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EU ESCOLHO A MERDA: O MODERNISMO COPROFÁGICO DE GLAUCO

MATTOSO

I CHOOSE SHIT: THE COPROPHAGIC MODERNISM OF GLAUCO MATTOSO

Ana Paula Aparecida Caixeta1

RESUMO: Marcado por um desenvolvimento cultural e de arte de vanguarda, o século XX é tido


como um período histó rico de representaçõ es estéticas e confrontos éticos, especialmente por ter
sido o palco de duas grandes guerras. Nas primeiras décadas, o cená rio artístico brasileiro, atento
à s experimentaçõ es de linguagens plurais, construiria um espaço de atitudes estéticas que
consolidaram sua histó ria da arte e da literatura. O Modernismo brasileiro, décadas depois de sua
estratégia cultural em 1922, fez emergir um de seus filhos mais dissonantes: Glauco Mattoso
(1951-). Assumidamente o “enfant terrible de Oswald de Andrade” (MATTOSO, 2001, p. 4), o artista
paulistano circulou junto aos marginais setentistas e ocupou lugar de relevâ ncia com a
complexidade poética do Jornal Dobrabil. Considerando sua trajetó ria escatoló gica junto à arte
brasileira entre 1970 e 1980, este texto intenciona discutir o projeto estético de Glauco Mattoso,
observado a partir da releitura que o autor faz da antropofagia oswaldiana: a coprofagia.
PALAVRAS-CHAVE: Glauco Mattoso; Modernismo; Projeto estético; Coprofagia.

ABSTRACT: Marked by a cultural development and an avant-garde art, the 20th century is seen as
a historical period of aesthetic representations and ethical confrontations, especially for being the
stage of two major wars. In the first decades, the Brazilian art scene, attentive to the
experimentation of plural languages, would build a space of aesthetic attitudes that consolidated its
history of art and literature. The Brazilian Modernism, decades after its cultural strategy in 1922,
gave rise to one of its most dissonant children: Glauco Mattoso (1951). Admittedly the “enfant
terrible of Oswald de Andrade” (MATTOSO, 2001, p. 4), the Brazilian artist from Sã o Paulo
circulated with the marginalized seventies and occupied a place of relevance with the poetic
complexity of the so-called Jornal Dobrabil. Considering his eschatological trajectory with Brazilian
art between 1970 and 1980, this paper aims to discuss the aesthetic project of Glauco Mattoso
observed from the author's reinterpretation of Oswaldian anthropophagy: the coprophagy.
KEYWORDS: Glauco Mattoso; Modernism; Aesthetic Project; Coprophagia.

1. INTRODUÇÃO

Aquilo que antecede um tempo, enquanto ideia e comportamento, interfere


na cultura e arte de um grupo bem como nas açõ es e escolhas estéticas de um
artista. As Vanguardas Europeias, tal como nos apresenta Teles (2009), nã o só se
tornaram objetos de correspondências artísticas como desencadearam gestos

1
Doutora em Literatura Brasileira pela Universidade de Sã o Paulo – Brasil. Professora Adjunta da
Universidade de Brasília – Brasil. ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-4923-8744. E-mail:
[email protected].
estéticos que deram abertura ao movimento modernista brasileiro, embora com
lacunas histó ricas que suprimiram a força e influência direta de alguns
movimentos, como o Futurismo, por exemplo (TELES, 2009).

A virada do século XIX para o século XX nã o se destaca somente pelas


expectativas de progresso, industrializaçã o ou pelo advento de mídias visuais,
como a fotografia e, posteriormente, o cinema. O Ocidente, culturalmente abalado
por um anú ncio do fim da metafísica e da decadência humana (NIETZSCHE, 2017),
passa a protagonizar um contexto cultural de valores em modificaçã o ou
degradaçã o, cujas expectativas a respeito de vida, morte, bem e mal sã o
reverberadas na arte sob forte influência de correntes filosó ficas e artísticas. Seja
pelo esforço em se distanciar dos idealistas alemã es, tal como Friedrich Nietzsche;
ou Sigmund Freud, por sua atençã o ao comportamento conservador e subjetivo
vienense e sua aplicaçã o mitoló gica como metá fora interpretativa do inconsciente
humano; o que marcará a virada de século será , especialmente, a força estética que
contornou a cultura artística e filosó fica da época. Das experiências literá rias
baudelairianas à s rupturas estéticas, as vanguardas europeias passam a conceber
uma nova ordem criativa: fragmentaçã o, desordem e inovaçã o.

A correspondência desse novo cená rio cultural com as manifestaçõ es


artísticas no Brasil foi mediada por artistas em suas experiências culturais na
Europa. Dados os vestígios de aculturaçã o, a histó ria do modernismo brasileiro
elege um cená rio híbrido, de retorno à s origens nacionalistas, com ênfase aos
aspectos histó ricos, culturais e artísticos, anunciando um comportamento
autô nomo de criaçã o, crítica e recepçã o. Além do que a breve histó ria manualesca
nos diz a respeito do Modernismo brasileiro, as questõ es estéticas alavancadas
naquele momento nã o deixaram de ecoar as profundas questõ es filosó ficas que
acompanhavam o sujeito ocidental do início do século.

Hermann Broch, em Espírito e espírito de época (2014), abre uma discussã o


importante a respeito da decadência dos valores humanos, salientada pela
primeira grande guerra, cuja cultura da modernidade vê-se desorientada em face
da dissoluçã o iminente ante à pergunta: “O que podemos fazer?” (BROCH, 2014,
p.9). O que o filó sofo austríaco nos chama atençã o diz respeito aos novos valores
que constituirã o a arte e a cultura ocidental, cujo confronto ético e estético
norteará um sintoma da modernidade: a â nsia por novos valores humanos.

