedimentos metodológicos empregados na
pesquisa são de cunho etnográfico. A pesquisa de campo, de natureza qualitativa, teve como instrumentos
de coleta de dados o questionário, a entrevista semiestruturada e as notas de campo. Os resultados obtidos
evidenciam que os catraieiros constituem um grupo bilíngue/plurilíngue, com baixo nível de escolaridade,
mas que falam, em sua maioria, mais de duas línguas dentre aquelas em uso na fronteira franco-brasileira.
Foi constatado também que o processo de formação bilíngue está fundamentado na convivência com os
franceses metropolitanos e guianenses, que atravessam diariamente a fronteira, e que o nível de conheci-
mento das línguas é muito variável dentro do grupo.
Palavras-Chave: Bilinguismo societal. Formação bilíngue. Fronteira franco–brasileira.

Introdução
A fronteira Brasil-Guiana Francesa apresenta uma configuração única no con-
texto das fronteiras brasileiras, demarcada pelo encontro do português com o fran-
cês e demais línguas de base francesa presentes na região. Diferente das fronteiras
que já reúnem trabalhos mais amplamente reconhecidos como Rivera e Santana
do Livramento, Aceguá e Aceguá, Chui, Chuy, entre outros, a fronteira Oiapoque/
1  O presente capítulo se insere no âmbito do Projeto de Pesquisa Estudos da Paisagem Linguística da fronteira Amapá-Guiana Francesa,
desenvolvido pelo Grupo de Pesquisa LINLIS, da Universidade do Estado do Amapá.
2  Acadêmica do Curso de Letras-Francês da Universidade do Estado do Amapá - UEAP. Bolsista do Programa Institucional de Bolsas de
Iniciação Científica - PIBIC/CNPq. E-mail: [email protected].
3  Professora Adjunta na Universidade do Estado do Amapá - UEAP. Orientadora no Programa Institucional de Bolsas de Iniciação
Científica - PIBIC/ CNPq. E-mail: [email protected].
Sumário
143
Saint-Georges tem uma realidade linguística ainda pouco discutida e conhecida.
Dentre os trabalhos já realizados no âmbito dos estudos do contato linguístico, po-
demos citar o panorama sociolinguístico das línguas em presença, realizado por
Day (2005), as discussões feitas por Llorens (2006) acerca do ensino das línguas
francesa e portuguesa na fronteira e o trabalho de Ribeiro (2016) que retrata os
aspectos da influência fonológica no falar fronteiriço.
A fronteira franco-brasileira, delimitada pelo rio Oiapoque, até bem pouco
tempo, só vivenciava a integração entre comunidades francesas e brasileiras a par-
tir da utilização de catraias - meio de transporte utilizado na travessia entre as
fronteiras. Esse transporte fluvial é conduzido pelos barqueiros, conhecidos na re-
gião como catraieiros. A condição bilíngue desse grupo é, portanto, condição fun-
damental para o desenvolvimento e o sucesso da atividade.
Nesse cenário, considerando que as fronteiras são zonas peculiares para o
surgimento de sociedades bilíngues ou multilíngues, o presente trabalho tem como
intuito determinar e analisar de que maneira tem ocorrido o processo de formação
bilíngue dos trabalhadores catraieiros na fronteira franco-brasileira. Tendo como
pano de fundo a dinâmica comunicativa entre brasileiros e estrangeiros, buscou-
-se compreender a constituição de um grupo social bilíngue no contexto de uma
comunidade considerada majoritariamente monolíngue, ainda que haja um fluxo
constante de pessoas entre as duas regiões.
Breve histórico dos estudos do contato linguístico
O contato linguístico sempre esteve presente no desenvolvimento, na forma-
ção e na estruturação das línguas, sendo, portanto, um componente determinante
no processo de evolução e mudança nas línguas, embora nem sempre os estudos
linguísticos o tenham considerado como um fator determinante.
Ainda que estudos isolados do contato tenham ocorrido desde o século XIV,
historicamente, o contato linguístico apenas começa a ganhar relevância como
fator de mudança nas línguas e nas sociedades no século XIX, quando o método
histórico e a gramática comparada abrem caminho para o pensamento linguístico
contemporâneo (LEROY, 1971). As noções de parentesco linguístico e de protótipo
comum impulsionariam o avanço da linguística, situando-a em uma perspectiva
histórica, científica e racionalista.
No final dos anos de 1800, a gramática comparada ganha uma nova orientação,
abandonam-se as concepções românticas sobre a pureza da língua primitiva e re-
nuncia-se a análise genética das formas gramaticais. Os chamados neogramáticos,
imbuídos na crença absoluta das leis fonéticas, dedicam-se a aplicar rigorosamente
o método positivista às mudanças linguísticas, porém, se por um lado as leis fonéti-
cas davam conta de certo número de modificações ocorridas em certas línguas, em
certos lugares, em determinados períodos, por outro, pesquisas linguísticas deste
período também iriam mostrar que outras mudanças no campo da semântica ou
da sintaxe também poderiam ser constatadas com certa regularidade, embora não
tivessem recebido, na época, a mesma atenção dedicada às mudanças sonoras.
Sumário
144
Finalmente, foi observando-se que a língua de uma dada localidade está fre-
quentemente acessível à influência de populações com as quais seus membros
estão em contato, que se constatou que comunidades linguísticas distintas em-
prestam mutuamente palavras, ordens sintáticas, formas gramaticais, modos de
pronunciar de outras línguas, de outros falares e mesmo de textos escritos, e que o
resultado pode ser, embora por processos diferentes, semelhante aquele das mu-
danças espontâneas (DAY, 2005).
No início do século XX, a Geografia Linguística vai se preocupar em considerar
o meio no qual uma determinada língua se insere, estudando a repartição geográfi-
ca das formas e das palavras, assim como seu grau de extensão, numa tentativa de
traçar os limites dialetais. Para Leroy (1971, p. 50) “as observações feitas sobre a
repartição dos falares contribuíram para dar um golpe final no dogma neogramá-
tico de ‘infalibilidade das leis fonéticas’, e concede ao estudo do contato um novo
fôlego”.
O estudo da repartição geográfica dos fatos fonológicos fez mostrar que várias
ocorrências ultrapassam comumente os limites de uma língua e tendem a reunir
várias línguas contíguas, independentemente de suas relações genéticas ou da au-
sência destas relações.
Um dos nomes que se destaca no estudo do contato no início do século XX,
ainda que seu trabalho não tenha tido a justa repercussão na sua época, é o de
Hugo Schuchardt. A noção de “Afinidade linguística”, por ele defendida, rompe com
o comparatismo genealógico que contesta fundamentalmente sua tipologia e recu-
sa a metáfora darwiniana sobre a qual se fundamenta.
Ainda no século XX, os estudos de contato ganham um espaço significativo
com o surgimento da Sociolinguística, que de acordo com Labov (1966, p. 72) “tem
como objeto de estudo a reflexão e análise da própria estrutura e da evolução da
língua no contexto social da comunidade”. A perspectiva sociolinguística permite
analisar não somente a relação entre os indivíduos e suas línguas, mas também as
relações entre os grupos e colocar em evidência fenômenos tanto individuais quan-
to sociais, decorrentes do contato linguístico.
Um dos primeiros a falar sobre contato linguístico foi Weinrich (1953). Na sua
concepção, as línguas entram em contato quando o indivíduo as utiliza alternada-
mente, a partir da perspectiva da mente do falante bilíngue. Em uma abordagem
mais numérica, Calvet (2002) argumenta que a quantidade existente de línguas
no mundo faz com que as sociedades sejam, de modo geral, plurilíngues e enfatiza
que:
O plurilinguismo faz com que as línguas estejam constantemente em contato. O lugar des-
ses contatos pode ser o indivíduo (bilíngue ou em situação de aquisição) ou a comunidade.
E o resultado dos contatos é um dos primeiros objetos de estudo da sociolinguística (CAL-
VET, 2002, p. 35).

Em outros termos, pode-se afirmar que o quantitativo de línguas, aliado ao


intercâmbio sem precedentes entre os povos que se configuram nos dias atuais,
impulsionado pelos elementos da vida moderna como a mídia e a internet, o co-
mércio internacional e o turismo, faz com que o cidadão de hoje e as sociedades
Sumário
145
contemporâneas sejam, por definição, plurilíngues (DAY, 2005). Nesse sentido, as
regiões de fronteira, por sua vez, dadas às condições geopolíticas em que se encon-
tram, são particularmente fecundas para as situações de contato e, também, para o
surgimento de sociedades bi/multilíngues, contexto em que se insere a realização
desse trabalho.
Algumas discussões acerca do Bilinguismo
Os debates em torno da definição de bilinguismo não são recentes e tampouco
constituem questão superada ou consenso no universo da linguística, neste sentido
apresentam-se nessa seção algumas discussões acerca do bilinguismo.
Para Bloomfield (1935, apud HAMERS; BLANC, 2000, p. 6), o bilinguismo é “o
controle nativo de duas línguas”. Partindo dessa ideia, Etxebarría (1995, apud ME-
DINA LÓPEZ, 1997, p. 19) compreende que bilíngue “é o indivíduo que, além de sua
própria língua, possui uma competência semelhante em outra língua e é capaz de
usar uma ou outra em qualquer situação comunicativa e com eficácia comunicativa
idêntica”.
No sentido contrário, em uma concepção mais ampliada de bilinguismo,
Edwards (2006) defende que saber ao menos uma palavra em outra língua já pode
ser elemento indicativo de uma competência bilíngue.
Por fim, alguns teóricos como Bhatia (2006, p. 5, apud PRESS; ÁLVARES, 2014)
afirma que a investigação acerca do bilinguismo “é uma área ampla e complexa, in-
cluindo o estudo da natureza do conhecimento e uso bilíngue de duas (‘ou mais’)
línguas [...]”.
Bilinguismo societal
As sociedades bilíngues ou multilíngues não surgem por acaso ou capricho,
elas são fruto do contato entre grupos linguísticos distintos e da necessidade de
comunicação. Segundo Appel e Muysken (1996), existem mais de 5 mil línguas no
mundo e cerca de 190 países, assim sendo, o contato linguístico é inevitável e em
decorrência disso há várias comunidades linguísticas que vivenciam o bilinguismo
societal. Partindo dessa perspectiva, para Preuss e Álvares (2014, p. 404), o bilin-
guismo societal é considerado como o “uso de duas línguas em uma determinada
comunidade”.
Day (2005, p. 33) considera que, de modo geral, “o bilinguismo social é fruto
da convivência de pessoas que dividem o mesmo espaço geográfico, onde um gru-
po aprende a língua do outro e muitas vezes acaba por compor um único grupo
social bilíngue”, ou mesmo grupos bilíngues distintos.
Hamers e Blanc (1989) propõem uma diferenciação semântica entre os ter-
mos bilinguismo e bilingualidade, em que o primeiro faz referência ao grupo social
bilíngue e o segundo corresponde ao uso individual de duas ou mais línguas. Entre-
tanto, Romaine (1997) assinala que não se pode separar a definição de bilinguismo
societal do individual, pois, tanto em comunidade quanto individualmente ambos
se expressam em mais de um idioma.
Sumário
146
Weinreich (1970, apud DAY, 2005) destaca o fato de que em toda situação
de contato, as linhas divisórias que separam povos falantes de diferentes línguas
maternas são coincidentes com outras divisões de natureza não linguística relacio-
nadas a aspectos étnicos, raciais, religiosos, econômicos e de status social. A linha
geográfica é, portanto, só mais um dos fatores de convergência na organização so-
cial e linguística de povos. Nesse sentido, o autor considera que, no caso de uma
região de fronteiras, salvo em casos de obstáculos físicos, o contato linguístico é
fator inerente ao contexto e conduz ao bilinguismo individual e societal.
Outro fator importante na conformação de sociedades bilíngues, que se mos-
tra relevante para o trabalho aqui proposto, é a força relativa de uma língua sobre
outra, quanto ao poder econômico que supõem. Especialmente em situações fron-
teiriças, as expectativas de trabalho e de melhores condições de vida conduzem
frequentemente ao uso de uma nova língua, cujo prestígio pode trazer resultados
econômicos mais vantajosos. De igual maneira, o valor econômico influencia dire-
tamente nos processos migratórios dos povos e, por conseguinte, afetam direta-
mente a condição monolíngue dos indivíduos, conforme discutiremos nas próxi-
mas seções deste capítulo.
Aspectos metodológicos da pesquisa
Este trabalho caracteriza-se como uma pesquisa de campo, descritiva e quan-
tiqualitativa, realizada no município de Oiapoque, no estado do Amapá. Os tra-
balhadores catraieiros que trabalham diariamente nessa zona fronteiriça são o
público-alvo. A pesquisa de campo teve como instrumentos de coleta de dados o
questionário e a entrevista semiestruturada.
Visando compreender o processo de formação bilíngue desse público especí-
fico, no âmbito do contato linguístico português-francês na fronteira, foram entre-
vistados 20 catraieiros entre 20 e 60 anos. A coleta de dados consistiu em três mo-
mentos: (1) abordagem, solicitação e consentimento do informante, (2) resposta
ao questionário sociolinguístico e (3) a entrevista propriamente dita.
As perguntas pré-elaboradas que conduziram a entrevista foram as seguintes:
1) qual a principal língua da fronteira? 2) quantas línguas você fala? e quais 3) qual
língua é mais utilizada no ambiente de trabalho? 4) qual delas você fala melhor (ou
se sente mais confortável em falar)? 5) como a(s) aprendeu? 6) você achou difícil
aprender uma outra língua? 7) você escreve em outra língua? e 8) de que modo
essa língua influencia/influenciou na sua primeira língua?
A pesquisa teve como lócus o município de Oiapoque, na região de fronteira
entre o Brasil e a Guiana Francesa. Oiapoque é um município brasileiro pertencente
ao estado do Amapá. Saint-Georges, no lado oposto, é uma pequena comunidade da
Guiana Francesa.
Em que pese à abertura recente da ponte binacional ocorrida em 2017, o meio
de transporte mais habitual utilizado para travessia entre as fronteiras é a catraia,
um barco de pequeno porte capaz de comportar entre quatro e dez passageiros
por viagem com duração de 10 a 15 minutos. Esse transporte fluvial é conduzido
Sumário
147
pelos barqueiros conhecidos ali na região como catraieiros, cuja condição bilíngue
constitui o eixo de investigação principal desta pesquisa.
Dentre os informantes, 50% são nativos de Oiapoque e a outra metade é
oriunda de municípios vizinhos ou de outros estados como Pará, Maranhão e Piauí;
segundo eles, foram morar no município pela vantagem de ser uma zona de frontei-
ra entre dois países, onde o fluxo corrente de duas moedas, o real e o euro, oferece
maior condição de renda e favorece a economia do lado brasileiro.
Em relação à escolaridade dos informantes, a maior parte estudou integral-
mente em escola pública, sendo que muitos não concluíram o ensino fundamental
(45%) e nem o ensino médio (40%).
Apresentação e discussão dos resultados
Nesse tópico, serão analisados os dados obtidos na entrevista semiestrutura-
da acerca do contato português/francês na fronteira e o processo de bilinguismo
dos catraieiros nesse cenário.
Partindo do parâmetro de que o bilinguismo social nasce comumente da con-
vivência entre falantes de línguas distintas no mesmo território ou espaços contí-
guos e tendo em vista a variedade de línguas que circulam na zona de fronteira en-
tre Oiapoque e Saint-Georges, bem como a relação de força que se estabelece entre
as línguas (MACKEY, 1972), a questão inicial, “qual a principal língua da fronteira?”,
aponta razões para a conformação bilíngue dos catraieiros da região de Oiapoque.
A língua francesa aparece como mais importante para 40% do grupo pesquisa-
do, seguida da língua portuguesa, como a principal língua para 35% do grupo e o
crioulo guianense surge como a principal para 25% dos entrevistados, conforme
dados apresentados no Gráfico 01, a seguir:
Gráfico 1: Principal língua da fronteira

Fonte: Elaborado pelas autoras.

Observa-se pelo Gráfico 01 que três línguas se destacam no grau de importân-


cia para os catraieiros: o francês, o português e o crioulo (guianense). Estes dados
indicam também o uso de pelo menos duas línguas no ambiente de trabalho desses
trabalhadores, sejam elas: o português e o francês, o português e o crioulo guianen-
se, ou a utilização das três citadas no estudo (o português, o francês e o crioulo) no
ambiente de trabalho. Destaca-se ainda que na correlação de força entre as línguas,
embora o português seja a língua da maioria, o francês e o crioulo guianense se as-
Sumário
148
sociam ao poder econômico que o euro agrega a estas línguas, razão que justifica,
inclusive, a presença de catraieiros oriundos de outras regiões do país, conforme
dados do questionário socioeconômico.
Corroborando os dados acima, no que concerne ao número de línguas faladas
pelos catraieiros, constatou-se que a maioria dos entrevistados (45%) fala três ou
quatro idiomas, 35% falam duas línguas e que apenas 20% falam somente o portu-
guês, estes, geralmente, são os mais idosos.
Segundo os informantes, o uso de duas ou mais línguas se deve ao fato de
que seus clientes, em grande parte, são estrangeiros (franceses metropolitanos e
guianenses) e como a maioria deles não sabe falar a língua portuguesa, geralmente,
procuram os catraieiros que sabem falar o francês ou o créole para se comunicar,
ou até mesmo pedir informações sobre a fronteira. O Gráfico 02 apresenta a com-
pilação das respostas.
Gráfico 2: Nº de línguas faladas pelos catraieiros

Fonte: Elaborado pelas autoras.

O gráfico acima apresenta um quadro bastante significativo quanto ao nível


de bilinguismo entre os catraieiros da fronteira, indicando que 80% deles são bilín-
gues e falam entre duas e três línguas. Embora não tenha sido possível aferir o nível
de domínio linguístico dos participantes da pesquisa, muitos deles admitem que
em muitos casos, o repertório linguístico nas outras línguas (adicionais) é restrito
ao universo do trabalho.
Um fator relevante em relação à escolaridade dos entrevistados é que dos vin-
te envolvidos na pesquisa, metade (50%) não estudou nenhum idioma na escola,
em contrapartida, a outra parte (50%) teve o contato com uma língua estrangeira
na escola e a disciplina mais citada foi a língua francesa, seguida da inglesa e da es-
panhola. No entanto, o conhecimento que têm da língua não é relacionado, por eles,
ao estudo formal, mas à vivência diária na fronteira, sobretudo quando se trata do
crioulo guianense.
Mediante a essas constatações, perguntou-se aos catraieiros qual das línguas
presentes na zona de fronteira (Oiapoque /Saint-Georges) eles mais utilizam para
se comunicar no trabalho. Os dados reunidos no Gráfico 03 mostram que 50% dos
catraieiros faze uso mais frequente do português no seu ambiente de trabalho; em
Sumário
149
seguida, a língua francesa aparece como mais utilizada para 42% do grupo e por
último constata-se o crioulo com 8% de uso no trabalho pelos informantes.
Estabelecendo um contraponto com a primeira questão, observa-se que em-
bora o francês seja a língua considerada mais importante economicamente, o por-
tuguês ressurge como a língua mais usada na região, uma vez que é seguramente
a língua da maioria da população. Nesse contexto, o que se constata, portanto, é
um processo frequente de adaptação do discurso (HAMMERS; BLANC, 1983) dos
brasileiros para atender aos seus interlocutores franceses, impulsionada pela con-
dição econômica. Em outros termos, pode-se afirmar que a condição bilíngue dos
catraieiros é impulsionada pelo aspecto econômico.
Gráfico 3: Qual a língua mais utilizada no trabalho

Fonte: Elaborado pelas autoras.

Quanto ao domínio e ao conforto linguístico no uso das línguas, por mais que
os catraieiros falem mais de uma língua, o Gráfico 04 mostra que a grande maioria
(70%) se sente mais confortável em falar o português por ser a sua língua materna
e, portanto, ter uma fluência maior nessa língua. Por outro lado, 30% consideram o
francês como a língua que falam melhor, conforme demostra-se no gráfico abaixo:
Gráfico 4: Conforto Linguístico

Fonte: Elaborado pelas autoras.

O conforto linguístico indicado pelos catraieiros aponta pistas das habilida-


des linguísticas destes falantes nos idiomas da região e, conforme indica Altenho-
fen (2004), coloca em destaque que nem todos têm o mesmo nível de bilinguismo,
de repertório e, provavelmente, não alcançam o mesmo nível de bilingualidade
(HAMERS; BLANC, 2000). Além disso, outro fator importante na condição bilíngue
Sumário
150
dos catraieiros está relacionado ao fato de que alguns são originários da região de
Oiapoque e provavelmente cresceram convivendo com as línguas majoritárias e,
portanto, tem uma convivência muito mais longa com o francês e o crioulo, além
do português, o que justifica uma maior habilidade no francês, por exemplo. No
sentido oposto, nenhum dos informantes indicou o crioulo como língua de maior
conforto linguístico, ainda que alguns deles vejam nessa língua uma grande impor-
tância regional. Esse distanciamento pode estar relacionado a questões identitá-
rias e de representação das línguas menos prestigiadas.
Quanto ao processo de tornar-se falante de uma segunda ou terceira língua
(L2), questionou-se como os informantes aprenderam as línguas faladas por eles.
O Gráfico 05 mostra que esse grupo (85%) as aprendeu principalmente em decor-
rência da convivência com os estrangeiros no seu ambiente de trabalho e apenas
15% do grupo informou ter vivenciado processos de aprendizagem formal (escola)
ou de aquisição precoce (na infância em família), como se observa no Gráfico 05, a
seguir:
Gráfico 5: Natureza do falar bilíngue dos catraieiros

Fonte: Elaborado pelas autoras.

Os dados indicam que a conformação bilíngue dos catraieiros é essencialmen-


te fruto do contato linguístico que se dá no ambiente de trabalho e indica uma
natureza instrumental, baseada na necessidade de aferir benefícios econômicos.
Diferente de outras regiões, onde o bilinguismo português/francês é fruto da apren-
dizagem formal e principalmente de situações elitizadas de uso, o falar bilíngue dos
catraieiros da região de Oiapoque é proveniente da convergência geopolítica, social
e linguística de brasileiros e franceses nessa zona de fronteira.
Em complemento a pergunta anterior, o questionamento relativo às dificulda-
des encontradas nesse processo visava compreender como os informantes perce-
beram a aquisição dessa(s) nova(s) língua(s). De acordo com o Gráfico 06, consta-
ta-se uma equivalência nos resultados, 50% revela que não encontrou dificuldade
em aprender uma nova língua, em contrapartida, outros 50% dos catraieiros infor-
maram que sentiram dificuldade em aprender esse novo idioma e argumentaram
que isto só foi possível através do contato diário e pela necessidade de entender
o que os clientes falavam, para poder haver uma comunicação entre catraieiros e
estrangeiros.
Sumário
151
Além disso, alguns informantes afirmam que quando não era possível a co-
municação oral, eles optavam por duas estratégias: 1) uma comunicação gestual
com o cliente e caso essa primeira não fosse bem-sucedida, 2) eles procuravam,
geralmente entre eles, alguém que soubesse falar a língua estrangeira em questão
para poder negociar o valor da travessia. O Gráfico 06 retrata a percepção dessa
dificuldade.
Gráfico 6: Dificuldades no processo de aquisição da L2

Fonte: Elaborado pelas autoras.

Uma vez constatado o uso de mais de duas línguas pela maioria dos catraiei-
ros, e considerando o bilinguismo como resultante também das funções do idioma
no quotidiano do indivíduo, conforme defende Mackey (1992), buscou-se com a
questão 07 compreender se o bilinguismo desse grupo se estenderia para além
da competência oral (compreensão e expressão), uma vez que alguns estudiosos
entendem que para ser considerado bilíngue existem níveis de bilinguismo que vai
além do fato de apenas falar a língua.
Neste sentido, questionamos aos entrevistados se além de falar outro idioma,
os falantes escreviam nessas línguas. Os dados informam que 20% dos catraieiros
escrevem em sua segunda língua, na oportunidade citam o francês como a língua
em que possuem conhecimento da escrita. Os outros 80% dos informantes não
possuem domínio da competência escrita. Como se observa no Gráfico 07, a seguir:
Gráfico 7: Domínio da escrita da 2ª língua

Fonte: Elaborado pelas autoras.

