O Grande Livro Dos Vampiros
O Grande Livro Dos Vampiros
O Grande Livro Dos Vampiros
Tradução
DANDARA PALANKOF
Preparação de texto
RODRIGO GUERRINO e ALEXANDRE CALLARI
Revisão
AUDACI JUNIOR e ANA CAROLINA SALINAS
Arte da capa
WAGNER WILLIAM
Edição
RODRIGO GUERRINO
Direção editorial
ALEXANDRE CALLARI, BRUNO ZAGO e DANIEL LOPES
pipocaenanquim.com.br
youtube.com/pipocaenanquim
instagram.com/pipocaenanquim
[email protected]
Dedicado à memória de todas as
maravilhosas mulheres que
contribuíram com esta antologia
e que não estão mais entre nós.
sumário
ANTERROSTO
FOLHA DE ROSTO
DEDICATÓRIA
SUMÁRIO
A DESTRUIDORA DE LARES
Poppy Z. Brite
LA DIENTE
Nancy Kilpatrick
SERVIÇOS PRESTADOS
Louise Cooper
A CONSEQUÊNCIA
Janet Berliner
LUELLA MILLER
Mary E. Wilkins-Freeman
SANGRE
Lisa Tuttle
HISAKO-SAN
Ingrid Pitt
CIDADES ADORMECIDAS
Wendy Webb
A CASA ASSOMBRADA
E. Nesbit
MANJAR TURCO
Roberta Lannes
ANO ZERO
Gemma Files
ALMOÇO NO CHARON’S
Melanie Tem
RISADA DA NOITE
Ellen Kushner
VERSÃO PIRATA
Christa Faust
ENFEITIÇADO
Edith Wharton
JACK
Connie Willis
VAMPYR
Jane Yolen
AGRADECIMENTOS
Jimmy foi ótimo. Ele me fez sentir como se estivesse fazendo um favor
a ele se aceitasse o papel. Dei um belo sorriso e disse que falaria com meu
agente, mas ambos sabíamos que eu estava total e verdadeiramente fisgada.
O filme se chamava Carmilla, a Vampira de Karnstein, e o roteiro era
assinado por Tudor Gates, baseado na secular história Carmilla, escrita por
J. Sheridan Le Fanu.
Foi uma das produções mais felizes em que já trabalhei. A Hammer
Films era bastante conhecida pelo senso de camaradagem que fomentava e
Carmilla não foi exceção.
Contudo, as coisas às vezes fugiam um pouco do controle.
Os dois produtores, Harry Fine e Michael Style, sempre se certificavam
de estar por perto quando uma cena “interessante” estava prestes a ser
filmada. Madeleine Smith e eu fizemos juntas uma cena erótica que poderia
ser desconfortável se não fosse conduzida no estado de espírito correto.
Nenhuma das duas havia feito cenas de nudez, então pedimos a Jimmy que
inventasse alguma desculpa para chamar Harry e Michael para Londres.
Eu estava andando por um corredor nos Estúdios Elstree, usando apenas
um roupão para a cena, quando vi os produtores se aproximando. Eles
pareciam tão infelizes que não pude resistir ao anseio de animá-los.
Enquanto nos aproximávamos, eu abri o roupão! E quando continuaram
andando, estavam com os passos bem mais leves.
Uma das melhores cenas que já vi num filme de vampiros acontece
perto do final de Carmilla. Com sua verdadeira natureza revelada e
perseguida por um vingativo caçador de vampiros, o General von Spielsdorf
(Peter Cushing), Carmilla corre de volta para sua tumba. À luz da lua, as
lápides se destacam feito monólitos no miasma. Vestindo uma camisola
branca transparente, ela flutua pelo cemitério, tão insubstancial quanto a
névoa que a rodeia.
A atmosfera, por vezes, era bem assustadora. Mas, com seis mulheres
jovens no set, às vezes ficava um pouco frenética. Era fácil termos crises de
riso e atrasarmos as filmagens. Roy Ward Baker, o diretor, era maravilhoso.
Ele esperava pacientemente todos se controlarem e então continuava, como
se ninguém tivesse acabado de rolar pelo chão, se acabando de rir.
Uma cena em particular demandou muito trabalho para ficar pronta. Eu
deveria morder Kate O’Mara. Kate geralmente é controlada, mas quando
ela se solta... ela se solta. Embora minhas presas tivessem sido
especialmente feitas por um dentista, elas não se encaixavam tão bem como
deveriam. Eu tinha essa grande luta com Kate e meus incisivos decidiram
desertar da minha boca para as profundezas mais sedutoras do decote de
Kate. Obviamente, todos os homens do set galantemente se prontificaram a
recuperá-los! Kate começou a rir, mas eu estava muito preocupada com
meus dentes rebeldes para me deixar afetar.
Tentamos fazer a cena novamente. Meus dentes se jogaram no decote de
Kate como um coelho descendo pela toca. Kate saiu da personagem. Todo
mundo tentou manter a calma. Kate deu seu jeito de baixar o facho. E você
acredita que aqueles malditos dentes se mandaram pro seu novo lar mais
uma vez? Desta vez, Kate surtou com todo o resto do set.
Só consegui ficar com raiva. Notei que um dos maquinistas estava
mascando chiclete. Chamei ele, peguei a goma de mascar e colei as presas
novamente em minha boca usando o chiclete como ventosa. Sucesso. Mas,
naquele momento, Kate e o resto da equipe estavam gargalhando ainda mais
freneticamente. Aquilo encerrou os trabalhos do dia e, naquela altura, até eu
estava rolando histericamente pelo chão.
No dia seguinte, eu me certifiquei de que meus dentes estavam bem
presos. E todo mundo se certificou de não fazer contato visual com mais
ninguém. Pois isso era o que havia nos levado ao desastre.
No geral, contudo, essa foi uma introdução maravilhosa ao mundo dos
vampiros e da matança gótica.
Em uma recente visita à terra natal daquele velho patife, o Drácula, tive
uma experiência perturbadora. Achei que os moradores da Transilvânia
estariam extasiados por seu maior artigo de exportação ter sido reconhecido
como um dos ícones mais famosos do cinema.
Eu não só estava errada como alguns dos cidadãos da sombria
Sighişoara (local de nascimento de Vlad, o Empalador, também conhecido
como Drácula, filho de Dracul) eram categoricamente hostis à ideia de que
seu heroico Vlad tivesse qualquer coisa a ver com a encarnação ficcional do
Drácula. Porque eles se opõem tanto à ideia ao ponto de a versão de Bram
Stoker do vampiro ser algo do qual se envergonhar, é difícil de
compreender. De muitas formas, esse astro do cinema, encapuzado e
elegantemente vestido, tem muito a oferecer a um país ainda preso ao seu
passado comunista e a um estilo de vida não muito diferente daquele
descrito por Stoker.
O vampiro, é claro, não foi uma criatura conjurada no século XIX.
Antes de ser embelezado e introduzido à sala de estar da Grã-Bretanha, ele
se estendeu pela história em um sem-número de horripilantes disfarces, mas
sempre com sua principal marca registrada... beber o sangue ou a essência
de sua vítima. Os vampiros de Anne Rice remontam aos tempos dos faraós
e talvez até além. São seres sofisticados, que acharam para si uma fonte de
alimento constante e vivem sua existência atormentada de maneira
compatível.
Até recentemente, eu achava que os vampiros haviam sido imaginados
para se adequar às predileções de homens dos anos 1800, com suas cartolas,
ensandecidos pelo poder, que abusavam de suas esposas e molestavam
crianças. Fiquei surpresa ao descobrir que praticamente todo país e cultura
possui uma variação da temática do vampiro.
Com o vampiro se tornando uma propriedade literária, seu criador foi
reconhecido como sendo o malvadão Lorde Byron. Ele só escreveu um
fragmento de uma história, mas seu médico-e-traficante, John Polidori, após
uma amarga querela com seu ingovernável par, demitiu-se e levou consigo
o documento. O próprio Polidori abraçou o tema gótico e reescreveu
substancialmente a trama de seu antigo empregador, transformando-a
naquela que viria a se tornar a primeira história clássica do gênero: O
Vampiro, lançada em 1819, pela editora londrina Sherwood, Neely & Jones,
que originalmente — e incorretamente — atribuiu a obra a Byron. Mas o
envolvimento de Byron na gênese da história de Polidori garantiu que o
vampiro saísse direto da tumba para a sociedade.
Agora, estou encantada por me ver apresentando esta nova coletânea de
histórias de vampiro de alto gabarito, escritas por talentosas mulheres de
diversas culturas e perfis. Porém, a moda muda, e o vampiro urbano criado
por Byron e consolidado por Stoker teve que seguir em frente.
Há vampiros da Nova Era em abundância, aguardando nas sombras,
fora de nossas vistas, prontos para serpentearem por aí, procurando novas
vítimas.
Você, como eu, está pronto para o novo anoitecer...?
INGRID PITT
LONDRES, INGLATERRA
O MESTRE DO PORTAL
DE RAMPLING
Anne Rice
O Portal de Rampling. Era tão real para nós nas antigas fotografias,
erguendo-se de sua própria mata escura como um castelo de contos de
fadas. Uma vastidão de gabletes e chaminés entre aquelas duas torres
imensas, paredes de pedra cinzenta envoltas por hera, janelas com pinázios
que refletiam as nuvens a flutuar.
Mas por que Papai nunca havia nos levado ali? E por que, em seu leito
de morte, ele disse a meu irmão que o Portal de Rampling deveria ser posto
abaixo, pedra por pedra?
— Eu deveria tê-lo feito, Richard — disse ele. — Mas eu nasci naquela
casa, assim como meu pai, e seu pai antes dele. Agora, você precisa fazer
isso, Richard. Ela não tem influência alguma sobre você. Ponha ela abaixo.
Seria de se admirar que, agora, nem dois meses após o falecimento de
Papai, Richard e eu estivéssemos no trem do meio-dia rumo ao sul, à
misteriosa mansão que há quatrocentos anos existia na colina sobre o
vilarejo de Rampling? Com certeza, Papai teria entendido. Como
poderíamos destruir aquele velho lugar quando nunca o havíamos visto?
Mas, enquanto o trem se movia lentamente pelos arredores de Londres,
não posso dizer que estávamos muito seguros daquilo, não importa o quanto
estivéssemos empolgados e curiosos.
Richard recentemente havia concluído quatro anos em Oxford. Duas
estonteantes temporadas1 em Londres provaram que eu tinha certa
popularidade modesta. Eu ainda preferia rabiscar poemas e histórias em
meu quarto a varar a noite dançando, mas mantinha esse segredo muito bem
guardado. E, embora tivéssemos perdido nossa mãe quando éramos
pequenos, Papai havia nos dado tudo que há de melhor. Agora, os anos de
despreocupação haviam terminado. Tínhamos que ser sensatos e
independentes.
Na noite anterior, nos debruçamos sobre todas as velhas fotos do Portal
de Rampling, relembrando em sussurros hesitantes a noite em que Papai as
havia tirado das paredes.
Eu não devia ter mais do que seis anos, e Richard, oito, quando tudo
aconteceu. Ainda assim, nos lembrávamos bem do estranho incidente em
Victoria Station que havia precipitado a incomum fúria de Papai. Tínhamos
ido até lá para nos despedirmos de um amigo de escola de Richard, e Papai,
um tanto inesperadamente, teve um vislumbre de um jovem numa janela
iluminada de um dos trens que chegava. Até hoje, conseguia me lembrar
claramente do rosto daquele jovem: notavelmente belo, com a cabeça
tomada por lustrosos cabelos castanhos, seus grandes olhos negros fitando
Papai com a mais triste das expressões, enquanto ele recuava.
— O horror inominável! — sussurrou papai. Richard e eu ficamos por
demais admirados para dizer uma só palavra.
Mais tarde, naquela noite, Papai e Mamãe discutiram e nós nos
esgueiramos para fora de nossos quartos até as escadas para escutarmos.
— Que ousadia a dele vir até Londres! — Papai repetia uma vez após a
outra. — Já não basta a ele ser o mestre indiscutível do Portal de Rampling?
Como ficamos intrigados com aquilo, pequeninos que éramos! Quem
era aquele estranho e como ele poderia ser mestre de uma casa que
pertencia a nosso pai, uma casa que há anos havia sido deixada sob os
cuidados de uma zeladora idosa e cega?
Mas, agora, olhando para as fotos novamente, era pavoroso demais
pensar na exortação de Papai. E arrebatador demais pensar na casa em si.
Pus meus manuscritos na mala, pois, talvez... quem sabe... naquele cenário
melancólico e primoroso, eu encontrasse exatamente a inspiração que
precisava para o conto que vinha escrevendo em minha cabeça?
Contudo, havia algo quase ilícito nessa empolgação que eu sentia. Em
minhas recordações, via o pálido jovem outra vez, com seu sobretudo preto
e sua gravata vermelha de lã.
Feito porcelana de ossos, assim era a sua tez. É estranho eu me lembrar
tão vividamente. Agora, me dou conta de que, naqueles poucos e notáveis
momentos, ele havia criado para mim um ideal de beleza masculina que
nunca havia questionado desde então. Mas Papai tinha ficado com tanta
raiva. Senti uma inequívoca pontada de culpa.
Já era fim de tarde quando a velha carruagem subiu conosco pela suave
encosta, após nos buscar na pequena estação de trem, e tivemos nossa
primeira visão verdadeira da casa. Para além de uma fileira de nuvens
levemente douradas, o céu havia empalidecido em um matiz de rosa
profundo, e os últimos raios de sol atingiram as porções mais altas das
vidraças nas janelas com caixilhos e as preencheram de ouro puro.
— Ah, mas é majestosa demais — sussurrei. — Parece muito com uma
grande catedral. E pensar que ela pertence a nós!
Richard me deu o mais suave dos beijos no rosto.
Eu queria, de todo coração, pular da carruagem e me aproximar a pé,
fazendo com que aquelas torres fossem lentamente se assomando cada vez
mais sobre mim, mas nosso velho cavalo estava ganhando velocidade.
Quando chegamos à imensa porta principal, Richard e eu fomos
impelidos ao salão principal pela pequenina figura da zeladora cega, a Sra.
Blessington, com nossos passos ecoando alto pelos ladrilhos de mármore,
nossos olhos deslumbrados pelos feixes empoeirados de luz que caíam
sobre a longa mesa de carvalho e suas cadeiras acentuadamente entalhadas,
pelas lúgubres tapeçarias que se agitavam, sempre tão levemente, contra as
paredes imponentes.
— Richard, este lugar é encantado! — gritei, incapaz de me conter.
A Sra. Blessington riu alegremente, sua mão ressecada se fechando com
firmeza sobre a minha.
Encontramos nossos aposentos bem arejados, com lençóis de linho
branco feito neve nas camas e chamas ardendo acolhedoramente na lareira.
As pequenas janelas com vidros em forma de diamante se abriam para uma
gloriosa vista do lago, dos carvalhos que o rodeavam e das poucas luzes
esparsas que demarcavam o vilarejo mais além.
Naquela noite, rimos feito crianças enquanto ceávamos na grande mesa
de carvalho, nossas velas provendo apenas uma tênue luminosidade. Depois
disso, travamos uma feroz batalha de bilhar no salão de jogos e tomamos
conhaque um pouco além da conta, temo eu. Foi logo antes de me deitar
que perguntei à Sra. Blessington se alguém havia estado naquela casa desde
que meu pai partira, anos atrás.
— Não, minha querida — disse ela rapidamente, afofando os
travesseiros de pena. — Quando seu pai foi embora para Oxford, ele nunca
mais voltou.
— Nunca houve um jovem intruso depois disso...? — insisti, embora,
na verdade, estivesse pouco receptiva a qualquer coisa que perturbasse a
felicidade que sentia. Como eu adorava a austeridade espartana daqueles
aposentos, as paredes nuas de qualquer papel ou ornamento, o lustre no alto
da cama com a cabeceira de nogueira.
— Um jovem intruso? — Com uma infalível certeza de seus arredores,
ela ergueu o atiçador e revolveu as brasas. — Não, querida. O que a faria
pensar isso?
— A casa não tem nenhuma história de fantasmas, Sra. Blessington? —
perguntei subitamente, me sobressaltando. Horror inominável. Mas o que
eu estava pensando... que aquele jovem não havia sido real?
— Oh, não, querida — disse ela, sorrindo. — Fantasma algum se
atreveria a perturbar o Portal de Rampling.
Eram três da manhã quando abri meus olhos. Mas já estava acordada há
um bom tempo. E não senti medo, deitada ali, sozinha, mas algo mais...
uma espécie de agitação vaga e inexorável, um certo senso de vazio e de
necessidade, enfim me fez levantar da cama. O que era realmente esta casa?
Um lugar ou meramente um estado de espírito? O que ela vinha fazendo
com minha alma?
Senti-me sobrepujada, contudo, excluída por algum segredo grandioso e
deslumbrante. Movida por uma inquietude insuportável, peguei meu roupão
de lã, meus chinelos e desci para o salão.
A luz da lua caía plena pelas escadas de carvalho e no vestíbulo logo
abaixo. Talvez escrevendo eu desse conta da confusão que agora me afligia,
talvez pudesse pôr no papel o inexplicável anseio que sentia. Decerto valia
o esforço e tomei o caminho silenciosamente pela escada abaixo.
O grandioso salão se abriu diante de mim, com a luz da lua tocando,
aqui e ali, um par de espadas cruzadas ou um escudo em um suporte. Mas,
muito além, na alcova da saída da biblioteca, vi o brilho irregular da lareira.
Então, Richard estava lá. Uma sensação de bem-estar me impregnou e me
aquietou. Ao mesmo tempo, a distância entre nós parecia infindável e fiquei
desesperada para cruzá-la, correndo ao longo da extensão da mesa de jantar
e, finalmente, para o interior da alcova diante das portas da biblioteca.
As chamas brilhavam sob a cornija de pedra da lareira e, sentada na
poltrona de couro diante dela, havia uma figura, inclinada sobre um maço
de páginas soltas que segurava em suas mãos esguias. Ele as lia avidamente
e a luz do fogo se espalhava por sua face com um tom ameno e dourado.
Mas não era Richard. Era o mesmo jovem que eu havia visto no trem,
na Victoria Station, quinze anos atrás. E nem um único aspecto daquele
rosto jovem e firme havia mudado. Ali estava exatamente o mesmo cabelo,
espesso, lustroso e descuidadamente penteado, caindo pelo colarinho de seu
casaco preto; e aqueles olhos escuros que subitamente se ergueram e me
fitaram com uma expressão da maior das curiosidades. Eu quase gritei.
Encaramos um ao outro naquele cômodo cheio de sombras; eu,
paralisada naquela soleira; ele, visível e inegavelmente abalado por eu tê-lo
surpreendido. Meu coração parou.
E, numa fração de segundo, ele se levantou e se moveu em minha
direção, diminuindo a distância entre nós, estendendo aquelas mãos pálidas
e esguias.
— Julie! — sussurrou ele, numa voz tão baixa que parecia que eram
meus próprios pensamentos a me chamar. Mas não era nenhum sonho. Ele
estava me abraçando e o grito se soltou de mim, ensurdecedor, incontrolável
e ecoando para além daquelas quatro paredes.
Eu estava só. Agarrando-me ao batente da porta, cambaleei para frente
e, então, num momento de perfeita clareza, vi o jovem estranho novamente;
vi-o sob a porta aberta que dava para o jardim, olhando por sob os ombros;
em seguida, ele já não estava lá.
Não conseguia parar de gritar. Não consegui parar nem quando escutei a
voz de Richard chamando por mim, quando ouvi seus pés golpeando
aqueles degraus largos e ocos, e atravessando o salão principal. Não
consegui parar nem quando ele me sacudiu, implorou a mim e me sentou
em uma poltrona.
Finalmente, consegui descrever o que tinha visto.
— Mas você sabe quem ele era! — disse eu, quase histérica. — Era
ele... o jovem do trem!
— Espere um momento — disse Richard. — Ele estava de costas para o
fogo, Julie. E você não pôde ver seu rosto claramente...
— Richard, era ele! Você não entende? Ele me tocou. Me chamou de
Julie — sussurrei. — Bom Deus, Richard, olhe para a lareira. Eu não a
acendi... foi ele. Ele estava aqui!
Praticamente empurrando Richard da minha frente, fui até o amontoado
de papéis que jaziam espalhados pelo carpete, diante da lareira.
— Meu conto... — sussurrei, apanhando as páginas. — Ele estava lendo
meu conto, Richard. E... meu Deus... ele leu suas cartas, as cartas para o Sr.
Partridge e para o Dr. Matthews, falando sobre a demolição da casa!
— Decerto não acredita que seja o mesmo homem, Julie. Após todos
esses anos...?
— Mas ele não mudou, Richard, nem no menor dos detalhes. Eu lhe
digo que não tenho dúvidas. Era, com certeza, o mesmo homem!
O dia seguinte foi o mais penoso desde a nossa chegada. Juntos, demos
início a uma busca pelo casarão. A escuridão veio nos encontrar quando
nosso trabalho ainda estava pela metade, frustrados em todo canto por
portas trancadas que não podíamos abrir e velhas escadarias que não eram
seguras.
E, na hora do jantar, também havia ficado bastante claro que Richard
não acreditava que eu tivesse visto qualquer pessoa no escritório. Quanto à
lareira... bem, ele havia esquecido de apagá-la adequadamente antes de ir
para a cama; e as páginas... bem, um de nós as havia posto ali e se
esquecido delas, é claro...
Mas eu sabia o que tinha visto.
E o que me deixava mais obcecada do que tudo era a fisionomia gentil
daquele homem misterioso que vi de relance, os olhos inocentes que
haviam se fixado em mim por um momento antes de eu gritar.
— Seria sensato de sua parte fazer algo importante antes de se recolher
— disse eu, irritadiça. — Deixe um bilhete afirmando, em linhas gerais, que
não pretende pôr a casa abaixo.
— Julie, você criou um dilema impossível — declarou Richard, o rubor
surgindo em sua face. — Insiste que reafirmemos a essa aparição que a casa
não será destruída, quando de fato atesta a existência da mesma criatura que
levou nosso pai a dizer o que disse.
— Ah, queria nunca ter vindo para cá! — irrompi, subitamente.
— Então, devíamos ir embora e decidir essa questão em casa.
— Não... É exatamente isso. Eu nunca poderia partir sem saber. Agora,
nunca poderei continuar a viver sem saber!
1. Período anual em que a alta sociedade londrina promovia festas, jantares e eventos de caridade,
que também serviam para que casamentos fossem arranjados. - N. da T.
A DESTRUIDORA DE
LARES
Poppy Z. Brite
No ônibus com destino a Seattle, ela chorou. Sim, ela o havia amado e
também havia aprendido o que era o ódio. Brincava com uma agulha de
costura, espetando seus dedos. Dormentes. Mas seus sentimentos não
estavam dormentes, ainda não. Isso viria a acontecer? Nick estava
emocionalmente morto?
A dormência física iria se espalhar? Se seu corpo era imortal, por que
ela precisaria de nervos e dor para alertá-la do perigo?
Talvez ela viesse a se arrepender da barganha que fez.
Sim, a dormência se espalhou. Seus dedos e suas mãos eram imunes a
dor, mas ela ainda sentia sede. O câncer havia se espalhado até sua língua e
seus nervos, desejoso de ser alimentado.
Seu colega de assento era um missionário mórmon, separado de seu
companheiro pela lotação do ônibus. Em Chicago, ele pediu a ela para
trocarem de lugar, para que pudesse sentar ao lado do parceiro. Mas ela se
recusou. Isso não se encaixava nos planos dela.
Ela acariciou o rosto dele, segurou sua nuca num aperto perverso,
sempre sorrindo, feito um gato. Mal sentindo sua própria pele, mas sentindo
vividamente o alimento sob a dele. Ele tentou repeli-la, rindo
desconfortavelmente, acreditando ser algum jogo erótico. Uma mulher
atirada e libidinosa. Então, ele se viu lutando, inutilmente. Tentou torcer o
dedão dela, uma autodefesa infantil. Ela não sentiu dor alguma. Então, ele
se pôs a choramingar, depois foi arrefecendo, até cair num transe. Com a
boca aberta, ela beijou sua garganta. Bebeu dele. Bebeu de novo e de novo.
Se ele tivesse lutado, ela poderia ter quebrado o pescoço dele. Estava
completamente transformada.
— Este é o lugar.
— Não. Pra que este fosse “o lugar”, deveria haver algo aqui. Tem que
haver um “lugar” antes que ele possa ser “o lugar”.
— Odeio admitir — resmungou Vicki, se inclinando para a frente e
espreitando por sobre o arco do volante —, mas você tem razão.
Eles atravessaram o vilarejo de Dulvie, viraram à direita no celeiro
abandonado e seguiram as placas apagadas que indicavam O CHALÉ. A
estrada, se é que se podia chamar de estrada a pista sulcada dos últimos
quilômetros, havia terminado, assim como indicavam as instruções que ela
havia recebido, num pequeno estacionamento de cascalho — ou, mais
especificamente, numa área retangular bem compactada que agora poderia
ser chamada de estacionamento porque ela havia parado a van ali.
— Ele disse que daria pra ver o chalé daqui.
Celluci bufou.
— Talvez dê pra você.
— Não. Não dá. Tudo que vejo são as árvores. — Ela pelo menos
presumia que fossem árvores, o alto contraste entre a área que seus faróis
cobriam e a total escuridão mais adiante faziam com que fosse difícil ter
certeza. Silenciosamente xingando a si mesma com todos os sinônimos de
idiota, ela desligou os faróis. As sombras se dividiram em meia dúzia de
grandes abetos e na silhueta de um telhado acentuadamente anguloso para
deixar a neve escorrer.
Uma vez que parecia que eles haviam chegado, Vicki desligou o motor.
Após um segundo de silêncio, a noite explodiu em uma cacofonia de ruídos
discordantes. Com as mãos sobre seus ouvidos sensíveis, ela afundou de
volta no banco.
— Que diabos é isso?
— Sapos com tesão.
— Como você sabe? — ela inquiriu.
Ele deu um sorriso de superioridade.
— PBS5.
— Ah. — Eles ficaram ali sentados por um momento, ouvindo os sapos.
— As criaturas da noite — suspirou Vicki — fazem uma música e tanto. —
Bufando sarcasticamente, ela saiu da van. — De alguma forma, eu esperava
que o meio do nada fosse bem mais tranquilo.
Stuart Gordon tinha enviado a Vicki a chave da porta dos fundos do
chalé e, assim que ela acionou o disjuntor principal, eles se viram em uma
moderna cozinha de aço inoxidável que parecia saída diretamente de algum
pequeno restaurante da moda em Toronto. O súbito zumbido da geladeira
sendo ligada abafou os sapos momentaneamente e tanto Vicki quanto
Celluci relaxaram.
— E agora? — ele perguntou.
— Agora, nós tiramos sua comida do cooler, achamos um quarto pra
você e aproveitamos o melhor que pudermos o tempo que temos antes do
sol nascer.
— E quando o Sr. Gordon vai chegar?
— Amanhã à noite. Não se preocupe, estarei de pé.
— E eu fico fazendo o que amanhã, durante o dia?
— Vou deixar minhas anotações aqui fora. Tenho certeza de que
pensará em algo.
— Achei que eu estava de férias.
— Então, faça o que costuma fazer quando está de férias.
— Bato perna no seu lugar. — Ele cruzou os braços. — E nas minhas
últimas férias... que também foram ideia sua... quase perdi um rim.
Fechando a porta da geladeira, Vicki cruzou o cômodo entre um
batimento cardíaco e outro. Inclinando-se para ele, seus corpos se tocando
entre o tornozelo e o peito, ela sorriu para os olhos dele e afastou de sua
testa um longo cacho de seus cabelos.
— Não se preocupe. Eu te protejo do espírito do lago. Não tenho
intenção alguma de dividir você com outro ser lendário.
— Lendário? — Ele não pôde conter um sorriso. — Tá se achando
muito, hein?
Embora ela tenha tentado dar leveza à sua voz quando contou a Celluci,
Vicki realmente não gostava de estar ao ar livre. Talvez porque a selva de
vidro e concreto ela compreendesse e porque precisasse do anonimato das
três milhões de vidas compactadas firmemente ao redor da dela. De pé, ao
lado da van, ela deslocou seu olhar dos primeiros indícios da aurora para as
últimas sombras remanescentes da noite e não pôde evitar se sentir
excluída, de que existia algo para além do que ela podia enxergar e do qual
não fazia parte. Vicki duvidou que os executivos juniores de Stuart Gordon
se sentissem parte disso e se perguntou por que alguém iria querer construir
um condomínio em meio a tamanha singularidade.
Os sapos já tinham desistido de tentar transar e o silêncio parecia estar
esperando por algo.
Esperando...
Vicki passou os olhos pelo Lago Nepeakea. Assentado como um
espelho de prata no fundo de uma escarpa rochosa. Nem uma única
ondulação perturbava a superfície. A pouco mais de um quilômetro e meio
dali, um reflexo perfeito trazia a margem oposta ainda mais para perto.
Esperando...
Bacurau!
Vicki estremeceu com o som súbito e perfurante e entrou na van.
Depois de trancar tanto as portas externas quanto as internas, ela se despiu
rapidamente — se fosse encontrada durante o dia, estar nua seria o menor
de seus problemas —, deitou-se entre as laterais altas e acolchoadas de sua
cama estreita e esperou o amanhecer. O chamado do pássaro, repetido com
a frequência de uma tortura chinesa, abriu caminho pela vedação especial e
o revestimento interno.
— Cara, que coisa irritante — ela resmungou, cruzando os dedos sobre
o estômago. — Será que Celluci conseguiu dormir...?
Assim que ouviu a porta da van se fechando, Celluci caiu num sono sem
sonhos que durou até pouco depois do meio-dia. Quando acordou, olhou
para o teto e se perguntou onde estava. A madeira rústica parecia ter sido
revestida de creosoto num passado muito distante.
— Não tem isolamento, odiaria estar aqui no inverno...
Então, ele se lembrou onde era o aqui e despertou totalmente.
Vicki o havia arrastado para um chalé no meio da mata, ao norte da
Baía Georgiana, para caçar o espírito nativo, aparentemente homicida, que
protege o lago.
Poucos minutos depois, com seu saco de dormir impecavelmente
enrolado na ponta da velha cama de ferro, ele estava na cozinha passando
café. Aquele tipo de tomada de consciência ao despertar precisava de
cafeína.
No balcão próximo à cafeteira, bem onde seria certo de que ele a
encontraria antes de qualquer coisa, Celluci achou uma pasta com uma
etiqueta escrito LAGO NEPEAKEA na inconfundível caligrafia de Vicki. As
primeiras poucas páginas de cartolina acetinada claramente haviam sido
enviadas por Stuart Gordon junto da chave. Uma concepção artística do
condomínio mostrava uma grande construção em formato de “L”, onde
agora havia o chalé e três dúzias de “cabanas” espalhadas pela mata, as
portas da frente ligadas por amplas trilhas de cascalho. Aparentemente, os
hóspedes se deslocariam aos seus chalés particulares em carrinhos de golfe.
— Que eles também podem usar em um... — Celluci virou a página e
balançou a cabeça, descrente. — ...campo de golfe de nove buracos. —
Claramente, uma grande parte do projeto do Sr. Gordon envolvia
escavadeiras. E, logo depois das escavadeiras, viria o cappuccino. Ele
estremeceu.
As páginas seguintes estavam unidas por um clipe e se revelaram como
sendo fotocópias de matérias de jornal sobre o desaparecimento da
agrimensora. Ela estava com seu parceiro, tarde da noite, tentando terminar
o trabalho em um pedaço pantanoso da orla destinado a ser aterrado e
pavimentado para quadras de tênis, quando, de acordo com o parceiro, ela
deu um passo para trás na lama, avisou que algo havia se movido sob seu
pé, perdeu o equilíbrio, caiu, gritou e desapareceu. A polícia de Ontário,
auxiliada por voluntários locais, empreendeu uma extensa busca, mas ela
não foi encontrada. Uma vez que a área geralmente era evitada por causa
dos sumidouros, desses que um consternado Stuart Gordon jurou não fazer
ideia de que existiam... Consternado provavelmente por ter que deslocar
suas quadras de tênis, matutou Celluci... o veredito oficial afirmava que ela
provavelmente havia pisado em um deles e tinha sido sugada pela lama.
A manchete na página seguinte declarava, EMPREITEIRO ENFURECE
ESPÍRITO e, numa fonte ligeiramente menor, AGRIMENSORA PAGA O PREÇO. A
foto mostrava uma mulher idosa, com longas tranças cinzentas e um perfil
aquilino encarando enigmaticamente a água. À primeira vista, parecia ser
uma anciã dos Povos Originários. Porém, ao ler de fato o texto, Celluci
descobriu que Mary Joseph havia se mudado de Toronto para Dulvie em
1995 e se tornado, nos anos seguintes, a autoproclamada guardiã do mito
local. De acordo com a Srta. Joseph, embora tivessem ocorrido vários
avistamentos ao longo dos anos, houve apenas outras duas ocasiões em que
o espírito do lago tinha se sentido ameaçado o suficiente para matar. “Ele
reivindica o lago”, assim afirmavam que ela tinha dito, “daqueles que vêm
perturbar sua paz”.
— De duas semanas atrás — notou Celluci, conferindo a data. —
Trágico, mas dificilmente uma razão pra Stuart Gordon se dar ao trabalho
de convencer Vicki a deixar a cidade.
A última fotocópia incluía um close da porta de um carro que parecia
ter sido atingida por ácido. ESPÍRITO ATACA VEÍCULO DE EMPREITEIRO. Durante
a noite de 13 de maio, o protetor do Lago Nepeakea rastejou pelo
estacionamento do chalé e secretou algo corrosivo e com nítido cheiro de
peixe no Isuzu Trooper novinho de Stuart Gordon. Uma trilha de
samambaias mortas, com pouco mais de trinta centímetros de largura e
cheirando fortemente a peixe podre, levava de volta ao lago. Mary Joseph
pareceu convencida de que era uma manifestação do espírito, a polícia
estava à procura de qualquer pessoa que tivesse informações sobre o
vandalismo, e Stuart Gordon anunciou que estava trazendo um investigador
especial de Toronto para resolver a questão de uma vez por todas.
Era inteiramente provável que a agrimensora tivesse pisado num buraco
de lama e que vândalos locais estivessem usando as lendas do espírito
contra um empreiteiro impopular. Inteiramente provável. Mas a vida com
Vicki havia forçado Mike Celluci a lidar com meia dúzia de coisas
improváveis toda manhã antes do café, então, de caneca na mão, ele saiu
para investigar a cena do crime.
Por causa da parede de abetos — embora, dado seu tamanho,
“barricada” fosse um termo mais descritivo —, o estacionamento não podia
ser visto do chalé. Considerando a aparência impenetrável dos ramos
entrecruzados, Celluci estava propenso a apostar que nem mesmo a luz
poderia atravessá-la. O espírito poderia ter feito o que quisesse, até mesmo
trocar o óleo, em perfeito segredo.
Espantando um ou dois insetos de seu rosto, Celluci encontrou a trilha
pela qual haviam chegado na noite anterior e a seguiu. Na hora em que
alcançou a van, um ou dois insetos tinham se transformado em vinte e nove
ou trinta, e ele sentiu a primeira picada em sua nuca. Quando deu um tapa
no local, seus dedos voltaram pontilhados de sangue.
— Vicki não vai ficar nada feliz com isso — disse ele rindo, limpando a
mão na calça jeans. Na segunda e na terceira picadas, ele parou de rir. Na
quarta e na quinta, realmente já não dava a mínima para o que Vicki
pensava. Quando parou de contar, já estava correndo para o lago, esperando
que a brisa que ele via agitando a superfície fosse o bastante para soprar
aqueles escrotinhos pra longe.
O tênue, mas inconfundível cheiro de peixe podre, se ergueu das
samambaias mortas, esmagadas sob os pisões de seus pés, e ele percebeu
que estava seguindo a trilha feita pela aparição. Tinha cerca de sessenta
centímetros de largura e descia por uma escarpa desconfortavelmente
íngreme do estacionamento até o lago. Mas não exatamente por toda a
extensão até o lago. A trilha terminava a cerca de um metro acima da água
em uma borda de granito.
Xingando, principalmente Vicki, Celluci se jogou para trás, de algum
modo conseguindo salvar seu café e ele próprio de um inesperado
mergulho. A nuvem de insetos que o seguia repetiu seu movimento, sem
esforço. Uma rápida olhadela através dos mosquitos mostrou que a borda
afunilava para a direita. Ele desceu saltitando por ela até a beirada da água e
se viu em uma pequena praia artificial, olhando para uma doca flutuante
que se estendia por talvez cinco metros lago adentro. A proximidade com a
água parecia ter desencorajado o enxame, então ele se dirigiu para a doca,
torcendo para que a brisa fosse mais forte no final dos cinco metros.
E era. Catando uns poucos corpos de seu café, Celluci deu um longo e
agradecido gole e se virou para olhar de volta para o chalé. Estudando o
caminho que havia tomado, ficou admirado de não ter quebrado um
tornozelo e teve que prestar um certo reconhecimento a quem, ou o que, o
havia criado. Uma escada acinzentada feita de toras partidas oferecia um
caminho mais convencional até a água e a pequena porção de terra arenosa,
mantida no lugar por uma parede de pedra. O projeto de Stuart Gordon
incluía uma praia muito maior e a substituição da velha doca de madeira por
três píeres de concreto.
— Um pro papai urso, outro pra mamãe urso e outro pro bebê urso —
Celluci ponderou, arrastando os pés pela plataforma que balançava
suavemente, até dar de cara com a água. Não muito longe dali a margem
oposta era uma muralha uniforme de árvores. Ele não sabia se havia ursos
nessa parte da província, mas com certeza não faltariam dependências
sanitárias para eles, qualquer que fosse a quantidade em que estivessem.
Deixando a brisa soprar seu cabelo para trás do rosto, ele deu outro gole no
café que esfriava rapidamente e escutou o silêncio. Era enervante.
O súbito ronco de um motor de barco chegou como um alívio bem-
vindo. Vendo-o quicar rio acima, ele considerou a distância pela qual o som
se propagava ali e fez um apontamento mental para fechar a janela caso
Vicki viesse a passar uma parte significativa de alguma noite com ele.
No momento em que a distância permitiu, o condutor do barco acenou
por cima do para-brisa rachado e, numa curva inclinada e fechada, que
espalhou uma enorme cauda d’água para trás de sua popa, se encaminhou
exatamente para o ponto em que Celluci estava. Os dedos de Celluci se
apertaram ao redor da alça da caneca, mas ele se manteve imóvel. Ainda
fazendo a curva, o condutor desligou os motores e flutuou pelos últimos
poucos metros até a doca. Enquanto garrafas de alvejante lentamente se
amassavam com o gentil impacto, ele pulou para fora e preparou um nó lais
de guia.
— Frank Patton — disse ele, levantando-se de perto do cunho e
estendendo uma mão calejada. — Você deve ser o cara que o empreiteiro
trouxe da cidade pra capturar o espírito do lago.
— Sargento-detetive Mike Celluci. — Com a mesma idade que a sua,
ou um pouco mais novo, Frank Patton tinha o aperto de mão de um homem
trabalhador que era só um pouco vigoroso demais. Celluci devolveu a
pressão. — E só estou passando um feriado prolongado aqui no bosque.
Patton franziu suas sobrancelhas escuras.
— Mas achei...
— Achou que eu era algum paranormal esquisitão que poderia
impressionar esmagando seus dedos. — O outro homem olhou para as mãos
unidas dos dois e teve a elegância de enrubescer. Quando ele relaxou o
aperto, Celluci fez o mesmo. Ele havia jogado esse jogo por vezes demais
para perder. — Sugiro, caso tenha a chance de conhecer a verdadeira
investigadora, que não chegue com tanto ímpeto. É capaz de ela fazê-lo
engolir suas pressuposições.
— Ela...
— Está dormindo, no momento. Chegamos tarde e é provável que ela
vá... investigar esta noite.
— Tá. Certo. — Flexionando os dedos, Patton encarou os bicos de suas
botas. — É só que, você sabe, ouvimos dizer que, bem... — Inspirando
profundamente, ele olhou para cima e sorriu. — Ah, diabos, isso é que é
começar com o pé esquerdo. Posso lhe oferecer uma cerveja, detetive?
Celluci olhou para a caixa de isopor na traseira do barco e, por um
momento, sentiu-se tentado. Conforme o suor rolava dolorosamente pelas
picadas de mosquito em sua nuca, ele se lembrou de como uma cerveja
gelada podia ser saborosa.
— Não, obrigado — suspirou ele com um olhar enojado para sua
caneca. — Eu, hã, ainda tenho café.
Para surpresa dele, Patton assentiu e perguntou:
— Há quanto está abstêmio? Meu cunhado fica exatamente com esse
mesmo olhar quando algum besta oferece uma bebida a ele numa tarde
quente de quase verão — explicou, enquanto Celluci o encarava, perplexo.
— Ele vai às reuniões do AA, em Bigwood, duas vezes por semana.
Lembrando-se de todas as garrafas que havia entornado durante aqueles
longos meses em que Vicki esteve fora, Celluci deu de ombros.
— Há uns dois anos, agora... um pouco mais, um pouco menos.
— Tenho um refri...
Celluci derramou no lago os restos de café frio e infestado de insetos.
Dane-se o Ministério de Recursos Naturais.
— Eu adoraria — ele disse.
Celluci observou Vicki partir com o carro e então ligou sua lanterna,
apontando o facho para a lateral do veículo de Stuart. Embora talvez tivesse
sido mais útil ele ver os danos, tinha que admitir que a funilaria fizera um
bom trabalho. E, para dar algum mérito ao homem, embora relutantemente,
construir uma propriedade na floresta dava a ele uma justificativa melhor do
que a de muita gente do tipo dele pra dirigir um 4x4.
Subindo em um afloramento de rocha do qual podia ver tanto o
estacionamento quanto o lago, mas sem ser visto, Celluci sentou-se e
apagou a luz. De acordo com Frank Patton, os borrachudos só se alimentam
durante o dia, e a água ainda estava gelada demais para os mosquitos. Ele
não estava inteiramente convencido, mas, uma vez que nada o havia picado
até então, a informação parecia correta.
— Será que o Stuart sabe que seu pequeno paraíso está repleto de
sanguessugas? — Seu polegar direito coçava a perfuração em seu punho
esquerdo e ele se virou em direção ao chalé.
Seus olhos se arregalaram.
Por trás dos abetos, o chalé resplandecia. Luzes internas. Luzes
externas. Cada uma das luzes do lugar. A dura iluminação branca e
amarelada apagava as estrelas acima dele e lançava tudo logo abaixo em um
contraste tão acentuado, que mesmo a exuberante vegetação primaveril
parecia fabricada. As sombras sob as árvores distantes agora eram
superfícies sólidas e impenetráveis de escuridão.
— Bem, pelo menos a companhia elétrica de Ontário tá feliz com a
presença dele. — Balançando a cabeça, descrente, Celluci voltou à sua
vigília.
A uma distância grande demais para ser atingido pela luz, o lago
lançava reflexos trêmulos das estrelas e ondulou gentilmente contra a
margem.
Quando enfim chegou à estrada pavimentada, Vicki parou de trincar os
dentes e seguiu a margem sul do lago em direção ao vilarejo. Sem nada
entre o lado do passageiro da van e a água, exceto uma grade de proteção
caiada e algumas pedras tombadas, era bem fácil olhar pela janela e fingir
que estava dirigindo no próprio lago. Quando o acostamento se abriu em
um pequeno estacionamento e uma rampa de acesso para barcos, ela
encostou e desligou a van.
A água se movia em seu estreito canal feito escuridão líquida, opaca e
misteriosa. A porção da noite que pertencia a Vicki acabava na borda das
águas.
— Não era pra ser desse jeito — resmungou ela, saindo da van e
caminhando até a rampa dos barcos. De perto, ela podia ver através de uns
dez ou doze centímetros de líquido, até o fundo rochoso e as conchas
quebradas de ostras frescas; mas, para além disso, era até difícil não
acreditar que ela poderia atravessar caminhando até o outro lado.
O onipresente coro primaveril de sapos de repente caiu em silêncio,
chamando a atenção de Vicki para uma enseada pantanosa à sua direita. O
silêncio era tão absoluto que ela até pensou que podia ouvir meia centena de
minúsculos corações anfíbios batendo. Um. Dois...
— Olá.
Ela virou-se e deu um passo para dentro do lago antes que seu cérebro
pudesse alcançar sua reação. A sensação da água gelada enchendo suas
botas de trilha a fez voltar a si e suprimir a caçadora em seus olhos, antes de
o homem na canoa ter tempo de perceber o perigo que corria.
Com o remo na água, mantendo a canoa no lugar, ele acenou com a
cabeça na direção dos pés de Vicki.
— Não vai querer fazer isso.
— Fazer o quê?
— Perambular à noite. É melhor poder ver pra onde tá indo, o velho
Nepeakea tem uns declives repentinos. — Num tranco, apontou com a
cabeça de volta à escuridão prateada. — Nem os garotos do Ministério
conseguiram saber a profundidade ali no meio. Tem tanta lama solta no
fundo, que ficava atrapalhando a leitura do sonar.
— Então, tá fazendo o que aqui?
— Bem, não tô perambulando, isso é certeza.
— Nem respondendo minha pergunta. — resmungou Vicki, voltando
para a margem. Com os pés molhados a deixando um tanto infeliz, ela meio
que esperou outro comentário metido a espertinho.
— Costumo remar à noite. Gosto da quietude. — Ele deu um sorriso
para ela, claramente acreditando que estava longe demais, e que a luz era
mínima para que ela visse a avaliação que o acompanhava. — Você deve
ser aquela investigadora de Toronto. Vi sua van quando passei pelo chalé
hoje.
— Você deve ser Frank Patton. Trocou de barco.
— Não dá pra ter quietude num Evinrude6 de cinquenta cavalos, não é?
Está indo visitar Mary Joseph?
— Não. Estava indo visitar Anne Kellough.
— Segunda casa à direita depois da placa de “pare”. Bangalozinho
amarelo com um abrigo pra carros. — Ele deslizou para trás tão
silenciosamente que nem Vicki saberia que ele estava se movendo se não o
estivesse observando. Ele manejava a grande canoa de alumínio com uma
experiente facilidade. — Eu ofereceria uma carona, mas tenho certeza de
que está com pressa.
Vicki sorriu.
— Obrigada, de qualquer forma. — Seus olhos se pratearam. — Talvez
numa outra hora.
Ela ainda estava sorrindo quando entrou na van. No lago, Frank Patton
chapinhava na água, tentando recuperar o remo que havia caído de seus
dedos sem vigor.
