Soberania. in FURET Dicionário Crítico Da Revolução Francesa 882-895
Soberania. in FURET Dicionário Crítico Da Revolução Francesa 882-895
Soberania. in FURET Dicionário Crítico Da Revolução Francesa 882-895
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FURET, François (org.). Oicionário Critico da Revolução Franceso. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1989.pp.882-895
dominante, ou o povo inteiro. Mas o objetivo dos Six livres de Ia République consis-
tia em mostrar que ela só podia ser efetiva numa verdadeira monarquia. Um poder
SOBERANIA soberano coletivo - de todos ou somente de alguns - nunca disporia da unidade
indispensável à autoridade do soberano. Essa unidade de vontade só poderia cumprir-
se na pessoa de um "príncipe alçado acima de todos os súditos, cuja majestade não
KEITH MICHAEL BAKER suporta divisão". Recusando. embora. aos súditos o direito de restringir o exercício da
soberania, fixando-lhe limites, Bodin, no entanto, estava longe de negar a existência
de tais limites. Lugares-tenentes de Deus na terra, os príncipes são submetidos à lei
divina. Detentores de um poder constitucionalmente estabelecido. eles são submetidos
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às leis fundamentais que regem a sucessão do trono e a inalienabilidade do domínio
N ão há necessidade de insistir em que o princípio da soberania nacional está no
próprio âmago da Revolução Francesa. Que esse princípio tenha sido criado _ r monárquico. Também são, no exercício legítimo de sua soberania, submetidos ao
direito natural, aos princípios que exigem que se respeite acima de tudo a liberdade e
e posto em prática - pela transferência da soberania absoluta do rei à nação é um a propriedade dos súditos numa ordem social particularista.
truísrno que merece ser repetido. E explorado. I É próprio, com efeito. da natureza essencial da sociedade ser composta por uma
Na Revolução Francesa, muito devia depender das dificuldades conceituais e I
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multiplicidade de ordens e de estados, de comunidades e corporações, de províncias
políticas que comportava o fato de que se reivindicava para a nação lima idéia de e de regiões: é a hipótese fundamental de Bodin, como dos teóricos da soberania
soberania elaborada em nome da monarquia absoluta, no curso dos dois séculos que i monárquica. A soberania que define o bem público existe precisamente para es-
se tinham seguido às desordens das guerras de religião, guerras que haviam suscitado tabelecer a ordem e a unidade numa rnultiplicidade de ordens e de estados. Sem ela,
em Bodin a primeira formulação moderna dessa idéia eles não poderiam ser mantidos. Essa função de ordem numa sociedade concebida
como um agregado de corpos discordantes é fundamental na teoria da monarquia
*** absoluta. Em outras palavras, o Poder Legislativo real - direito de legislar ou de
modificar arbitrariamente as leis - é bem a marca da soberania, mas só se concebe
Como as doutrinas de "monarcômacos" que ele contesta, a teoria da soberania seu exercício nos limites de uma concepção relativamente estreita da função gover-
de Bodin apóia-se nas premissas conceituais de uma tradição constitucional ambígua. namental, destinada a manter a organização legítima dos homens e das coisas no
Durante séculos, os teóricos constitucionais franceses haviam insistido no fato de que I interior de uma ordem sociaJ constituída. Nesse sentido, o Estado é uma entidade
° monarca estava investido da plenitudo potestatis, como imperador em seu domínio
próprio; mas também haviam sublinhado que esse poder absoluto era limitado pela l~i I, passiva - realidade social a preservar e a manter em boa ordem - mais que a ex-
pressão atuante de uma vontade legislativa suprema. Quanto ao governo, cabe-lhe
divina e natural, pelo costume e procedimentos legais, assim como pela constituição \ essencialmente uma função judiciária: dar a cada um o que lhe é devido numa rnulti-
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do reino. No debate suscitado de maneira tão aguda Pelas guerras de Religião, não se
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Bossuet ilustra perfeitamente esse processo. A Poli tique tirée des propres que tinha a população de pagar, a organização da guerra dependia da capacidade que
paroles de I' Ecriture Sainte constitui um contraste notável com Bodin, dando as tinha a administração de produzir a prosperidade. Para mobilizar os recursos sociais,
costas para a tradição constitucional francesa. Na defesa que faz Bossuet da monar- o govemo estava também obrigado a elevá-Ios ao máximo.
