Bernardo Soares, Kierkegaard e A Melancolia

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Manuel Ferreiro, nº 55448, FCSH-UNL, 2020/2021, Temas de Filosofia Contemporânea

Bernardo Soares, o mais infeliz


“Nada,
É mais belo que uma nuvem que vem,
E não passa.”

M.F.

Preâmbulo
“Ah, happy is the one who has nothing more to do with the subject than to write a
paragraph about it; even happier the one who can write the next.”1

E se assim fosse, e não escrevesse sobre mim? Se não tivesse que ir em busca nos
confins de mim para me arrancar palavras estranhamente familiares, e familiarmente
estranhas? O tempo foge-me na corrida por cada momento, ilude-me e evade-se também
quando paro para os sentir. Recordo a esperança na mudança, acordo dessa à espera de uma
outra lembrança. Olho à volta tentando aprender com o Outro a estar, mas só me sei estar só
aqui. Aqui? Lá, de onde me vejo estar. Lá, de onde me vejo na com a a ver a vida.

Olho à distância, e vejo o que me é próximo. Vejo na escrita de um outro aquela que
desejaria fazer nascer de mim, não fosse saber que não o conseguiria. Então sento-me e
escrevo, escrevo enquanto sonho, faço as contas da análise àquele que me é longínquo
enquanto procuro procurar-me, porque “Todos nós, que sonhamos e pensamos, somos
ajudantes de guarda-livros”2.

Introdução
No texto The Unhappiest One, presente na obra Either/Or: A Fragment of Life, de Søren
Kierkegaard, o autor explora a ideia de como seria procurar a pessoa mais infeliz até agora,
apresentando um conjunto de condições para que se possa determinar quem é merecedor de
tal título. Neste trabalho irei enquadrar Bernardo Soares, a partir de fragmentos do Livro do
Desassossego, na análise de Kierkegaard e discutir se a campa com o epitáfio que dá o nome
ao texto se adequa ao heterónimo de Fernando Pessoa. Para isso, organizarei a parte central
do trabalho em duas secções, uma dedicada ao texto de Kierkegaard, outra dedicada a
Bernardo Soares. Esta última estará dividida em duas sub-secções, a primeira das quais
consistirá numa contextualização da obra em análise com algumas notas sobre o carácter
melancólico do texto e notas sobre as escolhas dos fragmentos citados; na segunda sub-secção
irei aplicar as condições apresentadas por Kierkegaard a Bernardo Soares, fundamentando-me
em fragmentos do Livro do Desassossego. Na conclusão, elaborarei um veredito final sobre se
Bernardo Soares é, de facto, merecedor do título “The Unhappiest One”.

1
SV I 196
2
LdD 419
Manuel Ferreiro, nº 55448, FCSH-UNL, 2020/2021, Temas de Filosofia Contemporânea

Kierkegaard e “The Unhappiest One”

Breve resumo do texto


Kierkegaard inicia o texto referindo que “As is well known, there is said to be a grave
somewhere in England that is distinguished not by a magnificent monument or a mournful
setting but by a short inscription – ‘The Unhappiest One’.”3 Segundo consta, a campa foi
aberta e não estava lá ninguém. Talvez o mais infeliz não tenha encontrado descanso nem no
caixão; ou talvez ainda não tenha sequer sido encontrado. Sendo esse o caso, o autor propõe-
se a procurar aquele que é o verdadeiro merecedor desse título. Começando por convocar
todos os infelizes a tal lugar, dizendo “we who are not consonants in the clamor of life but are
solitary birds in the stillness of night, assemble together on only one occasion [...]; we who
believe in nothing but unhappiness.”4, Kierkegaard refere que muitos dos que vêm ao
chamamento não são, de facto, candidatos para a deliberação que tomará lugar: “specifically
excluded are the uninvited guests, all those who think that death is the greatest calamity, who
became unhappy because they feared death [...]; we know a worse calamity, and first and last,
above all – is to live.”5. Excluindo aqueles que temem a morte, o número de candidatos
diminui consideravelmente. Fazendo referência à sabedoria de Sileno67, Kierkegaard afirma
que o eleito terá que ser encontrado na jurisdição da morte, ou seja, naqueles que já
morreram ou naqueles que já nasceram: os que já viveram.

O autor parte assim para a divisão dos candidatos, os infelizes que já viveram e que não
temem a morte, em grupos distintos. A determinação do mais infeliz torna-se assim uma
caracterização de uma classe de indivíduos: “We shall not deny that no particular individual is
the unhappiest one; it is rather a class, but we shall not therefore have scruples about
awarding the representative of this class the title of the unhappiest one, shall not have
scruples about awarding him the grave”8.

Iniciando a caracterização do mais infeliz, Kierkegaard afirma que o mais infeliz é aquele
cuja realização de consciência, cuja essência, jaz fora de si9. Ser infeliz é não estar presente em
si, mas isso pode corresponder a um ‘estar presente (no) futuro’ ou a um ‘estar presente (no)
passado’: respetivamente, ‘ser na esperança’ e ‘ser na lembrança’10. Para o autor, estes
estados não se configuram como infelizes em sentido estrito, porque efetivamente estão
presentes em si – ainda que no futuro ou passado, mas presentes –, e a condição de
infelicidade é a de estar ausente de si.

