Bernardo Soares, Kierkegaard e A Melancolia
Bernardo Soares, Kierkegaard e A Melancolia
Bernardo Soares, Kierkegaard e A Melancolia
M.F.
Preâmbulo
“Ah, happy is the one who has nothing more to do with the subject than to write a
paragraph about it; even happier the one who can write the next.”1
E se assim fosse, e não escrevesse sobre mim? Se não tivesse que ir em busca nos
confins de mim para me arrancar palavras estranhamente familiares, e familiarmente
estranhas? O tempo foge-me na corrida por cada momento, ilude-me e evade-se também
quando paro para os sentir. Recordo a esperança na mudança, acordo dessa à espera de uma
outra lembrança. Olho à volta tentando aprender com o Outro a estar, mas só me sei estar só
aqui. Aqui? Lá, de onde me vejo estar. Lá, de onde me vejo na com a a ver a vida.
Olho à distância, e vejo o que me é próximo. Vejo na escrita de um outro aquela que
desejaria fazer nascer de mim, não fosse saber que não o conseguiria. Então sento-me e
escrevo, escrevo enquanto sonho, faço as contas da análise àquele que me é longínquo
enquanto procuro procurar-me, porque “Todos nós, que sonhamos e pensamos, somos
ajudantes de guarda-livros”2.
Introdução
No texto The Unhappiest One, presente na obra Either/Or: A Fragment of Life, de Søren
Kierkegaard, o autor explora a ideia de como seria procurar a pessoa mais infeliz até agora,
apresentando um conjunto de condições para que se possa determinar quem é merecedor de
tal título. Neste trabalho irei enquadrar Bernardo Soares, a partir de fragmentos do Livro do
Desassossego, na análise de Kierkegaard e discutir se a campa com o epitáfio que dá o nome
ao texto se adequa ao heterónimo de Fernando Pessoa. Para isso, organizarei a parte central
do trabalho em duas secções, uma dedicada ao texto de Kierkegaard, outra dedicada a
Bernardo Soares. Esta última estará dividida em duas sub-secções, a primeira das quais
consistirá numa contextualização da obra em análise com algumas notas sobre o carácter
melancólico do texto e notas sobre as escolhas dos fragmentos citados; na segunda sub-secção
irei aplicar as condições apresentadas por Kierkegaard a Bernardo Soares, fundamentando-me
em fragmentos do Livro do Desassossego. Na conclusão, elaborarei um veredito final sobre se
Bernardo Soares é, de facto, merecedor do título “The Unhappiest One”.
1
SV I 196
2
LdD 419
Manuel Ferreiro, nº 55448, FCSH-UNL, 2020/2021, Temas de Filosofia Contemporânea
O autor parte assim para a divisão dos candidatos, os infelizes que já viveram e que não
temem a morte, em grupos distintos. A determinação do mais infeliz torna-se assim uma
caracterização de uma classe de indivíduos: “We shall not deny that no particular individual is
the unhappiest one; it is rather a class, but we shall not therefore have scruples about
awarding the representative of this class the title of the unhappiest one, shall not have
scruples about awarding him the grave”8.
Iniciando a caracterização do mais infeliz, Kierkegaard afirma que o mais infeliz é aquele
cuja realização de consciência, cuja essência, jaz fora de si9. Ser infeliz é não estar presente em
si, mas isso pode corresponder a um ‘estar presente (no) futuro’ ou a um ‘estar presente (no)
passado’: respetivamente, ‘ser na esperança’ e ‘ser na lembrança’10. Para o autor, estes
estados não se configuram como infelizes em sentido estrito, porque efetivamente estão
presentes em si – ainda que no futuro ou passado, mas presentes –, e a condição de
infelicidade é a de estar ausente de si.
