O Retrocesso Empurra A Porta A Literatura Infantil e o Programa Conta Pra Mim
O Retrocesso Empurra A Porta A Literatura Infantil e o Programa Conta Pra Mim
O Retrocesso Empurra A Porta A Literatura Infantil e o Programa Conta Pra Mim
ABSTRACT: This work problematizes the exempt treatment of children's literature in Conta
pra mim program, instituted by the Brazilian federal government in 2020. From the analysis of
documents of this program, as a revelation, the current official perspective for literacy denies
the supply of children's literature and suppresses the knowledge historically accumulated
elaborated about literacy, literary education and children's literature. It discusses how the
defense of family education, in a context of growing social conservatism, puts the right to basic
education into perspective. It affirms that social coexistence and literary education also flow
into the context of school education, a locus that is sustained not by the removal and
confinement of families, but, on the contrary, it is also supported by their plurality and in
dialogue with their respective demands. It concludes the reading proposal for children, along
the lines of family literacy, denies access to art and is confined to utilitarian, immediatist,
moralizing purposes, which do not contribute to the transformation of society, but to its
reproduction.
Keywords: Children literature; educational politics; PNA. Conta pra Mim.
1
Doutora em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo-UFES. Professora de Língua Portuguesa no
Ifes-Campus Venda Nova do Imigrante.
O retrocesso empurra a porta... Ramalhete, M.
Considerações iniciais
A literatura para crianças e jovens tem sua expansão como gênero literário vinculado à
mudança na concepção de infância, que passa a ser vista como um período da existência com
características peculiares, que demanda cuidados e atendimento particularizado. Na Europa,
essa transformação pode ser observada a partir do século XVIII e, no Brasil, no século XX,
acompanhada de uma série de eventos, tais como a ascensão da burguesia, a consolidação da
economia capitalista e de um modo de vida centrado nas famílias, a partir de uma
determinação de papéis baseados da dicotomia de gênero (marido e mulher) e de faixa etária
(filhos e pais). Além disso, observam-se a reorganização da escola e do sistema de ensino, a
decadência dos gêneros clássicos e afirmação de formas populares, desde o romance até o
folhetim (ZILBERMAN, 1985).
A literatura infantil, durante muito tempo, ficou confinada a finalidades moralizantes e
didatizantes, possuiu, no contexto da ascensão da família burguesa, papel fulcral na veiculação
de valores ideológicos caros a essa sociedade (ZILBERMAN; MAGALHÃES, 1984; LAJOLO,
1993; ZILBERMAN, 2003; ZILBERMAN, 2009; GREGORIN FILHO, 2009). No Brasil, o
notável enfraquecimento dessa premissa parece ter ocorrido com o chamado “boom” da
literatura infantil e juvenil, na ditadura militar (1964-1985). Essa aparente contradição é
explicada, segundo Machado (2011), por três motivos: “explosão criativa” em função de uma
tradição deixada por Monteiro Lobato; a ausência de uma leitura literária, pelos militares, a seus
filhos e netos, o que evidencia uma insciência relativa às produções do campo, e, por fim,
conjetura-se a ausência de uma preocupação genuína com as crianças. A autora ainda pondera
que, embora alguns escritores de literatura infantil e juvenil tivessem sido acossados, exilados e
presos, tais práticas “justificaram-se” pelas suas respectivas atuações profissionais enquanto
advogados, jornalistas, professores, por exemplo, e não por causa de suas produções literárias
(MACHADO, 2011).
A intensificaçao das discussões relativas à leitura na escola, à leitura literária se deu na
virada da década de 1970 para a 1980. É dentro de um contexto de manifestações públicas
avessas ao regime militar e favoráveis à redemocratização que se verifica um movimento amplo
de pesquisadores de inúmeras áreas do conhecimento, dentre elas os cursos de Letras e
Pedagogia, preocupados com os rumos da escola brasileira, com qualificação do professor e com
a qualidade do ensino, que se mostravam alarmantes (ZILBERMAN, 2008). Mesmo após
inúmeras conquistas na sociedade e na esfera educacional, mais de trinta anos depois, essas
preocupações ainda estão aquecidas.