3
SV I 193
4
SV I 194
5
SV I 194
6
NdT 36
7
“Happy is the one who died in old age; happier is the one who died in youth; happiest is the one who
died at birth; happiest of all the one who was never born. But this is not the way it is; death is the
common fate of all human beings, and inasmuch as the unhappiest one has not been found, he must be
sought within these confines”, SV I 195
8
SV I 196
9
“The unhappy one is the person who in one way or another has his ideal, the substance of his life, the
plenitude of his consciousness, his essential nature, outside himself”, SV I 196
10
“There are the hoping and the recollecting individualities”, SV I 197
Manuel Ferreiro, nº 55448, FCSH-UNL, 2020/2021, Temas de Filosofia Contemporânea

Procurando definir melhor este ‘estar ausente de si’ como ‘ser infeliz’, Kierkegaard
analisa paralelamente o ‘ser na esperança’ e o ‘ser na lembrança’. Em relação ao primeiro, diz:

“When, as one who hopes (and consequently to that extent is unhappy), he is not
present to himself, he becomes unhappy in the stricter sense if the word. [...] If
[...] he cannot become present to himself in hope but loses his hope, then hopes
again, etc., then he is absent from himself, not merely in present but also in future
time, and thus we have a form of unhappiness.”11

Do mesmo modo, para o ‘ser na lembrança’, que também é um ‘estar ausente de si’ no
presente, só há correspondência com ‘ser infeliz’ em sentido estrito se o indivíduo estiver
continuamente ausente de si no passado. Por exemplo, o olhar de um idoso sobre a pureza da
infância de uma criança que o leva a procurar, repetidamente e em vão, um semelhante
momento de pureza na sua memória. Não está presente em si, no presente, porque se vira
para as memórias; não está presente em si no seu passado, porque a pureza desses momentos
não está lá: pertence a quem os vê de fora.

Comparando os dois tipos de ‘ausência de si’ (de infelicidade no sentido estrito), ‘ser na
esperança’ e ‘ser na lembrança’, Kierkegaard considera que a maior infelicidade está no
segundo. Para o autor, “The hoping individualities always have a more pleasant
disappointment.”12, possivelmente porque “future time is closer to the present than is the
past”13, e a distância (grau de ausência relativamente ao zero da presença) é um fator
determinante da infelicidade.

Em seguida, Kierkegaard analisa a possibilidade de combinação entre as duas formas de


ausência no sentido estrito:

“The only combination possible is one in which it is recollection that prevents him
from becoming present in his hope and it is hope that prevents him from
becoming present in his recollection. This is due, on the one hand, to his
continually hoping for that which should be recollected; his hope is continually
being disappointed, but he discovers that this disappointment occurs not because
his objective is pushed further ahead but because he is past his goal, because it
has already been experienced or should have been experienced and thus has
passed over into recollection. On the other hand, he is continually recollecting
that for which he should hope, because he has already encompassed the future in
thought, has already experienced it in thought, and he recollects what he has
experienced instead of hoping for it. Thus, what he is hoping for lies behind him;
what he recollects lies ahead of him.”14

Esta forma combinada é, para o autor, correspondente a uma maior infelicidade do que
cada uma das formas separadas. A ausência de si no passado, presente e futuro, o engano
temporal bidirecional tornam a pessoa mais infeliz. Kierkegaard nota ainda que esta pessoa

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SV I 197
12
SV I 198
13
SV I 197
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SV I 198-199
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goza da honra de ser considerada sã, sabendo que se tentasse explicar a alguém como as
coisas são para si, seria dada como louca15, e o próprio facto de isso não a tornar louca é o seu
grande problema. A pessoa vê-se lançada, só, num mundo que não a compreende; não morre
porque não viveu, não vive porque já está morto; não ama porque amor é estar (num)
presente; não tem paixão porque ao mesmo tempo que a tem, tem a paixão oposta a ela; não
tem tempo para nada, porque simplesmente não tem tempo (em si).

