Artigo 3
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MATTOSO
ABSTRACT: Marked by a cultural development and an avant-garde art, the 20th century is seen as
a historical period of aesthetic representations and ethical confrontations, especially for being the
stage of two major wars. In the first decades, the Brazilian art scene, attentive to the
experimentation of plural languages, would build a space of aesthetic attitudes that consolidated its
history of art and literature. The Brazilian Modernism, decades after its cultural strategy in 1922,
gave rise to one of its most dissonant children: Glauco Mattoso (1951). Admittedly the “enfant
terrible of Oswald de Andrade” (MATTOSO, 2001, p. 4), the Brazilian artist from Sã o Paulo
circulated with the marginalized seventies and occupied a place of relevance with the poetic
complexity of the so-called Jornal Dobrabil. Considering his eschatological trajectory with Brazilian
art between 1970 and 1980, this paper aims to discuss the aesthetic project of Glauco Mattoso
observed from the author's reinterpretation of Oswaldian anthropophagy: the coprophagy.
KEYWORDS: Glauco Mattoso; Modernism; Aesthetic Project; Coprophagia.
1. INTRODUÇÃO
1
Doutora em Literatura Brasileira pela Universidade de Sã o Paulo – Brasil. Professora Adjunta da
Universidade de Brasília – Brasil. ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-4923-8744. E-mail:
[email protected].
estéticos que deram abertura ao movimento modernista brasileiro, embora com
lacunas histó ricas que suprimiram a força e influência direta de alguns
movimentos, como o Futurismo, por exemplo (TELES, 2009).
À quilo a que se atenta Broch (2014) ecoa, de algum modo, numa forma de
compreensã o a respeito do Modernismo brasileiro, em especial, quando voltamos
nossos olhos para as relaçõ es entre os aspectos da modernidade e a decadência da
cultura ocidental, os câ nones e a busca por uma mistura de elementos híbridos
como forma de brasilidade (FRABRIS, 2010). Nesse sentido, o que este texto
pretende chamar atençã o, diante à contextualizaçã o acima, diz respeito ao lugar
ocupado pela figura do poeta Glauco Mattoso em um modernismo reverberado na
segunda metade do século XX – período marcado pela emergência de uma cultura
marginal e de novas formas da arte, como o concretismo e a recepçã o da mail art
no Brasil. Busca-se, aqui, pensar em como o projeto estético do escritor paulistano
permite uma reflexã o acerca de questõ es do sujeito moderno em face da condiçã o
humana, ecoadas nesse período. Essas questõ es dizem respeito à s escolhas
estéticas do autor, em especial, sua escolha pela escrita coprofá gica – uma temá tica
assumidamente atrelada à merda, ao sexo sujo, à podolatria e à tortura –, cujo
destaque dado à merda salienta um lugar de discussã o necessá rio ao sujeito.
Chama-nos atençã o, portanto, como as obras de Mattoso, recortadas entre 1970 e
1980, possibilitam construir uma crítica à arte apaziguadora de sentidos e de fá cil
fruiçã o como um agente de confronto ético e estético (BROCH, 2014). Na
conjuntura, Mattoso assume um protagonismo nã o só de aglutinador do
modernismo, mas de contrariador de instâ ncias estéticas, por colocá -las em um
estado de rebaixamento, para, entã o, destacá -las como primazia.
2. APRESENTANDO O COPRÓFAGO
2
Neste link estã o disponíveis gratuitamente as ú ltimas publicaçõ es de Mattoso. Também se pode
encontrar alguns títulos já esgotados. https://issuu.com/ed.casadeferreiro
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Sabe-se da ousadia em indicar 8 obras literá rias como corpus para o desenvolvimento reflexivo do
artigo. Entretanto, o mapeamento feito servirá de fio condutor para o que trazem em comum: o
elemento coprofá gico.
4
Embora o artigo traga os termos “estética” e “poética”, nã o caberá aqui um desdobramento a
respeito das diferenças conceituais de ambos. Entretanto, é preciso esclarecer que o que denota
essa diferença desdobrada ao longo do texto parte da reflexã o de Luigi Pareyson (1984), quando diz
que, enquanto a estética é de ordem filosó fica e especulativa, a poética configura um cará ter
normativo sem interesse na universalidade. Ao falar de estética coprofá gica, este texto compreende
o poder filosó fico emanado a partir da discussã o a respeito da “merda”, conduzido poeticamente
por Glauco Mattoso, capaz de abarcar temas universais – especialmente por estarem ligados à s
questõ es da condiçã o humana, como o corpo.
sou um ser determinista
o que eu penso nã o é meu
como a merda que cago
faço tudo que quero
e lavo minhas mã os
porque no fundo no duro
quero nã o querer
mas deus é do contra
sou prisioneiro da privada
privado do meu pensamento
(Pedro o Podre, heterô nimo de Glauco Mattoso, 2001, p.11).