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SV I 193
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SV I 194
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SV I 194
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NdT 36
7
“Happy is the one who died in old age; happier is the one who died in youth; happiest is the one who
died at birth; happiest of all the one who was never born. But this is not the way it is; death is the
common fate of all human beings, and inasmuch as the unhappiest one has not been found, he must be
sought within these confines”, SV I 195
8
SV I 196
9
“The unhappy one is the person who in one way or another has his ideal, the substance of his life, the
plenitude of his consciousness, his essential nature, outside himself”, SV I 196
10
“There are the hoping and the recollecting individualities”, SV I 197
Manuel Ferreiro, nº 55448, FCSH-UNL, 2020/2021, Temas de Filosofia Contemporânea
Procurando definir melhor este ‘estar ausente de si’ como ‘ser infeliz’, Kierkegaard
analisa paralelamente o ‘ser na esperança’ e o ‘ser na lembrança’. Em relação ao primeiro, diz:
“When, as one who hopes (and consequently to that extent is unhappy), he is not
present to himself, he becomes unhappy in the stricter sense if the word. [...] If
[...] he cannot become present to himself in hope but loses his hope, then hopes
again, etc., then he is absent from himself, not merely in present but also in future
time, and thus we have a form of unhappiness.”11
Do mesmo modo, para o ‘ser na lembrança’, que também é um ‘estar ausente de si’ no
presente, só há correspondência com ‘ser infeliz’ em sentido estrito se o indivíduo estiver
continuamente ausente de si no passado. Por exemplo, o olhar de um idoso sobre a pureza da
infância de uma criança que o leva a procurar, repetidamente e em vão, um semelhante
momento de pureza na sua memória. Não está presente em si, no presente, porque se vira
para as memórias; não está presente em si no seu passado, porque a pureza desses momentos
não está lá: pertence a quem os vê de fora.
Comparando os dois tipos de ‘ausência de si’ (de infelicidade no sentido estrito), ‘ser na
esperança’ e ‘ser na lembrança’, Kierkegaard considera que a maior infelicidade está no
segundo. Para o autor, “The hoping individualities always have a more pleasant
disappointment.”12, possivelmente porque “future time is closer to the present than is the
past”13, e a distância (grau de ausência relativamente ao zero da presença) é um fator
determinante da infelicidade.
“The only combination possible is one in which it is recollection that prevents him
from becoming present in his hope and it is hope that prevents him from
becoming present in his recollection. This is due, on the one hand, to his
continually hoping for that which should be recollected; his hope is continually
being disappointed, but he discovers that this disappointment occurs not because
his objective is pushed further ahead but because he is past his goal, because it
has already been experienced or should have been experienced and thus has
passed over into recollection. On the other hand, he is continually recollecting
that for which he should hope, because he has already encompassed the future in
thought, has already experienced it in thought, and he recollects what he has
experienced instead of hoping for it. Thus, what he is hoping for lies behind him;
what he recollects lies ahead of him.”14
Esta forma combinada é, para o autor, correspondente a uma maior infelicidade do que
cada uma das formas separadas. A ausência de si no passado, presente e futuro, o engano
temporal bidirecional tornam a pessoa mais infeliz. Kierkegaard nota ainda que esta pessoa
11
SV I 197
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SV I 198
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SV I 197
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SV I 198-199
Manuel Ferreiro, nº 55448, FCSH-UNL, 2020/2021, Temas de Filosofia Contemporânea
goza da honra de ser considerada sã, sabendo que se tentasse explicar a alguém como as
coisas são para si, seria dada como louca15, e o próprio facto de isso não a tornar louca é o seu
grande problema. A pessoa vê-se lançada, só, num mundo que não a compreende; não morre
porque não viveu, não vive porque já está morto; não ama porque amor é estar (num)
presente; não tem paixão porque ao mesmo tempo que a tem, tem a paixão oposta a ela; não
tem tempo para nada, porque simplesmente não tem tempo (em si).