À quilo a que se atenta Broch (2014) ecoa, de algum modo, numa forma de
compreensã o a respeito do Modernismo brasileiro, em especial, quando voltamos
nossos olhos para as relaçõ es entre os aspectos da modernidade e a decadência da
cultura ocidental, os câ nones e a busca por uma mistura de elementos híbridos
como forma de brasilidade (FRABRIS, 2010). Nesse sentido, o que este texto
pretende chamar atençã o, diante à contextualizaçã o acima, diz respeito ao lugar
ocupado pela figura do poeta Glauco Mattoso em um modernismo reverberado na
segunda metade do século XX – período marcado pela emergência de uma cultura
marginal e de novas formas da arte, como o concretismo e a recepçã o da mail art
no Brasil. Busca-se, aqui, pensar em como o projeto estético do escritor paulistano
permite uma reflexã o acerca de questõ es do sujeito moderno em face da condiçã o
humana, ecoadas nesse período. Essas questõ es dizem respeito à s escolhas
estéticas do autor, em especial, sua escolha pela escrita coprofá gica – uma temá tica
assumidamente atrelada à merda, ao sexo sujo, à podolatria e à tortura –, cujo
destaque dado à merda salienta um lugar de discussã o necessá rio ao sujeito.
Chama-nos atençã o, portanto, como as obras de Mattoso, recortadas entre 1970 e
1980, possibilitam construir uma crítica à arte apaziguadora de sentidos e de fá cil
fruiçã o como um agente de confronto ético e estético (BROCH, 2014). Na
conjuntura, Mattoso assume um protagonismo nã o só de aglutinador do
modernismo, mas de contrariador de instâ ncias estéticas, por colocá -las em um
estado de rebaixamento, para, entã o, destacá -las como primazia.

2. APRESENTANDO O COPRÓFAGO

A marginalidade impressa na figura de Glauco Mattoso é controversa.


Considerado um escritor de vasta erudiçã o, nã o só por sua formaçã o em
biblioteconomia e letras, mas por seu profícuo envolvimento com uma tradiçã o
literá ria de origem portuguesa, inglesa, francesa e brasileira, sua escrita ocupa um
lugar à margem da grande circulaçã o editorial, mas paradoxalmente está em um
campo de erudiçã o e intelectualidade. Sua trajetó ria literá ria é marcada por
vestígios que precisam ser garimpados: ou em sua pouca fortuna crítica ou nos
poucos exemplares distribuídos daquilo que publicou.

Compulsivo literato, em 2021, Mattoso já ultrapassou tranquilamente a


marca de 70 livros publicados, em formato impresso e digital (e-books produzidos
a partir de 2020)2, o que dificulta qualquer levantamento certeiro de seu conjunto
de obra. Longe de conseguir elencar sua bibliografia neste artigo, aqui, serã o
indicadas as produçõ es que marcam a inserçã o de Mattoso na literatura entre
1970 e 1980. Em especial, serã o trazidas brevemente as obras 3 Jornal Dobrabil
(1981/2001); O que é poesia marginal (1981), Revista Dedo Mingo, Memórias de
um pueteiro e Línguas na papa, publicados em 1982; Calvário dos Carecas (1985);
O que é tortura (1986) e Manual do pedólatra amador (1986). Em comum, essas 8
publicaçõ es traçam um eixo que depõ e em favor de uma poética centrada na
temá tica da merda, conduzida por uma estética4 coprofá gica. As produçõ es acima
enumeradas marcam as primeiras duas décadas do autor e fortalecem uma escrita
escatoló gica que está inserida na transgressã o de seus versos, na crueza e ironia de
sua narrativa e ensaios e no seu envolvimento com o concretismo brasileiro. Sua
liberdade de apropriaçã o e confronto com os vestígios iluministas abarcam
substancialmente o lugar da criaçã o modernista como um lugar despessoalizado,
uma vez que quaisquer instâ ncias enunciativas poderã o sobrepor ou assumir um
discurso em detrimento de outro, como no caso do heterô nimo Pedro o Podre:
“Cogito ergo cago/ “sofrendo de diarrhéa cerebral” (PODRE in MATTOSO, 2001,
p.11).

Quem pensa nã o caga


o livre arbitrio
é prisã o de ventre

2
Neste link estã o disponíveis gratuitamente as ú ltimas publicaçõ es de Mattoso. Também se pode
encontrar alguns títulos já esgotados. https://issuu.com/ed.casadeferreiro
3
Sabe-se da ousadia em indicar 8 obras literá rias como corpus para o desenvolvimento reflexivo do
artigo. Entretanto, o mapeamento feito servirá de fio condutor para o que trazem em comum: o
elemento coprofá gico.
4
Embora o artigo traga os termos “estética” e “poética”, nã o caberá aqui um desdobramento a
respeito das diferenças conceituais de ambos. Entretanto, é preciso esclarecer que o que denota
essa diferença desdobrada ao longo do texto parte da reflexã o de Luigi Pareyson (1984), quando diz
que, enquanto a estética é de ordem filosó fica e especulativa, a poética configura um cará ter
normativo sem interesse na universalidade. Ao falar de estética coprofá gica, este texto compreende
o poder filosó fico emanado a partir da discussã o a respeito da “merda”, conduzido poeticamente
por Glauco Mattoso, capaz de abarcar temas universais – especialmente por estarem ligados à s
questõ es da condiçã o humana, como o corpo.
sou um ser determinista
o que eu penso nã o é meu
como a merda que cago
faço tudo que quero
e lavo minhas mã os
porque no fundo no duro
quero nã o querer
mas deus é do contra
sou prisioneiro da privada
privado do meu pensamento
(Pedro o Podre, heterô nimo de Glauco Mattoso, 2001, p.11).

Em meados de 1970, Mattoso já se insere no cená rio artístico atento à


poesia de circulaçã o por meio da escrita em folhetins e distribuiçã o independente
– algo consolidado pelo Jornal Dobrabil. No Manual do pedólatra amador, primeira
versã o publicada em 1986 e revisada em 2006 com alteraçã o no título (de
pedó latra para podó latra), têm-se elementos de cará ter autobiográ fico que
parecem querer contribuir com o histó rico do poeta, dando-nos rastros de sua
colaboraçã o em jornais e revistas alternativas – o que pode ser comprovado, a
exemplo, ao se vasculhar a Chiclete com Banana5 e O Pasquim6. Entretanto,
ironizada pelo pró prio autor, que debocha do leitor que acredita no que lê
(MATTOSO, 2006), essa “autobiografia fake” (MATTOSO, 2001, p. 3) também nos
apresenta vestígios biográ ficos da inserçã o de Mattoso no cená rio literá rio
marginal da década de 1970.