Com uma estética visual pró pria, o Jornal Dobrabil traz o dactylograffiti
como o gesto de confecçã o visual dos poemas, glosas, sonetos, manifestos, títulos e
desenhos que compõ em o complexo conteú do de cada ediçã o nú mero “hum” do
jornal, sem deixar de lado o teor de rebaixamento: “O poeta que é poeta vinte e
quatro horas por dia faz na cama o mesmo que faz no papel” (MATTOSO, 2001,
p.20).
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Circulou entre 1928 e 1929, em duas dentiçõ es.
8
Mattoso distribuía, via correspondência à destinatá rios específicos, cada nú mero de seu folhetim
(todos chamados de nú mero “hum”). (MATTOSO, 2001)
compilaçã o dos folhetins do Jornal Dobrabil transformada em ediçã o fac-similar de
luxo, tal e qual Klaxon e Revista de Antropofagia.
eu mordo
tu mastigas
ele engole
nó s digerimos
vó s cagais
eles policiam
(MATTOSO, 1982b, p. 11).
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Termo cunhado por Augusto de Campos a respeito da estética visual da escrita do Jornal Dobrabil
(MATTOSO, 2001)
A capa desta publicaçã o trata-se, também, de uma ilustraçã o sem indicaçã o de
autoria, cujo traço é possível de se identificar como o mesmo das ilustraçõ es 10 de
capa do Jornal Dobrabil, Revista Dedo Mingo e Memórias de um pueteiro. O que
chama atençã o nas imagens de capa diz respeito aos signos visuais que elas
trazem: figura da genitá lia masculina e um ou mais homens em cará ter de desejo e
submissã o ou algum ato sexual com representaçã o do esmegma. Ainda sobre essas
publicaçõ es, Memórias de um pueteiro se destaca, nã o só por retomar intertextos
do Jornal Dobrabil, mas também por evocar uma escrita imperativa, semelhante ao
cará ter de manifesto, porém, reduzida a breves aforismos, cujo teor nã o perde a
jocosidade: “O melhor poema nã o é o desclassificado pela crítica, nem o proibido
pela censura, nem tampouco o desconhecido pelo pú blico. O melhor poema é o
repudiado pelo autor.” (MATTOSO, 1982c, p.21). O que é repudiado é também o
que é excretado.
O Calvário dos carecas (1985) e O que é tortura (1986b) foram escritos com
uma irreverência oposta à delicadeza do tema tortura. O primeiro traz à cena uma
discussã o sobre do trote estudantil e suas perspectivas histó ricas calcadas em um
sadismo oportunista (MATTOSO, 1985). O segundo, convoca o leitor para o lugar
do torturado a fim de compreender o que de fato é tortura, numa postura
assumidamente estética (MATTOSO, 1986b). “Concluímos assim que a tortura
pode ser definida como todo sofrimento a que uma pessoa é submetida por outra,
10
Segundo o pró prio Mattoso, em conversa por e-mail, tratam-se de imagens “pirateadas” que o
autor trouxe em uma viagem feita aos EUA.
desde que de propó sito da segunda e contra vontade da primeira.” (MATTOSO,
1986b, p. 29)
Cada veterano ‘escala’ seu calouro e escala uma mesa onde fica sentado
com os pés a baloiçar pendentes. Quando todos os veteranos estã o
acomodados na mesa, é dado o sinal e, ao som duma fita de samba ou
rockzinho, os calouros começam a disputar no chã o para ver quem
descalça mais rá pido os dois pés do seu veterano. (MATTOSO, 1985, p.
103).
11
Autor, 2016.
vida pú blica do escritor Glauco Mattoso 12 – é que se constró i um pacto
autobiográ fico frá gil, contrariando a veracidade do gesto de leitura proposto por
Lejeune (2014). O jogo verossímil entre autoria, autobiografia e ficçã o tece uma
teia interpretativa em que o pró prio autor alerta: “Nas memó rias se viaja”
(MATTOSO, 1986a, 171).
Interligadas pela crueza das temá ticas que encenam cada uma das
publicaçõ es mencionadas, o nascimento destes trabalhos reforça o início de um
projeto estético anunciado ainda no Jornal Dobrabil, quando questõ es relacionadas
ao humano, ao sexo e aos excrementos do corpo ganham uma envergadura
literá ria manejada pela irreverência do poeta. Assumindo um lugar de
heteronímia, apropriaçã o, erudiçã o e, especialmente, transgressã o, Glauco Mattoso
constró i uma estética fecunda, capaz de abarcar as figuras que metaforizam os
assuntos mais espinhosos de se lidar até mesmo na literatura.
