BILGE. Interseccionalidade Desfeita

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INTERSECCIONALIDADE DESFEITA:

salvando a interseccionalidade dos estudos feministas sobre interseccionalidade1

Sirma Bilge*
Tradução de Flávia Costa Cohim Silva**
Revisão de Viviane Vergueiro***

Resumo2

Este artigo identifica um conjunto de relações de poder dentro dos debates acadêmicos feministas contemporâneos sobre
a interseccionalidade que trabalham para "despolitizar a interseccionalidade", neutralizando o potencial crítico da
interseccionalidade para uma mudança orientada à justiça social. Num momento em que a interseccionalidade recebeu
aclamação internacional sem precedentes nos círculos acadêmicos feministas, um feminismo acadêmico
especificamente disciplinar, em sintonia com a economia do conhecimento neoliberal, se envolve com práticas
argumentativas que a reenquadram e minam. Este artigo analisa várias tendências específicas de debate que neutralizam
o potencial político da interseccionalidade, como o confinamento da interseccionalidade a um exercício acadêmico de
contemplação metateórica, bem como um "branqueamento da interseccionalidade" através de afirmações de que a
interseccionalidade é "a invenção do feminismo", e requer uma "genealogia mais ampla da interseccionalidade"
reformulada.

Palavras-Chave: Interseccionalidade; Feminismo Acadêmico; Disciplinaridade; Neoliberalismo; Diversidade; Pós-


Raça, Europa (Alemanha, França).

1 Gostaria de agradecer aos revisores anônimos por seus comentários úteis e perspicazes. Agradeço também aos editores desta edição especial,
com uma menção especial a Barbara Tomlinson. Finalmente, agradeço vários colegas e amigos pelos generosos feedbacks que recebi em várias
conferências (Paris 2011, Lancaster 2012, Lausanne 2012) onde eu apresentei versões anteriores desse artigo: Fatima Aït ben Lmadani, Philippe
Allard, Paola Bacchetta, Kimberlé Crenshaw, Anne-Marie Fortier, Patricia Hill Collins, Nasima Moujoud, Jennifer Petzen e Julianne Pidduck.
* Sirma Bilge, Ph.D., Professora Associada, Departamento de Sociologia, Universidade de Montreal, C.P. 6128, Succursale Centre-ville, H3C 3J7

Montreal (Qc)Canada. E-mail: [email protected].


** Feminista, graduada em Direito pela UFBA (Universidade Federal da Bahia), Mestra em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e

Feminismo pelo PPGNEIM-UFBA (Programa de Pós-Graduação em Estudos de Gênero do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher).
E-mail: [email protected].
*** Ativista transfeminista, doutoranda no PPGNEIM-UFBA (Programa de Pós-Graduação em Estudos de Gênero do Núcleo de Estudos

Interdisciplinares sobre a Mulher), mestra em Cultura e Sociedade (Pós-Cultura/IHAC/UFBA) e graduada em Ciências Econômicas pela Unicamp.
E-mail: [email protected].
2 Nota da tradução: o presente texto é uma tradução para a Língua Portuguesa do artigo "Intersectionality Undone", da autora feminista Sirma

Bilge. Neste artigo, a autora trata das origens do conceito de Interseccionalidade, e também da apropriação de suas histórias pelo feminismo
hegemônico no Norte Global, além de sua popularização despolitizada. Bilge recupera sua história e faz críticas a estas apropriação e despolitização.
A autora tem outros trabalhos sobre o tema, incluindo o livro Intersectionality (Key concepts), em co-autoria com Patricia Hill Collins, feminista
negra estadunidense, publicado em 2016 - livro também não traduzido ao português.

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Introdução Apesar de suas melhores intenções e reivindicações de
inclusão e solidariedade, muitos ficaram aquém da
Este artigo identifica um conjunto de relações de poder reflexividade e da responsabilidade interseccional, e
dentro dos debates acadêmicos feministas provocaram seus próprios tipos de silenciamento,
contemporâneos sobre a interseccionalidade que exclusão ou má representação de grupos subordinados.
trabalham para "despolitizar a interseção", Aqui eu me valho do movimento Occupy e da Marcha
neutralizando o potencial crítico da interseccionalidade das Vadias para ilustrar a necessidade de reflexão
para uma mudança orientada à justiça social. A constante sobre a interseccionalidade e as políticas de
motivação global por trás do artigo é explicar como a coalizão não opressivas.
interseccionalidade - apesar de receber aclamação
internacional sem precedentes nos círculos acadêmicos O movimento Occupy tem sido desafiado por falta de
feministas - tem sido sistematicamente despolitizada. consciência descolonial pelos povos aborígenes desde
Procuro contrariar essa tendência incentivando métodos uma perspectiva anticolonialista e indígeno-centrada.
de debate que reconectem a interseccionalidade com sua (Montano 2011; Yee 2011). Os críticos argumentam que
visão inicial de gerar produção de conhecimento, seu lema – "Ocupe" – recria discursivamente a violência
ativismo, pedagogia, coalizões não opressivas contra- colonial e ignora o fato de que, do ponto de vista
hegemônicas e transformadoras. Eu começo provendo indígena, esses espaços e lugares cuja ocupação se incita
duas anedotas que ilustram os funcionamentos já estão ocupados. A crítica aborígene desenvolveu um
complexos (ou ausências) da interseccionalidade na "descolonize o movimento Occupy", em que os povos
prática social, usando os movimentos Occupy e a indígenas ocupam o centro do palco. Apesar de ser
Marcha das Vadias. Passo a examinar as práticas através muito menos divulgada, a crítica conseguiu mudar o
das quais uma espécie de feminismo acadêmico nome do movimento Occupy pelo menos em algumas
disciplinar especificamente sintonizado com a partes do mundo.
economia do conhecimento neoliberal contribui para a O movimento Marcha das Vadias3, organizado para
despolitização da interseccionalidade. Eu analiso várias protestar contra a culpabilização e humilhação das
tendências específicas neste debate que trabalham para mulheres pelo uso de roupas que convidariam agressões
neutralizar o potencial político da interseccionalidade, sexuais, recebeu críticas por sua cegueira racial: falta de
como confinar a interseccionalidade a um exercício preocupação com a ressonância diferencial do termo
acadêmico de contemplação metateórica, bem como o "puta" para mulheres negras dos Estados Unidos. Os
"branqueamento da interseccionalidade" através de estereótipos de gênero historicamente sedimentados têm
afirmações de que a interseccionalidade é "a criação do persistentemente patologizado a sexualidade de
feminismo" e que requer uma "genealogia mais ampla mulheres negras como imprópria e promíscua.
da interseccionalidade" reformulada. Afastando-se da Marcha das Vadias, as organizações de
Os últimos anos têm visto vários movimentos com mulheres negras afirmaram pungentemente que:
reivindicações por justiça social e democratização Como mulheres negras, não temos o privilégio ou o espaço para nos
varrendo todo o mundo, desde os lndignados até a chamarmos de "puta" sem validar a ideologia já historicamente
enraizada e as mensagens recorrentes sobre o que e quem é a mulher
Primavera Árabe, o Movimento Occupy, a Marcha das negra. Não temos o privilégio de jogar com representações
Vadias (SlutWalk, em inglês) e o movimento estudantil destrutivas gravadas em nossa mente coletiva, em nossos corpos e
transnacional. Por mais inspiradoras que sejam, essas almas por gerações (Black Women’s Blueprint, 2011).
políticas progressistas contemporâneas de protesto não Essa demanda coletiva para renomear o movimento não
escaparam dos problemas duradouros de legitimidade e foi bem sucedida. Por exemplo, durante uma Marcha
representação, em particular as complexidades de falar das Vadias em Nova York em 1 de outubro de 2011,
sobre, para e ao invés de outros/as (Alcoff 1995).

3O movimento Marcha das Vadias começou no Canadá em abril de estigma como muitas políticas minoritárias de protesto, a Marcha das
2011, depois que um agente da polícia de Toronto disse a um grupo Vadias reapropria e ressignifica o termo "vadia" e exorta as mulheres
de estudantes que as mulheres poderiam evitar ser agredidas a protestar com um vestuário revelador. Os movimentos têm se
sexualmente ao não se vestirem como umas "vadias". Ao inverter o espalhado rapidamente pelo norte e sul globais.