Depois desta análise, Kierkegaard observa os candidatos que se aproximam16. Uma


rapariga cujo amante lhe foi infiel – se ela o amou, que o lembre e que faça luto da perda;
Niobe, cujos filhos e esposo foram mortos de uma só vez – acabou, sem esperança, por se
transformar em pedra, em eterna lembrança da sua perda; Édipo e Antígona, aquele que
matou o seu pai e casou com a sua mãe e aquela que o acompanhou no seu exílio – que sejam
deixados na felicidade da presença na lembrança; Job, a quem o Senhor tirou, e tirou, e tirou,
até ter perdido tudo o que tinha – mas o que tinha tido poderá para sempre lembrar; o pai do
filho pródigo, que se sente a perder o que lhe é mais querido – a esperança de um dia voltar a
segurar o filho nos braços preenche-o; uma figura pálida, um jovem que desejara ser mártir e
subir aos céus, para acabar a renegar ao Senhor e a si – tornou-se um mártir, não como queria,
na cruz ou atirado às bestas, mas lentamente queimado vivo; uma rapariga cujo amante lhe foi
infiel, mas que dele não pode fazer luto, porque talvez nem sequer tenha sido infiel, mas que
dele também não pode ter esperança porque era um enigma – talvez ela o espere de dia, e
dele faça luto à noite, ou ao contrário. A nenhuma destas pessoas Kierkegaard atribui o título
de mais infeliz, ainda que a esta última proponha dar uma menção honrosa. O verdadeiro
merecedor é um outro candidato, um desconhecido:

“His brow is troubled, his knees are slack, and yet he leans on himself alone. He is
exhausted, and yet how full of energy; his eyes do not seem to have shed, but to
have drunk, many tears, and yet they flame with a fire that could consume the
whole world, but not a splinter of sorrow in his own breast; he is bowed down,
and yet his youth protends a long life; his lips smile at the world, which does not
understand him. [...] I hail you, great unknown, whose name I do not know; I hail
you with your title of honor: the unhappiest one.”17

Kierkegaard termina o texto honrando o mais infeliz dos infelizes, desejando-lhe que
continue a ser o mais infeliz ou, melhor dizendo, o mais feliz, “for this is indeed precisely a gift
of fortune that no one can give himself. See, language breaks down, and thought is confused,
for who indeed is the happiest but the unhappiest and who the unhappiest but the happiest,
and what is life but madness, and faith but foolishness, and hope but a staving off of the evil
day, and love but vinegar in the wound.”18 A noção de presença como condição de felicidade
parece, afinal, ser reconfigurada: a presença num tempo, seja passado, presente ou futuro,
surge como uma forma de ausência de si na medida em que a vida (igualmente passada,
presente ou futura) é loucura, e a verdadeira presença em si implica uma ausência de si no

15
“Ordinarily, he enjoys the honor of being regarded as being in his right mind, and yet he knows that if
he were to explain to a single person how it really is with him, he would be declared insane”, SV I 199
16
SV I 200-202
17
SV I 202-203
18
SV I 203
Manuel Ferreiro, nº 55448, FCSH-UNL, 2020/2021, Temas de Filosofia Contemporânea

passado, no presente e no futuro, na medida em que o olhar claro sobre os tempos exige um
afastamento deles. O mais infeliz (mais distante do seu passado, do seu presente e do seu
futuro) é assim o mais feliz (mais próximo de si), e o mais feliz (mais em contacto com a sua
realidade passada, presente ou futura) é o mais infeliz (mais distante de si próprio).

Condições da maior infelicidade


No texto de Kierkegaard são apresentadas condições para a determinação da pessoa
mais infeliz. Segue-se agora um levantamento das mesmas.

1ª condição: ser infeliz


A primeira condição é que seja infeliz:

“At that empty grave, we shall seek him, [...] the unhappy ones are drawn to the
West to that empty grave.” (SV I 194)

2ª condição: ser em dissociação


A segunda condição refere-se à dissociação relativamente a outras pessoas e aos
movimentos do mundo quotidiano:

“we who live ἀϕοϱισμένοι and segregati, as aphorisms in life, without association
with men, having no share in their griefs and their joys; we who are not
consonants in the clamor of life but are solitary birds of night” (SV I 194)

3ª condição: não temer a morte


A terceira condição é que não tema a morte:

“specifically excluded are the uninvited guests, all those who think that death is
the greatest calamity, who became unhappy because they feared death; for we
[...] do not fear death” (SV I 194)

4ª condição: estar ausente do presente


A quarta condição apresentada no texto é que o significado da sua vida esteja fora de si
e, por isso, se encontre ausente de si (no presente):

“The unhappy one is the person who in one way or another has his ideal, the
substance of his life, the plenitude of his consciousness, his essential nature,
ouside himself. The unhappy one is the person who is always absent from himself,
never present to himself.” (SV I 196)

5ª condição: estar ausente do passado e do futuro


A quinta condição refere-se à sua relação de ausência de si também, e
simultaneamente, no passado e futuro, ou seja, ausência de lembrança e de esperança:

“It is recollection that prevents him from becoming present in his hope and it is
hope that prevents him from becoming present in his recollection. This is due, on
the one hand, to his continually hoping for that which should be recollected [...].
On the other hand, he is recollecting that for which he should hope.” (SV I 198-
199)
Manuel Ferreiro, nº 55448, FCSH-UNL, 2020/2021, Temas de Filosofia Contemporânea

6ª condição: ser em inadequação


A sexta condição relaciona-se com a incompreensão que a rodeia e à dupla inadequação
da sua situação à vida, na medida em que a pessoa é tomada por sã quando não se sente
assim – sente que lhe é negada a sanidade – e por isso sente-se levada à loucura sem nunca lá
chegar – sente que lhe é negada também a insanidade:

