MUELLER - Enio - Teologia Crista em Poucas Palavras

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ENIO R.

MUELLER

TEOLOGIA
CRISTÃ
em poucas palavras

2005

Escola
H wK i W SuPerfor d e
H Teologia

Teológica
© Teológica, 2005
© Enio R. Mueller, 2005

Direção editorial: Silvestre M. de Lima

Coordenação editorial: Luís M. Sander

Diagramação: Com pSystem - Digitação e Diagram ação Ltda-Me

Capa: James Cabral Valdana

D ados In tern acio n ais de C a ta lo g a çã o na P u b licação (C IP )


(C â m a ra B rasileira do L iv ro , SP, B rasil)

Mueller, Enio R.
Teologia cristã : em poucas palavras / Enio R. Mueller. -
São Paulo : Editora Teológica ; São Leopoldo, RS : Escola Superior
de Teologia, 2005.
12x18 cm.; 112 páginas.
Dedico este livro
Bibliografia.
à Escola Superior de Teologia,
por mais de vinte anos de caminhada
ISBN 85-89067-24-6 (Editora Teológica)

1. Teologia 2. Teologia - Estudo e ensino I. Título.


conjunta.
05-7818 CDD-230

ín d ices p a ra catálo g o sistem ático :

1. Teologia cristã : Religião 230

Proibida a reprod ução total ou parcial desta obra, por qual­


quer forma ou meio eletrônico e m ecânico, inclusive através de
processos xerográficos, sem perm issão expressa da editora (Lei
n2 9.610 de 19.2.1998).

Todos os direitos reservados à


T eológica EST - Escola Superior de Teologia
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[email protected] www.est.com.br
www.editorateologica.com.br
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO.................................................... 9

PREFÁCIO.................................................................... 13

I - A PERGUNTA PELA VERDADE ..


C a p ítu lo 15
1. Verdade como conhecimento e como
existência............................................................. 17
2. Verdade no Novo Testamento..................... 19
3. Verdade como caminho.................................. 24
4. Verdade e verificação..................................... 29
5. O caminho de Jesus como critério de
verificação da verdade cristã ....................... 33
6. O caminho de Jesus e o nosso...................... 35
7. Concluindo......................................................... 38

C a p ítu loII - TEOLOGIA......................................... 43


1. Os quatro pontos cardeais da teologia cristã 44
2. Só o Cristo......................................................... 48
3. Só a Escritura.................................................... 52
4. Só a g ra ça .......................................................... 62
5. Só a fé ................................................................. 67
8 S u m á r io

C a p ítu lo III - ÉTICA ............................................... 79


1. O ponto de partida: uma metáfora que
capta os fundamentos da ética..................... 80
2. A interpretação dos Mandamentos na
tradição cristã.................................................... 89
3. Os Mandamentos como fundamento
ético da teologia cristã.................................... 94
4. O primeiro momento da leitura................. 96 APRESENTAÇÃO
5. O segundo momento da leitura...................100
6. Concluindo........................................................... 109
Elaborar teologia ainda hoje, em pleno sé­
culo 21, é tarefa inacabada. Apesar de o termo
teologia muitas vezes evocar a dogmática, na
verdade a elaboração teológica busca novos ca­
minhos de expressão. Sua maior necessidade é a
relevância e a contemporaneidade.
Neste opúsculo, Teologia Cristã em Poucas
Palavras, o autor elabora um projeto admirável
por sua profundidade e, ao mesmo tempo, con­
ciliatório de diversos enfoques teológicos. Cons­
ciente da dependência histórica da escolástica
de grande parte da teologia evangélica e católi­
ca, o autor, E n io M u e l l e r , procura afastar-se
de tal "aprisionamento sistemático". Sua elabo­
ração criativa busca raízes na teologia bíblica,
interage com o existencialismo de P a u l T i l l i c h
e utiliza-se também de enfoques libertários. Ao
mesmo tempo, M u e l l e r foge de um "pragma­
tismo" meramente "ortoprático" e estabelece
10 A pr esen ta ç ã o A pr esen ta ç ã o 11

uma ponte histórico-hermenêutica com o cristo- européias, fortemente condicionadas a modelos


centrismo luterano clássico. A sugestão é que Was filosóficos sepultados e moribundos.
Christum treibet deve sei" fio condutor de uma lei­ Cremos que Teologia Cristã em Poucas Pala­
tura bíblica adequada. vras pode ser uma semente poderosa que provo­
Se pudermos definir a proposta teológica que questionamentos, reflexão, dúvidas e sufi­
criativa aqui esboçada, diremos que se trata de ciente dinamismo teológico para que se construa
uma "ortodopodia agápica", que traduzida em uma teologia profunda, coerente, bíblica e que
miúdas, seria uma "caminhada marcada pelo produza impacto no cenário nacional.
amor". A idéia é construir uma teologia que não
se fundamente em categorias sistemáticas helé­ Luiz Sayão
Professor da Á rea B íblica do Sem inário Servo
nicas, nem caia numa pragmática historicista,
de Cristo, e da Faculdade T eológica Batista
mas sim em categorias bíblico-existenciais. Ver­ de São Paulo.
dade está portanto mais próximo de "coerência P ro fe s s o r V is ita n te d o G o r d o n -C o n w e ll
de vida conduzida pelo amor", do que de "defi­ Theological Sem inary em Boston.

nições cognitivas". Por isso o autor dará uma C oordenador de Tradução da N ova V ersão
Internacional.
atenção definida à ética.
A publicação de uma obra como esta tem
grande importância em nossos dias. Em primei­
ro lugar, escancara-se a necessidade de uma ela­
boração teológica que enfrente todas as questões
epistemológicas e hermenêuticas com coerência
e equilíbrio, sem ser meramente repetitiva. Além
disso, a necessidade de uma devida interação
entre o enfoque bíblico e filosófico ainda tem um
vasto campo pela frente. Por fim, uma elabora­
ção teológica adequada deve interagir com a
realidade brasileira de fato. Geralmente temos re­
flexos tardios de perspectivas americanas e
PREFÁCIO
O propósito deste livro é ser uma pequena
introdução à teologia cristã. Tem um capítulo para
cada uma das divisões clássicas da Teologia Siste­
mática. Tentei me concentrar naquilo que, ao meu
ver, é fundamental e mais necessário.
Os três textos aqui reunidos foram original­
mente preparados para ocasiões bem concretas e
específicas, e posteriormente retrabalhados numa
perspectiva de conjunto. No processo, perderam
também parte de seus contornos intraeclesiais,
assumindo um horizonte de ecumenicidade a par­
tir do fundamento comum do evangelho.
É sempre um risco para a teologia, se perder
nos meandros de uma multidão de detalhes e obs­
curecer a percepção do que é realmente essencial.
Por isso, vale a pena fazer o exercício de tentar
captar este essencial e dizê-lo em poucas palavras.
São Leopoldo, julho de 2005.
Prof. Dr. E nio R. M u eller
C a p ítu lo I

A PERGUNTA PELA VERDADE

Teologia tem a ver com a verdade. Isso ela


compartilha tanto com a religião como com a fi­
losofia. Mas o que é a verdade? Isso parece uma
coisa tão óbvia. Quando usamos esta palavra no
dia a dia, geralmente queremos indicar duas coi­
sas. Primeiro, que algo que foi dito "é verdade", o
que significa "não é mentira". Segundo, que uma
coisa realmente aconteceu, que não é invenção,
que "é verdade". A verdade, então, quer dizer que
o que se diz corresponde à realidade do assunto
sobre o qual se está falando. Ou, que o que se está
dizendo realmente aconteceu, que a fala corres­
ponde aos acontecimentos aos quais se refere.
A partir desta noção de verdade, nada mais
justo do que perguntar se ela própria "é verda­
de". Que ela representa a verdade em alguns as­
pectos essenciais, não tem dúvida. Porém, quando
16 C a p ít u l o I A PERGUNTA PELA VERDADE 17

a gente começa a descer um pouco, rumo às di­ pergunta mais importante é se as coisas realmente
mensões mais profundas da vida, esta noção aconteceram conforme se fala delas nos textos. Será
revela uma certa superficialidade. Ela é basica­ que a verdade cristã é primeiramente uma verda­
mente correta, mas insuficiente. Justamente as de deste tipo? Se fosse, a fé não ficaria reduzida a
coisas mais importantes da vida não se deixam um acreditar? Na Carta de Tiago tem uma palavra
enquadrar completamente neste tipo de verda­ bastante dura sobre este tipo de fé neste tipo de
de. Não dá para dizer que são verdade porque verdade: "Crês tu que Deus é um só? Fazes bem.
correspondem à nossa fala sobre elas, e nem por­ Até os demônios crêem e tremem" (Tiago 2:19).
que "aconteceram". Qual é, exatamente, o problema com esta
Quando Pilatos faz a pergunta pela verda­ noção de verdade? O problema é que ela trans­
de ele está fazendo uma pergunta fundamental, forma a verdade numa coisa "da cabeça", numa
da qual depende tudo o mais que venhamos a coisa racional. Esta verdade, seja das palavras
dizer. Em João 18:37-38, no diálogo entre Jesus e ou dos fatos, nós a percebemos com a nossa ca­
Pilatos pouco antes da crucificação, Jesus diz que beça, com a nossa razão. Verdade, então, acaba
veio ao mundo "para dar testemunho da verda­ limitada a algo com que a razão pode concor­
de", e que "quem é da verdade" vai reconhecê-la. dar. Não se trata de excluir o elemento racional,
Ao que Pilatos retruca: "O que é a verdade?". Para que chamarei de cognitivo, da verdade. Trata-
Jesus, portanto, estar na verdade é condição para se, sim, de ampliar a percepção da verdade de
conhecer a verdade. Isso é coisa bem diferente do modo que ela inclua outras dimensões. A Bíblia,
que o que normalmente aprendemos, e que inclu­ como ainda veremos, enfatiza uma noção exis­
sive as nossas teologias nos ensinam. E este não é tencial de verdade, que inclui o aspecto cogniti­
um problema de teologia "liberal". Às vezes são vo mas vai além dele.
justamente as teologias mais "bíblicas" que por
alguma razão têm dificuldade neste ponto. 1. Verdade como conhecimento e como
Um problema com a teologia cristã sempre existência
tem sido o risco de ficar atrelada a uma noção
não adequada de verdade. Com relação ao que Podemos, para simplificar as coisas, falar
diz na Bíblia, por exemplo, parece, então, que a em verdade como conhecimento e verdade como
18 C a p ít u l o I A PERGUNTA PELA VERDADE 19

existência. Elas não se excluem, mas se comple­ da dimensão existencial, da verdade como modo
tam. Comecemos, então, pelo aspecto cognitivo, de existência. Estas duas dimensões muitas ve­
da verdade como conhecimento. zes têm sido separadas e até tratadas como al­
Tanto pela Bíblia como por estudos atuais ternativas. Mas não é assim. O que as une é jus­
na área da cognição, que trata de como os seres tamente o nível "subterrâneo" da dimensão
humanos chegam a conhecer, nossa percepção cognitiva, o nível do inconsciente cognitivo. Ali
cognitiva da verdade pode se dar em dois níveis. se sedimentam as metáforas que não só guiarão
O primeiro é, por assim dizer, o nível da superfí­ o nosso jeito de conhecer as coisas, mas também
cie, do consciente, do conteúdo propositivo de as nossas avaliações e as direções que daremos à
uma formulação, de uma fala, de um texto. Ver­ nossa existência.
dade, nesse sentido, é a exatidão de determina­ Feita esta introdução, podemos agora per­
das formulações em contraste com outras. guntar pela noção bíblica de verdade.
Mas há um segundo nível, mais profundo,
que opera no chamado "inconsciente cognitivo". 2. Verdade no N ovo Testamento
Refere-se às metáforas básicas que moldam nos­
sa apreensão do que compreendemos como ver­ Partindo da distinção acima, quero pergun­
dade. Quando concentramos nossa atenção ne­ tar pela noção de verdade que encontramos nos
las, percebemos que já nossas aproximações aos textos bíblicos. Minha proposição é, primeira­
conteúdos podem ser diferenciadas. Estas metá­ mente, que o Novo Testamento reconhece a no­
foras são como que as estruturas subterrâneas ção cognitiva de verdade propositiva, mas que
que dirigem e organizam o nosso pensamento. nesta dimensão ele situa a pergunta pela verda­
As formulações do nosso pensamento, que dão de fundamentalmente no segundo nível. Ou seja,
origem aos discursos, às doutrinas e às teologias, verdade não estaria primeiramente relacionada
vêm organizadas a partir de certas metáforas fun- com conteúdos propositivos, mas com as metá­
dantes que presidem as formas como pensamos. foras profundas sobre as quais tais conteúdos
Esta distinção, então, se refere à dimensão propositivos são construídos.
cognitiva da verdade, da verdade como conhe­ Podemos ver isso, por exemplo, na lingua­
cimento. Além dela, como vimos, devemos falar gem dos profetas e, de um jeito quase que auto-
20 C a p ít u l o I A PERGUNTA PELA VERDADE 21

evidente, nas parábolas de Jesus. Elas são um bom da doutrina". Fazer a vontade de Deus, aqui, não
exemplo de que também o Novo Testamento si­ significa tanto fazer coisas, mas viver de um de­
tua a pergunta pela verdade, em última análise, terminado jeito. Aqui a dimensão cognitiva é
no nível das metáforas fundantes. Desta perspec­ atrelada à dimensão existencial. O tipo de conhe­
tiva, o sentido das parábolas às vezes pode ser cimento de que aqui se trata só é possível a partir
justamente a recusa em decidir questões ao nível de determinada postura existencial.
propositivo, e o apontar para o nível mais pro­ Isto dito, podemos agora examinar algumas
fundo, como no caso da história dos dois irmãos passagens centrais para a compreensão da no­
que disputavam sobre uma herança (Lucas 12.13- ção de verdade no Novo Testamento. Começa­
21). Parábolas, então, representam a forma que mos com uma passagem de Paulo: Gálatas 2.11-21.
Jesus usava para chamar a atenção de seus ou­ Trata-se do famoso encontro entre Pedro e Pau­
vintes para as metáforas originárias de seu pen­ lo em Antioquia, e da discussão pública entre os
samento e conduta, colocando-as em questão e dois. Segundo Paulo, quando ele chegou a Anti­
desafiando à sua adaptação ou substituição por oquia ficou sabendo que Pedro, antes da chega­
novas metáforas que representem mais adequa­ da de alguns irmãos da parte de Tiago, comia
damente a proposta do Reino de Deus. com os cristãos gentios, e que com a chegada deste
Assim, na dimensão cognitiva Jesus aponta grupo passou a se isolar, como eles, não mais ten­
para o nível mais profundo do inconsciente cog­ do comunhão de mesa com os cristãos não-ju-
nitivo, das metáforas que dão origem ao nosso deus. Para Pedro, aparentemente, isso nada ti­
pensamento e que o presidem. E é deste nível nha a ver com a verdade do Evangelho, que para
profundo que emana, por sua vez, a dimensão ele pelo jeito estava em outro lugar. Já para Pau­
existencial da verdade, em que a verdade deixa lo, tratava-se aqui de uma ofensa grave ao pró­
de ser predominantemente uma questão de co­ prio centro do Evangelho, de um falseamento da
nhecimento e se torna uma questão de modo de verdade do Evangelho.
existência, de jeito de viver. E é aí que o Novo Segundo Paulo, Pedro e os outros que o
Testamento concentra a pergunta pela verdade. acompanharam estavam sendo "hipócritas", a
Isso é bem colocado em João 7.17: "Se alguém mesma coisa que Jesus dizia dos fariseus e dos es­
quiser fazer a vontade dele, conhecerá a respeito cribas. Bamabé, o companheiro de Paulo, também
22 C a p ít u l o I A PERGUNTA PELA VERDADE 23

foi compelido a se "conipocritar", a "se tornar a verdade do evangelho é um caminho andado


