Criminalização e Descriminalização Do Aborto
Criminalização e Descriminalização Do Aborto
Criminalização e Descriminalização Do Aborto
Rio de Janeiro
2020
Catalogação informatizada pelo(a) autor(a)
Agradeço, primeiramente, a meus pais, Maria Eugênia e Luis Renato, pelo carinho e apoio
incondicionais e por me inspirarem a querer sempre evoluir.
A meu orientador, Prof. Dr. Fernando Quintana, que no primeiro período da graduação em
Direito me apresentou à ciência política e a quem agradeço por todos os ensinamentos e
paciência nessa parte da minha jornada.
Aos membros das bancas de qualificação e defesa, Prof.ª. Drª. Elizabeth Sussekind e Prof.
Dr., Cesar Sabino, que me honraram com suas presenças e comentários valiosos.
A meu marido, Julio Cezar, que entendeu as ausências e nervosismos sempre tentando me
acalmar, estando ao meu lado quando pedido e me dando espaço quando necessário.
Àqueles amigos e familiares que, ainda que indiretamente, auxiliaram para o desenvolvimento
da pesquisa.
RESUMO
This thesis proposes to critically analyze the speeches made by the National Conference of
Bishops of Brazil and by the Institute of Religious Studies developed at the public hearing,
within the scope of the Supreme Federal Court, which discussed the decriminalization of
abortion until the twelfth week of pregnancy. The main objective of the study is to verify the
ideology present in these speeches and to compare the argumentative structure used by these
institutions to support the arguments against or in favor of the decriminalization of abortion.
To this end, the work also brings to the debate the position of actors such as the Church and
the feminist movement; focuses on the importance of the public audience as an arena of
argumentative, opinion-forming dispute; and, with the help of the Social Theory of Discourse,
it shows how those positions (CNBB and ISER) contribute to the hegemonic and / or counter-
hegemonic formation of the criminalization of abortion.
INTRODUÇÃO............................................................................................................... 8
1. CRIMINALIZAÇAO E DESCRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO ................. 16
1.1 A criminalização do aborto – breve apanhado histórico.................................. 16
1.2. O aborto no Brasil. ............................................................................................... 23
1.3. A descriminalização do aborto - o feminismo. .................................................... 30
2. A ANÁLISE DO DISCURSO .............................................................................. 37
2.1 A análise de discurso – questões gerais. ............................................................... 37
2.2. A análise crítica de discurso (ACD) .................................................................... 42
2.3. O discurso: ideologia, poder e hegemonia. .......................................................... 47
3. O ABORTO NA AUDIÊNCIA PÚBLICA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
53
3.1 A audiência pública. ............................................................................................. 53
3.2 Discursos contrários à descriminalização do aborto na audiência pública do STF.63
3.3 Discursos favoráveis à descriminalização do aborto na Audiência Pública do STF.68
CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................... 78
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................ 84
ANEXO A ...................................................................................................................... 93
ANEXO B ...................................................................................................................... 94
ANEXO C ...................................................................................................................... 95
INTRODUÇÃO
8
pregam a dignidade humana do feto afirmam a importância de tratar as pessoas como fins
em si mesmas e não como meios de se alcançar a felicidade própria.
Ademais, para além da questão ética em si, a discussão sobre o aborto está permeada
por questões de gênero, classe e raça muito fortes, que trazem noções de igualdade que
são desconsideradas ou camufladas e prejudicam o avanço da regulamentação da matéria.
Para Birolli (2014), a interpretação da universalidade dos direitos humanos como
supressão das particularidades ou interseccionalidades ignora alguns aspectos relevantes
das diferenças entre homens e mulheres em uma sociedade em que a cultura política é
permeada por diversas questões de gênero:
No sentido do que afirma Fraser (2006), questões de gênero e raça podem ser
considerados paradigmas de coletividade bivalentes: sob a ótica da dimensão econômica,
elas aproximam-se do aspecto de classe, na medida em que exigem soluções
redistributivas; e sob a ótica cultural-valorativa assemelham-se ao aspecto da sexualidade,
requerendo soluções de reconhecimento.
O aborto, que envolve todos esses aspectos - gênero, raça, classe e sexualidade - é
uma pauta presente nas reivindicações dos movimentos feministas contemporâneos no
mundo ocidental, desde os anos de 1960. No final da década de 1970 e início de 1980,
esses movimentos ganharam maior visibilidade e alcançaram avanços importantes
(PINTO, 2003).
Com o início da nova ordem constitucional a partir da entrada em vigor da
Constituição de 1988, que coroou o processo de redemocratização, a questão dos direitos
sexuais e reprodutivos, incluindo o direito à realização de abortos voluntários, ganhou
força, muito em razão de sua inclusão na pauta feminista no momento da elaboração do
novo texto constitucional. E frise-se que nesse momento e especificamente em relação a
esse tema as feministas e a Igreja Católica defendiam posicionamentos extremamente
antagônicos (ROCHA, 2005).
A Constituição de 1988, além de fortalecer as instituições democráticas e prever
um extenso rol não exaustivo de direitos individuais e sociais possibilitou uma maior
participação da sociedade civil nas questões de Estado e fortaleceu o sistema de freios e
contrapesos dos poderes. Contudo, a complexidade das relações sociais associada à crise
9
de representação e à garantia de inafastabilidade da jurisdição, segundo a qual nenhuma
lesão ou ameaça de lesão a direito será afastada da apreciação do Poder Judiciário
(CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2010), reclama a ampliação da atuação desse
poder, que vem sendo instado a se manifestar e interferir, inclusive, diretamente ou
indiretamente na vida social e política, além de influenciar no desenvolvimento de
políticas públicas levando ao que se denomina “judicialização da política”1.
Diante disso, novos contornos analíticos foram conferidos ao tema da reprodução e
sexualidade, mediante a sua apreciação pelo Judiciário, bem como pela oportunidade
conferida à sociedade civil de participar e manifestar-se ativamente sobre a matéria
contando com a ampla divulgação e influência da mídia.
A chamada “judicialização da sexualidade” vem se demonstrando por diversos
aspectos2, inclusive em relação ao aborto. Legalmente, a interrupção voluntária da
gestação é disciplinada como crime de aborto pelo código penal. No capítulo dos crimes
contra a vida (Artigos 124 a 127), é penalmente punível a conduta da gestante que autorize
ou interrompa voluntariamente sua gestação, bem como a de terceiro que o pratique com
seu consentimento3. O código trouxe ainda originalmente, (Artigo 128), duas exceções
em que não há punição pela prática de aborto, que são os casos de estupro e risco à vida
da gestante e no ano de 2012, passou a constar mais uma exceção relacionada ao aborto
de fetos anencefálicos.
O interessante é destacar que nos últimos anos o debate sobre o aborto no Judiciário
tem se intensificado muito em razão do aumento gradativo de projetos de lei sobre o tema
em tramitação no Legislativo. Como demonstra Birolli (2016)4, entre os anos de 1990 e
2015, a maior parte das propostas visa restringir os direitos ao invés de ampliá-los e
segundo Santos (2015), entre a 49ª e a 54º legislatura (1991-2014), 61,8% dos
pronunciamentos foram contrários ao aborto e apenas 15,7% foram expressamente
favoráveis.
Outros estudos reforçam a constatação de que, no debate político sobre o tema, a
tendência na restrição desses direitos está configurada por um avanço expressivo das
forças conservadoras, atreladas ao campo religioso: o aumento da participação de
1
Viana, 1999; Pogrebinschi, 2011; Magalhães; Mignozzetti, 2012; Taylor; Ros, 2008
2
Por exemplo: ADI nº 4277 e ADPF nº 132 que versam sobre a união de casais homoafetivos; ADI nº 5911
e nº 5097 que discutem dispositivos da lei de planejamento familiar.
3
O Código Penal prevê também punição ao terceiro que provoque aborto sem o consentimento da gestante.
4
O estudo destaca que nos anos de 1990, houve seis proposições apresentadas em relação à restrição e/ou
aumento da punição do aborto, mesmo número de projetos para sua legalização em algum grau. Por outro
lado, entre 2000 e 2015, foram propostos, ao menos, 32 projetos de lei no sentido da restrição, e apenas 2
em sentido contrário.
10
religiosos na política, em especial dos cristãos fundamentalistas, está relacionado
diretamente à ação dos candidatos que começaram a cooptar o apoio eleitoral de
evangélicos e estabelecer alianças "na tentativa de transformar seus rebanhos religiosos
em rebanhos eleitorais" (MARIANO, 2011, p. 251).
Dessa forma, o Poder Judiciário e mais especificamente o STF passou a ser a arena
na qual os grupos favoráveis à despenalização da interrupção voluntária de gestações
encontraram espaço para defender suas agendas, principalmente a partir de 2004. Até esse
momento, as ações apreciadas pelo Judiciário eram relacionadas a casos específicos, ou
seja, mulheres que eram processadas em razão da realização de procedimentos abortivos
– ou terceiros que o realizassem com o consentimento da gestante.
Como destacam estudiosos: “a justiça como instituição tende a menorizar as
mulheres, que devem ser protegidas ou corrigidas” (ARDAILLON 1997, p.379) no
sentido que as decisões judiciais proferidas em processos criminais em face de mulheres
que realizavam abortos comumente sustentavam argumentos direcionados à excludente
de ilicitude em razão de estado de necessidade (Artigos 23, I e 24 do CP), mas deixavam
à margem o reconhecimento do direito das mulheres de decidirem sobre sua sexualidade.
Em junho de 2004, a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde propôs a
Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 54 perante o STF
pretendendo a descriminalização da “antecipação terapêutica do parto”. Segundo a
CNTS, a interrupção de gestação realizada pela gestante ou por terceiro com sua
autorização, diante de um diagnóstico de anencefalia, não deveria ser considerado crime
de aborto.
Assim, a CNTS questionou os Artigos 124, 126 e 128 do Código Penal utilizando
como parâmetro os preceitos constitucionais: dignidade da pessoa humana; princípio da
legalidade; liberdade e autonomia da vontade e direito à saúde. Em abril de 2012 o STF
decidiu a questão e declarou a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a
interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos Artigos 124, 126, 128,
incisos I e II, todos do CP, ou seja, deixa de ser crime, além das duas excludentes citadas
no artigo 128, também a interrupção de gestações de fetos comprovadamente
anencefálicos.
Dois anos depois da decisão do STF, em setembro de 2014, foi apresentada, no
portal e-cidadania do Senado Federal, proposta legislativa com o objetivo de “regular a
interrupção voluntária da gravidez, dentro das doze primeiras semanas de gestação, pelo
11
Sistema Único de Saúde”5. E, em dezembro de 2014, a proposta atingiu o número
necessário de vinte mil apoiadores tornando-se a sugestão legislativa nº 15/2014.
Em decorrência de acontecimentos do ano de 20146, a primeira turma do STF, em
decisão de habeas corpus7, que tinha como réus cinco acusados de administrarem uma
clínica clandestina de abortos, concedeu a ordem, por maioria, acompanhando o voto do
Ministro Luís Roberto Barroso, que teceu argumentos a favor da descriminalização do
aborto até a 12ª semana de gestação embasando-se nos seguintes postulados: a autonomia
da mulher; a integridade física e psíquica das gestantes que decidem abortar até a 12ª
semana de gestação; a igualdade de gênero; os direitos sexuais e reprodutivos; a
discriminação social, tendo em vista que mulheres com mais recursos financeiros
conseguem acessar o aborto seguro e as pobres, não; e na necessidade de afastamento da
discussão sobre o início da vida do debate político, devendo inserir-se na órbita moral
inerente a cada indivíduo.
Essa votação reascendeu os debates sobre o aborto, causando reação contrária da
Câmara dos Deputados que demonstrou insatisfação com a interferência do Tribunal nas
atribuições legislativas e acelerou tramitação de proposta de emenda constitucional sobre
tema relacionado. Esta PEC, que ganhou ares de resposta à “usurpação” de competências
do Congresso pelo STF, foi apensada a outra originária do Senado Federal e ambas
continuaram tramitando em conjunto. Elas tratam sobre licença-maternidade no caso de
bebês prematuros, mas emendas adicionadas durante a tramitação alteraram o texto de
forma a “tornar mais rígida a legislação sobre interrupção de gravidez” 8.
Em fevereiro de 2017, o instituto Anis divulgou os resultados da Pesquisa Nacional
do Aborto e revelou que se estima que, no ano de 2015, cerca de meio milhão de abortos
tenham sido realizados no país. A pesquisa foi elaborada no intuito de comparar os
5
Disponível em: <https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/119431> Acesso em 17
nov. 2018
6
Em agosto de 2014, caso ocorrido no Rio de Janeiro e amplamente divulgado pela mídia sobre uma mulher
encontrada morta, carbonizada, sem as digitais e a arcada dentária após ter se dirigido a uma clínica
clandestina para realização de procedimento abortivo inflamou os discursos sobre as condições a que eram
submetidas as mulheres que queriam interromper uma gestação à revelia da legislação, dando visibilidade
a uma grande operação para desarticular clínicas abortivas no Estado ocorrida no mesmo ano. Disponível
em: <https://noticias.r7.com/rio-de-janeiro/caso-jandira-gravida-morta-em-clinica-clandestina-de-aborto-
se-torna-simbolo-no-rio-18122014> Acesso em 17 set. 2018 e Disponível em: <https://noticias.r7.com/rio-
de-janeiro/operacao-para-desarticular-quadrilhas-de-aborto-ja-tem-57-presos-no-rj-14102014> Acesso em
17 set. 2018
7
Acórdão disponível em: <http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=311410567&ext=.pdf>
Acesso em 19 set. 2018.
8
Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/POLITICA/520372-DEPOIS-DE-
DECISAO-DO-STF-SOBRE-ABORTO,-MAIA-CRIA-COMISSAO-PARA-DISCUTIR-TEMA.html>.
Acesso em 20 set. 2018.
12
resultados nela obtidos com os de pesquisa anterior realizada em 20109 e identificou-se a
partir dos dados coletados que o número de abortos realizados por mulheres alfabetizadas
com idade entre dezoito e trinta e nove anos permaneceu estável no tempo e bastante
elevado, além de mencionar diferenças sociais e regionais como um fator determinante
(DINIZ et al., 2017).
Com base no relatório da PNA e com o auxílio do Anis, o Partido Socialismo e
Liberdade (PSOL) ajuizou a ADPF nº 442, ainda em tramitação, que requer a declaração
de “não recepção parcial dos art. 124 e 126 do Código Penal, para excluir do seu âmbito
de incidência a interrupção da gestação induzida e voluntária realizada nas primeiras doze
semanas” com base nos seguintes preceitos constitucionais: dignidade da pessoa humana;
cidadania; não discriminação; inviolabilidade da vida; liberdade; igualdade de gênero;
proibição de tortura ou ao tratamento desumano ou degradante; integridade física e
psicológica; saúde; e planejamento familiar.
Em dezembro de 2017, o senador Magno Malta, relator da sugestão legislativa
15/2014 – apresentou parecer pelo arquivamento da sugestão sob o argumento de que “O
Estado não pode interferir no livre desenvolvimento de um ser humano no ventre de sua
mãe”10. Já em agosto de 2018, a Ministra Rosa Weber, relatora da ADPF nº 442,
convocou audiência pública no intuito de chamar “pessoas com experiência e autoridade
na matéria” a participar e contribuir para a discussão do tema. A audiência ocorreu, nos
dias 03 e 06 de agosto e contou com espaço para mais de cinquenta apresentações11.
As audiências públicas realizadas no bojo das ações de controle concentrado de
constitucionalidade no STF, assim como aquelas realizadas nas duas casas do Congresso,
são situações em que é possível analisar tanto a argumentação desenvolvida pelas
instituições participantes como também as estratégias discursivas utilizadas no intuito de
impactar o público externo de forma a direcionar a opinião pública (SOMBRA, 2017).
As intervenções dos atores por meio de seus discursos fornecem uma dimensão amostral
de ideias e/ou valores que circulam pela sociedade, que fazem parte dela, merecendo
reconhecimento de representatividade dos grupos.
9
Utilizando o mesmo tamanho de amostra, mas com uma metodologia um pouco diferenciada desenvolvida
para que fosse possível a comparação entre os estudos. A pesquisa de 2010 utilizou apenas a técnica de
urna, já a PNA 2016 trata-se de inquérito domiciliar combinado a entrevistas face a face juntamente com a
técnica de urna. (DINIZ, 2017)
10
Disponível em <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2018/02/05/magno-malta-pede-
arquivamento-de-sugestao-legislativa-que-legaliza-aborto/tablet> Acesso em 17 nov. 2018
11
Conforme decisão de homologação e organização proferida pela relatora do processo disponível em:
<http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=314743803&ext=.pdf> Acesso em 29 out. 2018.
13
De 2014 a 2017, a sugestão legislativa 15/2014 atingiu quase 400 mil votos no site
do Senado (OLIVEIRA, 2017, p. 23) e daquele ano até novembro de 2018 a quantidade
de votos duplicou, contando atualmente com mais de 800 mil votos, sendo a quinta
proposta legislativa mais votada12. Já a ADPF nº 442 é a ação que, na história do STF13,
contou com mais pedidos de instituições para ingresso como amici curiae. Ambas
possuem os objetos bem semelhantes e, em razão de sua repercussão midiática, e das
tensões políticas que trazem à tona, merecem atenção dessa pesquisa.
A argumentação utilizada pelo relator da sugestão legislativa 15/2014 (Magno
Malta) para seu arquivamento reforça a ideia de que “os pentecostais estão
reconfigurando seus discursos com a adoção de argumentos científicos e jurídicos para
ajustá-los a processos em curso na sociedade brasileira” (MACHADO, M., 2016, p. 87).
A pesquisa propõe o estudo da audiência pública realizada no bojo da ADPF nº 442,
com o intuito de analisar as argumentações associadas à ética da convicção e à ética da
responsabilidade nos discursos favoráveis e contrários à descriminalização do aborto,
visando identificar na tramitação da ação e na própria estratégia discursiva o impacto
social causado. Dizendo de outra forma, e acompanhando autores da teoria do discurso,
analisar aspectos que giram em torno de quem fala, o que se fala, pra quem se fala, em
que momento se fala e de que forma se fala.
A pesquisa é composta de três capítulos. No primeiro capítulo discorrer-se-á sobre
a contraposição argumentativa favorável e contrária à descriminalização do aborto. A
intenção é observar a argumentação utilizada principalmente por pessoas e instituições
associadas à moral religiosa que embasam sua argumentação na importância da garantia
da vida do feto como direito imprescindível ao bem da sociedade como um todo. Por
outro lado, a argumentação oposta associada aos ideais feministas que consideram a
mulher como sujeito de direitos individualizado que possui suas demandas próprias fora
do círculo familiar baseadas na autonomia sobre o seu corpo, procurando fugir da crítica
do individualismo contemporâneo exacerbado.
No segundo capítulo pretende-se descrever o método de análise dos discursos que
se realizará no terceiro capítulo. Mostra-se a importância de utilizar a análise crítica de
discurso demonstrando que a principal característica do discurso radica na possibilidade
de mudança social. No decorrer do capítulo discorre-se, mais especificamente, sobre a
12
Disponível em: <https://www.senado.gov.br/bi-pdf/Arquimedes/ecidadania/rel-consulta-publica-
pdf.pdf> acesso em 25 nov. 2018
13
Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2018-ago-03/instado-stf-manifestar-rosa-abrir-audiencia-
aborto> Acesso em 05 out. 2018
14
teoria social do discurso de Fairclough (2001) e a influência da ideologia nos discursos
que possibilita caracterizá-los como instrumento de manutenção e/ou transformação da
prática discursiva dominante.