Em consonância com as ideias de Grosjean (1994), pode-se dizer que o bi-


linguismo desse grupo está diretamente vinculado às necessidades específicas e
domínios de uso. A competência escrita, pouco exigida nesse contexto, parece ser
menos representativa que a oralidade e retrata uma realidade comum de processos
de bilinguismo que não estão vinculados ao ensino formal, bem como ocorre com a
Sumário
152
própria língua materna, vale lembrar que boa parte do grupo não possui o ensino
fundamental completo.
Tendo em vista uma possível utilização frequente de uma segunda língua no
ambiente de trabalho, considerou-se relevante investigar se esse uso diário da lín-
gua estrangeira, na percepção dos informantes, influenciou/influencia na língua
materna dos catraieiros. Os dados apresentados no Gráfico 08 mostram que 85%
dos informantes acreditam que a segunda língua interfere significativamente em
suas línguas maternas e somente 15% acredita que não há influência.
Gráfico 8: Influência da segunda língua sobre a língua materna

Fonte: Elaborado pelas autoras.

Ainda que os entrevistados não soubessem nomear os fenômenos resultantes


desse contato e as influências decorrentes dele na língua materna, os catraieiros
relatam situações que indicam uma incidência frequente de processos de adapta-
ção e empréstimo de termos de uma língua para outra (português-francês-criou-
lo); mudança de uma língua pra outra no quotidiano do trabalho, especialmente
diante de desconhecidos ou ainda quando não querem ser compreendidos; uso de
expressões da segunda língua no cotidiano entre os catraieiros, cuja frequência tor-
na-se de uso comum, entre outras. Questões essas que merecem investigações mais
específicas visando maior conhecimento dessa realidade.
Considerações finais
A pesquisa realizada na região de fronteira entre o município de Oiapoque e
Saint-George, região limítrofe entre o Brasil e a Guiana Francesa, demarca o con-
tato linguístico do português com o francês, além de diversas outras línguas que
circulam no dia a dia dos moradores da região, tais como o crioulo guianense e o
kheuól4, e apresenta o bilinguismo dos catraieiros como um dos principais resul-
tados desse encontro.
Embora o português seja a língua da maioria da população e também a mais
utilizada no ambiente de trabalho, pode-se afirmar que em virtude do peso eco-
nômico que representa, a língua francesa evidencia-se como a principal língua da
região, sendo esta bastante utilizada pelos moradores dessa zona fronteiriça, espe-
cialmente aqueles que desenvolvem alguma atividade comercial.

4  De acordo com Sanches e Day (2020), o kheuól é uma variedade crioula de base francesa falada na Guiana francesa e utilizada como
língua franca pelos indígenas que residem no baixo Oiapoque.
Sumário
153
Constatou-se nessa pesquisa que os trabalhadores catraieiros constituem um
grupo majoritariamente bilíngue português/francês ou português/crioulo guia-
nense. O processo de conformação bilíngue desse grupo está baseado na aquisição
de uma segunda ou terceira língua no ambiente de trabalho, cuja convivência diária
com estrangeiros provenientes da Guiana Francesa, tanto possibilita quanto impõe
o contato linguístico supramencionado na rotina desses trabalhadores. A escola-
rização ou o estudo formal de línguas, por sua vez, aparenta não ter tido impacto
direto no bilinguismo apresentado pelos catraieiros, sobretudo quando se observa
que a ampla maioria cursou apenas o ensino fundamental e poucos tiveram acesso
ao ensino de uma língua estrangeira.
Por outro lado, ainda que a aquisição da segunda língua possa ser caracteri-
zada como um processo natural, 50% dos catraieiros revelam ter tido dificuldades
em aprender essa nova língua e atribuem o aprendizado ao contato diário e à ne-
cessidade que se impunha. De igual maneira, 80% deles declaram não dominar as
competências escritas na segunda língua, ou seja, o bilinguismo desse grupo está
diretamente relacionado às funções orais que esses idiomas ocupam no cotidiano.
Finalmente, observou-se que muito embora não tenha surgido uma nova lín-
gua de contato português-francês no Norte do Brasil, os hábitos linguísticos dos
catraieiros que indicam diversos fenômenos de contato linguístico presentes nessa
região. Assim, esperamos que esse trabalho contribua para um maior conhecimen-
to dos fenômenos de contato nessa fronteira e possa impulsionar a realização de
novas pesquisas para um melhor e maior conhecimento do tema em questão.
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WEINREICH, U. Languages in Contact. Findings and problems. Linguistic Cercle of New York, 1953.
Ladrão: um legado afrodescendente
nas tradições orais mazaganenses1
Edna dos Santos Oliveira2

Resumo: Este trabalho dedica-se a uma breve discussão acerca dos ladrões de marabaixo/batuque, enquan-
to tradição linguística oral, buscando estabelecer interface com os aspectos sócio-históricos para desvelar
as funções e regras sociais da oralidade que permeiam a dinâmica cultural da tradição oral de Mazagão
Velho. Os resultados mostram que na tradição oral mazaganense, os ladrões representam a materialidade
linguística das tradições afrodescendentes propagadas pela Amazônia, que foram preservadas nas manifes-
tações culturais de batuque e marabaixo.
Palavras-chave: Ladrão. Tradição Oral. Mazagão Velho.

Introdução
Historicamente foi divulgado pelos livros de História e de Geografia, bem
como foi incutido no imaginário coletivo brasileiro que a Amazônia era um imenso
vazio demográfico e o reduzido contingente populacional nativo era de indígenas,
havendo predominância de mata, rios e animais, ou seja, a natureza exuberante e
intocada. Essa é uma imagem idealizada, ou melhor, ideologizada que espelha a
histórica supervalorização da biodiversidade e a ignorância ou quiçá a negligência
da sociodiversidade, o que fundamentou a criação do “mito da natureza intocada”
(DIEGUES, 2002).
A ideia amplamente propagada de vazio demográfico, na verdade, ocultava a
existência da população ribeirinha e outros povos tradicionais, o que implicava o
não reconhecimento das populações nativas que habitavam essa região, com seu
modo de vida peculiar. Vale observar, assim, que não só de povos indígenas e ribei-
rinhos é composta a Amazônia, mas também por uma representativa população
afrodescendente, entre outras comunidades tradicionais como, pescadores, extra-
tivistas e garimpeiros, se levarmos em conta o conjunto do território, que inclui as
comunidades rurais.

1  Este capítulo foi constituído por recortes do conteúdo da Tese de Doutorado “Devoção, tambor e canto: um estudo etnolinguístico da
tradição oral de Mazagão Velho” (OLIVEIRA, 2015).
2  Doutora em Letras (Linguística) pela Universidade de São Paulo – USP. Professora Adjunta na Universidade do Estado do Amapá -
UEAP. E-mail: [email protected].
Sumário
155
A despeito disso, nosso olhar dirige-se aos aglomerados rurais que preenche-
ram esse vazio demográfico ao longo da região em que hoje se situa o estado do
Amapá, mais especificamente a região sul desse estado.
Tendo em vista a ecologia local, na qual o surgimento de comunidades ru-
rais afrodescendentes foi engendrado, estamos considerando a hipótese de difusão
da tradição oral, como resultado do intenso movimento populacional que se esta-
beleceu no período colonial no cenário das fugas; e estratégias de sobrevivência
ao regime de escravidão, implementado por Marquês de Pombal e executado por
Mendonça Furtado para a ocupação, defesa e exploração das terras do Cabo Norte.
Nesse aspecto, estamos postulando que a propagação das festas tradicionais,
em cuja realização há a ocorrência de batuque e marabaixo, é resultado do longo e
complexo processo de contatos entre colonizadores, africanos escravizados e indí-
genas, que favoreceu a difusão das manifestações que estamos considerando como
tradições afrodescendentes.
Nossa intenção neste capítulo consiste em uma breve discussão de quatro la-
drões, enquanto tradição linguística oral, em interface com os aspectos sócio-his-
tóricos, buscando desvelar as funções e regras sociais da oralidade que permeiam
a dinâmica cultural na comunidade de Mazagão Velho, no estado do Amapá.
Contexto sócio-histórico da colonização
A segunda metade do século XVIII é marcada pelo incremento do povoamento
e exploração das terras do Cabo Norte, como era conhecida a região do extremo
norte do Brasil, onde hoje se localizam os estados do Pará, Amapá e Maranhão. Fa-
zia-se necessária a ocupação para defesa das terras frequentemente cobiçadas por
outros países europeus, como a França e a Holanda, principalmente. Era oportuno,
então, além do povoamento, buscar a produção de insumos que pudessem suprir
as necessidades da colônia e da própria coroa portuguesa. A esse respeito, Gomes
(1999) afirma que:
Naqueles mares verdes, onde pululavam cada vez mais mocambos e fugitivos, havia uma
grande – talvez a maior e mais importante, preocupação por parte das autoridades colo-
niais. Por ser uma região de fronteiras, cercada por interesses ingleses, franceses, holande-
ses e espanhóis, temia-se que os escravos fugissem dos domínios portugueses. Tais frontei-
ras eram uma coisa móvel, uma vez que eram alvos constantes de disputas, principalmente
na segunda metade do século XVIII. [...] O problema dos roubos se articulava com o co-
mércio clandestino. Através dessas redes de trocas, fugitivos, amocambados e desertores
vendiam os produtos de suas roças, obtendo em troca, sobretudo, pólvora, armas de fogo e
aguardente (GOMES, 1999, p. 202).

Para dar cumprimento ao seu projeto de defesa e ocupação, Marquês de Pom-


bal havia criado, a pedido de Mendonça Furtado, em 1755, a Companhia Geral do
Grão-Pará e Maranhão, com o objetivo de fornecer escravos africanos à Amazônia,
mas que também recebeu a tarefa de transportar os mazaganenses de Lisboa para
Belém.
O tráfico de escravos é intensificado, tanto com a transplantação de cativos
da África, quanto com o remanejamento de cativos instalados em outras regiões
Sumário
156
do Brasil, como do nordeste brasileiro, mais frequentemente do Maranhão. Para
Gomes (1999, p. 225):
Na região colonial de Macapá e adjacências, fugitivos – negros, índios e soldados desertores
– foram protagonistas de uma original aventura para conquistar a liberdade. Com suas pró-
prias ações reinventaram significados e construíram visões sobre escravidão e liberdade.

O cenário histórico dá um panorama da situação complexa que compõe a for-


mação de Nova Mazagão. A complexidade nasce já do caráter híbrido da população
da Praça Forte no Marrocos, composta de portugueses para lá enviados pela coroa
para a colonização das terras estratégicas ao tão almejado caminho das índias. Ain-
da na África, portugueses e africanos escravizados já estabeleciam, ainda que de
forma restrita, relações com os mouros nativos.
Após a decisão da coroa de transferir a Praça Forte, novos contatos foram es-
tabelecidos na trajetória de transposição que teve uma parada de seis meses em
Lisboa, para, em seguida, aportar em Belém, já na Amazônia Brasileira, onde algu-
mas famílias permaneceram por até dez anos, até serem finalmente instaladas na
Nova Mazagão (VIDAL, 2008).
A chegada à cidade colonial deu-se diante de muitos protestos e resistência do
conjunto dos transportados. A recepção foi feita pelos índios aldeados ali instala-
dos para a construção da cidade que receberia os ex-soldados da fé/cruz. Havia ali
uma população mista de degredados, artesãos, militares, a existência de pelo me-
nos uma escrava moura, comerciantes, estrangeiros, africanos escravizados, aço-
rianos, mouros convertidos, religiosos, além da administração civil (VIDAL, 2008).
O cenário era duplamente híbrido: tanto a cidade transportada apresentava
formação heterogênea, quanto à ecologia local era também mista. Esse é um am-
biente naturalmente favorável à hibridização, ao sincretismo. Nesse cenário, se por
um lado tem-se o favorecimento à união de força fundamental à sobrevivência, por
outro, o amalgamento torna-se um desafio à preservação das particularidades de
cada elemento, apontando para a perda de características distintivas em favor do
surgimento das características gerais. Essa situação colabora para a emergência de
redes solidárias. Segundo Gomes (1999, p. 224):
Os desertores na Amazônia, deste modo, criaram laços de solidariedade e redes de troca
e proteção com vários outros setores da sociedade colonial. Podiam ser tanto foragidos,
índios e escravos fugidos como até pequenos donos de sítios e fazendas. Aparentemente,
tais redes de solidariedade permitiram a tais indivíduos reinventarem e reelaborarem seus
espaços sociais em busca de autonomia. Mudaram suas vidas e os contornos de ocupação
colonial na Amazônia.

Em meados do século XVI, múltiplas relações na colônia colocavam em fun-


cionamento as redes de solidariedade em busca de apoio e proteção para a vida
autônoma e livre. Como atestado por dados históricos, os contatos estabelecidos e
as redes criadas foram multifacetados, mas com um único propósito, sobrevivência
e criação de “espaços de autonomia”:
[...] contatos entre fugidos, índios e negros – e principalmente soldados desertores – cada
vez mais se desenvolviam. [...] Fugitivos e quilombolas contavam certamente com ajuda.
Ainda que nem sempre, acabavam em certa medida contando com o apoio de índios, taber-
Sumário
157
neiros, donos de canoas e outros escravos. [...] A busca de apoios, de alianças e de solidarie-
dades nesta região não tinha, literalmente, limites territoriais. Assim também pensaram os
quilombolas e fugitivos do Grão-Pará Colonial (GOMES, 1999, p. 206-234).

Além dos grupos citados acima, havia ainda forte ligação entre escravizados
fugidos e desertores militares entre os quais o fluxo de informação era eficiente
para orientação de rotas de fugas e outros tipos de experiências compartilhadas.
Havia, assim, uma teia de relações bastante complexa engendrando um cenário hí-
brido de contatos e de relações que espelhavam a realidade da sociedade colonial
no Grão-Pará.
É válido observar, com base nos textos de Gomes (1999), que, desde o período
colonial, houve um intenso movimento de migração nas terras que hoje ocupam a
região do interior do Amapá, o que favoreceu não só as formações híbridas, como a
propagação de hábitos, tradições e crenças. Nesse sentido, estamos postulando que
as ocorrências das festas de batuque e marabaixo na região sul do Amapá consti-
tuem evidência dessa difusão, uma vez que essas tradições foram propagadas para
outras localidades rurais que surgiram nos arredores da cidade de Mazagão. Se-
gundo Gomes (1999, p. 262):
Ainda que não fosse a única, a região do Amapá era, de fato, um dos principais focos de mo-
cambos. Este processo de fugas há muito tempo já tinha começado. No início de fevereiro
de 1767 fugiram de lá do Arapicu quatro pretos. Em 1785, chegavam notícias de ameaças
feitas por pretos fugidos de Mazagão.

Perscrutando os caminhos da história através dos escritos de Gomes (1999),


identificamos a possível existência de três dispersões, ou melhor, três rotas de mo-
vimento populacional no contexto das fugas no período colonial, uma tendo como
ponto de concentração ou de referência a Nova Mazagão e outra que tinha origem
na região do extremo norte, fronteira com as colônias francesa, espanhola e ingle-
sa, além da Vila de Macapá. A concentração de cativos na referida vila devia-se à
construção da fortificação militar (1764-1782), cuja obra durou 18 anos para ser
concluída.
Foi nesse movimento que se difundiu a rede de solidariedade formada no perí-
odo colonial quando havia a necessidade de aquilombamento e que tem se mantido
até os dias atuais através das festas de negros que, embora híbrida de catolicismo e
africanismo, foi mantida, preservada e reivindicada exclusivamente pelos afrodes-
cendentes que se propagaram pela área rural da região, povoando-a, ocupando-a e
estabelecendo múltiplas relações.
Situação Etnolinguística Atual
Mazagão Velho, como demonstrado, tem sua história ligada à trajetória de conta-
tos estabelecidos desde o século XVI ainda na colônia portuguesa, em território africano.
Nesse percurso, a população experimentou as mais diferentes situações, passando por
formações e constituições, assumindo diferentes status, desde a cidade-forte até a cidade
afrodescendente.
A cidade da memória cedeu lugar à cidade colonial (VIDAL, 2008) e nesse estatuto
o predomínio de colonos portugueses é evidente ou, ao menos, a organização hierárquica
Sumário
158
com a presença da administração colonial, os religiosos e os colonos. Dessa composição,
a cidade que sobreviveu a todas as passagens e fixou-se, enfim, na Amazônia, sofreu mais
uma mudança em seu estatuto: de cidade colonial à cidade afrodescendente, não sendo
considerado quilombo por opção da própria comunidade, embora preserve característi-
cas sociais, culturais e econômicas que lhe permitiriam o reconhecimento como remanes-
cente de quilombo.
Hoje Mazagão Velho é caracteristicamente afrodescendente, ainda que res-
guarde algumas tradições portuguesas, tais como as festas religiosas, inclusive a
de São Tiago que ocorre todos os anos no mês de julho, rememorando a vitória dos
portugueses cristãos sobre os mouros mulçumanos.
Mazagão Velho é Distrito do Município de Mazagão, assim como Carvão e a
própria sede do Município, conhecido como Mazagão Novo. A criação do Município
ocorreu em 1890 e hoje tem uma população total de 17.032 habitantes, conforme
Censo 2010. Tem sua economia sustentada na pequena atividade agrícola, no ex-
trativismo, na pesca e na pecuária extensiva.
De acordo com levantamento do IEPA (2005, p. 79):
Pelo último censo (IBGE, 2000), a população urbana de Mazagão Velho situava-se em torno
de 670 pessoas. Dentre os equipamentos de serviço público, a localidade conta com o aten-
dimento do Posto de Saúde, Escola Estadual Professora Antônia Silva Santos que oferece
ensino fundamental e segundo grau (modular), comunicação telefônica, energia elétrica,
transporte coletivo intermunicipal e serviço de abastecimento de água.

Destacadamente, a comunidade é referência cultural no Amapá, em virtude


de seu amplo calendário de festas religiosas, desde São Gonçalo, no primeiro mês
do ano, até os cordões das pastorinhas pelas comemorações natalinas. As festas
estão ligadas à religiosidade e ocorrem de acordo com o “Calendário Devocionário”
(IEPA, 2005, 79).
Tabela 1: Calendário Devocionário de Mazagão Velho

Fonte: Pesquisa de campo - COT/IEPA (2005).


Sumário
159
Como podemos observar, de acordo com o calendário, as festas seguem o ca-
lendário religioso, algumas restritas à comunidade de Mazagão Velho, outras fo-
ram difundidas para localidades vizinhas. Há festas que constam apenas da pro-
gramação na igreja, com novena e ladainha, assim como há festas que apresentam
a programação mais ampla constando de folia, marabaixo/batuque, festa dançante,
além das rezas.
Nesse sentido, é comum a participação de comunidades vizinhas nas festas
umas das outras, emprestando o cantador, o tocador, assim como garantindo dan-
çadores e público para o sucesso da festividade, perpetuando, assim, a rede de so-
lidariedade entre as comunidades. As rezas também são reforçadas pela presença
dos vizinhos, mais próximos ou mais distantes, que se deslocam para participar
em algum aspecto particular da festa ou apenas para prestigiá-la. Não pouco fre-
quentemente há um vínculo de parentesco entre os festeiros, o que reforça esse
relacionamento.
A ocorrência de batuque e marabaixo é o traço que marca a ancestralidade
africana da comunidade e que, segundo nossa hipótese, foi difundido para outras
comunidades espalhadas pelo interior do Amapá, a partir de Mazagão Velho, am-
plamente considerado o berço das tradições afrodescendentes no Amapá3.
É no contexto de realização das festas religiosas em que há a manifestação
de batuque e marabaixo que observamos a ocorrência dos ladrões, isto é, eles são
usados exclusivamente nas rodas de batuque e marabaixo, consideradas ambas as
manifestações de reminiscência africana. Acerca dessa origem, a pesquisa realiza-
da por técnicos do IEPA (2005, p. 83-84) aponta que:
[...] Mazagão Velho sintetiza o acervo dos ritmos de procedência africana da região marro-
quina, trazidos pelas famílias chegadas à região do Mutuacá a partir de 1771. Com eles veio
o marabaixo, dançado pela população negra por ocasião da festa do Divino Espírito Santo,
que em Mazagão Velho, é realizada de 17 a 24 de agosto. Outro ritmo foi o batuque, que faz
parte do quadro ritualístico da festa em louvor à Nossa Senhora da Piedade, como batuque
de obrigação, por ocasião das ladainhas e dos cortejos e procissões, e nos “bailes”, como
batuque profano (tanto marabaixo, quanto batuque, de Mazagão Velho foram difundidos
para outras localidades amapaenses).

Ladrão: estrutura, conteúdo e função social


O termo ladrão nomeia tanto a parte quanto o todo do canto que compõe a
manifestação de batuque e marabaixo. É a poesia oral que traduz a dinâmica da
vida ordinária e a resistência afrodescendente. É de uso restrito às comunidades
que preservam as referidas tradições. Quando se refere à parte notadamente o
nome ladrão faz referência ao refrão das demais composições musicais. Apresenta
estrutura flexível que prevê apenas a combinação de estrofes após o ladrão. Con-
vém ressaltar que a composição é restrita ao canto, isto é, não há outro uso para
essa poesia oral, senão cantada. É uma peça indissociável da engrenagem maior
do batuque e marabaixo. Ela se completa, portanto, no ritmo das caixas, entoada

3  A hipótese de que Mazagão seria o ponto de dispersão de tradições afrodescendentes no Amapá é discutida em Oliveira (2015) e
serviu de base para a proposição de duas áreas etnolinguísticas no Estado por Oliveira e Vasconcelos (2019).
Sumário
160
pelos puxadores. Trata-se de uma manifestação oral, cantada, dançada, vivida no
momento da performance.
Na realidade sociocultural mazaganense, a oralidade é ao mesmo tempo ins-
trumento e objeto cultural, uma vez que, simultaneamente, ela é a ferramenta de
transmissão de conhecimentos e práticas sociais, culturais e profissionais, e é a
própria prática social, com funções e papéis muito bem definidos na performance
de batuque/marabaixo.
Como uma das formas mais recorrentes de interação social e uma das práticas
linguísticas e sociais de grande valor simbólico, sobretudo para as comunidades
rurais distantes da máquina urbana, a linguagem oral ocupa lugar e papel deter-
minante em comunidades rurais tradicionais. Nesse sentido, todos os que operam
com essa ferramenta tornam-se, a um só tempo, instrumento e agente da cultura
oral.
O ladrão é o canto que dá vida ao ritmo empreendido pelo rufar das caixas de
marabaixo e dos tambores de batuque. Para os moradores, jogar versos na sequ-
ência de cada ladrão é uma brincadeira com os outros participantes, pode assumir
também o papel de uma sátira a um fato ocorrido, mas quase sempre constitui
desafio: de frente para a caixa, jogar um verso. O desafio, na verdade, revela uma
habilidade para a performance.
Para efeito de breve análise comparativa, comentaremos dois conjuntos de
ladrão4 que representam dois momentos distintos, um representando as antigas
tradições e outro representando o período mais recente.
Conjunto I Na hora que eu nasci.
Um galo louro canto, ô, ô, ô
Quando eu caí nos teus braços
II
Quando eu caí nos teus braços
Menina quando tu fores
Pensava que eu era feliz (bis)
Me escreve lá do caminho, ô, ô, ô
Mas quando eu me enganei
Se não tiveres papel
Mas o destino assim quis.
Na asa de um passarinho.
Os olhos da cobra é verde
Conjunto II
Agora que eu reparei
Se eu reparasse a mais tempo Negros
Não amava quem amei. (Manoel Duarte/Gungá)
Papagaio da pena verde, O o o, o o o,
Tem um encontro encarnado Somos negros vindos da África
Se tu tens amor com outra Nós temos força e muito amor
Não me tragas enganada. Eu sou negra canto marabaixo
Danço batuque
Se eu soubesse quem tu eras
e bato tambor
Quem tu haverás de ser
Meu coração eu não te dava O negro com sua história
Pra ele agora padecer. Causa muita emoção
e mostra toda a sua cultura
As curicas
Depois da libertação
As curicas estão roncando
Oi lantantã, oi lan tan-tã Hoje livre das correntes
Os caçador estão caçando Que um dia escravizou
Oi lan-tan-tã, oi lan-tan-tã Canta, dança, representa
I E mostra todo o seu valor
Se eu nasci de madrugada
O negro tem cor e tem raça
No cerpo dum virado, ô, ô, ô
Que outra não há igual