A começar pelo Jornal Dobrabil, obra de maior visibilidade do poeta e


conexã o explícita com os traços modernistas impressos nas estéticas da Revista de
Antropofagia e Klaxon, abre o percurso do escritor como o “enfant terrible” de
Oswald de Andrade (MATTOSO, 2001). Nã o só por sua releitura coprofá gica da
antropofagia, mas por retomar, via material de característica perió dica, um espaço
de conexõ es literá rias, colaboraçõ es e manifestos. Mais do que isso, Mattoso
confronta o estatuto oswaldiano a partir do momento que se coloca em posiçã o de
recolhimento dos restos deixados pela deglutiçã o antropofá gica. Restos estes que
ganham forma por meio de uma literatura de mictó rio e palavras chulas.
5
Acervo disponível aqui: http://leitordegibi.blogspot.com/2017/09/antologia-chiclete-com-
banana.html
6
Acervo disponível aqui: https://bndigital.bn.gov.br/dossies/o-pasquim/
O prefá cio do Jornal Dobrabil, segunda impressã o (2001), foi elaborado por
Augusto de Campos, marcando mais uma semelhança à introduçã o da Revista de
Antropofagia7 (1975). Nesta, Campos anuncia Klaxon e Revista de Antropofagia
como perió dicos “revolucioná rios do nosso Modernismo” (1975, p.1), destacando
os aspectos grá ficos da primeira e a superaçã o de tendências da segunda. As
características de ambas as revistas modernistas estã o comprometidas, cada uma a
seu modo, com as irreverências do espírito antropofá gico. A respeito do Dobrabil e
encantado com subversã o de Mattoso, Campos dirá no “prefá cil”: “...o JD me
diverte/delicia/choca/e à s vezes aterroriza/será dizer pouco?” (CAMPOS in
MATTOSO, 2001, p.7)

Com uma estética visual pró pria, o Jornal Dobrabil traz o dactylograffiti
como o gesto de confecçã o visual dos poemas, glosas, sonetos, manifestos, títulos e
desenhos que compõ em o complexo conteú do de cada ediçã o nú mero “hum” do
jornal, sem deixar de lado o teor de rebaixamento: “O poeta que é poeta vinte e
quatro horas por dia faz na cama o mesmo que faz no papel” (MATTOSO, 2001,
p.20).

Movimentado por interlocuçõ es entre nomes da literatura e heterô nimos


criados pelo autor, o cará ter de apropriaçã o sobrepõ e o invó lucro da autoria, cujas
assinaturas, para um leitor atento, perdem o valor pessoal e ganham um valor
estético. A utilizaçã o da distribuiçã o por correspondência revela a atençã o do autor
à s manifestaçõ es e subversõ es estéticas da época a fim de driblar o Regime
Ditatorial, como o caso da Arte Postal: grande exemplo de aglutinaçã o estética da
Mail Art, uma vez que, no Brasil, o movimento ganha envergadura pró pria, cuja
circulaçã o contrariava os silenciamentos provenientes da Ditadura.

Ainda em confluência com características das duas revistas modernistas, o


Dobrabil também traz uma sessã o de cartas, a “Curreio”, a fim de dinamizar o gesto
de interlocuçã o entre remetente8 e destinatá rio, cujos comentá rios criados por
heterô nimos de Mattoso ora criticam ora elogiam o material que indica ter em
mã os. O arremate da retomada estética intencional à s revistas modernistas está na

7
Circulou entre 1928 e 1929, em duas dentiçõ es.
8
Mattoso distribuía, via correspondência à destinatá rios específicos, cada nú mero de seu folhetim
(todos chamados de nú mero “hum”). (MATTOSO, 2001)
compilaçã o dos folhetins do Jornal Dobrabil transformada em ediçã o fac-similar de
luxo, tal e qual Klaxon e Revista de Antropofagia.

Em sequência à ediçã o do Jornal Dobrabil de 1981, Mattoso amplia seu


movimento intertextual e dá luz à Revista Dedo Mingo (1982a), suplemento do
Jornal Dobrabil identificado como retorno à paró dia feita ao Jornal do Brasil e sua
Revista de Domingo. A Revista Dedo Mingo, além de alguns dactylogrammas9 já
publicados no Jornal Dobrabil, também traz algumas ilustraçõ es de autoria
anô nima, cujo teor visual remonta o universo fetichista e escarnecedor já
explorado por Mattoso no folhetim e posteriormente fortalecido em seus sonetos e
demais obras. Com elementos que destacam questõ es de rebaixamento do corpo e
excrementos, sustentando o que Steven Butterman (2005) observará como parte
de uma antiestética: “...eu afirmo que [o artista] é um produtor de coisas fedidas.”
(MATTOSO, 1982a, p.13)

Línguas na papa (1982b) e Memórias de um pueteiro (1982c), duas


publicaçõ es raras, nã o se afastam das características jocosas presentes em Jornal
Dobrabil e reforçam temas homoeró ticos e fetichistas, satirizados pela escrita
poética e materializados por uma linguagem coprofá gica.

eu mordo
tu mastigas
ele engole
nó s digerimos
vó s cagais
eles policiam
(MATTOSO, 1982b, p. 11).

A obra de quase todos os escritores famosos é como uma cagada: os


primeiros a sair sã o os maiores, e sã o obrados com mais esforço.”
(MATTOSO, 1982c, p. 27).

Em Línguas na Papa, observa-se um cará ter visual de destaque, com grande


influência do concretismo brasileiro, cujos poemas sã o trazidos do Jornal Dobrabil.

9
Termo cunhado por Augusto de Campos a respeito da estética visual da escrita do Jornal Dobrabil
(MATTOSO, 2001)
A capa desta publicaçã o trata-se, também, de uma ilustraçã o sem indicaçã o de
autoria, cujo traço é possível de se identificar como o mesmo das ilustraçõ es 10 de
capa do Jornal Dobrabil, Revista Dedo Mingo e Memórias de um pueteiro. O que
chama atençã o nas imagens de capa diz respeito aos signos visuais que elas
trazem: figura da genitá lia masculina e um ou mais homens em cará ter de desejo e
submissã o ou algum ato sexual com representaçã o do esmegma. Ainda sobre essas
publicaçõ es, Memórias de um pueteiro se destaca, nã o só por retomar intertextos
do Jornal Dobrabil, mas também por evocar uma escrita imperativa, semelhante ao
cará ter de manifesto, porém, reduzida a breves aforismos, cujo teor nã o perde a
jocosidade: “O melhor poema nã o é o desclassificado pela crítica, nem o proibido
pela censura, nem tampouco o desconhecido pelo pú blico. O melhor poema é o
repudiado pelo autor.” (MATTOSO, 1982c, p.21). O que é repudiado é também o
que é excretado.