No terceiro capítulo passa-se à análise da argumentação esposada pelos atores do
Estado e da sociedade civil que participaram da audiência pública convocada no processo
da ADPF nº 442. Para tanto, inicialmente se refletirá rapidamente sobre o andamento do
processo e da audiência em si e, em seguida, passa-se à análise dos discursos proferidos
pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), contrária à descriminalização
do aborto, e do Instituto de Estudos da Religião (ISER), favorável à descriminalização,
relacionando-os a elementos vistos no capítulo anterior.
Nas considerações finais ressalta-se a estratégia dos movimentos feministas de
recorrer ao Judiciário para ampliar o debate sobre o tema; que a audiência pública é uma
forma de se reforçar a legitimidade das decisões tomadas pelo Supremo Tribunal Federal;
e, por fim, que os discursos favoráveis e contrários à descriminalização do aborto apesar
de apresentarem bastantes semelhanças argumentativas em razão dos significantes
utilizados (vida, dignidade, liberdade, igualdade) possuem significados diferentes que
demonstram as relações de poder presentes na sociedade e que extrapolam os limites do
tribunal judicial impactando diretamente na opinião pública sobre o tema.
15
1. CRIMINALIZAÇAO E DESCRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO
17
amamentação, causando problemas de saúde. Sem se esquecer da condenação religiosa,
representada pela condenação moral pela injustiça de privar os filhos desse líquido
precioso (BADINTER, 1985).
As mulheres que não cumprissem seus deveres para com a maternidade
demonstravam depravação e mereciam uma condenação inapelável: "Mulheres, não
espereis que eu estimule vossa conduta criminosa. Não censuro os vossos prazeres
quando sois livres (...) mas transformadas em esposas e mães, deixai os adornos vãos,
fugi dos prazeres enganosos: sereis culpadas se não o fizerdes" (VERDIER-HEURTIN,
1804 apud BADINTER, 1985, p.197).
Além disso, a responsabilidade da mulher é ainda maior quando se adere ao discurso
de que lhe compete também a responsabilidade pelas atitudes retas do homem. Nesse
sentido, reforça-se a ideia de que caso elas cumprissem o seu papel maternal, tamanha
sua importância para a sociedade e para a família, os homens, naturalmente, também
cumpriram seus papeis de pais e esposos dedicados. Argumentos desse tipo, sobre a
valorização dos cuidados com os filhos e com a família como um todo, eram
desenvolvidos por homens apenas para convencê-las e ignorava os testemunhos das
próprias mulheres.
Isso reforçou-se com a ampliação da adesão, principalmente das mulheres
burguesas e de adeptas a “restringir a própria liberdade em favor da maior liberdade do
filho” (BADINTER, 1985, p.204), porque tinham interesse em demonstrar sua utilidade
social e tinham meios para tanto. O problema dessa argumentação é que seu arranjo, ainda
que constituído originalmente com base na proteção à vida das crianças, desconsidera
aspectos relacionados à autonomia da mulher, seu domínio sobre o próprio corpo e ainda
condiciona suas escolhas ao que é socialmente aceito, influenciado extremamente pela
moral religiosa cristã.
As encíclicas humanae vitae, elaborada no papado de Paulo VI, em 1968, que trata
sobre a regulação da natalidade e a familiaris consortio do papado de João Paulo II, sobre
a função da família cristã no mundo, em 1981, por exemplo, reproduzem textualmente a
importância da família estabelecendo como pilares fundamentais: o matrimônio,
criticando relações constituídas sem a sua formalização; a diferenciação entre homens e
mulheres, reforçando a importância da assunção de diferentes papeis por ambos; e a
procriação, condenando qualquer forma de contracepção temporária ou definitiva.
A Igreja Católica reconhece Deus como Autor da vida humana e os homens e
mulheres como “administradores dos desígnios estabelecidos pelo Criador”. Nesse
18
sentido, pela moral cristã, não há que se falar em liberdade de escolha, mas sim em
aceitação das determinações divinas. A Igreja critica, inclusive, as formas de reprodução
assistida, por se tratarem de influência humana sobre a vontade divina, que é a gestação
natural da relação sexual entre homem e mulher. E essa é a única função da relação sexual:
a procriação.
Além disso, a moral cristã não permite que o indivíduo se sobreponha ao coletivo
e, por isso, é um das maiores propagadoras do argumento de que a defesa do aborto é uma
representação do individualismo exacerbado. Ela defende a caridade para remediar os
sofrimentos de terceiros, mas reforça que “medir a felicidade pela ausência de sofrimentos
e de misérias neste mundo é voltar as costas ao Evangelho” (PAULO VI, 1974).
Em 1974, o Vaticano elaborou a “Declaração sobre o aborto provocado”. Fica claro
pela leitura do documento que o intuito da Igreja Católica é reforçar seu posicionamento
oficial contrário ao aborto diante de algumas posições divergentes dentro da própria
Igreja. Em tom incisivo, destaca-se que a declaração “implica uma grave obrigação para
as consciências dos fiéis”, esclarecendo que se pretende trazer à luz a verdade, ou seja,
que não se trata de uma oposição entre opiniões igualmente embasadas, mas sim do
reforço da verdade da doutrina do “Magistério Supremo, que expõe a norma dos
costumes, sob a luz da fé” contra opiniões desprovidas dessa verdade.
Para isso, utiliza-se da Didaché, instrução dos doze apóstolos, o mais antigo
documento cristão depois do Novo Testamento, para demonstrar que a tradição da Igreja
Católica é pela defesa da vida humana e que ela deve ser protegida desde seu início. Ainda
que se reconheça que durante a Idade Média houvesse uma gradação na condenação da
mulher em razão do momento da gravidez em que o aborto era realizado - pois havia
divergências sobre o momento em que a alma ingressava no corpo - reforça-se que o
aborto sempre foi criticado pela Igreja (ROSADO-NUNES, 2012).
Por isso, é tão difícil dissociar o discurso contrário à descriminalização do aborto
da narrativa da moral cristã. Por exemplo, foi realizada pesquisa no Estado do Rio de
Janeiro, em 1980, em frente a uma Igreja Católica, em que as pessoas eram abordadas
para depositar sua opinião em uma urna sobre as duas seguintes questões: “(i) você é
contra ou a favor do aborto? (ii) você acha que uma mulher que faz aborto deve ser
presa?”. A maioria se posicionou contra o aborto, mas quase a totalidade dos entrevistados
afirmou ser contrário à punição da mulher que realiza o aborto. Com base nesses dados,
constatou-se que o aborto é moralmente e religiosamente censurado, no entanto, as
19
opiniões demonstraram que a punição estatal penal não é vista como necessária
(BARSTED, 1992).
No mesmo sentido, os estudos de Ardaillon (1997) evidenciaram que as poucas
denúncias que davam origem a processos judiciais pela prática de aborto pela gestante ou
por terceiro autorizado por ela, originavam decisões que consideravam a ausência de
crime por estado de necessidade. Ou seja, a conduta praticada pela gestante ou pelo
terceiro com seu consentimento não poderia ser considerada crime porque foi praticada
em condições que a justificavam. O estudo evidencia que a criminalização do aborto tem
pouca eficácia prática no âmbito penal, servindo apenas para influenciar no âmbito social,
fortalecendo as desigualdades e submetendo as mulheres às condições incertas da prática
clandestina.
A despeito dessas pesquisas, a disciplina legal do aborto no Brasil e na maioria dos
países da América Latina se mantém no âmbito do direito penal, mesmo apesar do
fortalecimento da reivindicação pela garantia do exercício dos direitos sexuais e
reprodutivos, de forma ampla, e do direito ao aborto, especificamente, que vem se
estruturando desde o final da Segunda Guerra Mundial. Ademais, ainda que nos últimos
dez anos, tenha-se avançado no sentido de uma legislação mais permissiva, ao redor do
mundo em geral, e inclusive na América Latina, vive-se um momento de grandes pressões
conservadoras que atuam no intuito de restringir e afastar o protagonismo da mulher nessa
decisão, inclusive por meio da revisão da disciplina sobre aborto em países em que sua
prática é autorizada atualmente14. No Brasil, a discussão sobre aborto segue a mesma
tendência internacional: tentativas de alteração da legislação para uma maior
permissividade e pressões conservadoras para manutenção ou até maior restrição.
No decorrer da década de 1990 iniciou-se um avanço de posições contrastantes.
Enquanto a ONU promoveu uma série de conferências globais inaugurando um período
de preocupações sociais e integração transnacional com o fim da Guerra Fria, as reações
de setores conservadores contrários a esses avanços ficaram cada vez mais evidentes. A
exemplo disso, temos a posição dos Estados Unidos, que após o atentado às torres gêmeas,
adotou oficialmente uma política externa baseada em um neoconservadorismo religioso.
Visou, assim, propagar internacionalmente a noção de que a política é uma “ação
verdadeiramente missionária: além de manter as instituições tradicionais, deve moralizar
14
Torres (2012); Biroli (2016); Centenera; Molina (2018); Cabello-Robertson e Nunez-Nova (2018);
Lindgren-Alves, 2018 e os documentários Reversing Roe (2018) e Feminists: What Were They thinking?
(2018).
20
a sociedade a partir dos ensinamentos divinos, mesmo em uma ordem democrática”
(QUADROS, 2014, p.60).
No mesmo período, no Brasil, os neopentecostais expandiam-se cada vez mais15
resgatando a defesa da bandeira da moral religiosa cristã e efetivando “a retomada de
crenças e práticas do cristianismo primitivo, como a cura de enfermos, a expulsão de
demônios, a concessão divina de bênçãos e a realização de milagres” (MARIANO, 2004,
p.14)16, além da guerra contra o diabo e suas representações na terra. Essa posição,
fundada em dois polos opostos que representam o bem e o mau, transferiu-se do campo
privado para o campo político quando os bons oradores pastores ou seus escolhidos
passaram a ganhar e expandir seu espaço, primeiro no Legislativo e, mais recentemente,
no Executivo. Difunde-se como missão e obrigação dos bons políticos religiosos a
dissipação da comunidade de todo o mau que assola seu pilar central representado pelos
bons costumes da família cristã. E a difusão desse ideal foi a responsável por criar um
objetivo comum entre evangélicos e setores católicos conservadores no Poder Legislativo
federal: lutar contra o mal que enfraquece a base da sociedade.
Esse mau é identificado, por exemplo, nos recentes processos migratórios; no
secularismo; nos desvios éticos e na sexualização extrema (MISKOLCI; CAMPANA,
2017). A ideologia de gênero tem dado origem, por exemplo, ao aumento de associações
pró-vida no âmbito do Poder Legislativo por meio das frentes parlamentares, mas também
na sociedade civil de forma ampla; à maior mobilização de associações religiosas fora do
âmbito religioso, como associação de juristas e médicos; ao surgimento de movimentos
que pretendem estimular a educação de crianças e jovens sem a influência da ideologia
de gênero - como o Escola sem Partido - e o projeto de educação domiciliar.
A ocupação de posições no Poder Executivo por governantes associados aos ideais
neoconservadores/neopentecostais, tem propiciado a difusão de discursos que
demonstram a posição de entes nacionais e internacionais com caráter extremamente
nacionalista. Contrários ao globalismo e focados principalmente em críticas ao
socialismo, ao ambientalismo e ao feminismo, eles sustentam que essas seriam as
estruturas maléficas atuantes no desvirtuamento de toda a sociedade. Essa união em torno
15
Conforme censos demográficos do IBGE, a quantidade de evangélicos no Brasil que desde a década de
1940 vinha aumentando por volta de 1% por ano, de 1991 para 2000 aumentaram mais de 6%, perfazendo
15,4% da população. E no censo de 2010, verificou-se que, 22,16% da população se dizia evangélica e,
desses, 60% de origem pentecostal.
16
Dentre as pentecostais, a Assembleia de Deus, a Congregação Cristã do Brasil e a Universal do Reino de
Deus concentram, nessa ordem, a maior quantidade de fiéis, totalizando 66,5% de todos aqueles que se
dizem evangélicos pentecostais e é esta última a que mais ganha adeptos, muito em razão de sua força
midiática por meio da qual prega a prosperidade terrena - em contraposição à Igreja Católica.
21
de um inimigo comum reconhece o Estado, a família e a Igreja como instituições basilares
a serem defendidas da disseminação de valores anticristãos que, se não combatidos, irão
causar a destruição da sociedade e até do mundo, numa previsão mais apocalíptica
(JUNQUEIRA, 2018).
Nesse sentido, o feminismo e os movimentos LGBT, na defesa da agenda da
garantia dos direitos sexuais e reprodutivos sempre foram uma ameaça aos valores
disseminados pelas religiões cristãs. O Pontifício Conselho de Justiça e Paz, organismo
da Igreja Católica, no compêndio da doutrina social da Igreja, afirma o seguinte:
22
Ainda que se argumente pela laicidade do Estado, as estruturas sociais se formam
em contextos culturais e históricos específicos e não em um vazio ideológico.
Formalmente não há dúvidas em afirmar que vivemos em um Estado laico,
constitucionalmente garantido, no entanto, a “religiosização da política” é evidente no
âmbito das relações familiares e no estabelecimento de padrões aceitáveis das relações
sexuais. Esses padrões influenciam na legislação sobre família, sexualidade e reprodução
e a legislação colabora para manter ou transformar os valores e instituições.
No tocante ao aborto, pretende-se, com a valorização do direito à vida do feto, com
a defesa da família e o enaltecimento do papel da mulher na garantia da harmonia familiar,
secularizar, de certa forma, a discussão. Como vimos, no entanto, ela está carregada de
aspectos de sexismo e paternalismo associados aos valores religiosos que estruturam os
padrões morais da sociedade e que atribuem determinado papel social à mulher, sem que
ela seja considerada o principal sujeito da discussão. Desconsidera-se, assim, que a
gravidez atinge mulheres e homens de forma diferente e ainda que atinge as próprias
mulheres entre si de diferentes maneiras, o que poderia ser apreciado ao observar a
questão do âmbito das políticas públicas - o que defendem os movimentos feministas.
Nesse contexto, a criminalização do aborto pode ser entendida como uma forma de
violência contra as mulheres e essa violência é representada, no âmbito dos direitos
sexuais e reprodutivos, pela naturalização do ato de engravidar. Além disso, é preciso
observar que essa violência se manifesta de duas formas antagônicas e complementares
que reforçam a estigmatização da mulher. Se por um lado há o controle e restrições ao
exercício autônomo da sexualidade, de outro há a violência em si, embasada na dupla
moral sexual e na diferenciação entre comportamentos que seriam respeitáveis e aqueles
moralmente duvidosos (COLLOURIS, 2010 apud BIROLI, 2018). Há, portanto, a
maternidade aceitável e supervalorizada e a maternidade castigo, como um ônus que a
mulher deve carregar em razão de escolhas equivocadas. Ônus que, no entanto, não se
aplica ao homem, já que ele não é fisicamente afetado.
23
Lei nº 177, que propunha a permissão da prática do aborto até a 12ª semana de gestação.
Entretanto, durante essa década, a luta pelo fim das opressões políticas da ditadura acabou
por ofuscar a luta dos movimentos feministas por direitos, como os sexuais e
reprodutivos, que não estivessem relacionados com o foco das reivindicações principais
das instituições com que eles se relacionavam, como movimentos sociais de esquerda e a
Igreja Católica, que nesse momento estavam unidos contra o regime militar.
Desde então, a censura moral ao aborto evidenciava-se, inclusive, quando a legal
não se manifestava. Mesmo nos casos autorizados por lei, a prática do aborto era
dificultada pela ausência de uma normatização legal sobre a matéria e pela negativa de
realização do procedimento por parte dos médicos fortemente influenciados e até
pressionados pela moral religiosa. Assim como à época do surgimento da pílula
anticoncepcional, na qual, apesar dos avanços obtidos, o ambiente político-jurídico era
desfavorável à sua divulgação e utilização, o mesmo ocorria em relação à prática do
aborto nas hipóteses autorizadas por lei.
Em 1980, houve iniciativas no Congresso Nacional para a promoção de um
planejamento familiar e, diante disso, as feministas perceberam a necessidade de cunhar
alianças no Poder Legislativo na tentativa de alcançar alterações efetivas, já que apesar
de nominalmente laico, a influência religiosa no Estado era evidente observando a grande
maioria das propostas legislativas. As iniciativas foram arquivadas, mas a discussão desse
tema no âmbito do Legislativo e a transformação do movimento feminista de um
movimento social em um ator político dentro do Estado foi crucial (BARSTED, 2009).
Foi em meados da década de 1980 que a pauta do aborto passou a ser defendida de
forma mais ampla, inclusive no Poder Executivo, com grande atuação do Conselho
Nacional dos Direitos da Mulher. Além disso, no Legislativo fortaleceu-se a participação
de apoiadores dos movimentos de mulheres, que apesar de apresentarem propostas
favoráveis à garantia dos direitos sexuais e reprodutivos, suportavam enorme resistência
da grande - e cada vez maior - bancada de parlamentares afeitos a pautas conservadoras
que remontam à repressão religiosa e patriarcal.
A discussão sobre aborto manteve-se latente, com ampla divulgação pela mídia
nacional, publicações médicas e de movimentos feministas, além da realização de eventos
nacionais e internacionais que abordavam o tema e da proposição de projetos de lei no
Poder Legislativo. Em 1984 foi criado o Programa de Assistência Integral à Saúde da
Mulher, com ênfase em aspectos da saúde reprodutiva da mulher e tendo como um de
24
seus objetivos: "evitar o aborto provocado mediante a prevenção da gravidez indesejada"
(ROCHA, 2006, p.370).
No ano seguinte foi criado o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, órgão
atuante na defesa dos direitos da mulher no âmbito do Poder Executivo. Em 1987, o
Conselho apresentou as reivindicações das mulheres aos membros da assembleia
constituinte para elaboração de uma Constituição para encabeçar o ordenamento jurídico
do recente Estado Democrático de Direto. Por meio da “Carta das mulheres aos
constituintes”, que continha uma série de reivindicações relativas ao trabalho, sobre a
família, educação e cultura, requeria-se também, no âmbito da saúde, “o direito de evitar
ou interromper a gravidez sem prejuízo para a saúde da mulher”.
Em contraposição a essa reivindicação do movimento feminista, os deputados
associados à religião católica e evangélica faziam pressão contrária para que o aborto
fosse declarado crime em qualquer circunstância, eliminando-se, assim, as excludentes
do Artigo 128 do CP. Apesar dos avanços conquistados pelas mulheres no âmbito do
trabalho, direitos civis e assistência à saúde, no campo dos direitos reprodutivos, diante
das discussões travadas na Comissão do Homem e da Mulher e na Subcomissão da
Família, criadas pela assembleia constituinte, as feministas adotaram o posicionamento
de não disciplinar o aborto como tema constitucional, evitando, assim, que os deputados
associados à religião incluíssem no Artigo 5º da CF sobre a “igualdade diante da lei”
expressão que garantisse a inviolabilidade do direito à vida “desde a concepção”, o que,
na prática, impediria a interrupção da gestação a qualquer momento após a fertilização.
Com a promulgação da nova Constituição e com o fortalecimento do sistema de
freios e contrapesos dos poderes, o Poder Judiciário consolida-se como poder contra
majoritário em contraposição aos ditames da maioria representados pelo Legislativo.
