Stalin Triunfo e Tragédia - Dmitri Volkogonov
Stalin Triunfo e Tragédia - Dmitri Volkogonov
Stalin Triunfo e Tragédia - Dmitri Volkogonov
Título original russo: Triyumf i Tragediya: politicheskii portret I.V. Stalina Caderno de imagens: As ilustrações
pertencem ao arquivo do autor.
V893s
Volkogonov, Dmitri, 1928-1995
Stalin: triunfo e tragédia / Dmitri Volkogonov; tradução: Joubert de Oliveira Brízida. – 2. ed. – Rio
de Janeiro:Nova Fronteira, 2017.
Recurso digital
17-39583
CDD 923.1
CDU 929:320
SUMÁRIO
1° VOLUME
1 – Um retrato
2 – Fevereiro, o prólogo
3 – Os atores coadjuvantes
4 – O levante
5 – Salva por sorte
6 – Guerra civil
7 – Camaradas em armas
8 – O secretário-geral
9 – A carta ao Congresso
10 – Stalin ou Trotsky?
11 – As raízes da tragédia
PARTE III: OPÇÃO E LUTA
12 – Construindo o Socialismo
13 – Leninismo para as massas
14 – Desalinho intelectual
15 – A derrota do “Inimigo nº 1”
16 – A vida particular do líder
17 – O destino do campo
18 – O drama de Bukharin
19 – Ditadura e democracia
20 – O Congresso dos Vitoriosos
21 – Stalin e Kirov
22 – Personalidade dominante
23 – O intelecto de Stalin
24 – Cesarismo
25 – À sombra do chefe
26 – O fantasma de Trotsky
27 – Um vencedor popular
28 – Inimigos do povo
29 – Farsa política
30 – Quadros no banco dos réus
31 – A “trama” Tukhachevsky
32 – O monstro stalinista
33 – Culpa sem perdão
2° VOLUME
34 – Manobras políticas
35 – Reviravolta
36 – Stalin e o Exército
37 – O arsenal de defesa
38 – O assassínio do exilado
39 – Diplomacia secreta
40 – Omissões fatais
41 – Choque paralisante
42 – Tempos cruéis
43 – Desastres e esperanças
44 – O cativeiro e o general Vlasov
45 – O quartel-general
46 – Amanhecer em Stalingrado
47 – O comandante e seus generais
48 – Ideias de um estrategista
49 – Stalin e os Aliados
50 – O preço da vitória
51 – Cortina de segredos
52 – Um acesso de violência
53 – O líder envelhece
54 – Ventos gélidos
55 – Anomalia histórica
56 – Dogmas mumificados
57 – Burocracia absoluta
58 – Deuses terrenos são mortais
59 – Derrota pela História
Cronologia
Notas
Nota do tradutor inglês
É praticamente impossível transpor com coerência todos os nomes russos, a não ser
com uma variedade de anotações especiais que exigiriam seu próprio glossário.
Parece muito pedante insistir com Aleksandr ou Trotskii (ou Trockij, ou Trotskiy),
quando Alexander e Trotsky são facilmente reconhecíveis. As referências
bibliográficas, no entanto, aparecem como normalmente encontradas nos catálogos
das bibliotecas, para garantir uma identificação correta. O nome do senhor objeto
deste livro apresenta um problema diferente de transliteração. A forma inglesa do
primeiro nome de Stalin é Joseph, e “Joseph Stalin” é bastante comum. Todavia,
como ele é aqui frequentemente mencionado na forma totalmente russa do primeiro
nome seguido do patronímico, considerou-se que “Joseph Vissarionovich” ficaria
estranho e que “Iosef Vissarionovich” teria o mérito de maior precisão, além de se
adaptar melhor às iniciais “I.V.”, com as quais muitas vezes Stalin rubricava
documentos. Portanto, optamos por Iosef.
Os revolucionários profissionais normalmente adotavam codinomes, ou
“apelidos de partido”, em geral ao assinar pela primeira vez publicações ilegais, ou
em seguida à sua primeira prisão ou primeiro interrogatório pela polícia secreta
czarista. Assim, Vladimir Ulyanov adotou Lenin, derivado do nome do rio Lena, da
Sibéria, onde esteve exilado, enquanto Leon Bronshtein assumiu o nome de um de
seus guardas na prisão e virou Trotsky.
Parece que alguns adotaram nomes para criar imagem: por exemplo, Vyacheslav
Skyrabin acabou Molotov, o “Martelo”, ao passo que Lev Rozenfeld tornou-se
Kamenev, “Homem de Pedra”, e Iosef Djugashvili escolheu Stalin, o “Homem de
Aço”. Outros simplesmente buscaram o anonimato com nomes russos comuns,
enquanto os judeus, que eram desproporcionalmente numerosos no movimento,
encontraram no pseudônimo russo a vantagem adicional do anonimato étnico, em
face da força policial antissemítica. Quando é apropriado, mencionamos o nome
real ou original.
Prefácio
O autor expressa profundo agradecimento àqueles colegas que lhe deram irrestrita
ajuda na preparação deste livro, muito especialmente A.P. Balashov, F.D. Bobkov,
G.A. Volkogonova, I.Ya. Vyrodov, N.N. Yefimov, I.P. Kalinina, Yu.I. Korablev,
B.I. Kaptelov, E.I. Katsman, N.G. Fokina e G.G. Chernobrovkin.
Introdução
Stalin morria. Deitado no assoalho da sala de jantar de sua dacha em Kuntsevo, ele
desistira de tentar levantar-se e apenas erguia a mão esquerda, de tempos em
tempos, como se pedindo por socorro. Seus olhos entreabertos não podiam ocultar
o desespero com que fitava a porta. Debilmente, seus lábios formavam palavras
silenciosas. Algumas horas decorreram desde o derrame, mas não havia ninguém ao
seu lado. Finalmente, alarmados com a falta de qualquer sinal de vida no interior da
casa, seus seguranças entraram cautelosamente na sala de jantar. Não estavam
autorizados a chamar um médico de imediato. Uma das mais poderosas figuras da
história da humanidade não pôde contar com eles para que o fizessem, já que era
necessária a intervenção pessoal de Beria. Quando, afinal, Beria foi encontrado,
achou que Stalin apenas pegara num sono profundo depois de um pesado e tardio
jantar, e só depois de dez a doze horas médicos aterrorizados foram trazidos para
examinar o líder moribundo.
Foi um modo profundamente simbólico e por demais irônico de morrer. O
líder, em sua agonia de morte de muitas horas, não foi capaz de convocar ajuda
quando dela precisou. E aquele era o homem, o semideus, que com poucas palavras
poderia enviar milhões de pessoas de uma extremidade a outra do país. No
momento, era refém da “ordem” burocrática que ele mesmo aperfeiçoara.
A linha invisível entre o ser e o não ser só pode ser cruzada numa direção.
Mesmo os líderes não podem retroceder. Saberia Stalin que enfrentava não só a
morte física, mas também a política? Para seus contemporâneos, sua morte era uma
grande tragédia. Eles não achavam então que aquele homem encarava as mortes de
milhões como nada mais que um segredo de Estado. A morte deixou para seus
sucessores a interminável tarefa de tentar entender o que ele tinha criado, e de
discutir acirradamente o “enigma” do próprio Stalin. A morte não o isentou. Todas
as suas ações e seus crimes seriam submetidos ao julgamento da história. Os mitos
desmoronam por si mesmos, mas só podem ser totalmente banidos pela verdade.
Apenas Stalin sabia toda a verdade sobre ele mesmo. Gostava das coisas em preto
e branco, porém fez de tudo para assegurar que sua história de vida fosse contada em
cores vivas. Não sei se ele tinha consciência da antiga lei romana do “julgamento da
memória” segundo a qual qualquer coisa que não fosse do gosto de determinado
imperador tinha de ser relegada ao esquecimento pelos historiadores. De qualquer
forma, essa lei meramente sublinhava a inutilidade de se tentar arregimentar a
memória humana. A lembrança vive (ou morre) segundo leis muito diferentes. A
história vai sendo continuamente feita. Ela não tem rascunhos. Só na mente pode-se
“rebobinar” o passado, como um filme. Stalin entendia isso e se esforçava para
garantir que não ficassem imagens desnecessárias na crônica. Sabia-se sobre ele
apenas aquilo que ele queria que se soubesse.
Ao perder Lenin num momento crucial, quando foi necessário tomar decisões
históricas sobre os métodos a empregar para construir o socialismo, o partido
comunista entrou numa fase de ferrenha luta interna. A velha guarda leninista não
estava suficientemente alerta para o perigo que Stalin representava tanto para o
partido quanto para o Estado ainda inseguro. Isso levou os novos administradores
políticos a medidas crescentemente punitivas, em vez de construtivas. Sabemos
agora que Stalin não seria o objeto de uma biografia como esta se não tivesse
apelado para a força como instrumento decisivo na consecução de seus planos
políticos, sociais e econômicos. A mudança de direção política, que começou no
final dos anos 1920 e se tornou marcantemente aguda depois do XVII Congresso do
Partido Comunista, de 1934, resultou num período de anos amargos, durante o
qual apenas a grande carga de energia social gerada pela Revolução de Outubro e a
lealdade do partido ao leninismo impediram que o povo duvidasse dos valores
socialistas e interrompesse o processo de reestruturação do mundo começado por
Lenin. Portanto, não surpreende que a avaliação da personalidade de Stalin tenha
sofrido alteração importante à medida que a verdade foi emergindo.
Hoje, a maioria, quando pensa sobre Stalin, lembra-se do ano trágico de 1937
com sua repressão e o esmagamento dos valores humanos. Mas, para ser preciso,
deve-se dizer que aquilo que pensamos ser 1937 teve início, na realidade, em 1º de
dezembro de 1934, quando Kirov foi assassinado, e seus contornos podem ser
retraçados ainda mais cedo, ao final dos anos 1920. Com o conhecimento de Stalin,
começou a formar-se um monstruoso abcesso de ilegalidade. Não pode haver perdão
para os responsáveis, mas devemos também lembrar que naqueles anos foram
construídos a usina hidrelétrica do Dnieper e o complexo metalúrgico de
Magnitogorsk, e Stakhanov e assemelhados cumpriam suas tarefas. Foi quando o
patriotismo do povo soviético cresceu chegando ao píncaro na Grande Guerra
Patriótica.* Por isso, quando condenamos Stalin por seus crimes, é política e
intelectualmente errado, e moralmente desonesto, negar, em princípio, as conquistas
do sistema e suas possibilidades. Tais conquistas não foram conseguidas graças ao
modo de pensar e agir de Stalin, mas a despeito dele. Mais se poderia alcançar se
fossem aplicados métodos mais democráticos. Ao condenar Stalin e seus cúmplices,
não devemos estender mecanicamente nosso julgamento aos milhões de pessoas
comuns cuja fé na sinceridade dos ideais da revolução permaneceu inabalável.
Durante toda a vida, Stalin tentou (com algum sucesso) transformar uma de suas
fraquezas em virtude. Já durante a revolução, quando tinha que visitar uma fábrica
ou um regimento, ou comparecer a um comício na rua, ou misturar-se com a
multidão, experimentava uma sensação de insegurança e medo que, com o tempo,
aprendeu a esconder. Não gostava de falar para plateias, nem era bom nisso.
Conquanto seu estilo fosse simples e claro, sem voos fantasiosos, frases de efeito ou
poses teatrais, o pesado sotaque georgiano e a forma monótona de se expressar
tornavam seus discursos inexpressivos. Não era de admirar, pois, que ele falasse
menos em comícios e manifestações do que qualquer outro membro do entourage
de Lenin. Preferia redigir resoluções e instruções, ou escrever cartas ou relatórios
para jornais sobre eventos políticos. Era escritor medíocre de argumentação tão
razoavelmente coerente quanto invariavelmente categórica. Seus artigos para jornais
são em branco ou preto, sem tons intermediários. A clareza latina de seus artigos
francos foi, talvez, uma de suas qualidades atraentes.
Mais tarde, Stalin acostumou-se com a tribuna, mas em circunstâncias
diferentes. A plateia ouvia agora o seu tom calmo de voz em respeitoso silêncio à
espera de cortá-lo com ensurdecedores aplausos. Seus discursos se revestiam então da
natureza dos sermões de pároco. Stalin adotou a regra de não entrar em contato
direto com as massas. Com raras exceções, jamais visitou uma fábrica ou uma
fazenda coletiva, jamais viajou a qualquer das repúblicas, ou foi ao front durante a
guerra. Sua voz ressoaria de tempos em tempos do vértice da pirâmide, enquanto
milhões ouviam em santificado terror na sua base. Transformou o distanciamento
num atributo de culto. Tenhamos sempre em mente que foi um mestre em fazer
passar seus erros, omissões e crimes como conquistas, sucessos, visão, sabedoria e
constante preocupação com o povo.
*
Meu trabalho baseia-se em material e documentos do partido que estão sob guardas
diversas: os Arquivos Centrais do Partido, os Arquivos da Corte Suprema da URSS,
os Arquivos Centrais do Exército, os Arquivos do Ministério da Defesa, os Arquivos
do Estado-Maior das Forças Armadas, os arquivos de diversos museus, e outros [cf.
Notas]. Sobre o aspecto militar das atividades de Stalin, tomei conhecimento de
muitos documentos interessantes, originais e nunca publicados, do Ministério da
Defesa. Um exame superficial das decisões de Stalin, dos documentos do Exército e
da lembrança de seus contemporâneos nos diz que muitas vezes ele não acreditava
no que advogava. Por exemplo, lendo-se as minutas de sentenças do Colégio Militar
da Suprema Corte no caso dos generais D.P. Pavlov, V.E. Klimovskikh, A.T.
Grigoryev e A.A. Korobkov, acusados de envolvimento numa “conspiração
antissoviética e num colapso intencional do comando do front ocidental”, Stalin
rabiscou: “Nada deste absurdo.” Cortou as expressões “conspiração antissoviética” e
“objetivos conspirativos” e acrescentou em seu lugar: “mostraram covardia, não
tiveram autoridade e eficiência, permitiram a quebra da cadeia de comando”.
Embora a acusação continuasse injusta, e as sentenças proferidas em 22 de junho de
1941 fossem rigorosas ao extremo, Stalin não mais achou apropriado o velho jogo
de “conspiradores”, em face do perigo mortal para si e para o país.
Ao passar os olhos sobre as ordens de Stalin, escritas em traço firme e legível, em
geral com lápis azul ou vermelho, perguntei-me onde estariam as fontes mais
profundas de sua irracionalidade, aspereza e astúcia. No copioso alimento da
educação religiosa dogmática que recebeu nos primórdios da vida? Ou na dolorosa
sensação de inadequação intelectual que sentia nos congressos do partido, em
Londres e Estocolmo, sentado a ouvir os brilhantes discursos de Lenin, Plekhanov,
Axelrod, Dan e Martov? Proviria sua irracionalidade do amargor causado pelas sete
prisões e cinco fugas por que passou antes de outubro de 1917? A partir dos 19 anos
de idade, nada mais fez a não ser viver na clandestinidade do movimento,
cumprindo instruções dos comitês do partido, sendo preso, obtendo passaportes
falsos e mudando-se de um lugar para outro. Nunca ficou muito tempo na prisão,
sempre fugia e voltava à clandestinidade. No entanto, a ideia de escapar para o
exterior nunca lhe ocorreu.
Meu trabalho neste livro foi muito facilitado por matérias do Pravda de um
período de trinta anos, bem como de jornais como Bolshevik, Politrabotnik
(Trabalhador Político) e muitos outros que eram publicados nos anos 1920. No
exterior, existe abundante literatura sobre Stalin. Alguns dos livros – por exemplo, as
obras de Giuseppe Boffa, Louis Aragon e Anna Louisa Strong – dão uma imagem
bastante acurada. Há também dezenas de trabalhos publicados para desacreditar –
com a “ajuda” de Stalin – a própria noção de socialismo. Sem perceber, Stalin fez
mais para sujar o nome do socialismo que qualquer livro de Leonard Schapiro, Isaac
Deutscher, Robert Tucker ou Robert Conquest. De especial interesse é o
testemunho de estadistas estrangeiros que conheceram Stalin, por exemplo, Franklin
D. Roosevelt, Winston Churchill, Charles de Gaulle, Mao Tse-tung, Enver Hoxha
e, é claro, as memórias de sua filha, Svetlana Alliluyeva.
Estudei os escritos de opositores de Stalin dentro do país, como Trotsky,
Zinoviev, Kamenev, Bukharin, Rykov, Tomsky e outros, todos eles camaradas em
armas de Lenin. Nenhum poderia se considerar protegido de Stalin, diferentemente
de Kaganovich, Molotov, Voroshilov, Malenkov, Zhdanov e outros que cresceram
para tomar o lugar dos primeiros. Nisso, Stalin seguiu a velha regra dos ditadores:
gente promovida por eles demonstra mais lealdade e não aspira ao cargo supremo.
Trotsky, Zinoviev, Kamenev, Bukharin e outros eram mais conhecidos do que
Stalin no começo dos anos 1920. Durante os anos de revolução e de guerra civil,
Trotsky foi incomparavelmente mais popular que Stalin, no partido e no país todo.
Líder reconhecido da Revolução de Outubro e um teórico que, em 1927, já tinha
publicado vinte e um livros, Trotsky passou à história como criador do Exército
Vermelho. Tinha considerável talento para escrever e frequentemente se pôs diante
do espelho da história tentando justificar sua ambição de liderar o partido. Mais
parecia gostar da ideia dele mesmo na revolução do que da revolução em si. Lendo
sua correspondência, surpreendeu-me descobrir que, mesmo nos períodos iniciais da
guerra civil, Trotsky já se preocupava com o que dele diria a história. Cartas de
admiração a ele enviadas, bilhetes que recebeu durante os numerosos discursos, listas
de diplomatas pedindo audiência, relatos de jornal sobre sua ação – tudo
meticulosamente arquivado e preservado. Trotsky estava convicto, e não sem
alguma razão, de que, após a morte de Lenin, a liderança poderia ser dele.
Trotsky disparava a maioria de suas setas críticas, oblíqua ou diretamente, sobre
Stalin, embora também seja verdade que grande parte delas foi atirada depois de sua
expulsão da União Soviética. Sua caracterização de Stalin como “a mais marcante
mediocridade de nosso partido” é bem conhecida. Por outro lado, era comum em
Trotsky fazer observações semelhantes sobre outros adversários. Descreveu Zinoviev
como “mediocridade incômoda”, Vandervelde (presidente da Internacional
Socialista que, em 1917, escreveu sobre a Revolução Russa), como “mediocridade
brilhante”, e Tsereteli, membro menchevique do governo de Kerensky durante
1917, “mediocridade talentosa e honesta”. Após sua expulsão da União Soviética e
até o fim da vida, Trotsky foi tomado por uma única, permanente e obsessiva
paixão, seu ódio a Stalin, como mostra seu último e inacabado livro – Stalin. É
verdade que Trotsky alega não haver motivação pessoal no livro: “Nossos caminhos
divergiram tanto e há tanto tempo e, aos meus olhos, ele é instrumento tão claro de
forças históricas estranhas e hostis a mim, que meus sentimentos para com ele
diferem dos que tenho em relação a Hitler ou ao Mikado. O elemento pessoal
esvaiu-se há muito tempo.”1 Apesar disso, ninguém escreveu de forma tão cáustica
contra Stalin, com um grau tal de caricatura e invectiva. Mas também ninguém
concorreu tanto para a exposição de Stalin.
No dia em que Lenin morreu, Stalin enviou o seguinte telegrama a Trotsky, que
estava no sul: “Dizer camarada Trotsky que camarada Lenin morreu subitamente 21
de janeiro seis horas cinquenta minutos. Morte causada paralisia centro respiratório.
Funeral sábado 26 de janeiro. Stalin.”2 Ao assinar a mensagem, Stalin deve ter
pensado que era chegada a hora da guerra sem piedade pela liderança. Mas saberia
ele que, mesmo que sobrepujasse Trotsky, não se livraria dele? Os métodos de uma
burocracia autoritária, usando a coerção e o “aperto dos parafusos” que Stalin
aplicaria, eram exatamente os que Trotsky advogava. Talvez tenha sido essa uma das
razões da tragédia que despontava. A luta política travada pelos dois, que durou até
o momento em que Trotsky foi assassinado, em agosto de 1940, influiu
profundamente na perspectiva de Stalin, que considerava Trotsky seu principal
inimigo político.
Tive o testemunho de muita gente que, ou conheceu Stalin, ou foi arrastada no
redemoinho dos eventos causados por suas decisões. Muita coisa surgiu de conversas
com ex-membros do funcionalismo do Comitê Central, com comissários, membros
da NKVD, altas figuras do Exército, levadas pelo destino a encontros pessoais com
o secretário-geral e cujas vidas foram, muitas vezes, alteradas da forma mais trágica
por alguma decisão do “líder”. Depois de meus artigos para o Pravda e o
Literaturnaya Gazeta, recebi umas três mil cartas, muitas de pessoas que contavam
casos pavorosos.
Meu livro tem o subtítulo Triunfo e tragédia para indicar como o triunfo de um
homem foi a tragédia para todo um povo. No seu discurso para o XX Congresso do
partido, Khruschev pôs o problema ao seu modo: “Não se pode dizer que suas ações
foram as de um déspota louco. Ele acreditava agir no interesse do partido, das
massas trabalhadoras e da defesa das conquistas da revolução. Essa foi a tragédia!”
Julgo a ênfase de Khruschev mal empregada. Sua avaliação justifica Stalin. Em
nome do poder ilimitado, Stalin cometeu crimes inomináveis, mas Khruschev não
viu nisso a tragédia.
Stalin logo se habituou ao uso da força como atributo obrigatório do poder
ilimitado. É lógico presumir que a máquina punitiva, que ele colocou a todo vapor
no final dos anos 1930, capturou a imaginação não só dos funcionários de escalões
mais baixos mas do próprio Stalin. É possível que o deslizamento para a coação
como método universal tenha ocorrido em vários estágios. Primeiro, a luta contra
inimigos reais, que bem reais eram; depois, a supressão de seus inimigos pessoais,
também verdadeiros; no estágio seguinte, a máquina funcionou com seu momento
próprio e, finalmente, a força foi vista como um teste de lealdade ao líder e à
ortodoxia. A sombra de ameaça externa criou uma mentalidade de cerco na
população, que chegou ao ápice em 1937 e foi resultado direto da força assumindo
precedência sobre a lei, o deslocamento do poder popular por substitutivos de culto.
Podia-se demonstrar ortodoxia, fé cega e lealdade ao líder fazendo
desavergonhadas acusações de “sabotagem”, “jogo duplo” e “espionagem”. Como
seria possível imaginar que todos os membros do Politburo nomeados em maio de
1924 durante o XIII Congresso do partido, com a única exceção de Stalin, se
transformariam em “inimigos”? Stalin liquidou seus “inimigos”, e as ondas
continuaram se sucedendo. Triunfou uma força do mal. É difícil explicar por que
precisou continuar “extirpando” boas pessoas depois de ter se livrado dos rivais.
Aliás, bem antes da maioria, alguns bolcheviques da NKVD viram o perigo
iminente da suspeita e da repressão universais; ainda assim, só de suas fileiras, 23 mil
foram vítimas da falta total de lei.
Todavia, na análise final, mesmo o pior que a história pudesse perpetrar não
poderia evitar que o povo criasse em seu próprio país algo que o levasse próximo da
concretização de seus altos ideais. Mesmo nos anos mais amargos, não faleceu a
crença nos valores humanistas dentro do coração de milhões de soviéticos. A
tragédia foi terem tomado Stalin como símbolo e incorporação humana do
socialismo. Afinal, mentiras repetidas muitas vezes acabam parecendo verdades. Na
mente popular, a deificação do líder justificou todos os efeitos negativos que
acompanharam a cata dos “inimigos”, creditando também todos os sucessos à
sabedoria e à determinação de um homem. Além do mais, Stalin aderiu ao uso da
propaganda na promoção de seus esquemas grandiosos. Ao tomar decisões de vulto,
especialmente nas grandes reuniões, gostava de citar os clássicos socialistas, embora a
esse respeito revelasse uma típica fraqueza humana. A maioria das pessoas, mesmo os
onipotentes, precisa de uma escora ideológica, seja a autoridade doutrinária, sejam
as ideias perenes de um grande antecessor, mesmo que, no caso, não passasse de
camuflagem intelectual. O triunfo do líder e a tragédia do povo encontraram
expressão no dogmatismo e na burocracia do sistema, na onipotência do aparato e
na lavagem cerebral de milhões, mas também no patriotismo e no internacionalismo
do povo soviético, no seu genuíno espírito cívico e em seus esforços heroicos.
Meu trabalho foi muito ajudado pelas memórias de famosos comandantes do
Exército soviético tais como I.Kh. Bagramyan, A.M. Vasilievsky, A.G. Golovko,
A.E. Yeremenko, G.K. Zhukov, I.S. Konev, N.G. Kuznetsov, K.A. Meretskov,
Moskalenko, K.K. Rokossovsky, S.M. Shtemenko e outros. É verdade que essas
memórias foram escritas numa época em que muito se desconhecia sobre Stalin e na
qual, depois do XXII Congresso do partido, o stalinismo, para todos os efeitos e
fins, foi inacessível a análises francas e completas. Os militares, em particular no alto
escalão, receberam todo o peso da crueldade de Stalin, porém, com exceção de A.V.
Gorbatov e de uns poucos outros que conseguiram descrever a tempo aquilo por
que passaram, ninguém foi capaz de revelar coisa alguma. O assunto era
praticamente proibido. Existe outro lado do problema. Quando a guerra começou,
Stalin, contra a vontade, foi compelido a parar com a repressão dentro do país. Os
comandantes do Exército, nas suas memórias, ocuparam-se dos aspectos militares e
do papel exercido pela autoridade política de Stalin na derrota do fascismo. Isso,
sem dúvida, explica porque a maioria dos escritores militares apresenta Stalin sob
uma luz positiva e deixa fora da imagem muito daquilo que eles sofreram em suas
mãos. E algumas dezenas de milhares deles, que às vésperas da guerra caíram no
sangrento triturador do expurgo, pereceram. Sabe-se hoje que, no começo da guerra,
Stalin apelou repetidas vezes para a punição cruel de muitos militares, usando-os
como bodes expiatórios pelas pesadas perdas soviéticas.
Em retrospecto, é inacreditável a leniência do povo soviético, sobretudo do povo
russo. De onde vem ela? Dos 250 anos de domínio tártaro e da sucessão de guerras
para libertar-se dos grilhões? Da luta contra o inverno russo e da grande extensão
territorial? Ou deriva da sabedoria da experiência histórica, na fé de que estava certo
e no apego à tradição histórica? Talvez da convicção de que tomara o rumo correto
em 1917. Embora não se conscientizasse disso até ser muito tarde, o povo só
poderia ficar humilhado pelos rituais quase religiosos de glorificação do mandante
do país. Uma coleção de cantos de exaltação, de hinos ridículos de boas-vindas, de
cartas a Stalin chamando-o de “pai”, “sol”, “líder sábio”, “gênio imortal”, “grande
timoneiro”, “comandante inflexível” constituiria um belo monumento a tal
humilhação. A mente burocrática superava a si mesma na invenção de epítetos sem
levar em conta o quanto afrontavam diretamente a dignidade do povo.
Seria de todo irrealista admitir que, não fora o vácuo político que se seguiu à
morte de Lenin, a evolução socialista da sociedade poderia ter acontecido sem as
distorções causadas por Stalin e seus cúmplices nas décadas de 1930, 1940 e 1950?
A tragédia não era inevitável. Claro que é mais fácil falar hoje sobre possíveis
alternativas do que fazer a opção nos idos de 1920. Mais fácil analisar as
circunstâncias do que lidar com elas. “O historiador está sempre certo ao comparar
suas hipóteses com as coisas como se passaram”, escreveu Jean Jaurès. “Está correto
quando diz: ‘Eis aqui os erros do povo, e aqui, os do governo’, e quando imagina
como tudo seria se tais erros não fossem cometidos.”3 Havia alternativas disponíveis.
Da morte de Lenin ao início dos anos 1930, Stalin ganhou a reputação de ser
um dos mais severos e mais obstinados dos líderes. Ele não tinha as qualidades para
substituir Lenin, mas nenhum dos outros tinha. Intelectual e moralmente, ele não
estava à altura da maioria dos líderes da revolução, mas na luta pela sucessão o que
valeu foi a determinação, a vontade política e a astúcia. A despeito de suas
“imperfeições”, Stalin tinha algo que faltou aos outros, isto é, a possibilidade de usar
o aparelho do partido ao máximo em benefício próprio. O aparato era, na sua visão,
o instrumento ideal do poder. E nem todos os bolcheviques tinham ouvido o alerta
de Lenin sobre Stalin.
Stalin conseguiu, temporariamente, disfarçar suas qualidades negativas, depois
que os delegados ao XIII Congresso do partido ouviram a opinião de Lenin a seu
respeito, e isso o ajudou a garantir o apoio da maioria dentro do partido. Nessas
circunstâncias, a chance dos demais postulantes não era muito grande. Muitas altas
figuras do partido, de início, simplesmente não levaram Stalin em conta, e quando o
fizeram, já era muito tarde.
Stalin, além do mais, era um grande ator. Encarnava muitos personagens com
consumada habilidade: o chefe modesto, o defensor da pureza dos ideais do partido
e, mais tarde, o líder e pai do povo, grande comandante, teorista, connaisseur das
artes, profeta. Mas, principalmente, Stalin tentou o papel de aluno dedicado e
camarada em armas do grande Lenin. Tudo isso grangeou-lhe, gradualmente,
popularidade dentro do partido e no país inteiro.
Entretanto, a questão é menos de personalidades que do potencial democrático –
por defeituoso que fosse – que Lenin começara a criar, mas que não se manteve.
Décadas depois, ainda estamos tentando identificar quem poderia ter sido a
alternativa de Stalin. O mais provável é que o núcleo dirigente de leninistas do
partido tivesse cumprido o “Testamento” de Lenin. Mas a velha guarda revelou uma
confusão e uma miopia inexplicáveis, em vez de expressar a ideia coletiva, a vontade
coletiva. Se tivessem sido criados dispositivos de segurança democráticos para a
defesa da sociedade, notadamente sob a forma de liderança coletiva autêntica, o
problema de encontrar uma figura destacada para liderar não teria sido tão decisivo.
Se, por exemplo, o estatuto do partido tivesse fixado e confirmado um período
preciso para o mandato do secretário-geral e de outros cargos eletivos, é possível que
não acontecesse o culto a Stalin. Como as coisas se passaram, o destino do país
dependeu por demais da questão histórica de quem deveria estar no leme.
Malgrado o fato de que, no sentido formal, a autoridade de Stalin jamais foi
testada, ele praticamente abandonou a noção de socialismo de Lenin. O comentário
de Plutarco vem-nos logo à mente: “Quando o destino eleva às alturas um caráter
mau por meio de atos de grande importância, põe-lhe à mostra a falta de
substância.”4 O que chamamos de stalinismo foi exatamente o caso. Pode-se discutir
a legitimidade do conceito, mas é indiscutível que há um fenômeno social específico
por trás dele. Ele surgiu da deformação dos princípios democráticos, sem os quais o
socialismo perde tanto sua efetividade quanto seu atrativo.
Para mim, o stalinismo é sinônimo de alienação da classe trabalhadora do poder,
de instalação de uma burocracia multiface e da imposição de fórmulas dogmáticas
na mente do povo. O exercício da autocracia resultou num tipo específico de
alienação que, por sua vez, deu lugar a uma apatia geral, à redução do significado
real dos valores socialistas e ao freio do dinamismo do movimento. Stalin projetou
sua vultosa e nociva sombra sobre cada lado de nossa vida e não tem sido nada fácil
libertarmo-nos desse eclipse dogmático e burocrático.
Sendo verdade que os ideais socialistas foram preservados pelo povo, é também
verdade que o povo jamais descreu da “ideia russa”. As muitas tentativas de
introdução de reformas receberam, normalmente, a poderosa resposta reacionária.
Dos dezembristas de 1825 a Bukharin nos anos 1920 e a Khruschev nos 1950, os
reformadores sofreram derrotas. É importante lembrar disso. O fato de Stalin ser
derrubado do pedestal não significa a erradicação do stalinismo, e não se pode
desprezar a possibilidade de alguma forma de neostalinismo igualmente maléfico ser
restaurada. Não se trata de uma profecia, apenas de um alerta da história.
Nota
Os traços físicos de Stalin talvez não sejam tão interessantes quanto as características
políticas e morais que apresentava em 1917. Embora possa não ter sido um vilão
desde cedo, é importante saber que tipo de infância teve para entender sua
personalidade como adulto.
Pouco se sabe de seu tempo de menino, já que nem ele mesmo foi expansivo a
esse respeito. Seus pais, Yekaterina e Vissarion Djugashvili, eram camponeses pobres
que mais tarde passaram a morar em Gori, sempre carentes de recursos. Dos três
filhos, Mikhail e Georgii faleceram antes de atingir um ano de idade, restando
apenas Iosef, ou Soso, como era chamado. Mas este também quase morreu de
varíola aos cinco anos, fato que iria constar com regularidade das fichas policiais em
vista das marcas deixadas no rosto. Segundo I. Iremashvili, um menchevique
georgiano que conheceu a família, o pai de Stalin, o sapateiro, bebia demais e
espancava mulher e filho com frequência. Antes de cair no pesado sono dos
bêbados, socava as orelhas do filho teimoso que, claramente, não tinha amor algum
ao pai. O castigo imerecido endureceu-o, e logo Stalin aprendeu com astúcia a evitar
esses encontros. Sua mãe, por outro lado, dedicou-se de corpo e alma ao filho.
Graças à sua insistência e a seu enorme esforço, Soso conseguiu uma vaga na escola
teológica e, depois, no seminário. A discórdia familiar persistiu e, inevitavelmente, o
casal se separou, com o pai mudando-se para Tiflis, onde morreu sozinho numa
pensão e foi enterrado como indigente.
Stalin saiu de casa quando se tornou revolucionário profissional. Parece que,
depois de 1903, só viu a mãe umas quatro ou cinco vezes. Ela o visitou em Moscou
pela primeira vez quando ele se tornou secretário-geral, e Stalin a viu pela última vez
em 1935. Foi o desejo desesperado da mãe analfabeta de ajudá-lo na vida que deu a
Stalin as primeiras oportunidades, porém tudo indica que ele jamais refletiu sobre
isso. Já idosa, dois anos depois do último encontro, em julho do terrível ano de
1937, a mãe de Stalin morreu em paz.
O escritor alemão Emil Ludwig perguntou a Stalin, em 1931, o que o teria
empurrado para o pensamento revolucionário:
“Teriam sido, talvez, maus-tratos por parte dos pais?”
“Não”, replicou Stalin, “meus pais não tinham instrução, mas, absolutamente,
não me tratavam mal.”1 Mas o que sabemos dos seus primeiros anos indica que ele
apenas se referia à mãe.
Como aluno das instituições teológicas, Stalin demonstrou consideráveis
habilitações e uma memória fenomenal. Evidenciando ilimitado interesse pelo
Velho Testamento como pelo Novo, e assimilando os textos religiosos com mais
rapidez que os outros meninos, tentou captar a noção de um só Deus portador do
bem absoluto, do poder absoluto e do conhecimento absoluto. O estudo
prolongado da teologia como síntese dos dogmas e dos princípios morais,
entretanto, cedo perdeu a graça. Sem que ele disso se apercebesse, durante a vida de
estudante de teologia, certas linhas de pensamento e de comportamento tomaram
forma em sua mente. A dez anos de estudo religioso devem somar-se outros tantos
de prisão e exílio vividos por Koba, como ele se autodenominava, adotando o nome
de um herói de O patricida, do escritor georgiano A. Kazbegi. Excluído pela
sociedade, o sentimento de insatisfação do jovem revolucionário com sua sina foi se
enrijecendo até a condição de amargura permanente. Sem dúvida, sua personalidade
foi afetada pela incongruente mistura de postulados religiosos – primeiro aceitos,
depois rejeitados – e o papel de proscrito social, que se combinaram para nele criar
uma atração pela atividade “rebelde”. Vinte anos de seminário e de cadeias só
podiam exercer influência sobre seus sentimentos, mente e caráter.
Por exemplo, ele tinha forte propensão para sistematizar, categorizar e localizar
nichos intelectuais para qualquer tipo de conhecimento, o que sinaliza uma forma
catequizadora de pensar. Por sua vez, isso criava a impressão de um homem
organizado e lógico. Igualmente, faltava-lhe o senso da autocrítica. Toda a vida,
acreditou em postulados, primeiro os cristãos e, depois, os marxistas. O que não se
ajustasse ao leito procustiano* de seus conceitos era logo tachado de heresia e,
depois, de oportunismo. E como raramente duvidava do acerto das ideias e teorias
em que acreditava, não achava necessário sujeitá-las à crítica. Mentalmente, jamais
se afastou dos preceitos clássicos do marxismo. Talvez pusesse a fé acima da verdade,
mas nunca admitiu isso, nem para si mesmo. A fé nos ideais e nos valores é
meritória, mas não deve desbancar a verdade. A espécie de educação que Stalin
recebeu e as privações da infância talvez tenham se mesclado para tornar muito
improvável que ele pudesse, um dia, lidar racional e humanamente com o poder e a
responsabilidade que iria adquirir.
Stalin viu desde cedo que só podia contar consigo mesmo. Seus companheiros
em Baku e Tiflis diziam muitas vezes: “Koba, você é determinado demais.” Ele
gostou de ouvir isso e decidiu fazer desse atributo sua marca registrada, adotando
seu nome de tom metálico: a partir de 1912, passou a assinar-se “Stalin, o homem
de aço”. Não foi o único que quis simbolizar uma personalidade forte com um
nome adotado: L.B. Rozenfeld, por exemplo, um tipo bem menos marcante que
Djugashvili, optou por Kamenev, “homem de pedra”. O tempo mostraria que a
pedra não aguentava o aço. Stalin queria crer em sua própria força, em sua própria
invulnerabilidade, em sua própria posição como chefe regional. A fé, como cimento
do dogmatismo, permaneceu com ele para sempre.
Sua educação religiosa alimentou um modo de pensar que virou qualidade
permanente, ainda que ele mesmo, como líder, muito criticasse o dogma, tal como o
entendia em sua forma simplista e vulgar. Inclinava-se a canonizar as proposições
marxistas e, muitas vezes, chegou a conclusões profundamente erradas. Por
exemplo, ao considerar absoluto o significado da luta de classes, engendrou, nos
anos 1930, a falsa formulação de que “a luta de classes mais se aguça à medida que
avança a construção do socialismo”. O oportunismo, o facciosismo e as ideias
alternativas eram para Stalin o mesmo que inimigos de classe. O ex-seminarista viu
na ditadura do proletariado um meio de coerção social em vez de um princípio
construtivo.
No caminho da revolução, Stalin assimilou as máximas do marxismo, mas não
teve talento criativo para aplicá-las. A influência de sua educação religiosa (que outra
não teve) expressou-se não no conteúdo dos pontos de vista, mas na sua forma de
pensar. Até o fim da vida, jamais conseguiu livrar-se das algemas do dogmatismo.
Na realidade, Stalin não teve amigos íntimos; por certo, ninguém com quem
tenha tido relações afetuosas por toda a vida. O cálculo político, o sangue-frio nas
situações emocionais e a insensibilidade tornaram impossível para ele criar e
conservar amizades. Daí causar surpresa que, no fim da vida, ele se lembrasse de
alguns colegas da escola teológica e do seminário. Durante a guerra, notou um dia
que seu assistente A.N. Poskrebyshev guardava grande soma de dinheiro no cofre.
Com espanto e suspeita, olhando diretamente para Poskrebyshev e não para o
dinheiro, Stalin perguntou de onde vinha aquilo. “São seus salários como deputado.
Acumulam-se há anos”, explicou o assistente, e continuou, “só tiro o necessário para
pagar suas quotas ao partido”. Stalin nada disse, porém, alguns dias mais tarde, deu
ordem para que quantias substanciais fossem remetidas para Peter Kopanidze,
Grigory Glurdjidze e Mikhail Dzeradze. O próprio Stalin redigiu a ordem:
Grisha!
Aceite este meu pequeno presente.
9 de maio de 1944. Soso2
Há várias notas semelhantes no arquivo pessoal de Stalin. Nos seus setenta anos, e
em meio à guerra, começou, subitamente, a revelar tendências filantrópicas.
Contudo, os amigos de que se lembrava eram os da juventude distante como
estudante teológico. Surpreende ainda mais porque Stalin jamais mostrou inclinação
pela sentimentalidade, por arroubos de amizade ou pela gentileza. Não obstante, há
evidência de um outro gesto benevolente que fez depois da guerra, enviando a
seguinte carta para o assentamento de Pchelok, no distrito de Parbig em Tomsk:
Conheci Lenin em 1903. Na realidade, não foi um encontro pessoal e sim postal, já que se deu por
correspondência. Não foi uma carta longa, mas continha uma crítica ousada e corajosa sobre o trabalho de
nosso partido e era uma exposição extraordinariamente clara e concisa de todo o plano de trabalho do
partido para o futuro imediato. Aquele pequeno e audacioso bilhete reforçou minha crença de que o partido
tinha em Lenin sua águia sobranceira. Não posso me perdoar por ter feito com aquela carta aquilo que o
revolucionário experiente na clandestinidade fez com muitas outras missivas, ou seja, lancei-a às chamas.11
* Na mitologia grega, leito de ferro em que Procusto, famigerado salteador, deitava suas vítimas que ali deveriam
caber perfeitamente. Por isso. se fossem maiores, cortava-lhes os pés, se fossem menores, estirava-lhes o corpo.
[N. T.]
[2]
Fevereiro, o prólogo
O fato teve lugar em Achinsk, em 1917, depois da Revolução de Fevereiro, quando o camarada Kamenev e
eu éramos, juntos, exilados. Estávamos num jantar ou numa reunião, não me lembro bem, mas, naquele
encontro, diversos cidadãos, inclusive Kamenev, enviaram um telegrama para Miguel Romanov [...]