quia absoluta, a história bíblica toma o lugar da história da monarquia francesa como Assim, a função dos intendentes e de seus agentes não se limitou mais a extrair
campo de eleição do debate político; a autoridade das Escrituras substitui o pre- os recursos de suas localidades; tiveram também de fazê-los frutificar, melhorando a
cedente constitucional, e a razão abstrata, os títulos jurídicos. Desligadas, assim, da I produtividade agrícola, estimulando o comércio e a indústria, incentivando a cons-
tradição constitucional, as pretensões a uma soberania monárquica só podiam crescer. r· o
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da natureza (...). Existindo apenas na ordem natural, sua vontade, para ex.ercer todo o ';;
seu efeito, só necessita ser portadora dos atributos naturais de uma vontade." Por uma
inversão espetacular, a nação, criada no curso dos séculos pelos esforços constantes Qu' est ce que Ie Tiers Etat? constituía uma obra-prima de retórica política.
do Estado monãrquico, se lhe tornava agora rnetafisicamente prévia. Não foi menos Mas Sieyês era incapaz de controlar todos os significados de seu panfleto. Como todo
radical a ameaça que a lógica de Qu' est-ce que le Tiers Etat? representou para as escrito dessa ordem, ele dizia mais - e menos - do que seu autor queria. À medida
relações internacionais do que a subversão que introduziu na ordem institucional da que seu levedo começava a fermentar no discurso político francês, ele devia ter
monarquia francesa. Adotada essa lógica, a história da humanidade não devia mais se prolongamentos que Sieyês não havia previsto. O princípio de soberania nacional iria
diferenciar da lógica de autodeterminação nacional. . adquirir uma crescente expressão explícita nas ações revolucionárias, tais como a
Se, como ser coletivo, a nação pertence a uma ordem natural, anterior a toda
é criação da Assembléia Nacional, o juramento do leu de Paume, a noite do 4 de
história, seus verdadeiros membros são os indivíduos ainda virgens de títulos históri- ~
~9s, os h~mens do Tiers Etat, ainda não desqualificados pela acumulação histórica
dos privilégios. A nação de Sieyes, como o povo de Rouseau, é uma associação de
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Agosto, a Declaração dos Direitos do Homem, e os primeiros debates da Assembléia,
que enunciavam os fundamentos de uma constituição que se elaborou sobre a afir-
mação de que "a soberania é una, indivisível, inalienável e imprescritível. Ela
çidadãos individuais iguais diante da lei. Mas qual é a natureza dessa associação? ". pertence à Nação". Mas a execução prática desse princípio diferiu radicalmente da
Traço surpreendente do Tiers Etat: enquanto confere à nação numerosos atributos do I:,~ que defendia o autor do Tiers Etat, de uma maneira que já revelava as dificuldades
povo de Rousseau, em particular a unidade e a universalidade de uma associação de
cidadãos iguais ligados por uma vontade comum, ele não insiste em absoluto num
u que os revolucionários iriam encontrar para transferir a soberania da coroa à nação.
r.- Corno deveria a nação exercer a soberania recentemente proclamada? Aí está o
contrato social que seria a base lógica de seu ser coletivo. Nesse panfleto, Sieyês âmago dos debates constitucionais do fim do mês de agosto e do mês de setembro de
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postula a existência inicial de um "número mais ou menos considerável de indivíduos ~, 1789. A rejeição das propostas de Mounier e dos "Monarquianos" a favor do veto
isolados que querem reunir-se." Essa primeira etapa na formação da sociedade monárquico absoluto e do equilíbrio dos poderes significava uma recusa radical da
política é, portanto, caracterizada pelo exercício das vontades individuais: "A asso- pretensão deles de que a nação fosse a fonte residual da soberania, em vez de ser o
ciação é obra delas; elas estão na origem de todo poder." Mas não se cogita de um :"'.