No limiar entre as áreas de Letras e Pedagogia, sem se desconectar dessas preocupações,
este artigo versa sobre as implicações entre ações governamentais e educação literária,
especificamente por meio da análise do Programa Conta pra Mim. Instituído pela portaria nº
421, de 23 de abril de 2020 (BRASIL, 2020a), esse programa consiste em uma ação da Política
Nacional de Alfabetização (PNA), estabelecida pelo Decreto nº 9.765, de 11 de abril de 2019
(BRASIL, 2019a). É a efetivação do disposto no art. 8º do referido decreto, uma vez que a
implementação da PNA se dará por meio de programas, ações e instrumentos que englobam
desde a organização curricular, produção de obras literárias, até a promoção de práticas de
literacia familiar. O Conta pra Mim apregoa atender, também, à Lei nº 13.257, de 8 de março de
2016 (BRASIL, 2016), que dispõe sobre as políticas públicas para a primeira infância. Trata-se,
enfim, de um programa que ambiciona “orientar, estimular e promover práticas de literacia
familiar em todo o território nacional” (BRASIL, 2020a).
A compreensão mais acurada do programa Conta pra Mim exige uma breve
contextualização. Na década de 1990, as transformações nas áreas culturais, tecnológicas vieram
acompanhas do acentuamento do ideário neoliberal nos âmbitos político e econômicos. Trata-
se de um modelo assinalado por conjunto de ações que contemplam severos ajustes fiscais,
ataques à democracia, privatização de empresas e serviços públicos. Tais características, muito
em vigor no contexto atual, contribuem para a conservação da desigualdade (IBARRA, 2011).
Essas práticas adentram o campo educacional com discursos nocivos sobre o fracasso da escola
pública e sobre a inabilidade estatal na gestão de um bem comum. Paralelamente, advoga-se a
favor de iniciativas privadas, bem como da condução da economia ao sabor das leis do mercado
(SAVIANI, 2013). Nessa visão, só há crescimento econômico se este for auferido pelo lucro e
pelo acúmulo de capital e não pela qualidade de vida população em geral (em especial da classe
trabalhadora); são banidas dessa premissa todas as formas de satisfação de necessidades que não
passam pelo viés mercadológico, assim como não se reconhecem os méritos dos serviços
públicos, dentre os quais se incluem a educação. Assim, a educação pública ganha uma nova
configuração, pois, em certa medida, fica refém das intervenções neoliberais, sobretudo
daquelas vinculadas a organismos internacionais (DERRISSO; DUARTE, 2017).
Desde o golpe jurídico-midiático-parlamentar (GONÇALVES, 2020), a educação no
Brasil tem sido alvo de uma cadência de ataques. Apenas como exemplo, pode-se citar a
aprovação da Emenda Constitucional 95/2016, que impõe um teto para todos os gastos com
políticas sociais e, na prática, durante 20 anos, restringe as despesas primárias do orçamento
público de acordo com a variação inflacionária. Nesse bojo, arrola-se, ainda, o desprezo pela
ciência, pelas artes e pelo saber elaborado, o revisionismo histórico acerca da ditatura militar, o
controle ideológico da profissão docente, por meio do movimento da Escola sem Partido
(FRIGOTTO, 2017), bem como a reforma trabalhista, que corroeu direitos e relações de
trabalho, chancelando a precarização, a partir da permissão da terceirização de atividades
primárias e da ampliação do número de trabalhadores informais e temporários, dos quais se
incluem o magistério (EDITORIAL DA RETRATOS DA ESCOLA, 2020; RAMALHETE,
2020).
Como se vê, a política neoliberal contém um tipo de racionalidade que rege as mais
irracionais formas de pensamento e de sociabilidade, tornando-se um terreno fecundo para a
propagação do obscurantismo beligerante. Dessa visão mercantil e restrita da história humana,
do conhecimento e dos mecanismos produtores de desenvolvimento deriva uma concepção de
educação fragmentária, cativa à permanente adaptação de pessoas às mudanças impostas pelo
mercado à cotidianidade dos indivíduos (DUARTE, 2018; DUARTE; MAZZEU; DUARTE,
2020).