[Kamenev esbravejou de seu assento: “Admita que está mentindo! Por que você não admite isso?”] Silêncio,
Kamenev! [Kamenev gritou de novo: “Admita que você está mentindo!”] Cale-se Kamenev, ou será pior para
você. [E. Thälmann, diretor do encontro, repreende Kamenev.] O telegrama para Romanov como primeiro
cidadão da Rússia foi enviado por diversos negociantes mais o camarada Kamenev. No dia seguinte, tomei
conhecimento do fato, que me foi contado pelo próprio camarada Kamenev, o qual veio a mim e me disse
que tinha feito aquela burrice. [Kamenev bradou novamente de sua cadeira: “Você está mentindo. Jamais lhe
disse isso!”] O telegrama foi publicado em todos os jornais, exceto nos bolcheviques. Aí está o fato número
um.
Agora, o fato número dois. Tivemos nossa conferência do partido em Petrogrado, em abril, e os delegados
debateram se, em face do telegrama, simplesmente seria permitida a eleição de Kamenev para o Comitê
Central. Duas reuniões bolcheviques fechadas tiveram lugar, nas quais Lenin defendeu Kamenev,
argumentando em seu favor, com alguma dificuldade, para que fosse indicado candidato ao Comitê Central.
Só Lenin poderia salvar Kamenev. Eu também o defendi naquela ocasião.
Agora, o fato número três. É bem verdade que o Pravda apoiou o desmentido publicado pelo camarada
Kamenev, já que esse era o único meio de salvá-lo e de defender o partido contra os ataques do inimigo.
Dessa forma, veem todos que o camarada Kamenev é bastante capaz de mentir para o Comintern e de iludi-
lo. Só mais duas palavras. Como o camarada Kamenev tentou, ainda que debilmente, negar a evidência de
um fato, permitam-me coletar as assinaturas daqueles que participaram da conferência de abril e que
insistiram em vedar o acesso do camarada Kamenev ao Comitê Central por causa do telegrama. [Trotsky, de
seu lugar: “Só lhe faltará a assinatura de Lenin!”] Camarada Trotsky, você tem que permanecer quieto!
[Trotsky: “Você não me intimida, você não me intimida!”] Você está negando a verdade, e é à verdade que
você deve temer. [Trotsky: “Você fala sobre a verdade stalinista, que é rude e desleal.”] Estou coletando as
assinaturas dos que acham que o telegrama foi assinado por Kamenev.19
A despeito de todos os rumores e insinuações, o Governo Provisório [...] decidira, bem no início de março,
enviar a família real para o exterior. No soviete de Moscou, em 7 [20] de março, em resposta à gritaria de
“Morte ao czar! Executem o czar!”, eu mesmo disse: “Isso jamais acontecerá enquanto estivermos no poder.
O Governo Provisório assumiu a responsabilidade pela segurança do czar e de sua família. Cumpriremos essa
obrigação até o fim. O czar e sua família serão mandados para a Inglaterra. Eu os acompanharei pessoalmente
até Murmansk.”23
* O calendário russo era 13 dias atrasado em relação ao do Ocidente até janeiro de 1918, quando passou a
coincidir com este. Assim sendo, a Revolução “de Fevereiro” ocorreu em março pelo Calendário Novo,
enquanto a Revolução “de Outubro” é comemorada, desde 1918, no dia 7 de novembro.
Cidadãos da Rússia! Em 25 de outubro, o Conselho Provisório da República Russa foi forçado, à ponta de
baioneta, a se dispersar e, no momento, a suspender suas operações.
Com as palavras “liberdade e socialismo” nos lábios, os que usurparam o poder apelam para a violência,
exercendo um mando arbitrário. Prenderam membros do Governo Provisório, inclusive os ministros
socialistas, e os encarceraram em celas czaristas. Sangue e anarquia ameaçam cobrir a revolução, afogar a
liberdade e a república e causar a restauração da velha ordem. Esse regime deve ser visto como o inimigo do
povo e da revolução que é.42
É verdade que o camarada Trotsky lutou bem no período de outubro. Mas não foi o único, outros lutaram
igualmente bem, como os SR de Esquerda, que se postaram ombro a ombro com os bolcheviques. Mas por
que razão Lenin, ao selecionar os integrantes do centro prático de operações para o levante, não incluiu o
nome de Trotsky, mas nomeou Sverdlov, Stalin, Dzerzhinsky, Bubnov e Uritsky? Como se vê, o centro não
incluiu o “inspirador”, “a figura central”, “o único líder do levante”, o camarada Trotsky. Como é possível
jogar tal fato com a opinião corrente sobre o papel especial do camarada Trotsky?48
* Em seguida à Revolução de Fevereiro, o novo governo foi pressionado a convocar uma assembleia constituinte
em que se determinasse a natureza do novo Estado. As eleições organizadas pelo Governo Provisório acabaram
ocorrendo depois da tomada do poder pelos bolcheviques, os quais receberam votos de menos de um quarto das
cadeiras da Assembleia, prontamente desfeita pela força depois de sua primeira e única sessão em 18 de janeiro
de 1918.
[5]
Salva por sorte
Em nome do Conselho de Comissários do Povo, o governo da República Federativa Russa, por intermédio
deste, leva ao conhecimento dos governos e povos que estão em guerra conosco, bem como dos países aliados
e neutros que, ao declinar a assinatura de um tratado de anexação, a Rússia, de sua parte, declara que o
estado de guerra com a Alemanha, a Áustria-Hungria, a Turquia e a Bulgária está terminado.
Decreto determinando a total desmobilização para as tropas russas em todo o front é expedido juntamente
com esta declaração.
Brest-Litovsk, em 10 de fevereiro de 1918
Comissário do Povo para Relações Exteriores L. Trotsky
Membros da delegação: V. Karelin, A. Ioffe, M. Pokrovsky, A. Bitsenko
Presidente Medvedev do TsIK de Toda a Ucrânia.50
Três dias mais tarde, numa reunião do Comitê Executivo Central de Toda a Rússia,
Trotsky tentou mostrar que sua decisão de “revolucionar” o movimento
revolucionário no Ocidente e que a palavra de ordem “nem paz nem guerra” seriam
apoiadas até pelas tropas alemãs. Na realidade, o slogan escancarou o centro da
Rússia para o agressor e, em poucos dias, tropas alemãs começaram a avançar em
toda a frente. Depois de um acalorado debate, o Comitê Central aprovou, por sete
votos contra quatro, a aceitação dos termos da Alemanha.
Nas palavras de Chicherin, o sucessor de Trotsky, a Alemanha ofereceu uma paz
predatória “com um revólver apontado para a testa da Rússia revolucionária”. A
Rússia perdeu Polônia, Lituânia, Estônia, Kurland, Kars, Batum e algumas ilhas
bálticas. O partido ainda teve que defender o tratado perante o VII Congresso de
Emergência do Partido e do IVº Congresso Extraordinário de Sovietes de Toda a
Rússia, ambos ocorridos em março com uma diferença de uma semana.
Stalin permaneceu passivo em relação a este caso, não porque discordasse de um
lado ou do outro, mas por ser a questão complicada demais para ele. Por exemplo,
numa reunião do comitê central, em 23 de fevereiro, quando Lenin ameaçou
renunciar se não concordassem em fazer a paz, Stalin começou a vacilar, mas sem
antes chegar a perguntar se “a renúncia de alguém a um cargo significa também
demissão do partido?”. Lenin respondeu que não.
A confusão que, por vezes, assaltava Stalin ficou particularmente evidente
quando se formulou a ideia de que “a honra da revolução tem precedência sobre sua
morte”. Lomov, por exemplo, declarou: “Não deixem que a renúncia de Lenin
assuste vocês. A revolução é mais preciosa.” Uritsky disse que “essa paz vergonhosa
não salvará o regime soviético”. Em meio a tão diversificadas opiniões, Stalin adotou
uma posição indecisa: “Talvez não tenhamos que assinar o tratado.” Ao que Lenin
replicou: “Stalin está errado quando diz que não temos que assinar. Precisamos sim
assinar os termos. Se não o fizermos, estaremos assinando a sentença de morte do
regime soviético num prazo de três semanas. O regime soviético não está temeroso
de tais termos. Não tenho a menor hesitação. Não estou dando um ultimato para
que o tratado seja retirado. Não é de uma ‘frase revolucionária’ que estou em
busca.”51 Lenin aparou todos os argumentos contra e, a partir do momento que os
submeteu à sua crítica, Stalin passou a se sentir melhor e alinhou-se com seu líder.
No Congresso do Partido, Lenin conseguiu demonstrar a necessidade vital de se
adotar a dura opção que fizera. Stalin sobrepujou suas dúvidas íntimas e encontrou
forças para seguir Lenin até o fim. Trotsky também ficou firme em sua própria
posição, declarando não considerar nenhuma das duas posturas decisiva para a
sobrevivência do regime.
Malgrado a versão oficial soviética, a opinião de Lenin sobre a posição de
Trotsky não foi de preto ou branco. Pronunciando o discurso de encerramento
sobre o relatório político do Comitê Central, em 8 de março de 1918, ele disse:
Ademais, devo tratar da posição do camarada Trotsky. Dois lados devem ser considerados sobre o que ele
tem feito: quando começou as negociações em Brest e explorou tão brilhantemente a oportunidade para
agitação, todos concordamos com ele. O camarada Trotsky citou parte da conversa que teve comigo, mas
posso adicionar que houve um acordo entre nós de que deveríamos sustentar a posição até que os alemães
dessem seu ultimato, quando então nos renderíamos. As táticas de Trotsky, já que visavam a retardar as
coisas, estavam corretas: tornaram-se incorretas quando o estado de guerra se declarou encerrado sem que paz
alguma fosse assinada.52
O ponto de vista que nos oferece o camarada Lenin é inaceitável para nós. [...] Mas, a mim parece que, pelo
menos, estamos propondo uma saída. Essa saída, que o camarada Lenin rejeita e que nós consideramos
necessária, está numa guerra revolucionária contra o imperialismo alemão.53
A pausa para tomar fôlego proporcionada pela paz de Brest-Litovsk foi curta.
A intervenção militar estrangeira, dando esperança de desforra para a
burguesia e para os proprietários de terra, começou logo em março-abril de
1918. Rebeliões e explosões contrarrevolucionárias foram provocadas por oficiais
brancos. Alastraram-se cossacos e nacionalistas. Já arrasado por anos de guerra, o
país estava de novo tomado das chamas do conflito. A república não tinha
fronteiras, apenas fronts.
A extinção do regime soviético parecia iminente, ainda mais pela impressão de
que se abrira uma temporada de caça aos comissários. Em Petrogrado, o SR Leonid
Kanegisser matou a tiros Moisei Uritsky; em julho, foi assassinado o comissário dos
Fuzileiros da Letônia, Semyon Nakhimson; o comissário para os Alimentos da
república do Turcomenistão, Alexander Pershin, morreu pelas mãos de insurgentes
em Tashkent; em maio de 1918, Fedor Podtelkov e Mikhail Krivoshlykov,
bolcheviques muito conhecidos da região do Don, foram enforcados pelos cossacos;
o tenente-general Alexander Taube, que se bandeara do exército czarista para os
bolcheviques e se tornara comandante do quartel-general siberiano, caiu prisioneiro
dos brancos e foi torturado. Porém, o golpe mais duro ocorreu em Moscou quando,
depois de falar aos trabalhadores em frente à fábrica de Mikhelson, Lenin levou
vários tiros da SR Fanny Kaplan.
Uma fronteira de sangue dividiu então pelo meio a Rússia, rasgada pela guerra
interna. Em sua ferocidade implacável, a guerra civil russa refletiu o profundo ódio
de classes que rachou a nação em dois campos hostis. Como regra, não se faziam
prisioneiros. Os Russos Brancos matavam a golpes de baioneta os feridos do
Exército Vermelho em macas. A luta era sem quartel. O tifo arrasava as linhas de
frente. Reféns eram levados para fossas e mortos. A vida não tinha qualquer valor. O
apelo de classe era mais forte que a simpatia, a piedade, a sabedoria ou a razão. O
combate não era apenas entre forças armadas das classes rivais, envolvendo, na
verdade, a maior parte da população. O país encharcou-se do sangue de
compatriotas. O maior catalisador da guerra civil foi a intervenção armada
estrangeira. “Foi o imperialismo mundial”, observou Lenin, “o verdadeiro
provocador de nossa guerra civil e o responsável por sua longa duração”.54 O
governo declarou a República Soviética campo de batalha e criou o Soviete Militar
Revolucionário da República (o Revvoensoviet, Revolutionniy Voennij Sovet), sob a
chefia de Trotsky.
Stalin se tornou mais visível durante a guerra civil, ao cumprir as missões do
Comitê Central, crescentemente complexas e com diversificados encargos. Em
meados de março de 1918, quando o laço da fome começou a apertar as artérias dos
centros políticos e industriais da Rússia, a cidade de Tsaritsyn, no sudeste do país à
margem do Volga, assumiu grande importância, mais devido à situação dos
alimentos do que a considerações militares. Em 31 de maio, Lenin assinou
instruções do Sovnarkom, pondo Stalin e A.G. Shlyapnikov na chefia geral dos
alimentos para o sul e investindo-os de poderes especiais.55 Desde seu retorno a
Petrogrado, em abril de 1917, Lenin tivera ocasião de encontrar-se com Stalin por
diversas vezes e já o considerava um executor confiável. O georgiano taciturno
raramente fazia perguntas ou levantava dúvidas em público sobre as decisões do
Comitê Central, desempenhava qualquer tarefa e, de modo geral, demonstrava
satisfação com o papel que lhe cabia. Com a mesma calma, recebeu sua comissão
para Tsaritsyn. Antes da partida, foi informado de que Lenin, em adição à ordem do
Sovnarkom, instruíra A.N. Aralov, um membro responsável da equipe do
comissariado da Guerra, para selecionar um destacamento de quatrocentos homens,
entre os quais cem Fuzileiros da Letônia, a fim de seguir com Stalin.56
Tsaritsyn estava firmemente cercada pelos cossacos, e Stalin, mal chegou, teve
que tomar decisões militares. Juntou-se ao soviete militar regional, que logo
conseguiu reunir unidades Vermelhas dispersas, promoveu a mobilização e
organizou novas divisões e destacamentos especiais, bem como uma coluna de trens
blindados e alguns trabalhadores auxiliares. Por requisição de Stalin, Lenin enviou
um telegrama urgente para as autoridades locais encarregadas do transporte fluvial,
ordenando-lhes que seguissem, sem discutir, as instruções e ordens expedidas pelo
plenipotenciário especial do Sovnarkom – I.V. Stalin.57
A situação em Tsaritsyn passou a proporcionar maior segurança quando
unidades do antigo V Exército foram transferidas do Donbass* para lá, sob o
comando de Voroshilov. É interessante assinalar que Stalin não transmitia seus
relatórios via Trotsky, o comandante em chefe e presidente do Revvoensoviet, a
quem estava operacionalmente subordinado, mas o desbordava para chegar a Lenin,
mesmo nas questões mais triviais. Na maioria dos telegramas de Stalin
caracteristicamente faltam quadro geral e avaliações e prognósticos políticos; são
mensagens pragmáticas. Em consequência das medidas tomadas pelo centro e pelo
soviete militar, Tsaritsyn ficou pronta para suportar um sítio prolongado. O assalto
dos Brancos, sob o comando do general Denikin, fracassou, embora recebesse o
apoio do ex-oficial czarista coronel Nosovich, que agira como especialista militar
para o regime soviético, mas que, naquela ocasião, mudara de novo de lado,
tornando-se um traidor. Tsaritsyn, como outros locais em que Stalin serviu durante
a guerra civil, não só se transformou em nome lendário como, de fato, adquiriu um
significado mitológico na história soviética.
Stalin mostrou tendências ditatoriais em momentos críticos. Numa nota para o
centro, escreveu: “Persigo quem merece, blasfemo contra eles, e espero restaurar em
breve a situação. Fiquem certos de que não pouparei ninguém, nem a mim mesmo
nem aos outros, mas todos terão comida. Se nossos ‘especialistas’ (uns remendões!)
militares não estivessem dormindo ociosos, a linha jamais teria sido rompida, e o
fato de que ela está restabelecida não foi por mérito deles, mas a despeito deles.”58 A
traição de Nosovich e de diversos outros ex-oficiais czaristas reforçou a suspeita de
Stalin contra os especialistas militares, suspeita essa que ele não fazia questão de
esconder. Stalin prendeu grande número deles e os encarcerou numa balsa
especialmente adaptada, na qual muitos foram fuzilados. Ele teve seguidores. Isso fez
com que Lenin, quando discursou no VIII Congresso do partido, condenasse a
guerra de guerrilha e declarasse, inequivocamente, que “um exército regular é nossa
prioridade principal, temos que constituir um exército regular com especialistas
militares”.59 Stalin não protestou publicamente contra esse ponto de vista, porém,
até mesmo no final dos anos 1930, a condição de ex-integrante do corpo czarista de
oficiais era fator agravante para os comandantes do Exército Vermelho.
Constituído por Stalin, pelo presidente do soviete de Tsaritsyn, S.K. Minin, e
pelo comandante do front, P.P. Sytin, o Revvoensoviet da frente sul não operou
numa atmosfera amigável. Stalin era de opinião que todas as decisões deveriam ser
tomadas coletivamente, enquanto Sytin, como comandante que aplica lógica
militar, procurava evitar os intermináveis “entendimentos” e “esclarecimentos” que
acompanhavam o processo de tomada de decisões. Stalin informou Moscou que
Sytin não era confiável. Sytin respondeu com um relatório escrito ao Revvoensoviet
da República no qual asseverou que Minin, Stalin e Voroshilov estavam emperrando
sua ação como comandante do front ao demandarem a aprovação do soviete militar
para as questões mais corriqueiras, e que isso complicava em demasia os
procedimentos operacionais.60 Stalin venceu a disputa e Sytin foi chamado de volta
no início de novembro de 1918.
Os especialistas militares – ex-oficiais do czar – sob o comando de Stalin ficaram
sujeitos a constantes monitorações e avaliações. Stalin sabia que Trotsky estava ao
lado deles, e os dois já tinham tido uma série de rixas telegráficas, dando assim base
para sua profunda e mútua antipatia, que se transformou em hostilidade e, depois,
em ódio.
Stalin não se preocupou em visitar trincheiras, enfermarias, pontos de reunião ou
postos de observação. Ficava sempre no posto de comando, despachando
incontáveis telegramas, convocando comissários e comandantes, exigindo relatórios
e sumários, distribuindo ameaças de cortes marciais e mandando gente de volta para
“serem observadas de perto”. Com frequência, chegava à sanção extrema, dando
ordens para que sabotadores ou militares suspeitos – que, a seu ver, solapavam a
causa – fossem mortos. No seu discurso para o VIII Congresso do partido, Lenin fez
uma referência direta às execuções de Stalin em Tsaritsyn e ao desacordo que
tinham nesse assunto.61 A guerra civil, no entanto, era de fato sangrenta, e Stalin
mostrava-se, então, mais confiante do que estivera em 1917. Como Carrier, o
comissário da Convenção descrito por Jules Michelet na sua história da Revolução
Francesa, Stalin encarava como naturais as explosões desenfreadas de paixões e
violência selvagem em nome da consecução de fins. Ele já acreditava no grande
efeito da violência e no seu emprego justificado contra os inimigos.
Seu estilo era inquietante para muitos comandantes perspicazes que já então
sentiam que aquele homem tinha pulso de ferro, que era difícil empurrá-lo a tomar
uma decisão espontânea ou exercer influência sobre seus planos. Por exemplo, em
19 de maio de 1919, Antonov-Ovseyenko queixou-se ao Comitê Central contra
uma atitude injusta tomada contra ele como comandante do exército ucraniano.
Ressaltando o frágil apoio dado a ele pelo centro, escreveu que “Lev** Davidovich
[Trotsky] entende isso” e “tão logo o camarada Stalin começou a falar grosso, os
camaradas ucranianos pararam com as intrigas e se voltaram para suas atribuições”.
Isso confirma, indiretamente, que Stalin, com efeito, teve influência sobre o curso
dos eventos no front.
Faltando-lhe conhecimento operacional e tático, Stalin confiou principalmente
na disciplina, no dever do proletariado, na consciência revolucionária e nas
frequentes ameaças de “castigo revolucionário”. Depois de Tsaritsyn, ele se tornou
mais autoconfiante entre os outros membros do Comitê Central e do Sovnarkom.
Já então, era bem mais conhecido pelos líderes do partido e comandantes. Por certo,
não revelou especiais talentos militares ao executar as instruções de Lenin no front.
Seus relatórios não contêm avaliação da situação operacional, nem discussão sobre o
desdobramento das forças, ou ideias originais quaisquer. Suas ordens operacionais
eram extremamente simples, para não dizer primitivas. Por exemplo, em outubro de
1919, Ordzhonikidze, que estava no XIV Exército do Revvoensoviet, reportou que
o Exército se preparava para retomar a cidade de Kromy e precisava de reforços.
Stalin replicou:
O objetivo de nossa última ordem era dar-lhe a oportunidade de reorganizar esses regimentos num só grupo
para destruir os melhores regimentos de Denikin. Repito, para destruir, porque estamos falando de
destruição. A captura de Kromy pelo inimigo não passa de um episódio que pode ser corrigido, ao passo que
nossa missão principal não é empregar os regimentos como unidades individuais de assalto, mas investir
sobre o inimigo como um grupo maciço e numa direção única e definida.62
É, obviamente, utópico. Não nos custará muitas vidas? Estaremos matando uma multidão de nossos
soldados. Isso precisa ser treinado e testado dez vezes. Sugiro a seguinte resposta: Sua proposta para uma
ofensiva na Crimeia é tão séria que temos que fazer um balanço e pensar seriamente sobre ela. Aguarde nossa
resposta. Assinado Lenin e Trotsky.71
Faço veemente objeção à substituição de Yegorov por Uborevich, o qual não está pronto para tal função, ou
por Kork, que não tem condições para ser comandante de front. Foram Yegorov e o comandante em chefe
[S.S. Kamenev] que deixaram a Crimeia escapar por entre nossos dedos, porque o comandante em chefe
estava em Kharkov havia duas semanas antes do avanço de Wrangel e partiu para Moscou sem entender que
o exército [de Wrangel] estava desintegrado. Não acho que tenhamos, no momento, alguém melhor que
Yegorov. Seria melhor, então, substituir o comandante em chefe, que flutua entre o extremo otimismo e o
maior pessimismo, atrapalha todo mundo e confunde o comandante do front, não tendo nada de positivo a
oferecer.81
** Forma russa de Leon mais o patronímico de Trotsky. Seu nome original era Leib Davidovich Bronshtein.
PARTE II
O aviso do líder
É sempre difícil passar da guerra à paz, porém, nas condições da Rússia depois da
guerra civil, não se tratava de uma simples questão de ir da guerra para a paz.
Anarquia, devastação, fome – faltam palavras para descrever o grau de sobressalto,
deformação e esfacelamento da sociedade russa no início dos anos 1920. A Rússia
era uma vasta ilha revolucionária num mar de estados hostis. O país vivia uma
convulsão, pois províncias e distritos se rebelavam abertamente ou em resistência
passiva à nova ordem. A revolução vencera, sobrevivera e consolidara o poder dos
sovietes, mas o novo regime quase nada podia fazer pelos trabalhadores e
camponeses. A política econômica do governo durante os primeiros três anos – o
chamado Comunismo de Guerra – significou a nacionalização da indústria e do
comércio, salários em mercadorias para operários e empregados, tomada à força da
produção do campo e trabalho obrigatório para a classe média. Nada disso cumpria
as promessas dos bolcheviques: o direito ao trabalho, descanso, seguridade social e
educação. Para escapar à perspectiva do comunismo da pobreza, o país precisava
daquelas ideias ousadas e medidas enérgicas que só o partido podia produzir. Ele era
o eixo espiritual e político em torno do qual a vida ainda girava. No início de 1921,
mais de 20 mil células congregavam acima de 730 mil membros do Partido
Comunista, quase um quarto deles no Exército Vermelho.
O Comitê Central, sob a chefia de Lenin, era o cérebro do regime. Tinha poucos
integrantes. Por exemplo, o X Congresso do partido indicou um Comitê Central de
25, com 15 candidatos a membros. A composição foi apenas marginalmente
aumentada pelo XI Congresso, o último de Lenin, para 27 e 19. Enquanto Lenin
viveu, os plenos em geral ocorriam duas vezes por mês. O núcleo da organização
eram os homens de Moscou, que arcavam com a maior parte do trabalho, a saber, a
solução dos problemas da construção econômica e militar, a criação de vínculos com
os elementos nacionais no partido, a condução de problemas como o dos
Centralistas Democráticos* e o da Oposição dos Trabalhadores,** e a implantação
da Nova Política Econômica-NEP. Além do mais, alguns dos membros do comitê
pertenciam a essas mesmas facções ou plataformas que hoje seriam chamadas de
“informais” ou “não institucionais”. Tudo era estranho e novo. O partido se
transformou na força orientadora, e seu poder tornou-se real. Portanto, muita coisa
dependia da posição política, das qualidades morais e do profissionalismo dos que
operavam dentro do núcleo do partido.
Lenin foi a única pessoa indicada para o Comitê Central em todos os congressos
de pós-guerra – o X, o XI e o XII (embora não comparecesse ao último). Seu
exemplo, sua experiência e seus trabalhos teóricos tiveram influência única sobre o
Comitê Central e seu núcleo dirigente; e sua ausência foi profundamente sentida.
No relatório sobre a organização para o XII Congresso, em 17 de abril de 1923,
Stalin declarou:
Dentro do Comitê Central, há um núcleo de dez a 15 homens de tal forma capacitados em equacionar o
trabalho político e econômico de nossos órgãos que correm o risco de se transformar em algo como sumo
sacerdotes do governo. Isso pode ser uma boa coisa, mas tem também seu lado perigoso, pois esses
camaradas, ao acumularem grande experiência em governo, podem ser afetados pelo convencimento, fechar-
se em si mesmos e isolar-se do trabalho com as massas. [...] Se não se cercarem de uma nova geração de
futuros líderes bem ligados ao trabalho nas localidades, essas pessoas altamente qualificadas têm tudo para se
fossilizar e se afastar das massas.3
Lenin ainda era vivo quando Stalin pronunciou tais palavras, e essa parte do
discurso banhou-se na noção de Lenin de que o núcleo líder deveria ser
constantemente renovado. O transcurso de 15 anos mostraria tais pontos de vista
mudados para algo bem diferente, embora, por volta de 1937-38, Stalin ainda fosse
capaz de dizer belas coisas, se bem que praticando exatamente o oposto. Mas no
início dos anos 1920 tal dualismo de palavras e atos ainda não se evidenciava. No
congresso, ele assim falou sobre os companheiros e discípulos de Lenin:
O núcleo do Comitê Central, tão bom em governança, está ficando velho e precisa de reposição. Sabeis do
estado de saúde de Vladimir Ilyich, sabeis que os outros membros do núcleo estão bastante gastos. Porém,
até o presente, não há ninguém para substituí-los, esse é o problema. É difícil criar líderes de partido, leva
tempo, de cinco a dez anos, ou mais. É mais fácil fazer a guerra com outro país com a ajuda da cavalaria de
Budyonny que forjar dois ou três líderes oriundos das fileiras que possam se transformar realmente nos chefes
futuros do país.4
Ao transmitir a você as declarações de Stalin, Lev Davidovich, solicito que pense sobre elas e diga, primeiro,
se concorda em discuti-las pessoalmente com Stalin, para o que ele viria até aqui, e, segundo, se você acha
possível, em certas circunstâncias concretas, desprezar a fricção existente e trabalhar em conjunto, coisa que
Stalin deseja muito. Quanto a mim, creio ser necessário todo e qualquer esforço para um bom trabalho
conjunto com Stalin.5
No entanto, nada resultou. Trotsky não pôde esconder sua atitude superior. Como
ele próprio escreveu sobre Stalin:
Invejoso e ambicioso por demais, só podia perceber sua inferioridade intelectual e moral ao longo de toda a
jornada. [...] Só muito tarde, percebi que ele vinha tentando estabelecer alguma espécie de relação de
intimidade. Porém, repugnavam-me aquelas mesmas qualidades que poderiam favorecê-lo... a saber, a
estreiteza de seus interesses, seu pragmatismo, sua rudeza psicológica e o cinismo especial do provinciano que
foi liberado de seus preconceitos pelo marxismo, mas que não os substituiu por uma visão filosófica bem
refletida e mentalmente absorvida.6
Zinoviev, como Kamenev, foi considerado por muito tempo um dos amigos
próximos de Stalin. Quando foi removido do Politburo, em 1926, achou que seu
afastamento não seria por muito tempo. Na noite de Ano-novo, ele e Kamenev,
levando garrafas de conhaque e champanhe, apareceram de surpresa no apartamento
de Stalin. A impressão foi de que a revolução mundial tinha estourado. Eles
conversaram da forma cordial de sempre e recordaram velhos tempos e amigos, mas
não trocaram uma só palavra sobre a saída do Politburo. “Koba” foi hospitaleiro e
deu uma calorosa recepção aos antigos “chapas”. Dirigiu-se a eles com simplicidade
e sinceridade, como se não fosse o responsável pelo afastamento de ambos do
Politburo no outubro anterior. O duo sentiu-se flutuando no ar. Mas Stalin já
decidira havia muito tempo que os serviços daqueles dois, que muito sabiam sobre
ele, não eram mais necessários.
Haveria outra oportunidade em que os dois viriam, ou melhor, seriam trazidos à
presença de Stalin. Como antigos companheiros de Lenin e ex-membros do
Politburo, que contaram com altas posições depois da morte do líder, vinham
escrevendo da prisão cartas a Stalin, em 1936, quando, de repente, Stalin reagiu.
Eles entraram no gabinete do homem que tanto subestimaram e lá, além do próprio
Stalin, encontraram Voroshilov e Yezhov. Stalin não respondeu ao cumprimento
nem os convidou a sentarem-se. Andando de um lado para o outro, ofereceu-lhes
um acordo: a culpa deles já fora estabelecida e um novo julgamento poderia impor a
sentença máxima. Mas ele relembrava os serviços passados. Se confessassem tudo no
julgamento, especialmente a liderança direta de Trotsky sobre suas atividades
subversivas, salvaria a vida deles, ou melhor, tentaria salvar. Depois tudo faria para
libertá-los. Eles precisavam decidir. O caso exigia. Seguiu-se longo silêncio.
Zinoviev, que era o mais fraco e mais submisso dos dois, disse mansamente: “Está
bem, concordamos.” Estava acostumado a falar em nome de Kamenev. Dois meses
depois, foram fuzilados.
Esta história me foi relatada na Sibéria, em 1947, por um prisioneiro conhecido
como Boris Semyonovich. No vilarejo onde eu vivia com minha mãe, irmão e irmã,
foi apressadamente construído um campo de prisioneiros em 1937. Alguns dos
presos tinham a categoria “sem escolta”, isto é, podiam, vez por outra, atravessar o
perímetro do confinamento. Boris Semyonovich era sapateiro e esteve em minha
casa duas ou três vezes para consertar minhas botas impermeáveis e as de meu
irmão. Até sua prisão em 1938, integrara a força de segurança do próprio presídio
onde Zinoviev e Kamenev estavam detidos. Acompanhara os dois para o encontro
com Stalin. Na noite em que foram levados para a execução, tiveram
comportamentos diferentes. Embora ambos tivessem escrito a Stalin várias vezes
pedindo clemência e, aparentemente, esperassem por isso (afinal, ele prometera),
sentiram que era o fim. Kamenev caminhou em silêncio pelo corredor, apertando
nervosamente as mãos. Zinoviev ficou histérico e teve que ser carregado. Em menos
de uma hora, dois outros antigos participantes do núcleo do Comitê Central
cruzaram a fronteira fatídica. Ao tempo em que estiveram no poder, fizeram mais do
que ninguém para consolidar a posição de Stalin. O pagamento pelo serviço foi o de
suas vidas.
Vale a pena lembrar que Stalin conheceu Kamenev muito bem durante o tempo
de exílio dos dois em Turukhansk, quando ouviram pela primeira vez as notícias
sobre a Revolução de Fevereiro. Stalin reconheceu então em Kamenev uma mistura
de erudição e certa impulsividade, uma capacidade de tomar decisões rápidas e
categóricas, e, com a mesma rapidez, rejeitá-las. A atitude de Stalin em relação a
Kamenev foi muito influenciada pelo fato de este ter sido o vice de Lenin no
Sovnarkom e presidir com frequência os plenos do Comitê Central, assim como
congressos do partido. Em princípio, durante a vida de Lenin, Kamenev foi também
presidente do Politburo.
Embora Zinoviev e Kamenev fossem bons tribunos e escritores, careciam de
“espinha” e eram capazes de súbitas mudanças de posição em momentos cruciais,
em função de ambição, prestígio ou interesses pessoais. Intencionalmente ou não,
foram infelizes em levar sua luta com Stalin para a órbita do aparato partidário,
onde, com todas suas capacidades, eram muito pequenas suas chances de sucesso.
Não concordamos com Zinoviev e Kamenev porque sabemos que uma política de cortes vem carregada de
perigos para o partido, que o método da divisão, o do sangue quente – e é sangue que eles demandam – é
arriscado e contagioso: hoje, cortamos uma pessoa, amanhã, outra, no dia seguinte, uma terceira pessoa – o
que vai sobrar do partido?
O congresso aplaudiu, mas dois ou três minutos mais tarde, encerrando o seu
discurso, Stalin diria, comentando o fechamento do jornal Bolshevik de Leningrado:
“Não somos liberais. Para nós, os interesses do partido estão acima da democracia
formal. Sim, somos capazes de proibir a publicação de um órgão de facção, e
proibiremos essas coisas no futuro.”11 Tais palavras foram recebidas com uma
ovação. Os delegados gostaram da firmeza e da determinação de Stalin, mas como
poderiam adivinhar que logo Stalin estaria pronto para exercitar o “método do
corte”, ou que muitos deles viriam a subir o patíbulo da guilhotina?
Vamos dar um pequeno salto à frente. Kamenev já fora expelido do núcleo
central e trabalhava como diretor do Instituto de Literatura Mundial. Numa das
rotineiras visitas de Yagoda a Stalin, o patrão disse: “Fique de olho em Kamenev.
Acho que ele está ligado a Ryutin.*** Lev Borisovich [Kamenev] não é de desistir
facilmente. Eu o conheço há mais de vinte anos. É um inimigo.” Yagoda procedeu
conforme orientado. Kamenev foi preso em 1934, julgado em 1935 e sentenciado a
cinco anos. Foi julgado de novo no mesmo ano e, dessa vez, recebeu dez anos. No
fim de 1936, seu caso foi cancelado, para sempre. Naquela ocasião, no entanto,
Stalin precisava de Zinoviev e Kamenev para sua luta com Trotsky, a quem via
como inimigo principal seu e do partido.
Stalin rapidamente revelou-se um administrador bastante bom. Ao cumprir suas
tarefas, deu especial atenção às necessidades dos membros do Politburo e de outras
figuras importantes do Comitê Central. Na sua cabeça, as pessoas que considerava
mais influentes eram as que, em particular, chamava os “escritores”, ou seja, os ex-
emigrados. Não podia negar que eles possuíam elevado nível intelectual,
fundamentação teórica e vasto conhecimento geral. E isso despertava nele um certo
ressentimento, como se quisesse dizer: “Enquanto preparávamos a revolução, lá
estavam eles lendo e escrevendo.”
Certa vez, quase se expressou abertamente a respeito. Um secretário provincial
estava para ser confirmado como representante do Comitê Central quando deixou
escapar que o companheiro mal sabia ler ou escrever. Stalin resolveu o caso dizendo:
“Ele jamais esteve no exterior, como poderia aprender? Vai se sair bem.”
Entre os assistentes de Lenin havia muitas pessoas talentosas. Stalin logo notou
que Bukharin, Rykov e Tomsky, embora não formassem um grupo especial,
mostravam-se diligentes na solução dos problemas econômicos e industriais do país.
Eram bons economistas, ou tecnocratas, como diríamos hoje. Infelizmente, nos anos
1930 e nas décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, não havia lugar nos
altos escalões do poder para economistas e tecnocratas autênticos. De um modo
geral, seus lugares eram ocupados por administradores e burocratas como
Kaganovich e Malenkov. Aliás, num sistema de diretrizes a comando, os
economistas eram de pouca utilidade, já que muita coisa era feita ao arrepio das leis
econômicas.
Nikolai Ivanovich Bukharin era, sem dúvida, a figura de proa desse trio. Seu
primeiro livro, A teoria econômica da classe do lazer, publicado antes da Primeira
Guerra Mundial, penetrou profundamente na origem das relações econômicas. No
primeiro volume do seu Economia, publicado em 1920, propôs-se a revelar o
processo de transformação de uma economia capitalista em socialista, porém,
assaltado pela luta e pelas circunstâncias mutantes, jamais preparou o segundo
volume. No Economia, escreveu que “as pessoas não construíram o capitalismo, ele
se fez por si mesmo. Quanto ao socialismo, ele é um sistema organizado que
estamos forjando. O principal para nós é encontrar um equilíbrio entre todos os
elementos do sistema”. Como o conhecimento de Stalin sobre economia era apenas
rudimentar, ele prestou bastante atenção em Bukharin.
As relações entre os dois naquele tempo não foram particularmente difíceis:
afinal, Bukharin era pessoa de fácil convívio, o tipo tranquilo de intelectual. Por
vezes, pareceu que eram amigos íntimos. Ao passarem a viver em apartamentos
vizinhos no Kremlin, Stalin percebeu de imediato que Bukharin não tinha planos
ambiciosos. Ao contrário, achava incompreensível e desagradável a disputa pela
liderança e os atritos que isso gerava entre os vários membros do Politburo; levou
muito tempo para que ele tomasse posição na contenda entre o “triunvirato” e
Trotsky. Este depois classificou as intervenções de Bukharin no debate como “forma
estranha de promoção da paz”. Bukharin valorizava, em primeiro lugar, a autoridade
de Lenin, conquanto muitas vezes discutisse asperamente com ele, e, em segundo
lugar, a autoridade coletiva do Politburo.
A postura de Stalin em relação a Alexei Ivanovich Rykov era de cautela, não
apenas porque ele assumiu o lugar de Lenin como presidente, mas também por ser
excepcionalmente direto e franco. Por isso, nem sempre se deu bem com os colegas.
Smilga, por exemplo, pediu ao Comitê Central dispensa de suas tarefas como vice-
presidente do Conselho de Economia para Toda a Rússia e como chefe da agência
principal de combustíveis (Glavtop) por ser impossível trabalhar com Rykov.
Quando Lenin viu a carta de Smilga, escreveu a Stalin dizendo que Smilga não
deveria se afastar e que membros do partido sabiam e deviam acertar os ponteiros
entre eles mesmos.
Rykov normalmente dizia na cara das pessoas o que pensava, e escrevia da
mesma forma. Em 1922, publicou um trabalho intitulado “Situação econômica do
país e conclusões para o trabalho futuro”. Na verdade, passava a dar apoio à NEP e
se opunha às tentativas de resolver por comandos os problemas econômicos.
Envolveu-se com a Goelro (Comissão Estatal para a Eletrificação da Rússia), com a
Dneprostroy (Estação Geradora de Energia do Dnieper), com a Turksib (Ferrovia
Turquestão-Siberiana), com o crescimento do movimento cooperativista, com o
primeiro Plano Quinquenal e com outras iniciativas importantes do Estado
socialista. Foi Rykov quem, mais tarde, tentou convencer Stalin e seus seguidores de
que o socialismo deveria desenvolver e melhorar as relações comerciais e financeiras,
e não tolher a independência econômica dos produtores diretos. Mas, que lástima, a
conversa era em línguas distintas.
Quando, no final dos anos 1920, Stalin já adquirira maior peso político, Rykov
certa vez disse diretamente: “Sua política não tem nem cheiro de economia!” O
secretário-geral ficou impassível, mas jamais esqueceu a zombaria.
Na realidade, jamais esqueceu coisa alguma. Sua memória fria de computador
retinha milhares de nomes, fatos e eventos firmemente armazenados nas células. E
ele não esqueceu que Lenin tinha Rykov em altíssima conta e que seu nome figurava
nos trabalhos do líder com pouco menos frequência que o de Stalin. Como
presidente do Sovnarkom a partir de 1926, Rykov também presidia o Conselho do
Trabalho e da Defesa, e os comitês de ciência e de desenvolvimento do pensamento
científico. Stalin não esqueceu que Rykov fez um discurso no soviete de Moscou,
em 1927, no qual disse que não era permitido recorrer-se novamente aos métodos
do Comunismo de Guerra e criticou severamente os que se opunham à NEP,
classificando tais ataques de “inusitadamente nocivos e perigosos” e demandando
um fim para os métodos coercitivos no campo onde, em suas palavras, era essencial
manter a “legalidade revolucionária”. Seu primeiro cargo no governo soviético fora o
de comissário de Assuntos Internos, mas renunciou poucos dias depois porque o
governo era composto totalmente de bolcheviques, não era uma coalizão. Muitos
anos depois, ele falou pela última vez num pleno do Comitê Central quando
repudiou as monstruosas acusações de espionagem, sabotagem e terrorismo
imputadas a ele. Stalin sorriu maliciosamente: “Ele foi sempre assim.”
Bukharin e Rykov se preocupavam com a sorte dos agricultores russos, enquanto
Trotsky – e Stalin que, em essência, concordava com ele – considerava-os “material
para a transformação revolucionária”. Era impossível não notar a popularidade de
Bukharin e Rykov. Eles andavam sem guarda-costas, eram acessíveis e atenciosos. A
gente comum sempre deu valor a tais qualidades em seus líderes. Stalin chamava isso
de “jogo para a plateia”.
Stalin também desconfiava de Mikhail Ivanovich Tomsky (nome real,
Yefremov). Participante de três revoluções e sindicalista, Tomsky sabia como se dar
valor. Stalin tolerou aquele “amigo de Rykov” até que Kaganovich e Shvernik
entraram para o presidium do Soviete Central dos Sindicatos e depuseram Rykov
das funções de presidente. Quando Tomsky cometeu suicídio, em 22 de agosto de
1936, em sua dacha de Boltsevo, Stalin disse: “O suicídio confirma sua culpa
perante o partido!” Na verdade, fora um ato de protesto extremo contra o mando de
Stalin.