— Acho que é verdade o que dizem sobre muitos dos nossos rapazes de
farda azul.
— E o que seria? — Celluci rosnou, fortificado por duas canecas de
café tornadas um pouco mais amargas pela jarra queimada.
— Você sabe bem, Mike. — Rindo largamente, o empreiteiro
gesticulou, fingindo levar uma garrafa aos lábios. — Digo, pra alguém
aguentar esse café infame, só pode ter problemas com bebida. — Rindo da
sua própria piada, ele se encaminhou para a porta.
Pra começo de conversa, eles não são seus rapazes de farda azul;
segundo, caia duro e morra, caralho. Experimente lidar com o mundo com
o qual a gente lida, só um pouquinho, seu cuzão, e ele vai te devorar e te
cuspir de volta. Mas embora seus punhos tenham se fechado ao redor da
caneca com força ao ponto de fazê-la ranger, tudo que ele disse foi:
— Aonde você vai?
— Eu não te contei? Hoje, tenho que encontrar um advogado em
Bigwood. Sim, eu sei o que você vai dizer, Mike, hoje é domingo. Mas já
que essa é a última vez que venho aqui pelas próximas semanas, o sabujo
jurídico da região queria me ver quando eu estivesse disponível. Só umas
últimas pontas soltas sobre aquele negócio desagradável com a
agrimensora. — Ele parou com as mãos na porta, sua voz e seus gestos
despidos de todas as afetações. — Eu disse a eles pra não deixarem de
finalizar aquela parte da costa antes de encerrarem o dia... sei que não sou,
mas me sinto responsável pela morte daquela pobre mulher e só queria que
houvesse algo que eu pudesse fazer pra compensar. Mas a morte de alguém
não é algo que se possa compensar, não é, Mike?
Celluci grunhiu algo evasivo. Naquele exato momento, a última coisa
que ele queria era pensar em Stuart Gordon como um ser humano decente.
— Talvez eu não consiga voltar antes de escurecer, mas ei, essa é a hora
em que o espírito pode aparecer, então não vão precisar de mim até lá.
Certo, Mike? — Virando-se em direção à tela em que os borrachudos
haviam se acomodado, esperando que seu café da manhã emergisse, ele
balançou a cabeça. — A primeira coisa que vou fazer quando isso tudo
acabar é escoar cada curso d’água onde essas sanguessugazinhas se
reproduzem.
O nível da água nos pântanos havia diminuído nas duas semanas desde
a morte da agrimensora. Empapado de repelente em spray que achou
debaixo da pia, Celluci seguiu a trilha feita pelas equipes de busca, pisando
cuidadosamente nos montículos mais altos, não importando quão sólido o
chão parecesse. Quando chegou aos restos de fita da polícia, ele se agachou
e examinou a terra sob a água. Não esperava achar coisa alguma, mas, após
a confissão de Stuart, sentiu que precisava ir até ali.
Até cinco centímetros de profundidade, a água era surpreendentemente
clara.
— Não há motivo pra ela ficar barrenta agora, não há nada a
revolvendo...
Algo metálico reluziu na lama.
Agarrando a grama do charco em seu montículo com uma das mãos, ele
esticou a outra e conseguiu colocar seu polegar e seu indicador ao redor do
saliente pedaço de...
— Fita métrica de aço inoxidável?
Provavelmente era um resquício do equipamento da agrimensora morta.
Uma ponta da peça de quinze centímetros havia sido claramente quebrada,
mas a outra ponta, a que estava na lama, tinha a aparência de algo que havia
sido dissolvido.
Quando Anne Kellough jogou o ácido no carro de Stuart, eles estavam
imitando o espírito do Lago Nepeakea.
Celluci inspirou profundamente e cuspiu uma boca cheia de
borrachudos suicidas de volta ao pântano.
— Acho que está na hora de falar com Mary Joseph.
— Consegue sentir?
Desfrutando da primeira xícara de café decente que tomava em dias,
Celluci caminhou para a beira da varanda e fitou o lago. Diferente da maior
parte de Dulvie, separada da água pela estrada, a casa de Mary Joseph
ficava bem na margem.
— Estou sentindo alguma coisa — ele admitiu.
— O que está sentindo é o espírito do lago, enfurecido por esse homem
da cidade. Mais biscoito?
— Não, obrigado. — Ele havia comido um e tinha sido, sem dúvida, o
pior biscoito que já provara. — Me fale sobre o espírito do lago, Srta.
Joseph. A senhorita o viu?
— Ah, sim. Bem, não exatamente ele, mas vi o rastro de sua passagem.
— Ela gesticulou em direção à água, mas, naquele momento, o lago estava
perfeitamente calmo. — A maioria das águas tem um espírito protetor, sabe.
Poços e nascentes, lagos e rios; é por isso que jogamos moedas em fontes,
pra trocá-las por boa sorte com os espíritos. Kelpies, selpies, sereias, Jenny
Greenteeth, PegPowler, a Fideal8... todos espíritos d’água.
— E isso que está aí fora é um deles? — De algum modo, ele não
conseguia associar sereias àquela tromba cheia de dentes serpenteando pra
fora da água.
— Ah, não, nosso espírito d’água é um do novo mundo. Os crees os
chamam de mantouche... Você certamente reconhece a similaridade com o
termo manitu, que significa Grande Espírito. Só os lagos mais profundos
com a melhor pesca tinham um desses. Eles protegiam os lagos, a área ao
redor deles e, em troca...
— Eram reverenciados?
— Bem, na verdade, não. Eram estritamente deixados em paz.
— A senhorita disse ao jornal que o espírito havia se manifestado duas
vezes?
— Segundo temos conhecimento — ela corrigiu —, a primeira
manifestação registrada ocorreu em 1762 e foi incluída nas anotações sobre
espiritualidade nativa que um dos exploradores jesuítas enviou de volta à
França.
Tendo sido educado em uma escola católica, Celluci não tinha muita
certeza de que o envolvimento dos jesuítas acrescentava credibilidade.
— O que aconteceu?
— Era primavera. Uma dupla de caçadores de pele esteve no lago
durante todo o inverno, dizimando os animais ao redor dele. Animais sob a
proteção do lago. De acordo com o caçador que sobreviveu, seu parceiro
estava saindo da parte funda do pântano, logo após o pôr do sol, quando a
canoa dele simplesmente virou e ele sumiu. Quando o outro homem a
recuperou, descobriu que alguns pedaços haviam sido queimados sem fogo
e ela tinha a marca de todos os mortos que eles haviam roubado do lago.
— A marca dos mortos?
— O registro dizia que ela fedia, detetive. A miúdos. — Prestes a comer
outro biscoito, ela parou. — Você sabe o que são miúdos?
— Sim, senhora. O sobrevivente viu alguma coisa?
— Bom, ele disse que viu o que acreditou ser uma cobra gigante, só que
com duas asas atarracadas na extremidade superior. E você sabe o que isso
é?
...um tubo cinzento e reluzente, da largura de seu bíceps.
— Não.
— Um wyvern. Um dos dragões ancestrais.
— Tem um dragão no lago?
— Não, é claro que não. O espírito do lago pode assumir várias formas.
Quando ele está com raiva, aqueles que encaram essa raiva veem uma fera
grande e apavorante. Para o caçador, que, sem dúvida, tinha raízes no norte
da Europa, ele apareceu como um wyvern. Os nativos provavelmente teriam
visto uma serpente gigante. Há muitos dos assim chamados montículos de
serpentes9 ao redor de lagos profundos.
— Mas não poderia simplesmente ser uma serpente gigante?
— Detetive Celluci, não acha que se houvesse uma serpente gigante
vivendo nesse lago, a essa altura alguém já teria dado uma boa olhada nela?
Além disso, após a segunda morte, foram feitas buscas minuciosas pelo
lago, com equipamentos modernos... e também uma ou duas vezes depois
disso... e nunca encontraram nada. Aquele caçador foi morto pelo espírito
do lago e Thomas Stebbing também.
— Thomas Stebbing?
— A morte registrada em 1937. Tenho alguns recortes de jornal...
Na primavera de 1937, quatro jovens, alunos da Universidade de
Toronto, foram ao Lago Nepeakea para umas férias em meio à vida
selvagem. Enquanto passeava de canoa com um amigo, no fim da tarde,
Thomas Stebbing viu na margem aquilo que acreditou ser uma tora
queimada e eles remaram até lá para investigar. Enquanto seu amigo
observava, horrorizado, a tora “atacou” Stebbing, matando-o e deixando-o
todo esturricado, para depois “serpentear de volta ao lago” em uma trilha de
vegetação morta. A investigação não deu em absolutamente nada e o
testemunho ocular sobre um “tipo de verme enorme” foi sumariamente
descartado. O veredito final e oficial foi de que a vítima havia de fato
remexido uma tora parcialmente queimada e, quando ela rolou sobre ele,
acabou queimada pelas brasas e morreu. A tora então rolou para o lago,
chamuscando o caminho por onde passou, e afundou. O fedor foi
descartado como sendo o cheiro da carne queimada, e a insistência do
amigo de que as queimaduras haviam sido causadas por ácido foi
completamente ignorada — a despeito do fato de ele ser estudante de
química e, sendo assim, deveria saber do que estava falando.
— O espírito do lago subiu para a terra, Srta. Joseph?
Ela assentiu, aparentemente despreocupada com a contradição.
— Houve muitas queimadas sendo feitas ao redor do lago naquele ano.
Entre as guerras, esta área foi popular por um tempo e as queimadas eram o
modo mais fácil de abrir espaço pras casas de veraneio. O espírito do lago
não podia permitir isso, daí sua aparência de tora queimada.
— E o que Thomas Stebbing havia feito pra perturbar a paz dele?
— Nada específico. Acho que o pobrezinho só estava no lugar errado,
na hora errada. É um espírito vingativo, você entende.
Só alguns anos depois ele viria a entender que Mary Joseph era
completamente pirada. Mas isso foi antes de ele se dispor a se lançar na
escuridão que espreitava por trás de um par de olhos prateados. Ele suspirou
e se levantou, a tarde estava quase no fim. O pôr do sol não demoraria
muito.
— Obrigado por sua ajuda, Srta. Joseph. Eu... o que foi?
Ela o encarava, meneando a cabeça.
— Você o viu, não foi? Você tem aquele olhar.
— Eu vi alguma coisa — admitiu ele, relutantemente, e se virou em
direção à água. — Já vi muitas coi...
Um par de jet skis roncou ao redor de sua fala e a afogou. Conforme
passavam pela casa, cobrindo-a de barulho, um de seus pilotos adolescentes
deu um aceno jovial.
Nunca tem um espírito do lago vingativo por perto quando realmente se
precisa, ele pensou.
Mike Celluci nunca ficou tão feliz em ver alguém quanto ficou quando
viu chegar uma van cheia de funcionários do bufê, rígidos e de olhar
apático, às quatro da tarde. Como Vicki havia descoberto durante o primeiro
telefonema, Stuart Gordon não era um homem que aceitava “não” como
resposta. Ele poderia ter aceitado “Vá se foder e morra!”, seguido de uma
fuga rápida, mas uma vez que Vicki esperava acordar às margens do Lago
Nepeakea, Celluci conteve sua língua. Além disso, seria um pouco difícil
para ela espantar o empreiteiro se eles estivessem a meio caminho de
Toronto.
Pôr do sol.
Quando acordou, Vicki podia sentir talvez uma dúzia de vidas ao seu
redor e ficou ali deitada por um momento, se refestelando nelas. Nas
últimas duas noites, ela teve que lutar contra a ânsia de pular no banco do
motorista e acelerar rumo à civilização.
“Fast-food.”
Ela se esgueirou, se vestiu e saiu para o estacionamento.
Celluci estava à beira da praia conversando com Frank Patton. Ela se
encaminhou até eles, a multidão se abrindo para deixá-la passar sem
realmente se dar mesmo conta de que ela estava ali. Os dois homens a
receberam com um aceno de cabeça e Patton fez um gesto na direção do
churrasco.
— Hambúrguer?
— Não, obrigada, estou sem fome. — Ela olhou à sua volta. — Parece
que ninguém trouxe os filhos.
— Ninguém quer expor seus filhos a Stuart Gordon.
— Eles têm medo de que eles peguem alguma coisa — completou
Celluci.
— O Mike aqui diz que você solucionou seu caso e só está esperando o
Sr. Simpatia ali pagar você pra poderem ir embora.
Pensando no que Mike estava aprontando, Vicki assentiu.
— Ele também disse que você não mencionou nenhum nome. Obrigado
— ele suspirou —, não esperávamos realmente que a coisa do espírito do
lago fosse funcionar, mas...
Vicki ergueu as duas mãos.
— Ei, nunca se sabe. Ele pode acabar vetando tudo.
— Ah, claro. A única coisa que aquele palhaço veta é todo mundo ao
redor dele. Se me der licença, é melhor eu resgatar Anne antes que ela
arranque a língua dele e o estrangule com ela.
— Estou surpresa por ela ter vindo — admitiu Vicki.
— Ela acha que ele tá armando alguma e quer saber o que é.
— Não queremos todos? — murmurou Celluci, enquanto Patton se
afastava.
Com o cheiro da carne assada combinado ao de sangue fresco deixando-
a levemente zonza, Vicki impeliu Mike a andar na direção da doca
flutuante.
— Perdi alguma coisa?
— Não, acho que chegou exatamente na hora.
Quando Frank Patton se aproximou, Stuart abandonou a conversa que
estava tendo com Anne Kellough — ou mais precisamente, Vicki reparou, a
palestra que estava dando — e foi andando até a extremidade da doca, onde
várias pedras grandes haviam sido colocadas.
— Ele tem licença pra essas porcarias — resmungou Celluci. — O filho
da puta sabe como proteger o próprio rabo.
— Mas não seu próprio ID. — Os dedos de Vicki, frios, se curvaram ao
redor do antebraço de Mike. — Ele vai ter o dele, não se preocupe.
O primeiro rojão subiu, explodindo em vermelho sobre o lago, as cores
emudecendo contra o cinza da noite no céu e na água. O empreiteiro se
virou para a margem e ergueu as duas mãos acima da cabeça.
— Agora que tenho sua atenção, há algumas coisas que gostaria de
compartilhar com todos vocês antes das festividades continuarem. Primeiro
de tudo, eu decidi não prestar nenhuma queixa relativa aos danos ao meu
veículo, embora esteja a par de que...
A doca começou a balançar. Atrás dele, um dos rojões caiu na água.
— Sr. Gordon. — A voz era de Mary Joseph. — Venha para a margem,
agora.
Apontando um dedo em direção a ela, ele balançou a cabeça.
— Ah, não, sua velha, eu sou Stuart Gordon...
Nada de Me-chame-de-Stuart esta noite, notou Celluci.
— ...e vocês não me dizem o que fazer, eu digo...
Com os braços girando, ele deu um, dois passos para trás, e caiu na
água.
De braços e pernas esticados, ele aparentava estar sentado em algo logo
abaixo da superfície.
— Já estou farto disso tudo — começou ele...
...e desapareceu.
Vicki chegou à ponta da doca em tempo de ver seu rosto pálido e oval
ser engolfado pelas águas escuras. Para seu assombro, ele parecia ter tirado
o celular do bolso e tudo em que ela conseguia pensar era no bordão
daquele filme antigo, pra quem você vai ligar?
Um batimento cardíaco, dois. Ela pensou em ir atrás dele. As pontas dos
dedos na mão de seu braço esticado já estavam úmidas quando Celluci
agarrou o ombro dela e a puxou de volta. Ela não ia mesmo fazer aquilo,
mas foi legal ele acreditar que ela o faria.
De volta à margem, duas dúzias de olhos igualmente arregalados
estavam cravados na superfície negra e lisa da água; surpresos demais pelo
que havia acontecido ao seu inimigo mútuo, Vicki percebeu, para notarem a
rapidez com que ela tinha chegado à ponta da doca.
Mary Joseph foi quem primeiro quebrou o silêncio.
— Assim age o vingativo espírito do Lago Nepeakea... — ela declarou.
Então, conforme as várias cabeças iam assentindo, ela completou,
secamente. — Não dá pra dizer que eu não o avisei.
Mike olhou para Vicki, que deu de ombros.
— Por mim, tá ótimo — disse ela.
Sua mãe, seu pai — ele parecia sempre cansado —, sua avó antes de seu
cabelo embranquecer totalmente... ela estava com eles, sua mãe com as
mãos nos ombros dela, na praça da vila. A praça, com a igreja em uma
ponta, estava lotada de amigos e vizinhos, outros parentes.
— É dia de banquete — sua avó havia dito naquela manhã —, el Día de
los Muertos, o dia em que as pessoas oram a todos os santos por seus
mortos.
Como se pode orar a todos os santos, Remedios se perguntava, se há
tantos deles? Sua avó disse que o dia seria repleto de orações. A missa
havia sido longa, com o nome de todos os mortos lidos em voz alta pelo
padre; muitos nomes reunindo famílias mais pobres e missas individuais
para as famílias que podiam pagar mais. A procissão da igreja cuja fatigante
missa eles tinham acabado de assistir estava em andamento, se movendo ao
redor da praça, as rezas em cântico, conduzidas pelo padre, com as pessoas
ecoando e respondendo às suas palavras. O aroma pungente do incienso
queimado enchia o ar e os coroinhas balançavam sinetas e seguiam
lentamente atrás dos padres, enquanto outras pessoas espalhavam pétalas de
flores de um roxo escuro diante da procissão.
Remedios chupava um guagua de pan saído da cesta de pães do Día de
los Muertos, assados por sua avó naquela semana — os pequeninos homens
e mulheres de pão representando os mortos. O seu tinha olhos vermelhos de
açúcar e cabelos e lábios verde-claros, com um colorido vestido. —
“Esperanza” — assim a havia chamado a avó — a falecida irmã da mãe de
Remedios, Esperanza, aquela em cuja homenagem sua própria irmã seria
batizada.
— O nome dela significa “esperança” — disse sua avó.
Ela pôs a pequena Esperanza no bolso para, mais tarde, colocá-la no
altar em sua casa, um altar em que havia uma grande pintura da Santa
Marianita de Jesus e muitas, muitas velas. Também haveria algumas das
flores que levaram do cemitério para casa.
Remedios estava com fome e se perguntava quando voltariam para casa
e comeriam o locro, aquela deliciosa e espessa sopa, beberiam a colada
morada, com seu aspecto de gelatina e vívida cor púrpura, que sua mãe só
fazia para as festividades do Dia dos Mortos.
O vívido cortejo durou um longo tempo, com grandes coroas de flores
carregadas de lá para cá pela praça, com pequeninas stampas dos santos e
santinhos para os mortos afixados às flores vermelhas e amarelas. O padre
segurava uma grande faixa com uma imagem da Virginsita e dois outros
padres carregavam uma enorme Santa Marianita de Jesus, que dera sua vida
para salvar a cidade dos terremotos, ambas as imagens decoradas com
purpurina, conchas e muitas flores.
Remedios sentiu-se sonolenta e sentou-se no chão duro, recostando-se
nas pernas de sua mãe. E então, quando abriu os olhos, a luz tinha se
desvanecido do céu e a noite havia caído sobre eles como uma figura
sombria varrendo o firmamento para sufocar toda a vida... ela percebeu que
eles agora estavam no cemitério.
Ali, no lar dos mortos. Uns sobre os outros em gavetas de cimento, em
pilhas de quatro a cinco deles. “Muitos mortos, mas pouco espaço”, disse
sua mãe. Ela permaneceu sentada no chão diante dos túmulos de seus
ancestrais, enquanto os adultos colocavam belos lírios brancos fúnebres e
coroas de flores nos túmulos e por trás das placas de mármore em que
constavam os nomes dos falecidos. O ar ficou espesso com o aroma das
flores e avivado pelo murmúrio dos cânticos. Remedios sentiu-se sonolenta.
— Tragam eles! — conclamou o padre.
De repente, a noite tornou-se negra, tendo apenas a luz das estrelas
sobre suas cabeças. Cães! Eram tantos! De onde vieram todos eles?
Dificilmente algum dos vizinhos tinha condições de manter um cachorro.
Esses animais perambulavam pelas ruas, selvagens, em matilhas,
competindo com as pessoas por comida. Como eles haviam sido atraídos
até ali? Eram os restos de comida. Remedios nunca havia visto tantos cães
no mesmo lugar, nem tanta comida sendo dada a eles. Muito tempo se
passou, com discussões acaloradas, enquanto os homens observavam os
cães e discutiam de um modo amigável — qual animal era o mais forte,
qual era o mais fraco? O maior deles seria mais determinado que o segundo
maior? E aquele branco, pequenino, parecia agressivo — talvez ele
crescesse para se tornar o macho alfa que acasalava! Finalmente,
finalmente, um deles foi selecionado. Uma cadela não muito pequena, de
pelo marrom, a quem entretanto parecia faltar energia. A mais fraca, disse
sua avó.
— Someter — disse seu tio, ordenando submissão à cadela.
Remedios ficou enraizada no lugar, quando tio Antonio cortou a
garganta da cadela, de uma ponta à outra. O animal se empinou, rangeu os
dentes, uivou — um som inquietante. Ela caiu por terra, primeiro com os
joelhos dianteiros, então de lado. Antes que ela parasse de se contorcer, as
mulheres se adiantaram ao seu cadáver e recolheram o sangue derramado
em bacias — entre elas, a mãe de Remedios. Cada família recolheu o
máximo que pôde do precioso líquido vital, lutando para impedir que ele
escoasse para a terra.
Então, outro cão foi capturado e levado rosnando para a frente de todos;
Remedios tensa, as lágrimas ainda fazendo seus olhos arderem. Ele era
forte, aquele cão, cheio de vida, não tão grande quanto o maior deles, mas
seu espírito parecia enorme e todos podiam sentir isso.
— O mais apto à sobrevivência — disse tio Antonio, e Remedios
assistiu a seu tio alimentar aquele cão com o sangue de sua irmã sacrificada.
Então, ela viu seu próprio tio provar daquele sangue.
— Aqui, Remedios, beba isso — disse sua mãe. — Vai deixá-la forte.
Você é a mais forte, tem que sobreviver.
Obedientemente, ela pôs os lábios no frio metal da bacia e bebeu o
fumegante e espesso sangue como se fosse leite.
— Os fracos alimentam os fortes — disse sua avó enquanto ela bebia.
— Às vezes, os fortes abandonam a matilha e se tornam selvagens, porque
depois que provam sangue, é a única coisa da qual conseguem se alimentar.
Sempre foi assim e assim será de novo. O mais forte deve ser encorajado a
sobreviver ou todos morrem.
Remedios encarou suas mãos cobertas de sangue. Por que elas não mais
a enojavam como antes? Ela sugou o doce néctar e podia quase senti-lo
preenchendo seu corpo com energia, assim como ela agora se lembrava do
sangue da cadela fraca atiçando cada centímetro de seu ser.
Ela pôs o assado de lado e voltou para seu quarto, para a cômoda.
Cuidadosamente, removeu o rosário da bolsinha de couro e o segurou
contra a luz da luminária na mesa de cabeceira.
Tantos dentes! Alguns pareciam tão frágeis que poderiam se esfarelar se
ela os tocasse demais. Outros pareciam maiores, mais fortes, mais capazes
de cortar, mastigar, ingerir e transformar a comida que iria nutrir e
alimentar. E então, aquele diferente de todos os outros. Aquele
desenvolvido pela natureza para a sobrevivência. Um dente feroz. Ele podia
defender e proteger, ou destruir. Remedios ergueu o rosário sobre a cabeça e
o colocou ao redor do pescoço, deixando que caísse por baixo da camiseta.
Sentiu os dentes frios repousando contra a pele. A ponta daquele dente
único fazendo uma leve pressão por entre seus seios.
Remedios nem precisou fazer a si mesma a pergunta que vinha
evitando, pois em seu coração já sabia a resposta. O dente de vampiro havia
vindo de sua própria boca. Um dente diferente de todos os outros. O dente
do mais forte. Daquele que poderia viver e sobreviver em um lugar que não
a sua terra natal. Daquele que poderia cuidar de toda uma família e
assegurar seu sustento. Daquele que tinha forças para se alimentar dos mais
fracos para sobreviver, pois a sobrevivência era crucial. Sua mãe havia dito
isso; e foi por isso que deram a ela o sangue do cão mais fraco. Porque sua
mãe a havia batizado como remédio de Deus — sua mãe era sábia. Ela
sabia que Remedios havia nascido para remediar os erros que haviam sido
seu legado.
Agora, vinham a Remedios imagens do vampiro e de el Chupa-cabra, e
ela não se sentia mais ameaçada.
Conforme o céu se tornava mais claro, o conhecimento que Remedios
havia desenterrado com o rosário não se desvanecia, apenas se solidificava
dentro dela, fundindo as preocupações e as inseguranças, deixando para trás
uma certeza a partir da qual agir.
A casa permanecia envolta em quietude, inerte como os mortos.
Remedios passou pelos quartos em que Jess e Robert dormiam
ininterruptamente. Ela continuou pelo corredor do segundo andar, vendo
sua sombra se arrastar pelas paredes. Por fim, chegou ao quarto principal e
abriu a porta silenciosamente.
Dentro, o ar cheirava a suor misturado com a fragrância dos perfumes
da Sra. Richview. Remedios encarou o casal por um momento, tomando sua
decisão. Seus patrões dormiam profundamente, a Sra. Richview com
tampões nos ouvidos e uma máscara sobre os olhos. O Sr. Richview se
espalhava junto à beirada, de costas, roncando sonoramente. Remedios se
encaminhou para a lateral da cama. Agachou-se diante dele e esticou a mão
para tocar com cuidado o azul bojudo em seu pescoço. A respiração dele
falhou por um momento. Ele abriu os olhos e a encarou, amedrontado.
Remedios pôs o dedo sobre os lábios e sussurrou baixinho:
— Someter. — As pálpebras dele se fecharam como se ele ansiasse por
voltar aos seus sonhos. Ele virou a cabeça, a veia como uma oferenda.
Remedios a perfurou facilmente, rapidamente, naturalmente, feito
qualquer animal forte que havia descoberto em algum momento de sua vida
o amor pelo gosto de sangue.
Eu o vejo num clube noturno. Ele poderia ser meu gêmeo... um jovem
sisudo, de rosto belo e afilado, o cabelo negro caindo nos olhos, e esses
olhos, adoráveis poças miseráveis de sombras. Como ele parece solitário,
sentado ali, alheio à multidão de corpos, às mulheres brilhando de contas e
pérolas. Está curvado sobre um copo de uísque e leva à boca uma mão
comprida e esquelética, sugando avidamente uma guimba de cigarro.
Tragando seu último afluxo quente de venenos.
— Posso me juntar a você? — eu digo.
— Se insiste. — A voz dele é entediada, a fala arrastada da classe
abastada inglesa. Adoro isso.
— Não há nenhuma mesa disponível. — Aceno para enfatizar o óbvio:
o clube está lotado, uma cena sépia numa neblina de fumaça. — Meu nome
é Antoine Matisse.
— Rupert Wyndham-Hayes. — Aperta minha mão sem entusiasmo. O
cigarro dele terminou, então lhe ofereço outro, um afilado, francês, de uma
cigarreira de prata.
Ele aceita. Eu o acendo para ele... um gesto de intimidade... e ele se
senta novamente, soprando a fumaça num prazer enfadado.
— É de Paris, presumo? Primeira vez?
— Já estive aqui em outra ocasião — respondo. — Londres sempre me
atrai de volta.
Ele faz um ruído zombeteiro.
— Eu preferia estar em Paris. Engraçado como sempre queremos o que
não podemos ter.
— O que o impede de ir a Paris, Rupert?
Olho dentro de seus olhos. Ele não parece notar que não estou fumando.
Vê algo especial em mim, uma alma afim, alguém que vai entendê-lo.
Ele chama o garçom e pede bebidas, embora despeje a minha na dele
quando não está olhando. Dentro em pouco, sua história começa a aflorar. A
propriedade no campo pertencente à família, um pai orgulhoso, rico e
desagradável. Uma mãe há muito morta. Rupert, filho único, com uma
pesada carga de expectativas sobre seus ombros. Mas ele desapontou seu
pai em tudo.
— Todas as coisas que ele queria que eu fosse... não consigo. Devia ser
um acadêmico, um oficial, um ministro de gabinete. Digno dele. Casado
com alguma cria de Earls Court. Era assim que ele me via. Mas eu o
decepcionei. Tentei e falhei; deuses, como tentei! Por fim, tive algum estalo
e me recusei a continuar a dançar conforme sua música. Porque o que
realmente sou é um artista. A única coisa que sei fazer, a única coisa que
sempre quis fazer, é pintar!
Ele traga seu cigarro profundamente. Seus olhos queimam de
ressentimento.
— Seu pai não se sente orgulhoso por você ter esse talento?
— Orgulhoso? — cospe ele. — Ele me despreza por isso! Diz que vou
acabar na sarjeta.
— Por que não vai embora? — digo suavemente e presto mais atenção
ao movimento de sua tenra garganta do que às suas palavras. — Vá pra
Montmartre, seja um artista. Prove que o velho está errado.
— Não é tão fácil. Há uma moça, Meg...
— Leve-a com você.
— É exatamente isso. Não posso. Ela é filha do jardineiro. Meu pai a
emprega como arrumadeira. Não percebe? Não contente em ser um fracasso
em tudo o mais, vou e me apaixono por uma simples criada. E agora o
velho me diz que se não desistir dela e entrar no jogo, ele me deserda! E
Meg se recusa a me ver. Diz que tem medo do meu pai. Maldito seja!
Não sou vampiro há muito tempo. Ainda me recordo de como tais
dilemas parecem insolúveis aos humanos.
— Que terrível.
— Porco velho e vingativo! Vou perdê-la e ficarei sem um tostão! Ele
não pode fazer isso comigo!
— O que vai fazer a respeito, Rupert?
Ele abaixa o olhar para seu uísque. Como parece sedutor em sua
miséria.
— Queria que o canalha do velho morresse amanhã. Isso resolveria
todos os meus problemas. Queria matá-lo!
— E mataria?
Ele suspira.
— Se ao menos tivesse peito! Mas não tenho.
Então, sorrio. Pouso minha mão na sua e ele está entorpecido demais
pelo uísque para sentir a frieza das pontas de meus dedos. Eu havia pensado
em algo mais interessante para fazer do que simplesmente levá-lo para fora
e sugá-lo.
— Eu faço por você.
— O quê? — Seus olhos ficam imensos.
Devo me explicar. Sou pobre. Me parece um tanto vulgar vasculhar os
bolsos de minhas vítimas, feito um ladrão barato. Eu o faço mesmo assim,
mas me rende poucas recompensas. A riqueza que almejo, de modo a ter o
estilo de vida que um vampiro merece, é difícil de encontrar.
— Me dê uma parte de sua herança e eu o mato por você. Ninguém
nunca vai ligá-lo ao crime. Causas naturais, é o que dirão.
Ele respira rapidamente. Suas mãos tremem. Ele sabe o que eu sou? Sim
e não. Olhe em nossos olhos e um véu será erguido em sua mente; você
adentrará um sonho onde tudo é possível.
— Meu Deus — ele diz, repetidamente. — Meu Deus. — E, enfim, com
uma luz selvagem em seus olhos... — Sim. Rápido, Antoine, antes que ele
tenha chance de mudar seu testamento. Faça!
Estou no jardim outra vez quando ela me encontra. Estou andando para
frente e para trás no gramado sob as frias janelas da mansão, com a lua me
encarando lá de cima; e de repente, lá está Charlotte. Ela sai das sombras de
uma sebe para andar ao meu lado.
— É difícil partir, não é? — diz ela, deslizando sua mão fria pela minha.
— Como ela é, a sua família?
— Interessante — eu digo. — Rupert, o filho, está apaixonado pela
deliciosa criada, Meg. Como vou dizer a ele que Meg escapole
regularmente para servir ao pai dele? Não admira que Daniel tenha proibido
Rupert de vê-la.
Charlotte profere uma risada delicada e sensual.
— Ah, Antoine, Karl não lhe falou do erro que é perguntar seus nomes,
se envolver em suas vidas? Sabe que não deveria, mas não consegue evitar.
Essa também é sempre minha ruína.
Ah, agora Charlotte. Ela é amante de Karl e sua presença é tudo que se
precisa para revelar a tolice do conselho dele. Não se envolva com
humanos, ele me diz? Hipócrita. Pois ele tomou Charlotte quando ela era
humana, não conseguiu se conter, não conseguia deixá-la em paz. E quem
poderia culpá-lo? Há nela um quê de rainha do gelo e um quê de flor de
formosura. Ela é a perfeita boneca de ouro e porcelana com um coração de
escuridão. Como uma princesa que fugiu com os ciganos, toda ela seda
fulva e rendas cor de bronze. Mas pergunte qual deles é o mais perigoso,
mais verdadeiramente vampiro... é Charlotte.
Ela é a sedutora. Ela é quem é letal. Você nunca verá a chegada de Karl;
ele vai tomá-lo velozmente e sumir antes que saiba o que aconteceu, sem
promessas, sem desculpas. Mas Charlotte vai venerá-lo a distância, lhe dar
flores, fugir de você e voltar para você, até que esteja tão louco de amor a
ponto de não saber mais o que faz. Ah, então ela vai se voltar contra você e
abatê-lo, essa nossa víbora, e encharcar seu corpo maltratado com as
lágrimas dela.
Não que eu tenha sido sua vítima, você entende. Mas pude observá-la,
na mais completa admiração.
— Por que tem que ser uma ruína? — pergunto, incomodado.
— Humanos são tão atraentes, não são? É impossível apenas prová-los.
Você não consegue ser como Karl... só atacar e nunca olhar pra trás. Você é
como eu, Antoine. Quer brincar com eles, quer conhecê-los, quer amá-los.
É um prazer que vale a dor? Nunca sei bem. É preciso fazer uma vez após a
outra pra saber se vai ser diferente desta vez.
— É só um jogo pra mim. Não ligo pra eles. Estou fazendo pelo
dinheiro, só isso.
— É mesmo? — diz ela. — Então, por que não conseguiu matá-los? Por
que ainda está aqui?
Charlotte se põe nas pontas dos pés e pressiona sua boca rosada contra a
minha; e então se vai, num sussurro de seda e lilás.
Por trás dessa sebe, encontro uma horta, onde o pai de Meg
carinhosamente cultiva vegetais para alimentar os moradores da casa. Ah,
agora eu vejo. Ele é um homem que despreza flores e beleza, ama os
prosaicos feijões e batatas... assim como seu empregador. O ar está espesso
pelo apodrecer das couves-de-bruxelas, pelo cheiro de solo molhado
revolvido e de adubo.
Por uma fenda, vejo o brilho frio da estufa e... onde a horta encontra a
área dos serviçais da casa... o brilho tentador do vidro na porta da cozinha.
Quando Rupert descobre que não matei seu pai, irrompe em fúria
vulcânica.
Nos encontramos sob uma fileira de olmos. As gralhas grasnam e se
altercam nos ramos nus acima de nós.
— Seu mentiroso! — grita Rupert. — Seu traidor!
Ele voa para cima de mim, os braços feito moinhos de vento, mas eu o
seguro a distância. Ele é inútil numa luta, assim como em tudo o mais.
Talvez também seja um artista inútil, meramente afeiçoado à ideia de
remoer, sofrer e ser incompreendido.
— Por que não acabou com o demônio? Você apenas o feriu!
— Fui interrompido.
— Que diabos quer dizer com... interrompido?
Então, conto a ele. Rupert se enfurece. Ele anda, soca as árvores,
choraminga. Finalmente, vira-se para mim como um homem nas garras de
uma doença mortal, seu rosto pálido e frágil como a pele de um cogumelo.
— Isso é um desastre! — ele chora. — Se Meg e meu pai são amantes,
então não tenho nada mais pelo que viver. Eles terão um filho e eu não terei
herança alguma, nem casa nem esposa... nada!
Ele se arremessa a mim, agarrando a gola de meu casaco. Estou
realmente gostando disso.
— Me mate — implora ele, as lágrimas correndo por seus belos e
angustiados olhos. — Mate a mim, em vez deles.
Ah, com prazer.
10. Boneca de pano de cabelos de lã vermelha. Um personagem infantil criado pelo escritor norte-
americano Johnny Gruelle. - N. da T.
11. Marca de vestuário inglês bastante popular entre os integrantes da contracultura, especialmente
entre os anos 1960-1980. - N. do E.
BEM O TIPO DELE
Storm Constantine
A sala de meditação dele era no segundo andar, nos fundos da casa, com
vista para os campos e uma pequena mata. Como ele sempre fazia com
Sarah, deixou as cortinas abertas e acendeu uma única vela. Seu coração
estava acelerado, mas não pelo medo. Ele não sabia exatamente o que
estava sentindo. Enquanto se preparava para acender um pouco de incenso
natural, para ajudar a conjurar a atmosfera correta, Lara perguntou:
— Você tem um alfinete?
— O quê?
— Pra espetar nossos dedos. Devíamos botar nosso sangue nesses
incensos.
— Lara...
— Noah...! — Ela estava rindo dele.
Achar um alfinete levou alguns minutos, nos quais Lara tomou mais
uma taça de conhaque. O próprio Noah já começava a sentir os efeitos do
álcool.Talvez ele estivesse entorpecendo seu senso de apreensão. Deixou
Lara espetar seu dedão e espremer uma reluzente gota de sangue do furo,
que misturou ao incenso. Então, ela pôs o dedão dele em sua boca quente e
o sugou.
— Tá com medo? — perguntou.
— Apavorado.
Ela espetou o próprio dedo, mas não o ofereceu para que ele provasse o
sangue dela. Foi uma leve decepção.
Lara deitou-se no tapete diante da lareira apagada, enquanto Noah
sentou-se com as pernas cruzadas ao lado dela, conduzindo-a gentilmente a
um leve transe. Ele foi fazendo-a retroceder no tempo, a fez assistir aos
séculos se desfazerem gradualmente, até dizer a ela para que visualizasse a
si mesma na entrada de uma caverna em meio a altos penhascos esculpidos
pelo vento. Além de seus limites, tudo era escuridão.
— Essa é a Caverna de Shanidar — murmurou ele. — Lar do povo-
abutre. Entre nela.
Ele pausou, ouvindo sua tênue respiração.
— Me diga o que vê — ele pediu.
— Escuridão — respondeu ela. Seu cenho havia se franzido. — Mas
sinto cheiro de...
Ele achou que ela diria sangue.
— Flores — disse ela, fracamente. — Por todo canto, flores. Eles as
colocaram sobre os ossos. Eu os vejo. Tantos ossos. Tem asas...
— Tem alguém aí com você?
— Sim. — Sua voz era como a de uma criança, juvenil e trêmula.
— Você quer ir embora? — perguntou Noah. — Pode sair a qualquer
momento.
— Não. Ele me conhece. Quer me dar alguma coisa.
— O quê?
— O osso divinatório...
— Qual o aspecto dele?
De repente, Lara arfou, seus olhos se abriram e ela se sentou, ereta.
Noah foi ao seu encontro para acalmá-la.
— Tudo bem — ele disse.
Ela virou a cabeça lentamente e, quando falou, sua voz era grave e
áspera.
— Dela não me afaste, filho de Lameke. A risada dela enchia as
montanhas e curvava a cabeça das feras selvagens. A vergonha tomou ela
de mim. Vergonha!
Noah sentia o odor de carniça, o fedor de seu hálito.
Súbito, Lara suspirou e graciosamente caiu de costas no chão.
— Lara — resfolegou Noah, inclinando-se sobre ela. — Lara. Você tá
bem?
Ela riu e contorceu o corpo no tapete.
— Ah, estou. — Sem abrir os olhos, ela estendeu a mão para ele e o
puxou para baixo. Quando ele a beijou, sentiu o gosto do conhaque, suas
chamas.
— Obrigada — murmurou ela por entre os beijos. — Obrigada.
Sob sua mão, a pele dela era quente, exalando o restante do calor de seu
perfume. Ele fez amor com ela ali mesmo, se perguntando se ela estava ou
não totalmente neste mundo. Não importava. Ela era um sonho encarnado,
uma mulher que podia andar sozinha na escuridão e voltar rindo e
cheirando a flores.
Depois, ela estava deitada nua ao lado dele, fumando um cigarro.
— Que diabos havia ali pra se ter medo? — disse ela. — Eu trouxe algo
de volta comigo? Não. E pode acreditar, eu bem que queria.
Noah estava deitado de lado, acariciando a barriga firme dela.
— Como a coisa... ele... se parecia?
Ela sorriu.
— Basicamente, do jeito que se poderia imaginar. Primeiro, ele estava
agachado, envolto nesse manto imenso de penas negras. Parecia ter sido
feito das asas inteiras de um único abutre. Eu só conseguia ver as fendas de
seus olhos, perscrutando do topo. Ele mesmo parecia um abutre... um
vampiro! Apesar de estar agachado, dava pra dizer que era um gigante;
magnífico, sábio e selvagem.
— São imagens bem poderosas — disse Noah.
— Daí, ele ficou de pé e abriu seu manto de asas. Por debaixo dele,
estava vestido de peles de animais. Seu corpo estava coberto por algum tipo
de tinta, mas não era sangue. Havia padrões nele, como pinturas rupestres
primitivas. Ele tinha ossos nos cabelos e em um colar que usava. Acho que
eram ossos de pássaro. Vai ficar satisfeito em saber que os dentes dele eram
pontudos. Todos eles.
— Limados?
— Provavelmente. — Ela deu uma tragada profunda em seu cigarro. —
Ah, não sei. Talvez eu tenha visto o que queria ver, ou fui influenciada pelo
que você disse mais cedo.
— E quanto àquilo que ele disse por seu intermédio?
— Não sei. Era como se ele já me conhecesse, obviamente. Ele parecia
conhecer você também, de certa forma. Lameke era o pai de Noah12 no
mito bíblico, não era?
Noah assentiu, desconfortável com a ideia de que a entidade pudesse
estar ciente de sua existência.
— Se a coisa toda não foi subjetiva — disse Lara —, talvez eu tenha
vivido na época dele. Talvez fôssemos amantes. Eu com certeza estava bem
excitada quando voltei.
— Ele não parece muito atraente!
Lara apagou o cigarro e buscou a virilha de Noah.
— Ah, mas ele era! Lindo, na verdade. Os olhos dele eram incríveis, de
um azul profundo e penetrante. Cristo, queria que ele me possuísse.
Totalmente. Era aquela coisa arquetípica. — Ela deu uma risada rouca. —
Eu teria ficado bem feliz dele cravar os dentes em mim.
Noah se inclinou sobre ela e mordiscou a pele de sua garganta.
— Vem, vamos pra cama. Está ficando frio aqui.
Eles fizeram amor muitas outras vezes. Noah estava eufórico, mal
ousando acreditar que uma mulher como aquela havia entrado em sua vida.
Ela era cheia de humor e calor, sóbria no que dizia respeito à sua
habilidade, porém divertidamente irreverente. Era desinibida, aberta,
misteriosa e transcendente. Uma bruxa. Uma sacerdotisa.
— Onde você esteve por toda a minha vida? — disse Noah.
— Aposto que diz isso pra todas as garotas — respondeu ela, e eles
riram feito crianças por vários minutos de seus clichês idiotas.
Por volta das quatro da manhã, Lara disse que estava cansada e se virou
para o seu lado da cama. Noah a estudou por algum tempo, sorvendo cada
detalhe de seus contornos suaves, os cabelos negros derramados sobre o
travesseiro. Ele passou a mão pelo ar sobre o corpo dela, que se contorceu e
deu um gemido de prazer, como se sentisse que ele acariciava sua aura.
— Linda — sussurrou ele. — Amor. — Ele se deitou para dormir,
fechando os olhos com a imagem residual da carne branca dela queimando
em sua mente.
O despertar veio com um choque no crepúsculo cinzento que antecede a
aurora.
Ele imediatamente tomou ciência do frio e viu que o outro lado da cama
estava vazio. Uma pontada apavorada de perda o atravessou, então, ele viu
as roupas dela ainda postas sobre a cadeira de vime claro que ficava
próxima à janela e disse a si mesmo que ela devia ter ido ao banheiro ou
beber alguma coisa.
Ele se deitou de costas e puxou o edredom sobre seu torso arrepiado.
Um silvo no canto do quarto o sobressaltou.
— Lara?
Ele se sentou. A maior parte do quarto ainda estava sob as sombras, mas
pensou conseguir distinguir uma forma escura agachada no canto, perto de
seu cabide de roupas.
— Lara...
Ele estendeu a mão para o abajur ao lado da cama, mas o interruptor
não respondeu. A lâmpada devia ter queimado.
Novamente, um silvo, baixo e sibilante.
Algo se moveu nas sombras, avançando de lado. Ele primeiro viu
claramente os olhos: um azul profundo e penetrante. Ela estava nua e havia
coberto a si mesma com o que parecia ser tinta escura, o que bem poderia
ser possível, pois ainda havia algumas latas na garagem. Seu cabelo estava
bagunçado e com um aspecto de palha, coberto por alguma substância
grudenta. Sua língua se projetava anormalmente da boca, como a de Kali,
deusa da destruição. Não era possível que seus dentes estivessem
pontiagudos. Não havia ferramentas na casa que ela pudesse ter usado para
fazer isso. Ela sibilou e deu um pisão no chão.
— Lara.
Ele saiu da cama devagar. Isso era muito diferente daquela vez com
Sarah. Lara não estava gritando. Não estava desvairada nem
choramingando.
Os olhos dela o seguiram enquanto ele margeava o quarto.
Ele ergueu as mãos, num gesto universal de paz.
— Lara, acorde. Você está sonhando. Não é real. Lara.
Ela arremeteu ameaçadoramente contra ele, rosnou e deu pisões com os
dois pés. Ele pulou para trás. Era irreal. Ele não conseguia sentir nada,
porque era irreal demais.
A noite havia adentrado o quarto. Não a escuridão, mas a essência da
noite, a ausência de luz. O frio da Terra antes de raiar a primeira aurora.
— Lara...
Ela então avançou sobre ele, atravessando o quarto velozmente feito um
caranguejo. Agarrou-o pelos ombros e ele sentiu as pontadas pungentes de
suas unhas. Fedia a carne podre e havia uma crosta ao redor dos seus lábios.
Ela sangrava pela boca. Seus dentes haviam sido limados em pontas
irregulares.
Quanta dor ela devia estar sentindo. Quanta dor...
Ele resistiu. Aquela não era Lara. Era a escuridão da qual ele tinha se
escondido por tanto tempo. Talvez sempre tivesse estado ali, à espreita nas
sombras de sua casa, em suas lembranças.