4   Para uma leitura mais ampla, consultar Oliveira (2015).


Sumário
161
Com sua dança e muita ginga Saímos de Portugal
Mostra seu jeito sensual Com destino a Belém
Deixamos nossas famílias
Com sua beleza ímpar
e nossos amigos também
A sua fé, costume e crença
Mostra que é capaz Sofrendo muitos maus tratos
de fazer a diferença E todo tipo de agravo
Desembarco em Mazagão
Vamos cantar e dançar
Com a condição de escravo
Com muita animação
Seja negro concorrido (?) Negros valentes, guerreiros
Pois somos irmão Ao chegar neste lugar
Arregaçaram as mangas
Marrocos
E se puseram a trabalhar
(Josué Videira/ Manoel Duarte)
Terra abençoada e fértil
Viemos lá de Marrocos
Tudo o que se planta dá
Para uma vila habitar
O milho, arroz e o feijão
Revivemos nossa história
Abastecia o Grão-Pará
Num cantinho do Amapá
Mesmo longe da mãe África
Sopram ventos africanos
Humilhado e sem amor
Navios saem pro outro lado
O negro tocou sua caixa
Em seus porões desumanos
E sua história cantou
Vieram nossos antepassados

O que podemos observar é que nos poemas do Conjunto I, cuja produção era
oral, de caráter coletivo e sem autoria identificada, a temática retrata aspectos da
vida ordinária de comunidades rurais amazônicas, embora apresente a mesma es-
trutura composicional, versos, rimas, estrofes. Estes poemas apresentam duas mu-
danças significativas em relação ao conjunto II, a primeira diz respeito ao conteúdo
dos versos e a segunda à forma de produção, à qual está solidariamente implicada
a autoria.
A mudança na forma de produção é acompanhada pela mudança na temática
abordada, isto é, junto com a transposição da modalidade utilizada pelos autores
dos versos, observamos o deslocamento do conteúdo que passa de uma temática
descontraída e até satírica para uma temática socialmente engajada, defensora da
identidade remanescente da África, ou da diáspora africana.
É em razão da temática da identidade negra que Almeida (2011, p. 30) faz a
seguinte afirmação: “a resistência política em Mazagão Velho se dá através da pala-
vra cantada. Ali é o lugar do canto e dança, do corpo e da palavra que emana dele.
Ali é um dos muitos territórios negros da Amazônia”.
A resistência à qual Almeida (2011) se refere é o lamento ouvido nos versos
do segundo conjunto de ladrões, que faz referência explícita à condição do negro na
sociedade brasileira, particularmente à situação engendrada no período colonial a
qual foram submetidos os ancestrais dos que hoje cantam esses ladrões.
A ancestralidade africana é apropriada para a defesa da identidade que tam-
bém é formada e firmada no momento do canto em que ecoa a voz do sofrimento,
da injustiça e da resistência, segundo a ótica do autor acima citado. O toque das
caixas reforça e exalta a condição de luta, através dos elementos distintivos dessa
comunidade, tais como o marabaixo, o batuque e o tambor, além da menção à diás-
pora:
Sumário
162
Somos negros vindos da África
Nós temos força e muito amor
Eu sou negra canto marabaixo
Danço batuque
e bato tambor

Como se pode observar, a temática da identidade negra não é marcada no pri-


meiro conjunto de versos, que trata de questões diversas, de casos ocorridos na
vida ordinária, de sátiras de fatos ocorridos com pessoas da comunidade.
Não se pode afirmar que a mudança de tema está associada à transposição da
modalidade, como causa ou consequência, mas é nitidamente observada a coinci-
dência entre tema e forma de produção, que muito provavelmente são tributários
do momento sócio-histórico da produção desses ladrões.
Quanto à estrutura, os ladrões em ambos os conjuntos apresentam-se da mes-
ma forma, sendo o início marcado pelo ladrão, seguido por versos que são entoados
por uma única pessoa e novamente o ladrão cantado pelo conjunto dos participan-
tes da roda. O ladrão é composto, com alguma regularidade, de estrofes de quatro
versos, sendo adotada a mesma forma para as estrofes. Não há uma ordem nem
uma composição exclusiva para a combinação de versos com o ladrão.
A transposição da forma de produção e da temática também pode estar refle-
tindo o deslocamento da função social dos ladrões. Dos cantos irreverentes, tradu-
tores da dinâmica da vida ordinária, aos cantos engajados na defesa da identidade,
da remanescência e da origem africana, ecoam as vozes da resistência. Ainda que
a forma de composição tenha sofrido mudança, a forma de transmissão, isto é, seu
uso mantém-se restrito às rodas de marabaixo e batuque, o que significa que a mu-
dança na forma de produção não exerce qualquer alteração na forma de recepção e
circulação desses textos, que permanecem com sua natureza oral.
Considerações finais
No conjunto das práticas sociais que observamos na tradição oral mazaga-
nense, os ladrões representam a materialidade linguística das tradições afrodes-
cendentes propagadas pela Amazônia, que foram preservadas nas manifestações
culturais de batuque e marabaixo.
Estamos supondo, com fundamento nos aspectos sócio-históricos acima apre-
sentados, que o ladrão é o traço mais forte da tradição oral das comunidades for-
madas no contexto da colonização e pós-colonização e que se propagou em virtude
do movimento populacional na região do extremo norte do Brasil. Nossa hipótese
prevê que essa difusão ocorreu em razão do intenso movimento populacional ocor-
rido no período colonial favorecendo a formação de rituais híbridos, decorrentes
do cenário de contato entre os povos que conviveram naquela área geográfica.
Tendo em vista a ocorrência da poesia oral, denominada pelas comunidades
locais de ladrão, ao longo de uma ampla área que se estende do sul do Amapá até o
extremo norte do estado, estamos assumindo-a como o traço cultural compartilha-
do para a definição, prévia, da existência de uma área etnolinguística.
Sumário
163
Não se pode afirmar que as festas religiosas tal qual são realizadas nas co-
munidades afrodescendentes são herança dos portugueses que se estabeleceram
naquela região, já que essas práticas não são rememoradas ou reivindicadas pela
comunidade católica no Amapá. No entanto, sabemos que há elementos afrodes-
cendentes introjetados no ritual, o difícil é identificar se essa influência/conver-
gência ocorreu ainda em Marrocos ou foi fruto da ecologia social amazônica.
Atestar a origem africana para a tradição oral mazaganense é uma tarefa mui-
to difícil, tendo em vista o tempo de sua existência que impossibilita a recuperação
da fonte, assim como reconstituir a forma inicial, tendo em vista as possíveis aco-
modações que pode ter sofrido. É certo que a ecologia social favoreceu a formação
de hibridismos, o que nos leva a crer que os cantos/rituais têm hoje uma forma
híbrida de elementos católicos e africanos, ou português e africano. No entanto,
o fato dos rituais terem sido preservados por comunidades afrodescendentes, ou
seja, os cantos, a dança e os tambores, numa relação indissociável entre eles e de-
les com as festas de santo, pode ser um forte indício de sua origem no cenário de
contato.
O que temos são algumas informações do contexto sócio-histórico com as
quais buscamos reconstruir hipoteticamente a ecologia local para compreender-
mos a formação e manutenção das tradições em Mazagão.
Referências
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Juruá, 2011.
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Pesquisa sobre Populações Humanas e Áreas Úmidas Brasileiras, USP, 2002.
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Editora Universitária/UFPA, 1999.
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zagão: realidades que devem ser conhecidas, 2005, Macapá.
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2015. Tese (Doutorado em Linguística). Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015.
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zônia. Campinas, SP: Pontes, 2019.
VIDAL, L. Mazagão, a cidade que atravessou o Atlântico: do Marrocos à Amazônia (1769-1783); tradução
Marcos Marcionilo. São Paulo: Martins, 2008.
VARIAÇÃO E ENSINO DE LÍNGUAS
O ensino-aprendizagem de língua
materna à luz da concepção
Sociolinguística a partir da
utilização de textos poéticos e
tirinhas
Allina Tainá dos Santos Lobo1
Ana Karolina Damas da Costa2
Maria Sebastiana da Silva Costa3

Resumo: Este estudo tem por finalidade a investigação do processo de ensino-aprendizagem à luz da con-
cepção Sociolinguística. Com base nas discussões acerca da variação linguística, tenciona-se realizar uma
reflexão sobre as contribuições da Sociolinguística nas aulas de Língua Portuguesa, uma vez que as varie-
dades linguísticas estão presentes em todos os grupos sociais em graus variados. Logo, debater sobre essa
temática na escola é algo imprescindível e pode gerar diversos benefícios, dentre estes a percepção sobre
o preconceito linguístico, ação que por muito tempo tem fomentado a exclusão em diversos contextos da
sociedade. Com a finalidade de apresentar caminhos que possam contribuir de maneira significativa com o
ensino de língua materna, este estudo parte de uma pesquisa bibliográfica centrada nas reflexões teóricas
de autores como Bagno (2007), Bortoni-Ricardo (2004; 2011) e Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004), para
dar gênese a uma sequência didática direcionada a uma turma do 9º ano que tem por enfoque apresentar o
conteúdo de variação linguística a partir da utilização do texto poético e das tirinhas. Por meio da pesquisa
de campo, observou-se que o emprego dos gêneros supracitados como proposta de ensino pode ser muito
satisfatório, pois, despertam percepções e curiosidade dos educandos. Desta feita, compreendemos que o
tratamento das variedades linguísticas do Português Brasileiro em sala de aula deve ser empreendido de
maneira contextualizada, de modo que os discentes possam conceber a existência de variedades de prestí-
gio e de outras não tão prestigiadas, mas que devem ser valorizadas nos diversos contextos comunicativos
como forma genuína de manifestação das múltiplas identidades da cultura brasileira.
Palavras-chave: Sociolinguística. Ensino. Aprendizagem.

1  Pós-graduanda em Linguagem, Cultura e Formação Docente na Universidade Federal Rural da Amazônia - UFRA. Docente das redes
pública e privada de educação de Concórdia do Pará. E-mail: [email protected].
2  Mestranda em História da Literatura na Universidade Federal do Rio Grande - FURG. Cursa especialização em Linguagem, Cultura e
Formação Docente na Universidade Federal Rural da Amazônia - UFRA. E-mail: [email protected].
3  Professora da Universidade Federal Rural da Amazônia - UFRA. Doutora em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal do Pará
- UFPA. E-mail: [email protected].
Sumário
166
Introdução
Este capítulo objetiva refletir acerca do ensino-aprendizagem de língua mater-
na, nesta perspectiva, tem-se por finalidade prática auxiliar os alunos da educação
básica a compreenderem as diversidades linguísticas e sua relevância no contexto
da sociedade, visto que o reconhecimento das variedades linguísticas do Português
Brasileiro é essencial para o fomento de uma sociedade livre de preconceitos, neste
caso, referimo-nos, sobretudo, ao preconceito linguístico. Ao considerarmos que
as aulas de Língua Portuguesa não devem ser gerenciadoras da exclusão, mas, um
ambiente acolhedor, onde as diversidades linguísticas e culturais são valorizadas.
Desse modo, neste estudo serão apresentadas algumas propostas metodoló-
gicas que poderão ser utilizadas para se trabalhar com a variação linguística. To-
davia, enfatiza-se que esta sugestão consiste em uma proposta inicial que tenciona
o reconhecimento e exemplificação das variações linguísticas presentes em textos
poéticos e tirinhas em quadrinho.
A Língua Portuguesa, assim como qualquer outra língua, varia, pois, é um ob-
jeto mutável que está em processo de constantes modificações, partindo dessa pre-
missa, entende-se que as variações são algo muito comum na língua. Dessa forma,
conforme nos orientam os apontamentos de Bortoni-Ricardo (2004), é de suma
importância apercepção acerca das mutações que originam a extensa variedade
linguística do Português Brasileiro, esse conhecimento é relevante, pois, irá cons-
cientizar os educandos a respeito do preconceito linguístico, discussão que têm
ocasionado certos agravantes na cena pública.
Segundo as orientações propostas nos Parâmetros Curriculares Nacionais
- PCN’s para o trabalho com Língua Portuguesa no ensino fundamental (BRASIL,
1998), o ensino de Língua Portuguesa, pautada na concepção Sociolinguística, de-
verá possibilitar um espaço acolhedor aos discentes, onde as variedades linguísti-
cas por eles trazidas sejam reconhecidas e percebidas como fomento à interação
cultural. Sob a ótica dos estudos Sociolinguísticos caberá ao professor a tarefa de
proporcionar atividades que enfatizem questões como o tratamento da variação e
os problemas decorrentes do preconceito linguístico, por meio de ações contextu-
alizadas que dialoguem com a realidade desses alunos.
Referencial teórico
No livro “Educação em Língua Materna: a Sociolinguística em sala de aula”,
Bortoni-Ricardo (2004) discute a respeito da importância de se valorizar e com-
preender as variedades linguísticas durante o processo de ensino-aprendizagem.
Nesse sentido, embalada pela premissa da Sociolinguística Educacional, a autora
que é uma das principais colaboradoras e pioneira desse campo de estudo, desve-
la as dificuldades e percursos didáticos que os professores de Língua Portuguesa,
dentre outras disciplinas, poderão tomar em sala de aula, para que as variações
linguísticas identificadas no ambiente de ensino tenham o reconhecimento devido
e não sejam menosprezadas.
Sumário
167
Dito isso, para a constituição deste estudo dedicamos nossa atenção sobre os apon-
tamentos teóricos da autora que integram o livro supracitado, assim como, o livro “Do
campo para a cidade: estudo sociolinguístico de migração e redes sociais” (BORTONI-RI-
CARDO, 2011). A partir das observações analisadas nos textos mencionados, objetiva-se
apresentar uma pequena síntese reflexiva acerca dos principais elementos teóricos enca-
deados pela autora e que sustentam, de modo muito significativo, as contribuições sobre o
campo de estudo da Sociolinguística e do Ensino. Conforme as orientações dos PCN’s para
o ensino de Língua Portuguesa (1998):
Para cumprir bem a função de ensinar a escrita e a língua padrão, a escola precisa livrar-se
de vários mitos: o de que existe uma forma correta de falar, o de que a fala de uma região é
melhor do que a de outras, o de que a fala correta é a que se aproxima da língua escrita, o
de que o brasileiro fala mal o português, o de que o português é uma língua difícil, o de que
é preciso consertar a fala do aluno para evitar que ele escreva errado (BRASIL, 1998, p. 31).

Tal pensamento encontra-se em consonância com as reflexões de Bortoni-


-Ricardo (2004), pois, de acordo com as ponderações apresentadas pela autora,
para que as variações linguísticas ocorridas no Português Brasileiro possam ser
compreendidas de modo eficiente, faz-se necessário imaginar essa diversidade em
três seguimentos, os quais pontuam como contínuos: urbanização, oralidade-letra-
mento e monitoração estilística. Logo, a partir de uma observação reflexiva acerca
desses três segmentos apresentados no decurso dos textos será possível pontuar
as principais informações sobre as variações linguísticas e sistematizá-las no terri-
tório brasileiro.
Segundo os apontamentos teóricos desvelados por Bortoni-Ricardo (2004, p.
52) ”há domínios sociais, onde predominam uma cultura de oralidade, por exem-
plo, o domínio do lar, e há outros, como o domínio da escola, dos hospitais, dos
escritórios, das repartições públicas, dos cartórios etc, onde predominam culturas
de letramento”. Desse modo, infere-se que o falante não está situado apenas em um
contexto, mas, em diferentes situações comunicativas, e para cada situação deverá
utilizar os domínios adequados.
Isto posto, o contínuo de urbanização é caracterizado por apresentar em seus
respectivos polos as variedades rurais isoladas e as variedades urbanas padroniza-
das, entre essas polaridades situa-se a área “rurbana”, que consiste na intersecção
entre as variedades rurais e urbanas. Essa exemplificação poderá situar qualquer
falante do Português Brasileiro (doravante PB), visto que, tal dinâmica pode ser ve-
rificada em todas as localidades do país, logo, compreende-se que os falares são in-
fluenciados pela relação campo e cidade, como argumenta Bortoni-Ricardo (2011).
Os traços graduais não padrão do português do Brasil ocorrem na fala de todos os grupos
sociais em graus variados, independentemente de seus antecedentes rurais ou urbanos,
considerando os dialetos sociais dispostos no contínuo, que vai das variedades caipiras
extremamente isoladas (dispostas no extremo esquerdo) até o padrão urbano (situado no
polo direito). Observa-se que as variáveis graduais refletem um decréscimo progressivo da
esquerda para a direita. No vernáculo da população rural isolada e não alfabetizada, alguns
desses traços são quase categóricos, enquanto no padrão urbano eles são marcadores es-
tilísticos encontrados principalmente nos registros coloquiais (BORTONI-RICARDO, 2011,
p. 22).
Sumário
168
O contínuo oralidade-letramento pode ser representado por interações comu-
nicativas influenciadas por eventos de oralidade e outros influenciados pela escri-
ta, que serão denominados como eventos de letramento. Os eventos de oralidade e
de letramento são distintos, entretanto, podem ser permeados por traços de um no
outro, conforme o contexto de comunicação, pois, um sujeito que em uma determi-
nada ocasião realiza um evento de oralidade poderá em algum momento agregar
nessa interação resquícios de eventos de letramento.
Para Bortoni-Ricardo (2004), o contínuo monitoração estilística está ligado
aos processos linguísticos utilizados pelo falante em determinados contextos co-
municativos, pois, exige cuidado e planejamento. Dessa forma, essas modificações
estilísticas de monitoramentos ocorrem pela necessidade de adequação às deter-
minadas interações, podendo ser realizadas de maneira mais natural.
Depois de apresentar tais ponderações que sem dúvida, podem contribuir para a
compreensão das peculiaridades observadas no Português falado no Brasil, verifica-se
que qualquer indivíduo pode apresentar variados traços linguísticos descontínuos ou
graduais. Ao considerarmos para análise os contínuos evidenciados por Bortoni-Ricardo
(2004), percebeu-se a relevância das variedades linguísticas, pois, estas são fundamentais
para a interpretação e apoderação das múltiplas e riquíssimas identidades do povo bra-
sileiro.
Ainda nesta linha de pensamento, Bortoni-Ricardo (2004) detém-se sobre o concei-
to de competência comunicativa e sua relevância para se compreender os processamentos
linguísticos. Para tanto, inicia a discussão retomando a distinção entre competência lin-
guística e competência comunicativa por meio da elucidação de dois autores clássicos da
linguística: Ferdinand de Saussure e Noam Chomsky.
É imprescindível destacar que, no início do século XX, o linguista suíço Ferdinand de
Saussure propunha a importante distinção, conhecida por dicotomia entre língua e fala.
Em suma, essa distinção consistiria no sistema linguístico compartilhado por falantes de
uma língua, que, por sua vez, seria considerada, para o linguista, como superior.
Em meados do século XX, Chomsky, retomando as reflexões sobre essa distinção,
enfatiza a ideia que opõe competência e desempenho. Nesse sentido, a competência seria
o conhecimento que o falante tem de um conjunto de regras que lhe permite formar infi-
nitas frases, logo, consiste no uso efetivo da língua pelo falante.
Desse modo, torna-se visível que tanto em Saussure, quanto em Chomsky, verifica-
mos que a língua consiste em algo abstrato (sistema), que ganha vida por meio da ativi-
dade do falante. Todavia, como alerta Bortoni-Ricardo (2004), o conceito de competência
não dá conta de algumas questões como no caso das variações. Desta feita, conforme a
autora argumenta, Dell Hymes sugere o conceito de competência comunicativa.
Esta definição conceitual, além de considerar os aspectos linguísticos, consi-
dera também fatores sociais e culturais que interferem no processo comunicativo.
Desse modo, observa-se que, conforme Hymes, a noção de adequação consiste em
algo essencial para que se entenda a noção de competência, pois, na medida em que
se faz uso da língua, os falantes não apenas consideram fatores linguísticos – como
sintaxe, morfologia etc. – mas também levam em conta as “normas de adequação
definidas em sua cultura” (BORTONI-RICARDO, 2004, p. 73).
Sumário
169
Além de considerar esses aspectos, Hymes também adiciona à noção de com-
petência a dimensão da viabilidade, que pode ser definida como os recursos co-
municativos (BORTONI-RICARDO, 2004, p. 74), tais como estratégias retóricas e
vocabulário, capazes de serem ativados para uso em determinados contextos (por
exemplo, falar em público).
Por conseguinte, a autora destaca que a competência, definida em seu estrito
sentido linguístico, não se limita apenas à capacidade de responder à problemática
de como a língua passa de um sistema abstrato para ser usada pelo falante. Logo,
esse conceito é essencial, pois, nos auxilia a compreender as peculiaridades e dife-
rentes usos da linguagem.
Conforme os apontamentos da autora, Hymes irá destacar que o uso da lín-
gua se dá, a princípio, em um contexto social e que, por subsequência, seus usos se
darão em conformidade com as práticas sociais especializadas. Daí, diante dessas
práticas sociais, as competências comunicativas especializadas tornam-se algo na-
tural, isto é, algo intrínseco ao ser humano e que se manifesta de maneira espon-
tânea.
Isto é verificado em decorrência dos posicionamentos tomados pela autora na
finalização de sua argumentação, em que destaca o papel fundamental da escola.
Haja vista que, tal cenário trata-se de um espaço por excelência, onde os educandos
adquirem os recursos comunicativos que vão lhes permitir agir e transformar-se,
dentro de um mundo de práticas sociais especializadas e enovelado por múltiplas
identidades.
Depois de debruçarmo-nos a fim de refletir quanto aos pressupostos elabo-
rados por Stella Maris Bortoni-Ricardo, verifica-se que as variedades linguísticas
identificadas no território brasileiro não são exclusividade de uma determinada
região, mas, encontram-se subjacentes em todas as localidades, e em constantes
mudanças, visto que, assim como a língua é um objeto mutável, as variações tam-
bém são. As reflexões logradas pela autora nos conduzem à percepção sobre a ne-
cessidade e urgência em se trazer à baila as variedades linguísticas em sala de aula,
não apenas na disciplina Língua Portuguesa, mas, em todos os componentes curri-
culares, pois, em todos eles os sujeitos interagem por meio da linguagem.
Sobre isso é válido ressaltar o pensamento de Bagno (2007), em que o teórico
define o conceito de preconceito linguístico e enfatiza a necessidade de discussões
quanto a essa temática, visto que, durante muito tempo convencionou-se a pen-
sar a língua de maneira sacralizada. Desse modo, ao seguir esse pensamento, por
muito tempo reduplicado nos ambientes escolares e sociais, verifica-se o desprezo
pelas variedades consideradas “inadequadas”, para o autor:
O preconceito linguístico se baseia na crença de que só existe [...] uma única língua portu-
guesa digna deste nome e que seria a língua ensinada nas escolas, explicada nas gramáticas
e catalogada nos dicionários. Qualquer manifestação linguística que escape desse triângulo
escola-gramática-dicionário é considerada, sob a ótica do preconceito linguístico, errada,
feia, estropiada, rudimentar, deficiente [...] (BAGNO, 2007, p. 38).

Nesse sentido, visualiza-se a necessidade de se fomentarem novas práticas


pedagógicas que tencionem a transformação desse cenário excludente que se con-
Sumário
170
vencionou a pensar sobre a Língua Portuguesa. A partir das orientações contidas
na Base Nacional Comum Curricular - BNCC, que à luz da concepção sociolinguís-
tica suscita e traz referências muito significativas a respeito do trabalho com as
variedades linguísticas no espaço das salas de aula, no qual é necessário:
Compreender que a variação linguística é um fenômeno que constitui a linguagem, reco-
nhecendo as relações de poder e as formas de dominação e preconceito que se fazem na e
pela linguagem e refletindo sobre as relações entre fala e escrita em diferentes gêneros, as-
sim como reconhecer e utilizar estratégias de marcação do nível de formalidade dos textos
em suas produções (BRASIL, 2018, p. 98).