Posição notável na chefia foi ocupada por Felix Edmundovich Dzerzhinsky,
apelidado por Bukharin de “jacobino proletário”. Foi um dos primeiros membros
do partido e um dos organizadores da Democracia Social do Reino da Polônia e
Lituânia, no começo do século. Ao analisar, mais tarde, o papel desempenhado por
Dzerzhinsky, Karl Radek, membro do Comitê Central e farol-guia no Comintern,
observou:
Nossos inimigos inventaram a lenda sobre os olhos e ouvidos da Cheka**** que tudo via e tudo ouvia, e
sobre o onipresente Dzerzhinsky. Pintaram a Cheka como um exército enorme que cobria todo o país,
estendendo seus tentáculos ao seu próprio campo. Não entenderam a fonte do poder de Dzerzhinsky. Ela
derivava da força do partido bolchevique: da confiança total das massas trabalhadoras e dos pobres.12
As relações de Stalin com Dzerzhinsky não foram ruins, em particular depois que
cumpriram juntos diversas missões no front da guerra civil. Após a morte prematura
de Dzerzhinsky, Stalin, que não era de derramar grandes elogios, disse: “Ele foi
consumido pelo trabalho apaixonado que fazia em prol da causa proletária.”
Mikhail Vasilyevich Frunze tinha uma personalidade atraente, se bem que sua
figura não o realçasse. Stalin, que também experimentara prisão e exílio, tinha por
ele grande consideração, já que Frunze fora por duas vezes condenado à morte em
1907, passara muitas semanas na cela dos sentenciados à pena capital e passara por
trabalho forçado diversos anos. Poucos sabiam em detalhe o quanto ele fizera pela
vitória nos fronts Oriental, do Turcomenistão e do Sul. Até Stalin ficou
impressionado com a liderança calma e com o alto grau de determinação política e
militar que demonstrou. Durante seu breve mandato como comissário para as
Questões Militares e Navais, em 1925, Frunze destacou-se pela inteligência e pela
abordagem original da doutrina militar, pela reforma das forças armadas e pelas
técnicas operacionais da guerra moderna.
Sofria de úlcera estomacal, que preferia tratar com medicina conservadora e,
geralmente, conseguia controlar a dor rotineira e constante. Uma equipe de
médicos, no entanto, recomendou a cirurgia. De acordo com diversos testemunhos,
por exemplo, o do livro Tak bylo (“Eis como foi”) de I.K. Gamburg, e o do conto
Povest nepogashchennoy luny (“História de uma lua inextinguível”) de Boris Pilnyak,
Stalin e Mikoyan visitaram Frunze no hospital e instaram para que o cirurgião
professor Rozanov realizasse a operação. Pouco antes da cirurgia, Frunze escreveu
um bilhete à esposa: “Neste momento, sinto-me completamente em forma, e é uma
bobagem pensar em operação, muito menos fazê-la. Ainda assim, as duas equipes
insistem nela.”13
É difícil avaliar a veracidade dos rumores que correram depois da morte de
Frunze, se foi a mão do destino, ou a de alguém que o atacou. Muitos médicos
expressaram a opinião de que a operação, bastante simples até para os padrões
daquele tempo, não era necessária. No funeral, Stalin disse: “Talvez seja até melhor
que velhos camaradas cheguem à sepultura de forma tão quieta e tranquila.
Infelizmente, será bem mais difícil sua substituição pelos jovens camaradas.”14
Houve quem detectasse um significado oculto naquelas palavras, mas não há base
para afirmativas categóricas. Frunze, caso sobrevivesse, teria, por certo, um papel
importante, e Stalin sabia disso.
Um dos mais destacados organizadores do Comitê Central foi Yakov
Mikhailovich Sverdlov, homem totalmente destituído de ambições pessoais, como
Lunacharsky a ele se referiu. Era o exemplo clássico do funcionário dedicado. “Ele
tinha ideias ortodoxas sobre tudo e foi não mais que um reflexo da vontade geral da
diretriz de cima. Pessoalmente, jamais emitiu orientações próprias, meramente as
transmitia, quer do Comitê Central, quer de Lenin.” Quando falava, segundo
Lunacharsky, parecia um editorial de jornal do partido. Não obstante, era possuidor
de algo que poucos tinham, ou seja, da captação brilhante das pequenas nuances das
atitudes no partido, e uma extraordinária capacidade de organização. Com efeito,
quando foi decidido que o secretariado deveria ter um só chefe e que o secretário-
geral do Comitê Central deveria ocupar o cargo, Sverdlov já estava preenchendo
aquela função. Stalin gostava da maneira eficiente com que Sverdlov conduzia as
reuniões do comitê. Numa sessão memorável de março de 1918, a agenda era a
situação na Ucrânia, uma declaração dos Comunistas de Esquerda, a evacuação do
Pravda, a supervisão do segmento militar, uma declaração de Krylenko e o caso
Dybenko. O país fervia. Sverdlov pegou o livro de capa de oleado preto onde
registrava as minutas, olhou em torno para os presentes, inclusive Lenin, Zinoviev,
Artem Sergeyev, Sokolnikov, Dzerzhinsky, Vladimirsky e Stalin, e, suavemente,
solicitou a todos que não se afastassem da pauta.15 Depois de sua morte inesperada,
Lenin disse que uma tal pessoa não podia ser substituída; para isso, seria necessário
todo um grupo de funcionários.
Muitos aspectos do caráter são forjados no trabalho com um grupo de colegas
que pensam da mesma forma ou que até são competidores. Como um dos
integrantes da coorte de Lenin, Stalin iria absorver muita coisa valiosa e duradoura
do próprio líder ou de seu entourage. Mas nem todas as características humanas são
passíveis de mudança. Os atributos caldeados nos primeiros anos de vida, tais como
a mania do sigilo, o cálculo, a aspereza, a desconfiança, a insensibilidade podem,
com o correr do tempo, tornar-se mais enraizados, e não abrandados. Stalin, bem
cedo, começou a manifestar a qualidade descrita por Hegel como “probabilismo”,
isto é, o tipo de personalidade que, tendo cometido um ato moralmente
repreensível, tenta justificá-lo mentalmente e representá-lo para si mesmo como
bom. Assim era Stalin. Uma vez certo de que o líder incontestável estava seriamente
enfermo, ele começou, passo a passo, seu grande jogo de maximizar a própria força
dentro da liderança. A princípio, tentou convencer a si mesmo de que aquilo era
necessário “para a defesa do leninismo”. Depois, tudo o que fez considerou
moralmente justificável em nome da “construção do socialismo num país”. O
probabilismo acabou ocupando lugar importante em seu arsenal de métodos
políticos. O povo tinha que saber, acreditava ele, que tudo que fazia era em nome
do povo.
Parece claro que muitos daqueles que cercavam Lenin por muito tempo não
enxergaram através de Stalin. Alguns o viam simplesmente como um executor,
outros, como o representante razoavelmente eficaz dos elementos minoritários
nacionais dentro do partido, enquanto para outros não passava de uma
mediocridade típica dos círculos governamentais de qualquer regime ou sistema. Os
camaradas de Lenin o subestimaram, ao passo que Stalin entendeu perfeitamente
todos eles. Mesmo os companheiros mais próximos de Lenin, como Zinoviev,
Kamenev, Bukharin, Rykov, Tomsky, Rudzutak e Kosior, terminariam como
“inimigos do povo” porque Stalin assim o decidiu. Afinal, ele prestou muita atenção
ao fato de o Exército Vermelho ter sido comandado durante a guerra civil quase que
exclusivamente por seus “inimigos”: Trotsky, Blyukher, Yegorov, Tukhachevsky,
Uborevich, Dybenko, Antonov-Ovseyenko, Smilga, Muralov, mais centenas e
milhares de outros “traidores”.
Lenin não percebeu, mas Stalin constatou com sagacidade que os “capitães da
indústria” eram, na sua quase totalidade, “sabotadores”, como Pyatakov, Zelensky,
Serebryakov, Lifshits, Grinko, Lebed, Semenov e milhares de outros. Só Stalin
entendeu que o serviço diplomático soviético estava infestado de “espiões”, como
Krestinsky, Rakovsky, Sokolnikov, Karakhan, Bogomolov, Raskolnikov. Quantos
“homens de duas caras” ele identificou e desmascarou em praticamente todas as
esferas do Estado! Pessoa assim seria realmente uma “mediocridade”? Trotsky estava
errado. Robespierre disse na Convenção em 5 de fevereiro de 1794 que “o primeiro
princípio de nossa política tem que ser o de governar o povo com ajuda da razão e
tratar os inimigos do povo com a ajuda do terror”.16 O sistema de Robespierre foi
dualista, não universal. O “princípio” político de Stalin foi monístico – todos
tinham que ser governados pelo método único da coação. Duvido que qualquer dos
camaradas de Lenin sonhasse, em seus pesadelos mais terríveis, que tal monstro era
cevado em seu meio, exatamente ali no núcleo da liderança.
Notas
* Facção do partido formada em 1920 pelos ex-Comunistas de Esquerda V.V. Osinsky, T.V. Sapronov, V.N.
Maximovsky. Eram pela gerência coletiva e não de um só homem, contra o controle do partido central nas
localidades, e exigiam liberdade para facções e grupos no partido.
** Formada em 1920 por A.G. Shlyapnikov, M.K. Vladimirov, A.M. Kolontal, Yu.Kh. Lutovinov, C.P.
Medvedev, considerava os sindicatos a forma mais elevada de organização da classe trabalhadora, e não o
partido, e propunha que a administração da economia nacional fosse entregue aos sindicatos.
*** Em 1932, Mikhail Ryutin distribuiu um longo documento pedindo um ritmo mais lento para a
industrialização e a coletivização, democracia partidária e a remoção de Stalin.
Discussões francas sobre tudo o que pudesse afetar a vida do partido eram a norma,
ao passo que observações críticas semelhantes feitas nos anos 1930 seriam encaradas
como “destrutivas”, e a aprovação unânime, o apoio irrestrito e a bajulação
passariam a ser a regra. As atas dos congressos ao tempo de Lenin foram modelos de
democracia, de camaradagem ideológica e de abertura da mais alta – dentro do
partido.
Já em 1920, o trabalho do dia a dia do aparato do Comitê Central mostrou que
o secretariado necessitava de alguém para cuidar de sua própria organização. No
pleno de 5 de abril de 1920 do Comitê Central ficou decidido que Krestinsky,
Preobrazhensky e Serebryakov seriam nomeados secretários, que a indicação de um
secretário-executivo não poderia tardar e que, em adição aos três secretários, o
Orgburo deveria incluir Rykov e Stalin.19 As atas do Comitê Central (normalmente
anotadas em blocos escolares) demonstram que a questão da indicação de um só
secretário-executivo foi levantada muito antes de 1922. Depois do XI Congresso,
um dos secretários foi especialmente destacado, enquanto, antes disso, Stasova,
Krestinsky e Molotov tinham sido nomeados secretários-executivos. Agora, no
entanto, tratava-se da elevação da função ao status de secretário-geral. De quem foi a
ideia, de onde havia partido? A evidência é da origem em Kamenev e Stalin. Segue-
se, portanto, que Lenin era conhecedor da inovação iminente.
De acordo com a intenção manifesta no XI Congresso, o pleno de 3 de abril de
1922 escolheu um Politburo, um Orgburo e um Secretariado. Também decidiu
adotar o cargo de secretário-geral, e Stalin foi nomeado naquele mesmo dia. Isso,
aliado ao fato de ele ser membro do Politburo e do Orgburo, significou o
desempenho simultâneo de três importantes funções no partido. Ao mesmo tempo,
Molotov e Kuibyshev, que eram membros candidatos do Politburo, foram
nomeados secretários. Hoje se pergunta por que Stalin e não outro recebeu o cargo?
Quem o indicou? Qual a participação de Lenin na nomeação? A nomeação de Stalin
para secretário-geral significou a concessão a ele de poderes extras? A resposta a tais
indagações nos encaminha à história do partido e do país, mas também vai à raiz de
males futuros. Voltemo-nos, portanto, para os documentos imparciais.
Os membros do Comitê Central que participaram da sessão plenária foram
Lenin, Trotsky, Zinoviev, Kamenev, Stalin, Dzerzhinsky, Petrovsky, Kalinin,
Voroshilov, Ordzhonikidze, Yaroslavsky, Tomsky, Rykov, A.A. Andreyev, A.P.
Smirnov, Frunze, Chubar, Kuibyshev, Sokolnikov, Molotov e Korotkov, enquanto
os candidatos a membros incluíram Kirov, Kiselev, Krivov, Pyatakov, Manuilsky,
Lebed, Sulimov, Bubnov, Badaev e Solts, que era membro da comissão central de
controle.
O primeiro assunto debatido no plenário foi a composição do Comitê Central.
Quanto à função de presidente, o plenário resolveu “confirmar a aceitação unânime
do costume de não ter presidente. Os únicos funcionários oficiais do Comitê
Central são seus secretários: o presidente é escolhido em cada sessão”.
Foi levantada então a questão do porquê, na lista dos membros do Comitê
Central escolhidos pelo congresso, havia notas sobre indicação de Stalin, Molotov e
Kuibyshev como secretários. Kamenev explicou, e o pleno anotou, que, “com a
aprovação total do congresso, ele anunciara durante as eleições que, a despeito de
algumas cédulas estarem marcadas com nomes de candidatos ao posto de secretário,
o pleno não deveria ficar inibido quanto a fazer sua própria seleção, porque aquilo
indicava meramente as preferências de uma seção particular de delegados”.20 Tais
preferências derivavam acima de tudo de Kamenev, Zinoviev e, às ocultas, de Stalin.
Oficialmente, o congresso nomeou apenas membros do Comitê Central, mas há
evidência de que Kamenev esforçou-se para assegurar a seleção de futuros
secretários. Em outras palavras, ele queria um “homem seu” chefiando o aparato do
Comitê Central. Suas relações eram excelentes com Stalin, o qual, mais de uma vez,
deu grande destaque a sua posição especial de ex-vice de Lenin no Sovnarkom e
havia grande deferência por ele como talvez a figura mais alta da hierarquia. Muitos
sinais indiretos indicam que Kamenev tentava garantir o cargo para Stalin, com o
conhecimento deste. Stalin gostava da função e já tinha identificado as vantagens
nela implícitas.
O pleno foi mais adiante em suas decisões: “O posto de secretário-geral e os de
dois secretários devem ser criados, o camarada Stalin como secretário-geral e os
camaradas Molotov e Kuibyshev como secretários.” Lenin propôs que secretários
não tivessem outra tarefa que seu papel de liderança e instruiu Stalin para encontrar
vices e assistentes que o aliviassem do trabalho nos sovietes e na Inspetoria de
Operários e Camponeses.21
Ao tempo da nomeação de Stalin, os médicos de Lenin insistiam para que ele
seguisse um regime de vida rigoroso. De fato, foi em abril de 1922 que eles
decidiram pela necessidade de um longo repouso e ar de montanha, e propuseram
uma viagem ao Cáucaso, mas essa cura teve que ser adiada e Lenin continuou
trabalhando. Ele desejava que o aparato do Comitê Central evitasse a burocracia
para não emperrar. Por proposta de Lenin, o Politburo reunia-se uma vez por
semana, mas havia trabalho diário a ser feito. O secretariado preparava os
documentos para as sessões do Politburo, transmitia suas decisões para os
encarregados pela execução e cumpria as ordens de seus membros. Apesar de não se
envolver diretamente com as questões relacionadas com economia, defesa,
administração do estado ou educação, desempenhava parte importante na
administração geral do aparato do partido. Uma vez que os órgãos principais eram
dirigidos por bolcheviques importantes, que não davam muita atenção aos detalhes
técnicos, ficou resolvido que um dos membros do Politburo seria responsável por
todo o trabalho do secretariado, com o cargo de secretário-geral. Para firmar bem: a
proposta concreta sobre a candidatura de Stalin foi feita por Kamenev, o qual
também presidiu o pleno que indicou o secretário-geral. Tudo leva a crer que essas
questões foram examinadas antes com Lenin.
Stalin era qualificado para a função? Evidentemente que sim. Era membro do
partido desde 1898 e do Comitê Central desde 1912, como também participava do
gabinete do Comitê Central, do Orgburo e do Politburo. Único integrante do
Politburo a ocupar dois postos estatais – o de comissário das Nacionalidades e a
Inspetoria de Operários e Camponeses – representava também o Comitê Central na
junta da Vecheka-OGPU (Administração Política Unificada do Estado) e era
membro do Revvoensoviet da República e do Conselho do Trabalho e da Defesa – e
isso não esgota a lista de cargos que exercia quando se tornou secretário-geral.
Indiscutivelmente, essas são provas de que sua contribuição para a reestruturação
da sociedade, sua experiência com as atribuições da administração política e do
Estado e sua inclinação pelo trabalho de organização eram reconhecidos e acatados
por muitos dos velhos bolcheviques. Sua ascensão ao cargo de secretário-geral,
portanto, não surpreendeu. Grande parte dos outros líderes continuava a considerar
o cargo como essencialmente rotineiro. Tudo isso ocorria enquanto Lenin estava
vivo e bem. A questão da chefia do partido e do Estado simplesmente não era
cogitada. Havia um líder incontestável, que era Lenin. Na nova função, Stalin
continuava pouco conhecido pelo partido e pelo país. Dentro da liderança, contudo,
suas qualidades positivas e negativas passavam a ficar mais evidentes.
Para o traçado completo do caráter de Stalin serão necessárias décadas, se é que
um dia chegaremos a ele. Ele sabia disfarçar os sentimentos. Poucas pessoas
chegaram a vê-lo irado. Era capaz de tomar as decisões mais duras com absoluta
serenidade. Com o decorrer do tempo, seus auxiliares mais próximos passaram a ver
nisso grande sabedoria e perspicácia. Não conhecia a comiseração, nem o amor filial
ou o de um pai por filhos e netos. Destes, poucas vezes viu os filhos de sua filha
Svetlana e os filhos de seu primogênito Yakov. Sua vida particular era totalmente
segregada. Vivia para o trabalho. Decisões, ordens, reuniões, discursos. O mundo
era em preto e branco, e tudo que não se coadunasse com a “linha” era ruim. Meios-
tons eram imperceptíveis. Sua forma preferida de raciocínio era a lógica binária, sim
ou não. Era categórico e de um fim só, não distinguia a grande faixa de diversidade
entre esses dois polos. Seu estilo, suas anotações, seus discursos e relatórios eram
concisos, quase telegráficos. Gostavam disso, consideravam Stalin prático, homem
que conhecia as obrigações, sem sentimentalismos, homem de negócios. Ele não
gostava da palavra “humanismo”. À época, ninguém tinha ideia desses fatos. No
Comitê Central, pensava-se que, para Stalin, nada havia acima da disciplina
partidária, do dever partidário, da “linha” do partido.
Ao longo de 1922 e no início de 1923, quando a doença finalmente o
incapacitou, Lenin, preocupado com a solução política e organizacional de muitos
problemas, enviou dezenas de notas, projetos e cartas a Stalin. Decorridos nove
meses e depois de algumas decisões infelizes, Lenin percebeu que Stalin não fora
uma boa escolha para secretário-geral e que deveria ir para outra função.
Uma das decisões equivocadas de Stalin, por exemplo, foi o apoio que deu, em
maio de 1922, a uma proposta de Sokolnikov e Bukharin para acabar com o
monopólio estatal do comércio exterior. Lenin opôs-se categoricamente a essa
medida.22 Em setembro de 1922 – Lenin recuperado do primeiro e sério ataque –,
Stalin saiu-se com a ideia da “autonomização”, isto é, a unificação das repúblicas
nacionais por meio da adesão à Federação Russa. Na realidade, essa ideia não era a
criação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, mas a de uma República
Federativa Socialista Soviética Russa, na qual as outras entidades nacionais teriam
direito à autonomia. Stalin já fizera aprovar sua proposta na comissão especial do
Comitê Central criada para apreciar a matéria. Lenin reagiu de imediato numa carta
endereçada a Kamenev, mas dirigida aos membros do Politburo:
Camarada Kamenev. Sem dúvida, você já recebeu a resolução da comissão do camarada Stalin sobre a
entrada de repúblicas independentes na RFSSR. [...]
Na minha opinião, essa é questão da maior importância. Stalin mostra certa tendência para apressar as coisas.
Você deve dar cuidadosa atenção a isso (certa vez, você teve intenção de tratar do assunto e chegou mesmo a
dar os primeiros passos), e Zinoviev também.23
Provavelmente, ninguém visitou Lenin em Gorky, durante a enfermidade, com a
frequência de Stalin. Por vezes, Lenin o convidava, a fim de se atualizar sobre as
questões correntes, noutras, o secretário-geral tomava a iniciativa. Na miríade de
assuntos levantados por Lenin, inquietava-o a saúde de Dzerzhinsky, de Tsyurupa, e
de outros camaradas que não estavam bem na ocasião. Chegou mesmo a discutir o
estado de saúde de Stalin, tendo primeiro falado num telefonema com o médico do
secretário-geral, V.A. Obukh.
Em 26 de setembro de 1922, Lenin chamou Stalin a Gorky, e tiveram uma
conversa de três horas,24 na qual o líder enfatizou que o problema da unificação das
repúblicas era importante demais e não podia haver açodamento. Propôs uma nova
base em princípio para a criação do Estado unido: a unificação voluntária das
repúblicas independentes, inclusive a Rússia, numa União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas, com a preservação de direitos totalmente iguais para todas. Stalin jamais
divergiu publicamente de Lenin e, em geral, aceitava logo seus argumentos, embora
nessa questão nacional considerasse “liberal” a posição do líder.25
Essas conversas frequentes não eram apenas uma maneira de Lenin obter
informações, dar conselhos e apresentar sugestões, mas serviam também para
instruir o chefe do aparato do Comitê Central. Durante os muitos encontros, Lenin
por certo formou boa ideia sobre os pontos fortes e fracos de Stalin, e os
comentários que fez sobre ele, no final de 1922 e início de 1923, resultaram de
análises e reflexões profundas. A questão nacional, em particular, e o modo de Stalin
equacioná-la abriram os olhos de Lenin para alguns novos aspectos da personalidade
do secretário-geral, e também para algumas facetas morais. Nas anotações intituladas
“Sobre a questão das nacionalidades ou Autonomização”, Lenin descreveu a ideia de
Stalin como um afastamento do internacionalismo proletário. Na conclusão, fez
uma avaliação política e moral de Stalin: “Acredito que um papel crucial foi aqui
representado pela pressa de Stalin e por sua propensão a recorrer a métodos
administrativos, bem como por sua animosidade em relação ao infame
‘nacionalismo social’. Animosidade em política, em geral, dá os piores resultados.”26
Ordzhonikidze foi também admoestado por usar a força física durante a viagem
que fizera ao Cáucaso. Ele chefiou a comissão que tentou pôr ordem no conflito
surgido com os líderes do partido comunista da Geórgia, mas se revelou inadequado
para a missão. Além do mais, quando a situação lhe estava sendo explicada, agrediu
Mdivani, um membro do Comitê Central local. Lenin escreveu que “nenhuma
provocação, nem mesmo insulto, podem justificar tal violência russa, e o camarada
Dzerzhinsky está irreparavelmente errado ao tratar o ato com tanta
superficialidade”.27 Foi o fato de Stalin não tomar posição de princípio nesse
conflito que permitiu a Lenin observar publicamente que o secretário-geral não só
agiu com açodamento e usou métodos “administrativos”, ou seja, coercitivos, mas
mostrou animosidade no trato de assuntos políticos.
O diário dos secretários de Lenin mostram que ele voltou repetidamente à
questão. As anotações de L.A. Fotieva, por exemplo, indicam que Lenin solicitou
material adicional sobre o incidente. Stalin recusou o envio dos subsídios
argumentando que se deveria evitar qualquer tensão desnecessária ao enfermo. Mas
Lenin insistiu. Em 5 de março de 1923, portanto cinco dias antes de sofrer o outro
derrame que o privou da fala, escreveu a Trotsky: “Solicito-lhe com veemência que
tome a si a defesa do caso georgiano no Comitê Central do partido. No momento,
está sendo ‘processado’* por Stalin e Dzerzhinsky, e não confio na imparcialidade
deles. Para ser honesto, muito pelo contrário!”28
No mesmo dia, Lenin ditou outra carta, dessa vez para Stalin. A missiva parece
ser de caráter pessoal, mas só parece. A razão para essa carta remontava a dezembro
de 1922 quando Lenin ditara para a esposa, Krupskaya, uma série de cartas de
enorme interesse para o futuro do partido. Durante a noite de 22 de dezembro,
aparentemente depois de ditar uma carta para Trotsky sobre o monopólio do
comércio exterior, a saúde de Lenin piorou. O braço direito e a perna direita ficaram
paralisados. Os membros do Politburo foram informados. No dia seguinte, Stalin,
pelo telefone, repreendeu Krupskaya nos termos mais rudes por “quebrar o regime
do líder enfermo”. Abalada pela aberta falta de tato e de cortesia de Stalin,
Krupskaya escreveu naquele dia a Kamenev:
Lev Borisovich, por eu ter escrito uma breve nota, ditada por Vladimir Ilyich com a permissão dos médicos,
Stalin permitiu-se atacar-me ontem da forma mais ofensiva. Não cheguei ontem no partido. Ao longo de
trinta anos, jamais ouvi grosserias de um membro do partido. O partido e Lenin não são menos caros para
mim do que para Stalin. Preciso agora de todo meu autocontrole. Sei melhor que qualquer médico o que
deve ou não ser dito para Ilyich, como também sei o que o incomoda ou não e, de qualquer forma, sei
melhor que Stalin.
Krupskaya prosseguiu solicitando a Kamenev que protegesse sua vida privada contra
“interferência tão crua e contra abusos e ameaças imerecidos”. E concluiu:
Não duvido da unanimidade da decisão da comissão de controle que deu a Stalin o direito de ameaçar-me,
mas não tenho força nem tempo para desperdiçar com farsa tão estúpida. Também sou humana e meus
nervos foram esgarçados ao limite.
N. Krupskaya29
De acordo com a vontade do Politburo, Stalin estava “protegendo” o líder contra
perturbações, mas é fácil ver que o isolamento de Lenin quanto às informações e sua
influência limitada sobre a situação do partido entraram nos planos de Stalin para
fortalecer sua posição durante aquele período.
Kamenev levou o conteúdo da carta de Krupskaya ao conhecimento de Stalin.
Este, sem discutir, escreveu imediatamente a Krupskaya, desculpando-se e
explicando que seu procedimento se devera exclusivamente à preocupação com
Lenin. É difícil aquilatar se houve ou não sinceridade na desculpa. Stalin era
totalmente pragmático a respeito de princípios morais, e infringiria qualquer um se
lhe conviesse. Fosse como fosse, Lenin só soube do incidente, por intermédio de
Krupskaya, cerca de dois meses depois, em 5 de março de 1923. Ele viu o fato como
algo mais que pessoal. Logo depois, convocou a secretária, M.A. Volodicheva, e
ditou o bilhete para Trotsky sobre o plenário do Comitê Central que iria apreciar o
caso georgiano. Disse à secretária para ler o bilhete para Trotsky pelo telefone e
trazer-lhe a resposta tão logo possível. Então, ditou a seguinte carta para Stalin:
Respeitado camarada Stalin
Foi um insulto seu chamar minha esposa ao telefone e ofendê-la. Embora ela tenha dito a você que está
disposta a esquecer o que foi dito, ela contou a Kamenev e Zinoviev o que ocorreu. Não estou disposto a
esquecer com tanta facilidade o que é feito contra mim, porque nem é preciso frisar que o que é feito contra
minha mulher considero contra mim. Portanto, por favor considere se vai retirar o que disse e vai se
desculpar, ou estarão cortadas as relações entre nós.
Com respeito
Lenin, 5 de março de 1923.30
O tom de Lenin foi conciso e sóbrio. Ninguém ainda no partido sabia que ele
escrevera, em dezembro de 1922, sua “Carta ao Congresso” dando sua avaliação das
qualidades pessoais dos líderes do partido e recomendando a remoção de Stalin do
cargo de secretário-geral. A carta de 5 de março apenas acrescenta detalhes da
imagem política e moral que formara de Stalin. Lenin, finalmente, chegara à
conclusão de que, a despeito de o partido não ter escolha senão a de tolerar tais
comportamentos de membros de suas fileiras, as falhas morais de Stalin eram
absolutamente inconcebíveis num líder. Profeticamente, ele viu no caráter de Stalin
maus augúrios para a questão toda da liderança do partido. No dia seguinte, ditou
seu último documento em que Stalin figurou:
Lenin não conseguiu escrever nem notas nem discurso. Quatro dias depois, outro
derrame impossibilitou-o até mesmo de ditar. Toda evidência – principalmente suas
três últimas mensagens ditadas em 5 e 6 de março – indica, porém, que as ações de
Stalin na questão georgiana convenceram Lenin por completo de que sua Carta ao
Congresso estava bem fundamentada. Não foi fácil para Lenin aceitar o
desapontamento. A escolha que fizera em abril de 1922 fora má. Todos tinham
errado, inclusive ele. Mas o erro podia ser corrigido. Não lhes era possível ter uma
pessoa completamente amoral à frente do aparato do Comitê Central, um homem
potencialmente tão perigoso para a causa. Se Stalin fora capaz de ser insultuoso,
hipócrita e ofensivo com uma pessoa tão próxima a Lenin como Krupskaya, de que
forma se comportaria com os outros? Teria havido uma boa razão para o declínio
tão acentuado da saúde de Lenin durante os primeiros dez dias de março? Os
eventos dramáticos daquela ocasião – o caso georgiano e o desentendimento com
Stalin – devem ter acelerado a marcha de sua doença. O estado de espírito de Lenin
pode ter predisposto o líder para o derrame fatal.
No final, a ideia de “autonomização” de Stalin foi rejeitada, e a política de Lenin
sobre as relações de nacionalidade foi adotada. No Congresso dos Sovietes, aberto
em 30 de dezembro de 1922, foi proclamada a União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas-URSS. A carta de Lenin sobre o assunto – que, aliás, só veio a público
trinta anos mais tarde – foi a base do relatório apresentado por Stalin. O relatório,
bem como a “Declaração sobre a Formação da URSS”, que ele também fez,
centraram-se na ideia do internacionalismo proletário, no compromisso de todas as
nacionalidades com a amizade, a solidariedade de classe e a dedicação aos ideais
revolucionários. Reiterando as ideias de Lenin, sem citá-lo, Stalin declarou que a
tarefa especial da nova união era a de fazer desaparecer a desigualdade nacional
herdada do passado.
Lenin estava doente, porém, ainda assim, pôde insistir na perseguição de uma
solução mais equitativa para a questão nacional, num vasto país que abarcava mais
de cem nacionalidades. Stalin dificilmente desejaria solução diferente, mas lhe
faltavam perspicácia e inteligência para lidar com problema tão difícil. Em suas
memórias, Trotsky afirma que só a doença de Lenin “evitou que ele destruísse Stalin
politicamente”. Escreve também que a teimosia de Stalin frequentemente causou
perturbação em Lenin, agravando seu estado de saúde. É eloquente o fato de, nove
meses apenas depois da elevação de Stalin ao cargo de secretário-geral, Lenin já
expressar a urgente necessidade de sua remoção. A esse respeito, a Carta ao
Congresso e os últimos ensaios e cartas que, juntos, são conhecidos como seu
Testamento são de importância seminal para o entendimento da personalidade
política e moral de Stalin.
Nota
* Jogo de palavras com o idioma russo, em que “perseguido” e “processado” são iguais.
[9]
A carta ao Congresso
O destino dos últimos escritos de Lenin foi dramático. Parte substancial foi
envolvida num manto de sigilo stalinista e sonegada ao partido. Só depois
de 1956 e do XX Congresso que rascunhos seus, como “Da outorga de
poderes ao Gosplan”, “Sobre as nacionalidades ou autonomização”, “Carta ao
Congresso” e alguns outros lembretes vieram à luz. Seu artigo “Como reorganizar o
Rabkrin [Inspetoria de Operários e Camponeses] – Propostas ao XII Congresso” foi
impresso numa única cópia para que ele a visse. Depois da publicação de versão
cortada, uma carta especial foi enviada aos comitês provinciais dizendo que se
tratava de páginas do diário de Lenin doente, que recebera permissão para escrever
porque a ociosidade mental tornara-se intolerável para ele. Essa peça de indelicadeza
foi conjuntamente assinada por Andreyev, Bukharin, Kuibyshev, Molotov, Rykov,
Stalin, Tomsky e Trotsky, em 27 de janeiro de 1923.
As preocupações de Lenin, despertadas pelos indícios de autoritarismo que
identificara, eram incompreensíveis para Stalin e muitos outros. O pensamento
principal dos últimos escritos de Lenin, entretanto, era fundamentalmente otimista:
que o socialismo tinha futuro na Rússia. As questões cardeais, como
industrialização, reestruturação da agricultura com base em princípios cooperativos
voluntários, transformação da cultura em propriedade do povo, administração
estatal, tudo era visto por ele pelo prisma da concessão de poder às pessoas comuns
do povo e da introdução da democracia em todas as facetas da vida social. A
evolução que tinha em mente também requeria novas pessoas, e isso, para Lenin, era
então a principal providência.
Antonio Gramsci, debatendo as origens do cesarismo, expressou certa vez a
interessante ideia de que quando forças contendoras se exaurem mutuamente, uma
terceira força pode emergir para então prevalecer sobre os dois lados.32 Na Rússia, a
questão, provavelmente, não foi tanto de grupos particulares de pessoas como forças
sociais – o operariado, os camponeses e o partido – e sim, como Lenin expressou, “a
vasta e ilimitada autoridade da mais fina das camadas, a velha guarda do partido”.33
O socialismo só poderia ser construído sobre as bases do sábio compromisso social
proposto por Lenin: o da aplicação da Nova Política Econômica-NEP* [Novaya
Ekonomicheskaya Politika] juntamente com o gradual alastramento no campo da
agricultura cooperativa voluntária. Qualquer outra política redundaria numa luta
com os agricultores e na consolidação dos métodos autoritários do governo. E o
totalitarismo sempre tem que ter seus Césares. Como outros líderes, Stalin não
entendeu quando Lenin disse que “nosso partido é um pequeno grupo de pessoas
comparado com a população do país”34 e que a NEP se tornaria a condição-chave
do movimento na direção do socialismo.
Os bolcheviques eram produto do proletariado urbano. A união com os
camponeses, mesmo que não em termos iguais, deveria vir da oportunidade de os
camponeses possuírem sua própria terra e exercerem o livre comércio. A gente do
campo só seria atraída para o socialismo por via do cooperativismo voluntário, como
Lenin anteviu, e a NEP destinava-se a cimentar as relações entre eles e os operários.
Mesmo dentro da “mais fina das camadas”, o topo do partido, nem todos
entenderam bem o que Lenin tinha em mente e o perigo que o povo corria se fosse
tomado outro caminho. Uma rota distinta implicaria repressão e rápido desvio para
o autoritarismo e o cesarismo.
Doente como estava, Lenin corria contra o tempo, temeroso de não poder
refletir sobre o futuro. No outono de 1922, teve uma réstia de esperança e pôde
retornar ao serviço ativo. Venceria ele de novo a enfermidade?
Bukharin relembra a satisfação de todos ao testemunharem a volta do líder ao
trabalho, no IV Congresso do Comintern, em 13 de novembro de 1922:
Nosso coração parou quando vimos Lenin subir ao pódio, pois sabíamos o enorme esforço que fazia. Corri
em sua direção e cobri-o com um sobretudo, pois ele transpirava de exaustão, camisa ensopada, gotas de suor
nas sobrancelhas, olhos cavados, mas com um brilho radiante, clamando por vida, como se a grande alma
entoasse loas ao trabalho.
Chorando de alegria, Clara Zetkin lançou-se para Ilyich e começou a beijar as mãos do velho. Envergonhado
e comovido, ele inverteu o movimento e tentou beijar as mãos dela. Ninguém percebia que a doença havia
lhe corroído o cérebro, e que o fim trágico e pavoroso estava perto.35
Ditou quatro minutos. Passou mal. Médicos presentes. Antes de começar, disse: “Quero ditar uma carta para
o Congresso. Escreva!” Ditou rápido, mas é óbvia sua péssima condição.37
Tenho em mente a estabilidade como garantia contra um divisionismo no futuro próximo, e proponho que
sejam avaliadas diversas considerações de ordem pessoal.
É minha opinião que membros do Comitê Central como Stalin e Trotsky são fundamentais, nessa ordem de
ideias, para a estabilidade. A meu ver, as relações entre eles constituem toda uma metade do perigo de divisão
a ser evitado e que, aliás, pode ser evitado aumentando-se o efetivo do Comitê Central para cinquenta ou
cem membros.39
Muitos acadêmicos soviéticos ainda persistem em dar peso político insuficiente a Trotsky, cujas relações com
Stalin perfaziam “toda uma metade do perigo”. Lenin percebeu que Trotsky era mais popular que Stalin,
mas tinha consciência do controle que o último adquirira. As relações estremecidas entre as duas figuras
centrais corriam o risco de transbordar para um conflito que dividiria o partido.
Tendo se tornado secretário-geral, o camarada Stalin concentrou ilimitado poder em suas mãos, e não estou
muito certo de que ele sempre usará tal poder com cuidado suficiente.40
Por outro lado, o camarada Trotsky, como seu conflito com o Comitê Central sobre o Comissariado das
Vias de Comunicação já mostrou, distingue-se por suas excepcionais qualificações. Pessoalmente, talvez seja
o homem mais capaz no Comitê Central de hoje, mas é excessivamente autoconfiante e por demais atraído
pelo lado puramente administrativo do trabalho.41
Ao preparar-se para dizer tais palavras, Lenin deve ter pensado que, se Trotsky
tivesse uma determinação revolucionária mais firme, poderia ser um líder com
calibre de estadista. Talvez tenha lembrado, sorridente, do discurso de Trotsky sobre
o Exército Vermelho, no último congresso, quando, em vez de enfeixá-lo com
conclusões gerais sobre a maneira de aprimorar a estrutura militar, ele começou a
falar sobre a “instrução básica militar-cultural dos soldados”. Para uma plateia
animada, ele disse:
Vamos tentar que os soldados não tenham piolhos. Trata-se de importante tarefa de instrução, porque é
necessário ser persistente, incansável, firme, exemplar e repetitivo para libertar as massas de pessoas da sujeira
em que cresceram e que as vem consumindo. Isso porque soldado com piolho não é soldado, é meio soldado.
Quanto ao analfabetismo, é um caso de piolheira espiritual. Provavelmente, podemos liquidar com ela por
volta de 1º de maio e, então, prosseguir com o trabalho sem diminuir a pressão.42
Essas qualidades dos dois proeminentes líderes do atual Comitê Central podem, inadvertidamente, conduzir
a uma cisão.
Não me deterei nos atributos pessoais de outros membros do Comitê Central. Direi apenas que o episódio
de outubro envolvendo Zinoviev e Kamenev, embora não tenha sido acidental, não deve ser pessoalmente
imputado a eles, do mesmo modo que o não bolchevismo de Trotsky não deve ser transformado em acusação
pessoal.**
Dos membros mais jovens do Comitê Central, quero dizer umas poucas palavras sobre Bukharin e Pyatakov.
Eles são, no meu entender, as mais destacadas forças (entre as mais jovens), e se deve ter em conta o seguinte
sobre os dois: Bukharin não é apenas um teórico do partido muito valioso e importante, mas é também
legitimamente considerado o favorito de todo o partido, no entanto, é altamente duvidoso que sua visão
teórica possa ser considerada marxista por completo, já que existe algo de escolástico nele (jamais estudou a
dialética e jamais a entendeu, penso eu).43
No dia seguinte [24 de dezembro], durante o intervalo das seis às oito, Vladimir Ilyich chamou-me de novo.
Alertou-me de que tudo que ditara ontem (dia 23) e hoje (dia 24) era absolutamente secreto. Repetiu isso
várias vezes. Disse-me para guardar tudo que ditara em lugar especial, sob especial responsabilidade, e
considerá-lo como categoricamente secreto.44
Infelizmente, Fotieva, que era encarregada da secretaria do Sovnarkom e também
tomava os ditados de Lenin, ignorou suas instruções e logo informou Stalin e alguns
outros membros do Politburo sobre as notas de Lenin de dezembro, de modo que
sua “Carta” não surpreendeu a direção do partido.
Lenin continuou ditando no dia seguinte, 25 de dezembro:
Quanto a Pyatakov, é um homem de invulgar determinação e de notáveis capacitações, mas se inclina demais
pelo aspecto administrativo do trabalho para que a ele se confie uma matéria política séria.45
Stalin é por demais rude e este defeito, perfeitamente aceitável nas relações entre nós comunistas, não é
admissível num secretário-geral. Portanto, proponho que os camaradas encontrem a maneira de retirá-lo
dessa função e entreguem o cargo a alguém que seja superior ao camarada Stalin em todos os aspectos, ou
seja, mais paciente, mais leal, mais respeitoso e atencioso para com os camaradas, de humor menos
inconstante etc. Tais considerações podem parecer uma trivialidade, mas acredito que, do ponto de vista da
prevenção de um rompimento e em função do que eu disse sobre as relações entre Stalin e Trotsky, não se
trata de um assunto trivial, ou então é a espécie de trivialidade que pode assumir significação decisiva.47
Stalin não revelara até então ambição política de vulto. Parecia ser fiel à grande
ideia, embora, talvez, a entendesse de forma diferente. Porém, como bolchevique, o
escudete de sua reputação política ainda estava incólume. Política e moralidade,
contudo, andam de braços dados e, quando entram em descompasso, pode resultar
a intriga ou a ditadura. O pós-escrito de Lenin revela seu cuidado com o futuro,
mas não demonstra animosidade pessoal. Lenin estava acima dessas coisas.
“Conquanto fosse um oponente político duro e explorasse quaisquer instrumentos
da luta política, exceto os golpes baixos”, escreveu Lunacharsky sobre ele, “não se
percebia rancor nas suas atitudes para com adversários”.48
Lenin sentiu que os defeitos de Stalin podiam se tornar fontes de muitos
problemas, mas Trotsky também era motivo de preocupação, e não só por sua
arrogância acentuada no nível político. O fato de sua tardia adesão aos bolcheviques
poderia ter consequências. Seu extremismo de esquerda o colocara, muitas vezes, em
confronto com o comitê central, ao passo que suas pretensões eram tão elevadas que
chegara a se ofender, em setembro de 1922, quando convidado a ocupar o cargo de
vice-presidente do Sovnarkom – isto é, ser o segundo de Lenin. Esperava uma
posição especial. Mal escondia a própria opinião de que era um gênio, e parecia
mesmo acreditar que, se o desejo de Lenin de que se removesse Stalin fosse
atendido, ele se tornaria o líder do partido.