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seu agente ativo. A partir daí, a soberania devia ser compreendida corno direta e ime-
contrato social para especificar a natureza e as condições do ato de associação. Essa diatamente inerente à nação. Mas como o exercício direto e imediato de uma vontade
jendêncía a naturalizar a sociedade política de preferência a sublinhar suas origens soberana unitária seria garantido numa vasta sociedade em que a democracia direta
contratuais se fortalece ainda quando Sieyes, no início do Tiers Etat, recorre a uma ~*':
.~; era impossível? Como a indivisibilidade e a inalienabilidade da soberania da nação
linguagem mais próxima dos fisiocratas que de Rousseau, caracterizando a nação
corno organização social e econômica, fungada na ordem natural, e sustentada pela
l;I seriam sustentadas diante da necessidade de representação? Sieyês sustentou, no curso
dos debates, que a vontade nacional só se podia exprimir numa assembléia represen-
produção e distribuição de recursos indispensáveis às necessidades humanas ~~ tativa; só numa tal assembléia seria possível formular, mediante a discussão entre os
Há um motivo muito bom para essa gritante elisão do argumento central do
g deputados da nação inteira, uma vontade comum libertada dos interesses parciais de
Contrato Social. Em Qu' est ce que le Tias Etat? Sieyês não objetiva afirmar a ar-
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tificialidade ou a fragilidade de um ser moral criado por contrato, mas a realidade
~t, uma multiplicidade de circunscrições eleitorais: reformulação, em termos de represen-
tação, da exigência rousseauísta de que a vontade geral fosse geral em sua fonte e
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essencial da nação e de sua vontade comum: "a vontade nacional( ...) só necessita de geral em seu objeto. Não obstante os argumentos anteriores do Tiers Etat, isso signi-
sua realidade para ser sempre legal; ela é a origem de toda legalidade". Na teoria de ficava que a vontade geral não podia ser considerada uma vontade positiva indepen-
Rousseau, o povo deixa de existir como ser coletivo, abstrato, cada vez que a vontade dente e antecedente que se transmitiria, das assembléias primárias até a Assembléia
geral deixa de operar. Mas Sieyês inverte essa lógica. A ameaça da dissolução da Nacional, por meio da representação. Pelo contrário, Sieyês passava a afirmar que
associação, por meio do desaparecimento da vontade geral, simplesmente não aparece simplesmente não havia vontade comum fora da Assembléia Nacional: a nação só era
em seu texto. Ele não sustenta que o despotismo e o privilégio destruíram a nação, una na pessoa coletiva de seu corpo representativo unitário. Daí o absurdo, de acordo
substituindo vontades particulares a uma vontade geral. Também não afirma que os com essa perspectiva de sustentar um veto suspensivo,
franceses deixaram (ou deixariam) de ser uma nação concordando com formas de Aceitando o veto suspensivo, no entanto, a Assembléia Constituinte optava por
representação. Rejeita simplesmente essas formas corno ilegítimas, pois incompatíveis uma visão muito diversa da operação da soberania nacional, uma visão que partia da
com a realidade da identidade nacional. "Uma nação não pode decidir que ela não hipótese de uma vontade geral que existia como vontade anterior positiva inerente ao
será a nação." De ser fictício, a nação tomou-se realidade primordial. corpo da nação inteira. Ora, a partir do momento em que a soberania é considerada
inerente ao corpo da nação, surge, ao mesmo tempo, o perigo permanente de seu
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desvio pela Assembléia representativa - eventualidade de uma vontade real da nação
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substituída por uma vontade particular. Donde a função constitucional do rei, esse o de impor a vontade popular a uma Assembléia dividida, como em 10 de agosto de
outro "representante" da nação, no exercício do veto suspensivo. Cabe-lhe suspender, >: 1792; ou de purgar o corpo representativo dos deputados refratários e restaurar a
até que a nação se tenha efetivamente exprimido, a aceitação de- todo ato do Corpo unidade que devia necessariamente refletir essa vontade, como quando 'das jornadas
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legislativo suspeito de ser não conforme à vontade geral da nação. de 31 de maio a 2 de junho de 1793.