Este posicionamento, orientado pela BNCC, nos conduz à percepção acerca


da relevância das discussões referentes ao ensino-aprendizagem. Desta feita, este
trabalho tem por intuito colocar a Sociolinguística no âmago desses debates, haja
vista que, para essa linha de atuação a língua deve ser considerada como um meca-
nismo de interação social, que poderá mudar, evoluir e transformar-se em função
de determinados contextos históricos e sociais, logo, compreende-se que o olhar
sociolinguístico contribui para a processo de ensino de língua materna, pois, esse
irá operar sobre a realidade linguística dos falantes, e considerar todos os fatores
situacionais.
As pesquisas à luz da concepção sociolinguística mostram que é possível de-
senvolver práticas de linguagem significativas, ao incluir alunos de classes sociais
menos favorecidas, contribuindo para que esses não se sintam excluídos em rela-
ção à norma padrão da Língua Portuguesa comumente empreendida nas escolas,
e com isso, possam atuar de forma expressiva nas práticas sociais que demandam
conhecimentos linguísticos variados.
Logo, as propostas de ensino baseadas na perspectiva sociolinguística propi-
ciam o aperfeiçoamento do processo de ensino-aprendizagem da Língua Portugue-
sa, ao considerar a incredibilidade de juízos de valor que determinam o que deverá
ser considerado como “certo” ou “errado”. Por meio desses esclarecimentos poderá
se entender a existência de uma norma padrão e de prestígio e de dialetos não tão
prestigiados, mas, que devem ser respeitados e valorizados como formas de mani-
festação das múltiplas identidades culturais e linguísticas brasileiras.
As reflexões apresentadas auxiliam-nos a compreender de modo eficaz a im-
portância da presença da Sociolinguística no processo de ensino-aprendizagem,
uma vez que, como seres plurais, cada educando apresenta bagagens culturais di-
versificadas e as variedades linguísticas fazem parte delas. Portanto, recomenda-se
a leitura e reflexão sobre os apontamentos teóricos desvelados no decurso deste
estudo, visto que, essas ponderações são de expressiva relevância e podem contri-
buir significativamente no processo de ensino-aprendizagem, sobretudo, nas aulas
de língua materna.
Metodologia
A metodologia da sequência didática (SD), conforme proposta por Dolz, No-
verraz e Schneuwly (2004), consiste em conjuntos de atividades para planejar e
ensinar, e geralmente giram em torno de um gênero discursivo. Conforme os au-
Sumário
171
tores, trata-se de um modelo de aprendizagem que “procura favorecer a mudança
e a promoção dos alunos ao domínio dos gêneros e das situações de comunica-
ção” (DOLZ; NOVERRAZ; SCHNEUWLY, 2004, p. 97). Tendo como ponto de partida
a problemática de “como ensinar a expressão oral e escrita?”, o ensino dos gêneros
discursivos escritos e orais na sala de aula destaca-se por permitir ao educando
dominar contextos comunicativos concretos:
[...] um conjunto de atividades escolares organizadas, de maneira sistemática, em torno de
um gênero oral ou escrito, [...] com a finalidade de ajudar o aluno a dominar melhor um
gênero de texto, permitindo-lhe, assim, escrever ou falar de maneira mais adequada numa
dada situação de comunicação (DOLZ; NOVERRAZ; SCHNEUWLY, 2004, p. 97).

Em suma, trata-se de ensinar a língua na e pela mediação dos gêneros discur-


sivos, de forma que os educandos possam internalizar as práticas de linguagem e
compreendam as peculiaridades e usos situacionais da língua nativa em sua ma-
terialidade. Para isso, é imprescindível a disposição de estratégias didáticas que
levem em conta o contexto em que esses discentes estão inseridos, para que assim,
possam compreender os conteúdos abordados de forma exitosa.
Dessa forma, a abordagem dos autores compreende quatro etapas, a saber: 1)
A apresentação da situação, a qual consiste em definir os objetivos de trabalho em
um determinado gênero; 2) A produção inicial, que trata de um produto inicial do
educando com base no gênero escolhido; 3) Os módulos (ou oficinas), que consis-
tem em uma tentativa de superação dos problemas que poderão ser enfrentados
pelo educando; 4) Produção final, em que o discente, após o processo de reavalia-
ção da produção inicial e de superação de obstáculos, constitui um trabalho prático
que servirá para a avaliação do progresso.
No que diz respeito ao ensino da Língua Portuguesa, especificamente, possibi-
lita-se um deslocamento na abordagem pedagógica, uma vez que, o desenvolvimen-
to de conteúdos sobre a sintaxe e morfologia passa dar-se em contextos discursivos
concretos e não mais segundo uma concepção formal de ensino e da língua.
Com base na premissa em que este estudo foi empreendido, utilizou-se como
metodologia a pesquisa bibliográfica, de campo, de caráter descritivo, e uma abor-
dagem qualitativa. Na primeira etapa realizou-se a investigação bibliográfica, em
vista de construir um arcabouço teórico que pudesse sustentar a credibilidade do
trabalho desenvolvido. Posteriormente, foi efetuada uma pesquisa de campo que
objetivou coletar dados a respeito da aplicabilidade da proposta de SD lograda nes-
te empreendimento. Sobre os procedimentos metodológicos que subsidiaram o es-
tudo, Lakatos e Marconi (2003) argumentam que:
Pesquisa de campo é aquela utilizada com o objetivo de conseguir informações e/ou conhe-
cimentos acerca de um problema, para o qual se procura uma resposta, ou de uma hipótese,
que se queira comprovar, ou, ainda, descobrir novos fenômenos ou as relações entre eles.
Consiste na observação de fatos e fenômenos tal como ocorrem espontaneamente na coleta
de dados a eles referentes e no registro de variáveis que se presume relevantes, para anali-
sá-los (LAKATOS; MARCONI, 2003, p. 186).

De tal modo, esta proposta de ensino busca auxiliar os alunos a compreende-


rem a diversidade linguística e sua relevância no contexto da sociedade, visto que o
Sumário
172
reconhecimento das variedades linguísticas do PB é algo essencial para o fomento
de uma sociedade livre de preconceitos, neste caso, referimo-nos ao preconceito
linguístico. Ao considerarmos que as aulas de Língua Portuguesa não devem ser
gerenciadoras da exclusão, mas, um ambiente acolhedor, onde as diversidades lin-
guísticas e culturais são valorizadas.
A SD produzida à luz de teorias sociolinguísticas, teve por ensejo contribuir
com o ensino-aprendizado de Língua Materna de maneira contextualizada. Os su-
jeitos da pesquisa são os discentes do 9º ano de uma escola privada do município
de Mãe do Rio – PA, a proposta didática foi desenvolvida no decurso de quatro ho-
ras-aula, período em que se objetivou contribuir de modo significativo com o pro-
cesso de aprendizagem desses educandos, uma vez que, a SD aplicada tencionou
a apresentar o conteúdo acerca da variação linguística por meio da reflexão sobre
um texto poético e algumas tirinhas em quadrinho.
Quadro 1: Síntese das atividades a serem realizadas
Aula Objetivo Habilidade/Competência Conteúdo
Mobilizar estes conhecimentos Tipos de variação
Investigar o frente à novas situações de linguística;
conhecimento prévio forma criativa. Eixos: Diferenças de lugar
01
dos discentes acerca das Apresentar as diferenças entre ou região; escolaridade e
variações linguísticas. os aspectos linguísticos e classe social; variação de
conceitos sobre variação. tempo.
Organizar informações, Continuação do assunto
Incitar questionamentos conhecendo as diferentes exposto na aula anterior.
sobre o tema abordado formas disponíveis para Eixos: Oralidade e
02
e esclarecer dúvidas a construção de uma escrita; Formalidade e
existentes. argumentação consistente. informalidade: grau de
monitoramento e gíria.
Promover a leitura Uso do Poema: Aos poetas
Demonstrar a capacidade de
reflexiva a respeito clássicos, de Patativa do
03 perceber as variações da língua.
do texto apresentado Assaré em papel off-line
Analisar as marcas e os aspectos
e percepções sobre o poema e discussão do
da variação linguística.
preconceito linguístico. assunto.
Identificar as variações
Auxiliar os discentes a
regionais, sem estereotipar, Atividade sobre as
perceberem os diferentes
entendendo que a variação variações linguísticas.
04 tipos de variação
depende de vários aspectos. Questões sobre o Poema e
(diacrônica, diafásicas,
Expressar através da oralidade sobre as tirinhas.
diastráticas e diatópicas).
as conclusões sobre a atividade.
Fonte: Elaborado pelas autoras.

Aula 01
Primeiro momento: (15 min) O professor apresentou o tema para ser discu-
tido na aula, por meio da apresentação dos aspectos que fundamentam a ideia de
variação, enfatizando a importância de se compreender a diversidade linguística.
Segundo momento: (20 min) Os alunos foram convidados a discutir sobre
o que eles compreendem por variação linguística, com a mediação do professor
esse diálogo objetivou esclarecer os equívocos que por vezes são associados a esse
tema como a questão do falar “certo” ou “errado”, e os conceitos de adequação e
inadequação.
Sumário
173
Terceiro momento: (10 min) Os alunos realizaram anotações no caderno,
sobre suas principais dúvidas acerca do conteúdo exposto na aula.
Aula 02
Primeiro momento: (25 min) Foi iniciada uma discussão acerca da temática
da aula anterior que teve por finalidade o esclarecimento de conceitos que também
se encontram imbricados nas variedades linguísticas utilizadas pelos discentes.
Segundo momento: (20 min) A partir da lista de frequência, o professor
questionou os alunos a respeito do tema discutido, com o auxílio de um pequeno
questionário de perguntas sobre o conteúdo apresentado, que foi respondido de
maneira oral por eles.
Aula 03
Primeiro momento: (5 min) Foi entregue o poema Aos poetas clássicos, de
Patativa do Assaré impresso em papel off-line, foi explicado aos alunos que eles
deveriam realizar a leitura em dupla.
Segundo momento: (20 min) Os alunos formaram duplas no espaço da sala
de aula e estabeleceram uma conversa entre si, levantando suas impressões sobre
o poema por meio da leitura crítica sobre o texto.
Terceiro momento: (20 min) Atividade 01: Caça palavras, que objetivou re-
tirar do texto as palavras em que ocorria variação. Essa atividade foi entregue ao
professor ao final do tempo estipulado.
Aula 04
Primeiro momento: (20 min) Atividade 02: Após essa leitura os alunos fo-
ram orientados a responder algumas questões acerca das variedades linguísticas,
a partir do poema trabalhado e das tirinhas em quadrinho da atividade que foram
apresentadas por meio da utilização do projetor.
Segundo momento: (25 min) O professor organizou as cadeiras em círculo,
orientando os alunos a iniciarem uma conversa a partir da primeira pergunta da
atividade e iniciaram a socialização das respostas.
Análise da aplicação da Sequência Didática
Quadro 2: Resultados das atividades realizadas
AÇÕES METAS RECURSOS RESULTADOS
Os alunos já
Investigar o haviam estudado
conhecimento sobre o assunto,
Discussão sobre o
prévio dos discentes Quadro e pincéis. logo, conseguiram
tema apresentado.
acerca das variações desenvolver muito bem a
linguísticas. discussão propostas em
sala de aula.
Sumário
174
A partir das respostas
Incitar dos estudantes, foi
questionamentos possível verificar que
Questionário sobre o tema mesmo já tendo algum
Quadro e pincéis.
(Respostas orais) abordado e conhecimento sobre o
esclarecer dúvidas tema abordado, ainda
existentes. existiam algumas
dúvidas.
Observou-se que os
Promover a discentes tiveram
leitura reflexiva a dificuldades para
respeito do texto compreender o texto.
Reflexão sobre o Texto impresso, lápis
apresentado e Todavia, a partir da
texto poético e caneta.
percepções sobre contextualização do texto
o preconceito conseguiram identificar
linguístico. o sentido atribuído às
palavras
O desenvolvimento desta
Auxiliar os discentes atividade foi satisfatório,
a perceberem pois, a linguagem aliada
os diferentes às imagens expressivas
Análise das tirinhas tipos de variação Quadro, Computador contidas nas tirinhas,
em quadrinho (diacrônicas, e Datashow possibilitaram que os
diafásicas, alunos conseguissem
diastráticas e identificas os tipos de
diatópicas). variação presente nas
tiras.
Fonte: Elaborado pelos autores.

No primeiro momento da aplicação da SD, percebemos a responsividade dos


alunos nas discussões propostas ao realizar as etapas, observou-se que os discen-
tes já tinham conhecimento sobre as variações linguísticas, pois, o professor de
Língua Portuguesa havia trabalhado esse conteúdo anteriormente. A observação
permitiu concluir que os estudantes sabiam que utilizar as expressões “certo” ou
“errado” é algo equivocado, pois, é necessário reconhecer as variedades linguísti-
cas apresentadas pelos sujeitos, assim como, considerar sua adequação nas dife-
rentes situações comunicativas.
Conforme o prosseguimento das atividades propostas, verificamos que os
discentes conseguiram refletir sobre o texto poético e as tirinhas, visto que, o de-
senvolvimento dessas atividades deu-se de forma muito exitosa, conseguindo com-
preender a importância de se valorizar as variedades linguísticas de cada pessoa e
identificar as diferenças entre os tipos de variação, sejam elas temporais, regionais,
sociais ou de contexto.
Logo, a aplicação da SD possibilitou resultados positivos, uma vez que, os
objetivos esperados foram alcançados, o que permitiu-nos inferir que o ensino-
-aprendizagem da língua materna é mais exitoso quando empreendido de maneira
contextualizada. A utilização do texto poético e das tirinhas estimulou a reflexão de
forma prática de como ocorrem as variações e o preconceito linguístico, pois, a par-
tir desses exemplos os discentes conseguiram perceber que a língua pode variar de
acordo com algumas circunstâncias.
Sumário
175
Considerações finais
O ensino de língua materna por muito tempo foi reduzido à reduplicação de
práticas que valorizavam apenas a Gramática Normativa. Em decorrência dessa
tradição sacralizada no inconsciente de muitos docentes as variações linguísticas
identificadas no ambiente escolar passaram a ser estigmatizadas e, por vezes, mo-
tivo de chacota na cena pública, pois, era atribuída a errônea ideia de que as ex-
pressões que não estivessem de acordo com a norma culta estariam “erradas”, o
que por ventura têm ocasionado agravantes que resvalam no processo de ensino
da Língua Portuguesa.
Em vista de uma perspectiva que pudesse contribuir e ultrapassar as bar-
reiras do preconceito linguístico, a Sociolinguística pode ser apreendida como
importante aliada para a superação dos estereótipos excludentes que por muito
tempo foram – e ainda são – associados ao ensino de língua materna. Para que isso
aconteça, faz-se necessário que os professores encarregados de tal tarefa estejam
conscientes quanto ao caráter didático desta corrente da Linguística. Desta feita, o
acesso às expressivas contribuições teóricas de autores desta área, tais como Stella
Maris Bortoni-Ricardo e Marcos Bagno, é essencial para que os processos de ensino
e aprendizagem sejam realizados de maneira exitosa.
Isto posto, observamos que o tratamento das variações linguísticas nas aulas
de Língua Portuguesa, tal como apresentado por meio da utilização do texto poéti-
co e das tirinhas, consiste em uma prática muito relevante, visto que, o posiciona-
mento didático balizado por essa perspectiva possibilitará a conscientização acerca
da extensa e significativa diversidade linguística do PB, o que consequentemente,
possibilitará o alargamento de novas percepções sobre as variedades linguísticas
encontradas no território brasileiro.
Referências
BAGNO, M. Preconceito linguístico: o que é, como se faz? 49. ed. São Paulo: Loyola, 2007.
BORTONI-RICARDO, S. M. Do campo para a cidade: estudo sociolinguístico de migração e redes sociais. São
Paulo: Parábola Editorial, 2011.
BORTONI-RICARDO, S. M. Educação em Língua Materna: a Sociolinguística em sala de aula. São Paulo: Pará-
bola, 2004.
BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, 2018.
BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s). Língua Portuguesa. Ensino Fundamental. Brasília: MEC/
SEF, 1998.
DOLZ, J. et al. Sequências didáticas para o oral e a escrita: apresentação de um procedimento. In: SCHNEUWLY,
B; DOLZ, J. (Orgs.). Gêneros orais e escritos na escola. São Paulo: Mercado das Letras, 2004, p. 95-128.
LAKATOS, E. M.; MARCONI, M. A. Fundamentos de metodologia científica. 5. ed. São Paulo, Atlas, 2003.
Aquendando a sociolinguística:
reflexões sobre o pajubá no ENEM
André Luiz Souza Silva1

Resumo: O presente capítulo debruça-se na polêmica questão do ENEM, de 2018, que, na área de Lingua-
gens e Códigos e suas Tecnologias, apresentou como temática o pajubá – código linguístico socioletal da
comunidade LGBT+. Dito isso, objetiva-se analisar o teor da questão proposta, em consonância com o tema
Variação Linguística, em livros didáticos junto a documentos oficiais de ensino. Essa investigação mostra-se
relevante porque a LGBTfobia é uma realidade nacional, interessar-se pela reflexão sobre os rituais sim-
bólicos, linguísticos e sociais que a comunidade LGBT+ lança mão oportuniza conscientização e proble-
matização sobre preconceito e discriminação no contexto da sala de aula. Para tanto, trabalha-se com os
postulados da Sociolinguística, a partir de reflexões sociais, históricas, políticas e culturais. Nesse sentido, a
abordagem é de natureza qualitativa, de cunho interpretativo, e caráter bibliográfico e documental. Por fim,
considera-se, finalmente, que há reconhecimento dos documentos oficiais da validade da variação linguísti-
ca para o ensino, especialmente a estigmatizada; e os recortes de livros didáticos demonstram a contempla-
ção de fatos socioculturais para transversalizar o pajubá na sala de aula. Essas reflexões são possíveis à luz
de Bagno (2012, 2017), Bortoni-Ricardo (2004, 2017), Bossaglia (2019), Antunes (2009), Martins (2013),
entre outros.
Palavras-chave: Sociolinguística. Ensino. Enem.

Introdução
O ensino de Língua Portuguesa (LP), que objetiva a ampliação da competên-
cia comunicativa, possibilita ensinar aos alunos questões voltadas à mudança e à
diversidade linguística. Desse modo, é possível desenvolver uma prática reflexiva
do ensino de língua materna (LM) baseada no uso e na reflexão linguística. Racio-
nalizar essa abordagem para a sala de aula é favorecer uma discussão acerca de
formas prestigiadas e estigmatizadas de uso da língua, o que também contribui no
combate ao preconceito linguístico (BAGNO, 2015).
Tem-se o seguinte objetivo analisar uma questão do Exame Nacional do En-
sino Médio – ENEM, do ano de 2018, a qual, por abordar a temática da linguagem

1  Mestrando em Linguística pela Universidade Federal da Paraíba - UFPB, associado ao Programa de Pós-Graduação em Linguística
como bolsista CAPES. Especialista em Língua e Linguística pelo Centro Universitário de Patos - UNIFIP e em Ensino de Línguas na
Educação Básica pela Universidade Estadual da Paraíba - UEPB, também graduado em Letras-Português pela UEPB, onde também está
professor de Língua Linguística no Departamento de Letras e Artes (CEDUC). E-mail: [email protected].
Sumário
177
LGBT+2, foi julgada e discriminada por parte da sociedade. Tem-se como objetivos
específicos: i) identificar a proposta de análise linguística na questão do ENEM com
temática do pajubá e ii) refletir sobre as concepções de variação linguística em do-
cumentos oficiais e em dois livros didáticos. Isso por inquietar-se, de forma parti-
cular, com o preconceito em relação à questão, a qual tematiza o uso da linguagem
do pajubá.
A LGBTfobia é uma realidade na sociedade brasileira, uma vez que o Brasil é
um país que se destaca em número de mortes violentas a sujeitos da comunidade
LGBT+. De acordo com os relatórios do Grupo Gay da Bahia3, as mortes anuais
totalizam assassinatos e suicídios. Diante dessa problemática, identifica-se a ne-
cessidade de se emergir uma educação que combata discriminações. É importante
destacar que as reflexões e discussões deste produto são oriundas de uma investi-
gação do autor, a qual pode ser consultada na íntegra em Souza Silva (2020).
A partir disso, a pesquisa se faz por abordagem qualitativa, uma vez que posi-
ciona o objeto de análise numa perspectiva da interpretação social, buscando atri-
buir significados a um contexto específico. No mais, a pesquisa se estabelece do
tipo interpretativista, por adotarmos a prática da interpretação de um fato social.
Para tanto, atem-se ao levantamento de bibliografia e documentos (PAIVA, 2019).
Para tal, o capítulo estrutura-se em seções: Sociolinguística: ensino e pers-
pectivas, para refletir sobre conceitos e discutir os fatos socioculturais que cercam
o Português Brasileiro (PB); Procedimentos metodológicos, para estabelecer a se-
leção de itens de análise neste trabalho; Análise dos dados, para discussões sobre
a questão do Enem, sobre os recortes dos livros didáticos e a abordagem dos do-
cumentos oficiais. Ademais, as considerações finais, seguidas das referências que
ancoram nossas análises e reflexões.
Sociolinguística: ensino e perspectivas
A sociolinguística é uma das ramificações dos estudos linguísticos. O seu inte-
resse é, também, analisar estruturas linguísticas que rompem com as prescrições
impostas pelas gramáticas normativas. Nessa direção, a sociolinguística, como o
próprio nome sugere, interessa-se pela análise linguística em contexto de uso, isso
por considerar que fatores sociais influenciam na mudança, variação e diversidade
linguística, as quais são próprias de quaisquer línguas naturais. Dessa forma, como
aponta Mollica (2015), a sociolinguística é de caráter interdisciplinar, uma vez que
se faz diante da relação entre língua e sociedade. Portanto, é uma área que se des-
dobra para a reflexão e observação de usos heterogêneos da linguagem.
Labov (2008) explica que, dependendo da gama de informações extralinguís-
ticas que se tenta incluir ou excluir, pode-se afirmar a concepção de língua que
cada profissional tem e a importância que dá para a diversidade linguística. Assim,
enfatiza-se mais uma vez como o fator social é importante para a linguística, es-

2  Lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis e mais. Assume-se essa sigla considerando que o sinal “+” seja representativo das
demais formas de viver as sexualidades e identidades de gênero.
3  Mais informações no site da organização: https://grupogaydabahia.com.br/>.
Sumário
178
pecialmente para a sociolinguística. Afinal, interessa-se amplamente pela prática
linguística e seus aspectos socioculturais (CEZARIO; VOTRE, 2017).
O ensino de línguas, no Brasil, por décadas, ancorou-se apenas na Gramática
Normativa, fosse para o ensino de língua materna, fosse para o de língua estrangei-
ra. Assim, centralizavam-se os preceitos da gramática normativa (GN) como objeto
de ensino. Entretanto, o processo de ensino-aprendizagem ultrapassa as prescri-
ções postuladas pela norma-padrão. Passados os anos e as demandas sociais se
modificando, as pesquisas linguísticas passaram a problematizar também o ensino
de língua. Então, os questionamentos passam a rondar os professores de língua,
principalmente os de LP, pois, como aponta Bortoni-Ricardo (2017, p. 159): “no
Brasil, a gramática herdada de Portugal e descrita nos compêndios escolares é so-
cialmente muito valorizada e está arraigada na mente dos brasileiros, condicionan-
do suas interpretações”.
Diante da supervalorização da norma-padrão de nossa língua pátria, o ensino
de língua passa por conturbações, pois, como expressa Bortoni-Ricardo (2017), os
linguistas afirmaram que as variedades não-padrão existentes na língua não são
erros, na verdade, são diferenças produtivas do modo oral da língua e em estilos de
menor monitoramento. Todavia, a escola concebeu erroneamente a questão, pois
conclui que se não são erros, não haveria necessidade de correção. Entretanto, é
um frenesi adotar essa postura, ou no mínimo ingenuidade. Afinal, o acesso à GN
e seus desdobramentos é um direito do aluno, o qual vive em uma sociedade que
discrimina aqueles que se desviam do uso padrão da língua.
É necessário que o professor seja um colaborador na educação linguística de
seus discentes, não um empecilho mal-intencionado. Na direção dessas discussões,
entram os ideais do preconceito linguístico e, como expressa Mollica (2015), esse
tema é um ponto muito debatido na área, por ainda predominarem práticas de
ensino alicerçadas em parâmetros e bases duos, como certo e errado, tendo como
referência a norma-padrão. Portanto, é necessário debater sobre o tema e ter cui-
dado ao assumir a posição de educador.
Ao se conceber como intrínseca a relação entre língua e sociedade, é possível
discutir e refletir a respeito das influências de línguas africanas no PB. Desse modo,
concebe-se uma relação de contato linguístico, uma vez que se compreende que
falantes de línguas africanas foram escravizados no Brasil com o objetivo de servir
à coroa portuguesa, com finalidades domésticas e trabalhistas (BAGNO, 2012).
É necessário enfatizar que o contato linguístico entre brancos, negros e índios
deu-se de maneira cruel. Há, sim, uma riqueza linguística a ser observada no PB,
mas, mais que isso, vale o reconhecimento de que, como aponta Basso (2019), essa
dinâmica de contato também causou a morte de incontáveis pessoas, o desapare-
cimento de inúmeros povos, etnias e línguas. Assim, essas ações desumanas ainda
foram capazes de forjar variedades exclusivas para o PB. Nessa direção, enfatizam-
-se os dizeres de Basso (2019):
Os africanos chegados ao Brasil e tomados como escravos trouxeram consigo centenas de
línguas diferentes, cerca de trezentas segundo estimativas, pertencentes a diversas famílias
Sumário
179
linguísticas. Alvos dos mais variados tipos de maus-tratos, arbitrariedades e crueldades [...]
(BASSO, 2019, p. 28).