hipócrita junto" (synypokrínesthai) com Pedro e dentro de uma relação com o mesmo, por um
os demais (2.13). Hipocrisia é um falseamento de lado, e por outro lado é o rumo, a meta deste
atitudes, não propriamente um falseamento de caminho.
conteúdos cognitivos. Para o nosso conceito nor­ Significativo para o esclarecimento desta
mal de "verdade", hipocrisia seria um desvio de metáfora neste texto é o verbo usado por Paulo:
conduta que a rigor não toca na questão da ver­ orthopodéo, que significa literalmente "andar re­
dade. tamente". Isto tem implicações teológicas de gran­
Ainda segundo Paulo, quando viu isso ele de relevância para os nossos dias. Em termos clás­
percebeu que seus companheiros "não caminha­ sicos, a teologia tem definido sua verdade como
vam retamente segundo a [ou: em direção à] ver­ "ortodoxia". Na América Latina em anos recen­
dade do evangelho" (2.14), e assim ele se viu com­ tes se falou, em contraste com isso, em "ortopra-
pelido a repreender Pedro na frente de todos. xia" como critério de verdade; quer dizer, não o
Estas palavras de Paulo encerram uma compre­ que se pensa é a verdade, mas o que se faz. Tan­
ensão de verdade que à primeira vista parece to uma como a outra têm, direta ou indiretamen­
estranha. Duas palavras gregas usadas por Pau­ te, apoio na Bíblia. Paulo introduz aqui uma ter­
lo revelam isso. Primeiro, tomando a preposição ceira opção: "ortopodia". Não tanto o que se
grega pros em seu sentido mais normal, as pala­ pensa, nem mesmo o que se faz, mas o jeito que
vras do texto refletem uma metáfora de fundo se anda é que define a verdade.
que é bastante conhecida: a metáfora do cami­ Esta é a única "orto-alguma-coisa" que o
nho. Há um caminho que leva à verdade. A ver­ Novo Testamento parece conhecer, ao menos em
dade, então, não é algo de que se tem posse, mas relação explícita com a verdade. Tanto o que
um rumo em direção ao qual se anda. Alternati­ entendemos como "ortodoxia" como o que en­
vamente, o pros poderia ser tomado como pre­ tendemos como "ortopraxia" são conceitos cu­
posição de relação, no sentido do coram latino. nhados na história do cristianismo e da teologia.
Verdade, então, seria um caminhar numa rela­ E provavelmente ambos têm seu lugar próprio,
ção com o evangelho. Não vejo as duas possibili­ não há porque dizer que não. Mas nesse caso, seu
dades como excludentes, mas complementares: norte e princípio definidor terá que ser sempre a
24 C a p ít u l o I A PERGUNTA PELA VERDADE 25

"ortopodia" do evangelho. Doutrina e prática e de sua apreensão. Talvez, de todas as questões


têm sua verdade definida por sua relação com normalmente tratadas na "teologia fundamen­
"o caminho". tal", ou nas questões introdutórias a uma teolo­
Há que advertir de riscos que imediatamen­ gia sistemática, esta seja hoje a mais importante
te afloram. Estes são: primeiro, o risco de tornar e de maior gravidade.
a "ortopodia", imperceptivelmente, num enun­ O começo da percepção da verdade, então,
ciado do âmbito cognitivo, tornando-a um prin­ se dá num processo de conversão radical, que
cípio e assim, finalmente, subsumindo-a no âm­ atinge as metáforas fundantes do nosso pensar e
bito da ortodoxia. O segundo é o risco de tomá-la, do nosso agir, que são então confrontadas com
de novo de forma imperceptível, refém de uma esta metáfora do caminho como "ambiente" onde
prática, subsumindo-a no âmbito da ortopraxia. mora a verdade. Segundo esta metáfora, a ver­
Tanto a justificação pela reta doutrina como a dade não é um resultado que possamos já ter em
justificação pelas obras da fé são um constante mãos, nem pelo reto pensar nem pelo reto agir
risco no cristianismo, e o perigo de tornar a orto­ (sendo que o que é "reto", neste caso, seria defi­
podia algo a ser provado, ou no âmbito das afir­ nido de antemão por esta "verdade"). A verda­
mações de fé ou no âmbito da práxis cristã, sem­ de é, uma vez, algo que está adiante de nós; e,
pre de novo nos assedia. outra vez, o caminho que leva para lá, bem como
a relação que nos define neste caminho. Saímos,
3. Verdade como caminho então, de concepções estáticas para uma concep­
ção dinâmica da verdade. Verdade é mais pro­
Como definir melhor esta ortopodia? Em pri­ cesso que ponto de partida ou resultado, pelo
meiro lugar, me parece fundamental o fato de, menos do ponto de vista do ser humano envolvi­
na dimensão cognitiva, ela se encontrar no nível do em sua apreensão.
das metáforas fundantes do pensamento e da Não há de ser por acaso que os primeiros
prática, e não ao nível de um ou outro destes. cristãos eram conhecidos como "os do caminho"
Esta percepção tem grande importância para as (Atos 9.2), e que o próprio evangelho era cha­
nossas teologias e o nosso fazer teológico, além mado por eles simplesmente de "o caminho"
de, é claro, deslocar a própria noção de verdade (Atos 19.9,23; 24.22).
26 C a p ít u l o I A PERGUNTA PELA VERDADE 27

É possível ilustrar isto melhor. Primeiro, o O próprio Jesus disse: "Eu sou o caminho"
que está adiante de nós. Poucas passagens do (João 14.6). Este texto joanino é de especial im­
Novo Testamento apresentam isso tão claramente portância por relacionar diretamente a metáfo­
e de forma tão expressiva como Hebreus 12.1-2. ra do caminho com a verdade. Logo a seguir, Je­
Aqui temos novamente a metáfora do caminho, sus diz também: "Eu sou a verdade". E a terceira
e o que está sendo descrito é a caminhada da fé, definição que segue é: "Eu sou a vida". Compre-
aquela fé antes definida pelo autor como "a cer­ endendo-se isto a partir da estrutura de parale­
teza do que se espera, a convicção do que não se lismo própria do pensamento hebraico, estes três
vê" (Hebreus 11.1). E esta caminhada é descrita termos devem ser vistos um à luz do outro, re­
como um desembaraçar-se de todo peso supér­ metendo todos à mesma realidade.
fluo que constantemente somos tentados a ad­ A verdade, então, é o caminho. A verdade é
quirir e carregar, e "correr perseverantemente" a vida. Se pensarmos em termos de paralelismo,
o trajeto que nos é proposto, de olho fixo no alvo. "vida" aqui é o caminho que é a verdade. A ver­
O alvo desta caminhada é descrito como "o au­ dade se encontra no processo de vida entendido
tor e consumador da fé, Jesus". Jesus, então, é o como caminho. Creio que, em termos conceitu­
que está no início da caminhada da fé e ao mes­ ais, o que mais se aproxima disso no Novo Testa­
mo tempo é seu alvo; assim, sua presença e a rela­ mento é o conceito de "discipulado". A verdade
ção com ela determinam a qualidade do caminho. é o processo do discipulado, iniciado por Jesus,
Podemos lembrar aqui o dito paulino: "a mediado continuamente por ele e conduzindo a
partir dele, por meio dele e para ele são todas as ele. E quero parar por aqui para não incorrer no
coisas" (Romanos 11.36). A fé é dada por ele, é risco acima advertido de, imperceptivelmente,
constantemente mediada por ele, e a ele se diri­ tornar tudo novamente uma questão de concei­
ge. Jesus, então, é a verdade para onde o cami­ tos ou de práticas. A verdade só se faz e só se
nho se dirige. Neste texto aparecem as mesmas deixa apreender no próprio caminho, não em con­
qualificações do texto anterior: Jesus é o ponto ceitos sobre o mesmo e nem em práticas que su­
de partida; é o fim; é a mediação, o que está en­ postamente devem mostrar que estamos no ca­
tre o começo e o fim da caminhada; é, portanto, minho. É a mudança de metáfora que importa
o caminho. aqui.
28 C a p ít u l o I A PERGUNTA PELA VERDADE 29

P a u l T il l ic h e x p r e s s o u m u i t o b e m e s t a n o ­ busca. N ão determ inado conteúdo discursivo, não


ç ã o d e v e r d a d e c o m o c a m in h o , e m u m a p ré d ic a uma doutrina, m as Deus, o Deus vivo e pessoal,
ressoa a resposta1.
e m q u e a c e r t a a l t u r a e le d iz o s e g u in t e :

C ara com unidade! N ão esqueçam os jam ais, nem 4, V erd a d e e v e r ific a ç ã o


para nós, nem para os outros a quem querem os
ajudar a chegar à verdade. Se a verdade fosse uma O que foi dito até aqui pode ser confrontado
doutrina, teriam razão os zombadores que dizem: com a exigência de validação ou de verificação
o que é a verdade? Pois toda doutrina pode ser
contradita, e o será. Todas têm seu tempo, e então
da verdade. Esta questão é séria, e já a Bíblia a
passarão. O utras virão em lugar delas. Quem bus­ coloca, em relação, por exemplo, com a profecia.
ca a verdade em uma doutrina, ainda não se ele­ A profecia autêntica deve se verificar na histó­
vou realmente por sobre aquilo que é transitório, ria, e este é o seu critério de autenticidade. Natu­
ainda não sabe do que é eterno. A verdade não é
ralmente, os critérios são teológicos e podem não
doutrina, m as vida. A verdade não é um a coisa,
mas uma pessoa. O Deus vivo e eterno, que zomba
ser os mesmos que a ciência usa para verificar a
de toda doutrina, ele é a verdade. E quem o tem, sua noção de verdade. Não colocar esta questão
tem a verdade, tem uma fonte inesgotável de vida, seria correr o risco de uma relativização comple­
sem pre nova, sem pre mais rica. E este movimento ta da verdade. Verdade, nesse caso, seria sim­
eternam ente renovado, nunca parado, de pessoa
plesmente o caminho de vida de cada um/a, sem
a pessoa, isto é a verdade. E é por isso também que
não existem várias verdades, duas ou três ou sete, quaisquer referenciais externos que pudessem
que se poderia receitar; mas um a única verdade, servir de parâmetro.
que se deve viver. E m esm o que pudesses recitar a É importante que se diga que, da maneira
Bíblia toda, se não tivesses nada desta vida [que é
como a questão volta aqui, ela não representa
a verdade]; e um a outra pessoa soubesse apenas
um a palavra bíblica e a tivesse vivido, ela teria a
simplesmente o retomo da antiga questão filosó­
verdade e tu a m entira. A verdade não se deixa fica e científica da relação entre verdade objeti­
ensinar, não se deixa im prim ir, não se deixa ler, va e subjetiva, ou seja, verdade que independe
porque Deus não se deixa ensinar, nem imprimir e
nem ler. A vida é a verdade. A pessoa, o espírito é
a verdade, e não uma letra. Deus é a verdade. O que
Frühe Predigten, 1909-1918 (Ergänzungs­
1 P a u l T i l l ic h ,
é a verdade?, ressoa a pergunta ansiosa de quem a
und N achlassbände zu den GW 7), p.193.
30 C a p ít u l o I A PERGUNTA PELA VERDADE 31

do que nós pensamos do fato e verdade que de­ segundo ele, é "um método que nos permita de­
pende do que nós pensamos. Esta relação, como cidir sobre a verdade ou a falsidade de um julga­
dito acima, permanece sempre no âmbito cogni­ mento". A verificação "pertence à natureza da
tivo, do conhecimento como ele se dá na superfí­ verdade". Sem ela, os juízos que fazemos são
cie da nossa mente, seja por sua afirmação ou simplesmente "expressões do estado subjetivo de
por sua negação. Quando aqui falamos em cami­ uma pessoa".
nho, falamos de algo que vai além do âmbito da A partir de sua distinção entre razão técni­
objetividade ou da subjetividade. Não se trata da ca e razão ontológica, ou das atitudes "controla­
forma como fazemos as coisas ou de como pen­ dora" e "receptiva" da razão, T i l l i c h mostra que
samos ou sentimos, e sim de como caminhamos, devemos reconhecer dois métodos de verificação.
como somos, como vivemos. Um é o método experimental, científico; o outro
O pólo "externo" ao caminho pessoal não é experiencial, "é verificado pela união criativa
se confunde com uma objetividade em relação a de duas naturezas, a daquele que conhece e a
uma subjetividade. Trata-se, antes, de um cami­ daquilo que é conhecido". Este teste é realizado
nho em confronto com, ou à luz de, outro cami­ no "próprio processo da vida"3.
nho. Trata-se do caminho de Jesus como para­ O racionalismo e o pragmatismo, segundo
digma dos nossos caminhos, da humanidade de T i l l i c h , discutem a questão da verificação da

Jesus como representação de nossa própria hu­ verdade "de tal forma que ambos omitem o ele­
manidade essencial. O que o caminho é, isso nos mento de união cognitiva e conhecimento recep­
foi mostrado exemplarmente por Jesus; aí temos tivo". O racionalismo só aceita como verdade o
mostrado diante de nós o que é a vida e o que é, que pode ser verificado experimentalmente, le­
finalmente, a verdade. vando assim a um reducionismo científico. Já
A questão da verificabilidade da verdade para o pragmatismo, verdade é "o que funcio­
teológica cristã é bem tratada por P a u l T i l l i c h na" na prática. "Ambos estão amplamente de­
em sua Teologia Sistem ática2. "V erificação ", terminados pela atitude de conhecimento con­
trolador e presos às alternativas implícitas nele.

2 P a u l T illic h , T eologia S istem ática ( 5 . ed. R evisada),


p. 113-18. 3 Id., p . 1 1 5 .
32 C a p ít u l o I A PERGUNTA PELA VERDADE 33

Em oposição a ambos, deve-se dizer que a verifi­ que acontece na superfície da razão. A verdade
cação dos princípios da razão ontológica não tem delas se verificará no nível das metáforas que
nem o caráter de auto-evidência racional nem orientam a nossa vida e que se transformam em
de teste pragmático"4. Sua verificação é "sua efi­ vivências concretas.
cácia no processo vital da humanidade"5. Com isso, temos os elementos para tentar
A razão científica, portanto, deve usar mé­ agora definir melhor o que significa a ortopodia
todos experimentais de verificação para deter­ em relação com, ou em direção à verdade do
minar o que é verdade ou não. Já no caso da ra­ evangelho, bem como sua verificabilidade.
zão que usamos no dia a dia, e que inclui intuição,
afetos, etc., esta verificação não pode se dar des­ 5. O caminho de Jesus como critério de
te jeito. Ali a verdade se verifica dentro do pro­ verificação da verdade cristã
cesso da vida. Isso pode levar tempo, pois a vida
é que vai mostrar a verdade. E sempre será par­ O "caminho de Jesus" introduz, desde a re­
cial e relativo, enquanto estivermos a caminho. velação, um critério de verificabilidade, que no
Na seqüência, T i l l i c h vai falar da revelação, entanto não elimina a verificação da verdade em
que introduz uma base mais segura de verifica- nossa própria vida. Trata-se de uma vida no es­
bilidade, sem, no entanto, retirá-la do interior do pelho da outra, e há que advertir que temos aí
processo vital, é importante insistir nisso. A re­ uma mão dupla, pois em última análise nossa
velação, tal como testemunhada na Bíblia, inclui percepção da vida de Jesus não vem somente dos
proposições, sim. Mas já no âmbito cognitivo es­ textos que dela dão testemunho, mas seria im­
tas proposições devem ser examinadas desde o possível sem nossa percepção de vidas reais de
seu fundamento metafórico, ou seja, nas metá­ pessoas reais em nosso próprio tempo e espaço,
foras fundantes que as organizam. E a verifica­ que nos dá pressupostos sem os quais a leitura
ção da verdade destas proposições também não da vida de Jesus não poderia fazer sentido real
se dará somente ao nível do processo cognitivo para nós.
Creio que um dos que melhor percebeu isso
4Id., p . 1 1 7 . na tradição cristã foi M a r t im L u t e r o . Para ele
5Id., p . 1 1 8 . estava meridianamente claro que aqui vale o
34 C a p ítu lo I A PERGUNTA PELA VERDADE 35