12
As adjetivaçõ es em torno da figura pú blica do poeta, especialmente a de fetichista, sã o reforçadas
em suas entrevistas. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=APavu7e4dug.
3. A MERDA COMO UM PROJETO ESTÉTICO DE GLAUCO MATTOSO
O cená rio cultural brasileiro entre 1920, 1930 e 1940 passa a corroborar
com a emersã o de novos valores da arte, ligados à s questõ es estéticas, políticas e
culturais. Essa atençã o dada à s experiências estéticas e sociais do sujeito preparou
um novo ambiente para a liberdade criativa e novas contestaçõ es. Observando as
envergaduras desses novos gestos de criaçã o, é possível compreendermos os
efeitos da decadência da cultura ocidental nas novas formas de arte que
protagonizarã o a segunda metade do século XX. Seja pelo conceitualismo, pela
apropriaçã o ou transfiguraçã o (DANTO, 2010). Quando Hermann Broch (2014), ao
observar a decadência dos sistemas de valores do Ocidente, chama-nos atençã o aos
novos sentidos do pensamento racional em confluência com o sentimento humano,
o que temos é uma nova busca de valores calcada pela experiência do sujeito, por
sua “irracionalidade do passado à irracionalidade do futuro” (BROCH, 2014, p.28),
em que a eternidade nã o está mais atrelada à origem divina, mas, sim, na arte. Dito
isso, o desvalor passa, também, a ser um ponto de definiçã o para os sistemas de
valores, uma vez que a exigência ética deixa de ser uma direçã o no â mbito da
criaçã o.
O que nos interessa na discussã o brochiana diz respeito ao mal dogmá tico
processado por uma intervençã o da autonomia do artista, especialmente quando
pensamos o período ditatorial no Brasil. A arte passa a lutar por uma liberdade
cujos valores nacionais conduziam a um abafamento ético: seja pela deposiçã o do
presidente, seja pelas prisõ es políticas, seja pela tortura. O que vemos emergir
nesses tempos sombrios que assolaram o país é um sistema arbitrá rio, que
conduzirá o fenô meno artístico à s valoraçõ es problemá ticas de categorias morais:
bons ou maus, vida ou morte. À parte a reflexã o a respeito da fragilidade dos novos
sistemas de valores no país, destacamos a emergência de uma arte para driblar as
contestaçõ es e os silenciamentos éticos. Ao observar a obra de Glauco Mattoso, o
que nos é apresentado trata-se de uma produçã o que nã o só enfrenta essa
imposiçã o de sistemas de valor e desvalor estético, como se apropria daquilo que é
desvalorizado em prol de um projeto estético jocoso: a merda.
“Se no meio dos poucos bons tem tanta gente fazendo merda e se
autopromovendo ou sendo promovida, por que nã o posso fazer a dita
propriamente dita e justificá -la?” (MATTOSO, 2001, p.4). Ao assumir a merda como
“reciclagem” do que foi digerido, Mattoso também se coloca como um recolhedor
daquilo que é excretado ou até mesmo daquilo que nã o passou por digestã o, seja
por contrariedade do gosto ou por negligência estética antropofá gica. “A merda, se
você for considerá -la em termos absolutos, é o produto mais desprezível do
homem. Quando se tematiza a merda, pode parecer uma posiçã o bastante
irreverente.” (MATTOSO in ASSUNÇÃ O, 2012, p.110).
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Escrita maiú scula de acordo com poema presente no Jornal Dobrabil.
sinestesicamente pelo autor, de modo a assumir aquilo que Immanuel Kant (2019)
considerará como algo inferior e contrá rio aos sentidos do conhecimento. Para o
filó sofo, “o olfato é como que um paladar a distâ ncia, que força os demais a
compartilhar a fruiçã o de algo querendo ou nã o.” (KANT, 2019, p. 52). A reflexã o
kantiana, embora coloque o cheiro como um problema estético, leva-nos a pensar
como olfato é um sentido transgressor a medida em que escancara, por meio do
odor, aquilo que, de algum modo, seria negligenciado ou abafado.
Mattoso pode ser observado por esta ó tica quando se coloca enquanto
literato transgressor que abre espaço para o profano reverberado nos corpos e
exercido pela linguagem estética, especialmente representado pela figura do pé.