Já os três ensaios do autor, O que é poesia marginal (1981), O calvário dos


carecas: história do trote estudantil (1985) e O que é tortura (1986b) fazem jus ao
aceno crítico de Mattoso. O primeiro destes destaca-se nã o só por fazer parte da
didá tica e relevante coleçã o da Editora Brasiliense, como discute a poesia marginal
oriunda de correntes vanguardistas importantes, como o movimento pornô , o
concretismo e poema-processo (MATTOSO, 1981).

Em quaisquer dos casos, as implicaçõ es sã o as mesmas. Enquanto atraem


a atençã o do pú blico, os poetas vã o curtindo todos os ró tulos que lhes
forem imputados, a pretexto de se posicionarem contra os mesmos e de
repudiá -los na primeira oportunidade. (MATTOSO, 1981, p. 80).

O Calvário dos carecas (1985) e O que é tortura (1986b) foram escritos com
uma irreverência oposta à delicadeza do tema tortura. O primeiro traz à cena uma
discussã o sobre do trote estudantil e suas perspectivas histó ricas calcadas em um
sadismo oportunista (MATTOSO, 1985). O segundo, convoca o leitor para o lugar
do torturado a fim de compreender o que de fato é tortura, numa postura
assumidamente estética (MATTOSO, 1986b). “Concluímos assim que a tortura
pode ser definida como todo sofrimento a que uma pessoa é submetida por outra,

10
Segundo o pró prio Mattoso, em conversa por e-mail, tratam-se de imagens “pirateadas” que o
autor trouxe em uma viagem feita aos EUA.
desde que de propó sito da segunda e contra vontade da primeira.” (MATTOSO,
1986b, p. 29)

A questã o é a seguinte: de um lado, os estudiosos subestimam o sadismo


como motivaçã o maior; do outro, consideram tortura sexual nã o apenas
à s ‘partes pudendas’ da vítima, independentemente do orgasmo do
carrasco. (MATTOSO, 1986b, p. 33).

Cada veterano ‘escala’ seu calouro e escala uma mesa onde fica sentado
com os pés a baloiçar pendentes. Quando todos os veteranos estã o
acomodados na mesa, é dado o sinal e, ao som duma fita de samba ou
rockzinho, os calouros começam a disputar no chã o para ver quem
descalça mais rá pido os dois pés do seu veterano. (MATTOSO, 1985, p.
103).

A escolha de Mattoso em lidar com o tema tortura, nã o só nas obras acima


trazidas, mas em seu conjunto de obra, corroboram com o que o autor chamará de
“deshumanismo”: uma sociedade cujo sistema de valores é oposto ao
comportamento desumano de intolerâ ncia e crueldade.

Como dito anteriormente, em 1986 Mattoso lança O manual do pedólatra


amador: aventuras & leituras de um tarado por pés. Livro anunciado, naquela época,
como uma autobiografia, trouxe em sua narrativa histó rias sexuais que
perpassaram a vida de Glauquinho, o protagonista, desde sua infâ ncia à fase
adulta; da escola à criaçã o do Jornal Dobrabil, entrecortada por excertos de obras
literá rias, cuja temá tica coadunavam com o tema podolatria. Revisada em 2006, a
narrativa ganha um novo capítulo e reforça a possibilidade de uma autoficçã o 11:
seja pela homonímia representada pelo protagonista, seja pelo jogo estético que
permite observar a supressã o do nome de batismo de Glauco Mattoso, que é Pedro
José Ferreira da Silva. Na histó ria, a personagem é chamada de Glauco desde a
infâ ncia, diferente da vida fora do espaço literá rio de Pedro José, que cunha seu
nome artístico de Glauco Mattoso devido à doença que o levou à cegueira
definitiva, aos 40 anos. Pelo efeito de credibilidade provocado no leitor ao trazer
como pontos fecundos da personalidade do protagonista o glaucoma, a cegueira, a
sexualidade e, em especial, o fetiche por pés – elementos fortemente assumidos na

11
Autor, 2016.
vida pú blica do escritor Glauco Mattoso 12 – é que se constró i um pacto
autobiográ fico frá gil, contrariando a veracidade do gesto de leitura proposto por
Lejeune (2014). O jogo verossímil entre autoria, autobiografia e ficçã o tece uma
teia interpretativa em que o pró prio autor alerta: “Nas memó rias se viaja”
(MATTOSO, 1986a, 171).

O destaque dado a essa narrativa quanto ao constructo de um projeto


estético figurado pela coprofagia diz respeito a dois pontos: o primeiro é o fato de
que, para lidar com discursos espinhosos do corpo, da sexualidade, do desejo e dos
excrementos, Mattoso assume, na narrativa, sua figura pú blica de poeta: uma
figura despessoalizada da pessoa privada do autor, a partir do heterô nimo Glauco
Mattoso, que é quem assume intra e extra-literariamente as mais desconcertantes
narrativas a respeito do gosto por elementos que causam repulsa, como o chulé,
frieira, secreçõ es da genitá lia masculina etc. O segundo ponto diz respeito à
construçã o irô nica de uma narrativa em primeira pessoa como fortalecimento de
um discurso legitimador sobre si enquanto poeta fescenino e escatoló gico.

Punheta, no meu caso, é modo de dizer. Na verdade, nunca me excitei


batendo com a mã o [...]
Inexperiente, nã o fiz movimentos pra frente e pra trá s, mas pros lados,
rebolando. Pude sentir nitidamente as primeiras gotas escorregando
devagarinho pela uretra, uma có cega interna muito melhor que mijar
quando a gente tá apertado. Abafei os gemidos metendo a boca no
sapato. (MATTOSO, 1986a, p. 22-23).

Interligadas pela crueza das temá ticas que encenam cada uma das
publicaçõ es mencionadas, o nascimento destes trabalhos reforça o início de um
projeto estético anunciado ainda no Jornal Dobrabil, quando questõ es relacionadas
ao humano, ao sexo e aos excrementos do corpo ganham uma envergadura
literá ria manejada pela irreverência do poeta. Assumindo um lugar de
heteronímia, apropriaçã o, erudiçã o e, especialmente, transgressã o, Glauco Mattoso
constró i uma estética fecunda, capaz de abarcar as figuras que metaforizam os
assuntos mais espinhosos de se lidar até mesmo na literatura.