Ela era forte demais, como uma tigresa. Empurrou-o de volta para a
cama e montou em cima dele. Os seios dela pareciam mais pesados do que
haviam sido mais cedo, repletos de marcas de suas próprias unhas. Emitiu
um guincho e arremeteu contra o pescoço dele.
Ele deveria ter medo, não deveria? Essa coisa, essa abominação
monstruosa dragada da sopa primordial, estava se banqueteando dele,
rasgando sua carne, amassando sua pele com suas garras, sugando a vida
dele. Ela fedia a Inferno. Ainda assim, aquilo o excitava. Ele a queria e ela
o deixou fazê-lo, seu corpo pinoteando em um frenesi.
Então, ele o viu, o túnel história adentro. Os rios de sangue que
carregavam as memórias da humanidade. Está dentro de todos nós, ele
pensou. Nós o domamos e o vestimos com um traje de seda. Nós o
tornamos morto. Nós o contivemos em livros, filmes e sonhos lascivos. Nós
o contivemos em pesadelos. Mas, no fundo, ele está dentro de nós o tempo
todo. E está vivo, pulsando, quente e molhado, cheirando a musgo e carne
estragada.
Lara não era mais forte que Sarah. O oposto é que era verdade. Porque
Sarah havia rejeitado aquilo. Era aquilo que ela havia visto, sentido e sobre
o qual nunca falara. A busca por Nosferatu não havia começado na cova,
mas no cérebro reptiliano, o resquício primordial da fera que há em cada
mente humana. Era demoníaco. Era divino.
No fim da manhã, com a luz do sol entrando pela cozinha, eles foram
polidamente formais um com o outro. Ela disse que havia lascado feio um
dente ao cair, no escuro. Eles não conversaram sobre como ela havia
decorado seu corpo. A bagunça na cozinha já tinha sido arrumada na hora
em que ele desceu as escadas e ela estava renovada após um banho,
cheirando ao seu sabão líquido de oriza. Ela fez piada de sua aversão a
dentistas enquanto bebia cuidadosamente o café quente. Ele fez torradas e
então se desculpou e ofereceu algo mais macio: ovos mexidos, talvez? Não
estava com fome, ela disse.
Ele esfregou o pescoço.
— Ah, bom...
Ela tinha que estar no serviço às duas. Trabalhava meio período em uma
loja local. Talvez conseguisse uma consulta dentária de emergência antes de
entrar. Ele tinha trabalho a fazer também. Ou então o livro seria enviado
com atraso para a editora. Belo dia, porém.
Sim, belo dia.
Na porta, ela deu-lhe um breve beijo no rosto.
— Temos que fazer isso de novo — ela disse.
— Temos mesmo? — Muitas palavras permaneceram sem serem ditas
entre eles.
Ela sorriu. Parecia bem cansada e havia anéis arroxeados sob seus
olhos.
— Acho que eu consegui o que queria. Você não?
— Lara...
— Pode me ligar. Ou não — disse ela. — Você não me é mais
necessário, Noah, mas meio que gosto de você.
Ele a observou descer pelo caminho até a rua. Tinha recusado uma
carona. Ele encostou a testa no batente da porta. Uma vez que abre seus
olhos, nunca pode fechá-los novamente. Sarah sabia disso.
Ele não devia encontrar Lara novamente. Devia tentar esquecer tudo
que havia ocorrido. Eles estavam bêbados. Ela quebrou um dente, só isso.
Foi menos do que ele imaginara. Como se, para lembrá-lo do contrário,
sentia dolorosas pontadas no pescoço. Ele se sentia zonzo, enjoado,
subitamente capaz de imaginar o futuro, sua longa e agonizante extensão, a
descida para reinos sobre os quais não ousava pensar.
Ele não deveria vê-la novamente. Mas ela era bem o tipo dele, não era?
Bem o tipo dele.
David Blythe não acordou naquela noite e dormiu o tempo todo tão
tranquilamente quanto uma criança, sem o auxílio de medicamentos. Com
filmes em mente, Penny examinou o pescoço dele à procura de marcas de
perfurações. Não encontrou nada e foi para a cama no quarto adjacente,
onde teve longos períodos de inquieto despertar e acessos de pesadelos
entre eles.
David acordou pouco depois das sete e disse a ela que estava sentindo
pouca dor. O menor dos indícios de cor mitigava o cinzento da doença em
seu rosto. Ele dormiu novamente durante a manhã. Na hora do almoço,
tomou meia tigela de sopa e não a vomitou de volta. Então, dormiu de novo,
comeu um pouco mais e teve uma segunda noite de paz.
Na manhã seguinte, Penny esqueceu o acordo de 48 horas e, às 10h,
estava discando o número no cartão de Carmine Smith.
— Ele está melhor — disse ela em uma voz miúda e assustada. — Eu
não entendo e quase não ouso acreditar, mas ele está muito melhor!
— Sim — disse Carmine, com uma certa satisfação. — Dez mil, então?
— Dez mil — repetiu Penny. — Ah, Deus, sim.
Ela voltou à casa mais quatro vezes. Em cada ocasião, a rotina era a
mesma: primeiro um café, então subia as escadas, deixando Penny em um
vai e vem ansioso, daí o banheiro e depois adeus. Uma vez, aceitou uma
taça de vinho da Borgonha após sua visita ao quarto, mas foi só. Até então,
ela não havia pedido o pagamento e, quando Penny hesitantemente trouxe o
assunto à baila, ela balançou a cabeça e disse que preferia receber o valor
integralmente. Ou Carmine confiava nela, Penny concluiu, ou seus clientes
ficavam assustados demais para tentar voltar atrás no acordo.
Por insistência de Carmine, David nada sabia sobre o que estava
acontecendo. Embora sua saúde estivesse melhorando rapidamente, ele
ainda dormia bastante, então, as visitas eram marcadas concomitantemente
a isso. Penny aliviava sua consciência dizendo a si mesma que, se tivesse
sido consultado, David ficaria feliz em escolher qualquer coisa em
alternativa à morte.
Então, certa noite, quando elas tomavam o café de sempre, Carmine
disse que aquela visita seria a última.
A mão e a xícara de Penny pararam a meio caminho da boca.
— Por quê? O que houve?
— Não houve nada. — Carmine abaixou sua própria xícara. —
Simplesmente o estágio inicial da cura está concluído. É hora do segundo e
último estágio.
Ela estava encarando Penny firmemente e, com a sensação de estar se
encrespando por dentro, Penny percebeu que não havia se preparado para
aquilo. Carmine tinha explicado — ou tentado explicar — a natureza e as
consequências do que em dado momento aconteceria com David. Como ele
viveria. Como se alimentaria. O vigor aumentado; o fato de que ele não
envelheceria, mas permaneceria como era por... bom, em teoria, para
sempre. Penny havia fingido escutar, mas de fato as palavras de Carmine
tinham entrado por um ouvido e saído pelo outro sem se fixarem em sua
mente. Ela não queria saber os detalhes; tudo que importava para ela é que
David estava lenta, mas seguramente, recobrando a vida.
Agora, porém, a realidade da situação a atingiu como uma descarga
elétrica que fez com que se sentisse enjoada. Naquela noite, se Carmine
agisse ao seu modo, David se tornaria o que ela era. Um vampiro. Penny
agora acreditava em vampiros. Carmine afirmava ser tal criatura e, à luz do
milagre que havia sido feito, como Penny poderia duvidar de algo que
Carmine dizia?
Vampiro. — Eu... — Então, achando o pronome um tanto sem sentido,
ela se calou. Carmine não tomou mais o café; ela simplesmente esperou e,
enfim, Penny encontrou um simulacro de pergunta.
— O que... você vai fazer?
— O que fiz nas outras vezes. — A voz de Carmine era tranquila,
reconfortante; irracionalmente, aquele tom a reassegurou. — Mas em maior
grau. Prefiro não revelar os detalhes a você; eles podem incomodá-la e há
algumas coisas que nós... consideramos desconfortáveis de expor àqueles
que não são da nossa espécie.
David. Vampiro. — Você vai machucá-lo?
— Nem um pouco. Eu garanto.
Meu marido. Então, Penny encarou a pergunta que ela realmente queria
fazer; a única que importava.
— Ele vai... morrer...?
Ela achou que Carmine poderia se desviar dessa, possivelmente por
delicadeza ou gentileza, ou por razões mais obscuras. Ela não o fez.
Respondeu de forma tão casual como se estivesse se referindo a um motor
de carro.
— Tecnicamente, sim. Ele vai apagar... ou seja, não vai respirar... por
cerca de doze horas; então, vai despertar e... — Ela espalmou as mãos. — É
isso.
Isso. Meu marido. Um vampiro...
— Ah, um aviso — acrescentou Carmine. — Doze horas é um tempo
muito longo pra esperar. Provavelmente, pra você, mais vão parecer doze
dias. Pode facilmente entrar em pânico e achar que algo deu errado, mas
não pode ficar tentada a agir pelo medo. Se chamar um médico, uma
ambulância, qualquer coisa assim, as consequências serão desastrosas e não
estou exagerando. — Descansando no braço da poltrona, uma de suas mãos
se fechou, como se uma lembrança desagradável tivesse surgido. —
Imagine, Penny. Um homem morto que súbita e inexplicavelmente volta à
vida. Acredite, você não quer condenar David, nem você mesma, a encarar
os resultados disso!
Penny concordou. Ela se sentia pior a cada instante e, de repente, se viu
prestes a mudar de ideia, mandando Carmine sair da sala de sua casa como
havia feito no primeiro encontro.
— Receio — disse Carmine, suavemente —, que seja um pouco tarde
pra isso.
Penny a encarou.
— Como é que você...
— Sabe o que está pensando? Não se preocupe, não sou telepata.
Simplesmente está na sua cara... o pé atrás, as dúvidas de último minuto. É
sempre assim. Mas não pode mais desistir. David já foi muito longe e, se
parar agora, ele vai morrer mais cedo e mais desagradavelmente do que se
isso nunca tivesse começado. — Ela se levantou. — Então, com sua
permissão...
O rosto de Penny estava congelado feito o de uma escultura. Ela
assentiu com a cabeça uma vez, quase imperceptivelmente, e Carmine
deixou a sala em silêncio.
Ela demorou mais do que o de costume e, quando voltou, Penny não
estava em suas idas e vindas, e sim ainda imóvel na poltrona.
— Doze horas — disse Carmine. Suas faces estavam coradas e havia
um brilho excitado e ligeiramente febril em seus olhos. — Pelo bem dele e
pelo seu, por favor, lembre-se do que eu disse e não entre em pânico.
Penny não olhou para ela, mas revirou sua bolsa no chão, junto aos seus
pés.
— É melhor... — Ela engoliu em seco. O carro havia sido vendido, o
dinheiro estava no banco. Ela queria se livrar dele. — Você aceita um
cheque...?
— Claro. — Enquanto Penny o preenchia, com a mão trêmula, Carmine
vestiu o sobretudo.
— Obrigada — disse ela. O cheque desapareceu em uma pequena
carteira de couro preto. — Ah, e se precisar de mim novamente, é só ligar.
Está incluso, sem cobranças extras.
— Precisar de você? — Penny inquiriu rapidamente. — Pra quê?
— Bem... você pode já ter pensado em como fazer isso e, nesse caso,
sem problema — disse Carmine. — Mas caso não... — Seus ombros se
ergueram de um modo eloquente, mas levemente reticente. — Você pode
querer alguma ajuda quando tiver que dar a notícia do que fizemos com
David.
David sempre dormia feito uma pedra após o sexo e, quando Penny teve
certeza de que não o perturbaria, levantou-se e foi ao banheiro. Acendendo
a diminuta luz do espelho, encarou seu reflexo acima do lavatório. Numa
primeira impressão, ela estava muito bem para seus 43 anos, mas não estava
com humor para ser otimista e estudou a si mesma mais atenta e
criticamente. Indícios de pés de galinha nas bordas dos olhos. Linhas de
expressão se formando nos cantos da boca. O queixo perdendo a rigidez;
mal era perceptível ainda, mas ela conseguia ver. Ela não era loira natural,
então não sabia dizer se já tinha algum sinal de cabelos brancos. Homens
grisalhos são distintos; já as mulheres, são envelhecidas. Carmine não
estava grisalha, estava?
Carmine poderia ter um filho dele. Eu, não.
Não era como se ela quisesse filhos. Nunca quis, na verdade; não era do
tipo maternal. Mas o princípio da coisa era diferente, e a ideia de que
Carmine e David eram capazes de fazer o que ela e David não eram, a
deixava com muita, muita raiva. Também chegou à conclusão, partindo da
perspectiva desse momento de insatisfação, de que se podiam, talvez o
fizessem. De que, naquela noite, ela possivelmente havia testemunhado os
movimentos iniciais de um caso. Ou mesmo que não tivesse, o potencial
estava ali.
Potencialidade — ou inevitabilidade? Penny se inclinou para mais perto
do espelho, dissecando sua imagem. Mesmo que linhas de expressão e
cabelos grisalhos ainda não fossem dignos de preocupação, isso logo
mudaria. Pense daqui a três anos; cinco; dez. Em dez anos, ela teria 53. Em
quinze, os 60 estariam visíveis em seu horizonte, mas David ainda
continuaria exatamente como era naquela noite; jovial, enérgico, belo. O
que ele iria querer com uma esposa de 60 anos? Ela seria brochante, uma
vergonha, e aquele seria o fim, casamento acabado, adeus.
David não era idiota; ele devia ter considerado o futuro a longo prazo.
Talvez até o tenha discutido com Carmine, em alguma conversa particular
da qual Penny nada sabia? O estômago de Penny se embrulhou diante da
ideia de David conversando com Carmine; da possibilidade de ele
encontrando-se com Carmine quando ela não estava presente para bancar a
dama de companhia. Ou a vela. Lembre-se de como ele ficou olhando pra
ela esta noite. Eles já estão tendo um caso? Será que estão?
De repente, ela se sentiu conspurcada e com essa sensação veio a ânsia
avassaladora de voltar para o quarto, sacudir David até forçá-lo a acordar e
confrontá-lo com suas suspeitas. Ou de pegar o telefone, discar o número de
Carmine e exigir a verdade dela. Sim: essa era a melhor opção. Porque se
houvesse um caso, David mentiria, e ela estava vulnerável demais ao
charme dele para não acreditar. Se Carmine mentisse, ela não seria
enganada. Sim. A melhor opção. De manhã, quando David saísse para
trabalhar, ela faria isso.
Penny não fez a ligação planejada. Pois, pela manhã, havia tido uma
nova ideia; tão radical que, de início, ficou chocada e se escondeu
mentalmente dela, encontrando centenas de razões para considerá-la
totalmente fora de cogitação. Durante a primeira metade do dia, porém, as
razões de alguma forma pareceram se partir por vontade própria, até que, na
metade da tarde, haviam sumido, deixando em seu lugar o mesmo tipo de
empolgação apreensiva e palpitante que crianças sentem na véspera de
Natal, quando nada pode persuadi-las ao sono.
Faltando uma hora para David voltar para casa, ela reuniu coragem para
ligar para Carmine.
Carmine disse:
— Não. Sinto muito, Penny, mas simplesmente não vou fazer isso.
Com seu mundo desabando ao seu redor, Penny gritou no telefone:
— Por que não, maldita? Você estava bem ansiosa pra fazer isso por
David; qual a porcaria da diferença assim, de repente? — Ela tomou um
grande e doloroso fôlego. — Eu sei que são só negócios pra você, mas
arranjo o dinheiro, eu vou...
— Penny, me escute! Você já conversou com David a respeito disso?
— Não, não conversei!
— Então, acho que deveria. E também acho que sei o que ele vai dizer.
Penny perdeu as estribeiras.
— David não é a droga do meu dono... eu tomo minhas próprias
decisões! E como diabos você sabe o que ele diria? Você é telepata? Ou está
tão íntima do meu marido esses dias que o conhece melhor do que eu?
— Não estou dizendo isso. Só estou dizendo que...
— O que você está dizendo? Me diga a verdade, pelo menos uma vez!
— Estou tentando. As circunstâncias não são as mesmas, Penny. David
tinha uma doença terminal e o que fiz por ele foi a única alternativa à
morte. Seu caso não é igual. Você é saudável e tem uma vida longa e
normal pela frente. Não é... não seria certo transformá-la em...
— Mas eu quero! — Então, com um grande esforço, Penny retomou o
controle. Mantenha a calma. Converse com ela. — Olha, eu já pensei
bastante, não tenho dúvidas e posso arranjar o dinheiro. Você não quer mais
dez mil?
Carmine deu uma risadinha estranha.
— Dinheiro não é a questão. Poderia me oferecer meio milhão e eu
recusaria. O simples fato é que eu não faria isso por nenhuma viva alma, a
menos que haja de fato uma razão muito, muito boa.
— E a minha razão não é boa o bastante.
— Não. Sinceramente, não é.
— Entendo. Então, você fica feliz em conceder seu dom a David, mas
não pode considerar dá-lo a mim.
— Não é assim, Penny.
— Não, tenho certeza que não é. — Então, algo lhe ocorreu, e Penny se
perguntou como podia não ter pensado naquilo antes. — Bom, então não
vou incomodá-la de novo. Em vez disso, vou pedir pro meu marido fazer.
Afinal, ele é meu marido. Algo que você parece oportunamente esquecer,
quando lhe convém.
Houve uma pausa dura.
— O que quer dizer com isso?
— Descubra, Carmine. Você é inteligente o bastante. — Penny agora
estava completamente calma. Sim, David pode fazer isso. Que tola eu sou;
eu nem precisava ter feito essa ligação. Com frieza, ela acrescentou. —
Não vou mais tomar seu tempo. Ah, uma última coisa. Você não é bem-
vinda nesta casa de agora em diante.
Ela não desligou imediatamente; queria ouvir e saborear a reação de
Carmine. Houve um silêncio curto. Então, ela disse:
— Mensagem recebida. Mas, antes que se vá, é justo que eu lhe diga
que David não pode ajudá-la. Mesmo que ele concordasse em fazê-lo... o
que, sinceramente, eu duvido... ele não possui essa habilidade. Só aqueles
que nascem no clube, como você poderia dizer, podem iniciar novos
membros. Adeus, Penny. Acho que sinto muitíssimo por você.
Foi Carmine quem desligou.
Penny não contou a David sobre a ligação e não pediu a ele para fazer o
que ela queria. Em vez disso, guardou em segredo a lembrança da conversa,
repassando cada detalhe até que ela supurou feito uma ferida que não
cicatrizava. David não pode. Seria verdade ou Carmine mentiu por razões
próprias? Duvido que ele concorde. Como ela sabia com o que David
concordaria ou não? Eles discutiram aquilo? Quantas vezes? Com quanta
intimidade? Sua razão não é boa o suficiente. Carmine Smith, vulgo Deus.
Bom, a razão era óbvia, não era? Esposas atrapalham casos, e a última coisa
que Carmine e David poderiam querer seria que Penny entrasse para o
clube, como Carmine apontou. Penny seria uma pedra no sapato deles.
Penny seria um maldito estorvo. Então, ela devia ser impedida de entrar,
não devia? Contanto que Penny permanecesse nas fileiras dos meros
mortais, Carmine e David só teriam que esperar mais alguns anos — nada,
para eles — até que Penny começasse a envelhecer seriamente, então
enfraquecesse, definhasse e, enfim, desaparecesse completamente do
cenário. Problema resolvido: até lá, eles podiam simplesmente manter seu
romance pelas costas dela.
Os pensamentos sombrios cobriram Penny a noite inteira, como uma
mortalha. David devia estar ciente daquilo, mas não fez comentário algum,
o que, para ela, só reforçava a culpa do marido. Ela recusou fazer sexo
naquela noite (atipicamente, ele não tentou persuadi-la), dormiu mal e,
quando era a hora de ele se levantar, permaneceu deitada e quieta, fingindo
que não havia acordado com o alarme. David se deixou enganar: vestiu-se
em silêncio e desceu as escadas para fazer o próprio café, como ela havia
começado a insistir que ele fizesse.
Daí, o telefone tocou. Era anormalmente cedo para qualquer um ligar e
Penny ergueu a cabeça do travesseiro. David atendeu na extensão da
cozinha, que ficava logo abaixo do quarto deles, então sua parte da
conversa podia ser ouvida claramente.
— David Blythe... Ah... Oi. Que surpresa... Não, não; tudo bem... O
quê? Quando...? Bom, eu não... Ah. Bom, sim, talvez devêssemos... certo;
12h45 fica bom pra você...? Certo, encontro você lá. — Click. Fim da
ligação.
Quando ele voltou lá para cima, depois de comer, Penny bocejou, se
espreguiçou e fez uma voz sonolenta.
— Quem era, no telefone?
David estava de costas para ela, colocando sua gravata. Não usava o
espelho; não fazia sentido.
— Já te contei daquele cliente novo, não contei?
— Não.
— Ah. Bom, era a secretária dele; só mudando o horário de uma
reunião; um estorvo do cacete; tinha um monte de outras coisas agendadas
pra hoje. — Ele virou e olhou para ela. — Você tá bem?
— Ótima. — Vá, pode ir. Tenho algo para descobrir e não quero você
por perto enquanto faço isso.
Ele saiu alguns minutos depois. Penny ouviu os sons do problemático
carro enfim dando a partida (uma lata-velha: todos nós sabemos o que
aconteceu com o carro decente, não sabemos?) e, assim que ele saiu, ela
pegou o telefone e pressionou a tecla de “chamar de volta”, para ver quem
realmente tinha ligado.
O número apresentado era local, mas não familiar. Poderia ser a suposta
secretária do cliente. Porém... Penny digitou o código que impediria que sua
própria chamada fosse rastreada, então discou o número. O tom de chamada
teve início.
Click. — Carmine Smith.
Penny desligou. Carmine. Não em seu escritório, mas, obviamente, em
sua casa. Bom, agora ela tinha todas as respostas. Cliente novo. Ah, claro.
— Seu canalha. Seu canalha, duas caras, mentiroso, adúltero e de
sangue-frio!
E esse, embora ela tenha se dado conta só algum tempo depois, foi o
momento que iniciou tudo.
A chuva deu a ela a vantagem do anonimato. Era mais fácil fazer hora
próximo a porta do café, escondida embaixo de um simples guarda-chuva
preto, fingindo que olhava as vitrines. A mais pura sorte armou o encontro
como se ele tivesse sido escrito; David chegou a pé e, quando ele chegava à
porta, um táxi se aproximou e Carmine saiu dele. Com o coração batendo
dolorosamente, Penny observou de esguelha enquanto eles se aproximavam
um do outro e viu Carmine se esticar para beijar seu marido. Não foi um
beijo fraternal e Penny não esperou nem mais um instante para se virar e,
despercebida e silenciosamente, ir embora.
Ela, então, não viu a reação de David ao beijo; não o viu pousar as mãos
nos braços de Carmine e afastá-la gentilmente. Carmine hesitou,
escrutinando o rosto dele, e o que ela viu mudou sua expressão. Um leve
sorriso, um dar de ombros meio em tom de desculpa. Então, eles entraram
juntos no café.
Ele não tinha intenção de dizer uma palavra a Penny sobre aquilo, mas,
quando entrou em casa e viu seu rosto crispado e sua postura tensa, quis
melhorar o humor dela. Ele a beijou (ela retribuiu formalmente) e disse:
— Tenho uma surpresa pra você.
— Ah, é? — Penny olhou para ele em dúvida, desejando ter raiva pelo
que estava fazendo com ela.
— Ã-hã. Você vai descobrir o que é às oito horas. Quando Carmine
chegar.
— Carmine? — Ela o encarou, seus olhos brilhando em descrença e
ultraje, mas David já estava subindo as escadas e não viu a mudança.
— Isso mesmo. Não se preocupe com a comida: ela não vai jantar
conosco. Mas comprei um pouco de vinho; se abrir agora, ele pode respirar
por uma ou duas horas. Vou só tomar um banho rápido e me trocar.
Sua voz foi sumindo escada acima e Penny ficou imóvel na porta da
sala de estar. Ela não havia absorvido suas palavras exatas; não as havia
escutado. Durante toda a tarde, ela estivera se preparando para o grande
confronto, quando jogaria nele tudo que tinha visto naquele dia como uma
manopla e o desafiaria a negá-lo. Agora, todos os seus planos haviam sido
lançados ao caos; ele havia se antecipado a ela e roubado sua vantagem.
Carmine estava indo até lá. Ele a havia convidado, como se não houvesse
nada entre eles, nada a esconder, nada acontecendo. Que “surpresa” haviam
armado entre eles para apaziguá-la, para despistá-la? Eles deviam achar que
ela era uma idiota, uma imbecil, para se deixar levar pelos jogos deles!
Lá em cima, no quarto, David cantarolava enquanto se despia. Ele tinha
uma bela voz de barítono, mas agora ela caía muito mal aos ouvidos de
Penny. Idiota. Tapada. Subestimada, usada, zombada... uma fúria enorme e
incontrolável cresceu dentro dela feito um maremoto e, embora uma
pequena parte de seu cérebro a tivesse avisado que aquilo era um tipo de
loucura, a outra parte a recebeu bem, pois era melhor, muito melhor, do que
a dor da constante traição, e não fez nenhum esforço para contê-la.
Contê-la. Penny, enfim, se moveu. Atravessou o corredor até a cozinha.
Lá em cima, barulho de passos; David agora estava no banheiro. O som
tênue do chuveiro ligado. Ele parou de cantar. Nunca mais quero ouvi-lo
cantar.
Ela abriu aleatoriamente uma das gavetas da cozinha, olhou para dentro,
fechou-a. Sua mente não estava funcionando corretamente; aquilo era a
raiva, bloqueando a lógica, bloqueando o raciocínio eficiente e deixando-a
apenas com um nível robótico de reflexos semiconscientes para impeli-la.
Segunda gaveta. Não, nada ali. Terceira.
Ah...
Na verdade... não precisa ser uma estaca. Qualquer coisa serve,
contanto que... perfure o bastante. Palavras da própria Carmine. Sua filha
havia morrido daquele modo, pega num — como Carmine havia destacado?
“Um erro tático”, era isso.
Descoberta, desmascarada em sua verdadeira natureza e sumariamente
executada sem juiz, júri ou defensor à vida. Deve ter acontecido há muito
tempo, é claro. Um século, dois: Carmine era recatada com relação a sua
idade, então não havia posto uma data no ocorrido. O costume era diferente
na época. Este era o mundo moderno, uma era racional. As pessoas não
faziam mais essas coisas. Faziam?
Contanto que perfure o bastante.
Penny pegou na gaveta a faca de cozinha com a lâmina de vinte
centímetros, tirou-a de sua bainha de plástico e pôs-se a pesá-la e equilibrá-
la gentilmente na palma da mão.
Carmine se atrasou quinze minutos, mas não importava. Penny ouviu
um carro se aproximar e desacelerar, então, se acomodou mais em sua
posição, com as pernas cruzadas no chão do corredor. Carmine levaria um
ou dois minutos para estacionar. O espaço sempre era raro à noite, quando
mais e mais pessoas chegavam em casa e se apertavam em suas vagas
diminutas. Sim; lá vai ela. Ré, ré. Parece que ela não sabe o tamanho do
próprio carro. Acho que não vou lá fora ajudá-la. Acho que não seria uma
boa ideia.
A mancha no carpete estava aumentando. Suas mãos e braços ainda
pingavam, provavelmente de quando ela tinha enfiado seu punho fechado
no peito dele, para ter certeza absoluta. Engraçado; ela era tão melindrosa
em relação à carne vermelha, mas naquela noite, não tinha ficado nauseada.
Ainda não estava, apesar de a coisa toda ter sido muito mais espetaculosa
do que antecipara. Penny deu uma risadinha. Os cineastas não sabiam da
missa a metade. As marcas poderiam sair das escadas e do carpete do
corredor, mas não havia chance de erradicar a bagunça lá em cima.
Banheiro, quarto — seu primeiro ataque não havia sido limpo (Ha! Piada!),
então David tinha conseguido chegar até o banheiro antes da dor e choque o
derrubarem e ela ter a chance de terminar tudo adequadamente. O coração é
mesmo uma bomba eficiente, não é? Não tinha me dado conta que duraria
tanto tempo.
Lá fora, o barulho de ré, finalmente, cessou. Agora passos, o clique de
saltos elegantes se aproximando do portão da frente. Penny deu mais uma
risada e, dessa vez, teve certa dificuldade em parar. Que mulher tola. Se
controla. Não tem do que rir.
Ao pensar nisso, cobriu a boca com uma mão manchada e bufou feito
um cavalo. Seu rosto estava besuntado quando, enfim, se controlou e tirou a
mão da boca, mas, de qualquer modo, ela não estava ciente disso e não teria
dado a mínima. Vamos lá, passos. Estou ouvindo você. Atravessando o
caminho. Olá, Carmine. Entre. Estava lhe esperando e estou totalmente
pronta.
Uma silhueta se assomou vagamente pelo painel de vidro fosco na porta
e a campainha tocou, só uma vez, recatadamente.
Vaca. Duas caras. Adúltera. Traidora. Tornou meu marido imortal, é?
Bom, pois ele não é mais. Talvez eu deixe você vê-lo. Mas acho que é
melhor não. É mais seguro. Afinal, não quero perder o elemento surpresa.
Penny se levantou e começou a sorrir. Quando ela passou, o espelho do
corredor refletiu uma visão demoníaca de vermelho sanguinolento e branco
mortal, com olhos que queimaram, riram e tornaram a queimar. Suas mãos
também pareciam estar queimando, mas não importava, assim como o
atraso de Carmine não importava. O sorriso em seu rosto agora estava fixo,
como se nada pudesse apagá-lo, e sua mão direita se fechou mais
firmemente no cabo da faca escarlate às suas costas, enquanto a mão
esquerda se estendia para abrir a porta da frente.
A CONSEQUÊNCIA
Janet Berliner
Devora, filha de Rose e Meyer ben Joseph, nunca mais falou sobre os
dois homens ou mesmo do filho do servo, concebido naquela Páscoa
durante a época de suas regras, que crescia em seu ventre. Ela se tornava
cada vez mais irritadiça. Cada vez que passava por um espelho, ele era
manchado por gotículas de sangue e ela era humilhada diante de seu pai, o
único homem restante da família. Logo, ela deixou de obedecer a ele ou a
qualquer outro homem. Como se desejasse morrer durante o parto, ela
preparou chalás16 e deliberadamente deixou de tirar uma parte da massa e
dar essa porção a um sacerdote como dízimo.
Meyer não gostava do comportamento da filha, mas o aceitava como
parte das mudanças trazidas pela gestação, um processo que ele não
pretendia fingir entender. Rose estava mais assustada que aborrecida.
Embora fosse a palavra de Deus e de Alá que seus seguidores crescessem e
se multiplicassem, também era a palavra Dele que nenhuma criança fosse
concebida durante o niddah — a menstruação — e por uma boa razão.
Ela temia pela vida de sua filha e tremia ao pensar no neto, temendo que
a criança — concebida em sangue — fosse reivindicada pela rainha dos
demônios, Lilith.
A criança, uma menina, cresceu forte no ventre da mãe, Devora. Como
todos os fetos crescendo na totalidade de sua herança, este viu a história de
seu povo à luz de uma vela que queimava no ventre, um brilho branco que
permitia que ela visse o início e o fim do universo.
Dentro do ventre, um anjo tomava conta dela, lhe ensinando o Torá17;
fora do ventre, Lilith — subjugada pela lembrança de seu próprio
casamento infeliz e sem filhos — observava o anjo e fervia de inveja pela
maternidade de Devora. Ela deu tempo ao tempo, sorrindo malignamente
enquanto Rose fazia um amuleto a partir do Sefer Raziel 18 para proteger a
mãe e a criança após o nascimento, e pendurava uma abundância de
amuletos pelas paredes e no leito do parto para desencorajar a rainha
demoníaca de reivindicar a criança.
Logo antes do nascimento, quando — assim como foi escrito — o anjo
se preparou para tocar a criança levemente em seu lábio superior, para que a
fenda naquele lábio pudesse ser formada e ela esquecesse tudo que havia
aprendido, Lilith interferiu. Extinguindo a luz no útero, ela empurrou a
criança para o canal do parto.
Naquele momento, a alma de Devora deixou seu corpo terreno. Naquele
momento, Marisa nasceu. Ela emergiu do ventre da mãe com uma
consciência coletiva e uma arrogância que, combinadas com a falha em seu
rosto, a distinguiu das outras crianças em Mea Shearim.
Ela estava na rua chamada Morte, uma das ruas estreitas e com
calçamento de pedras delimitada em cada lateral por casas pintadas de um
branco ofuscante. O nome da rua estava pintado em azul num azulejo
colocado em uma das casas: MUERTE.
A garota estivera chorando. Estava suja, seu rosto grudento de
imundície e lágrimas. Era hora da siesta e ela estava sozinha na rua
tranquila, mas sabia que não estaria só por muito tempo. E que eles não
podiam achá-la. Ela sabia que tinha que deixar a cidade por segurança, mas
a ideia de perambular sozinha pelo interior a amedrontava tanto quanto a
ideia de permanecer ali, então estava num impasse, incapaz de agir.
Se a encontrassem, eles se vingariam dela, embora ela nada tivesse
feito, tendo sido inocentemente envolvida. Ela pensou no mês anterior, na
doença que se disseminou pela cidade, nas mortes — corpos encontrados
pelas ruas, pálidos defuntos com a inconfundível marca em seus pescoços
— e no medo, no terror crescente.
Sua mãe havia começado a passar a noite toda fora voltando pálida e
exausta ao amanhecer para cair em um sono pesado. Mas, enquanto dormia,
ela sorria; e a garota, junto ao travesseiro, acariciando o cabelo embaraçado
dela, sentia as palavras do povo da cidade se intrometendo, indesejadas, em
sua mente. Era verdade o que eles diziam, que ela se imiscuíra com o
demônio? Que sua mãe, com seu amante, mergulhava pela noite na forma
de morcego, buscando viajantes noturnos incautos, para emboscá-los e
beber seu sangue? Ela começou a ter medo da mãe, embora ainda a amasse,
e observou por meio de olhos semicerrados sua progenitora se esgueirar
todas as noites. Enfim, uma noite terminou sem trazer sua mãe de volta para
casa e a garota havia estado sozinha desde então.
Ela vagava, sem saber para onde ir, faminta e sedenta, mas assustada
demais para bater em alguma porta e pedir vinho ou abrigo. As horas
passaram e, conforme a escuridão caía, as portas começaram a se fechar e o
povo corria apressado em pares ou trios. Antes, as ruas ficavam tão cheias
de lanternas quanto um prado no verão se enche de libélulas, mas agora
havia um monstro à solta.
A lua subiu, concedendo-lhe luz, e ela, enfim, chegou a uma pequena
praça com uma fonte em seu centro. Mas a fonte estava morta e seca e ela
se recostou nela, chorando de frustração até estar cansada demais para
continuar a chorar.
Algo a fez olhar para cima, alguma sensação de perigo. A lua estava
alta. Um homem estava de pé em uma das quatro entradas da praça, coberto
pela dobras de uma capa que o envolvia totalmente. As pontas de suas botas
reluziam, assim como seus olhos, dois pontos de luz sob seu chapéu
desaprumado.
Ela se manteve inerte, esperando que ele não a tivesse notado nas
sombras.
— Fillha — disse ele, numa voz como folhas secas ao vento.
Um espasmo involuntário.
— Minha filha querida. — Ele deu um passo adiante.
Ela correu sem nunca olhar para trás, soluços profundos em sua
garganta enquanto descia por uma rua após a outra, perigosamente
amedrontada de estar correndo em círculos e acabar voltando à praça e
encontrá-lo ali... Ela correu. Então, desceu uma rua que não deveria ter
tomado, um beco. Ela se virou para escapar e deparou-se com ele ali, em
seu caminho.
Ela estava tensa. As folhas secas farfalharam em sua garganta conforme
ele se aproximava. Seus braços e sua capa se ergueram como se estivessem
unidos, como se ele estivesse encoberto por asas enormes com as quais
envolveria eles dois. Seus lábios se abriram; ela ouvia a respiração dele,
podia ver o brilho de seus dentes. Ela tombou.
Glenda abriu os olhos. O quarto estava vazio e a luz do sol caía morna
pelos ladrilhos vermelhos e paredes brancas do quarto. Tudo agora estava
sólido e claro para ela; a febre devia ter passado. As coisas possuíam bordas
de diamante, com texturas e uma solidez que ela nunca havia notado.
Debbie entrou, vinda da sacada, parecendo sobressaltada por ver Glenda
sentada.
— Ora! Como se sente? Você nos deixou bem preocupados.
— “Nos”?
— Roger, o canadense do fim do corredor. Ele foi procurar um médico.
— Não preciso de médico. Não te disse?
— Sim, logo antes de desmaiar. Fica deitada, pode ser? Vai com calma.
Como se sente?
— Bem. Excelente. Nunca estive melhor.
— Bom, só fique na cama. Quer beber alguma coisa?
— Não, obrigada. — Ela se recostou.
O médico não achou nada de errado em Glenda, embora tenha ficado
intrigado com as marcas em seu pescoço. Quando seu interrogatório
começou a incomodá-la, ela fingiu não compreender seu inglês, que era na
verdade bem adequado, e puxou o lençol por sobre a cabeça, reclamando
que a luz fazia seus olhos doerem e que estava muito cansada.
Glenda foi muito determinada, muito persuasiva e, enfim, foi
acomodada em um 747 com destino a Nova York. Debbie — pobre e
confusa Debbie — permaneceu na Espanha, agora viajando com o
canadense e os amigos dele.
— Devia pelo menos mandar um telegrama pra sua mãe, então —
Debbie havia dito, mas Glenda balançou a cabeça, sorrindo.
— Vou fazer uma surpresa pra ela... eu pego um táxi.
Steve estaria com sua mãe, ela sabia. Seria de manhã cedo quando
chegasse e eles ainda não estariam acordados, e sim dormindo docemente.
Estariam dormindo nos braços um do outro, sem esperá-la.
Glenda sorriu para o negrume além de sua janela e tocou seu anel de
prata. Ela o tirou e brincou com ele, traçando o “S” com o dedo. “S” de
Steve, ela pensou. E de Sevilha. Ela subitamente pôs o anel entre os dedos e
o repuxou, distorcendo a forma do “S” e forçando-a até que, por fim, o
desenho lembrasse dois chifres curvados. Então, ela o segurou e fechou a
mão firmemente sobre ele, até o sangue brotar.
UMA QUESTÃO DE
PATROCÍNIO
Uma história de Saint-Germain
Chelsea Quinn Yarbro
Chelsea Quinn Yarbro é escritora e taróloga profissional, cujo
primeiro conto foi publicado em 1969 na revista If. Escritora em
tempo integral desde o ano seguinte, ela vendeu mais de 70
romances e vários contos dos mais diversos gêneros. Entre seus
livros, estão as histórias de lobisomem The Godforsaken e
Beastnights; a série semificcional de ocultismo Messages from
Michael, More Messages from Michael, Michael’s People e Michael
for the Milennium; e as adaptações literárias dos filmes Os mortos-
vivos e Delírios Mortais. A trilogia de Yarbro Sisters of the Night
(Kelene: The Angry Angel, Fenice: The Soul of an Angel e Zhameni:
The Angel of Death) conta as histórias das três noivas mortas-vivas
de Drácula. Infelizmente, o último volume ainda não foi publicado,
com os direitos retidos pela sua agência literária.
Ela é mais conhecida por sua série de romances históricos de
horror protagonizados pelo vampiro byroniano Conde de Saint-
Germain, vagamente inspirado no aristocrata de mesmo nome do
século XVIII. O primeiro livro do ciclo, Hotel Transylvania: A
Novel of Forbidden Love, foi publicado em 1978. Até hoje,
seguiram-se a ele quase vinte continuações. Uma sequência
derivada, protagonizada por Atta Olivia Clemens, amante de Saint-
Germain, compreende A Flame in Byzantium, Crusader’s Torch e A
Candle for D’Artagnan, enquanto Out of the House of Life e In the
Face of Death são protagonizados por Madeline de Montalia, a
imortal amada de Saint-Germain.
Os contos da autora foram reunidos em Cautionary Tales, Signs
& Portents, The Vampire Stories of Chelsea Quinn Yarbro e
Apprehensions Other Delusions; ela também coeditou as antologias
Two Views of Wonder (com Thomas N. Scortia) e Strangers in the
Night (com Anne Stuart e Maggie Shayne).
“Quando um editor me procurou para tratar de uma coleção de
edições limitadas de meus contos de vampiros, ele me perguntou se
eu faria uma história para esse volume em específico”, recorda
Yarbro. “Ele disse que gostaria que fosse uma história de Saint-
Germain e, se possível, que tivesse alguma referência ao Drácula.
Na hora, eu disse que sim com relação a Saint-Germain, mas que
duvidava de que pudesse incluir também o Drácula, já que os
conceitos dos dois vampiros eram totalmente diferentes e não
tinham quase nada em comum, além da Transilvânia.”
“Brincando com as possibilidades, eu, enfim, topei com Henry
Irving, o patrão de Bram Stoker. Dei uma olhada em algumas
referências a respeito deles, esperando achar um momento em que
pudesse introduzir Saint-Germain em sua vida. O início de sua
carreira me pareceu mais atrativo do que quando ele já estava bem
estabelecido, assim como providenciava um elo indireto com
Stoker, tornando Saint-Germain alguém sobre quem Stoker poderia
vir a ouvir falar, mas nunca conhecer.”
“Esta história foi o resultado disso...”
LÁ FORA, ESTAVA frio e úmido; lá dentro, estava abafado e quente
demais. Os escreventes do escritório no empório do mercador bocejavam
conforme a tarde virava noite em um outono precoce naquele novembro.
— Trate de trancar a porta, John Henry — disse o mais antigo dos
escreventes para o mais jovem, exercendo seu privilégio. — Ninguém vai
entrar a essa hora.
John Henry Brodribb levantou de sua banqueta e fez uma mesura para o
escrevente mais velho com um floreio que divertiu e irritou os outros
funcionários; John Henry era conhecido por suas maneiras teatrais e
opulentas. Ele ajustou o tom de sua voz para projetá-la.
— O que desejar, Sr. Tubbs, fico honrado em realizar para o senhor. —
Seu sotaque era uma curiosa mistura das escolas públicas de Londres com
uma amplitude que podia ser de Devon ou de Cornwall. Tinha a cabeça
alongada e era esbelto, com os últimos vestígios da juventude; estava a três
meses de seu décimo oitavo aniversário.
Antes que pudesse chegar à porta, ela se abriu subitamente e um homem
numa capa preta, com capuz, entrou na loja, parecendo um visitante de
outras eras; um monge da Idade Média, talvez, ou uma aparição da Dinastia
Plantageneta, em desaprovação aos seus primos.
— Boa tarde. O Sr. Lamkin está disponível? — ele perguntou com uma
voz agradável e exótica, tomando John Henry num surpreso sobressalto em
sua caminhada. Havia o indício de um brilho em olhos negros no interior
das sombras do capuz.
— Ele está esperando o senhor? — perguntou John Henry, recuperando-
se habilmente e fazendo seu melhor para igualar seu estilo ao do homem.
— Sim, mas não necessariamente a esta hora — disse o estranho. —
Acabei de chegar em Londres, o senhor entende. — Ele jogou o capuz para
trás, revelando um semblante atraente e irregular, fluido e de sobrancelhas
finas, embora fora de moda por estar completamente barbeado; seu cabelo
era escuro e ondulado o bastante para compensar sua falta de costeletas ou
bigode. Embora fosse um pouco menor do que a altura média, tinha uma
presença dominante, independentemente do quão amável era sua conduta;
ela se originava em seus olhos escuros e cativantes.
— O Sr. Lamkin já encerrou o dia — disse John Henry, passando os
olhos pela porta da sala do homem que cuidava dos negócios da firma em
além-mar. — Não estará de volta até a próxima terça-feira. Está a caminho
de Southampton, para inspecionar a chegada de um carregamento de
musseline.
— Vindo do Egito ou da América? — perguntou o estrangeiro com
curiosidade suficiente para exigir uma resposta.
— Da Amér... — começou John Henry, apenas para ser interrompido.
O Sr. Tubbs, o escrevente sênior, interveio, se desempoleirando de sua
banqueta e precipitando-se em direção ao recém-chegado, preparado para se
encarregar do cavalheiro desconhecido.
— Eu sou Parvia Tubbs, o escrevente sênior; boa tarde. Posso ajudá-lo
de alguma forma, senhor...? — ele esperou que o estrangeiro lhe dissesse
seu nome.
— Ragoczy — ele respondeu. — Conde Ferenc Ragoczy, de Saint...
John Henry cortou-o com entusiasmo:
— Ragoczy! De praticamente todo lugar. — Seus olhos se iluminaram e
ele estendeu uma das mãos. — Estive fazendo as cópias de suas contas,
senhor, e permita-me dizer que é o cavalheiro mais viajado de todos aqueles
que compram conosco no estrangeiro. O senhor tem propriedades na
Bavária, em São Petersburgo, na Christiania, na Holanda, na Itália, em
Praga, em...
O Sr. Tubbs deteve essa catalogação.
— Estou certo de que o Sr. Ragoczy não deseja ter seus assuntos
divulgados ao léu, John Henry.
O escrevente mais novo baixou os olhos e se conteve.
— Não, Sr. Tubbs — ele disse.
Ragoczy se apiedou dele.
— É bom saber que ao menos um entre seus empregados tem meus
interesses em conta. — Seu sorriso foi rápido e unilateral, capturando a
atenção de John Henry quando Ragoczy se virou na direção dele,
encorajando-o. — Onde mais tenho imóveis? Sabe me dizer?
Agora, John Henry hesitou, incomodado pelo olhar furioso e velado do
Sr. Tubbs.
— Na... na Hungria. — Ele se recompôs e continuou. — Há dois
endereços na Hungria, parando pra pensar; um em Buda e um numa área
remota do setor oriental. Nos Cárpatos. Esse lugar é na Hungria, não é?
— Tecnicamente sim, no presente momento — ele respondeu e olhou
para cima quando o relógio do empório bateu meia hora. — Embora seja
mais perto de Bucareste do que de Budapeste. Saint-Germain está na atual
fronteira da Hungria e da Romênia, mas esse nem sempre foi o caso. É um
estado bastante antigo. — Ragoczy caiu em silêncio.
Após uma pausa constrangedora, o Sr. Tubbs disse:
— Isso é tudo que pode dizer ao Sr. Ragoczy, John Henry? É você quem
faz as cópias da contabilidade dele. Mostre a ele que não é nenhum lerdo.
Inflamado por essa reprimenda, John Henry aprumou seus angulosos
ombros e continuou.