A partir dos dizeres de Basso (2019), é possível compreender que estudar a língua
de forma real é incitar questões históricas, sociais, culturais e políticas. Desse modo, é
possível que um conteúdo como este, ao aparecer nos livros didáticos, nos planos de aula
e nos projetos pedagógicos, saltem da simplificação da qual, por vezes, é alvo, esquecen-
do-se, muitas vezes, que a abolição da escravidão foi há pouquíssimo tempo. Na direção
dessa passividade, que por vezes está presente na abordagem de conteúdos africanos,
aponta-se o seguinte:
Com base nos princípios eugenistas, a colonização se justificava plenamente: era preciso
levar a ‘civilização’ aos povos ‘selvagens’, fazê-los abandonar seus costumes ‘bárbaros’, im-
por a eles a religião cristã, de modo que deixassem de adorar seus ‘ídolos’ e ‘demônios’ e de
praticar ‘feitiços’ e ‘magia negra’. Também era preciso impor a eles as ‘línguas civilizadas’
para que deixassem de falar por meio de grunhidos e urros (BAGNO, 2012, p. 88).

Desse modo, o autor aponta para as falácias dos europeus diante da cultura
indígena e africana, isso por considerá-la inferior, menor e/ou feia, além de seus in-
teresses econômicos mesquinhos baseados na exploração e na discriminação. Nes-
sa direção, concebe-se a possibilidade, através de materiais linguísticos, evocar-se
uma reflexão linguística, histórica e humana em sala de aula. Afinal, é impossível
falarmos sobre línguas sem falarmos dos sujeitos que as falam.
Como já fora dito, há influência das línguas africanas no português do Brasil,
uma vez que a própria história não deixa mentir. Faz-se necessário ressaltar que,
entre os séculos XVI e XIX, chegam ao Brasil cerca de dois a quatro milhões de
escravizados africanos. Ressalta-se o seguinte: nem todo escravizado era levado
ao Brasil direto da África, diversos eram escravizados em solo português ou nos
engenhos de São Tomé, tanto que por apresentarem alguma proficiência em língua
portuguesa, eram chamados de “negros latinos” (BOSSAGLIA, 2019). Sobre a vinda
desses povos, veja:
Os escravizados provinham, em sua grande maioria, das regiões do litoral atlântico da Áfri-
ca, entre Senegal e Gâmbia, no norte, e Angola no sul – regiões em que eram faladas línguas
principalmente da família nigero-congolesa. Dessa família, chegaram ao Brasil línguas do
grupo banto – sobretudo com as línguas quicongo, quimbundo, umbundo – e do grupo kwa,
como iorubá (‘nagô’), ewe (‘jeje-minas’), fon e mahi (BOSSAGLIA, 2019, p. 156).

Mediante as postulações de Bossaglia (2019), pode-se indicar que a família nigero-


-congolesa é um grande grupo de línguas, uma vez que suas línguas são faladas em quase
todo o território da África, desde a atlântica até o sul-oriental do continente. São quase
1.500 línguas nessa ramificação, como expõe Bossaglia (2019), acrescentando que há uma
divisão em dois troncos principais: o nigero-congolês é um deles, articulado em sete gru-
pos, dos quais se enfatizam dois:
kwa: entre as línguas deste grupo merecem menção o ewe, língua falada no Gana, Togo e
Benim, e o iorubá, falado na Nigéria – duas línguas que chegaram ao Brasil através do trá-
fico de escravizados;6. benué-congo: línguas banto que ocupam toda a extensão da África
subsaariana, como o quimbundo e o quicongo a oeste (as línguas africanas mais presentes
no Brasil), e o suaíli na Tanzânia e no Quênia, a leste, além de várias outras línguas não
banto (BOSSAGLIA, 2019, p. 150, grifos nossos).
Sumário
180
Os grupos kwa e benué-congo são troncos marcantes no que tange à influên-
cia no PB. Assim, o primeiro grupo exposto contribuiu diretamente com duas lín-
guas, possibilitando um contato linguístico, o que não foi diferente com as línguas
quimbundo e quicongo, línguas africanas mais predominantes no Brasil. O léxico
do grupo banto é produzido, fonologicamente, de forma semelhante às línguas eu-
ropeias e norte-americanas. Como apontado por Bossaglia (2019), as línguas nige-
ro-congolesas têm uma característica interessante, especialmente o grupo banto,
pois há uma preferência por estruturas silábicas simples, também conhecidas pela
sequência CV, ou seja, consoante-vogal, ou também a sequência CCV, tendo predile-
ção pelo tipo silábico aberto com terminação vocálica.
É nessa direção que se pode constatar a facilidade da inserção de léxicos de
origem africana no PB, uma vez que a LP é uma língua de origem europeia. Assim, o
inventário linguístico adaptou-se facilmente às produções silábicas preexistentes.
Dito isso, o léxico é o nível linguístico que, naturalmente, é mais propenso às influ-
ências externas. Por meio dele, é possível observar os traços de maior evidência no
que diz respeito ao contato entre línguas. Compreender a constituição do léxico de
uma língua possibilita identificar adoções e incorporações feitas ao vocabulário.
Para Castilho (2014), o léxico se constituiu por elementos concretos, os quais pas-
sam a fazer parte do vocabulário de uma língua.
Como aponta Bossaglia (2019), a variação linguística, no tangente às influên-
cias africanas, tem se circunscrito geograficamente em um contato recente entre
línguas do grupo kwa, grupo da língua iorubá e o português. Desse modo, palavras
originárias daquelas línguas são propriedades de domínios semânticos restritivos,
uma vez que estão relacionados à práticas culturais particulares, como pode ser
visto no quadro abaixo:
Quadro 1: Exemplos de léxicos africanos no português brasileiro
Música Culinária Religião
Agogô Acarajé Orixá
Afoxé Vatapá Exu
Adjá Bobó Vodu
Fonte: Bossaglia (2019, p. 158).

O quadro expõe artefatos que são instrumentos musicais e itens linguísticos


de origem iorubá. Há itens gastronômicos, também do iorubá, exceto pelo bobó,
que é de natureza fula, do grupo atlântico. Por fim, expõem-se elementos do can-
domblé, menos vodu, que é de origem ewe, além de tantos outros termos existen-
tes. No mais, uma colocação interessante deve ser feita:
[...] observar fenômenos de contato em níveis linguístico menos ‘superficiais’ que o léxico
também é possível. Por isso, muitos linguistas têm elaborado hipóteses sobre a formação
e o desenvolvimento do português brasileiro vernáculo em que as línguas africanas de-
sempenham um papel fundamental. Existem, inclusive, variedades do português brasileiro
vernáculo (a falange do Cafundó, a calunga de Patrocínio, a gíria da Tabatinga, entre outras)
que apresentam um léxico tão fortemente africanizado a ponto de virarem criptoletos, por
não soarem compreensíveis aos ouvidos dos não membros daquelas comunidades (BOS-
SAGLIA, 2019, p. 158).
Sumário
181
Identifica-se a riqueza em oportunizar o acesso a conhecimentos dessa natu-
reza, para inteirar os falantes também sobre a língua e sobre suas origens e como
as marcas distintas selam nossa história. Nesse sentido, sabe-se que o iorubá é uma
das línguas africanas que contribuíram com léxicos para o PB. De acordo com Bos-
saglia (2019), a língua iorubá faz parte do grupo de línguas nigero-congolesas, nes-
se grupo, classifica-se na ramificação benué-congo.
Ao se tratar das variedades lexicais desse grupo, é possível estabelecer que
muitas contribuições foram dadas à base linguística do PB, especialmente pela
cultura religiosa, como o candomblé. Por meio do iorubá, variedades linguísticas
passaram a ser tomadas como empréstimo para constituir um grupo socioletal es-
pecífico: o pajubá4. O pajubá é conhecido como a linguagem praticada, incialmente,
pelas travestis e depois estendida a toda a comunidade LGBT+ e que se faz pela
mistura lexical derivada do próprio pajubá ligado à base fonológica da própria LP,
do pajubá provém a gíria LGBT+ (VIP; LIBI, 2013).
Ao compreender as gírias como um signo acessível a uma minoria, linguagem
especial, recurso linguístico próprio de um grupo e mecanismo de ataque/defesa
social, pode-se compreender a relação entre o grupo LGBT+ e seu uso linguístico
específico. Então, uma constatação que pode ser feita, nesse momento, é a de que
o uso da linguagem não é neutro, pois os falantes marcam a linguagem com suas
ideologias, crenças e valores, bem como com sua identidade.
Procedimentos metodológicos
Antes de qualquer procedimento, faz-se necessário estabelecer a relevância
do chamado professor-pesquisador que pode ser definido como aquele que não se
vê apenas como um usuário de conhecimento produzido por outros pesquisadores,
mas se propõe também a produzir conhecimentos sobre seus enfrentamentos no
contexto da sala de aula, buscando aperfeiçoar sua prática (BORTONI-RICARDO,
2008). Dito isso, faz-se uma pesquisa de caráter qualitativo, pois há uma busca pelo
entendimento e interpretação de dado social inserido em um contexto específico.
Nessa direção, busca por explicações entre os dados, considerando um paradigma
interpretativista (BORTONI-RICARDO, 2008; PAIVA, 2019).
Em acesso à página digital do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Edu-
cacionais Anísio Teixeira - INEP, pudemos obter a questão do ENEM, do ano de
2018, questão aplicada no primeiro dia de avalição que, no caderno cor-de-rosa,
é a questão de número 14, a qual é nosso objeto de estudo primário. Mediante os
direcionamentos do site do INEP, é possível ter acesso às provas e aos gabaritos.
Também se analisa um recorte de dois livros didáticos, de etapas diferentes
de ensino, aos quais se tem fácil acesso por serem materiais de uso pedagógico do
autor desta investigação. Apresentar-se-á como uma parcela do conteúdo de varia-
ção linguística é abordada nos livros, ambos do Sistema Maxi de Ensino, adotado
preferencialmente pela rede privada de ensino. Os livros selecionados foram do 9º
ano do Ensino Fundamental e da 1ª série do Ensino Médio. Apesar de esse material
dar espaço para a discussão da variação linguística, há compêndios mais conserva-
4  O termo também pode ser identificado como bajubá, sendo uma variedade fonética, oportunizando vocábulos intercambiáveis.
Sumário
182
dores que podem não abarcar esse conteúdo ou, no mínimo, inferiorizá-lo, colocan-
do-o como apêndice.
Dito isso, as reflexões sobre a variação linguística em documentos oficiais se
fez pela leitura das seções destinadas aos objetivos de cada documento e das se-
ções sobre variação linguística e preconceito linguístico. São eles: Parâmetros Cur-
riculares Nacionais - PCN’s, de 1998; Orientações Curriculares para o Ensino Médio
- OCEM, de 2006, e Base Nacional Comum Curricular - BNCC, de 2018.
Análise dos dados
A imagem a seguir é da polêmica questão do ENEM, a qual, por abordar o uso
da linguagem LGBT+, foi apontada por muitos como de conteúdo desnecessário à
formação dos discentes que prestam aquele processo seletivo.
Figura 1: Questão do ENEM 2018

Fonte: INEP (2018).


Sumário
183
Em acesso à internet, pode-se, facilmente, detectar as opiniões de alguns in-
ternautas, em variadas redes sociais, sobre o assunto, as quais foram tanto dire-
cionadas para a positividade quanto para a negatividade. Assim, observa-se uma
avaliação linguística, a qual não se faz apenas pela formulação da questão, mas
também do seu conteúdo, o qual está direcionado a um grupo marginalizado.
Ao analisar a questão, é possível identificar que nela se busca uma contextua-
lização da temática, isso por meio de um texto intitulado “Acuenda o pajubá: conhe-
ça o ‘dialeto secreto’ utilizado por gays e travesties”5, publicado pelo site MídiaMax
em 2017. No texto, discute-se a questão do uso do pajubá, através de conversa com
um advogado gay, que admite fazer uso das gírias em ambientes mais formais. O
advogado afirma que utiliza a linguagem, não em ação em fórum ou audiência jurí-
dica, por exemplo, mas no escritório em que trabalha, cujo uso é bastante comum.
Mediante essa reportagem, a questão busca direcionar para a reflexão linguística,
prática necessária para a construção da competência comunicativa de todo e qual-
quer discente, como aponta a BNCC. Desse modo, a questão busca indagar o que
caracteriza o pajubá como um patrimônio linguístico, tendo um status de dialeto.
Devemos ressaltar que essa adoção do termo dialeto deveria ser substituída
por socioleto, uma vez que o termo dialeto está para questões de ordem geográfica
e socioleto para questões de ordem mais social (BAGNO, 2017). Ainda assim, o au-
tor também indica que há um uso bastante significativo do termo dialeto em refe-
rência a socioleto, pois compreende-se como um dialeto social, mas ressalta que as
teorias de cunho sociolinguístico priorizam as terminologias separadamente e di-
recionadas para seus segmentos. A partir disso, faz-se necessária a adoção de pers-
pectivas linguísticas que valorizem a ação da análise textual desde sua temática até
seus recursos linguísticos, uma vez que, como aponta Lakoff (2010), a linguagem se
faz tanto pelos itens linguísticos que desejamos expressar, quanto pela forma que
selecionamos para expressá-los.
A partir do exposto, a questão apresenta cinco alternativas possíveis como
resposta. Em (a), tem-se a idealização de que um patrimônio linguístico se faz pela
existência de mais de mil palavras, alternativa errada, uma vez que não é apenas o
quantitativo que estabelecerá esse patrimônio; em (b), indica-se como opção o fato
de haver palavras existentes de uma linguagem secreta, alternativa possível de ser
eleita como a correta, mas não se trata de apontar a característica da linguagem de
grupo, mas a sua relação com a ideia de patrimônio linguístico, logo, está errada,
pois um patrimônio linguístico também pode ser as línguas indígenas, por exem-
plo.
Adiante, tem-se a alternativa (d), em que o fato de ser uma variedade utilizada
por advogados em situações formais não consagra o aspecto de patrimônio linguís-
tico, pois a constituição de um patrimônio linguístico não se vale de valores formais
ou informais; também temos a alternativa (e) que caminha como a anterior, uma
vez que não é seu contexto de uso que determinará a constituição do patrimônio
linguístico.
5  Disponível em:<https://www.midiamax.com.br/midiamais/comportamento/2017/acuenda-o-pajuba-conheca-o-dialeto-secreto-
utilizado-por-gays-e-travestis>. Acesso em: 14 de mar. 2020.
Sumário
184
Por fim, temos a alternativa (c), apontada pelo gabarito oficial como a corre-
ta, isso por considerar que os usos linguísticos de um grupo marginalizado passa-
ram a constituir um instrumento metalinguístico. Desse modo, a produção de um
dicionário que contém os termos da comunidade LGBT+ passa a direcionar uma
variedade linguística de registro, especificamente, um registro não padrão e alta-
mente estigmatizado, por vezes, pejorativamente, chamado de inculto. Sobre o pa-
jubá, Araújo (2018, p. 126) diz o seguinte: “[…] se constitui eminentemente como
uma linguagem da rua, construída na batalha, nos territórios de prostituição, em
esquinas que intersectam marcadores como classe e gênero”. Logo, é um grupo de
variedades linguísticas estigmatizadas, as quais devem receber um olhar crítico,
mediante a compreensão de que existem fatores socioestruturais e sociofuncionais
que determinam a variabilidade linguística (BORTONI-RICARDO, 2004). Então, po-
demos estabelecer o seguinte:
O atributo socioestrutural [individualidade do falante] constitui-se, dentre outros fatores,
através dos fatores extralinguísticos, logo, a orientação sexual e identidade de gênero do
sujeito estão atrelados à sua individualidade. Já o sociofuncional [interações sociais] deter-
mina-se pela dinâmica que a linguagem possui dentro dos contextos mais específicos […]
(SOUZA SILVA, 2018, p. 20).

A partir disso, pode-se centralizar a questão do ENEM como uma questão de


temática pertinente. Entretanto, faz-se necessário saber que a questão poderia ser
melhor elaborada, evidenciando a necessidade de uma formação sociolinguística
mais sólida por parte daqueles que elaboram questões de teor variacionista. De
acordo com os direcionamentos da prova, o domínio da interpretação textual é
necessário para a resolução da avaliação. Nesse sentido, é possível indicar como
livros didáticos oportunizam temas que possibilitam a discussão sobre o pajubá.
Dito isso, a seguir, serão expostas as colocações feitas pelos livros didáticos selecio-
nados e como eles consideram as múltiplas culturas diante do PB.
A Figura 2, a seguir, é de uma das páginas do livro de LP do Sistema Maxi, ado-
tado por uma escola privada do interior da Paraíba. Na imagem, identifica-se uma
discussão pautada na história da língua, apontando os árabes como povo de contri-
buição forte em nossa língua. De maneira mais vertical, volta-se ao PB, indicando
que indígenas e africanos também contribuíram para o processo de mudança e
diversidade linguística no Brasil, uma vez que os nativos-brasileiros nomearam e
descreveram as exuberâncias das terras tupiniquins, riqueza para a qual os euro-
peus não tinham nomes a dar; já os africanos - povo marcado pela escravidão e que
ainda combate as marcas deixadas por época tão dolorida – contribuíram forte-
mente na área gastronômica e religiosa.
Sumário
185
Figura 2: Fragmento do livro do 9º ano

Fonte: Cabral (2019, p. 19).

Já no título, “trinta idiomas em um”, aponta-se a contribuição de variadas lín-


guas no processo de construção do PB. Em especial, frisamos a última língua da pá-
gina: o iorubá, língua que oportunizará discussões pertinentes mais à frente. Então,
o texto frisa a influência no contexto da religiosidade e culinária afro-brasileira, a
partir de termos como: orixá, candomblé, acarajé, vatapá. Nessa direção, identifica-
mos uma constatação da variabilidade cultural num material tão caro à formação
discente. A introdução dessa discussão em um aparato didático oportuniza alcan-
çar uma colocação pertinente: “[...] representa a possibilidade de adquirir conhe-
cimentos tanto relacionados a saber a língua como saber sobre a língua” (MAR-
TINS, 2013, p. 39).
Essa concepção de saber sobre a língua está pautada no eixo da reflexão, que
se faz pela necessidade de refletir a respeito da língua, buscando falar sobre ela em
si, com a finalidade de problematizar os fatos e os fenômenos da linguagem (MAR-
TINS, 2013). A partir disso, podemos identificar a relevância que o presente livro
didático tem em relação às proposições dos diversos documentos oficiais instaura-
Sumário
186
dos pelo Ministério da Educação. Feitas as considerações sobre um dos anos finais
do fundamental, abaixo, vejamos fragmentos do livro da 1ª série do ensino médio:
Figura 3: Fragmento A do livro da 1º ano do Ensino Médio

Fonte: Figueiredo (2018, p. 20).

A figura acima explicita como é cabível uma discussão que compreenda que
as variedades da língua se fazem de forma distinta no processo comunicativo, o
que as tornam complexas. Por isso, é possível indicar junto a esse material como
se constituem socioletos, etnoletos, ecoletos, registros e idioletos, nomenclaturas
pertinentes para a discussão sociolinguística e que contribuem para um conheci-
mento sobre a língua. Numa outra unidade do referido livro da 1ª série, o mesmo
material explicita a questão do choque cultural no processo de formação da LP, isso
na unidade sobre História da Língua Portuguesa. Para as discussões pretendidas,
no transcorrer desta produção, interessa-nos apresentar o seguinte fragmento:
Figura 4: Fragmento B do livro da 1ª série do Ensino Médio

Fonte: Figueiredo (2018, p. 10).

O livro apresenta esse trecho para indicar a influência das Línguas Africanas
no PB. Assim, ele aponta que, entre os anos de 1538 a 1855, o Brasil recebeu mi-
lhões de africanos advindos para trabalho escravo. Dito isso, é assim que enxer-
gamos a linguística como uma disciplina que oportuniza a interdisciplinaridade,
nesse caso, adotando uma postura de sociolinguistas, a discussão social pode ser
ainda mais questionadora das realidades que circundam as variantes e seus falan-
tes. Depois, expõe alguns léxicos que representam essas influências. A partir disso,
identificamos a presença de uma gramática descritiva, uma vez que se preocupa
Sumário
187
em abordar conhecimentos a respeito da língua que os estudantes já falam, assim,
vai além dos compêndios gramaticais normativos. Portanto, aponta-se o seguinte:
[...] não se trata de, aqui, estarmos negando ou questionando a importância dessas “gramá-
ticas”. Preocupa-nos é o fato de que, valorizar uma única variedade de fala como legítima
e acentuar o estigma de que são vítimas fala e falantes das demais variedades, o ensino
desperdiça a oportunidade de estimular a discussão e reflexão sobre os usos linguísticos
reais. Assim, despreza-se a observação de suas singularidades [...] (MARTINS, 2013, p. 42).

As colocações da autora corroboram o pensamento defendido, neste capítulo,


no tangente ao ensino de LP, uma vez que se evidencia a necessidade de que seja
assumida uma postura de professor de língua, não apenas da norma-padrão. Por
meio dessas discussões, pudemos apontar a sociolinguística como área deveras
contribuinte no processo de democratização do ensino de línguas, bem como do-
cumentos oficiais, os quais direcionam a didática do sistema brasileiro de ensino,
que também são adeptos dos enlaces teóricos aqui apresentados. No mais, os livros
didáticos também podem adotar discussões de caráter reflexivo que viabilizem a
diversidade linguística como objeto de ensino.
Essas reflexões se fazem possíveis pela abertura democrática ao ensino de
variedades linguísticas. Entretanto, muitas escolas ainda não conseguiram adaptar
suas práticas de ensino, nem conseguiram de forma exímia efetivar o ensino da
norma, como também não sabem lidar com a variedade linguística. É por isso que
Pernambuco e Carmelino (2011) enfatizam a necessidade de um ensino gramatical
em consonância com a teoria linguística, efetivamente ligado a um fazer pedagógi-
co responsável, alinhado com o propósito da interação e voltado à discursividade.
Tudo isso mesmo depois de avanços da ciência linguística, das reformulações de
ensino e das propostas curriculares.
Os PCN’s foram produzidos para serem uma referência nas discussões cur-
riculares, bem como para a elaboração e o aprimoramento das proposições didá-
ticas. Esse documento foi produzido pelo Ministério da Educação em 1998 e está
voltado para o terceiro e quarto ciclo do ensino fundamental, atualmente indo do
6º ao 9º ano. Em leitura ao documento, podemos identificar os objetivos gerais
apresentados para o ensino de LP e iremos apontar o de nosso principal interesse:
“conhecer e valorizar as diferentes variedades do Português, procurando combater
o preconceito linguístico” (BRASIL, 1998, p. 33).
Os PCN’s (1998) apontam, como um dos objetivos gerais, a valorização e o
respeito às variedades linguísticas. A partir disso, o documento indica que o ensi-
no de LP deve ocorrer diante da prática de uso da linguagem e compreendido em
sua dimensão histórica, bem como a análise e a sistematização teórica dos conhe-
cimentos linguísticos que devem ser direcionados ao uso (BRASIL, 1998). Então,
os PCN’s indicam dois eixos básicos para o ensino de língua: o eixo do uso e o da
reflexão. Desse modo, a reflexão é baseada na prática de análise linguística. Nessa
direção, o documento enfatiza que a análise sobre o funcionamento da linguagem
se desdobra na variação linguística; na análise de léxicos e redes semânticas; mo-
dos de organização de discurso etc. (BRASIL, 1998).
Sumário
188
No que diz respeito ao terceiro e quarto ciclo do fundamental, os PCN’s indi-
cam que o objetivo do ensino de LP é o de que “seja capaz de verificar as regula-
ridades das diferentes variedades do Português, reconhecendo os valores sociais
nelas implicados e, conseqüentemente (sic), o preconceito contra formas popula-
res em oposição às formas dos grupos socialmente favorecidos” (BRASIL, 1998,
p. 52). Mais uma vez, enfatiza-se o quão valoroso é o trato da variação linguística
no contexto educacional e é nessa direção que a variedade linguística se fortalece
como objeto de análise linguística. Adiante, o documento continua a apontar a va-
riedade linguística como positiva no processo de ensino-aprendizagem, para tanto,
assevera:
A discriminação de algumas variedades lingüísticas (sic), tratadas de modo preconceituoso
e anticientífico, expressa os próprios conflitos existentes no interior da sociedade. Por isso
mesmo, o preconceito lingüístico (sic), como qualquer outro preconceito, resulta de ava-
liações subjetivas dos grupos sociais e deve ser combatido com vigor e energia (BRASIL,
1998, p. 82).