“Ordinarily, he enjoys the honor of being regarded as being in his right mind, and
yet he knows that if he were to explain to a single person how it really is with him,
he would be declared insane. This is enough to drive one mad, and yet this does
not happen, and this is precisely his trouble.” (SV I 199)

7ª condição: estar distante da realização


A sétima condição prende-se com a relação de distanciamento temporal e vital
relativamente aos seus objetivos, à sua felicidade:

“He is continually very close to the goal, and at the same moment he is far from it;
he then discovers that what is making him unhappy now, because he has it or
because he is this way, is precisely what would have made him happy a few years
ago if he had had it, whereas he became unhappy because he did not have it.” (SV
I 199)

Fernando Pessoa, Bernardo Soares e o Livro do Desassossego

Notas Introdutórias
O Livro do Desassossego de Fernando Pessoa (assinada por Bernardo Soares) é uma obra
em fragmentos que retrata as observações, aspirações e sentimentos (ou a ausência deles) da
vida de Bernardo Soares. Numa obra que combina elementos de uma realidade imaginada
com elementos de uma realidade vivida, a fronteira entre ficção e verdade esbate-se; resta ao
leitor perder-se pelos caminhos solitários na companhia do autor, sem deixar nunca de sentir a
enorme distância que os separa da vida. Bernardo Soares, homem-obra, afigura-se assim como
um forte candidato ao epitáfio referido por Kierkegaard.

Na análise da obra é usada a numeração da edição online (disponível em


https://agrcanelas.edu.pt/blogs/biblioteca/files/2012/11/Livro-do-Desassossego-.pdf), embora
a consulta tenha sido feita principalmente na edição Tinta da China, por Jerónimo Pizarro, de
2016. Esta decisão deve-se ao facto de a numeração dos fragmentos ser muito variável de
edição para edição (como se pode observar no repositório virtual https://ldod.uc.pt), sendo os
excertos mais facilmente encontrados numa edição de livre acesso, que para além do mais
contém alguns fragmentos não disponíveis nalgumas das edições físicas.

O discurso melancólico
Na procura da resposta à pergunta “Terá sido Bernardo Soares ‘o mais infeliz’?”, é
necessário estabelecer o fundo melancólico do discurso do autor. A dissertação de mestrado
de César Marcos Casaroto Filho intitulada Da Pedra Etérea: O Discurso Melancólico Em Livro
Do Desassossego trata este tema. Nas suas palavras introdutórias, o autor da dissertação
Manuel Ferreiro, nº 55448, FCSH-UNL, 2020/2021, Temas de Filosofia Contemporânea

pretende “reconhecer na poesia de Soares uma obra melancólica.”19 Recorrendo à análise “da
estética melancólica, do discurso melancólico e da psicanálise”20, o autor conclui que o Livro
do Desassossego pode ser caracterizado como um discurso melancólico por um conjunto de
fatores:

“(1) o teor impessoal das proposições, em função de o sujeito não se considerar


um ser no sentido cartesiano do termo; (2) a recorrência das mesmas ideias por
meio de um discurso fragmentário (o que reflete na não historicidade do sujeito
melancólico); (3) o negativismo que permeia todo um discurso que não atinge o
seu cerne; (4) a atitude de resignação geral expressa pelo sujeito melancólico, em
decorrência da sua desvitalização; (5) o esvaziamento do discurso, já que, para o
sujeito, não existem representações na sua psique que possibilitem um sentido
para o que fala (daí a desvitalização do seu sujeito e, por conseguinte, a
desrealização do mundo); (6) o fato de se tratar de um discurso encerrado, de
maneira narcísica, nas reclamações verborrágicas do seu locutor, que está
unicamente voltado para as suas questões íntimas, já que alheio ao Outro e ao
mundo exterior; (7) o masoquismo que se evidencia nas reclamações e no
negativismo desse sujeito, já que, não se sentindo humano como os demais, e não
sabendo qual o objeto pelo qual procura, culpa a si mesmo por ser desse modo;
(8) as verdades plenas serem exprimidas por esse sujeito ausente de si mesmo
que, por função desse alheamento, sente-se detentor de verdades
intransponíveis” (Filho, p. 86)

De acordo com o problema que me proponho tratar, discuto em seguida o


enquadramento de Bernardo Soares nas condições descritas por Kierkegaard tendo como
ponto de partida o carácter profundamente melancólico do Livro do Desassossego, descrito
por César Marcos Casaroto Filho na sua dissertação.

Escolha dos fragmentos


Os fragmentos a que recorro para a fundamentação do enquadramento de Bernardo
Soares relativamente a cada uma das condições levantadas do texto de Kierkegaard não
correspondem a uma compilação exaustiva da obra, mas pretendo que sejam ilustrativos das
características de Bernardo Soares, homem-obra. Nesse sentido, foco a minha escolha na
segunda fase do Livro do Desassossego, considerada como sendo a parte que corresponde aos
fragmentos da autoria de Bernardo Soares, por oposição a uma primeira fase cuja autoria é
atribuída, de acordo com diferentes autores, a Fernando Pessoa ou a Vicente Guedes.