solus Christus, o "só Cristo". A fé é dada por Je­ o que também passo a vocês (...); anunciam a
sus, em graça, é alimentada em graça por ele ao morte do Senhor, até que ele venha" (1 Coríntios
longo da vida, e a fé tem Jesus por alvo. E L u t e - 11.23-26). A morte e a ressurreição de Cristo são
r o soube também tirar as conseqüências disso também anunciadas no batismo. Ser batizado em
para a compreensão da verdade: verdade é ivas Jesus Cristo significa ser batizado em (ou, para
Christum treibet, "o que leva a Cristo"; talvez dentro de) sua morte e ressurreição (Romanos
melhor, "o que se impõe como representação 6.3-4). E é justamente o batismo que representa
adequada do Cristo para nós". Este era o seu cri­ o ponto de intersecção entre a vida de Jesus e a
tério soberano na leitura da Bíblia, e assim tam­ nossa vida, colocadas a partir daí nesta relação
bém critério soberano na leitura de textos dou­ de espelho, à luz da qual Paulo podia, no texto
trinários e dos escritos confessionais. É diante de Gálatas com que iniciamos esta reflexão, falar
deste critério que todos os textos e todas as pro­ de si como "não vivendo mais eu, mas Cristo em
posições devem ser justificadas. Aqui temos o mim" (Gálatas 2.20).
Evangelho, critério soberano na confrontação
com todos os textos da tradição cristã. 6. O caminho de Jesus e o nosso
Este Cristo é essencialmente o da cruz, o Cristo
que se colocou como nosso representante sob o Assim, o caminho cristão se dá no espelho
juízo e a graça de Deus e que por isso foi morto e do caminho do Cristo. Aqui temos que ter uma
ressuscitado, o Cristo no qual somos inseridos pelo extrema atenção para evitar a armadilha da co­
batismo de modo a vivermos en Xristô, "em Cris­ locação de uma alternativa entre á fé na obra
to". Morte e ressurreição são o distintivo do cami­ salvífica irrepetível de Cristo por nós, de um lado,
nho de Cristo. Esta é, segundo Paulo, a essência e a imitatio christi, a imitação de Cristo, de outro
do evangelho que ele recebera e que pregava. lado. Um acento exclusivo num ou noutro pode
"Passei a vocês (...) o que recebi: que Cristo mor­ pôr o mais importante a perder. Pois é justamen­
reu (...) e que ressuscitou" (1 Coríntios 15.3-4). te na inteireza do processo que inicia com a en­
Certamente não é acidental que ele usa a carnação de Deus, sua morte e ressurreição e se­
mesma fórmula para falar da eucaristia, também gue com a proclamação disto no evangelho e a
ela recapitulação do evangelho: "Recebi do Senhor apropriação/extensão disto para dentro de vidas
36 C a p ít u l o I A PERGUNTA PELA VERDADE 37

humanas a partir do batismo que está a inteire­ Com isso também fica assegurada a unidade en­
za da verdade do evangelho. Por vezes demais tre a fé no que Cristo fez por nós e a vivência na
temos corrido o risco de reduzi-lo ou a uma pura qual ela introduz.
fé no que se deu em Cristo no passado, ou a um A verdade do evangelho, portanto, se deci­
puro refazer de sua práxis no presente. Os peri­ de no caminho no evangelho, caminho marcado
gos de ambos têm a ver com sua unilateraliza- por morte e ressurreição como a experiência cons­
ção racional ou pragmática. tante do juízo e da graça de Deus, experiência
A verdade do evangelho, portanto, se vive e que atualiza diariamente a morte e a ressurrei­
se verifica na vida das pessoas que com ela se ção do batismo e à qual remete também a euca­
relacionam. Toda a vida de uma pessoa, sob esta ristia, "até que ele venha". Nesta experiência
ótica, é um constante atualizar da experiência constante somos sempre de novo libertados de
batismal, que só se completa plenamente na mor­ nós próprios e colocados a serviço do nosso pró­
te, com justeza interpretada pela igreja antiga ximo, sob o signo do Jesus que deu sua vida nes­
como o dia do novo nascimento. te serviço.
Só assim podemos compreender com a de­ Desta verdade do evangelho a Bíblia quer
vida profundidade o que L u t e r o quis dizer em testemunhar, e dela e do testemunho bíblico
sua conhecida afirmação de que "é vivendo, sim, acerca dela querem testemunhar também as
morrendo [e sendo julgado] que se faz um teólo­ doutrinas e as confissões cristãs. Na medida em
go, e não compreendendo, lendo e especulando". que o fazem, a verdade está também nelas. Nun­
O viver e o morrer da pessoa no evangelho atua­ ca, porém, como verdade própria, originária,
lizam a morte e a ressurreição de Cristo para ela mas sempre como verdade derivada, testemu­
e marcam sua identidade com ele. Poderíamos nhada. Sua verdade está em apontar para a
imaginar o caminho da pessoa no evangelho verdade do evangelho, que se faz vivência con­
como repetindo o de Cristo, mas numa direção creta. Aqui talvez fosse adequado introduzir um
inversa. "E a partir de sua morte e ressurreição terceiro elemento na clássica relação entre nor­
que podemos experimentar em nossa vida esta ma normans (norma normativa) e norma norma-
morte e ressurreição, o que é o sentido do batis­ ta (norma normatizada). A própria Bíblia, em
mo; e a partir dela, a sua/nossa vida-verdade. relação ao evangelho de que testemunha, deve
38 C a p ít u l o I A PERGUNTA PELA VERDADE 39

ser vista em dois momentos cuja dialética nun­ nome de tal verdade, excluímos quem pensa lo­
ca deve ser rompida: em relação ao evangelho a calizar a verdade em lugar diferente.
Bíblia é norma normatizada, em primeiro lugar, Nossas igrejas e nossas teologias devem per­
subordinada à norma primeira que é o evange­ ceber que o problema não está simplesmente no
lho; só em segundo lugar também norma nor­ outro e que nós é que temos o conceito certo da
mativa, pois o que podemos saber do evangelho verdade. Por caminhos diferentes, todas parecem
vem nela registrado. E é destes dois, em sua dia­ estar constantemente arriscadas a cometer o
lética, que as confissões cristãs devem dar conta mesmo deslize em relação à verdade tal como a
sempre de novo. concebe a Bíblia. E, como é da verdade que aqui
estamos falando, já é tempo de parar de contem­
7. C o n c lu in d o porizar como se se tratasse de questão eletiva ou
periférica. E do cerne do cristianismo que aqui
Trazendo isto para a nossa realidade, deve­ estamos tratando. Isso exige conscientização,
mos lamentar que as igrejas cristãs não têm con­ arrependimento e desejo de mudança. Não cada
seguido, até hoje, sair de um processo de mútua um querendo mudar o vizinho, mas cada um
exclusão. Seja por motivo da superestimação do vendo como deixa mudar a si próprio, na expec­
universo conceituai, dogmático, seja por motivo tativa de que o vizinho faça o mesmo.
da superestimação de determinadas concepções Que a verdade, para nós, seja o caminho
da prática do cristianismo: localizar a verdade de vida aberto por Cristo, continuamente ali­
em qualquer um dos dois é não encontrá-la como mentado na comunhão com ele, e a ele condu­
a entende o Novo Testamento. A concepção ne- zindo. E para que o conteúdo ou a forma de
otestamentária da verdade, nesse sentido, chega expressão desta verdade não fique em abstrato,
a nós primeiramente como juízo, como juízo so­ o próprio Novo Testamento nos indica no que
bre a nossa falsa imaginação do que seja a ver­ ela consiste: "verdadeando em amor" (Efésios
dade e de como nos relacionamos com ela. Apre­ 4.15). Aqui, surpreendentemente, o substanti­
ensões parciais do processo da verdade, seja como vo alétheia, "verdade", é transformado em ver­
reto pensar, seja como reto agir, são por nós uni- bo, expressando assim com toda a clareza a
lateralizadas, e assim absolutizadas. E assim, em metáfora do caminho: "fazendo a verdade",
40 C a p ít u l o I A PERGUNTA PELA VERDADE 41

"verdadeando". E isso só se faz com amor, com possibilidade de fazê-lo é graça; a negativa é
agápe, o supremo critério tanto para o conheci­ juízo, juízo que deve ser anunciado em nome
mento da própria Trindade divina, seja em suas desta graça e de sua vivência concreta neste
obras ad intra (no seu próprio interior) ou ad extra mundo.
(o que ela realiza no mundo), como para o co­
nhecimento da verdade do Evangelho. A ver­
dade do Evangelho não é primeiramente pro­
posição cognitiva, nem padrão de prática, mas
sim jeito de caminhar, jeito de caminhar mar­
cado pelo amor.
Que nossas igrejas e nossas teologias, ain­
da em processo de exclusão mútua por motivo
de suas verdades, possam se converter à verda­
de do Evangelho, e que na vivência desta apren­
damos a nos incluir em amor. E de novo a ad­
vertência: que isso não se dê tão somente a nível
de enunciados teóricos ou de compreensões de
prática, mas sim na caminhada conjunta em
Jesus, sabedores de que é dele que vem a nossa
fé comum e que é para ele que nos dirigimos. E
se assim é, que no caminho nos deixemos ali­
mentar pelo mesmo Jesus de sua mesa comum.
Nesse sentido, voltando ao texto inicial, que
deixemos de ser como Pedro, excluindo da mesa
da comunhão irmãos que pensam diferente e
agem diferente, para que não tenhamos que ouvir
também a acusação de Paulo: "não estais cami­
nhando retamente na verdade do Evangelho". A
C a p ítu lo II
TEOLOGIA

Raras vezes na história do cristianismo os


fundamentos da teologia cristã foram tão inten­
sivamente discutidos como na Reforma do sécu­
lo 16. Os questionamentos levantados por L u t e -
r o não ficavam em questões de superfície, mas
iam às próprias raízes da teologia. E isso tam­
bém vale para outros reformadores, como Calvi-
no. E vale, não por último, para a Reforma cató­
lica, que foi tão profunda que faz da Igreja
Católica pós-Reforma uma instituição bastante
distinta da dos primeiros 15 séculos de cristia­
nismo.
Quando L u t e r o , diante do que ele sentia
como ambigüidades da teologia e prática do ca­
tolicismo de seus dias, define a sua teologia a
partir da afirmação dos chamados "princípios
exclusivos" (só Cristo, só a graça, só a fé, só a
44 C a p ít u l o I I T e o l o g ia 45

Escritura) ele, L u t e r o , está convencido de que re­ os outros. E que o decisivo não é a afirmação se­
cupera um fundamento da teologia católica. Não qüencial dos mesmos, em separado, mas justa­
uma teologia nova, portanto, mas a teologia evan­ mente uma determinada correlação entre eles,
gélica que é a base da igreja universal, católica. que gera um determinado perfil teológico no con­
Poderíamos, assim, chamar estas quatro afirma­ junto. O que identifica a teologia evangélica ca­
ções de os pontos cardeais da teologia cristã. tólica é uma hermenêutica dos sola que, ao insis­
tir em sua exclusividade, paradoxalmente insiste
1. Os quatro pontos cardeais da teologia cristã em sua simultaneidade. Exclusividade parece
sempre, dentro de nossa lógica "normal", a afir­
Hoje em dia a afirmação, por parte das teo- mação de um princípio e a exclusão de outros.
logias protestantes, destes princípios exclusivos, Afirmar a simultaneidade de quatro princípios
destes pontos cardeais, precisa ser olhada com exclusivos, nesse sentido, seria ilógico. Parado­
mais atenção. Mesmo que repitam as palavras xal, na verdade. O paradoxo não é ilógico, mas
dos reformadores, talvez elas estejam mais longe tem sua lógica própria, que vai contra a opinião
da intenção deles do que elas próprias supõem. (doxa) normal e corrente.
Minha sugestão aqui é que não é simples­ Como explicar esta simultaneidade dos prin­
mente a afirmação destes princípios exclusivos cípios exclusivos? Quero primeiro apresentar dois
em seqüência que, como tal, define a identidade jeitos de explicar que têm marcado a teologia cris­
teológica cristã. Solus Christus, sola scriptura, sola tã até aqui e que não me parecem completamen­
gr atia, solafide tomados separadamente têm sido, te adequados, exatamente por não fazerem jus
a rigor, afirmações teológicas praticamente co­ aos aspectos mais caracteristicamente evangéli­
muns a toda a tradição cristã desde os primórdios cos do cristianismo. Depois quero trazer a mi­
do cristianismo. Também o catolicismo e a orto­ nha contribuição a esta questão teológica funda­
doxia grega e oriental, a seu modo, sustentam es­ mental, descrevendo de que maneira percebo
tas afirmações como fundamento de sua teologia. esta hermenêutica correlativa dos princípios ex­
Quer me parecer que o que de fato distin­ clusivos como um dos elementos centrais da iden­
gue uma tradição da outra é a forma como se tidade da teologia cristã, ou seja, evangélica ca­
relaciona (ou não) estes pontos cardeais uns com tólica.
46 C a p ít u l o I I T e o l o g ia 47

Uma maneira de explicar a simultaneidade a forma pela qual ela nos é concedida, a Fé a for­
dos princípios exclusivos seria dizer que todos ma de apreensão da salvação. Uma variante se
eles representam uma e a mesma coisa, talvez originaria da percepção de uma primazia do so-
vista desde diferentes ângulos. Mas insistir na sua lus christus, já que este é na verdade o conteúdo
unidade substancial. Nesse caso, substancialmen­ da salvação, sua substância própria. Assim, a
te não seriam quatro princípios, mas um só, e a Escritura seria o meio cognitivo pelo qual sabe­
rigor não deveríamos mais falar em simultanei­ mos de Cristo, a graça a forma como ele nos é
dade, já que esta pressupõe coisas diferentes co­ concedido e a fé o modo de sua apreensão. Tam­
locadas lado a lado. Esta maneira de explicar tem bém este jeito de explicar tem seu claro momen­
sido tentada na teologia por séculos. E ela tem to de verdade. O não-adequado nele me parece
seu momento de verdade, ancorado na unidade estar um pouco abaixo da superfície. No fundo
de Deus e do seu propósito salvífico. A substân­ ele reflete um certo escolasticismo, tanto no mé­
cia seria unidade, a diversidade estaria nas for­ todo como nas categorias, que é estranho ao modo
mas e na nossa percepção desde a realidade do de fazer teologia tipicamente bíblico e evangéli­
mundo e talvez do pecado. Mas esta maneira de co. E convém aqui insistir em que uma tendên­
ver, como já foi dito, não expressa adequadamen­ cia escolasticizante se verifica não só no meio
te a simultaneidade dos distintos princípios. Re­ católico, mas também nas teologias da Refor­
presenta já um certo falseamento, a partir da não- ma, como o mostra a escolástica protestante do
percepção ou do não levar em conta que a imediato pós-Reforma. A simultaneidade como
teologia cristã se sustenta em uma lógica para­ um dado real, dinâmico e tensionador se perde
doxal. neste esquema.
Uma segunda maneira de explicar a coexis­ O terceiro jeito de explicar que aqui apre­
tência dos sola seria considerá-los desde o ponto sento quer ser, então, minha perspectiva de uma
de vista de uma divisão de tarefas. Se trataria de hermenêutica de correlação que consiga preser­
quatro princípios, mas cada um é o princípio no var tanto a unidade dos sola como sua diversi­
âmbito em que vigora. Assim, p. ex., Cristo seria dade e sua simultaneidade viva e em tensão. É
o mediador da salvação, a Escritura o meio cog­ o que passo a desenvolver agora com mais de­
nitivo pelo qual podemos ter acesso a ela, a Graça talhes.
48 C a p ít u l o I I T e o l o g ia 49