O veto suspensivo era apenas a primeira das tentativas feitas pela Revolução Tendo essas reivindicações como justificação, a ação insurrecional do povo de
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para reconciliar a inalienabilidade da soberania nacional com a prática da represen- Paris levava assim a seu ponto crítico o problema revolucionário da inalienabilidade
tação. Foi, bem entendido, o que causou a destruição da monarquia, nova revolução !l da soberania nacional. Pode-se justificar o movimento insurrecional como última
motivada pelo sentimento de que o próprio veto se transformara, nas mãos de Luís ~f recusa de um povo unitário a deixar que traidores mandatários usurpem sua ina-
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XVI, em instrumento de frustração da vontade geral. No lugar da pessoa representa-
tiva do rei, cuja ação devia 'garantir a expressão da vontade geral, a insurreição de 10
.:~ lienável vontade soberana. Pode-se denunciá-Ia como a pretensão ilegal de uma
simples parte do povo de exercer o poder da nação inteira. Nos dois casos, o
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de agosto instalou o próprio povo, encarregado da vigilância direta e constante dos problema permanece o mesmo: como eliminar a necessidade do recurso à insurreição
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deputados. A soberania popular substituiu a soberania nacional. . por meios constitucionais? Foi o problema colocado à Convenção por Condorcet, ao
Tal como a exprimiram os sans-culottes, a soberania popular implicava várias apresentar a Constituição girondina no início de 1793, e também por Hérault de
coisas. Acima de tudo, ela significava que cumpria compreender o poder soberano, Séchelles com a Constituição Montanhesa, após as jornadas de 31 de maio a 2 de
"imprescritível, inalienável, indelegável" como inerente, direta e imediatamente, ao 1
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junho.
corpo. de cidadãos reunidos permanentemente nas seções. Ali encontrava o povo, na A Constituição Girondina oferecia uma solução tão complexa quanto completa,
materialidade de sua existência e na positividade de sua vontade, sua unidade fora do objetivando submeter as ações do Corpo legislativo ao julgamento refletido do povo
alcance das distinções facciosas entre cidadãos ativos e passivos, e sua vontade de- inteiro reunido em assembléias primárias. Mas essa tentativa de tornar a insurreição
simpedida dos constrangimentos impostos pelos sistemas tortuosos d1S eleições indi- inútil, fazendo da revolução uma instituição permanente e pacífica, não alcançou
retas. No âmago do discurso sans-culotte, discerne-se a ambigüidade .undarnental dos êxito junto à Convenção. Para Saint-Just, os mecanismos destinados a produzir a
significados políticos e sociais do termo povo, O povo-soberano é o povo-corpo ·'r
vontade geral eram demasiado marcados pelo racionalisrno de Condorcet. Robespi-
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político, corpo total dos cidadãos ligados pela unanimidade de sua vontade comum. erre, por sua vez, condenou o recurso constante às assembléias primárias: fatigar o
Mas é também o povo-corpo social, o povo dos trabalhadores, aqueles cuja existência :f:' povo com formalidades democráticas equivalia a conspirar para minar essa soberania
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comum se define pela materialidade de suas relações com a natureza física e pelo {, popular.