Enquadramento na análise de Kierkegaard


1ª condição: ser infeliz
“A miséria da minha condição não é estorvada por estas palavras conjugadas, com
que formo, pouco a pouco, o meu livro casual e meditado. [...]” (LdD 13)

“[...] Eu não sou pessimista, sou triste.” (LdD 127)

19
Filho, p. 8
20
Filho, p.8
Manuel Ferreiro, nº 55448, FCSH-UNL, 2020/2021, Temas de Filosofia Contemporânea

“[...] Agrada-me, mais à imaginação que aos sentidos, a tristeza dispersa que está
comigo. [...]” (LdD 181)

“Prouvera aos deuses, meu coração triste, que o Destino tivesse um sentido! [...]”
(LdD 186)

Presente ao longo de toda a obra está a ideia de uma condição, permanente, de miséria
e tristeza inerente à própria forma como Bernardo Soares se (des)encontra a si mesmo na
vida. Não apenas sente tristeza – uma tristeza causada – mas sente a vida através da tristeza.
Bernardo Soares não está infeliz: é infeliz.

2ª condição: ser em dissociação


“[...] Ver é estar distante. Ver claro é parar. Analisar é ser estrangeiro. Toda a
gente passa sem roçar por mim. Tenho só ar à minha volta. Sinto-me tão isolado
que sinto a distância entre mim e o meu fato. Sou uma criança, com uma
palmatória mal acesa, que atravessa, de camisa de noite, uma grande casa
deserta. Vivem sombras que me cercam – só sombras, filhas dos móveis hirtos e
da luz que me acompanha. Elas me rondam aqui ao sol, mas são gente.” (LdD 83)

“Tudo quanto não é a minha alma é para mim, por mais que eu queira que o não
seja, não mais que cenário e decoração. Um homem, ainda que eu possa
reconhecer pelo pensamento que ele é um ente vivo como eu, teve sempre, para
o que em mim, por me ser involuntário, é verdadeiramente eu, menos
importância que uma árvore, se a árvore é mais bela. Por isso senti sempre os
movimentos humanos – as grandes tragédias coletivas da história ou do que dela
fazem – como frisos coloridos, vazios da alma dos que passam neles. [...]” (LdD
165)

“Aquilo que, creio, produz em mim o sentimento profundo, em que vivo, de


incongruência com os outros, é que a maioria pensa com a sensibilidade, e eu
sinto com o pensamento. [...] Quanto mais diferente de mim alguém é, mais real
me parece, porque menos depende da minha subjetividade. E é por isso que o
meu estudo atento e constante é essa mesma humanidade vulgar que repugno e
de quem disto. Amo-a porque a odeio. Gosto de vê-la porque detesto senti-la. A
paisagem, tão admirável como quadro, é em geral incómoda como leito. ” (LdD
71)

Bernardo Soares vive à distância do que o rodeia; tudo o que vê se encontra para lá do
isolamento em que se encontra. As situações do mundo, as pessoas do mundo, são para o
autor não mais do que mera representação, indiferente e vazia; a incongruência em que vive
relativamente aos outros é representativa da incongruência com vê a sua relação com a (sua
própria) humanidade. Bernardo Soares encontra-se – vive-se – em dissociação.

3ª condição: não temer a morte


“Sinto-me às vezes tocado, não sei porquê, de um prenúncio de morte... Ou seja,
uma vaga doença, que se não materializa em dor e por isso tende a espiritualizar-
se em fim, ou seja, um cansaço que quer um sono tão profundo que o dormir lhe
Manuel Ferreiro, nº 55448, FCSH-UNL, 2020/2021, Temas de Filosofia Contemporânea

não basta — o certo é que sinto como se, no fim de um piorar de doente, por fim
largasse sem violência ou saudade as mãos débeis de sobre a colcha sentida.

Considero então que coisa é esta a que chamamos morte. Não quero dizer o
mistério da morte, que não penetro, mas a sensação física de cessar de viver.”
(LdD 40)

Bernardo Soares sente, por vezes, prenúncios de morte, o que o leva a sentir-se a partir
“sem violência ou saudade”. Se o fizesse com medo, agarrar-se-ia com força à “colcha
sentida”, de esperança, ou choraria por se perder a si, de saudade. Neste fragmento não
parece indicar que tema a morte.

“Contento-me com a minha cela ter vidraças por dentro das grades, e escrevo nos
vidros, no pó do necessário, o meu nome em letras grandes, assinatura quotidiana
da minha escritura com a morte.