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pelo menos duas jovens mulheres brancas foram Repensando a Interseccionalidade em um
fotografadas com cartazes dizendo: "A mulher é o cri* Tempo Saturado com a Cultura Neoliberal da
do mundo" (referindo-se a uma música de John Lennon Diversidade
e Yoko Ono e usando o insulto racial completo4).
Enquanto as organizadoras apresentaram uma desculpa Ideias sobre justiça social se infundem na vida cotidiana
por este incidente racista5, o incidente, no entanto, de maneiras complexas e contraditórias, através de
demonstra que mesmo os movimentos que se discursos e práticas populares e corporativas (Ward
posicionam como progressivos ainda podem perder de 2007). Ao mesmo tempo, as estruturas subjacentes que
vista as ferramentas que o pensamento interseccional produzem e sustentam desigualdades sociais são
disponibiliza (ver Bilge 2012; Carby 1982; Rich6 1979). ignoradas e apagadas. Os discursos do senso comum
Tais incidentes demonstram o argumento de Kimberlé assumem que as sociedades ocidentais já superaram em
Crenshaw (1993) de que "as estratégias políticas que grande parte os problemas de racismo, sexismo e
desafiam apenas certas práticas de subordinação, heterossexismo/homofobia. Mitos políticos dos "pós"
mantendo as hierarquias existentes, não só (pós-racialidade, pós-feminismo) e fantasias de
marginalizam aqueles que estão sujeitos a múltiplos transcendência (Ahmed 2004) são defendidos pelas
sistemas de subordinação, mas também resultam na forças liberais e conservadoras. O resultado é um clima
colocação de discursos de raça e gênero em oposição político e cultural contraditório, repleto de ideias(ideais)
entre si" (pp.112–113). de igualdade, acompanhados por uma recusa inflexível
de ver a persistência de desigualdades de raça, classe,
Estes exemplos ilustram que, apesar de suas gênero, sexualidade, habilidade, e status de cidadania
reivindicações de inclusão, os movimentos progressivos profundamente enraizadas. Enquadrando a vida social
podem falhar na consciência política interseccional. não como coletiva, mas como a interação de
Essa falha traz um custo significativo para vários grupos empreendedores sociais individuais, o neoliberalismo
subordinados, que são silenciados, excluídos, mal nega condições prévias que levam a desigualdades
representados ou cooptados. No cenário político atual, a estruturais; em consequência, se felicita por desmantelar
necessidade de uma práxis interseccional radical pode políticas e desacreditar movimentos preocupados com
ser mais urgente do que nunca. A consciência política estruturas de injustiça. Assim, os pressupostos
interseccional oferece um potencial crítico para a neoliberais criam as condições que fazem as concepções
construção de coalizões políticas não opressivas entre fundadoras da interseccionalidade – enquanto uma lente
vários movimentos orientados para a justiça social que analítica e ferramenta política para promover uma
agora competem uns com os outros, em vez de agenda radical de justiça social–se tornarem diluídas,
colaborar, sob o regime de equidade/diversidade disciplinadas e desarticuladas.
neoliberal.
Noções neoliberais penetrantes facilitaram que o
feminismo se alterasse para um "pós-feminismo" de
formas que se equiparam à atual despolitização da
interseccionalidade. De acordo com Angela McRobbie

4Nota de tradução: As mencionadas duas mulheres levaram cartazes medida que avançamos, percebemos que não podemos cultivar uma
dizendo que as mulheres são os cri* do mundo, as outras três levaram identidade como uma coalizão sem defender todas as identidades
os cartazes com os dizeres completos. Nesta referência à música que se cruzam de nossas organizadoras e participantes"
Women are the N* of the World , traduzimos a expressão (http://slutwalknyc.tumblr.com/, acessado em 15, Setembro, 2013).
extremamente racista N* para uma outra, iniciada por ‘cri’, do Para uma crítica da política racial da Marcha das Vadias, veja The
contexto racista brasileiro. Crunk Feminist Collective (2011).
5 Em sua resposta à indignação na sequência do incidente, as 6 Outro exemplo de ineptidão é revelada por fotos de uma Marcha

organizadoras declararam: "Marchas das Vadias em todo o mundo das Vadias em Berlim, em 15 de setembro de 2012, que mostram
foram criticadas do ponto de vista anti-racistas desde a primeira várias mulheres jovens brancas em preto e com tinta preta cobrindo
caminhada. Concordamos com muitas dessas críticas e estamos seus corpos, deixando abrir apenas a área dos olhos para imitar o
atentas a elas em nossa organização. Reconhecemos que, sob a niqab. Outras mulheres vestiram o niqab dos ombros para cima, com
bandeira de Marcha das Vadias, colocamos a logística antes da seus torsos nus cobertos de tinta preta (Minh-Ha 2009).
política em muitos casos, e que isso foi uma falha. Mas agora, à

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(2009), "o pós-feminismo positivamente se inspira e As mutações da interseccionalidade e sua despolitização
invoca o feminismo como aquele que pode ser levado não se limitam apenas às lógicas econômicas do
em consideração, sugerindo que a igualdade tenha sido neoliberalismo, mas também às suas lógicas culturais,
alcançada, para instalar todo um repertório de novos particularmente a capacidade do neoliberalismo de falar
significados que enfatizam que ele não é mais uma linguagem complexa de diversidade. Uma das
necessário, é uma força gasta" (p. 12). A principais características do neoliberalismo é a extensão
interseccionalidade está passando por um "duplo da lógica econômica para além da esfera econômica,
emaranhamento" semelhante (p. 6), pois é "saudada" saturando todos os aspectos da vida. Como Oishik
enquanto "falha" simultaneamente; alguns elementos da Sircar e Dipika Jain (2012) apontam com astúcia, o
interseccionalidade são levados em conta, mas apenas neoliberalismo alcançou habilidosamente três coisas
para serem declarados caducos ou obsoletos, para serem para garantir sua longevidade robusta: "primeiro,
substituídos por algo melhor. Certas linhas de debate permitiu a mutação do Estado em uma empresa;
feminista invocam e evacuam a interseccionalidade, segundo, deu origem ao cidadão responsável e
assim como o pós-feminismo fez ao feminismo. autônomo; terceiro, tem constantemente projetado
experiências de precariedade humana e de risco como
Este duplo emaranhamento serve para fins importantes
oportunidades de empreendedorismo/de
à circulação das retóricas da diversidade por toda a
desenvolvimento/financiamento" (pp. 11–12). Essas
academia, pelos movimentos sociais progressistas e
adaptações são infundidas com identidades e categorias
pelas organizações sem fins lucrativos ou corporativas.
sociais. Lisa Duggan (2003) argumenta que as alianças
A interseccionalidade, originalmente focada na
construídas por políticos neoliberais para ajudar o fluxo
produção de conhecimento transformador e contra-
ascendente de dinheiro na hierarquia econômica são
hegemônico e na política radical de justiça social, tem
complexas, flexíveis e variáveis, mas os contextos de
sido mercantilizada e colonizada para regimes
sua realização são sempre forjados por "significados e
neoliberais. Uma interseccionalidade despolitizada é
efeitos da raça, gênero, sexualidade e outros marcadores
particularmente útil para um neoliberalismo que
da diferença"(p.xiv). Em outraspalavras, Duggan
reestrutura todos os valores como valores de mercado:
insiste,
as políticas radicais baseadas na identidade são muitas
vezes transformadas em ferramentas corporativas de essas alianças não são simplesmente oportunistas nem são questões
diversidade alavancadas por grupos dominantes para meramente epifenomênicas ou secundárias à realidade subjacente
dos objetivos econômicos mais sólidos e reais. Em vez disso, os
atingir vários objetivos ideológicos e institucionais objetivos econômicos foram (devem ser) formulados em termos da
(Ward 2007); uma série de lutas minoritárias é variedade de significados políticos e culturais que moldam o corpo
incorporada em uma governamentalidade de social em um determinado momento e lugar (p. xvi, itálico no
diversidade baseada no mercado e sancionada pelo original).
Estado (Duggan 2003); "diversidade" torna-se uma A interseccionalidade foi transformada pela confluência
característica da gestão neoliberal, fornecendo entre a cultura de diversidade corporativa neoliberal e
"preceitos gerenciais de um bom governo e operações política de identidade nos últimos quinze anos, e
comerciais eficientes" (Duggan 2003, p. xiii); o também adquiriu inegável capital intelectual, político e
conhecimento da "diversidade" pode ser apresentado moral (Knapp 2005; Ward 2007), que se revelou um
como uma experiência comercializável na compreensão terreno fértil para usos oportunistas de
e implantação de múltiplas formas de diferença interseccionalidade, algo que apelidei como
simultaneamente - um desejável indicador de bom "interseccionalidade ornamental" (Bilge 2011, p. 3).
julgamento e profissionalismo (Ward 2007). Dada a Seria enganador considerar a interseccionalidade
gama de implementações disponíveis para isso, a ornamental como benigna, pois é parte integrante da
interseccionalidade se tornou um termo "aberto", usado neutralização, e mesmo da desarticulação ativa, de
em diferentes, até divergentes, debates e projetos políticas radicais de justiça social. O seu emprego
políticos, tanto contra-hegemônicos quanto superficial da interseccionalidade mina a credibilidade
hegemônicos (Erel et al.,2008). do conceito e seus potenciais para abordar estruturas de

