BILGE. Interseccionalidade Desfeita
BILGE. Interseccionalidade Desfeita
BILGE. Interseccionalidade Desfeita
Sirma Bilge*
Tradução de Flávia Costa Cohim Silva**
Revisão de Viviane Vergueiro***
Resumo2
Este artigo identifica um conjunto de relações de poder dentro dos debates acadêmicos feministas contemporâneos sobre
a interseccionalidade que trabalham para "despolitizar a interseccionalidade", neutralizando o potencial crítico da
interseccionalidade para uma mudança orientada à justiça social. Num momento em que a interseccionalidade recebeu
aclamação internacional sem precedentes nos círculos acadêmicos feministas, um feminismo acadêmico
especificamente disciplinar, em sintonia com a economia do conhecimento neoliberal, se envolve com práticas
argumentativas que a reenquadram e minam. Este artigo analisa várias tendências específicas de debate que neutralizam
o potencial político da interseccionalidade, como o confinamento da interseccionalidade a um exercício acadêmico de
contemplação metateórica, bem como um "branqueamento da interseccionalidade" através de afirmações de que a
interseccionalidade é "a invenção do feminismo", e requer uma "genealogia mais ampla da interseccionalidade"
reformulada.
1 Gostaria de agradecer aos revisores anônimos por seus comentários úteis e perspicazes. Agradeço também aos editores desta edição especial,
com uma menção especial a Barbara Tomlinson. Finalmente, agradeço vários colegas e amigos pelos generosos feedbacks que recebi em várias
conferências (Paris 2011, Lancaster 2012, Lausanne 2012) onde eu apresentei versões anteriores desse artigo: Fatima Aït ben Lmadani, Philippe
Allard, Paola Bacchetta, Kimberlé Crenshaw, Anne-Marie Fortier, Patricia Hill Collins, Nasima Moujoud, Jennifer Petzen e Julianne Pidduck.
* Sirma Bilge, Ph.D., Professora Associada, Departamento de Sociologia, Universidade de Montreal, C.P. 6128, Succursale Centre-ville, H3C 3J7
Feminismo pelo PPGNEIM-UFBA (Programa de Pós-Graduação em Estudos de Gênero do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher).
E-mail: [email protected].
*** Ativista transfeminista, doutoranda no PPGNEIM-UFBA (Programa de Pós-Graduação em Estudos de Gênero do Núcleo de Estudos
Interdisciplinares sobre a Mulher), mestra em Cultura e Sociedade (Pós-Cultura/IHAC/UFBA) e graduada em Ciências Econômicas pela Unicamp.
E-mail: [email protected].
2 Nota da tradução: o presente texto é uma tradução para a Língua Portuguesa do artigo "Intersectionality Undone", da autora feminista Sirma
Bilge. Neste artigo, a autora trata das origens do conceito de Interseccionalidade, e também da apropriação de suas histórias pelo feminismo
hegemônico no Norte Global, além de sua popularização despolitizada. Bilge recupera sua história e faz críticas a estas apropriação e despolitização.
A autora tem outros trabalhos sobre o tema, incluindo o livro Intersectionality (Key concepts), em co-autoria com Patricia Hill Collins, feminista
negra estadunidense, publicado em 2016 - livro também não traduzido ao português.
3O movimento Marcha das Vadias começou no Canadá em abril de estigma como muitas políticas minoritárias de protesto, a Marcha das
2011, depois que um agente da polícia de Toronto disse a um grupo Vadias reapropria e ressignifica o termo "vadia" e exorta as mulheres
de estudantes que as mulheres poderiam evitar ser agredidas a protestar com um vestuário revelador. Os movimentos têm se
sexualmente ao não se vestirem como umas "vadias". Ao inverter o espalhado rapidamente pelo norte e sul globais.
4Nota de tradução: As mencionadas duas mulheres levaram cartazes medida que avançamos, percebemos que não podemos cultivar uma
dizendo que as mulheres são os cri* do mundo, as outras três levaram identidade como uma coalizão sem defender todas as identidades
os cartazes com os dizeres completos. Nesta referência à música que se cruzam de nossas organizadoras e participantes"
Women are the N* of the World , traduzimos a expressão (http://slutwalknyc.tumblr.com/, acessado em 15, Setembro, 2013).
extremamente racista N* para uma outra, iniciada por ‘cri’, do Para uma crítica da política racial da Marcha das Vadias, veja The
contexto racista brasileiro. Crunk Feminist Collective (2011).
5 Em sua resposta à indignação na sequência do incidente, as 6 Outro exemplo de ineptidão é revelada por fotos de uma Marcha
organizadoras declararam: "Marchas das Vadias em todo o mundo das Vadias em Berlim, em 15 de setembro de 2012, que mostram
foram criticadas do ponto de vista anti-racistas desde a primeira várias mulheres jovens brancas em preto e com tinta preta cobrindo
caminhada. Concordamos com muitas dessas críticas e estamos seus corpos, deixando abrir apenas a área dos olhos para imitar o
atentas a elas em nossa organização. Reconhecemos que, sob a niqab. Outras mulheres vestiram o niqab dos ombros para cima, com
bandeira de Marcha das Vadias, colocamos a logística antes da seus torsos nus cobertos de tinta preta (Minh-Ha 2009).
política em muitos casos, e que isso foi uma falha. Mas agora, à
7 Argumentos sobre a conferência que aparecem ao longo deste Lutz, Nina Lykke e Cornelia Klinger
artigo baseiam-se nos trabalhos de conferência co-editados (Lutz et (http://www.cgc.unifrankfurt.de/intersectionality/audio.shtml,
al., 2011), outros relatos (Lewis 2009, 2013; Petzen 2012) e acessadas em 21 de agosto de 2012).
gravações de áudio de apresentações, em particular as de Helma
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Minha tradução do título original: lmbrication des rapports de O trabalho de Colette Guillaumin (1995) seria a exceção a essa
pouvoir: discriminations et privilèges de genre, de race, de classe et generalização sobre raça. No entanto, seu pensamento desenvolveu
de sexualité , 30 de Agosto – 4 de Setembro, 2012, Lausanne. uma moldura analógica ("imbricação"), em vez de uma moldura de
encaixe/interseção/entrelaçamento/co-extensão, seu trabalho
considerando raça não foi proeminente na conferência - uma a raça nos debates feministas atuais sobre a interseccionalidade (em
omissão que é em si mesma evidência eloquente de quão opcional é particular, mas não exclusivamente na Europa).
11 Essa tentativa de empregar interseccionalidade para desviar a pensamento interseccional para se opor às agendas e prioridades das
atenção das opressões raciais é discutida pela ativista Houria lutas políticas decoloniais. A interseccionalidade, no entanto, não
Bouteldja (2013), uma das porta-vozes e fundadoras do Partido tem nenhuma injunção "proibindo" a atenção estratégica a categorias
dos/as Indígenas da República (Parti des Indigènes de la République particulares, por exemplo, priorizar uma abordagem prioritariamente
(PIR)), uma organização chave do movimento descolonial na racial em vez de assumir a interseccionalidade que exige que todas
França. Bouteldja observa que os estudiosos franceses usaram o as opressões sejam abordadas simultaneamente.