Com a morte? Não, nem com a morte. Quem vive como eu não morre: acaba,
murcha, desvegeta-se. O lugar onde esteve fica sem ele ali estar, a rua por onde
andava fica sem ele lá ser visto, a casa onde morava é habitada por não-ele. [...]”
(LdD 42)

Nota-se aqui uma certa indiferença relativamente à morte. Por um lado, o


contentamento com a banalidade de assinar quotidianamente nos vidros da cela a escritura
com a morte. Por outro, sendo verdade que a “escritura” com a morte toda a gente tem,
Bernardo Soares contenta-se com a marca no mundo que é escrever o seu nome em letras
grandes no vidro, sem procurar fazer da sua vida um algo mais antes que seja tarde. O autor
diz ainda que pessoas como ele não morrem, mas deixam simplesmente de estar: tudo fica
apenas sem ele. A forma distanciada com que Soares escreve aqui sugere-se como uma forma
de imperturbabilidade relativamente à (sua) morte. Há, no entanto, instâncias de contradição
– como é, aliás, recorrente haver na obra – deste posicionamento:

“[...] Uma espécie de anteneurose do que serei quando já não for gela-me corpo
e alma. Uma como que lembrança da minha morte futura arrepia-me de dentro.
Numa névoa de intuição, sinto-me, matéria morta, caído na chuva, gemido pelo
vento. E o frio do que não sentirei morde o coração atual. [...]” (LdD 69)

Neste excerto, Soares descreve aquilo que sente em relação ao que será “quando já não
for” como algo que lhe gela corpo e alma. Se por um lado se dá conta da dor que lhe traz esse
pensamento, aquilo a que se refere não é de facto à sua morte, mas uma lembrança do futuro
que, não sendo propriamente sua, resulta de um sentir com o pensamento de algo que não lhe
pertence. Esse ser “quando já não for” não é a sua morte, mas algo de contínuo que a
atravessa. O que dói não parece afinal ser a morte, mas a continuação num ser-para-além-da-
morte.

“E eu, que odeio a vida com timidez, temo a morte com fascinação. [...]” (LdD 168)
Manuel Ferreiro, nº 55448, FCSH-UNL, 2020/2021, Temas de Filosofia Contemporânea

É isto, julgo eu, que está também presente neste último excerto, quando o autor diz
temer a morte “com fascinação”: Soares teme esta passagem ao para-além-da-morte, mas não
deixa de sentir a atração, curiosidade, interesse nela.

Soares teme a morte (deixar de ser) na sua possibilidade de ser não-morte (passar a um
ser-para-além-da-morte). Quanto à sua morte em si, Bernardo Soares parece ser indiferente,
dando conta de que simplesmente largará “sem violência ou saudade as mãos débeis de sobre
a colcha sentida”.

4ª condição: estar ausente do presente


“A vida prejudica a expressão da vida. Se eu vivesse um grande amor nunca o
poderia descrever. Eu próprio não sei se este eu, que vos exponho, por estas
coleantes páginas fora, realmente existe ou é apenas um conceito estético e falso
que fiz de mim próprio. Sim, é assim.

Vivo-me esteticamente em outro. Esculpi a minha vida como a uma estátua de


matéria alheia a meu ser. Às vezes não me reconheço, tão exterior me pus a mim,
e tão de modo puramente artístico empreguei a minha consciência de mim
próprio. Quem sou por detrás desta irrealidade? Não sei. Devo ser alguém. E se
não busco viver, agir, sentir é — crede-me bem — para não perturbar as linhas
feitas da minha personalidade suposta. Quero ser tal qual quis ser e não sou.”
(LdD 114)

Em constante busca da expressão da vida, Bernardo Soares coloca-se do lado de fora da


vida, do lado de fora de si para que possa ver-se, sonhar-se, criar-se, a ponto de não saber
mais se aquilo que expressa da vida é de facto aquilo que vê ou apenas aquilo que quer ver,
sem querer. Para o autor, ‘ser-se’ é ser diferente de si, de tal modo que diz:

“[...] Há muito tempo que não existo. Estou sossegadíssimo. Ninguém me


distingue de quem sou. [...] Há muito tempo que não sou eu.” (LdD 139)

Não ser distinguido de quem é mostra-se ser marca de uma ausência de identificação
entre o próprio autor e quem ele é. Bernardo Soares existe – ou, melhor, não existe – ausente
do seu presente. De novo, outros fragmentos parecem sugerir contradição, como se pode ver
em:

“Vivo sempre no presente. [...] Breve sombra escura de uma árvore citadina, leve
som de água caindo no tanque triste, verde da relva regular — jardim público ao
quase crepúsculo -, sois, neste momento, o universo inteiro para mim, porque
sois o conteúdo pleno da minha sensação consciente. Não quero mais da vida do
que senti-la perder-se nestas tardes imprevistas, ao som de crianças alheias que
brincam nestes jardins engradados pela melancolia das ruas que os cercam, e
copados, para além dos ramos altos das árvores, pelo céu velho onde as estrelas
recomeçam.” (LdD 100)

No entanto, esta presença em objetos da perceção é sempre externalizante de si:


Bernardo Soares procura, nas coisas, formas de se distanciar de si, como aliás escreve neste
outro fragmento:
Manuel Ferreiro, nº 55448, FCSH-UNL, 2020/2021, Temas de Filosofia Contemporânea