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poder interligadas e desenvolver uma ética da crítica das disciplinas, tentam desafiar as práticas
construção não opressiva de coalizões e da realização de hegemônicas na produção acadêmica e na vida pública.
reivindicações. Semelhantemente às declarações O feminismo disciplinar, ao contrário, participa na (má)
rotineiras de compromisso com a equidade e a apropriação institucional e na despolitização de
diversidade, a interseccionalidade ornamental permite estudantes tanto em termos de interdisciplinaridade
que instituições e indivíduos acumulem valor através de como de interseccionalidade.
boas relações públicas e um “rebranding” [n. trad.:
O feminismo disciplinar parece estar mais preocupado
reformulação da marca, no inglês] sem a necessidade de
com o sucesso institucional do conhecimento que
abordar as estruturas subjacentes que produzem e
produz do que com a mudança institucional e social
sustentam a injustiça (Ahmed 2012; Luft and Ward,
através da produção de conhecimento contra-
2009). Reconstruindo-se em termos despolitizados, a
hegemônico. Assim, o feminismo disciplinar de hoje
interseccionalidade se torna uma ferramenta que certas
usa as próprias ferramentas que os projetos de
estudiosas feministas podem invocar para demonstrar
conhecimento feminista indisciplinado da década de
"conhecimentos comercializáveis" na gestãode tipos de
1970 e início dos anos 80 tentaram criticar. Tratavam-
diversidade potencialmente problemáticos.
se de projetos de conhecimento interseccional
Parte da minha tarefa neste artigo é responder a uma radicalmente políticos que resistiram às visões
questão vital sobre a forma como uma padronizadas e às técnicas de normalização promovidas
interseccionalidade despolitizada é alcançada e em nome da disciplinaridade ou da
"gerenciada" pelo feminismo acadêmico. Através de interdisciplinaridade. Os estudiosos contemporâneos
que tipo de práticas o feminismo acadêmico participa não podem evitar completamente as lógicas e práticas
desse processo paradoxal de cooptação: invocando a de mercado da universidade neoliberal; todos/as
interseccionalidade (ou um espectro de devemos, até certo ponto, lidar com as demandas
interseccionalidade) para que possa ser despojado de neoliberais de criação de marcas, diferenciação de
sua visão radical da justiça social - tornando-a produtos e enfatizar a novidade. No entanto, isso não
politicamente neutralizada e desfeita? Discuto abaixo significa que somos obrigadas a abraçar o tipo de
uma série de padrões e tendências argumentativas trabalho do que eu chamo de feminismo disciplinar, que
através das quais a interseccionalidade é combina conflitos e identidades políticos com nichos de
deliberadamente neutralizada. As estratégias mercado e contribui para a despolitização da
problemáticas que discuto não caracterizam os interseccionalidade.
argumentos de todos os feminismos acadêmicos, mas
Mais amplamente, a diferenciação do feminismo
são implantadas em uma espécie de saber que eu chamo
acadêmico do feminismo disciplinar também destaca
de feminismo disciplinar. Por feminismo disciplinar,
profundas contradições: as formações inicialmente
refiro-me a uma posição intelectual hegemônica em
insurgentes, de campos como os estudos de mulheres,
relação à produção do conhecimento, uma maneira de
estudos étnicos, estudos de gays e lésbicas e estudos
fazer "ciência" que se preocupa mais com a adequação
pós-coloniais foram conduzidos em parte pelo desejo de
aos parâmetros do que se constitui como conhecimento
perturbar convenções científicas e descolonizar
científico legítimo do que em desafiar esses parâmetros.
metodologias e epistemologias; no entanto, suas críticas
Ele se esforça para instalar a disciplinaridade sobre o
radicais são contidas por sua institucionalização e
objeto de estudo, para ser reconhecido dentro de
ideologias dominantes, já que as operações de estado e
disciplinas tradicionais ou estabelecer-se como uma
capital estão profundamente implicadas nos processos
nova disciplina ou interdisciplina. Isso é diferente do
que permitem o surgimento de saberes minoritários
impulso político inicial do feminismo acadêmico, que se
contra-hegemônicos. Mesmo que contestem o poder,
concebeu como "meio para institucionalizar a
essas formações constantemente se esforçam para se
resistência feminista às agências normalizadoras das
tornar legíveis ao poder (Ferguson 2012, p. 38). A
disciplinas tradicionais" (Wiegman 2012, p. 71), e
recomposição neoliberal dos alinhamentos de poder
muitas feministas acadêmicas ainda se engajam em uma
entre o estado, o capital e a academia subverte formas

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sem precedentes de visibilidade minoritária, (Knapp 2005, p. 254); "um quadro mundialmente
valorizando a diferença sem consequências, o utilizado para a compreensão das questões da justiça
reconhecimento sem redistribuição. As perspectivas social" (Yuval-Davis 2011, p. xi); "uma das quatro
minoritárias criadas por campos de pesquisa contra- principais perspectivas do feminismo da terceira onda"
hegemônicos podem então ser rearticuladas e (Mann and Huffman, 2005, p. 57); e "um princípio
incorporadas em uma hegemonia sempre adaptável sem central do pensamento feminista [que] transformou a
alterar sua estrutura (Ferguson 2012, p.8; Bilge forma como o gênero é conceitualizado na pesquisa"
próximo). (Shields 2008, p. 301). A interseccionalidade também é
usada para afirmar a importância da contribuição do
O meu argumento não idealiza os estágios formativos da
conhecimento feminista para disciplinas específicas,
interseccionalidade como imunes ao funcionamento do
como evidenciado na apresentação da
capital e do estado. Stuart Hall argumenta que novas
interseccionalidade como "contribuição do feminismo
formas de poder econômico e cultural global funcionam
para a sociologia" (Denis 2008, p.677).
através de um tratamento aparentemente paradoxal da
diferença: "o poder econômico... vive culturalmente A popularidade constante da interseccionalidade –
através da diferença e... está constantemente levando à sua desaprovação como um "jargão" – é
provocando os prazeres do outro transgressivo" (1997, evidenciada pelos significativos livros, artigos,
pp. 180–181). Hall ressalta que, à medida que novos simpósios e cursos sobre o tema. Essa atenção sem igual
movimentos sociais desenvolveram e articularam e a circulação internacional em grande escala também
reivindicações de justiça e identidades minoritárias com apresenta seu quinhão de problemas. Semelhante a
os seus projetos de saber contra-hegemônicos, as outras "teorias viajantes" (ver Saïd, 1983) que se
estratégias de acumulação flexíveis do capitalismo deslocam através de disciplinas e geografias, a
encontraram maneiras de transformar esses novos interseccionalidade é vítima de amplas falsas
interesses por diferenças locais e minoritárias em novos representações, tokenização, deslocamento e
nichos de mercado, promovendo mercados cada vez desarticulação. Porque o conceito de
mais segmentados, grupos menores, nichos de estilos de interseccionalidade surgiu como uma ferramenta para
vida e identidades. Roderick Ferguson (2012) combater múltiplas opressões, há múltiplas narrativas
argumenta que o processo introduziu uma afirmação sobre suas origens, bem como tensões sobre a
minoritária de "uma nova e poderosa contradição na legibilidade de suas participações. Fazer a introdução de
sociedade" (pp. 41–42): a afirmação de minorias que um produto de conhecimento em novos contextos
elabora críticas decisivas da autoridade hegemônica, implica em uma política de tradução e de "prefaciação",
também fornece, através de sua institucionalização, gerando seu próprio sistema de celebridades e
oportunidades sem precedentes para o exercício do hierarquias de status tanto localmente (no contexto da
poder hegemônico. Tanto a interseccionalidade quanto tradução) e internacionalmente. As hierarquias são
o feminismo estão ligados a essa contradição. criadas quando se estabelece quais textos são
considerados fundacionais e incluídos no "cânone"
traduzido; quem é convidado para grandes eventos
Interseccionalidade e Feminismo Acadêmico científicos onde o novo produto do conhecimento é
(Disciplinar) lançado e confrontado com conhecimentos locais; quem
obtém o crédito por sua introdução; quem tem sua
Nas últimas duas décadas, a interseccionalidade foi
carreira beneficiada com isso; quem é incluído para
celebrada por estudiosos feministas em todo o mundo,
fazer parte dos especialistas locais, quem fica de fora;
recebendo elogios e apreciações especiais. É referida
quem é empoderado por esta introdução e quem não é.
como a "melhor prática feminista" na academia (Weber
Assim, os debates sobre a interseccionalidade também
e Parra-Medina, 2003, pp. 223–224); "a contribuição
refletem lutas de poder, estruturas de oportunidade e
teórica mais importante dos estudos das mulheres e de
disputas territoriais internas em disciplinas e campos
gênero até o momento" (McCall 2005, p. 1771); um
específicos.
catalisador para "o ímpeto político do feminismo"