Dessa forma, aquele poder passou a ser cada vez mais instado a se manifestar sobre
questões que afetem os direitos das minorias (SILVA, 2018). Além disso, dentre os
mecanismos democráticos de participação da sociedade no processo decisório dos
poderes estatais, a Constituição previu a realização de audiências públicas para oitiva da
população, o que se efetivou, também, no âmbito do Poder Judiciário.
Sob a vigência da nova Constituição, que reestruturou o Estado, fortalecendo as
instituições democráticas e prevendo um extenso rol de direitos e garantias individuais e
sociais, passou-se a se identificar uma maior participação da sociedade civil nos temas
políticos em geral. Ainda que de forma gradativa, alterou-se também a maneira como as
25
discussões eram travadas no âmbito dos três poderes, o que desempenhou papel crucial
no tema dos direitos sexuais e reprodutivos (ROCHA, 2006; SILVA, 2018).
Nesse contexto de controle e participação, a previsão constitucional de atribuição,
ao STF, de apreciar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF)
propiciou a utilização desse expediente para questionamento da legislação penal sobre o
aborto. Primeiramente, especificamente em relação à interrupção de gestação de fetos
comprovadamente anencefálicos (ADPF 54/2004) e, mais recentemente, sobre o aborto
de forma ampla, requerendo-se sua descriminalização até a 12ª semana de gestação
(ADPF 442/2017). Em ambas as ações, os relatores dos processos convocaram audiências
públicas para oitiva de especialistas no assunto incluindo-se, dentre eles, representantes
da área da saúde, de movimentos sociais, de instituições governamentais e de religiões.
E, muito embora seja difícil atribuir o convencimento dos Ministros aos argumentos
proferidos (ou defendidos) nas audiências, é inegável a sua contribuição para a discussão
do tema na sociedade (SOMBRA, 2017).
Chegou a se cogitar que a década de 1990 não seria promissora no tocante aos
avanços nas discussões sobre o direito ao aborto, já que no final dos anos oitenta, a defesa
da pauta havia perdido força, dando espaço às denúncias de esterilização compulsória de
mulheres; somado a isso, o Conselho nacional dos direitos da mulher fora esvaziado,
perdendo grande parte de seu poder de influência; e sofria-se com a ausência de alcance
das grandes mídias na formação da opinião pública sobre o tema. Por outro lado, apesar
da perda de apoio nacional, o suporte internacional garantiu que organizações feministas
pudessem se capacitar e mobilizar, incluindo a discussão sobre aborto nessa pauta maior
sobre direitos humanos genericamente e direitos sexuais e reprodutivos
especificamente17.
Nessa década, experimentou-se no Brasil “um processo de democratização de
gênero no âmbito das instituições e de (re)formulação de políticas públicas, assim como
de revitalização da agenda clássica do feminismo na busca por direitos”. Isso foi possível
em razão da transnacionalização do feminismo, da globalização das agendas locais das
mulheres e da difusão das estratégias feministas horizontais18 muito na esteira da agenda
da ONU (MATOS, 2010, p. 83). Tal processo, importa acrescentar, desencadeou uma
17
Carta das mulheres aos constituintes, 1987, n.p.
18
A autora define a extensão horizontal do feminismo como a pulverização dos ideais do movimento ao
longo das classes sociais, de múltiplos espaços culturais, comunidades étnico-raciais e culturais, além de
movimentos sociais paralelos (Matos, 2010).
26
reação contrária aos avanços sociais globais e nacionais, um fortalecimento do
neoconservadorismo religioso com um aumento da representação, no Legislativo, de
grupos parlamentares ligados aos interesses e às pautas religiosas e, portanto, contrários
à descriminalização do aborto. Essa ocupação do Legislativo somada à tendência
internacional de retrocesso nas legislações sobre o aborto forçou os movimentos
feministas a se articularem no intuito de fortalecer o debate público sobre a defesa do
Estado laico (BARSTED, 2009).
Se no Legislativo houve grande movimentação na discussão sobre o tema, com
aumento da participação de atores políticos e sociais em busca, por um lado, de mudanças
liberalizantes na legislação – com inspiração feminista – e, por outro, no sentido contrário,
de conservação ou retrocesso em relação aos permissivos legais – com direcionamento
religioso –, nos outros dois poderes estatais não foi diferente. No âmbito do Executivo, o
Ministério da Saúde, por meio do Conselho Nacional de Saúde, editou, em 1998, Norma
Técnica sobre prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra
mulheres e adolescentes prevendo o procedimento para realização do abortamento, no
intuito de garantir o acesso ao aborto no caso de estupro19.
Em 2003, foi criada a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres e
reestruturado o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, que havia perdido força no
início da década anterior. Juntos, os órgãos foram imprescindíveis para a articulação das
reivindicações das mulheres no Poder Executivo e, dentre suas atribuições, passaram a
organizar a Conferência Nacional de Mulheres, com sua primeira edição em julho de
2004. No evento, aprovou-se a proposta de legalização do aborto, decisão que levou a
Secretaria a incluir no plano nacional de políticas para as mulheres a revisão da legislação
sobre aborto como questão prioritária.
No âmbito do Judiciário, foi o tema específico do aborto terapêutico que
impulsionou a área médica e despontou o protagonismo deste poder estatal em relação ao
aborto. A interrupção da gravidez em casos de anencefalia fetal era o que mobilizava mais
intensamente o interesse legislativo sobre o aborto. A partir da atuação no âmbito judicial
da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde com auxílio do instituto Anis, que
passou a ser ator preponderante na defesa dos interesses das mulheres, o Judiciário se
19
Em 2005, essa Norma técnica de 1998 foi revisada para excluir a necessidade de formalização de boletim
de ocorrência policial para realização do atendimento. No mesmo ano, foi editada Norma técnica específica
sobre atenção humanizada ao abortamento e a Resolução CNS/MS nº 348 que garante atendimento às
gestantes de fetos anencefálicos que desejarem manter ou interromper a gestação, ambos avanços
importantes.
27
volta também para discussão desse tema e muda-se o foco da análise de casos concretos,
sendo instado a se manifestar sobre a legislação penal de forma abstrata.
Em 2005, a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres instituiu comissão
para discutir, elaborar e encaminhar minuta de proposta de revisão da legislação punitiva
que trata da interrupção voluntária da gravidez, integrada por representantes do Poder
Executivo e Legislativo e membros da sociedade civil. Contudo, a deflagração das
denúncias do “mensalão” prejudicou o andamento do projeto, que se tornou moeda de
troca do governo por apoio dos deputados associados à bancada religiosa. Em resposta à
proposição da minuta pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres foi registrada
a primeira “Frente Parlamentar em defesa da vida contra o aborto”. E, desde então, a
bancada religiosa vem confirmando sua tendência de crescimento (MACHADO, 2016).
Com as atenções da mídia voltadas para a divulgação dos casos de corrupção
relacionados ao mensalão, pouco se disseminou sobre as lutas feministas, mas elas
continuavam em andamento. Tanto que, no ano de 2009, a Lei 12.051 alterou a redação
da legislação penal que antes mencionava que crimes como estupro, assédio sexual,
favorecimento da prostituição ou exploração sexual que eram “crimes contra os
costumes” passaram a ser punidos como “crimes contra a dignidade sexual”. Essa, mais
do que uma alteração de texto, significa uma alteração importante: o foco da violação
agora é o violado e não os bons costumes.
A partir de 2010, ainda que se tenha evidenciado um enfraquecimento do vínculo
dos movimentos - feminista e LGBT - com o governo central por pressões, sobretudo, de
parlamentares em defesa da moral religiosa, a presente década contou com alguns
acontecimentos que foram de grande importância para aprofundar o debate sobre o aborto
na sociedade, sua difusão pela mídia e a discussão pelos poderes estatais.
Vale, também, destacar que com o surgimento do Twitter e suas hashtags que se
difundiram para outras redes sociais, foi possível observar um deslocamento dos meios
de influência tradicionais para as redes sociais. Essa facilidade de comunicação
possibilitou interações transnacionais não apenas por meio de hashtags que causaram
grande comoção (#askhermore, #primeiroassedio, #metoo) (RODRIGUES, 2015;
BATISTA, 2018), mas também pela organização de manifestações presenciais relativas
ao aborto: na Argentina, 2016, o #niunamenos, manifestação contra a violência
direcionada às mulheres; o primeiro Women’s march organizado nos EUA, em 2017; no
Irã, 2017, a manifestação contra o rígido código de vestimentas do país; no Brasil, 2018,
o #elenão, contra a candidatura de Bolsonaro à presidência, dentre outros.
28
Em 2010, o Anis divulgou os resultados da Pesquisa Nacional do Aborto, em que,
dentre suas conclusões, identificou que mais de 20% das mulheres acima de 40 anos,
alfabetizadas e residentes em área urbana já realizaram aborto; que não há grande
influência da religião individual na decisão, pois a variação percentual entre as religiões
declaradas (católica, evangélica ou protestante, outras) é pequena; e que mulheres com
mais baixa escolaridade abortam mais (DINIZ; MEDEIROS, 2010). Em 2012, foi
proferida decisão pelo STF na ADPF nº54/2004, em que se declarou a
inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto
anencéfalo é conduta tipificada nos Artigos 124, 126, 128 do Código Penal.
No mês de setembro de 2014 foi apresentada no portal e-cidadania do Senado
Federal a proposta legislativa nº 29.984, com o objetivo de “regular a interrupção
voluntária da gravidez, dentro das doze primeiras semanas de gestação, pelo Sistema
Único de Saúde”20. E, em dezembro do mesmo ano a proposta atingiu o número de 20
mil apoiadores e tornou-se Sugestão Legislativa (SUG). O ano seguinte, de 2015, foi
considerado pela mídia como de grande importância para o movimento feminista
(KIMURA, 2016). Nesse mesmo ano, foi incluído no código penal artigo que considera
o feminicídio como uma qualificadora do crime de homicídio. Essa medida, em certo
aspecto, é uma forma de reconhecimento da violência estrutural a que as mulheres estão
submetidas, trazendo um aumento de pena aos crimes cometidos “contra a mulher por
razões da condição de sexo feminino” (BRASIL, 1940).
Em 2016, o aumento do número de casos de nascimentos de crianças com
microcefalia associados ao vírus da zika impulsionou a Associação nacional dos
defensores públicos, em conjunto com o instituto Anis, a ajuizar ação requerendo o direito
de gestantes infectadas pelo vírus zika interromperem a gestação em caso de grande
sofrimento mental. Ainda em 2016, o STF concedeu habeas corpus permitindo a saída
da prisão de acusados de administrarem clínicas clandestinas de aborto registrando na
ementa do acórdão o cabimento da concessão da ordem diante da necessidade de “conferir
interpretação conforme a Constituição aos Artigos 124 a 126 do CP – que tipificam o
crime de aborto – para excluir do seu âmbito de incidência a interrupção voluntária da
gestação efetivada no primeiro trimestre”, pois a criminalização, nessa hipótese, violaria
“diversos direitos fundamentais da mulher, bem como o princípio da proporcionalidade”
(STF, HC 124306, 2017, n.p.).
20
Sugestão Legislativa disponível em: <https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-
/materia/119431> Acesso em 17 nov. 2018.
29
Em 2017, o instituto Anis divulgou os resultados da segunda Pesquisa Nacional do
Aborto, por meio da qual foi possível estimar que, no ano de 2015, cerca de meio milhão
de abortos tenham sido realizados no Brasil; identificou-se que o número de abortos
realizados por mulheres alfabetizadas, de área urbana e com idade entre 18 e 39 anos, em
comparação com a PNA de 2010, permaneceu estável no tempo e bastante elevado;
ressaltou-se que fatores sociais como raça, renda e escolaridade influenciam nas taxas de
realização de aborto, pois aquelas com menor escolaridade e menor renda abortam mais,
já as brancas abortam menos do que pretas e pardas; além disso, as mulheres da região
nordeste são as que mais abortam em comparação com as outras regiões do Brasil (DINIZ
et al., 2017).
Com base nesses resultados, pode-se identificar também que a mulher que mais
aborta é aquela entre 20 e 24 anos, indígena (seguido de preta), que já teve filhos
anteriormente, separada, de outras religiões que não a católica ou evangélica, que estudou
até a 4ª série, que mora na capital de um município da região nordeste, que não trabalha
e possui renda familiar até um salário mínimo.
No mesmo ano (2017) foi protocolada no STF, pelo Partido Socialismo e Liberdade
(PSOL), a ADPF nº 442 requerendo o direito à interrupção de gestações até a 12ª semana.
E, no mês de agosto de 2018, foi realizada audiência pública para ouvir as declarações de
pessoas com experiência e autoridade na matéria. Cientes das atribuições dessa Corte em
ações de controle de constitucionalidade e que a audiência pública é um campo de
elaboração de discursos e de argumentação sobre questões a serem decididas por essa
instância judicial, nos debruçaremos, no terceiro capítulo, na análise dessa Audiência
Pública com o intuito de confrontar os discursos que envolveram essa medida.
30
destas desigualdades. (...) Revela que esta ideologia [da diferenciação de
papeis entre homens e mulheres] encobre, na realidade, uma relação de poder
entre os sexos, e que a diferenciação de papeis baseia-se mais em critérios
sociais do que biológicos (MOREIRA ALVES; PITANGUY,1981, p.54-55)
31
não brancas convivem com problemas que as brancas não entendem; assim como as não
heterossexuais em relação às homossexuais.
A universalidade dos direitos humanos, portanto, deve ser pensada em conjunto
com as particularidades de cada sociedade, sem o intuito de descaracterizá-las, mas
utilizando-as como um manual a ser aplicado de forma moldada para cada situação
específica. O reconhecimento e a consideração das particularidades de raça, classe,
gênero e das formas como se materializam em cada região e em cada sociedade – por
exemplo, as sociedades indígenas ou as influenciadas oficialmente pela religião islâmica
– são a forma de superar a abstração univesalizante dos direitos humanos a partir da
concretude dessas relações.
Tendo em mente a necessidade de reconhecer os sentidos socialmente atribuídos às
particularidades e os sentidos mobilizados por elas nos relatos e nos embates cotidianos,
destaca-se, em relação à maternidade, que a recusa dos direitos sexuais, a homofobia e o
sexismo são vividos em sua conjugação com as desigualdades socioeconômicas e
regionais, o racismo, aspectos geracionais e deficiências, etc. (CORRÊA; PETCHESKY;
PARKER, 2008). Por isso, tais aspectos são fundamentais para compreender as
possibilidades efetivas de escolha da mulher sobre a maternidade, contrariamente à
condenação moral dessa escolha, que ignora as limitações socialmente impostas ao seu
livre arbítrio.
Como dito, o movimento feminista, em meados das décadas de 60 e 70, foi marcado
pelo reconhecimento das estruturas de poder a que a mulher era submetida. Além das
questões de gênero, o patriarcalismo trazia consigo muitos dogmas religiosos que
associavam a mulher não a um sujeito de direitos em si e por si própria – fundamento das
declarações de direitos –, mas sim interligada à manutenção e à perpetuação da família
(TELES, 1993).
Nesse momento, a reivindicação pelo direito ao próprio corpo significava muito
mais do que escolher “usar sutiãs” ou “saltos altos”, mas decidir sobre sua sexualidade, o
que abrangia tanto o controle reprodutivo quanto a possibilidade de buscar o próprio
prazer. No âmbito da sexualidade, a possibilidade de interrupção voluntária de gestações
– assim como a utilização da pílula anticoncepcional em momento anterior –, surgiu como
um assunto de grande impacto e que reclamava manifestações contrárias no âmbito
religioso (MIGUEL, 2012; BUDAPEST, 2018).
O paternalismo, tão criticado na modernidade em relação às questões consideradas
públicas e cuja influência deveria ser evitada nesse âmbito, relegava à vida privada
32
qualquer assunto relacionado às relações de poder do homem exercido sobre a mulher no
contexto da família. Por isso, a subjugação da mulher demorou muito tempo para ser
considerada uma questão política e o constrangimento das suas escolhas por modos de
organização social que facilitam o exercício do poder sobre elas demorou mais ainda para
ser reconhecido como uma forma de discriminação estrutural.
Endossando as pressões de movimentos de mulheres que pretendem a revisão da
legislação sobre o aborto, estudos acadêmicos têm promovido estratégias de abordagem
do direito ao aborto como uma demanda política, de autonomia da mulher e igualdade,
no intuito de demonstrar e, assim, afastar-se do controle moral religioso predominante.
Pode-se observar que os movimentos feministas e os defensores de suas causas
deslocaram sua estratégia de atuação - que na década de 1990 era centrada no Legislativo
- para o Poder Judiciário. A “judicialização da sexualidade” foi a forma encontrada para
discutir não apenas o aborto, mas também outras questões que envolvem direitos sexuais
e reprodutivos como o planejamento familiar, a reprodução assistida e a união de casais
homoafetivos.
Ao lado da discussão ética, o movimento feminista, no intuito de desmitificar o
aborto e retirar seu foco unicamente do âmbito da religião, defende focalizar na questão
da autonomia da vontade e da busca pela cidadania, trazendo o assunto também para o
âmbito político e, especificamente, de políticas públicas.
Contudo, conceitos como liberdade e autonomia, que são os argumentos centrais
do movimento de mulheres para embasar o abrandamento da legislação sobre aborto,
frequentemente são disfarçados e colocados em segundo plano no Brasil, onde é
necessário desviar o cerne da questão para argumentos menos incômodos ou talvez mais
palpáveis. Segundo Ardaillon (1997), diferentemente dos EUA e França, em que a
descriminalização teve como foco a liberdade e autonomia da mulher, no Brasil, em regra,
o foco recai sobre questões de saúde pública. Nesse sentido, no intuito de reforçar a crítica
à manutenção da criminalização, pesquisas internacionais21 e nacionais22 são utilizadas
para demonstrar, mais do que o impacto humano com a morte, mutilação ou prejuízos
psicológicos às mulheres, mas, principalmente, o impacto financeiro sobre o sistema de
saúde que deve arcar com o custo do atendimento tardio desses danos.
Siegel (2006) caminha no mesmo sentido ao destacar que os movimentos sociais,
no intuito de enquadrar as suas reivindicações como plausíveis e necessárias, moderam
21
Hoctor et al. (2017); Ganatra et al. (2017); Singh et al. (2018).
22
Diniz et al. (2017); Diniz e Medeiros (2010).
33
seus discursos moldando-os, muitas vezes, a argumentos constitucionais e caros ao
modelo institucional vigente, de forma que, reconhecendo o espectro social, utilizam uma
retórica com mais ampla recepção e aceitação. Por outro lado, da mesma forma que esse
aspecto foi identificado e utilizado pelos movimentos feministas, entidades religiosas
também alteraram e moderaram os seus discursos para fugir da crítica do
fundamentalismo religioso utilizando argumentos, jurídicos, técnicos, médicos, dentre
outros e, inclusive, a própria autonomia e liberdade.
A crítica do movimento feminista é que, assim como critérios de saúde pública
foram utilizados para facilitar a introdução do tema da descriminalização do aborto,
aqueles que se associam à defesa da moral religiosa, além de questionarem os dados
obtidos nas pesquisas realizadas, utilizam-se da estratégia de defender a garantia da vida
do feto na tentativa de secularizar o debate e escamotear a interferência da moral religiosa
em questões políticas. Por isso, atualmente, a maior bandeira do feminismo no tema do
aborto é a defesa da laicidade do Estado. Segundo Gonçalves (2008), e conforme
destacado, a defesa da vida do feto desde o momento da concepção é uma ideia surgida
apenas no momento de formação dos Estados Modernos, em que a Igreja teve seu poder
enfraquecido perante os governantes, e o aborto, que era considerado “apenas uma falta
grave, que ocultaria o verdadeiro pecado, no caso, o adultério” (ROSENDO;
GONÇALVES, 2016, p.303), ou seja, um crime contra a honra - do homem -, passou a
ser considerado um crime contra a vida23.