“[...] A razão porque tantas vezes interrompo um pensamento com um trecho de


paisagem, que de algum modo se integra no esquema, real ou suposto, das
minhas impressões, é que essa paisagem é uma porta por onde fujo ao
conhecimento da minha impotência criadora . Tenho a necessidade, no meio das
conversas comigo que formam as palavras deste livro, de falar de repente com
outra pessoa, e dirijo-me à luz que paira, como agora, sobre os telhados das casas,
que parecem molhados de tê-la de lado; ao agitar brando das árvores altas na
encosta citadina, que parecem perto, numa possibilidade de desabamento mudo;
aos cartazes sobrepostos das casas ingremadas, com janelas por letras onde o sol
morto doira goma húmida. [...]” (LdD 152)

Os momentos em que Bernardo Soares se dedica ao presente são na maior parte das
vezes preenchidos por um presente que lhe é externo, deixando-se a si, e ao seu presente, de
fora da sua consciência.

5ª condição: estar ausente do passado e do futuro


O autor encontra-se em constante rompimento com o passado, em perpétua ausência
dele:

“Viver é ser outro. Nem sentir é possível se hoje se sente como ontem se sentiu:
sentir hoje o mesmo que ontem não é sentir — é lembrar hoje o que se sentiu
ontem, ser hoje o cadáver vivo do que ontem foi a vida perdida.

Apagar tudo do quadro de um dia para o outro, ser novo com cada nova
madrugada, numa revirgindade perpétua da emoção — isto, e só isto, vale a pena
ser ou ter, para ser ou ter o que imperfeitamente somos. [...] Amanhã o que for
será outra coisa, e o que eu vir será visto por olhos recompostos, cheios de uma
nova visão. [...]” (LdD 94)

Por outro lado, Bernardo Soares não parece virar-se, como Kierkegaard sugeriu ser uma
reação à perda do ‘ser em lembrança’, para uma atitude de esperança. Soares diz, aliás:

“[...] Um tédio que inclui a antecipação só de mais tédio; a pena, já, de amanhã
ter pena de ter tido pena hoje — grandes emaranhamentos sem utilidade nem
verdade, grandes emaranhamentos... [...]” (LdD 14)

De facto, o fragmento 100, anteriormente citado, contém expressamente resposta a


este ponto.

“Vivo sempre no presente. O futuro, não o conheço. O passado, já o não tenho.


Pesa-me um como a possibilidade de tudo, o outro como a realidade de nada.
Não tenho esperanças nem saudades. Conhecendo o que tem sido a minha vida
até hoje — tantas vezes e em tanto o contrário do que eu a desejara -, que posso
presumir da minha vida de amanhã senão que será o que não presumo, o que não
quero, o que me acontece de fora, até através da minha vontade? Nem tenho
nada no meu passado que relembre com o desejo inútil de o repetir. Nunca fui
senão um vestígio e um simulacro de mim. O meu passado é tudo quanto não
consegui ser. [...]” (LdD 100)
Manuel Ferreiro, nº 55448, FCSH-UNL, 2020/2021, Temas de Filosofia Contemporânea

Se por um lado é a lembrança do passado que o impede de ter esperança ou desejo


futuro, o próprio passado é determinado pelas esperanças frustradas. Bernardo Soares está
duplamente e biunivocamente ausente do ‘ser na esperança’ e do ‘ser na lembrança’.

6ª condição: ser em inadequação


“Aquilo que, creio, produz em mim o sentimento profundo, em que vivo, de
incongruência com os outros, é que a maioria pensa com a sensibilidade, e eu
sinto com o pensamento.

Para o homem vulgar, sentir é viver e pensar é saber viver. Para mim, pensar é
viver e sentir não é mais que o alimento de pensar. [...]

Quanto mais diferente de mim alguém é, mais real me parece, porque menos
depende da minha subjetividade. E é por isso que o meu estudo atento e
constante é essa mesma humanidade vulgar que repugno e de quem disto. Amo-a
porque a odeio. Gosto de vê-la porque detesto senti-la. A paisagem, tão admirável
como quadro, é em geral incómoda como leito.” (LdD 71)

Bernardo Soares sente-se diferente dos outros pela forma como (pensa que) os outros
vivem. É esta diferença que observa que o faz sentir estranho, não só a si, mas aos outros e ao
mundo que o rodeia. Vê, também nos outros, sinais da sua loucura:

“Tendo visto com que lucidez e coerência lógica certos loucos justificam, a si
próprios e aos outros, as suas ideias delirantes, perdi para sempre a segura
certeza da lucidez da minha lucidez.” (LdD 430)

No meio da incongruência e do distanciamento relativamente aos outros, Bernardo


Soares toma-se ao mesmo tempo como lúcido e como louco; e não tem forma de reconciliar a
lucidez da sua vida sonhada com a incongruência e a loucura do seu modo de ser.