2. Só o Cristo A identificação, por parte do cristianismo


primitivo, de Jesus de Nazaré com o Cristo pro­
Dentro desta proposta hermenêutica, o que metido nas Escrituras, indica uma direção fun­
significa exatamente só o Cristo será percebido damental da cristologia. E indica também uma
quando este princípio for colocado em correla­ direção fundamental para o próprio conhecimen­
ção com os outros três. Além disso, para poder­ to de Deus. A antiga distinção, novamente enfa­
mos avaliar a extensão da compreensão caracte­ tizada na Reforma, entre o Deus abscôndito ou
risticamente evangélica, e portanto católica, deste oculto e o Deus revelado, tem aqui uma de suas
princípio, podemos tentar vislumbrar alternati­ raízes. De Deus só podemos saber o que ele pró­
vas a ele, possíveis e sempre de novo realizadas prio nos revelou. E ele revelou a si próprio. Jesus
historicamente por tendências da teologia cristã, é o rosto de Deus para nós, e as Escrituras con­
se não como afirmações explícitas, ao menos têm o registro do testemunho deste rosto de Deus
como tendências implícitas de certas teologias. para nós.
O que significa Cristo como conteúdo e me­ O que significa Cristo é, em segundo lugar,
diador da salvação, então, nos é cognitivamente revelado pela graça como o modo pelo qual ele se
revelado na Escritura. Isso não necessariamente dá a nós. Uma vez isso significa que o próprio
significa que Cristo não possa se revelar ou que Cristo é essencialmente graça, mesmo quando
não se revele de outras maneiras, p.ex., nos sa­ vem envolto em lei e juízo. E significa também
cramentos ou mesmo na história e na criação que o fato de ele se dar a nós é graça, não neces­
inteira. Mas significa, sim, que na Escritura nos sidade histórica. E significa ainda que nossa per­
são dados os critérios pelos quais sempre de novo cepção de Cristo é sempre graça, não resultado
precisamos medir e avaliar supostas revelações de obediência moral ou de capacidade intelectual.
de Cristo. A partir daí podemos compreender a Sempre de novo a teologia e a espiritualidade cristã
importância da Bíblia para a teologia, e a partir têm se inclinado perigosamente nestas direções,
daí devemos insistir hoje sempre de novo na im­ terminando com imagens de Cristo que não cor­
portância fundamental do estudo da Bíblia. É respondem à sua correlação com a graça.
nela que temos o meio cognitivo privilegiado para O que significa Cristo é, em terceiro lugar,
sabermos quem é Cristo e termos acesso a ele. revelado pela/é como o modo de sua apreensão.
50 C a p ít u l o I I T e o l o g ia 51

Isso significa, por um lado, que a teologia cristã novidade na história da teologia cristã e nem nos
nunca tem garantias ou salvaguardas. Seu cen­ diálogos ecumênicos contemporâneos. A própria
tro e conteúdo, e com isso seu conjunto, só se teologia trinitária sempre esteve ameaçada de
deixa apreender pela fé. Para entendermos o que uma certa hierarquização onde a primeira pes­
significa fé, o que também não é consenso na te­ soa de Deus na prática assume a centralidade.
ologia cristã, teríamos que correlacioná-la com Antigas e modernas tentativas de construir teo-
os outros três princípios, o que será feito mais logias trinitárias que não sucumbam a isto mos­
adiante. O mesmo vale para a graça. tram o quanto este risco é real. Esta tendência se
O objeto de toda a vida e teologia cristã, en­ mostra especialmente forte em igrejas ou círcu­
tão, só se deixa apreender pela fé. Não é um dado, los cristãos organizados de forma hierárquica ou
acessível por quaisquer capacidades ou possibi­ baseados em princípios autoritários.
lidades da espiritualidade ou da razão ou da Em outra direção, a possibilidade de trans­
moralidade, riscos sempre presentes quando o ferir a centralidade para a terceira pessoa da
princípio da fé na prática nos sufoca pela insus­ Trindade também sempre de novo se faz presen­
tentável leveza do seu ser. Significa, por outro te na teologia e na espiritualidade cristã. Desde
lado, sempre de novo resistir às tendências de o cristianismo antigo, concepções evolucionári­
tornar Cristo palpável e "concreto", seja por as da história da salvação têm visto na era do
práticas de espiritualidade, seja por ideologias cul­ Espírito o auge da revelação cristã, e na prática
turais ou políticas. O que significa só o Cristo nos é tornado o Espírito Santo o elemento central em
mostrado na Escritura que nos remete à graça e à Deus. Movimentos carismáticos e de renovação
fé como modos de dádiva e apreensão de Cristo. muitas vezes têm corrido este risco.
Outro ângulo de apreensão do significado Tal como na correlação dos sola, uma corre­
do solus christus é colocá-lo diante das possíveis lação entre as pessoas da Trindade que mante­
alternativas que lhe são inerentes na teologia cris­ nha sua unidade e sua diversidade viva, sem des­
tã. Duas dessas possíveis alternativas seriam as considerar um ou outro e sem se arriscar a fazer
outras duas pessoas da Trindade. Uma teologia de Deus um princípio escolástico, requer uma pers­
que, na prática, transfere a centralidade de Cris­ pectiva de simultaneidade e ao mesmo tempo um
to para a primeira pessoa da Trindade, não seria foco. A teologia cristã tem se caracterizado por
52 C a p ít u l o I I T e o l o g ia 53

reconhecer este foco em Cristo, que lhe abre a Uma das percepções fundamentais de Lu-
compreensão da salvação e também do ser de t e r o foi justamente a radicalidade com que amar­
Deus. Manter este foco numa verdadeira pers­ rou o princípio da exclusividade da Bíblia com
pectiva de simultaneidade dinâmica em tensão, Jesus Cristo. Cristo se torna, para ele, princípio,
é o constante desafio tanto da teologia como da centro e fim das Escrituras, como aliás de tudo o
espiritualidade. mais (cf. Romanos 11.36). Isto certamente tem
graves implicações para o modo como se com­
3. Só a Escritura preende o papel da Bíblia na igreja e na teologia,
e especialmente a maneira correta de interpretá-
Desde a percepção básica da correlação en­ la. Cristo é a chave. Desde o começo, tudo tem
tre os distintos princípios exclusivos da teologia sua fonte nele.
cristã, o que significa sola scriptura, só a Escritu­ Isso significa algo para os textos reunidos na
ra, ficará claro à luz dos outros três sola. A ex­ Bíblia. Significa, desde logo, uma razão para es­
clusividade da Bíblia para a teologia e a espiritua­ tarem aí. Quando esta não for bem percebida à
lidade cristã precisa ser bem definida, e de uma luz da exegese histórico-crítica, este princípio te­
forma que não suprima a exclusividade de Cris­ ológico poderá orientar nossa leitura. Significa,
to, da graça e da fé. Este sempre tem sido um também, que tudo na Bíblia gira em redor de um
risco em construções teológicas que não perce­ centro, oculto na maioria dos textos, mas per­
bem a dialeticidade e especialmente a paradoxa- ceptível para quem compreendeu a necessária
lidade da teologia cristã. correlação do texto bíblico com Cristo. Significa,
Como manter a exclusividade da Escritura por último, que Cristo é também o alvo da inter­
sem suprimir a exclusividade de Cristo? Creio que pretação do texto bíblico, que nas suas profun­
esta é uma das questões mais básicas de uma te­ dezas é como que sustentado por esta escatolo-
ologia e de uma hermenêutica cristã. E sempre gia invisível, mas discernível na teologia como
lembrando, a esta altura, que o significado de sd um todo.
o Cristo por sua vez já foi melhor iluminado e Na prática diária da leitura da Bíblia, o
esclarecido por sua correlação com os outros três moto de L u t e r o : "bíblico", no sentido de evan­
princípios. gélico, é was Christum treibet (o que propulsiona
54 C a p ít u l o I I T e o l o g ia 55

para Cristo), é revolucionário para a teologia cris­ momento do processo, esta dinâmica ser rompi­
tã. Infelizmente, nem sempre a teologia e a pie­ da, são grandes, como a história da teologia e da
dade têm se orientado nesta direção. E isto cer­ espiritualidade cristãs tem demonstrado. E esta
tam ente se pode dizer também das igrejas dinâmica pode ser rompida em ambas as dire­
luteranas. E talvez possa se dizer também dos ções, é necessário dizer. Lei sem graça não é lei
diferentes princípios hermenêuticos que gover­ evangélica, graça sem lei não é graça evangélica.
nam as nossas leituras da Bíblia e que, por essa Aqui temos, provavelmente, um dos melhores tes­
via, sustentam as nossas teologias. tes para a nossa teologia ou as nossas teologias.
Em segundo lugar, o que significa só a Es­ Conseguem elas manter evangelicamente a dinâ­
critura deve ser entendido à luz da exclusivida­ mica paradoxal da correlação entre lei e graça?
de da graça. Mais uma vez, o que parece sim­ Para a leitura da Bíblia e interpretação do
ples de afirmar é, na prática, muito difícil de sola scriptura este é o segundo princípio herme­
manter. Desde os primórdios do cristianismo, nêutico fundamental: os textos bíblicos represen­
provavelmente já dentro do próprio Novo Tes­ tam e têm em sua profundidade este duplo cará­
tamento, percepções sobre o status da Bíblia e ter de mandamento e promessa, de exigência e
sua correta interpretação têm se fundado não dádiva, de juízo e graça. E este duplo caráter deve
sobre a graça, ou pelo menos não sobre a graça ser compreendido dentro do paradoxo que faz
somente. A compreensão do evangelho cristão ver que não se trata de uma duplicidade, e sim
como nova lei parece desde sempre inerente ao de uma unidade indissolúvel. Juízo e graça são,
cristianismo, mais forte em algumas de suas ten­ juntos, evangelho. Dito de outra maneira, juízo
dências internas do que em outras. Traços disso e graça juntos são graça. Ela é a "obra própria"
se encontram espalhados pelos próprios textos de Deus. A lei e o juízo, bem entendidos, são ex­
neotestamentários. pressão da mesma graça. Assim mantêm-se a
Certamente a lei tem um papel importante exclusividade da graça sem perder nada da for­
na teologia cristã. Um lugar exclusivo, podería­ ça da lei e do juízo.
mos até dizer. Mas isso só poderá ser devidamente E esta percepção que deve governar basica­
compreendido dentro da dinâmica de sua corre­ mente nossa leitura da Bíblia. E não é assim, que
lação com a graça. E os riscos de, em algum certos textos sejam textos de lei ou juízo e outros
56 C a p ít u l o I I T e o l o g ia 57

de graça, como uma hermenêutica desatenta Onde ocorre uma certa percepção deste fato,
poderia afirmar. Todo texto bíblico, à luz de sua apelos têm sido feitos a uma razão regenerada,
ancoragem profunda no solus christus, é ao mes­ uma razão convertida, neste caso propriedade
mo tempo expressão de juízo e graça, pois é só dos cristãos e teólogos renascidos.
assim que o sola gratia se deixa compreender A incongruência desta linha de procedimen­
evangelicamente. Para a hermenêutica bíblica, to com a afirmação do solafides só raramente tem
isso tem mais uma conseqüência fundamental. sido percebida. E é certamente uma terceira ca­
Significa que, pelo menos a partir de um momen­ racterística central da teologia e da hermenêuti­
to do processo interpretativo, já não somos mais ca evangélica católica a percepção deste fato e
nós que lemos o texto, mas ele que, pelo movi­ sua conseqüente aplicação para o conjunto da
mento inerente do Espírito Santo, se faz nova­ teologia. Como todos os eventos fundantes do
mente história e passa a nos ler. Significa que juízo cristianismo, também o caráter da Bíblia é para­
e graça na leitura do texto bíblico são experiênci­ doxal. E tem que ser. A vinda de Deus ao mundo
as existenciais de ser interpelado pela palavra do não seria vinda de Deus ao mundo se não fosse
Deus vivo em juízo e graça. paradoxal. Certas teologias que se apercebem
Por fim, o significado de só a Escritura se dei­ disso têm, não obstante e de forma inesperada,
xará discernir à luz do só a fé. Isto, mais uma vez, suspendido a afirmação da paradoxalidade
tem profundas conseqüências para a teologia quando chegam ao momento de explicar o cará­
cristã. Não raro, mesmo e talvez especialmente ter e a interpretação da Bíblia. Isso, provavelmen­
em suas correntes mais fundamentalistas, a teo­ te, no afã de preservar a sua divindade e inspira­
logia tem feito da afirmação da exclusividade da ção. Não percebendo que justam ente neste
Bíblia um princípio racional. Ela tem sido esco- movimento lógico se abre mão, de fato, de se pen­
lasticamente desenvolvida e desmembrada numa sar a Bíblia como divina.
série de afirmações que tanto visam esclarecê-la Como toda a revelação e dádiva divina, tam­
e aprofundá-la como também defendê-la diante bém a Bíblia é paradoxal. Isso significa que sua
dos ataques de racionalidades outras. Talvez até compreensão deve se guiar pela compreensão da
contrariamente à intenção, a razão tem sido esti­ manifestação salvífica de Deus em Cristo, onde
cada até onde pode para justificar tais afirmações. o divino e o humano se unem da forma mais
58 C a p ít u l o I I T e o l o g ia 59

paradoxalmente imaginável, sem perder suas que tal postura é desde sempre dádiva divina e
características de divino e de humano, pelo con­ não atributo nosso, e que muitas vezes o momen­
trário. O divino desde sempre contém o humano to de sua criação ou revitalização em nós é justa­
em si e não pode ser entendido (pelo menos por mente o momento da nossa presença nua diante
nós) sem ele, e o humano só pode ser compreen­ da palavra do Deus vivo lida ou proclamada.
dido realmente desde sua união com o divino. Por fim, podemos agora pensar em alterna­
Isso nos foi mostrado em Jesus Cristo, e daí sua tivas prováveis ou viáveis ao sola scriptura. Mes­
centralidade e fundamentalidade para a teolo­ mo ali onde, na tradição cristã, a exclusividade
gia cristã. da Bíblia tem sido mantida, nem sempre na prá­
Na leitura concreta da Bíblia, o princípio da tica este é o caso. Outros princípios, que inicial­
exclusividade da fé se revela como olhar aberto mente têm como que uma função "protetora"
para a paradoxalidade, por um lado, e por outro justamente da exclusividade da Escritura, aca­
lado como postura hermenêutica fundamental. bam por se firmar ao seu lado numa posição de
Olhar aberto para a paradoxalidade é um jeito concorrência que, sem uma cuidadosa correla­
de dizer em outras palavras o que a Carta aos ção, acaba sendo nefasta para a interpretação
Hebreus diz sobre a fé em 11.1: fé faz com que o da Bíblia e para a teologia.
futuro se torne presente, faz com que o invisível Em um extremo, temos aí todas as formas
se concretize. Tal presença e tal concretude, por de "iluminação interior" que têm se instalado no
outro lado, continuam somente perceptíveis pela imaginário cristão como fontes de revelação ao
fé, não se tornando possibilidades do olhar (isso lado da Bíblia. Geralmente isso acontece sem
seria destituí-las de seu caráter paradoxal). Por qualquer percepção de que as duas fontes se en­
outro lado, fé como postura hermenêutica fun­ contrem em tensão. O que o Espírito revela para
damental significa não só a aproximação ao tex­ os crentes hoje está obviamente em consonância
to na esperança de que pela porta de entrada de com a Bíblia, este é o pressuposto. Forma-se as­
sua letra se consiga chegar ao espírito do mes­ sim, na melhor das hipóteses, um círculo herme­
mo, mas na abertura para que tal processo se nêutico consciente onde um é lido à luz do ou­
tome encontro real e existencial com o Deus vivo tro. No mais das vezes, contudo, as tensões daí
através do texto bíblico. Por fim, deve-se acentuar decorrentes não são percebidas como tais, e a
60 C a p ít u l o II T e o l o g ia 61