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Estas questões são particularmente relevantes no caso "se sair" e deixar a interseccionalidade para as
da interseccionalidade, uma vez que é uma teoria e uma feministas de cor que a tornarão transformadora e
práxis, uma ferramenta analítica e política elaborada por contra-hegemônica de novo. Não! É argumentar que as
atores sociais menos poderosos que enfrentam múltiplas feministas disciplinares, sejam brancas ou de cor,
situações de minorização, para enfrentar e combater os deveriam parar de fazer interseccionalidade de maneiras
sistemas interligados de poder que moldam suas vidas, a desfazê-la. Uma maneira de desfazer a
através da produção de conhecimento teórico e interseccionalidade é transformá-la em um exercício
empírico, bem como ativismo, advocacy e pedagogia excessivamente acadêmico de reflexões especulativas
(Thornton Dill and Zambrana, 2009). Dada a origem da ou normativas.
interseccionalidade, é importante perguntar o que a
introdução desta ferramenta particular faz para grupos
semelhantemente subordinados no contexto local de sua Despolitizando a Interseccionalidade através de
introdução. Esses grupos e indivíduos são empoderados Reflexões Metateóricas
de alguma forma pela disponibilidade desta ferramenta?
Existe certa propensão nos saberes feministas
Ou eles são desempoderados porque a nova ferramenta
europeus continentais sobre a interseccionalidade
é introduzida de forma a apagar seus próprios
pensamentos e ativismo e seu próprio ponto de vista para discutir a interseccionalidade sem muita base
político moldado por múltiplos diferenciais de poder? empírica. Aqueles/as que estão familiarizados/as
Esses indivíduos e grupos estão envolvidos na com as discussões sobre a interseccionalidade no
introdução da interseccionalidade no contexto local? contexto da América do Norte, em particular,
Eles estão entre os principais atores? Essas são questões percebem uma profusão de declarações, sentenças
significativas. A minha inquirição não é sobre as especulativas e prescritivas, que começam com "o
circulações mundiais de uma interseccionalidade limpa, que a interseccionalidade pode ou não “ser ou
excessivamente acadêmica e despolitizada per se, mas fazer”, e "o que a interseccionalidade deve ou não
sobre que diferença a propagação de uma
deve ser". Essas reflexões falham em considerar o
interseccionalidade despolitizada faz para grupos
que a interseccionalidade realmente faz na
subordinados nas relações de poder incorporadas na
pesquisa, o que os/as pesquisadores/as fazem com a
produção do conhecimento.
interseccionalidade e com que tipos de resultados.
Afirmo que o que, a princípio, parece ser uma recepção Essa forte tendência corre o risco de limitar a
entusiasta da interseccionalidade é um reflexo
interseccionalidade a um exercício contemplativo
significativo da necessidade do feminismo disciplinar
excessivamente acadêmico. Minha própria
de o conter, de neutralizar sua política. Para o
feminismo disciplinar, "enfrentar" ou "assumir" a perplexidade é ecoada por Jennifer Petzen (2012),
interseccionalidade serve para marginalizar aquelas que expressa o espanto com o empenho com que os
pessoas que tentam reconectar a interseccionalidade textos que ela analisou trabalharam para fazer
com sua visão inicial, fundamentada nas subjetividades reivindicações sobre as implicações teóricas da
políticas e lutas de atores sociais menos poderosos que análise interseccional sem nunca aplicá-las
enfrentam múltiplas opressões entrelaçadas. Se o empiricamente. Ela nota:
feminismo disciplinar estabelece o controle de uma
Em outras palavras, parece haver muita conversa sobre como fazer
interseccionalidade especificamente à custa de atores interseccionalidade e qual é a melhor maneira de teorizá-la, mas as
sociais menos poderosos, se a interseccionalidade é formas através das quais ela foi tomada, e a atribuição de uma
incorporada especificamente através da "curadoria" e genealogia particular a ela fazem com que se pense em como a
interseccionalidade tem realmente sido aplicada, e qual é a sua
benefício de estudiosas feministas brancas (ver Erel et
função real nos círculos acadêmicos (p. 295).
al., 2008; Petzen 2012), o resultado é uma
interseccionalidade despolitizada. Construir este Os tipos de estratégias argumentativas que discuto
argumento não é dizer que as feministas brancas devem neste artigo foram apresentados proeminente em uma
importante conferência internacional, Celebrando a

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Interseccionalidade? realizada em Frankfurt em 2009 interseccionalidade e quem não pode. Se os/as
(veja Lutz, Vivar e Supik 2011).7 Os comentários de estudiosos/as estão "branqueando a
Kimberlé Crenshaw (2011) em resposta à conferência interseccionalidade", refere-se a formas de realizar
refletem algumas das prioridades e sensibilidades trabalhos interseccionais na economia política de
divergentes quando a interseccionalidade viaja de um reenquadramentos genealógicos e temáticos, nas
contexto para o outro. Apontando que os organizadores práticas de citação e na política da canonicidade.
da conferência e os participantes pareciam abordar a Também é dramaticamente evidente nas discussões
interseccionalidade com pressupostos, perguntas e sobre se a interseccionalidade deve ser vista como uma
expectativas que diferiam muitodas dela, Crenshaw teoria ou como apenas um dispositivo heurístico, bem
observa: como nos chamados recorrentes para ampliar e elevar a
De fato, as respostas que eles antecipam – alguma articulação interseccionalidade. Esses chamados requerem
definitiva dos grandes objetivos, mecanismos e trajetórias da reflexão crítica porque eles ocorrem em um contexto
interseccionalidade – são bastante estranhas às minhas próprias que desvaloriza persistentemente o significado teórico
sensibilidades quanto à interseccionalidade. A minha própria da interseccionalidade quando produzido por
opinião sobre como conhecer a interseccionalidade é de se fazer
interseccionalidade; para avaliar o que a interseccionalidade pode
feministas de cor - a suposição subjacente sendo de que
produzir é pesquisar o que os estudiosos, ativistas e elaboradores de a experiência estrutural da mulher racializada não pode
políticas fizeram sob sua rubrica. Assim, o convite para medir e gerar teoria, ela só pode ser entendida como uma
avaliar a interseccionalidade como teoria em abstrato não atraiu categoria descritiva de experiência (Lewis 2009, Erel
meu compromisso ao longo dos anos... Aprendi consistentemente
et al., 2008).
mais com que os estudiosos e ativistas têm feito com
interseccionalidade que como que outros especularam sobre o seu Assim, o branqueamento da interseccionalidade é
apelo (p. 222). conseguido em parte, excluindo do debate ou ignorando
Eu argumento que a incidência generalizada de as contribuições daqueles/as que têm múltiplas
reflexões metateóricas serve para desfazer a identidades minoritárias e são atores/atrizes sociais
interseccionalidade ao distrair de seu potencial como marginalizados/as - mulheres de cor e pessoas queer de
ferramenta para a justiça social. cor. Este problema é particularmente agudo na Europa
(Erel et al., 2008; Gutiérrez Rodríguez 2010;
Haritaworn 2012; Lewis 2009, 2013; Petzen 2012;
O Branqueamento da Interseccionalidade Tomlinson 2013). Enquanto o branqueamento da
Outra maneira em que a interseccionalidade é desfeita é interseccionalidade é produzido através de várias linhas
através de padrões e tendências argumentativas que eu de argumentação, foco aqui em duas: "a
reúno sob a rubrica do branqueamento da interseccionalidade é a criação do feminismo" e
interseccionalidade. Esses padrões todos participam no "precisamos ampliar a genealogia da
interseccionalidade".
processo de anexação da interseccionalidade ao
feminismo disciplinar e descentralizar o papel Eu analiso essas duas estratégias argumentativas desde
constitutivo da raça no pensamento e na práxis uma tradição intelectual que desata a branquitude da cor
interseccional. Deve ser dada atenção crítica aos da pele, fisiologia ou biologia e entende-a como: uma
fundamentos raciais dessas estratégias argumentativas posição estruturalmente vantajosa (privilégio de raça);
diante do discurso hegemônico de "pós-racialidade". um ponto de vista (privilegiado) a partir do qual as
O que quero dizer com "branqueamento da pessoas brancas se veem, veem aos outros e à sociedade;
e um conjunto de práticas culturais que são consideradas
interseccionalidade" não se refere à corporalidade, cor
da pele ou ancestralidade de seus praticantes, nem tenta "não marcadas" - simplesmente não marcadas, somente
se vistas da perspectiva da brancura normativa
policiar os limites de quem pode legitimamente fazer