12
As adjetivaçõ es em torno da figura pú blica do poeta, especialmente a de fetichista, sã o reforçadas
em suas entrevistas. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=APavu7e4dug.
3. A MERDA COMO UM PROJETO ESTÉTICO DE GLAUCO MATTOSO

O desejo modernista em construir uma arte genuinamente brasileira


carregava consigo uma recusa em “aderir incondicionalmente à s propostas de
vanguardas histó ricas do início do século XX” (CHIARELLI, 2012, p. 36). Esse gesto
de enfrentamento da cultura nacional calca um compromisso estético que
evidencia, em sua ontologia, a configuraçã o do sujeito moderno pó s-
industrializaçã o e pó s-guerra. Seja pela motivaçã o da mudança e efeito do
progresso científico, seja pela emancipaçã o do sujeito ante à s antigas concepçõ es a
respeito da existência e origem da humanidade, o que se observa, junto a esse novo
cená rio estético diz respeito a um indivíduo atento à sua ascensã o e à s novas
relaçõ es humanas diante da cidade, da indú stria, da política e da massificaçã o.

Um dos pontos que bate à porta da Modernidade estética a partir de Charles


Baudelaire trata-se da intençã o de colocar o artista em uma busca incessante por
mudanças e outras formas de liberdade de criaçã o, afastando-o de um
impressionismo atrelado à execuçã o e à s impressõ es registradas pelo artista, cujos
limites afastavam elementos da feiura, do contrastante e do vulgar. Nã o obstante, o
desinteresse impressionista pelo onírico e emocional do artista influenciará uma
contracorrente em que o Naturalismo e o Realismo se tornarã o pontos de filiaçã o,
especialmente no Brasil (CHIARELLI, 2012). Neste cená rio, embora o
posicionamento de alguns precursores do Modernismo brasileiro evidencie alguns
aspectos de contraposiçã o, o que se observa junto a essas correntes carimbadas
pela Semana de 22, é um lugar de criaçã o brasileiro fortemente preocupado com
uma consciência estética.

O cená rio cultural brasileiro entre 1920, 1930 e 1940 passa a corroborar
com a emersã o de novos valores da arte, ligados à s questõ es estéticas, políticas e
culturais. Essa atençã o dada à s experiências estéticas e sociais do sujeito preparou
um novo ambiente para a liberdade criativa e novas contestaçõ es. Observando as
envergaduras desses novos gestos de criaçã o, é possível compreendermos os
efeitos da decadência da cultura ocidental nas novas formas de arte que
protagonizarã o a segunda metade do século XX. Seja pelo conceitualismo, pela
apropriaçã o ou transfiguraçã o (DANTO, 2010). Quando Hermann Broch (2014), ao
observar a decadência dos sistemas de valores do Ocidente, chama-nos atençã o aos
novos sentidos do pensamento racional em confluência com o sentimento humano,
o que temos é uma nova busca de valores calcada pela experiência do sujeito, por
sua “irracionalidade do passado à irracionalidade do futuro” (BROCH, 2014, p.28),
em que a eternidade nã o está mais atrelada à origem divina, mas, sim, na arte. Dito
isso, o desvalor passa, também, a ser um ponto de definiçã o para os sistemas de
valores, uma vez que a exigência ética deixa de ser uma direçã o no â mbito da
criaçã o.

A complexidade do confronto entre ética e estética denuncia as novas


exigências de valores da arte, em que qualquer forma negativa oriunda da
experiência acaba por se desconectar de um sistema de valores e se atrelar ao que
Broch (2014) chamará de mal ético de desvalor artístico: a massificaçã o. Se um
sistema de valores se afasta do mal, qualquer manifestaçã o que seja classificada
como um mal ético estará fora de um sistema de valores. Para o filó sofo, o século
XX será berço de afastamento ao sistema de valores ocidental, especialmente pela
decadência dos valores modernos e emergência de um novo movimento cultural.

O que nos interessa na discussã o brochiana diz respeito ao mal dogmá tico
processado por uma intervençã o da autonomia do artista, especialmente quando
pensamos o período ditatorial no Brasil. A arte passa a lutar por uma liberdade
cujos valores nacionais conduziam a um abafamento ético: seja pela deposiçã o do
presidente, seja pelas prisõ es políticas, seja pela tortura. O que vemos emergir
nesses tempos sombrios que assolaram o país é um sistema arbitrá rio, que
conduzirá o fenô meno artístico à s valoraçõ es problemá ticas de categorias morais:
bons ou maus, vida ou morte. À parte a reflexã o a respeito da fragilidade dos novos
sistemas de valores no país, destacamos a emergência de uma arte para driblar as
contestaçõ es e os silenciamentos éticos. Ao observar a obra de Glauco Mattoso, o
que nos é apresentado trata-se de uma produçã o que nã o só enfrenta essa
imposiçã o de sistemas de valor e desvalor estético, como se apropria daquilo que é
desvalorizado em prol de um projeto estético jocoso: a merda.

“Se no meio dos poucos bons tem tanta gente fazendo merda e se
autopromovendo ou sendo promovida, por que nã o posso fazer a dita
propriamente dita e justificá -la?” (MATTOSO, 2001, p.4). Ao assumir a merda como
“reciclagem” do que foi digerido, Mattoso também se coloca como um recolhedor
daquilo que é excretado ou até mesmo daquilo que nã o passou por digestã o, seja
por contrariedade do gosto ou por negligência estética antropofá gica. “A merda, se
você for considerá -la em termos absolutos, é o produto mais desprezível do
homem. Quando se tematiza a merda, pode parecer uma posiçã o bastante
irreverente.” (MATTOSO in ASSUNÇÃ O, 2012, p.110).