7ª condição: estar distante da realização


“[...] Quantas vezes, contudo, não anseio visualmente por esta paz de onde quase
fugiria agora, se fosse fácil ou decente! Quantas vezes julgo crer — lá em baixo,
entre as ruas estreitas de casas altas — que a paz, a prosa, o definitivo estariam
antes aqui, entre as coisas naturais, que ali onde o pano de mesa da civilização faz
esquecer o pinho já pintado em que assenta! E, agora, aqui, sentindo-me
saudável, cansado a bem, estou intranquilo, estou preso, estou saudoso. [...]

A artificialidade é a maneira de gozar a naturalidade. O que gozei destes campos


vastos, gozei-o porque aqui não vivo. Não sente a liberdade quem nunca viveu
constrangido. [...]” (LdD 50)

A paz, a saúde, o descanso que Soares deseja nos seus dias passados no escritório da
Baixa são, agora que os tem, uma fonte de infelicidade exatamente porque os tem: o gozo que
tem do campo (das “coisas naturais”) tem-no Bernardo Soares por não estar nele, e estar nele
impede-o de gozar a naturalidade. O desejar o distante, quando distante, e o recusar o mesmo
quando próximo é algo que deixa o autor em permanente distanciamento – ainda que próximo
Manuel Ferreiro, nº 55448, FCSH-UNL, 2020/2021, Temas de Filosofia Contemporânea

– do seu desejo, do seu objetivo. A distância entre Soares e o seu objetivo – e, por isso, entre si
e a sua vida – é tornada talvez mais clara na seguinte passagem:

“[...] Entre mim e a vida há um vidro ténue. Por mais nitidamente que eu veja e
compreenda a vida, eu não lhe posso tocar. [...]” (LdD 80)

Tocar a vida, e ser tocado pela vida: algo que lhe está invisivelmente vedado. Como um
Tântalo, Bernardo Soares suspira vaziamente no deambular pela clareira (fora) da vida em que
está enclausurado.

Conclusão
Bernardo Soares, homem-obra contraditório, fragmentado e fragmentário, apresenta-se
melancólico ao longo de todos os fragmentos. Na sua oposição interna, deseja o que não
deseja porque o não deseja, procura a distância do que quer mais próximo, vê-se para lá do
que não foi e aquém do que será. As condições levantadas a partir do texto de Kierkegaard
são, uma por uma, cumpridas – de forma mais ou menos clara – pelo heterónimo de Fernando
Pessoa.

“For there he stands, the envoy from the kingdom of sighs, the chosen favorite of
suffering, the apostle of grief, the silent friend of pain, the unhappy lover of
recollection, confused in his recollection by the light of hope, frustrated in his
hope by the ghosts of recollection. His brow is troubled, his knees are slack, and
yet he leans on himself alone. He is exhausted, and yet how full of energy; his
eyes do not seem to have shed, but to have drunk, many tears, and yet they flame
with a fire that could consume the whole world, but not a splinter of sorrow in his
own breast; he is bowed down, and yet his youth protends a long life; his lips
smile at the world, which does not understand him. Arise, dear
Συμπαϱανεϰϱώμενοι; bow down, you witnesses of sorrow, in this solemn hour. I
hail you, great unknown, whose name I do not know; I hail you with your title of
honor: the unhappiest one.” (SV I 202-203)

Bernardo Soares, que sofre a cada página de história da sua vida, perdido na esperança
do passado, perdido na lembrança do futuro; vergado por uma vida inteira de solidão,
sustenta-se apenas nessa mesma solidão; cansa-se com tudo, até com o que não o cansa, e
ainda assim não pára de escrever, revelando a sua imensa energia criativa; a sua face
embebida em lágrimas que ficaram para sempre por chorar, sem que pretenda alguma vez
vingar-se do mundo por elas; sente-se velho, “só para ter o prazer de se sentir rejuvenescer”21;
sorri, ainda que por vezes guarde para si os sorrisos, sem que o mundo o compreenda.
Bernardo Soares pertence, julgo que com poucas dúvidas, ao grupo dos mais infelizes. Se
Kierkegaard pudesse reunir de novo todos os Symparanecromenoi talvez fosse possível
determinar se Bernardo Soares era o melhor dos seus representantes, mas penso que este
heterónimo de Pessoa será para sempre recordado como um dos mais aptos candidatos.

21
LdD 144
Manuel Ferreiro, nº 55448, FCSH-UNL, 2020/2021, Temas de Filosofia Contemporânea

Bibliografia
(NdT: Nascimento da Tragédia)
NIETZSCHE, Friedrich; Tradução, notas e posfácio de J. Guinsburg (1992). O Nascimento
e a Tragédia ou Helenismo e Pessimismo 2.ª ed., 3.ª reimp. ed. São Paulo: Companhia
das Letras. p. 36

(LdD: Livro do Desassossego)


PESSOA, Fernando; Livro do Desassossego; edição virtual disponível em
https://agrcanelas.edu.pt/blogs/biblioteca/files/2012/11/Livro-do-Desassossego-.pdf

(SV: Søren Kierkegaards Samlede Værker)


KIERKEGAARD, Søren; Søren Kierkegaards Samlede Værker

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