Essa visão está muito associada ao fato de que até a Constituição de 1988, o homem
era considerado, pelo direito civil brasileiro, como o chefe da sociedade conjugal. As
mulheres casadas eram consideradas relativamente incapazes à prática de determinados
atos, pendentes de autorização do marido. E mesmo com a garantia de direitos individuais
no novo texto constitucional, o casamento continuou sendo uma instituição que afeta
homens e mulheres de formas diferentes. Culturalmente destacada ao âmbito do direito
privado, no qual o homem tinha uma série de direitos sobre a mulher, excluída da
apreciação do poder público.
23
Dias (2006) afirma que mesmo as exceções previstas no Código Penal, não seriam em prol dos interesses
da mulher em si, mas sim visando a defesa dos costumes e da honra da família patriarcal, que deveria
manter sua continuidade - no caso de risco à vida da gestante - e não poderia ser integrada por filhos
originados fora do casamento - no caso de gravidez resultante de estupro -. (Dias, 2006 apud Domingues,
2008). Ademais, até a edição da Lei nº 12.015 de 2009, o Título VI do CP – que prevê, por exemplo, o
crime de estupro, assédio sexual e favorecimento da prostituição – denominava-se “dos crimes contra os
costumes”, sendo alterado pela lei para “dos crimes contra a dignidade sexual”.
34
Frise-se, portanto, que o movimento feminista atualmente se empenha em inserir a
descriminalização do aborto em uma discussão política maior associada ao exercício da
democracia e à garantia de cidadania às mulheres, evidenciando que a gestação atinge de
formas diferentes homens e mulheres. Assim, é crucial ter em mente a importância de não
deixar de lado questões centrais que são a dominação masculina e a dominação religiosa,
que por vezes podem se camuflar sob a cortina da defesa da família, da crítica ao
individualismo exacerbado e do direito à vida do feto, no intuito de enfraquecer a
argumentação das mulheres.
A utilização de slogan em defesa da família vai de encontro ao respeito à autonomia
da mulher, pois essa argumentação reforça a diferenciação entre os gêneros colocando
sobre a mulher a obrigação de sobrepor as suas vontades ao bem-estar da família, peso
que não recai sobre o homem:
Diante disso, seria obrigação da mulher decidir formar e manter uma família em
detrimento de suas escolhas. Além disso, a própria formação das escolhas ficaria
submetida a uma perspectiva de dominação masculina e para trazer a discussão do aborto
à agenda política seria impreterível “reconhecer a centralidade das motivações e
justificativas expressas pelas mulheres, tomando-as como ponto de partida para discutir
a dimensão moral e ética do aborto” ou, ainda, o custo social de não corresponder ao ideal
da maternidade. Ou seja, “a santificação da maternidade e a objetificação da mulher pela
perspectiva masculina fazem parte de uma mesma gramática que nega às mulheres o
direito a autonomia” (BIROLI, 2014, p.53; 63).
Por outro lado, em contraposição à santificação da maternidade, muitas vezes a
continuidade de uma gestação pode se impor socialmente como um castigo quando se
aventa a possibilidade de uma interrupção voluntária. A argumentação de que a mulher
“quis” engravidar mesmo diante de toda a oferta de métodos contraceptivos no mercado
ignora uma gama de aspectos sociais associados à prática do aborto. Prova disso, a
Pesquisa Nacional do Aborto de 2017 identificou que fatores sociais como raça, renda e
escolaridade, além de fatores regionais influenciam nas taxas de realização de aborto.
35
Assim, embora a questão de saúde pública tenha se tornado uma argumentação
mais palpável, é importante reforçar a imprescindibilidade de construir a discussão sobre
o aborto a partir da experiência das mulheres. Seja da mulher de classe alta, de classe
baixa; de alta escolaridade ou baixa escolaridade; mais jovem, mais velha; solteira,
casada, o importante é garantir a autonomia de escolha da mulher para que ela possa
realizar o procedimento da forma mais segura, com interferência negativa do Estado no
âmbito penal e, preferencialmente, também com sua interferência positiva, por meio de
políticas públicas e atendimento de saúde.
A importância da luta do movimento feminista pela descriminalização do aborto
está em sua pretensão de inserir o tema em um contexto mais amplo de busca pela garantia
dos direitos sexuais e reprodutivos às mulheres. Ou seja, “o movimento de mulheres
tornou o aborto uma questão política”. Assim, coloca-se em debate a lógica de que a
articulação de mulheres em torno da pauta sobre aborto deve confluir para a elaboração
de estratégias e táticas que permitam tratar o direito ao aborto como uma demanda política
(BARSTED,1992, p.128).
No início, essa articulação se deu, majoritariamente, por meio da estratégia de
defesa e garantia de direitos individuais, como direitos naturais e inatingíveis, que
traduziam o direito à vida, à liberdade e à propriedade na máxima “nosso corpo nos
pertence”. Essa demanda tem importância inegável por enfatizar a escolha das mulheres
e não um papel social que pressupõe a maternidade compulsória. No Brasil, também se
reproduziu essa estrutura argumentativa, mas as condições de escolha mais restritas e
desfavoráveis dificultaram sua propagação (ARDAILLON, 1997).
Diante da dificuldade de reconhecer, na descriminalização do aborto, um direito ao
pleno exercício da autonomia e da liberdade de escolha da mulher, ganhou força o
discurso de vitimização, que situa a mulher como vítima das condições precárias em que
o aborto é realizado, em razão da prática clandestina estimulada por sua criminalização.
Observa-se, com isso, o deslocamento dos discursos favoráveis à descriminalização do
aborto do polo dos direitos individuais (o direito de escolha) para o polo dos direitos
sociais (do direito à saúde) e agora englobando muito mais as questões particulares de
raça e classe, que são justamente aspectos preponderantes e limitantes das escolhas
disponíveis às mulheres. Isso representa um avanço, contudo, permanece o desafio
constante de se defrontar com a contra-argumentação contrária à descriminalização.
36
2. A ANÁLISE DO DISCURSO
37
Ressalte-se que não é o objetivo desta pesquisa discutir de forma aprofundada a
análise de discurso propriamente dita, com suas diferentes vertentes teóricas e analíticas,
mas apenas utilizá-la como metodologia e fundamentação da apreciação dos discursos
sobre a (des)criminalização do aborto como forma de representação ideológica e prática
social, no sentido da construção de identidades e visões de mundo.
Em primeiro lugar, deve-se esclarecer que neste trabalho será utilizada a análise
crítica de discurso (ACD) denominada assim para se diferenciar da análise de discurso
(AD). Inicialmente o que as diferencia é a gênese dos estudos de linguística que
originaram cada corrente. A análise de discurso se desenvolveu majoritariamente na
França com base na crítica e subjetivação psicanalítica dos estudos da linguística
estruturalista de Saussure. Já a ACD possui como base histórico-teórica, principalmente,
os estudos da linguística crítica desenvolvidos sobre a linguística sistêmico-funcional de
Halliday na década de 1970, que se fundiram às teorias neomarxistas para construção do
seu conceito de ideologia (MELO, 2009).
Em relação à ideologia, ambas as correntes incorporam em seus postulados a
interferência da ideologia nos discursos, no entanto de formas diferentes. Na análise de
discurso, o discurso é efeito ou consequência de sentidos pré-constituídos, ou seja, ele é
um objeto teórico originado de uma materialidade histórica. O sujeito e o discurso, nesse
caso, se constituem mutuamente no momento da elaboração ou da representação do
discurso porque não há uma exterioridade a esses elementos. A própria análise é
determinada histórica e ideologicamente, ou seja, o intérprete ou analista também é
influenciado em sua análise.
Por outro lado, na ACD o discurso é visto como linguagem em uso e forma de ação
situada no socio-histórico. Não há grandes preocupações com a causa ou a forma como o
sujeito é construído pela ideologia para a produção do discurso, mas, sim com a
consequência social e política que se origina desse discurso, sua produção e interpretação
(RODRIGUES; DELLAGNELO, 2013). Assim, ainda que o sujeito seja constituído na
sua historicidade, existe a possibilidade de ação e de articulação entre discurso e prática
social, sem que sejam redutíveis uns aos outros. Aqui, diferentemente da análise de
discurso, existe uma exterioridade atuando que é a possibilidade de mudança social
possível em função de um sujeito reflexivo em busca de uma autoidentidade que lhe
garante possibilidade de atuação.
A ACD “trabalha com o simbólico e sua relação com os componentes do evento
social diferentemente da análise de discurso que trabalha no simbólico e seu objeto
38
mesmo é teórico” (WALSH, 2011, p.18). No mesmo sentido, Ruchys e Araújo (2001)
afirmam que as duas têm grandes pontos de interseção, sendo as diferenças fundamentais
embasadas inicialmente nos recortes teóricos e esquemas metodológicos mas,
principalmente, na concepção de sujeito, a quem a análise crítica de discurso atribui uma
possibilidade transformadora, dinâmica, de mudança social.
39
critérios, elementos simbólicos de poder (princípios, práticas, costumes) com base em
práticas que adquirem certa dominância no espaço social. Esses critérios embasam as
condições de percepção do indivíduo sobre o mundo que ele reproduz na sua prática
discursiva e social.
O modelo desenvolvido por Fairclough e posteriormente definido como “análise
crítica de discurso” objetiva pensar justamente o discurso como um elemento que, ao
mesmo tempo, constitui e é constituído por práticas sociais, e que essas práticas revelam
processos de exercício de poder e manutenção de dominação conjugando o campo da
linguística ao das ciências sociais (RODRIGUES; DELLAGNELO, 2013).
Desse modo, pode-se dizer que a ACD tem-se apresentado como um instrumental
teórico para a análise das práticas discursivas que constroem as várias ordens sociais
vigentes e como uma forma de investigação das formações discursivas que engendram as
relações de poder, as representações e identidades sociais e os sistemas de conhecimento
e crença. Ou seja, os analistas críticos do discurso pretendem mostrar o modo como as
práticas linguístico-discursivas estão imbricadas com as estruturas sociopolíticas mais
abrangentes de poder e dominação (KRESS, 1990, p.85).
Como visto no capítulo anterior, a discussão sobre a descriminalização do aborto
opõe dois discursos, sendo o discurso dominante pela manutenção da criminalização
influenciado pela moral religiosa cristã que, ao longo do tempo, condicionou – e ainda
condiciona – muitas das práticas e costumes da sociedade brasileira. Dessa forma, ainda
que não se tenha consciência da influência exercida, o imaginário e a prática social são
amplamente sugestionados pela prática discursiva que reproduz formas simbólicas do
exercício do poder.
Fairclough desenvolveu a teoria social do discurso utilizando o método de análise
do discurso textualmente orientada. O autor entende qualquer evento discursivo como
simultaneamente um texto, uma prática discursiva e uma prática social. Nessas três
esferas calca-se a perspectiva tridimensional do discurso concebida pelo autor e
entendida, respectivamente, como a dimensão da análise linguística, da análise do
processo interacional e da análise de circunstâncias organizacionais e institucionais da
sociedade que tiveram suas bases de formação na Linguística Crítica. Nessa linha de
entendimento: “a linguagem é como é por causa de sua função na estrutura social, e a
organização dos sentidos comportamentais deve propiciar percepção de suas fundações
sociais" (HALLIDAY, 1973 apud FAIRCLOUGH, 2001, p. 47).
40
Ou seja, teorizar a respeito da linguagem deve superar a simples construção de um
metadiscurso sobre ela para reconhecer sua interferência na estrutura social que a norteia.
A ideia sistêmico-funcional vem da afirmação de que as pessoas têm acesso à linguagem
disponível para sua posição no sistema social e que, além disso, a língua disponibiliza
opções entre as quais os falantes fazem seleções em seus discursos segundo as
circunstâncias sociais.
Fairclough tece alguns comentários negativos à linguística crítica como, por
exemplo, a tendência em enfatizar muito o texto, a gramática em si – ainda que perpassado
pela escolha daquele texto - e relegar a segundo plano os processos de produção e
interpretação do texto. Focar demais no objeto (texto) e ignorar o sujeito (produtor e
intérprete), que pode ser significativamente alterado em razão das posições sociais
ocupadas pelos sujeitos, etc.
Já em relação à ideologia, ao criticar o relativismo foucaultiano, o autor alerta que
“se deve ter cuidado de evitar algumas das concepções incipientes de ideologia”
(FAIRCLOUGH, 2001, p. 87). Para tanto, utiliza-se das construções de “hegemonia” em
Gramsci24 e de “poder” em Bourdieu25, o que permitiu sustentação aos fundamentos da
mudança discursiva e da prática discursiva em relação à mudança social e cultural.
Tanto Fairclough quanto Pêcheux defendem uma análise ideológica do discurso,
embora tenham trilhado caminhos diferentes na história do marxismo. Para Fairclough
(2001), o mundo é formado pela atribuição de sentido que os atores sociais lhe impõem,
por isso ele acredita que a perspectiva adotada por Pêcheux seja incompleta, pois não se
interessa pelo sentido de modificação social que as práticas discursivas carregam, mas
apenas atestam seu caráter de aparelhamento, reprodução e assujeitamento.
Na análise da ideologia, portanto, interessam as maneiras como formas simbólicas
se entrecruzam com relações de poder. Assim, mais que identificar os modos de operação
da ideologia, é crucial indicar como eles podem estar ligados, em circunstâncias
particulares, com estratégias de construção simbólica (THOMPSON, 2011). Desvendar
os efeitos da ideologia sobre o discurso e, principalmente, do discurso na produção,
24
“tout État est une combinaison de dictature et d’hégémonie, c’est-à-dire, de coercition et domination
politique, culturelle et intellectuel” (Duménil; Löwy; Renault, 2009, p. 62).
25
“(...) não basta notar que as relações de comunicação são, de modo inseparável, sempre, relações de poder
que dependem, na forma e no conteúdo, do poder material ou simbólico acumulado pelos agentes (ou pelas
instituições) envolvidos nessas relações (...). É enquanto instrumentos estruturados e estruturantes de
comunicação e de conhecimento que os <sistemas simbólicos> cumprem sua função política de
instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação, que contribuem para assegurar a dominação
de uma classe sobre a outra (...)” (Bourdieu, 2001, p.11)
41
reprodução, sustentação ou transformação da ideologia constitui um dos objetivos
centrais da ACD.
Para Pêcheux (1988), a utilização de elementos da psicanálise e do inconsciente em
sua teoria ajuda a incluir a importância do sujeito consciente nas análises linguísticas de
Sassure, ao mesmo tempo que identifica que produções sociais e políticas histórico-
estruturais o influenciam inconscientemente reproduzindo algum tipo de ideologia em seu
discurso. Já Fairclough pensa o sujeito também como um agente que ocupa uma posição
intermediária, situada entre a determinação estrutural e a atuação consciente. Um sujeito
que é influenciado e determinado inconscientemente, mas que também possui capacidade
ativa de influenciar as estruturas modificando-as.
Portanto, a ACD absorve em certa medida o materialismo estrutural de Althusser,
sob a visão de maleabilidade social destacada na obra de Gramsci, que acrescenta
elementos de persuasão, dominação e hegemonia, e dialoga com o conceito de ideologia
como modo de produção de sentido aos discursos marcado por um circuito de forças em
que a exaltação de uma depende da anulação de outra (FAIRCLOUGH, 2001, p. 116).
Pode-se dizer, também, que adere à noção de que a ideologia interpela os sujeitos de
forma inconsciente, mas se afasta da utilização da psicanálise como justificação desse
inconsciente, pois pensa o assujeitamento do indivíduo de forma diferenciada (MELO,
2009).
Por isso, reforça-se a escolha dessa corrente para analisar os discursos contrários e
favoráveis à descriminalização do aborto da forma como se fará no capítulo seguinte. Os
discursos revelam as ideologias a que se associam, mesmo que delas pretendam se
desvencilhar e, assim, prestam-se a manter ou transformar uma posição dominante
discursiva e social. Ainda que influenciados inconscientemente, os agentes desenvolvem
seus discursos imbuídos na missão a que se pretendem.
42
Importa frisar que o conceito de discurso é visto em sua amplitude coletiva e não
individual, ele é também uma forma de ação e reação, pois tanto é construído quanto
constrói as identidades sociais, as relações sociais e os sistemas de conhecimento e
crenças. Portanto, ele pode ser utilizado tanto para manter uma ordem cultural vigente
quanto para modificá-la ou rompê-la. E qualquer evento, assim considerado um discurso
individualmente, deve ser analisado em uma perspectiva tridimensional: como texto,
como prática discursiva e como prática social.
Fairclough (2001) destaca, ainda, que o discurso como prática de significação do
mundo possui três dimensões de sentido: (i) identitária, que reconhece como as
identidades sociais e posições de sujeito são estabelecidas no discurso; (ii) relacional,
associada à construção das relações sociais e como elas são representadas e negociadas;
(iii) ideacional, relativa à construção/modificação de sistemas de conhecimento e crença,
nesse sentido, como os textos significam o mundo e seus processos, identidades e relações
(RODRIGUES; DELLAGNELO, 2013).
Como já mencionado, o discurso é moldado e restringido pela estrutura social em
todos os níveis, por várias normas e convenções, tanto de natureza discursiva como não-
discursiva. O conceito de ordem de discurso de Foucault ou de interdiscurso de Pêcheux
(1988) está associado a essa sujeição e determinação estrutural dos eventos discursivos
específicos segundo o domínio social particular ou o quadro institucional em que são
gerados. (FOUCAULT, 2012). Cada campo de saber possui sua reprodução de padrões e
regras tanto discursivas quanto não discursivas que reproduzem sua particularidade e
restringem os eventos específicos.
No âmbito discursivo, esses padrões podem estar relacionados a diversas áreas
como, por exemplo, os vocábulos em si, o uso da gramática, a forma de falar, a polidez,
a fonologia, dentre outros, que podem se manifestar nos gêneros, estilos, tipos de
atividade e discursos (FOULCAULT, 2012; BOURDIEU, 2001).Contudo, justamente
por dever ser entendido como uma prática política - uma vez que estabelece, mantém e/ou
transforma as relações de poder e as entidades coletivas - e ideológica - pois constitui,
naturaliza, mantém e transforma os significados do mundo de posições diversas nas
relações de poder - é que o discurso, apesar de moldado pela estrutura da ordem de
discurso, é também capaz de reformulá-la (RODRIGUES; DELLAGNELO, 2013).
Por exemplo, é possível que haja, dentro da estrutura da religião católica, padres e
bispos que possuam uma posição mais progressista em relação à criminalização do
aborto, no entanto, esses discursos não ganham espaço porque o padrão é a reprodução
43
da condenação do aborto por meio de sua criminalização. Contudo, é possível que a
reprodução de discursos progressistas por pessoas que possuam poder dentro da
instituição transforme a prática discursiva até então dominante.