caráter imediato de suas necessidades, Cada membro, cada seção, pode então falar O projeto de Constituição Montanhesa de 1793 previa garantir o exercício da
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pelo conjunto. Esta relação COmum à natureza serve também para definir o povo. Os ~.
sans-culottes dirigem contra o rico e o ocioso a lógica que Sieyês utilizara contra os 11. tos segundo os quais os projetos de lei seriam submetidos ao referendum popular, a
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privilegiados: nação soberana, que tem seu fundamento no trabalho, compõe-se ~
:;~ pedido de várias assembléias primárias. Recomendava igualmente a criação de um
exclusivamente daqueles que se empenhavam, de modo ativo e útil, nesse trabalho. júri nacional (eleito ao mesmo tempo e da mesma maneira que a Assembléia legisla-
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"E uma verdade evidente é que a Nação é sans-culoues, e que o pequeno número ;,~:. tiva) encarregado de determinar, por meio de estatuto, se procediam as acusações de
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daqueles que detêm em suas mãos todas as riquezas não são a Nação; que eles não deslealdade e de exercício abusivo do mandato por parte de deputados. A Convenção
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passam de privilegiados que estão chegando ao fim de seu privilégio", diz, em setern-
'. bro de 1793, a seção do Observatório. r. adotou, restringindo-as, as disposições relativas ao referendum popular sobre a legis-
lação, mas recuou diante do projeto de júri nacional. Ele teria reduzido e mesmo
Essa concepção da coberania popular inalienável teve conseqüências graves. A inibido a ação da Assembléia legislativa, introduzindo no exercício da soberania uma
exigência de que os atos legislativos fossem submetidos à sanção popular direta an- r confusão tão perigosa quanto o veto suspensivo, tão desacreditado. Como então
tes da aceitação não foi a menor. A política revolucionária sentiu, de imediato, seus " "garantir o povo contra a opressão do Corpo legislativo"? Encarregado de reconside-
efeitos, pois os deputados à Assembléia Nacional tomavam-se mandatários em vez rar o problema, o Comitê de Salvação Pública apresentou uma variante das
de representantes. Como lhes lembravam as inúmeras petições vindas das seções, eles exigências sans-culoues: cada deputado seria julgado, no fim de cada sessão, pelas
eram enviados à Assembléia não para decidir em nome do povo, mas para assumir assembléias primárias que o haviam eleito; um deputado cujos atos tivessem sido
sua vontade soberana. Donde o direito do povo de interpelar, de controlar e de cen- desaprovados não seria mais elegível; não poderia ter acesso a outra função pública.
surar as decisões da Assembléia; de convocar deputados individuais para que prestas- Mas essa proposição foi, também ela, denunciada, como uma ameaça à integridade da
sem contas, cada vez que isso parecia necessário; de revogar, expulsar, condenar e soberania popular. Ela podia permitir ao inimigo intrigante da nação ser absolvido
substituir à vontade os mandatários desleais. Donde, enfim, seu direito de insurreição: honrosamente e fazer com que o amigo virtuoso dela fosse condenado. Teriam a
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Gironda, a Vendéia condenado seus pérfidos deputados? A Convenção, uma vez perecia. Era, portanto, imperativo para a Convenção, seus comitês e seus agentes
purgada, julgou que não, e recusou a uma parte do povo, qualquer que ela fosse, o sustentar e fortalecer a virtude política do povo. Mediante o terror, que "não é outra
direito de "privar a nação inteira de um representante que ela estima". Fora da insur- coisa senão a justiça pronta, severa, inflexível(. ..) uma emanação da virtude", procu-
reição, não parecia mais haver maneira de sair do labirinto qLle constituía a questão de rava-se clara e imperativamente eliminar a dissidência e a desordem.