prática do cristianismo acaba abrigando um sem- histórico de identidade e de luta das comunida­
número de incoerências. Enquanto isso fica den­ des. A constituição de tradição é um dado hu­
tro do mesmo círculo de incoerências comparti­ manamente inevitável. E não se encontra aí o seu
lhado por todos, não há problema. E no contato problema, pelo contrário. O problema é, desde
com os de fora do círculo, sempre há a possibili­ logo, a relação, também inevitável, entre a nor­
dade de considerar estes outros menos crentes ma da tradição e a norma da Escritura. Para os
ou menos iluminados, justamente por afirmarem de dentro e que vão crescendo nesta dupla ci­
que aí há incoerências. dadania, é difícil até imaginar uma não-concor-
Pode-se, assim, continuar afirmando a ex­ dância entre os dois princípios. Novamente, na
clusividade da Bíblia, até fazendo-o com apelo a melhor das hipóteses constitui-se um círculo her­
formulações teológicas altamente ortodoxas, e ao menêutico consciente e controlado, enriquece-
mesmo tempo abrigar uma fonte concorrente de dor e fonte de sempre nova criatividade teoló­
revelação, alimentada pelo "contato direto" com gica e prática. Muitas vezes, contudo, tradição
o Espírito Santo. Não que tal presença diária e e Escritura acabam tendo sua concordância
revelatória de Deus conosco pelo seu Espírito dogmaticamente afirmada, o que significa que
não sejam uma verdade do discipulado cristão. é impossível pensar em uma não-concordância.
Nisso os movimentos de renovação têm uma Na prática, a sugestão de tal é considerada como
grande contribuição às igrejas. A questão é como agravo para a fé e acompanhada de gestos de
correlacionar adequadamente tal presença reve­ exclusão.
latória com a revelação e as chaves de interpre­ O que acontece, geralmente na melhor das
tação contidas na Escritura, de forma a não su­ intenções, é que a tradição acaba se impondo
primir a exclusividade desta. como princípio concorrente da exclusividade da
No outro extremo, temos a força da tradi­ Escritura, que passa a ter na tradição seu guar­
ção, onde gradualmente vão sendo depositadas dião e seu intérprete correto, em última instância.
as percepções e as experiências de comunidades Revelação direta do Espírito Santo, por um lado,
cristãs, e que tende sempre, com a passagem do compreensão da Bíblia e da prática cristã deter­
tempo, a assumir uma certa sacralidade. Compre­ minados pela tradição, por outro. Dentro desse
ensível até, pelo que representa como testemunho arco a afirmação do sola scriptura é, devidamente
62 C a p ít u l o II T e o l o g ia 63

compreendida, ato de fé que se sabe fruto da gra­ graça significa fazer o que Paulo fez para os
ça revelada por Jesus Cristo. Ato temerário, pois gálatas: "pintar" diante dos olhos o Cristo cru­
as possibilidades de que nossa prática tendam cificado (Gálatas 3.1).
para a afirmação de princípios concorrentes é Não fazer esta conexão entre a graça e o
sempre presente e muitas vezes oculta à melhor Cristo resulta no que se tem chamado de "gra­
das nossas intenções. Ato, porém, sempre de novo ça barata". Uma graça que não resulta das en­
a ser repetido e refletido e desde aí (re)constituído tranhas misericordiosas de Deus, da compreen­
como norma exclusiva da teologia cristã, mesmo são do universo como sua criação, de sua
que já norma normatizada, quando vista à luz inserção na história e de sua morte assumida
do princípio central desta teologia, a suprema como meio de liberar a graça das amarras que
norma normativa da revelação de Deus em Je­ sempre de novo tentam prendê-la e torná-la ine­
sus Cristo por graça para a fé. ficaz. Uma graça custosa, portanto. Mas custo­
sa para Deus, justamente para torná-la sem cus­
4. Só a graça to para nós. Só a percepção da radicalidade do
custo da graça para Deus pode nos levar à per­
Prosseguindo, devemos agora tentar enten­ cepção da radicalidade de sua gratuidade para
der o que significa a afirmação da exclusivida­ nós. Agora, sim, podemos falar de gratuidade.
de da graça quando colocada em correlação com Mas aí também no sentido pleno da palavra, não
o Cristo, a Escritura e a fé. Desde logo, a correla­ como as pseudo-gratuidades, sempre interessei­
ção com Cristo impede uma simples compreen­ ras, que diariamente nos são oferecidas e a par­
são de uma graça "de graça" (grátis). Evangeli- tir das quais aprendemos a colorir o significado
camente, compreender a graça é compreender da palavra "graça".
o mistério de Cristo. É só nele que ela se mostra O "quadro" desta graça a nós revelada no
autenticamente. Isso significa como que dar-lhe Cristo se encontra pintado na Escritura. Mais
um rosto. Graça não como um princípio abs­ do que simplesmente afirmada em trechos es­
trato, mas como uma existência concretamen- pecíficos, ele se mostra no movimento geral, na
te vivida. E no caso do Cristo, deve-se logo acres­ grande narrativa de que o texto bíblico dá
centar "e concretamente m orrida". Falar da testemunho. E aqui se deve insistir em que uma
64 C a p ít u l o II T e o l o g ia 65

compreensão adequada disto se dá numa leitura nos abre a possibilidade de compreender o mun­
da Bíblia dentro dos referenciais acima refletidos, do e nossa vida a partir do paradoxo divino.
onde o sola scriptura foi examinado à luz dos de­ A percepção desta íntima conexão entre a
mais princípios exclusivos. Pois uma compreen­ graça e a fé tem repercussões para toda a vida.
são inadequada desta emolduração da graça Ela significa uma capacidade, ou melhor, uma
pelos textos bíblicos poderia torná-la outra coi­ sempre renovada possibilidade, de perceber a
sa. Sutilmente, uma compreensão mais legalis­ graça também lá onde esta não é visível na su­
ta, uma mesmo que leve juridicização dos tex­ perfície. Só a fé pode fazer alguém exclamar
tos bíblicos poderia levar a uma compreensão como o salmista: "foi-me bom ter passado pela
da graça que a tornasse refém de mecanismos aflição, para que aprendesse os teus decretos"
condicionantes que são incompatíveis com sua (Salmos 119.71). Enxergar a graça onde, na su­
radicalidade e incondicionalidade. perfície, ela se manifesta sob a forma de seu con­
Por fim, a graça deve ser compreendida na trário. Temos aqui o lado mais experiencial da
sua correlação com a fé. Isto significa, como en­ correlação entre a graça e a fé, cujo resultado é
fatizaremos mais adiante, primeiramente que a sabedoria de vida.
fé é criação da graça. Isso dito, pode-se agora A ênfase na exclusividade da graça, mesmo
enfatizar que a fé é aquilo em nós que pode esta­ que afirmada na superfície pelo cristianismo
belecer uma correta relação com a graça. Signifi­ como um todo, tem estado continuamente em
ca que a graça nunca será compreendida pelas tensão com possibilidades alternativas que sem­
potencialidades da razão. Nossa razão, em sua pre de novo emergem na prática cristã. Correla­
autonomia em parte divinamente assegurada, ções inadequadas, ou a ausência das correlações
está aí diante de seus limites. A graça evangéli­ certas, têm feito com que a graça acabe obscure­
ca lhe é incompreensível porque extrapola to­ cida por uma compreensão prática do cristianis­
dos os princípios desde os quais ela aprendeu a mo em que obras desempenham um papel que
se organizar e referenciar, e com sucesso, no de alguma forma extrapola o seu âmbito. E não
âmbito que lhe é próprio. Para ela a graça só precisamos aqui nos fixar numa certa caricaturi-
pode ser um paradoxo. Paradoxo para a apre­ zação do catolicismo medieval bastante comum
ensão do qual recebemos a fé, que justamente nos meios protestantes. "Obras" remetem para
66 C a p ít u l o I I T e o l o g ia 67

o papel ativo do ser humano no que diz respeito ponto, se estende ao resto dos anos da vida. As­
à salvação. E certamente um dos maiores desafi­ sim a justificação fica como que só na lembrança
os da sabedoria cristã é manter um nível intenso como um ponto no passado, enquanto que o pre­
de atividades motivadas pela fé, sem cair numa sente é todo ele movido pela preocupação com a
imperceptível depreciação da graça como o mo­ santificação.
tor principal do discipulado cristão. Quando este fenômeno se junta ainda a uma
Num outro extremo, a graça tem tido sem­ certa "divisão de tarefas", ao que somos levados
pre de novo que competir com a santidade. En­ sempre de novo pelas próprias estruturas de pen­
quanto que o apelo a obras nos impele para fora samento de nossa sociedade, há um grande risco
de nós, buscando ver sinais da salvação no que de se conceber a justificação como obra de Deus
fazemos, o apelo à santidade leva o nosso olhar e a santificação como a nossa parte no processo.
para dentro de nós próprios. A santidade tem Assim, rompe-se nas profundezas o vínculo en­
uma relação inerente com a fé. Evangelicamen- tre a santificação e a fé. E a santidade acaba to­
te, ela é crida antes de ser vista. Mas na prática mando o lugar da graça no discipulado cristão.
cristã normal isso é difícil de ser mantido. Vive­ Evidentemente isso não se dá ao nível do discur­
mos num mundo que desde sempre nos molda so, mas no nível mais profundo dos verdadeiros
no sentido de busca imediata de resultados. E motivos e propósitos de nossos pensamentos e
assim buscamos também resultados de santifica­ ações.
ção em nossa vivência da fé.
A relação entre a justificação e a santifica­ 5. Só a íé
ção tem sido um fator teológico que muitas ve­
zes põe lenha nesta fogueira. A tendência a in­ O enunciado do "somente pela fé" parece
terpretá-las como momentos separados tem ser o mais característico da Reforma. Mas deve­
levado a um desequilíbrio que ameaça a saúde mos ter cuidado ao interpretá-lo. Separá-lo dos
de toda a teologia. Neste caso, a tendência é de outros enunciados poderia levar a uma compre­
tornar a experiência da justificação um ponto na ensão de fé que justamente não é a de L u t e r o e
trajetória pessoal, enquanto que a experiência da dos outros reformadores, nem a da mais autênti­
santificação se toma uma linha que, desde aquele ca tradição católica.
68 C a p ít u l o I I T e o l o g ia 69

A fé evangélica está determinada do início teologia e a vida que vamos aprender o que sig­
ao fim pelo solus christus. É fé em Jesus como o nifica o "somente pela fé". Pois o paradoxo, jus­
Cristo de Deus. Com isso ela ganha um objeto tamente, não se deixa apreender de nenhuma
concreto. Fé evangélica é "fé em", não a fé toma­ outra maneira. Ele será sempre também a cruz
da por si, como característica pessoal ou capaci­ da nossa razão e da nossa capacidade de apre­
dade de acreditar, de mostrar uma força positi­ ender e receber Deus. O que significa que é o pró­
va interior. A fé é determinada por aquilo em prio Deus em Cristo que terá que abrir o cami­
que é depositada, por aquilo a que reage. Quan­ nho para chegar a nós.
do dizemos que a fé salvífica é fé em Cristo esta­ Que ele realmente o fez, este é o resumo de
mos reconhecendo na encarnação de Deus aqui­ todo o testemunho da Sagrada Escritura. Ela con­
lo que nos liberta e nos salva. A rigor, toda a ta deste caminho de Deus a nós, e como ao con­
Bíblia, como já vimos, pode ser lida desde o viés cretizá-lo o próprio Deus foi fazendo-o de modo
de um único e grande testemunho da vinda de a desmascarar todas as falsas possibilidades dos
Deus a nós. Mas é justamente aqui que devemos caminhos que construímos em direção a ele. Ao
ter cuidado. fazer seu próprio caminho, foi mostrando a inu­
A história desta salvação vinda a nós pode tilidade e falsidade de todos os nossos. E por cau­
nos ser contada ou ser por nós lida de modo a sa deste testemunho que a Bíblia é o nosso livro
perder aquilo que mais a caracteriza e a distin­ sagrado. Não por si própria, por sua capacidade
gue de processos humanos ou feitos heróicos, inerente enquanto livro. Não, inclusive esta pos­
mesmo que de "heróis da fé". Enquanto não per­ sibilidade de um livro "mágico" ou sagrado nes­
cebermos que esta vinda de Deus se dá de uma se sentido era uma das falsas possibilidades que
forma contrária ao que normalmente suporía­ tinham que ser mostradas nesta narrativa do
mos, temos que perguntar se Cristo aí é realmen­ Caminho. E o caminho e sua revelação a nós que
te o Cristo do testemunho bíblico. O Cristo do tes­ importam, o livro é a mediação para tanto.
temunho bíblico é sempre para nós, antes de ser Ao ser lida assim, a Bíblia nos revela a ver­
o Deus vivo (ressurreto), o Deus morto (crucifi­ dade da fé. A verdade da fé, como vimos no pri­
cado). E no paradoxo da cruz e em tomar rigo­ meiro capítulo, não é simplesmente alguma pro­
rosamente todas as suas implicações para a fé, a posição em forma de frase ou doutrina que a
70 C a p ít u l o I I T e o l o g ia 71

gente tivesse que reconhecer como "falando a ver­ não correspondia à graça evangélica, como mos­
dade". A absolutização deste tipo de verdade é trada pelo Cristo e testemunhada pela Escritura.
outra das falsas possibilidades que o testemunho Uma compreensão da graça que de alguma ma­
do Cristo veio desmascarar. A verdade aqui é o neira retira dela sua incondicionalidade, ao fa­
próprio caminho, como Jesus mesmo o afirma em zer algum aspecto dela depender de nós: é con­
João 14.6. A verdade é o próprio Cristo enquan­ tra isso que sempre de novo o protesto evangélico
to o Deus que fez seu caminho até nós. Reconhe­ deve ser levantado. Uma graça assim violentada
cer isso significa também permitir uma transfor­ acaba inevitavelmente gerando uma compreen­
mação no conceito de verdade na outra ponta. são de fé igualmente violentada. E só quando a
Verdade não é só o caminho de Deus a nós, é graça se revela em toda a sua paradoxalidade que
também o nosso próprio caminho com ele em o paradoxo da fé pode ser bem compreendido.
nossa vida neste mundo. Ao narrar as histórias A grande insistência dos reformadores foi a
do povo de Deus da antiga e da nova aliança, a depuração da fé de todo e qualquer resquício de
história "dos do caminho" (Atos 9.2), a Bíblia capacidade ou obra humana. A fé que salva não
mostra o que a verdade evangélica é e como ela é produto disponível na criação, no universo cria­
vai se construindo. E nesse sentido que a com­ do. Ela é um constante milagre trazido a nós desde
preensão do solafides depende muito da compre­ fora de nós. E criação da graça. E neste sentido
ensão do sola scriptura. A Escritura contém os que a compreensão correta do sola gratia é con­
relatos originais desta verdade-feita-caminho. E dição para a compreensão correta da fé. Como
por isso que sempre de novo temos que voltar a todo o lidar de Deus conosco é graça do começo
ela e meditar nas histórias que ela conta, mesmo ao fim, também a fé é produto desta graça. Quan­
aquelas aparentemente mais insignificantes. do ela vem fazer morada em nós, pelo anúncio
Se o "somente por fé" é o mais característi­ gracioso da vinda de Deus em Cristo a nós, como
co dos enunciados da Reforma, não podemos contada na Sagrada Escritura, um dos seus re­
nunca esquecer que ele, de certa forma, é deriva­ sultados será justamente combater as falsas no­
do de um enunciado ainda anterior: o do "so­ ções de fé que nos habitam.
mente pela graça". O que estava em jogo lá, pri­ Uma alternativa ao "somente por fé" geralmen­
meiramente, era uma compreensão de graça que te tem sido a razão. Naturalmente, pouquíssimas
72 C a p ít u l o I I T e o l o g ia 73