Tendo identificado que a ACD é sustentada por um pilar triplo, passemos agora à
especificação didática de cada aspecto a ser utilizado: texto, prática discursiva, prática
social. Quanto ao texto, existe uma dificuldade em falar separadamente do texto
unicamente como escolha e reprodução de palavras em sua forma, porque a análise do
texto pressupõe a análise não apenas de questões formais, mas também de critérios de
conteúdo e sempre pensados na esfera social.
Diferentemente da tradição da linguística que considera que não há uma motivação
específica para a escolha de determinado significado para combinar a um significante
particular, a ACD entende que os signos são socialmente motivados, isto é, que há razões
sociais para combinar determinados significantes a significados específico. Um exemplo
pertinente no caso é a utilização do significante “interrupção voluntária da gestação” no
intuito de – utilizando expressão linguística que assumiu contornos sócio-políticos –
ressignificar o aborto, ou, por outro lado, a utilização do significante “assassinato” para
designar o mesmo significado como fez a Confederação Nacional de Bispos na audiência
pública em exame.
Nessa medida, a análise de discurso evolui em relação à linguística tradicional
porque considera as interações sociais como partes integrantes dos textos, que deve
abranger elementos formais da análise textual como o estudo da palavra (vocabulário);
das palavras organizadas em orações e frases (gramática); da relação entre as orações e
frases (coesão); e da organização dos textos em um conjunto de orações (a estrutura
textual), mas sem perder de vista a força dos enunciados, a coerência e a intertextualidade,
que são elementos da prática discursiva.
A interligação entre texto e prática social é mediada pela prática discursiva. A
prática discursiva envolve processos de produção, distribuição e consumo textual gerados
a partir de processos sociais e interpretados por indivíduos ou grupos que produzem, de
acordo com seu posicionamento dentro das estruturas e dos processos sociais,
significados oriundos de suas interações com esses mesmos textos. Desse modo, explora-
se como os textos adquirem significados por meio da relação entre texto, discurso e
contexto e como eles contribuem para a constituição da realidade social, por meio dessa
construção de significado.
44
Tanto a produção quanto o consumo do texto - e sua interpretação - são perpassadas
por dimensões “sociocognitivas” ligadas à relação entre o texto e os elementos
interiorizados por cada sujeito.
45
Duas situações são as mais comuns. A primeira, quando um expositor utiliza
propositalmente informações obtidas de um discurso anterior para compor seu discurso;
e a segunda, quando os discursos se relacionam fortuitamente, não havendo alteração do
discurso em si, mas do sentido atribuído a ele, pois o que antes seria simples exposição
de ideias, pode passar a ser interpretado como desavença.
Já quanto à coerência, Fairclough a situa no campo da interpretação da prática
discursiva: o texto só pode ter coerência se o intérprete assim considerar que tenha
sentido. E o discurso só faz sentido se o intérprete assim inferir de acordo com os seus
pressupostos ideológicos, ou seja, associando o discurso ora produzido com suas
experiências anteriores. Portanto, é possível que diferentes intérpretes façam diferentes
leituras, igualmente coerentes, de um mesmo texto, já que a avaliação da coerência está
relacionada ao contexto de cada intérprete (ORLANDI, 2009).
Outro aspecto no âmbito da prática discursiva é a intertextualidade. Considerando
que a intertextualidade é a interação entre os discursos e que essa interação pode ocorrer
de forma expressa – intertextualidade manifesta – ou ideológica – intertextualidade
constitutiva ou interdiscursividade –, pode-se afirmar que a intertextualidade, e, de forma
mais específica, a interdiscursividade, é elemento imprescindível para a análise do
discurso, pois é o que confere sentido ao texto. A intertextualidade manifesta, identificada
quando o texto recorre explicitamente a outros textos específicos, difere-se da
intertextualidade constitutiva, pois esta é inerente à ordem de discurso e, portanto, é
praticamente seu elemento constitutivo e relacionado a seu elemento ideológico.
Fairclough considera que o interdiscurso é a representação da ideologia presente em
outros discursos, que formaram a prática discursiva. No entanto, para ele, essa
representação não ocorre de forma inconsciente, ou seja, ele não associa essa reprodução
ideológica a algo pessoal e interno, mas sim a uma questão social e, dessa forma, o
discurso, além de apenas ser influenciado pela prática discursiva também a influência de
modo a reforçá-la ou modificá-la.
Por fim, cabe reforçar a afirmação de que a prática discursiva realiza a mediação
entre o texto e a prática social. Para possibilitar que isso ocorra, a prática social determina
os macroprocessos da prática discursiva (para que se conheça a natureza dos recursos dos
membros e das ordens de discurso a que se recorrem para produzir e interpretar os textos)
para que os seus microprocessos (modo como os sujeitos produzem e interpretam textos
com base nos recursos dos membros) possam moldar o texto. Dessa forma, os
46
microprocessos são imprescindíveis para a análise e os macroprocessos são a base dos
microprocessos (FAIRCLOUGH, 2001).
Um exemplo aplicado à questão da criminalização do aborto para melhor visualizar
a explicação é o seguinte: A prática social determina os macroprocessos da prática
discursiva, ou seja, a prática social esclarece os atores que possuem poder em relação a
determinado tema, por exemplo, a Igreja Católica que é contrária à descriminalização e
possui poder simbólico para manter seu posicionamento. Ciente dos atores que possuem
autoridade, os demais sujeitos produzem e interpretam os discursos de forma a confirmar
e reproduzir a prática social ou a modificá-la, por meio da reprodução ou modificação da
prática discursiva.
Finalmente, o último elemento da análise tridimensional de discurso é a prática
social, que, segundo a ACD, é a forma de utilizar a linguagem manejando os conceitos
de ideologia e poder – hegemonia – nas relações sociais – lutas hegemônicas.
A ideologia influencia o discurso ainda que o sujeito que o elabora não perceba. A
ideologia permeia os discursos de forma inconsciente, pois é produto de estruturas pré-
constituídas. Ressalte-se que muito embora Fairclough faça referência à inconsciência do
sujeito quanto às ideologias que o condicionam ele não recorre à teoria psicanalítica da
contraposição entre consciente e inconsciente para justificá-la, mas, pelo contrário,
relaciona às estruturas sociais.
Na esteira de Bourdieu (2001), as ideologias já constituídas podem ser mais ou
menos naturalizadas e quanto mais naturalizadas, menos conscientes. A estabilização e
naturalização de um discurso e da ideologia nele presente o transformam em senso
comum. Fairclough reconhece que os sujeitos são posicionados ideologicamente, mas são
também capazes de agir no sentido de realizar suas próprias conexões entre as diversas
práticas e ideologias a que são expostos e de decidir reafirmar ou modificar as estruturas
pré-existentes.
Ademais, para serem reconhecidas como ideológicas, as práticas discursivas devem
incorporar “significações que contribuam para manter ou reestruturar as relações de
poder” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 121) e mesmo as práticas discursivas identificadas
como científicas ou teóricas, dependendo do uso da linguagem e de outras manifestações
em formas simbólicas, podem ser consideradas ideológicas, mesmo que assim não se
47
apresentem, pois servem também para estabelecer ou manter relações de dominação. E
quando certas práticas munidas de ideologias assumem a posição dominante e passam a
condicionar outras práticas e as relações entre os indivíduos, pode-se dizer que elas
exercem certa violência simbólica ao organizar as condições de percepção do mundo
excluindo aquelas práticas que não se inserem nessa ideologia. Definem-se, assim, as
percepções de aceitabilidade e oportunidade (GIRARDI JUNIOR, 2017).
O senso de aceitabilidade propicia aos atores o reconhecimento dos lucros
simbólicos que seu discurso é capaz de produzir em determinado campo, ou seja, o que
deve ou não ser dito. Já o senso de oportunidade dá o ritmo das intervenções discursivas
determinando o melhor momento de dizer algo. No tocante ao direito ao aborto, por
exemplo, um padre pode reconhecer como oportuno condenar sua prática por associá-lo
a um pecado quando fala a seus fiéis dentro da Igreja, por outro lado, esse mesmo padre
talvez perceba a necessidade de alterar seu discurso associando-o ao direito constitucional
à vida quando fala a uma plateia de juristas. Ambas as atitudes se relacionam ao senso de
aceitabilidade e oportunidade que compõe o jogo discursivo.
Outro elemento ressaltado por Bourdieu que deve ser levado em consideração no
jogo discursivo e que é analisado pela ACD - além do seu conteúdo e sua forma em razão
dos espaços ou campos em que se fala - são as posições ocupadas pelos sujeitos. Não
apenas os sujeitos que falam, mas com quem se fala ou ainda por quem se fala são
elementos que influenciam na análise do discurso. Voltando ao exemplo do direito ao
aborto, é muito comum, por exemplo, observar discursos que falam ‘pelas mulheres’,
‘pelos fetos’ ou ainda ‘pelos deficientes’26 e em todos os casos é importante analisar de
onde partem esses discursos para constatar a ideologia presente nas declarações.
Em regra, argumentos ‘pró mulheres’ são associados a grupos favoráveis à
descriminalização do aborto, no entanto, pode acontecer de grupos contrários utilizarem
essa estratégia justamente para desqualificar esse ponto de vista. Do mesmo modo, grupos
favoráveis à descriminalização podem utilizar argumentos frequentemente associados
àqueles que são contrários, como elementos da religião, para questionar a estrutura
argumentativa da posição oposta.
A ideologia pode ser caracterizada tanto como um evento individualizado quanto
como uma estrutura e a explicação pela sua opção encontra-se na dialética entre o discurso
26
Como, por exemplo, na ADPF nº 54 em que grupos contrários à procedência da ação argumentavam
que permitir o aborto de fetos anencefálicos seria uma forma de seleção com a possível discriminação de
fetos com deficiências genéticas.
48
e a prática social: “É uma orientação acumulada e naturalizada que é construída nas
normas e nas convenções, como também um trabalho atual de naturalização e
desnaturalização de tais orientações nos eventos discursivos.” (FAIRCLOUGH, 2001,
p.118). Pensar a ideologia na estrutura está associado à ordem do discurso e, assim,
constitui o resultado de eventos passados e molda as condições para eventos atuais. Já a
ideologia no evento se manifesta como reprodução ou transformação dessas estruturas
condicionantes.
Considerá-la apenas como estrutura a tornaria engessada, por outro lado,
considerá-la apenas evento poderia conduzir ao equívoco de que o discurso corresponde
a processos livres de formação. Além disso, a ideologia pode se manifestar tanto na forma
do discurso quanto no seu conteúdo ou sentido. Isso porque, não apenas as palavras
escolhidas e utilizadas carregam ideologia, mas também a forma de utilizá-las. Dispor um
texto de maneira mais ou menos formal ou ainda estruturar frases diretas ou passivas,
podem demonstrar estruturas e relações sociais de dominação (MAGALHÃES, 2001).
Diante disso, é importante indicar os modos de operação da ideologia e
imprescindível identificar como eles influenciam na construção simbólica de poder e
hegemonia. Em relação às formas de operacionalização da ideologia para manutenção da
posição hegemônica e das estruturas simbólicas de poder, Thompson (2011) identifica
cinco estratégias discursivas: legitimação, dissimulação, unificação, fragmentação e
reificação.
Na legitimação, utilizam-se a racionalização, a universalização e a narrativização
para naturalizar as relações de dominação. Nesse sentido, o exercício do poder simbólico
estrutura-se no argumento de que a manutenção da posição dominante, representada nas
regras e normas existentes, é a melhor forma de defender determinadas instituições. Além
disso, o respeito às tradições é resgatado para legitimar crenças e identidades individuais,
ou de grupos específicos que são promovidos como universais. Pela dissimulação e suas
estratégias, por exemplo, de deslocamento – em que se altera o sentido de palavras ou
expressões deslocando-as de seu sentido original e corriqueiro – e da utilização de figuras
de linguagem como, por exemplo, eufemismo, metáfora e metonímia, que podem ser
utilizadas como estratégias de alteração de sentido de vocábulos ou frases, a ideologia
pode ser usada para mascarar, ocultar e dissimular relações de dominação, maquiando-as
ou atenuando-as.
Por meio da unificação, pretende-se criar uma identidade coletiva, uma ideia de que
a relação de dominação é responsável pela garantia de uma unicidade, ignorando as
49
diferenças existentes. Pretende-se alcançar a unificação por meio da estandardização ou
criação de padrões com base em particularidades e, especificamente, pela simbolização
de um senso de unidade refletido por símbolos como hino e bandeira mantendo, por esses
elementos ou estratégias, um sentimento de unidade, de nação. Já a fragmentação, em
oposição à unificação, visa a separar e direciona-se a grupos ou indivíduos que possam
ameaçar a dominação de determinados grupos. As estratégias utilizadas para isso são a
diferenciação e o expurgo do ‘outro’, reforçando as diferenças e divisões entre pessoas e
grupos e apresentando o ‘outro’, o discordante, como um inimigo e um mau que deve ser
combatido.
Quanto à a reificação: a “retratação de uma situação transitória, histórica, como se
essa situação fosse permanente, natural, atemporal.” (THOMPSON, 2011, p. 87/88)
significa dizer que ela opera por meio da naturalização e eternização de determinadas
práticas, ignorando e ofuscando o caráter social, político e histórico dos acontecimentos
que originaram essa prática, absorvendo-o como algo natural e ordinário. Podem, por
exemplo, ocultar ou omitir sujeitos ou ações que foram importantes para determinado
acontecimento e, assim, sustentar as relações de dominação beneficiando determinado
grupo dominante. Conforme quadro em baixo, esses modos de operação da ideologia,
descritos por Thompson (2011), podem ser assim resumidos:
Quadro 1
50
dominante. A posição oficial da Igreja Católica alterna sua argumentação,
principalmente, entre a legitimação e a unificação, trazendo a ideia de que a
descriminalização do aborto é historicamente legítima, aproximando-se, inclusive, da
reificação. Ela reproduz, ainda, a noção de que a descriminalização representa um abalo
aos ideais da coletividade.
O conceito de hegemonia de Gramsci - como liderança e dominação; como
construção de alianças e interações entre grupos que exercem o poder econômico e que
refletem esse poder no âmbito social; como um equilíbrio instável construído sobre a
geração de consenso das classes ou grupos subordinados (FAIRCLOUGH, 2011) – é
utilizado pela ACD tanto no aspecto da prática discursiva - na alteração da estrutura
discursiva -, quanto no da prática social, já que pode causar, também, de forma mais
ampla, a mudança social estrutural em si.
Sob essa visão de hegemonia e poder, as relações sociais são entendidas como lutas
hegemônicas constantes sobre pontos de maior instabilidade entre classes, blocos ou
setores. A intenção dessas lutas é sempre no sentido de construir, manter ou romper
alianças e relações de dominação, que podem assumir formas econômicas, políticas e/ou
ideológicas nas diversas instituições da sociedade civil, como os sindicatos, a família, as
escolas, etc.
Essa concepção de luta hegemônica em termos de articulação, sustentação e
construção entre diversas instancias políticas e sociais retoma o conceito de ideologia e
senso comum e se harmoniza com a concepção dialética da relação entre estruturas (poder
constituído) e eventos discursivos (que incidem sobre o poder constituído), ou seja:
51
Essas lutas hegemônicas são, portanto, lutas simbólicas pelo poder que podem ser
facilitadas ou dificultadas a depender do campo em que elas ocorrem e do capital social
de cada agente. Assim, o habitus tende a assegurar a reprodução das relações sociais pela
manutenção dos valores e normas sociais que são, em geral, concebidas por agentes com
maior capital social em seus determinados campos, seja o jurídico, o jornalístico, o
acadêmico, etc. (BOURDIEU, 2001). Nesse sentido, quando se fala não há apenas a
transmissão de uma mensagem e a sua recepção, mas sim a disputa pela valorização ou
desvalorização dos discursos que circulam nesses campos.
Do dito depreende-se que a relação dos sujeitos com a linguagem não se dá de forma
inocente e desprovida de sentidos. Trabalha-se, no discurso, na verdade, com a construção
desses sentidos por meio da articulação dos poderes simbólicos carregados de ideologia.
Dessa forma, pode-se dizer que é a ideologia que torna possível a relação entre o que se
pensa, o que se fala, e a influência que essa fala exerce sobre a construção da sociedade,
sua prática discursiva e social.
52
3. O ABORTO NA AUDIÊNCIA PÚBLICA DO SUPREMO TRIBUNAL
FEDERAL
53
nas mais recentes, a sua estrutura não respaldou essa disputa institucionalmente já que
passou a se adotar um cronograma ordenando as apresentações.
De toda forma, a eficácia das audiências, atingida ao fornecer conteúdo técnico-
científico aos ministros trazendo esclarecimentos sobre a matéria discutida, depende de
alguns fatores. Inicialmente, por óbvio, ela precisa acontecer, ou seja, o ministro relator
decide atribuir status de relevância à matéria discutida. Em seguida a escolha dos
expositores também depende do ministro relator, que convida ou aceita a inscrição de
pessoas que considera ter experiência e autoridade na matéria. Além disso, o intuito de
cooperação depende da postura dos expositores.
A audiência pública no STF, em regra, não suporta intervenções externas, ou seja,
apenas aqueles que foram inscritos para falar possuem espaço para isso e nem o público
que assiste e nem os ministros ou outros componentes da mesa como Procurador ou
Secretários se manifestam. Depende também de decisão do relator a ordem de
apresentações, a possibilidade de perguntas aos expositores e o tempo destinado a cada
exposição, que geralmente é enviada antecipadamente em texto. Os fatores de ordem e
tempo de apresentação serão cruciais para a possibilidade de interação entre os
expositores, pois aqueles que se apresentam depois podem referir-se aos anteriores ou
ainda modificarem de alguma forma seus discursos tanto para não serem repetitivos
quanto para rebaterem argumentos anteriores.
Algumas pesquisas destacam que muito embora a função da audiência pública seja
fornecer subsídios aos ministros, em algumas situações verifica-se que elas não
influenciam seus votos (VESTENA, 2010; FRAGALE FILHO, 2015). A ausência dos
ministros na audiência, ou ainda de menção ao conteúdo produzido na audiência em seus
votos, contudo, não maculam o objetivo principal, que é garantir a participação da
sociedade na discussão sobre as matérias judicializadas, ainda que com suas limitações.
Finalmente, cabe registrar que a presença de entidades da sociedade na audiência
como forma de participação nas decisões do Estado é de suma importância para conferir-
lhes maior legitimidade. Ela fortalece o sistema de freios e contrapesos entre os poderes
estatais por um maior controle social da atuação do Estado como acontece, por exemplo,
nas audiências realizadas para oitiva dos cidadãos em relação a temas discutidos pelo
Legislativo e pelo Executivo e que, agora, se estendem ao Judiciário, mais
especificamente, ao STF na análise das ações de controle de constitucionalidade.
A audiência pública em debate foi suscitada pela Ação de Descumprimento de
Preceito Fundamental, ADPF nº 442/2017, proposta pelo Partido Socialismo e Liberdade
54
(PSOL), que possui legitimidade para propositura da ação por se tratar de partido político
com representação no Congresso Nacional. Em sua petição, o PSOL requer “a não
recepção parcial dos Art. 124 e 126 do Código Penal, para excluir do seu âmbito de
incidência a interrupção da gestação induzida e voluntária realizada nas primeiras 12
semanas” por incompatibilidade com o texto constitucional27.