uma soberania popular inalienável. Os bonvericionais consolaram-se dessa derrota Mas como fazer a triagem entre o povo e os seus inimigos quando a "aristocra-
teórica com uma sentença prática: "O povo está sempre presente." cia se constituiu em sociedades populares e o orgulho contra-revolucionário oculta
O povo está sempre presente. Mas o povo está em todo lugar? E todo mundo é sob andrajos seus complôs e seus punhais"? O medo da diferença é, nesse caso, le-
povo? Citando com inquietação a Vendéia, o debate da Convenção sobre o júri vado ao ponto em que toda ação política é considerada à expressão verdadeira ou
nacional já designava um outro problema crucial, próprio ao conceito de soberania potencial de uma vontade subversiva e imoral, e em que se tomava impossível cir-
nacional/popular. A concepção da soberania nacional defendida por Sieyês exigia cunscrever o Terror.
apenas que os diversos interesses se transfonnassem em vontade unitária por deli-
beração da Assembléia Nacional. Mas a noção de soberania que a Constituinte ado-
tara, aceitando o veto suspensivo - fortalecida pelos sans-culottes e Sua visão dos
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deputados como mandatários -, ia mais longe do que isso. Ela implicava que a Até então inimaginada e inimaginável, a experiência polftíca do Terror suscitou
unidade da Assembléia emanava diretamente da unidade do corpo da nação/povo. A uma crítica sistemática do conceito de soberania. Sieyês, cuja obra havia talvez colo-
vontade da nação soberana devia ser tão unitária quanto era inalienãvel: o corpo do cado mais do que qualquer outra a soberania nacional no centro do discurso revolu-
povo devia encarnar a mesma unidade que procurava impor a seus deputados; sim- cionário, figurava agora entre os primeiros a denunciar suas implicações exageradas.
plesmente, não se podia tolerar diferenças em seu seio. Seu discurso de 2 Tennidor do ano III fazia novamente da representação uma apli-
De acordo com essa lógica, <I. unidade é a condição da soberania; a nação é cação racional aos negócios políticos do princípio da divisão do trabalho, fundamento
unânime ou não é nada. Donde a aversão permanente, em todo o curso do período da sociedade moderna. Sieyês sustentava agora que, reclamando a soberania usurpada
revolucionário, por qualquer forma de atividade política que ameaçasse a unidade da por seus reis, o povo francês fora contaminado pelo vírus do poder ilimitado, absoluto
vontade soberana, enunciando explicitamente vontades particulares ou interesses e arbitrário: "as pessoas pareciam dizer-se, com uma espécie de orgulho patriótico,
parciais. Donde a tendência constante a concretizar a unidade por meio da exclusão. que, se a soberania dos grandes reis é tão poderosa, tão terrível, a soberania de um
Desde o início, a Revolução constituiu a nação soberana, dela extirpando uma aristo- grande povo deve ser coisa ainda muito superior". Mas, na realidade, criando a so-
cracia privilegiada. Mas a lógica de uma vontade unitária, fortaleci da pela guerra e ciedade política, os indivíduos não haviam transferido todos os seus direitos à
pela divisão interna, ampliou' pouco a pouco a categoria de "aristocracia", restrin- comunidade, assim como não lhe haviam conferido a sorna de seus poderes indivi-
gindo, ao mesmo tempo, seu contraponto, a "Nação" ou o "povo". Denúncias, expur- duais; pelo contrário, haviam retido esses direitos, só pondo em comum o pouco de
gos, apelos à justiça revolucionária contra os inimigos da nação prolongaram inde- poder necessário à sua manutenção. A política também não consistia no exercício
finidamente a lista de suspeitos. unitário de uma vontade arbitrária: "Nada é arbitrário na natureza moral e social,
No entanto, exigindo uma lei dos suspeitos, os sans-culottes pediam, de fato, assim como não o é na natureza física." A concentração do poder soberano, e não sua
que a Convenção expurgasse o povo de todos os elementos de desunião - exatamente alienação, tomou-se o grande obstáculo político; a limitação do poder, sua diferen-
como o povo, ele próprio, havia, antes, expurgado a Convenção. Cada um dos par- ciação, sua colocação ao serviço dos interesses e das necessidades sociais tornaram-
ceiros devia impor a unidade ao outro, cada vez que ela se enfraquecia. Foi a lógica se o objetivo principal do fato social. Recapitulando assim os temas fisiocráticos de
fundamental do Terror. Ninguém o exprimiu melhor do que Robespierre. Em 10 de seu pensamento .inicial, Sieyes reafirmava a prioridade de um discurso do social,
maio de 1793, ele afirmava que "o povo é bom, e que seus delegados são cor- fundamentado na noção da distribuição diferencial da razão, dos interesses e das
ruptíveis; que é na virtude e na soberania do povo que cumpre buscar um preserva- funções na sociedade civil moderna.