Dentro desse contexto de “obscurantismo beligerante” (DUARTE, 2018; DUARTE,
MAZZEU; DUARTE, 2020), ganha força o homeschooling, que, no Brasil, é conhecido também
por “educação domiciliar”. Trata-se de um movimento organizado, a partir das orientações da
Associação Nacional de Educação Domiciliar (Aned), criada em 2010, por iniciativa de um
grupo de famílias insatisfeito “[...] com a educação que seus filhos estavam recebendo nas salas
de aula”. (ANED, 2019, s/p). Convém salientar, mais do que uma associação, a defesa pela
educação em casa tem ganhado espaço no Congresso Nacional. Em regime de urgência,
encontra-se em tramitação o projeto de lei de 2401 de 2019, que dispõe sobre o exercício do
direito à educação domiciliar, altera a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança
e do Adolescente - ECA) e a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as
diretrizes e bases da educação nacional (LDB).
Após os grandes avanços, decorrentes das grandes lutas pela universalização do acesso à
educação Básica no Brasil desde a constituição de 1988, vislumbrados, justamente em marcos
legais como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (LDBEN), é significativo o aumento de um movimento que busca a
institucionalização de um direito, especificamente na oposição frontal a esses avanços; ou seja,
na formação em ambiente doméstico e a consequente recusa à escola (PICOLI et al, 2020). A
escola para todos é uma vitória recente e se constitui como um dos pilares da dignidade e da
igualdade no Brasil. A regulamentação da prática de educação domiciliar, um claro retrocesso,
pode contribuir para a cristalização das desigualdades sociais, fruto de um país de origem
escravocrata e patrimonialista (WENDLER; FLACH, 2020). Trata-se de um ataque à
universalização da educação. Como uma mônada, o ensino domiciliar reúne em si a
representação de condições objetivas que regem a vida no cenário atual, marcada pela
degradação da experiência e suas condições de comunicabilidade (VENTURA, 2020).
Araujo e Leite (2020) avaliam que o movimento da educação domiciliar assegura o
fortalecimento de uma rede empresarial, mantida pela cooperação de diversas instâncias na
atuação de plataformas que ofertam guias, manuais pedagógicos, cursos e certificações de custos
elevados. Em outras palavras, há uma “rede” fincada em interesses conservadores de discursos
mercantis, segregadores e contrários à docência e à escolarização (ARAUJO; LEITE, 2020). Para
Cecchetti e Tedesco (2020), o ensino domiciliar está ligado a valores religiosos
fundamentalistas. Ele tem apoio de partidos políticos, instituições e líderes religiosos, afinados
ao movimento neoconservador que grassa em escala internacional. Na análise dos autores, a
regulamentação do ensino domiciliar também colocará em xeque o direito público à Educação
Básica, assegurado após décadas de luta coletiva em defesa de uma escola gratuita, igualitária,
inclusiva, obrigatória e laica (CECCHETTI; TEDESCO, 2020).
O atual secretário de alfabetização do Ministério da Educação (MEC), Carlos Francisco
de Paula Nadalim, sustenta, com contumácia, a proposta de institucionalização do ensino
domiciliar. Mantém um blog, intitulado Como educar seus filhos, no qual publica “vídeos,
entrevistas e artigos com dicas para os pais sobre educação infantil, especialmente no tocante à
alfabetização familiar”. Segundo informações desse blog, Nadalim garante ter ensinado, “pela
internet, 1.630 pais e mães a alfabetizarem seus filhos em casa” (COMO EDUCAR SEUS
FILHOS, 2020). Diante desse cenário, é preciso cautela na análise discursos e das políticas
públicas que versam sobre a Educação Básica (PICOLI et al, 2020). Assim, vê-se com
desconfiança o lançamento do programa Conta pra Mim, que tem como objetivo a ampla
promoção da denominada “Literacia Familiar”. Afinal, “[...] alienar as crianças e os jovens em
um mundo familiar em nome de um conservadorismo de normas e de valores competitivos e
privatizados é um empobrecimento da alma e da possibilidade de abertura de um mundo
socialmente mais justo” (CASANOVA e FERREIRA, 2020, p. 12).