Como se trata de uma norma anterior à Constituição de 1988, o Partido não se refere
à constitucionalidade/inconstitucionalidade, mas sim, especificamente, à recepção /não
recepção da norma. A análise do STF, nesse caso, foca em identificar se aquela norma,
que foi elaborada sob a égide de uma ordem constitucional anterior, é compatível com a
nova ordem constitucional. Essa recepção/não recepção pode ser total, quando a norma é
inteiramente extirpada do ordenamento jurídico, ou parcial, quando apenas parte do seu
texto (ou de seu âmbito de incidência) é atacado. Esse último é o caso do pedido do PSOL,
pois ele pretende a não recepção parcial da norma por infringência aos princípios
fundamentais da dignidade da pessoa humana, da cidadania, da liberdade e autonomia da
pessoa, etc.
Conforme argumentação do partido, esses princípios deveriam ser observados para
que as mulheres pudessem agir de acordo com a sua autonomia, sem necessidade de
qualquer forma de permissão específica do Estado, bem como para que os profissionais
de saúde tivessem o direito de realizar o procedimento sem medo de retaliações. Nesse
sentido, a dignidade humana e cidadania estão associadas às condições de que a mulher
dispõe para decidir se, como ou quando ter filho(s), na medida em que conformam a
capacidade delas de se autodeterminar, de forma a realizar seu projeto de vida. A violação
ao direito à vida, integridade física e psicológica, saúde, não submissão a práticas de
tortura ou tratamentos desumanos é vislumbrada porque, sob a criminalização do aborto,
as condições são injustas: submetem as mulheres a riscos evitáveis de adoecimento e
morte, bem como a tratamentos humilhantes e degradantes em momentos de intensa
vulnerabilidade.
Além do mais, liberdade e autonomia são infringidas porque a criminalização
impede as mulheres de gozarem a vida conforme suas próprias concepções e
entendimentos pessoais. A igualdade é abalada porque há discriminação das decisões
reprodutivas da mulher, que está limitada a decidir conforme um padrão social da ética
religiosa e machista. O princípio da promoção do bem de todas as pessoas sem qualquer
27
Petição inicial da ADPF nº 442/2017. Disponível em
<http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5144865> Acesso em 23 set. 2019.
55
forma de discriminação é afetado porque a criminalização reproduz fatores como a
desigualdade de renda, cor e região, que torna algumas vidas mais precarizadas que
outras. O planejamento familiar é atingido porque é imposto extremo sofrimento às
mulheres quando buscam tomar decisões responsáveis sobre o futuro.
A petição traz ainda um embasamento em dados e informações de pesquisas de
instituições nacionais e internacionais e destaca, inicialmente, que a criminalização do
aborto:
(...) não é medida adequada nem necessária para alcançar a proteção ao valor
intrínseco do humano no embrião ou feto, ainda que se imagine ser um objetivo
constitucionalmente legítimo, já que não coíbe a prática nem promove meios
eficazes de prevenção da gravidez não planejada e, consequentemente, do
aborto, que exigem educação sexual integral, acesso a métodos contraceptivos
adequados, combate à violência sexual e fortalecimento da igualdade de
gênero. (Petição inicial, parágrafo 105).
28
Center for reproductive rights. The World’s Abortion Laws 2017. Disponível em:
<https://reproductiverights.org/worldabortionlaws>. Acesso em 14 out. 2019
29
Jatlaoui, Tara C. et al. 2013; United Kingdom, 2014; Weitz, 2013; World Health Organization, 2014,
parágrafo 107 da petição.
56
A ADPF foi distribuída à Ministra Rosa Weber, que passou a ser a relatora da ação,
que intimou as autoridades responsáveis (o titular do Executivo e o Legislativo), bem
como a Procuradoria Geral da República e a Advocacia Geral da União para se
manifestarem sobre o pedido liminar. Em decisão publicada em 02 de abril de 2018,
diante da relevância da questão e dos diversos pedidos de entidades para participação da
ação como amici curiae, a relatora decidiu pela convocação de audiência pública para
discussão sobre a matéria, antes mesmo de decidir sobre os pedidos de amici curiae.
A regulamentação da ADPF, muito embora não faça referência a essa instituição -
os amici curiae - prevê a possibilidade de o relator da ação servir-se de “declarações, em
audiência pública, de pessoas com experiência e autoridade na matéria” (BRASIL, 1999).
O “amigo da corte” traduz a possibilidade de um terceiro que não seja parte no processo,
pessoa física ou jurídica, participar da demanda em análise no intuito de agregar
informações relevantes para auxiliar o Judiciário no deslinde da questão ou, ainda, como
destacam outros estudiosos: o “amicus curiae deve ser legítimo representante de um
grupo de pessoas e de seus interesses, sem que, contudo, detenha em nome próprio,
nenhum interesse seu, próprio, típico de qualquer interessado no sentido tradicional,
individual, do termo” (BUENO, 2013, p. 147). E, segundo a legislação em vigor, o amicus
curiae possui especialização e representatividade adequada para contribuir em razão da
relevância da matéria, da especificidade do tema ou da repercussão social da controvérsia
(CPC, Artigo138).
A relatora distinguiu, na convocação de audiência pública, amicus curiae e
participantes da audiência e isso porque ficou estabelecido que apenas após a realização
da audiência seriam decididos os pedidos de amici curiae. Essa diferenciação importa na
medida em que cabe ao julgador definir os poderes dessa instituição. Ou seja, o mero
convite ou aceite do requerimento para participação na audiência pública, ainda que tenha
configurado, na prática, a atuação com as mesmas características do amicus curiae, não
qualifica seus participantes como tais, pendente ainda o deferimento ou convite do
tribunal para ingresso na demanda nessa qualidade e a definição da abrangência dos
poderes deles pela relatoria.
Na decisão de designação, a Ministra reconhece que se trata de um tema jurídico
sensível e delicado, que envolve razões de ordem ética, moral, religiosa, saúde pública e
tutela de direitos fundamentais individuais e ressalta que a experiência jurisdicional
comparada demonstra essa realidade. Assim, a seu ver, na audiência seria imprescindível
contar com a presença de pessoas e instituições que contribuíssem com conteúdo nas mais
57
diversas áreas de conhecimento, diante da complexidade da controvérsia e também para
construir: “a razão pública que legitima a atuação da jurisdição constitucional na tutela
de direitos fundamentais”30.
Esclarece-se que além da representatividade, especialização técnica e expertise do
expositor ou da entidade interessada, outro critério primordial para a seleção dos
expositores foi a garantia da pluralidade da composição da audiência e das perspectivas
argumentativas a serem defendidas, como forma de se assegurar a legitimidade do
processo de tomada de decisão. Foram recebidos 502 e-mails relacionados à audiência,
dentre estes, 187 com pedidos de habilitação como expositor; 150 manifestações de
pessoas físicas em apoio à inscrição de alguma pessoa com autoridade e reconhecimento
na matéria, e o restante com pedidos de esclarecimento.
Reforçaram-se os critérios que foram utilizados na seleção para exposição,
ressaltando a impossibilidade de deferimento de todos os pedidos em razão do tempo a
ser dispensado para a audiência e designaram-se os dias para realização da audiência, a
metodologia das apresentações e a programação das exposições com pedidos deferidos e,
em razão da inclusão de novos participantes, foi estabelecida nova programação de
exposições (Anexo A).
A título de organização deste trabalho os participantes foram divididos, primeiro,
de acordo com a posição adotada em relação à descriminalização (favorável ou contrário)
e, segundo, de acordo com o tipo de entidade: (i) entidades estatais; (ii) associações não
governamentais de cunho expressamente religioso; (iii) associações não governamentais
de cunho não religioso; (iv) pessoas físicas (Anexo B). Dos 52 expositores 50
compareceram (a Sociedade Budista do Brasil e a Federação Nacional do Culto Afro-
Brasileiro, que não haviam indicado expositores, não estavam representadas).
De acordo com os critérios estabelecidos, dos 50 expositores: 06 eram entidades
estatais; 11 eram organizações expressamente religiosas; 30 eram associações não
religiosas; 03 eram pessoas físicas. Conforme exposto, foram classificadas como
associações religiosas apenas aquelas que evidenciassem em seu nome essa qualidade.
No entanto, dentre aquelas classificadas como associações não religiosas verifica-se, em
pesquisas em seus sites, que algumas fazem referência expressa à valorização dos
preceitos cristãos, como o Instituto de políticas governamentais; à “defesa da vida humana
desde a concepção até a morte natural” como a Associação nacional pró-vida e pró-
30
Decisão de designação da audiência da ADPF nº 442, datada de 02/04/2018. Disponível em
<http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=313996268&ext=.pdf> Acesso em 23 set. 2019
58
família e à “proteção dos direitos da família”, como a Associação de direitos de família e
das sucessões, a Frente parlamentar em defesa da Vida e da Família e o Movimento
nacional da cidadania pela vida – Brasil sem aborto.
Das 50 exposições, 17 foram contrárias à descriminalização e 33 foram favoráveis.
Das dezessete contrárias (Anexo B), 01 foi de entidade estatal; 06 de organizações não
religiosas; 08 de organizações religiosas; 02 de pessoa física. E das seis organizações não
expressamente religiosas que foram contrárias à descriminalização, em pelo menos cinco
é possível identificar nos seus sites que seus objetivos institucionais ou ainda seus
membros revelam estreita relação com religiões cristãs.
Muito embora não tenha havido muitas interferências ou manifestações dos
ministros e outros componentes da mesa durante a audiência – apenas em alguns
momentos quando solicitado silêncio ou para apresentação dos expositores – após a
manifestação do representante da CNBB, a ministra Carmen Lucia (presidente do
Tribunal à época e que até aquele momento presidia também a sessão da audiência)
manifestou-se na defesa da legitimidade do STF e com postura crítica às declarações do
segundo expositor da Conferência, o que significa rebater um dos principais argumentos
daqueles que são contrários à descriminalização.
Como os expositores enviaram antecipadamente suas falas ao Tribunal e tinham
tempo determinado para desenvolvê-las, houve pouco espaço para improvisações ou
referências a falas anteriores, o que aconteceu apenas de forma superficial e geral,
principalmente pela Conferência, que se referiu criticamente às exposições favoráveis à
descriminalização ocorridas na sessão do dia anterior.
Na audiência, aparentemente, tem-se um estilo discursivo expositivo, no sentido de
que os oradores não atuam como partes interessadas no processo, mas como auxiliares do
juízo. No entanto, claramente, está-se diante de uma estrutura argumentativa, pois os
expositores, apesar de não interagirem diretamente entre eles e nem com o público, tentam
convencer os espectadores. O momento de interação entre os expositores e o público
ocorre no final de cada exposição quando aqueles que falaram são aplaudidos e, às vezes,
durante as apresentações quando o público manifesta algumas reações de agrado ou
desagrado, mas que, sempre que possível, a relatora do processo solicita que essas
manifestações não aconteçam.
Já a interação entre os expositores ocorre no final da sessão de exposições, quando
se abre espaço para perguntas entre eles. Nesse momento, percebe-se que, em regra, as
perguntas são elaboradas não como dúvidas, mas no intuito de reforçar um
59
posicionamento, já que são direcionadas a expositores que defendem a mesma linha
argumentativa. Por exemplo, na terceira sessão da audiência, em que falaram as entidades
religiosas, houve cinco questionamentos: do Movimento Católicas pelo Direito de
Decidir ao Instituto de Estudos da Religião; do Instituto de Estudos da Religião ao
Movimento Católicas pelo Direito de Decidir - ambos favoráveis à descriminalização –;
da CNBB à União dos Juristas Católicos de São Paulo; do Conselho Nacional do Laicato
do Brasil na Arquidiocese de Aracaju/SE à Associação dos Juristas Evangélicos, e da
União dos Juristas Católicos de São Paulo à Associação dos Juristas Evangélicos, todos
contrários à descriminalização.
Em relação ao uso, pelos expositores, de recursos visuais como slides ou ainda
objetos para ilustrar as suas falas, isso não ocorreu em muitas oportunidades durante a
audiência. No dia em que falaram as entidades representantes de religiões, dentre dez
expositores apenas o Conselho Nacional do Laicato do Brasil na Arquidiocese de Aracaju
(CONAL) e a Convenção Batista Brasileira, ambas contrárias à descriminalização,
trouxeram slides e ambos com poucas imagens, o que, em regra, chamaria mais a atenção
do público.
Muito embora fosse importante analisar as argumentações de cada expositor e
estudar os objetivos e o histórico das pessoas físicas e organizações não governamentais
que participaram da audiência, o espaço desta pesquisa não nos permite fazê-lo. Por isso,
foram selecionados apenas dois discursos, um favorável e o outro contrário à
descriminalização do aborto para realizar a análise das intervenções pretendendo verificar
como a argumentação é utilizada para manter ou reformular a estrutura discursiva sobre
o aborto.
Ambas as posições foram defendidas por organizações ligadas à religião: a
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), pela qual falaram Dom Ricardo
Hoerpers31 e o padre José Eduardo de Oliveira e Silva32 e o Instituto de Estudos da
Religião (ISER) representado por Lusmarina Campos Garcia33.
31
Ricardo Hoerpers é doutor em Teologia Moral pela Academia Alfonsiana da Universidade Lateranense
em Roma na Itália. Atualmente ele é presidente da Comissão Episcopal Pastoral para a Vida e a Família.
32
Dom José Eduardo de Oliveira e Silva é licenciado em filosofia pelo Centro Universitário Assunção e
Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade de Santa Cruz em Roma.
33
A Doutora Lusmarina Campos é teóloga e tem uma trajetória internacional através do movimento
ecumênico do Conselho Mundial de Igrejas e da Federação Luterana Mundial, organizações engajadas com
a defesa da democracia, dos direitos humanos, da liberdade religiosa e da justiça de gênero; seu trabalho
conecta direitos humanos e teologia a partir de uma perspectiva de gênero.
60
Essa escolha obedece ao fato que a Conferência é a grande representante da Igreja
Católica no Brasil e já havia, inclusive, participado da audiência pública que discutiu o
aborto de fetos anencefálicos. Como representante oficial da religião católica no Brasil, ela
influenciou na elaboração da Constituição de 1988 mas enquanto se aproximava de temas caros
aos movimentos feministas, como trabalho, educação e saúde, seu documento Por uma nova
Ordem Constitucional34 deles se distanciava em pontos como o direito à contracepção e ao
aborto. Quanto ao ISER, “uma organização da sociedade civil, de caráter laico,
comprometida e dedicada à causa dos direitos humanos e da democracia”35, classificada
como ligada à religião, a escolha obedece ao fato que, no tocante ao aborto, a instituição
aborda o tema sob um prisma descolado da moral tradicional e patriarcal cristã utilizando-
se de uma estrutura discursiva contra-argumentativa favorável à descriminalização na
desconstrução das opiniões conservadoras que se utilizam da religião para defender a
posição contrária.
Ainda que a base argumentativa de muitos participantes da audiência (Anexo C)
seja semelhante dentro de cada posicionamento, ou seja, todos que defendem a
descriminalização sustentam argumentos parecidos, bem como aqueles que defendem a
posição contrária, existe uma contraposição mais direta e evidente entre a CNBB e o
ISER. A estratégia da argumentação contrária à descriminalização é objetivar-se com
argumentos técnicos e a da argumentação favorável é afastar-se da crítica do
individualismo reconhecendo a sujeição das mulheres e suas subjetividades.
Ambos os discursos, da CNBB e do ISER, seguem essa tendência e sua
especificidade é, justamente, situarem-se no campo religioso e servirem-se de argumentos
não declaradamente jurídicos, não declaradamente sociais, mas, sobretudo, religiosos,
como a Bíblia e os entendimentos produzidos sobre o aborto ao longo do tempo pela
Igreja.
Nos discursos dessas duas instituições36 pode-se observar a construção dos
significados ideacionais sobre a criminalização e/ou descriminalização do aborto no
âmbito da prática discursiva da religião e reconhecer que o discurso, ainda que originado
do mesmo campo, o religioso, pode ser no sentido da manutenção da posição dominante
ou ao contrário pretendendo reformulá-la, a depender dos recursos linguísticos
34
Disponível em <https://caminhosevidas.wordpress.com/2016/04/18/por-uma-nova-ordem-
constitucional/> Acesso em 15 set. 2018
35
Disponível em <http://www.iser.org.br/site/o-iser/> Acesso em 20 ago. 2019
36
Os discursos da CNBB e ISER foram extraídos de vídeos no canal do site youtube do STF. Disponível
em <https://www.youtube.com/watch?v=a2_4-xvdWYc&t=13924s> Acesso em 20 ago. 2019.
61
mobilizados. Por meio do reconhecimento de algumas marcas linguísticas, relacionadas,
por exemplo, à escolha de determinadas palavras em detrimento de outras; às estruturas
gramaticais utilizadas que aproximam ou afastam o sujeito dos discursos referidos
(interdiscursividade); ao uso de metáforas ou outras figuras de linguagem que conferem
significado aos discursos no sentido da manutenção ou da modificação da estrutura
discursiva e social vigentes.
Como visto, a ACD utiliza o conceito de hegemonia como o poder de um grupo
exercido sobre a sociedade como um todo por meio de alianças que se estruturam em um
equilíbrio instável. Com isso, as relações sociais são constantes lutas hegemônicas sobre
os pontos de maior instabilidade entre grupos em que se objetiva justamente a geração de
consenso para a construção, manutenção ou rompimento de relações de
dominação/subordinação. Baseado nisso, não é difícil identificar que os discursos do
ISER e da CNBB disputam a posição hegemônica em relação ao tema do aborto.
O aborto é um desses pontos de instabilidade em que a posição dominante pela
criminalização é ocupada por uma prática discursiva elaborada e sustentada pelo poder
simbólico da moral cristã, na qual a CNBB se baseia. Já os eventos discursivos que
defendem a descriminalização, conforme desenvolvidos pelo ISER, são influenciados por
argumentos feministas e pretendem romper com essa relação de subordinação. Ao
analisar os discursos presentes nos discursos contrário e favorável à descriminalização do
aborto veremos que a CNBB opera a ideologia de forma a legitimar a posição da Igreja
Católica como oficial e natural e muito dessa naturalização se deve ao suporte estatal.
Atualmente, o chefe do Poder Executivo federal, bem como grande parte dos
membros da câmara dos deputados reforçam esse posicionamento e, inclusive, se
elegeram em razão de sua base eleitoral oriunda de igrejas neopentecostais. O poder
histórico exercido pela Igreja Católica que moldou a prática discursiva sobre o aborto
fortalece-se e renova-se por via do poder das igrejas neopentecostais. Ademais,
associações religiosas fora do âmbito religioso, como associações de juristas e médicos
também vêm adensando o discurso com argumentos desses âmbitos.
Por outro lado, o ISER, que originalmente conjuga aspectos da vida em sociedade
com perspectivas da religião, no tema em discussão ele se articula bem com movimentos
feministas e associações civis em geral pautadas na defesa dos direitos das mulheres. Essa
disputa ideológica representa a luta hegemônica pela apropriação da produção, da
distribuição e da interpretação do discurso no campo da audiência pública da forma que
se verá adiante.
62
3.2 Discursos contrários à descriminalização do aborto na audiência pública do
STF.
