SAFATLE - Identitarismo Branco

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9/7/2020 Identitarismo branco | Opinião | EL PAÍS Brasil

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M C MEDEIROS
M C MEDEIROS

OPINIÃO

COLUNA i

Identitarismo branco
Demorou muito tempo até que eu percebesse o quanto a pretensa
especificidade da filosofia ocidental era um dos mais brutais dispositivos
coloniais já inventados

Estátua de Voltaire, filósofo iluminista, atacada com tinta vermelha em Paris, em 22 de junho. GONZALO FUENTES /
REUTERS

VLADIMIR SAFATLE

04 SEP 2020 - 12:14 BRT

A noção de “identidade” conseguiu colocar-se no centro dos embates


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políticos de nossa época. Ela trouxe novos problemas e novas


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sensibilidades com as quais precisaremos lidar no interior das lutas sociais
contemporâneas por reconhecimento. Para ela, convergem questões
práticas e teóricas complexas que concernem a integralidades dos Margareth
sujeitos, pois tocam a gramática social naquilo que ela tem de mais Menezes: “O
afro sempre foi
estruturador, a saber, em suas dinâmicas de relação e de unidade. pop, mas está
sendo mais visto
hoje. Nós somos
Muitos utilizam “identidade” para desqualificar lutas que questionam
o dia a dia, nós
práticas seculares de exclusão naturalizadas sob as vestes de discursos somos o agora”
universalistas. Assim, na perspectiva desses críticos, as lutas ligadas a
movimentos feministas, negros, LGBT+ seriam em larga medida
“identitárias” porque visariam, na verdade, criar uma nova geografia
estanque de lugares de poder. Lugares esses indexados por identidades
específicas. Grada Kilomba:
“O colonialismo
é a política do
Muitos dos sujeitos organicamente vinculados a tais lutas lembram, no medo. É criar
entanto, que até para não cristão vale o dito do Evangelho: “Tira primeiro a corpos
trave do teu olho, e então poderás ver com clareza para tirar o cisco do desviantes e
dizer que nós
olho de teu irmão”. Ou seja, antes de acusar qualquer um de regressão temos que nos
identitária seria o caso de começar por se perguntar sobre o identitarismo defender deles”
naturalizado pela hegemonia de uma história violenta de conquistas e
sujeição operada, majoritariamente, por brancos europeus. Silvio Almeida:
“Quem quer
civilizar o Brasil
Essa colocação é astuta e irrefutável. Ela não afirma que a naturalização não pode temer
o poder. Temos
de identidades e suas fronteiras é o horizonte efetivo das lutas que nos
de nos livrar
atravessam, mas que falar em qualquer experiência de universalidade dessa alma de
concreta está interditada até que o foco mais forte de identidade seja senhor de
escravo”
deposto, e esse foco encontra-se normalmente do lado dos que atacam
certas lutas sociais por serem “identitárias”.

Se me permitem, gostaria de usar a primeira pessoa do singular para descrever um aspecto


desse problema, pois há vários outros que deverão ser acrescidos. Quando ainda era

estudante de filosofia, lembro de um colega perguntar a um professor sobre a razão pela


qual não estudaríamos, em nosso curso, filosofia chinesa, indiana, africana, entre outros.
“Simplesmente porque não há”, foi a resposta. Em todo lugar que não tivesse sido marcado
pelo “milagre grego” o que haveria era a prevalência do mito. Razão, logos, era uma
invenção grega que nos havia salvo, “nós, os ocidentais”, da cegueira do pensamento mítico
e de seus limites à autorreflexão
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e de seus limites à autorreflexão.
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Essa razão, esse logos seria não apenas uma capacidade argumentativa de dar e
reconhecer razões, mas uma forma de vida capaz de racionalizar processos sociais em
direção à realização de uma sociedade livre composta por sujeitos autônomos
(“autonomia”: mais uma invenção pretensamente grega). Assim, não apenas a razão seria o
presente do ocidente ao mundo, mas também a liberdade.

Demorou muito tempo até que eu fosse capaz de perceber o quanto essa pretensa
especificidade da filosofia no ocidente era um dos mais brutais dispositivos coloniais já
inventados, era o núcleo de um dos mais resilientes processos identitários que conhecemos.
Pois, se a Europa com sua matriz grega era um mar de filosofia cercada de mito por todos os
lados, então qual destino teríamos todos a não ser querermos nos tornar “bons europeus” e
a abraçar os processos de “modernização” que começaram em seu solo, a nos abrirmos à
“maturidade” de sua forma de vida? Outras formas de pensamento poderiam nos oferecer
belos mitos, ensinamentos morais edificantes, mas muito pouco a respeito de processos
concretos de emancipação e interação racional com o mundo.