vezes isso tem sido apresentado explicitamente, "católica", ela é muito comum nas teologias pro­
ou mesmo entendido, como alternativa. A rela­ testantes.
ção entre fé e razão geralmente tem sido enten­ A segunda questão diz respeito ao que se
dida como de complementaridade. Quando, po­ espera da razão em termos de uma teologia cris­
rém, tal complementaridade não é bem definida, tã. Geralmente pensamos teologia como "dar res­
ou quando a paradoxalidade do evangelho e da postas" aos grandes problemas da vida. E aí, com
fé é rompida, aí na prática a razão pode acabar razão, duvidamos da capacidade da razão para
funcionando como alternativa à fé. isso, já que ela própria faz parte do problema.
A relação entre a fé e a razão é uma das Mas isso não significa que não se possa reconhe­
mais fundamentais para a teologia. Por isso é cer uma capacidade da razão ao nível das per­
tão importante que ela seja feita de maneira ade­ guntas, enquanto se duvida de suas respostas.
quada. As disputas sobre isso na história do cris­ Parece haver no ser humano algo que, de dentro,
tianismo têm sua origem em duas questões o move a se perguntar pelas coisas últimas. E como
vinculadas uma à outra. A primeira questão diz que algo em nós que se estica em direção à trans­
respeito à compreensão do pecado e de como ele cendência, a aquilo que está adiante de nós ou em
afeta o ser humano. Basicamente há duas alter­ nossa origem última, aquilo que representa o fun­
nativas. Uma é de conceber a queda no pecado damento último nas nossas profundezas ou o mais
de forma tão radical que inclua a razão humana elevado por cima de nós. A fé faz bem em atentar
com todas as suas possibilidades, levando assim para esta inquieta busca que o ser humano acaba
a uma desconfiança radical nas suas capacida­ expressando, direta ou indiretamente, de muitas
des, no que diz respeito à compreensão de Deus maneiras. A fé deve procurar reconhecer aí um
e da revelação. Nesse sentido uma razão "caí­ anseio, um gemido, muitas vezes distorcido e qua­
da" vai antes perverter o entendimento do que se irreconhecível, mas que atesta que Deus não
ajudá-lo. A outra alternativa, na prática, conce­ se deixou ficar sem testemunho também em nos­
de sempre um lugar de onde a razão poderia ao sa razão e nossa consciência.
menos fazer um primeiro esforço na busca de Uma teologia construída a partir da fé na
Deus, se não de chegar a ele por seus meios. revelação deve captar estes anseios e responder
Mesmo que pensemos que esta seja a alternativa a eles. Deve identificar a dignidade humana neles
74 C a p ít u l o I I T e o l o g ia 75

embutida, e reconhecer que a própria revelação bela definição de "fé" em Hebreus 11.1, a fé é ela
divina tem como propósito último exatamente vir própria um novo modo de ver. Fé faz ver tudo
ao encontro destes anseios, ajudando-os a se for­ diferente, do jeito que Deus vê. Aprender isso,
mularem e mostrando como o Deus que se reve­ este é o caminho e o discipulado da fé. Jesus,
la no evangelho responde a estes anseios e vem quando viu Pedro pela primeira vez, pode dizer:
em busca "do que é seu" (João 1.11). Deve apren­ "Tu és Pedro, serás chamado Simão" (João 1.42).
der a reconhecer no incessante movimento da O olhar da fé faz ver lá adiante, não se prenden­
razão humana uma forma de "tatear" (Atos do ao momento. Para Natanael, que creu por­
17.27) à procura de algo que a própria razão que Jesus disse que o tinha visto, Jesus pode di­
nem sequer pode definir direito, mas que pela zer: "se por isso crês, coisas maiores ainda verás"
luz da revelação nos é mostrado. (João 1.50). E a seguir definiu o objeto desta vi­
Esta solução não resolve todos os problemas, são da fé: o céu aberto e o Cristo como interme-
naturalmente. Sempre há um espaço intermediá­ diador entre ele e nós. E o Evangelho segue mos­
rio, fluido, onde perguntas já são respostas. E trando o conflito entre a fé e o ver, até chegar à
sempre deve-se perceber que a própria revela­ conhecida história de Tomé, a quem Jesus diz:
ção vem a nós com novas perguntas ou com re- "porque me viste, creste? Felizes são os que, sem
colocações das nossas perguntas. Mas ao menos ver, creram" (João 20.29).
assim respeitaremos as capacidades da razão, Ainda hoje, entre nós, há uma constante
sem confundi-las com o milagre da fé e as novas insistência em "ver para crer". Mas expressa de
perspectivas que ele abre, sem esquecer que para forma piedosa e espiritual. O evangelho da gra­
entrar no Reino de Deus é preciso se tornar cri­ ça invisível recebida por uma fé invisível sempre
ancinha e reaprender a aprender (Mateus 18.3). parece pouco. Por isso, temos sempre de novo
A afirmação da exclusividade da fé sempre buscado, mesmo que isso não esteja claro para
esteve ameaçada também pela nossa natural ten­ nós, modos de visibilização. E, quando estes são
dência a considerar como verdadeiro aquilo que encontrados, são reverenciados como grandes
vemos e que podemos tocar. O Evangelho de João expressões de espiritualidade.
inteiro pode ser lido desde a perspectiva desta As visibilizações da graça e da fé, entre nós,
tensão entre o crer e o ver. E se considerarmos a acabam por se tornar motivo de divisão. Onde
76 C a p ít u l o I I T e o l o g ia 77

elas ocorrem, pensamos encontrar um cristianis­ de Deus para nós. Na verdade o cristianismo não
mo melhor. Onde elas não ocorrem, temos um carece de visibilidades. Nós é que carecemos da
cristianismo frio ou até morto. E pouco percebe­ fé para percebê-las, e por isso acabamos achan­
mos o quanto a nossa infantilidade cristã é reve­ do que percebemos visibilizações de Deus onde
lada com isso. Pois a fé evangélica é aquela que o que ocorre são simplesmente processos huma­
aprende a ver com o olhar de Deus. E, amadure­ nos, nos quais Deus vez que outra pode estar,
cida no contato com a Escritura, já aprendeu que mas justamente não pela inerência dos proces­
o Cristo que veio a nós veio escondido, de um sos, mas por sua decisão de ali se revelar a nós.
jeito paradoxal, justamente para tornar-nos to­ Fazer de tais visibilizações um critério para a
dos iguais em nossa incapacidade de apreendê- autenticidade do discipulado e da salvação, é
lo. E percebeu que ele continua fazendo assim demonstrar que também nós, como Tomé, preci­
ainda hoje. E que é no seu escondimento que o samos sempre de novo da graça de "crer sem
recebemos, e que caminhar com ele nessa apre­ precisar ver".
ensão da revelação oculta é que é a verdadeira
característica do discipulado cristão.
Deus mesmo, quando se fez visível, nos mos­
trou como e quando o devemos acolher em sua
visibilidade. Os sacramentos do cristianismo são
o ponto de concentração disto. São os lugares
privilegiados desta visibilização. Privilegiados,
não exclusivos. Uma compreensão não adequa­
da e por demais eclesiocêntrica dos sacramentos
tirou deles sua representatividade e o "simbolis­
mo do simbólico" neles. São símbolos de todos os
outros símbolos que querem para nós mediati-
zar e visibilizar a presença de Deus, e que po­
dem em última análise englobar a criação intei­
ra, que para o olhar da fé mediatiza a presença
C a p ítu lo III
ÉTICA

Questões éticas sempre estiveram no centro


das preocupações cristãs. Estamos hoje num
momento histórico em que a sociedade toda dis­
cute com muito empenho a questão da ética. É
apropriado, portanto, que numa introdução à fé
cristã não deixemos de lado este tema. Precisa­
mos fazê-lo, uma vez, para o nosso próprio es­
clarecimento, e outra vez para que possamos
contribuir conscientemente para as discussões em
andamento. A sociedade, geralmente, espera da
religião e da teologia uma contribuição ética, ven­
do-a como depositária não só de tradições de
pensamento com marcadas conseqüências éticas,
mas também da energia necessária para tradu­
zi-las em posturas e ações concretas.
Quero aqui refletir sobre os fundamentos de
uma ética em perspectiva cristã. Quero fazê-lo
80 C a p ít u l o I I I É t ic a 81

desde um duplo lugar. É na interação entre estes internas nas tradições cristãs, entre o significado
dois "lugares" que proporei a minha contribui­ da Lei e de sua relação com o Evangelho, já se
ção ao tema. fazem sentir desde o início da história do cristia­
Começarei examinando uma metáfora que nismo, e têm sido sempre um dos fatores que di­
capta numa imagem a essência da perspectiva ficultam uma plena integração das diferentes
ética do cristianismo. Depois, tratarei dos fun­ correntes do mesmo.
damentos da ética a partir de um texto que é pro­ Portanto, faz-se necessário desde logo encon­
vavelmente o mais influente na configuração da trar uma perspectiva adequada, que leve a sério
ética tanto na tradição cristã como na tradição esta paradoxalidade e suas conseqüências para
judaica: os Dez Mandamentos. A interpretação a teologia e o discipulado cristão, e as desdobre
dos Mandamentos no espírito do mandamento numa fundamentação de uma ética no espírito
do amor de Jesus tem sido um referencial na pro­ evangélico da catolicidade cristã. Melhor que
dução de parâmetros éticos na tradição cristã, procurar esta perspectiva no nível do discurso
numa constante busca de equilíbrio entre o re­ teológico ou doutrinário é procurá-la nas metá­
conhecimento de uma "ética impossível" e, por­ foras fundantes deste discurso, naquelas imagens
tanto, do fato de estarmos constantemente sob que muitas vezes os governam sem que a per­
o juízo de Deus, e a afirmação de uma "ética cepção disto seja sempre explícita. O poder das
possível", a partir da força do Espírito que ani­ metáforas fundantes sobre o nosso imaginário e
ma a descobrir nos mandamentos orientações sobre as estruturas básicas do nosso pensamento
positivas para o comportamento cristão. tem sido demonstrado nas últimas décadas por
pesquisas no âmbito das chamadas Ciências da
I. O ponto de partida: uma metáfora que Cognição, como vimos acima. Leitores/as aten­
capta os fundam entos da ética tos/as da Bíblia, porém, já estão acostumados/
as com isso desde sempre. A força das grandes
Justamente a percepção da paradoxalida- metáforas bíblicas na configuração da teologia e
de dos Mandamentos e da Lei divina como tal, da espiritualidade tem sido, às vezes, subestima­
que é característica de sua interpretação cristã, da, como também as conseqüências epistemoló-
é também seu ponto vulnerável. As divergências gicas daí advindas.
82 C a p í t u l o III É t ic a 83

Uma primeira possibilidade seria partir da Esta imagem encontra-se no Tratado acerca
metáfora, comum na tradição cristã, das "duas da Liberdade Cristã, de L u t e r o . L á ela aparece
mãos" de Deus. Esta imagem tem governado mui­ num contexto de referência a João 1.51, que re­
tas das construções éticas do cristianismo. Tería­ presenta o Filho do Homem como "escada" en­
mos aí uma ética "espiritual" e uma ética "secu­ tre o céu e a terra.
lar". Quando associada à imagem dos Dois Reinos,
ou das Duas Cidades, ela ganha força e vai se tor­ Vê, de acordo com esta regra, os bens que temos
de Deus devem fluir de um para o outro e tornar-
nando uma espécie de metáfora fundante, aquelas
se com uns, de sorte que cada qual assum a seu próxi­
que estão por baixo do pensamento mesmo que este mo e proceda com ele com o se estivesse no lugar
nem se aperceba disso. Neste caráter ela acaba in­ dele. Eles flu íram de C risto e fluem para dentro de
fluenciando também a interpretação dos Manda­ nós, ele que nos assum iu de tal m odo e procedeu
conosco com o se ele fosse o que nós somos. D e nós
mentos. A associação desta metáfora com as duas
eles flu em para dentro daqueles que deles necessitam ,
tábuas da lei é quase inevitável. Como resultado, a tal ponto que inclusive minha fé e justiça têm
temos uma interpretação dos Mandamentos que que colocar-se perante Deus, para cobrir e inter­
os divide em "espirituais" (os relacionados a Deus) ceder pelos pecados do próxim o que devo tom ar
e "seculares" (os relacionados ao próximo), e os sobre mim, e neles labutar e servir com o se fossem
m eus próprios, pois foi isso que Cristo fez a nós.
entende como passíveis de serem cumpridos, o Este é, portanto, o verdadeiro am or e a regra sincera
que na verdade se espera de todo "bom cristão". da vida cristã. (...)
Mesmo que isso não seja dito deste modo, o efeito Concluím os, portanto, que a pessoa cristã não vive
direcionante da metáfora leva a isto. em si mesma mas em C risto e em seu próxim o, ou en­
tão não é cristã. Pela fé é levada para o alto, aci­
Não quero me deter por mais tempo na aná­ m a de si m esm a, em Deus; por outro lado, pelo
lise deste modelo de interpretação dos Manda­ am or desce abaixo de si, até o p róxim o...6
mentos que, por extensão, acaba se tomando tam­
bém modelo da ética. Em vez de uma abordagem Com certeza podemos fazer um retoque nes­
desconstrutiva, opto por uma abordagem cons­ ta imagem, dentro do espírito do próprio L u t e r o .
trutiva ao tema. Para isso, começo buscando uma
outra imagem para a perspectiva fundamental
6 M a rtimL u t e r o , Tratado acerca da Liberdade Cristã
desta ética. (1520), em Obras Selecionadas 2: 456.
84 C a p í t u l o III É tica 85

Podemos imaginar o cristão com a mão direita O cristão é mediador da ação de Deus para o
estendida para o alto, em direção a Cristo, e a próximo. E aqui devemos notar um segundo de­
esquerda para o lado, em direção ao próximo. A talhe na imagem: o lugar de Deus no texto bíbli­
referência "para baixo" não é tão feliz, e certa­ co é ocupado agora por Cristo, o "Deus para
mente foi induzida pela imagem da escada do nós", a revelação da graça e misericórdia divina
texto de João 1.51. Ou podemos simplesmente para conosco. Os bens de Cristo fluem para o
imaginar uma corrente: o cristão segura na mão cristão, e dele para o próximo. Neste sentido,
de Cristo com uma das mãos e na do próximo L u te r o fala com propriedade de a pessoa cristã
com a outra. "ser Cristo para o próximo". Ele/ela será a me­
A associação a que L u te r o é induzido pela diação através da qual Cristo estenderá os seus
imagem de Jesus como a escada do sonho de Jacó bens para o próximo. E o "próximo" aqui inclui
tem amplas conseqüências teológicas. Seu tema, toda a humanidade, sem restrições, mas com uma
no contexto, é a pessoa cristã. Sem dúvida, ele clara acentuação: é o ser humano necessitado que
entende a pessoa cristã numa posição como a de se encontra próximo a mim.
Cristo, ou seja, como escada que de um lado toca Aqui temos, portanto, o fundamento teoló­
em Deus e do outro toca o próximo. O fato de ele gico da ética: a identificação da pessoa cristã com
transferir a posição de Cristo para a pessoa cris­ Cristo, a partir da identificação de Cristo com a
tã é aquilo em que queremos aqui meditar. Que pessoa cristã. Tal como Cristo foi "o livre" e nes­
esta é a intenção de L u tero nesta passagem, não ta condição se fez "servo" de todos, também a
há dúvida. Trata-se de uma extensão, de funda­ pessoa cristã é "livre" e nesta condição se faz
mental importância para a compreensão da ética "serva" do seu próximo. O que vale de Cristo,
cristã, da metáfora do casamento entre Cristo e a vale do cristão, que a partir do evangelho se tor­
pessoa crente, da "alegre permuta", que L u tero na "Cristo para o próximo". E não deveríamos
havia usado um pouco antes no mesmo escrito. ver nisso simplesmente uma figura de linguagem.
Ah é dito que tudo que é de Cristo passa para nós, Cristo vem ao próximo através de nós, essa é a
tal como tudo que é nosso passa para Cristo. grandeza da nossa vocação, e também sua su­
Nesta relação, como já foi dito, a pessoa cristã prema responsabilidade. A pessoa cristã faz a
representa Cristo, ela é "Cristo para o próximo". ponte entre Deus e o próximo.
86 C apítulo III É t ic a 87