A partir do que foi exposto, é possível ver que há mais de 20 anos os PCN’s apon-
tam para a relevância do estudo da variação linguística, uma vez que conhecer e reconhe-
cer variedades linguísticas é ter acesso e conhecimento sobre identidade, cultura e povo,
como bem frisa Antunes (2009, p. 19): “o povo tem uma identidade, que resulta dos traços
manifestados em sua cultura, a qual, por sua vez, se forja e se expressa pela mediação das
linguagens, sobretudo da linguagem verbal”.
Não obstante, apontam-se também pertinências das OCEM, as quais foram produ-
zidas na busca por uma efetivação no que diz respeito à abordagem do ensino de LP com
a finalidade de ressignificar práticas de ensino e de aprendizagem. Incialmente espera-
-se, de acordo com o documento, que os discentes desenvolvam capacidades importantes,
uma delas é: “atuar, de forma ética e responsável, na sociedade, tendo em vista as diferen-
tes dimensões da prática social” (BRASIL, 2006, p. 18). Na direção desse apontamento,
identifica-se que a escola é espaço de socialização e que a área de linguagem não precisa
ater-se apenas ao ensino da norma-padrão, mas também à formação humana. Adiante,
as OCEM postulam que as práticas de linguagem a serem investigadas na escola não se
restringem à palavra escrita, tampouco se filiam unicamente a padrões socioculturais he-
gemônicos (BRASIL, 2006). Ao assegurar que o processo de formação e desenvolvimento
dos sujeitos esteja relacionado à socialização, o documento postula o seguinte:
[...] é na interação em diferentes instituições sociais [...] que o sujeito aprende e apreende as
formas de funcionamento da língua e os modos de manifestação da linguagem [...] Também
nessas instâncias sociais o sujeito constrói um conjunto de representações sobre o que são
os sistemas semióticos, o que são variações de uso da língua e da linguagem, bem como
qual seu valor social (BRASIL, 2006, p. 24).

Identificamos que, há mais de 10 anos, as orientações para o ensino médio


evidenciam um ensino de LP de valor social e que não prioriza padrões homogêne-
os como objetos de análise e estudo. E, em consonância com os apontamentos das
OCEM, Antunes (2009) esclarece que a língua é uma atividade funcional, ou seja,
“as línguas estão a serviço das pessoas, de propósitos interativos reais, os mais
Sumário
189
diversificados, conforme as configurações contextuais, conforme os eventos e os
estados em que os interlocutores se encontram” (ANTUNES, 2009, p. 35).
Atualmente, discute-se a inserção da BNCC nas instituições de ensino. O do-
cumento indica que a proposta da BNCC (2018) foi elaborada por especialistas das
diversas áreas e projetada para atender as demandas atuais dos estudantes, pre-
parando os discentes para o futuro. A BNCC postula como competência específica
para os anos finais do fundamental: “compreender as linguagens como construção
humana, histórica, social e cultural, de natureza dinâmica, reconhecendo-as e valo-
rizando-as como formas de significação da realidade e expressão de subjetividades
e identidades sociais e culturais” (BRASIL, 2018, p. 65). Essa posição centraliza o
valor social dado pelo documento diante do ensino de linguagens. Não diferente, o
documento expõe a competência para o ensino médio da seguinte forma:
Compreender as línguas como fenômeno (geo)político, histórico, cultural, social, variável,
heterogêneo e sensível aos contextos de uso, reconhecendo suas variedades e vivencian-
do-as como formas de expressões identitárias, pessoais e coletivas, bem como agindo no
enfrentamento de preconceitos [...] (BRASIL, 2018, p. 490).

Nessa direção, a BNCC aponta para a validade e a relevância de se estudar


línguas de maneira crítica e reflexiva. No que diz respeito ao ensino de LP em es-
pecífico, o documento aponta a variação linguística como área de conhecimento
e indica como objetivo o seguinte: “discutir, no fenômeno da variação linguística,
variedades prestigiadas e estigmatizadas e o preconceito linguístico que as cercam,
questionando suas bases de maneira crítica” (BRASIL, 2018, p. 83). Isso se faz ne-
cessário, uma vez que nossa sociedade perpetua práticas de preconceito linguísti-
co.
É na direção dessas colocações que os documentos oficiais confirmam sua re-
levância, pois são documentos que reproduzem discursos de valor científico, os
quais resultam de extensos estudos e intensas análises, logo, sua aprovação asseve-
ra sua aplicabilidade nos variados contextos educacionais. Assim, aguarda-se que
as práticas de combate ao preconceito linguístico, bem como o ensino de LP, de
forma democrática, ocorram em vias de respeito e comprometimento com valores
éticos. No mais, que a democratização do ensino seja também a valorização de uma
educação linguística.
Exposto isso, observamos como o socioleto pajubá pode adentrar nas salas de
aula a partir de reflexões contextualizadas por uma reportagem, como a avaliação
propôs, bem como por meio de outros gêneros textuais que considerem a influ-
ência africana, especialmente do iorubá, no português brasileiro. Dar espaço para
tais discussões no contexto da aula de línguas evidencia uma preocupação com
o discernimento acerca do próprio conhecimento linguístico, mas também com a
construção de valores de respeito para com os falantes, suas variantes e necessida-
des sociolinguísticas.
Considerações finais
Como exposto nas discussões, o ensino da variedade linguística LGBT+ não se
trata de uma abordagem ao ensino de “linguagem de travesti”, tampouco se trata
Sumário
190
de persuadir os alunos a terem contato com práticas linguísticas desnecessárias a
sua formação. O que se defende é aceitação de toda e qualquer variedade da língua
como código válido para o processo de reflexão linguística. Assim, na direção do
aporte teórico e propostas aqui debatidas, podemos caminhar para um ensino de
língua que considera também saber sobre a língua, ou seja, conhecer sua história,
suas relações de poder, seus parâmetros sociais etc.
Para tanto, foram considerados os pilares da sociolinguística e seus enlaces
para conceituar e defender um estudo da linguagem multidisciplinar no contexto
do ensino de LP, uma vez que fica evidente que a abordagem ao tema se fez com
base na análise textual, concebendo temática e a análise de recursos linguísticos
característicos de um grupo, nada mais do que uma questão de reflexão sobre a lín-
gua, a qual também poderia ser sobre os usos de grupo de presidiários, prostitutas
ou skatistas desde que focalize as variedades estigmatizadas.
Nessa direção, enfatiza-se a produtividade dos estudos linguísticos e espe-
ra-se que outros profissionais se interessem pelo tema em questão, consagrando
LGBT+ como sujeitos de suas pesquisas e inquietações, ao que tange à linguagem,
seja no nível lexical, fonético-fonológico, semântico ou discursivo, por exemplo.
Além disso, é pertinente ressaltar a possibilidade de, em pesquisas futuras, serem
produzidas propostas de ensino que visem essa temática.
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Uma proposta de intervenção para
a produção e percepção da oclusiva
glotal no ensino de inglês como
língua estrangeira
Mariane dos Santos Monteiro Duarte1
Leônidas José da Silva Jr.2

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo apresentar uma aplicação de treinamento metafonológico
da oclusiva glotal [ʔ], em alunos brasileiros de inglês como língua estrangeira, bem como mostrar a relevân-
cia da fonética para o ensino da língua inglesa. Para tanto, utilizamos autores como Duarte (2018), quanto
à percepção-produção da oclusiva glotal no inglês como língua estrangeira por falantes brasileiros, além
de Madureira e Silva (2017), quanto à prioridade do ensino de pronúncia nas aulas de língua estrangeira,
dentre outros. A metodologia apresenta uma abordagem intervencionista em que foram lecionadas cinco
aulas com treinamento metafonológico da oclusiva glotal [ʔ], isto é, com foco na reflexão do discente acerca
da produção e percepção do segmento-alvo. Foram selecionados quatro alunos do 7° ano do ensino funda-
mental, com idade entre 12 e 13 anos, de uma escola particular de ensino regular da cidade de Guarabira
– PB. Concluímos que a fonética é capaz de contribuir para compreensão oral e perceptual da língua inglesa.
Além disso, a professora-pesquisadora observou um progresso na produção e percepção da oclusiva glotal
[ʔ] por meio das aulas com instrução explícita, bem como motivação por parte dos discentes em aprender o
referido segmento.
Palavras-chave: Inglês como língua estrangeira. Metafonologia. Oclusiva glotal.

Introdução
Dominar uma língua estrangeira (doravante, LE) não é uma tarefa fácil, uma
vez que requer variadas habilidades, tais como; gramática, escrita, leitura, com-
preensão, inteligibilidade, dentre outras. Além disso, ao iniciar a aprendizagem de
uma LE, o falante/aprendiz não vem vazio, ou seja, ele/a traz consigo padrões de
1  Possui Graduação em Letras-Inglês pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) – (2018) e Pós-Graduação em Ensino de Línguas
e Literaturas pela UEPB - (2019) com ênfase em Ensino de pronúncia de inglês como língua estrangeira. Atualmente é mestranda
pelo Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal da Paraíba (PROLING/UFPB), e faz parte do Laboratório de
Processamento Linguístico (LAPROL) da UFPB. E-mail: [email protected].
2  É linguista com Pós-doutorado em Fonética experimental com ênfase em Prosódia de LE pelo IEL/UNICAMP/CNPq; Doutorado
e Mestrado em Linguística pelo /PROLING/UFPB; graduação em Letras (português e inglês) pela UNESF e Turismo pela UNICAP.
Atualmente é Professor Adjunto no Departamento de Letras na UEPB e Pesquisador Assistente de Pós-Doutorado em Fonética/
Prosódia experimental pelo IEL/UNICAMP. E-mail: [email protected].
Sumário
193
sua língua materna (doravante, LM), o que pode ajudar ou dificultar o processo
aprendizagem da LE alvo.
Diante disso, aprender inglês como LE é, na maioria das vezes, um grande de-
safio para os brasileiros, visto que é uma língua de raízes germânicas, ao passo que
o português brasileiro (doravante, PB), é de raízes latinas, o que traz bastante dife-
renças entre ambas línguas. Além disso, a língua inglesa (doravante, LI), apresenta
aspectos fonéticos e morfossintáticos que se diferem do PB.
É nesse cenário que se evidencia a relevância da fonética na aprendizagem
de inglês como LE, a qual, muitas vezes, é negligenciada no ensino de línguas. Isto
é, os alunos são comumente expostos à grafia, leitura e aspectos gramaticais da
LI, deixando de lado, portanto, os aspectos sonoros da língua-alvo. Assim sendo,
a aprendizagem da LE, se comparado à aquisição de uma LM, ocorre de maneira
inversa, visto que na aquisição de sua L1, o indivíduo, inicialmente, é exposto aos
sons e não a grafia da língua.
No que concerne aos sons presente na LI e que não fazem parte do PB, pode-
mos citar um som bastante recorrente entre os nativos, contudo, pouco conhecido
pelos aprendizes brasileiros: a oclusiva glotal. Esta se caracteriza como um alofo-
ne3 da LI, realizado, recorrentemente, em substituição da oclusiva alveolar, como
em cotton [kɒtən] produzida com a oclusiva alveolar [t], passando a ser produzida
como [kɒʔn̩ ], com a oclusiva glotal [ʔ] (GARELLEK, 2015; OGDEN, 2009).
A oclusiva glotal é considerada como um som minucioso e de difícil produção
e percepção para aprendizes brasileiros de inglês; seja por ser um segmento au-
sente no PB ou por ser produzido em uma área muito posterior do trato vocal, mais
especificamente na glote, o que impede a visualização da articulação desse som
pelo aprendiz, além de apresentar baixa intensidade, o que a torna um som “fraco”
e pouco audível àqueles que não a possuem no inventário fonológico de sua L1.
Isso, muitas vezes, faz com que o aprendiz a confunda com um apagamento sonoro.
Logo, além de não reconhecer o segmento em voga, ele não o produz, causando,
assim, dificuldades na produção e percepção da língua-alvo. Faz-se necessário, por-
tanto, mostrar ao aluno a existência de tal segmento fonético.
Dessa forma, este capítulo tem como objetivo mostrar uma aplicação da pro-
posta de intervenção estabelecida em uma pesquisa intitulada: “A realização da
oclusiva glotal no ensino de inglês como língua estrangeira” (DUARTE, 2020), apre-
sentando um treinamento metafonológico da oclusiva glotal [ʔ] com alunos brasi-
leiros de inglês como LE, por meios que facilitem a produção e percepção do seg-
mento-alvo, ademais de discorrer sobre a relevância da fonética para o ensino de
inglês como LE.
A fonética e sua importância para o ensino de inglês como
língua estrangeira
A Fonética, que se caracteriza como o estudo dos sons das línguas em seus
aspectos articulatórios (produção dos sons), perceptivos (o que se ouve enquanto

3  Alofone: É um som que se caracteriza como uma variante fonética de um fonema. Assim, a oclusiva glotal é uma variante fonética
da oclusiva alveolar, uma vez que aquela pode substituir está sem que haja mudança de significado na palavra (OGDEN, 2009, p. 4).
Sumário
194
organismo sonoro) e acústicos (as propriedades físicas dos sons da fala), pode po-
tencializar a produção e percepção da LE em foco, tornando-se primordial para o
estabelecimento de diferenças/semelhanças pautadas na oralidade, favorecendo,
portanto, a aprendizagem do dinamismo acústico-articulatório das línguas.
Nessa perspectiva, de acordo com Duarte (2018), os sons devem ser explici-
tados nas fases iniciais da aprendizagem da língua inglesa, a fim de ajudá-los nas
produções destes, bem como contribuir com a inteligibilidade da língua-alvo. Logo,
a reflexão sobre as implicações da fonética no processo de ensino-aprendizagem
de uma LE, justifica-se por remeter à modalidade oral da língua, cujo surgimento,
no processo aquisição de uma LM, antecede o da modalidade escrita (MADUREIRA;
SILVA, 2017, p. 88). Nessa perspectiva, já que os sons estão presentes desde o início
da aquisição da LM, é interessante explanar ao aprendiz os sons da LE o quanto
antes, ajudando-os, assim, tanto na produção/percepção destes quanto na inteligi-
bilidade oral da LE.
Além disso, propomos que a fonética é capaz de provocar a consciência fo-
nológica (CF) no aprendiz, trazendo reflexões acerca dos aspectos sonoros da LE,
bem como estimular a percepção da natureza articulatória dos sons da língua-alvo.
De acordo com Alves (2012), a CF refere-se às habilidades que o aprendiz adquire
ou possui em refletir e manipular os sons de uma língua. Madureira e Silva (2017)
destacam alguns propósitos do estudo dos sons de uma LE (ver Figura 1).
Figura 1: Propósitos do estudo dos sons de uma LE

Fonte: Madureira e Silva (2017).

Assim como propõem os autores, no momento em que o aprendiz identifica os


novos sons, ele poderá refletir sobre os mesmos, bem como distingui-los dos da sua
L1 e, assim, produzi-los e percebê-los com mais facilidade, o que corrobora a ideia
de Alves (2012), que, através da CF, a qual abarca aspectos fonético-fonológicos, o
indivíduo passa a reconhecer e compreender os sons da língua.
Hirakawa (2007), em sua monografia sobre a fonética e o ensino-aprendi-
zagem de línguas, destaca que a fonética é um componente imprescindível para o
desenvolvimento das competências orais de uma LE. A autora, além de enfatizar a
importância da fonética para a produção e percepção dos sons em LE, aponta que
seus alunos, após o contato com a fonética, sentiram-se mais confiantes para falar
Sumário
195
a LE e apresentaram mais facilidade para compreender dados orais da língua-alvo.
Para a autora:
[...] no momento em que eles percebem que eles compreendem melhor uma mensagem
oral ou que eles se sentem mais confiantes para falar, a fonética passa então a despertar
a curiosidade dos alunos e se torna também um instrumento para o aprimoramento das
competências orais (HIRAKAWA 2007, p. 143).

Corroborando com essa perspectiva, a fonética passa a ser uma ponte ao des-
conhecido, isto é, aos novos aspectos sonoros, orais e perceptivos da LI. Ademais,
à medida que o aluno entende com mais simplicidade o inglês falado, ele se sente
mais estimulado e motivado a aprender a LE em foco.
O fenômeno fonético em estudo: a oclusiva glotal [ʔ]
A oclusiva glotal [ʔ], também chamada de parada glotal (glottal stop), é um alo-
fone presente na LI em suas variedades mais conhecidas como o inglês americano,
australiano, britânico, irlandês e escocês, como apontam Cobacho (2018), Garellek
(2015), Faris (2010) e Ogden (2009). É um som de articulação posterior, dada à na-
tureza de sua realização no trato vocal, isto é, na laringe. Em sua produção, o fluxo
de ar que vem dos pulmões e passa na traqueia é obstruído pelo fechamento brusco
das pregas vocais, seguido pela soltura do ar através da abertura destas (DUARTE,
2018). Faris (2010) descreve três etapas para a produção da oclusiva glotal:
1. Aproximação (approach): momento em que o fluxo de ar é impedido pelo
fechamento das pregas vocais;
2. Mantimento (hold): momento em que as pregas vocais se mantêm fecha-
das, a fim de obstruir completamente o fluxo de ar;
3. Soltura (release): momento em que o fluxo de ar é liberado pela abertura
das pregas vocais.
Figura 2: Visualização das pregas vocais na fase da aproximação, fechamento brusco e mantimento
(destaque em verde), seguido da abertura destas (realce em amarelo)

Fonte: Adaptado de: https://mvac.com.au/vocal-cord-dysfunction.

Além disso, a oclusiva glotal é caracterizada como um alofone da oclusiva


alveolar /t/, como em; “important” [ɪmpɔrtənt] → [ɪmpɔrʔnʔ], “button” [bʌtn] →
[bʌʔn], sem que haja mudança de significado na palavra. A substituição da oclusiva
alveolar pela oclusiva glotal é um fenômeno denominado de glotalização-t (t-glota-
lization) (GARELLEK, 2015; COBACHO, 2018). De acordo com Faris (2010) e Duar-
te (2018), a oclusiva glotal é produzida nos seguintes ambientes fonológicos:
Sumário
196
• Em final de silaba e se o segmento precedente for um som vocálico ou so-
noro: - football [fʊt bɔ:l] → [fʊʔ bɔ:l], outside [aʊt saɪd] → [aʊʔ saɪd]
• Antes de segmentos nasais: – button [bʌtn] → [bʌʔn], cotton [kɒtn] →
[kɒʔn], mitten [mɪttn] → [mɪtʔn], Manhattan [mænhætn] → [mænhæʔn]
• Em posição de coda: cat [kæt] → [kæʔ], shirt [ʃɜrt] → [ʃɜrʔ], can’t [kænt] →
[kænʔ];
• Antes de semivogal - gatwick [gæt wɪk] → [gæʔ wɪk], quite well [kwaɪt wel]
→ [kwaɪʔ wel].
Vale a pena ressaltar, assim como destacam Eddington e Taylor (2009), que o
ambiente fonológico propício à realização da glotalização-t pode mudar a depen-
der da variedade do inglês. Cobacho (2018) faz menção ao dialeto conhecido como
Cockney English, falado em Londres, e aponta para mais um ambiente favorável à
produção da oclusiva glotal, o ambiente intervocálico, como em: bottle (garrafa)
[bɒʔl̩] e butter (manteiga) [bʌʔə]. Não obstante, o autor destaca que a realização da
oclusiva glotal entre sons vocálicos é uma característica marcada do Cockney Enl-
gish. Duarte (2018) aponta que, em ambientes intervocálicos, diferentemente dos
falantes do dialeto Cockney Enlgish, falantes nativos do inglês dos Estados Unidos
tendem a produzir a vibrante simples alveolar (ou tepe) [ɾ], no lugar da oclusiva
alveolar [t]: <better> (melhor) pronunciado, be[ɾ]er; <bottle> bo[ɾ]le, e <butter>
bu[ɾ]er.
Garellek (2015) assevera que a oclusiva glotal é um som bastante comum en-
tre nativos e muito recorrente na LI, especialmente no inglês falado. Ito e Strange
(2009), Faris (2010) e Norton (2017) frisam que a oclusiva glotal é um som bas-
tante difícil para aprendizes de inglês como LE. Duarte (2018) destaca que mesmo
sendo um som muito produzido por nativos da LI, ele é, ao mesmo tempo, pouco
conhecido por brasileiros aprendizes/falantes de inglês/LE. A autora pontua algu-
mas complexidades para a produção e percepção da oclusiva glotal por brasileiros:
i) um som que não está presente no inventário fonológico do PB; ii) um som com
uma articulação posterior, o que impede a visualização de sua produção; e iii) um
som que pode ser confundido com um apagamento sonoro, visto que apresenta
baixa intensidade.
Nessa perspectiva, faz-se imprescindível buscar meios que facilitem a com-
preensão e produção da oclusiva glotal pelos brasileiros. A seguir, mostraremos
como se deu a metodologia de nossa pesquisa, descrevendo a intervenção realiza-
da em sala de aula para a produção e percepção da oclusiva glotal.
Metodologia
Esta pesquisa é uma proposta de intervenção (uma pesquisa-ação), uma vez
que apresentamos um detalhamento de aulas com treinamentos (instrução explí-
cita) da oclusiva glotal. Para isso, foram selecionados quatro brasileiros aprendizes
de inglês/LE, com idade entre 12 a 13 anos, naturais da Paraíba e alunos do 7° ano
do ensino fundamental de uma escola particular localizada na cidade de Guarabi-
ra-PB. Esses discentes foram submetidos a cinco aulas com instrução explícita da
realização oral e perceptual da oclusiva glotal em inglês, como também, treinamen-
Sumário
197
to metafonológico com foco na pronúncia e percepção do segmento-alvo. Vejamos,
a seguir, uma descrição da instrução explícita do som em pauta.
Intervenção da oclusiva glotal
Antes de descrevermos a aplicação de nossa intervenção, vale a pena ressaltar
que, ainda que seja uma descrição da aplicação da temática em sala de aula pela
professora-pesquisadora, é também uma proposta a ser aplicada por professores
de inglês como LE, a fim de contribuir com o ensino de LI, especialmente o de pro-
núncia. Nessa perspectiva, esta intervenção pode ser utilizada por professores de
inglês como LE já atuantes ou professores em formação, além de estudantes esta-
giários da língua-alvo. Esta proposta, configura-se como aporte para aprendizes
da LI e pesquisadores que são curiosos e interessados em compreender aspectos
fonético-fonológicos da língua em foco A seguir, a partir do Quadro 1, detalhamos
as 6 atividades aplicadas na intervenção, as quais foram desenvolvidas em 5 aulas
com duração de 45 minutos cada.
Quadro 1: Intervenção da oclusiva glotal em sala de aula
Materiais
Atividades Tema Objetivos Duração
utilizados
Quadro, lápis
Conhecer as
Oclusiva glotal e imagens dos
características
1ª vs. oclusiva articuladores 30 min.
articulatórias de
alveolar dos referidos
ambos segmentos
sons

Compreender os
A oclusiva
ambientes propícios
2ª glotal enquanto Quadro e lápis 30 min.
à produção da
alofone
oclusiva da glotal
Aprender como se
Articulação da
3ª produz a oclusiva Quadro e lápis 30 min.
oclusiva glotal
glotal
Percepção da Praticar a percepção Projetor,
4ª 25 min.
oclusiva glotal da oclusiva glotal quadro e lápis

Articulação da Praticar a produção


5ª Quadro e lápis 20 min.
oclusiva glotal da oclusiva glotal

Listening: a Praticar a percepção


Caixa de som,
6ª oclusiva glotal da oclusiva glotal em 45 min.
quadro e lápis
em frases frases
Fonte: Duarte (2020).