Ao propor a substituição de Stalin, Lenin, sabiamente, deixou em aberto a
questão de quem o substituiria, porque, se indicasse um “príncipe herdeiro”, estaria
estabelecendo uma sucessão e, assim, expressando dúvida sobre a capacidade de o
comitê central encontrar o melhor candidato. Quando fez a avaliação dos líderes
mais conhecidos, Lenin deixou claro que nenhum deles tinha as condições para
liderar o partido. Nem um só. Todavia, também quis deixar patente que o partido
não deveria buscar seu líder noutro lugar. Implicitamente, dizia que a “velha
guarda” estava capacitada a exercer a liderança coletiva, a qual, depois de criar
salvaguardas para que o poder não fosse capturado por um só homem, poderia
selecionar qualquer um entre uma dúzia ou mais de figuras bem conhecidas para
servir de número um entre iguais. Nesse caso, o fato de este ou aquele indivíduo ser
mais ou menos talentoso não teria tanta importância. Acima de tudo, o sistema
democrático, de acordo com as normas constitucionais e partidárias, estaria
trabalhando em apoio daquilo que servisse melhor aos interesses do país.
Mas seria precisamente com a ajuda da velha guarda que Stalin criaria seu
próprio sistema burocrático. Para entender por que, para estranheza generalizada,
Stalin foi alçado ao topo da pirâmide, têm-se que considerar diversos fatores: o
passado autocrático da Rússia e a ausência de hábitos democráticos na nova
sociedade, a baixa cultura política do povo e do partido, a grande necessidade de
maturidade das massas que o sistema de um só partido impunha, a falta de proteção
legal contra os abusos de poder e a peculiar natureza da estrutura de classes da
URSS.
Além do mais, havia o “segredo de invulnerabilidade” de Stalin, talvez a
característica mais importante de todas. Ele usurpou o direito de apresentar,
interpretar e comentar das ideias de Lenin a ponto de o povo acreditar, no final, que
ele caminhava lado a lado com o líder, que era, de fato, o camarada em armas,
pupilo e sucessor de Lenin. Stalin foi um fenômeno social, histórico, espiritual,
moral e psicológico. Lenin parece ter pressentido que o secretário-geral usaria seu
poder ilimitado para transformar o sistema emergente numa burocracia totalitária, e
concluído que Stalin não poderia ir adiante dentro do núcleo governante do
partido. Mas o alerta de Lenin só pode ser propriamente entendido contra o pano
de fundo do triunfo iminente de Stalin.
Dois meses antes do XII Congresso, um pleno do comitê central debateu uma
série de teses referentes à reorganização dos órgãos centrais do partido com base no
ensaio de Lenin “Como reorganizar a Inspetoria de Trabalhadores e Camponeses” e
num suplemento intitulado “Melhor menos, mas melhor”. Decidiu-se que o tema
da organização constituiria item especial da agenda do congresso, tal como Lenin
sugerira. As teses advogavam o aumento no tamanho do comitê central de 27 para
quarenta e instavam para que o Politburo prestasse contas regulares aos plenos do
comitê central. Três representantes da comissão central de controle deveriam
comparecer às reuniões do Politburo, nas quais providenciariam para que
“autoridade alguma, nem mesmo a do secretário-geral ou a de qualquer membro do
comitê central, possa impedir que façam inquirições, inspecionem documentos e
obtenham informações essenciais, assegurando-se da estrita correção das
atividades”.49
Afora essa supervisão do órgão eleito da liderança, Lenin queria uma comissão
especial para acompanhar o trabalho do comitê central e do Politburo, no
interregno entre os fóruns comunistas. O plenário aceitou, efetivamente, os
argumentos de Lenin e concordou em aumentar a comissão central de controle (a
CCC) e estreitar os vínculos entre os órgãos do partido e o controle do Estado.
Quem poderia prever que o papel da CCC seria reduzido ao registro de questões
partidárias insignificantes e que acabaria totalmente abolida por Stalin no devido
tempo?
Embora já havia um ano na função de secretário-geral, Stalin não conseguira
imprimir, para o público externo, qualquer marca particular. O plenário submeteu o
relatório dele sobre “Fatores nacionais no partido e na construção do Estado” a uma
crítica séria. Tomando suas teses apenas como base, o plenário fez uma série de
observações sobre questões de princípio. Ficou resolvido que as teses seriam
apresentadas a Lenin depois que sobre elas se trabalhasse. Os textos de Stalin
mostram muitas lacunas em seu conhecimento, se bem que fosse considerado um
especialista no assunto. O plenário nomeou uma comissão constituída por Stalin,
Rakovsky e Rudzutak para trabalhar nas teses.50
Lenin sentia que a revolução vitoriosa requeria uma revisão, que seus argumentos
necessitavam de correção. Mas ele era também um homem de seu tempo. Não tinha
dúvida sobre a ditadura de uma classe que era parcela insignificante comparada com
os camponeses, e não voltou à ideia do pluralismo revolucionário que advogara no
final de 1917, nem condenou o emprego da força como meio revolucionário para
resolver problemas sociais. Viveu as circunstâncias daquela ocasião; embora pudesse
enxergar bem mais à frente do que muitos e, de fato, percebesse o perigo para a
democracia do partido com a predominância de um só líder, não foi capaz de
antever os riscos para a sociedade toda ao se confiar na infalibilidade de um partido
único. Fica-se com a sensação de que ele não teve tempo de dizer tudo o que queria.
Embora não duvidasse da ortodoxia do dogma marxista do século XIX, a
importância de seus últimos escritos não pode ser exagerada.
Como frequentemente ocorria, Trotsky assumiu posição própria no plenário. Na
sua opinião, a ampliação do comitê central deixá-lo-ia pesado, tirando-lhe a
“estabilidade necessária” e, em última análise, “ameaçava causar prejuízo extremo à
precisão e à correção de seu trabalho”. Propôs que se formasse um conselho do
partido com duas ou três dúzias de pessoas. Esse órgão daria diretrizes ao comitê
central e fiscalizaria seu desempenho. Na verdade, Trotsky estava propondo poder
dual e centros duais no partido. O plenário rejeitou a proposta depois de apenas um
pequeno debate. Como sabemos, o XII Congresso aceitou as proposições de Lenin e
criou a Comissão Central de Controle-Inspetoria de Trabalhadores e Camponeses
como órgão unificado. Algumas das ideias de seu Testamento começaram a entrar
em vigor enquanto ainda estava vivo, mas longe de serem todas.
As cinco cópias feitas da Carta foram lacradas em envelopes: uma para a secretária
de Lenin, três para Krupskaya e a quinta para o próprio Lenin. O líder disse à
secretária, M.A. Volodicheva, para escrever nos envelopes que só poderiam ser
abertos por ele ou, depois de sua morte, por Krupskaya, mas Volodicheva não teve
forças para escrever “depois de sua morte”. Somente a primeira parte da Carta,
referente à ampliação do comitê central, foi transmitida a Stalin, e essa proposta foi
levada ao congresso como parte do relatório do secretário-geral sobre a atividade
organizacional do comitê central, sem que, no entanto, a autoria de Lenin fosse
citada. Lenin ainda estava vivo, e os envelopes permaneciam lacrados. Sob a
presidência de Kamenev, o congresso elegeu Lenin por unanimidade (e só ele!) para
o novo comitê central e enviou calorosas congratulações para o líder, para
Krupskaya e para a irmã de Lenin, Maria.51
Em março de 1923, Lenin foi arrasado por outro derrame cerebral que o
impossibilitou de exercer qualquer influência ulterior sobre as questões partidárias,
em especial para que as ideias contidas em seu “Testamento” vigorassem. A questão
de um futuro líder assumiu então absoluta importância.
Notas
* Política apresentada por Lenin no X Congresso do partido, em março de 1921. Permitia a empresa privada na
agricultura, no comércio e na maioria das pequenas indústrias para restaurar a economia nacional e pacificar o
campesinato.
** Na véspera da conquista do poder pelos bolcheviques, Zinoviev e Kamenev, acreditando que um levante
armado seria prematuro, publicaram na imprensa sua objeção. O “não bolchevismo” de Trotsky refere-se ao fato
de que ele só se filiou ao partido bolchevique em agosto de 1917.
[10]
Stalin ou Trotsky?
N ão fica bem claro para qual congresso Lenin enviou sua “Carta”. Ele
escreveu: “Eu vos recomendaria com grande empenho que sejam feitas
pelo Congresso várias mudanças em nosso sistema político” – e parece ter
tido em mente o XII, mas não o disse. Ademais, sua saúde, quando aquele congresso
foi aberto, em abril de 1923, de fato impediu que insistisse para que a Carta fosse
lida aos delegados. Surgira também uma situação imprevista. As instruções que
deixara insistiam que a abertura dos envelopes ocorresse depois de sua morte.
Portanto, é possível que a Carta fosse endereçada ao XII Congresso e também ao
XIII. Como a questão do secretário-geral não foi levantada no XII, ela assumiu
absoluta importância depois do derrame sofrido por Lenin em março, a partir do
qual ele não pôde mais se comunicar.
Após março de 1923, Stalin, como secretário-geral, tomou providências para
fortalecer sua posição. A autoridade que detinha foi robustecida no XII Congresso,
em que ele teve maior visibilidade que qualquer outro delegado, já que apresentou
relatórios sobre a organização do comitê central e sobre fatores nacionais nas
estruturas do partido e do Estado, bem como pronunciou os discursos de
encerramento das duas matérias. Seus relatórios foram escritos na forma
notavelmente esquemática de seu estilo pessoal. Gostava de ordenar seus
pensamentos de acordo com a importância, o que tendia a causar boa impressão por
oferecer clareza e precisão. Assim, ele criou a expressão “rédeas de condução” para a
união do partido com o povo. “A rédea guia de condução”, disse ele, eram os
sindicatos, nos quais “não temos agora oponentes fortes”. A segunda rédea era
formada pelas cooperativas de agricultura e consumo, se bem que, admitiu, “ainda
não somos suficientemente fortes para libertar os produtores primários da influência
das forças que nos são hostis”, querendo dizer os kulaks.* A terceira “rédea de
condução” eram as organizações da juventude, nas quais os ataques dos adversários
eram particularmente contundentes. Ele chegou a enumerar e categorizar, de acordo
com o nicho que ocupavam, diversas outras “rédeas”: o movimento das mulheres, as
escolas, o Exército, a imprensa. Tentou dar rótulos retóricos a cada um desses
elementos: a imprensa era “a língua do partido”; o Exército, “o ponto de reunião de
operários e camponeses”, e assim por diante.52 De modo tipicamente seu, enquanto
não dizia coisa alguma sobre o conteúdo do manejo dessas “rédeas de condução”, era
prolixo a respeito das forças hostis “que resistem a nós”. Sem dúvida, a luta de
classes prosseguia, embora, naquela ocasião, menos ostensivamente; ainda assim,
Stalin continuava a viver de rixas, embates e confrontos com inimigos,
espalhafatosos e efêmeros.
Depois do derrame de Lenin, em março, Stalin se tornou mais ativo, passando a
tratar menos com Zinoviev e Kamenev, menos ainda com Bukharin, e
rarissimamente com Trotsky. Sua autoridade política dentro do partido cresceu
lenta, mas consistentemente, e seu papel no Politburo começou a ganhar destaque.
Conseguiu-o mediante o paulatino isolamento de Trotsky, coisa só alcançável com a
ajuda de Zinoviev e Kamenev.
Numa entrevista com o autor, A.P. Balashov, um antigo bolchevique que
trabalhou no secretariado de Stalin, descreveu um incidente no Politburo
envolvendo uma colisão entre Zinoviev e Trotsky:
Todos estavam do lado de Zinoviev, que disparou contra Trotsky. “Você não vê que está cercado? Suas
artimanhas não funcionarão, você está em minoria, está sozinho.” Trotsky ficou furioso, e Bukharin tentou
colocar panos quentes. Era muito comum Stalin reunir-se com Zinoviev e Kamenev antes da sessão para o
acerto de uma posição. No secretariado, chamávamos esses encontros da troika “a pandilha”. Nos anos 1920,
Stalin teve sempre dois ou três assistentes. Em diversas ocasiões, eram Nazaretyan, Kanner, Dvinsky, Mekhlis
e Bazhanov. Todos sabiam da má vontade de Stalin em relação a Trotsky e procediam de acordo.
Zinoviev e Kamenev nutriam planos ambiciosos e, por temerem mais Trotsky que
Stalin, foram facilmente atraídos para o lado deste. Quando, em 8 de outubro de
1923, Trotsky escreveu uma carta aos membros do comitê central com severas
críticas à liderança partidária, Stalin, sentindo-se objetivamente em seu direito,
atacou os métodos políticos do rival.
Trotsky tinha o apoio de um grupo de bolcheviques que assinaram a chamada
“Plataforma dos 46”, figuras preeminentes como Preobrazhensky, Pyatakov, Kosior,
Osinsky, Sapronov e Rafail, entre outros. A principal crítica de Trotsky ao comitê
central era a de “o partido não ter planos de como fazer novos avanços”. Reiterava
ideias ligadas à “dura concentração industrial”, com o fechamento de fábricas
importantes, ao “endurecimento com os agricultores” e insistia de novo na
necessidade da “militarização do trabalho”. Esses pontos merecem exame.
No seu discurso no IX Congresso, em março de 1920, Trotsky afirmara que “as
massas trabalhadoras não podem ser nômades; como os russos de tempos passados,
elas têm que ser transferidas, designadas e comandadas como soldados. Esta é a base
da militarização do trabalho e, sem ela, não pode haver conversa séria sobre a
industrialização em novas bases. Não podemos chegar a ela em condições de ruína e
fome”.53 Três anos mais tarde, ele ainda acreditava que a aplicação de métodos
militares para a indústria e para a agricultura não perdera a oportunidade. Favorável
ao “comunismo de quartel”, Trotsky caía muitas vezes em contradição: gostava de
falar sobre a ausência da democracia no partido, porém insistia no emprego da
militarização para o bem comum, durante o período de mudança. Seja como for, ao
lançar um debate sobre questões econômicas no outono de 1923, quando Lenin
estava seriamente doente, ele, de certa maneira, colocou em xeque a política do
comitê central sobre o assunto e, pior, comprometeu a atuação de Stalin como
secretário-geral. Não obstante, a autoridade de Trotsky decaiu, ao passo que a de
Stalin aumentou.
Um pleno conjunto do comitê central e da CCC, em outubro de 1923,
condenou Trotsky. Ele só teve apoio de dois dos 114 participantes do encontro.
Com efeito, mesmo antes da reunião, já estava isolado na luta pela liderança do
partido. Foi completamente derrotado. Tentou então recorrer ao Exército, pois ali
ainda tinha considerável autoridade. Ajudado por um velho aliado, Antonov-
Ovseyenko, que chefiava a administração política do Revvoensoviet, propôs que as
forças armadas se manifestassem contra a linha do comitê central. Todavia, com
poucas exceções, os comunistas do Exército e da Marinha recusaram-lhe apoio. O
XIII Congresso de janeiro de 1924, que debateu a matéria, não só condenou
Trotsky como aprovou uma série de resoluções no campo econômico. Em
consequência, Trotsky admitiu que seus ataques ao comitê central e a discussão que
iniciara eram uma tentativa sua de se tornar líder do partido. Não se pode deixar de
notar, no entanto, que Trotsky provocou os debates em ocasiões bastante
desfavoráveis para ele e, na verdade, sabia de antemão que seria derrotado. Ao
superestimar sua própria influência intelectual, subestimou o controle que Stalin
conseguira e sua capacidade de lançar mão de quaisquer meios.
Emblemático foi que, em outubro de 1923, justamente quando Trotsky acendia
o conflito interno no partido, Lenin visitava Moscou pela última vez. Como a sentir
que seus temores sobre um rompimento iam se concretizando, ele se fez conduzir à
capital em 18 de outubro, contrariando os médicos. No último dia da estada, fitou
através do vidro do carro, pela vez derradeira, a Praça Vermelha, as cúpulas do
Kremlin, as ruas de Moscou e os pavilhões da exposição de agricultura. Antes de
partir para Gorky, pegou alguns livros com seu bibliotecário no Kremlin. Não se
encontrou com nenhum de seus camaradas. A silenciosa e quase secreta visita fora
uma despedida particular da capital dessa agitada terra.
Durante a revolução e a guerra civil, e por algum tempo depois, Trotsky só
perdia em popularidade para Lenin. Por exemplo, os nomes dos líderes nos plenos
do comitê central apareciam nesta ordem: Lenin, Trotsky, Zinoviev, Kamenev,
Stalin, Rudzutak, Tomsky, Rykov, Preobrazhensky, Bukharin, Kalinin, Krestinsky,
Radek, Andreyev. Mas a popularidade de Trotsky não se refletia no número de seus
seguidores pessoais. Situação paradoxal: Stalin, que não era popular, personificava a
linha do partido.
Contudo, fica claro nas obras de Trotsky que ele não partilhava na totalidade as
ideias de Lenin. Por exemplo, depois da morte de Lenin, Trotsky tentou usar a ideia
de democracia socialista como arma, enquanto ainda defendia métodos autoritários.
Deu a impressão de estar mais próximo do bonapartismo, do cesarismo e da
ditadura militar que da ideia de o povo exercer poder genuíno. Com a mesma idade
de Stalin (eles nasceram com apenas duas semanas de diferença em 1879), Trotsky
era um intelecto mais refinado, mais brilhante, mais rico. Testemunhas da época e
biógrafos, todos, concordam que suas proposições eram vivazes, sua cultura
solidamente europeia, sua energia ilimitada, que era tribuno majestoso e
amplamente lido. Mas exagerava a importância de sua própria personalidade,
mostrava-se superior, era arrogante, autoritário e categórico com todos, exceto
Lenin, e parecia intolerante com as ideias de outros. Naturalmente, criaram aversão
a ele.
Stalin foi identificando os pontos fracos de Trotsky e passou a utilizá-los ao
máximo naquela briga particular. Trotsky não dava atenção especial à
“meticulosidade” de seus muitos discursos e observações, cuidando mais dos
aforismos que encaixava para torná-los mais paradoxais e notáveis. Certa vez, numa
conversa com Lenin, ele se saiu com uma incisiva advertência que chegou aos
ouvidos de Stalin: “O cuco em breve estará piando a morte da República Soviética.”
De outra feita, falando a delegados de um congresso do Comintern, comentou que,
se a revolução não explodisse logo na Europa e na Ásia, “a tocha se apagava na
Rússia”. Era o argumento realmente sólido de que Stalin precisava para acusar
Trotsky de capitulação e falta de fé. E quanto mais Trotsky tentava se justificar,
mais parecia acusar-se. Stalin começava a se mostrar um lutador de tenacidade e
habilidade incomuns; batê-lo não era fácil.
Como outros líderes do partido, Lenin, a despeito de reconhecer a capacidade
literária e o talento organizador de Trotsky, bem como sua extrema vaidade,
também via nele limitação política, decorrente da compreensão esquerdista de
muitas ideias marxistas importantes. Fica patente que Lenin tentava levar Trotsky
na direção que julgava recomendável e, sem dúvida, se o líder vivesse mais, a vida de
Trotsky teria sido diferente.
Mais tarde, no exílio, Trotsky tentou muito propagar a noção de que Lenin
buscara atraí-lo para um “bloco” contra Stalin e, com a ajuda do próprio Trotsky,
no XII Congresso, remover o secretário-geral de seu cargo. Em Minha vida, Trotsky
escreveu:
Lenin, sistemática e persistentemente, preparou a situação para que, no XII Congresso e na presença de
Stalin, um golpe maciço fosse desferido contra a burocracia, a proteção mútua entre os burocratas, o arbítrio,
a teimosia, a grosseria. [...] Com efeito, Lenin conseguiu declarar guerra a Stalin e seus aliados, embora só os
diretamente envolvidos soubessem disso, não o partido.54
Por que Trotsky faria tais confissões, até certo ponto sensatas? Sobretudo, para
mostrar que Lenin o considerava sucessor. Com tal objetivo, ele comentou a Carta
ao Congresso de Lenin, concluindo que “o propósito inegável do Testamento era
facilitar o trabalho da liderança para mim. Lenin queria naturalmente conseguir isso
com a menor fricção possível”. Essas palavras dão todo o significado da longa
batalha de Trotsky. Ele jamais aceitou a amargura de sua derrota pessoal. Afinal de
contas, chegara a ver-se líder.
A dubiedade da versão de Trotsky é revelada pelo que Lenin realmente escreveu.
Lenin não tinha a menor necessidade de formar qualquer espécie de “bloco” com
Trotsky contra Stalin. Sua autoridade era inconteste. O fato de, às vezes, não ser
entendido por alguns altos intelectuais é outra questão. Quando adoeceu, houve
tentativas de explicar os mal-entendidos como frutos da enfermidade, da dificuldade
de comunicação e do fato de o líder estar muito distante e isolado. Mas não há
dúvida de que, se ele estivesse bem de saúde, seu único desejo pessoal e solidamente
motivado, a saber, a substituição do secretário-geral numa reunião do Politburo,
teria sido concretizado. Lenin podia considerar Stalin inadequado para o posto, mas
a candidatura de Trotsky não era muito melhor. Nenhum dos dois “líderes
notáveis” deveria assumir o leme da gigantesca nau do Estado russo.
As relações entre Trotsky e Stalin já eram complicadas antes da morte de Lenin.
Stalin sentira que Trotsky ambicionava a liderança. Tinha o adversário como
“aventureiro” e “impostor”, fazendo eco ao que Lenin dissera sobre o passado
menchevique de Trotsky. Com sua excelente memória, Stalin juntou os muitos
erros, zigue-zagues, desvios e voltas de Trotsky, organizando uma fieira para futuro
desmascaramento, argumentações, críticas, julgamentos. Não esqueceu da
fraseologia radical de esquerda de Trotsky em Brest-Litovsk, nem de sua ordem para
o fuzilamento de um grande número de trabalhadores políticos no front oriental,
por causa da traição de alguns militares, tragédia só evitada pela intervenção de
Lenin. Lembrou-se da proposta de Trotsky para o envio de corpos de cavalaria à
Índia para dar início à revolução, e não esqueceu do cuco que iria piar o fim do
regime soviético.
Stalin não gostou do fato de, logo depois da guerra civil, Trotsky cercar-se de um
batalhão de assistentes e secretários que o ajudaram a organizar vasto arquivo,
manter correspondência e preparar documentos e subsídios para infindáveis artigos e
discursos, facilitando seu impulso criativo. Stalin acreditava que Trotsky via os
incontáveis problemas da Rússia, em grande parte, pelo prisma de seus próprios e
estreitos interesses carreiristas, egoístas e sedentos de poder, sem levar em conta as
dificuldades da situação social e política. A relação entre os dois logo se tornou
mútua e profundamente hostil. Trotsky, diga-se, não se dava mal só com Stalin. A
rigor, não tinha aliados próximos entre os outros líderes. Mesmo a curta aliança com
Zinoviev e Kamenev seria costurada sobre plataforma antistalinista e destituída de
princípios. Ademais, Trotsky subestimou Stalin seriamente, a “destacada
mediocridade”, como começou a chamá-lo depois de expulso do Politburo.
Após o derrame de Lenin, Stalin passou a considerar-se encarregado de evitar
que Trotsky se tornasse líder do partido. A derrota deste no debate lançado por seus
seguidores reduziu muito suas chances, independentemente da decisão que o
congresso pudesse tomar a respeito da Carta de Lenin. Stalin se convenceu – e
repetia isso nos círculos fechados, talvez como autojustificativa – de que, se Trotsky
assumisse a liderança do partido, as conquistas da revolução correriam sério risco.
Trotsky não apenas desprezou a determinação e o intelecto de Stalin, mas
também, com seus incontáveis ataques, discussões e artigos polêmicos,
inevitavelmente fortaleceu a autoridade do secretário-geral, fazendo com que este
emergisse defensor da herança de Lenin e protetor da unidade do partido. Quanto
mais Trotsky investia contra Stalin, mais caía sua popularidade. O fator da queda
não foi tanto Stalin, mas o fato publicamente percebido de que Trotsky estava,
afinal, atacando a linha do partido, o centro. Assim, o próprio Trotsky ajudou a
consolidar a posição política de Stalin. Aos olhos do partido, Stalin nunca pareceu
oscilar para a esquerda ou para a direita, mas demonstrou flexibilidade, e às vezes
esperteza sutil, apoiando-se contra Trotsky em seus dois futuros inimigos – Zinoviev
e Kamenev. Janeiro de 1924 foi um tempo dolorosamente triste. No dia 19 daquele
mês, Kalinin informou ao Politburo que os médicos de Lenin mostravam-se, então,
decididamente otimistas quanto a seu gradual retorno ao trabalho. Lenin já
caminhava, e já eram lidos para ele documentos sobre questões de Estado. Havia
claros sinais de esperança, mas que se esboroaram rapidamente.
A nenhum país semidestruído convém uma liderança em constante conflito
interno, no entanto, o XIII Congresso do Partido, que teve lugar em meados de
janeiro de 1924, apresentou exatamente esse paradoxo. Debateu questões
econômicas rotineiras e deu realce político à oposição trotskysta.
Em 19 e 20 de janeiro, Krupskaya leu em doses homeopáticas para Lenin relatos
sobre o andamento da conferência. Lembrou mais tarde que, quando ele ficou
agitado no sábado, dia 19, ela lhe disse que as resoluções tinham sido aprovadas por
unanimidade. O debate sobre a oposição foi cáustico. Zinoviev e Kamenev, futuros
aliados de Trotsky, exigiram sua expulsão do comitê central e do Politburo. Terá
Lenin visto aí os indícios de rachadura emanando da força de uma única
personalidade? Deve ter percebido que seus avisos tinham-se tornado terrível
realidade.
Suas condições pioraram sensivelmente no dia 21 de janeiro e ele faleceu às
18h50. O atestado de óbito confirmou a opinião dos médicos de que a causa
subjacente da doença fora esclerose pronunciada das células do cérebro motivada
pela tensão do esforço mental excessivo; a causa imediata da morte foi hemorragia
cerebral. Trotsky, que se encontrava no sul, por alguma estranha razão não
compareceu ao enterro, embora tivesse tempo suficiente para estar presente. Da
estação ferroviária de Tiflis, passou um telegrama, em 22 de janeiro, contendo um
artigo para o Pravda que continha as seguintes linhas:
E, pois, Ilyich não há mais. O partido está órfão. A classe trabalhadora está órfã. É este o sentimento que traz
a notícia da morte do professor, do líder.
Como prosseguir? Encontraremos o caminho, não nos desviaremos dele?
Nossos corações estão partidos pela dor sem limite porque, por uma grande graça da história, nascemos
contemporâneos de Lenin, com ele trabalhamos e dele aprendemos.
Como avançaremos? Com a flama de Lenin em nossas mãos...55
Foi convocada uma sessão plenária extraordinária do comitê central para a noite de
22 de janeiro e, no dia 27, o corpo de Lenin foi entronizado no Mausoléu da Praça
Vermelha. O II Congresso dos Sovietes de Toda a União, aberto em 26 de janeiro,
aprovou a resolução de que a memória de Lenin devia ser imortalizada. Uma
cerimônia fúnebre teve lugar no Teatro Bolshoi, coberto de negro para a ocasião.
Às 18h30 daquela noite, o presidente do comitê executivo central, Kalinin,
solicitou que os membros do presidium do comitê executivo e do comitê central
ocupassem seus lugares na plataforma. Conforme as autoridades soviéticas
descreviam até recentemente a ocasião, foi como se Stalin, ao proferir seu “voto”,
tivesse sido o único orador. A verdade é que muitos outros falaram. O discurso de
Stalin, como de hábito escrito de próprio punho, foi pronunciado no estilo
passional de um juramento e no formato catequista de sempre. Tudo categorizado.
Num hino à fortaleza e ao sacrifício que se tornaria característico até o fim de sua
vida, ele disse: “Nos esquivaremos de incontáveis golpes [...] não pouparemos nossas
vidas [...] na construção do reinado do trabalho na terra, não no céu.”56 Em nome
do partido, Stalin jurou honrar o título de membro do partido, proteger sua
unidade, reforçar a ditadura do proletariado, fortalecer a união de operários e
camponeses e das repúblicas irmanadas, e permanecer fiel ao internacionalismo.
Nada sobre o poder do povo ou a democracia socialista ou a liberdade.
Possivelmente, isso estava implícito na promessa de reforço da ditadura do
proletariado, que, afinal, tinha seu lado não violento. É mais provável, porém, que
Stalin não tenha, simplesmente, sentido necessidade de tais sutilezas.
Começara um novo capítulo da história. O sucessor de Lenin como presidente
do Sovnarkom foi Rykov, enquanto Kamenev tornou-se presidente do Soviete do
Trabalho e da Defesa. Continuando secretário-geral, Stalin ficou à espera do
resultado do XIII Congresso onde seria lida a Carta do falecido Lenin. Mas, que
sabia ele da Carta? Os testemunhos são contraditórios.
Nota
* A palavra, cujo significado literal é punho, caracterizava, em termos soviéticos, os camponeses abastados. Na
realidade, qualquer agricultor relativamente bem-sucedido era assim rotulado.
[11]
As raízes da tragédia
Considero que as circunstâncias recentes forçaram o partido a manter-me neste cargo, como alguém rigoroso
o suficiente para servir de antídoto à oposição. Agora, a oposição foi derrotada e expelida do partido. Além
do mais, temos instruções de Lenin e acho que chegou a hora de cumpri-las. Portanto, solicito ao plenário
que me desobrigue do cargo de secretário-geral. Asseguro-vos, camaradas, que o partido só tem a ganhar com
isso.61
Naquele instante, porém, sua autoridade havia crescido, e ele era visto no partido
como quem lutara pela unidade e se expusera contra os vários facciosos. Sua
renúncia foi recusada de novo. Stalin, sem dúvida, esperava por isso, e encenou a
demissão como um ato para fortalecer sua posição.
Voltando ao XIII Congresso, Kamenev e Zinoviev tomaram providências para
que as exortações de Lenin pela substituição de Stalin não fossem atendidas.
Persuadiram o secretário-geral a retirar sua declaração verbal e, juntos, engendraram
uma fórmula para que Stalin pudesse levar em conta as observações do líder
falecido. Pessoalmente, cabalaram junto às principais delegações, praticamente
desqualificando a ideia de Lenin, enquanto reabilitavam seu futuro coveiro. A
principal motivação dos dois foi impedir que Trotsky ocupasse o posto mais
elevado, que eles mesmos ambicionavam. Estiveram menos preocupados com a sorte
da revolução, a vontade de Lenin ou o destino do país. O mais velho imperativo do
mundo vigorou, a saber, interesse pessoal, ambição, vaidade. Como Trotsky, no
entanto, também eles subestimaram Stalin grosseiramente. No início dos anos 1920,
Zinoviev, por exemplo, repetira para um círculo íntimo, “Stalin é um bom executor,
mas precisa sempre ser orientado e se deixa levar. Não tem qualificações para a
liderança”. Zinoviev e Kamenev esperavam, aparentemente, que Stalin
permanecesse na função de secretário-geral apenas para administrar o secretariado,
enquanto outro fazia o papel de primeiro violino no Politburo, e esta pessoa,
naturalmente, seria Zinoviev. Stalin percebeu a manobra da dupla e, por algum
tempo, passou-lhe a impressão de submissão. Providenciou que ninguém, senão
Zinoviev, apresentasse o relatório político ao congresso. Temente de Trotsky, a
dupla não encarava Stalin como perigo. De sua parte, Trotsky mostrou-se passivo
no congresso. Parecia só esperar ser convocado. Tal era a situação no núcleo do
comitê central.
Hoje, décadas depois, é possível ver que as pessoas que se interpuseram no
caminho dos desejos de Lenin foram Zinoviev e Kamenev, e, é claro, Stalin, que não
poderia ter feito coisa alguma sem eles. Aquele era o mesmo Zinoviev, capaz de
vangloriar-se publicamente do fato de que, durante dez anos completos, de 1907 a
1917, fora o pupilo mais próximo de Lenin, e de que ninguém apoiara Lenin com
tanta assiduidade em Zimmerwald e Kienthal quanto ele. Por seu turno, Kamenev
era íntimo da família Ulyanov e não escondia tal fato. De uma forma ou de outra,
aqueles gêmeos políticos passaram a crer que assumiriam papéis de destaque depois
da morte de Lenin. Foram eles, juntamente com Stalin, que tomaram a decisão de
não tornar pública a Carta de Lenin. E, conquanto esse documento tivesse sido
publicado num boletim de atividades do XV Congresso, por sugestão de
Ordzhonikidze, seu conteúdo não chegou a seções amplas do partido ou da nação.
Tão logo derrotou Trotsky, Stalin perdeu o interesse em Zinoviev e Kamenev e,
em mais 12 anos, iria calmamente ordenar-lhes o extermínio físico. Quantas vezes,
em desespero, os dois se recordariam da ocasião em que, desdenhando a Carta de
Lenin, eles próprios deram ao ditador e seu futuro carrasco a ajuda necessária? Diga-
se, em nome da honestidade, que quando Stalin rompeu com eles, assumiram uma
posição de “princípio” e se voltaram contra o secretário-geral. Já durante o XIV
Congresso, em dezembro de 1925, Kamenev, um dos líderes na “nova oposição”,
pronunciou palavras verdadeiras, mas tardias: “Cheguei à convicção de que o
camarada Stalin não preenche os requisitos de um unificador do quartel-general
bolchevique” – mas os delegados tomaram tal pronunciamento apenas como ataque
de rotina da parte de um membro de facção. Todavia, nada altera o fato de que
foram eles, contra a vontade de Lenin, que mantiveram Stalin no cargo de
secretário-geral.
Naquelas circunstâncias, tendo perdido o debate, Trotsky procurou salvar as
aparências adotando uma posição flexível. Zinoviev classificou seu pronunciamento
ante o XIII Congresso “não como um discurso de congresso”, mas sim
“parlamentar” – ele não se dirigiu aos delegados, mas ao partido como um todo, e
tentou “não dizer tudo o que pensa”. O discurso de Trotsky, com efeito, foi
inusitado. Sua crítica principal foi à burocracia do aparato do partido. Reforçou sua
argumentação citando Lenin e Bukharin, e atacou a chefia do comitê central de sua
posição de inovador e combatente em defesa das tradições revolucionárias do
partido. Segundo Trotsky, era a burocracia do aparato, em todos os escalões, que
gerava o facciosismo, e havia doses de verdade em sua alegação.
Mas Trotsky pensava mais em si do que no partido. Continuava o mesmo;
precisava da toga da democracia como cobertura verbal para seus ataques à linha
adotada pelo comitê central. Porém, o partido não esquecera que ele fora um dos
iniciadores do “comunismo de quartel” que deflagrara a degeneração burocrática. O
XIII Congresso não fez progresso algum no desenvolvimento da democracia
visualizada por Lenin. Muitos talvez tivessem pensado que a remoção de Stalin
robusteceria a posição de Trotsky. E, caso este não se tivesse comprometido com o
desafio de outubro de 1923, suas chances na sucessão seriam bastante altas, mesmo
não contando com a maioria da velha guarda. Pode-se, então, dizer que Stalin reteve
o cargo graças à “ajuda” de Trotsky.
As fundações democráticas da estrutura do partido e do Estado foram apenas
delineadas por Lenin. Ele não teve tempo para produzi-las. Tome-se apenas uma das
facetas da democracia: a do rodízio entre os funcionários governantes. Mesmo que
Stalin tivesse permanecido no cargo, caso seu mandato fosse limitado por um
procedimento estabelecido, as deformações aparecidas depois no seu culto à
personalidade talvez não ocorressem. É perfeitamente compreensível que a rainha
Victoria, Catarina, a Grande, ou o Xá do Irã pudessem permanecer no trono por
décadas, já que eram monarcas. Mas a presença prolongada de Stalin como chefe do
partido e do Estado, virtualmente sem ser cerceado por alguém ou algo, só poderia
levar a problemas. A proposta de Lenin ao XII Congresso, constante de sua nota
sobre a reorganização da Inspetoria de Trabalhadores e Camponeses, antevia a
renovação compulsória nos órgãos diretores do partido e limites nas funções do
comitê central e nos sovietes. Esses primeiros surtos de democracia não despertaram
atenção e cedo viram-se engolfados pelo emaranhado mais poderoso do
dogmatismo, da burocracia e do mando mecanizado via administração. O futuro
culto ao “grande líder” não surgiu por acidente.
No começo, não houve indícios externos de que a usurpação do poder ocorria.
Ao contrário, Stalin batalhou contra Trotsky sob a bandeira de uma liderança
coletiva em oposição ao bonapartismo, aos métodos ditatoriais, à pretensão de
liderança individual e à ambição desenfreada revelados pelo adversário. Trotsky
continuava explorando o capital político que amealhara na guerra civil, sem
perceber que ele minguava com rapidez. Ao atacar Trotsky, Stalin propunha uma
alternativa mais progressista e democrática, a liderança coletiva, se bem que já
planejasse transformá-la gradualmente em proveito próprio. O primeiro a tirar do
caminho era, naturalmente, Trotsky. No meio-tempo, era mister não forçar a
situação. A composição do Politburo depois do XIII Congresso, por conseguinte,
permaneceu a mesma, e até Trotsky ainda manteve seu lugar. O único rosto novo
foi o da estrela ascendente do partido – Bukharin. A descrição que Lenin fez dele –
“o favorito do partido” – acelerou seu avanço para os postos mais elevados.
Dzerzhinsky, Sokolnikov e Frunze tornaram-se candidatos a membro do Politburo.
O secretariado assumiu nova feição com Stalin como secretário-geral, Molotov
como segundo secretário e Kaganovich como secretário – uma base de apoio bem
mais segura, na perspectiva do secretário-geral. Stalin, provavelmente, sobrevivera ao
pior momento de sua carreira política: não deixara o importante cargo, a despeito
dos anseios de Lenin, e sua posição na chefia fora revigorada.
A Carta de Lenin desapareceu das vistas do partido durante décadas. Ela não foi
publicada no Leninskii sbornik (“Miscelânea de Lenin”), malgrado a promessa de
Stalin de fazê-lo. É bem verdade que a Carta aflorou algumas vezes nos anos 1920
em decorrência da luta interna no partido. Chegou mesmo a ser publicada no
Boletim nº 30 do XV Congresso do partido (tiragem: 10 mil cópias), com o
carimbo “Apenas para membros do VKP(b)”,* sendo distribuída para comitês
provinciais e para as frações comunistas do comitê central dos sindicatos; parte dela
foi impressa no Pravda de 2 de novembro de 1927. Portanto, não procede a
afirmação de que o partido nada sabia a respeito dela. Mas o não cumprimento
imediato da vontade de Lenin tornou difícil fazê-lo mais tarde, ainda mais porque
Stalin, a princípio, tentou mudar seu comportamento, ao menos para uso externo.
O principal motivo, contudo, foi que, aos olhos do partido, Stalin se transformara
no líder da maioria do comitê central que estava em conflito com os oposicionistas,
mesmo que tal oposição, como regra, só expressasse diferenças intelectuais, pontos
de vistas distintos e alternativas. Stalin, entretanto, empenhou-se para fazer com que
os termos “oposição” e “facção” fossem entendidos como sinônimos de hostilidade.
Gerações subsequentes de membros do partido só ouviram falar na Carta de
Lenin no XX Congresso, em 1956. Esse tipo de segredo foi pernicioso, já que erodiu
os elementos democráticos existentes e, inevitavelmente, criou a impressão de que a
verdade podia ser sequestrada. Vale a pena ressaltar que Karl Radek escreveu em
“Resultados do Décimo Segundo Congresso do RKP”, publicado em 1923, que
algumas pessoas desejaram “capitalizar” em cima das últimas cartas de Lenin
dizendo que “elas continham coisas secretas”, fato que impossibilitou sua
publicação.62
No final, a tentativa de esconder a verdade revelou-se inútil, não sem antes
danificar consideravelmente a conscientização pública, a cultura política e os valores
espirituais da sociedade soviética. A mania do segredo era inata em Stalin e, em
consequência dela, carimbos de sigiloso apareceriam em todos os tipos de arquivos,
até em documentos elementares. Claro que existem segredos de estado – e
continuarão existindo –, mas tornar secretas correspondência comum e informações
rotineiras passou a ser um estilo. Ninguém parecia perceber que a imposição de
segredo excessivo na vida social e do Estado lavrava o solo para a corrupção. No
centro de todos os segredos estava o próprio Stalin, reagindo pessoalmente contra o
fluxo constante das informações.
O texto da Carta de Lenin foi, graças em parte aos esforços de Trotsky,
publicado repetidas vezes no Ocidente. Primeiro, nos Estados Unidos, com um
extenso comentário antissoviético feito por aliado de longa data de Trotsky, Max
Eastman. Depois, na França, nos anos 1930, Boris Souvarine, cidadão francês de
origem russa e colaborador do L’Humanité, também o analisou. Trotsky trabalhou
muito e com afinco para atrair atenção para a Carta, porém, no final de sua vida, só
tinha uma interpretação para ela: Lenin havia proposto a remoção de Stalin do
cargo e recomendara aos delegados que fizessem de Trotsky, o mais capaz e
inteligente dos candidatos, líder do partido. Repetiu isso com tanta frequência em
seus livros que é bem provável que passasse a acreditar na história.
As ideias de Lenin, tal como expressas no Testamento, subentendiam um amplo
espectro de medidas democráticas. Ele propôs o aumento no fluxo de sangue novo
no partido e na liderança do Estado, o fortalecimento do papel dos sindicatos,
juntamente com o dos sovietes, das organizações sociais e dos órgãos de segurança, e
que a liderança prestasse mais contas aos operários. Mesmo que não fizesse
referências a plebiscitos, referendos, pesquisas de opinião, fiscalização obrigatória da
liderança ou rotação estrita nos quadros do partido, e outras características similares
da democracia, estava implícito um sentido de equidade no que advogou no fim da
vida.