A merda enquanto tema central da poética de Glauco Mattoso está acionada


em suas mais variadas temá ticas trazidas ao longo de seu conjunto de obra: desde
a insistência por uma escrita em primeira pessoa, assumindo os discursos mais
espinhosos com relaçã o ao corpo; passando pela linguagem chula que abarca
discussõ es silenciadas, dada a proximidade com aquilo que é do corpo e do que ele
excreta; ou com relaçã o à literatura, criaçã o, crítica e recepçã o, destituindo o
discurso de poder acadêmico e enaltecendo o discurso marginal do baixo corporal
como forma de observar a arte literá ria. “VIVA A CHUPADA! VIVA A CAMA! ABAIXO
A FAMA! A imortalidade FEDE! ABAIXO OS MEDALHÕ ES!13 (MATTOSO, 2001, p.2)

Mario Cá mara (2014), ao escrever Corpos pagãos, volta-se ao imaginá rio do


corpo que nasce das questõ es culturais e artísticas emergidas em período de um
Brasil ditatorial. Com um capítulo destinado ao Glauco Mattoso, Cá mara reforça a
abjeçã o presente nos escritos do poeta paulistano, indo ao encontro de outras
exploraçõ es críticas, como as discussõ es de Solange Ribeiro de Oliveira (2007), ao
tratar da coprofagia glaucomattosiana como parte de uma arte abjeta identificada
na esfera da contemporaneidade.

A coprofagia de Mattoso é exercida por um escancaramento do privado, em


que o abjeto rompe limites intrínsecos ao controle do corpo e seus desejos. Sua
escolha estética figurada pela imagem do “pé” é um gesto de transgressã o que abre
espaço para o profano, destituindo de valor a palavra poética por um gesto
intencional de efeito negativo.

A contrariedade do gosto asséptico promovida por Mattoso trata-se de uma


intencionalidade estética, em que autor nã o só assume uma consciência a respeito
dos possíveis efeitos de sentido que sua obra provoca, como, de algum modo,
elabora estratégias literá rias para contrariar qualquer configuraçã o harmô nica. O
cheiro, por exemplo, uma sensaçã o oriunda do olfato, é explorado

13
Escrita maiú scula de acordo com poema presente no Jornal Dobrabil.
sinestesicamente pelo autor, de modo a assumir aquilo que Immanuel Kant (2019)
considerará como algo inferior e contrá rio aos sentidos do conhecimento. Para o
filó sofo, “o olfato é como que um paladar a distâ ncia, que força os demais a
compartilhar a fruiçã o de algo querendo ou nã o.” (KANT, 2019, p. 52). A reflexã o
kantiana, embora coloque o cheiro como um problema estético, leva-nos a pensar
como olfato é um sentido transgressor a medida em que escancara, por meio do
odor, aquilo que, de algum modo, seria negligenciado ou abafado.

O elemento olfativo presente nas obras de Mattoso elevará em primeiro


plano a descriçã o do cheiro ruim para acessar diretamente o desprazer e o
desconforto, reforçando uma estética coprofá gica atenta à s mais dissonantes
criaçõ es literá rias como corpus de investigaçã o.

Os cheiros me magnetizavam. Melhor, me mesmerizavam. Na biblioteca


pesquisei a respeito e comecei a desenvolver pra consumo pró prio uma
teoria sobre o olfato no erotismo, cuja pedra de toque seriam os efeitos
afrodisíacos do chulé. (MATTOSO, 1986a, p. 93).

O estranhamento das exploraçõ es sensíveis provocado pelas obras de


Mattoso é oposto ao deleite e ao prazer desinteressado kantiano, uma vez nã o
estar preocupado com sua validade universal ou o ajuizamento categorizado como
Belo (KANT, 2010). Ao contrá rio, Mattoso explora a potencialidade da relaçã o
fruitiva entre sujeito e objeto, descompromissado com as adjetivaçõ es oriundas do
efeito estético de sua obra. Afinal, o nauseabundo oriundo daquilo que ele escreve
pode até provocar, em um primeiro instante, estranhamento ou aversã o pela forma
como o corpo é pormenorizado em instâ ncias de rebaixamento, mas a mesma
linguagem fescenina e escatoló gica que narra suas histó rias e compõ e seus versos
é também uma ferramenta de contestaçã o.

4. A COPROFAGIA COMO UM GESTO DE NEGATIVIDADE OU ANTIKITSCH

Byung-Chul Han, em A salvação do belo (2016), chama-nos atençã o para


duas questõ es que sã o muito caras à reflexã o estética: o efeito estético e a
necessidade gosto. Ao reforçar o desejo contemporâ neo de uma ausência de
negatividade, que naturalmente traz um excesso de positividade diante dos
objetos, acentua-se a anulaçã o do confronto. Isto posto, uma das premissas
observadas em suas reflexõ es diz respeito ao consumo de uma estética
apaziguadora de sentidos e contrá ria a qualquer dor ou desconforto, haja vista os
exemplos por ele explorados: as obras de Jeff Koons, calcadas de uma lisura sem
emendas ou rugosidade; a polidez e perfeita adaptaçã o de um smartfone ao corpo,
conduzindo a uma anulaçã o de incô modos e ranhuras; e a depilaçã o brasileira, que
anula a textura dos pelos em funçã o de uma lisura que amplia um efeito estético
ausente de imperfeiçõ es e suscetíveis à interjeiçã o finalizadora: “uau!” (HAN, 2016,
p. 13).

Mattoso pode ser observado por esta ó tica quando se coloca enquanto
literato transgressor que abre espaço para o profano reverberado nos corpos e
exercido pela linguagem estética, especialmente representado pela figura do pé.
Bataille (2018), em “O dedã o do pé”, traz o ó rgã o como objeto de reflexã o a
respeito do papel desempenhado pelo corpo ereto e pela grotesca funçã o dada ao
membro que o sustenta. A dicotomia entre pés e cabeça levantada por ele reforça
uma tradiçã o filosó fica de separaçã o entre corpo e alma, sensaçã o e intelecto, que
conduzem o baixo corporal ao lugar de sujeiçã o, revelando o ordiná rio dado à s
partes do corpo que representam disformidade. Mas o filó sofo também revela as
implicaçõ es de seduçã o exercidas por este mesmo membro, cuja forma é de
revelaçã o do íntimo, que se apresenta como desordenado e carregado daquilo que
é da ordem do humano, metaforizado pelo dedã o do pé: “[...] é interrompida em
seu elã por uma dor atroz no dedo do pé, porque, embora seja o mais nobre dos
animais, tem calos nos pés e esses pés levam [...] uma existência ignó bil”
(BATAILLE, 2018, p.123).