Mas, se assim fosse, havia uma conta que teimava em não fechar. Quando chegaram à
América, vários jesuítas ficaram estarrecidos com o que encontraram entre vários povos
ameríndios. Não foi canibalismo ou a pretensa selvageria que os estarreceram. Deixemos
falar um desses jesuítas, que escreveu em 1642 sobre um povo que habitava o atual
Quebec: “Os Neskapi imaginam que eles devem, por direito de nascimento, gozar da
liberdade dos burros selvagens, sem respeitar a quem quer que seja, salvo quando sintam
vontade. Eles me criticaram cem vezes por termos medo de nossos capitães, enquanto eles
riem e zombam dos seus. Toda a autoridade de seus chefes está no domínio da língua, pois
eles são potentes na medida em que são eloquentes, e mesmo se eles morrem de falar, eles
só serão obedecidos se agradarem aos selvagens”. Povos sem medo, cujas relações a
autoridades se fundam na eloquência, ou seja, na capacidade contínua de argumentação
racional e persuasão. Não era estranho encontrar gente como o padre Lallemant em 1644,
dizendo a respeito dos Wendats do Quebec: “Não creio que existam pessoas sobre a terra
mais livres que eles”. Sua capacidade de argumentação, diz o padre, era maior do que a de
um francês médio, já que eles viviam em sociedades nas quais o poder precisa a todo

momento dar e reconhecer razões para agir. Era isso que efetivamente estarreciam os
jesuítas, a saber, a descoberta de que eles eram mais livres do que “nós”.

Ou seja, quando alguém como Thomas Hobbes dizia, na mesma época, que no estado de
natureza encontrávamos “o homem como lobo do homem”, para completar lembrando: “os
povos selvagens de muitos lugares da América com exceção do governo de pequenas
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povos selvagens de muitos lugares da América, com exceção do governo de pequenas
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famílias, cuja concórdia depende da concupiscência ASSINE
natural, não possuem M C MEDEIROS
nenhuma espécie
de governo, e vivem nos nossos dias daquela maneira brutal que antes referi”, isso só se
sustentava como, digamos, uma “fake news”. Bastava ler o padre Lallemant. E quando o
“tolerante” Locke dizia que, mesmo sendo livres, faltava a esses povos segurança porque
lhes faltavam Estado e outras instituições políticas nossas, alguém deveria ter lembrando a
Locke que termos como “estado”, “nação”, “povo” só tem algum sentido quando nos
perguntamos contra quem eles são mobilizados.

Em suma, todos esses dispositivos de pensamento eram peças de um profundo


identitarismo branco que visava não apenas jogar na invisibilidade formas outras de vida,
mas principalmente impedir que essa experiência de descentramento produzida pelo
contato com a alteridade implicasse um processo efetivo de transformação. O pretenso
universalismo dessas formas de pensar era, na verdade, um sistema defensivo contra a
força de descentramento própria a um mundo em expansão potenciał.

Lembrar desses momentos da filosofia ocidental é apenas uma forma de insistir como a
universalidade efetiva nunca existiu e como tudo feito em seu nome foi marcado pelo saque
e pelo roubo. Foi apenas quando ela se voltou contra si mesma e contra os horizontes
sociais que a produziram que a experiência ocidental do pensamento esteve a altura de seu
objeto. Mas, fora desses momentos, processos de segregação e silenciamento foram a
verdadeira norma.

Não haveria outra forma de terminar esse artigo que não se lembrando de um dos maiores
acontecimentos históricos que conhecemos, a saber, a revolução haitiana que se inicia em
1791. Ela marca a luta de libertação daqueles que até então tinham sido colocados na
condição de “coisas”, de “escravos” pelo poder colonial. Em 1804, quando a libertação
estava consolidada, os haitianos promulgam uma impressionante constituição. Vale a pena
lembrar aqui dos artigos 12, 13 e 14. O primeiro afirma: “Nenhum branco, independente de
sua nação, colocará o pé neste território a título de senhor ou proprietário, e não poderá no
futuro adquirir propriedade alguma”. Mas o artigo 13 produz uma especificação: “O artigo
precedente não tem efeito algum para as mulheres brancas naturalizadas haitianas pelo

Governo, nem para as crianças nascidas ou a nascer delas. Estão ainda compreendidos
neste presente artigo, os alemães e poloneses naturalizados pelo Governo”.

De fato, ao tentar reescravizar os haitianos, Napoleão enviou tropas nas quais havia uma
legião de 5.200 poloneses. Ao chegar no campo de batalha, eles descobriram que não se
tratava de uma revolta de prisioneiros como os franceses haviam lhes contado mas uma
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tratava de uma revolta de prisioneiros, como os franceses haviam lhes contado, mas uma
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insurreição pela liberdade. Muitos soldados então ASSINE
desertaram e começaram a lutar MEDEIROS
M C ao lado
dos haitianos. Eles foram para o Haiti acreditando que estavam a defender os “ideais
iluministas”, mas logo compreenderam que tais ideias estavam, de fato, do outro lado do
campo de batalha.

Daí o sentido do artigo 14 da Constituição haitiana: “Toda acepção de cor dentre as crianças
de uma mesma família, cujo chefe de Estado é o pai, deve necessariamente cessar. Os
haitianos serão conhecidos apenas através da denominação genérica de Pretos”. Ou seja, a
extrema inteligência política dos haitianos lhes permitiu fazer de um termo até então usado
como marca de exclusão o nome de uma verdadeira universalidade por vir. O nome de algo
que indica o vetor efetivo de uma sociedade em revolução. Para os haitianos, pretos serão
também aqueles que lutaram a seu lado por uma sociedade radicalmente livre e igualitária,
que não querem mais defender essa sociedade marcada pela espoliação, silenciamento e
segregação, mesmo que eles sejam brancos como um polonês.

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