O desleixo do partido quanto a esse princípio básico iria ter seu preço em todas
as esferas da vida. Não obstante, para dar ao sistema político o que lhe é devido,
grande atenção foi dispensada em instruir o povo e as gerações sucessivas sobre a
revolução, o socialismo e o comunismo. A imagem do “novo homem” ideal foi
propagada como modelo do indivíduo do futuro. Já nos anos 1920, a despeito do
surgimento de tendências burocráticas, o lado ideológico da reestruturação da
sociedade recebeu importância primordial. Simplicidade, parcimônia pública,
ausência do sentimento de posse na vida comunitária cotidiana, prontidão na
resposta a todos os reclamos da sociedade, profunda aversão à indiferença cultural,
ao materialismo e ao consumismo, e um alto nível de espiritualidade estranha aos
valores comerciais: essas características nas pessoas dos anos 1920, 1930 e 1940
testemunham que a burocracia não sufocou o melhor que existia nelas. O povo
manteve a fé na ideia.
Depois da morte de Lenin, Stalin, que não se dispunha a trocar a cabine de
comando por um mero ministério ou outro, tomou seu destino nas próprias mãos.
Mas o perigo do que estava por acontecer já estava lá, no sistema centralizado. Os
alertas de Lenin foram desprezados. A velha guarda, aferrada que estava à luta
interna, não aceitou o papel da liderança coletiva. A liberdade conquistada enevoou-
lhe a visão do porvir.
Como Nikolai Berdyaev escreveu: “A experiência da Revolução Russa confirmou
uma antiga ideia minha, qual seja, a de que a liberdade não é democrática, é
aristocrática. As massas sublevadas não se interessam pela liberdade, não precisam
dela, nem se dispõem a arcar com a responsabilidade por ela.”63 Ideia discutível, sem
dúvida, mas verdadeira quando aplicada às massas e à velha guarda, que foram
incapazes de lidar com a liberdade.
Nota
* No seu XIV Congresso, em 1925, o Partido Comunista de Toda Rússia (bolcheviques) – de sigla RKP(b) –
tornou-se o Partido Comunista de Toda União (bolcheviques) – de sigla VKP(b).
Parte III
Opção e luta
Stalin: “Então você nega que nossa revolução pode conduzir ao socialismo?” Trotsky: “Acredito, como
sempre acreditei, que nossa revolução pode e tem que levar ao socialismo ao assumir um caráter
internacional.”
Mais adiante, ele explica: “O segredo de nossas contradições teóricas repousa no fato
de que você se atrasou em relação ao processo histórico e agora tenta se recuperar.
De uma certa forma, tal fato também explica o segredo de nossos erros
econômicos.” A teoria da construção do socialismo em um só país, segundo
Trotsky, era incompatível com a teoria da revolução permanente. Só a
superindustrialização, à custa do setor agrícola, como escreveu Preobrazhensky em
apoio a Trotsky, poderia prover o Estado com a base industrial e a possibilidade de
socialismo.
O conhecimento de Stalin sobre economia era extremamente superficial, mas ele
podia perceber que o país atravessava estágio perigoso. Os debates e argumentos no
partido, que se processavam por quase uma década, não eram apenas uma batalha
sobre o nível e o caráter da sociedade democrática, mas também uma busca da
maneira de desenvolver a economia. Se Stalin tivesse maior percepção econômica,
seria capaz de ver nos últimos artigos de Lenin os esboços de uma concepção de
socialismo que incorporava um vínculo entre a industrialização e a agropecuária
cooperativa voluntária, um poderoso crescimento da cultura das grandes massas,
uma melhora nas relações socialistas e o incondicional desenvolvimento dos
princípios democráticos na sociedade. Porém Stalin jamais entendeu
adequadamente a profecia de Lenin de que a NEP enfeixaria todos esses problemas
com um só nó: que ao se ligar a cidade ao campo, liberando-se as alavancas
econômicas, e por intermédio do comércio e da antiga industriosidade do homem
de negócios, “a Rússia socialista emergiria da Rússia da NEP”.7
De início, Stalin interessou-se pelas opiniões econômicas de Bukharin,
Preobrazhensky, Strumilin e Leontiev, mas achou a terminologia abstrusa que
empregavam difícil de acompanhar. Não tendo jamais pisado numa fábrica ou
sentido o cheiro da terra arada na primavera, e por nunca ter conseguido dominar o
“economês”, ele, finalmente, admitiu a possibilidade de uma “escassez de bens” sob
o socialismo – que ainda aí está hoje em dia. Falando com honestidade, ele bem que
tentou compreender alguma coisa de economia. Por exemplo, leu o livro de O.
Ermansky, A organização científica do trabalho e o sistema de Taylor. Talvez o tenha
lido porque Lenin elogiou a obra de Ermansky (um menchevique cujo nome real
era Kogan) por ser capaz de expor “o sistema de Taylor, mostrando, e isso é por
demais importante, seus lados positivos e negativos”.8
No entanto, a julgar por seus trabalhos escritos, bem como por suas anotações e
assertivas, mas principalmente por suas medidas práticas, fica patente que o credo
econômico de Stalin era mais do que simples. O país tinha que ser forte, não
meramente forte, mas poderoso. Em primeiro lugar, ele precisava ser totalmente
industrializado; em segundo, o campo levado para mais próximo do Socialismo. O
método deveria ser a mais ampla confiança na ditadura do proletariado, que Stalin
entendia puramente em termos coercitivos. Em 1926, escreveu no Bolshevik (nº 9-
10, 1926): “Estamos tentando equacionar tarefas maiores e mais sérias, cuja solução
nos levará com segurança e sucesso na direção do socialismo, porém, à proporção
que as tarefas se tornarem maiores, as dificuldades crescerão.” Essa fórmula teria um
eco sinistro no seu ditado de mais tarde: “A luta de classes se intensifica quanto mais
rápido progredimos para o socialismo.” Em meados dos anos 1920, Stalin tinha
apenas uma percepção embaçada do caminho para a construção do socialismo,
todavia, sem sombra de dúvida já tinha seu método na cabeça: força, comando,
diretrizes, ordens. Em outras palavras, ditadura.
Ao ler os intermináveis discursos de figuras de proa do partido sobre o destino
do socialismo na URSS, Stalin sentiu que a ampla gama de pontos de vista provinha
não só de diferenças nas posições intelectuais e teóricas dos autores, mas também do
fato de a realidade se revelar muito mais complexa do que os bolcheviques previam.
Como Bukharin escreveu francamente, em 1925:
Eis como nos acostumamos a ver o problema: conquistaríamos o poder, tomaríamos quase tudo em nossas
mãos, introduziríamos imediatamente a economia planejada, puniríamos os recalcitrantes remanescentes e
dominaríamos o restante, e isso seria tudo. Hoje, vemos com clareza que não é assim que é feito.9
Stalin dificilmente discordaria disso, mas sentia que o grande perigo estava em
Trotsky. Acabara de saber que o rival declarara num círculo de seguidores que
“alguns novos grandes do partido não podiam perdoá-lo pelo papel que
desempenhara em outubro”. Saindo dos lábios de Trotsky, o termo “grandes” só
podia significar Stalin e, aparentemente, esse não era o pior epíteto que o adversário
e seus aliados vinham empregando contra ele.
Se bem que as relações com Kamenev e Zinoviev permanecessem, pelo menos na
fachada, satisfatórias, Stalin sentiu que suas maneiras francas e a constante influência
que exercia não eram muito do agrado da dupla. Passou a perceber isso com mais
intensidade depois do XIII Congresso. No relatório que fez sobre cursos para
secretários de comitês distritais, Stalin criticara Kamenev por ter afirmado a
existência de uma “ditadura do partido”, e concluiu dizendo, acompanhado por
expressões de apoio dos delegados: “Não temos uma ditadura do partido e sim uma
ditadura do proletariado.” Deve-se realçar que Bukharin, que à época partilhava a
ideia da “ditadura do partido”, declarou no plenário do comitê central de janeiro de
1924:
Nossa tarefa é perceber dois perigos: o primeiro vem da centralização de nosso aparato. O segundo é o da
democracia política que pode resultar se a democracia for muito longe. A oposição, entretanto, só vê o perigo
da burocracia. Não enxerga o risco da democracia política além do risco da burocracia. [...] Para apoiar a
ditadura do proletariado, temos que dar suporte à ditadura do partido.
Ao que Radek acrescentou: “Nós somos um partido ditatorial num país burguês
trivial.”10
Mas Stalin, que não via necessidade de lutar contra muitos, criticou apenas
Kamenev. Para ele, o importante era não correr as frentes, mas tratar de cada uma a
seu tempo. De imediato, a parelha política contra-atacou. A crítica de Stalin foi
considerada, numa reunião do Politburo, inadequada ao companheirismo e
imprecisa quanto à verdadeira posição de Kamenev. Stalin, de pronto, pôs seu cargo
à disposição. Foi a segunda vez que o fez como secretário-geral, e não seria a última.
A demissão foi mais uma vez recusada, e exatamente por Kamenev, com o apoio de
Zinoviev. Stalin percebeu uma crescente ambiguidade nos dois oponentes.
Evidentemente, eles ainda temiam Trotsky, porém, mais uma vez, mudavam de
direção como um cata-vento. De que valia o livro Leninismo de Zinoviev? Na
verdade, ele tentava de novo camuflar e justificar seu comportamento e o de
Kamenev em outubro de 1917, e o desacordo dos dois com Lenin. Stalin tinha
memória maligna e iria usar decididamente tais fatos no futuro.
Tão logo se visse livre de Trotsky, cuidaria daqueles “boquirrotos
inescrupulosos”. Até mesmo ele, que transformara a rudeza em uma de suas
virtudes, por vezes se enervava com a postura afirmativa de Zinoviev. Falando no
pleno do comitê central de 14 de janeiro de 1924 sobre o assunto “lista de
discussão”, Zinoviev fez comentários excessivamente francos sobre muitos membros
do comitê e sobre outros bolcheviques que tomavam parte no debate, como se fosse
um comandante de companhia avaliando subordinados. “Pyatakov”, declarou ele
presunçosamente, “é um bolchevique, mas seu bolchevismo ainda é imaturo. Verde
e imaturo”. De Sapronov, disse: “Ele tem os dois pés no chão, porém não representa
nada mais que leninismo.” Osinsky “denota um desvio de tipo mais intelectual, não
tendo absolutamente nada em comum com o bolchevismo”. Tampouco deixou de
atingir Trotsky de passagem, o que deve ter sido muito agradável para Stalin,
embora não houvesse conexão óbvia: “Certa vez, quando chegamos em Copenhague
para um congresso, nos foi dada uma cópia do jornal Vorwärts na qual havia um
artigo anônimo afirmando que Lenin e seu grupo eram criminosos e expropriadores.
O autor do artigo foi Trotsky.”11
Enquanto, sentado, Stalin ouvia tudo aquilo, deve ter passado por sua mente que
Zinoviev já se via chefe. Não emitiu opinião sobre o discurso no plenário, mas, dois
anos mais tarde, iria desmantelar pedra por pedra a posição de Zinoviev. Em maio
de 1926, numa nota para os membros da delegação do partido ao Comintern, Stalin
escreveu:
Referindo-se aos seus 17 anos de atividade literária, o camarada Zinoviev se jacta de que não cabe aos
camaradas Stalin e Manuilsky ensinar-lhe a necessidade de combater a tendência de ultraextremismo de
esquerda. Não é preciso provar que o camarada Zinoviev se acha um grande homem, porém se o partido
também pensa assim, há dúvida.
De 1898 até a Revolução de Fevereiro de 1917, nós, os velhos ilegais, despende-mos tempo e trabalho em
todas as regiões da Rússia, mas jamais encontramos o camarada Zinoviev fosse na clandestinidade, na prisão
ou no exílio.
Nós, os velhos ilegais, sabemos que existe uma galáxia de antigos membros que entraram no partido bem
antes do camarada Zinoviev, e que o construíram sem fanfarronice ou espalhafato. Como comparar aquilo
que o camarada Zinoviev chama de atividade literária com o trabalho que todos os nossos velhos ilegais
empreenderam sub-repticiamente durante vinte anos?12
De que serviam os recentes discursos de Trotsky sobre o partido? Qual o significado, o objetivo, a intenção
de tais discursos quando o partido não quer o debate, está sobrecarregado de tarefas prementes e precisa do
trabalho conjunto para a restauração da economia, e não de uma batalha renovada sobre velhas matérias? Por
que Trotsky tem que puxar o partido de volta a novas discussões?
Dando sequência à sua tirada, Stalin passeou o olhar pelo salão e respondeu ele
mesmo, de forma áspera e num tom de voz profundo e uniforme:
A julgar por todos os fatos, a “motivação” é que Trotsky faz outra (mais uma!) tentativa de preparar o terreno
para substituir o leninismo pelo trotskysmo. Trotsky precisa, desesperadamente, desestabilizar o partido e os
quadros que tomaram parte no levante, para que então possa desbancar o leninismo.13
Havia certa verdade nisso. Ao mesmo tempo em que cobria Lenin e o leninismo
com adjetivos elogiosos, Trotsky, gradual e repetidamente, lançava dúvidas sobre
certos argumentos leninistas a respeito da construção do socialismo. Segundo ele,
socialismo na Rússia era uma impossibilidade sem o apoio de outros países; a
industrialização não podia ser concretizada apenas às expensas do campo; a NEP era
o primeiro passo para a capitulação; o plano das cooperativas era prematuro;
Outubro era mera continuação da Revolução de Fevereiro; sem o treinamento em
“exércitos de trabalho”, o povo não entenderia as “vantagens do socialismo”, e vai
por aí. Tendo-se em mente que Zinoviev e Kamenev, ao formarem a “nova
oposição” que “iria sitiar” Stalin, já estavam encontrando Trotsky a meio caminho,
o discurso de Stalin, primeiro contra Trotsky e, depois, contra seus novos aliados,
poderia àquela altura ser qualificado como uma “defesa do leninismo”. Havia pouco
pensamento construtivo no que foi dito pelo secretário-geral, especialmente quando
se considera que Trotsky não estava de todo errado, em particular no que dizia
respeito aos perigos da burocracia. Stalin ainda lutava com meios lícitos, embora o
que “defendesse” fossem citações e não sua motivação intelectual. Concluiu assim
seu pronunciamento no pleno: “Eles falam de repressões contra a oposição e da
possibilidade de rompimento. Isso é um despropósito, camaradas. Nosso partido é
resistente e poderoso. Não permitiria rompimento algum. Quanto a repressões, sou
decididamente contra.”14
Naquela ocasião, Stalin revelou generosidade ao não criticar Zinoviev e
Kamenev, e mesmo ao protegê-los de Trotsky. Os fundadores da “nova oposição”,
no entanto, não aceitaram o ramo de oliveira. Numa reunião do Politburo no início
de 1925, Kamenev, apoiado pelo confrère, declarou que o atraso tecnológico e
econômico soviéticos em relação aos países capitalistas que os circundavam
representava um obstáculo insuperável para a construção do socialismo. Com efeito,
Zinoviev e Kamenev haviam formado um bloco com Trotsky, o mesmo Trotsky ao
qual endereçaram crítica devastadora poucos meses antes, precisamente sobre o
mesmo tema. O ataque da “nova oposição” à política do partido necessitava de
resposta e uma diretriz partidária sobre passos adicionais a tomar na esfera da
construção socialista. Para tanto, era de enorme importância a XIV Conferência do
partido no final de abril de 1925. Stalin, naquela oportunidade, não apresentou
relatório, tampouco participou do debate. Os relatórios essenciais foram feitos por
Rykov sobre cooperativas, por Dzerzhinsky sobre a indústria metalúrgica, por
Tsyurupa sobre imposto na agricultura, por Molotov sobre estrutura do partido, por
Solts sobre legalidade revolucionária, e por Zinoviev sobre tarefas do Comintern.
Por tradição ou inércia, a conferência foi presidida por Kamenev, da mesma forma
que presidia o Sovnarkom e o Politburo. Mas aquela seria a última vez. Nem ele
nem Zinoviev jamais estariam de novo à frente de reuniões como aquela. É provável
que o assunto mais importante tratado pela conferência tenha sido a proposição que
declarou que, a despeito da tese de Zinoviev, a vitória do socialismo era possível na
URSS, mesmo no contexto de uma desaceleração da revolução mundial. Todavia, a
vitória do socialismo só poderia ser considerada completa quando houvesse garantias
internacionais contra a restauração do capitalismo.
O debate sobre a legalidade socialista foi crucial. Solts, que abriu a discussão e
que partilhara o exílio com Stalin em Turukhansk em determinado período,
observou que, depois da vitória da revolução, “sentimos mais a necessidade de
aprimorar nossa economia que a de legalidade revolucionária”. Agora, entretanto,
disse ele com intenção manifesta, “os membros do partido [...] têm que entender
que nossas leis, em todas as suas manifestações, tanto confirmam como reforçam o
edifício que queremos construir e robustecer, e que, desrespeitando essas leis,
destruiremos tal edifício”.15
Alguns dias depois da conferência, Stalin fez um discurso para ativistas da
organização partidária de Moscou. Chamou uma parte do discurso de “Sobre o
destino do socialismo na União Soviética”. Mais uma vez, sujeitou Trotsky à crítica
vitriólica e zombou de novo de sua teoria da “revolução permanente”. Falando com
sentimento e convicção, explicou a essência da vitória final e completa do socialismo
na URSS. Os primeiros sinais do papel e do lugar especiais que iria ter e ocupar no
partido surgiram ali. Deixando a modéstia de lado, citou, à exaustão, ideias e
afirmativas de sua própria lavra. Ao expor suas proposições corretas (até então),
preparava o partido para aceitar a noção de que ele tinha um direito particular de
postular a verdade.
Stalin testou seus pontos de vista não só nos discursos para o comitê central e na
imprensa, como também nas poucas ocasiões diante de operários. Seu assistente,
Tovstukha, escreveu um dos discursos que o secretário-geral pronunciou nas
Oficinas Stalin da Ferrovia Outubro, em 1º de março de 1927. Stalin, marcando o
compasso com a mão, explicou pausadamente:
Estamos completando a mudança total de um país agrário em um industrial, sem o concurso do mundo
exterior. Como os outros países fizeram essa jornada?
A Inglaterra criou a indústria pelo roubo em suas colônias durante duzentos anos inteiros. Não há a hipótese
de enveredarmos pelo mesmo caminho.
A Alemanha arrancou cinco bilhões [de francos] da França derrotada. Porém, esse curso, o do roubo
mediante guerras vitoriosas, também não nos convém. Nossa causa é de paz.
Existe uma terceira rota, a escolhida pela Rússia czarista. E ela contempla empréstimos estrangeiros e acordos
secretos à custa dos operários e dos camponeses. Não podemos seguir tal rota.
Temos o nosso caminho, que é o da poupança própria. Não o percorreremos sem cometer enganos, falhas
haverá. Mas o edifício que estamos construindo é tão grande que esses enganos e falhas, no final, não terão
importância.16
Os aplausos surgem como rajadas de metralhadoras. O homem, envergando o cáqui dos soldados, calçando
botas surradas, e cachimbo na mão, posta-se diante da plateia. “Vida longa para Stalin! Vida longa para o
[comitê central]!” Bilhetes são passados a Stalin. Enroscando o bigode preto, ele os estuda com atenção. O
salão permanece silencioso, e Stalin, secretário-geral do partido e o homem que deu nome à oficina, começa
sua conversa com os operários.
O pleno decide tudo e chama a atenção dos líderes quando começam a perder o equilíbrio. Se alguém sai da
linha, o pleno o traz de volta, e isso é tanto essencial como necessário. O partido não deve ser conduzido fora
do coletivo. Depois de Ilyich, é uma asneira pensar assim, uma asneira falar nisso.
Trabalho coletivo, liderança coletiva, unidade no partido, unidade nos órgãos do comitê central e
subordinação da minoria à maioria – é disso que precisamos agora.19
Infelizmente, essas louváveis proposições não foram escoradas por regulamentos que
governassem o rodízio na liderança ou a duração do mandato do secretário-geral e
de outros postos elevados. Foi precisamente sobre essas questões que Lenin escreveu
suas teses referentes à melhora do aparato. O XIV Congresso foi o último da era
Stalin em que a crítica e a autocrítica fizeram parte integral dos procedimentos da
reunião. A crítica foi declinando sem parar de congresso em congresso. Somente
Stalin, e os que agiam sob suas ordens, emitiram críticas a partir de então, e o
resultado foi que a estagnação intelectual, o dogmatismo e o formalismo burocrático
viraram regra.
Ao optar pela construção socialista e pela industrialização, o congresso
transformou-se em ponto de referência da história do país, mas os princípios
democráticos não foram, da mesma maneira, formulados para desenvolvimento
ulterior. Despercebida ao lado da grande ideia, nascia sua própria negação. A
batalha entre esses dois princípios sinalizou a origem do triunfo vindouro do “Líder”
e da tragédia do povo. Nem todos perceberam que pagariam o fortalecimento
econômico com as liberdades pessoais. Não era um paradoxo, e sim da lei da
autocracia.
Nota
Os burgueses estão gradualmente perdendo o chão sob seus pés e recuam dia após dia. Por mais fortes e
numerosos que possam hoje ser, no final, serão derrotados. Por quê? Porque estão se desintegrando como
classe, tornando-se fracos e velhos, verdadeiros pesos mortos. Isso deu lugar a uma bem conhecida posição
dialética: tudo que existe, isto é, tudo que cresce de um dia para outro, é racional, e tudo que se desintegra de
um dia para outro é irracional e, portanto, não pode evitar a derrota.20
O que discutimos aqui não é apenas uma questão de trabalho no campo, mas uma atitude geral em relação
aos camponeses, ou seja, questão bem mais ampla que, sem dúvida, frequentará a agenda por alguns anos
vindouros, já que colide com o problema do exercício da ditadura nas circunstâncias presentes.25
Stalin, no seu discurso, listou uma série de recomendações políticas e teóricas nas
quais se pode detectar o embrião de grandes erros do futuro. A primeira coisa que
devemos fazer, disse ele, “é vencer de novo os camponeses”. Em segundo lugar,
temos que entender que “o campo de batalha mudou”. Em terceiro lugar, “temos
que formar quadros nas aldeias”.26 O ano era 1924, mas Stalin já falava como se
estivesse em 1929.
[14]
Desalinho intelectual
Sobre a posição política assumida pelo marido, Dmitri Merezhkovsky, e por ela
mesma, disse orgulhosamente: “Está bem, talvez estejamos apenas protegendo o
branco da roupa dos émigrés.” Eles tinham visto na Pátria “o reino do Anticristo”.
Até mesmo Trotsky, que se mostrava bastante tolerante para com essa dúvida
intelectual e considerava inevitável a confusão da intelligentsia, fez uma irritada sátira
da “choradeira” de Gippius. Escreveu que a arte dela, que mesclava cristianismo
místico e erótico, mudara no momento em que “um soldado do Exército Vermelho,
com botas de tachões, pisou em seus graciosos pés. De imediato, ela começou a
lamúria na qual é possível identificar-se a voz de uma bruxa obcecada com a ideia da
santidade da propriedade”.27
A faixa de interesses estéticos de Stalin era incomensuravelmente mais estreita
que a de Trotsky, e, em particular, não se deixava excitar quer pelos decadentes,
quer pelos iconoclastas. Talvez tivesse pouca noção das obras de Gippius, Balmont,
Belyi, Lossky, Osorgin, Shmelyov e muitos outros que deixaram sua marca na
história cultural russa. Empírico e destituído de valores emocionais, Stalin encarava
todo o edifício da cultura em termos estritamente pragmáticos: isso ajuda, ou não? É
esse o caminho? Será perigoso? Critérios estéticos, se é que os possuía, não tinham
papel decisivo em seu modo de pensar. Ele expressaria seu credo sobre literatura e
arte duas décadas mais tarde nos jornais Zvezda e Leningrad, no veredicto
funestamente bem conhecido. Para ele, as artes permaneciam encapsuladas no
modelo binário primitivo: “nossas” e “deles”.
Mesmo grande, o número de emigrados, excedendo talvez dois e meio milhões
de pessoas e abarcando todos os tipos de intelectuais, estava longe de ser um caso de
hostilidade generalizada à União Soviética. Além do mais, seus destinos foram bem
diversos. Alguns terminaram nas favelas de Xangai ou nas pensões de Paris. Outros
voltaram à Rússia e, desses, alguns até conseguiram retomar suas carreiras literárias,
enquanto outros não conseguiram se adaptar ao novo ambiente social e, então, ou se
calaram para sempre, ou caíram no moedor de carne stalinista.
Os que permaneceram na Rússia soviética também reagiram de formas diversas.
Rapidamente, surgiram associações, entre elas a União dos Escritores Camponeses,
os Irmãos Serapion, a Pereval (“Travessia”), a Associação de Escritores Proletários de
Toda Rússia, a Associação de Artistas da Rússia Revolucionária, a Kuznitsa (“a
Forja”), a Frente Esquerda de Arte. Nos clubes friorentos e nos palácios sem
aquecimento houve debates sobre cultura proletária, literatura, política e o uso ou
não dos valores da cultura burguesa. Surgira uma oportunidade única para criar e
consolidar o pluralismo artístico. Os métodos de comando, que marcariam o
fenecer das artes, ainda não predominavam.
Stalin não viu nada de perigoso nesse novo mosaico de escolas e tendências
literárias, especialmente porque muitos escritores falavam entre si sobre a revolução,
o novo mundo, o novo homem. Até mesmo as preocupações sectárias e de
vanguarda com os métodos radicais pareciam pouco mais que ingênuas e divertidas.
Como a arte em si, o pluralismo daqueles anos iniciais era espontâneo e, por breve
período de tempo, fez contribuições ao cinema, à música, à literatura, à pintura e à
escultura, que ocuparam lugar no tesouro da herança cultural russa.
Muitos escritores e artistas amadureceram com rapidez na atmosfera de estufa da
revolução, e debates, contendas e competições entre as várias escolas foram
resultados naturais. Foi uma pena, para dizer o mínimo, que, em poucos anos, tal
ambiente de indagações se evaporasse no cadinho do estilo burocrático do
pensamento uniformizado e que, no clima que se seguiu, emergisse uma pletora de
livros de interesse absolutamente efêmero. Em dois números do jornal Bolshevik, P.
Ionov escreveu um artigo sobre a cultura proletária no qual afirmou que “arte pura”,
imune à influência das tormentas sociais, dos choques econômicos e dos conflitos de
classes, era uma impossibilidade. Replicando, Leopold Averbakh perguntou: “Quem
vai reformar quem?”28
Um editorial do Bolshevik intitulado “Quadros de comando e a revolução
cultural” deu a resposta concisa: os assuntos culturais deveriam ser governados por
meios administrativos, isto é, pelos quadros, ou “construtores do socialismo”.29
Porém, tão logo adquiriram alguma instrução, começaram a demolir igrejas, ao
passo que as associações criativas autônomas foram desaparecendo, e a
individualidade silenciando. Foi essa a triste sorte, por exemplo, de todo um grupo
de “poetas camponeses”, cuja chama mais fulgurante fora Sergei Yesenin, e
Bukharin, ainda um radical, concorreu para tanto. A liberdade de criação foi se
tornando cada vez mais programada e, em consequência, mais estreita. E a arte,
despida de espírito humano, já ia se transformando em representante da cultura.
Stalin passou a acompanhar com atenção a efervescência no mundo literário.
Sabia que a revolução cultural, que despertara mudanças enormes na consciência
social, fatalmente estimularia também um acentuado interesse em relação aos valores
culturais em geral, e à literatura criativa em particular. Em meados da década de
1920, a alfabetização crescera marcantemente. A melhoria nas repúblicas nacionais
foi especialmente surpreendente. Comparado com 1922, o número de operários
alfabetizados na Geórgia, em 1925, cresceu 15 vezes; no Cazaquistão, cinco vezes;
no Quirguistão, quatro vezes; e assim foi em outras regiões. As principais fontes de
alfabetização e de cultura dos trabalhadores surgiram nos clubes de operários das
cidades e nas cabanas de leitura das vilas. A impressão de periódicos triplicou a
marca de 1913. Começou em escala maciça a organização de bibliotecas.
Montaram-se estúdios cinematográficos em Odessa, Yerevan, Tashkent e Baku.
Mais se editava literatura criativa.
O Politburo discutiu repetidas vezes a maneira de criar condições para levar
cultura às massas e fortalecer a influência do bolchevismo sobre elas. Em junho de
1925, aprovou a resolução “Sobre a política do partido no campo da literatura
criativa”, recomendando uma atitude atenciosa para com os velhos mestres.
Também adotou outra resolução, proposta por Stalin, que destacava a necessidade
de manter a pressão sobre o movimento Mudando os Marcos. Ademais, a resolução
ressaltou: “O partido tem que tomar todas as medidas para desenraizar interferências
incompetentes e não autorizadas da burocracia nas questões literárias.”30
Os asseclas de Stalin mantinham-no informado sobre os novos livros e artigos de
autoria de escritores proletários. É claro que ele não podia ler tudo, mas depois que
sua biblioteca foi reorganizada, muitos dos livros de encadernação barata do período
permaneceram em sua coleção, com anotações de próprio punho em vermelho, azul
ou lápis comum. A maioria dos comentários, por coincidência, foi feita em
vermelho. A julgar por tais anotações, parece que Stalin se familiarizou com
Chapaev, de Furman, com A rebelião e A corrente de ferro, de Serafimovich, com as
histórias de Vsevolod Ivanov, com Cimento, de Gladkov, com as obras de Gorky,
que amava, e com a poesia de Bezymensky, Bedny e Yesenin, entre outros.
Evidentemente, fez anotações também em À espera, de Platonov, porém,
aparentemente irritou-se com aquele talentoso escritor, como certa vez confessou a
Fadeyev. Stalin ignorava em grande parte os clássicos ocidentais, em geral suspeitoso
do Ocidente e de sua democracia “em desintegração”.
Amava o teatro e o cinema da mesma forma que os grandes latifundiários se
encantavam com o teatro de seus servos. Foi frequentador assíduo do Teatro
Bolshoi nos anos 1930 e 1940 e assistia, à noite e com regularidade, novos filmes no
Kremlin ou em sua dacha. De certa forma, eles proporcionavam uma janela para sua
vida reclusa. Não escondia o fato de não gostar muito de pintura, a forma de arte
que menos apreciava. Muitas vezes, debateu sobre a arte com escritores como
Gorky, Bedny, Fadeyev e, é claro, Lunacharsky, e também com outros membros do
Politburo, que entendiam tão pouco do assunto quanto ele.
Em algumas manifestações públicas, Stalin aproveitou a oportunidade para dar
opinião sobre escritores e suas obras, normalmente em termos tão categóricos que
não encorajavam resposta. Por exemplo, numa carta a Bill-Belotserkovsky, censurou
o diretor do Bolshoi, D. Golovanov, por seu ataque à prática de atualizar
automaticamente o repertório à custa dos clássicos. Stalin descreveu a situação como
“golovanshchina” (ou seja, ditadura de Golovanov) e como “expressão de um estado
de coisas antissoviético”.31 Tal julgamento, nos anos 1930, custaria a cabeça de
alguém. Na mesma carta, comentou que as peças de Bulgakov eram encenadas com
tanta frequência “porque não há quaisquer de nossas próprias peças suficientemente
boas para apresentação. Na terra de cego quem tem um olho é rei”. Este era o
melhor de Stalin, não mostrando qualquer dúvida sobre seu próprio conceito,
confiante e desdenhoso do processo intelectual dos artistas.
Ele podia também ser áspero com aqueles que, normalmente, tratava com
deferência, como Demyan Bedny, um bolchevique desde 1912 que logo ganhou
reputação como poeta proletário depois da revolução. A atualidade de suas fábulas,
poemetos, canções, livretos de rimas, contos e parábolas valeu-lhe duradoura
popularidade entre as massas. Porém, num certo número de obras (“Separando pela
força”, “Saia do fogão”, “Sem piedade”), ele criticava a inércia e outras tradições
negativas do passado que a sociedade soviética carregava consigo. O departamento
de propaganda do comitê central encarou tal opinião como antipatriótica; Bedny foi
convidado a comparecer ante o comitê central para uma “conversa” e reclamou
numa carta a Stalin. A resposta do secretário-geral foi pronta: “De repente, você está
bufando e se queixando de grande pressão [...] Pensa que o comitê central não tem o
direito de criticá-lo? Acha que as decisões dele não se aplicam a você? Não acha que
está atacado de ‘presunção,’ essa desagradável doença?” Stalin concluiu achando que
a crítica de Bedny era uma calúnia contra o operário russo, contra o povo soviético e
contra a URSS. “Esta é a verdade, e não as lamentações vazias de um intelectual
amedrontado que tagarela sobre pretensos desejos de isolar Demyan ou de não mais
publicar Demyan.”32
Apenas poucos anos antes, em junho de 1925, o próprio Stalin compilara a
regulamentação da política do partido sobre a literatura, que condenava qualquer
“vestígio de patrulhas literárias” e “a pretensiosa, semialfabetizada e presunçosa
arrogância comunista”. No fim daquela década, ele já tinha esquecido as sábias
diretrizes. Os “quadros de comando” operavam no campo da cultura com crescente
desenvoltura, e a efervescência e confusão intelectual gradualmente desvaneceram
em todos os níveis da administração.
Eram decorridos só três ou quatro anos da ocasião em que Stalin solicitara que
seus agradecimentos fossem levados a Bedny por seus versos “autênticos,
partidários” sobre Trotsky, publicados no Pravda de 7 de outubro de 1926 sob o
título “Tudo tem fim”, que diziam assim:
Stalin gostou do poema e telefonou a Molotov e outros para dizer isso. Todos
aprovaram a sátira política de Bedny, e o secretário-geral observou: “Há menos
leitores para o que escrevemos sobre Trotsky do que para esses versos”, o que, sem
dúvida, era verdade. E bastou o poeta mudar um pouco de tom, revelando
“ressentimento”, para que Stalin se tornasse frio, irritadiço, autoritário e censor.
Sabendo que o destino de seus trabalhos dependia do julgamento de Stalin, os
escritores pediam-lhe, com frequência, a opinião. Seus resumos eram normalmente
condescendentes e, quase sempre, apontavam “fraquezas”, embora, ocasionalmente,
distribuíssem elogios. Por exemplo, ele escreveu a A. Bezymensky: “Li os dois: O tiro
e Um dia em nossa vida. Não há nada de ‘burguesia trivial’ ou de ‘antiparidário’
neles. Ambos podem ser considerados modelos para a arte revolucionária e
proletária de nossos dias.”33
Testemunhas com acesso às informações afirmaram que Stalin estudava as
personalidades políticas de escritores, poetas, cientistas e expoentes culturais. Ele
sabia que nem todos aceitavam a revolução, como atestava a emigração em larga
escala que ocorrera. Tomou conhecimento de uma carta a Lunacharsky (comissário
do povo para a Educação e a Cultura) do escritor russo Vladimir Korolenko,
publicada postumamente em Paris, onde ele falecera em 1921, na qual o intelectual
expressava sua inquietação com o emprego da repressão na Rússia pós-
revolucionária, que iria desacelerar o crescimento da conscientização socialista.34
Stalin decidiu que a carta era falsificação. Também ficou perturbado com um artigo
de Zamyatin, intitulado “Tenho medo”, publicado num pequeno jornal de
Leningrado, o Dom Iskusstv (“Casa das artes”). Zamyatin recebeu permissão para
deixar o país em 1932; ele foi para a França e nunca mais voltou; de lá, em carta a
Stalin, disse que não poderia continuar escrevendo “atrás de grades”. Em 1920, ele
afirmara, destemperadamente, mas com exatidão:
A literatura só existe quando é criada por loucos, eremitas, heréticos, sonhadores, rebeldes e cépticos, e não
por funcionários confiáveis que apenas fazem seu trabalho. Temo que não teremos literatura genuína alguma
enquanto o povo russo for encarado como criança cuja inocência há que proteger. Temo que não teremos
literatura genuína alguma até que nos curemos desse novo tipo de catolicismo que tem tanto receio da
heresia quanto os antigos homens.35
Quais são as falhas de nosso aparato estatal? No fundo, o status inflado e a qualificação inferior dos que nele
trabalham, o que também é verdade para as organizações soviéticas das localidades. Estruturas desajeitadas,
duplicação de funções, burocracia demasiada, seleção ruim dos especialistas com base no entendimento
inadequado de habilitações e, finalmente, fiscalização deficiente, por vezes de todo inexistente, dos escalões
superiores sobre a execução das tarefas, ou sobre o trabalho das próprias instituições.38
Por mais superficial que esse discurso possa ter sido, foi incisivo e irado, e afixou
rótulos nos oposicionistas, aviltando-os como políticos práticos. O comitê executivo
do Comintern preparou-se para a expulsão de Trotsky, o que ocorreu em 27 de
setembro daquele mesmo ano, 1927. Se bem que não estivesse totalmente isolado,
Trotsky continuou travando uma batalha perdida. Depois do seu exílio da União
Soviética e até 1940, ele seria o único a continuar se arriscando, atacando e
acusando Stalin, porém, quanto mais isso se prolongava e mais encolerizada se
tornava a voz solitária de Trotsky, mais patente ficava que sua luta era menos pela
revolução e seus ideais do que por si mesmo. Até seu último dia de vida, jamais se
conformou com o absurdo de ele, o quase gênio, ter sido posto na chuva e no sereno
pelo “velhaco da Ossetia”. Logo passaria a usar conceitos marxistas para apequenar
Stalin, enquanto, de sua parte, o secretário-geral nunca deixaria de ver Trotsky com
o mais profundo ódio pessoal e como a incorporação do mal, símbolo da
degeneração.
Entrementes, os oposicionistas não aprenderam a lição, e a luta prosseguiu. Na
primavera de 1927, enviaram um novo programa ao comitê central, apoiado por 83
aliados de Trotsky. Depois de diversas reuniões do comitê central e da CCC,
Trotsky e Zinoviev foram expulsos do comitê central em outubro de 1927, e do
partido no mês seguinte, uma iniciativa ratificada pelo XV Congresso do partido,
quando se reuniu em dezembro do mesmo ano. Entre os 25 membros ativos da
oposição expulsos do partido na mesma ocasião estava Kamenev, embora ele e
Zinoviev fossem readmitidos mais tarde e mesmo chegassem a fazer declarações de
arrependimento no XVII Congresso do partido.
Conquanto seja verdade que a batalha com a oposição teve lugar contra um pano
de fundo internacional de crescente tensão e um quadro interno de
desenvolvimento da industrialização, é também verdade que Stalin provocou a
refrega. Os debates infindáveis desviaram a atenção do partido de suas tarefas
vitalmente importantes, e a condição partidária interna foi discutida repetidas vezes
dentro do Comintern; mas lá também Trotsky e seus aliados não conseguiram
praticamente apoio algum. Sua aura de herói do partido havia se dissipado. Passou a
ser visto pelo partido e pelo movimento operário internacional como discursador e
pretenso líder.
Por mais paradoxal que possa parecer, foi Trotsky e ninguém mais quem
reforçou a posição de Stalin. Ao impingir ao partido um debate sem fim sobre sua
rixa com Stalin, Trotsky, sem querer, reforçou a autoridade do secretário-geral como
novo líder. Foi emblemático o fato de Stalin ter sido o único orador do XV
Congresso a receber estrondosa ovação tanto pelo relatório como pelo discurso de
encerramento. Ele não pode ser acusado de “encenação” ou de “preparação de
enredo” na condução do evento: a maioria dos delegados simplesmente o viu como
lídimo chefe emergente do partido, impressão fortalecida pelos pouco convincentes
discursos da oposição, que perdera o vigor. Como Trotsky relembrou encolerizado:
“A única preocupação de Zinoviev e seus amigos foi a de render-se enquanto havia
tempo. [...] Esperaram comprar o perdão, até mesmo ser favorecidos de alguma
forma, caso demonstrassem seu afastamento de mim...”41
Ficou claro para todos que a aliança de Trotsky com seus antigos inimigos
surgira só para concentrar forças contra Stalin, enquanto este último, cuja ambição e
fé em seu próprio destino não paravam de crescer, não perdeu a oportunidade de
ouro que se lhe apresentou. Tendo começado a batalha no plano ideológico, passou
a agir então para a destruição política completa de Trotsky.
Um pleno conjunto do comitê central e da CCC de 23 de outubro de 1927 foi
convocado para discutir a agenda do XV Congresso que se aproximava. Quando o
plenário concordou que o congresso deveria debater a oposição de Trotsky, gritos
partiram da plateia e notas foram passadas para a mesa dos trabalhos reclamando
que o comitê central havia escamoteado o Testamento de Lenin e descumprido sua
vontade. Stalin não pôde mais silenciar sobre a questão. Seu discurso de uma hora
de duração foi rancoroso e pleno de indisfarçável ódio por Trotsky. Mais uma vez,
repassou todos os pecados do líder rejeitado, remontando a 1904. Sabedor de que a
arma principal de Trotsky era o aviso de Lenin a respeito de suas deficiências
pessoais, Stalin contra-atacou na mesma linha:
A oposição pensa que pode “explicar” sua derrota dando como razão a rudeza de Stalin, a teimosia de
Bukharin e Rikov, e assim por diante. Isso é muito fácil. É apenas palavrório, não é explicação. [...] No
período entre 1904 e a Revolução de Fevereiro, Trotsky confraternizou com os mencheviques durante todo o
tempo, e se batia numa luta desesperada contra o partido de Lenin. Naqueles tempos, Trotsky foi derrotado
repetidas vezes pelo partido de Lenin. Por quê? Seria talvez por causa da rudeza de Stalin? Mas Stalin não era,
então, secretário do comitê central; naqueles dias, estava bem longe dos exílios no exterior, conduzindo a luta
na clandestinidade contra o czarismo, enquanto a batalha entre Trotsky e Lenin era travada no exterior.
Portanto, o que a rudeza de Stalin tem a ver com tudo isso?42
Stalin lançou seu ataque sob o estandarte da defesa de Lenin, a quem Trotsky,
naqueles dias, chamara – entre outras coisas – de “Maximilien Lenin”, clara alusão
aos métodos ditatoriais de Robespierre. Desferiu golpe contundente em Trotsky ao
realçar que um dos panfletos iniciais do rival, “Nossas tarefas políticas”, fora
dedicado ao menchevique P.B. Axelrod. Triunfalmente e acompanhado de brados
de aprovação da plateia, Stalin leu a dedicatória: “Ao meu prezado professor, Pavel
Borisovich Axelrod.”