— O senhor conde tem propriedades em Moscou, no Egito, em Creta,
na Pérsia, no Marrocos, na Espanha, na Polônia, na Armênia, no Canadá e
na América do Sul: no Peru, se bem me lembro.
— Sim, e também no México. — Ele assentiu com a cabeça, em
aprovação.
— O senhor também transferiu bens para a China e para a Índia, de
acordo com nossos registros, nos últimos 30 anos. Não vi nenhum registro
anterior a essa época. O início do livro contábil data de 31 anos atrás. —
Essa última foi a tentativa mais determinada de John Henry de mostrar seu
domínio daquilo que havia registrado.
— Você mantém excelentes registros — disse Ragoczy.
— Fazê-lo é uma necessidade dos mercadores, ou não duram muito nos
negócios — disse o Sr. Tubbs oficiosamente.
Eles agora tinham a atenção dos outros quatro escreventes e John Henry
aproveitou ao máximo a oportunidade.
— Se quiser inspecionar o livro contábil, conde, seria um prazer
mostrá-lo ao senhor.
O Sr. Tubbs olhou com desconfiança.
— John Henry! — censurou ele o escrevente mais jovem. — Isso é o Sr.
Lamkin quem deve fazer.
— Bom, mas ele está fora, não está? — retrucou John Henry com
demonstração de respeito. — Tenho os registros em minha mesa. Estive
copiando-os para o Sr. Lamkin, a pedido dele, é claro. Uma vez que o conde
Ragoczy está aqui, seria pragmático mostrar a ele o que nossos registros
apontam, em vez de solicitar que ele volte quando o Sr. Lamkin estiver
aqui.
— Já é tarde; o Sr. Ragoczy teria que voltar pela manhã, de todo modo,
ou em outra hora mais adequada. — O Sr. Tubbs fitou consternado o
escrevente mais jovem, então virou-se para Ragoczy com um gesto
obsequioso. — É uma infelicidade que tenha vindo a esta hora. Não
queremos ofender, mas encerraremos o expediente do dia muito em breve.
A expressão de John Henry se avivou.
— Não me importo de ficar até mais tarde se isso facilitar as coisas para
o senhor, conde. — Ele tratou de enfatizar o título de Ragoczy, tanto para
sua própria satisfação quanto pelo desconforto que causava ao Sr. Tubbs. —
Se for conveniente.
— Uma oferta muito generosa, disso estou certo, John Henry — disse o
Sr. Tubbs, suas bochechas tornando-se malhadas pelo rubor, e seus modos,
mais rígidos e imperiosos. — Mas um homem como o Sr. Ragoczy deve ter
outras demandas em seu tempo. Ele nos informará de quando deseja revisar
suas contas.
Ragoczy dirigiu aos dois escreventes as boas graças de um olhar afável.
— Os planos que tenho para esta noite são apenas para mais tarde.
Tenho... um jantar marcado para as dez.
— Então está resolvido — disse John Henry antes que o Sr. Tubbs
pudesse falar. Ele indicou sua mesa. — Os livros contábeis do senhor são os
mais antigos da casa. — Seu olhar era especulativo. — Sua família deve ter
uma longa tradição nos negócios.
— Hmm — disse Ragoczy, a sugestão do divertimento em seus olhos
insondáveis. O Sr. Tubbs, ciente de que havia sido superado pelo mais
inexperiente dos escreventes, começou a hesitar. — Não é aceitável, John
Henry. Você não trabalha aqui há tempo suficiente nem para ter o direito de
trancar a porta. — Ele se encolheu quando olhou na direção de Ragoczy. —
Receio que teremos que combinar uma outra hora, Sr. Ragoczy.
Antes que John Henry pudesse verbalizar sua objeção, Ragoczy disse
suavemente:
— O senhor não se oporia a deixar uma chave comigo, não é? Tenho
feito negócios com esta firma há mais tempo do que o senhor é empregado
dela. Certamente, isso me torna digno de confiança, Sr. Tubbs. Eu a
devolverei amanhã, se for satisfatório para o senhor. — Ele falou de um
modo polido o bastante, mas era aparente que não aceitaria uma recusa. —
Aprecio sua preocupação e sua precaução, é claro.
Isso era mais oposição do que o Sr. Tubbs estava preparado para
enfrentar. Ele baixou a cabeça.
— Seria mais do que aceitável; vou providenciar uma chave para o
senhor imediatamente, Sr. Ragoczy — ele disse e se afastou, lançando um
único e raivoso olhar na direção de John Henry e do estranho encapuzado
de preto. John Henry nem notou a desaprovação de seu superior; ele
gesticulou para que Ragoczy o acompanhasse e se precipitou à sua mesa, o
rosto radiante de expectativa.
Henry estava tão absorvido por sua atuação que a resposta em voz alta o
desconcertou ainda mais por serem as palavras que havia dito em sua
mente.
— Meu São Francisco, que mudança deu-se aqui! — disse Ragoczy. Ele
estava bem debaixo da porta, sua capa se misturando às sombras. Olhando
ao redor como se temesse ter um público maior, John Henry disse:
— Não ouvi o senhor bater.
— Ragoczy ergueu sua chave.
— É claro — disse John Henry, seus modos agora desalentados. — O
senhor foi bem silencioso ao entrar.
— Você estava ocupado — disse Ragoczy, indicando o roteiro que John
Henry segurava.
— Isto — ele suspirou. — O senhor então sabe meu segredo. Suponho
que contará ao Sr. Tubbs.
— Por que deveria? — perguntou Ragoczy, tirando sua capa e
revelando trajes noturnos formais, incluindo uma cintilante faixa de seda
vermelha sobre seu ombro, com a Ordem de São Estêvão da Hungria
cravejada de diamantes, reluzindo nela. — O que Shakespeare tem a ver
com seu trabalho aqui?
— Eles me dispensariam se soubessem que estou estudando pra ser ator
— disse John Henry com uma candura direta, que foi tão inesperada para
ele quanto foi para Ragoczy.
— Por quê? — Ragoczy escolheu uma das cadeiras afastadas, virou-a
para ficar de frente para John Henry e se sentou. — Que razão eles teriam
para dispensá-lo?
— A atuação não é... uma profissão muito honrada — disse John Henry
em voz baixa.
— Era boa o bastante para Shakespeare e ele acabou como baronete. —
Ragoczy parecia levemente entretido. — Mas os elisabetanos não eram tão
melindrosos quanto vocês, ingleses modernos.
— Influência faz diferença — disse John Henry com um suspiro. — E
um escrevente no empório de um mercador tem pouco a esperar com
relação a progressos desse tipo.
— Dizem que o próprio Shakespeare começou no ramo dos açougues,
em Warwickshire. — Ele balançou a cabeça uma vez. — Ele fez seu
próprio progresso e você também pode. O que gostaria de fazer, Sr.
Brodribb? — perguntou Ragoczy enquanto se acomodava ainda mais. —
Pode me dizer sem medo. Eu guardarei sua confidência.
— Terminar esta noite, se pudermos — disse John Henry
imediatamente.
— Não — respondeu Ragoczy. — Com relação a sua atuação: o que
gostaria de fazer?
John Henry encarou Ragoczy, pensando que a resposta era óbvia.
— Ora, ser um ator, é claro. Interpretar Shakespeare bem para plateias
apreciativas. Apresentar novas peças meritosas. — Havia muito mais
naquilo, mas ele hesitou em enunciar aquelas intenções, pois isso poderia
trazer má sorte.
— Isso é tudo? — perguntou Ragoczy num tom brando.
— Não — admitiu John Henry.
— Estaria disposto a me contar sobre suas aspirações? — Ele perguntou
tão casualmente, mas com um olhar de aceitação que penetrou as reservas
de John Henry.
— Não pode contar a ninguém — ele advertiu Ragoczy, sua ousadia
prestes a abandoná-lo.
— Claro — disse Ragoczy com gravidade. Ele dirigiu a John Henry um
olhar de avaliação. — E como você principiaria sua carreira de ator? Tem
isso planejado?
Uma vez que esse assunto dominava a maioria dos sonhos de John
Henry desde que havia ido para Londres, oito anos antes, ele tinha uma
resposta; ao longo daquele tempo, havia chegado a um plano que tinha
certeza de que seria bem-sucedido, se ao menos pudesse conseguir os
fundos necessários para pô-lo em ação.
— Primeiro — ele disse, lançando-se com gosto ao seu planejamento
—, eu entraria para uma boa companhia amadora para atuar. Uma em que
eu possa obter a experiência básica e conhecer aqueles que conhecem
outros na profissão. Se eu pudesse pagar para interpretar um protagonista,
essa seria a melhor...
— Pagar para interpretar um protagonista? — Ragoczy interrompeu. —
Isso é comum?
— É, sim — disse John Henry, perdendo o foco. — Seria melhor pagar
por toda uma produção, mas isso já é esperar demais. — Ele pausou e
recuperou seu ímpeto interior. — Eu praticaria e tomaria lições de esgrima e
de outras habilidades. Assim que tivesse algumas críticas favoráveis e
fizesse alguns contatos, encontraria uma companhia itinerante,
provavelmente ao norte das Midlands, e me candidataria a papéis menores.
Desse modo, aprimoraria minha arte e teria a vantagem da experiência no
processo. Com o tempo, gostaria de voltar a Londres. E, um dia, gostaria de
ter minha própria companhia. — Essa última parte saiu num afluxo.
Ragoczy o estudou, então disse:
— E você está decorando Romeu como ponto de partida?
— Sim. Já decorei Brutus, Henrique V e estou trabalhando em Ângelo.
Mais adiante, vou decorar Macbeth. Não que eu esteja pronto para
interpretá-los, com minha idade. — Ele riu, autoconsciente. — Consigo
aparentar mais idade, mas ainda não tenho o treinamento para ser
convincente. Quando tento, passo da conta e os resultados são risíveis.
— Por isso, Romeu, uma vez que você é jovem — disse Ragoczy.
— Ah, sim — disse John Henry, seus olhos brilhando. — Mas estive
estudando as pessoas, tentando aprender suas características para que eu
possa usá-las num momento futuro. — Ele caminhou a passos largos no
ritmo pesado que o Sr. Tubbs empregava. — Este seria só um exemplo.
— Muito bem-feito — disse Ragoczy. — Você captou a pomposidade
obsequiosa dele.
John Henry baixou os olhos.
— Obrigado.
Ragoczy continuou a observá-lo em silêncio. Então, se pôs de pé.
— Bem, que tal devotarmos nossa atenção ao livro contábil? Quanto
antes terminarmos aqui, mais cedo você poderá retornar ao seu Romeu. —
Ele foi até a mesa de John Henry e passou os olhos pela página que tinha
especificado anteriormente.
— Quão ruim você acha que é?
Por mais difícil que fosse, John Henry pôs suas próprias ambições de
lado e deu sua atenção aos números na página.
— Eu teria que dizer, conde, que só na última década, mais de duas mil
libras foram... desviadas de suas contas. Entre isso e o que parece ser um
padrão constante de sobrepreços, o senhor está num prejuízo considerável.
— Ele se viu perguntando como deveria ser ter mais de três mil libras para
perder.
— E você não tem dúvida de que esse padrão que descobriu é
deliberado? — A voz de Ragoczy era leve, mas firme, e John Henry soube
que um dia ele a replicaria em um palco.
— Queria eu ter dúvidas — ele admitiu. — Mas, hoje, repassei todos os
registros das contas no livro contábil, não só os atuais, mas aqueles que já
remontam há algum tempo. O que me perturba é que o mesmo roubo vem
acontecendo há 30 anos, ou assim vim a suspeitar. Vou mostrar ao senhor
— ele prosseguiu, apresentando duas grandes e organizadas páginas de
resultados financeiros. — Isso foi o que pude descobrir hoje.
— Que enorme volume de trabalho você fez em meu favor — disse
Ragoczy, olhando para os ordenados lançamentos.
— É tanto por mim quanto pelo senhor — disse John Henry. — Quero o
nome da firma restaurado e ele não poderá sê-lo sem esses registros.
— Ninguém expôs a firma ainda — Ragoczy relembrou-o.
— Só de eu saber, já basta — disse John Henry, endireitando a postura.
— E já pôde determinar qual dos sócios de Londres é o culpado nessa
ponta? — Ragoczy passou os olhos rapidamente para John Henry, enquanto
estudava as páginas.
— Eu... eu não tenho certeza, embora o Sr. Lamkin esteja na melhor
posição para fazê-lo — ele disse. — Se o problema se originar nesta parte
da firma.
— Assim também penso eu — concordou Ragoczy, então, examinou os
números que John Henry havia fornecido a ele uma terceira vez. — Como
pode — ele ponderou em voz alta — que isso tenha se dado por tanto tempo
sem ninguém notar os erros? Você sabe?
John Henry tinha uma resposta para ele.
— Estive pensando sobre isso e suponho que seja porque seu livro
contábil não havia sido copiado até agora. O senhor não vem com
frequência a Londres e, quando vem, raramente nos solicita. Os
lançamentos foram feitos com grande correção e regularidade, e por um
membro sênior da firma, então não haveria razão pra duvidar do que fora
feito, a menos que suspeitasse desde o princípio. E, uma vez que os erros
não poderiam ser percebidos sem extensas comparações, imagino que seria
uma surpresa encontrá-los.
Ragoczy assentiu.
— Mas o que se abateu sobre eles para lhe darem o livro contábil para
copiar? Faz alguma ideia?
— É um livro fiscal velho. Sua família há muito faz negócios conosco,
ou assim suponho. — Ele baixou os olhos. — A conta está aqui há um
tempo bem longo. Mais de 30 anos, pelos lançamentos no livro, pois há
valores que foram trazidos de lançamentos anteriores, do que deve ter sido
um livro de registros mais antigo.
— É uma hipótese razoável, Sr. Brodribb — disse Ragoczy. — E
duvida que eu estivesse assinando documentos há 30 anos?
— Provavelmente não estava — disse John Henry. — Pois o senhor não
tem muito mais do que 40, a julgar por sua aparência. — Ele queria dizer
mais, mas não tinha firmeza para continuar.
— O que foi? — Ragoczy impeliu em voz neutra.
Dessa vez, John Henry achou difícil de responder.
— É só que... eu observo as pessoas atentamente. É o que preciso fazer
pra poder me tornar um bom ator. — Ele se recobrou e disse numa torrente:
— Eu notei algo em seus olhos. Eles não são como os outros olhos que já
vi, exceto, ocasionalmente, naqueles muito velhos, que mantiveram suas
forças e sua destreza.
Ragoczy assentiu.
— Sou mais velho do que aparento — ele disse, sem emoções óbvias.
— Os anos não se fazem notar naqueles de meu sangue.
John Henry fez um gesto nervoso, seu surto de confiança desertando-o.
— Achei que poderia ser... algo assim. Há um enfado da vida que... não
é tão fácil para estrangeiros... — Ele começou a hesitar com várias palavras
pela metade.
— Vamos voltar aos registros — sugeriu Ragoczy. — Há muito a
finalizar e gostaria de realizá-lo esta noite, se for possível.
— Mas o senhor deve... — John Henry interrompeu, indicando os
ornamentos de Ragoczy. Ele sorriu e balançou a cabeça.
— Eu vim de uma recepção; há um banquete sendo realizado neste
exato momento.
John Henry estava mais sobressaltado que nunca.
— Eu pensaria que o senhor preferiria comparecer ao banquete do que
revisar valores. É uma honra ser convidado para tais eventos. — Ele
conseguiu dar um rápido e excêntrico sorriso. — Certamente, o cardápio
em... uma cerimônia tão elegante é melhor do que aquilo que se pode
comprar no taberneiro local, e provavelmente há de ser isso que lhe restará,
se trabalharmos até muito mais tarde.
— Decerto é mais elaborado, mas minhas necessidades, nessa instância,
são simples — disse Ragoczy.
— Ah — disse John Henry, esperando insinuar que havia entendido o
que Ragoczy tinha dito, embora ele soubesse que não tinha.
— Quanta desconsideração a minha. Peço que desculpe pela minha
grosseria. Está com fome? — Ragoczy inquiriu subitamente. — Se estiver,
eu espero enquanto compra algo para comer.
— Não — disse John Henry rapidamente. — Fiz uma boa consoada na
hora do chá e vai me suprir muito bem. Quero continuar com nossos
registros.
— Vejamos os registros da Grécia — recomendou Ragoczy, abrindo a
página em questão. — Como você indicou, os lançamentos lá se iniciam em
1828 — ele completou enquanto passava o dedo pela segunda página do
livro contábil. — Parece que os primeiros poucos anos transcorreram sem
incidentes. Todos os lançamentos batem, pela aparência deles. Você não
concorda?
— Sua família comercializa especiarias há muito tempo, não é, conde?
A indicação aqui é de que sua conta com comerciantes de especiarias na
Arábia é bem antiga. E os lançamentos do Egito são de longa data —
comentou John Henry enquanto se permitia ser atraído novamente ao oásis
dos números.
— Sim — disse Ragoczy. Ele inspecionou as páginas atentamente e em
silêncio por vários minutos, então olhou para John Henry. — Percebo que o
escrevente sênior foi um tal Sr. Boulton por muitos anos.
— Ouvi dizer — disse John Henry, cautelosamente.
— E o Sr. Boulton tinha algum parentesco com o fundador? —
perguntou Ragoczy.
— É de meu entendimento que sim — disse John Henry, sua confiança
novamente aumentando. — Ele morreu há mais de vinte anos; ao menos foi
o que me disseram.
— Sim — disse Ragoczy. — E o tio do Sr. Tubbs tomou seu lugar. Um
tal Sr. Harbridge. Parece ser aqui onde os problemas começam.
— Então, o senhor acha que o Sr. Tubbs está ciente do que está
havendo? — perguntou John Henry, dando seu melhor para não ficar
chocado por essa suspeita.
— É possível. Ele certamente não estava ávido para me deixar revisar
essas contas, como há de se lembrar, o que, sob tais circunstâncias, é
significativo — disse Ragoczy. — Há quanto tempo ele é o escrevente
sênior?
— O Sr. Tubbs? Há cerca de quatro anos, acho. Quatro ou cinco. —
Olhou ao redor do escritório como se esperasse poder ser ouvido. — Ele foi
rapidamente promovido por intermédio das graças do tio, ou assim dizem
dois dos escreventes. — Ele limpou a garganta e continuou. — Ele já era o
sênior quando fui admitido aqui.
— Talvez os sócios esperassem que ele protegesse seus interesses e
talvez o tio dele o tenha promovido de modo a ocultar os desvios — disse
Ragoczy, seu rosto se tornando lúgubre. — Seja qual for o caso, receio que
terei que pôr fim a isso.
— Certamente deve — disse John Henry, espantado por Ragoczy
parecer tão relutante em se proteger de uma ladroagem. — Isso não pode
ser ignorado nem se permitir que continue. Se eles roubaram de você, pode
ser que haja outros que foram tão lamentavelmente...
— Sim — disse Ragoczy, interrompendo-o. — Sem dúvida, você tem
razão. — Ele olhou para os valores uma última vez. — Se disporia a fazer
uma cópia dessas duas páginas para mim? Mandarei meu servo pegá-las
com você amanhã, se for conveniente. Ele também devolverá a chave ao Sr.
Tubbs, com minhas desculpas por mantê-la tanto tempo. — Havia um
atributo nessas palavras que perturbaram John Henry.
— Farei como o senhor quiser, conde — ele disse, um arrepio
percorrendo sua espinha.
— É muita bondade sua — disse Ragoczy. — No todo, foi muito
interessante conhecê-lo, Sr. Brodribb.
— Obrigado — John Henry disse e suprimiu um tremor. Então, antes
que pudesse dominar a si mesmo, ele deixou escapar: — O senhor é o
Doutor Fausto? — Começando a se dar conta de que realmente havia
verbalizado sua apreensão em voz alta, ele deu um passo para trás, a
enormidade do que havia feito assentando-se nele; não conseguia pensar em
nada para dizer a fim de se desculpar suficientemente.
Ragoczy parecia levemente entretido.
— Não, Sr. Brodribb, não sou. Nem vou “de lá para cá na terra,
andando por ela de cima a baixo”, como dizem que faz Mefistófeles. — Ele
olhou cuidadosamente para John Henry. — Você provavelmente terá muito
sucesso na profissão que escolheu; tem um olho atento e uma natureza
perspicaz, o que deve levá-lo longe.
— Não tive intenção... foi... — John Henry hesitou.
— Nada tema — disse Ragoczy com uma risadinha irônica. — Ouvi
coisas piores no meu tempo.
— Quantos anos o senhor tem? — questionou John Henry, convencido
de que já havia ido longe demais para tentar escapar agora.
— Se eu contasse — disse Ragoczy com a maior das cortesias —, não
acreditaria em mim.
— Ah, acreditaria — disse John Henry, envolvido demais para ter
medo. Ele sabia que o terror viria depois, quando estivesse a salvo em sua
cama e sua imaginação tivesse as rédeas soltas.
— Acho que não — disse Ragoczy, encerrando o assunto.
— O senhor agora vai exigir algo de mim? Ordenar que eu me cale ou
encare um destino terrível?
Ragoczy empertigou a cabeça.
— Isto não é uma atuação. Não está interpretando um papel agora, Sr.
Brodribb. Confio em sua discrição e bom senso para manter para si mesmo
suas várias especulações.
— Ou sofrerei as consequências? — John Henry sabia que tinha ido
longe demais novamente e, pela segunda vez, não conseguiu formular uma
desculpa adequada.
— Não — disse Ragoczy em voz baixa, mas além de qualquer
controvérsia. — Não tem nada a temer de mim: dou minha palavra. — Ele
se afastou de John Henry e caminhou em direção ao fogo, então parou e
virou-se para ele, perguntando num tom diferente: — Diga-me: de quanto
precisaria para colocar em andamento seus planos quanto à atuação? Já
chegou a um valor para isso em todos os seus cálculos?
Tal mudança de assunto perturbou John Henry, mas ele deu seu melhor
para responder.
— Bem, eu precisaria de perucas, barbas e maquiagem, e todo o resto
disso; espadas e figurinos também. — Ele não precisava consultar as
páginas da caderneta que mantinha no bolso de seu colete. — Isso custaria
entre 40 e 50 libras ao todo. E, então, haveria o pagamento pelo papel
principal. Seriam mais 50, se eu fosse interpretar Romeu. — Ele se
iluminou ao dizer isso, mas seu entusiasmo foi desvanecendo à medida que
ouvia a si mesmo, pensando que seria impossível para ele acumular o
bastante para alcançar seus sonhos.
Ragoczy juntou as mãos pequenas e bem delineadas, pontas dos dedos
contra pontas dos dedos.
— Suponha — ele disse —, que eu invista em você uma parte do que
recuperar desta firma, pelos serviços que me prestou? Pelo que descobriu, o
montante deve ser considerável.
Mortificado, John Henry balançou a cabeça.
— Pareceria que fui subornado para mostrar coisas que o favorecessem,
ou ao menos isso poderia ser afirmado pelos sócios em um tribunal. E os
outros escreventes provavelmente pensariam muito mal de mim, porque sou
o mais novo deles. Os sócios podem até fazer uma acusação contra mim,
algo que a justiça poderia aceitar.
— Um espólio, então — disse Ragoczy, sem se intimidar pelos
protestos de John Henry. — Deve ter um parente em algum lugar que pode
lhe deixar uma herança. — John Henry suspirou.
— Por que alguém de minha família faria isso? Não que a maioria deles
tenha dez xelins para dar a quem quer que seja. E vindo imediatamente após
eu ajudá-lo, não seria um ardil muito útil, em todo caso. Alguém aqui
estaria propenso a questionar como a recebi.
— Escute-me — disse Ragoczy firmemente. — Suponha que daqui a
seis meses um... tio distante, digamos...? Deixe 100 libras para você. O
dinheiro seria entregue via procurador, no norte, e não haveria perguntas
que o comprometessem, não importa o que a justiça faça ou deixe de fazer
com os sócios daqui. Você então poderia bancar o início de sua carreira
teatral?
Por mais que ele não quisesse admitir, o coração de John Henry se
acelerou com essa ideia. Ele calculou o que significaria para ele ter o
dinheiro e pôs sua prudência de lado.
— Poderia funcionar, dizer que me foi deixado, se acontecesse mais
tarde. — Sua empolgação estava se avolumando e ele não conseguia conter
a satisfação que sentia.
— Seis meses, então. Meus procuradores de Londres deverão ter
tomado todas as providências necessárias para recuperar o que me é devido
nesse meio-tempo.
Ragoczy observou John Henry com interesse.
— As coisas ficarão desagradáveis para você aqui, quando minha
queixa contra a firma for peticionada? Pode haver envolvimento da polícia,
você entende.
— É possível que eles ponham a culpa em mim — disse John Henry. —
Não é segredo que estive fazendo as cópias de seu livro contábil. Haverão
de presumir que obteve a informação de mim.
— Mas não precisam saber que você descobriu o furto — disse
Ragoczy persuasivamente. — Posso contratar meus procuradores em
Londres para revisar os livros; posso solicitar uma abertura total da situação
de minha conta. Isso o pouparia do impacto da cólera dos sócios. Não gosto
de pensar que seria punido por ser um homem honesto, Sr. Brodribb.
— Quando eu deixar a empresa, não vai importar — disse John Henry.
— Você acha que não, mas vai — disse Ragoczy. — Não vai querer ser
perseguido por sussurros, dizendo que abusou da confiança de seu
empregador. Nem mesmo o teatro perdoa tais coisas, Sr. Brodribb. Rumores
são uma constante no mundo da atuação e você não quer começar nele com
a reputação manchada. Acredite.
John Henry não podia deixar de concordar. Ele percebeu que Ragoczy
não só era generoso, como mais versado do que ele suspeitara.
— Muito bem. Um parente distante pode ser inventado. Um tio. No
norte.
— Faria bem em mencionar que ouviu dizer que o sujeito está
adoentado e afastar qualquer sugestão de que pudesse se beneficiar de sua
morte — recomendou Ragoczy. — Dessa forma, quando expressar sua
admiração com a herança, nenhum dos escreventes ligará sua boa sorte ao
auxílio que me prestou.
Dando um tapa na própria coxa, John Henry se inflamou:
— Por tudo que é mais sagrado! O senhor deu com os meios exatos pra
fazer isso acontecer. — Ele riu em voz alta. — O senhor é um homem
astuto, conde, entende mesmo do riscado; um cachopo matreiro, como
diriam as classes baixas.
— Um cachopo matreiro; que expressão encantadora — disse Ragoczy
sardonicamente, suas finas sobrancelhas se erguendo. — Ainda assim, já fui
chamado de coisa pior. — Por um instante, uma desolação se abateu sobre
ele; ao notá-la, John Henry estremeceu. Ele começou a falar, tossiu, e tentou
de novo.
— Suponho que o senhor tenha aprendido, ao longo dos anos, a se
proteger. Por isso é tão ágil em fazer as sugestões que faz.
— Há alguma verdade nisso, sim — disse Ragoczy, os olhos sombrios e
enigmáticos assombrados. Com um gesto, ele afastou a tristeza que
ameaçava dominá-lo. — Mas, se eu disser mais alguma coisa, vai pensar
que acabou preso em um dos romances deploráveis da Sra. Radcliffe, ou de
Maturin.
— Melmoth, o Errante20? — perguntou John Henry, um pouco perplexo
por Ragoczy conhecer a obra.
Ragoczy não respondeu. Passou os olhos pelo livro contábil uma última
vez.
— Amanhã, um escrevente de meu procurador virá visitar o Sr. Tubbs.
Ele dirá que pedi para que meus negócios aqui fossem revisados. Ah, nada
tema. Exigirei o mesmo dos outros mercadores com quem tenho negócios.
Não farei distinção desta firma na atenção de meus procuradores. — Ele fez
uma rápida conferência na sala; a luz da lamparina dançava e faiscava nas
joias de sua Ordem. — Farei tudo que puder para que isso não pareça ser
um pedido incomum. Já que sou estrangeiro, estou certo de que o Sr. Tubbs
estará propenso a pensar o pior de mim por isso.
John Henry enrubesceu.
— Ele é um daqueles que pensa que Jesus Cristo falava inglês.
— Ele tem jeito de quem pensa assim — Ragoczy concordou. Ele parou
em frente a John Henry e estendeu a mão. — Então, está combinado.
— Sim, muito bem — disse John Henry quando sua mão grande se
fechou sobre a pequenina de Ragoczy. — Está combinado.
20. Melmoth the Wanderer, romance gótico do escritor irlandês Charles Robert Maturin, inédito no
Brasil. - N. da T.
HISAKO-SAN
Ingrid Pitt
23. Pigmento preto usado para maquiagem, de origem egípcia, que mistura o mineral malaquita com
carvão e cinzas. - N. da T.
CIDADES
ADORMECIDAS
Wendy Webb
— Então, ele aceita — disse Desmond e partiu para fazer sua mala e
pedir no bar uma tabela de horários. — Bom e velho Wildon; será
esplêndido vê-lo de novo.
Uma pequena e curiosa diligência, um tanto parecida com uma máquina
de banho, aguardava do lado de fora da Estação de Crittenden, e seu
condutor, um homenzinho moreno de rosto obtuso, com olhos
resplandecentes, disse:
— O senhor é amigo do Sr. Prior? — A seguir, enfiou-o na máquina de
banho e fechou-lhe a porta. Foi uma viagem bastante longa e menos
agradável do que teria sido numa carruagem aberta.
A última parte da jornada foi atravessando uma mata; então, veio um
adro, uma igreja e a máquina de banho virou em um portão sob pesadas
árvores, aproximando-se da fachada de uma casa branca com janelas
simples e emaciadas.
— Que lugar mais vibrante, ora, francamente! — disse Desmond a si
mesmo, enquanto tombava para fora da traseira da máquina de banho.
O condutor pôs sua mala na descolorida soleira e partiu. Desmond
puxou uma corrente enferrujada e uma ressonante campainha retiniu acima
de sua cabeça.
Ninguém foi até a porta e ele tocou-a novamente. Mais uma vez,
ninguém apareceu, mas ele ouviu uma janela se abrir sobre o alpendre.
Recuou até o cascalho e olhou para cima.
Um jovem de cabelos desgrenhados e olhos pálidos estava olhando para
fora. Não era Wildon, não era nada como Wildon. Ele nada falou, mas
parecia estar fazendo sinais; e os sinais pareciam dizer, Vá embora!
— Vim ver o Sr. Prior — disse Desmond. Suave e instantaneamente, a
janela se fechou.
— Seria isto um asilo para lunáticos onde por acaso vim parar? —
Desmond se perguntou e puxou de novo a corrente enferrujada.
Passos soaram no interior da casa, o som de botas contra a pedra.
Ferrolhos foram recuados, a porta se abriu e Desmond, um tanto afogueado
e um pouco agastado, viu-se olhando para um par de olhos bem escuros e
amigáveis, e uma voz muito agradável disse:
— Sr. Desmond, presumo eu? Queira entrar e permita que eu me
desculpe.
O falante apertou sua mão amigavelmente e ele se viu seguindo, por
uma passagem sinalizada, um homem de idade mais do que madura, bem-
vestido, belo, com um ar de competência e vivacidade que associamos
àqueles chamados de “um homem do mundo”. Ele abriu a porta e indicou o
caminho para uma sala feita de decadência, livros e couro.
— Queira sentar-se, Sr. Desmond.
Este deve ser o tio, suponho, pensou Desmond, enquanto se acomodava
às curvas perfeitas da poltrona surrada.
— Como está Wildon? — perguntou ele em voz alta. — Vai bem,
espero eu?
O outro olhou para Desmond.
— Perdão? — disse ele, em dúvida.
— Eu estava perguntando como está Wildon.
— Eu estou muito bem, obrigado — disse o outro homem, com certa
formalidade.
— Perdoe-me — era agora a vez de Desmond dizer — Não me dei
conta de que seu nome também pudesse ser Wildon. Quis dizer Wildon
Prior.
— Eu sou Wildon Prior — disse o outro. — E o senhor, presumo eu, é o
especialista da Sociedade de Física?
— Bom Deus, não! — disse Desmond. — Sou o amigo de Wildon Prior
e, é claro, deve haver dois Wildon Prior.
— O senhor enviou o telegrama? O senhor é o Sr. Desmond? A
Sociedade de Física estava para mandar um especialista e pensei que...
— Entendo — disse Desmond — e eu achei que o senhor era Wildon
Prior, um antigo amigo meu... um jovem — ele disse, e corou ligeiramente.
— Ora, deixe disso — disse Wildon Prior. — Sem dúvida, seu amigo se
trata de meu sobrinho. Ele sabia de sua vinda? Mas é claro que não. Estou
divagando. Porém, estou excepcionalmente feliz em vê-lo. O senhor há de
ficar, não? Se puder suportar ser hóspede de um velho. E escreverei esta
noite a Will, pedindo que ele se junte a nós.
— É extremamente bondoso de sua parte — assegurou-lhe Desmond.
— Seria uma felicidade ficar. Ver o nome de Wildon no jornal me deixou
extremamente satisfeito, pois... — E ali verteu-se a história de Elmstead, de
sua solidão e seu desapontamento. O Sr. Prior ouviu com o mais gentil dos
interesses.
— E o senhor não encontrou seus amigos? Que tristeza! Mas eles
escreverão a você. Claro, você deixou seu endereço?
— Por Júpiter, não deixei! — disse Desmond. — Mas posso escrever-
lhes. Ainda alcanço o despacho?
— Facilmente — garantiu-lhe o idoso. — Escreva suas cartas agora.
Meu criado as levará ao correio, então jantaremos e eu lhe contarei sobre o
fantasma.
Desmond escreveu suas cartas rapidamente e o Sr. Prior reapareceu logo
depois.
— Agora, vou levá-lo ao seu quarto — disse ele, juntando as cartas com
suas longas mãos brancas. — Vai apreciar um descanso. Jantar às oito.
Seus aposentos, assim como a sala, possuíam um agradável ar de luxo
decadente e conforto habitual.
— Espero que fique confortável — disse o anfitrião com uma cortês
solicitude. E Desmond tinha bastante certeza de que estaria.
A mesa fora posta para três. O homem moreno que havia conduzido
Desmond da estação estava atrás da cadeira do anfitrião, e uma figura saiu
das sombras além dos círculos amarelos das velas, em seus candelabros
prateados, em direção a Desmond e Prior.
— Meu assistente, o Sr. Verney — disse o anfitrião, e Desmond
estendeu sua mão ao toque flácido, úmido, do homem que parecia ter dito a
ele, da janela sobre o alpendre, Vá embora! Seria talvez o Sr. Prior um
médico que tinha “hóspedes pagantes” que eram, nas palavras de Desmond,
“um pouco aparvalhados”? Mas ele havia dito “assistente”.
— Pensei — disse Desmond apressadamente — que o senhor seria um
clérigo. A Reitoria, sabe... achei que Wildon, meu amigo Wildon, estava
hospedado com um tio que era clérigo.
— Oh, não — disse o Sr. Prior. — Eu alugo a Reitoria. O reitor acha
que é úmida. A igreja não está em uso, também. Não é considerada segura e
eles não podem arcar com a reforma. Claret para o Sr. Desmond, Lopez. —
E o homem moreno de rosto obtuso encheu a taça dele.
— Considero este local muito conveniente para meus experimentos.
Sou dado a bulir um pouco com química, Sr. Desmond, e o Verney aqui me
auxilia.
Verney murmurou algo que se pareceu com um “com muito orgulho” e
aquietou-se.
— Todos temos os nossos passatempos e a química é o meu —
continuou o Sr. Prior. — Felizmente, possuo uma certa renda que permite
que me dedique a ela. Wildon, você sabe, o meu sobrinho, ri de mim e a
chama de a ciência dos fedores. Mas é arrebatadora, muito arrebatadora.
Após o jantar, Verney desapareceu e Desmond e seu anfitrião esticaram
os pés diante do que o Sr. Prior chamou de “um punhado de fogo”, pois a
noite havia esfriado.
— E agora — disse Desmond —, não vai me contar a história do
fantasma?
O outro passou os olhos ao redor do cômodo.
— Não há de fato nenhuma história de fantasma. É só que... bom, nunca
aconteceu comigo pessoalmente, mas aconteceu com Verney, pobre rapaz, e
ele nunca mais foi o mesmo.
— O quarto assombrado é o meu? — perguntou Desmond,
vangloriando-se por sua perspicácia.
— Não se trata de um quarto em particular — disse o outro, lentamente
—, nem de uma pessoa em particular.
— Pode acontecer de qualquer um ver?
— Ninguém vê. Não é o tipo de fantasma que é visto ou ouvido.
— Receio que eu seja um tanto estúpido, mas não entendo — disse
Desmond sem rodeios. — Como pode ser um fantasma se não pode nem
ouvi-lo nem vê-lo?
— Eu não disse que era um fantasma — corrigiu o Sr. Prior. — Só disse
que há algo nesta casa que não é comum. Vários de meus assistentes
tiveram que partir; a coisa deu-lhes nos nervos.
— O que foi feito de seus assistentes? — perguntou Desmond.
— Ah, foram embora, você sabe; foram embora — respondeu Prior
vagamente. — Não se podia esperar que sacrificassem a própria saúde. Eu
às vezes penso... o falatório da vila é uma coisa mortal, Sr. Desmond... que
talvez eles tenham sido incitados a se assustar; que imaginaram coisas.
Espero que o especialista da Sociedade de Física não seja um neurótico.
Mas, mesmo sem ser neurótico, é possível... mas o senhor não acredita em
fantasmas, Sr. Desmond. Seu bom senso anglo-saxão o proíbe disso.
— Receio não ser exatamente anglo-saxão — disse Desmond. — Sou
celta puro por parte de pai; embora eu saiba que não faço jus à raça.
— E por parte de mãe? — perguntou o Sr. Prior, com extraordinária
avidez; uma avidez tão súbita e desproporcional à questão, que Desmond o
encarou. Um leve toque de ressentimento se atiçou nele, a primeira fagulha
de antagonismo ao seu anfitrião.
— Ah — disse ele, levemente —, creio que eu deva ter sangue chinês,
me dou muito bem com os nativos de Xangai, e dizem que herdei meu nariz
de uma bisavó ameríndia.
— Nada de sangue negro, suponho eu? — perguntou o anfitrião, com
uma insistência quase desconcertante.
— Ah, eu não diria isso — respondeu Desmond. Ele tinha a intenção de
dizê-lo rindo, mas não o fez. — Meu cabelo, o senhor sabe... é um cacho
bem compacto que ele tem, e a família de minha mãe era das Índias
Ocidentais, há algumas gerações. Está interessado em distinções étnicas,
penso eu?
— De modo algum, de modo algum — assegurou-lhe o Sr. Prior,
surpreendentemente —, mas é claro, qualquer detalhe de sua família é
necessariamente interessante para mim. Sinto — ele complementou, com
mais um de seus sorrisos conquistadores — que eu e o senhor já somos
amigos.
Desmond não poderia justificar racionalmente o tênue indício de
antipatia que havia começado a tingir seu agradável sentimento prévio por
ter sido bem recebido e desejado como hóspede.
— O senhor é muito gentil — ele disse. — Muita disposição a sua de
aceitar um estranho dessa forma.
O Sr. Prior sorriu, pegou sua cigarreira, misturou uísque e soda e
começou a contar a história da casa.
— As fundações são, tenho quase certeza, do século XIII. Ela era um
priorado, sabe. Há uma história curiosa, a propósito, sobre o homem que a
recebeu de Henrique quando ele eliminou os monastérios. Houve uma
maldição; parece que sempre há uma maldição...
A voz gentil, agradável e distinta prosseguiu. Desmond julgava estar
ouvindo, mas logo em seguida despertou-se e voltou sua atenção novamente
às palavras que estavam sendo ditas.
— ...e essa constituiu a quinta morte... há uma a cada 100 anos e sempre
do mesmo modo misterioso.
Então, ele se viu de pé, incrivelmente sonolento, e ouviu-se dizer:
— Essas antigas histórias são tremendamente interessantes. Muito
obrigado. Espero que não me considere incivilizado, mas creio que prefiro
me recolher; sinto-me um pouco cansado, por alguma razão.
— Mas é claro, meu prezado camarada.
O Sr. Prior acompanhou Desmond até seu quarto.
— Tem tudo o que deseja? Certo. Tranque a porta, caso se sinta
nervoso. Claro, uma tranca não pode manter fantasmas do lado de fora, mas
sempre me sinto como se pudesse. — E, com outra de suas risadas
amigáveis e agradáveis, ele se foi.
William Desmond foi para a cama como um homem jovem e forte, de
fato sonolento além de qualquer experiência já tida com a sonolência, mas
bem e confortável. Ele despertou débil e trêmulo, afundado nos vagalhões
da cama de penas; e tépidas ondas de exaustão o varriam. Onde ele estava?
O que havia acontecido? Sua mente, zonza e fraca num primeiro momento,
recusou-lhe qualquer resposta. Quando ele se lembrou, o abrupto espasmo
de repulsa que sentiu tão súbita e irracionalmente na noite anterior voltou
num afluxo quente e esbaforido. Ele havia sido drogado, havia sido
envenenado!
— Preciso ir embora daqui — falou a si mesmo e saiu da cama às cegas
em direção à corda de seda da campainha que havia notado na noite
anterior, pendurada próxima à porta.
Ao puxá-la, a cama, o guarda-roupas e o quarto se elevaram ao seu
redor e caíram sobre ele, que desmaiou.
Quando depois deu por si, alguém estava pondo conhaque em seus
lábios. Ele viu Prior, a mais gentil das preocupações em seu rosto. O
assistente, pálido e de olhos marejados. O servo moreno, fleumático,
silencioso e impassível. Ele ouviu Verney dizer a Prior:
— Viu como foi demais? Eu disse ao senhor...
— Silêncio — disse Prior —, ele está voltando a si.
Quatro dias depois, Desmond, sentado numa cadeira de palha no
gramado, estava pouco inclinado a esforços, mas não estava mais doente.
Comidas e bebidas nutritivas, caldo de carne, estimulantes e cuidado
constante — tudo isso o trouxe de volta a algo semelhante ao seu estado
normal. Ele se perguntou sobre suas suspeitas, vagamente lembradas, de sua
primeira noite; todas elas se provaram absurdas diante do resoluto cuidado e
gentileza de todos na Casa Assombrada.
— Mas o que causou isso? — ele perguntou ao seu anfitrião pela quinta
vez. — O que me fez bancar o tolo com tal magnitude? — E, dessa vez, o
Sr. Prior não o dissuadiu, como sempre havia feito, quando implorava que
ele aguardasse estar mais forte.
— Receio que saiba — ele disse — que o fantasma, de fato, veio até o
senhor. Estou inclinado a rever minha opinião sobre o fantasma.
— Mas por que ele não veio novamente?
— Tenho estado com o senhor toda noite, como sabe — seu anfitrião o
relembrou.
E, de fato, o padecente não havia sido deixado só desde que tocou a
campainha naquela terrível primeira manhã.
— E agora — continuou o Sr. Prior —, se não for me considerar um
mau anfitrião, creio que estará melhor longe daqui. Deveria ir para junto do
mar.
— Não chegou nenhuma carta para mim, suponho eu? — disse
Desmond, um pouco desejosamente.
— Nenhuma. Suponho que tenha dado o endereço correto? Reitoria de
Ormehurst, Crittenden, Kent?
— Não creio que tenha posto Crittenden — disse Desmond. — Copiei o
endereço de seu telegrama. — Ele puxou o papel rosa de seu bolso.
— Ah, isso deve servir — disse o outro.
— O senhor foi excepcionalmente gentil durante tudo isso — disse
Desmond, abruptamente.
— Bobagem, meu garoto — disse o idoso, benevolentemente. — Só
queria que Willie tivesse podido vir. Ele nunca escreveu, aquele patife!
Nada além do telegrama dizendo que não poderia vir e que andava a
escrever.
— Suponho que ele esteja se divertindo às pampas em algum lugar —
sugeriu Desmond invejosamente —, mas veja aqui... me conte sobre o
fantasma, sim, se há algo a contar. Já estou quase bem agora, e gostaria de
saber o que foi que me fez passar por tolo dessa forma.
— Bem — O Sr. Prior olhou ao seu redor para o dourado e vermelho
das dálias e girassóis, felizes à luz do sol de setembro —, aqui e agora, não
sei se ele pode fazer algum mal. O senhor se lembra da história do homem
que recebeu este lugar de Henrique VIII e da maldição? A esposa daquele
homem está sepultada em um jazigo sob a igreja. Bom, havia lendas, e
confesso que estava curioso para ver sua tumba. Há portões de ferro no
jazigo. Eles estavam trancados. Eu os abri com uma velha chave... e não
consegui fazê-los se fecharem outra vez.
— Sim? — disse Desmond.
— Pode pensar que eu deveria ter procurado um chaveiro; mas o fato é
que há uma pequena cripta na igreja e a usei como laboratório suplementar.
Se tivesse chamado qualquer um para conferir a fechadura, haveria
falatório. Eu teria sido enxotado de meu laboratório... talvez de minha casa.
— Entendo.
— Agora, o curioso é que — continuou o Sr. Prior, baixando a voz —
foi apenas depois que aquela grade foi aberta que a casa se tornou o que
chamam de “assombrada”. Foi desde então que todas as coisas
aconteceram.
— Que coisas?
— Pessoas hospedadas aqui subitamente adoecendo... assim como o
senhor. E os ataques sempre parecem indicar perda de sangue. E... — Ele
hesitou um instante. — Esse ferimento em seu pescoço. Eu lhe disse que
poderia ter se machucado ao cair, quando soou a campainha. Mas isso não é
verdade. A verdade é que o senhor tem em seu pescoço o mesmo pequeno
ferimento branco que todos os outros tiveram. — Ele franziu o cenho. —
Queria poder fechar aquele jazigo novamente. A chave não gira.
— Será que posso fazer alguma coisa? — perguntou Desmond,
secretamente convencido de que havia machucado o pescoço na queda e
que a história de seu anfitrião era, como ele dizia, “puro devaneio”. Ainda
assim, consertar uma fechadura era somente uma ligeira retribuição a todo o
seu cuidado e gentileza. — Sou um engenheiro, o senhor sabe — ele
complementou, constrangido, e corou. — Provavelmente um pouco de
óleo... Vamos dar uma olhada na tal fechadura.