Na primeira lição, explicamos aos alunos o que é a oclusiva glotal [ʔ] e a oclu-
siva alveolar [t], como ambas são produzidas e quais articuladores estão envolvi-
dos na realização dos referidos sons. Para uma ampliação maior do conhecimento,
mostramos aos discentes uma imagem da glote e pregas vocal (ver figura 2).
Já na segunda lição, discutimos sobre a oclusiva glotal enquanto alofone da
oclusiva alveolar. Explanamos aos alunos que na LI a oclusiva glotal é caracterizada
como um alofone da oclusiva alveolar pelo fato de que, em certos contextos fono-
lógicos, os quais já detalhamos na fundamentação do presente trabalho, a oclusiva
glotal pode substituir a alveolar sem que haja mudança de significado na palavra.
Sumário
198
Posteriormente, repassamos e explicamos aos alunos os ambientes fonológicos
propícios à produção da oclusiva glotal (ver seção “O fenômeno fonético em estudo:
a oclusiva glotal [ʔ]” deste trabalho).
No que tange à terceira atividade, focalizamos em um treinamento através de
uma técnica baseada no Modelo Articulatório-Motor de Stetson (1951, p. 203-208)
utilizando o “Golpe de Glote” (glottal catch). Este movimento articulatório é uma
transição positiva-negativa do movimento muscular para a produção da oclusiva
glotal. Essa técnica é representada por um movimento balístico. Esse movimen-
to leva em conta duas variáveis: um movimento articulatório para a consoante-al-
vo e um movimento respiratório (pulso expiratório de fora para dentro antes da
soltura) para gerar pressão sub-glótica e, desta forma, tencionar as pregas vocais
(STETSON, 1951, p. 230-237). A tensão das pregas vocais ocasionada pela transi-
ção positiva-negativa é que gera o movimento balístico, i.e., as fases dinâmicas de
decaimento, tanto da F0 quanto da energia, ao longo do tempo.
Pedimos que os alunos permanecessem em silêncio, visto que estamos tra-
tando de pronúncia e, para o segmento-alvo, que é um som de baixa intensidade,
precisamos de um ambiente o mais silencioso possível.
O treinamento se deu da seguinte forma:
1. Como os participantes também têm aulas de espanhol, pedimos que os
alunos produzissem a palavra “un” (STETSON, 1951, p. 203) em espanhol
(um em português) (ver Figura 3 para a produção do referido som), com
a ponta da língua no alvéolo dentário (cavidade do osso da maxila e man-
díbula em que os dentes superiores e inferiores se alojam), nesse caso,
posicionar a língua no alvéolo dos dentes superiores;
2. Após a realização da palavra “un”, pedimos que eles produzissem a sílaba
“bu” [bʌ] da palavra “button”;
3. Por fim, pedimos que realizassem a sílaba “bu”, juntamente ao número “un”
em espanhol, de forma que houvesse um espaço temporal entre uma sílaba
e outra. Os discentes tinham que fazer um esforço maior antes da vogal de
cada sílaba, em outras palavras, alongar o [b] da sílaba tônica e um golpe
de glote (como um estilingue) na sílaba pós-tônica, o qual é facilitado atra-
vés da técnica da palavra “un” mencionada no ponto 1, deste treinamento.
Esse golpe de glote, em função do lapso temporal entre as sílabas tônica e pós-tônica,
é relatado por Stetson (1951) no tocante à realização articulatória do inglês por nativos,
e por Morton, Marcus & Frankish (1976), em investigação sobre o centro de percepção
humano para vogais e consoantes (p-center) envolvendo “a batida do dedo” (finger ta-
pping) antes da produção de uma vogal. Posterior a esse treinamento, aplicamos o mesmo
procedimento com mais palavras: mitten [mɪtʔən], Manhattan [mænhæʔən], entre outras.
Sumário
199
Figura 3: Foto da primeira autora mostrando a articulação da sílaba “un” na palavra “button” com a ponta
da língua atrás do alvéolo dentário superior em visão frontal (porção esquerda) e visão sagital (porção à
direita) para treinamento de produção da oclusiva glotal em ambientes que apresentem a oclusiva alveolar
antes de segmentos nasais como em button, cotton, mitten...

Fonte: Duarte (2020).

Para a realização da quarta atividade, solicitamos aos discentes o acesso do


site: <https://forvo.com/search/>4. Ao entrar no site, eles deveriam pesquisar
palavras propícias à substituição da oclusiva alveolar pela glotal, seguindo a ordem
proposta no Quadro 2.
Quadro 2: Atividade proposta para prática perceptiva da oclusiva glotal.

Student’s name: _____________________________


Occurences Words Glottal stop Alveolar stop
8 Cotton
6 Botton
3 Manhattan
4 Fit
4 Cat
4 Wait
4 Get
Fonte: Elaboração dos autores.

O número (occurences) indica a quantidade de cada palavra (words) a ser es-


cutada pelos alunos. Assim, após escutar as 8 (oito) produções da palavra “cotton”,
por exemplo, o aluno deveria escrever na coluna “glottal stop” ou “alveolar stop” a
quantidade de palavras que foi produzida com a glotal ou a alveoler.
A quinta atividade foi desenvolvida com o intuito de praticar a produção da
oclusiva glotal: cotton, button, Manhattan, mitten, cat, fit, shirt, dentre outras. Para
a escolha daquele que deveria produzir uma das palavras, foi feito o seguinte pro-
cedimento: enquanto uma música tocava, uma bola passava de aluno para aluno e,
quando a música parasse, o discente que estivesse segurando a bola deveria pro-
duzir uma das palavras; o mesmo procedimento se repetia até o fim das palavras, o
aluno que já havia participado não poderia participar mais.
Foi através dessa dinâmica, ao produzir palavras como: cat, fit, shirt, que al-
guns deles tentaram utilizar a técnica da palavra “un”. Nesse momento, houve uma
intervenção no que diz respeito a produções desses tipos de palavras. Explicamos

4  O https://forvo.com/ é um site que disponibiliza pronúncias de palavras nas mais variadas línguas do mundo. É uma boa opção
para aqueles que estão aprendendo uma segunda língua e gostariam de escutar a pronúncia de um nativo. Além disso, o site propicia
pronúncias de palavras em diferentes variedades da língua.
Sumário
200
aos discentes que a referida técnica não se aplica para palavras que podem apre-
sentar a oclusiva glotal em posição de coda. Pois, se eles o fizessem, outra palavra
seria produzida ou, até mesmo, uma que não faz parte do léxico da LI.
A intervenção se deu da seguinte maneira: ressaltamos que a técnica, ensina-
da anteriormente, utiliza-se para palavras que podem ser produzidas com a oclu-
siva glotal antes de sons nasais, como em: button, Manhattan, mitten etc. Contudo,
para palavras que possuem a oclusiva glotal em posição de coda, como shirt, but e
can’t, os discentes deveriam posicionar a mão na laringe, produzir a palavra-alvo e
tentar gerar uma pressão na glote. Dito isso, com a mão posicionada na laringe, os
aprendizes poderiam sentir, levemente, um deslocamento desta, devido à pressão
gerada pelo fechamento brusco das pregas vocais (ver Figura 4).
Figura 4: Foto da primeira autora com a mão posicionada na laringe para a produção de palavras que
podem apresentar a oclusiva glotal em posição de coda.

Fonte: Duarte (2020).

Na sexta atividade, praticamos a percepção da oclusiva glotal em frases e pa-


lavras. Para Duarte (2018):
Palavras como – can (poder) e can’t (não poder) –que podem ser produzidas com a oclusiva
glotal em substituição da oclusiva alveolar, se apresentam confusas para o falante de inglês
como LE. Ao passo que I Can’t (eu não posso) na fala passa a ser [ɑɪ kænʔ] e assemelha-se
a pronuncia de I can (Eu posso) [ɑɪ kæn] traz dificuldades na compreensão da mensagem
(DUARTE, 2018, p. 57).
Nessa perspectiva, buscamos praticar a percepção do verbo modal “can”
[kæn], em sua forma afirmativa e “can’t” [kænʔ], em sua forma negativa. A prática
se deu da seguinte forma: ao escutar [kæn] ou [kænʔ], os alunos deveriam jugar se
ouviram o verbo modal na forma afirmativa ou negativa. O mesmo procedimento
foi feito de maneira exaustiva, até o momento em que havia mais acerto do que
erro. Vale a pena destacar que as produções do verbo modal, na forma negativa,
eram realizadas com a oclusiva glotal e não com a oclusiva alveolar, visto que
objetivamos a prática da percepção do segmento glotal.
Posteriormente, praticamos a inteligibilidade do verbo [kæn] e [kænʔ] no
nível frasal. Utilizamos dez frases, cinco com o verbo modal can [kæn], na forma
afirmativa, e cinco com can’t [kænʔ] na forma negativa. Após escutar a frase, um
aluno era escolhido e deveria traduzi-la para o português. Por exemplo, ao escutar
“I can’t go now”, sendo “can’t”, produzido com a oclusiva glotal em substituição da
alveolar, espera-se que o aluno responda “eu não posso ir agora”, no lugar de “eu
Sumário
201
posso ir agora”, dessa forma, podemos praticar a percepção e inteligibilidade de
frases com a oclusiva glotal em detrimento da oclusiva alveolar que, muitas das
vezes, podem ser ambíguas para os aprendizes de inglês/LE.
Relatos dos alunos a partir da interação com as práticas de
ensino de pronúncia da oclusiva glotal
Vejamos, no Quadro 3, relatos dos alunos tomando como base as atividades
propostas pela professora-pesquisadora da turma. Vale a pena ressaltar que, a par-
tir desta exposição, não é o nosso intuito traçar quaisquer inferências e/ou resul-
tados prévios acerca do fenômeno em estudo. Trata-se de depoimentos dos alunos
e da percepção da docente após a realização dos experimentos (proposta de inter-
venção) na fase de treinamento.
Quadro 3: Relatos dos alunos a partir da interação com as práticas de ensino de pronúncia realizadas pela
professora-pesquisadora.
“Tia”, esse som é muito “estranho”, eu não conhecia ele, nunca tinha escutado sobre
A.01
ele. Mas é muito interessante...
Teacher, é “estranho” demais. Eu não sei se vou conseguir pronunciar, acho que não vou
A.02 tentar, é muito diferente... - depois de duas aulas... Teacher, eu estou conseguindo, escuta
bem... eu consegui, não foi!?
Professora, olha como eu estou falando... É assim, né!?. Eu estou gostando de aprender esse
A.03 som, porque eu não conhecia. Eu acho bom também aprender os sons e não só estar olhando
para o quadro e aprendendo gramática.
“Profe”, no início eu estava achando difícil de pronunciar e agora eu estou entendendo o que
A.04 a senhora está falando. Essa frase foi produzida com a oclusiva glotal e não com a oclusiva
alveolar. Eu já estou aprendendo, profe!
Fonte: Duarte (2020).

Com base no depoimento do A.01, percebemos, como bem aponta Alves


(2012), que há um estranhamento por parte do aprendiz ao se deparar com um
novo som. Esse estranhamento é normal e faz parte do processo de aprendizagem,
uma vez que é um segmento que não está presente no inventário fonológico do PB,
o que nos mostra, portanto, que o aprendiz está em um processo de consciência
fonológica - CF. É interessante observar que o aluno relata que nunca tinha ouvido
falar sobre o segmento-alvo, o que corrobora com Duarte (2018), afirmando que é
um som bastante recorrente na LI, mas pouco discutido e conhecido.
O A.02, assim como o A.01, também destaca que o som é estranho. Em um
primeiro momento, o A.02 diz que não conseguirá pronunciar o referido som, visto
que é bastante diferente para ele, uma vez que não faz parte do inventario fonológi-
co de sua LM. Contudo, após duas aulas, ele menciona que consegue realizar o som
e, além disso, com empolgação, chama a professora para escutar sua pronúncia do
segmento-alvo.
O A.03 relata com entusiasmo estar alcançando a produção de um segmento
que é novo, pois ele não sabia da existência do referido som. Além disso, percebe-
-se uma motivação por parte do aluno ao estudar os sons da LI. O que evidencia a
importância de não apenas focar em leitura ou gramática, por exemplo, da LI, mas
sim trabalhar outras habilidades em sala de aula.
Já o A.04 menciona que, inicialmente, a produção do som apresentava-se com-
plexa, mas que ao decorrer das aulas, através dos treinamentos, ele se sentia mais
Sumário
202
confortável em produzi-la, o que nos indica uma motivação e uma satisfação no que
tange à tentativa de perceber o som.
Vale a pena destacar que trazer para sala de aula algo bastante distinto da
realidade dos alunos, a primeiro momento, não é fácil. É compreensível, uma vez
que eles, na maioria vezes, estão acostumados com um ensino mais tradicional.
Então, ao propor algo diferente, nota-se, a priori, uma certa resistência por parte
do público discentes, todavia, com o passar do tempo, percebemos sua motivação
e participação.
Considerações finais
Através do que foi exposto neste trabalho, concluímos que a fonética, quando
ensinada de maneira adequada e efetiva, torna-se uma ferramenta eficaz, capaz de
facilitar e aprimorar a inteligibilidade e produção dos sons da língua-alvo. Além
disso, à medida que o aluno entende metafonologicamente os sons do inglês, ele
se sente mais estimulado e motivado a aprender a LI. Ademais, a professora-pes-
quisadora constatou, através de um teste de oitiva, ou seja, de sua percepção, que
as aulas com treinamento metafonológico foram significativas para o progresso na
produção e percepção da oclusiva glotal por parte dos discentes, bem como da mo-
tivação em aprender o segmento-alvo.
De maneira geral, este trabalho é relevante para o ensino de inglês nas es-
colas, levando em consideração que, na aprendizagem de uma LE, é fundamental,
nas fases iniciais da aprendizagem, contemplar os sons da língua-alvo. E, ainda,
por estarmos tratando de um segmento complexo para os aprendizes brasileiros,
em virtude de não o possuírem em seu inventário fonológico e ser um tema pouco
abordado, conhecido e discutido no ensino de inglês.
Acreditamos, portanto, que este capítulo se configura como um auxílio para
os profissionais da área. Dito isso, esperamos que, assim como nós, os docentes
reflitam sobre a utilização de práticas intervencionistas relativas ao ensino de pro-
núncia a fim de contribuir com os aspectos da oralidade que permeiam o ensino de
LE no Brasil.
Agradecimento
Agradecemos a concessão de bolsa à Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior (CAPES), sob o nº. 88887.497814/2020-00 para a pri-
meira autora e ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq), sob o nº. 151027/2020-0, para o segundo autor, para o segundo autor.
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Sumário
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Gêneros textuais e
transculturalidade em atividades de
produção escrita
Michell Gadelha Moutinho1

Resumo: Este trabalho tem o objetivo de analisar atividades de produção escrita em livros didáticos de
língua portuguesa e língua inglesa, a partir da perspectiva dos gêneros textuais proposta pelo interacio-
nismo sociodiscursivo (BRONCKART, 2006) e a transculturalidade (NICOLESCU, 2015). Os livros didáticos
apresentam propostas para a escrita de textos que são divergentes com o que vem sendo proposto pelos
estudiosos da área, o que enturvece o entendimento de professores e alunos sobre o objeto de ensino e o
papel da escrita e, da mesma forma, as questões diretamente ligadas ao seu ensino e aprendizagem. Para
identificar tais diferenças, foram analisados três livros didáticos, sendo um de língua portuguesa e dois de
língua inglesa. Adotou-se uma abordagem qualitativa na análise dos dados, baseada nas categorias de finali-
dade propostas por Fuza e Menegassi (2006), e de concepção de escrita, de Menegassi e Balieiro (2015). Os
resultados apontam que as atividades analisadas apresentam diferenças entre as finalidades e nas concep-
ções de escrita em língua materna e, especialmente em língua estrangeira, em que as concepções de escrita
apresentam uma aproximação menor com as correntes mais atuais dos estudos sobre ensino e aprendiza-
gem da escrita.
Palavras-chave: Gêneros textuais. Transculturalidade. Produção textual. Interacionismo

Introdução
As atividades de produção escrita, tanto em língua materna como estrangeira
são, há pelo menos duas décadas, pautadas pela perspectiva dos gêneros textuais.
Muitas pesquisas vêm sendo desenvolvidas para promover a mudança do para-
digma do ensino de língua materna centrado no ensino de estruturas gramaticais
para abordar a rede complexa de aspectos linguísticos e sociais em que os gêneros
textuais estão inseridos. Nos livros didáticos, esta mudança é perceptível, embora
não se possa afirmar que ela acontece da mesma forma para livros didáticos de
português e de outras línguas.
Com base nisto, contrastaremos atividades de produção escrita de uma co-
leção de livros do ensino médio de língua portuguesa com as de duas coleções de
1  Doutorando e mestre em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal do Pará - UFPA. Professor da Escola de Aplicação da UFPA.
E-mail: [email protected].
Sumário
205
livros de inglês para o mesmo nível de ensino, uma vez que é possível observar
nelas diferenças tanto ao que se espera de acordo com documentos oficiais, como
o trabalho com gêneros, quanto aos paradigmas mais atuais, especificamente aqui,
a transculturalidade. Escolhemos estas coleções para tentar identificar os pontos
que as aproximam e onde elas divergem em relação à produção de textos. Essa
comparação tem como objetivos: verificar qual objeto de ensino e finalidade das
atividades de produção textual nos livros didáticos para língua portuguesa e ingle-
sa, e se há implicações que devam ser consideradas no que diz respeito aos aspec-
tos (trans)culturais envolvidos nas atividades propostas. Estes objetivos tentam
responder a seguinte pergunta: as atividades de produção textual estão adequadas
às concepções de língua e cultura que embasam o trabalho com gêneros textuais?
Primeiramente, apresentaremos o conceito de gênero textual na perspectiva
do interacionismo sociodiscursivo (doravante ISD) e transculturalidade. A seguir,
trataremos do que diz a Base Nacional Comum Curricular (doravante BNCC) a res-
peito de atividades de produção de textos em livros didáticos. Após a delimitação
teórica, descreveremos brevemente os livros didáticos utilizados, para, ao final,
apresentarmos exemplos de atividades e discutirmos como as atividades se confi-
guram nos materiais analisados.
Gêneros textuais para o ISD
O conceito de gêneros textuais é amplamente difundido no meio acadêmico e
também apresentado em muitos livros didáticos produzidos atualmente. A defini-
ção de gênero pode ser problemática pela diversidade de autores e abordagens que
foram e são desenvolvidas correntemente, o que requer que as fronteiras teóricas
sejam bem delimitadas para que não haja confusão, tanto do ponto de vista termi-
nológico quanto teórico e metodológico.
A concepção de gêneros textuais é, como aponta Miranda (2017, p. 814), uma
questão complexa e com implicações para a pesquisa, como dito anteriormente, e,
para superar esta barreira, ela adota o entendimento dos autores que se alinham ao
interacionismo sociodiscursivo. A autora defende esta escolha (com a qual nos as-
sociamos), distinguindo gênero discursivo de gênero textual, da seguinte maneira:
[...] discurso e texto são duas realidades diferentes e não duas formas de ver o mesmo obje-
to. A noção de discurso [...] corresponde à utilização do sistema da língua em situações con-
cretas. O discurso é a língua em uso. Já o texto, por seu lado, é concebido como uma unidade
comunicativa que mobiliza unidades de, pelo menos, uma língua natural e, eventualmente,
outras unidades semióticas. Portanto, o texto não é apenas uma unidade linguística (ou dis-
cursiva), mas uma unidade de comunicação linguística, uma unidade semiótica (MIRANDA,
2017, p. 819).

Com base nesta distinção, livros didáticos e, consequentemente, atividades de pro-


dução escrita devem ser elaborados levando em consideração o aspecto concreto e co-
municativo dos gêneros textuais, para Constantino (2007) as diretrizes presentes em do-
cumentos oficiais (especificamente os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino
Médio - PCNEM) contribuem para este fim. A autora afirma que:
Sumário
206
É notório que o documento [PCNEM] dá maior ênfase aos aspectos composicionais e esti-
lísticos dos gêneros, reflexo de perspectivas teóricas que, de maneira equivocada, afirmam
ser esse o processo metodológico no trabalho com os gêneros (CONSTANTINO, 2007, p.
55).

Para esta análise, é importante perceber como o trabalho com a escrita é visto
a partir da perspectiva sociointeracionista (BRONCKART, 2006), a qual aponta a
primazia da linguagem e da interação no desenvolvimento e na aprendizagem, bem
como o entendimento de que o texto é o objeto de estudo e a finalidade da apren-
dizagem de uma língua, e, também, transcultural em que “assegura a tradução de
uma cultura para qualquer outra cultura, pela decodificação do sentido que liga
as diferentes culturas, embora as ultrapasse” (NICOLESCU, 2015, p. 120), onde os
gêneros são os meios pelos quais os sujeitos produzem seus enunciados e, ao se
tratar de atividades de escrita em contextos situações comunicativas e em línguas
diferentes, permeadas pela cultura da língua e de seus falantes.
Os gêneros textuais podem variar tanto em forma quanto em uso a depender
da situação comunicativa em que são empregados pelos falantes, o que, evidente-
mente, pode ocorrer em comunidades de falantes da mesma língua quanto de fa-
lantes de línguas diferentes. Silva (2019, p. 139) caracteriza essa relação complexa
entre sujeito, língua e cultura, a partir da perspectiva transcultural, da seguinte
maneira:
Alicerçada nesse paradigma das propostas Trans_, entendo que o sujeito constrói sua lín-
gua, a qual constrói sua realidade, e, consequentemente, sua cultura e sua sociedade. Assim,
não há língua sem sujeito, sem cultura, sem sociedade; não há sujeito sem língua, sem cul-
tura, sem uma sociedade a que pertença; não há cultura sem língua, a qual não existe sem
os sujeitos, que não existem sem cultura, a qual não existe sem estar em uma sociedade;
não há sociedade sem sujeito, que fale a língua, que está numa cultura de uma sociedade.
Desse modo, não posso separar língua, sujeito, cultura e sociedade, pois são alimentadores
e retroalimentadores uns dos outros indissociavelmente.