“His brow is troubled, his knees are slack, and yet he leans on himself alone. He is
exhausted, and yet how full of energy; his eyes do not seem to have shed, but to
have drunk, many tears, and yet they flame with a fire that could consume the
whole world, but not a splinter of sorrow in his own breast; he is bowed down,
and yet his youth protends a long life; his lips smile at the world, which does not
understand him. [...] I hail you, great unknown, whose name I do not know; I hail
you with your title of honor: the unhappiest one.”17
Kierkegaard termina o texto honrando o mais infeliz dos infelizes, desejando-lhe que
continue a ser o mais infeliz ou, melhor dizendo, o mais feliz, “for this is indeed precisely a gift
of fortune that no one can give himself. See, language breaks down, and thought is confused,
for who indeed is the happiest but the unhappiest and who the unhappiest but the happiest,
and what is life but madness, and faith but foolishness, and hope but a staving off of the evil
day, and love but vinegar in the wound.”18 A noção de presença como condição de felicidade
parece, afinal, ser reconfigurada: a presença num tempo, seja passado, presente ou futuro,
surge como uma forma de ausência de si na medida em que a vida (igualmente passada,
presente ou futura) é loucura, e a verdadeira presença em si implica uma ausência de si no
15
“Ordinarily, he enjoys the honor of being regarded as being in his right mind, and yet he knows that if
he were to explain to a single person how it really is with him, he would be declared insane”, SV I 199
16
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SV I 202-203
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SV I 203
Manuel Ferreiro, nº 55448, FCSH-UNL, 2020/2021, Temas de Filosofia Contemporânea
passado, no presente e no futuro, na medida em que o olhar claro sobre os tempos exige um
afastamento deles. O mais infeliz (mais distante do seu passado, do seu presente e do seu
futuro) é assim o mais feliz (mais próximo de si), e o mais feliz (mais em contacto com a sua
realidade passada, presente ou futura) é o mais infeliz (mais distante de si próprio).
“At that empty grave, we shall seek him, [...] the unhappy ones are drawn to the
West to that empty grave.” (SV I 194)
“we who live ἀϕοϱισμένοι and segregati, as aphorisms in life, without association
with men, having no share in their griefs and their joys; we who are not
consonants in the clamor of life but are solitary birds of night” (SV I 194)
“specifically excluded are the uninvited guests, all those who think that death is
the greatest calamity, who became unhappy because they feared death; for we
[...] do not fear death” (SV I 194)
“The unhappy one is the person who in one way or another has his ideal, the
substance of his life, the plenitude of his consciousness, his essential nature,
ouside himself. The unhappy one is the person who is always absent from himself,
never present to himself.” (SV I 196)
“It is recollection that prevents him from becoming present in his hope and it is
hope that prevents him from becoming present in his recollection. This is due, on
the one hand, to his continually hoping for that which should be recollected [...].
On the other hand, he is recollecting that for which he should hope.” (SV I 198-
199)
Manuel Ferreiro, nº 55448, FCSH-UNL, 2020/2021, Temas de Filosofia Contemporânea
“Ordinarily, he enjoys the honor of being regarded as being in his right mind, and
yet he knows that if he were to explain to a single person how it really is with him,
he would be declared insane. This is enough to drive one mad, and yet this does
not happen, and this is precisely his trouble.” (SV I 199)
“He is continually very close to the goal, and at the same moment he is far from it;
he then discovers that what is making him unhappy now, because he has it or
because he is this way, is precisely what would have made him happy a few years
ago if he had had it, whereas he became unhappy because he did not have it.” (SV
I 199)
Notas Introdutórias
O Livro do Desassossego de Fernando Pessoa (assinada por Bernardo Soares) é uma obra
em fragmentos que retrata as observações, aspirações e sentimentos (ou a ausência deles) da
vida de Bernardo Soares. Numa obra que combina elementos de uma realidade imaginada
com elementos de uma realidade vivida, a fronteira entre ficção e verdade esbate-se; resta ao
leitor perder-se pelos caminhos solitários na companhia do autor, sem deixar nunca de sentir a
enorme distância que os separa da vida. Bernardo Soares, homem-obra, afigura-se assim como
um forte candidato ao epitáfio referido por Kierkegaard.