O programa Conta pra Mim faz parte das ações da PNA. Implementada sem diálogo com
as comunidades escolar, acadêmica e sociedade civil, infringindo, desse modo, o princípio
constitucional do pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas (MORTATTI, 2019a;
2019b), a PNA é uma política de governo, partícipe de uma agenda interna calcada em um
ideário ultraconservador e neoliberal, que apresenta um simulacro de educação literária
(RAMALHETE, 2020). Por ter uma visão restrita da alfabetização, esvazia sua dimensão crítica e
faz coro a projetos de subordinação da Educação Básica aos interesses privados (GONTIJO;
ANTUNES, 2019). Mais que um retrocesso, por diminuir a alfabetização a relação grafema-
fonema, é uma violência simbólica a crianças e a docentes (MACEDO, 2019). Trata-se, enfim,
de uma guinada (ideo)metodológica para trás e pela direita, uma grave ofensiva com efeitos
desastrosos (MORTATTI, 2019a, 2019b).
O programa Conta pra Mim oferece um guia, intitulado Conta pra Mim: guia de literacia
familiar (BRASIL, 2019b), que está estruturado da seguinte forma: na parte inicial, há,
primeiramente, uma nota do ex-ministro da Educação, Abraham Bragança de V. Weintraub,
amparado em certas justificativas dos campos da psicologia cognitiva, da pedagogia e da
economia, na qual ele reitera a necessidade de valorização da primeira infância, entendida,
consoante o documento, como a faixa etária que contempla dos 0 a 6 anos. Em seguida, o texto
de apresentação, assinado pelo secretário Carlos Francisco de Paula Nadalim, contextualiza as
ações do Conta pra Mim, dentro da PNA, assim como se reitera o objetivo do programa que é a
literacia familiar. Por fim, registra-se um texto de Barbara H. Wasik, professora da Universidade
da Carolina do Norte-EUA, em que se reitera a importância de práticas de literacia familiar.
Todo o documento fundamenta-se nesse conceito de Literacia Familiar, entendida
como:
[...] conjunto de práticas e experiências relacionadas com a linguagem
oral, a leitura e a escrita, que as crianças vivenciam com seus pais ou
responsáveis. [...]
Literacia Familiar é se envolver na educação dos filhos, curtindo
momentos especiais de afeto, carinho e diversão em família, brincando
com livros e palavras (BRASIL, 2019b, p. 13)
2
Evidentemente, o termo “interação verbal” no programa Conta pra Mim não coincide com conceito de interação
verbal defendido pelo Círculo de Bakhtin. Na análise dos pensadores russos, precursores de uma concepção
discursiva da linguagem, a interação verbal (ou interação discursiva) constitui-se na realidade fundamental da
língua. Essa realidade não se reduz a um sistema abstrato de formas linguísticas nem no enunciado monológico
isolado, tampouco o ato psicofisiológico de sua realização, mas no acontecimento social da interação discursiva que
ocorre por meio de um ou vários enunciados (VOLÓCHINOV, 2017).
3
O programa Conta pra Mim investiu em publicidade e sua propaganda tem sido constantemente veiculada em
emissora de TV aberta. Nessa propaganda, aparece uma mãe que lê para sua filha, enquanto costura. Cumpre
salientar que, embora sutil, tal imagem reflete a exata medida da precarização do trabalho em um Estado neoliberal
e ultraconservador: a visão de uma mulher adstrita ao ambiente doméstico e que, sorrindo, realiza multitarefas.
Esse vídeo pode ser visto em: <https://www.youtube.com/watch?v=OHw6OBRNgL8>.
que são listados estudos estrangeiros que chancelam a proposta de literacia familiar. Como o
Conta Pra Mim é uma ação da PNA, vale ressaltar as críticas já direcionadas a essa política
educacional. Afinal, a insistência do termo “evidências” cheira verniz. Ou seja, a forma
recorrente aparenta confiança e credibilidade. Contudo, mostra uma postura excludente, ao
indicar que as várias evidências de anos de estudos da comunidade acadêmica brasileira não são
consideradas na PNA (FRADE, 2019). Logo, essa repetição nega o diálogo com a fortuna crítica
que tem sido produzida no Brasil, sobre a alfabetização com base nas próprias políticas do
Ministério da Educação das últimas décadas (MICARELLO, 2019).