Ele seguiu o Sr. Prior pela casa até a igreja. Uma velha chave, lisa e
brilhante, foi girada rapidamente e eles adentraram a casa, úmida e
bolorenta, onde a hera subia pelas janelas quebradas e o céu azul parecia se
aproximar dos buracos no teto. Outra chave estalou na fechadura de uma
porta baixa, ao lado do que um dia havia sido a Capela de Nossa Senhora;
uma maciça porta de carvalho rangeu para trás e o Sr. Prior se deteve por
um instante para acender uma vela que aguardava em um grosseiro
candelabro de ferro, num ressalto da cantaria. Então, desceram por degraus
estreitos, ligeiramente lascados nas bordas e macios de poeira. A cripta era
normanda, muito bela em sua simplicidade. No fim dela havia um recesso,
mascarado por uma grade de ferro oxidado.
— Eles costumavam achar — disse o Sr. Prior — que o ferro afastava a
bruxaria. Essa é a fechadura — prosseguiu ele, segurando a vela contra o
portão que estava entreaberto.
Eles passaram pelo portão, pois a fechadura ficava do outro lado.
Desmond trabalhou alguns instantes com o óleo e a lingueta que havia
levado. Então, com uma pequena torção, a chave virou e desvirou.
— Acho que está tudo bem — ele disse, olhando para cima, apoiado em
um dos joelhos, com a chave ainda na fechadura e sua mão sobre ela.
— Posso experimentar?
O Sr. Prior tomou o lugar de Desmond, girou a chave, tirou-a da
fechadura e se levantou. Então, a chave e o candelabro caíram ruidosamente
no chão de pedra e o velho lançou-se sobre Desmond.
— Agora, peguei o senhor — ele rosnou na escuridão e Desmond dizia
que seu salto, seu aperto e sua voz eram como o salto, o aperto e o rosnado
de uma forte fera selvagem.
A pouca força de Desmond se partiu feito um graveto assim que se
valeu dela para resistir. O velho o dominou como um vício domina alguém.
Ele havia tirado uma corda de algum lugar. Estava amarrando os braços de
Desmond.
Para sua aversão, ali, no escuro, Desmond berrou como uma lebre
capturada. Então, lembrando-se de que era um homem, gritou:
— Socorro! Aqui! Socorro!
Mas uma mão tapou sua boca e agora um lenço era amarrado atrás de
sua cabeça. Ele estava no chão, reclinado contra algo. As mãos de Prior o
haviam deixado.
— Agora — disse a voz de Prior, um pouco sem fôlego, e o fósforo que
ele riscou mostrou a Desmond as prateleiras de pedras abrigando longos
objetos, caixões, ele supôs. — Agora, sinto muito por ter que fazê-lo, mas a
ciência vem antes da amizade, meu caro Desmond — ele prosseguiu, um
tanto cortês e amigável. — Vou explicar ao senhor e verá que um homem
honrado não poderia agir de outra forma. É claro, não ter amigos que
saibam onde está é um tanto conveniente. Garanti isso desde o princípio.
Agora, vou explicar. Não esperei que entendesse por instinto. Mas não
importa. Eu sou, e digo isso sem vaidade, o maior dos descobridores desde
Newton. Eu sei como modificar a natureza dos homens. Posso fazer dos
homens o que eu quiser. É tudo feito por transfusão de sangue. Lopez... o
senhor sabe, meu criado Lopez... eu injetei sangue de cães nas veias dele e
ele é meu escravo... como um cão. Verney, ele também é meu escravo...
parte sangue de cão, parte sangue das pessoas que vêm aqui de tempos em
tempos para investigar o fantasma, e parte do meu próprio, porque gostaria
que ele fosse arguto o bastante para me ajudar. E há algo maior por trás de
tudo isso. Há de me entender quando digo — Aqui, ele de fato se tornou um
tanto técnico e usou muitas palavras que nada significavam a Desmond,
cujos pensamentos se concentravam cada vez mais em sua mínima chance
de fuga.
Morrer feito um rato num buraco, um rato num buraco! Se ele pudesse
ao menos afrouxar o lenço e gritar de novo!
— Preste atenção, pode ser? — disse Prior selvagemente e o chutou. —
Perdoe-me, meu prezado camarada — continuou ele, de modo suave —,
mas isso é importante. Pois bem, o senhor entende que o elixir da vida é de
fato o sangue. O sangue é a vida, como sabe, e minha grande descoberta é
que, para tornar-se um homem imortal e restaurar sua juventude, alguém só
precisa de sangue das veias de um homem que reúna em si mesmo o sangue
das quatro grandes raças... as quatro cores, preto, branco, vermelho e
amarelo. O seu sangue une essas quatro. Tomei do senhor tanto quanto pude
ousar tomar naquela noite. Eu era o vampiro, sabe. — Ele riu
amigavelmente. — Mas seu sangue não agiu. A droga que tive que lhe dar
para induzir o sono provavelmente destruiu os germes vitais. E, além disso,
não havia o suficiente. Agora, vai haver o bastante!
Desmond vinha forçando a cabeça contra a coisa atrás dele, afrouxando
o nó do lenço até que ele escorregasse de sua cabeça para o pescoço. Agora,
ele tinha a boca livre e disse rapidamente:
— Não era verdade o que eu disse sobre os chineses e tudo o mais. Era
brincadeira. Os parentes de minha mãe eram todos de Devon.
— Não o culpo nem um pouco — disse Prior, tranquilamente. — Eu
teria mentido no seu lugar.
E pôs de volta o lenço. A vela agora queimava claramente no lugar em
que fora colocada, num caixão de pedra. Desmond podia ver que os objetos
longos nas prateleiras eram caixões, nem todos de pedra. Ele se perguntou o
que esse lunático faria com seu corpo quando tudo tivesse acabado. A
pequena ferida em sua garganta havia se aberto outra vez. Podia sentir o
lento gotejar de calor em seu pescoço. Ele se perguntou se desmaiaria.
Assim lhe parecia.
— Queria tê-lo trazido aqui no primeiro dia... foi obra de Verney, meu
saracoteio com quartilhos e meios-quartilhos. Puro desperdício... puro
desperdício injustificável!
Prior parou e se pôs a olhar para ele.
Desmond, desesperadamente consciente da crescente fraqueza física, se
viu em real questionamento se aquilo não poderia ser um sonho — um
sonho horrível e insano — e ele não conseguia pôr tal questionamento
realmente de lado, porque coisas incríveis pareciam estar se somando aos
reais horrores da situação, assim como acontece nos sonhos. Parecia haver
algo despertando no lugar, algo que não era Prior. Não... nem a sombra de
Prior, também. Esta era preta e se espalhava enormemente pelo teto
arqueado. Já aquilo era branco, muito pequeno e estreito. Mas despertava e
cresceu — agora não era mais apenas uma linha branca, mas uma longa e
estreita cunha branca — e apareceu entre o caixão na prateleira oposta e a
tampa do outro caixão.
E Prior ainda estava bastante quieto, olhando de cima para sua presa.
Todas as emoções, exceto um questionamento embotado, estavam agora
mortas nos sentidos enfraquecidos de Desmond. Nos sonhos, se alguém
grita, esse alguém acorda — mas ele não conseguia gritar. Talvez se ele se
mexesse... Mas, antes que pudesse dirigir sua abatida vontade à decisão de
um movimento, algo mais se moveu. A tampa preta do caixão oposto
ergueu-se lentamente — e então subitamente caiu, retinindo e ecoando, e do
caixão se ergueu uma forma, horrivelmente branca e amortalhada, que caiu
sobre Prior e rolou com ele pelo chão do jazigo, numa luta silenciosa e
rodopiante. A última coisa que Desmond ouviu antes de desmaiar total e
completamente foi o grito de Prior, emitido bem quando ele se voltava na
direção do som e viu o corpo envolto em branco saltar em sua direção.
Desmond piscou sob a luz do sol que achou que nunca mais veria de
novo. Ali estava ele, de volta à cadeira de palha. Ele olhou para o relógio de
sol na casa. A coisa toda havia levado menos de 50 minutos.
— Me fale — disse ele. E Verney contou a ele em frases curtas, com
pausas entre elas.
— Eu tentei avisá-lo na janela, lembra? Eu realmente acreditava nas
experiências dele, no princípio... e que ele havia descoberto algo sobre mim
e não havia dito. Foi quando eu era muito jovem. Deus sabe o quanto
paguei por isso. E, quando o senhor chegou, eu havia acabado de descobrir
o que havia acontecido com os outros camaradas. Lopez, aquela besta,
deixou escapar quando estava bêbado. Brutamontes inumano! E tive uma
altercação com Prior naquela primeira noite e ele me prometeu que não
tocaria no senhor. Mas ele tocou.
— Deveria ter me contado.
— O senhor estava num belo estado para que lhe contassem qualquer
coisa, não estava? Ele prometeu que o mandaria embora assim que estivesse
bem o suficiente. E ele foi bom para mim. Mas, quando o ouvi começar
com aquilo de grade e chave, eu soube... então só peguei um lençol e...
— Mas por que não apareceu antes?
— Não ousei. Ele teria me ferido facilmente se soubesse o que o estava
atacando. Ele não parava de se mexer. Tinha que ser feito de repente. Eu
contava justamente com aquele instante de fraqueza, em que ele realmente
achou que um cadáver havia voltado à vida para defender o senhor. Agora,
vou selar o cavalo e levá-lo até a delegacia em Crittenden. Então, eles virão
para prendê-lo. Todos sabiam que ele era louco de pedra, mas precisou que
alguém quase fosse morto para alguém vir prendê-lo. A lei é assim, sabe.
— Mas você... a polícia... eles não vão...
— Estou perfeitamente seguro — disse Verney banalmente. —
Ninguém sabe de nada, além do velho, e agora ninguém vai acreditar em
nada do que ele disser. Não, ele nunca postou suas cartas, é claro, nunca
escreveu ao seu amigo e dispensou o homem da Física. Não, não consigo
encontrar Lopez; ele deve saber que algo aconteceu. Já deu nos calcanhares.
Mas não havia dado. Quando eles chegaram, uma meia dúzia de
homens cautelosos, para levar o velho embora da Casa Assombrada,
encontraram-no teimosamente mudo, mas gemendo um pouco, agachado
contra a grade trancada do jazigo. O mestre estava mudo como o outro
homem. Ele nada falava. Ele nunca mais falou desde então.
Um homem e seu tutelado de dez anos, em viagem pela Inglaterra, pararam em Belper
a caminho de Matlock Baths. Por volta das 17h, eles estavam atravessando o Triângulo
próximo ao Mill Park quando um caminhão, seguindo rumo a Derby, atingiu o garoto, que
morreu com o impacto. Os dois visitantes não eram familiarizados com os padrões de
tráfego naquela área e o garoto entrou na frente do caminhão. O motorista não teve
responsabilidade pelo trágico acidente. O guardião do menino planeja retornar à Turquia,
seu país natal, ainda esta semana. As famílias da cidade se apressaram em oferecer ao
homem um lugar para ficar e alimentação, até que seu avião parta de Heathrow, na quinta-
feira. Aqueles interessados em prestar auxílio ou expressar suas condolências podem
contatar Elizabeth Horner, na Capela Metodista.
Andrew agora estava mais curioso do que nunca. Turquia. Ele nunca
havia pensado muito nas pessoas que vivem lá, embora tenha ouvido falar
do país nas aulas de geografia. O que sabia era que adorava manjar turco. O
recheio de gelatina rosada totalmente envolto por um delicioso chocolate o
fez pensar nos ocasionais arroubos de felicidade que sua mãe tinha, quando
comprava para eles um saco de doces, sempre com alguns manjares turcos
para Andrew. Será que o manjar turco era da Turquia? A parte turca era a
gelatina, o chocolate ou os dois? Pela primeira vez, ele mal podia esperar
pela segunda-feira. Iria direto para a biblioteca da escola, depois da aula.
— Não é da sua conta o que Frank Delaney faz da vida dele, Andy. Se
ele quiser fugir com a rainha, ele pode, mas você tem sua própria vida pra
levar.
Sua mãe começara o sermão antes do jantar e agora já era hora de ir
para a cama. Sua tia havia escutado cuidadosamente e dito, “Que pena”.
Mas, quando sua mãe chegou em casa, Molly recontou a história de
Andrew com um histrionismo incomum. Ela usou expressões como
“sequestrado” e “pedófilo”, levando sua mãe a um estado frenético.
— E, se ele foi sequestrado, então é melhor ainda que você fique longe
desse menino. O Frank arruma encrenca onde não tem nenhuma, não é
mesmo, Molly?
Tia Molly estava retorcendo as mãos e assentindo.
— Pelo menos, as autoridades sabem quem ele é e onde está hospedado.
Esse velho não vai longe.
A garganta da mãe de Andrew proferia resmungos.
— Vamos ligar pra polícia. Não dói. Se ele for inocente, vamos só nos
sentir idiotas, mas se o Frank foi mesmo sequestrado, vão ficar felizes por
termos ligado.
Enquanto sua mãe e sua tia faziam a ligação, Andrew saiu de fininho
pela porta dos fundos. Ele tinha que ir à casa de Frank. O ônibus estava
indo na direção da casa dele. Podia ter sido tudo na inocência. Não podia?
Dessa vez, quando a senhora Delaney atendeu a porta, um homem
estranho vociferou do andar de cima para que ela voltasse para ele. Ela
parecia desgrenhada em seu roupão de banho e seu rosto estava corado à luz
do vestíbulo.
— O que foi agora? Entendeu errado de novo? Era pra vocês se
encontrarem na escola, então?
— Quer dizer que o Frank não tá aqui?
Ela estremeceu diante do tom ansioso dele.
— Não, o Frank não tá aqui. O que está havendo, Andrew Crawford?
Andrew olhou para os próprios pés.
— Acho que ele saiu com alguém. Eu o vi no ônibus com aquele senhor
que estava com o menino que morreu no Triângulo, semana passada. Achei
que eles podiam tá vindo pra cá.
Embora parecesse levemente em pânico, a senhora Delaney manteve o
roupão fechado na altura do pescoço e disse:
— O Frankie faz o que quer. Ele é marrento o bastante pra cuidar dele
mesmo. Se fica muitos dias sem voltar pra casa, aí eu me preocupo. Ele é
igual ao irmão nesse sentido. — A voz masculina novamente ressoou do
andar de cima, mais insistente dessa vez. A senhora Delaney baixou a voz
para Andrew. — Não se preocupe, Andrew Crawford. O Frankie tá bem.
Vai pra casa. — Então, ela bateu a porta na cara dele de novo.
Ele correu para casa, esperando que sua mãe e sua tia estivessem
ocupadas com a polícia e não tivessem notado que ele havia saído, mas lá
estavam elas, na rua, uma van da polícia estacionada junto à casa e dois
policiais falando com elas.
— Pra onde diabos você foi, seu menino completamente idiota? — Sua
mãe agarrou o braço dele e o arrastou para casa. — Você sabia que ia me
matar de susto, não sabia? — Ela dava tapas nele. Ele manteve os braços
erguidos enquanto ela o estapeava. — Como você ousa!
Tia Molly se aproximou com os policiais e gritou para que a irmã
parasse. Um dos policiais agarrou a mãe de Andrew. Tia Molly envolveu o
garoto em seus braços.
— Senhora, não adianta bater no menino. Pare. Relaxe. Vamos
conversar com ele.
— Bernadette, vá lá pra cima e lave o rosto na água fria. Eu converso
com o Andy e com a polícia. Vá.
Sua mãe se soltou da contenção do policial e grunhiu, a espuma nos
cantos da boca.
— Não vai fazer nada disso. O filho é meu. Eu lido com ele.
O policial balançou a cabeça.
— Senhora, faça o que sua irmã está dizendo. Se tiver que lidar com
isso, vai acabar tendo que nos acompanhar.
Andrew tentou não chorar, mas não conseguiu se conter. Estava mais
com medo do que triste, mas as lágrimas vieram mesmo assim.
— Olha o que você fez, Bernadette. Andrew está aos prantos. Vá lá pra
cima. Vá, agora.
Sua mãe subiu pisando duro, mas ele sabia que ela não lavaria o rosto
nem nada. Ela cozinharia na própria raiva até não conseguir aguentar mais e
partir para bater nele de novo. Sua tia tentaria impedir, mas não tinha
nenhum outro lugar para morar, então daria as costas quando falhasse.
Andrew sentiria pena dela, agradecido por ela ao menos ter tentado.
Um dos policiais se sentou ao lado de Andrew e fez a ele centenas de
perguntas. Ou assim pareceu. Já havia passado da hora de o garoto dormir e
ele estava começando a cair no sono. Quando o homem decidiu que tinha
informações o bastante, disse a Andrew que iriam passar na casa dos
Delaney. Então, o policial perguntou a Andrew se ele se sentia seguro o
bastante para ficar na casa. Que eles tinham outro lugar onde ele poderia
ficar.
— Tá tudo bem. Ela se irrita muito fácil. Mas sempre se acalma. Além
disso, tenho minha tia. — Do outro lado da sala, tia Molly sorriu.
— Certo, então. Mas ligue pra nós se os ânimos se exaltarem
novamente. Não tenha medo. — O policial olhou para tia Molly e então de
volta para Andrew. — Nós avisaremos do resultado das investigações.
— Isso, por favor — Andrew conseguiu dizer. Suas pálpebras pesavam,
seu corpo cedendo. A última coisa que ouviu foi sua tia abrindo o baú de
cobertores para dar a ele um pouco de calor extra.
Claro, não havia um pai à espera dele, embora houvesse uma rica
família em uma enorme propriedade na Turquia. Vovô disse a Andrew,
quando eles estavam no avião, com os cintos de segurança afivelados, em
assentos de primeira classe, a 33 mil pés no ar, que ele um dia o ajudaria a
encontrar seu pai. Mas, por ora, havia uma antiga e respeitada família
esperando por ele em uma casa muito maior do que qualquer coisa que ele
pudesse imaginar, onde ele nunca mais se sentiria sozinho.
Andrew então percebeu, tarde demais, que as palavras que sua mãe e
sua tia haviam trocado naquela noite, há dois dias, “sequestrado” e
“pedófilo”, agora se relacionavam a ele. Ele disse isso ao Vovô, mas o
homem negou. Andrew havia sido escolhido. Ele era especial. Ninguém
nunca tocaria nele dessa forma; ele era um vaso sagrado. Tudo o que o
velho disse era cheio de excentricidades e obscurecimentos. Andrew não
conseguia uma resposta clara. A longa limusine embalou Andrew em uma
série de cochilos, que todas as vezes o levavam a um pesadelo. Eles, enfim,
desaceleraram ao se aproximarem de um altaneiro muro de tijolos claros,
coberto de heras ascendentes. Dois homens sem camisa e com tecidos
enrolados na cabeça puxaram o portão de ferro do muro até que ele se
abrisse o bastante para a limusine.
Quando Andrew viu a grande mansão, ainda esperava que seu pai
realmente estivesse lá dentro e que Vovô estivesse apenas brincando com
ele. Lá dentro, havia muitos outros garotos e garotas, alguns de idade
próxima à sua, alguns mais novos, outros mais velhos. Eles falavam em
muitas línguas e estavam vestidos de branco, do pescoço aos pés.
Perambulavam livremente, mas todos pareciam tristes como o menino que
morrera no Triângulo, seus olhos vazios.
Vovô sentou-se na poltrona ao lado da enorme cama que seria de
Andrew. O menino pôs uma camisa, calça e sandálias brancas. Vovô
assistiu, mas não estava curioso. Seu olhar era benigno. Desinteressado.
Andrew estremeceu, embora a sala estivesse quente.
— Por que o senhor me escolheu? O senhor tinha Frank Delaney.
— Sim, o menino que veio até mim. Era Frank, o nome dele? — Vovô
olhou reflexivo pela janela para o lúgubre pôr do sol, cinzento e cor de
ferrugem. — Frank. Um menino difícil. De alma velha. Faltava a ele o
atributo mais importante. A essência pela qual atravessamos o mundo. A
emanação pura. Era você o tempo todo, Andrew. No momento em que o vi,
eu soube.
Andrew se sentiu encorajado pelo orgulho em ter sido escolhido.
Ninguém nunca havia notado Andrew, ao menos não para escolhê-lo em
meio a outros. E nunca em vez de Frank Delaney. Talvez isso desse poder a
ele. Ele podia sobreviver a isso!
— O que houve com ele? O menino que estava com o senhor. O senhor
o matou?
Vovô rio secamente.
— Ah, não. Por que eu faria isso? Ele foi uma grande perda. — O velho
se levantou e foi até a janela. — Não, não o matei, mas tive culpa, de certo
modo. Eu deveria trazê-lo aqui em sua total essência, mas estava faminto
demais. Eu sorvi dele e não pude me conter. Ele estava exausto por eu ter
me alimentado, não olhou por onde ia. Fiquei profundamente perturbado
por sua passagem. Minhas lágrimas eram verdadeiras. Quando ele se foi,
não havia nada que eu pudesse fazer além de esperar por você.
— O senhor por acaso sabe se tenho um pai em algum lugar? —
Andrew tinha medo, raiva e esperança, tudo ao mesmo tempo.
— Ah, sim. Eu saberia se você o tivesse perdido. Meninos como você,
crescendo com mães solteiras superprotetoras, pais ausentes, às vezes se
tornam homens raivosos e duros. Assim como acontecerá com Frank,
embora o pai dele esteja em casa. E aí, é tarde demais. Esses meninos
conhecem “o velho”, como inevitavelmente os chamam, e os odeiam. Não
você, jovem Andrew. Você manteve a esperança, uma rica parte da
essência. Você será valorizado. — Vovô caminhou até ele e pôs as mãos em
seus ombros. — Mas precisa manter sua essência até conhecer a Senhora,
por isso, vou deixá-lo. Já falei demais.
— Não tô entendendo nada disso. Não vá. Por favor. Não quero ficar
sozinho aqui. — Ele começou a chorar.
— Não ouso ficar, jovem Andrew. Seria tentação demais. Você é minha
penitência, meu achado para compensar as perdas que tão tolamente fui
incapaz de proteger de mim mesmo. — O velho viu o medo em Andrew,
sua confusão. — Você não é um prisioneiro, filho. Olhe em volta. Conheça
alguns dos outros. — Ele foi até a porta. — Está com fome?
Andrew assentiu, embora estivesse com mais medo do que fome. Seu
estômago era um punho fechado em sua barriga.
— Há mais comida do que poderia sonhar lá embaixo. Ache a sala de
jantar. Faça amigos. Veja todos os brinquedos, livros e jogos disponíveis
pelas dependências. Um dia, em breve, vai se perguntar por que chegou a
pensar em partir. — Ele esperou por um momento. — Está pensando que
gostaria de partir, não está?
Novamente, Andrew assentiu. Não havia outros pensamentos em sua
mente.
— E está pensando na sua mãe, na sua tia. O que será delas sem você?
Andrew desviou o olhar, seus olhos doendo, seu rosto molhado de
lágrimas.
— Logo, não vai se importar. Console-se em saber que você não terá
nada com que se importar e será bem mais apreciado do que um dia já foi
naquela sua cidade operária encardida.
Vovô saiu. Andrew se viu na sacada nauseado e sem nenhuma comida
na barriga. Ele chorou, lastimou-se até estar todo dolorido. Então, arrastou-
se para a cama e encarou o dossel de seda dourada. Ele ansiava pelos
cheiros de casa. A pedra molhada, o musgo, o sótão úmido, o fogo
crepitante de nogueira e carvalho, os scones de tia Molly. Ali, o ar seco
cheirava a poeira e turfa, a canela e sálvia.
Estava escuro quando a porta se abriu e uma velha mulher entrou. Ela
foi até a cabeceira da cama e se sentou, alisando os cabelos de Andrew. Na
escuridão, ele sussurrou:
— Mãe?
— Eu serei sua mãe, seu pai, seu Deus, meu filho. E você será a maior
de minhas alegrias. Fique quietinho, lembre-se de tudo que aconteceu em
sua vida, e sinta a alegria e o prazer que traz a inocência. Não vou causar-
lhe dor nem tocá-lo. Por sua vez, seu medo vai passar, suas preocupações e
anseios vão diminuir.
Andrew tentou sentar-se. A mão dela pousou gentilmente em seu peito.
— Não, Andrew. Confie em mim. Isso será como um sonho. Deite-se.
Ele obedeceu. A mulher tinha um jeito ainda mais cativante do que
Vovô. Seus olhos brilhavam no escuro, o mesmo azul claro, suas pupilas
como nítidos pontinhos flutuando ao centro. Ela cheirava a cedro e flor de
laranjeira, embora fosse mais como a fumaça distante de uma fogueira
fumegante do que como se ela mesma a emanasse. Ela pôs as mãos acima
dele, como se estivesse aquecendo-as no calor que emanava dele. Andrew
fechou os olhos e os sonhos vieram.
Pesadelos, na verdade. Primeiro, ele viu sua mãe, jovem e ingênua,
boba e despreocupada. Ela foi ao pub tomar uma cerveja com suas amigas,
até que um homem alto e belo chegou e separou as garotas. Ele encurralou
Bernadette e a cobriu de elogios. Ela beijou o homem que mal conhecia e
deixou que ele a apalpasse ali mesmo, no pub. A mão dele entrou por
debaixo de sua saia e ela ficou molhada de desejo.
O homem a levou até seu carro e continuou, possuindo-a. Eles eram
como dois organismos nus, ondulando, se dobrando para dentro e para fora
um do outro. Depois de se satisfazer, ele disse que a amava. Ela não
acreditou. Não ousava. Eles se beijaram apaixonadamente, ele prometeu
que ligaria e deixou-a no apartamento dos pais dela.
Na noite seguinte, ela encontrou outro homem, e outro na noite
seguinte. Nenhum deles nunca ligou para ela e nenhum deles estava por
perto quando ela se viu grávida. Então, ela começou a dormir com Phillip,
marido de sua irmã, que sempre havia gostado mais dela do que da singela
Molly. Ela afirmou que Phillip era o pai. Ele preferiu se matar a encarar a
vergonha e Molly. Pobre Molly.
Phillip havia hipotecado a casa até o limite, tinha dívidas de jogo e
caríssimas contas dos presentes à jovem e adorável Bernadette, que exigiam
pagamento. Molly perdeu a casa, passava necessidades, recebia auxílio do
governo, mas quando sua irmã chegou rastejando com o pirralho, pedindo
ajuda, Molly engoliu seu orgulho e foi morar com Bernadette na casa de
seus pais. No fim, pensou Molly, o bebê não podia ser de Phillip. A
contagem não batia em quase três meses. Phillip tinha sido só mais um dos
tolos de Bernadette.
E então havia a pobre tia Molly; roubando das pessoas cujas casas ela
limpava, pegando um anel aqui, um relógio ali. Nada que pudessem provar
que Molly havia pegado, coisas que poderiam facilmente ter perdido. No
sonho, Andrew a viu de frente para seu guarda-roupa, uma caixa com seus
furtos nos braços, pensando na vida que teria quando repassasse tudo aquilo
e comprasse seu próprio apartamento. Suas antipatias pela irmã amarga
eram evidentes em seu desejo de que tudo que pertencesse à Bernadette
apodrecesse. No sentimento de que Andrew era mais filho dela do que de
Bernadette e de que, um dia, ela contaria a verdade a ele. Que sua mãe era
prostituta, não secretária no Hospital Babington. Ela então riu,
profundamente, ruidosamente, sem remorso.
O pesadelo terminou. A mulher se extasiava, saciada, enquanto Andrew
acordava. Ele olhou para a mulher. Ela tinha uma aura luminosa ao seu
redor, que cintilava e pulsava. Ela sentou-se na poltrona ao lado da cama e
chorou. Andrew se sentou. Em sua cabeça, ele pensou em aproximar-se
dela, confortá-la. Ela continuou a soluçar. Mas ele parecia não conseguir
reunir a consideração necessária para se mover. Ele a observou até que ela
se aquietasse.
— O que houve com você? Por que estou me sentindo assim?
Ela pareceu despertar de um devaneio e então fixou seus olhos claros
nele.
— Ele não lhe contou?
— O Vovô? Não, ele só falou de essências e de ser valorizado. Fui eu
quem fiz você chorar?
A velha se levantou e se afastou alguns passos. Pensou alguns instantes
sobre o que deveria dizer, então não disse nada. Ela abriu a porta.
— Por favor — disse Andrew categoricamente.
— Ah, que mal faz? — Ela voltou para a cama. — Você ficaria sabendo
assim que conversasse com as outras crianças. — Ela se sentou e recostou-
se na cabeceira.
— Meu filho, você agora não pode ver algumas das verdades mais feias
de sua vida? Sente o pesar dessa verdade? — Ela esperou, mas Andrew
permaneceu impassível, calado. — Eu ergui o véu da ignorância do qual
você se valeu em todos os seus dez anos. Não se sente diferente pelo peso
de sua inocência agora ter passado para mim?
Andrew olhou para dentro de si. Estava tão escuro e úmido quanto na
noite em que Vovô o havia levado, mas não havia brilho algum.
— É uma falta de sorte a sua, ser meu. Sempre vou chorar por sua perda
e pela doçura de minha satisfação. É confuso. Mas com o tempo, não vai
mais ser confuso. E você vai apenas ser. — Ela riu secamente, igual ao
Vovô. — E pensar que há quem, na tola raça humana, reverencie esse
estado... ser. Chamam de “iluminação” e passam toda a vida procurando
atingi-la. — Ela se levantou outra vez, aos risinhos, foi até a porta e sorriu
um sorriso como dados sem os pontos. — Até amanhã.
Quando a porta se fechou atrás dela, Andrew olhou para suas mãos,
sentiu seu rosto. Estavam como sempre estiveram. Ele não havia, de fato,
mudado. Amanhã. Amanhã ele veria na biblioteca se havia algum livro
sobre a Turquia. Ele não havia terminado o que deixou para trás. Em algum
lugar.
25. Bolinhos típicos escoceses, mas muito comuns em outros países do Reino Unido. - N. da T.
26. Rede de supermercados. - N. da T.
A VÊNUS SURGINDO
DAS ÁGUAS
Tanith Lee
A praça era uma ruína aterrorizante. Escondida pela orla da cidade, ela
era quase inconcebível. Os andares mais altos haviam desabado na calçada,
restando apenas os esqueletos da arquitetura, com uma estátua ocasional,
alguns deles resplandecendo verdes e perfurados por vegetais (a dissolução
do ouro). O calçamento estava cedendo, marcado pela descamação dos
pássaros. Ali, a cabine se erguia, incapaz de se deteriorar.
— Há um baú nos sótãos. Ele não abre — Jonquil acusou no receptor.
— Está listado no manual. Ele diz: “um baú do bobo da corte de madeira
preta”.
A resposta veio.
— Por isso você é incapaz de abri-lo. Um baú do bobo era
simplesmente isso, um objeto enganoso de brincadeira, geralmente maciço.
Não há nada dentro dele.
— Não — disse Jonquil —, alguns baús do bobo abrem, sim. E esse não
é maciço.
— Receio que esteja enganada. O baú foi investigado e não contém
nada, tampouco há uma forma de abri-lo.
— Raio X nem sempre mostra... — começou Jonquil. Mas a máquina
havia sido desconectada. — Não vou aceitar isso — disse ela.
Três pássaros dispararam sobre a praça. Lá embaixo, nos esgotos, a
colônia de ratos sem vozes, brancos feito a luz da lua, corria sem ruído sob
seus pés. Mas ela não estremeceu. Jonquil voltou para casa num andar
empertigado, por entre becos de podridão preta em que as janelas estavam
suspensas como persistentes placas de gelo. Vidro quebrado se espalhava
sob seus pés. O cheiro terrível do mar estava nos becos, pois o mar avançou
e avançou. Havia afogado a cidade em realidade psíquica e já se assentava à
revelia total de todos os prédios, calmo, oleoso e quieto, refletindo o sol e as
estrelas.
Jonquil entrou na casa pelo portão, que o manual havia tornado
acessível, cruzando o jardim onde a fonte azul era uma garota coroada com
murta. Passou direto pelos andares até a escada do sótão e subiu por ela. A
porta dele estava entreaberta, como ela acreditava que a havia deixado.
— Aqui estou — disse Jonquil. A luz da manhã era muito mais forte no
sótão e ela não precisava de tocha. Achou o baú e se inclinou sobre ele.
— Você tem um segredo. Talvez você só tenha empenado por causa da
umidade daqui de cima... pode haver um revestimento que tenha enganado
o raio X.
Ela tentou a chave-inglesa, especificamente desenhada para não causar
nenhum dano. Mas ela escorregou, deslizou e de nada adiantou. Jonquil se
ajoelhou e começou a apalpar o baú todo, procurando por uma mola ou
algum outro mecanismo. Ela acariciava o baú, percorrendo-o com bastante
cautela e delicadeza. Sua semelhança com um caixão era muito evidente,
mas os ossos teriam sido vistos.
— Influenciando meus sonhos — ela disse. Algo se moveu contra seu
dedo. Era muito tênue. Foi como se o baú tivesse meneado com leves
espasmos, como uma criança adormecida. Jonquil pôs a mão de volta — ela
tinha se encolhido e censurou a si mesma. Ao seu toque, o movimento veio
novamente. Ela escutou com nitidez o clique que tinha ouvido no sonho. E,
antes que pudesse deter-se, levantou num salto e andou para trás, um, dois,
três passos, até ser contida pela parede.
A tampa do baú estava se erguendo, deslizando para cima e
escorregando para baixo sem ruído algum além de um leve estalido. Nada
se sentou no baú, mas Jonquil viu a extremidade de alguma coisa deitada lá
dentro, à sombra dele.
— É, sim — disse ela, e avançou. Jonquil se inclinou sobre o baú, agora
familiarizada. Tudo fora explicado, até a atividade psicocinética do sonho.
— Uma pintura.
Jonquil Hare se recostou no baú e a observou. Logo em seguida, tomou
nas mãos a elaborada moldura dourada, inclinando a pintura um pouco para
cima, para que ela também se reclinasse no baú.
A pintura provavelmente tinha três séculos de idade. Ela podia dizer por
causa dos pigmentos e da disposição dos óleos, mas não por causa do
artista. Este era desconhecido. Com relação ao tamanho, ela era retangular e
vertical, cerca de dois metros por um metro de largura.
A obra era um retrato de corpo inteiro, um tanto bem executado e
proporcional, faltando a ele apenas qualquer vestígio de vida ou animação.
Ele bem poderia ser a magistral imagem de uma bela boneca — era assim
que o artista entregava sua condição de amador.
Era uma mulher que aparentava a idade de Jonquil, o que, dado o
período, significava, é claro, que ela deveria ser bem mais nova, dezoito ou
dezenove anos. Sua pele era pálida e tinha um matiz curioso, assim como de
fato possuía toda a cena, talvez devido a alguma corrosão da pintura —
mas, mesmo assim, ela não havia decaído aos tons amarronzados e barrosos
de costume, mas um tanto mais para um tipo de azul amarelado. Dessa
maneira, o esquema de cores das roupas e do cabelo poderia ser enganoso,
pois as longas madeixas soltas eram de um loiro amarelado, e o vestido, de
um cinza azulado. Como o cabelo, o vestido era solto, uma espécie de robe.
E ainda assim, como seria de se esperar, tanto o cabelo quanto o robe
tinham um caimento um tanto particular que os datava, tão certo como se
sua proprietária tivesse sido vestida e penteada no auge da moda da época.
Ela era esguia, mas parecia forte. Não havia volume em seu queixo e em
seu pescoço, suas mãos eram estreitas. Uma mulher inusitadamente
masculina, mais adequada ao século de Jonquil, no qual os sexos
costumeiramente se misturavam, esbeltos e levemente musculosos — a
mulher na pintura também era assim. Seu rosto era impenetrável, os olhos
pretos. Ela não era bela nem atraente. Era um rosto animal e insípido,
temperado por sua própria luz suave, como a lua, e carente de visão ou de
uma expressão verdadeira, porque o artista não soube como captá-la.
Por trás da mulher, havia uma vista que Jonquil primeiramente tomou
como sendo a laguna. Mas, depois, viu que entre o denso nevoeiro de
nuvens amarelas e a água esverdeada, ambos com um tom azulado, uma
cadeia de montanhas esburacadas e fissuradas ondeava feito um aqueduto
sobrenatural. Era a paisagem do Vênus de Johanus. O artista da pintura era
o astrólogo louco que havia adornado a casa. Como as autoridades podiam
ter perdido esse achado?
— Ora — disse Jonquil para a pintura. Ela estava empolgada. O quanto
isso não valeria enquanto símbolo de fama?
Ela puxou a pintura novamente, com mais cuidado do que antes. Era
leve para seu tamanho. Ela conseguia manipulá-la. Jonquil pausou por um
momento, olhando de perto para a mulher na tela. Era uma tela estranha,
sua textura sob a tinta... mas, naqueles dias, três séculos atrás, eles às vezes
usavam materiais estranhos. Até alguns produtos químicos ou poções
experimentais poderiam ter sido misturados à pintura, para dar a ela sua
coloração incomum.
Um nome estava escrito num pergaminho na base da pintura. Jonquil
entendeu como sendo uma assinatura. Mas não era o nome do astrólogo,
embora próximo o bastante para indicar algum elo. Johnina.
— Jo-nai-nah — disse Jonquil —, vamos dar uma breve caminhada, lá
embaixo, pra eu poder dar uma olhada decente em você.
Agora, com enorme cuidado, ela levou a pintura de Johnina para fora do
sótão e desceu a escada estreita em direção ao salão.
Uma mão estava acariciando seu cabelo curto. Era muito agradável; ela
era uma gata sendo acariciada. Jonquil sorriu preguiçosamente. Era como o
primeiro dia das festas de fim de ano, com sua mãe ao lado da cama, e elas
conversavam. Mas não, não era sua mãe. Era a mulher maravilhosamente
bela que ela havia visto — onde elas estavam agora? Talvez na cidade, uma
excêntrica que ali vivia, caminhando lá fora na turquesa do crepúsculo ou
na orquídea fúnebre da aurora, quando as estrelas estavam na lagoa. Muito
alta, um corpo ágil e desenvolvido, graciosa, com o cachecol azul enrolado
folgadamente e o cabelo incrível, tão espesso e louro, caindo sobre ele,
sobre seus ombros e sobre a firme linha em concha de seus seios, a barriga
lisa, e o V de sereia de suas coxas.
— Olá — disse Jonquil. E a mulher deu o mais tênue dos meneios de
sua cabeça de leão com sua juba. Jonquil não falaria. Elas não precisavam
de palavras. Mas a mulher sorriu também. Era um sorriso tão sensacional.
Tão natural, estimulante e tranquilizante. Os olhos tão, tão escuros,
repousaram sobre Jonquil com uma ternura que também era cruel. Jonquil
já havia visto esse olhar em outras pessoas e um frisson de avidez se
apossou dela, que se envergonhou; era cedo demais para esperar — mas a
mulher agora se inclinava sobre ela, aquela maravilha de rosto agora
borrado e sua cabeleira gotejando sobre a pele de Jonquil. A boca beijou,
gentil e resolutamente.
— Ah, isso — disse Jonquil sem palavra alguma.
A mulher, que se chamava Johnina, estava deitada sobre ela. Ela era
pesada e seu peso esmagava e imobilizava; Jonquil estava indefesa. Era
aquilo de mais desejado, estar indefesa daquela forma, incapaz até mesmo
de erguer as próprias mãos, como se ela não tivesse força alguma. E as
mãos de Johnina estavam nos seios dela, de alguma forma, entre seus dois
corpos aderidos, descobrindo a forma de Jonquil com lentas e suaves
espirais. E gentilmente, sem nada de grosseiro nem urgente, a coxa azul do
mar de Johnina se esfregou contra Jonquil até ela se afligir e derreter. Ela
fechou os olhos e só conseguia pensar na doce e desapressada jornada do
corpo dela, das mãos que guiavam e acariciavam, na cauda de sereia que a
ergueu e do som do mar nos ouvidos dela. Johnina beijava e beijava, e
Jonquil Hare sentiu-se dissolvendo em Johnina, no corpo dela, e não
conseguia nem mesmo gritar. E então, Jonquil estendeu os braços no
maremoto do orgasmo, em que a cada onda alguma outra parte dela era
varrida. E, quando não restava mais nada, ela despertou no escuro vazio do
silêncio, com algo duro e frio, viscoso, mas quase sem peso, deitado sobre
ela, um retângulo numa moldura dourada, a pintura que havia caído por
cima dela e a coberto dos seios aos tornozelos.
Jonquil atirou a pintura para longe, que retiniu na queda. Ela se agarrou
ao próprio corpo, achando que se descobriria coalhada com algum tipo de
cola ou gosma, mas não havia nada assim.
Estava fraca, tonta e seu coração batia ruidosamente, de modo que ela
não conseguia mais ouvir o silêncio.
Antes: Paris, 1793. Termidor, Ano Três, logo antes do fim do Terror...
— Ah, ora, Cidadão. Como está corado.
Tenho que acordar, pensa Jean-Guy Sansterre, lenta e relaxadamente —
as palavras perdendo sua forma enquanto ele as constituía, como água,
pingando por uma mão mental aberta, os dedos espalhados e impotentes.
Despertar-me. Agir. Lutar...
Mas, em vez disso, ele sente como se seu corpo inteiro estivesse fixo
em uma inexorável variedade arcana de sono — os membros flácidos e
pesados, a cabeça pendendo para trás em estofados de cetim vermelho
escuro. Ele cai de costas no interior fechado e obscurecido do coche do
Chevalier du Prendegrace, uma langorosa bruma de cortinas de veludo
fechadas contra as quais Jean-Guy se encontra indefeso, como algum
micro-organismo preso entre as lentes franjadas e suavemente convexas de
um olho parcialmente fechado.
Lá fora, à pouca distância, ainda é possível ouvir os constantes rosnados
e engulhos da Viúva, a Lâmina Nacional, a lendária Máquina cortando o ar
da Place de la Revolution — aquele excelente dispositivo patenteado pelo
elegante Dr. Guillotin para curar eternamente as dores e padecimentos das
cefaleias, ressacas e insônias. O repetitivo baque do corpo na tábua, cabeça
no cesto. As tricoteuses com suas gozações e zombarias, tricotando sob os
degraus da forca, seus barretes frígios acenando no ritmo dos passos do
executor, perfazendo seu ritual; mantenedoras autoproclamadas da
consciência pública, essas sinistras bruxas que viveram mais do que seus
antigos opressores uma vez após a outra. Aquelas multidões uivantes de
sans-culottes, os sem-calção — todos gritando em uníssono por ainda mais
nociva liberdade, ainda mais, sempre mais: um grande e sanguinário rio
sem fonte nem maré, deixado correr solto para inundar as ruas da cidade
com uma visível vingança...
— Você sabe que complexo mecanismo corporal se encontra por trás do
funcionamento de um simples rubor, Cidadão Sansterre?
Essa voz lenta, vaporosa e lânguida como um anel de fumaça audível,
emerge da semiescuridão vermelha do coche. Continuando, gentilmente:
— Fiz um antigo estudo sobre tais questões; estritamente amador em
sua natureza, é claro, embora tão minucioso e inquisitivo quanto meus
parcos recursos poderiam me permitir.
No coche do Chevalier, Jean-Guy sente-se dobrar e turvar sob o peso de
sua própria exaustão hipnotizada, como cera derretida — arreganhado em
todos os sentidos, como seus braços fortes, porém inúteis, suas pernas
débeis, como se não tivessem nervos...
— O rubor se espalha conforme o sangue se eleva, mostrando-se mais
marcadamente nos pontos mais finos da pele, um mapa de veias,
eminentemente traçáveis. Quase... legíveis.
Tão imperativa, essa ânsia de fugir, de lutar. E, ainda assim,
totalmente...
...impossível.
— Veja, aqui e ali, onde marcos divisórios se evidenciam: esses nós de
veias e artérias, delicadamente entrelaçados, que cingem as partes de baixo
de seus punhos. Mais dois grandes vasos, escondidos na raiz da língua. Um
bem longo e arqueado, delineando a haste daquele outro... órgão... sem
ossos cujo nome apropriado não podemos citar em companhia mista.
Sentando. Espalhando-se, flácido. E pensando:
Eu... tenho...
— E essa comoção de agora? Nessa mesma... área... impronunciável?
...tenho que... acordar...
— Também é sangue, meu amigo. Sangue, que... como diz o velho
adágio... tudo revela.
Mas: Isso é só um sonho, Jean-Guy recorda a si mesmo,
momentaneamente surpreso com sua própria coerência. De algum modo,
adormeci em serviço, o que é ruim, embora dificilmente imperdoável... e
porque o fiz enquanto pensava no ci-devant28 Chevalier du Prendegrace,
mestre daquele traidor do Dumouriez, teci essa estranha fantasia.
Pois Prendegrace não podia estar aqui, afinal; ele terá fugido antes dos
agentes de Jean-Guy, como qualquer outro fidalgote. E, sabendo disso...
Sabendo disso, vou despertar em breve e realizar a missão designada a
mim pelo Comitê de Segurança Pública: capturar Dumouriez, desvelar esse
ninho de víboras lustrosas e tudo será como eu me lembro.
Ao mesmo tempo, enquanto isso, o Chevalier (ou seu fantasma — pois
poderia ele de fato estar ali, sonho ou não?) sorriu para Jean-Guy pela
sombra escarlate que se adensava, todo num intenso — e terno —
divertimento. Uma figura delgada e ágil, igualmente vestida inteiramente de
vermelho, sua elegância hereditária solapada por um angustiante fiapo
plebeu de higiene mais precária que o comum; seu lúgubre casaco de
veludo coberto por um cachecol amarrado imaculadamente, mas
obviamente desbotado; meias de seda casualmente gastas e desbotadas,
sobre sapatos de fivelas com seus elegantes saltos de cortiça. Bordas
escuras em suas longas unhas — sujeira ou algo mais, ressecadas há tanto
tempo que se tornaram pretas.
Sua pele branca demais tem um cheiro ruim, levemente mortuário. Acre
nas narinas estreitadas e complacentes de Jean-Guy.
— Você carrega um excedente de sangue, Cidadão, pela evidência
mostrada pelo mapa da pele — o Chevalier parece dizer, gentilmente. — E
assim pode, nem que seja em nome da educação, considerar ceder uma
pequena porção desse estoque transbordante... a mim.
— Não pode nunca falar claramente, aristô maldito? — exigiu Jean-
Guy com uma voz rouca.
— Talvez não — vem a resposta murmurante. — Embora, parando para
pensar a respeito... não posso dizer que já tenha tentado.
Inclinando-se para baixo, dobrando sua cabeça luzidia e empoada, um
fantasma vivo de uma geração exterminada; lambendo seus finos lábios
brancos com Jean-Guy deitado diante dele, mole, indefeso. Tão macio, por
toda parte... em todo lugar...
...menos um.