O discurso melancólico
Na procura da resposta à pergunta “Terá sido Bernardo Soares ‘o mais infeliz’?”, é
necessário estabelecer o fundo melancólico do discurso do autor. A dissertação de mestrado
de César Marcos Casaroto Filho intitulada Da Pedra Etérea: O Discurso Melancólico Em Livro
Do Desassossego trata este tema. Nas suas palavras introdutórias, o autor da dissertação
Manuel Ferreiro, nº 55448, FCSH-UNL, 2020/2021, Temas de Filosofia Contemporânea
pretende “reconhecer na poesia de Soares uma obra melancólica.”19 Recorrendo à análise “da
estética melancólica, do discurso melancólico e da psicanálise”20, o autor conclui que o Livro
do Desassossego pode ser caracterizado como um discurso melancólico por um conjunto de
fatores:
19
Filho, p. 8
20
Filho, p.8
Manuel Ferreiro, nº 55448, FCSH-UNL, 2020/2021, Temas de Filosofia Contemporânea
“[...] Agrada-me, mais à imaginação que aos sentidos, a tristeza dispersa que está
comigo. [...]” (LdD 181)
“Prouvera aos deuses, meu coração triste, que o Destino tivesse um sentido! [...]”
(LdD 186)
Presente ao longo de toda a obra está a ideia de uma condição, permanente, de miséria
e tristeza inerente à própria forma como Bernardo Soares se (des)encontra a si mesmo na
vida. Não apenas sente tristeza – uma tristeza causada – mas sente a vida através da tristeza.
Bernardo Soares não está infeliz: é infeliz.
“Tudo quanto não é a minha alma é para mim, por mais que eu queira que o não
seja, não mais que cenário e decoração. Um homem, ainda que eu possa
reconhecer pelo pensamento que ele é um ente vivo como eu, teve sempre, para
o que em mim, por me ser involuntário, é verdadeiramente eu, menos
importância que uma árvore, se a árvore é mais bela. Por isso senti sempre os
movimentos humanos – as grandes tragédias coletivas da história ou do que dela
fazem – como frisos coloridos, vazios da alma dos que passam neles. [...]” (LdD
165)
Bernardo Soares vive à distância do que o rodeia; tudo o que vê se encontra para lá do
isolamento em que se encontra. As situações do mundo, as pessoas do mundo, são para o
autor não mais do que mera representação, indiferente e vazia; a incongruência em que vive
relativamente aos outros é representativa da incongruência com vê a sua relação com a (sua
própria) humanidade. Bernardo Soares encontra-se – vive-se – em dissociação.
não basta — o certo é que sinto como se, no fim de um piorar de doente, por fim
largasse sem violência ou saudade as mãos débeis de sobre a colcha sentida.
Considero então que coisa é esta a que chamamos morte. Não quero dizer o
mistério da morte, que não penetro, mas a sensação física de cessar de viver.”
(LdD 40)
Bernardo Soares sente, por vezes, prenúncios de morte, o que o leva a sentir-se a partir
“sem violência ou saudade”. Se o fizesse com medo, agarrar-se-ia com força à “colcha
sentida”, de esperança, ou choraria por se perder a si, de saudade. Neste fragmento não
parece indicar que tema a morte.
“Contento-me com a minha cela ter vidraças por dentro das grades, e escrevo nos
vidros, no pó do necessário, o meu nome em letras grandes, assinatura quotidiana
da minha escritura com a morte.
Com a morte? Não, nem com a morte. Quem vive como eu não morre: acaba,
murcha, desvegeta-se. O lugar onde esteve fica sem ele ali estar, a rua por onde
andava fica sem ele lá ser visto, a casa onde morava é habitada por não-ele. [...]”
(LdD 42)
“[...] Uma espécie de anteneurose do que serei quando já não for gela-me corpo
e alma. Uma como que lembrança da minha morte futura arrepia-me de dentro.
Numa névoa de intuição, sinto-me, matéria morta, caído na chuva, gemido pelo
vento. E o frio do que não sentirei morde o coração atual. [...]” (LdD 69)
Neste excerto, Soares descreve aquilo que sente em relação ao que será “quando já não
for” como algo que lhe gela corpo e alma. Se por um lado se dá conta da dor que lhe traz esse
pensamento, aquilo a que se refere não é de facto à sua morte, mas uma lembrança do futuro
que, não sendo propriamente sua, resulta de um sentir com o pensamento de algo que não lhe
pertence. Esse ser “quando já não for” não é a sua morte, mas algo de contínuo que a
atravessa. O que dói não parece afinal ser a morte, mas a continuação num ser-para-além-da-
morte.