Pois muito bem, faça bom proveito de nosso “prezado professor” Pavel Borisovich Axelrod! Bom proveito!
Agora, venerável Trotsky, é melhor correr, porque Pavel Borisovich está decrépito e pode morrer a qualquer
momento, e talvez você se atrase para o encontro com seu “professor”.43
Ela foi mostrada vezes sem conta, e ninguém está tentando esconder coisa alguma, isso porque o Testamento
de Lenin foi endereçado ao XIII Congresso do partido, foi lido lá, e o congresso, por unanimidade,
concordou em não publicá-lo, porque, aliás, Lenin não solicitou sua publicação, nem queria isso.45
Como mostrou nossa análise das últimas cartas de Lenin, Stalin estava distorcendo a
verdade histórica. Jamais ficou esclarecido se Lenin endereçou as cartas ao XII ou ao
XIII Congresso. O Testamento foi lido apenas para os delegados, não para o
congresso. E esse congresso não tomou decisão, muito menos por unanimidade,
sobre sua não publicação, e só havia a palavra de Stalin afirmando que Lenin não
desejara aquela publicação.
Durante o evento, sentindo sua crescente força e percebendo que tinha,
praticamente, o total apoio do plenário, Stalin decidiu-se pela batalha no campo em
que era mais vulnerável, e mentiu deslavadamente no decorrer do processo.
Explorou o fato de que, por insistência do Politburo (sobretudo por sua própria), o
Bolshevik de setembro de 1925 publicou uma declaração de Trotsky referente ao
Testamento. Cedendo à pressão de Stalin na ocasião, Trotsky escrevera:
Desde que ficou doente, Vladimir Ilyich escreveu com frequência propostas, cartas etc. aos órgãos dirigentes
do partido e a seus congressos. Todas essas cartas etc. foram naturalmente sempre entregues aos destinatários
e levadas à atenção dos XII e XIII Congressos, e sempre, é claro, tiveram a influência adequada sobre as
decisões do partido. [...] Vladimir Ilyich não deixou testamento e, pela própria natureza de suas relações com
o partido, bem como pela natureza do partido em si, fica excluída a possibilidade de um tal testamento, de
modo que qualquer conversa sobre ocultação ou não cumprimento de um testamento não passa de invenção
maliciosa e, na verdade, vai contra a intenção de Vladimir Ilyich.46
Poderia Trotsky ter adivinhado que, ao tentar se dissociar dos rumores que
circulavam no Ocidente, os documentos sigilosos de Lenin tinham alcançado o
Ocidente por suas mãos, ficaria totalmente encurralado num canto? Os sinos, no
final das contas, dobravam por ele. Aos olhos do plenário, o líder da oposição
revelou-se mais uma vez um político intrigante, e Stalin não perdeu a chance de
acabar com ele. Citando o artigo do Bolshevik, Stalin mirou diretamente no alvo:
Isso foi escrito por Trotsky, por ninguém mais. Que fundamento podem ter agora Trotsky, Zinoviev e
Kamenev para tagarelarem sobre uma tal “ocultação” do Testamento de Lenin por parte do comitê central e
do partido? [...]
Tem-se dito que, em seu Testamento, Lenin sugeriu que, em face da “rudeza” de Stalin, o congresso deveria
considerar sua substituição no cargo de secretário-geral por alguma outra pessoa. Isso é absolutamente
verdadeiro. Sim, camaradas, sou rude em relação àqueles que, traiçoeira e rudemente, destroem e dividem o
partido. Jamais escondi isso, nem vou fazê-lo agora. Talvez se exija uma certa gentileza para com esses
divisionistas. Mas não consigo agir assim. Logo na primeira sessão do comitê central que se seguiu ao XIII
Congresso, solicitei ao pleno dispensa de minhas obrigações de secretário-geral. O próprio congresso
debatera o assunto. Todos os delegados, inclusive Trotsky, Kamenev e Zinoviev, por unanimidade, forçaram
Stalin a continuar no posto. Que deveria eu fazer? Fugir de meu dever? Não é da minha natureza, jamais fugi
de uma tarefa, não tenho direito a fazê-lo, seria o mesmo que a deserção. Um ano mais tarde, solicitei
novamente ao pleno que me dispensasse e, mais uma vez, fui compelido a permanecer. Que mais poderia ter
feito?
É significativo que o Testamento não contém uma só palavra, uma só pista, sobre erros de Stalin. Fala apenas
na rudeza de Stalin. Porém, a rudeza não é, nem pode ser, uma deficiência da linha política de Stalin ou de
suas posições.47
Trotsky e Stalin eram dois pólos opostos no partido comunista. Nem em termos pessoais, nem políticos,
convergiam em ponto algum. Trotsky era o europeu brilhante, o jornalista experimentado e conceituado, e
Stalin, o típico asiático, um homem sem vaidades ou necessidades pessoais, com a mente fria e calculista de
um conspirador oriental. Dois homens assim só poderiam odiar um ao outro. Stalin tinha uma aversão física
por Trotsky, ao passo que este sentia enorme desprazer só em olhar para Stalin, para seu rosto marcado de
varíola.48
O Politburo debateu diversas vezes como lidar com Trotsky, cujos ataques tinham
mudado de forma – já não eram contra o partido, mas antissoviéticos –, e decidiu
afastá-lo de Moscou. Primeiro, ele foi obrigado a mudar-se do Kremlin. Zinoviev,
Kamenev, Radek e outros líderes também se mudaram. Ioffe cometeu suicídio logo
depois da derrota de Trotsky. Zinoviev e Kamenev resolveram se retratar no
congresso vindouro. “Lev Davidovich”, escreveram a Trotsky, “chegou a hora de
termos a coragem da rendição”. Haviam perdido de forma decisiva o jogo e
tentavam pegar um estribo do trem da história. Logo se chegou à decisão de enviar
Trotsky para Alma-Ata, no sul do Cazaquistão, e as providências para isso, segundo
alguns, ficaram a cargo de Bukharin.
Durante a partida, alguns aliados de Trotsky tentaram fazer um protesto
político. Trotsky recusou-se a deixar a casa e entrar no carro, e teve que ser
fisicamente arrastado e igualmente empurrado para dentro do trem, enquanto seu
filho mais velho bradava “Camaradas, vejam como levam Trotsky à força!”
Sua esposa descreveu a cena:
Houve uma tremenda manifestação na estação. O povo esperava, gritando “Vida longa para Trotsky!”, mas
ninguém o via em lugar algum. Onde estaria? Em torno do carro que fora reservado para nós, juntara-se
grande multidão. Jovens amigos colocaram um imenso retrato de L.D. em cima do carro. As pessoas davam
“hurrahs” de júbilo. O trem partiu, primeiro um solavanco, depois outro; moveu-se lentamente um pouco à
frente para logo depois parar subitamente. Os manifestantes se postaram diante da locomotiva; penduraram-
se aos vagões e interromperam o deslocamento, exigindo Trotsky. Correu um boato pela multidão de que
agentes da GPU tinham levado L.D. secretamente para o interior do trem e impediam que ele aparecesse
para os que vieram vê-lo. O nervosismo que tomou conta da estação foi indescritível. Houve confrontos com
a polícia e com agentes da GPU, com baixas de ambos os lados. Prenderam gente.50
Dessa forma, Trotsky lançou-se em dez anos adicionais da mais ferrenha luta contra
Stalin e, por vezes e sem o querer, contra o próprio Estado que ajudara a criar e
defender.
A principal causa de seu drama pessoal repousou no fato de que, em última
análise, ele pôs suas ambições pessoais em primeiro lugar e por elas enfrentou um
oponente inescrupuloso. O desenlace foi acelerado pela colisão pessoal dos “dois
destacados líderes”. Dono de uma mente original e poderosa, e em função de seu
caráter altamente ambicioso, Trotsky aos poucos entrou nas fileiras dos inimigos
irreconciliáveis do socialismo stalinista. Seu ódio pessoal pelo secretário-geral com
frequência venceu a decência elementar, mesmo em relação aos ideais e valores que
tão recentemente proclamara.
Mal chegado à angra de Constantinopla, naquele plúmbeo fevereiro, Trotsky
passou à imprensa ocidental uma compilação de seis de seus ensaios intitulada Que
aconteceu e como. Num dos ensaios, fazia uma afirmativa que tentara disfarçar
apenas seis meses antes, a saber, que a teoria do socialismo em um só país era uma
maquinação reacionária, “o maior e mais criminoso solapamento do
internacionalismo revolucionário”. Era uma teoria, clamou ele, com base
administrativa, não científica.53 Quando Stalin leu essas declarações, que chegaram
na correspondência matinal duas semanas depois, disse, na presença de um de seus
assistentes: “Finalmente, o porco parou de fingir.”
Agora que estava no exterior, Trotsky preocupava-se constantemente em
preservar sua reputação de revolucionário. Continuou publicando coleções de suas
obras, muitas vezes apelando para invenções e interpretações forçadas, tudo com o
objetivo de atingir Stalin o mais dolorosamente possível, e de apresentar-se ao
espelho da história como o homem que Lenin queria como sucessor, intenção
frustrada pela traição de Stalin. Diga-se que Trotsky enxergara através de Stalin
antes dos outros e não se curvara a ele; mas combatendo Stalin, Trotsky conseguira
também insultar toda a nação. No volume vinte da coleção de seus trabalhos, ele se
permitiu alguns comentários mordazes sobre o povo russo. Na sua opinião,
“nenhum funcionário estatal na Rússia jamais chegou a mais que uma imitação de
terceira categoria do Duque de Alba, de Metternich ou de Bismarck”, e nos campos
da ciência, da filosofia e da sociologia, “a Rússia deu ao mundo precisamente nada”.
Só um político que pensa ser um predestinado a desempenhar apenas papéis
relevantes na história seria capaz de assertivas tão chauvinistas e eslavofóbicas. No
exterior, Trotsky passou a se chamar o único homem para quem o planeta inteiro se
tornara acessível sem um visto. Como antes, tentou representar o papel de “segundo
gênio”:
Trouxeram Lenin para a revolução atravessando a Alemanha num trem lacrado. Contra a minha vontade,
arrastaram-me para Constantinopla no vapor Ilyich. Portanto, não considero meu exílio a última palavra da
história.
Ainda esperava voltar, mas o destino decidiu de forma diferente, e ele deveria
continuar banido para sempre.
Notas
* Na Primeira Guerra Mundial, ala radical do movimento socialista antiguerra, dominado por Lenin.
** Leslie Urqhart, negociante inglês que, em 1923, tentou um acordo sobre uma concessão soviética importante
em termos muito duros, que o Sovnarkom não aceitou.
[16]
A vida particular do líder
Quando Stalin faleceu, teve que ser feito inventário de seus bens, tarefa que se revelou bem simples. Não
havia antiguidades nem objetos de valor de qualquer espécie, afora um piano estatal. A mobília era barata e o
forro das cadeiras de braços estava bastante solto e gasto. Não havia nem mesmo um só quadro “autêntico”,
eram todos reproduções em simples molduras de madeira. Pendurada em posição central na sala de estar
ficava uma fotografia ampliada de Lenin e Stalin tirada em Gorky, em setembro de 1922, pela irmã de
Lenin, Maria.*
Havia dois tapetes no assoalho. Stalin dormia com um cobertor do Exército. Além do uniforme de marechal,
seu vestuário consistia em um par de ternos de confecção barata, um deles de lona, botas de feltro bordado e
um sobretudo de couro de carneiro.
Pastas com tais assuntos eram-lhe diariamente entregues por Tovstukha, seu
assistente, se bem que, aos poucos, tais questões passassem a ser tratadas pela
secretaria. No final de sua vida, contudo, Stalin comprazia-se em lidar com essas
questões triviais, especialmente se tivessem relação com indicações para funções ou
com funcionários arrogantes, dissidentes ou teimosos.
Quanto mais sua influência crescia no partido e nas questões de Estado, mais
avidamente as pessoas levavam-lhe matérias para “sua atenção pessoal”. Por que o
comissário encarregado não resolvia o problema da convocação dos motoristas de
tratores ou da construção de novas casas? Um secretário não poderia dar solução ao
problema da desditosa professora? Mas o fato é que Stalin acostumou-se à ideia de
que as pessoas não podiam passar sem ele, que tinha que fazer tudo.
Deve ter percebido que a centralização universal, emoldurada pelos ritos
burocráticos mais complexos, o estava transformando em prisioneiro do sistema, e
que isso poderia retardar ou até mesmo ser desastroso para a causa. Para que serviam
os comissários do povo, onde estava a flexibilidade deles? Que faziam as incontáveis
agências e escritórios para Toda a União? Ele sabia muito bem, mas não queria que
as coisas fossem diferentes. Se o governo de um só é subdividido, deixa de ser de um
só. Pouco a pouco, tudo convergiu para depender de suas decisões; em certa
medida, das decisões de seu entourage.
Cinema e teatro foram as únicas incursões a que se permitiu em sua vida de
trabalho. Tornou-se um hábito, desde o fim dos anos 1920, assistir a um ou dois
filmes por semana, em geral, depois da meia-noite. Qualquer filme que fosse
comentado era exibido na tela do pequeno cinema do Kremlin ou na sala da dacha.
Certa vez ele disse a líderes do departamento de propaganda do partido que “o
cinema nada mais é que ilusão, mas suas leis são ditadas pela vida”. Via no cinema
um instrumento educacional, como, aliás, encarava a arte em geral.
Pelas mãos da esposa, passou a frequentar o teatro. Foram vistos juntos, em
muitas ocasiões, nos teatros de Moscou e, depois da morte de Nadezhda, o teatro
passou a fazer parte integral de sua vida, em particular o Bolshoi. Parece que assistiu
a todas as suas produções várias vezes. Como A.I. Rybin, um de seus seguranças e,
mais tarde, gerente do Bolshoi, relatou-me, Stalin assistiu ao Lago dos cisnes na
véspera do derrame fatal, talvez pela vigésima ou trigésima vez. Normalmente ia
sozinho, sentando-se, depois que as luzes do teatro eram diminuídas, num canto de
trás de seu camarote. Às vezes, ia ao ensaio geral e, depois da encenação,
invariavelmente, cumprimentava pessoalmente os bailarinos. O cinema e o teatro
foram os únicos desvios “líricos” em sua existência, a qual, por sua vez, era
totalmente dedicada ao alargamento de seu poder e influência pessoais mediante o
sistema da tomada de decisões.
Vida pessoal significa, acima de tudo, vida familiar. Nadezhda Sergeyevna
Alliluyeva era 22 anos mais nova que Stalin. Praticamente ao terminar o ginásio
tornou-se esposa do líder do partido. Os documentos, os relatos de testemunhas,
bem como as memórias da filha, Svetlana, concordam em que ela tinha um
temperamento bastante equilibrado. Na ocasião devida, filiou-se ao partido,
trabalhou no Comissariado das Nacionalidades e estudou. Foi também uma das
secretárias de plantão de Lenin, em Gorky. Quando foi decidido mudar a capital de
Petrogrado para Moscou, Stalin levou os pais da esposa e todos passaram a residir
juntos no pequeno apartamento do Kremlin.
Nadezhda logo habituou-se à atmosfera de consultas, reuniões, jornadas e lutas
intermináveis que faziam parte da vida do marido. Muitas das cartas, telegramas,
ordens e diretrizes encontradas entre os documentos de Stalin são assinadas não
apenas pelos secretários do líder, tais como Nazaretyan, Tovstukha, Kanner,
Mekhlis e Dvinsky, mas também por Nadezhda. Seus grandes olhos de escolar
perscrutaram avidamente o mundo do marido. Percebeu que ele pertencia ao
trabalho, e só a ele, porém, inicialmente, não se deu conta do pouco tempo e pouco
espaço que sobrariam para ela. Stalin não necessitava de companhia. Quando o
repreendia, o que era feito com frequência, com a acusação “Você não se interessa
pela família e pelas crianças”, ele a interrompia asperamente, algumas vezes com
palavras de baixo calão. Em certa medida, Nadezhda encontrou consolo no
trabalho, no estudo e nos encontros com outras mulheres de líderes, como Polina
Semenovna Zhemchuzhina (esposa de Molotov), Dora Moiseyevna Khazan (de
Andreyev), Maria Markovna Kaganovich e Esfir Isayevna Gurvich (segunda mulher
de Bukharin). (Vale a pena ressaltar que, entre os líderes bolcheviques de origem
russa, muitos tinham esposas judias, o que pode ser, pelo menos, parcialmente
explicado pelo fato de que as judias intelectuais foram relativamente numerosas e
ativas no movimento revolucionário.)
Nasceram dois filhos do casamento de Stalin com Nadezhda: Vasili em 1922 e
Svetlana em 1926. Foi então que Yakov, filho dele com a primeira esposa,
Yekaterina Svanidze, foi viver com eles. Era apenas sete anos mais jovem que a
madrasta, a qual, é claro, cuidou do rapaz, tão evidentemente carente de amor
paternal. Enquanto trabalhava, uma babá tomava conta das crianças. Mas havia
sempre muitos parentes em volta, fosse no apartamento do Kremlin ou na dacha
Zublovo. Além dos pais de Nadezhda, seus irmãos, Fedor e Pavel eram também
visitantes frequentes, bem como sua irmã, Anna, e os de sua família. Vinham ainda
os parentes da primeira esposa de Stalin. Depois da morte de Nadezhda, em 1932, o
barulho e a agitação foram esmorecendo e, finalmente, cessaram de todo.
Stalin, claramente, não desejou tomar parte ativa na criação dos filhos, nem era
capaz de fazê-lo. Via-os muito raramente, talvez num domingo, quando eles eram
levados à dacha, ou no sul, em Sochi, Livadia ou Mukhalatka, onde gostava de
passar as férias, antes da guerra. Não é incomum os filhos de pessoas famosas
crescerem com problemas. Os filhos de Stalin pouco conheciam o pai, e ele lhes
dedicava tempo escasso. Segundo Svetlana, certa vez Vasili revelou-lhe um “segredo”
ao contar que “papai foi georgiano quando jovem”.
O destino do filho mais velho, Yakov, foi o mais trágico. Sua relação com o pai
era muito ruim. Stalin achava, erradamente como se viu mais tarde, que ele tinha
caráter fraco. Não gostava da escolha de esposas que o filho fizera, nem da primeira
nem da segunda, Iyulia Isaakovna Meltser. Ele teve dois filhos desses casamentos.
Svetlana Allilueyva relembra que, desesperado pela frieza com que o pai o tratava,
Yakov tentou até se matar, mas a bala o atravessou e ele sobreviveu, embora tenha
ficado doente por muito tempo. Quando Stalin o viu, depois dessa expressão
extrema de alienação, saudou-o com uma piada: “Hah! Errou a pontaria!”
Com a permissão do pai, Yakov completou os estudos no Instituto de
Engenharia Ferroviária de Moscou, trabalhou na usina geradora da Fábrica Stalin e,
então, declarou que queria se alistar no Exército. De acordo com as ordens dos
assistentes de Stalin, Yakov Djugashvili foi matriculado para as sessões noturnas de
instrução e, depois, transferido para o curso de quatro anos de formação da
Academia de Artilharia do Exército Vermelho.
Consultando a folha de serviços do tenente Ya.I. Djugashvili, pode-se ter uma
ideia do questionário que todos os oficiais tinham que responder quando
compilavam o próprio curriculum vitae. Para que se respire a atmosfera psicológica
daqueles tempos, bastam algumas das dezenas de perguntas formuladas:
Yakov passou no teste, mas nem todos se deixaram convencer. Por exemplo, Ivanov,
Kobrya, Timofeev, Sheremetov e Novikov (as iniciais não aparecem nos arquivos),
oficiais da academia, assinaram a seguinte avaliação do filho de Stalin:
Desenvolvimento político satisfatório. Disciplinado, porém não adquiriu conhecimento adequado das regras
militares referentes à atitude perante os oficiais superiores. Não teve instrução prática. Pouco treinamento em
tática de infantaria. Seus trabalhos acadêmicos deixam muito a desejar. Conseguiu menções “satisfatório” e
“bom” nos exames.
A despeito da recomendação de seus superiores imediatos de que fosse designado
comandante de batalhão com o posto de capitão, o instrutor-chefe, Sheremetov, foi
de opinião diferente: “Concordo com a avaliação, mas penso que o posto de capitão
só deve ser concedido depois que ele servir um ano como comandante de bateria.”
Todos concordavam que Yakov era pessoa honesta, decente e tímida, e que
parecia destruído pela hostilidade do pai. Yakov revelou-se nervosamente
desconfortável na função de comandante, talvez sentindo que patinava em gelo fino:
ele desbordara diversos cursos e seu rendimento não fora bom. Isso deve ter
influenciado de forma fatídica nos momentos críticos de seu serviço ativo.
Yakov serviu no front desde os primeiros dias da Segunda Guerra Mundial. De
acordo com os registros, lutou bravamente e cumpriu seu dever até o fim, mas sua
unidade foi cercada e ele caiu prisioneiro. Existe uma fotografia rara que mostra um
grupo de oficiais alemães olhando com ostensiva curiosidade para o capitão Ya.
Djugashvili. O mais interessante na fotografia é a expressão de Yakov e sua postura:
olhar fixo nos inimigos, com ódio estampado na face e punhos cerrados. Os nazistas
tentaram explorar o fato de ele ser prisioneiro de guerra com propósito de
propaganda, distribuindo panfletos com a fotografia, mas ela foi em geral
considerada falsificação.
Em vez de sofrer com a situação do filho, Stalin temeu que a força de vontade de
Yakov fosse quebrada no campo de concentração e que ele passasse para os alemães.
Nas memórias de Dolores Ibarruri, publicadas em Barcelona em 1985, surge um
fato desconhecido que ainda precisa ser desmentido ou corroborado. Escreve ela
que, em 1942, foi formado um grupo especial de comando para ser lançado à
retaguarda das linhas inimigas a fim de libertar Yakov, então em Sachsenhausen. O
grupo incluía o espanhol José Parro Moiso, que portava documentos com nome de
um oficial da Divisão Azul franquista. A operação acabou em fracasso e o grupo foi
aniquilado.56 Yakov acabou mostrando caráter muito mais forte do que o creditado
por seu pai. Ele também receava que, sob tortura, lavagem cerebral e drogas, viesse a
capitular e se tornasse um traidor aos olhos do pai e da nação. Tal pensamento era
pior que a morte. Se bem que não se dobrasse nos infernos pelos quais passou –
Hammelburg, Lübeck e Sachsenhausen –, sua força começava a se esvair. Em 14 de
abril de 1943, jogou-se na cerca de arame farpado e foi fuzilado por um guarda.
Da mesma forma que com muitas outras pessoas, Stalin estava errado em relação
ao filho. Svetlana Alliluyeva afirma que, depois da vitória em Stalingrado, seu pai
lhe disse en passant: “Os alemães propuseram trocar Yasha por um dos seus. [...]
Como se eu fosse barganhar com eles! Não, guerra é guerra...”
A sorte de seu outro filho não foi menos trágica. Stalin foi incapaz de fazer dele
um homem. Depois da morte da mãe, o menino foi praticamente criado por Vlasik,
chefe da segurança de Stalin. Porém, vivendo num ambiente de bajulação e
tolerância, o resultado foi uma pessoa amoral, caprichosa e fraca. Na realidade,
combateu bem, mas não tão bem para começar a guerra já como capitão e terminá-
la tenente-general. A folha de serviços do tenente-general Vasili Iosifovich Stalin dá
eloquente testemunho da farta distribuição de postos e favores que ocorria no
entourage de Stalin, com o conhecimento do secretário-geral. Consideremos apenas
alguns fatos do grosso arquivo sobre Vasili: aos vinte anos de idade, V.I. Stalin
atinge imediatamente o posto de coronel (ordem nº 01192 do comissário do povo
da Defesa, de 19 de fevereiro de 1942); aos 24, torna-se major-general da Força
Aérea (decreto do Sovnarkom de 2 de março de 1946) e, um ano mais tarde,
tenente-general. Embora completamente “verde” e apenas piloto mediano, assume a
Inspetoria da Força Aérea. Em janeiro de 1943, passa a comandar o 32º Regimento
de Caças; um ano depois, o 3º Regimento; em fevereiro de 1945, é nomeado
comandante da 286ª Divisão de Caças; em 1946, comandante de Corpo e, logo a
seguir, subcomandante depois comandante da Força Aérea. A carreira meteórica de
Vasili não se deveu, é evidente, às suas habilitações especiais ou qualidades pessoais.
No curso da guerra, como atestam os relatórios de seus superiores, participou de 27
sortidas e derrubou um avião inimigo, um Focke-Wulf 190; foi agraciado duas vezes
com a Ordem da Bandeira Vermelha, com a Ordem de Alexander Nevsky, com a
Ordem de Suvorov 2ª Classe e com diversas outras condecorações.
O tenente-general E.M. Beletsky e o coronel-general N.F. Papivin, ambos da
Força Aérea, fizeram a seguinte avaliação de Vasili:
Irascível e nervoso por natureza, carece de autocontrole; têm havido incidentes de violência física contra
subordinados. Na vida privada, comportou-se de maneira incompatível com o posto de comandante de
divisão, registrando-se atitudes inconvenientes em festas das equipes de voo, grosseria em relação a oficiais e
mostra de irresponsabilidade quando dirigiu um trator do aeródromo à cidade de Shiaulyai e entrou em
conflito e pugilato com os guardas da NKVD do posto de controle. Não goza de boa saúde, em especial no
sistema nervoso, e é extremamente irritadiço, condição que revelou recentemente quando participou de
muito pouco treinamento de voo. [...] Todas as deficiências acima diminuem significativamente sua
autoridade como comandante e são inconciliáveis com as obrigações de comandante de divisão.
Khruschev solicitou-me que fosse à prisão de Lefortovo para onde Vasili fora transferido da prisão em
Vladimir. O prisioneiro estava fazendo alguma coisa num torno – “trabalho educacional”, chamavam eles.
Quando o trouxeram à minha presença, ele se ajoelhou e soluçou. “Perdoe-me, perdoe-me, não o deixarei
mal de novo.” Conversei com Khruschev sobre a visita. Ele ficou silencioso, depois me disse: “Traga-o aqui.”
No dia seguinte, Vasili foi levado à presença de Khruschev. De novo, caiu de joelhos, implorou e chorou.
Khruschev pegou-o nos braços e chorou também, e os dois conversaram por longo tempo sobre Stalin.
Depois disso, ficou decidido que Vasili seria solto imediatamente. A resolução foi preparada e Vasili foi
libertado. A permissão insistia que ele adotasse seu nome oficial de Vasiliev.
Era o nome que o próprio Stalin usara para assinar uma série de ordens durante a
guerra. Shelepin prosseguiu:
A despeito de sua falta de determinação, Vasili recusou-se veementemente a fazer isso. Foi para casa e disse à
filha que pensava em tornar-se gerente de uma piscina. Mas amigos logo o trouxeram aos velhos dias. Um
mês depois de sair da prisão, dirigindo um carro em estado de embriaguez, envolveu-se num acidente.
Xingando-o a não mais poder, Khruschev perguntou: “O que devemos fazer? Se o prendermos de novo,
morrerá, se não o fizermos, morrerá também.”
Foi decidido que Vasili deveria ser afastado. Kazan foi o local escolhido, e assim começou seu “exílio”,
acompanhado da esposa de então. Lá, num apartamento de um só cômodo, ele teve tempo para revisar sua
curta e exaltada vida. Lá também soube da notícia de que, em 31 de outubro de 1961, o corpo de seu pai
fora removido do Mausoléu [de Lenin]. A prisão, a doença, a vodka e a maldade dos antigos “amigos”
haviam-no transformado num completo inválido.
Stalin solicitou a Beria um relatório sobre Kapler e lhe relataram: “Kapler tem uma
irmã na França. Conheceu os correspondentes americanos Shapiro e Parker. Não
admite sua culpa, mas foi desmascarado pelos relatórios da agência. 16 de março de
1944.”57 Não é difícil adivinhar em qual dos dois documentos Stalin preferiu
acreditar.
Os dois primeiros casamentos de Svetlana fracassaram, como também o terceiro,
quando ela escolheu um estrangeiro. Este terceiro marido faleceu em Moscou e, na
ocasião em que, em 1966, ela levou o corpo para ser enterrado na Índia, decidiu
permanecer no exterior. Lá, também, não foi feliz e regressou à URSS em 1984. De
novo, não conseguiu se ajustar, partindo para o Ocidente.
Talvez os filhos de Stalin tivessem crescido de maneira diferente se a mãe não
morresse. A evidência indica que nesse caso também Stalin foi a causa indireta (ou,
possivelmente, não tão indireta) de sua morte. Na noite de 8 de novembro de 1932,
ela, aparentemente, matou-se. O motivo de ação assim trágica provavelmente foi
uma discussão, muito pouco notada pelos que estavam nas proximidades, ocorrida
durante uma pequena celebração. Entre os presentes, estavam Molotov e
Voroshilov, com as esposas, e diversas outras pessoas do círculo íntimo do
secretário-geral. Nadezhda, ao que tudo indica, não suportou outra das rudes
invectivas do marido. Foi para o quarto e atirou em si mesma. Foi encontrada na
manhã seguinte quando a governanta, Karolina Vasilievna Til, foi acordá-la. Uma
pistola Walther jazia no assoalho. Stalin, Molotov e Voroshilov foram chamados.
Há suposições de que ela deixou um bilhete sobre o suicídio, porém, como muitos
segredos – grandes e pequenos – isso permanece na penumbra.
Quando soube do ocorrido, Stalin ficou arrasado. Contudo, mesmo então,
continuou fiel a seu credo amoral: não se sentiu em absoluto responsável pela morte
da esposa, mas viu nela uma traição a si mesmo. Parece que jamais lhe passou pela
cabeça que sua insensibilidade e falta de afeto pudessem feri-la tão profundamente a
ponto de, num momento de maior perturbação mental, provocar o ato extremo. Ele
não compareceu à cerimônia fúnebre e, passado pouco tempo, os amigos íntimos já
tentavam arranjar outro casamento com uma pessoa de suas relações. Tudo parecia
certo, porém, por razões conhecidas só por Stalin, o matrimônio não aconteceu. No
fim da existência, viveu solitário, confiando suas necessidades pessoais a uma
governanta, Valentina Vasilievna Istomina, que assumiu a responsabilidade de
cuidar dele permanentemente, acompanhando-o até nas férias na Crimeia. Quando
Stalin faleceu, ela jogou-se sobre seu peito na presença do Politburo e deu vazão em
voz alta ao seu pesar. Evidentemente, ele fora mais íntimo dela que de seus
camaradas em armas.
Bem no final da vida, Stalin começou a dar mostras de sinais de respeito pela
memória da esposa. Sua fotografia surgiu na sala de estar e no estúdio da dacha,
bem como no apartamento no Kremlin. É provável que, como muitas outras
pessoas, estivesse tomando consciência de que o fim se aproximava. Ou seria esta
mesma consciência atormentando-o nos anos de declínio?
Não há dúvida de que Nadezhda amou Stalin e de que tentou o melhor de si
para ajudá-lo em seu trabalho. Os familiares dizem que, durante os últimos anos de
vida, ela entrou em grande depressão. Talvez Stalin também a tivesse amado ao seu
modo, todavia, obcecado como era pela causa, por seus planos, seu trabalho e pelo
êxtase do poder, não tivesse lugar em seu coração para esposa, filhos e parentes. No
lugar de sentimentos, tinha fios de aço. Podia passar semanas sem ver um membro
sequer da família, embora quisesse saber como eles estavam. Teve netos que jamais
viu, ou tentou ver. Os filhos de Vasili com a primeira esposa, Nadezhda e
Alexander, por exemplo, passaram por momentos dolorosos, pois foram ignorados
pelo homem a respeito de quem todos proclamavam “Stalin pensa em nós!”
Quando houve a prisão de Alexander Semenovich Svanidze, irmão da primeira
esposa e com quem o secretário-geral mantivera relações estreitas, parece que Stalin
não se surpreendeu com o fato de um homem que ele conhecera durante toda a
vida, literalmente desde a infância, poder se tornar um “inimigo”. Todo o edifício
de sua moralidade mostrava-se pontilhado de lacunas. Era impossível encontrar e
sensibilizar nele qualquer vestígio de sentimento humano. Seu segundo filho
representou meramente uma carga. Stalin não encontrou outro meio que não os
insultos para interromper a queda de Vasili. Sua filha tornou-se completamente
distante e estranha para ele depois dos dois casamentos malogrados. Era indiferente
aos netos, e quanto à mãe, raramente dispensou-lhe atenção.
Talvez estas páginas não sejam as mais importantes para o retrato político de
Stalin, mas é significativa sua insensibilidade em relação à moral e à “moralização”.
Para ele, a política tinha sempre prioridade sobre a moralidade. Porém, no exame da
personalidade de figura tão singularmente complexa, é precisamente aqui que se
revela um dos segredos de seu caráter. O desprezo que devotava aos valores humanos
normais ficou evidente desde cedo. Ele desdenhava da piedade, da simpatia, da
comiseração. Só dava valor aos atributos fortes. Sua mesquinhez espiritual, que
evoluiu em excepcional aspereza e, mais tarde, em crueldade, custou a vida da esposa
e arruinou a existência dos filhos.
Ainda pior, Stalin não teve também lugar para valores morais na política. O
“desmascaramento” de um colega como “inimigo do povo” era, aos seus olhos, o
mais nobre dos comportamentos. Quando, com a permissão de Stalin, Beria
prendeu Bronislava Solomonovna, esposa de seu assistente mais próximo,
Poskrebyshev, os pleitos que o inditoso marido fez ao chefe para que a libertasse,
segundo sua filha, Galina, invariavelmente tiveram a seguinte resposta: “Não
depende de mim. Nada posso fazer. Só quem pode resolver é a NKVD.” A pobre
mulher recebeu a usual e ridícula acusação de espionagem. Mãe de dois filhos, ficou
presa durante três anos e depois foi fuzilada. Ainda assim, seu marido e pai de seus
filhos trabalhava de 12 a 14 horas por dia ao lado de Stalin, levando-lhe
documentos, preparando sindicâncias, convocando pessoas, transmitindo as ordens
do chefe. “E Beria, que ordenara sua prisão”, disseme Galina, “ainda nos visitava em
casa. Da mesma forma que éramos visitados por pessoas bem conhecidas como
Shaposhnikov, Rokossovsky, Kuznetsov, Khruschev, Meretskov. Stalin conhecia
pessoalmente minha mãe e, é evidente, sabia que a acusação de espionagem era
infundada. O irmão de mamãe viajara ao exterior para comprar equipamento
médico, o que foi a base para a acusação, e ele também, é claro, foi fuzilado”.
Pode ser que, com a prisão das pessoas próximas e queridas daqueles que
trabalhavam mais cerradamente com ele, Stalin estivesse testando suas lealdade e
devoção. Nenhum deles – Kalinin, Molotov, Kaganovich, Poskrebyshev – deixou
extravasar o mais leve vestígio de que suas vidas familiares tinham sido
despedaçadas. Tal submissão deve ter proporcionado a Stalin grande satisfação,
enquanto os observava absorvidos com suas obrigações. Totalmente despido de
atributos apropriados, a monstruosa amoralidade de Stalin e a crueldade de suas
ações se ajustavam perfeitamente a um filme de terror. Incrível o fato de
Poskrebyshev ter acreditado no “Não depende de mim”. E, por certo, Beria dizia
algo parecido quando o visitava em casa. Aquelas pessoas viviam num mundo de
mentiras, cinismo e crueldade.
De alguma forma, habituamo-nos a pensar que o humanismo e as normas
universais do comportamento decente pertencem à província da moralidade
pequeno-burguesa. Não obstante, a moralidade surgiu bem antes da conscientização
política, legal, ou mesmo religiosa. Ela despontou tão logo as pessoas começaram a
viver em grupos e, sem ela, o homem jamais teria se transformado em homem.
Brecht certa vez observou: “Antes que um homem possa se sentir homem, alguém
tem que chamá-lo.” Stalin foi uma personalidade forte que só buscou grandeza e
poder ilimitado. Contudo, um “reino do terror”, como escreveu Berdyaev, “não é
apenas ação física, com prisões, torturas, punições – é, sobretudo, ação mental”.58 A
prática stalinista gradualmente deificou a violência sem consideração por sua base
moral. Para Stalin, os parâmetros morais da revolução e a construção de um novo
mundo nada mais eram que moralidade burguesa. Nem tinha ele a menor dúvida
sobre a correção de sua própria moral. Num livro do século XIX do anarquista russo
Bakunin, Stalin sublinhou a frase: “Não perca tempo duvidando de si mesmo,
porque este é o maior desperdício de tempo jamais inventado pelo homem.” Talvez
Bakunin pudesse se permitir tais pensamentos, mas ele não era o secretário-geral de
um grande partido.
Nota
Nós, russos, quase todos temos raízes no campo. Quando as ensolaradas memórias
de infância nos vêm à mente, sentimo-nos de volta aos vilarejos, às aldeias, com o
cheiro da neve derretendo, os tordos empoleirados nas cercas, o gelo escurecendo
nos córregos, a estreita e amarronzada linha dos montes Sayan ao sul, o chiado dos
trenós deslizando pelas ruas da vila. E os rostos dos que partiram há tanto tempo.
Raramente sabemos quem foram nossos ancestrais. Quem é capaz de lembrar até
mesmo os nomes dos bisavós? Eles desapareceram no passado distante e obscuro.
Caso fosse possível reunir de novo todos os nossos parentes do passado em torno de
uma grande mesa familiar, os ícones pendurados nas paredes, escurecidos pela
fumaça, estariam olhando para baixo e vendo camponeses. Camponeses barbudos
em camisas de morim, mãos calejadas pela lida sem descanso, os doces e gentis olhos
de suas esposas já envelhecidas aos quarenta anos, que normalmente deram à luz ao
lado de um campo, e muitas crianças com cabelos cor de palha, metade das quais,
pelo menos, não sobreviveria à infância. Inevitavelmente, haveria um ou dois que
fizeram a campanha das guerras turca, japonesa e alemã, com as medalhas de São
Jorge orgulhosamente ostentadas. Essa gente analfabeta teria sido guiada na vida
pela moral da vila, ou seja, pela ortodoxia russa, como também pelo trabalho, pela
família e pela ideia da mãe-pátria. Um dos membros do grupo talvez soubesse ler e
talvez assinasse a revista ilustrada Niva. Tudo que nos restou desses mujiks, desses
camponeses, foi a lembrança. Ainda assim, no início dos anos 1930, a avassaladora
maioria de nossos concidadãos vivia no mundo camponês. E foi nesse mundo que a
verdadeira revolução ou, mais exatamente, algo como um holocausto sancionado de
cima, teve lugar.
É verdade que os primeiros embates ferozes ocorreram em 1917, quando as
terras que pertenciam à pequena nobreza, à coroa e aos mosteiros foram tomadas.
Em meados de 1918, comitês de pobres voltaram suas atenções para os camponeses
mais bem-sucedidos, os chamados kulaks, e expropriaram metade de suas terras.
Implementos agrícolas e gado foram distribuídos aos camponeses pobres e de
situação média, e os kulaks diminuíram em quantidade. O setor agrícola passou a
ser constituído, em sua maior parte, por camponeses remediados. A Nova Política
Econômica deu aos camponeses a oportunidade de negociarem sua produção,
depois do pagamento de uma taxa fixa em espécie. No final de 1923, enquanto
Lenin ainda vivia, a agricultura soviética exportou pouco mais que dois milhões de
toneladas de trigo. Considerada ridícula a ideia de importar cereais, exportá-los era
visto como coisa perfeitamente normal.
Embora melhorasse muito a produção de grãos durante o período de
reconstrução, foi principalmente o abastecimento de cereais para consumo interno
que aumentou, ao passo que a utilização desses grãos para o comércio estatal se
atrasou, e a produção total tinha ainda um longo caminho para alcançar os níveis de
antes da guerra. Os baixos preços pagos aos camponeses e a escassez de bens
manufaturados para venda nas vilas perpetuavam essa situação. A criação de
cooperativas de produtores estava apenas em seus primeiros estágios. A NEP
proporcionava segurança para os camponeses pobres e de situação mediana e,
naturalmente, também fortalecia a posição dos kulaks. Talvez seja interessante
ressaltar que os ideais socialistas não são, necessariamente, sinônimos de pobreza e
de repúdio à riqueza. O marxismo só condena a riqueza amealhada à custa do
trabalho dos outros. Os kulaks deviam as posses adquiridas ao suor do rosto.
Lenin havia antevisto que o campo apresentaria o maior obstáculo à mudança
socialista, mas acreditava na propaganda, na eletricidade, nos tratores e nos livros.
Disse que, para garantir a ampla participação dos camponeses nas cooperativas, via
NEP, “precisamos de toda uma época histórica. Chegaremos a um final feliz dessa
época em uma década ou duas”.3 Num de seus últimos escritos, fez uma avaliação
significativa: “Podemos agora dizer que, para nós, o simples crescimento das
cooperativas é o equivalente [...] ao crescimento do socialismo. [...] Com o
cooperativismo a pleno vapor estaremos pisando com os dois pés em solo
socialista.”4 O plano de Lenin para as cooperativas não foi, infelizmente, totalmente
detalhado, em especial no que concerne à sua aplicação na prática.
O rebaixamento da taxa em espécie deixou mais do excedente agrícola, em
particular cereais, na mão dos camponeses remediados e bem-sucedidos, e o poder
de compra desses camponeses cresceu proporcionalmente. Havia, no entanto, uma
escassez de bens no país todo, e, portanto, era natural que os camponeses não se
mostrassem ávidos por vender grãos já que, no processo, pouca coisa existia para
comprar. O de que eles necessitavam não era papel-moeda, mas máquinas e outros
bens industriais, todos extremamente caros. Em consequência, o suprimento de
alimentos para as cidades começou a faltar e, por volta de 1927, pairava no ar uma
crise de grãos. Os kulaks e os camponeses médios seguravam seus estoques, à espera
de que os preços subissem e de que houvesse mais bens no mercado.