1793:
Jean-Guy desperta ao crepúsculo, para uma rua vazia. Aquela multidão
enfurecida que anteriormente se reuniu para apedrejar e aprisionar o coche
fugindo do Chevalier du Prendegrace aparentemente passara para o
problema seguinte, mais distante. Ele se encontra estirado sobre uma pilha
de lixo detrás da porta dos fundos do açougueiro, a cabeça zonza e o
estômago revolvendo; embora, se a náusea em questão resultava de sua
própria fraqueza física, do cheiro da massa de ossos semiapodrecida
debaixo dele ou do som das moscas que se aglomeravam em suas
superfícies parcialmente desnudadas, ele não sabia de fato dizer. Mas ele
desperta também para a voz de seu melhor espião — o bem afamado La
Hire — dizendo a ele que deve abrir os olhos, lançar-se de pé, despertar,
enfim...
— Que a própria Deusa da Razão me fulmine se não pensamos que
estava perdido para sempre, Cidadão... talvez assassinado, ou até preso.
Como todos os outros membros do Comitê.
Praticamente o mesmo conselho que Jean-Guy se lembra de ter dado a
si mesmo, há não muito tempo. Quando estava envolto por aquela
intimidade vermelha escura entre aquelas cortinas de veludo fechadas,
envolvido e sujeito ao peso do ar rançoso no abominavelmente macio e
firme domínio dos estofados do Chevalier. Porém:
— Cidadão Sansterre! — Um tapa em sua mandíbula, vira sua pesada
cabeça intensamente para a esquerda. — Está em transe? Eu disse que não
conseguíamos achá-lo.
Bom... mas você agora me achou. Não foi...
...Cidadão?
A voz murmurante do Chevalier, reduzida a um eco no sangue de Jean-
Guy. Seu olhar oculto, mascarado de vidro vermelho, indo e vindo por trás
dos olhos doloridos de Jean-Guy, como o lampejo no horizonte de um
relâmpago silencioso.
Ele balançou a cabeça, ainda cambaleando pela ferroada da mão de La
Hire. E se forçou a formar palavras, repetindo:
— O Comitê.
— Acabou, Cidadão. Espalhado aos ventos.
— Cidadão... Robespierre?
— Preso, fuzilado, a mandíbula segura por uma bandagem. Vai beijar a
Viúva amanhã... assim como nós, se não fugirmos correndo como o Diabo
desta cidade fedorenta.
Apoiando-se fracamente no braço de La Hire, Jean-Guy usa-o para
alavancar tremulamente para cima. Ele sente a boca caudalosa, os lábios e
as gengivas em carne viva; sangue novo, fresco e grudento em um canto,
um bolo de sangue velho e azedo entre suas gengivas de trás, na raiz
dolorida de sua língua. Mais sangue se liberta enquanto ele se levanta,
desgrudando-se da barra esquerda de sua camisa semiaberta, da
protuberância de um mamilo; ao que ele dá um passo adiante, ainda mais
sangue é encontrado, colando-o firmemente ao seu próprio calção, rígido e
marrom, naquela...
...área impronunciável...
E, em um pulso, um leve ferimento em forma de lua crescente —
arroxeado e inflamado, rosa da infecção semicicatrizada. Um testemunho
dolorosamente erigido a uma memória tão obscura quanto um sonho: a
pequena língua grossa do Chevalier se pressionando com força, fria feito a
de um gato morto, contra a pele fina sobre a veia mais elevada.
Eu deixei minha marca em você, Cidadão.
Jean-Guy passa uma mão sobre seu cenho, tossindo, então a traz de
volta úmida — e vermelha. Olha para baixo de soslaio e se vê
inspecionando uma mão cheia de suor tingido de sangue.
— Dumouriez — pergunta ele a La Hire, com dificuldade. — Levado...
também?
— Horas atrás.
— Leve-me... ao quarto dele.
1793:
Sangue e sujeira e o distante ribombar das carroças passando — a
bruma quente se transformando em chuva escaldante, conforme novas
ondas de fedor formam redemoinhos e se deslocam ao redor deles.
Dumouriez vira a esquina para o Casario do Homem Armado e La Hire e
Jean-Guy trocam um olhar revelador: o plano de ataque, como previamente
determinado. La Hire vai tomar o caminho dos fundos, para além de onde
espreita a prostituta, enquanto Jean-Guy espera sob um conveniente toldo
— para manter sua pólvora seca — até ouvir o sinal, usando esse meio-
tempo para preparar a pistola. Eles dão a Dumouriez a dianteira de alguns
minutos, então se erguem como um só.
O suor manchado de carmesim, lembranças enxameando seu cérebro
feito vermes. Mais ainda sobre o clã Prendegrace, um afluxo de curiosidade
sinistra, tingido de vermelho...
Seu lema: nus souvienz le tous. “Nós nos lembramos de tudo.”
Seu posto hereditário na corte: atendentes ao quarto do rei, uma função
descontinuada em algum momento durante o reino de Henri de Navarre, por
razões historicamente obscuras.
O rumor: que durante o massacre da noite de São Bartolomeu, um
Prendegrace — geralmente não nomeado — foi visto apelando à honra do
então Rei Charles IX com um punhado de carne protestante.
Prendegrace. “Aqueles que receberam a graça de Deus.”
Receber.
Ou... não seria... tomar a graça de Deus...
...para si próprios?
Jean-Guy sente um atordoamento crescer e lança o punho contra a
parede do apartamento para se apoiar. Então, o sente balançar e pulsar em
resposta, sob os nós de seus dedos, como se seu próprio coração, aos pulos,
estivesse enterrado sob aquele gesso amarelado.
1815:
Jean-Guy sente uma nova umidade descer por seu braço, traçando-o e
ensopando de vermelho a barra de sua manga: seu ferimento de guerra,
aberto mais uma vez, em empática proximidade a... ao quê? Aos seus
próprios retalhos esfarrapados de memória, escorregando e deslizando feito
catarro no vidro? A essa casa conspurcada, assombrada, em que Dumouriez
— como alguma aranha de alçapão dos trópicos — fez negócios com o
nome aristocrático de seu mestre, de modo a aliciar para sua teia a presa
viçosa mais fácil que pudesse achar, então engordá-la (embora brevemente)
antes de usá-la para satisfazer os familiares apetites depravados de M. le
Chevalier?
Sangue, do pulso à palma, marcando novamente a parede; sangue em
sua garganta, da base de sua língua que sangrava, pintando sua saliva de
vermelho enquanto ele pigarreia e tosse — toda a civilidade perdida, num
espasmo momentâneo de pura repulsa — no chão empoeirado.
Respingos de sangue na poeira, como um hieróglifo escarlate maduro:
líquido, repugnante, infinitamente maleável. Totalmente... ininterpretável.
Eu deixei minha marca em você, Cidadão.
Sangue em seu colarinho, em seu mamilo. Sua...
(...virilha.)
Meu anzol em sua carne. Meu carretel se enrolando.
Jean-Guy o sente puxá-lo para baixo, para o turbilhão.
1793:
O coche. Prendegrace sentado bem em frente a Jean-Guy, ao mero
alcance da mão, delgado, ágil e abominavelmente lânguido, em seu rico
veludo vermelho; seu cabelo está puxado para trás, com os cachos para a
lateral, tão bem empoado que Jean-Guy nem consegue dizer sua cor
original, muito menos usar sua decidida falta de contraste para ajudá-lo a
decifrar as feições similarmente pálidas do rosto que ele emoldura. Exceto
notar que, como se numa imitação zombeteira do Cidadão Robespierre, o
Chevalier também adota um par de óculos com lentes escurecidas...
Embora, em vez de verde-mar, esses pequenos e inexpressivos
quadrados brilhem com tênue — embora inequívoco — tom de escarlate.
Ganhe tempo, diz o cérebro de Jean-Guy a ele enquanto isso —
comunicando seu habitualmente bom conselho com uma gentileza
incomum, como se, caso ele falasse mais alto, o Chevalier pudesse de
algum modo ouvi-lo. Finja que não o reconheceu. Então, libere sua pistola,
lentamente; dê um tiro de aviso e convoque os bons Cidadãos lá fora...
...aqueles mesmos que você quis evitar entrando aqui, para começar...
...para auxiliá-lo na prisão dele.
Quase bufou alto só de pensar nisso, antes de se controlar: como se um
agente do invejável tamanho e constituição de Jean-Guy precisasse de fato
temer as débeis defesas de um almofadinha ci-devant como esse aí, com
seus punhos pregueados e seus elegantes sapatos de saltos vermelhos, com
suas fivelas baças, mortiças e manchadas — do lado mais próximo, ao
menos — com algo que quase parecia...
...sangue?
Com certeza não.
E ainda assim...
— O senhor seria o Cidadão Sansterre, creio eu — observou o
Chevalier, abruptamente.
Em nome de Deus.
Recuperando-se, Jean-Guy deu um rígido aceno de cabeça.
— E o senhor... o traidor, Prendegrace.
— E isso que o senhor tenta alcançar sob seu colarinho seria uma
pistola?
— Seria.
Um soco, um chute, um grito por ajuda, o saque de sua própria arma
oculta: Jean-Guy, um estopim de prontidão, se prepara para o combate,
tensionado ao ponto de quase dor contra qualquer uma das alternativas
anteriores. Mas o Chevalier meramente acena também com a cabeça,
indiferente em face da sincera agressão de Jean-Guy — sua própria
passividade em si, uma forma de arrogância, um frio e lânguido desafio
aristocrático ao mundo plebeu progressivamente destemperado ao seu redor.
Então, ele se inclina apenas um pouco para a frente, quase ao mesmo
tempo: um piscar paralítico de não movimento, tão sutil que mal valia
notar... que com tudo isso, Jean-Guy agora se vê começando — mal
reconhecendo o que ele faz, muito menos o porquê — a igualar.
Inclinando-se, devagar demais para poder se conter, para deter essa
queda no meio do mergulho. Inclinando-se, enquanto as lentes vermelhas
do Chevalier se vergam, escorregando inexoravelmente para baixo, para
revelar uma pálida beira de cenho, de cílios, de órbitas oculares. E se
inclinando ainda mais para ver... abaixo disso...
...primeiro um olho, depois o outro. Puros, mas opacos,
apavorantemente vazios. Olhos sem o branco (nem íris, nem pupilas), o
mesmo tom de escarlate inexpressivo — da pálpebra inferior à superior —
dos óculos que o mascaravam.
Palavras na escuridão vermelha, proferidas quase baixo demais para
serem ouvidas; Jean-Guy tem que se esforçar para captá-las, inclinando-se
ainda mais para perto. Pondo uma trêmula mão no ombro do Chevalier,
para se apoiar, e sentindo-os vibrar sob sua palma, o braço dele, o peito, o
coração selvagemente pulsante: um abraço, interior e secreto, íntimo como
uma praga, espremendo-o por entre as costelas, por entre as coxas. E...
...mais fundo.
Diante dele, pairam as próprias mãos do Chevalier, lisas palmas brancas
viradas pacientemente para cima. Aquelas longas unhas de pontas pretas.
Aquelas palavras vermelhas, traçando a miríade de caminhos de sangue.
Sugerindo, delicadamente...
Então seria melhor entregá-la a mim, Cidadão... essa sua pistola. Não
seria?
Porque: isso seria a coisa certa a se fazer, realmente. Levando tudo em
consideração.
Você não acha?
Sim.
Por garantia. Para... guardá-la em segurança.
...exatamente isso, sim.
Que argumentação gentil. Que bom senso insuportável.
Jean-Guy sente sua boca se abrir como se ele fosse protestar, mas ouve
apenas o tênue e úmido estalo das articulações de sua mandíbula relaxando
num bocejo idiota; ele se observa, impotente, pôr a pistola — coronha para
a frente — nas mãos do Chevalier. Ele vê o Chevalier aparentemente piscar,
só levemente, em resposta: um não olhar todo vermelho, borrado apenas
pelo meneio momentâneo, leitoso e breve como a nictitante membrana de
uma cobra.
E...
— Pronto, agora — observou o Chevalier em voz alta. — Isso... deve
servir... muito melhor a nós dois.
Não deve?
Uma elevação semiformada, uma última tentativa abafada de uma
investida, músculos amarrados em si mesmos como algum vira-lata perdido
nos estágios finais salpicados de espuma da hidrofobia... e então, sem aviso
o Chevalier está nele. Suas bocas se selam, lábios abertos para dentes feito
agulhas-osso: o sangue enche a garganta de Jean-Guy, untando o caminho
conforme o Chevalier prende com força sua língua tremulante. Suas
gengivas queimam como úlceras. Isso é bem menos um beijo e mais uma
ferida subitamente aberta, uma artéria cortada e deixada para jorrar.
A pistola cai, esquecida.
O veneno aferroa o coração de Jean-Guy. Ele se engasga com a boca
cheia de um frio doloroso e entorpecente, que o leva às raias do sono e à
beira do clímax simultaneamente, com a adstringente língua do Chevalier
raspando os tecidos inflamados de sua boca, áspera como a de um gato. Ele
se vê agarrando em seus braços essa coisa, feito um cão galgo, pelo cabelo
bem-arrumado, se ancorando de modo que eles se encaixam um no outro
ainda mais firmemente, e sente um banho de talco seco cair ao redor dos
rostos de ambos, como a neve suja da cidade; a fita do Chevalier se
desamarra, seus cachos laterais esmeradamente anelados se desfazendo
feito algas na corrente gelada. Enquanto isso, no mesmo instante, a lapela
mais aparente de seu vívido casaco se abre para trás — hábil como algum
truque de um charlatão — para revelar a fria carne branca sob ela: nenhum
pulso visível sob seu peitoral liso, o mamilo rijo, mas totalmente sem cor...
...ah, sim, sim, sim...
Jean-Guy sente as mãos do Chevalier — agora como garras — tentear
os botões de sua braguilha, libertando-o para erguer-se num estalo nesse
terrível brilho vermelho. Então o vê dar um rápido movimento duplo com o
polegar pelo sulco, pela dilatada e úmida protuberância de veludo, fazendo
a torrente escarlate brotar ao longo da crista uretral mais rápido do que
Jean-Guy poderia gritar com a dor horrorizada e surpresa.
Pela morte e o Demônio!
O Chevalier dá um leve sorriso de deleite ante essa visão. Sua boca se
escancara feito o reflexo flehmen de um gato, saboreando o ar com aroma
de abatedouro. Quase babando.
Povo, Revolução, Ser Supremo, por favor...
Lábios se retraindo. Presas se estendendo. Sua cabeça luzidia
mergulhando, como se numa profana oração...
...ah, Deus, ah, Jesus, não...
...para beber dele.
Mais palavras abafadas de algum modo sobem em ondulações pela
hérnia femoral acima da virilha de Jean-Guy, ao mesmo tempo em que ele
engole a bile, todo o seu mundo virtuoso reduzindo-se a uma alfinetada de
dor impossível, de êxtase inominável e sobrenatural — enquanto ele
começa a se atordoar, gozar sangue, apagar:
Ah, Cidadão... não vá me deixar justo agora. Não quando...
...estamos... tão perto...
...de encontrar um ao outro, uma vez mais.
Esta carta foi escrita quando Bella estava há menos de um mês em Cap
Ferrino, antes de a novidade da paisagem ter se desgastado e antes de ela
começar a se empanzinar do prazer de seus luxuosos arredores. Ela escrevia
toda semana para sua mãe, cartas longas como só as que moças que
viveram em companhia próxima apenas da mãe podem escrever; cartas que
são como um diário da mente e do coração. Ela escrevia sempre
alegremente; mas, quando o novo ano começou, a Sra. Rolleston achou ter
detectado uma nota de melancolia sob todos aqueles detalhes vívidos a
respeito do lugar e das pessoas.
Minha pobre menina está ficando com saudades de casa, ela pensou.
Seu coração está na Rua Beresford.
Poderia ser que ela sentisse falta de sua nova amiga e companheira,
Lotta Stafford, que partira com seu irmão para um pequeno giro por Génova
e Spezia, indo ainda mais longe, para Pisa. Deveriam estar de volta antes de
fevereiro; mas, nesse meio-tempo, Bella haveria de se sentir muito solitária
entre todos aqueles estranhos, cujos modos e atitudes ela havia descrito tão
bem.
O instinto materno havia se mostrado acertado. Bella não estava tão
feliz quanto naquele primeiro afluxo de fascínio e deleite que se seguiu à
sua mudança de Walworth para a Riviera. De algum modo, ela não sabia
como, uma lassitude havia sorrateiramente se achegado a ela. Não mais
amava escalar as colinas, não mais brandia seu cajado laranja com o
coração pleno de satisfação, enquanto seus pés leves saltavam sobre o solo
escarpado e a grama áspera ao pé da montanha. O odor de alecrim e
tomilho, o hálito fresco do mar, não mais a tomavam de enlevo. Ela pensava
na Rua Beresford e no rosto de sua mãe, doente de saudade. Elas estavam
tão... distantes! E então, ela pensava em Lady Ducayne, sentada junto às
toras de oliveira empilhadas no salão excessivamente quente; pensava
naquele encarquilhado perfil de quebra-nozes30 e naqueles olhos brilhantes
com um horror invencível.
Os visitantes do hotel haviam dito a ela que o ar de Cap Ferrino era
relaxante, mais adequado aos idosos que à juventude, mais à doença que à
saúde. Sem dúvida, assim o era. Ela não estava tão bem quanto havia estado
em Walworth; mas disse a si mesma que estava sofrendo apenas da dor da
separação da querida companhia de sua infância, a mãe que havia sido sua
ama, sua irmã, sua amiga, sua aduladora, todas as coisas neste mundo para
ela. Tinha derramado muitas lágrimas por essa separação, passado um tanto
de horas melancólicas no terraço de mármore, com olhos sequiosos fitando
o oeste, e com aquilo que mais desejava a mil quilômetros dali.
Ela estava sentada em seu lugar favorito, um canto na ponta leste do
terraço, um pequeno e tranquilo recesso abrigado pelas laranjeiras, quando
ouviu um par de habitués da Riviera conversando no jardim logo abaixo.
Estavam sentados em um banco junto a parede do terraço.
Ela não teve intenção alguma de escutar a conversa, até que o som do
nome de Lady Ducayne a atraiu e então escutou sem nenhuma intenção de
transgressão. Eles não estavam trocando segredos, apenas falando
casualmente a respeito de uma frequentadora do hotel.
Eram duas pessoas idosas que Bella conhecia apenas de vista. Um
clérigo inglês que durante metade de sua vida havia passado seus invernos
no exterior; e uma solteirona robusta, tranquila e próspera, sua bronquite
crônica a obrigava a imigrar anualmente.
— Eu a encontrei pela Itália nos últimos dez anos — disse a senhora —,
mas nunca descobri sua verdadeira idade.
— Eu daria a ela cem anos... nem um a menos — respondeu o pároco.
— Suas reminiscências todas remontam à Regência. Ela então estava,
evidentemente, em seu apogeu; e já a ouvi dizer coisas que mostram que ela
já era da sociedade parisiense quando o Primeiro Império estava no auge...
antes de Josephine se divorciar.
— Ela não fala muito agora.
— Não... não resta muita vida nela; é sábio de sua parte se manter
reclusa. Só me pergunto como aquele velho charlatão perverso, seu médico
italiano, não deu cabo dela anos atrás.
— Eu pensaria que é o contrário e que ele a mantém viva.
— Minha cara Srta. Manders, acha que o charlatanismo estrangeiro
algum dia manteve alguém vivo?
— Bem, aqui está ela... e ela nunca vai a lugar nenhum sem ele. Seu
semblante é certamente desagradável.
— Desagradável — ecoou o pároco. — Creio que nem o abominável
demônio em pessoa possa vencê-lo em feiura. Tenho pena daquela pobre
jovem que tem que viver entre a velha Lady Ducayne e o Dr. Parravicini.
— Mas a velha senhora é muito boa para suas acompanhantes.
— Sem dúvida. Ela é muito generosa com seu dinheiro; os servos a
chamam de a bondosa Lady Ducayne. Ela é como uma versão feminina,
velha e murcha de Creso; sabe que nunca poderá esgotar seu dinheiro e não
lhe agrada a ideia de outras pessoas desfrutando dele enquanto ela está no
caixão. Gente que vive até ficar tão velha quanto ela se torna abjetamente
apegada à vida. Ouso dizer que ela é generosa com essas pobres moças...
mas é incapaz de fazê-las felizes. Elas morrem em seu serviço.
— Não diga “elas”, Sr. Carton; sei que aquela pobre moça morreu em
Mentone, na primavera passada.
— Sim, e outra pobre moça morreu em Roma há três anos. Eu estava lá
na época. A bondosa Lady Ducayne deixou-a lá, com uma família inglesa.
A moça tinha todo conforto. A velha era bastante generosa com ela... mas
ela morreu. Estou dizendo, Srta. Manders, não é bom para jovem alguma
viver com dois horrores tamanhos quanto Lady Ducayne e Parravicini.
A dupla conversou sobre outras coisas, às quais Bella mal escutou. Ela
se sentou imóvel e um vento frio pareceu descer sobre ela das montanhas e
a avançar lentamente vindo do mar, até estremecer ali sentada sob o sol, ao
abrigo das laranjeiras em meio a toda beleza e claridade.
Sim, eles eram atípicos, certamente, todos os dois — ela, tão parecida
com uma bruxa aristocrática em sua velhice encarquilhada; ele, de nenhuma
idade em particular, com um rosto que mais estava para uma máscara de
cera do que para qualquer semblante humano que Bella já tivesse visto. De
que importava? A velhice é venerável e digna de toda reverência; e Lady
Ducayne havia sido muito gentil com ela. O Dr. Parravicini era alguém
estudioso, inócuo e inofensivo, que raramente erguia o olhar do livro que
estava lendo. Ele tinha sua sala de estar particular, na qual havia feito
experimentos de química e ciência natural — talvez em alquimia. De que
isso importava a Bella? Ele sempre havia sido educado com ela, de seu
modo distante. Ela não podia estar mais satisfatoriamente colocada do que
estava — naquele hotel palaciano, com aquela rica senhora.
Sem dúvida, sentia falta da moça inglesa que havia sido tão amistosa, e
poderia ser que sentisse falta do irmão da moça, pois o Sr. Stafford havia
conversado bastante com ela; havia se interessado pelos livros que a jovem
estava lendo e pela maneira como ela se divertia sozinha quando não estava
em serviço.
— Precisa vir à nossa saleta quando estiver “liberada”, como dizem as
enfermeiras do hospital, e podemos desfrutar de um pouco de música. Sem
dúvida, a senhorita toca e canta? — Ao que Bella teve que admitir, com um
rubor de vergonha, que há eras havia se esquecido de como tocar piano.
— Mamãe e eu costumávamos cantar em dueto ao poente, às vezes, sem
acompanhamento — ela disse, e as lágrimas lhe vieram aos olhos ante a
lembrança do quarto humilde, a meia hora de trégua do trabalho, a máquina
de costura no lugar onde poderia ter estado o piano e a voz plangente de sua
mãe, tão doce, tão sincera, tão querida.
Às vezes, ela se pegava pensando se algum dia veria sua amada mãe
novamente. Estranhos agouros lhe vinham à mente. Ela ficava com raiva de
si mesma por ter dado espaço a pensamentos melancólicos.
Um dia, perguntou à criada francesa de Lady Ducayne sobre aquelas
duas acompanhantes que morreram em menos de três anos.
— Elas eram criaturas pobres e frágeis — Francine disse a ela. —
Pareciam viçosas e radiantes o bastante quando vieram até Milady; mas
comiam demais e eram preguiçosas. Morreram de luxo e ócio. Milady era
boa demais com elas. Não tinham nada para fazer; e então passaram a
imaginar coisas; imaginavam que o ar não lhes era adequado, que não
conseguiam dormir.
— Eu durmo bem o bastante, mas tive um sonho estranho várias vezes,
desde que cheguei à Itália.
— Ah, é melhor a senhorita não começar a pensar em sonhos ou vai
ficar como as outras moças. Elas também eram dadas a sonhos... e de tanto
sonhar, acabaram no cemitério.
O sonho a incomodava um pouco, não porque fosse lúgubre ou
assustador, mas devido a sensações que ela nunca havia tido antes no sono;
um zumbido de rodas circulando seu cérebro, um barulho alto, feito um
redemoinho, mas ritmado tal qual o tique-taque de um gigantesco relógio: e
então, em meio a esse alvoroço semelhante a ventos e ondas, ela parecia
afundar em um golfo de inconsciência, saindo desse sono para um ainda
mais profundo — a total extinção. Depois desse intervalo vazio, vinha o
som de vozes e, então, mais uma vez, o zumbido das rodas, cada vez mais
alto — e mais uma vez o vazio — e ela nada mais sabia até de manhã,
quando despertava, sentindo-se lânguida e aflita.
Um dia, contou seu sonho ao Dr. Parravicini, na única ocasião em que
quis seus conselhos profissionais. Ela havia sofrido um tanto severamente
com os mosquitos antes do Natal, e ficou quase assustada ao descobrir um
ferimento em seu braço que podia atribuir unicamente à venenosa picada de
um desses torturadores. Parravicini pôs seus óculos e escrutinizou a raivosa
marca no braço roliço e branco, enquanto Bella se postava diante dele e de
Lady Ducayne com sua manga enrolada até acima do cotovelo.
— Sim, isso é bem mais do que uma bobagem — disse. — Ele a pegou
bem em cima de uma veia. Mas que vampiro! Mas não há mal algum,
signorina, nada que um pequeno curativo meu não cure. Deve sempre me
mostrar qualquer mordida desta natureza. Pode ser perigoso, se
negligenciado. Essas criaturas se alimentam de veneno e o disseminam.
— E pensar que criaturas tão pequeninas podem dar mordidas como
essa — disse Bella. — Parece que meu braço foi cortado a faca.
— Se eu mostrasse à senhorita uma picada de mosquito sob meu
microscópio, não ficaria surpresa com isso — respondeu Parravicini.
Bella teve que suportar as mordidas de mosquito, mesmo quando elas
vinham por cima de uma veia e produziam aquele ferimento horrível. A
ferida era recorrente aqui e ali em intervalos longos, e Bella encontrou no
curativo do Dr. Parravicini uma cura rápida. Se ele fosse o charlatão que
seus inimigos afirmavam, ao menos tinha a mão leve e um toque delicado
para realizar aquela pequena operação.
Bella Rolleston para a Sra. Rolleston — 14 de abril
MINHA ETERNA QUERIDÍSSIMA,
Contemple o cheque do salário de meu segundo trimestre — vinte e cinco libras. Não
há ninguém para pinçar um só tenner31 relativo a um ano de comissão, como houve da
última vez, então é todo seu, querida mãe. Tenho em minhas mãos dinheiro reserva o
suficiente, daquele que trouxe comigo quando a senhora insistiu que eu guardasse mais do
que gostaria. É impossível gastar dinheiro aqui, exceto em ocasionais gorjetas aos
funcionários ou trocados aos pedintes e às crianças, a menos que a pessoa tenha muito
para gastar, pois tudo que alguém gostaria de comprar — cascos de tartaruga, corais,
rendas — é tão ridiculamente precioso que só um milionário poderia ter em conta. A Itália
é um sonho de beleza; mas, para as compras, levem-me a Newington Causeway.
A senhora me pergunta tão sinceramente se estou mesmo bem que temo que minhas
cartas tenham sido muito enfadonhas, ultimamente. Sim, amada, estou bem — mas não
estou tão forte como quando costumava atravessar o West End para comprar meia libra de
chá, só para dar um breve passeio, ou quando ia até Dulwich para olhar para as pinturas.
A Itália é relaxante e me sinto como o que as pessoas aqui chamam de “indolente”. Mas já
posso ver seu rosto amado parecendo preocupado enquanto lê isto. De fato, e
efetivamente, não estou doente. Estou apenas um pouco cansada deste cenário adorável —
como suponho que alguém deva se cansar de olhar para uma das pinturas de Turner se ela
estiver pendurada em uma parede para a qual esse alguém estivesse sempre de frente.
Penso na senhora em cada hora do dia — na senhora e em nosso simples quartinho —
nossa saletinha surrada, com as poltronas caindo aos pedaços de nossa velha casa, e Dick
cantando em sua gaiola sobre a máquina de costura. O querido, estridente, enlouquecedor
Dick que, como nós nos gabávamos, é tão apaixonadamente afeiçoado a nós. Diga-me em
sua próxima carta se ele está bem.
Minha amiga Lotta e seu irmão nem chegaram a voltar, afinal. Eles foram de Pisa a
Roma. Felizes mortais! E estarão nos lagos italianos em maio; qual lago ainda não estava
decidido da última vez em que Lotta me escreveu. Ela tem sido uma correspondente
encantadora e me confidenciou todos os seus pequenos flertes. Na semana que vem, iremos
todos a Bellagio — por Génova e Milão. Não é adorável? Lady Ducayne viaja pelos mais
leves estágios — exceto quando está engarrafada no trem de luxo. Devemos parar por dois
dias em Génova e um em Milão. Que tédio eu serei para a senhora com minha conversa
sobre a Itália quando voltar para casa.
Com amor, muito amor — e ainda mais amor,
de sua veneradora, BELLA.
IV
Herbert Stafford e sua irmã conversavam com frequência sobre a bela
moça inglesa de compleição viçosa, que concedia um tão agradável toque
de cor rosada entre todos aqueles rostos amarelados no Grand Hotel. O
jovem médico pensava nela com uma ternura compassiva — sua completa
solidão no grande hotel onde havia tantas pessoas, seu elo com aquela
mulher tão, tão velha, onde todo o resto estava livre para não pensar em
nada além de aproveitar a vida. Era uma dura sina; e a pobre criança era
evidentemente devotada a sua mãe e sentia a dor da separação — só as
duas, muito pobres, e o mundo todo uma da outra, ele pensou.
Lotta disse a ele, certa manhã, que eles se encontrariam novamente em
Bellaggio.
— A coisa velha e sua corte chegarão lá antes de nós — disse ela. —
Ficarei encantada em ver Bella novamente. Ela é tão inteligente e alegre...
apesar de um toque ocasional de saudades de casa. Nunca criei relações
com uma moça tão rápido quanto criei com ela.
— Gosto mais dela quando está com saudades de casa — afirmou
Herbert —, pois aí tenho certeza de que ela tem um coração.
— O que você tem a ver com corações, exceto sua dissecção? Não
esqueça de que Bella é absolutamente paupérrima. Ela me disse em segredo
que sua mãe faz mantos para uma loja no West End. É difícil estar num
patamar mais baixo do que esse.
— Eu não a teria em menor conta se sua mãe fizesse caixas de fósforo.
— Não abstratamente... é claro que não. Caixas de fósforo são um
trabalho honesto. Mas você não poderia se casar com uma moça cuja mãe
faz mantos.
— Ainda não chegamos à consideração dessa questão — respondeu
Herbert, que gostava de provocar sua irmã.
Em dois anos de prática hospitalar, ele tinha visto muito da sinistra
realidade da vida para manter qualquer preconceito a respeito de posição
social. O câncer, a tuberculose, a gangrena deixam em um homem pouco
respeito pelas diferenças externas que variam no casco da humanidade. A
polpa é sempre a mesma — temerosa e maravilhosamente constituída —,
matéria para a pena e o terror.
O Sr. Stafford e sua irmã chegaram a Bellaggio em uma bela tarde de
maio. O sol estava se pondo quando o vapor chegou ao píer; e toda aquela
glória e radiância púrpura que cobrem cada muro nesta época do ano se
ruborizaram e se aprofundaram naquela luz brilhante. Um grupo de damas
estava de pé no píer, observando as chegadas, e entre elas Herbert viu um
rosto pálido que o sobressaltou para além de sua habitual compostura.
— Lá está ela — murmurou Lotta, junto do cotovelo dele —, mas como
está pavorosamente mudada. Ela está um caco.
Eles estavam apertando a mão dela alguns minutos depois e um rubor
havia iluminado seu pobre rosto lívido diante do prazer do encontro.
— Achei que poderiam chegar esta noite — disse ela. — Estamos aqui
há uma semana.
Ela não acrescentou que esteve ali todas as noites para ver o barco
chegar, e um bom par de vezes durante o dia. O Grand Bretagne ficava ali
perto e era fácil escapulir sorrateiramente para o píer quando o apito do
barco soava. Sentiu um júbilo ao reencontrar essas pessoas; uma sensação
de estar entre amigos; uma confiança que Lady Ducayne nunca havia
inspirado nela.
— Ah, minha pobre querida, como deve ter estado terrivelmente doente
— exclamou Lotta quando as duas moças se abraçaram.
Bella tentou responder, mas sua voz se engasgou com as lágrimas.
— Qual o problema, querida? Aquela horrível gripe, suponho eu?
— Não, não, não estive doente... só tenho me sentido um pouco mais
fraca do que costumava ser. Creio que não me dei muito bem com os ares
de Cap Ferrino.
— Parece ter se dado abominavelmente mal. Nunca vi tamanha
mudança em alguém. Deixe Herbert examiná-la. Ele é totalmente
qualificado, você sabe. Ele fez tantas prescrições para os pacientes de gripe
no hospital em Londres. Eles ficaram felizes em receber conselhos de um
médico inglês de maneira amigável.
— Estou certa de que ele deve ser muito inteligente! — hesitou Bella.
— Mas não há mesmo nada com que se preocupar. Não estou doente e, se
estivesse, o médico de Lady Ducayne...
— Aquele homem pavoroso de rosto amarelo? Eu preferiria me
consultar com um dos Bórgias. Espero que não esteja tomando algum dos
remédios dele.
— Não, querida, não tomei nada. Nunca reclamei de estar doente.
Isso foi dito enquanto os três caminhavam até o hotel. Os quartos dos
Stafford haviam sido reservados com antecedência, belos quartos no andar
térreo, abrindo-se para o jardim. Os pomposos aposentos de Lady Ducayne
ficavam no andar de cima.
— Creio que esses quartos sejam logo abaixo dos nossos — disse Bella.
— Então, será ainda mais fácil vir correndo até nós — respondeu Lotta,
o que não era exatamente o caso, uma vez que a grandiosa escadaria ficava
no centro do hotel.
— Ah, hei de achar fácil o bastante — comentou Bella. — Receio que
terão bastante de minha companhia. Lady Ducayne dorme metade do dia
neste clima quente, então, tenho uma boa quantidade de tempo ocioso; e
fico terrivelmente enfadada pensando em mamãe e em minha casa.
Sua voz feneceu ante a última palavra. Era impossível ela pensar com
maior ternura naquela pobre pensão que atendia pelo nome de lar, ainda que
fosse ela o que de mais lindo a arte e a riqueza já houvessem criado. Ela se
enfadava e se consumia naquele adorável jardim, com o lago iluminado
pelo sol e as românticas colinas estendendo sua beleza diante dela. Tinha
saudades de casa e sonhava: ou melhor, uma ocasional recorrência daquele
pesadelo em específico com todas as suas estranhas sensações — era mais
uma alucinação do que um sonho — o zumbido das rodas; o afundamento
em um abismo; a luta para voltar à consciência. Ela tivera o sonho pouco
antes de deixar Cap Ferrino, mas não desde que haviam chegado a Bellagio,
e começou a esperar que o ar desse distrito lacustre a fizesse melhor e que
aquelas estranhas sensações nunca retornassem.
O Sr. Stafford lhe fez uma prescrição e mandou que fosse preparada no
químico próximo ao hotel. Era um poderoso tônico e, depois de duas
garrafas e alguns passeios de barco no lago, e de algumas perambulações
pelas colinas e pelos prados, onde as flores da primavera faziam a terra
parecer o paraíso, a disposição e a aparência de Bella melhoraram como se
por mágica.
— É um tônico maravilhoso — ela falou, mas talvez, no fundo de seu
coração, soubesse que a voz gentil e a mão amistosa do médico que a
ajudava a entrar e a sair do barco, e o vigilante cuidado que a acompanhava
por terra e pelo lago, tivessem algo a ver com sua cura.
— Espero que não esqueça que a mãe dela faz mantos — disse Lotta,
em advertência.
— Ou caixas de fósforo: são a mesma coisa, até onde me diz respeito.
— Quer dizer que em circunstância alguma pensaria em casar-se com
ela?
— Digo que se um dia amar uma mulher o bastante para pensar em
casar-me com ela, riquezas e posições sociais de nada contarão para mim.
Mas receio... receio que sua pobre amiga possa não sobreviver para ser
esposa de homem algum.
— Acha que ela está assim tão doente?
Ele suspirou e deixou essa pergunta sem resposta.
Um dia, quando estavam colhendo jacintos selvagens em um planalto
no prado, Bella contou ao Sr. Stafford sobre seu pesadelo.
— É curioso somente porque dificilmente se parece com um sonho —
ela disse. — Ouso dizer que o senhor não possa achar qualquer explicação
para ele no senso comum. A posição da minha cabeça no travesseiro, a
atmosfera ou algo assim.
E então, ela descreveu as sensações; como no meio do sono surgia um
senso súbito de sufocamento; a seguir aquele zumbido das rodas tão alto,
tão terrível; e depois um vazio e então a volta à consciência desperta.
— Alguém já deu clorofórmio à senhorita... um dentista, por exemplo?
— Nunca... o Dr. Parravicini me fez essa pergunta, um dia.
— Recentemente?
— Não, há muito tempo, quando estávamos no trem de luxo.
— O Dr. Parravicini prescreveu algo para a senhorita desde que
começou a se sentir fraca e adoentada?
— Ah, ele me dava um tônico de tempos em tempos, mas odeio
remédios e tomei bem pouco daquela coisa. Mas eu não estou doente,
apenas mais fraca do que costumava ser. Eu era ridiculamente forte e bem-
disposta quando morava em Walworth e costumava fazer longas
caminhadas todos os dias. Mamãe me fazia dar essas pernadas até Dulwich
e Norwood, por medo de que eu sofresse com o excesso da máquina de
costura; às vezes... mas muito raramente... ela me acompanhava. Ela em
geral estava labutando em casa enquanto eu desfrutava do ar fresco e do
exercício. E ela era muito cuidadosa com nossa alimentação... que, por mais
simples que fosse, devia ser sempre nutritiva e suficiente. Devo aos
cuidados dela ter crescido uma criatura tão grande e forte.
— Agora não parece nem grande nem forte, minha pobre querida —
disse Lotta.
— Receio que a Itália não me faça bem.
— Talvez não tenha sido a Itália, mas estar confinada com Lady
Ducayne que a deixou doente.
— Mas não estou confinada nunca. Lady Ducayne é absurdamente
gentil e me deixa vagar por aí ou sentar na sacada o dia todo, se eu quiser.
Desde que estou com ela, já li mais romances do que em todo o resto da
minha vida.
— Então, ela é muito diferente das senhoras idosas em geral, que
costumam ser umas feitoras — disse Stafford. — Eu me pergunto por que
ela carrega uma acompanhante consigo se tem tão pouca necessidade de
socialização.
— Ah, sou apenas parte de sua condição. Ela é descomedidamente
rica... e o salário que ela me paga não conta. Quanto ao Dr. Parravicini, sei
que ele é um médico inteligente, pois ele cura minhas horrendas mordidas
de mosquito.
— Um pouco de amônia bastaria para isso, nos estágios iniciais do
dano. Mas não há mosquitos para perturbá-la agora.
— Oh, há sim, fui mordida logo antes de deixarmos Cap Ferrino. — Ela
ergueu a manga de fino algodão folgado e exibiu uma cicatriz, que ele
escrutinizou atentamente, com um olhar surpreso e intrigado.
— Isto não é uma picada de mosquito — afirmou ele.
— Ah, é sim... a menos que haja cobras ou víboras em Cap Ferrino.
— Não é mordida alguma. A senhorita está de banalidades comigo.
Srta. Rolleston... a senhorita permitiu que aquele miserável patife italiano
lhe fizesse uma sangria. O maior homem da Europa Moderna foi morto
dessa forma, lembre-se. Que insensatez de sua parte.
— Eu nunca fui sangrada em toda a minha vida, Sr. Stafford.
— Absurdo! Deixe-me ver seu outro braço. Há mais alguma picada de
mosquito?
— Sim. O Dr. Parravicini diz que minha pele cicatriza mal e que o
veneno age mais virulentamente comigo do que com a maioria das pessoas.
Stafford examinou os dois braços dela sob a plena luz do sol, cicatrizes
novas e antigas.
— A senhorita foi muito gravemente picada, Srta. Rolleston — disse ele
—, e se algum dia eu encontrar o mosquito, hei de lhe dar uma boa lição.
Mas agora me conte, minha cara, por sua palavra de honra, me conte como
contaria a uma amiga que está sinceramente apreensiva por sua saúde e sua
felicidade... como diria à sua mãe se ela estivesse aqui para perguntar... a
senhorita não tem conhecimento de causa alguma para estas cicatrizes,
exceto picadas de mosquito... nem mesmo alguma suspeita?
— Realmente não! Por minha honra, não! Nunca vi um mosquito
picando meu braço. Ninguém nunca vê esses demoniozinhos terríveis. Mas
já os ouvi zumbindo sob as cortinas e sei que com frequência tenho um
desses pestilentos miseráveis zumbindo ao meu redor.
Mais tarde, naquele dia, Bella e seus amigos estavam sentados no
jardim para o chá, enquanto Lady Ducayne dava seu passeio da tarde com
seu médico.
— Quanto tempo pretende passar com Lady Ducayne, Srta. Rolleston?
— perguntou Herbert Stafford após um ponderado silêncio, interrompendo
subitamente a conversa trivial das duas moças.
— Enquanto ela continuar me pagando vinte e cinco libras por
trimestre.
— Mesmo que sinta sua saúde se esvaindo enquanto está a serviço dela?
— Não foi o serviço que prejudicou minha saúde. O senhor pode ver
que não tenho realmente nada para fazer... ler em voz alta por cerca de uma
hora, uma ou duas vezes por semana; escrever uma carta de vez em quando
para um negociante em Londres. Nunca tive um período de tanta
tranquilidade com mais ninguém. E ninguém mais me pegaria cem libras
por ano.
— Então, pretende continuar até que tenha um colapso; até morrer em
seu posto?
— Como as outras duas acompanhantes? Não! Se em algum momento
eu me sentir seriamente doente... realmente doente... me ponho num trem e
volto para Walworth sem paradas.
— E quanto às outras duas acompanhantes?
— Ambas morreram. Foi muita falta de sorte de Lady Ducayne. Foi por
isso que ela me empregou; ela me escolheu porque eu era corada e robusta.
Deve estar um tanto enojada por eu ter ficado pálida e fraca. A propósito,
quando contei a ela sobre o bem que seu tônico me fez, ela disse que
gostaria de vê-lo e ter uma breve conversa com o senhor sobre seu próprio
caso.
— E eu gostaria de encontrar Lady Ducayne. Quando ela disse isso?
— Antes de ontem.
— Pode perguntar-lhe se ela me receberia esta noite?
— Com prazer. Eu me pergunto o que o senhor achará dela. Ela parece
bem terrível para um estranho; mas o Dr. Parravicini diz que ela um dia foi
uma notória beldade.
Eram quase dez horas quando o Sr. Stafford foi convocado por uma
mensagem de Lady Ducayne, cujo mensageiro apareceu para conduzi-lo até
o salão de sua senhoria. Bella estava lendo em voz alta quando o visitante
foi recebido; e ele notou o langor no tom baixo e doce, o esforço evidente.
— Feche o livro — disse a velha voz rabugenta. — Está começando a
arrastar a fala, igual a Srta. Blandy.
Stafford viu uma figura pequena e encurvada, inclinando-se sobre as
toras de oliveira empilhadas; uma velha figura encolhida, com um belo
vestuário de bordados pretos e vermelhos, uma garganta magricela
emergindo de uma massa de desgastadas rendas venezianas, entrelaçadas
por diamantes que reluziam como vaga-lumes conforme a velha cabeça
trêmula se virava em direção a ele.
Os olhos que o fitaram naquele rosto eram quase tão brilhantes quanto
os diamantes — a única característica viva naquela exígua máscara de papel
pergaminho. Ele já havia visto rostos terríveis no hospital, nos quais a
doença havia deixado marcas pavorosas, mas nunca tinha visto um rosto
que o impressionara tão dolorosamente como esse semblante encarquilhado,
com seu indescritível horror de morte vencida, um rosto que devia ter sido
escondido sob a tampa de um caixão há muitos e muitos anos.
O médico italiano estava de pé no outro lado da lareira, fumando um
cigarro e olhando para a pequenina velha ensimesmada junto ao fogo, como
se estivesse orgulhoso dela.
— Boa noite, Sr. Stafford; pode ir para seu quarto, Bella. Vá escrever
aquela eterna carta para sua mãe em Walworth — disse Lady Ducayne. —
Creio que ela escreve uma página sobre cada flor do campo que descobre
nas matas e prados. Não sei o que mais encontra para poder escrever a
respeito — ela acrescentou, enquanto Bella silenciosamente se retirava para
o belo e pequeno quarto que se abria nos espaçosos aposentos de Lady
Ducayne. Ali, assim como em Cap Ferrino, ela dormia em um quarto
adjacente ao da velha senhora.
— Soube que é um homem da medicina, Sr. Stafford.
— Sou um clínico qualificado, mas ainda não comecei a clinicar.
— Pois começou com minha acompanhante, assim ela me disse.
— Eu prescrevi para ela, certamente, e fico contente em descobrir que
minha prescrição lhe fez bem; mas vejo essa melhora como sendo
temporária. O caso dela necessitará de tratamento mais drástico.
— Não ligue para o caso dela. Não há problema algum com a moça...
absolutamente nada... exceto disparates juvenis; liberdade demais e trabalho
de menos.
— Soube que duas de suas acompanhantes anteriores morreram da
mesma doença — disse Stafford, olhando primeiro para Lady Ducayne, que
deu um impaciente sacolejo com sua velha cabeça trêmula, e então para
Parravicini, cuja tez amarela havia empalidecido um pouco sob o escrutínio
de Stafford.
— Não me apoquente com relação a minhas acompanhantes, senhor —
alertou Lady Ducayne. — Mandei buscá-lo para me consultar com o
senhor... não para falar de um lote de meninas anêmicas. O senhor é jovem
e a medicina é uma ciência progressiva, assim me dizem os jornais. Onde o
senhor estudou?
— Em Edimburgo... e em Paris.
— Duas boas universidades. E o senhor conhece todas aquelas teorias
modernosas, as descobertas contemporâneas... que nos fazem lembrar da
bruxaria medieval, de Albertus Magnus e de George Ripley? O senhor
estudou hipnose... eletricidade?
— E a transfusão de sangue — disse Stafford, muito lentamente,
olhando para Parravicini.