Por fim, registram-se as referências, cuja listagem de obras é exclusivamente estrangeira,
expondo uma postura subserviente e colonizada (MORTATTI, 2019a; 2019b). Além disso,
cumpre salientar que o problema principal não repousa no alicerce em referenciais estrangeiros
em si, mas a qual demanda, concepção de sociedade, intencionalidade e filiação teórica esses
referenciais estão submissos. O Estado, como agente regulador de políticas públicas, sustenta
um interesse particular, ao se desviar, por exemplo, de todo um percurso de trabalho e crítica
acumulado por pesquisas nacionais acerca da alfabetização (RAMALHETE, 2020) e, agora, de
leitura, de leitura literária, de educação literária, de literatura infantil, dentre outros.
O guia, em suas 72 páginas sobre leitura, interação, contação de histórias, omite a termo
literatura: mais especificamente, de literatura infantil. Além desse documento (BRASIL, 2019b),
o Programa Conta Pra Mim oferece os seguintes materiais: a) uma série de vídeos publicados em
plataforma de compartilhamento de vídeos, em que são encontradas mais orientações sobre o
programa, direcionadas a pais e responsáveis; b) coleções de vídeos com cantigas populares e
com fábulas, respectivamente cantadas e narradas pelo músico, cantor e compositor Antonio
Pecci Filho, o Toquinho, disponíveis também em plataforma de compartilhamento de vídeos;
c) narração de histórias infantis e contos de fadas disponibilizados em plataformas para ouvir
música; d) marcadores de páginas, bem como e) livros infantis; esses últimos podem ser
baixados ou impressos diretamente do site do programa (BRASIL, 2020b). Dado aos objetivos
deste trabalho, os esforços concentram-se na observância na coleção de livros do Conta pra Mim.
Tanto no guia (BRASIL, 2019b), como na portaria que instituiu o programa (BRASIL,
2020a), é reforçado que o programa é direcionado sobretudo a famílias mais pobres. Um
exemplo pode ser constatado em: “Não é preciso ter muito estudo, materiais caros nem morar
em uma casa toda equipada e espaçosa para praticar a Literacia Familiar. As práticas de Literacia
Familiar são acessíveis a todos! Bastam duas coisas: você e seu filho!” (BRASIL, 2019b, p. 13).
Tal assertiva merece uma ponderação, afinal, é sabido que o acesso a todos é uma falácia, quando
contrastado à realidade brasileira, atravessada pela desigualdade, pelo descaso governamental,
pelo racismo estrutural, pela violência. Essa desigualdade é mencionada pelo programa Conta
pra Mim, inclusive: “Estudos conduzidos nos Estados Unidos da América evidenciaram que,
entre as famílias pobres e as famílias de classe média alta, há um abismo tanto na qualidade
quanto na quantidade das interações verbais entre pais e filhos (BRASIL, 2019b, 15). Além
disso, é preciso ter internet para acesso ao conteúdo do programa. Desse modo, além dessa
incongruência, convém lembrar de mais uma vertente da desigualdade social, difundida às
escâncaras com a pandemia de Covid-19, que é o acesso efetivo à internet em território
nacional. Cerca de 46 milhões de brasileiros não têm acesso à internet, ausência justificada,
sobretudo, pelo preço do serviço e dos aparelhos eletrônicos (CETIC, 2019). Desse modo, o par
“você e seu filho” não são suficientes.
A implementação da PNA, no 8º artigo, inciso XI prevê o “[...] incentivo à produção e à
edição de livros de literatura para diferentes níveis de literacia” (BRASIL, 2019b, p. 45). Nesses
termos, o Conta pra Mim oferece uma coleção de livros para literacia familiar, dividida em
categorias, quais sejam: a) “Livros de ficção: contos de fada, fábulas e contos tradicionais
brasileiros” que totalizam 25 obras e representam a maioria dos gêneros disponibilizados; b)
“Livros de poesia: poemas, cantigas, trava-línguas, quadrinhas e parlendas”, são disponibilizadas
um total de 6 obras, com os seguintes títulos: Cantigas, O Pássaro Cativo, Parlendas, Quadrinhas,
Trava-Línguas, Voz Dos Animais; c) “Livros somente com imagens: histórias que podem ser
contadas a partir da observação das imagens”; são arroladas 3 obras: O Susto, Grande Espetáculo e
O Vento; d) “Livros para bebês: imagens e palavras representando nomes, qualidades e ações”;
são 3 produções, intituladas: Atividades do Dia a Dia, Bichos, Coisas e Lugares, Comparar as Coisas;
e) “Livros informativos: informações sobre o mundo”, com a disponibilização de 3 títulos:
Cobras, Micróbios e Água (BRASIL, 2020b).