Nesta metáfora temos também claras indi­ objeto do amor; um movimento centrado no
cações a respeito da fonte, do "m otor" da ética. objeto, com o propósito de valorizá-lo e afirmá-lo.
Esta questão é da maior importância no debate Talvez a palavra "amor", hoje tão indiferen­
ético. Por que ser ético? De onde nos advém a ciada, devesse ser substituída por outra que cap­
exigência de ou a motivação para uma existência tasse melhor e mais definidamente o movimento
ética? Aqui esta fonte é dupla. De um lado, é a de agape. A tradição católica, a partir da Vulgata
energia do amor de Deus que flui para a pessoa latina, instituiu por muito tempo o sentido de "ca­
através da fé. Um dos braços se estende para Deus, ridade". Caridade, porém, também se tomou ina­
e possibilita o livre fluir da energia amorosa divi­ dequado, dados os sentidos que o termo possui
na que sustenta a existência ética. O reconheci­ no português de hoje. No contexto latino-ameri­
mento disto tem sido sempre o fundamento da cano dos anos 80 e 90, foi sugerido "solidarieda­
ética cristã. De outro lado, o outro braço se esten­ de" como boa tradução. Porém, solidariedade sem­
de para o próximo, e é do próximo que vem o se­ pre tem o risco de ser entendido como uma certa
gundo apelo a uma postura ética. O próximo, por disposição de espírito para com os outros, sem
sua presença, é interpelação ética. E não se trata, implicar necessariamente numa prática ativa. Por
como vimos, de um próximo indiferenciado. É o isso, quero sugerir que interpretemos agape como
necessitado que aqui está em vista, e que em sua cuidado, de "cuidar", significando uma disposi­
necessidade irrompe em minha existência, vindo
ção ativa e benigna na relação com o próximo.
ao meu encontro. Sua presença é interpelação, e
Chegamos, assim, à definição da ética cristã
esta interpelação se torna fundamento da ética.
como "ética do cuidado"7. "Cuidado" inclui si­
Esta imagem corresponde ao supremo man­
multaneamente os dois momentos do agape, o da
damento de Jesus: "amarás o Senhor teu Deus
disposição interior e o da mobilização ativa. O
sobre tudo, e o próximo como a ti mesmo". É o
mesmo duplo movimento. Uma questão que tem
preocupado a teologia é o que significa exatamente 7 O tema de um a ética do cuidado tem sido explorado
recentemente por Leonardo BOFF, especialmente nos
o amor de que se trata aqui. A palavra grega aga­
livros Saber Cuidar (1999) e Ethos M undial (2003). Pos­
pe poderia ser plasticamente definida como um síveis concretizações de um a tal ética encontram os
movimento de dentro para fora, em direção ao no livro de Sidnei Vilmar NOÉ, A m ar é Cuidar (2005).
88 C a p í t u l o III É tica 89

acentuar mais um ou outro destes momentos cuidado que a pessoa cristã tem para com todo
depende um pouco da tradição onde a gente se ser humano e com toda a criação.
situa. Enquanto a tradição católica muitas vezes A partir desta metáfora, então, e retendo
precisa insistir na disposição interior, provavel­ suas percepções mais fundamentais, quero me
mente na tradição protestante devemos insistir
na mobilização ativa. Importante é que ambos tos. Nesta interpretação se faz necessário, logo
os momentos se concretizem em sua simultanei­ de saída, uma segunda "análise desconstrutiva",
dade e interpenetração. desta vez sobre a história da interpretação dos
Quais seriam os objetos, ou as destinações Mandamentos na tradição cristã. Novamente,
do cuidado? A síntese de Jesus indica: Deus, o tentarei ser breve neste movimento de descons-
próximo, nós próprios. Certamente não é demais trução, para depois poder me aprofundar mais
insistir em que o cuidado em relação a Deus, ao no momento positivo da construção.
próximo e a nós próprios inclui todo o ecossiste­
ma em que estas relações são possibilizadas, pre­ 2. A interpretação dos M andamentos na
ocupação que em nosso mundo atual é muito tradição cristã
importante.
Voltando, então, à nossa metáfora: o cris­ A interpretação dos Mandamentos na tradi­
tão, objeto do cuidado de Cristo, torna-se cuida­ ção cristã muitas vezes carrega consigo um sério
dor do próximo. E este tornar-se não é optativo, problema, não por último desde a perspectiva da
voluntarístico. Ele representa uma transformação ética. Não pelo que diz, mas pelo que deixa de
interior que faz do cristão a imagem de Cristo, ao dizer. Quero ilustrar este problema aqui referin­
receber de Cristo os seus benefícios. "Para que se­ do-me à tradição luterana, da qual provenho, fa­
jamos Cristos um para o outro", diz L utero 8. Tra­ zendo assim uma auto-crítica. E faço-o analisan­
ta-se de algo constitutivo. O cuidado que Cristo do a interpretação dos M andam entos nos
tem para com toda a humanidade é, agora, o Catecismos de L u ter o . Pelo fato de este problema
muitas vezes sequer ter sido percebido, ele acabou
8 M. L u t e r o , Tratado acerca da Liberdade Cristã, em gerando uma interpretação dos Mandamentos que
Obras Selecionadas 2: 454. passa ao largo da questão mais fundamental dos
90 C a p í t u l o III É tica 91

mesmos, quando lidos em seu contexto bíblico Há consenso na exegese bíblica de que as
original. E este passar ao largo acabou resultando palavras do prólogo não só situam os Manda­
numa tradição ética que, em relação a este pro­ mentos num contexto sócio-histórico e também
blema fundamental, muitas vezes correu o risco teológico, mas que lhe dão as coordenadas para
de gerar uma prática cristã diferente e talvez con­ a sua interpretação9. O texto do prólogo é su­
trária à intenção original dos Mandamentos. cinto: "Eu sou o Senhor, teu Deus, que te tirei
O problema fundamental a que me refiro está da terra do Egito, da casa da servidão" (Êxodo
na ausência de qualquer referência ao prólogo 20.2). A estas palavras seguem-se, então, os
aos Mandamentos, por exemplo na forma como mandamentos: "Não terás outros deuses, etc."
os temos no Catecismo Menor de L u t e r o . Ali, a (Êxodo 20.3-17).
interpretação começa direto com "O Primeiro: Sem me deter em considerações de caráter
Não terás outros deuses. Que significa isso? etc.". sócio-histórico, vou direto à questão teológica
Para L u te r o isso não é problema, pois o manejo deste enquadramento dos Mandamentos no agir
constante da Bíblia toda faz com que as palavras libertador de Deus na história. Os israelitas, até
do prólogo estejam em sua mente e lhe sirvam então escravos no Egito, foram poderosamente
de constante referência, mesmo que não explíci­ libertados por Deus. Saindo do Egito, dirigiram-
ta. Para a tradição luterana que assim aprendeu se ao deserto, onde recebem os Mandamentos
a ler os Mandamentos, isso veio a representar um divinos. A questão teológica que aqui se põe é a
sério problema. Uma vez, porque muitas vezes seguinte: qual é a relação entre a libertação e os
não se seguiu o sempre de novo reiterado conse­ mandamentos? Na resposta a esta questão se
lho de L u te r o de buscarmos diretamente na Es­ decide a questão hermenêutica mais fundamen­
critura a orientação divina, uma vez que ela con­ tal dos Mandamentos.
tém as chaves de sua própria interpretação. Outra Muitas vezes na história do cristianismo, e
vez, porque cortando o vínculo entre os Dez exemplarmente na do luteranismo, não se ficou
Mandamentos e seu prólogo se corre sérios ris­
cos de não captar aquilo que é precisamente o
9 Esta questão está bem analisada no livro de F r a n k
ponto hermenêutico e ético principal dos Man­ C r ü s e m a n n , Preservação da Liberdade: o D ecálogo numa
damentos. perspectiva h istórico-social (1983, 1993).
92 C a p í t u l o III É t ic a 93

longe de uma interpretação legalista dos Manda­ suas angústias sob a opressão da lei. E não só da
mentos. Pelo menos na prática, às vezes até con­ lei mosaica em termos mais amplos como dos
tra as intenções dos/as catequistas. O fato de a Mandamentos em sentido estrito, como Paulo
interpretação de L utero , nos Catecismos, sempre deixa claro em Romanos 7.7-10.
incluir um elemento de positividade em cada man­ A resposta a esta questão tem que ser en­
damento, acabou ajudando para isto. Na prática contrada na relação, feita pelo texto bíblico, en­
da catequese, os mandamentos eram interpreta­ tre os Mandamentos e a libertação. Os Manda­
dos como lei divina possível de ser cumprida. O mentos foram dados para a preservação da
objetivo era, na verdade, inculcar nas pessoas a liberdade recém conquistada. Portanto, seu tema
necessidade de cumprirem esta lei, nem sempre é a liberdade e não um jugo ou uma nova escra­
deixando claro quais seriam as penas pelo seu não- vidão. Os Mandamentos não querem ser lei que
cumprimento. Com isso, a prática catequética, no engessa, mas instruções para a preservação da
fim, acaba não diferindo muito da interpretação liberdade contra os inimigos da mesma.
e prática dos fariseus do tempo de Jesus, com to­ Assim colocado, a dádiva dos Mandamen­
dos os vícios e problemas daí decorrentes para a tos visa aprofundar o processo de libertação ini­
teologia, a espiritualidade e o discipulado cristão. ciado no Egito. A frágil e ameaçada liberdade ali
Como a relação entre os mandamentos e a conquistada precisa ser preservada, aprofunda­
libertação não era feita, o problema não apare­ da, solidificada. Este é o referencial bíblico para
cia em sua gravidade teológica. A quem se per­ a leitura e interpretação dos Mandamentos.
guntasse por esta relação, sobraria a pergunta: A importância do prólogo para a interpre­
então Deus libertou os israelitas para logo a se­ tação do conjunto dos Mandamentos foi sempre
guir colocá-los sob novo jugo? Pois uma inter­ enfatizada pelo próprio L u te r o , que em outros
pretação legalista sempre representa um "jugo", escritos inclui no Primeiro Mandamento as pala­
como aliás os fariseus do tempo de Jesus reco­ vras do prólogo. Contudo, mesmo que o proble­
nheciam, chamando a lei de "jugo". E se a pala­ ma fundamental de que estamos tratando seja,
vra "escravidão" neste contexto nos soa pesada nestes casos, um pouco amenizado pela insinua­
demais, é porque talvez não chegamos a com­ ção do caminho certo, ainda continua a persis­
preender e "sofrer junto" com Paulo e L u te r o tir. O fato é que L u te r o geralmente, se limita à
94 C a p í t u l o III É t ic a 95

referência ao início do prólogo "Eu sou o Senhor, que uma exige a outra e as duas são complemen­
teu Deus", deixando de lado justamente a refe­ tares, formando uma só leitura em dois momen­
rência à libertação e ao êxodo. Efeitos práticos tos. Esta leitura conjunta em dois momentos é
disto se mostram sempre de novo na teologia, na sugerida pela própria imagem, que coloca a pes­
ética, na compreensão de espiritualidade e disci- soa cristã como epicentro de duas relações: a re­
pulado na tradição luterana. Talvez devêssemos lação com Deus e a relação com o próximo.
nos perguntar seriamente as razões desta sone­ O primeiro momento da leitura dos Manda­
gação do texto bíblico. mentos, então, diz respeito à relação com Deus.
Cabeçalho de cada mandamento deveria, Poderíamos defini-la como "leitura da fé". Nesta,
então, ser: "Eu sou o Senhor, teu Deus, que te somos colocados diante de Deus e de sua exigência
tirei da terra do Egito, da casa da servidão - Não para com a sua criação. Reconhecemos o direito
farás para ti imagens, etc."10. Assim teremos sem­ divino de fazer isso, sim, reconhecemos mesmo a
pre em vista o propósito de Deus na dádiva dos necessidade disto, dado o pecado que subjugou,
Mandamentos. A liberdade conquistada deve ser com a humanidade, a criação inteira. Nesta leitu­
agora preservada e aprofundada. E para tanto ra, reconhecemos primeiramente o caráter positivo
Deus nos dá instruções. dos Mandamentos, como a exegese bíblica recente
tem feito. Depois, reconhecemos também nossa in­
3. Os M andamentos como fundam ento capacidade, por força do mesmo pecado, de cum­
ético da teologia cristã prir os Mandamentos, e assim a nossa posição como
culpados sob o juízo divino. Por fim/reconhece­
A imagem da pessoa cristã com um braço mos também que a partir da graça de Deus no
voltado para Deus e o outro para o próximo su­ evangelho somos salvos da condenação, por meio
gere uma dupla leitura dos Mandamentos, em da fé. É por isso que essa leitura é finalmente
chamada de "leitura da fé", porque é desde esta
situação final que, retroativamente, o processo
10 Isto é feito exemplarmente por C r ü s e m a n n no livro acima
todo é elucidado e compreendido.
citado. A interpretação de cada mandamento acontece
num capítulo intitulado "Qual é a relação dos manda­
O segundo momento da leitura dos Manda­
mentos com o tema do Prólogo?" (op. cit., p. 36-68). mentos pressupõe o primeiro. Será, então, uma
96 C a p ít u l o I I I 97

"leitura do amor", ou melhor, para usar uma humanidade. E não só no sentido ético, das re­
concepção tradicional, uma "leitura da fé ativa lações humanas, mas também no sentido pro­
no amor". Nele, neste segundo momento inter- priamente teológico. A teologia latino-america­
pretativo, os Mandamentos são vistos desde a na das últim as décadas tem nos ajudado a
nossa relação com o próximo. Nele a posição da perceber isso. No evento paradigmático da pás­
pessoa cristã é essencialmente diferente da sua coa, da libertação e da saída do Egito, Deus se
posição no primeiro momento da leitura. Aqui a revela a nós como o Deus que ele é, e revela a
pessoa cristã representa o próprio Cristo em sua sua vontade acerca da coexistência humana
relação com o próximo. Este momento interpre- neste mundo. Revela a sua vontade para com a
tativo, infelizmente, muitas vezes tem sido dei­ humanidade que criou, no mundo que criou.
xado de lado, quando ele representa, de fato, o Esta revelação do êxodo é a moldura mais am­
fundamento da ética cristã. pla dentro da qual a revelação da sua vontade
nos mandamentos faz sentido.
4. O p r im e ir o m o m e n to d a le itu r a No êxodo Deus se revela como o Deus vivo
que atua poderosamente em juízo e graça. O
Situar os Mandamentos em seu contexto ori­ Deus que não suporta a idolatria dos falsos deu­
ginal é recuperar para a sua interpretação um ele­ ses e a opressão do ser humano pelo ser huma­
mento dinâmico na relação com Deus. O Deus que no. O Deus que julga o pecado até as últimas
faz exigências éticas é o Deus que antes libertou o conseqüências, e que ao fazê-lo revela o seu
povo da escravidão. As exigências éticas, então, grande amor para com a humanidade. Quan­
devem ser vistas como parte do processo de liber­ do os mandam entos são introduzidos pela
tação. Num primeiro momento, Deus libertou o apresentação do Deus libertador, isto significa
povo da escravidão social, política e cultural que que é nesta perspectiva do Deus vivo que nos
o Egito lhe havia imposto. A graça que ele demons­ confronta ativamente em juízo e graça que os
trou para com os israelitas se manifestou em juízo mandamentos devem ser recebidos e compre­
contra os egípcios e seu sistema imperialista. endidos. Assim eles próprios se tornam media­
Hoje devemos reaprender o papel paradig­ dores deste juízo e desta graça, trazendo am­
mático do êxodo na história de Deus com a bos até nós.
98 C a p í t u l o III É t ic a 99

Este duplo caráter dos mandamentos é perce­ atrevimento das capacidades humanas". Por isso
bido por L utero no Catecismo Menor. A última é que Paulo, em suas cartas, falava do ministério
pergunta, "Que diz Deus de todos esses manda­ da lei como "ministério do pecado" e "ministé­
mentos?", é respondida com um trecho que no rio da morte". "Pois, através da lei, Moisés não
texto bíblico é parte do primeiro mandamento, e consegue fazer mais do que indicar o que se deve
que anuncia o juízo de Deus, que "visita a ini­ fazer e deixar de fazer. Mas ele não dá a força e
qüidade" daqueles/as que "o aborrecem" (lite­ a capacidade de fazer e deixar de fazer isso, e
ralmente, "o odeiam"), e a sua graça, a sua mi­ assim nos deixa atrelados ao pecado". E assim
sericórdia para com aqueles/as que o amam e "a morte se atira sobre nós". Um pouco adiante
guardam os seus mandamentos. isso é resumido nas seguintes palavras: "O fato
Mas de novo temos aqui um problema. Ao de que o pecado é encontrado em nós e que tão
mesmo tempo em que o Catecismo adverte so­ poderosamente nos entrega à morte, resulta da
bre juízo e graça, poderia ser lido como dando ação da lei, a qual nos revela e ensina a reconhe­
a entender que é possível "guardar os manda­ cer o pecado". Quem percebe a intenção da lei
mentos" e assim obter o favor divino. Natural­ aprende no contato com ela a "reconhecer o pe­
mente, L u t e r o sabe muito bem que isso não é cado e suspirar por Cristo"12.
assim. No Catecismo Maior ele observa que "ho­ O primeiro momento da leitura dos Manda­
mem nenhum pode chegar a cumprir, da ma­ mentos é, então, o da percepção da impossibili­
neira devida, um só que seja dos Dez Manda­ dade de cumpri-los e de, por isso, estar sob a con­
m entos"11. denação de morte. Tal percepção nos leva a
Em seu Prefácio ao Antigo Testamento, L u t e ­ desesperar de nós próprios e a "suspirar por Cris­
ro mostra que a questão realmente é perceber a to". O encontro com Cristo mostrará que, para­
"intenção da lei". E para ele, "a verdadeira in­ doxalmente, este juízo divino já é o movimento
tenção de Moisés é a de revelar o pecado por da sua graça, e assim também a dádiva dos man­
meio da lei" e assim "causar vergonha a todo o damentos.