Bataille (2018), em “O dedã o do pé”, traz o ó rgã o como objeto de reflexã o a
respeito do papel desempenhado pelo corpo ereto e pela grotesca funçã o dada ao
membro que o sustenta. A dicotomia entre pés e cabeça levantada por ele reforça
uma tradiçã o filosó fica de separaçã o entre corpo e alma, sensaçã o e intelecto, que
conduzem o baixo corporal ao lugar de sujeiçã o, revelando o ordiná rio dado à s
partes do corpo que representam disformidade. Mas o filó sofo também revela as
implicaçõ es de seduçã o exercidas por este mesmo membro, cuja forma é de
revelaçã o do íntimo, que se apresenta como desordenado e carregado daquilo que
é da ordem do humano, metaforizado pelo dedã o do pé: “[...] é interrompida em
seu elã por uma dor atroz no dedo do pé, porque, embora seja o mais nobre dos
animais, tem calos nos pés e esses pés levam [...] uma existência ignó bil”
(BATAILLE, 2018, p.123).
Han (2016), por um diá logo com Bataille (2018), traz à tona um sentir tá til
acalmado pela ausência de disformidade e rugosidade, o que contraria as
imperfeiçõ es causadas por aquilo que denuncia elementos do humano em suas
particularidades instintivas, animalescas, bioló gicas e subjetivas. O feio, neste
sentido, passa a ser característico de uma estética negativa, contrá ria aos instintos
de harmonia e linearidade. Sendo assim, o feio é também perigoso, uma vez ser
capaz de levar o sujeito a instâ ncias de ordem transcendentais, que defrontam com
a positividade causada pela lisura das superfícies dos corpos. Com esta aná lise,
Han (2016) coloca em discussã o um imperativo tá til capaz de causar um
esgotamento estético, porém, promovente de uma agradabilidade sem
questionamentos.
Tudo o que faço é cerebral. Nã o existe em mim aquela histó ria de ‘escrita
automá tica, o que vier sai’, nada disso. É tudo elaborado. Poesia é uma
coisa fria, nã o tem nada de muito emocional. É trabalho de relojoeiro
mesmo. Você fica montando as pecinhas.” (MATTOSO in ASSUNÇÃ O,
2012, p. 110).
Considerando o tênue olhar filosó fico desdobrado por Broch (2014) quanto
à essência kitsch, sua discussã o incitou o escritor Milan Kundera (2009) a uma
reflexã o quanto a essa estética, em que revela preocupaçã o com a forma idílica
para representaçã o de um sistema kitsch, tal como expõ e Barroso (2013) e
Gonçalves (2020). O ideal estético ao qual se refere Kundera trata-se do “acordo
categó rico com o ser” (2009, p. 243). Segundo o autor, esse acordo evidencia uma
objeçã o metafísica à merda e a tudo o que ela representa, especialmente quando se
considera o mito da criaçã o do ser como de origem divina, pura e sem pecados,
contrariando paradoxalmente a prerrogativa de que, se um Deus foi feito à imagem
e semelhança do ser humano, em consequência, sofreria de suas experimentaçõ es
instintivas e bioló gicas. Neste sentido, o kitsch opera como um argumento
ontoló gico a respeito da existência, uma vez que existir no mundo configura negar
à quilo a que qualquer ideal divino se recusaria: os excrementos. Neste caso, dirá ,
Kundera (2009), a merda desempenha o papel da negaçã o. E essa negaçã o, quando
colocada diante à s consideraçõ es de Byung-Chul Han (2016), representa uma
contraposiçã o ao liso e polido, pois traz à tona aspectos disformes pertencentes à s
franquezas dos corpos e daquilo que saem dos corpos ou sã o provocados por eles.
Em consonâ ncia com a visã o metafísica do kitsch proposta por Kundera bem
como a perspectiva brochiana em que o kitsch é um mal ético, compreende-se que
sua existência nã o é apenas reveladora de um objeto falseado, mas, sobretudo, da
insistente tentativa humana de desconsiderar tudo o que é pró prio do corpo e sua
degradaçã o como necessá rios de representaçã o. Mais do que isso, esse olhar revela
a necessidade de se explorar toda e qualquer linguagem que se vale de uma
contrariedade kitsch, uma vez que se propõ e denunciadora de temas ainda
ocultados pelo sentimentalismo humano, especialmente por esbarrar na insistente
exacerbaçã o de um “eu” necessitado de respostas e apaziguamentos.
5. CONSIDERAÇÕES
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Ao pensar em eixo epistemoló gico, evoca-se a teoria da Epistemologia do romance, de Wilton
Barroso-Filho (2018), a fim de identificar o fio temá tico condutor da ideia do autor; ideia que
perpassa seu conjunto de obra e permite, por meio de uma observaçã o estética, compreender
vestígios de conhecimento filosó fico expostos pela construçã o literá ria.
para metaforizar os temas que consistem em particularidades do corpo e suas
manifestaçõ es de prazer e desprazer.
REFERÊNCIAS
Recebido em 30/03/2021
Aceito em 10/05/2021