Dom Ricardo, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, inicia sua exposição
elogiando a relatora por ter considerado o tema como envolto em uma série de aspectos,
morais, éticos e religiosos para, em seguida, afirmar que querem desqualificar a CNBB e
aquelas entidades religiosas que defendem a manutenção da criminalização do aborto
“como fanáticos e fundamentalistas religiosos”. Dessa forma, o expositor apresenta uma
possível crítica à sua argumentação e ainda realiza uma escolha de palavras que possuem
forte sentido pejorativo como “fanáticos” e “fundamentalistas religiosos”, para, em
seguida, apresentar a base de sua intervenção – a defesa da vida do feto – em forma de
“questionamentos”:
Onde está o fundamentalismo religioso em aderir aos dados da ciência que
controla o início da vida desde a concepção? Onde está o fanatismo religioso
em acreditar que todo atentado contra a vida humana é um crime? Onde está o
fundamentalismo religioso em dizer que queremos políticas públicas que
atendam à saúde das Mães e dos filhos? (CNBB, audiência pública ADPF nº
442/2017)
63
entanto, expositores representantes de outras religiões, inclusive, discordaram não da
necessidade de proteção à vida, mas do momento de seu início, apresentando outras
formas de consideração durante a audiência. Além disso, a própria religião católica, ao
longo do tempo, alterou seu entendimento sobre o momento de início da vida, conforme
previsto na Declaração sobre o aborto provocado (PAULO VI, 1974), que menciona que
na Idade Média havia uma diferenciação de espécie de pecado e da gravidade da sanção
de acordo com o momento em que a alma espiritual adentra ao corpo físico.
Para criticar as demais exposições da audiência favoráveis à descriminalização, a
posição de Dom Ricardo traz a ideia de que elas desvalorizam o feto e o tratam como se
estivesse diante de “uma vesícula biliar, de um rim, de um adendo que precisamos
extirpar, que está causando a morte das mulheres” e de que elas consideram ser
“necessário que a mulher supere e transcenda a imposição do papel materno. A ideia do
“desengravidar as mulheres””. Em seguida, afirma-se que não cabe a discussão sobre a
recepção constitucional dos Artigos 124 e 126 do CP e que negar essa recepção significa
negar “a capacidade de discernimento de todas as mulheres que optaram por não abortar
para salvaguardar os seus filhos”.
Essa posição, como a tendência de todo seu discurso, traz um sentimentalismo no
intuito de convencer o público em geral. Sua última declaração remete a certa competição
entre as mulheres, como se descriminalizar o aborto retirasse a honra moral daquelas que
resolveram ter a criança mesmo contra a vontade. E além da imposição da gravidez, o
foco unicamente na vida do feto e naquelas mulheres que “pensaram em abortar, mas não
fizeram, lembrando que é um atentado contra a vida” também ignora as particularidades
da mulher e suas necessidades e vontades impondo, além da gravidez, também o amor ao
feto:
O problema é que ninguém quer nominar esse inocente. Ele está apagado,
deletado, dos nossos discursos para justificar esse intento em nome da
autonomia e liberdade da mulher. Mas (...) naquele momento, a mãe já
escolheu o nome para o seu filho. (...) Como este Supremo Tribunal Federal
vai explicar a permissão da pena capital a um ser humano inocente e indefeso
para justificar a nossa incapacidade de políticas públicas de proteção à saúde
reprodutiva da mulher? (Grifo nosso) (CNBB, audiência pública ADPF nº
442/2017)
Sobre o direito à vida, ele reforça a todo momento que é “o mais fundamental de
todos os direitos”, que o Estado deve apenas garanti-lo e que descriminalizar o aborto
seria uma interferência contra a vida (dos fetos):
64
É assim que o Supremo Tribunal Federal vai garantir a inviolabilidade do
direito à vida? Dando uma arma chamada autonomia para que homens e
mulheres, no seu bel-prazer, interrompam a vida das crianças até a 12ª semana
sem precisar dar nenhuma satisfação do seu intento predatório? Esperamos que
não, pois o direito à vida é o mais fundamental de todos os direitos. Por isso,
mais do que qualquer outro deve ser protegido. Ele é um direito intrínseco à
condição humana e não uma concessão do Estado. Os Poderes da República
têm obrigação de garanti-lo e defendê-lo e não compete a nenhuma autoridade
pública reconhecer seletivamente o direito à vida, assegurando a alguns e
negando a outros. Essa discriminação é iníqua e excludente. 37 (CNBB,
audiência pública ADPF nº 442/2017).
37
Essa argumentação remete à declaração do Senador Magno Malta, que interveio nesta audiência pública
em nome da Frente parlamentar em defesa da vida e da família, na relatoria da Sugestão Legislativa nº
15/2014 (primeiro capítulo) quando afirmou que: “O Estado não pode interferir no livre desenvolvimento
de um ser humano no ventre de sua mãe”. Disponível em
<https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2018/02/05/magno-malta-pede-arquivamento-de-
sugestao-legislativa-que-legaliza-aborto> Acesso em 17 out. 2019.
65
vocês me deixaram viver”, de forma direta, para aproximar o público ouvinte de sua
posição sentimental.
Na sua intervenção, reforça o entendimento de que fala pela “maioria dos brasileiros
que são movidos, sim, pela fé em Deus, mas também pelo cuidado e defesa da vida por
essa fé”, trazendo a ideia de que esse é o pensamento da maioria da população, já que
segundo pesquisas do IBGE os católicos são a maioria da população. E termina de
maneira apoteótica, reforçando novamente que a sociedade ignora a identidade das
“crianças que morreram” e que apesar de não sabermos seus nomes, as “suas mães” já os
sabiam, o que fortalece a noção do amor materno incontestável e incondicional.
Retomando seu argumento nacionalista, Dom Ricardo insiste no fato de que
garantir a perpetuação da espécie é uma atitude patriótica, tanto que finaliza com frases
de efeito que remetem ao hino nacional:
66
descredita, ao mesmo tempo, o ministro do STF que será um dos responsáveis pela
decisão da matéria e também diversas reivindicações feministas. Ele aposta, assim, na
ignorância do público em geral sobre a atuação do movimento feminista para construir
um discurso de aceitação em torno de sua posição sobre o aborto.
Sobre a legitimidade da Corte, argumento recorrente geralmente de políticos que
são contrários à descriminalização, o padre afirma que “tanto esta audiência pública
quanto este processo não são legítimos”, uma vez que o tribunal estaria usurpando a
competência do Legislativo ao criar uma nova disciplina legal para o tema do aborto.
Além disso, para o padre José, nem mesmo o Congresso poderia “diminuir” o direito à
vida, pois por se tratar de cláusula pétrea da Constituição, apenas as restrições já previstas
em seu texto poderiam ser cogitadas, mas não ampliadas. No entanto, ele se contradiz em
sua afirmação, pois reforçando que o direito à vida é matéria constitucional, corrobora a
competência do STF de guardião da Constituição.
Ele finaliza sustentando que os números e estatísticas divulgados sobre aborto não
condizem com a realidade. Ele traz dados apresentados por outros expositores para
afirmar que “os números que foram aqui apresentados são 10 ou mais vezes maiores do
que a realidade.” No entanto, como o ISER vai destacar em sua explanação, não se pode
falar propriamente em ‘realidade’, pois diante da criminalização e estigmatização do
aborto, é difícil obter dados concretos e, por isso, trabalha-se apenas com estimativas.
Para o padre, “toda esta inflação é para poder concluir que onde se legalizou a
prática realizaram-se menos abortos do que no Brasil” e ele continua, fazendo
comparações numéricas entre o Brasil, sua população e outros países em que o aborto foi
legalizado, para demonstrar que esses países possuem altas taxas de abortamento:
Ele ressalta que seus dados são confiáveis, pois obtidos de estatísticas de outros
países. No entanto, embora o número de abortos por ano em cada país citado possa ser
um dado confiável – e frise-se, novamente, só pode sê-lo, porque por ser um procedimento
autorizado, é possível obter estatísticas mais confiáveis – isso não quer dizer que seus
cálculos com base nesses dados são confiáveis. Ele utiliza uma grande enumeração de
67
países e números exorbitantes impossíveis de serem verificados de plano, no intuito de
exagerar e assustar os ouvintes para desacreditar os dados sobre aborto no Brasil.
68
à igualdade em todos os seus aspectos e de maneira especial para a igualdade de gênero
e a liberdade religiosa”.
Para ela, a argumentação religiosa muitas vezes é usada para disseminar uma moral
cristã “patriarcalizada” que acaba por condenar o aborto como dogma religioso
irrefutável; e, de forma enfática - assim como Padre José, mas em sentido oposto para
reforçar que a condenação religiosa ao aborto faz parte de tradições religiosas construídas
historicamente - acrescenta:
Entende que a Bíblia não condena o aborto. Ao contrário de outros que tecnificam
sua argumentação para afastar-se da crítica ao “fanatismo religioso” - como, por exemplo,
Dom Ricardo na exposição da CNBB - o ISER ataca, com a própria doutrina religiosa, a
estrutura discursiva de dominação sobre as mulheres, realizando verdadeira contra-
argumentação. Essa argumentação desempenha uma função de subsidiar a revisão da
prática discursiva dominante em que se estrutura uma prática social que mantem a divisão
estratificada de papeis entre homens e mulheres na sociedade e, especificamente, na
família.
Como ressaltado no capítulo anterior, a posição hegemônica da religião católica é
de que a doutrina religiosa sustenta a criminalização do aborto e que essa posição é certa
e inquestionável. Já o discurso do ISER utiliza a própria doutrina religiosa, ou seja,
trabalha no mesmo campo discursivo questionando essa certeza que se baseia, na verdade,
no exercício da força simbólica da moral religiosa patriarcalizada.
Lusmarina utiliza o gênero como uma “chave de leitura para as relações humanas”
e, fazendo-o, ela, ao mesmo tempo, critica a prática hegemônica de utilização da ideologia
de gênero como forma de exclusão e reforça que a criminalização do aborto impede a
obtenção da “verdade” de dados confiáveis e, consequentemente, o desenvolvimento de
políticas públicas. Diferentemente da CNBB que utiliza a ausência de dados confiáveis
como uma causa, ou seja, a ausência de dados seria um motivo para a manutenção da
criminalização, o ISER a considera uma consequência, de forma que se o aborto fosse
descriminalizado seria possível obter dados mais precisos e, assim, aperfeiçoar as
políticas públicas sobre a matéria.
69
Quanto à obtenção da verdade, esse é o primeiro dogma religioso que a expositora
questiona. Em seus discursos, o Papa e bispos sempre falam da importância da obtenção
da verdade e “é o que ensina o texto bíblico: Conhecereis a verdade e a verdade vos
libertará”. Isso é observado, por exemplo, nas encíclicas e declarações religiosas citadas
no primeiro capítulo. No entanto, a criminalização do aborto prejudica a obtenção da
verdade, pois “a falta de acesso a dados reais cria o falseamento sobre a realidade e pode
fomentar os malefícios resultados da falta de clareza”, justamente do que se utilizam a
CNBB e outros expositores contrários à descriminalização.
Ela destaca que “há apenas dois textos do Antigo Testamento que mencionam o
aborto.” O primeiro em Êxodo 21 e o segundo em Números 5. Aquele menciona que se
uma mulher fosse ferida e abortasse, o agressor deveria pagar uma indenização ao seu
marido e o segundo relata um aborto ritual praticado por um sacerdote para comprovar a
infidelidade de uma mulher: ela “era forçada a ingerir o que atualmente se denomina
‘cadaverina’, que é um elemento que se encontra em matéria orgânica morta. Se a mulher
abortava depois de ingerir a água, estava comprovado que ela tinha sido infiel e o marido
podia puni-la inclusive com a morte por apedrejamento”.
Ambos exemplos citados pela Dra. Lusmarina demonstram, portanto, que o texto
base da religião católica não condena o aborto e, pelo contrário, autoriza sua prática
quando para defesa da honra do homem. Esse entendimento transferiu-se ao âmbito
político e, assim, ao ordenamento jurídico por meio da criminalização do adultério e da
inclusão das duas exceções à punição do aborto previstas no CP. Ambas as exceções
relacionam-se (i) à manutenção da família – vida da mulher – e (ii) da honra do esposo –
gravidez resultante de estupro – ainda que oficialmente não se justifiquem dessa forma.
Além das duas menções no Antigo Testamento, o Novo Testamento revela apenas
um registro da palavra aborto, “em primeiro Coríntios 15 e 18, onde o apóstolo Paulo
refere-se a si mesmo de maneira metafórica como ‘um aborto’, pois era o menor dos
Apóstolos”. Com isso, as conclusões a que chega a representante do ISER é que “não há
na bíblia nenhuma referência ao momento de início da vida, de que não há condenação
expressa do aborto” e, por outro lado, de que “há, inclusive, incentivo ao aborto no caso
de infidelidade”, como uma forma de garantir a honra do homem.
E continua afirmando que o ‘argumento bíblico’ utilizado para criticar o aborto é o
mandamento ‘não matarás’. No entanto, ela destaca que no período a que se atribui a
elaboração da bíblia, “este mandamento não tinha caráter universal, não tinha aplicação
universal”, pois “podia-se matar estrangeiros, podia-se matar os inimigos de Israel, podia-
70
se matar as mulheres adúlteras” e, portanto, não se pode inferir que este mandamento se
refere aos embriões, já que “há 108 textos no antigo testamento nos quais Deus manda
matar mulheres, meninas, meninos ou varões adultos.”
O apanhado bíblico realizado pela expositora demonstra que “a vinculação entre o
Quinto Mandamento e o aborto é uma flagrante manipulação do texto bíblico” realizado
pelo “patriarcado Eclesiástico” para que as mulheres religiosas se sintam assassinas
descontinuando sua gravidez e para que a sociedade como um todo acuse disso todas as
mulheres que abortam. Sua leitura sobre o quinto mandamento remonta a noção de que
apenas aqueles indivíduos considerados cidadãos pela soberania do Estado poderiam ser
sujeito dos direitos por ele garantidos (MOYN, 2010), como a proteção à vida nesse caso.
Transpor esse entendimento para os dias atuais, com a manutenção da criminalização do
aborto, significaria desconsiderar as mulheres como cidadãs, o que embasa a
reivindicação do movimento feminista de que o direito ao aborto seria imprescindível
para garantir o pleno exercício da cidadania pelas mulheres.
Por isso a noção de habitus é tão importante para a ACD. Apenas levando em
consideração o contexto social em que determinado discurso é proferido é possível
identificar as interpretações que ele pode assumir. No entanto, em relação aos textos
bíblicos, sua interpretação é realizada com base nos conceitos atuais. Dessa forma, o
argumento de que uma das bases religiosas para a condenação do aborto seria o quinto
mandamento – não matarás – carece de contextualização e é apenas uma forma de
interpretação.
Reforçando a noção de que a estrutura discursiva da sociedade não surge de um
conjunto de ideias livres e soltas nas cabeças das pessoas, mas de uma prática social que
está enraizada em estruturas sociais materiais que a moldam, Lusmarina destaca que as
mulheres, no cristianismo, “ficaram fora do processo de redação, recompilação e
canonização dos textos bíblicos” e que no decorrer do tempo “elas não só permaneceram
excluídas, mas foram culpabilizadas pela entrada do pecado no mundo, foram
demonizadas como bruxas, e esvaziadas da sua condição de ser autônomo”.
Portanto, esse panorama de exclusão e culpabilização das mulheres que se reproduz
atualmente, sendo uma de suas manifestações a criminalização do aborto, foi construída
e reforçada pelo cristianismo ao longo do tempo e o discurso que se pretende técnico,
jurídico e científico se estrutura na manipulação das “hermenêuticas bíblicas para
pontificar o que Deus não disse”. A intenção da expositora é, também, desassociar a
continuidade da gravidez ao cumprimento de uma lei da natureza ou à aceitação de uma
71
benção divina e vinculá-la a critérios de autonomia e cidadania afirmando que “A
capacidade de gerar uma vida, uma vida nova, é muito mais do que cumprir uma lei da
natureza, da sociedade ou da religião, ela precisa ser uma decisão refletida de homens e
mulheres que possuem a capacidade de escolher ter filhos e filhas amadas e desejadas.”
Lusmarina faz questão de frisar que essa será a base de sua argumentação. E essa
é, também, a estrutura da análise do discurso: não existe discurso livre de ideologia. A
força e a coerência do discurso são construídas no momento de sua produção e de sua
interpretação. O discurso só é coerente quando atrelado às experiências pessoais e às
relações sociais que formam o contexto social de cada indivíduo e sua força varia também
de acordo com o contexto de produção e interpretação.
Isto posto, a condenação religiosa do aborto é apenas uma interpretação conferida
ao texto bíblico ao longo do tempo e por aqueles que possuíam e possuem poder para que
este tipo de discurso se tornasse a prática discursiva disseminada no campo religioso. O
poder da Igreja Católica na organização da sociedade somada a sua estrutura patriarcal
transformou essa prática discursiva de condenação do aborto em prática social, que
passou a ser disciplinada legalmente.
O objetivo da representante do ISER é trazer à consciência que essa prática social
de criminalização do aborto é carregada de uma ideologia que restringe o alcance de
direitos às mulheres, porque é baseada em uma prática discursiva em que o papel da
mulher só é valorizado quando exercido pelo bem da família. Após esse primeiro passo,
de tomada de consciência, a contra-argumentação à posição dominante é reforçada a todo
tempo em seu discurso, ressaltando que o sentido de qualquer religião é de acolhimento
e não de condenação e que esse caráter fraternal não pode ser seletivo apenas àquelas
mulheres que decidam continuar uma gestação, mas a todas as pessoas, sem distinção de
gênero ou de escolha de vida.
Muito embora a Igreja Católica tenha grande atuação no âmbito social, por
exemplo, no acolhimento de crianças abandonadas e pessoas necessitadas, em seus
documentos oficiais sobre a família fica bem claro que a doutrina cristã católica é
contrária a qualquer interferência humana na vontade divina relacionada à reprodução da
espécie. Nessa visão, o planejamento familiar deveria ser exercido apenas evitando a
relação sexual e para aqueles que gostariam mas não conseguem ter filhos, a saída é
aceitar a vontade divina, pois a religião é contrária tanto às formas de contracepção quanto
à reprodução assistida.
72
Ao contar uma experiência pessoal, de quando foi pastora em Genebra, na Suíça, a
Dra. Lusmarina almeja aproximar o público tanto de si quanto do assunto como um todo.
E consegue, no caso, pois após sua explanação ela é fortemente aplaudida. Ela relata que
foi chamada a consolar um casal australiano que havia decidido realizar um aborto, pois
“essa foi a decisão possível para eles naquele momento”. Ela exalta que o aborto na Suíça
não é criminalizado e que a Igreja foi chamada a consolar, apoiar, prestar solidariedade,
o que “poderia ser uma ação diaconal das igrejas para casais e para mulheres que vivem
em situações similares. A nós [religiosos ordenados], cabe levar o consolo, ouvir as dores,
orar junto, perdoar, jamais condenar, jamais criminalizar”.
Como vimos no capítulo anterior, a produção e interpretação dos discursos são
extremamente afetadas pelas experiências pessoais dos narradores e intérpretes. Nesse
caso, a ACD permite observar que a representante do ISER fala de forma mais
aproximada, como alguém que conviveu pessoalmente com situações de aborto e
pretende demonstrar essa aproximação ainda no intuito de legitimar seu discurso.
Ainda que Dom Ricardo, da CNBB, também tenha feito referência a casas de
acolhimento e desenvolvido uma narração com elementos sentimentais - como ao atribuir
um discurso de agradecimento a crianças nascidas apesar do desejo inicial das mulheres
em abortarem -, a Dra. Lusmarina é mais específica e refere-se a um acontecimento
particular em que seu intuito é que o ouvinte seja capaz de visualizar e, de certa forma,
colocar-se no lugar de uma pessoa real que enfrentou uma dificuldade real. De toda forma,
a interpretação ou absorção do discurso dependerá do contexto social de cada um, de suas
experiências pessoais e coletivas.