O material do programa Conta pra Mim possui um mascote: um urso de capuz azul,
animal que não é encontrado na fauna do Brasil. Todas as 40 obras, independentemente da
categoria, possuem uma versão colorida e uma versão em preto e branco com a marcação “para
colorir”. Ramos e Nunes (2013, p. 261) advertem que “O ponto de vista que o ilustrador
apresenta ao leitor já demonstra o nível de valor artístico e, por consequência, da experiência
estética que o leitor terá a oportunidade de vivenciar”. As ilustrações do Conta pra Mim são
extremamente superficiais, não representam a heterogeneidade da população brasileira; quando
a há a representação de negros e índios, por exemplo, registram-se personagens com fenótipo de
pessoas brancas, pintadas na cor marrom. Convém ressaltar, nesse sentido, que tais fatores
denotam não apenas o sequestro da experiência estética, mas a inobservância acerca de um dos
papéis da ilustração que é a “[...] renovação e consolidação da literatura destinada a jovens e
crianças como experiência estética e não como instrumento pragmático de aprendizagem”
(ANDRADE, 2013, p. 7).
Todas as produções possuem um total de 16 páginas. Tal restrição pode ser explicada por
cerceamento contido em edital e/ou pela necessidade de se elaborar materiais mais baratos,
menos complexos e mais fáceis de serem armazenados em dispositivos eletrônicos ou impressos.
Essas obras foram editadas por Marismar Borém e produzidas sob a supervisão técnica do
secretário de alfabetização do MEC, Carlos Francisco de Paula Nadalim, discípulo de Olavo de
Carvalho, ideólogo da extrema direita (MARTINS, NEVES e AMARO, 2020). A autoria é de
Ricardo Moreira Figueiredo Filho (desconhecido na área da literatura infantil), que assina a
maior parte das obras, e Rosana Mont’Alverne, advogada, escritora, editora e ex-presidente da
Câmara Mineira do Livro (REIS, 2016). Não há qualquer menção e/ou crédito às obras
pregressas reconhecidas no mundo inteiro, como, por exemplo, a contos publicados pelos
irmãos Grimm.
Todos os livros possuem as seguintes informações da ficha catalográfica: “Publicado em
2020 pelo Ministério da Educação (MEC) em cooperação com a Editora Cora e com a
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), no âmbito
do Projeto 914BRZ1074 - 914BRZ1074.3 sob o contrato ED00217/2020”. Trata-se de uma
informação que indicia a permanência de organismos internacionais nas decisões sobre as
políticas públicas brasileiras (STIEG, 2014; LOOSE, 2016; GONTIJO, 2014; DERRISSO,
DUARTE, 2017; DIAS, 2019; ENDLICH, 2019).
A editora Cora, mencionada no excerto supracitado, é sediada em Belo Horizonte e
dedica-se a publicar “Livros que ensinem coisas boas para as famílias e que levem bons exemplos
para a infância. Por isso selecionamos livros com histórias construtivas, alegres, sadias, com
estímulos positivos que despertam o pensar e o sentir de nossas crianças.” (EDITORA CORA,
[201-], s/p), o que já demonstra certa afinidade com a proposta do programa. Ainda assim,
questiona-se: o que seriam essas “coisas boas”? Quais seriam os “bons exemplos” para a infância?
Ressalta-se que a referida empresa está registrada sob o nome “Fonohosp Serviços de
Medicina e Fonoaudiologia Clínicos e Hospitalares LTDA”, com natureza jurídica de
“Sociedade Empresária Limitada”. Ela é de propriedade de Marismar Cristina Medeiros Borem
e Ivan Jose Veiga Borges. Suas atividades de negócio são heterogêneas e contemplam, segundo o
registro, desde a atividades de profissionais da área de saúde a edição e comércio varejista de
livros4.