“E eu, que odeio a vida com timidez, temo a morte com fascinação. [...]” (LdD 168)
Manuel Ferreiro, nº 55448, FCSH-UNL, 2020/2021, Temas de Filosofia Contemporânea
É isto, julgo eu, que está também presente neste último excerto, quando o autor diz
temer a morte “com fascinação”: Soares teme esta passagem ao para-além-da-morte, mas não
deixa de sentir a atração, curiosidade, interesse nela.
Soares teme a morte (deixar de ser) na sua possibilidade de ser não-morte (passar a um
ser-para-além-da-morte). Quanto à sua morte em si, Bernardo Soares parece ser indiferente,
dando conta de que simplesmente largará “sem violência ou saudade as mãos débeis de sobre
a colcha sentida”.
Não ser distinguido de quem é mostra-se ser marca de uma ausência de identificação
entre o próprio autor e quem ele é. Bernardo Soares existe – ou, melhor, não existe – ausente
do seu presente. De novo, outros fragmentos parecem sugerir contradição, como se pode ver
em:
“Vivo sempre no presente. [...] Breve sombra escura de uma árvore citadina, leve
som de água caindo no tanque triste, verde da relva regular — jardim público ao
quase crepúsculo -, sois, neste momento, o universo inteiro para mim, porque
sois o conteúdo pleno da minha sensação consciente. Não quero mais da vida do
que senti-la perder-se nestas tardes imprevistas, ao som de crianças alheias que
brincam nestes jardins engradados pela melancolia das ruas que os cercam, e
copados, para além dos ramos altos das árvores, pelo céu velho onde as estrelas
recomeçam.” (LdD 100)
Os momentos em que Bernardo Soares se dedica ao presente são na maior parte das
vezes preenchidos por um presente que lhe é externo, deixando-se a si, e ao seu presente, de
fora da sua consciência.
“Viver é ser outro. Nem sentir é possível se hoje se sente como ontem se sentiu:
sentir hoje o mesmo que ontem não é sentir — é lembrar hoje o que se sentiu
ontem, ser hoje o cadáver vivo do que ontem foi a vida perdida.
Apagar tudo do quadro de um dia para o outro, ser novo com cada nova
madrugada, numa revirgindade perpétua da emoção — isto, e só isto, vale a pena
ser ou ter, para ser ou ter o que imperfeitamente somos. [...] Amanhã o que for
será outra coisa, e o que eu vir será visto por olhos recompostos, cheios de uma
nova visão. [...]” (LdD 94)
Por outro lado, Bernardo Soares não parece virar-se, como Kierkegaard sugeriu ser uma
reação à perda do ‘ser em lembrança’, para uma atitude de esperança. Soares diz, aliás:
“[...] Um tédio que inclui a antecipação só de mais tédio; a pena, já, de amanhã
ter pena de ter tido pena hoje — grandes emaranhamentos sem utilidade nem
verdade, grandes emaranhamentos... [...]” (LdD 14)
Para o homem vulgar, sentir é viver e pensar é saber viver. Para mim, pensar é
viver e sentir não é mais que o alimento de pensar. [...]