Como exposto acima, a relação interligada dos três elementos (língua, cultura
e sociedade) deve ser um norteador para que a aprendizagem da língua se efetive
de maneira a promover a efetiva atuação dos sujeitos em situações reais de comu-
nicação.
Estas percepções próximas ainda não foram bem compreendidas para que os
livros didáticos possam ser analisados sob uma ótica que englobe as concepções de
língua que norteiam as propostas de produção escrita.
Livro didático e a BNCC
O livro didático é um dos recursos que o professor utiliza para construir sua
aula e, muitas vezes, é a partir de seus conteúdos e de suas atividades que os alunos
exercitam tanto a leitura quanto a escrita, fato que pode ter como uma das explica-
ções às políticas públicas para a sua distribuição (como o Plano Nacional do Livro
Didático).
Geraldi (1993, p. 136) concebe a escrita de duas formas distintas: para ele, o
aluno pode escrever “para a escola” e “na escola“. A primeira concepção diz que o
trabalho de escrita é feito para atender a uma demanda e para se fazer uma reda-
Sumário
207
ção, trabalho pelo qual o professor será o único leitor e haverá uma avaliação feita
através da atribuição de uma nota para aquele produto. Já na segunda, a atividade
não é mais uma redação, mas uma produção de texto, e esta modificação de nomen-
clatura implica em uma tomada de posição do aluno, ou seja, ele expõe seu ponto
de vista e o texto passa a ser um elemento na cadeia de produção de novos textos e
também como ponto de partida para trabalhos de reescrita.
Cunha (2016, p. 10) corrobora esta visão ao afirmar que ainda há muitos li-
vros em que o caráter interacional não é plenamente explorado e onde muitas ati-
vidades continuam privilegiando o foco em aspectos linguísticos/gramaticais e/ou
de fixação das características estruturais do gênero trabalhado.
Além destas considerações, Menegassi e Fuza (2006, p. 36) apresentam a fina-
lidade do exercício de escrita como elemento “fundamental, uma vez que é a partir
dela que se tem a escrita de um texto formador de sujeitos (produção de texto)
ou de assujeitados (redação)”. Este entendimento contribui para que as atividades
do livro didático sejam consideradas a partir dos elementos que elas próprias for-
necem, permitindo que alunos e professores possam perceber os pontos fortes e
fracos de cada livro e atividade.
A BNCC (2018, p. 67), baseando-se em documentos anteriores a ela, apresenta
o principal objeto de ensino da disciplina de língua portuguesa:
A centralidade do texto como unidade de trabalho e as perspectivas enunciativo-discursi-
vas na abordagem, de forma a sempre relacionar os textos a seus contextos de produção e o
desenvolvimento de habilidades ao uso significativo da linguagem em atividades de leitura,
escuta e produção de textos em várias mídias e semioses (grifos do texto).

A partir deste objeto, o documento subdivide o ensino em práticas de lingua-


gem, que são:
Oralidade, leitura/escuta, produção (escrita e multissemiótica) e análise linguística/semi-
ótica (que envolve conhecimentos linguísticos – sobre o sistema de escrita, o sistema da
língua e a norma-padrão –, textuais, discursivos e sobre os modos de organização e os ele-
mentos de outras semioses) (BRASIL, 2018, p. 71).

A delimitação da produção textual como uma das práticas de linguagem con-


sideradas na BNCC engloba desde as condições de produção às estratégias de pro-
dução, ou seja, o seu caráter processual em que são considerados o planejamento,
organização e avaliação/revisão. Os aspectos para a língua portuguesa estão pre-
sentes na parte correspondente à língua estrangeira, ainda que não estejam exata-
mente organizados. Na parte referente à prática de linguagem, a BNCC chama de
eixos organizadores, dos quais a escrita faz parte. Esta diferença tem implicações
que não cabem no escopo deste trabalho, mas que precisam ser mais desenvolvidas
para compreender como os documentos entendem não só as concepções de língua,
mas o trabalho em cada uma.
Com base nas perspectivas apresentadas pela BNCC, o livro didático é o ele-
mento que encerra propostas de escrita que podem contemplar as concepções
acima. A partir desta delimitação, trabalharemos a análise dos livros didáticos se-
lecionados. Tentaremos estabelecer uma ligação entre as atividades propostas, a
Sumário
208
finalidade das atividades de produção escrita e o que das lições é entendido como
o objeto de ensino.
Apresentação e descrição dos livros didáticos
Nossa análise parte da descrição dos livros e suas propostas de atividades de
escrita. Para tanto, iniciaremos com a coleção Viva Português. Esta coleção contem-
pla as disciplinas de Português e Literatura em todos os volumes, diferentemen-
te do que ocorre amplamente com a separação de ambas em disciplina de Língua
Portuguesa e Literatura em grande parte dos sistemas de ensino regulares (o que
pode, também, ser motivado pelo formato do ENEM).
O livro se divide em seis unidades, cada uma subdividida em dois capítulos. As
atividades de escrita aparecem normalmente no final de cada capítulo sob o nome
de Produção de texto (no primeiro capítulo) e E por falar em... (no segundo capí-
tulo). Em algumas unidades, uma ou outra destas seções pode não aparecer, mas,
quando as duas aparecem, uma delas é mais diretamente ligada ao assunto da lição
e a outra tenta incluir outros aspectos mais gerais, mas que podem ser relaciona-
dos ao tema, conforme mostra o quadro abaixo:
Quadro 1: Atividades de escrita da coleção Viva Português
1º ano 2º ano 3º ano
Atividade de escrita Atividade de escrita Atividade de escrita
Produção E por falar Produção de E por falar Produção de
Unidades E por falar em...
de texto em... texto em... texto
Unidade
Escrever um Resenha Resenha
de - - -
miniconto critica critica
Abertura
Texto sobre
U1 Sarau Cordel Mesa redonda Romance -
craftvism
U1 Painel - Painel - Entrevista Entrevista
Interpretação Pesquisa /
Texto Redação Letra de
U2 e escrita de exposição dos -
teatral Enem musica
dialogo dados
Criação de um
U2 - Agenda critica - Debate -
sketch
Painel sobre Carta
U3 Soneto Miniconto Conto Cartas
poesia argumentativa
Projeto de Apresentação Apresentação
U3 - - -
invenção de filme oral
Relato de
U4 - Seminário Haicai Crônica Crônica
viagem
Antologia /
U4 - - Fotografia - -
seminário
Poemas Anúncio Texto sobre Artigo de
U5 Poema Queixa
esparadrápicos publicitário alguém opinião
Fotografia Divulgar
U5 - Mimica - -
pinhole poemas
Cartaz sobre Texto
U6 - Mito - Reportagem
dissertação dissertativo
Apresentação
U6 Cartaz - Charge - -
de livro
Fonte: Elaborada pelo autor.
Sumário
209
Dos livros de língua inglesa, começaremos pela coleção Alive High. Nesta cole-
ção, os livros são divididos em 8 lições, cada uma iniciando com um texto que con-
textualiza o tema a ser trabalhado e finalizando com a atividade de escrita. Estas
atividades encontram-se sob o nome de Let’s act with words e são descritas abaixo:
Quadro 2: Atividades de escrita do livro Alive High
1º ano 2º ano 3º ano
Unidades Atividade de escrita Atividade de escrita Atividade de escrita
Let’s write a presentation of
U1 Create an infographic Describe paintings
your talent
Let’s create a graffiti of a
Write slogans for a Going
U2 cow for a Cow for Parade Create a poster
Green campaign
event.
U3 Let’s write short profiles Interview Listen to a musical parody
U4 Let’s create a flyer! A text message Making a poster
Let´s create a piece of
Create a concept map about
U5 propaganda to defend Make a news report!
your multiple intelligences
animals
U6 Let’s write a biography Writing a letter to the editor Write a testimonial
Writing instructions for Develop a visual report
U7 A weather script
making a craft about man-made wonders
Let’s write a comment to
U8 A tutorial Make a multimodal timeline
post on a website
Fonte: Elaborada pelo autor.

A última coleção que descreveremos é a de livros didáticos de inglês On Stage.


Nesta coleção, cada livro contém 12 lições e cada lição é dividida em seções que
começam com um texto que contempla o tema, apresentando o vocabulário e tra-
balhando as estruturas gramaticais que serão estudadas na lição. Em seguida, têm-
-se atividades de listening, speaking e writing (ouvir, falar e escrever), sendo estas
últimas, apresentadas no quadro abaixo:
Quadro 3: Atividades de escrita do livro On Stage
1º ano 2º ano 3º ano
Unidade Atividade de escrita Atividade de escrita Atividade de escrita
Preencher formulário em
U1 E-mail sobre Brasil Carta sobre escolhas
site
Mensagem sobre
U2 Pôster Cartaz sobre Brasil
doação de órgãos
U3 Escrever sobre sua cidade Cartaz Completar perfil
Entrevista e paragrafo sobre a
U4 Cartão postal sobre cidade E-mail em resposta
conversa
E-mail sobre Santos Paragrafo sobre matéria Paragrafo sobre
U5
Dumont preferida tirinha preferida
Texto sobre mundo
U6 Completar um texto Completar uma conversa
perfeito
U7 E-mail com abreviações Escrever um “elogio” Preencher formulário
Planos para os próximos
U8 Carta em resposta Relatar conversa
dias
Paragrafo resumindo
U9 Completar texto O que assisto e não assisto na tv
acidente
U10 Completar o texto Texto sobre sonho Frase em camiseta
Cartão postal sobre
U11 Completar o texto Lista de atividades
cidade
Sumário
210
Minibiografia de
U12 Pirâmide alimentar Receita
Shakespeare
Fonte: Elaborada pelo autor.

Metodologia
Para analisar a finalidade da escrita nas atividades propostas e quais as con-
cepções de escrita que elas encerram (sob a perspectiva dos gêneros textuais e
transculturalidade), faremos uma análise qualitativa das atividades presentes nos
livros escolhidos e seguiremos os parâmetros apontados por Menegassi e Fuza
(2006) e Menegassi e Balieiro (2015).
Menegassi e Fuza (2006), a partir de sua análise de duas coleções de livros di-
dáticos de português para o ensino fundamental, identificaram 5 tipos diferentes,
sendo que, nas atividades, a finalidade do trabalho com a escrita: não está marcada;
marcada na seção posterior; marcada no interlocutor; marcada no gênero discur-
sivo; e finalidade para produção futura. Esta categorização não marca apenas a re-
lação entre as atividades do livro em si, mas também como elas se relacionam com
os aspectos interacionais dos gêneros propostos.
A segunda categorização considera o aluno enquanto autor dos textos ao mes-
mo tempo em que examina as motivações (atividades prévias, apresentação sobre
um tema, preparação para a escrita) para que se chegue à produção textual. Me-
negassi e Balieiro (2015), em sua análise, perceberam que os livros concebem a
escrita ou como um dom (não há preparação e o ato de escrever é proveniente da
“inspiração”), ou como uma consequência (há atividades, mas elas funcionam como
pretexto para a produção escrita) ou como trabalho (atividades em que um tema é
abordado e o processo de escrita é desenvolvido em suas etapas - preparação, revi-
são, reescrita etc.). Nesta perspectiva, além do papel do aluno, há a preocupação de
perceber como o livro didático auxilia neste processo.
Estas categorias nortearão nossa análise dos dados obtidos nos livros didáti-
cos tanto de língua portuguesa quanto de língua inglesa. Iniciaremos pela coleção
de língua portuguesa.
Análise dos dados
A partir das considerações feitas com base na finalidade das atividades de
escrita e as concepções da escrita em relação ao aluno como autor do texto, fare-
mos uma análise qualitativa de algumas atividades contidas nos livros didáticos
descritos acima. A análise pretende verificar as finalidades e concepções de escrita,
bem como se estas atividades se inscrevem aos vieses teóricos do ISD e da trans-
culturalidade.
Coleção Viva Português
Na coleção Viva Português, como exposto acima, há dois momentos de pro-
dução textual. Um momento de produção que é feito em sala ou para ser feito e
exposto em sala e outro em que, além da produção, terá o texto exposto em sala.
Nas primeiras páginas, as autoras esclarecem que, “considerando a importância
Sumário
211
do interlocutor potencial dos textos” (CAMPOS; CARDOSO; ANDRADE, 2010, p. 3),
há um projeto que é caracterizado pelo gênero textual e que será divulgada para a
comunidade escolar.
Tomando como exemplo a primeira lição do livro para o 1º ano, temos o tema
“trovadorismo” e o “cordel”, em que há uma aproximação da poesia medieval com
os poemas de cordel para que o aluno possa identificar características que ainda
permanecem hoje em dia. As produções textuais desta lição são: a escrita de um
poema no estilo dos poemas de cordel e a organização de um sarau. Nestas ativi-
dades, percebemos que o primeiro momento de produção do texto se caracteriza
por cumprir a demanda de um trabalho marcado no gênero (cordel) e o outro é
marcado para uma produção futura (sarau).
Além disto, pode-se perceber que o trabalho aqui é uma consequência dos
temas desenvolvidos na lição. O aluno responderá a uma demanda que vem sendo
preparada pelo tema e, ao final do ciclo, terá que produzir seu texto (no caso do
cordel).
Figura 1: Amostras do livro Viva Português

Fonte: Campos, Cardoso e Andrade (2010).

Coleção Alive High


Na coleção Alive High, os autores, como foi dito, iniciam as lições com um texto
que trata do tema ou que norteará a produção escrita. Para exemplificar, mostra-
remos a primeira página de uma lição e a página referente à atividade de escrita:
Sumário
212
Figura 2: Amostras do livro Alive High

Fonte: Menezes et al. (2013).

Podemos perceber que o tema serve de base para que o aluno escreva e que
existem algumas indicações que guiam a atividade (quem é o autor, quem será o
público, que gênero, onde será publicado e qual o propósito), o que está condizente
com o entendimento que o ISD propõe. Estas indicações mostram que as ativida-
des de escrita podem ser inseridas em mais de uma das categorias propostas por
Menegassi e Fuza (2006): as marcadas pelo interlocutor, gênero e para produção
futura. Aqui, pode-se ver com bastante clareza a concepção de escrita como um
trabalho, uma vez que a produção escrita está diretamente ligada ao caráter pro-
cessual, considerando os diversos passos que precisam ser seguidos (presente na
parte Writing stages), a fim de que o texto possa ir além do cumprimento de uma
demanda escolar.
On Stage
Em relação ao livro On Stage, algumas atividades incluem as categorias de fi-
nalidade, mas existem outros exercícios que se limitam a que o aluno complete um
texto que trata do assunto da lição. Essa constatação mostra que o entendimento
do que é a escrita em língua estrangeira é problemática neste material.
Para exemplificar, apresentaremos duas atividades do material, sendo uma
delas um exercício de escrita e outra para completar o texto já feito:
Sumário
213
Figura 3: Amostras do livro On Stage

Fonte: Marques (2010).

Na Figura 3, vemos que as atividades de produção escrita (Writing) são, na


verdade, exercícios para prática de estruturas e vocabulários presentes em mo-
mentos anteriores da lição. Em uma delas, vemos que o autor indica como o texto
deve ser iniciado, o que indica que a finalidade está marcada na seção posterior,
mostrando que o texto a ser produzido deve ser feito com base no que foi visto nas
seções anteriores, e que, de certa forma, a escrita é uma consequência, pois “o texto
é visto como o resultado final do trabalho e como algo que não progride, uma vez
que os processos de revisão e de reescrita não são acionados” (MENEGASSI; BA-
LIEIRO, 2015, p. 158).
As finalidades e concepções das atividades e dos exercícios acima mostram
que há grandes diferenças no entendimento de como a escrita deve ser trabalhada,
as concepções de língua por trás de cada obra e em que medida os gêneros são ado-
tados como objeto de ensino.
Discussão dos resultados das análises
Nas coleções vistas acima, notamos que a escrita é abordada diferentemente
em cada uma, principalmente, pela concepção do que é língua e do que deve ser
ensinado. Não há uniformidade dos objetos de ensino, o que acarreta em uma de-
sorientação de alguns professores e dos alunos sobre quais são os objetivos das
disciplinas, cuja incumbência é o ensino de língua e a finalidade das atividades.
Ao apresentar cada uma das coleções, vimos que muitas das consignas se ba-
seiam em textos cujos temas são relacionados ou semelhantes aos gêneros textuais
a serem trabalhados pelos alunos em suas atividades de escrita. Há, entretanto,
Sumário
214
exercícios que trabalham questões mais estruturais da língua, restringindo seu
escopo ao uso de expressões e vocabulário presentes na lição. Miranda (2017, p.
822) afirma, baseando-se em outros autores, que “é necessário elaborar “mode-
los didáticos” dos gêneros. Eles constituem caracterizações ou descrições que ser-
vem como ferramenta para o ensino, fornecendo os traços próprios dos gêneros
relevantes para ensinar a produzir (ou compreender) os textos”. A ausência destes
modelos parece ser um empecilho para um trabalho em que a interação e a cultura
possam servir como norteadores.
Sob a ótica da transculturalidade, é preciso salientar que os materiais para o
ensino de língua materna e estrangeira também divergem no que concerne ao que
é considerado como atividade de escrita. Tal divergência evidencia que o processo
de escrita, ainda que baseado nas premissas do trabalho com gêneros textuais não
é unânime ao desconsiderar características fundamentais para que o texto produ-
zido ultrapasse os muros da escola. Como exemplo, pode-se ver que em cada uma
das coleções, certos gêneros prototípicos utilizados: o pôster (cf. Figura2), que apa-
rece nos demais materiais (como cartaz, em On Stage, e painel2, em Viva Português).
Nestes casos, a presença de vocabulário, estruturas gramaticais, características do
gênero textual, situação comunicativa e dos estágios do trabalho de produção tex-
tual não é suficiente, pois é possível que o mesmo gênero ocorra de modos diferen-
tes de uma língua para outra, independentemente do nível que seja considerado
(linguístico ou discursivo).
Esta consideração é relevante para que não se permita a criação de diversos
objetos de ensino para a escrita, o que é prejudicial para a aprendizagem tanto de
língua materna quanto estrangeira, mas também para a atuação destes aprenden-
tes em contextos comunicativos reais.
A coleção Viva Português tem os temas ligados a tópicos linguísticos e a temas
literários, ambos relacionados a algum gênero textual. A produção escrita, em dois
momentos, tem objetos de ensino relacionados, mesmo que nem todas as lições
tenham os dois momentos de produção textual (como na Unidade 4, do livro 1). As
seções de produção textual tentam incluir características estruturais dos gêneros,
a partir de três atividades, que são: reprodução – onde há modificação de um texto,
decalque – treino de alguma modalidade estrutural ou de conteúdo do gênero, e
produção de autoria – momento de produção do texto do aluno (mas não em todas
as unidades).
Do que foi visto, o objeto de ensino presente nesta coleção é o gênero e suas
características, estudadas para que o aluno saiba como aquele gênero é constituído
e de que maneira ele deve ser produzido.
Já a coleção Alive High apresenta também um tema, mas há uma maior preo-
cupação em incluir os vários elementos que são importantes em uma produção de
texto, como o interlocutor, o meio onde circulará a produção e entre outros pontos
mencionados anteriormente. Nessa perspectiva, além da finalidade da escrita, esta

2  Sendo o objetivo deste artigo a discussão sobre as atividades de escrita, consideraremos o “painel” como variação de “pôster” e
“cartaz”, sem deixar de reconhecer que podem existir características próprias tão idiossincráticas que uma análise descritiva determine
que cada um seja um gênero textual.
Sumário
215
coleção descreve passo a passo como deve ser escrito o texto e isto serve tanto para
o aluno quanto para o professor na hora de monitorar e avaliar o que foi feito.
A presença destes aspectos leva o aluno a produzir textos utilizando o voca-
bulário e as estruturas gramaticais aprendidos na lição. Apesar disso, notamos que
o gênero e os elementos linguísticos que o circundam entram em consonância na
produção do texto, mas não é tão claro como esses elementos todos servem para
que o aluno seja um leitor/escritor proficiente.
Dessa forma, a coleção Alive High apresenta como objeto de ensino o gênero
e como o vocabulário da língua inglesa e as estruturas aparecem e são utilizadas
nele. No exemplo dado na Figura 2, o vocabulário sobre talentos será utilizado para
a apresentação a ser feita e, apesar de apresentar um caráter pessoal, os textos de
exemplo e os possíveis textos produzidos não demonstram levantar objetivos além
de cumprir a tarefa.
A coleção On Stage aproxima-se muito de alguns aspectos descritos na coleção
anterior, mas em um nível bem mais simples. Enquanto a coleção Alive High consi-
dera o gênero e suas características como o que deve ser aprendido para que a ati-
vidade de escrita se concretize, nos livros da coleção On Stage o principal objeto de
ensino está nas estruturas e no vocabulário, sem uma contextualização mais clara.
Nos exercícios que mostramos na Figura 3, um se restringia a completar um texto
com palavras dadas no comando e o outro era, ainda que mais próximo de uma
produção de texto, ainda era restrito pelo comando e pelas estruturas gramaticais
aprendidas na lição. Também vale ressaltar que o primeiro exercício mais parece
um exercício de compreensão leitora do que de escrita, o que demonstra que tipo
de concepção de escrita está presente.
Considerações finais
O livro didático é uma das ferramentas centrais no ensino e aprendizagem de
línguas nos dias atuais, seja pelo incentivo de políticas públicas, seja pela falta de
outros recursos disponíveis para os professores. Não é somente o trabalho do pro-
fessor ou as atividades propostas nos livros que determinarão o sucesso ou fracas-
so do estudante, mas sim um trabalho reflexivo sobre os objetivos das disciplinas
de ensino de línguas e sobre os materiais disponíveis, a fim de otimizá-los.
As análises dos livros mostram que o objeto do ensino de língua não é claro
e que a reflexão sobre a língua e cultura não ocorre, sendo o estudo feito por meio
dos elementos estruturais dos gêneros textuais propostos nas tarefas de produção.
Além disso, alguns exercícios não são satisfatórios e, até, mais próximos de exer-
cícios de compreensão de leitura do que de produção escrita. Em sua maioria, os
exercícios analisados estão mais próximos de uma “redação” do que uma “produ-
ção de texto”, nos termos definidos por Geraldi (1993, p. 136).
Entender as finalidades das consignas e o que deve ser aprendido através dela
é um dos papéis fundamentais do professor. Fairchild (2012) fala deste ensino de
língua através dos gêneros e conclui que, o surgimento do que ele chama de profes-
sor genérico, aponta para um processo de desprofissionalização, caracterizado por
três tendências, sendo elas: recorrência de alguns gêneros, ausência de reflexão
Sumário
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na escolha destes gêneros e diminuição do espaço para discussão de aspectos do
texto que remetam ao gênero. Se tais fatores forem relacionados ao papel do livro
didático e sua utilização em sala de aula, notamos que as dificuldades dos alunos e
professores em entender os objetivos das disciplinas de ensino de línguas tomam
uma dimensão bastante ampla, não cabendo apontar um ou outro fator de forma
cabal. Além disto, a desconsideração das possibilidades transculturais (especial-
mente para a língua estrangeira) é um problema para que fique clara tanto a real
finalidade do trabalho de produção textual como o entendimento de que o objeto
de ensino da escrita é o mesmo, independente de que língua seja.
Além disso, vale ressaltar que, segundo Fairchild (2014, p. 62), “os problemas
e soluções do ensino de língua não estão, essencialmente, situados em um plano
didático, na esfera da elaboração das tarefas e atividades repassadas aos alunos”.
Como professores, devemos pensar para além do que está no livro didático e ir ao
encontro da realidade da sala de aula para poder identificar as verdadeiras necessi-
dades dos alunos, pois a língua não é algo pronto, mas (re)construído no momento
da interlocução (GERALDI, 1993, p. 6).
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Título: Estudos dialetais e sociolinguísticos no Brasil
Autoria: Gabriel Nunes Yared Lima, Celeste Maria da Rocha Ribeiro, Anna Carolina
Ferreira Sangiorgi, Adriana Gabriela Reis Silva, Romário Duarte Sanches, Matheus da Silva
Lopes, Cibelle Corrêa Béliche Alves, Conceição de Maria de Araújo Ramos, Michele Silva
de Carvalho, Romário Duarte Sanches, Josué Leonardo Santos de Souza Lisboa, Emerson
Deni dos Santos Nogueira Junior, Érica do Socorro Barbosa Reis, Danielle de Melo Viana,
Robson Borges Rua, Marcia de Souza Dias, Regis José da Cunha Guedes, Abdelhak Razky,
Genivaldo da Conceição Oliveira, Fernando Jesus da Silva, Lizandra Valéria da Silva Fumelê,
Kelly Cristina Nascimento Day, Edna dos Santos Oliveira, Allina Tainá dos Santos Lobo, Ana
Karolina Damas da Costa, Maria Sebastiana da Silva Costa, André Luiz Souza Silva, Mariane
dos Santos Monteiro Duarte, Leônidas José da Silva Jr, Michell Gadelha Moutinho.
Organização: Celeste Maria da Rocha Ribeiro, Romário Duarte Sanches
Projeto gráfico: Nepan Editora
Capa e arte final: Raquel Ishii
Produção editorial e diagramação: Marcelo Alves Ishii
Revisão de texto: sob a responsabilidade dos autores
Tipologia: Cambria 13/17
Número de páginas: 216

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