Em relação à importância da laicidade do Estado para a garantia da igualdade, ela
afirma que a noção de Estado laico surgiu no século XVI, com a reforma protestante,
quando Lutero “desenvolve aquilo que ficou conhecido como a doutrina dos dois reinos
– sendo um reino secular, do Estado, e o outro reino espiritual da igreja”. Dessa maneira,
ressalta a imprescindibilidade da laicidade como elemento da “defesa da liberdade de
pensamento como elemento fundamental da nossa vida em sociedade”.
Na sua explanação, faz referência ao momento em que se iniciou a contraposição
entre ética e política com a saída da Igreja da política de forma oficial. No entanto, o
poder e influência da religião permaneceram – e permanecem – influenciando os
discursos e políticas desenvolvidas em certa maneira, em alguns pontos de forma mais
evidente do que em outros, como é o caso das políticas sobre direitos sexuais.
73
É por essa razão que o princípio da laicidade do Estado nos é tão caro e é por
essa razão que hoje continuamos alertando sobre a necessidade de
estabelecermos leis laicas, justas para evitar a utilização do direito canônico ou
o conjunto conceitual e valorativo de uma ou outra religião como uma
ferramenta reguladora e jurídica da vida social de todos os cidadãos crentes e
não-crentes e até mesmo sem religião. (ISER, audiência pública ADPF nº
442/2017).
A expositora ressalta que “um Estado laico não é um Estado ateu, mas é um Estado
que não confunde os conceitos de crime e de pecado e nem se orienta por leis religiosas”.
Podemos utilizar como exemplo o crime de adultério, que se tratava de clara transferência
para o direito penal a abordagem jurídica de uma ação que, pela Igreja Católica e pela
moral cristã, é considerada um pecado. Nesse mesmo direcionamento alega, também, que
“as sanções do Estado não podem punir aqueles e aquelas que violem interesses ou
dogmas das igrejas cristãs ou de outras religiões” e isso para garantir a diversidade e a
pluralidade dos interesses da sociedade.
Por fim, sempre com um discurso tolerante, como uma pessoa religiosa abraçando
outras crenças, ela oferece acolhimento às mulheres que fizeram aborto. Diferentemente
da CNBB, esse acolhimento é às mulheres como um todo, incondicional, e não apenas às
‘mães’. Ela ressalta novamente que “a característica mais fundamental desse Deus que
Lutero descobriu é a graça, é amor que se abre em aceitação”. Ela se dirige diretamente
às mulheres, novamente para prender a atenção, aproximar o público, fortalecer a imagem
das mulheres para si mesmas e reforçar a legitimidade do STF para apreciar a matéria, já
que se discute um preceito constitucional.
Mulheres: - vocês são pessoas amadas, dignas e livres para escolher o seu
presente e o seu futuro e para planejar a sua vida e a da sua família. E é esta
dignidade pessoa de profunda humana, autônoma, que o Estado brasileiro,
através desta corte, está chamado a garantir. Às vezes, é preciso decidir contra
majoritariamente para produzir a justiça e para implementar a paz (ISER,
audiência pública ADPF nº 442/2017).
74
Em suas últimas palavras, a expositora reforça que o tema central do aborto afeta
religiosos e não religiosos e que, por isso, deve pautar-se unicamente no âmbito político
– constitucional – e não em uma moral religiosa. No entanto, enquanto para a CNBB
considerar o aborto tema constitucional significa reconhecer a manutenção da
criminalização para proteção da vida – do feto –, para o ISER, a descriminalização é
necessária para garantir, além da vida – da mulher – também princípios como igualdade
e cidadania.
75
trabalhos, sem prestar manifestações pessoais, já que os ministros não têm a obrigação de
responderem a eleitores.
Identificando isso, os expositores, embora, conforme requer a polidez do campo
jurídico, saudassem os ministros e componentes da mesa, se direcionavam, claramente,
ao público em geral. Da mesma forma, a predominância de argumentos jurídicos e
científicos é compreensível no âmbito de uma ação judicial, pois conferem maior
legitimidade às exposições, ainda que alguns expositores tenham lançado mão de recursos
mais subjetivos, sentimentais, como narração de experiências pessoais ou de histórias
comoventes. Ambos os discursos para representar a argumentação favorável e contrária
à descriminalização do aborto, o da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil e do
Instituto de Estudos da Religião, demonstraram essas características e representaram bem
os argumentos utilizados no decorrer da audiência pública.
A manifestação do público também variou bastante entre as duas exposições, de
forma que em pelo menos duas oportunidades houve manifestação favorável durante a
apresentação do ISER e favorável também à intervenção da ministra Carmen Lucia.
Deve-se levar em conta que na parte da manhã do segundo dia de audiência, apenas
entidades religiosas se apresentaram e que a CNBB foi a primeira expositora, programada
para as 08:30 horas da manhã, já o ISER apresentou-se por volta das 09:50 horas da
manhã, de forma que se imagina que haveria um público maior na segunda do que na
primeira.
Ambas são instituições que utilizam a religião como base argumentativa, mas em
sentidos opostos. A Conferência, claramente, dividiu sua exposição em dois momentos
distintos, alterando, inclusive, o expositor para essa marca ficar bem evidente. Falam em
nome da CNBB dois bispos, em um primeiro momento, de forma mais sentimental e
caridosa, sinaliza de forma direta ao público, com questionamentos e declarações
acolhedoras que ressaltam que a defesa da vida - do feto - é o principal argumento a ser
levado em consideração. Já em um segundo momento, de forma mais incisiva e com
postura crítica de ataque ao Judiciário e, especificamente, ao STF, os representantes da
Conferência trazem argumentos de cunho jurídico e técnico de forma mais objetiva com
dados numéricos que questionam informações geralmente utilizadas por setores
favoráveis à descriminalização. No entanto, apesar de aparentemente técnica, a exposição
foi extremamente emocionada.
O ISER, por outro lado, trouxe uma pastora que lhe representou mantendo a todo
momento um tom equilibrado, também se direcionando ao público em alguns momentos
76
e trazendo experiências pessoais para aproximar-se dele. Ela baseou sua argumentação
na defesa da autonomia da mulher, ressaltando que a criminalização é a representação da
sua exclusão construída ao longo do tempo pelo domínio da Igreja patriarcalizada. Sua
estrutura argumentativa foi mais no sentido de uma contra-argumentação religiosa,
questionando ‘de dentro’ a alegação de que a tradição religiosa sempre foi contrária ao
aborto em qualquer momento da gestação e trazendo de forma transversal a questão da
dominação de gênero.
As exposições permitem identificar que a CNBB opera sua argumentação de forma
a manter a posição hegemônica atual de criminalização legal, social e moral da mulher
exercida pela reprodução de aspectos da sociedade baseada na moral cristã
patriarcalizada, enquanto o ISER exerce o papel que pode ser chamado de contra-
hegemônico, no sentido que pretende reformular essa prática discursiva trazendo ao
conhecimento do público interpretação diferenciada a preceitos da religião cristã
demonstrando que uma leitura baseada na liberdade de escolha não atinge os postulados
religiosos mais do que os “postulados” do patriarcalismo.
O ISER, portanto, e todos os discursos favoráveis à descriminalização do aborto
têm a função mais árdua de alterar a posição hegemônica e, por isso, precisam de maior
esforço discursivo, maiores justificações, maior quantidade de alternativas de argumento,
inclusive, e, obviamente, maior qualidade argumentativa para transformar uma realidade
já posta. O interessante é que além de seu papel discursivo 'geral', de levar à consciência
a dominação do discurso hegemônico dominante, o ISER, como integrante do campo
religioso e possuindo maior familiaridade com esse campo de conhecimento, opera
melhor esse tipo de argumento e demonstra uma maior perspectiva de alcance àqueles
ligados à religião e que podem reconhecer o cabimento dessa nova interpretação.
77
CONSIDERAÇÕES FINAIS
78
Os discursos analisados, em resumo, demonstram que tanto a argumentação
contrária à descriminalização quanto a favorável fundamentam a representação social do
aborto na noção de proteção ao indivíduo. Contudo, o que os difere é o sentido dado ao
indivíduo, ou seja, quem é esse indivíduo que deve ser protegido. Os contrários à
descriminalização mantêm uma estrutura hegemônica do poder exercido pela moral cristã
patriarcal, mas os discursos desenvolvidos na audiência pretendem convencer os ouvintes
do contrário, afirmando que o feto, como indivíduo, deve ser protegido em seu bem maior
que é a vida. Por outro lado, a defesa da descriminalização pretende escancarar essa
dominação desenvolvendo um discurso crítico, contradominante no sentido de que as
mulheres enquanto indivíduos não podem ser ignoradas no exercício de sua autonomia.
Ainda que o primeiro expositor da Conferência se refira às mortes de mulheres em
decorrência de aborto como “perdas irreparáveis”, em seguida ele reforça que seu foco é
nas “crianças que morreram com suas mães”, sem considerar as condições em que esses
abortos foram realizados. Já o segundo expositor, quando questiona os dados sobre aborto
apresentados, também simplifica a questão ao tratar as mulheres unicamente como dados
percentuais sem rostos ou sem subjetividades. A função da mulher para essa visão
religiosa é unir-se ao homem em família – heteronormativa, proveniente do casamento e
com o fim de perpetuação da espécie – para exercer obrigatoriamente o papel da
maternidade com responsabilidade.
O conceito de família que, aparentemente, é algo constituído e definido é, na
verdade, disputado pela religião e por movimentos defensores dos direitos sexuais. É uma
das instituições mais caras às religiões porque tem o importante papel da perpetuação da
espécie humana e propagação dos ideais cristãos. Para cumprir esses objetivos, são bem
definidos os papeis de pai, mãe e filhos dentro dessa família, ou seja, existe uma formação
identitária que reforça a diferenciação entre os membros da família e as ações e reações
esperadas de cada um desses membros.
Diferentemente, o discurso favorável à descriminalização vislumbra as mulheres
como indivíduos completos, formados em suas particularidades físicas e sociais, com
atributos corporais e psicológicos particulares que lhe conferem o direito a uma proteção
legal e política diferenciada. Esse discurso pretende desconstituir o determinismo
resultante de práticas sociais e discursivas que as restringem a alguns espaços de atuação.
Defende que, como sujeitos de direitos, assim como os homens, não cabe a manutenção
de estruturas sociais que exerçam dominação sobre a mulher e a impeçam de
individualizar-se fora do núcleo familiar imposto pela moral religiosa.
79
No discurso da CNBB foi possível observar a tendência argumentativa dos grupos
contrários ao aborto. Durante décadas a fundamentação foi, explicitamente, baseada em
preceitos da moral cristã. Agora, setores religiosos ou alinhados a este escopo, amparam-
se em dados, porcentagens, estudos comparativos, releitura de documentos e pesquisas
feministas que são utilizados para fundamentar argumentos contrários ao aborto.
Conforme previsto no primeiro capítulo, essa nova conformação argumentativa relaciona-
se à configuração sócio-política propiciada pelo avanço do pentecostalismo em nível
político e à articulação entre setores religiosos de outras linhas dentro das Casas
Legislativas em torno da agenda repressiva dos direitos sexuais. O intuito dessa
articulação é ganhar força para aprovação de legislação restritiva e barrar as propostas em
sentido contrário, mas sempre conferindo um ar de laicidade às suas práticas e
justificativas.
Os grupos contrários ao aborto confundem a condenação do aborto com a
manutenção da criminalização de sua prática. O que se discute na ação não é o incentivo
ou a crítica ao aborto, mas sim a manutenção, ou não, da abordagem penal de sua prática
por parte do Estado. Nesse intuito, confunde-se também a ideia de laicidade, pois nessa
visão, a defesa da laicidade pelo grupo contrário – favorável à descriminalização – é
tratada como uma forma de desvalorizar discursos religiosos apenas pelo fato de serem
religiosos.
Em contraposição, a defesa da laicidade emergiu como um recurso dos grupos
favoráveis à descriminalização do aborto. Mediante a defesa da separação entre Estado e
religião pretende-se desmontar argumentos baseados na religiosidade e na moral cristã
para demonstrar que mesmo quando encobertos pelo manto da legalidade, da
cientificidade, da tecnicidade, tratam-se, na verdade, de manifestações da influência da
religião na política. Nesse sentido, a laicidade é um requisito para o pleno exercício da
cidadania, na medida em que apenas garantindo a pluralidade de opiniões sem a
interferência de dogmas religiosos nos objetivos do Estado pode-se alcançar a proteção
dos direitos constitucionais à liberdade.
Um grande desafio dos grupos favoráveis à descriminalização é afastar-se da crítica
ao individualismo. Com frequência, o conceito de indivíduo universal, despido de
particularidades e que merece ter seus direitos respeitados em detrimento de outros fatores
pelo simples fato de ser pessoa, é utilizado por aqueles que são contrários à
descriminalização para defender que, nessa perspectiva, o feto é ignorado e o coletivo é
prejudicado.
80
No entanto, novamente, é possível identificar que essa crítica se origina na
perpetuação da dominação da moral cristã sobre as mulheres. Para a Igreja, o que deve
ser garantido, acima de tudo, é a manutenção da família e caso a mulher exercesse sua
autonomia, estaria pensando em si e ignorando a ‘vontade do feto’ ou a vontade do pai,
mas, mais importante, a vontade de Deus. Nesse ponto, o discurso favorável à
descriminalização pretende reformular a visão de autonomia para demonstrar,
primeiramente, que garantir o direito ao aborto legal à mulher é, na verdade, beneficiar
toda a coletividade. Como a dominação da mulher é uma questão cultural e historicamente
constituída, trata-se de um problema coletivo e não de uma mulher em particular. É uma
questão social e não privada.
Além do mais, não se trata de uma questão privada e individual também porque
fatores culturais e sociais são o que determinam o lugar da mulher e, especificamente, de
cada mulher. Ou seja, o conceito de indivíduo não é neutro e padronizado, mas deve
englobar além da subjetividade de gênero, subjetividades de classe, raça e localização
espacial. Abordar a criminalização do aborto como uma disputa entre o direito da mulher
em exercer sua liberdade de escolha e o direito do feto à vida significa, na verdade, utilizar
a mesma lógica individualista que contrapõe direitos individuais da mulher e do feto. Por
meio dessa lógica, criticada pela própria religião, é que os grupos contrários à
descriminalização desenvolvem seus discursos, pois o principal argumento é a defesa da
vida do feto, um ser indefeso e que precisa de guardiões dos seus direitos contra as
mulheres que só pensam em si.
Por isso, houve uma redefinição da argumentação feminista. A concepção do direito
ao aborto como direito individual à liberdade do próprio corpo que embasou o slogan
“nosso corpo nos pertence” em meados das décadas de 1970 e 1980 permanece forte, mas
mereceu nuances para englobar os aspectos históricos de dominação, as subjetividades
que condicionam a escolha da mulher, enfim, as estruturas discursivas e sociais que
permeiam essa mudança.
Evidencia-se, portanto, a força das formações discursivas que sustentam a prática
social e o senso comum e ainda a intenção dos discursos em fortalecê-las ou modificá-
las. O discurso contrário à descriminalização do aborto pretende reforçar o papel da
mulher como mãe; a importância da família heteronormativa; a noção de que os dados
sobre aborto são superestimados e que sua descriminalização aumentaria a prática; a visão
de que proteger a vida do feto é garantir os interesses da coletividade e que argumentos
jurídicos e científicos garantem essa proteção.
81
O discurso favorável à descriminalização pretende reestruturar e desconstituir essas
formações que sustentam que a criminalização do aborto é a medida adequada a atingir o
interesse público. Para tanto, em resumo, demonstram que limitar a mulher ao papel de
mãe reproduz a sua dominação fundamentada na moral cristã patriarcal de divisão de
funções na família; que apenas reconhecendo essa dominação e as particularidades de
cada mulher é que se garante os interesses da coletividade; que a criminalização prejudica
a obtenção de dados fidedignos porque se trabalha apenas com estimativas; que a proteção
da mulher com a descriminalização é muito mais efetiva e necessária do que a proteção
do feto com a criminalização.
A importância de analisar criticamente os discursos sobre a (des)criminalização do
aborto da forma proposta neste trabalho, reforce-se, implica reconhecer que o discurso ao
mesmo tempo constitui e é constituído por práticas sociais, e que essas práticas revelam
processos de exercício de poder e manutenção de dominação. Com isso, resta
demonstrado que o discurso feminista pretende posicionar a mulher, sua autonomia e sua
saúde, no centro da discussão revelando que a tomada de consciência é o primeiro passo
para emancipação da dominação da posição hegemônica.
É importante tomar consciência de que o discurso contrário à descriminalização se
baseia na moral cristã que historicamente exclui a mulher e que considera a gravidez ao
mesmo tempo como uma benção divina e como uma responsabilidade e obrigação perante
a família e a sociedade. Além disso, reconhecer que no contexto de um país culturalmente
patriarcal, escravocrata, colonizado, estratificado socialmente e que ainda hoje conserva
marcas desse histórico em diversos âmbitos sociais é imprescindível para interpretar os
discursos sobre a criminalização do aborto.
E é esse o intuito dos discursos favoráveis à descriminalização quando defendem
que a questão saia do âmbito penal e seja tratada como política pública de saúde da
mulher. Ao acrescer a visão da saúde pública ao argumento da autonomia da mulher
objetiva-se suplantar a concepção individualista de que a mulher pensa apenas em seus
interesses e ignora a vida do feto para considerar aspectos particulares das mulheres que
atendam a perspectivas históricas e à atualidade que condiciona suas escolhas.
Dessa forma, realizar uma audiência pública para oitiva de pessoas e instituições
atuantes na discussão sobre o aborto e sua abordagem pelo Estado, como atuação
estratégica dos grupos favoráveis à descriminalização, propiciou não apenas a
judicialização da questão no sentido da obtenção de uma decisão favorável, mas a
82
ampliação da discussão sobre o tema e a possibilidade de correlacioná-lo a um problema
mais amplo em relação às mulheres como um todo e às formas de dominação exercidas.
Não se trata apenas do aborto. Os efeitos simbólicos vão muito além de pugnar pelo
respeito à maternidade voluntária e autodeterminação reprodutiva. A participação desses
sujeitos associados às reivindicações feministas na qualidade de expositores da audiência
pretende revelar que o controle da reprodução é indissociável do controle das mulheres
como um todo e que os discursos contrários à descriminalização do aborto carregam esse
sentido de controle e repressão, muito embora tentem dele se afastar por meio da
tecnificação dos discursos.
É inegável que a análise do discurso sempre possui limitações. O analista possui o
seu contexto particular que lhe permite identificar determinadas nuances, mas ignora
outras que poderiam ser vislumbradas por outro intérprete com outro contexto particular;
ou ainda porque o analista não tem acesso ao contexto particular daquele que produz o
discurso. No entanto, admitindo que a análise crítica do discurso se preocupa com o
momento da produção e da interpretação do discurso e sua base teórica é a influência da
ideologia em ambos os momentos, não necessariamente a parcialidade é negativa ou
macula o estudo em si. Pelo contrário, demonstra sua inserção na lógica da “análise crítica
do discurso”, na qual o discurso, ideologicamente afetado, presta-se a propiciar mudanças
na prática social.
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Cad. EBAPE.BR, v. 12, Edição Especial, artigo 1, Rio de Janeiro, Ago. 2014. p.384–
400.
92
ANEXO A
93
ANEXO B
94
ANEXO C
95