Quanto mais diferente de mim alguém é, mais real me parece, porque menos
depende da minha subjetividade. E é por isso que o meu estudo atento e
constante é essa mesma humanidade vulgar que repugno e de quem disto. Amo-a
porque a odeio. Gosto de vê-la porque detesto senti-la. A paisagem, tão admirável
como quadro, é em geral incómoda como leito.” (LdD 71)
Bernardo Soares sente-se diferente dos outros pela forma como (pensa que) os outros
vivem. É esta diferença que observa que o faz sentir estranho, não só a si, mas aos outros e ao
mundo que o rodeia. Vê, também nos outros, sinais da sua loucura:
“Tendo visto com que lucidez e coerência lógica certos loucos justificam, a si
próprios e aos outros, as suas ideias delirantes, perdi para sempre a segura
certeza da lucidez da minha lucidez.” (LdD 430)
A paz, a saúde, o descanso que Soares deseja nos seus dias passados no escritório da
Baixa são, agora que os tem, uma fonte de infelicidade exatamente porque os tem: o gozo que
tem do campo (das “coisas naturais”) tem-no Bernardo Soares por não estar nele, e estar nele
impede-o de gozar a naturalidade. O desejar o distante, quando distante, e o recusar o mesmo
quando próximo é algo que deixa o autor em permanente distanciamento – ainda que próximo
Manuel Ferreiro, nº 55448, FCSH-UNL, 2020/2021, Temas de Filosofia Contemporânea
– do seu desejo, do seu objetivo. A distância entre Soares e o seu objetivo – e, por isso, entre si
e a sua vida – é tornada talvez mais clara na seguinte passagem:
“[...] Entre mim e a vida há um vidro ténue. Por mais nitidamente que eu veja e
compreenda a vida, eu não lhe posso tocar. [...]” (LdD 80)
Tocar a vida, e ser tocado pela vida: algo que lhe está invisivelmente vedado. Como um
Tântalo, Bernardo Soares suspira vaziamente no deambular pela clareira (fora) da vida em que
está enclausurado.
Conclusão
Bernardo Soares, homem-obra contraditório, fragmentado e fragmentário, apresenta-se
melancólico ao longo de todos os fragmentos. Na sua oposição interna, deseja o que não
deseja porque o não deseja, procura a distância do que quer mais próximo, vê-se para lá do
que não foi e aquém do que será. As condições levantadas a partir do texto de Kierkegaard
são, uma por uma, cumpridas – de forma mais ou menos clara – pelo heterónimo de Fernando
Pessoa.
“For there he stands, the envoy from the kingdom of sighs, the chosen favorite of
suffering, the apostle of grief, the silent friend of pain, the unhappy lover of
recollection, confused in his recollection by the light of hope, frustrated in his
hope by the ghosts of recollection. His brow is troubled, his knees are slack, and
yet he leans on himself alone. He is exhausted, and yet how full of energy; his
eyes do not seem to have shed, but to have drunk, many tears, and yet they flame
with a fire that could consume the whole world, but not a splinter of sorrow in his
own breast; he is bowed down, and yet his youth protends a long life; his lips
smile at the world, which does not understand him. Arise, dear
Συμπαϱανεϰϱώμενοι; bow down, you witnesses of sorrow, in this solemn hour. I
hail you, great unknown, whose name I do not know; I hail you with your title of
honor: the unhappiest one.” (SV I 202-203)
Bernardo Soares, que sofre a cada página de história da sua vida, perdido na esperança
do passado, perdido na lembrança do futuro; vergado por uma vida inteira de solidão,
sustenta-se apenas nessa mesma solidão; cansa-se com tudo, até com o que não o cansa, e
ainda assim não pára de escrever, revelando a sua imensa energia criativa; a sua face
embebida em lágrimas que ficaram para sempre por chorar, sem que pretenda alguma vez
vingar-se do mundo por elas; sente-se velho, “só para ter o prazer de se sentir rejuvenescer”21;
sorri, ainda que por vezes guarde para si os sorrisos, sem que o mundo o compreenda.
Bernardo Soares pertence, julgo que com poucas dúvidas, ao grupo dos mais infelizes. Se
Kierkegaard pudesse reunir de novo todos os Symparanecromenoi talvez fosse possível
determinar se Bernardo Soares era o melhor dos seus representantes, mas penso que este
heterónimo de Pessoa será para sempre recordado como um dos mais aptos candidatos.
21
LdD 144
Manuel Ferreiro, nº 55448, FCSH-UNL, 2020/2021, Temas de Filosofia Contemporânea
Bibliografia
(NdT: Nascimento da Tragédia)
NIETZSCHE, Friedrich; Tradução, notas e posfácio de J. Guinsburg (1992). O Nascimento
e a Tragédia ou Helenismo e Pessimismo 2.ª ed., 3.ª reimp. ed. São Paulo: Companhia
das Letras. p. 36