As questõ es que contemplam o pé em Glauco Mattoso sã o observadas por


um lugar estético, que, por sua vez, precisa ganhar forma por meio de uma
linguagem: a coprofagia. Seja pela relaçã o entre a forma e a semâ ntica que a
acompanha enquanto conteú do literá rio e, por que nã o, filosó fico, seja pela estesia
provocada pelos efeitos de sentidos que temá ticas grotescas suscitam, Mattoso
corrompe a aglutinaçã o literá ria condicionada a um discurso cultural de ordem
estética, nacionalista ou de engajamento, para se valer de uma ordem de
transgressã o ética. Entretanto, sua contrariedade estética nã o revela desatençã o à s
situaçõ es e fatos que assolavam o país no momento de sua emersã o. Atento à s
principais questõ es humanas, corrompidas por uma ditadura, os critérios de bom
ou mau sã o revisados pelo autor por um processo de inversã o, cujo intuito, por
meio do cô mico, parece ser o de expor as questõ es desconcertantes que
acompanhavam o momento político, cultural e artístico da época. Em especial a
tortura e a sexualidade.

Han (2016), por um diá logo com Bataille (2018), traz à tona um sentir tá til
acalmado pela ausência de disformidade e rugosidade, o que contraria as
imperfeiçõ es causadas por aquilo que denuncia elementos do humano em suas
particularidades instintivas, animalescas, bioló gicas e subjetivas. O feio, neste
sentido, passa a ser característico de uma estética negativa, contrá ria aos instintos
de harmonia e linearidade. Sendo assim, o feio é também perigoso, uma vez ser
capaz de levar o sujeito a instâ ncias de ordem transcendentais, que defrontam com
a positividade causada pela lisura das superfícies dos corpos. Com esta aná lise,
Han (2016) coloca em discussã o um imperativo tá til capaz de causar um
esgotamento estético, porém, promovente de uma agradabilidade sem
questionamentos.

A leitura provocativa de Mattoso contornada ao mais baixo corporal nã o se


encerra em seu efeito nauseabundo, tampouco pode ser resumida à exploraçã o
fetichista autoral. Para este texto, os planos literá rios proficuamente explorados
por Glauco Mattoso e anunciados em primeira pessoa sã o parte de uma escolha
estética reveladora de um projeto maior, pois insiste em temas e efeitos que
anunciam uma discussã o latente: o corpo cego, o corpo em subserviência, o corpo
em dor, o corpo em prazer, o corpo em tortura, o corpo em gozo: “E por isso era
necessá rio que nã o me repugnasse lamber-lhes o chulé: pra lhes quebrar a
barreira do nojo. Espelhados em mim, eles libertariam as fantasias ‘transgressoras’
e estariam abertos aos efeitos da massagem.” (MATTOSO, 1986a, p. 147)

O repugnante explorado pelo escritor revela uma manipulaçã o estética


diferente da que Han (2016) apresenta enquanto positiva, por se aproximar da
realidade ao invés de falseá -la, tal como faria uma estética kitsch. Nesse sentido,
podemos pensar que a estética da positividade haniana é equivalente ao kitsch
brochiano, pois ocupa-se do lugar do falseamento de sentidos. Para Han (2016), o
lugar do higiênico e da assepsia é também uma outra forma de manipulaçã o de
sentidos, excessivamente ligado ao harmô nico das formas. Isto posto, a ode à
merda feita por Mattoso é o rompimento com uma manipulaçã o falseadora de
efeitos estéticos, pois toca à s reaçõ es imediatas do corpo quando este se vê diante
de uma linguagem viva e lasciva. Seja pela repulsa ao odor, seja pela repulsa à
palavra politicamente incorreta, constituindo, portanto, um lugar estético da
negatividade.

O conceito de kitsch, resgatado por Hermman Broch (2014) no início do


século XX, é apresentado como um mal dos sistemas de valores da arte, uma vez
buscar pelo falseamento desses sistemas em um descompromisso ético, em que o
kitsch assume uma redençã o estética enquanto efeito, concebido pela total
ausência de conflitos e atrelado à massificaçã o. A existência do kitsch se vale da
existência de um objeto estético que o represente – embora nã o ele nã o esteja
atrelado somente ao objeto, mas ao efeito e ao comportamento ético do sujeito.
Isto posto, quando em contato com as perspectivas de Han (2016), o kitsch revela a
necessidade humana de manipular esteticamente a realidade em funçã o de um
sentimento agradá vel e reconciliador por meio de formas estéticas desinteressadas
em lidar com questõ es problemá ticas do humano. Mattoso, portanto, desvia-se
dessa funçã o estética passiva e constró i outro caminho literá rio para ocupar-se das
temá ticas mais constrangedoras, revelando uma consciência importante para seu
projeto estético – especialmente por assumir a razã o, e nã o a pura sensaçã o, como
como competência maior para a produçã o literá ria.

Tudo o que faço é cerebral. Nã o existe em mim aquela histó ria de ‘escrita
automá tica, o que vier sai’, nada disso. É tudo elaborado. Poesia é uma
coisa fria, nã o tem nada de muito emocional. É trabalho de relojoeiro
mesmo. Você fica montando as pecinhas.” (MATTOSO in ASSUNÇÃ O,
2012, p. 110).

Em Hermann Broch (2014; 2016), esse comportamento atrelado à


necessidade do kitsch expõ e o conflito ético gerado pelo lugar que esta forma
estética ocupa. No caso, o kitsch nã o tem nenhum compromisso ético porque se
apega a um bem falseado, um bem da forma e da felicidade, em que nã o há nenhum
interesse em qualquer questã o ética do sujeito (BROCH, 2014). Questõ es estas que
estã o atreladas aos valores de uma cultura e as suas possibilidades de trazer para o
cerne estético uma oportunidade de reflexã o a respeito daquilo que é da ordem do
sujeito, mas que nã o cabe em discursos oficiais.