— O senhor fez alguma descoberta que ensine a prolongar a vida
humana... algum elixir... alguma forma de tratamento? Quero prolongar
minha vida, meu jovem. Aquele homem ali tem sido meu médico por trinta
anos. Ele faz tudo que pode para me manter viva... conforme seu
conhecimento. Ele estuda todas as novas teorias de todos os cientistas... mas
está velho; fica mais velho a cada dia... sua capacidade mental está se
esvaindo... ele é intolerante... preconceituoso... não consegue captar novas
ideias... não se apega a novos sistemas. Ele me deixará morrer se eu não
ficar de olho nele.
— A senhora é de uma ingratidão inacreditável, Ecclenza — ralhou
Parravicini.
— Ah, não precisa reclamar. Já lhe paguei aos milhares para me manter
viva. Cada ano de minha vida inchou mais suas reservas; sabe que nada irá
para você quando eu me for. Toda a minha fortuna será deixada para manter
um lar para mulheres indigentes e de distinção que tenham chegado ao seu
nonagésimo ano. Vamos, Sr. Stafford, sou uma mulher rica. Dê-me mais
alguns anos sob o sol, mais alguns anos sobre o chão, e darei ao senhor o
valor de um moderno consultório em Londres... vou estabelecê-lo no West
End.
— Quantos anos a senhora tem, Lady Ducayne?
— Eu nasci no dia em que Luís XVI foi guilhotinado.
— Então, creio que a senhora já teve seu justo quinhão de luz do sol e
dos prazeres da terra, e que devia passar o restante de seus dias em
penitência por seus pecados e tentando expiar as jovens vidas que foram
sacrificadas por seu amor à existência.
— O que quer dizer com isto, senhor?
— Ah, Lady Ducayne, preciso verbalizar com todas as palavras a sua
perversidade e a perversidade ainda maior de seu médico? A pobre moça
que está agora empregada pela senhora foi reduzida da robusta saúde à
condição de perigo absoluto pela cirurgia experimental do Dr. Parravicini; e
não tenho dúvidas de que aquelas outras duas jovens que entraram em
colapso estando a seu serviço foram tratadas por ele da mesma maneira. Eu
poderia me responsabilizar por demonstrar... pelas mais convincentes
evidências, para um júri de homens da medicina... que o Dr. Parravicini tem
feito sangrias na Srta. Rolleston, após sedá-la com clorofórmio, em
intervalos, desde que ela foi trazida aos seus serviços. A deterioração da
saúde da moça fala por si só; as marcas de bisturi nos braços da moça são
inconfundíveis; e sua descrição de uma série de sensações, que ela chama
de sonhos, apontam indubitavelmente para a administração de clorofórmio
enquanto ela estava dormindo. Uma prática tão nefasta, tão homicida, deve,
caso seja exposta, resultar em uma sentença menos severa apenas que a
punição por assassinato.
— Eu rio — disse Parravicini, com um movimento no ar de seus dedos
magros. — Eu rio de pronto de suas teorias e ameaças. Eu, Parravicini
Leopold, não tenho medo de que a lei possa questionar algo do que fiz.
— Leve a moça embora e não me deixe nunca mais saber dela — gritou
Lady Ducayne com sua voz velha e aguda, que tão insuficientemente se
igualava à energia e ao fogo da velha mente perversa que guiava suas
elocuções. — Deixe que ela volte para a mãe... não quero mais moças para
morrerem ao meu serviço. Há moças que dão e sobram neste mundo, Deus
sabe.
— Se a senhora algum dia empregar outra acompanhante... ou tomar
outra moça inglesa em seu serviço, Lady Ducayne, farei toda a Inglaterra
estremecer com a história de sua perversidade.
— Não quero mais moças. Não acredito nos experimentos dele. Eles
têm sido tão plenos de perigo para mim quanto para a moça... uma bolha de
ar e eu poderia ter ido embora. Não aceitarei mais sua charlatanice perigosa.
Vou encontrar um homem melhor... um homem melhor que o senhor, um
descobridor como Pasteur, ou Virchow, um gênio... para me manter viva.
Leve sua moça embora, meu jovem. Case com ela, se desejar. Vou lhe fazer
um cheque de mil libras e deixá-la ir para que viva de bife e cerveja,
tornando-se forte e rotunda novamente. Não aceitarei mais esses
experimentos. Está ouvindo, Parravicini? — ela gritou, vingativamente, o
rosto amarelo e enrugado contorcido de fúria, fuzilando-o com os olhos.
29. Antiga moeda de uma libra esterlina, cunhada atualmente apenas para fins comemorativos. - N.
da T.
30. Costuma-se chamar vulgarmente de nutcracker face uma deformidade facial em que o nariz e o
queixo parecem apontar um para o outro. - N. da T.
31. Forma coloquial de se referir à nota de dez libras. - N. do E.
ALMOÇO NO CHARON’S
Melanie Tem
Ela subiu na maca e retirou o lençol. Seu amor estava ali deitado, seu
rosto doce queimado pela metade, seu cabelo enegrecido e tostado. Suas
lindas mãos, cozidas até virarem garras. Ela segurou uma das mãos, beijou-
a e derramou nela suas lágrimas.
— Eu removeria sua maldição se pudesse — ela sussurrou. Inclinou-se
sobre o pescoço chamuscado e o mordeu ali. O sangue tinha gosto de
carvão e a fez vomitar.
Ela ouviu as vozes dos homens vindo em direção à câmara. Passos
golpeando o cimento do chão do corredor. Ela iria embora. Mas o
encontraria novamente. Estaria diligente e atenta, teria seus sentidos sempre
aguçados e estaria pronta. Ela o seguiria e, talvez, o salvaria. Salvá-lo para
o que, ela não tinha certeza. Salvá-lo rumo a que, ela não podia saber. Mas
ela o encontraria.
Ela tocou o bolso de sua saia. A Bíblia havia sumido. Havia se lançado
adiante, para encontrar seu amor uma vez mais.
— Até depois — disse. Nas gavinhas de fumaça que ainda perduravam,
ela deixou o porão. Lá fora, Marie e Clarice não estavam em lugar algum.
Ela sabia que nunca mais as veria. Tudo bem. Não queria ser um peso para
elas. Faria isso sozinha.
32. Também conhecido como “Salteador de estradas”, Nicolas-Jacques Pelletier (1756-1792) foi o
primeiro indivíduo a ser executado com o uso de guilhotina na França. – N. do E.
RISADA DA NOITE
Ellen Kushner
11/8/2001
Mona,
Sinto muito mesmo pelas coisas terem sido como foram. Eu sei que fui
um cuzão e faria qualquer coisa pra me redimir com você, se você deixasse.
Sei que está magoada, mas não pode simplesmente me expulsar da sua vida
depois de tudo que passamos juntos. Me dê uma chance de explicar. Se eu
pudesse te ver, conversar com você, tenho certeza de que poderíamos
resolver as coisas. Essa última semana foi um inferno sem você. Não
consigo dormir. Não consigo comer. Não consigo pintar. Só penso em você.
Odeio dormir nesse estúdio solitário, te procurando todas as manhãs ao
acordar só pra perceber que não tem ninguém ali. Olha, eu sei que o que fiz
foi errado, mas não acha que já fui castigado o bastante? Sinto tanto a sua
falta.
As coisas vão ser diferentes daqui pra frente, eu juro. Me liga, por
favor, Mona. Preciso ouvir sua voz.
Eu ainda te amo.
Daniel
17/8/2001
Oi Mona,
E aí, sua vadia gostosa? Como você tá, cacete? Como tá a vida na
mormacenta Nova Orleans? Li seu novo livro, sabe. Ele arrasa, é claro. As
coisas tão muito bem por aqui, trabalhando duro e conseguindo umas
sessões bem decentes, mas você sabe que isso é um clube do Bolinha e que
a maioria dos caras não confia numa mina baterista (mesmo numa
brilhante deusa do ritmo, como eu). Mas tô vivendo bem e tenho um loft em
Willy-B, onde ninguém reclama se eu toco a noite toda. A vida é bela.
Mas, enfim, o motivo real de eu estar te escrevendo (além do
indisfarçado desejo pelo seu corpo) é que Lulu e eu estamos gravando uma
demo com essa baixista insana chamada Nocturna e a gente quer gravar
“Rubor”. Era a sua melhor música e a gente ia adorar se você viesse
cantá-la. Volte pra NYC e seja a Diva Demona de novo só por um dia, pelos
velhos tempos. A gente até te manda a passagem. Por favorzinho diz que
sim! A gente precisa se encontrar e botar a conversa em dia. Talvez nos
esfregar peladas. Já faz tanto tempo, moça. Tô com saudades.
Muito amor e um beijo de língua bem molhado.
Minerva
13/6/1990
Victorine, minha mais primorosa escrava,
Estou no calabouço, aguardando por mais um yuppie reprimido com
um fetiche por fraldas. Por que devo suportar esses palhaços, com seus
pauzinhos desesperados e seu masoquismo prosaico? Bom, todos temos que
pagar nossas contas e eu prefiro ser uma senhora/mãe para meus clientes
sem graça do que uma escrava/secretária pra algum pulha misógino no
assim chamado “mundo real”.
Mas você, meu amor...
Sua deliciosa submissão é a única coisa que me faz seguir adiante em
dias como este. Sinto saudades terríveis, da curva pálida e voluptuosa de
seu rabo empinado sob meu açoite, o ímpeto em seus olhos brilhantes
quando deslizo meu último dedo para dentro de você e fecho minha mão em
um punho. Eu conto as longas horas até poder saboreá-la de novo, o gosto
forte e quente de seu sangue em minha língua.
Sua na Eterna Escuridão, Senhora Diva Demona
Minerva tinha uma sessão naquela noite e, assim, Mona partiu numa
incursão solitária, precisando circular, caminhar, sorver a essência da
cidade, seu amor há muito perdido. Alguma gravidade primitiva a atraiu de
volta à área em que costumava bater ponto e ela se viu caminhando pelas
avenidas de sua juventude perdida com um estranho e duradouro senso de
irrealidade. Parecia que a vizinhança tinha mudado tanto quanto ela. Muitos
dos velhos bares e boates familiares que haviam nutrido Diva Demona
tinham desaparecido, cobertos de crostas com portas corrediças
enferrujadas ou misteriosamente substituídos por cafés da moda, cheios de
imaculados acólitos da contracultura. As ruas pareciam todas falsas, como o
cenário de um filme de baixo orçamento sobre elas mesmas.
Ela parou na esquina da Primeira Avenida com a Rua Nove, deixando a
dor quente da nostalgia se espalhar. Lá estava a banca de frutas coreana em
que ela sempre comprava laranjas, biscoitos e frias rosas brancas. Lá estava
a banca de jornais em que um velho indiano costumava fazer uma carranca
para sua escolha de revistas voltadas para fetiches.
Num súbito afluxo, ela foi assolada por fantasmas; lembranças
cintilantes de todas aquelas velhas noites infindáveis, reluzindo com seu
esplendor onírico e ébrio, com paixão arrogante, enquanto ela galgava as
ruas feito um predador de salto alto, marcando território, imortal naquele
momento como só os jovens e os idiotas podem realmente ser. Ela se
lembrou de cambalhotar feito um gatinho pelas fantasias mais extremas
com a total convicção de que nunca haveria um amanhã.
Ela respirou fundo. O rico aroma de massa quente, salgada e tomates
temperados, bafejando do interior vaporoso da pizzaria da esquina,
competia com a escura nuvem negra de patchouli e jasmim rodeando um
vendedor de óleos essenciais e com os escapamentos toxicamente
adocicados dos ônibus que passavam. Tantas lembranças.
Mona balançou a cabeça. Era fácil ser seduzida pelo passado, pelos
bons tempos. Era fácil esquecer o modo como aquele estilo de vida quase a
engoliu com seu abraço implacável e sua mordida narcótica. A imagem
blindada da Deusa Vampira, a senhora dos medos e dos desejos dos
homens, a Rainha da Dor, a persona exótica que ela dera tão duro para
forjar havia se tornado uma prisão, uma máscara fundida à sua alma, sem
escapatória, sem saída. Com Victorine, ela tinha que estar no palco vinte e
quatro horas por dia, sete dias por semana, sempre interpretando, até que ela
começou a esquecer quem realmente era. Victorine nunca conseguiu aceitar
seu anseio por simplicidade, por humanidade. Tudo tinha que ser como
aquelas malditas fotografias que ela sempre tirava. Belas, exóticas e
congeladas no tempo, imune à entropia e à futilidade da vida cotidiana.
Foi Mona quem criara Diva Demona, mas era Victorine quem não a
deixava morrer.
Mona mordeu o tecido macio dentro de sua bochecha. Não importava o
que Victorine havia decidido fazer com suas sobras irrecuperáveis. Mona já
havia escapado, anos atrás. Aquela vida louca estava para sempre no
passado e ela havia amadurecido, tornando-se uma mulher forte e
contumaz. Uma escritora passional que havia adubado o subsolo de
pesadelos e êxtases de seu passado para criar um terreno fértil para ficções
intrépidas. Ela sabia quem era.
Ela havia perdido três sinais abertos, imersa em devaneios. Queria rir de
si mesma, mas seu antigo apartamento ficava a menos de um quarteirão.
Correu para atravessar a rua, determinada a passar na frente daquele poço
de lembranças cheio de traças sem olhar para trás. A dois prédios dali, e
então mais um. O ar se prendeu em seu peito e ela praguejou consigo
mesma por ser uma criancinha supersticiosa. Ela contou suas passadas
enquanto caminhava ao lado do serpenteante corrimão que cercava o
aglomerado de latas de lixo tristes e amassadas do prédio, passando pelos
degraus de cimento para o porão e pelo cheiro quente de amaciante da
lavanderia. Então, a porta surrada de metal com o número “3” ainda
faltando, visível apenas como uma linha de buracos e um traçado de tinta
mais velha e mais tênue. Sua velha caixa de correspondência ainda tinha a
palavra “Caixa” escrita nela por Victorine como parte de alguma piada
obscura. Ela se afastou da porta e recostou-se em algum carro, subitamente
sentindo-se aturdida. Seu olhar escalou a pele de tijolos do prédio onde ela
tinha morado mil vidas atrás. As cortinas de veludo e renda pretas estavam
gastas e empoeiradas. Mona não sabia o que esperava ver: talvez seu
próprio eu mais jovem espiando-a lá de cima. Em vez disso, não viu nada
além do imóvel e amarrotado forro daquelas velhas cortinas feitas em casa,
que pareceram tão deliciosamente lustrosas e perfeitas naquela época,
quando Victorine as costurou com veludo careca e lenços esfarrapados
tirados do barril de um dólar na loja de roupas usadas Dizzy Dot.
Mona se afastou do carro e passou a mão sobre os olhos. Quando
ergueu o olhar novamente, uma jovem garota asiática, magricela e de patins
estava abrindo a porta com um chaveiro que ostentava mais brinquedos e
berloques do que chaves. Ela olhou por sobre o ombro, sua boca reluzente
de brilho labial torcida num sorriso afetadamente sardônico.
— Vai entrar ou o quê? — perguntou ela.
Mona quis dizer não, mas em vez disso encostou uma das palmas na
porta aberta. O metal estava frio e arenoso, marcado por finos arranhões e
rabiscado com nomes quase totalmente apagados. A garota foi deslizando
pelo corredor sem mais nenhuma palavra. Mona engoliu em seco e entrou
no prédio.
21/1/1991
Minha Amada Piranha,
Há um ano estamos juntas. Faz um ano desde que segurei pela primeira
vez o delicado caule de seu vulnerável pescoço entre meus dedos. Da
primeira vez que senti a dança do sangue sob sua pele branca. Da primeira
vez que provei o suculento néctar de sua submissão. Você ainda é tão
preciosa para mim como era naquela primeira noite beijada pelo sangue.
Eu sempre vou te amar, minha primorosa escrava, companheira sombria de
minha alma.
Sua na Eterna Escuridão,
Senhora Demona
II
Ao entrar, ele se defrontou com a luz da janela para o norte e o primeiro
pensamento de Bosworth foi que ele parecia um homem que havia se
afogado, pescado do gelo... e que quis se afogar, ele acrescentou. Mas a luz
da neve faz truques cruéis com a cor de um homem e até mesmo com a
forma de suas feições; em parte, deve ter sido isso, Bosworth refletiu, que
transformou Saul Rutledge do sujeito manifestamente robusto que havia
sido um ano antes no infeliz emaciado agora diante deles.
O Diácono buscou pelas palavras para aliviar o horror.
— Ora veja, Saul... o senhor parece alguém que devia ir direto para a
lareira. Teve um pouco de sezão, talvez?
A débil tentativa foi em vão. Rutledge nem se moveu nem respondeu.
Ficou ali de pé entre eles, em silêncio, incomunicável, como alguém
erguido dos mortos. Brand o agarrou rudemente pelo ombro.
— Olhe aqui, Saul Rutledge, que mentira suja é essa que sua esposa
está a nos dizer que o senhor andou espalhando?
Rutledge não se moveu.
— Não é mentira — ele disse.
A mão de Brand despencou de seu ombro. A despeito da bruta
capacidade de intimidação do homem, ele pareceu indefinivelmente
assombrado pela aparência e pelo tom de Rutledge.
— Não é mentira? O senhor enlouqueceu totalmente, então, é isso?
A Sra. Rutledge falou.
— Meu marido não está mentindo nem ficou louco. Eu não disse que os
vi?
Brand riu novamente.
— Ele e a morta?
— Sim.
— Junto da lagoa Lamer, a senhora diz?
— Sim.
— E quando foi isso, se me permite perguntar?
— Anteontem.
Um silêncio caiu sobre o grupo inusitadamente reunido. O diácono,
enfim, o rompeu para dizer ao Sr. Brand:
— Brand, em minha opinião, temos que ir até o fim dessa história.
Brand ficou por um momento em uma contemplação atônita: havia algo
de animalesco e primitivo a respeito dele, pensou Bosworth, com ele se
pondo assim, sombrio e estupidificado, um pouco de espuma decorando os
cantos daquele lábio inferior pesadamente arroxeado. Ele se permitiu sentar
lentamente em sua cadeira.
— Pois vou até o fim.
Os outros dois homens e a Sra. Rutledge permaneceram sentados. Saul
Rutledge ficou de pé diante deles, como um prisioneiro no tribunal, ou
melhor, como um homem doente diante dos médicos enviados para curá-lo.
Enquanto Bosworth escrutinizava aquele rosto vazio, tão pálido sob a pele
bronzeada, tão afundado e consumido por alguma sezão oculta, ali
assomou-se gradualmente sobre aquele homem de boa saúde a ideia de que
talvez, no fim das contas, marido e esposa dissessem a verdade e que de
fato eles estavam todos naquele momento à beira de algum mistério
proibido. Coisas que a mente racional rejeitaria sem pensar não pareciam
mais tão fáceis de descartar ao se olhar para o atual Saul Rutledge e lembrar
do homem que ele havia sido um ano antes. Sim; como o diácono disse,
eles teriam que ir até o fim da história...
— Então sente-se, Saul; aproxime-se de nós, pode ser? — sugeriu o
diácono, buscando outra vez um tom natural.
A Sra. Rutledge puxou uma cadeira para a frente e seu marido sentou-se
nela. Ele esticou seus braços e agarrou os joelhos com seus dedos ossudos e
amarronzados; nessa postura ele permaneceu, sem virar nem a cabeça nem
os olhos.
— Bem, Saul — continuou o diácono —, sua esposa diz que o senhor
acha que talvez possamos fazer algo para ajudá-lo nesta dificuldade, seja lá
qual for ela.
Os olhos cinzentos de Rutledge se arregalaram levemente.
— Não; eu não acho isso. Foi ideia dela tentar tudo que pudesse ser
feito.
— Presumo, porém, uma vez que o senhor concordou com nossa vinda,
que não se oponha a fazermos algumas perguntas?
Rutledge fez um leve movimento de aquiescência.
— E... o que o senhor tem a responder? Como o senhor explica...?
A Sra. Rutledge interviu.
— Como ele explica? Eu os vi.
Fez-se o silêncio; então Bosworth, tentando falar em um tom calmo e
reconfortante, indagou:
— É isso mesmo, Saul?
— Isso mesmo.
Brand ergueu sua cabeça ensimesmada.
— O senhor quer dizer que... o senhor se senta aqui, diante de todos nós
e diz...
A mão do diácono mais uma vez o refreou.
— Espere, amigo Brand. Estamos todos buscando os fatos, não
estamos? — Ele se virou para Rutledge. — Ouvimos o que diz a Sra.
Rutledge. Qual a sua resposta?
— Eu não sei se há alguma resposta. Ela nos encontrou.
— E quer dizer que a pessoa com o senhor era... ou o senhor tomou por
ser... — A voz do diácono se afinou: — Ora Brand?
Saul Rutledge assentiu.
— O senhor sabia... ou pensou saber... que estava se encontrando com
uma morta?
Rutledge curvou a cabeça novamente. A neve continuava a cair em um
lençol uniforme e inabalável contra a janela e Bosworth sentia como se uma
mortalha estivesse descendo dos céus para envolvê-los a todos em uma vala
comum.
— Pense no que está dizendo! É contra a nossa religião! Ora... a pobre
criança...! Morreu há mais de um ano. Eu vi o senhor no funeral, Saul.
Como pode fazer tal afirmação?
— O que mais ele pode fazer? — remeteu a Sra. Rutledge.
Fez-se mais uma pausa. Os recursos de Bosworth lhe falhavam e Brand
mais uma vez mergulhou em uma sombria meditação. O diácono pousou as
pontas ajuntadas de seus dedos trêmulos e umedeceu os lábios.
— O dia antes de ontem foi a primeira vez? — ele perguntou.
O movimento da cabeça de Rutledge foi negativo.
— Não foi? Então, quando...?
— Há quase um ano, se me recordo.
— Deus! E quer nos dizer que, desde então...?
— Bem... olhe pra ele — disse sua esposa. Os três homens baixaram
seus olhos. Após um momento, Bosworth, tentando se recompor, olhou de
relance para o diácono.
— Por que não pedir a Saul que faça sua própria declaração, se é pra
isso que estamos aqui?
— Isso mesmo — assentiu o diácono. Ele virou-se para Rutledge. —
Pode tentar nos dar sua ideia... de... de como isso começou?
Fez-se mais silêncio. Então, Rutledge apertou mais suas mãos contra os
joelhos esqueléticos e, ainda olhando diretamente para a frente, com seu
olhar vago curiosamente límpido, disse:
— Bem, creio que começou bem antes, antes mesmo até de eu me casar
com a Sra. Rutledge...
Ele falou em um tom baixo e automático, como se algum agente
invisível estivesse ditando suas palavras ou até mesmo pronunciando-as
para ele.
— Os senhores sabem — ele complementou — Ora e eu deveríamos ter
nos casado.
Sylvester Brand ergueu a cabeça.
— Esclareça essa afirmação primeiro, por favor — ele interpôs.
— O que quis dizer foi que fazíamos companhia um ao outro. Mas Ora
era jovem demais. O Sr. Brand aqui... ele a mandou para longe. Ela esteve
fora por quase três anos, creio eu. Quando voltou, eu estava casado.
— Isso mesmo — Brand disse, recaindo uma vez mais em sua postura
submersa.
— E, depois que ela voltou, o senhor encontrou-se com ela novamente?
— continuou o diácono.
— Viva? — perguntou Rutledge.
Um perceptível estremecimento percorreu a sala.
— Bem... é claro — disse o diácono nervosamente.
Rutledge pareceu considerar.
— Encontrei-a uma vez... apenas uma. Havia muitas outras pessoas em
volta. Foi na feira de Cold Corners.
— O senhor falou com ela?
— Apenas por um minuto.
— O que ela disse?
A voz dele feneceu.
— Ela disse que estava doente e que sabia que ia morrer; e que, quando
morresse, ela voltaria para mim.
— E o que o senhor respondeu?
— Nada.
— O senhor pensou sobre isso naquela época?
— Bem, não. Não até saber que ela havia morrido. Depois é que vim
pensar nisso... e acho que ela me atraiu. — Ele umedeceu os lábios.
— Atraiu o senhor para aquela casa abandonada junto à lagoa?
Rutledge fez um tênue movimento de aquiescência e o diácono
complementou:
— Como o senhor sabia que era para lá que ela queria que o senhor
fosse?
— Ela... só me atraiu...
Fez-se uma longa pausa. Bosworth sentiu, nele mesmo e nos outros dois
homens, o peso opressivo da pergunta seguinte a ser feita. A Sra. Rutledge
abriu e fechou seus lábios estreitos algumas vezes, como algum marisco
encalhado na praia arfando pela maré. Rutledge aguardou.
— Bem, então, Saul, não vai continuar a nos contar o que estava
contando? — o diácono enfim sugeriu.
— Isso é tudo. Não há nada mais.
O diácono baixou a voz.
— Ela simplesmente o atrai?
— Sim.
— Com frequência?
— Isso depende...
— Mas se é sempre para lá que ela o atrai, homem, o senhor não tem
forças para ficar longe do lugar?
Pela primeira vez, Rutledge voltou a cabeça fatigadamente na direção
de seu questionador. Um sorriso espectral estreitou seus lábios sem cor.
— De nada adianta. Ela vem atrás de mim...
Fez-se mais silêncio. O que mais eles poderiam perguntar, ali e naquele
momento? A presença da Sra. Rutledge refreou a pergunta seguinte. O
diácono parecia dar voltas inutilmente em torno do assunto. Enfim, falou
em um tom mais autoritário.
— Há coisas que são proibidas. O senhor sabe disso, Saul. Já tentou
orar?
Rutledge balançou a cabeça.
— Pode orar conosco agora?
Rutledge lançou um olhar de enregelante indiferença ao seu conselheiro
espiritual.
— Se os senhores querem orar, posso consentir — disse.
Mas a Sra. Rutledge interviu.
— Orar não adianta. Nesse tipo de coisa, não tem utilidade alguma; o
senhor sabe que não. Eu o chamei aqui, diácono porque o senhor se lembra
do último caso em nossa paróquia. Foi há trinta anos, creio eu; mas o
senhor se lembra... Lefferts Nash e Hannah Cory. Enfiaram uma estaca no
seio dela. Foi isso que o curou.
— Oh... — exclamou Orrin Bosworth.
Sylvester Brand ergueu a cabeça.
— Está falando daquela velha história como se este fosse o mesmo tipo
de coisa?
— E não é? Meu marido não está definhando do mesmo modo que
Lefferts Nash? O diácono aqui sabe...
O diácono se remexeu ansiosamente em sua cadeira.
— Essas coisas são proibidas — repetiu. — Supondo que seu marido
esteja sendo um tanto sincero em se considerar assombrado, como os
senhores diriam. Bem, até mesmo neste caso, que provas nós temos de que
a... a morta... é o espectro daquela pobre moça?
— Provas? Ele já não disse que é? Ela não disse a ele? Eu não os vi? —
a Sra. Rutledge quase gritou.
Os três homens permaneceram sentados e em silêncio e, subitamente, a
esposa inflamou-se:
— Uma estaca atravessando o seio. Este é o modo antigo; é o único
modo. O diácono sabe!
— É contra a nossa religião perturbar os mortos.
— Não é contra a sua religião permitir que os vivos pereçam como meu
marido está perecendo? — Ela ergueu-se em um de seus abruptos
movimentos e apanhou a Bíblia da família na estante em um canto da sala
de estar. Pondo o livro sobre a mesa e umedecendo a ponta de um dedo
lívido, virou as páginas rapidamente, até chegar a uma sobre a qual ela pôs
a mão como um peso de papel feito de pedra.
— Veja aqui — disse e leu em voz alta, em sua voz de declamação
uniforme:
— A feiticeira não deixarás viver. Está no Êxodo, é lá onde está —
complementou ela, deixando o livro aberto como se confirmando sua
afirmação.
Bosworth continuou a passar os olhos ansiosamente de uma para outra
das quatro pessoas à mesa. Era o mais jovem entre todos eles e o que mais
contato havia tido com o mundo moderno; em Starkfield, no bar da Casa
Fielding, ele podia se ouvir rindo com outros homens de todos esses contos
da carochinha. Mas não havia sido à toa que ele tinha nascido sob a gélida
sombra de Lonetop, tendo passado frio e fome quando rapaz, durante os
amargos invernos do Condado de Hemlock. Após a morte de seus pais e de
ele mesmo ter assumido o controle da fazenda, havia conseguido tirar mais
dela usando métodos aprimorados e provendo leite e vegetais ao crescente
tropel de veranistas a caminho de Stotesbury. Tinha sido apontado como
membro do conselho municipal de Ashmore do Norte; para um homem tão
jovem, possuía prestígio no condado. Mas ainda tinha raízes em sua antiga
vida. Podia se lembrar, de quando era um garotinho, de ir com sua mãe duas
vezes por ano para aquela lúgubre fazenda na colina bem mais além da de
Sylvester Brand, onde a tia da Sra. Bosworth, Cressidora Cheney, havia
sido isolada há anos em um quarto frio e vazio, com barras de ferro nas
janelas. Quando o pequeno Orrin viu Tia Cressidora pela primeira vez, ela
era uma mulher idosa, pequena e branca, cujas irmãs costumavam “deixar
decente” para os visitantes no dia em que Orrin e sua mãe eram aguardados.
A criança se perguntou por que havia barras na janela.
— Como um canário — ele disse à sua mãe. A frase fez a Sra.
Bosworth refletir. — Creio que deixam Tia Cressidora muito sozinha —
respondeu ela; e, na vez seguinte em que ela subiu a montanha com o
garotinho, ele levava para sua tia-avó um canário em uma gaiolinha de
madeira. Foi uma grande animação; ele sabia que aquilo a deixaria feliz.
O rosto imóvel da velha mulher se iluminou quando ela viu o pássaro e
seus olhos começaram a brilhar.
— Ele me pertence — afirmou ela instantaneamente, estendendo sua
delicada mão ossuda por sobre a gaiola.
— É claro que sim, Tia Cressy — disse a Sra. Bosworth, seus olhos
marejando. Mas o pássaro, alarmado pela sombra da mão da velha mulher,
começou a rodopiar e bater as asas distraidamente. Ao ver isso, o rosto
calmo de Tia Cressidora de repente se tornou uma espiral de feições
contorcidas.
— Ora, sua mulher-demônio! — gritou ela com a voz em um guincho
alto; enfiando a mão na gaiola, agarrou a apavorada ave e torceu seu
pescoço. Ela arrancava as penas do corpo quente, guinchando “Mulher-
demônio, mulher-demônio!” enquanto arrastavam o pequeno Orrin para
fora da sala. No caminho de volta, descendo a montanha, sua mãe chorou
copiosamente e afirmou:
— Não pode nunca contar a ninguém que a pobre Titia é louca, ou os
homens virão para levá-la a um asilo em Starkfield, a vergonha disso
mataria todos nós. Agora prometa. — A criança prometeu. Ele agora se
recordava da cena, com sua profunda orla de mistério, sigilo e rumor.
Parecia relacionada a uma série de outras coisas sob a superfície de seus
pensamentos, coisas que ressurgiram sorrateiramente, fazendo ele sentir que
todas as pessoas velhas que já havia conhecido, e que “acreditavam nessas
coisas”, podiam afinal de contas estar certas. Uma bruxa não havia sido
queimada em Ashmore do Norte? Os visitantes no verão não chegavam em
alegres tropéis nas carruagens abertas para ver o templo em que o
julgamento havia ocorrido, a lagoa na qual a mergulharam e ela flutuou...?
O diácono Hibben acreditava; Bosworth tinha certeza disso. Se não
acreditava, por que pessoas de todos os lugares iam até ele quando seus
animais tinham doenças estranhas, ou quando havia uma criança na família
que precisava ser mantida confinada porque caía dura e espumando? Sim, a
despeito de sua religião, o diácono Hibben sabia...
E Brand? Bom, isto ocorreu a Bosworth em um lampejo: aquela mulher
de Ashmore do Norte que foi queimada tinha o nome de Brand. A mesma
linhagem, sem dúvida; havia uma porção de Brand no Condado de
Hemlock desde que os homens brancos tinham chegado ali. E Orrin,
quando era uma criança, lembrava-se de ouvir seus pais dizerem que
Sylvester Brand nunca deveria ter se casado com a própria prima, por causa
do sangue. Porém, o casal teve duas meninas saudáveis e, quando a Sra.
Brand definhou e morreu, ninguém sugeriu que poderia haver algo de
errado com sua mente. E Vanessa e Ora eram as meninas mais belas de
todas as redondezas. Brand sabia disso, então amealhou e economizou tudo
o que podia para mandar Ora, a mais velha, para aprender contabilidade em
Starkfield.
— Quando ela se casar, mandarei você — ela costumava dizer para a
pequena Venny, que era sua favorita. Mas Ora nunca se casou. Ela ficou
longe por três anos, durante os quais Venny correu solta pelas escarpas de
Lonetop; e, quando Ora voltou para casa, adoeceu e morreu... pobre moça!
Desde então, Brand tornou-se ainda mais selvagem e soturno. Ele era um
fazendeiro trabalhador, mas não havia muito a ser tirado daqueles áridos
acres de Bearcliff. Diziam que ele tinha começado a beber desde a morte da
esposa; vez por outra os homens se deparavam com ele nas “espeluncas” de
Stotesbury. Mas não frequentemente. E, entre essas ocasiões, ele trabalhava
duro em seus acres rochosos e fazia o melhor que podia por suas filhas. No
túmulo negligenciado de Cold Corners, havia uma lápide enviesada
marcada com o nome de sua esposa; junto a ela, já há um ano, ele havia
deitado sua filha mais velha. E, às vezes, ao poente, no outono, o povo do
vilarejo o via caminhar lentamente por lá, virar por entre as duas sepulturas
e se pôr a olhar para as duas lápides. Mas nunca levou uma única flor para
lá, ou plantou um arbusto; Venny também não. Ela era muito extravagante e
ignorante...
A Sra. Rutledge repetiu:
— Está no Êxodo.
Os três visitantes permaneceram em silêncio, girando seus chapéus nas
mãos relutantes. Rutledge os encarou, ainda com aquele olhar diáfano vazio
que havia assustado Bosworth. O que estaria ele vendo?
— Nenhum dos senhores tem a fibra...? — inflamou-se sua esposa de
novo, meio histericamente.
O diácono Hibben ergueu sua mão.
— Esse não é o caminho, Sra. Rutledge. Não é questão de ter fibra. O
que queremos, antes de tudo, são... provas...
— Isso mesmo — disse Bosworth com uma explosão de alívio, como se
as palavras tivessem erguido algo escuro acocorado sobre seu peito.
Involuntariamente, os olhos de ambos os homens se voltaram para Brand.
Ele ficou ali, sorrindo sinistramente, mas não falou.
— Não é mesmo, Brand? — impeliu o diácono.
— Provas de que assombração anda? — o outro escarneceu.
— Bem... presumo que também queira ver essa questão resolvida?
O velho fazendeiro endireitou os ombros.
— Sim... eu quero. Mas não sou um espiritualista. Como diabos os
senhores vão resolver isso?
O diácono Hibben hesitou; então, ele disse, em um tom baixo e incisivo:
— Só vejo um modo... o da Sra. Rutledge.
Fez-se silêncio.
— Qual? — Brand escarneceu novamente. — Espionagem?
A voz do diácono baixou ainda mais.
— Se a pobre moça anda mesmo, ela, que é sua filha... o senhor não
seria o primeiro a desejar que ela sossegasse? Todos sabemos que houve
casos assim... visitas misteriosas... algum de nós aqui pode negar?
— Eu os vi — interpôs a Sra. Rutledge.
Fez-se mais uma pesada pausa. De repente, Brand fixou o olhar em
Rutledge.
— Veja bem, Saul Rutledge, o senhor precisa esclarecer essa maldita
calúnia ou eu vou. O senhor diz que minha menina morta vem até o senhor.
— Ele lutou com sua respiração e então tartamudeou — Quando? Me diga
isso e estarei lá.
A cabeça de Rutledge pendeu um pouco e seus olhos vagaram para a
janela.
— Perto do pôr do sol, quase sempre.
— O senhor sabe de antemão?
Rutledge fez um sinal de consentimento.
— Bem, então... amanhã, vai acontecer?
Rutledge fez o mesmo sinal.
Brand virou-se para a porta.
— Estarei lá. — Foi tudo o que ele disse. Saiu por entre eles sem
nenhum outro olhar ou palavra.
O diácono Hibben olhou para a Sra. Rutledge.
— Estaremos lá também — ele disse, como se ela tivesse perguntado a
ele; mas ela não havia falado e Bosworth viu que o corpo dela tremia todo.
Ele ficou feliz quando ele e Hibben estavam novamente lá fora, sob a neve.
III
Eles acharam que Brand queria ser deixado só e, para dar a ele o tempo
de desamarrar seu cavalo, criaram a desculpa de parar na soleira enquanto
Bosworth buscava em seus bolsos um cachimbo que não tinha intenção de
acender.
Mas Brand virou-se para eles enquanto protelavam.
— Nós nos encontraremos na lagoa Lamer amanhã? — sugeriu. —
Quero testemunhas. Próximo ao pôr do sol.
Eles sinalizaram sua concordância e ele subiu em seu trenó, deu um
golpe nos flancos do cavalo e conduziu-o sob os pinheiros afogados em
neve. Os outros dois homens foram para o galpão.
— O que conclui dessa questão, diácono? — perguntou Bosworth para
quebrar o silêncio.
O diácono balançou a cabeça.
— O homem está doente... isso é certo. Algo está lhe sugando a vida
completamente.
Mas, no frio cortante do lado de fora, Bosworth já estava conseguindo
se controlar melhor.
— Me parece um grave caso de sezão, como o senhor disse.
— Bem... uma sezão da mente, então. É o cérebro dele que está doente.
Bosworth deu de ombros.
— Ele não é o primeiro no Condado de Hemlock.
— Isso é — concordou o diácono — É um verme da mente, a solidão.
— Bem, amanhã saberemos, talvez a essa hora — disse Bosworth. Ele
trepou em seu trenó e estava tomando seu caminho, quando ouviu seu
companheiro chamando por ele. O diácono explicou que uma ferradura de
seu cavalo havia se soltado; será que Bosworth poderia levá-lo até a forja
próxima a Ashmore do Norte, se não fosse muito fora de seu caminho? Ele
não queria que a égua escorregasse na neve congelante e ele provavelmente
conseguiria que o ferreiro o trouxesse de volta e recolocasse a ferradura no
galpão de Rutledge. Bosworth abriu espaço para ele sob sua pele de urso e
os dois partiram, perseguidos por um intrigado choramingo da velha égua
do diácono.
A estrada pela qual seguiram não era aquela que Bosworth utilizaria
para chegar à sua própria casa. Mas ele não se importava com aquilo. O
caminho mais curto para a forja passava perto da lagoa Lamer e Bosworth,
uma vez que havia se envolvido no assunto, não estava pesaroso por poder
conferir o local. Eles seguiram em silêncio.
A neve havia cessado e um pôr do sol verde estava se espalhando pelo
cristalino céu acima. Um vento penetrante, farpado com flocos de gelo,
acertou-os no rosto sobre os cumes abertos, mas, quando eles desceram para
a depressão junto a lagoa Lamer, o ar estava tão silencioso e vazio quanto
uma campainha não tocada. Eles foram avançando lentamente, cada um
com seus próprios pensamentos.
— Essa é a casa... aquela cabana ali, caindo aos pedaços, suponho eu?
— disse o diácono enquanto a estrada levava às proximidades da beira da
lagoa congelada.
— Sim. Aquela é a casa. Foi construída há anos por um estranho sujeito
ermitão, meu pai costumava me dizer. Desde então, não creio que tenha
sido usada por alguém além dos ciganos.
Bosworth havia parado seu cavalo e ficou ali sentado, olhando através
dos troncos de pinheiro arroxeados pelo pôr do sol na estrutura decadente.
O crepúsculo já se assentara sob as árvores, embora o dia perdurasse nas
clareiras. Por entre dois galhos de pinheiro de desenho pontiagudo, ele viu a
estrela d’alva, como um barco branco em um mar de verde.
Seu olhar desceu daquele céu abismal e seguiu as ondulações branco-
azuladas da neve. Ele teve uma curiosa sensação agitada ao pensar que ali,
naquela gelada solidão, na casa caindo aos pedaços pela qual ele com
frequência passava sem se atentar, um sombrio mistério, profundo demais
para a compreensão, estava se desenrolando. Descendo aquela mesma
escarpa, vinda da sepultura em Cold Corners, o ser chamado “Ora” deve
passar em direção à lagoa. Seu coração começou a bater sufocadamente. De
súbito, ele exclamou:
— Veja!
Ele desceu do trenó e seguiu cambaleando margem acima, em direção à
escarpa de neve. Nela, viradas na direção da casa junto da lagoa, ele havia
detectado pegadas de mulher; duas; então três; então mais. O diácono o
seguiu e os dois pararam, observando.
— Meu Deus... descalça! — Hibben arfou. — Então é... a morta...
Bosworth nada disse. Mas sabia que nenhuma mulher viva atravessaria
aquele descampado gelado com os pés descalços. Ali, então, estava a prova
que o diácono havia pedido... eles a tinham. O que deviam fazer com ela?
— Supondo que fôssemos pra mais perto com o trenó... contornando a
lagoa até nos aproximarmos da casa — propôs o diácono em uma voz
insípida — talvez então...
A postergação foi um alívio. Eles subiram no trenó e seguiram em
frente. Duzentos ou trezentos metros adiante, a estrada, uma mera faixa sob
íngremes barreiras cerradas, virava acentuadamente para a direita, seguindo
a curva da lagoa. Enquanto eles a contornavam, viram o trenó de Brand a
frente deles. Estava vazio, o cavalo amarrado a um tronco de árvore. Os
dois homens olharam novamente um para o outro. Esse não era o caminho
mais curto para a casa de Brand.
Ele evidentemente fora incitado pelo mesmo impulso que os havia feito
refrear seu cavalo perto do lago e então precipitarem-se à choça deserta.
Havia ele também descoberto aquelas espectrais pegadas? Talvez tenha sido
por essa mesma razão que ele havia deixado seu trenó e desaparecido na
direção da casa. Bosworth percebeu-se tremendo inteiro sob sua pele de
urso.
— Peço a Deus que a escuridão não esteja chegando — murmurou. Ele
amarrou seu cavalo junto ao de Brand e, sem nenhuma palavra, ele e o
diácono se arrastaram pela neve, no rastro dos pés enormes de Brand.
Precisaram de apenas alguns metros de caminhada para alcançá-lo. Ele não
os escutara seguindo-o e, quando Bosworth disse seu nome e ele parou no
ato e se virou, seu rosto pesado estava indistinto e confuso, como um borrão
mais escuro no crepúsculo. Ele olhou para eles obtusamente, mas sem
surpresa.
— Eu quis ver o lugar — disse meramente.
O diácono pigarreou.
— Só dar uma olhada... sim... assim achamos... mas creio que não
haverá nada para ver... — ele tentou gracejar. O outro não pareceu escutá-
lo, mas esforçou-se a prosseguir atravessando os pinheiros. Os três homens
saíram juntos na clareira diante da casa. Ao emergirem de baixo das
árvores, parecia que haviam deixado a noite para trás. A estrela d’alva
lançava um lustre sobre a neve imaculada e Brand, naquele círculo
luminoso, parou em um solavanco e apontou para as mesmas pegadas leves
viradas na direção da casa... o rastro de uma mulher na neve. Ele parou
imóvel, seu rosto trabalhando.
— Pés descalços... — disse.
O diácono se interpôs em uma voz trêmula:
— Os pés dos mortos.
Brand permaneceu imóvel.
— Os pés dos mortos — ecoou.
O diácono Hibben pousou uma mão assustada em seu braço.
— Agora venha, Brand. Pelo amor de Deus, vamos embora.
O pai se demorou ali, encarando aqueles leves rastros na neve... leves
como os de uma raposa ou de um esquilo naquela imensidão branca.
Bosworth pensou consigo mesmo, Os vivos não poderiam andar com tanta
leveza... nem mesmo Ora Brand poderia, quando era viva... O frio pareceu
ter adentrado sua própria medula. Ele batia os dentes.
Brand virou-se para eles abruptamente.
— Agora! — disse ele, seguindo adiante como se para o ataque, a
cabeça curvada para a frente em seu pescoço de touro.
— Agora... agora? Não lá dentro? — arfou o diácono. — De que
adianta? Ele disse que era amanhã... — Ele tremia feito vara verde.
— É agora — disse Brand. Ele seguiu até a porta daquele hospício,
empurrou-a para dentro e, encontrando uma inesperada resistência, investiu
com seu pesado ombro contra sua folha. A porta desabou feito uma carta de
baralho e Brand, tropeçando nela, adentrou a escuridão da cabana. Os
outros, após um momento de hesitação, o seguiram.
Bosworth nunca teve muita certeza em que ordem ocorreram os eventos
que se seguiram. Deixando o ofuscamento da neve, ele pareceu mergulhar
na total escuridão. Atravessou o limiar tateando seu caminho, tocou com a
palma uma farpa pontiaguda da porta derrubada, pareceu ver algo branco e
fantasmagórico surgir do canto mais escuro da cabana e então ouviu um
revólver ser disparado junto a ele e um grito...
Brand havia dado meia-volta e passou cambaleando por ele em direção
à luz do dia que ainda perdurava. O pôr do sol, de repente jorrando pelas
árvores, avermelhou seu rosto como se fosse sangue. Ele tinha um revólver
na mão e olhou ao redor com seu jeito estúpido.
— Elas então andam mesmo — disse, e começou a rir. Ele curvou a
cabeça para examinar sua arma. — Melhor aqui do que no adro. Agora, eles
não vão desenterrá-la — ele gritou. Os dois homens o pegaram pelos braços
e Bosworth levou o revólver para longe dele.
IV
No dia seguinte, Loretta, irmã de Bosworth que cuidava da casa para
ele, perguntou, quando ele voltou para o almoço, se ele sabia das novidades.
Bosworth estivera serrando madeira a manhã inteira e, a despeito do frio e
da neve torrencial que havia recomeçado durante a noite, ele estava coberto
por um suor gelado, como um homem superando uma febre.
— Quais novidades?
— Venny Brand caiu doente com pneumonia. O diácono esteve lá.
Acho que ela está morrendo.
Bosworth olhou para ela com olhos indiferentes. Ela parecia muito
distante dele, a quilômetros.
— Venny Brand? — ele ecoou.
— Você nunca gostou dela, Orrin.
— Ela é uma criança. Nunca soube muito a seu respeito.
— Bem — repetiu sua irmã, com a inocente satisfação dos prosaicos
para as más notícias. — Acho que ela está morrendo. — Depois de uma
pausa, ela acrescentou. — Sylvester Brand vai acabar morrendo,
completamente só, lá em cima.