7 Argumentos sobre a conferência que aparecem ao longo deste Lutz, Nina Lykke e Cornelia Klinger
artigo baseiam-se nos trabalhos de conferência co-editados (Lutz et (http://www.cgc.unifrankfurt.de/intersectionality/audio.shtml,
al., 2011), outros relatos (Lewis 2009, 2013; Petzen 2012) e acessadas em 21 de agosto de 2012).
gravações de áudio de apresentações, em particular as de Helma

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(Frankenberg 1993). A minha problematização do minimiza a centralidade da raça no advento do
branqueamento da interseccionalidade baseia-se na pensamento e do ativismo interseccional, ao mesmo
compreensão da branquitude como uma formação social tempo em que obscurece as tensões formativas, tanto
condicionada, reproduzida e legitimada por um habitus históricas como contemporâneas, entre o feminismo e as
racial - um habitus branco. Eduardo Bonilla-Silva mulheres de cor na formação da interseccionalidade. A
(2006) expande a noção de Bourdieu para desenvolver apropriação de uma interseccionalidade branqueada
o conceito de habitus branco: "um processo de precisa ser combatida insistentemente enfatizando os
socialização racial e ininterrupto que condiciona e cria laços constitutivos da interseccionalidade com o
gestos, percepções, sentimentos e emoções raciais das pensamento racial crítico e (re)clamando um status não
pessoas brancas e seus pontos de vista sobre questões negociável para raça e os processos de racialização na
raciais" (p. 104). Essa concepção crítica é necessária análise e na práxis interseccional. Recentrar a raça na
para compreender e esmiuçar a agência normalizadora e interseccionalidade é vital, diante de práticas difundidas
o poder de autoridade da branquitude, como ela gera que descentram a raça em sintonia com o pensamento
"normas, formas de compreender a história, formas de pós-racial hegemônico. Na verdade, a evitação crônica
pensar sobre si mesma e os outros, e até maneiras de de raça nos debates feministas europeus sobre a
pensar sobre a noção de cultura em si" (Frankenberg interseccionalidade é grave. Barbara Tomlinson (2013)
1993, p. 231). Embora as posições hegemônicas nunca argumenta que descentralizar raça facilita a apropriação
sejam inteiramente estáveis, os modos hegemônicos feminista dominante (branca) da interseccionalidade:
"brancos" de saber e os privilégios "brancos" estão Muitos cientistas sociais e filósofos europeus preocupados com as
totalmente implicados nas lutas feministas quanto ao concepções feministas de interseccionalidade parecem valorizar
significado em relação à interseccionalidade e à tomada uma interseccionalidade "purificada", isolada de uma exposição à
forçada da interseccionalidade realizada contra raça. Estabelecendo as estudiosas feministas negras que originaram
a interseccionalidade como "indignas" - limitadas, "vinculadas à
feministas de cor. Tal compreensão crítica da raça", incapazes de "teorizar" - justifica extrair delas a valiosa
branquitude também explicita que branquitude e ferramenta da interseccionalidade (p .13).
branqueamento são campos simbólicos. Para ser
O entendimento de Petzen (2012) discute, em riqueza de
explícita: não é preciso ser branco para "branquear a
insights, a importância de recentrar a raça no debate
interseccionalidade".
interseccional. Analisando o contexto alemão, Petzen
argumenta que a prática de vincular a
Estratégia Um: "A Interseccionalidade é a interseccionalidade aos estudos de gênero, ao invés de a
críticas pós-coloniais ou antirracistas, coloca
Criação do Feminismo"
indevidamente o gênero como categoria de análise de
Uma das estratégias argumentativas mais significativas primeiro plano. De acordo com Petzen(2012), esta
para o branqueamento da interseccionalidade é o política de localização
aparecimento frequente da interseccionalidade como a
permite que o conceito de interseccionalidade se torne palatável,
"criação do feminismo". Reivindicar que o feminismo é para departamentos de estudos de gênero e universidades dominados
responsável pela criação da interseccionalidade tornou- por pessoas brancas, e seja menos ameaçador, especialmente quando
se uma prática feminista normativa, perfeitamente a "etnicidade" é substituída por "raça". Como tal, a crítica antirracista
naturalizada e presumida, como evidenciado por uma no trabalho europeu sobre a interseccionalidade tende a sofrer nas
mãos de alguns/mas teóricos/as que tendem a favorecer os outros
infinidade de escritos, simpósios e programas de cursos "eixos" interseccionais de gênero e classe, e recentemente,
em estudos feministas de interseccionalidade ou estudos sexualidade brancos (p. 296).
interseccionais de gênero etc. Essa reformulação torna a
O feminismo disciplinar europeu "branqueia a
interseccionalidade uma propriedade especificamente
interseccionalidade", não só fazendo afirmações de
do feminismo e dos estudos de mulheres/de gênero,
direitos de propriedade sobre o conceito de
apagando as "origens interseccionais da
interseccionalidade, mas também minimizando a
interseccionalidade" (Luft and Ward, 2009, p. 19). Uma
importância da raça no pensamento interseccional - por
consequência séria dessa apropriação é que ela
exemplo, declarando a raça como uma categoria

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irrelevante para a Europa. Isso reflete uma tendência É plausível assumir que essas afirmações sobre a
dominante entre os/as estudiosos/as europeus/eias: interseccionalidade não terem uma fonte clara – tendo
descartar a raça como uma categoria analítica, e em vez sido emitidas quase simultaneamente de qualquer lugar
disso, enquadrar os problemas através de categorias – são influenciadas por uma análise de poder
como etnia, cultura e religião. Na conferência de foucaultiana, que é ironicamente distorcida e mal
Frankfurt, Celebrando a Interseccionalidade? Como representada nestas reivindicações. De fato, Michel
observou Lewis (2013), houve um debate ansioso sobre Foucault (1980) conceituou o poder como "algo que
se a categoria de raça tinha alguma tração real em circula, ou como algo que só funciona na forma de uma
contextos europeus, fora da Grã-Bretanha e dos Estados cadeia... empregada e exercida através de uma
Unidos. Esses debates sobre a utilidade da categoria de organização similar a uma rede" (p. 98). Foucault não
raça revelam rejeições da raça, confiantes ainda que estava disposto a identificar um princípio de dominação
pouco teorizadas e empiricamente subexaminadas, que ou uma fonte primária de poder, ou um sujeito ou um
acabam por silenciar "aqueles/as que não podem evitar grupo de sujeitos que estavam sempre enquanto origem
saber que são sujeitos racializados" (Lewis 2013, pp. do poder. Mas esta posição não sanciona (ou permite)
882–883). uma evacuação das relações de poder em jogo na
própria tarefa de consolidar o que conta como o
Outra maneira de branquear a interseccionalidade e
conhecimento legítimo sobre as origens da
minimizar a importância da raça assume a forma de
interseccionalidade.
dispersão e difusão, que basicamente ignoram as suas
origens no feminismo negro. Um exemplo comumente De fato, ao conceber o poder como um sistema de
afirmado nas conferências feministas europeias é a relações dispersas em toda a sociedade, e não como um
implicação de que a interseccionalidade não se originou conjunto de relações entre aqueles que "tem"
realmente no pensamento negro porque "ela estava no (opressores) e aqueles que não o "tem" (oprimidos),
ar". Particularmente evidente nas gravações de áudio da Foucault (1990) também insiste que poder "é o nome
conferência Celebrando a Interseccionalidade?, essa que se atribui a uma situação estratégica complexa em
afirmação de que a interseccionalidade "estava no ar" uma sociedade particular" (p. 93) e pode ser exercido de
baseia-se na noção tácita de que, se o pensamento um lugar inesperado. Assim, ao dispersar os impulsos
interseccional surgiu de todos os lugares, se "tudo estava generativos da interseccionalidade "no ar", o feminismo
no ar", então não há nada especialmente racial ou étnico disciplinar não só estabelece reivindicações de
sobre o pensamento interseccional - ou talvez nós, como propriedade da interseccionalidade, mas também
feministas, somos todas especiais, já que todas somos acoberta convenientemente sua própria situação
parte dessa nebulosa. Feita desde o início no discurso estratégica e, eu acrescentaria, seu privilégio racial
inaugural da conferência, ela foi mencionada com (branquitude) nas lutas pelo significado que se
(audível) facilidade pelas palestrantes seguintes, cada desenrola entre estudiosas feministas e ativistas. Como
uma referindo-se com um certo alívio aos seus observa Lewis (2013), "os estudos feministas de
empregos anteriores. O consenso feliz criado pela interseccionalidade tendem a ignorar a dinâmica
"reivindicação-de-que-tudo-estava-no-ar" precisa ser racializada muitas vezes apagada que surge nas esferas
interrompido, pois ele causa várias questões feministas", mesmo quando estes grupos estão
problemáticas. Isso consolida a apropriação feminista da comprometidos a aprofundar o saber interseccional
interseccionalidade: "tudo estava na efervescência acadêmico e a ampliar sua força e influência políticas"
interna do feminismo". Isso enfatiza a posição de que "as (p.830). Ela acrescenta,
feministas [têm] teorizam[do] interseccionalidade desde É profundamente paradoxal, então, que esta crescente arena da
muitas perspectivas" (Lykke 2010, p. 78), reduzindo pesquisa feminista também tenha redirecionado a atenção para longe
assim o pensamento feminista negro e as epistemologias da dinâmica relacional que surge entre diversos grupos de feministas
de mulheres de cor que geraram a interseccionalidade e estudiosas de mulheres em encontros feministas... Esta
investigação negligenciou alguns dos problemas de desigualdade e
simplesmente para "outra perspectiva". subjetividades diferenciadas constituídas em matrizes