A oposição tentou explorar as dificuldades surgidas entre o Estado e os
camponeses. Por exemplo, no XV Congresso do partido, Kamenev acusou a
liderança de subestimar o elemento capitalista no campo e, com efeito, pleiteou
medidas mais fortes contra os kulaks. Os oposicionistas tinham antes instado o
governo a utilizar a força para fazer a coleta do devido sobre uma antecipação de
safra de 2,5 a 3 milhões de toneladas de grãos. O Politburo, debatendo um relatório
que Stalin faria ao congresso do partido, teve bom senso para rejeitar a proposta.
Stalin disse ao congresso:
Aqueles camaradas que pensam que podemos nos livrar dos kulaks com meios administrativos, empregando
a GPU, estão errados. Eles acham que basta expedir uma ordem, carimbá-la e pronto. Pode ser um método
fácil, mas está longe de ser eficaz. Os kulaks só podem ser derrotados por meios econômicos. E com base na
legalidade soviética. E legalidade soviética não é uma expressão vazia.5
Mas as palavras manifestamente sensatas de Stalin e suas práticas eram dois mundos
à parte. Ele, simplesmente, não tinha conhecimento sobre o problema agrário.
Durante toda a vida, só uma vez visitou uma região agrícola, e isso aconteceu em
1928 quando foi à Sibéria providenciar a entrega de grãos. Nunca mais pôs os pés
numa aldeia.
O XV Congresso adotou a política da coletivização da agricultura e introduziu
medidas ajuizadas para sobrepujar as dificuldades que o campo experimentava com
o suprimento de grãos. A.I. Mikoyan, por exemplo, observou que os bens de
consumo estavam empilhados nas cidades e nunca alcançavam o campo, onde a
demanda por eles era enorme:
Para que tenhamos um sucesso expressivo na entrega de grãos, precisamos de uma autêntica revolução. Tal
sucesso seria alcançado com o transporte de bens das cidades para o campo, mesmo ao custo temporário do
esvaziamento dos mercados das cidades (por uns poucos meses), para conseguirmos tirar os grãos dos
camponeses. Se não efetuarmos tal revolução, enfrentaremos dificuldades extraordinárias que serão sentidas
em toda a nossa economia.6
Assim, para fortalecer a união entre o camponês e a classe operária, a solução para os
problemas prementes da vila poderia ser encontrada com meios econômicos, bem
como políticos. Na realidade, essas eram as bases do plano cooperativo de Lenin.
Tratava-se, precisamente, de um sistema de “cooperativados civilizados”, disse ele,
que permitiria um máximo de unidade para os interesses sociais e os pessoais. O
importante seria não apelar apenas para os métodos de comando, coação e diretrizes,
mas sim observar as leis da economia e aplicar as alavancas econômicas com
eficiência. Todavia, não era esta a opção de mais fácil adoção sob circunstâncias de
rápidas mudanças sociais.
O relatório do congresso sobre a atividade do partido no campo, apresentado por
Molotov, que era o secretário do Comitê Central responsável pelas questões rurais,
foi, no conjunto, sensato. Assinalou que “o progresso da economia privada no
caminho socialista é um processo lento e longo. Levará alguns anos para que o
indivíduo se desloque para a economia social (coletiva)”. Sublinhou que a coerção
era inadmissível:
Quem nos diz agora para aplicar uma política de [...] retirada compulsória de dois a quatro milhões de
toneladas de grãos, mesmo que tomemos isso de apenas 10% dos camponeses (isto é, não só dos kulaks, mas
também dos camponeses médios), essa pessoa é um inimigo dos camponeses e dos operários, um inimigo da
união entre camponeses e operários, por mais bem intencionada que seja a proposta.
“Diga-me”, [perguntou a Stalin] “as tensões desta guerra foram pessoalmente tão ruins para o senhor quanto
pôr em vigor a política das fazendas coletivas?”
O assunto inflamou de imediato o marechal.
“Oh, não”, disse ele, “a política das fazendas coletivas foi uma luta terrível.” “Imaginei que o senhor achasse
muito ruim”, disse eu, “porque o senhor não estava tratando com alguns milhares de aristocratas ou grandes
proprietários, mas com milhões de pessoas pequenas”.
“Dez milhões”, replicou ele, levantando as mãos. “Foi assustador. Demorou quatro anos. Era absolutamente
necessário para a Rússia, para evitarmos fomes periódicas, para arar a terra com tratores. Tínhamos que
mecanizar nossa agricultura. Quando dávamos tratores aos camponeses, eles estragavam em poucos meses. Só
as fazendas coletivas com oficinas poderiam manter os tratores. Tivemos muita dificuldade para explicar isso
aos camponeses. Não adiantava argumentar com eles. Depois que se dizia tudo a um camponês ele respondia
que tinha que ir para casa consultar a esposa e consultar o cão pastor.” Esta última era expressão nova para
mim com aquela acepção. “Depois das consultas, sua resposta era sempre que não queria fazenda coletiva e
que preferia ficar sem tratores.”
“Estes são os que o senhor chama de kulaks?”
“Sim”, respondeu, mas não repetiu a palavra. Depois de uma pausa: “Tudo foi muito ruim e difícil – mas
necessário.”
“Que aconteceu?”
“Oh, bem”, disse, “muitos deles concordaram em se juntar a nós. Alguns receberam terras próprias para
cultivar na província de Tomsk, ou na província de Irkutsk, ou mais para o norte ainda, mas a maior parte
deles era muito impopular e acabou liquidada por seus trabalhadores.”12
O número dez milhões passou a ter ampla circulação e, conquanto minha estimativa
seja menor, ela não apequena de forma alguma a escala da tragédia humana. Foi o
primeiro terror em massa imposto por Stalin a seu próprio país. Os anos de
coletivização constituíram o ponto de inflexão crucial nos camponeses como na
nação toda. A possibilidade de perseguir as cooperativas voluntárias e o
desenvolvimento segundo as linhas de mercado da Nova Política Econômica estava
perdida. A coação extrema tornou-se fator determinante na conformação do
sistema.
No meio-tempo, a coletivização continuou. Stalin recebeu dezenas de milhares
de cartas com reclamações, agonias, perplexidades, temores e ódios, mas a máquina
criminosa continuou triturando vidas humanas em poeira. Foi só em 2 de março de
1930 que Stalin, sem poder mais demonstrar indiferença ante o vulto do protesto e
da resistência dos camponeses, publicou seu famoso artigo no Pravda intitulado
“Aturdidos com o sucesso”. O segundo parágrafo é hoje lido como um hino à
repressão: “O fato é que, pelo 20 de fevereiro deste ano, 50% das propriedades
rurais na URSS estavam coletivizados. Isto significou que, em 20 de fevereiro de
1930, mais que dobramos o previsto no Plano de Cinco Anos para a coletivização.”
Parece que jamais passou por sua mente a consideração da história humana que
estava por trás daqueles números frios. Tampouco produziu estatísticas sobre os que
tinham sido exilados, despojados e assassinados. Com frequência se ouve que uma
operação daquela magnitude não poderia ser efetuada sem dor, suavemente e sem
erros. A coletivização, afinal de contas, mexera com quatro quintos de toda a
população. Mas, quem deu a Stalin o direito de tirar a liberdade de escolha do
homem comum, e de tomar decisões em nome dele? Stalin esquecera suas próprias
palavras de alerta: “O kulak tem que ser conquistado por meios econômicos e com
base na legalidade soviética!” Numa só palavra, virou norma para Stalin encarar
qualquer decisão, situação ou argumento como ficção, caso não correspondessem ao
seu plano do momento.
Stalin chega à conclusão no seu artigo – como se um referendo nacional tivesse
sido realizado a respeito – de que o trabalho na terra por companhias ou comunas
não serviria às necessidades contemporâneas da mudança socialista na vila. Só as
fazendas coletivas poderiam fazê-lo. Para o “agrário” Stalin, que nunca mais pisou
numa vila, a fazenda coletiva era o único meio aceitável para organizar a produção
agrícola. Como Khruschev iria dizer no XX Congresso do partido, em 1956, Stalin,
a partir de então, “estudou agricultura só pelo cinema”. Evidente exagero, mas é
difícil imaginar qualquer outro líder tentando equacionar todos os tipos de
problemas sem sair de seu gabinete. Uma das piores características de Stalin foi sua
incapacidade de admitir seus erros. Mesmo nesse artigo, os culpados pelos
“excessos”, os “aturdidos com o sucesso” e os tomados de “obsessão burocrática por
decretos” existiam só nas províncias.
Depois do “Aturdidos com o sucesso”, Stalin foi de novo afogado com cartas dos
camponeses e teve que explicar mais uma vez a posição do partido sobre a
coletivização. Suas generalizações, intencionalmente ou não, por vezes tiveram o
efeito de desacreditar a própria ideia de reestruturação da agricultura pelo caminho
das cooperativas. Por exemplo, ele escreveu para alguns granjeiros coletivizados:
“Alguns acham que o artigo ‘Aturdidos com o sucesso’ se refere ao resultado de uma
iniciativa pessoal de Stalin. É evidente que isso não faz sentido. Foi o resultado do
reconhecimento do Comitê Central.” E mais: “É difícil deter as pessoas quando
estão num estouro selvagem na direção do abismo, e voltá-las a tempo para o
caminho certo.”13
Merece menção o fato de que, quando toca em questões sociais, econômicas e
culturais, Stalin emprega terminologia militar, como “reconhecimento”, “front”,
“ofensiva”, “retirada”, “reorganização de forças”, “cerrando a retaguarda”,
“empregando a reserva”, “destruição total do inimigo”. Lenin usara termos
semelhantes quando delineou sua tática para a organização do partido, mas Stalin
falava sobre a “aniquilação dos kulaks como classe”. Sintetizando seu entendimento
da essência e método da transformação da aldeia, disse aos agricultores marxistas em
dezembro de 1929 que, para transformar a pequena vila de camponeses em cidade
socialista, devemos “plantar grandes fazendas socialistas no campo, tanto estatais
quanto coletivas”.14 Na verdade, elas serviriam de equipes para a liquidação de todo
um grupo social dentre os camponeses, sem necessidade de discussões num pleno do
Comitê Central ou do devido exame de todas as consequências. Dez anos mais
tarde, um editorial do Bolshevik diria o seguinte do discurso “agrário” de Stalin:
O partido bolchevique, sob a liderança do camarada Stalin, ofereceu um surpreendente modelo para resolver
a questão camponesa. [...] A coletivização completa, com base na liquidação dos kulaks como classe,
representou um triunfo do programa de Stalin para a economia no campo. O programa militante [...] foi
exposto pelo camarada Stalin num documento da maior força teórica – seu discurso para a conferência de
agricultores marxistas.15
Alguns veem a saída para a situação no retorno da agricultura dos kulaks. Sugerem que o regime soviético se
apoie em duas classes opostas: a classe kulak e a classe operária.
Por vezes se diz que o movimento das fazendas coletivas está em oposição ao movimento cooperativista,
como se a coletivização fosse uma coisa e o cooperativismo outra. É claro que isso não está correto. Alguns
vão ainda mais longe e insinuam que as fazendas coletivas contradizem o plano de Lenin para as
cooperativas. Nem é preciso dizer que tal contradição realmente não existe.16
Só exigimos uma coisa de vocês: que trabalhem com honestidade, dividam a receita da fazenda coletiva de
acordo com o trabalho realizado, cuidem dos tratores e da maquinaria, assegurem-se de que os cavalos sejam
adequadamente tratados, executem suas tarefas de operários e camponeses, fortaleçam o kolkhoz e livrem-se
de qualquer kulak ou seus lacaios que tiverem se infiltrado entre vocês.18
Este era o modo de Stalin impor o socialismo na vila, mediante o poder do Estado.
Por certo que o grão era necessário para a aquisição de equipamento industrial no
exterior, para aumentar o suprimento das cidades que cresciam rapidamente e para
criar estoques estatais, mas não se impunham medidas tão extremadas. Os métodos
de comando substituíam então, por completo, os econômicos. Não só o kulak foi
eliminado; também o foi, no processo, o granjeiro individual, e todos pelo uso da
força. Reportando para o Comitê Central, em 1934, Stalin foi bastante inequívoco:
“Temos que criar uma situação na qual o indivíduo, ou seja, o lavrador privado,
enfrente dificuldades maiores e tenha menos oportunidades que o kolkhoznik.
Temos que dar mais um aperto no parafuso das taxas.”19
Aumentou a pressão não só sobre os agricultores individuais como também sobre
as fazendas coletivas, transformando-as em elementos sem direitos, em vez de donas
de suas próprias terras. Uma nova espécie de camponês foi criada, alienado da terra
e dos frutos de seu trabalho. As pessoas perdiam o direito de cuidar de si próprias.
Com o tempo, a perplexidade e a confusão dariam lugar à apatia, como Bukharin
receava.
No discurso para o Instituto de Professores Vermelhos, distorcendo de tal forma
a posição de Bukharin a ponto de torná-la irreconhecível e chamando-o de “o
defensor dos kulaks” que não entendia o plano de Lenin para as cooperativas, Stalin,
pela primeira vez, revelou publicamente a controvérsia. De sua parte, Bukharin,
também sem citar nomes, atacou o uso do método de comando na economia.
Como principal teórico no Politburo, repetidamente afirmou que sem uma
economia rural florescente, um programa vitorioso de industrialização era
impossível. Pressão, requisição forçada e repressão no kolkhoz eram inadmissíveis. O
resultado de tal embate de opiniões não estava claro no início de 1928. De início, os
únicos aliados óbvios de Stalin eram Molotov e Voroshilov, enquanto Bukharin
tinha o apoio de Rykov e Tomsky. Um terceiro elemento, constituído por
Kuibyshev, Kalinin, Mikoyan e Rudzutak, vacilava e tentava conciliar os dois
principais antagonistas. A vitória na batalha virtualmente dependia desse terceiro
elemento “centrista”. Como de hábito, Stalin demonstrou ser mais habilidoso e
sofisticado nas manobras de bastidores e, em consequência, os plenos do Comitê
Central e da CCC em abril, julho e novembro adotaram uma atitude dura em
relação à proposta alternativa de Bukharin para a questão no campo.
Stalin não podia deixar de saber que a política repressiva para a nacionalização da
agricultura conduziria, essencialmente, à restauração dos princípios do Comunismo
de Guerra. Em vez de uma taxa fixa sobre a venda de grãos, foram impostas cotas
compulsórias de produção. E esse sistema persistiria por décadas.
Bukharin, ao contrário, propunha uma abordagem evolutiva para mudar o
campo, no curso da qual as cooperativas, ou o setor socializado, iria gradualmente
induzindo o agricultor individual pelo exemplo e pelos meios econômicos. Bukharin
não estava certo em tudo, especialmente na avaliação de longo prazo tanto das
mudanças em si como do ritmo delas, visualizando apenas que o processo levaria
muitos anos. O país não podia esperar tanto tempo. Apesar disso, a luta de
Bukharin contra o uso da coação sobre milhões de camponeses, que eram cidadãos
do Estado soviético, justificava-se em termos morais e políticos.
Repetindo: a reestruturação da economia agrária poderia ter sido concretizada
por inteiro sem o recurso ao terror e à tragédia que, em escala e consequências,
excedeu as repressões de 1937-38. Nem é preciso mencionar que, em ambos os
casos, o emprego da força foi criminoso. A bem-sucedida “liquidação dos kulaks
como classe” inflou a autoconfiança de Stalin como ditador, e ele não hesitou em
arrasar todos os que ainda podiam, ou viessem a poder, voltar-se contra ele.
A “revolução agrária” forçada de Stalin condenou a agricultura soviética a
décadas de estagnação. A experiência sangrenta, que custou milhões de vidas, não
trouxe alívio ao país. Embora ninguém pudesse dizer, as práticas do Comunismo de
Guerra haviam voltado às aldeias. Em reuniões sem conta, Stalin pintou uma
imagem triunfante na agricultura. Na realidade, o livre-comércio definhou
rapidamente, já que os kolkhozy não tinham excedentes de grãos para vender.
Mesmo assim, Stalin continuou buscando caminhos para impor métodos ainda mais
severos ao governo das vilas, já então amedrontadas em atordoado silêncio.
Conferências sem fim tiveram lugar e inúmeras resoluções foram aprovadas com
objetivo expresso de conseguir uma melhora na agricultura, mas a situação só
piorou. Tudo conspirava para afastar os kolkhozniks da terra, dos meios de
produção, e da distribuição e administração. Medo e apatia se abateram sobre as
vilas. Os kolkhozy viviam sob comando, sem que ninguém se desse conta de que
deveria imperar o princípio da cooperação. A primeira vítima do stalinismo foi o
camponês.
Assim, pereceu a Nova Política Econômica e, com ela, a linha moderada do
Politburo, e assim também começou a se dissolver a liderança coletiva no partido.
Passou a prevalecer o patente desejo de Stalin de decidir, ele mesmo, todas as
questões.
O enorme atrativo do socialismo, gerado pela Revolução de Outubro, começou a
esmaecer. Até hoje, os oponentes do socialismo referem-se às questões camponesas
quando querem tocar em nossas mais dolorosas feridas. Não há como negar que
Stalin deu muita munição e argumentos de peso para o descrédito de uma ideia tão
sedutora. Ao tomar a decisão sem precedente de utilizar a força contra seu próprio
povo, Stalin cortou as veias de um vasto grupo social que tinha se beneficiado
bastante com a revolução, e que poderia continuar fazendo bom uso daquele
benefício.
Um novo capítulo se abre na biografia de Stalin a partir do final de 1928. Não
apenas estavam afastados seus rivais pela liderança como tem início a fase que nos
acostumamos a chamar de “culto da personalidade”. A remoção de Bukharin foi um
importante marco nesse processo.
Nota
Camaradas, não vou tratar de assuntos pessoais, muito embora o elemento pessoal desempenhe papel
impressionante nos discursos de alguns do grupo do camarada Bukharin. Não o farei porque o elemento
pessoal é trivial e não vale a pena perder tempo com insignificâncias. Bukharin falou sobre nossa
correspondência pessoal. Leu diversas cartas nas quais fica claro que, ontem, éramos amigos, mas que agora
nos distanciamos politicamente. Acho que todas essas queixas e lamúrias não valem um tostão furado. Não
constituímos um círculo familiar ou uma côterie de amigos do peito, somos o partido político da classe
trabalhadora.20
Ao, praticamente, parafrasear as observações de Marx sobre Danton, Stalin tentava
convencer o Politburo e o comitê central de que, embora Bukharin estivesse no pico
da montanha, ele era, em certa medida, o líder do lodo, dos indecisos. Pareceu
razoável dizer que os interesses da causa estavam acima das relações pessoais, mas
achar que a amizade não valia um tostão furado foi uma afirmação repulsiva. O
ingênuo idealista Bukharin acabara de receber uma aula de maquiavelismo: sua
amizade e seus pontos de vista nada mais eram que trivialidades para Stalin. Mas
nem sempre fora assim.
A.P. Balashov, que trabalhou no gabinete de Stalin, disse-me que quando eram
distribuídas cédulas de votação ao secretário-geral no Politburo, ele frequentemente
perguntava, sem sequer levantar a cabeça: “Bukharin é a favor?” Segundo Balashov,
Stalin levava muito em consideração a opinião de Bukharin quando era necessário
chegar a uma conclusão sobre matéria específica.
Que tipo de homem era Bukharin? Por que, de todos os camaradas em armas de
Lenin que estavam na liderança após sua morte, é Bukharin o que desperta
memórias afetuosas mescladas com tristeza? Por que Lenin o chamou de “favorito
do partido”, e por que Stalin destruiu essa figura de tanto relevo?
Nascido em Moscou em 1888, filho de um mestre-escola, Nikolai Bukharin,
como a maioria dos líderes bolcheviques, não tinha origem proletária. E como eles,
Bukharin era a prova de que para ser um líder era preciso possuir alguns dos
adornos de cultura mundial. De um modo geral, só os das classes mais preparadas
podiam adquirir, desenvolver e aplicar tais qualidades à prática social.
Como estudante do departamento de economia da faculdade de direito de
Moscou, engajou-se na propaganda entre operários e estudantes, tornando-se
membro do partido bolchevique em 1906. Pouco encorpado, mas ágil e esperto,
com pouca barba e cabelos ruivos sobre a testa larga, era visto tanto no distrito
industrial do outro lado do rio como nos encontros estudantis. Preso em 1910,
escapou de Onega, na província de Archangel, e ficou no exterior até depois da
Revolução de Fevereiro.
Os seis anos que passou no exterior foram-lhe extremamente valiosos. Lá,
conheceu Lenin, que lhe dedicava não só cordialidade mas grande afeição, a
despeito das acesas discussões que os dois travavam. O acadêmico Bukharin passava
a maior parte de seu tempo nas bibliotecas e dominou rapidamente o inglês, o
francês e o alemão. Ainda no exterior, escreveu dois importantes trabalhos, A teoria
econômica da classe do lazer e Imperialismo e economia mundial.
Em Nova York, durante a Primeira Guerra Mundial, Bukharin conheceu
Trotsky, com quem, malgrado as muitas diferenças nos campos teórico e político,
manteve relações cordiais por quase dez anos. Foi em Nova York que ouviu a notícia
da Revolução de Fevereiro. O caminho de casa foi longo: preso no Japão, foi depois
colocado sob guarda em Vladivostok por se engajar na agitação entre os soldados, só
chegando a Moscou em maio de 1917. Logo se tornou editor do Pravda, cargo que
reteve por quase 12 anos, com apenas um breve intervalo. Como editor do principal
jornal do partido, desempenhou papel de destaque nas decisões sobre política
partidária e propaganda.
Bukharin não era bom em intrigas, fingimento ou “diplomacia”. Por exemplo,
em 1918, durante as semanas dramáticas em que o novo Estado negociou em Brest-
Litovsk a paz com a Alemanha, ele se tornou o virtual líder da oposição a Lenin. Ao
longo de dois meses, chefiou vários grupos de “esquerdistas” que eram contra o
tratado e a favor de deflagrar uma guerra revolucionária.
Seu sentimento comunista de esquerda não era uma fantasia passageira. Durante
a guerra civil, foi a personificação de uma política radical de esquerda e, na
realidade, foi um dos principais proponentes da política do Comunismo de Guerra.
Em Economia do período de transição, escreveu que elementos de repressão e
comando na economia eram “o custo da revolução”. Tal “custo” era, de fato, uma
“lei revolucionária”. De acordo com Bukharin, a revolução proletária primeiro
destrói a economia, depois a reconstrói em ritmo acelerado.
Suas opiniões como teórico do Comunismo de Guerra foram melhor expressas
no ABC do comunismo, livro que escreveu com a colaboração de E. Preobrazhensky,
outro jovem e talentoso teórico. Nos anos 1920, Stalin tinha em alta conta este
“catecismo” comunista. O ABC descrevia de forma enciclopédica as proposições
elementares sobre revolução, guerra de classe, ditadura do proletariado, papel da
classe operária, programa comunista etc. Fez enorme sucesso, foi reeditado vinte
vezes e vendido no exterior. Graças à sua publicação, que explanou os principais
problemas do movimento revolucionário vistos de uma posição radical de esquerda,
Bukharin ficou tão conhecido quanto Trotsky, Zinoviev ou Kamenev. Sua
reputação no exterior, por muito tempo, foi de “sumo sacerdote da ortodoxia
marxista”.
Boas razões havia para tanto. Por exemplo, na sua coleção de artigos teóricos
Ataka, publicada em 1924, escreveu que a revolução mundial iminente ocorreria
num país atrás do outro, e que o processo não seria interrompido por “todas essas
‘ligas das nações’ e asneiras com que os social-traidores* estão sintonizados”.21
Bukharin parecia ser, durante a revolução e a guerra civil, um revolucionário radical,
talvez um tanto romântico, que era pelas medidas mais extremadas. Naquele tempo,
entretanto, quaisquer ideias supraestado, supranacionais ou universais eram
descartadas como burguesas, e não só pelos marxistas ortodoxos.
A rápida mudança que ocorreu na cabeça de Bukharin poucos anos depois foi,
por isso, ainda mais surpreendente. Ele não fez segredo do fato de que sua evolução
mental foi influenciada sobretudo pelos últimos artigos de Lenin. Bukharin analisou
a Nova Política Econômica em profundidade. Com Lenin enfermo, Bukharin o
visitou com frequência, e os dois passaram horas discutindo questões de teoria e a
prática da construção socialista. Embora seja muito difícil achar pistas e fazer certas
suposições sobre aquelas conversas, o fato é que, a partir de 1922-23, Bukharin se
tornou membro da ala moderada da liderança.
Enquanto Trotsky via a NEP como primeiro sinal da “degeneração do
bolchevismo”, para Bukharin ela era a oportunidade perfeita para que o socialismo
desse novas possibilidades à economia e à sociedade, com base no potencial para
empreendimentos das antigas estruturas abandonadas. Falando numa reunião da
organização partidária de Moscou, em abril de 1925, Bukharin asseverou:
O que temos que fazer agora é dar estímulo para que a atividade econômica da pequena burguesia se
combine com a crescente riqueza privada para assegurar que nossa economia se torne mais forte. [...] Quanto
maior a capacidade de nossas fábricas, maior será nossa produção e, a partir dela, mais a cidade guiará a vila;
a classe operária ficará em condições de orientar, de forma gentil, conquanto firme, o camponês para o
socialismo.22
Numa determinada ocasião, pelo início de 1925, Stalin e Bukharin tiveram uma
conversa séria sobre economia. Ela se resumiu às dúvidas de Stalin sobre a NEP e à
defesa de Bukharin da política. Em suas anotações, Bukharin registrou a conversa.
Stalin repisou com ênfase o ponto de que depender muito tempo da NEP “sufocaria
os elementos socialistas e ressuscitaria o capitalismo”. Ele não entendia de leis
econômicas e só acreditava em “pressão do proletariado”, “diretrizes do partido”,
“linha resolvida”, “limitação dos potenciais exploradores” e coisas do gênero. Foi
uma longa conversa, mas, mesmo assim, Bukharin percebeu que Stalin não entendia
nem confiava na NEP, e que, como Trotsky, via nela uma ameaça para as
conquistas da revolução. Desanimado com o que ouvira, Bukharin decidiu tornar
público pela imprensa seu próprio entendimento da NEP. Usando a argumentação
que utilizara no discurso para a organização de Moscou, publicou um longo artigo
no Bolshevik, intitulado “Da Nova Política Econômica e nossas tarefas”, do qual são
os dois seguintes fragmentos:
O ponto da NEP, que Lenin descreveu como a política econômica correta [...] é que toda uma série de
fatores econômicos que não podiam até agora fertilizar-se mutuamente, trancados que estavam a sete chaves
pelo Comunismo de Guerra, já podem realizar a fertilização e, assim, impulsionar o crescimento econômico.
A NEP significa menos pressão, mais liberdade nas trocas, porque a liberdade não é mais uma ameaça para
nós. Significa menos reação administrativa e mais luta econômica, maior desenvolvimento nas trocas
econômicas. Significa lutar contra o empreendedor privado, não pisoteando-o ou fechando sua loja, mas
tentando produzir bens nós mesmos e vendê-los mais baratos, melhores e de mais alta qualidade.23
Porque não temos Lenin, também não temos autoridade unitária. Só podemos ter, no presente, autoridade
coletiva. Não há ninguém que possa dizer: “Sou indene de faltas e consigo interpretar os ensinamentos de
Lenin com 100% de correção.” Todos tentam, mas quem reivindica os 100% está concedendo à sua pessoa
um papel demasiado grande.25
Stalin achou que o alvo daquelas palavras era ele. Afinal de contas, em todas as
palestras que proferiu sobre as fundações do leninismo na Universidade Sverdlov
falara como intérprete dos ensinamentos de Lenin. E, de qualquer forma, que
história era aquela da não existência de autoridade unitária? O que dizer da
autoridade do secretário-geral? Stalin ficou também inquieto com a quantidade de
seguidores de Bukharin, entre os quais Astrov, Slepkov, Maretsky, Tseitlin, Zaitsev,
Goldenburg e Petrovsky, que começavam a se destacar na imprensa, nas
universidades e no aparato do partido. Slepkov e Astrov tinham se tornado editores
do Bolshevik, Maretsky e Tseitlin trabalhavam no Pravda, Zaitsev estava na comissão
central de controle, a CCC, e assim por diante. Stalin temeu que a influência
política e ideológica de Bukharin crescesse demais no partido e no país.
Outro motivo residia no caráter arbitrário e obstinado do secretário-geral. A
coletivização – isto é, a revolução real no campo executada pela força vinda de cima
– começara vitoriosamente no conjunto, melhor, pelo menos, do que Bukharin
imaginara. Pelos relatórios recebidos, Stalin se convenceu de que, exercida a medida
apropriada de pressão, as expectativas preliminares poderiam ser radicalmente
aumentadas. De qualquer forma, acreditava que aquela política resolveria
rapidamente a crise dos cereais.
Mas a crise se aprofundou. Stalin disse repetidas vezes ao círculo mais íntimo:
“Sem uma ruptura decisiva no campo, não teremos pão.” Molotov e Kaganovich
concordaram avidamente com ele. Stalin, aos poucos, se convenceu de que o
cronograma para a reestruturação da economia agrária deveria ser encurtado duas ou
três vezes. Então, quando a pressão provocou uma resistência amortecida, porém
alastrada, dos camponeses, em especial dos kulaks, ele subitamente viu, num
lampejo de “gênio”, que a solução estava em apressar a “liquidação da classe”, por
métodos puramente administrativos e políticos.
As discussões no Politburo sobre esta questão se tornaram mais acaloradas. Stalin
recebeu o apoio de Molotov, Kaganovich e Voroshilov, enquanto Bukharin tinha
Rykov e Tomsky ao seu lado. Os aliados de Bukharin eram também favoráveis à
coletivização e à “ofensiva contra os kulaks”, mas sem expropriações ou repressão.
Acreditavam que, no final, o método econômico de pressão surtiria efeito. Kalinin,
Rudzutak, Mikoyan e Kuibyshev estavam indecisos. Se entendessem melhor a
situação, teriam dado o apoio a Bukharin, e tudo poderia ter sido bem diferente.
Afinal, o próprio Bukharin não era contra a industrialização nem contra a
coletivização: era, sim, contra o emprego da força no cumprimento dessas tarefas
históricas. E como vidas humanas estavam em jogo, não se tratava de questão trivial.
Na opinião de Bukharin, todas as transformações, no fim, deveriam servir à
humanidade e ao socialismo, e não o caminho inverso. A consciência moral dos
membros do Politburo que decidiam sobre a linha de ação ótima, não
necessariamente a mais radical, não era, infelizmente, tão refinada quanto a de
Bukharin. E, assim, perdeu-se outra oportunidade de agir com consciência. Até
mesmo Trotsky, que olhava o conflito de fora, disse a seus seguidores que “a direita
pode derrubar Stalin”, levando em conta que tinha em suas fileiras os chefes de
governo, os sindicatos e a liderança intelectual. Parecia haver uma chance. Todavia,
o equilíbrio instável não durou muito, embora tivesse parecido por um breve
momento que a linha moderada de Bukharin fosse prevalecer. Àquela altura, Stalin
já era um mestre imbatível na condução dos casos à sua maneira.
Rykov, sucessor de Lenin como presidente do Conselho de Comissários do
Povo, e Tomsky, líder praticamente perpétuo dos sindicatos, não encaravam Stalin
como líder inconteste, porém deram apoio a Bukharin por convicção, não por
motivos pessoais. Stalin não conseguira influenciar sua opinião. Pyatakov certa vez
chamou Rykov e Tomsky de “nepistas convictos” com alguma razão. O problema
foi que a batalha contra Stalin se desenrolou a portas fechadas e num círculo
restrito. Além do mais, o risco que Bukharin e seus seguidores corriam de ser
considerados facciosos não era desprezível. Por mais que Bukharin estivesse
convencido da natureza desastrosa da política de Stalin, não conseguiu criar uma
base mais ampla de apoio entre os que não aceitavam a repressão, a ditadura ou as
medidas “extraordinárias”. Tentou voltar a ter um diálogo pacífico com Stalin, mas
o secretário-geral só aceitava a rendição completa. O líder em desgraça entrou em
agonia: “Algumas vezes fico pensando à noite: temos o direito de continuar
silenciosos? Não é falta de coragem?”26 Mas não ousou esbravejar. Respeitando e, ao
mesmo tempo, desprezando Stalin, esperou até o dia de sua morte – em vão, como
sabemos – que Stalin recuperasse a racionalidade, a decência e a tolerância.
A relação entre os dois líderes deteriorou-se rapidamente depois que o famoso
artigo de Bukharin “Observações de um economista” saiu no Pravda, em 30 de
setembro de 1928. Persistentemente, Bukharin bateu na tecla da necessidade e da
possibilidade de se fomentar o desenvolvimento da indústria e da agricultura numa
atmosfera livre de crises, e pela mobilização de todos os meios econômicos
disponíveis: “Supercentralizamos tudo.” Passada uma semana, o Politburo
condenou o artigo, e Stalin lançou-se ao ataque decisivo. Debates prolongados e
veementes ocorridos no Politburo não chegaram a um meio-termo. Muitas das
sessões não tiveram atas, anotando-se apenas as decisões. Estas mostram que Stalin
ganhava terreno paulatinamente. Bukharin ficou em minoria. Rykov cedeu em
diversos pontos e Tomsky cambaleou. Stalin começou a exigir que Bukharin
“abandonasse sua linha de raciocínio de desacelerar a coletivização”. Numa ríspida
troca de palavras, Bukharin, irado, chamou Stalin de “insignificante déspota
oriental”. Stalin não respondeu. Porém, internamente, deveria estar pensando: “Não
preciso mais dele.”
A relação já conturbada ficou ainda pior. Porém, mesmo antes desses
acontecimentos, Bukharin, sentindo que a posição dos moderados enfraquecia,
tomara uma atitude que se revelaria desastrosa: de repente, na noite de 11 de junho
de 1928, visitou Kamenev em seu apartamento e tentou estabelecer ligação com a
antiga oposição que ele mesmo ajudara Stalin a destruir. Visitou Kamenev em
outras duas oportunidades. Em todas as ocasiões, ficaram a sós. O que esses dois
camaradas de Lenin conversaram, provavelmente nunca saberemos com certeza. De
acordo com Trotsky, Kamenev anotou que Bukharin estava furioso e deprimido.
Repetia sem cessar, “a revolução está arruinada”, “Stalin é um intrigante da pior
espécie”, e parecia achar que nada havia a fazer para melhorar as coisas. Os aliados
de Trotsky fizeram circular esta suposta conversa num panfleto clandestino datado
de 20 de janeiro de 1929. Não há como se possa confirmar sua veracidade.
Nesse meio-tempo, Stalin foi seguramente informado daqueles contatos e, no
plenário de abril de 1929, usou-os da maneira mais convincente contra Bukharin.
Tais contatos não foram bons para os moderados e permitiram que Stalin colasse em
Bukharin o rótulo de “faccioso”. Àquela altura, o teórico decidiu apelar para a
opinião pública. No aniversário da morte de Lenin, 24 de janeiro de 1929, publicou
um artigo no Pravda intitulado “Testamento político de Lenin”, que constituía o
relatório a ser feito na sessão comemorativa do quinto ano do falecimento de Lenin.
O artigo descrevia o plano de Lenin para a construção do socialismo, a
importância da NEP, a necessidade de que as decisões fossem tomadas
democraticamente, e assim por diante. Bukharin escreveu que os artigos de Lenin
recomendavam “a industrialização do país com base na poupança, no
aprimoramento da qualidade do trabalho, juntamente com a organização dos
camponeses em linhas cooperativas, ou seja, com os meios mais simples e mais
fáceis, a fim de atrair os camponeses para a construção socialista, sem recorrer a
qualquer forma de repressão”. Esta fórmula era, em quase todas as suas palavras, a
essência da opinião de Bukharin sobre as questões enfrentadas pelo partido no
momento.
Porém, o ponto principal estava no próprio título do artigo, pois ele lembrava
aos comunistas (os que sabiam e os que se recordavam) que o Testamento pedira a
remoção de Stalin do cargo de secretário-geral para outra função qualquer. Era o
último fio de esperança, em particular porque Bukharin escreveu que “a consciência
não pode ser desprezada na política, como alguns pensam”.
É preciso realçar que, com toda sua inteligência e por mais profética que fosse
sua visão do porvir, Bukharin tardou muito a entender Stalin. A destruição do
“grupo Bukharin”, iniciada por Stalin, foi completada pelos plenos de abril e
novembro de 1929 do comitê central e da CCC, que revisaram a questão dos
“desvios de direita” no partido. Stalin fez um discurso de três horas no qual
desancou Bukharin por recusar-se a aceitar o meio-termo oferecido pelo Politburo,
em 7 de fevereiro de 1929, meio-termo que seria o equivalente à rendição total. Isso,
de acordo com Stalin, significava que o partido tinha então “a linha do comitê
central e a linha do grupo Bukharin”. A despeito das relações amistosas que
mantiveram antes de janeiro de 1928, Stalin optou por registrar na ocasião as “fases
de diferença” entre eles, pontilhando sua fala com expressões depreciativas como
“asneira”, “lixo”, “livrinho de Bukharin”, “abordagem não marxista”, “palavrório”,
“marxista impostor”, “boquirroto”, “confusão semianárquica de Bukharin”.
Houvera boas razões para que Bukharin fosse considerado o teórico de proa do
partido desde a morte de Lenin, e agora Stalin decidira retirar a coroa de sua cabeça:
“Como teórico, não é um marxista completo, é um teórico que precisa estudar um
pouco mais se deseja ser teórico marxista.”27 E, aqui, Stalin não perdeu a
oportunidade de citar o que Lenin dissera sobre Bukharin, em especial na segunda
parte de seu pronunciamento, quando afirmou haver “algo de escolástico nele
(jamais estudou dialética e creio que nunca a entendeu completamente)”. Portanto,
era um “teórico sem dialética, um teórico escolástico”. Stalin passou a enumerar
todos os desacordos que Bukharin tivera com Lenin, caracterizando-os como
“tentativas de ensinar ao professor”. Aquilo, prosseguiu sarcasticamente, era
inteiramente compreensível, considerando-se quão recentemente o “teórico
escolástico” tornara-se “pupilo de Trotsky [...] e ainda ontem procurara alianças
com os trotskystas contra os leninistas, correndo para eles pela porta dos fundos!”28
– referência às visitas de Bukharin a Kamenev.
Todo o discurso foi nessa linha, distribuindo críticas devastadoras contra Rykov,
Tomsky e contra o alvo principal. Bukharin e Rykov foram destituídos de seus
cargos, embora permanecessem membros do Politburo. O discurso só foi publicado
alguns anos mais tarde na coleção de obras de Stalin, mas como a resolução do
plenário circulou por todas as organizações locais do partido, o processo de punição
dos “direitistas” começou a ocorrer em todas as regiões. O Pravda e outros jornais
passaram a estampar com regularidade matérias com acusações pesadas contra a
“direita”. Com efeito, estava sinalizada a coletivização forçada, com seus excessos e
com o fim violento do antigo modo de vida dos camponeses. Ninguém mais falava
no princípio do voluntariado. Mesmo então, Bukharin continuava achando que
20% de crescimento industrial era o máximo que a economia agrícola podia
garantir. Stalin tinha expectativas bem mais altas.
Em novembro de 1929, a linha geral do partido para a agricultura foi
confirmada quando Stalin escreveu que “os camponeses estão agora se juntando às
fazendas coletivas não como grupos individuais, como costumavam fazer, mas como
vilas inteiras, grupos de vilas, distritos e até regiões”.29 Contudo, Bukharin recusava
o “arrependimento” que vinha sendo instado a mostrar e, em 17 de novembro de
1929, foi removido do Politburo. No entanto, uma semana mais tarde,
atormentados pela dor de consciência da própria pusilanimidade, Bukharin, Rykov
e Tomsky escreveram uma carta breve para o comitê central na qual condenavam a
posição assumida por eles mesmos: “Consideramos ser nosso dever afirmar que o
partido e o comitê central estavam certos nesta discussão. Nossas opiniões acabaram
se revelando errôneas. Reconhecendo nossos enganos, devemos conduzir uma
batalha decisiva contra todos os afastamentos da linha geral do partido e, acima de
tudo, contra o desvio de direita.”30
Stalin não gostou de não ver na declaração menção específica ao fato de ele estar
certo, mas não tinha importância. Bukharin estava acabado.
É muito pouco provável que, por aquela ocasião, muitas pessoas fossem capazes
de antever o que o futuro reservava para Bukharin, ou mesmo apenas de prever a
derrota, de um modo geral, daquela ala moderada da liderança do partido. Por
outro lado, os críticos e analistas de fora da União Soviética foram um pouco mais
perspicazes. Em abril de 1931, saiu um artigo na edição do jornal menchevique
Sotsialischeskii Vestnik** com os resultados da Nova Política Econômica, no qual se
dizia que Stalin fazia o máximo para “destroçar qualquer sonho de um retorno à
NEP e para acabar com qualquer sonho de evolução”.
O secretário-geral tentou várias vezes submeter os comunistas de direita, mas, devido a uma série de razões
internas, a punição não foi levada ao extremo, e o fim violento de Rykov, Tomsky e Bukharin foi adiado. O
processo de expeli-los tanto do aparato como do partido ainda não se completou. Os defensores da NEP, que
são sensíveis às necessidades dos camponeses (embora psicologicamente incapazes de romper com a ideia da
ditadura), já foram destituídos de seus cargos, mas ainda não foram declarados inimigos do povo. A ditadura
já os está encarando e logo tratará deles.31
* Jargão comunista para os partidos socialistas, a maioria no Ocidente, organizados na Segunda Internacional.
** Fundado em Berlim por Martov em 1920, o Jornal Socialista, órgão da ala menchevique do RSDRP
Rossijskoj Social-Demokraticeskoj Rabocej Partii – Partido dos Trabalhadores Social-democrata Russo – foi
transferido em 1933 para Paris. Depois, de 1940 até 1963, passou a ser publicado em Nova York.