Em função dos limites impostos pela natureza desta pesquisa, escolheu-se para o diálogo
os livros que tivessem maior representatividade numérica. Os livros de ficção, que representam
mais de 60% do total dos livros disponibilizados, possuem os seguintes títulos: A cegonha e a
raposa, A lenda da vitória-régia, A luz azul, A princesa e a ervilha, A água da vida, Branca de Neve,
Chapeuzinho Vermelho, Cinderela, Curupira, João e Maria, João e o pé de feijão, João Magrelo, João-de-
Barro, O alfaiate valente, O corvo e o jarro, O flautista de Hamelin, O gato de botas, O jovem gigante,
O patinho feio, O pobre e o rico, O pássaro encantado, O rei e a flauta, Os músicos de Bremen, Os três
porquinhos e Rapunzel.
A coleção de livros do Programa Conta pra Mim parece nutrir uma postura
antidemocrática, pois é rechaçada do programa a fortuna teórica e crítica de estudos
historicamente direcionados à produção de obras que versam sobre as políticas públicas para
leitura, sobre a literatura infantil e juvenil. De igual modo, o Brasil possui inúmeros autores,
cuja produção literária é de reconhecida qualidade estética e nenhuma obra desses profissionais
figuram o acervo dessa política educacional, como foi feito, por exemplo, no Pnaic (Pacto
Nacional pela Alfabetização na Idade Certa), política educacional encerrada em 2018. Tais
medidas são afins a uma política de desmonte do debate público: em 2019, o MEC aboliu do
Conselho Consultivo do Plano Nacional do Livro e Leitura (BRASIL, 2019c), alterando o
Decreto nº 7.559/2011, que dispõe sobre o PNLL-Plano Nacional do Livro e Leitura (BRASIL,
2011). Em outras palavras, o planejamento de estratégias, de forma conjunta e democrática,
para o incentivo à leitura no país, por ora, está extinta.
As obras apresentadas, em geral, são versões muito empobrecidas, simplificadas,
rasteiras, insossas, monótonas de contos de fadas e lendas folclóricas. Maculam as versões
“originais” dos contos de fadas; a título de ilustração, notam-se dois tropeços. Na história de
Branca de Neve omite-se o beijo: um dos anões que carregavam o caixão da princesa tropeçou e,
por causa da inclinação do caixão, o pedaço da maçã caiu da boca de Branca de Neve. Ao
despertar do sono e ser contextualizada do ocorrido, ela é enviada ao castelo e se casa com
príncipe. Já no caso de Chapeuzinho Vermelho, o desfecho do lobo é justificado por um tropeço e
posterior queda no rio (FIGUEIREDO FILHO, 2020a; 2020b);
No livro João Magrelo, conta-se a história de Letícia, uma princesa que teve seu sorriso
leiloado. Seu pai ofereceu aos rapazes do reino moedas de ouro a quem a fizesse sorrir. Apenas
um rapaz, o João Magrelo, que era mágico, conseguiu tal façanha. A princesa, por sua vez,
casou-se com João, contra a vontade do rei. Anos depois, a princesa fica triste e, novamente,
tem seu sorriso rifado, agora pelo marido. A única pessoa que conseguiu tal façanha foi o
próprio pai de Letícia, ao encontrar a filha com discurso arrependido pela desaprovação do
casório. Ao se deparar com a filha, o rei declara: “Eu saí andando e avistei este belo palácio. Foi
4
Os dados podem ser encontrados por meio de uma consulta de CNPJ, conforme disponível em:
<http://cnpj.info/Fonohosp-Servicos-de-Medicina-e-Fonoaudiologia-Clinicos-e-Hospitalares-Ltda-Editora-Cora>.
Deus que me trouxe até aqui para pedir perdão a vocês” (EQUIPE DA SECRETARIA DE
ALFABETIZAÇÃO, 2020, p. 13). Como se vê, além do livro sugerir que a felicidade de uma
mulher seja objeto de barganha e deva estar vinculada necessariamente a um homem (no caso,
pai e marido), enfatiza um tom messiânico, avesso aos princípios elementares de um Estado
laico. Esse afã teocrático é acentuado no livro O Pobre e o Rico, que narra a história de um Deus
humanizado, que, vestido de andarilho, vive à procura de abrigo e de caridade (FIGUEIREDO
FILHO, 2020c).