Bosworth levantou-se e disse:
— Tenho que cataplasmar a junta do cavalo cinzento. — Ele rumou
para a neve que caía continuamente.
Venny Brand foi enterrada três dias depois. O diácono fez sua liturgia;
Bosworth foi um dos que carregaram o caixão. Toda a região compareceu,
pois a neve havia parado de cair e, em qualquer estação, um funeral oferecia
uma oportunidade para uma excursão que não devia ser desperdiçada. Além
disso, Venny Brand era jovem e bela — pelo menos, algumas pessoas a
consideravam bela, embora ela fosse tão trigueira — e morrer assim, muito
de repente, exercia uma fascinação trágica.
— Dizem que os pulmões dela se encheram de imediato... parece que
ela tinha problema nos brônquios... eu sempre disse que as duas meninas
eram frágeis... vejam só Ora, como foi se consumindo. E, lá em cima, na
terra do Brand, é mais frio e tudo aberto... a mãe delas também, ela
definhou do mesmo jeito. A família dela por parte de mãe nunca chega a
ficar com os ossos velhos... vejam só, o tal jovem Bedlow bem ali; dizem
que Venny estava noiva dele... ah, Sra. Rutledge, me perdoe... pode ir direto
para o banco; há um lugar para a senhora bem ao lado da vovó...
A Sra. Rutledge avançava com passos deliberados pelo estreito corredor
da desoladora igreja de madeira. Estava usando seu melhor barrete, uma
estrutura monumental que ninguém havia visto fora de seu baú desde o
funeral da velha Sra. Silsee, três anos antes. Todas as mulheres se
lembravam dele. Sob a disposição perpendicular dele, seu rosto estreito,
ondulando no pescoço longo e fino, parecia mais branco do que nunca; mas
seu ar agastado havia sido composto em uma expressão adequada de
imobilidade pesarosa.
Parece até que o canteiro a esculpiu para pôr sobre o túmulo de Venny,
pensou Bosworth quando ela pairou por ele; e então estremeceu com seu
próprio devaneio sepulcral. Quando ela se inclinou sobre o livro de hinos,
suas pálpebras abaixadas o lembraram novamente das órbitas de mármore;
as mãos ossudas agarrando o livro eram exangues. Bosworth não via mãos
como aquelas desde que tinha visto a velha tia Cressidora Cheney
estrangular o canário porque ele tinha batido as asas.
O funeral terminou, o caixão de Venny Brand foi colocado na sepultura
de sua irmã e os vizinhos foram lentamente se dispersando. Bosworth,
como carregador do caixão, se sentiu obrigado a se demorar e dar uma
palavra ao pai arrasado. Ele esperou até Brand se afastar da sepultura com o
diácono ao seu lado. Os três homens ficaram ali juntos por um momento;
mas nenhum deles falou. O rosto de Brand era a porta fechada de um cofre-
forte, marcado pelas rugas como se fossem tiras de ferro.
Enfim, o diácono tomou a mão dele e disse:
— O Senhor dá...
Brand assentiu e foi em direção ao galpão onde os cavalos haviam sido
amarrados. Bosworth o seguiu.
— Deixe-me acompanhá-lo até em casa — sugeriu.
Brand nem mesmo virou a cabeça.
— Casa? Que casa? — perguntou ele, e o outro se retirou.
Loretta Bosworth estava conversando com as outras mulheres enquanto
os homens descobriam seus cavalos e devolviam os trenós à neve pesada.
Enquanto Bosworth esperava por ela, a alguns metros dali, ele viu o barrete
alto da Sra. Rutledge reinando acima do grupo. Andy Pond, o ajudante da
fazenda dos Rutledge, estava recuando o trenó.
— Saul não veio hoje, veio, Sra. Rutledge? — pipilou uma das anciãs
do vilarejo, virando sua benevolente cabeça de tartaruga velha em um
pescoço frouxo, piscando para o rosto de mármore da Sra. Rutledge.
Bosworth ouviu-a medir sua resposta em palavras lentas e incisivas.
— Não. O Sr. Rutledge não veio hoje. Ele viria com certeza, mas sua tia
Minorca Cummins está sendo enterrada em Stotesbury neste mesmo dia e
ele teve que ir até lá. Não parece, às vezes, como se estivéssemos todos
andando bem à Sombra da Morte?
Quando ela se dirigiu ao seu trenó, no qual Andy Pond já estava
sentado, o diácono foi até ela com visível hesitação. Involuntariamente,
Bosworth também se moveu para mais perto. Ele ouviu o diácono dizer: —
Fico feliz de saber que Saul já está plenamente recuperado.
Ela virou a cabeça pequena em seu pescoço rígido e ergueu suas
pálpebras de mármore.
— Sim, acho que ele vai dormir mais tranquilo agora... e talvez ela
também, já que não está mais deitada ali sozinha — acrescentou, em uma
voz baixa, com uma súbita torção de seu queixo em direção à mancha negra
recente na neve do cemitério. Ela subiu no trenó e disse em um tom claro
para Andy Pond: — Já que estamos aqui embaixo, só o que eu sei é que vou
logo até a loja de Hiram Pringle comprar uma caixa de sabão.
A GUARDIÃ DO MEU
IRMÃO
Pat Cadigan
Então, foi isso. Voltei ainda menos para casa depois disso, então nunca
mais vi Joe. Mas vi eles. Não ela, não a loira de Joe, o policial ou o cara no
apartamento de Priscilla, mas outros. Aparentemente, uma vez que você
consegue vê-los, não tem como deixar de ver. Continuei mandando ver, me
formei, consegui um emprego, fiz minha vida e os vi um pouco mais.
Não os vejo com mais frequência, mas também não com menos. Eles
estão por aí. Quando não os vejo, vejo onde estiveram. Vários dos lugares
em que eu estive. Às vezes, nem penso neles e é como um breve intervalo
de liberdade, mas não dura muito, é claro. Eu os vejo, eles me veem e
algum dia vão arrumar um tempo para virem atrás de mim. Até agora,
sobrevivi à relevância, ao hedonismo e não virei uma yuppie. Nem a
guardiã do meu irmão. Mas sou alguém. Sempre estive destinada a ser
alguém, algum dia. E, em algum momento, eles vão descobrir quem.
34. O termo designa uma estética popularizada nos anos 1990, que tem a fotógrafa de moda Corinne
Day e a modelo Kate Moss como nomes mais lembrados, baseada em características físicas e de
vestuário que aludiam à decadência de dependentes químicos. - N. da T.
35. Hasher’s Delirium, título em inglês de Le songe d’un garçon de café, curta-metragem animado de
1910, dirigido por Émile Cohl. - N. da T.
36. Prática originada no início do século 00, nos EUA, em que administrações municipais celebram
eventos para os quais é estimulada a visita de antigos residentes, principalmente os que passaram a
infância nessas cidades e se mudaram na vida adulta. - N. da T.
37. Modelo de calça feminina larga usada por baixo de saias que iam até o joelho, popularizada em
meados do século XIX. - N. da T.
38. Very Special Old Pale, uma das classificações de envelhecimento do conhaque. - N. da T.
ASSIM VAI-SE O MUNDO
Caitlín R. Kiernan
39. San Francisco’s Horror of Earthquake, Fire, and Famine, livro que descrevia a catástrofe do
grande terremoto na cidade norte-americana de São Francisco, em 1906. - N. da T.
A ESCADARIA
NOTURNA
Angela Slatter
— Há um visitante para vê-lo esta tarde, Meu Senhor. Acredito que ele
tenha se correspondido com vossa gentil pessoa. — O tom do Intendente
diz precisamente o que ele pensa do visitante, um homem louro, por volta
de seus quarenta e tantos anos, vaidoso, posso dizer, pois usa maquiagem,
como fazem as mulheres, para tentar preencher os sulcos que o tempo
deixou em seu rosto. Eu o observei da cozinha, clandestinamente, enquanto
ajudava Rikke a preparar a refeição da tarde.
Algumas das filhas-do-dia, ela me disse, haviam se recusado
terminantemente a assumir tais tarefas, agindo como se fossem damas de
porcelana de nascença e não louças de barro promovidas temporariamente,
mas eu sempre mostrei disposição em auxiliar nas refeições de toda a casa,
me propondo a temperar eu mesma os gordurosos e carnudos cozidos e
assados para as lagares.
O som de algo se quebrando desviou minha atenção do visitante —
Rikke, parada atrás de mim, os olhos arregalados, a expressão de descrença.
Quando perguntei o que havia de errado, ela se vergou para catar os cacos
da jarra de terracota e balançou a cabeça.
— Achei... — começou ela e balançou a cabeça outra vez, invocando
um sorriso — Achei que o conhecia, de muito tempo atrás. Mas não seria
possível, não é, ele estando inalterado?
Demos uma à outra um sorriso trêmulo. Não vivemos nós à sombra do
inalterado?
O homem era muito belo, seus olhos terrivelmente azuis enquanto
observava o lento giro do Olhar do Intendente sobre o peito de Oswain, mas
faltando-lhe calor, frio como são frias as profundezas da safira, seus lábios
eram muito cheios, passados do ponto, e eu não confiei em sua boca. Tudo
que ele é reside ali, em sua petulância, sua ganância, sua constituição de
necessidade. Não creio que seja amigo do Senhor, mas sim alguém que
deseja algo... e que se ressente por ter que pedi-lo. Ele não enverga bem o
manto de suplicante. Oswain concede a ele um quarto de hóspedes, pois
estamos agora no inverno e o Senhor tem se levantado tarde — a Senhora
ainda mais — e o deixa ali até que alguém vá levá-lo até a biblioteca para
uma audiência.
Não ouvi Meu Senhor entrar no escritório do Intendente, mas, até aí, é
raro que alguém ouça qualquer um deles caso assim não o desejem —
embora a Senhora tenha se tornado mais lenta, de passos mais pesados
ultimamente, ainda era capaz de lançar vasos e armaduras ao chão com
estardalhaço sem o menor dos esforços. Lorde Edward está defronte à
grande mesa à qual senta-se Oswain, curvado sobre um de seus livros
contábeis, enquanto eu coloco uma pilha de faturas em sua devida ordem
em uma mesa menor, num dos cantos. Eu o tenho evitado, esta estranha
figura paterna, desde aquela noite em que meu intrincado planejamento
pareceu ter se desencaminhado, quando meus passos pareceram ter deixado
o caminho certo no qual eu vinha tão cuidadosamente me mantendo, e eu
não conseguia adivinhar o porquê disso.
A biblioteca, à noite, vinha sendo área proibida por meus próprios
desígnios e a cada fim de tarde eu aguardo no solário da Senhora até que ela
surja, então, a amparo até a sala de jantar. Ela está mais fraca e mais
desorientada logo após acordar, por isso, quando a acomodo em segurança
em seu lugar, pego uma pequena faca afiada e punciono as veias de sua
lagar, deixando a espessa iguaria vermelha gotejar em uma taça de cristal.
Ainda está morno e com um eco de vida vibrando por ele, o bastante para
dar a ela alguma força, mas é preciso ser ligeira, pois as batidas do coração
cessam rapidamente. Seu misterioso padecimento deixou-a impotente
demais para se alimentar direto da fonte antes de ter provado um pequeno
bocado para energizá-la, para lembrá-la de que é pelo clarete que ela anseia.
E, enquanto eu presto este serviço, Nosso Senhor me fita com
descontentamento, mas nada diz; seu humor se deteriorou com a saúde de
Nossa Senhora. Ele não se dirige mais a mim diretamente, mas me segue
com um olhar que se ensimesma e promete punição.
Por enquanto, contudo, não sou de interesse algum para ele e Nosso
Senhor fita o Intendente com um olhar perfurante, ignorando a menção ao
convidado, e lança um polegar às suas costas como se para indicar as
fileiras de cestas cobertas na sala.
— E o que é tudo isso, Oswain?
— Meu Senhor, houve um desmoronamento na mina; três famílias
perderam filhos e pais. Tomei a liberdade de reunir estes suprimentos para
ajudar na sobrevivência das proles até que os planos para novos maridos
possam ser arranjados. Mais de uma mulher teve seu marido levado pela
rocha negra da montanha, casando-se novamente poucos dias depois para
garantir que nenhuma viúva empobrecida deteriore nossas ruas.
— O senhor as mima, Oswain! Não acha que elas são capazes de cuidar
de si mesmas sem sua atenção constante? — A insinuação é maldosa,
mesquinha e consigo ver o Intendente se retesar. Seus lábios se crispam,
empalidecem.
— Meu Senhor, eu e os meus mantivemos seu gado vivo, saudável e
contente no intento de manter o Senhor e Vossa Senhora contentes,
saudáveis e... vivos. — Ele gagueja, só um pouco, em cada palavra. —
Poucas coisas perturbariam mais sua agradável existência do que uma
população malcuidada, mas se deseja realmente que eu mude o
cumprimento de meu dever, então, a escolha é do Senhor.
O tom do Intendente é acerado e eu prendo a respiração, temerosa —
me afeiçoei a ele nesses últimos meses. Ele é severo, mas gentil, e nunca o
vi cometer um ato de crueldade. O momento se expande, raspando meus
nervos como a lâmina de uma faca sobre ligamentos. Então, o Senhor sorri
deploravelmente.
— Oswain, velho amigo, o senhor está correto. Mas tome cuidado para
não se exceder.
— Tenho sempre o seu bem-estar em mente, Meu Senhor. — Oswain
inclina sua cabeça, com alívio palpável. Percebo que o Senhor, também, não
desejava um confronto. Não queria forçar-se contra um limite, uma barreira
que poderia rachar e romper muito facilmente.
— Adicione às cestas algumas garrafas de tokay da adega, quantas
pudermos dispor. E mande o visitante para a biblioteca. Não haverá jantar
formal esta noite, então, certifique-se de que ele seja alimentado em seu
quarto.
Oswain ergue uma sobrancelha.
— Meu Senhor?
— Esta noite, Minha Senhora e eu vamos caçar — diz ele, sorrindo e
erguendo sua mão para obstar os protestos do Intendente. — Nada tema,
Oswain, tomaremos a carruagem e iremos para além dos limites de nossas
terras. Nenhum de seus protegidos será ferido.
Oswain assente lentamente.
— Certifique-se de escolher uma fazenda isolada, para que ninguém
possa soar um alarme. Não deixe traços do senhor, nem de sua... refeição.
— Eu me recordo de como caçar, Oswain, embora já faça eras — ele
baixa o tom de voz. — Temo por Minha Senhora, Marcella. Espero que
esta... excursão... ajude a curá-la. Talvez estejamos sedentários há tempo
demais, satisfeitos há tempo demais em sermos alimentados; nós nos
esquecemos de como é importante tomar uma presa. — Seus olhos brilham
e, por um momento ele parece algo feral, perigoso, lutando contra as
restrições que impôs a si mesmo. Então, seu rosto relaxa e o momento
passa.
Mas não consigo esquecer aquela expressão, mesmo quando ele sorri
para mim, aparentemente uma vez mais o pai amoroso que havia se
permitido um debate de mentira comigo, testando-me e vendo-se satisfeito.
Ele dá as costas e sai. Após intermináveis segundos, Oswain se levanta e
fecha a porta. Consigo ver uma fina camada de suor em sua careca.
— Por que o senhor os serve? — pergunto, as palavras saindo antes que
eu possa pensar melhor nelas. Por um instante, duvido que ele vá responder.
— Porque sem eles haverá um vácuo e um vácuo precisa ser
preenchido. E nunca se sabe se o que há de vir pode ser pior do que este par.
— Ele esconde o rosto nas mãos. — Eu faço o que posso, assim como fez
meu pai e o pai dele. Isto é um negócio do qual depende uma cidade inteira
e, enquanto eu permanecer astuto e cuidadoso, nós sobreviveremos.
— Por que Dimity? — indago eu. Isso já vem me incomodando há
muito tempo e ele parece disposto a conversar. — Ela não se parece com
Nossa Senhora.
Ele balança a cabeça.
— Não. Porém, ela parece um pouco com Nosso Senhor. Mas foi por...
achei que isso poderia preservar uma vida. Ela não seria de muito interesse
a Nossa Senhora e, consequentemente, nem a Nosso Senhor. Ela teria
simplesmente deslizado para a criadagem doméstica ou se tornado uma
lagar... qualquer coisa é melhor do que eu ter que entregar outro corpo vazio
a pais que tinham esperanças maiores para sua filha.
Eu não havia pensado nisso dessa forma, não pensei que a escolha por
Dimity pudesse ter sido calculada. O Intendente Oswain é um bom homem
fazendo o melhor que pode sob um fardo pesadíssimo. Eu o respeito e lhe
tenho compaixão. Houve o dia em que pensei em me vingar dele, por ter
sido quem escolheu minhas irmãs. Mas agora, vendo o quanto ele se
condói... não posso erguer minha mão contra ele.
— O que há de errado com Nossa Senhora? — pergunto.
Ele dá de ombros.
— Eles são velhos, Adlisa. Nada deveria viver tanto tempo assim.
Talvez seja simplesmente a morte os alcançando.
— E há outros da espécie deles?
Novamente, ele dá de ombros.
— Em algum lugar, creio eu, mas não soube de nenhum durante toda a
minha vida. Meu avô disse que o homem que os gerou não era como eles,
não era a mesma coisa na qual ele os transformou. Ele... aquilo... os
amaldiçoou e roubou a filha deles. Eles têm sido imutáveis há tantos
séculos, mas quem sabe a maldição esteja chegando ao fim e, assim sendo,
também suas vidas? — Novamente, ele esfrega o rosto com as mãos, o som
da pele contra a barba rala é alto.
— Eles nunca foram maus regentes, Adlisa. Se despender sabiamente
seu tempo na biblioteca, saberá disso. E, como são agora, não são nem de
longe tão maus quanto poderiam. O tempo os tornou estranhos.
O silêncio cai e reina, rompido apenas pelo tique-taque do relógio na
mesa, um objeto com um pássaro que pia as horas. Já penso que, se eu nada
disser, ficaremos ali para sempre.
— Devo ir entregar as cestas?
— Não, eu organizo isso. A senhorita pode ir buscar o hóspede e levá-lo
até a biblioteca. Depois disso, creio que pode ser melhor que se recolha ao
seu quarto, esta noite.
Passo pela cozinha e, da pequena caixa de madeira que ocultei por trás
dos sacos de batata, tiro três dentes de alho. Eu os esmago rapidamente
contra os tijolos da lareira enquanto ninguém está olhando e jogo os
fragmentos de alho no espesso e carnoso caldo borbulhando sobre o fogo. O
sabor será disfarçado pelo do alho-porró, da cebolinha e das cebolas já
misturados a ele. Esfrego as mãos cuidadosamente na pia de pedra com
sabão de lixívia, então, derramo um pouco do sumo de limão para limpeza
que Rikke mantém ali, para quando precisa preparar peixe e tem que se
livrar do cheiro.
O hóspede foi instalado em um quarto a três portas do meu, com uma
elaborada decoração em verde, dourado e bronze. Quando bato, ele demora
a responder, então me faz esperar após eu dizer a ele porque estou ali —
embora ele com certeza deva saber —, mas não se apressa ao vestir sua
sobrecasaca aparentemente nova em folha, com seus intrincados botões
esmaltados, mostrando as rendas dos punhos de sua camisa para que elas
possam ser vistas e admiradas. Ele joga o cabelo para lá e para cá, em frente
ao grande e espalhafatoso espelho de cloisonné sobre a lareira, vaidoso
como uma mulher, como se tamanho rebuliço fosse ajudar em sua causa.
Ele não incita conversa alguma comigo, mas posso sentir seus olhos
cravados nas minhas costas enquanto o guio pelos corredores, pelas escadas
abaixo, por cômodos menores, até que, enfim, chegamos à biblioteca.
— Obrigado, Adlisa — diz Meu Senhor quando apresento seu
convidado. Ele agarra meu braço sem parecer me ameaçar de qualquer
violência, acaricia meu rosto e meus cachos. Não é uma atitude de pai e me
causa medo, como se eu estivesse sendo atraída para algo do qual não posso
escapar, um redemoinho, uma onda que vai me afogar. Na medida em que
sua esposa definha, ele se torna mais predatório. Enquanto ela cede, ele luta
contra seja lá o que esteja acontecendo. Ele me solta como se estivesse me
largando do alto de algum lugar.
— Pode ir.
— Bela moça — ouço o homem louro dizer enquanto fecho a porta. —
Ela me lembra muito minha irmã...
40. Corrente adornada, usada ao redor da cintura, na qual se prendiam um ou vários objetos,
incluindo chaves. - N. da T.
UMA LUZ QUE VEM DO
NORTE
Gwyneth Jones
41. Até meados da década de 1960, cada país tinha uma cor padrão usada por seus representantes em
competições automobilísticas. - N. da T.
JACK
Connie Willis
Seja lá o que Jack havia usado para encontrar o coronel Godalming, não
funcionou com incendiárias. Ele procurava por elas tão aleatoriamente
quanto o resto de nós e Vi, que estava como olheira, gritava direções:
— Não, bem no fim da Estrada Fulham. Na mercearia.
Ela aparentemente vinha sonhando acordada com seus pilotos, em vez
de fazer a vigília. A incendiária não estava na mercearia, mas no
açougueiro, a três portas de lá, e na hora que Jack e eu chegamos, a câmara
refrigerada estava em chamas. Não foi difícil apagá-las, não havia nem
móveis nem cortinas para se incendiarem e o frio impediu as prateleiras de
madeira de pegarem fogo, mas o açougueiro ficou extremamente grato. Ele
insistiu em embalar para nós cerca de dois quilos de costelas de carneiro em
papel branco e enfiou-as nos braços de Jack.
— Você precisa mesmo estar no seu emprego diurno tão cedo ou estava
só tentando escapar do coronel? — perguntei a Jack no caminho de volta
para o posto.
— Ele foi tão desagradável assim? — questionou ele, me entregando o
pacote de costelas de carneiro.
— Ele quase arrancou minha cabeça quando falei que você tinha
escutado ele gritando. Disse que não tinha chamado ajuda. Que estava
cavando uma saída sozinho. — O papel branco do açougueiro era tão claro
que a Luftwaffe poderia pensar que era um holofote. Enfiei o pacote por
dentro do meu macacão para que não ficasse à mostra. — Que tipo de
trabalho é esse, seu emprego diurno?
— Serviço bélico.
— Eles transferiram você? Foi por isso que veio pra Londres?
— Não — ele disse. — Eu quis vir. — Viramos na rua da Sra. Lucy. —
Por que você entrou para a ARP?
— Estou esperando ser convocado — expliquei —, então ninguém me
contratava.
— E você queria fazer sua parte.
— Sim — eu disse, desejando poder ver seu rosto.
— E quanto à Sra. Lucy? Por que ela se tornou sentinela?
— A Sra. Lucy? — inquiri vagamente. A pergunta nunca havia me
ocorrido. Ela era a melhor sentinela de Londres. Era sua vocação natural e
eu pensava nela como sempre tendo sido uma. — Não faço ideia. — A casa
é dela, ela é viúva. Talvez a Defesa Civil a tenha desapropriado e ela tenha
precisado se tornar sentinela. É a mais alta da rua. — Tentei me lembrar do
que Twickenham havia escrito sobre ela em sua entrevista. — Antes da
guerra, ela tinha algo a ver com uma igreja.
— Uma igreja — ele disse e mais uma vez desejei poder ver seu rosto.
No escuro, não sabia dizer se ele havia dito isso por desprezo ou saudade.
— Ela era uma diaconisa ou coisa assim — comentei. — Que tipo de
serviço bélico é o seu? Munições?
— Não — ele disse e saiu caminhando na frente.
A Sra. Lucy nos encontrou na porta do posto. Dei a ela os pacotes de
costelas de carneiro e Jack subiu pelas escadas para render Vi como olheiro.
A Sra. Lucy preparou as costelas imediatamente, correndo para a cozinha
no andar de cima durante uma calmaria nas incursões, atrás de sal e molho
de hortelã, atenta ao fogareiro a gás na ponta da mesa e virando-as pelo que
pareceu uma eternidade. O cheiro era maravilhoso.Twickenham distribuiu
cópias recém-rodadas do Tabloide do Twickenham.
— Algo para lerem enquanto esperam seu jantar — disse ele, orgulhoso.
A matéria principal era sobre a mudança de endereço do Subposto D,
que havia sido parcialmente atingido e cujos encanamentos tinham se
partido.
— Nelson recusou reforços a eles também? — perguntou Swales.
— Escuta isso — disse Petersby. Ele leu em voz alta o boletim. — “A
taxa de crimes em Londres aumentou em vinte e oito por cento desde o
início do blecaute.”
— Não é de se admirar — disse Vi, descendo as escadas. — Não dá pra
ver um palmo adiante do nariz à noite, quanto mais alguém à espreita num
beco. Eu sempre tenho medo de que alguém vá pular em mim enquanto
estou em patrulha.
— As casas estão todas ficando vazias e metade de Londres dorme nos
abrigos — disse Swales. — São roubos fáceis. Se eu fosse um meliante,
viria direto pra Londres.
— É nojento — disse Morris, indignado. — A ideia de que alguém
possa tirar vantagem de estar havendo uma guerra para cometer crimes.
— Ah, Sr. Morris, isso me fez lembrar. Seu filho telefonou — falou a
Sra. Lucy, cortando uma costela para saber se estava pronta. O sangue
aflorou. — Ele disse que tinha uma surpresa pra você e que devia ir para...
— Ela mudou o garfo para a mão esquerda e remexeu o bolso de seu
macacão até encontrar um pedaço de papel — North Weald na segunda,
acho. O comandante dele fez os preparativos de viagem necessários para
você. Eu anotei tudo.
Ela entregou o papel a ele e voltou a virar as costeletas.
— Uma surpresa? — disse Morris, parecendo preocupado. — Ele não
está encrencado, está? O comandante dele quer me ver?
— Eu não sei. Ele não me contou nada a respeito. Apenas que gostaria
que você fosse.
Vi se aproximou da Sra. Lucy e espiou dentro da frigideira.
— Que bom que foi no açougue e não na mercearia — ela disse. —
Nabos nem de longe ficariam tão apetitosos.
A Sra. Lucy espetou uma costela, pôs num prato e entregou a Vi.
— Leve lá em cima para o Jack — disse ela.
— Ele não vai querer — disse Vi. Ela pegou o prato e sentou-se à mesa.
— Ele disse por que não queria? — perguntei. Ela me olhou com
curiosidade. — Acho que não deve estar com fome — ela disse. — Ou
talvez ele não goste de costeletas de carneiro.
— Espero mesmo que ele não esteja encrencado — comentou Morris e
levei um minuto para me dar conta de que ele estava falando do filho. —
Ele não é um mau menino, mas faz as coisas sem pensar. É a exaltação da
juventude, só isso.
— Ele também não comeu o bolo — contei. — Falou por que não
queria a costeleta de carneiro?
— Se o Sr. Settle não quer, então leve para o Sr. Renfrew — disse a Sra.
Lucy rispidamente. Ela apanhou o prato para afastá-lo de Vi. — E não o
deixe dizer que não está com fome. Ele precisa comer. Está ficando muito
esgotado.
Vi suspirou e se levantou. A Sra. Lucy devolveu o prato a ela e ela foi
até o outro quarto.
— Todos nós precisamos comer muito bem e dormir bastante — disse a
Sra. Lucy repreensivamente. — Para manter nossas forças.
— Eu escrevi uma matéria sobre isso no Tabloide — afirmou
Twickenham, radiante. — É conhecida como “morte ambulante”. É causada
pela falta de sono e má nutrição, com a ansiedade das incursões. Os
sintomas da morte ambulante são tempo de reação desacelerado e
discernimento comprometido, o que resulta no aumento de acidentes de
trabalho.
— Bom, eu não vou aceitar nenhum morto ambulante entre as minhas
sentinelas — disse a Sra. Lucy, servindo o resto das costeletas. — Assim
que vocês comerem isso, quero que vão todos para a cama.
O gosto das costeletas estava ainda melhor do que o cheiro. Comi a
minha, lendo a matéria de Twickenham sobre os mortos ambulantes. Dizia
que a perda de apetite era uma reação comum às incursões. Também dizia
que a falta de sono poderia causar comportamento compulsivo e estranhas
fixações. “Os mortos ambulantes podem se convencer de que estão sendo
envenenados ou que um parente ou amigo é um agente alemão. Eles podem
alucinar, ouvir vozes, ter visões ou acreditar em coisas fantásticas.”
— Ele estava encrencado na escola antes da guerra, mas endireitou
desde que se alistou — disse Morris. — O que será que ele fez?
Às três horas da manhã seguinte, uma mina terrestre explodiu quase no
mesmo lugar da Rua Old Church que a AI. Nelson mandou Olmwood para
pedir ajuda e a Sra. Lucy ordenou que Swales, Jack e eu fôssemos com ele.
— A mina não caiu a mais de duas casas de distância da primeira
cratera — disse Olmwood enquanto estávamos pegando nosso
equipamento. — Nem se os chucrutes estivessem mirando, teriam chegado
tão perto.
— Eu sei no que eles estão mirando — disse Renfrew da soleira. Ele
parecia terrível, pálido e exausto feito um fantasma. — E eu sei porque
vocês solicitaram reforços pro posto. Por minha causa, não é? Eles estão
atrás de mim.
— Eles não estão atrás de nenhum de nós — ralhou a Sra. Lucy,
firmemente.
— Eles estão a três quilômetros daqui. Não estão mirando no nada.
— Por que Hitler ia querer bombardear você mais do que o resto de
nós? — perguntou Swales.
— Eu não sei. — Ele afundou em uma das cadeiras e pôs a cabeça nas
mãos. — Eu não sei. Mas eles estão atrás de mim. Eu sinto.
A Sra. Lucy havia mandado Swales, Jack e eu para o incidente porque
“já estiveram lá. Vão conhecer o terreno.” Mas essa era uma esperança vã.
Uma vez que explodem acima do solo, minas terrestres causam danos
consideravelmente maiores do que as AIs. Agora, havia uma colina onde
ficava a tenda do oficial de incidente e mais três além dela, uma cadeia de
montanhas no meio de Londres. Swales começou a subir o pico mais
próximo para procurar pela luz do oficial de incidente.
— Jack, desse lado! — gritou alguém da colina atrás de nós e subimos
de gatinhas a encosta em direção à voz.
Um grupo de cinco homens estava a meio caminho do topo da colina,
olhando para baixo em um buraco.
— Jack! — gritou o homem outra vez. Ele usava uma braçadeira azul
de supervisor e estava olhando direto para alguém atrás de nós, se
arrastando colina acima com o que parecia ser uma bomba manual. Pensei
eu, com certeza não está tentando apagar um incêndio lá embaixo desse
fosso, então vi que não era uma bomba. Era, na verdade, um macaco e o
homem com a braçadeira azul esticou o braço por entre nós para pegá-lo,
baixou-o para o buraco e foi se arrastando atrás dele.
O resto do esquadrão de resgate ficou olhando para baixo na escuridão,
como se de fato pudessem ver alguma coisa. Depois de algum tempo, eles
começaram a passar baldes vazios para dentro do buraco e a puxá-los de
volta cheios de tijolos quebrados e pedaços de madeira lascada. Nenhum
deles pareceu nos notar, mesmo quando Jack estendeu as mãos para pegar
um dos baldes.
— Somos de Chelsea — gritei para o supervisor por sobre o zunido dos
aviões e das bombas. — O que podemos fazer para ajudar?
Eles continuaram em sua brigada do balde. Um bule de chá de
porcelana apareceu no topo de uma das cargas, coberto de poeira, mas nem
sequer com uma rachadura. Tentei novamente.
— Quem está aí embaixo?
— São dois — disse o homem mais perto de mim. Ele catou o bule da
pilha e entregou-o a um homem usando uma balaclava por baixo do
capacete. — Um homem e uma mulher.
— Somos de Chelsea — gritei acima do estouro dos tiros antiaéreos. —
O que querem que a gente faça?
Ele tomou o bule do homem com a balaclava e o entregou a nós.
— Leve isto para a calçada junto dos outros itens de valor.
Levei um bom tempo para descer pela encosta, segurando o bule em
uma mão e a tampa em cima dele com a outra, tentando manter o equilíbrio
em meio aos tijolos quebrados, e levei ainda mais tempo para achar alguma
calçada. A mina terrestre havia erguido a maior parte dela e a rua junto.
Eu finalmente a encontrei, um quadrado de calçada intacto em frente a
uma padaria destruída, com os “itens de valor” impecavelmente enfileirados
nela: um rádio, uma bota, duas colheres de servir como aquela com a qual o
coronel Godalming havia me ameaçado, uma bolsa feminina para o dia,
enfeitada de contas. Um membro do resgate estava montando guarda junto
deles.
— Alto! — ele disse, postando-se na frente deles quando me aproximei,
segurando uma lanterna ou uma arma. — É proibida a entrada neste
perímetro.
— Sou da ARP — disse apressadamente. — Jack Harker. Chelsea. —
Ergui o bule de chá. — Eles me mandaram para cá com isto.
Era uma lanterna. Ele a ligou e desligou, um piscar de olhos.
— Desculpe — ele disse. — Tivemos um bom número de saques,
recentemente. — Ele pegou o bule de chá e o colocou no fim da fileira,
próximo à bolsa. — Peguei um homem na semana passada vasculhando os
bolsos dos corpos colocados na rua esperando o rabecão. É terrível que
algumas pessoas resolvam tirar vantagem de algo assim.
Voltei para onde os funcionários do resgate estavam cavando. Jack
estava na boca do fosso, erguendo baldes e os devolvendo. Entrei na fila
atrás dele.
— Já os encontraram? — perguntei assim que houve uma calmaria no
bombardeio.
— Quieto! — gritou uma voz vinda do buraco e o homem com a
balaclava repetiu: — Quieto todo mundo! Precisamos de silêncio absoluto!
Todos pararam de trabalhar e escutaram. Jack havia me entregado um
balde cheio de tijolos e a alça cortou minhas mãos. Por um segundo, fez-se
o mais completo silêncio e então o zumbido de um avião e o silvo distante e
o estrondo de uma AI.
— Não se preocupem — gritou a voz de dentro do buraco —, estamos
quase lá.
Os baldes começaram a subir do buraco novamente.
Eu não tinha ouvido nada, mas aparentemente eles sim, lá embaixo, no
fosso, uma voz ou um som de leves batidas; e me senti aliviado, tanto por
pelo menos um deles ainda estar vivo quanto pelos escavadores ainda
estarem no caminho certo. Eu havia socorrido um incidente em outubro no
qual tivemos que parar no meio do caminho e cavar um novo fosso porque
os escombros continuavam a distorcer e a deslocar o som. Mesmo que o
fosso estivesse diretamente acima da vítima, a tendência era que ele se
desviasse no trabalho de passar pelos obstáculos e o único modo de manter
sua direção era com auscultações frequentes. Pensei em Jack cavando atrás
do coronel Godalming com o corrimão. Ele não havia feito nenhuma
auscultação. Ele parecia saber exatamente onde estava indo.
Os homens no fosso pediram o macaco outra vez e Jack e eu o
baixamos para eles. Quando o homem lá embaixo estendeu as mãos para
pegá-lo, Jack parou. Ele levantou a cabeça, como se estivesse escutando.
— O que foi? — perguntei. Não conseguia ouvir nada além da artilharia
antiaérea no Parque Hyde. — Você ouviu alguém chamando?
— Cadê a droga do macaco? — berrou o supervisor.
— É tarde demais — Jack disse para mim. — Eles morreram.
— Anda logo, desce ele aqui — gritou o supervisor. — Não temos o dia
todo.
Ele entregou o macaco.
— Silêncio — o supervisor alertou e, acima de nós, como um eco
fantasmagórico, podíamos ouvir o chamado do homem que usava
balaclava:
— Silêncio, todo mundo, por favor.
O relógio de uma igreja bateu as quatro horas, parou e ouviu-se um som
deslizante de terra caindo no metal. Então, silêncio outra vez e um som
tênue.
— Silêncio! — repetiu o supervisor, fez-se mais silêncio e o som
novamente. Um choramingo. Ou um gemido. — Estamos ouvindo você —
ele gritou. — Não tenha medo.
— Um deles ainda está vivo — eu disse.
Jack não falou nada.
— Nós acabamos de ouvi-los — falei, com raiva.
Jack balançou a cabeça.
— Vamos precisar de madeira serrada para as escoras — disse o homem
com a balaclava a Jack e eu esperava que ele dissesse ao outro que não
adiantava, mas ele saiu imediatamente e voltou arrastando uma estante
pintada de branco.
Ela ainda tinha três livros. Ajudei Jack e o homem com a balaclava a
tirar as prateleiras da estante e levei os livros lá para baixo, no depósito de
“itens valiosos”. O guarda estava sentado na calçada, remexendo a bolsa de
contas.
— Fazendo o inventário — ele disse, levantando-se apressadamente.
Ele enfiou um batom e um lenço na bolsa. — Pra garantir que nada seja
roubado.
— Trouxe algo para você ler — afirmei e coloquei o livro junto ao bule.
Crime e Castigo.
Labutei colina acima de volta, ajudei Jack a baixar as prateleiras pelo
fosso e, após alguns minutos, os baldes começaram a subir outra vez.
Formamos novamente nossa esparsa brigada do balde, o homem usando
balaclava na ponta dela e então eu e depois Jack.
O sinal de fim de perigo soou. Assim que ele perdeu força, o supervisor
fez uma nova auscultação. Dessa vez, não ouvimos nada e, quando os
baldes recomeçaram, eu os entreguei a Jack sem olhar para ele.
A luz começou a surgir ao leste, um lento acinzentar das colinas sobre
nós. Duas delas, de vários andares de altura, estavam onde eram as casas
conjugadas que haviam escapado na noite anterior, e nós ainda estávamos
sob suas sombras, embora eu agora pudesse ver o fosso, com a ponta de
uma das prateleiras brancas se estendendo para fora dele, como uma lápide.
Os baldes começaram a vir mais lentamente.
— Apaguem seus cigarros! — gritou o supervisor e todos paramos,
tentando captar o cheiro do gás. Se eles estavam mortos, como Jack havia
dito, era mais provável que o gás vazando dos encanamentos quebrados os
tivesse matado, não lesões internas. Na semana anterior, havíamos achado
um garoto e seu cachorro, sem nenhum arranhão. O cão havia latido e
choramingado por quase todo o tempo até os encontrarmos e o motorista da
ambulância disse que achava que eles só estavam mortos há alguns
minutos.
Não senti nenhum cheiro de gás e, depois de um minuto, o supervisor
disse, empolgado:
— Estou vendo eles!
O homem com a balaclava se inclinou por sobre o fosso, suas mãos nos
joelhos.
— Eles estão vivos?
— Sim! Chame uma ambulância!
Balaclava saiu pulando colina abaixo, escorregando sobre tijolos
quebrados que deslizavam em uma pequena avalanche. Me ajoelhei por
sobre o fosso. — Eles vão precisar de maca? — Gritei para baixo.
— Não — disse o supervisor e eu soube pelo tom de sua voz que eles
estavam mortos.
— Os dois? — Perguntei.
— Sim.
Me levantei.
— Como sabia que eles estavam mortos? — perguntei, virando-me para
olhar para Jack. — Como você?...
Ele não estava lá. Olhei para a base da colina. O homem com a
balaclava estava quase lá embaixo — agarrando-se a um caixilho de janela
quebrado para frear sua descida de cabeça, seu rastro uma nuvem
fumacenta de poeira dos tijolos — mas não se via Jack em lugar algum.
Já havia quase amanhecido. Eu podia ver as colinas cinzentas e, em seu
extremo oposto, a sentinela e seus “itens de valor”. Havia outro grupo de
resgate na terceira colina a partir dali, ainda cavando. Eu podia ver Swales
descendo um balde.
— Me dê uma mão aqui — disse o supervisor impacientemente e
ergueu o macaco para mim. Eu o icei para a lateral e voltei para ajudá-lo a
sair do fosso. Suas mãos estavam imundas, cobertas de lama marrom
avermelhada.
— Foi o gás que os matou? — perguntei, embora ele já estivesse
puxando um maço de cigarros.
— Não — ele disse, balançando-o para pôr um cigarro para fora e
pegando-o com os dentes. Ele espanou a parte da frente de seu macacão,
deixando marcas vermelhas.
— Há quanto tempo eles estavam mortos? — perguntei. Ele encontrou
seus fósforos, riscou um e acendeu o cigarro. — Eu diria que desde um
pouco depois da última vez que os ouvimos — disse ele, e eu pensei, mas
eles já estavam mortos a essa altura. E Jack sabia. — Estavam mortos há
pelo menos duas horas.
Olhei para meu relógio. Vi que passava um pouco das seis.
— Mas a mina não os matou?
Ele pegou o cigarro entre seus dedos e deu uma longa baforada de
fumaça. Quando pôs o cigarro novamente na boca, havia uma mancha
vermelha nele.
— Perda de sangue.
Fui até Whitechapel, para ver o farejador de corpos no dia seguinte. Ele
não estava lá.
— Ele é meio período — disse-me o diretor do posto, liberando uma
cadeira para que eu pudesse me sentar. O posto estava uma bagunça, roupas
e pratos sujos por toda parte. Uma senhora de roupão estampado estava
preparando rins em uma frigideira.
— Durante o dia, ele trabalha com munições em Dorking — ela disse.
— Como exatamente ele é capaz de localizar os corpos? — perguntei.
— Ouvi dizer...
— Que ele lê mentes? — disse a mulher. Ela raspou os rins para um
prato e o entregou ao diretor do posto. — Ele também ouviu, infelizmente,
e isso lhe subiu à cabeça. “Estou sentindo-os aqui embaixo”, ele diz pros
esquadrões de resgate, como se fosse o Houdini ou coisa assim, e aponta
pra onde eles devem começar a cavar.
— Então, como ele os encontra?
— Sorte — afirmou o diretor.
— Eu acho que ele sente o cheiro deles — arriscou a mulher. — É por
isso que os chamam de farejadores de corpos.
O diretor bufou.
— Com todo o fedor que os chucrutes botam nas bombas, o gás e todo o
resto?
— Se ele fosse um... — eu disse e não terminei. — Se ele tivesse um
olfato aguçado, talvez sentisse o cheiro do sangue.
— Não dá pra sentir o cheiro dos corpos nem quando eles tão mortos há
uma semana — afirmou o diretor, a boca cheia de rins. — Ele escuta os
gritos deles, igual a gente.
— Ele tem uma audição melhor que a nossa — comentou a mulher,
trocando alegremente de teoria. — A maioria de nós já está meio surda com
essas armas e ele não.
Eu não tinha sido capaz de escutar a mulher obesa com a rede de cabelo
rosa, embora ela tenha dito que gritou por ajuda. Mas Jack, recém-chegado
de Yorkshire, onde eles não haviam sido ensurdecidos ao longo de semanas
pela artilharia antiaérea, tinha. Não havia nada de sinistro nisso. Algumas
pessoas escutavam melhor do que outras.
— Nós resgatamos um coronel do exército na semana passada que disse
que não gritou — falei.
— Ele está mentindo — afirmou o diretor, cortando um rim. — Nós
achamos uma babá, há dois dias, toda cheia de cerimônias, que xingou o
tempo todo em que estávamos tirando ela, coisas que fariam um marinheiro
corar, e depois disse que não fez isso. “Palavras chulas nunca saíram de
meus lábios e nunca sairão”, ela me disse. — Ele brandiu seu garfo para
mim. — Seu coronel gritou, sim. Ele só não vai admitir.
“Eu não fiz um som sequer”. Dissera o coronel Godalming, brandindo
sua colher de servir. “Sabia que não adiantaria nada”, e talvez o diretor
tivesse razão e tivesse sido apenas bravata. Mas ele não queria que sua
esposa soubesse que ele estava em Londres e descobrisse sobre a dançarina
do Windmill. Ele tinha uma boa razão para fazer silêncio, para tentar se
livrar sozinho.
Fui pra casa e telefonei para uma garota que eu conhecia no serviço de
ambulâncias, pedindo a ela que descobrisse para onde tinham levado Mina.
Ela me ligou de volta com a resposta em alguns minutos e eu peguei o
metrô até o Hospital St. George. Todos os outros tinham gritado ou batido
no teto do abrigo, exceto Mina. Ela estava tão assustada quando Jack a tirou
que não conseguia emitir mais que um sussurro, mas isso não significava
que ela não tivesse gritado ou choramingado.
“Quando você foi soterrada, noite passada, você pediu por ajuda?”, eu
lhe perguntaria e ela me responderia em sua voz de ratinho: “Eu gritei e
gritei por entre minhas orações. Por quê?”, e eu diria: “Não foi nada, uma
estranha fixação causada pela falta de sono. Jack passa seus dias em
Dorking, em uma fábrica de munições e tem uma audição
excepcionalmente boa.” E minha teoria é tão verdadeira quanto a crença de
Renfrew de que as incursões foram causadas por uma carta ao The Times.
O Hospital St. George tinha uma entrada com a indicação POSTO DE
TRIAGEM DE VÍTIMAS. Perguntei a uma freira, a enfermeira da recepção, se
poderia ver Mina.
— Ela foi trazida noite passada. O incidente da Rua James.
Ela olhou para uma lista escrita e riscada a lápis.
— Não tenho nenhuma admissão com esse nome.
— Tenho certeza de que ela foi trazida para cá — eu disse, virando
minha cabeça para poder ler a lista. — Não existe outro St. George, existe?
Ela balançou a cabeça e ergueu a lista para olhar uma segunda folha.
— Aqui está — ela disse e eu ouvi os esquadrões de resgate usarem
aquele tom de voz vezes o suficiente para saber o que ele significava, mas
aquilo era impossível. Ela estava debaixo daquela cabeceira. O sangue na
camisola nem mesmo era dela.
— Eu sinto muito — disse a freira.
— Quando ela morreu? — perguntei.
— Esta manhã — Ela respondeu, checando a segunda lista, que era
muito mais longa do que a primeira.
— Mais alguém veio visitá-la?
— Eu não sei. Cheguei às onze horas.
— Do que ela morreu?
Ela olhou para mim como se eu fosse insano.
— Qual foi a causa da morte registrada? — perguntei.
Ela teve que achar o nome de Mina na lista outra vez.
— Choque devido a perda de sangue — ela disse, eu agradeci e parti
para encontrar Jack.
A noite sorver.
O dia chorar.
A ouvir o latejo
Por baixo do seio.
A beber do vinho.
Que enche o peito.
A noite sorver,
O dia chorar.
Não nos esquivamos,
A seiva é sombria festa.
Tomamos o homem,
Mas nunca a besta.
A noite sorver,
O dia chorar.
AGRADECIMENTOS