A coprofagia, estratégia assumida como uma forma transgressora capaz de


abarcar as exploraçõ es estéticas de Mattoso, passa a ser, portanto, um confronto à
arte kitsch. Quem assumirá esse embate será o autor, munido das suas exploraçõ es
literá rias intertextuais, seu conhecimento lexicográ fico e seu autoescá rnio com
relaçã o à cegueira e o fetiche por pés, transferindo para o plano principal
discussõ es a respeito da merda. As obras do autor nã o tratam somente de expor
uma linguagem escatoló gica em que os excrementos sã o enaltecidos. Tratam,
sobretudo, de se ocupar da metá fora da merda como espaço de linguagem
coprofá gica capaz de contemplar e assumir, em primeira pessoa, as mais íntimas
sensaçõ es.

Considerando o tênue olhar filosó fico desdobrado por Broch (2014) quanto
à essência kitsch, sua discussã o incitou o escritor Milan Kundera (2009) a uma
reflexã o quanto a essa estética, em que revela preocupaçã o com a forma idílica
para representaçã o de um sistema kitsch, tal como expõ e Barroso (2013) e
Gonçalves (2020). O ideal estético ao qual se refere Kundera trata-se do “acordo
categó rico com o ser” (2009, p. 243). Segundo o autor, esse acordo evidencia uma
objeçã o metafísica à merda e a tudo o que ela representa, especialmente quando se
considera o mito da criaçã o do ser como de origem divina, pura e sem pecados,
contrariando paradoxalmente a prerrogativa de que, se um Deus foi feito à imagem
e semelhança do ser humano, em consequência, sofreria de suas experimentaçõ es
instintivas e bioló gicas. Neste sentido, o kitsch opera como um argumento
ontoló gico a respeito da existência, uma vez que existir no mundo configura negar
à quilo a que qualquer ideal divino se recusaria: os excrementos. Neste caso, dirá ,
Kundera (2009), a merda desempenha o papel da negaçã o. E essa negaçã o, quando
colocada diante à s consideraçõ es de Byung-Chul Han (2016), representa uma
contraposiçã o ao liso e polido, pois traz à tona aspectos disformes pertencentes à s
franquezas dos corpos e daquilo que saem dos corpos ou sã o provocados por eles.

Em consonâ ncia com a visã o metafísica do kitsch proposta por Kundera bem
como a perspectiva brochiana em que o kitsch é um mal ético, compreende-se que
sua existência nã o é apenas reveladora de um objeto falseado, mas, sobretudo, da
insistente tentativa humana de desconsiderar tudo o que é pró prio do corpo e sua
degradaçã o como necessá rios de representaçã o. Mais do que isso, esse olhar revela
a necessidade de se explorar toda e qualquer linguagem que se vale de uma
contrariedade kitsch, uma vez que se propõ e denunciadora de temas ainda
ocultados pelo sentimentalismo humano, especialmente por esbarrar na insistente
exacerbaçã o de um “eu” necessitado de respostas e apaziguamentos.

Assumindo a desarmonia e o escatoló gico, Mattoso passa, portanto, a


ocupar um lugar de contrariedade do Belo e do Sublime, transformando-se em um
antikitsch. Seja por explorar no sujeito a crueza da negatividade das imperfeiçõ es e
os lastros dos corpos disformes, seja por colocar no campo da estética uma
experiência capaz de lidar com os incô modos gerados por efeitos carregados de
conflitos e problematizaçõ es. A construçã o de suas obras perpassa figuras de
sentido assumidamente rugosas, cujo corpo e suas sensaçõ es sã o evocadas sem
filtros éticos ou morais. Neste caso, Mattoso apresenta um conjunto de obra
comprometido com a pró pria obra, cujo apelo ético é contrá rio à hipocrisia da
higienizaçã o dos corpos e da sexualidade, fazendo jus aos discursos por ele
elegidos como necessitados de reverberaçõ es estéticas: da masturbaçã o infantil ao
gosto por pés sujos.

5. CONSIDERAÇÕES

As dificuldades de se construir uma discussã o a respeito da obra de Glauco


Mattoso sã o evidenciadas quando se opta, primeiramente, por sinalizar parte do
seu conjunto de obra. Entretanto, justamente pela vasta produçã o, seria lacunar
nã o elencar suas primeiras publicaçõ es, uma vez marcarem seu nascimento
enquanto poeta transgressor e fazerem parte do eixo epistemoló gico14 de seu
projeto estético. Diante do exposto, o que revela a coprofagia como parte de um
projeto do autor, está na constâ ncia desse recurso estético no conjunto de sua
obra, uma vez que a merda deixa de ocupar somente o significado de excremento

14
Ao pensar em eixo epistemoló gico, evoca-se a teoria da Epistemologia do romance, de Wilton
Barroso-Filho (2018), a fim de identificar o fio temá tico condutor da ideia do autor; ideia que
perpassa seu conjunto de obra e permite, por meio de uma observaçã o estética, compreender
vestígios de conhecimento filosó fico expostos pela construçã o literá ria.
para metaforizar os temas que consistem em particularidades do corpo e suas
manifestaçõ es de prazer e desprazer.

A arte é dribladora de quaisquer silenciamentos. Mattoso, além de se valer


dessa potência, compreende como os recursos literá rios sã o profícuos para
construçã o de protagonistas que possam lidar com as temá ticas transgressoras.
Quando Glauco Mattoso assume, em primeira pessoa, narrar ou versar sobre seus
fetiches sexuais, sua condiçã o de cego, sua predileçã o pelo pé e pelo chulé, isso nã o
diz respeito ao pró prio autor, em si. Na verdade, o recurso da escrita em primeira
pessoa traz para aquele que narra toda a “culpa” pelas palavras, pelas revelaçõ es,
pela memó ria e pela interpretaçã o. Tal qual Machado de Assis busca no narrador
defunto, em Memórias póstumas de Brás Cubas, uma forma de expor as mais
íntimas observaçõ es a respeito da sociedade da época, incluindo critérios éticos e
morais, sem comprometer eticamente a voz narradora, Mattoso se coloca em
destaque, em primeira pessoa, confessando e nomeando seus desejos. Suas
confissõ es, mesmo denunciando de maneira jocosa as mais sutis hipocrisias com
relaçã o aos valores humanos do tempo presente, livra-se da busca por um emissor
oficial desse discurso. Mattoso nã o quer ser levado a sério. Entretanto e
paradoxalmente, será na seriedade dos temas que ele transforma em riso que o
leitor terá a uma oportunidade de se aproximar de reflexõ es sobre questõ es
humanas, que sã o de cará ter universal.

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Recebido em 30/03/2021
Aceito em 10/05/2021

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