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interseccionais à medida que se desenrolam no espaço da
infraestrutura feminista (p. 830).
Estratégia Dois: "Devemos Ampliar a
A inexatidão das afirmações de que "estava no ar" feitas
Genealogia da Interseccionalidade"
por várias feministas europeias e, em particular, alemãs,
torna-se manifestamente óbvia quando colocamos nosso O imperativo de ampliar a genealogia da
olhar em outras evidências sobre a conceitualização da interseccionalidade é um tema recorrente nas
raça e do gênero em contextos alemães anteriores. Por conferências e publicações feministas europeias. Essas
exemplo, reivindicações de que tudo o que fosse chamadas não podem ser entendidas fora do contexto
necessário para a articulação do pensamento dos circuitos globais de produção e disseminação do
interseccional já estava "no ar" provam ser fictícias à luz conhecimento em que "as desigualdades de
dos depoimentos ouvidos no inspirador filme de oportunidade e reconhecimento ligadas a estruturas de
Dagmar Schultz sobre os anos berlinenses de Audre raça, classe e gênero permanecem, as questões de
Lorde (Schultz 2012). Este testemunho revela que, na ascendência também permanecem fundamentais para a
década de 1980, não havia posição de fala para um política deprodução do conhecimento" (Lewis, 2013, p.
alemão negro, na qualidade de alemão negro, nenhuma 872).
legibilidade para uma articulação de uma hifenação O apelo para o alargamento da genealogia da
afro-alemã. O desenvolvimento de tal possibilidade interseccionalidade foi um tema notável na conferência
interseccional emergiu explicitamente do encontro de Frankfurt de 2009, Celebrando Interseccionalidade?
pessoal e intelectual entre Lorde e várias/os alemãs/es Apelos semelhantes se desenrolaram de forma diferente,
de cor que se esforçavam no sentido dessa articulação. mas com intensidade semelhante em uma grande
Isto é estabelecido no trabalho histórico de Katharina conferência feminista de língua francesa realizada em
Oguntoye e seus colegas sobre mulheres afro-alemãs, e Lausanne em 2012. O tema unificador foi
também destacado pela própria Lorde em seu prefácio a Entrelaçamento de Relações de Poder: Discriminações
esse volume. Nas palavras das autoras, citadas por Karin e Privilégios de Gênero, Raça, Classe e Sexualidade8.
Obermeier (1989, p.173): Nesta conferência, os argumentos para ampliar a
Juntamente com Audre Lorde, desenvolvemos o termo ‘Afro- genealogia da interseccionalidade também enfatizaram
Germânico’, inspirado em ‘Afro-Americano’, como expressão de o desejo relacionado pelo "devido reconhecimento" do
nossa herança cultural. Não [é] e não pode ser nossa intenção... criar
barreiras de acordo com herança ou cor da pele... Pelo contrário,
pensamento feminista francês (tanto as vertentes
queremos promover o termo ‘afro-alemão’ contra rótulos tão materialista quanto a socialista/marxista), que, segundo
convenientes como ‘mestiços’, ‘mulatos, ou ‘coloridos’ - isto, como se argumentou, enfrentava as "mesmas questões" com
uma tentativa de definir a nós mesmos, em vez de sermos diferentes ferramentas teóricas e conceituais. Há muito
(externamente) categorizados/as (Oguntoye et al., 1986, p. 10).
a dizer sobre esses apelos, mas dois pontos são
Se a interseccionalidade já estivesse "no ar", o papel especificamente reveladores. Em primeiro lugar, ele
desempenhado por Audre Lorde teria sido muito menos coopta a interseccionalidade (agora considerada
significativo na articulação inicial do pensamento afro- valiosa) para reformular uma história de pensamento
germânico. Quando, durante o mesmo período, um que não estava lidando com os "mesmos problemas",
grupo lesbiano afro-holandês decide se nomear "Sister mas estava, em vez disso, focada no nexo de
Outsider", não foi uma marca de paixão pela cultura classe/gênero (ou, como as feministas materialistas
afro-americana, mas um movimento para reconhecer a francesas o chamaram, de "sexo social" ou "relações
busca de inspiração e modelos para articular aquilo que sociais de sexo"). A questão racial não se constituía
estava desarticulado e indizível no contexto local – como preocupação9. Em segundo lugar, os apelos foram
especificamente, não estava "no ar". emitidos por feministas disciplinares brancas,

8 9
Minha tradução do título original: lmbrication des rapports de O trabalho de Colette Guillaumin (1995) seria a exceção a essa
pouvoir: discriminations et privilèges de genre, de race, de classe et generalização sobre raça. No entanto, seu pensamento desenvolveu
de sexualité , 30 de Agosto – 4 de Setembro, 2012, Lausanne. uma moldura analógica ("imbricação"), em vez de uma moldura de
encaixe/interseção/entrelaçamento/co-extensão, seu trabalho

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afirmando que elas têm sido "interseccionais" durante Esses esforços para ampliar a genealogia da
todo esse tempo. Ao insistir que suas próprias interseccionalidade raramente levam à identificação de
ferramentas – que colocam a raça de lado ou tornam-na mulheres de cor recém redescobertas como precursoras
opcional – devem ser consideradas tão válidas e valiosas ou pensadoras "implícitas" da interseccionalidade; em
como a interseccionalidade – que foi fundada desde um vez disso, intelectuais brancas como Alexandra
ponto de vista político inseparavelmente racializado, de Kollontai (Lykke 2011), Zillah Eisenstein e toda uma
gênero e de classe -, elas contribuem ativamente para a série de feministas socialistas são reembaladas como
minimização da interseccionalidade como uma fundamentais para a interseccionalidade. Este gesto
ferramenta a ser empregada com fins antirracistas. Todo reduz e reformula seus trabalhos, valiosos de outra
o argumento gira em torno de relações raciais não maneira, sobre o capitalismo e o patriarcado, servindo
reconhecidas: intelectuais que já são beneficiários/as de apenas para eclipsar o habitus racial na origem da
privilégios raciais, não conseguem reconhecer ou se inovação teórica da interseccionalidade (Luft e Ward,
responsabilizar por seus privilégios raciais e, de fato, 2009). Isso não quer dizer que a interseccionalidade não
perpetuam-nos. deve estar relacionada, comparada e contrastada com
outras formas de teorizar a complexidade do poder e as
O branqueamento da interseccionalidade através de
desigualdades estruturais. Pelo contrário, tais
"genealogias ampliadas" requer certas habilidades
comparações e diálogos são parte integrante dos
acrobáticas: implica equilibrar aquilo que é
desenvolvimentos teóricos. Mas eles diferem
representado como reconhecimento ("honrar as mães
drasticamente de movimentos questionáveis no sentido
fundadoras e os textos fundamentais"), ao mesmo tempo
de listar um séquito impressionante de estudiosas
em que os empurra para o fundo para que outras mães
feministas brancas, incluindo-se nomes célebres como
(geralmente brancas) possam ser encontradas, ou que
Donna Haraway, Judith Butler, Iris Young, Rosi
outras genealogias (geralmente brancas) possam ser
Braidoti etc., como colaboradoras-chave para a
traçadas. Em outras palavras, as tentativas de reformular
interseccionalidade que teriam sido ignoradas. É
genealogias são sempre políticas e nunca são inocentes.
bastante desconcertante representar indevidamente
As/os organizadoras/es da conferência Celebrando
essas estudiosas renomadas, como se sofressem uma
Interseccionalidade? declararam sua tarefa como "olhar
falta de reconhecimento por suas contribuições
para as etapas iniciais do debate sobre a
hipotéticas para a interseccionalidade, como estudiosas
interseccionalidade com a intenção de visibilizar as
que devem ser incluídas no "cânone" de
pesquisas destes dias passados que geralmente são
interseccionalidade (Lykke 2010, pp. 72, 80, 81, 85;
negligenciados no debate atual" (Lutz et al., 2011, p. 1).
2011, p. 213). É bastante perturbador que elas sejam
Tais movimentos aparentemente generosos estão
todas brancas. A política de genealogia e canonicidade
sempre a serviço das estruturas contemporâneas do
que agrega mais precursoras ou colaboradoras-chave
poder acadêmico. No contexto específico da enunciação
feministas brancas para a interseccionalidade aniquila
nos debates sobre a interseccionalidade nos estudos de
convenientemente o fato de que o ponto de vista político
gênero alemães, o interesse em recuperar do passado os
na raiz dessa teoria e epistemologia foi construído de
conhecimentos e seus/as produtores/as aparentemente
forma oposta ao feminismo branco, não em conjunto
subestimados não é equilibrado com a preocupação
com ele.
devida por aqueles/as subestimados/as no presente e
para aqueles/as que atualmente estão sendo A aplicação de uma lente analítica interseccional a esses
negligenciados/as e marginalizados/as dentro do mesmo atos de recalibração ou deslocamento genealógico nos
campo. Reivindicar a recuperação do trabalho das/os permite rastrear quem é empoderada/o e
menos poderosas/os pode servir simplesmente como um desempoderada/o através deles, que tipo de práticas de
pretexto para inserir e amplificar as/os mais citação eles geram, com quais consequências, e quais
poderosas/os. estudiosas se tornam as operadoras decisivas para