tivo contra os vícios e o despotismo do governo". Mas esse preservativo contra as Mensagem captada, antes de ninguém, por Benjamin Constant, cujos escritos
chagas do governo devia ser, ele próprio, preservado pelo governo. Foi o argumento conferiram ao liberalismo francês sua forma clássica. Para Constam, a chave do
decisivo em favor do Terror. Em 25 de dezembro de 1793, e, depois, em 17 de fe- Terror está na confusão feita entre a liberdade dos antigos (o exercício coletivo da
vereiro de 1794, Robespierre afirmava que o governo popular encontrava seu apoio vontade soberana) e a liberdade dos modernos (a segurança dos pequenos confortos
principal nessa virtude mediante a qual as vontades individuais se identificavam com privados), e cujos principais responsáveis são os grandes admiradores da virtude
a vontade geral. Um governo sem virtude republicana podia revigorar-se no povo, política clássica, Rousseau e Mably. Extraviados por sua idéia irrealizável de que os
mas, desde que essa virtude viesse a perder-se no povo, era a própria liberdade que povos modernos poderiam recuperar a soberania coletiva de que gozavam os antigos,
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os revolucionários se viram inevitavelmente enredados "na vertigem inexplicável a reclamasse para a sociedade um poder soberano que parecia, por isso, dever ameaçá-
que se chamou o reinado do Terror". Essa reflexão liberal sobre o Terror contém dois Ia do exterior, em vez de sustentá-Ia do interior.
argumentos decisivos: uma crítica do princípio de soberania popular, fundada na Amalgamando as mais radicais dessas teses e a teoria da vontade geral, os
teoria da vontade geral; uma afirmação da separação essencial a ser mantida entre o revolucionários haviam tentado reabsorver a soberania na sociedade, localizando o
Estado e a sociedade. Constant não nega que é desejável que o governo legítimo seu exercício inalienável no corpo unitário da nação/povo. Mas o esforço deles para
dependa da vontade geral, compreendida no sentido amplo do consentimento comum preencher essas condições de unidade e de inalienabilidade havia alimentado a lógica
dos governados, mas rejeita, na realidade, uma visão da vontade geral que leve ao do Terror, transformando uma teoria da liberdade coletiva na prática do despotismo.
exercício de um poder soberano ilimitado. O erro mais grave dos partidários da so- A distinção moderna entre o Estado e a sociedade - e a insistência liberal em sua
berania coletiva consistira, segundo ele, em dirigir os seus ataques contra aqueles que necessária separação - foram a resposta histórica a tal experiência.
mantinham o poder absoluto, e não contra esse mesmo poder. Em vez de buscar
. destruí-lo, só haviam pensado em transferi-lo ao povo inteiro: "Era um flagelo, eles o
tiveram na conta de uma conquista e com ele presentearam a sociedade inteira." Eles
tinham razão quando sustentavam que nenhum indivíduo ou grupo tem o direito de
sujeitar o resto à sua vontade particular; mas erravam ao sugerir que a sociedade ORIENTAÇÃO BIBLIOGRÁFICA
inteira exercesse uma soberania ilimitada sobre os seus membros.