A vida organizada pelo capital tende a sabotar o nosso processo de humanização,
negando as contradições, e dissolvendo-as em fragmentações de uma sociedade objetificada, na
qual a vida e as relações humanas se resumem à superficialidade e ao mundo administrado
(CORRÊA et al, 2019). As obras do programa contribuem com essa perspectiva formativa
fraturada e superficial, pois exaltam, em geral, a figura da monarquia, o poder do acaso e da
magia na resolução de problemas. Disponibilizam lendas populares ausentes de conflitos,
desconectadas de suas relações com o território brasileiro. Repetem um contínuo “felizes para
sempre”, desprezando a mobilidade da história e um pensamento mais consistente e objetivo
sobre a realidade. Endossam práticas falocêntricas, sexistas, nutrem uma visão estereotipada de
mulher, vincada à fragilidade, à submissão, à subserviência, à subalternidade e à espera de um
príncipe salvador. No caso do livro O alfaiate valente, há a celebração de prática medieval: “E, já
conformado, o rei cumpriu com sua palavra, celebrando o casamento e entregando as terras
como dote — prêmio mais que merecido para o intrépido rapaz que matava sete com um golpe
só” (FIGUEIREDO FILHO, 2020d, p. 14).
A coleção como um todo preserva um furor moralizante, controlador, aprisionador,
pois, conforme o guia, “[...] as histórias infantis tendem a transmitir uma mensagem positiva,
apresentando o valor das virtudes, dando conselhos ou ensinando regras de boa conduta”
(BRASIL, 2019b, p. 20). Tal afirmação pode ser vislumbrada, por exemplo, em: “Joãozinho e
Luizinho abraçaram Zezinho, que lhes ensinou uma importante lição: — É preciso sempre
obedecer aos conselhos da mamãe” (BORÉM, 2020, p. 14). Assim, os livros ofertados pelo
programa Conta pra Mim abreviam os clássicos e as lendas da cultura brasileira; separam o que
deve e não deve ser acessível às crianças, desrespeitando a historicidade e a complexidade
inerente às noções de infância e de literatura. Trata-se de um processo imenso de simplificação,
baseado em uma concepção leitura endereçada às crianças subserviente à reprodução de normas
de conduta e valores caros a uma perspectiva de mundo ultraconservadora, antidemocrática e
desigual. Por fim, desconsideram-se os aspectos simbólicos, alegóricos, bem como a elaboração
de questões que estão para além da imediaticidade pedagógica ou moral (DALVI, 2019).
Diante do exposto, o programa Conta pra Mim externa um aspecto nocivo, censório,
precário de leitura, de alfabetização, de literatura infantil; apregoa uma concepção de criança
como um ser que precisa ser constantemente controlado; usa o texto para finalidades
utilitaristas, imediatistas, que não contribuem com transformação da sociedade, mas com a sua
reprodução; despreza a importância do contato da criança com o universo da fabulação
proporcionado também pela literatura infantil; priva, enfim, as crianças do acesso à arte, do
acesso a sua própria cultura: embota o processo humanizador e atropela as possibilidades
transformadoras vivenciadas a partir da experiência estética (DALVI, 2019). Por sua defesa da
educação domiciliar, vislumbrada na insistência do termo “literacia familiar”, essa política
pública visa a domesticar crianças, rechaça propositalmente a importância da escola e do
trabalho docente no papel de transmissão e mediação do saber historicamente elaborado
(SAVIANI, 2011; 2012), confina as práticas de leitura para as crianças ao que há de mais
supérfluo e cotidiano.
Considerações finais
(AVELAR, 2019, p. 74). Afinal, é o Estado quem, oficial e majoritariamente, regula, normatiza,
autoriza e induz ações de leitura em âmbito nacional. Por isso, a luta contra o retrocesso deve
primar, além do respeito a esse esforço delineado por Zilberman (2003), a defesa da educação
pública de qualidade. E pela contínua vigilância às portas.
Referências