considerando raça não foi proeminente na conferência - uma a raça nos debates feministas atuais sobre a interseccionalidade (em
omissão que é em si mesma evidência eloquente de quão opcional é particular, mas não exclusivamente na Europa).

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legitimar o corpo do conhecimento considerado o racializadas/os da esfera acadêmica promove uma
cânone do campo - um conjunto de questões que história falsa e cria o equívoco de que a
apontam para o significado do branqueamento da interseccionalidade foi introduzida na Alemanha em
interseccionalidade. Quando esses atos ocorrem em um 2005 por estudiosas feministas brancas alemãs (Petzen
contexto em que a categoria de raça é negada e indizível, 2012) - um equívoco repetido e consolidado em
como é em partes da Europa - um contexto que David subsequentes publicações. Por exemplo, em um artigo
Goldberg (2006) examina perspicazmente na sua recente que busca mapear o atual debate sobre
conceitualização da europeização racial10 – suas interseccionalidade em países de língua alemã, Ina
implicações são sérias. Eles contribuem, talvez Kerner (2012) discute apenas o trabalho das feministas
inconscientemente, para lançar feministas e pessoas brancas como estruturantes do campo. Esta postura
queer europeus e europeias de cor "para fora da Europa parece refletir desprezo e negação profundas do
como uma formação multinacional e, de fato, fora da feminismo hegemônico alemão e dos estudos de
comunidade de intelectuais feministas e teóricos/as que mulheres/de gênero no que diz respeito a debates e
residem ou tomam a Europa como objeto de intervenções feitas por mulheres negras e mulheres
investigação" (Lewis 2013, p. 875). migrantes, que já estavam argumentando no final da
década de 1980 que suas vidas eram "moldadas por um
Um crescente corpo de trabalho crítico em contextos
confronto com uma complexa rede de múltiplas
como Alemanha e França demonstra que o feminismo
contradições" (Erel et al., 2008, p. 211).
disciplinar governa o campo do conhecimento
contemporâneo da interseccionalidade através da Da mesma forma, Encarnación Gutiérrez Rodríguez
invalidação do conhecimento produzido fora da (2010) chama a atenção para as elisões e os
academia ou subjugando-o como uma "matéria-prima apagamentos não reconhecidos que fundamentam a
pré-teórica" (Haritaworn 2012, p. 16), através do entrada da interseccionalidade no contexto alemão, e
branqueamento da interseccionalidade e excluindo ou enfatiza que as vozes marginalizadas articularam o
marginalizando intelectuais e ativistas pós-coloniais pensamento local e o ativismo sobre interseccionalidade
racializadas/os que são produtoras/es de conhecimento muito antes do feminismo disciplinar alemão.
locais sobre interseccionalidade. Por exemplo, ao Importantemente, ela identifica uma contradição do
discutir a recepção da interseccionalidade na Alemanha debate alemão sobre a interseccionalidade que "simula
pela rede do feminismo acadêmico (i.e., estudos de um interesse genuíno na compreensão da
gênero), Umut Erel e suas colegas (2008) argumentam multidimensionalidade do gênero", ao mesmo tempo em
que as contribuições de mulheres de cor e mulheres que ignora os debates locais "liderados por feministas
migrantes para debates sobre interseccionalidade migrantes, exiladas, judias e negras, que já propuseram
raramente são incluídas na produção acadêmica essa perspectiva na década de 1980 (p. 56). Ademais, o
institucional. Na verdade, lendo o que é considerado o debate altamente acadêmico - desconectado das
saber sobre interseccionalidade no contexto alemão cria aplicações empíricas da interseccionalidade e de sua
a falsa impressão de que não existem intelectuais e práxis política - que parece estar ocorrendo entre as/os
ativistas racializadas/os, nem feministas e pessoas estudiosas/os de gênero de língua alemã, raramente
queers de cor antirracistas capazes de contribuir para menciona sua própria posição e seu privilégio racial
essa literatura, enquanto na realidade essas/es (Petzen 2012), deixando de seguir um princípio central
atrizes/atores foram as/os primeiras/os a articular da interseccionalidade – tratar do ponto de vista.
pensamento e práxis de interseccionalidade neste Ignorando, assim, que o contra-discurso e a contra-
contexto (Erel et al., 2008; Gutiérrez Rodríguez 2010; memória que essas intelectuais e ativistas racializadas
Haritaworn 2012; Petzen 2012). O resultado de excluir produzem manifestamente contribuem para transformar
e subjugar o conhecimento produzido por alemãs/es a interseccionalidade em um projeto de conhecimento

10 Ver também Tomlinson (2013), para uma discussão convincente


sobre esse contexto em relação ao saber europeu sobre
interseccionalidade.

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hegemônico. Neste contexto, não é coincidência que interseccionalidade, é que se trata da
muitas dessas intelectuais racializadas que provêm uma tradução/introdução do conhecimento feminista negro -
visão das relações de poder e das dinâmicas raciais que é construído a partir da criação de mulheres negras
envolvidas na "introdução" da interseccionalidade aos desde um ponto de vista (político) autodefinido em sua
estudos de gênero alemães vivem e trabalham fora da própria opressão (Collins 1989, pp. 746–747) –
Alemanha (no Reino Unido, Estados Unidos, Canadá e tornando-se o próprio local da negação da capacidade
Turquia, por exemplo). das mulheres francesas racializadas (em particular, as
muçulmanas).
Esta é uma ironia sombria: uma ferramenta elaborada
por mulheres de cor para confrontar o racismo e o Em suma, há razões suficientes para abordar
heterossexismo do feminismo dominado por brancas, criticamente a política da "introdução" da
bem como o sexismo e o heterossexismo dos interseccionalidade, incluindo as políticas de tradução,
movimentos antirracistas, torna-se, em outro momento de "prefaciação", e assim por diante, em termos de seus
e lugar, um campo de especialização efeitos de poder estruturais, culturais e disciplinares, e
predominantemente dominado por feministas nos níveis interpessoais (Collins 2000, 2009) sobre os
disciplinares brancas que mantêm a raça e as mulheres grupos subordinados representados como os principais
racializadas distantes. beneficiários deste novo conhecimento.
O enquadramento de grupos subordinados como
incapazes de compreender e interpretar sua própria
Conclusão
opressão e, consequentemente, articular suas próprias
ferramentas de resistência, não é, claro, específico da A entrada tardia da interseccionalidade na solene casa
Alemanha. Discursos semelhantes são encontrados em do feminismo disciplinar europeu catalisou lutas e
outros lugares da Europa, por exemplo, na França. hierarquias de poder existentes e gerou novas delas,
Trabalhos recentes produzidos na França por destacando contradições que revelam problemas
intelectuais pós-coloniais e decoloniais como Fatima profundos na questão de raça no feminismo disciplinar
Ait Ben Lmadani e Nasima Moujoud (2012) e Houria acadêmico. Uma dessas contradições reside no desejo
Bouteldja (2013) indicam que forças e racionalidades de reconhecer e restaurar o conhecimento subjugado do
similares estão em jogo. Intelectuais e ativistas pós- passado, ignorando as subjugações atuais. É importante
coloniais se esforçam para articular críticas cruciais do enfatizar que corrigir a subjugação passada geralmente
feminismo hegemônico, bem como outras disciplinas e requer pouco mais do que o reconhecimento simbólico,
campos que lidam com "questões minoritárias". Apesar enquanto que corrigir a subjugação presente implica a
da constante deslegitimação, elas/es argumentam que as redistribuição do poder. No contexto europeu, onde a
configurações apresentadas como progressistas podem categoria de raça foi desarticulada e substituída por
ser opressivas e discriminatórias para as/os referências a etnia, cultura, religião e outras categorias,
estudiosas/os racializadas/os. Estou em dívida com a atual racialidade parece estar além dos limites do que
Nasima Moujoud por chamar minha atenção, em uma se pode pensar e dizer. "Raça" aponta apenas para um
comunicação pessoal, a uma benevolência e vazio. Nenhuma categoria está disponível "para nomear
paternalismo quase-coloniais que, em alguns casos, um conjunto de experiências que estão ligadas em sua
acompanha a tradução de textos feministas ou pós- produção ou pelo menos inflexão, historicamente e
coloniais negros no contexto francês: "mas estamos simbolicamente, de forma experiencial e política, a
fazendo isso por você [Árabes, Negros/as] para que acordos e compromissos raciais" (Goldberg 2006, p.
você possa ter as ferramentas para pensar, articular sua 335). Como resultado, negar a relevância da raça para
opressão." Este é um equívoco racista profundamente entender e enfrentar os diferenciais de poder torna-se
arraigado, mascarado como generosidade progressista e mais fácil do que fazer o mesmo com os eixos de poder
que esconde os benefícios de carreira que se acumulam .
para aquelas/es que dão este generoso presente. O que é
dolorosamente irônico, no caso do branqueamento da