Segundo Constant, Rousseau sentira o perigo do poder monstruoso que havia BACOT, GuiJlaume. Carré de Malberg e/ /'Origine de Ia dislillction entre souverainelé ilu
invocado em nome do povo, e é por isso que ele havia declarado que a soberania não peuple et souveraine/é narionale. Paris, CNRS, 1985.
poderia ser nem alienada, nem delegada, nem representada - isso significava, no BARKER, Keith M. (sob a direção de). The Freneh Revolution and lhe Creation of Modern Politieal Culture,
tomo I, The Poli/ical Culture ofrhe Old Regime. Oxford, Pergamon Press, 1987 .
. fundo, declarar que ela não podia nunca ser exercida. Procurando substituir a tirania CARRE DE MALBERG,Raymond. Conrriburion à Ia méorie générale de I' Etat , 2 vols.:Paris, Sirey, 1920-22;
da vontade geral por uma noção de autoridade política limitada, Constant era assim
reedição em 2 volumes, Paris, CNRS, 1962.
levíldo a contestar a própria linguagem do voluntarismo político. Voltando ao dis- FRANKl.lN, Julian ri. Iean Bodin and lhe Rise oj AbsolutistTheory.
curso fisiocrático, ele sustentava q~e a sociedade não se constitui pelo exercício da Cambridge (Inglaterra), Carnbridge University Press, 1973.
SINGER, Brian. Society, Theory and lhe French Revo{urioll: Stuâies in lhe Revolurionary lmaginary,
vontade, mas se apóia nas relações naturais entre os homens; as leis nada mais são do
<lu~a declaração de tais relações sociais naturais. Se assim é, legislar pelo livre exer- Nova Iorque, St. Martin's Press, 1986.
SOBOUL, Albert. Les Sans-Culottes parisiens en /' an 11. Histoire polilique et sociale des sections de Paris,
çfçio.de uma vontade soberana. - marca da doutrina da soberania, de Bodin à Revo- 2 juin 1793 _ 9 thermidor an 11. La Roche-Sur-Yon, H. Potier, 1958 (também Paris, Clavreui1, 1958;
lução Francesa - ~alTeta um mal-entendido fundamental sobre a natureza própria reedição em 1962, com o subtítulo Mouvement popu/aire et gouvemement rémlulionnaire).
da ordem social. "A lei não está à disposição do legislador. Ela não é sua obra
espontânea. O legislador é para a ordem social o que o físico é para a natureza": em
outras palavras, um observador e não um criador de leis.
O Terror revelou, portanto, ajirania inerente a toda noção de voluntarismo
políttc:O,uma tirania que não pode ser esconjurada a não ser mediante o estabeleci- REMISSÕES
mento de uma separação absoluta entre o Estado e a sociedade civil, uma fronteira Sans-eu/olles
Eleições
sagrada que protege essa parte da existência humana que deve ficar fora do alcance Antigo Regime
Fisiocratas Sieyes
Assembléias reVOlucionárias
de todo poder político. Onde os revolucionários sonhavam com uma ordem social que Nação Sufrágio
Constam Terror
seria a expressão transparente da vontade humana, Constant insistia na obscuridade Constituição
Robespierre
essencial e impermeabilidade da sociedade civil para o Estado. Rousseau
Democracia
Com essa defesa de uma necessária linha de demarcação entre a sociedade e o
Estado, a doutrina da soberania voltava a seu ponto de partida. Os primeiros teóricos
absolutistas haviam acentuado a necessidade de uma autoridade soberana unitária que
mantivesse a sociedade a partir do interior, uma autoridade que, embora suprema, era
igualmente limitada pela natureza da ordem social, da qual ela era, a um tempo, a
condição e a expressão essencial. O crescimento do Estado administrativo ativo per-
turbara esse sentido da soberania consubstancial à ordem social, e levara a que se
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