11 M. L u t e r o , O Catecism o M aior (1529), no Livro de 12 M. L u t e r o , Prefácio ao Antigo Testam ento (1545), em


C oncórdia, p. 444. O bras Selecionadas 8: 26-28.
1 00 C a p ít u l o I I I É t ic a 101

5. O segundo m om ento da leitura que interior e exteriormente vive e atua de forma


a servir ao proveito da carne e à vida temporal"13.
Como já vimos, o propósito divino com os "Carne", então, é o buscar as coisas para si, para
mandamentos é de continuar o processo de li­ o seu próprio proveito, é uma determinada pos­
bertação iniciado no êxodo. A liberdade conquis­ tura em relação à vida e às coisas.
tada precisa agora ser preservada, protegida de O apelo de Paulo aos gálatas, então, é: "Por­
seus muitos inimigos. Os próprios mandamen­ que vós, irmãos, fostes chamados à liberdade;
tos mostrarão que esta liberdade ainda é frágil e porém não useis da liberdade para dar ocasião à
parcial. carne; sede, antes, servos uns dos outros, pelo
É preciso ir um passo adiante, para que mes­ amor" (Gálatas 5.13). E segue confrontando-os
mo a busca de preservação da liberdade não vol­ com o sentido profundo da lei, que ele interpreta
te a se tornar um novo tipo de escravidão. Se na mesma linha de Jesus, reduzindo-a para efei­
cada um/a se empenhar por si na preservação tos pedagógicos a um único mandamento, o do
desta liberdade, logo teremos novas escravidões amor ao próximo. Esta conexão entre os manda­
de todo tipo. Valem aqui, em transposição, as mentos e a liberdade é de vital importância. Ela
palavras de Paulo: "Para a liberdade foi que Cris­ se encontra também no fundamento da compre­
to nos libertou. Permanecei, pois, firmes e não ensão ética de L u t e r o . O Tratado acerca da liber­
vos submetais, de novo, a jugo de escravidão" dade cristã é uma longa meditação sobre a liber­
(Gálatas 5.1). Segundo Paulo, o problema dos dade, sua origem, suas conseqüências e aquilo
gálatas era que, "tendo começado no Espírito", que a ameaça. Tal como Paulo, L u te r o coloca a
estavam agora "se aperfeiçoando na carne" liberdade em relação dialética, paradoxal, com a
(Gálatas 3.3). A exegese atual tem referendado escravidão. E este é justamente, como vimos, o
aquilo que também L u te r o sabia bem: "carne" tema do prólogo aos Mandamentos.
no sentido bíblico se refere não a um aspecto do Para Paulo, por paradoxal que isto pareça,
ser humano, mas "a tudo que é nascido da car­ a preservação da liberdade consiste em, volun­
ne, a pessoa inteira, com corpo e alma, a razão e
todos os sentidos, isto pelo motivo de que tudo 13 M. L u t e r o , Prefácio à Epístola de S. Paulo aos Roma­
nela procura pela carne"; carne "é uma pessoa nos (1546), em Obras Selecionadas 8: 134.
1 02 C a p ít u l o I I I É t ic a 1 03

tariamente, tomar sobre si um novo tipo de "es­ Jesus, como o grande profeta prometido na tra­
cravidão". Ser "servos uns dos outros, pelo amor" dição judaica, certamente o percebeu em toda a
(Gálatas 5.13) é o meio mais eficaz de preservar sua profundidade e radicalidade.
a liberdade a nós conquistada por Cristo. Da mes­ E neste ponto que percebemos a necessida­
ma forma os Mandamentos querem ensinar os de de se ler os Mandamentos em dois momentos,
israelitas a "serem servos uns dos outros, pelo exigida pela dupla relação de que eles tratam.
amor", assim preservando a liberdade conquis­ Esta dupla relação comanda a síntese dos man­
tada no êxodo. damentos feita por Jesus, e comanda também a
Mas é aqui, justamente, que temos que nos metáfora com a qual iniciamos nossa meditação.
dar conta da grande virada implícita na inter­ O que acontece entre as duas leituras é de funda­
pretação dos Mandamentos feita por Jesus e por mental importância. O primeiro momento inter-
Paulo. Começo pela descrição do problema. Nor­ pretativo termina com a pessoa cristã fora de si,
malmente interpretamos os Mandamentos como não no sentido de uma perturbação mental, mas
tendo o foco em nós próprios. Eu não devo fazer no sentido de ser tirada de si para ser depois de­
isto, eu não devo fazer aquilo. E temos dificulda­ volvida a si própria num processo de conversão.
de de perceber que justamente aí é que está o Na relação com Deus, em juízo e graça, te­
problema. Nesta perspectiva, que é a mais nor­ mos exposta nossa condição de escravidão ao nos­
mal entre nós, nosso foco continua "na carne". Pois so próprio eu. O juízo divino, que realiza a morte
é justamente aí que nos defrontamos com a mai­ do pecador, nos arranca desta condição, nos co­
or de todas as escravidões: nossa escravidão a loca numa posição "extática" no sentido de ex sta­
/ V // //
nos mesmos, a nossa carne . sis, fora de nossa posição anterior. E é nesta con­
É desta segunda e mais profunda escravi­ dição que o movimento da salvação se completa,
dão que os Mandamentos querem, fundamen­ nos extra nos, fora de nós. O novo eu que emerge
talmente, nos libertar, completando assim a li­ nesta condição é assim descrito por Paulo: "logo,
bertação iniciada no êxodo. O próprio povo já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim"
judeu teve dificuldade de perceber isto. Mas há (Gálatas 2.20). O eu escravo do pecado é aniqui­
uma tradição profética que perpassa as Escritu­ lado pelo juízo divino, ressurgindo um novo eu
ras hebraicas que dá mostras de o ter percebido. "à imagem de Cristo" (2 Coríntios 3.18).
1 04 C a p í t u l o III 1 05

Este novo eu refeito à imagem de Cristo não como o ser humano sob a impossível exigência
é um monstro sem feições próprias. E, na verda­ divina, mas como o "Cristo para o próximo", o
de, o nosso eu mais próprio, que fora obscureci­ seu cuidador, responsável pela preservação de
do, reprimido, soterrado pela experiência contí­ sua liberdade e humanidade.
nua do pecado. E o nosso ser mais autêntico, agora É importante mencionar que não se trata
devolvido a nós pela graça divina. É só à luz des­ aqui de uma perspectiva simplesmente linear,
te evento que podemos compreender adequada­ nem da primeira para a segunda leitura e nem
mente a parte da síntese dos mandamentos feita da mudança de condição da pessoa cristã, que
por Jesus que fala de amar ao próximo "como a está em seu fundamento. Vale aqui sempre a in­
si mesmo". Este "si mesmo" é a "nova criatura" tuição antropológica fundamental do simul jus­
de que Paulo fala em 2 Coríntios 5.17, que resul­ tus et peccator, do ser humano ao mesmo tempo
ta da reconciliação efetuada por Cristo. justo e pecador. Esta marca tanto o primeiro
Este novo eu que emerge do encontro com o como o segundo momento, e também a relação
Deus vivo em juízo e graça é, então, identificado entre eles. Em nossa relação com Deus, estamos
com Cristo. E nesta identificação ele agora assu­ sempre entre a postura do cuidado de deixá-lo
me a sua relação com o seu próximo. Só aqui se ser Deus e a postura do assalto à sua divindade
completa a conversão de que falamos acima. O em nome da ilusão da nossa própria. E em nossa
que vai entre as duas leituras é um processo de relação com o próximo somos ao mesmo tempo
conversão, que só neste contexto recebe seu ple­ seu cuidador e seu opressor. Não só cuidamos em
no sentido. Trata-se de um duplo movimento. preservar sua liberdade, mas também a ameaça­
Uma conversão a Deus pelo confronto com ele mos constantemente. Por isso, a conversão é sem­
em juízo e graça é só metade da conversão. A pre um movimento renovado, diário, parte de uma
segunda metade é o movimento de retorno, em "batalha espiritual", se assim o quisermos.
direção ao próximo. Nesta segunda leitura dos Mandamentos,
A partir desta relação com o próximo inau­ então, perceberemos nossa responsabilidade para
gura-se, então, na interpretação dos Mandamen­ que o nome de Deus não seja confundido ou usa­
tos, o segundo momento interpretativo, uma se­ do falsamente, de modo que o nosso próximo,
gunda leitura. Nesta a pessoa cristã já não atua por causa disso, venha a encontrar obstáculos
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para crer em Deus e adorá-lo adequadamente. deles por meio de mercadorias falsificadas ou
Nossa responsabilidade em relação a jornadas de negócios fraudulentos, porém o ajudemos a me­
trabalho que não onerem a possibilidade de des­ lhorar e conservar os seus bens e o seu ganho"14.
canso e o tempo para cuidar das necessidades Na mesma linha vão as referências a "se
espirituais. Nossa responsabilidade para com as apoderar da herança ou casa do próximo sob
pessoas na terceira idade. Nossa responsabilida­ aparência de direito" (na explicação do Nono
de para com os próximos mais próximos de nós, Mandamento)15. As explicações mais abrangen­
no sentido de protegê-los da violação das rela­ tes do Catecismo Maior aprofundam este tema
ções pessoais, de preservar uma base mínima de com riqueza de detalhes. Certamente temos nes­
confiança recíproca que assegure um mínimo de tas linhas de L u tero farto material para uma "te­
estrutura social e impeça um caos onde nenhu­ ologia da libertação". Não seriam os juros da dí­
ma palavra vale mais nada. Nossa responsabili­ vida externa dos países do Terceiro Mundo hoje
dade para com todos/as, ao terem ameaçadas uma forma de tirar do próximo o seu dinheiro e
as condições materiais de vida que lhes assegu­ bens? Uma análise das origens do endividamen­
rem o desenvolvimento de sua humanidade. to destes países certamente revelaria ah "negócios
O cuidar do próximo inclui necessariamen­ fraudulentos". E tudo "sob aparência de direi­
te o horizonte sócio-político. Como vimos, o pró­ to". Isso vale não só para as relações entre os
ximo é em primeiro plano o necessitado. Sem dú­ países, mas também para as relações de classe
vida, podemos e devemos interpretar isto da internas aos mesmos.
forma mais ampla possível, como é feito pelo pró­ A extensão do conceito de "roubo" ao mercado,
prio L u ter o em vários lugares de suas explica­ como L utero faz na explicação do Sétimo Manda­
ções dos Mandamentos. Tomo como exemplo a mento no Catecismo Maior16, tem surpreendente
explicação do Quinto Mandamento: "lhe ajude­
mos e o favoreçamos em todas as necessidades da
vida". Ou, mais especificamente ainda no Séti­ 14 M. L u t e r o , O Catecismo M enor (1529), em O Livro de
mo Mandamento: "Devemos temer e amar a C oncórdia, p. 368.
15 Id., p .369.
Deus, de maneira que não tiremos ao nosso pró­ 16 M. L u t e r o , O Catecism o Maior, em O Livro de Concór­
ximo o dinheiro ou os bens, nem nos apoderemos dia, p. 428-33.
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atualidade para uma tal teologia da libertação, Mateus 25.31-46, Jesus insinua que na pessoa
como também sua referência aos "piratas de ga­ do próximo necessitado, que tem fome, sede, que
binete", os "larápios graúdos", que "refestelam- não tem roupa e nem abrigo, ele próprio pode
se na cadeira e se chamam grandes fidalgos e estar vindo a nós.
cidadãos honrados e íntegros, e rapinam e fur­ Temos, assim, uma presença explícita de
tam com aparência de direito"; os "maiúsculos e Cristo num dos lados da nossa existência cristã,
poderosos arquilarápios" que diariamente saquei­ e a possibilidade de sua presença velada a partir
am o país inteiro, que "transformam o livre mer­ do outro lado, do lado do próximo. A percepção
cado público em esfoladouro e antro de saltea­ do Cristo escondido no necessitado que nos in­
dores, onde diariamente se defraudam os pobres terpela deve nos levar a ver este em toda a sua
e se inventam novos ônus e altas de preços". dignidade que lhe é conferida por Deus e em sua
É tarefa da teologia cristã, à luz dos Manda­ humanidade que foi assumida por Cristo.
mentos e de sua interpretação no espírito do êxo­
do, dos profetas e de Jesus, a qual ecoa em Paulo 6. C o n clu in d o
e em L u tero , e movida pelo enternecimento pela
situação de miséria e injustiça em que vive boa Uma ética em perspectiva cristã é, assim,
parte da humanidade, pensar como fica concre- ética da fé ativa no amor, ética do cuidado, ética
tamente hoje o cuidar do nosso próximo. da liberdade. Seu fundamento está na percep­
Na metáfora da escada, o cristão estende ção das relações concretas da vida como gerado­
uma mão para o Cristo acima ou ao lado dele, e ras e como foco da existência ética. É destas rela­
a outra para o próximo do outro lado. Dizía­ ções, mais precisamente, do Deus e das pessoas
mos que de ambos os lados nos vêm uma inter­ com as quais nos relacionamos na concreticida-
pelação ética. A irrupção do outro em nosso ho­ de da existência que nos vem a interpelação éti­
rizonte de vida, e as exigências éticas daí ca. A dinâmica destas relações, baseadas no amor
advindas, são um dos temas mais caros na dis­ que tem origem na fé no amor que Deus demons­
cussão ética contemporânea. A teologia latino- trou pela humanidade, é incorporada de tal modo
americana teve aí também uma percepção teo­ que dali surge a energia que se transforma em exis­
lógica. Na conhecida parábola do juízo, de tência ética, a qual, citando L u tero uma última
110 C a p ítu lo III

vez, "não pergunta se há boas obras a fazer, e


sim, antes que surja a pergunta, ela já as reali­
zou e sempre está a realizar"17.

Prefácio à Epístola de S. Paulo aos Rom a­


17 M . L u t e r o ,
nos, em O bras Selecionadas 8: 133.

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