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Outra contradição surge quando as ferramentas do ponto de vista e a sua concomitante crítica de
pensamento interseccional são combinadas com a compreensões hegemônicas do conhecimento
negação da raça. Uma linha de argumento interpreta a científico, distorcendo e deturpando a
interseccionalidade como insistindo que "não existe tal interseccionalidade como uma ferramenta analítica
coisa como uma opressão puramente racial/racista, que "objetiva" (veja Ait Ben Lmadani e Moujoud (2012)
sempre está enredada com outras categorias, outros para uma discussão sobre isso em relação à academia
eixos de poder". Essa postura invalida o antirracismo francesa). Mas o pensamento interseccional cuidadoso
baseado no fato de que ele seleciona a raça e a trata "de deve sempre ter em conta diferentes significados,
forma isolada"11. Obviamente, se está usando a propósitos e públicos. Interseccionalidade não cria uma
interseccionalidade incorretamente para "ultrapassar" a lista de compras de categorias que podem ser
opressão racial, descartando-a porque ela nunca está implantadas para encerrar a discussão de opressões
sozinha. Mas a interseccionalidade não implica uma específicas ("sim, a raça é importante, mas e sobre...?").
aplicação universal (ou seja, indiferenciada e sem Esta interpretação da interseccionalidade como um
contexto) de uma regra estática, quase dogmática, a ser imperativo de que todas as opressões sejam combatidas
aplicada a todas as formas de conhecimento e sempre juntas é uma estratégia usada para diluir a
organização política que lidam com a opressão. Pelo atenção dada ao racismo (Luft 2009), para servir de
contrário, a implantação cuidadosa e consciente da método de desvio, de afastamento da raça (Ahmed
interseccionalidade nos obriga a levar em consideração 2012). Sem sugerir que as questões "e o que diz respeito
as disparidades sistêmicas na posição social. A crítica ao gênero/sexualidade/classe?" não sejam legítimas,
indígena ao movimento Occupy e a crítica à Marcha das Sara Ahmed acertadamente ressalta que "dado o quanto
Vadias por mulheres negras discutidas na introdução é difícil tratar de raça e racismo, essas questões podem
destacam as maneiras pelas quais algumas/ns podem ser usadas como uma forma de redirecionar a atenção.
usar uma injunção contra a interseccionalidade, a fim de Em outras palavras, quando ouvir sobre raça e racismo
criar situações de exclusão e invisibilidade. Aquelas/es é muito difícil, a interseccionalidade pode ser
que argumentam que não há necessidade de discutir empregada como defesa contra ouvir" (p. 195, n. 18).
sobre a opressão racial porque tal opressão nunca é
Para evitar um uso normativo e disciplinar da
"puramente" racial estão tratando a interseccionalidade
interseccionalidade, é necessário prestar atenção
na teoria como uma diretiva de aplicação universal, com
adequada às contingências históricas, contextos
o objetivo específico de suprimir a discussão da
específicos e os propósitos de argumentos específicos.
opressão racial. Tratar a interseccionalidade como uma
Pensar interseccionalmente sobre como a
regra universal disciplina e ainda deslegitima formas de
interseccionalidade é e deveria ser empregada requer
conhecimento e organizações políticas minoritárias, que
considerar posições estruturais e diferenciais de poder.
muitas vezes tiveram de priorizar (embora
Aqueles que usam a interseccionalidade como um
temporariamente e estrategicamente) abordagens de
dispositivo universal a ser aplicado como uma regra
uma única questão.
invariável podem prejudicar o planejamento estratégico
Uma terceira contradição surge quando a complexidade daquelas/es que usam interseccionalidade para contestar
analítica da interseccionalidade é tratada de forma opressões concretas específicas. Pensar
simplista, em vez de uma ferramenta que não atende ao interseccionalmente inclui a possibilidade de que, em
mesmo propósito em mãos diferentes. Uma forma que alguns casos, recuar da interseccionalidade funcione
essa contradição toma é a de extrair a como estratégia de empoderamento para grupos
interseccionalidade do seu reconhecimento da teoria do subordinados, como evidenciado nas lutas do PIR -

11 Essa tentativa de empregar interseccionalidade para desviar a pensamento interseccional para se opor às agendas e prioridades das
atenção das opressões raciais é discutida pela ativista Houria lutas políticas decoloniais. A interseccionalidade, no entanto, não
Bouteldja (2013), uma das porta-vozes e fundadoras do Partido tem nenhuma injunção "proibindo" a atenção estratégica a categorias
dos/as Indígenas da República (Parti des Indigènes de la République particulares, por exemplo, priorizar uma abordagem prioritariamente
(PIR)), uma organização chave do movimento descolonial na racial em vez de assumir a interseccionalidade que exige que todas
França. Bouteldja observa que os estudiosos franceses usaram o as opressões sejam abordadas simultaneamente.

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Partido dos Povos Indígenas da República para articular
a política descolonial na França (Bouteldja 2013), ou
estratégias de intervenção/ensino para criar consciência
nos grupos dominantes em relação aos privilégios
naturalizados. Como argumenta Rachel Luft (2009), o
afastar-se da interseccionalidade e utilizar
estrategicamente abordagens apenas raciais pode ser
necessário em nossos tempos "pós-raciais", nos estágios
iniciais de intervenção e ensino destinados a encorajar
os brancos a reconhecer seus privilégios raciais. A
questão principal a ser feita neste processo é se esse
recuo é desempoderador para outros grupos
subordinados ou não, se isso melhora ou contribui de
alguma forma à sua opressão? Se a resposta for sim,
então devemos, como Samuel Beckett (1983, p. 7) disse,
“Tente novamente. Falhe novamente. Falhe melhor." Se
(mesmo vagamente) desempoderador para grupos
dominantes sem desempoderar outros subalternos,
talvez possamos considerá-lo uma estratégia
provisoriamente bem-sucedida em seu contexto.
Para concluir, gostaria de sublinhar que a anexação da
interseccionalidade pelo feminismo disciplinar não é de
modo algum coincidente com a marginalização
sistemática de intelectuais e ativistas racializadas/os nos
debates contemporâneos e na produção de
conhecimento sobre interseccionalidade. A
reestruturação da interseccionalidade como uma criação
do "feminismo", como um resultado dos debates
internos do feminismo, efetivamente apaga uma
oposição histórica a partir da qual surgiu a
interseccionalidade: feministas de cor que confrontam o
racismo no feminismo. Nesta interseccionalidade
desarticulada e rearticulada, a raça também se torna
opcional, abrindo caminho a opressões e
marginalizações semelhantes, tomando lugar desta vez
não dentro do feminismo, mas dentro dos estudos
feministas sobre interseccionalidade.

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