[19]
Ditadura e democracia
N o início dos anos 1930, ficou claro para os que tinham capacidade de
perceber que as palavras de Lenin – “O aparato não nos pertence, nós
pertencemos a ele”32 – tornaram-se realidade. A ditadura da burocracia, a
burocracia coletiva, nascera. E ela, gradualmente, gerou uma elite, toda uma
hierarquia de chefes. O governo por decretos passou a ser o principal meio de inter-
relacionamento social. Tudo era decidido dentro dos gabinetes. Reuniões, sessões,
congressos e plenários meramente “aprovavam” ou “davam apoio”. O poder do
povo nada mais era que uma expressão vazia. As engrenagens da máquina
burocrática não se movimentavam com rapidez, mas eram inexoráveis. Stalin
manejava o principal painel de controle, observando o produto de sua inspiração
através das janelas do Kremlin. A mudança para o socialismo fora deformada em
mudança para o stalinismo.
Stalin jamais entendeu, ou quis entender, a essência da democracia proletária, o
próprio significado de poder do povo. Em seus arquivos, podemos ver que a
democracia para ele nada mais era que liberdade para dar apoio – e apenas dar apoio
– às decisões do partido. E como Stalin acreditava que personificava o partido, a
democracia autêntica consistia em aprovar suas argumentações, suas deliberações,
suas intenções. Nem todos logo se deram conta de que, ao lidar com Trotsky,
Zinoviev, Kamenev e com outros que pensavam de forma diversa, Stalin não fazia
menção às diferenças em relação a si, e sim ao afastamento do leninismo. A
identificação de suas próprias opiniões e atitudes com as de Lenin foi um dos
instrumentos mais inteligentes utilizados por Stalin. Nem todos tiveram de imediato
a percepção de que, graças a essa estratégia, ninguém parecia ter razão quando
discutia com ele. Para que isso acontecesse, era preciso que, primeiro, Lenin fosse
destronado.
Ademais, Stalin também conseguia apresentar seus erros sobre a questão
nacional, sua atitude negativa a respeito da continuação da NEP, sua falsa
concepção de luta de classes, seu entendimento deturpado sobre a essência da
coletivização e seu exagero sobre o papel do aparato como se fossem interpretações
corretas do leninismo. Certa vez, durante o embate que travaram antes da expulsão
de Bukharin do Politburo, Stalin trocou com ele as seguintes palavras:
Stalin, irado: “Vocês são um bando de não marxistas, uns curandeiros, charlatões. Nenhum de vocês
entendeu Lenin!”
Bukharin: “E você foi o único que entendeu?”
Stalin: “Repito, você não entendeu Lenin. Já se esqueceu das tantas vezes que o atacou por esquerdismo,
oportunismo e desorganização?”
Com quase as mesmas palavras, Stalin iria coagir Bukharin no pleno de abril de
1929 do comitê central e da CCC. A fonte de muita infelicidade futura pode ser
encontrada na usurpação que Stalin procedeu da interpretação de Lenin, e ninguém
se mostrou capaz de revelar a profunda impropriedade do pleito dogmático do
secretário-geral pela exclusividade nesse papel.
No pleno de janeiro de 1933, ao sintetizar os resultados do Primeiro Plano
Quinquenal, Stalin incluiu uma seção especial sobre as tarefas e o efeito da luta
contra “os remanescentes das classes hostis”. A despeito de dizer “remanescentes”,
conclamou uma “luta implacável contra eles”. E nenhuma palavra quanto à
reeducação ou quanto à possibilidade de que “ex-pessoas” e suas famílias fossem
levadas para o novo estilo de vida, o que talvez ajudasse mais efetivamente a
mudança de suas visões e de seus “instintos de classe”. Ao descrever o cenário social,
ele disse:
Os remanescentes das classes moribundas – industriais e seus serventes, negociantes privados e seus títeres,
ex-nobres e ex-párocos, kulaks e seus lacaios, ex-oficiais e ex-soldados Brancos, milícias e policiais –
infiltraram-se em nossas fábricas, nossas instituições e agências, nossas ferrovias e empresas de transporte
fluvial e na maior parte de nossas fazendas estatais e coletivas. Esgueiraram-se e lá estão escondidos,
disfarçados de “operários” e “camponeses”, e alguns chegaram a se infiltrar até mesmo no partido.
O que trouxeram consigo? É claro que trouxeram o ódio contra o regime soviético, seus sentimentos de
hostilidade feroz às novas formas de economia, modo de vida, cultura. [...] Só lhes resta fazer o jogo sujo e
prejudicar os operários e os agricultores coletivos. E o fazem da maneira que podem, na surdina. Incendeiam
depósitos e quebram máquinas, e alguns deles, inclusive professores, vão tão longe em sua atividade
destruidora que injetam vírus da peste e antrax no gado de nossas fazendas coletivas e estatais, e forçam o
alastramento da meningite em nossos cavalos, e assim por diante.33
Nossa democracia tem que colocar sempre o interesse geral em primeiro lugar. O pessoal quase não vale nada
comparado ao social. Enquanto existirem ociosos, inimigos e ladrões da propriedade socialista, isso significa
que ainda existirão pessoas estranhas ao socialismo, e significa também que temos que persistir na luta.
“O pessoal quase não vale nada...” e o que pertence a todos não pertence a ninguém.
O senso de propriedade simplesmente se evaporou quando o igualitarismo foi
imposto. Um trabalhador não poderia receber milhares por uma invenção, mesmo
que ela desse lucro de milhões, porque seria “demais” para uma pessoa.
Paulatinamente, surgiu um tipo de trabalhador receoso da “sobrecarga” de trabalho,
que encarava com naturalidade folhas falsas de serviço e roubos à luz do dia. “Ora, o
Estado não vai sentir falta disto”, raciocinaria ele. “O pessoal quase não vale nada...”
E era a “democracia” de Stalin que sustentava tal tipo de atitude. As pessoas, quase
sempre, se motivavam pela necessidade, pelo medo e por outras alavancas do sistema
em cujo vértice se postava o autocrata.
Stalin não proferia discursos contra a democracia, porque o seu entendimento de
democracia era o de um déspota. Afinal de contas, existiram imperadores romanos
que não tiveram pejo em criar parlamentos obedientes com os atributos
apropriados, tais como eleições, juramentos e representações formais. A democracia,
como expressão do poder socialista do povo, era aceitável por Stalin, desde que
reforçasse sua ditadura pessoal. Numa conversa com H.G. Wells, o secretário-geral
colocou o poder no centro de seu raciocínio como “uma alavanca da mudança”,
alavanca da nova legalidade e da nova ordem. Nada ele amava mais que o poder, o
poder completo, ilimitado, consagrado pelo “amor” das multidões. E nisso foi bem-
sucedido. Nenhum outro homem no mundo jamais conseguiu um sucesso tão
fantástico: exterminar milhões de seus próprios concidadãos e receber em troca a
adulação cega de todo o país. Não obstante, isso fazia parte do entendimento
stalinista da relação entre ditadura e democracia.
Com o correr do tempo, a noção de “sacrifício”, ou de “custo”, tornou-se para
Stalin um dos atributos essenciais do socialismo. Quando um novo projeto foi
formulado para a Sibéria Setentrional, a “ordem de planejamento” incluiu um
elemento para cobrir as “perdas naturais”. A NKVD chegou a prever “dotações”
para as regiões, reservas especiais de trabalho forçado para os “locais socialistas”. A
partir do fim dos anos 1920, não havia escassez do barato trabalho escravo. Todas as
iniciativas para o emprego de prisioneiros encontravam apoio em Stalin. Bastava que
resmungasse para um assistente, ou que rabiscasse “de acordo” no documento, para
que a proposta de uma agência referente à utilização de centenas ou milhares de
“inimigos”, numa região ou noutra, ganhasse aprovação oficial.
Dando um salto à frente, seria interessante frisar que, em suas notas para Stalin,
Beria frequentemente afirmava que as tarefas de construção da NKVD eram tão
grandes que os “recursos humanos” se mostravam inadequados.36 Stalin captou a
ideia. Em 25 de agosto de 1938, o Presidium do Soviete Supremo da URSS reuniu-
se para debater a libertação antecipada de prisioneiros de bom comportamento.
Stalin objetou:
Não podemos dar um jeito para que essa gente permaneça nos campos de prisioneiros? Se isso não acontecer,
nós os liberamos, eles voltam para casa e retomam a antiga vida. O ambiente no campo de prisioneiros é
diferente, lá é mais difícil o mau comportamento. Afinal, já temos o empréstimo [estatal] voluntário-
compulsório. Então, tenhamos também a permanência voluntária-compulsória.37
Ludwig: De um lado, as pessoas do exterior sabem que a URSS é um país onde, supostamente, tudo é
decidido coletivamente, porém, de outro lado, também sabem que tudo é decidido por um homem só.
Quem decide na verdade?
Stalin: As decisões tomadas por uma só pessoa são sempre, ou quase sempre, decisões unilaterais. Em
qualquer coletividade, há pessoas cujas opiniões têm que ser levadas em conta. Nossos operários jamais
tolerariam o mando de um homem só sob quaisquer circunstâncias.
[Ludwig pergunta como Stalin encara os métodos jesuítas.]
Stalin: Seus principais métodos abarcam a campana, a espionagem, a infiltração na mente das pessoas, o
escárnio – que há de bom nisso?
Ludwig: O senhor esteve constantemente em risco e correndo perigo. Foi perseguido, tomou parte em
batalhas. Alguns de seus amigos mais próximos morreram. O senhor ainda está vivo. O senhor acredita em
destino?
Stalin: Não, não acredito. Isso é apenas bobagem supersticiosa e uma ressaca da mitologia. Outro poderia
estar em meu lugar, e deveria mesmo estar. [...] Não acredito em misticismo.38
Dizer uma coisa e fazer outra passou a ser norma para Stalin: condenar o culto à
liderança enquanto o reforçava, criticar as práticas jesuítas ao mesmo tempo em que
as encorajava na vida soviética, falar sobre liderança coletiva ao passo que a reduzia
ao mando de um só homem. A deificação dos autocratas normalmente é feita com
base na falsidade.
No início da década de 1930, Stalin interrompeu por completo suas raras visitas
às províncias, fábricas e unidades do exército. Por um lado, seu conhecimento era
diminuto sobre a produção e não desejava imiscuir-se com assuntos terrenos tais
como tecnologia, rendimentos, produtividade etc. Por outro lado, vivia assaltado
pela sensação permanente de que se engendrava um atentado contra sua vida. Afinal
de contas, inimigos não faltavam, e Trotsky, ou qualquer outra das “ex-pessoas”,
poderia chegar a extremos. Seus órgãos de segurança não paravam de alertá-lo. Por
exemplo, Ulrikh informou:
Em 16 de dezembro [1935], depois de duas semanas de investigação feita a portas fechadas pelo collegium
militar da Suprema Corte da URSS, foi sentenciado um grupo de espiões e terroristas que planejava um ato
terrorista [terakt] na Praça Vermelha, em 7 de novembro de 1935, sob as ordens de um cidadão alemão.
Foram condenados à pena de morte G.I. Sher, V.G. Freiman, S.M. Pevzner, V.O. Levinsky...39
Stalin não precisava continuar lendo. “Estão atrás de mim”, pensou. Mas não
conseguiriam, seriam todos desentocados.
Stalin raramente fazia aparições públicas porque, segundo sua natureza sutil,
sabia que quanto menos fosse visto pelo povo, mais fácil seria cultivar a espécie de
imagem que queria projetar. O enigmático, o misterioso e o fechado guardavam
equivalência com o sagrado, o lendário e o sobre-humano. Portanto, em vez de
visitar fábricas, ele estudava cuidadosamente os documentos, assistia com
regularidade aos noticiários do cinema, ouvia numerosos relatórios e punha-se de pé
por longos períodos de tempo, cogitando diante de mapas.
Ele gostava de olhar mapas e examinar seu vasto país como um soberano. Isso,
mesmo de forma inadequada, dava-lhe uma ideia da maneira com que milhões de
pessoas laboravam para dar vida aos seus decretos. Podia correr com o dedo sobre a
Transiberiana, ou localizar Magnitogorsk, a represa hidrelétrica do Dnieper, o canal
ligando o mar Branco ao Báltico, a bacia produtora de carvão de Kuznets, e deixava
os olhos correrem até as regiões de Kolyma, mas, para tanto, tinha que dar diversos
passos diante do mapa. Depois de um desses rotineiros exames do território russo,
subitamente, telefonou a Voroshilov e perguntou se o Exército Vermelho estudava
geografia. Os militares conheciam bem a geografia de seu próprio país? Na sua
cabeça, o simples olhar num mapa para a mãe-pátria provocaria orgulho, bem como
dedicação à causa e à ideia. Voroshilov, que não estava preparado para aquela
pergunta, deu uma resposta um tanto desencontrada e prometeu investigar. No dia
seguinte, o departamento de política do Soviete Militar Revolucionário preparou
um memorando que Voroshilov transmitiu a Stalin como se segue:
Em resposta à sua indagação sobre o estudo da geografia no Exército Vermelho, posso informar que a
geografia é obrigatoriamente estudada por todos os integrantes do Exército Vermelho em programas
especiais. Além do estudo de geografia como parte do programa de instrução geral, ela é também ministrada
nos cursos políticos. Atenção especial é dada ao estudo de mapas.
No corrente ano, o departamento político do Revvoensoviet distribuiu 220 mil mapas, 10 mil atlas, 8 mil
mapas nas línguas nacionais das repúblicas e 10 mil globos, que foram se juntar ao material já existente nas
unidades.40
Stalin leu satisfeito o relatório e olhou de sua cadeira para o mapa na parede:
enquanto a distância permitiu, pôde distinguir as localidades de Stalingrado,
Stalino, Stalinsk, Stalinabad.
Logo depois da morte de Lenin, cresceu a prática duvidosa de dar o nome de
figuras do Estado e do partido a cidades e regiões, fábricas, institutos educacionais,
teatros, e assim por diante. Tornou-se norma os jornais publicarem relatórios sobre
a consecução das metas do plano trimestral da Fábrica Stalin de Produtos Químicos,
de Moscou, da Tecelagem Voroshilov, em Tver, das Fábricas de Papel Zinoviev Nº
1 e Nº 2, em Leningrado, da Fábrica de Vidros Bukharin, em Gus-Khrustalnyi, e
outras. No fim dos anos 1920 não havia, praticamente, distrito em que o nome de
Stalin não fosse adotado por um ou outro corpo administrativo, cultural ou de
produção. Deste modo, o povo ficava subliminalmente imbuído da ideia de que
Stalin desempenhava papel excepcional no destino da nação. A glorificação do líder
podia ser ouvida em qualquer relatório ou discurso corriqueiro, e o “líder” local
providenciava para que parcela dessa glória se refletisse sobre ele.
Juramentos de devoção transformaram-se em partes inevitáveis da vida social ao
tempo de Stalin e, sendo de importância tão vital para os que os proferiam,
sobreviveram por décadas após sua morte. O processo fazia mais que deificar o líder,
também insultava toda a população, já que, embora criadora de tudo o que existia
no país, era forçada a se colocar na posição de agradecida. A impressão que,
inevitavelmente, ficava era que, tendo desistido da crença de Deus no céu, o povo o
recriava na terra.
E era de fato um ato de criação. As vozes mais elevadas e mais exaltadas na
glorificação eram as de Molotov, Voroshilov e Kaganovich, e, por mais paradoxal
que pareça, também as de Zinoviev, Kamenev, Bukharin e alguns outros velhos
bolcheviques em desgraça. Os artigos e discursos de Zinoviev, penitenciando-se por
pecados passados e louvando a “perspicácia e a sabedoria do líder do partido,
camarada Stalin”, incomodam um pouco quando lidos. Nem Bukharin conseguiu
evitar algumas observações lisonjeiras. Teriam eles perdido realmente a fé na causa
pela qual lutaram, ou o senso de autossobrevivência tomara conta de seus sentidos?
Em paralelo com a glorificação na literatura oficial, começou um quase
imperceptível processo de revisão da história e de criação da noção de que teriam
havido dois líderes na Revolução de Outubro, Lenin e o onipresente Stalin, que
estava sempre ao seu lado. No prefácio da coleção em seis volumes das obras de
Lenin, seu editor, Adoratsky, anotou que os escritos de Lenin deveriam ser lidos em
conjunto com os de Stalin, porque o secretário-geral havia exposto de maneira
concentrada as ideias de Lenin no seu livro Fundamentos do leninismo, e por aí
seguiu seu raciocínio.
Em agosto de 1931, antes que o culto à personalidade atingisse o zênite, foram
feitas tentativas para imortalizar Stalin em biografias políticas. Existe uma carta no
arquivo de Stalin escrita por Yaroslavsky, que diz o seguinte: “Hoje, antes de partir,
Sergo [Ordzhonikidze] telefonou-me para dizer que falara com você sobre um livro
chamado Stalin que ele deseja escrever...” As habituais anotações a lápis na carta
registram: “Camarada Yaroslavsky, sou contra. Acho que ainda não chegou a hora
das biografias.”41
Decisão sensata. O campo ainda não fora dobrado de todo, a floresta de fábricas
estava em crescimento, a maioria dos integrantes da velha guarda de Lenin ainda
estava viva e, entre eles, alguns que bem conheciam o que Stalin fora havia apenas
dez anos. Panegíricos começavam a aparecer. O principal era agir gradualmente,
com consistência e sem volta. Era importante comportar-se publicamente com
modéstia e moderação. Acabara de testemunhar os aplausos que explodiram com
renovado vigor quando ocupara uma cadeira na segunda fila da plataforma, e não na
primeira como todos esperavam. A plateia ficou na ponta dos pés para poder ter
rápida visão dele. A hora das biografias chegaria logo.
No meio-tempo, eram tomadas providências para que cartas e relatórios de
devoção fossem enviados ao líder. Por exemplo, a Comuna Stalin, na vila de
Tsasuchey, no distrito de Olovyannikovsk da Sibéria Oriental, informou de sua
intenção de semear 320 hectares em vez dos propostos 262,5. “Somos favoráveis à
linha geral do partido sob a liderança do comitê central bolchevique e do melhor
dos leninistas, o camarada Stalin! Somos pela concretização total do Plano de Cinco
Anos em quatro anos e pela liquidação dos kulaks como base para a coletivização
completa!”42
Tais cartas passaram a ser adotadas nas reuniões de todas as empresas, institutos e
fazendas estatais e coletivas. Era o início da deformação da mente pública que, a
partir de então, passaria a ser nutrida apenas com o culto a mitos. A propaganda
emprestou ênfase crescente à fé: qualquer coisa que fosse formulada ou dita por
Stalin tornava-se imutável e verdadeira e não necessitava de provas. Em outras
palavras, Stalin era um semideus. No fim, esses mitos, que se transformaram em
base de toda a vida social, foram reduzidos a duas proposições simples.
Primeira, o líder do partido e da nação é um homem sábio ao grau mais elevado.
A força de seu intelecto é capaz de dar resposta a todas as questões do passado, de
entender o presente e de perscrutar o futuro: “Stalin é o Lenin de hoje.”
Segunda, o líder do partido e da nação é a personificação total do bem absoluto e
se preocupa com todos. Repudia o mal, a ignorância, a traição, a crueldade. Ele é
aquele homem de bigodes, sorridente, que carrega ao colo uma menininha agitando
a bandeira.
[20]
O Congresso dos Vitoriosos
O fim dos anos 1920 e o início da década de 1930 limitaram uma fase
importante na ascensão de Stalin. Sua autoridade cresceu
acentuadamente e os antigos oposicionistas, inclusive Bukharin,
buscaram de todas as formas provar sua lealdade a ele, bem como suas novas
“avaliações” e a “concordância total com a linha geral do partido”. Por exemplo,
Zinoviev e Kamenev tentaram diversas vezes restabelecer as boas relações com Stalin
e foram visitá-lo na dacha para selar a paz.
É normal tomar-se como tragédia pessoal a experiência da demissão de um alto
cargo, e aquelas figuras políticas não foram exceção. Kamenev, embora apenas perto
dos 45 anos de idade, pareceu ter desistido de tudo, envelheceu e os cabelos ficaram
grisalhos antes do tempo. Ao telefone ou em conversas frente a frente com Stalin
procurava sempre uma oportunidade para fazer referências cautelosas ao tempo que
passaram juntos, ociosos, às margens do rio Kureika, ou ao fato de que os três – ele,
Zinoviev e Stalin – foram camaradas em armas próximos de Lenin, ou aos eventos
dramáticos que cercaram a indicação de Stalin para o cargo de secretário-geral.
Tanto Zinoviev quanto Kamenev, mas especialmente o último, jamais perderam a
esperança de um dia retornar aos altos escalões da hierarquia do partido.
Stalin sabia perfeitamente o que se passava e sua atitude era de condescendência.
Por vezes, até encorajava os camaradas em desgraça. Porém, estava ciente de que as
pessoas às quais devia, em boa medida, sua posição de então não eram mais
necessárias, e poderiam até se transformar mais tarde em perigo. Zinoviev e
Kamenev o conheciam muito bem, e ele não gostava de quem sabia mais sobre ele
do que o prescrito pela propaganda oficial. Com a aproximação do XVII Congresso
do partido, no início dos anos 1930, toda a sua atenção estava concentrada na
revolução da agricultura, na avalanche da indústria e em garantir a consolidação de
seus seguidores.
O congresso que ocorreu em fevereiro de 1934 ficou conhecido na propaganda
stalinista como o “Congresso dos Vitoriosos”. O próprio Stalin, no seu relatório
para o comitê central, descreveu as vitórias obtidas pelo partido e pelo país como
“grandes e inusitadas”. A nação, de fato, dera um grande salto para a frente em
1934. A minuta do relatório de Stalin, por ele mesmo rascunhado e revisado
cuidadosamente, mostra em cada página e em cada parágrafo que procurou inflar
tais conquistas. Acreditava que os enormes sacrifícios feitos pelo país mereciam a
demonstração de resultados. Páginas inteiras foram reescritas pelo secretário-geral
com a intenção de mostrar ao partido e ao povo que sua liderança era profícua,
eficiente e vitoriosa.
Stalin destacou o fato de que, nos cerca de três anos decorridos desde o
congresso anterior, a produção industrial havia dobrado. Novos ramos da indústria
estavam instalados: fabricação de máquinas-ferramentas, automóveis, tratores,
produtos químicos. Motores, aviões, máquinas agrícolas, borracha sintética, nitratos,
fibras artificiais eram fabricados na URSS. Orgulhoso, anunciou que milhares de
projetos estavam contratados, inclusive alguns gigantescos, como a hidrelétrica do
Dnieper, as indústrias de Magnitogorsk e Kuznets, os caminhões dos Urais, os
tratores de Chelyabinsk, os automóveis de Kramatorsk, e muitos outros. Nenhum
relatório anterior feito por Stalin continha tantos fatos, números, tabelas e planos.
Ele tinha o que dizer ao congresso.
Os anos 1930 são conhecidos como os da grande tragédia, mas foram também
tempos de entusiasmo sem precedentes, conquistas e enormes esforços dos
trabalhadores. Fica até difícil hoje imaginarmos como milhões de pessoas, a grande
maioria sustentada apenas pelas necessidades mais comezinhas da vida, acreditaram
estar genuinamente criando um futuro comunista e que não apenas seus destinos,
mas o do proletariado do mundo, dependiam de seu sacrifício. Alguns extratos do
Pravda – que Stalin sempre lia por completo, sem fazer seleção alguma, marcando
trechos ocasionais a lápis – são ilustrativos:
Um relatório coletivo dos trabalhadores de petróleo de Baku, discutido em 40 reuniões por cerca de 20 mil
empregados da indústria petrolífera e suplementado por 53 relatórios locais e 254 cartas de operários, diz:
“Graças ao esforço dos trabalhadores e especialistas, e sob a experimentada liderança do partido leninista, o
Plano Quinquenal para o petróleo foi completado em dois anos e meio.”
Magnitogorsk relatou:
Uma espécie completamente nova de equipe emergiu na seção de construção da oficina de alto-fornos – uma
equipe de escavação totalmente autofinanciada. A mudança para essa escavação autofinanciada deu excelentes
resultados, pois foram batidos recordes mundiais no carregamento de caminhões.
Da Tartária:
A colheita e a distribuição de grãos vêm sendo procedidas concomitantemente com o anúncio da preparação
do segundo congresso de Kolkhozniks de Toda a Tartária e da conquista do direito de incluir um
representante local na delegação que levará o relatório ao camarada Stalin. Ocupar o primeiro lugar no placar
de Toda a União é o slogan mais popular no kolkhozy da Tartária.
Tudo isso pode parecer a fé ingênua e de olhos radiantes em Stalin, por parte de
milhões de pessoas simples que construíram as bases do que temos hoje. No
entanto, não se pode deixar de admirar o indomável entusiasmo, o orgulho pelas
conquistas e a certeza de que o futuro estava em suas mãos. A força sem paralelo do
esforço heroico, o alto nível de espírito cívico e a fé na justiça e num futuro melhor,
mesmo mesclados com o culto à personalidade, derivaram da gigantesca energia
social liberada por Outubro de 1917. Aquela gente, aqueles criadores, normalmente
descritos por Stalin como “as massas”, por vezes como “as engrenagens”, são parte
da história soviética que não deve ser esquecida.
Ao mesmo tempo, os jornais publicavam matérias que hoje, com o que sabemos,
provocam calafrio. Em meados de julho de 1933, o Pravda disse que “os camaradas
Stalin e Voroshilov chegaram a Leningrado e, na companhia do camarada Kirov,
foram no mesmo dia visitar o canal mar Branco-mar Báltico. Depois de
inspecionarem as obras do canal e as instalações de hidroengenharia, navegaram pelo
mar Branco do porto de Soroka até Murmansk”. Duas semanas mais tarde, o
governo anunciou a abertura do Canal Stalin mar Branco-mar Báltico e a
condecoração dos que se destacaram na construção. Foram agraciadas oito pessoas
com a Ordem de Lenin: G.G. Yagoda, subchefe da OGPU; L.I. Kogan, chefe do
projeto do Canal do mar Branco; M.D. Berman, chefe do soviete de campos
corretivos de trabalhos forçados da OGPU; N.A. Frenkel, vice-chefe do projeto;
Ya.D. Rapoport, vice-chefe do projeto; S.G. Firin, chefe do campo corretivo de
trabalhos forçados dos mares Branco-Báltico; S.Ya. Zhuk, vice-chefe engenheiro do
projeto; e K.A. Verzhbitsky, vice-chefe da construção.43
Falando mais tarde ao XVII Congresso, Kirov diria: “Construir esse canal, em
tão pouco tempo e naquele local, foi realmente trabalho heroico, e temos que
creditá-lo aos nossos chekistas que supervisionaram a obra e, literalmente, fizeram
milagres.”44 Teria sido mais correto dizer que o milagre foi feito por centenas de
milhares de presos. Não havia falta deles. Depois da “deskulakização” de mais de um
milhão de lares e da política dura contra os “remanescentes das classes
exploradoras”, a OGPU tinha à sua disposição vastos recursos humanos para
construir bem mais que o Canal do mar Branco. A nominata dos condecorados com
a Ordem de Lenin não deixa dúvida de como e por quem o canal, que recebeu o
nome de Stalin, foi construído. A ideia de usar presos na economia não era nova.
Em meados da década de 1920, Trotsky, em sua proposta de trabalho militarizado,
aconselhou que “os elementos hostis ao Estado deveriam ser mandados em escala
maciça para os locais de construção do Estado proletário”. O conselho de um “líder
destacado”, evidentemente, não passaria despercebido pelo outro.
Não foi tão fácil para Stalin relatar sucessos na agricultura. Honestamente
falando, foram criadas mais de 200 mil fazendas coletivas e 5 mil estatais, mas tinha
que ser admitido que o desenvolvimento da agricultura fora “muitas vezes mais
lento que o da indústria”. Ele também reconheceu que “na realidade, o período sob
avaliação foi menos de crescimento rápido e decolagem que da criação de condições
para crescimento e decolagem no futuro próximo”.45
Tendo desbaratado, em dez anos desde a morte de Lenin, inúmeras “oposições”,
Stalin acabou ficando “sem trabalho”. Chegou a falar sobre isso: se, no XVI
Congresso, ele ainda teve que liquidar discípulos de vários agrupamentos, no atual
não havia a quem derrotar. Embora também naquela ocasião, “se baixarmos a
guarda”, disse em clara contradição, “os resíduos da ideologia renascerão na mente
de alguns membros do partido” e temos que estar prontos para esmagá-los. Mas
Stalin raramente “esmagava” ideologia, apenas aqueles que esposavam uma
ideologia. Tendo proclamado que o país caminhava para a criação de uma
“sociedade socialista sem classes”, ele tirou a conclusão imediata de que a ausência
de classes só seria alcançada “por meio do fortalecimento dos órgãos da ditadura do
proletariado, por intermédio da expansão da luta de classes”.46
Pode parecer que, acreditando no valor universal dos métodos repressivos e
vendo a ditadura do proletariado, sobretudo, como arma de coação, Stalin
simplesmente não percebeu quão ruinosa essa política poderia ser. Pelo contrário,
no “Congresso dos Vitoriosos”, pleiteou mais um aperto nos parafusos. Quanto a
democracia, ele entendia muito bem que qualquer acréscimo no poder do povo
corresponderia a uma redução em sua autoridade pessoal. Era autoritário por
natureza, um déspota com alguma pitada do oriental de seu passado distante. Em
1928, Bukharin o chamara de Genghis Khan.
Como secretário-geral do partido, ele tomou providências para que, entre os
1.225 delegados ao congresso, houvesse uns tantos representantes das várias facções,
“oposições” e “desvios”. Fazia tempo que eles já tinham se arrependido ou retratado,
e buscavam maneiras de se colocar à disposição de Stalin. Nem todos eram
oportunistas ou pessoas sem princípios. Muitos tinham se arrependido sinceramente
de seus erros insignificantes porque não queriam ficar fora do partido e também
apoiavam a linha da construção forçada do socialismo.
Stalin encorajou Kaganovich com especial desvelo para que garantisse que, entre
os delegados, houvesse alguns cuja retratação fortalecesse ainda mais o poder do
líder. Quando se leem, décadas depois, os discursos desses delegados, pode-se
imaginar a humilhação sentida por tais pessoas enquanto se penitenciavam, como
que em êxtase religioso, simplesmente para gratificar a vaidade de um homem.
Muitos delegados perceberam isso. Kirov foi um dos que disseram que esses antigos
oposicionistas “estão agora tentando [...] pegar o bonde da celebração geral,
procurando dançar a mesma música, apoiar nosso desenvolvimento generalizado.
[...] Bukharin, por exemplo. A mim parece que tenta entoar a mesma melodia, mas
desafina. Nada direi sobre o camarada Rykov ou sobre o camarada Tomsky”.47
Que disseram no congresso esses antigos membros do Politburo e discípulos de
Lenin?
Bukharin, o ex-favorito e teórico do partido:
Por sua brilhante aplicação da dialética de Marx-Lenin [sic], Stalin estava inteiramente certo quando
destroçou toda uma série de premissas teóricas do desvio de direita, formuladas sobretudo por mim. [...] É
dever de todo membro do partido congregar-se em torno do camarada Stalin como incorporação pessoal da
mente e da vontade do partido, como seu líder, teórico e prático.48
Quero descrever o papel do camarada Stalin nos primeiros anos seguintes à morte de Vladimir Ilyich. [...]
Como, na qualidade de líder e organizador de nossas vitórias, ele se sobressaiu naquela ocasião. Quero
descrever a maneira como o camarada Stalin imediatamente se destacou entre os líderes de então.49
E este fora o homem que sempre primara pela franqueza, por ser incorruptível e por
ter grande coragem cívica.
Tomsky, líder dos sindicatos:
É meu dever declarar diante do partido que só pelo fato de o camarada Stalin ser o mais coerente e o mais
brilhante dos pupilos de Lenin, só por ser o camarada Stalin o mais perspicaz e o de melhor visão, e porque
ele conduziu firmemente o partido pelo correto caminho leninista, esmagando-nos com punho forte, já que
melhor equipado, teórica e praticamente, para a luta contra a oposição – só por causa disso foram disparados
ataques contra o camarada Stalin.50
Tomsky tinha a reputação de ser um membro do partido que se aferrava até o fim
aos seus princípios.
Zinoviev, depois de repetidas derrotas, era de novo membro do partido:
Sabemos agora que na luta conduzida pelo camarada Stalin, travada exclusivamente num alto nível de
princípios e num elevado nível estratégico, não houve o mínimo laivo de qualquer coisa pessoal.
Quando fui readmitido no partido, Stalin me disse: “O que prejudicou você, e ainda prejudica aos olhos do
partido, não foram tanto os enganos sobre princípios, mas a falta de franqueza em relação ao partido que se
evidenciou em você com o passar dos anos.”
Ouviram-se então gritos partidos da assembleia de “Muito bem! Muito bem dito!”
Zinoviev prosseguiu:
Podemos hoje ver como os melhores dentre os camponeses avançados das fazendas coletivas empenham-se
para vir a Moscou, ao Kremlin, batalhando para ver o camarada Stalin, para vê-lo com os próprios olhos,
talvez tocá-lo com as próprias mãos, esforçando-se por receber as ordens diretamente dele, de modo a poder
levá-las de volta às massas.51
Só o temor de ser lançado para sempre no lixo político poderia induzir Zinoviev a
fazer tais declarações humilhantes. Da mesma forma, desapontando a própria
dignidade intelectual e suas consciências, Kamenev, Radek, Preobrazhensky,
Lominadze e outros, derrotados por Stalin na guerra de facções, manifestavam agora
submissão completa a ele.
Sentado na segunda fileira, seu lugar então costumeiro, Stalin olhou com
evidente indiferença quando Kamenev subiu à tribuna. Lembrou-se do modo com
que Kamenev, como presidente de vários congressos e sessões do Politburo,
costumava orientar o debate para a direção desejada fazendo observações
impacientes. Certa vez, quando a relação entre os dois já não era boa, Stalin tentava
listar da tribuna os erros da oposição quando Kamenev disparou: “Camarada Stalin!
Você está contando ovelhas: uma, duas, três? Seus argumentos não são mais
inteligentes que as ovelhas.” Ao que Stalin replicou: “Levando-se em conta que você
é uma das ovelhas...”
Que diria Kamenev agora? Naquele evento, sua retratação foi uma súplica
indecente de auto-humilhação:
Esta era em que vivemos e na qual ocorre o presente congresso é uma nova era [...] passará à história, sem
dúvida, como a era de Stalin, da mesma forma que a anterior foi a era de Lenin, e cada um de nós,
especialmente nós, tem a obrigação de resistir com todos os meios e com toda nossa energia à mais leve
oscilação de sua autoridade. [...] Quero declarar desta tribuna que o Kamenev, aquele que lutou com o
partido e sua liderança de 1925 a 1933, é um defunto político, que desejo progredir sem arrastar a velha pele
atrás de mim, se me perdoam a expressão bíblica. Vida longa para nosso, nosso líder e comandante, o
camarada Stalin!52
** Líder comunista da fracassada revolução soviética húngara. Refugiado na URSS desde 1920, ele tomou parte
na guerra civil, assumiu postos soviéticos e foi figura destacada no Comintern. Foi preso como trotskysta em
1938 e morreu num campo de prisioneiros em 1939.
*** Depois desse congresso, o secretário-geral não mais se apresentou candidato à reeleição. Aliás, para o fim de
sua vida, os documentos de Estado e do partido já não o listavam como secretário-geral.
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Stalin e Kirov
Você fala em sua “devoção” a mim. Talvez a expressão tenha escapado. Talvez... Mas se não escapuliu,
aconselho-o a descartar o “princípio” da devoção a indivíduos. Este não é o jeito bolchevique. Devote-se à
classe operária, ao partido dela, ao Estado. Isso sim é necessário e é bom. Mas não misture com devoção a
pessoas, que é mania supérflua de intelectuais.56
Belas palavras, mas, pena, não condiziam com sua prática. Antes de tudo, ele era um
grande hipócrita e, como regra, cercava-se de gente que não lhe trouxesse
problemas. Isso se aplicava principalmente aos assistentes, entre os quais
Nazaretyan, Bazhanov, Kanner, Maryin, Dvinsky, Tovstukha e Poskrebyshev. Stalin
era mais ligado a estes dois últimos.
Tovstukha podia adivinhar as intenções de Stalin ao menor sinal. Bem versado
em teoria, era capaz de formular uma ideia e detectar as falhas intelectuais num
documento. Stalin o apreciava particularmente pela devoção ao trabalho. Existe uma
anotação no arquivo de Stalin para Zinoviev, Kamenev e Bukharin, datada de 1923,
especificando que “Tovstukha não deseja tirar férias. Está registrada uma solicitação
minha de férias imediatas para o camarada Tovstukha que ele não levou para
apreciação”.57 Depois disso, Stalin admoesta Tovstukha por ter falado com
Kamenev sobre as férias que não tirou. No fim de tudo, o infeliz assistente ainda
teve que escrever uma carta a Stalin, com cópia para Kamenev, declarando que
“jamais falei ao camarada Kamenev ou a qualquer outra pessoa que desejava entrar
em férias, e que o camarada Stalin não deixou”.
Quase a título de piada, Kamenev rascunhou: “Confirmo que o camarada
Tovstukha jamais, em qualquer lugar, a qualquer tempo e de nenhuma forma falou
comigo sobre suas férias, mas disse que poderia desenvolver trabalho maior sobre
Lenin se começasse mais cedo seu expediente no comitê central. Rogo que não me
seja imputada a responsabilidade pela morte de Tovstukha.”58
B. Bazhanov trabalhou para Stalin pouco tempo. Oriundo de família com
histórico intelectual, logo conquistou o respeito do secretário-geral. A tarefa de
Bazhanov era preparar a ata das reuniões do Politburo, mas tinha dificuldade em
esconder suas próprias opiniões. Conseguiu fugir para a Pérsia em 1928 e de lá para
a Inglaterra. Durante algumas décadas, ganhou a vida publicando comentários sobre
o que sabia, mas quando o material escasseou, inventou bastante.
Durante muitos anos, Stalin manteve em sua equipe Lev Zakharovich Mekhlis,
que chegou, por breve tempo, a ser o chefe dos assistentes. Mekhlis nasceu em
Odessa, de início foi menchevique, entrou para o partido comunista em 1918 e
conheceu Stalin durante a guerra civil. Desempenhou importantes funções no
aparato e no Pravda, foi comissário do povo para Controle do Estado e chefe da
administração política principal do Exército Vermelho. Se bem que não fosse de
todo destituído de capacidade, seu modo de pensar se assemelhava, decididamente,
ao de um policial, e, com regularidade, era um dos que mantinham Stalin
“fielmente informado” sobre os outros líderes do partido. Não se pode dizer que
fosse homem de ideias. Certa vez pediu o autógrafo de Stalin em Sobre Lenin e
leninismo, que acabara de ser publicado. O secretário-geral escreveu: “Ao meu jovem
companheiro de trabalho, camarada Mekhlis, do Autor. 23.05.24.” Mekhlis jamais
abriu o livro: as páginas ressecadas e amareladas permaneceram intocadas.
A influência de Mekhlis deve ser medida não pelos cargos que ocupou, mas pela
atitude de Stalin em relação a ele. O assistente o acompanhava com frequência, e os
dois passavam juntos longos períodos. Stalin atribuiu-lhe missões altamente
confidenciais. Os arquivos contêm um volume inteiro de relatórios pessoais de
Mekhlis sobre diversos locais. Centenas de comentários, telegramas e mensagens em
código tratam de um único assunto: “o inimigo está tentando tomar o poder”, “falta
de cuidado por todo o lado”, “a benevolência está matando a causa”, “precisamos de
métodos mais rigorosos”. Talvez Stalin tenha confiado mais em Mekhlis que nos
outros. O assistente sabia farejar “inimigos” em todos os cantos, por mais absurdos
que pudessem parecer. Em julho de 1937, quando o conjunto Bandeira Vermelha
de canto e dança excursionava pelo leste, Mekhlis passou um telegrama em código
para Stalin:
Informo: a situação do conjunto Bandeira Vermelha é difícil. Concluí que um grupo de espiões e terroristas
tenta tomar o controle. Demiti no ato 19 pessoas. Fazendo uma investigação sobre ex-oficiais, filhos de
kulaks, elementos antissoviéticos. Convoquei o chefe da agência especial. Deve o conjunto continuar se
apresentando?59
Boa pergunta, pois metade do conjunto já estava presa. Esse era o homem que agia à
sombra de Stalin, desempenhando papel especial e sinistro.
No entanto, o assistente que desfrutou da maior confiança e, provavelmente, o
colaborador mais próximo de Stalin foi A.N. Poskrebyshev, que Khruschev chamou
no XX Congresso de “fiel escudeiro de Stalin”. Ex-assistente hospitalar e filho de
um sapateiro de Vyatka, trabalhou no aparato do comitê central por volta de 1922
e, a partir de 1928, passou a ser assistente de Stalin, encarregado de uma seção
especial. Já membro do comitê central e vice no Soviete Supremo, foi feito major-
general por Stalin durante a guerra. Poskrebyshev era conhecido por sua assiduidade
e extraordinária capacidade de trabalho. Sua filha mais velha, Galina Alexandrovna
Yegorova, disseme que seu pai trabalhava dezesseis horas por dia. Embora, pouco
antes da morte de Stalin, Beria tivesse conseguido afastar Poskrebyshev do Kremlin,
até o fim de sua vida ele permaneceu devotado servo do patrão. A propósito, sua
primeira esposa era parente distante de Trotsky, fato que, no fim, teve trágica
influência.
Sua filha disseme também que ele se arrependeu amargamente de não ter feito
um diário, mas calculou que uma tal indiscrição iria adicionar risco desnecessário à
sua já insegura existência.
Todas as informações que Stalin recebia, fosse qual fosse o caráter, vinham de
Poskrebyshev, que sabia tanto quanto o mestre o que acontecia no partido e no país
todo. Foi o funcionário perfeito: não raciocinava, não questionava e estava sempre
presente no trabalho. Sua tarefa nos corredores do poder era, no entanto, bem mais
significativa do que indica sua posição oficial, graças à distinção que Stalin lhe
conferia. Conquanto Poskrebyshev não fosse um homem cruel, as pessoas
procuravam agradá-lo, já que muito dependia de como e quando ele apresentasse o
assunto delas.
O antigo comissário do povo para as Ferrovias, I.V. Kovalev, que ao longo de
toda a guerra informava duas a três vezes por dia a Stalin sobre o movimento de
tropas, chamava Poskrebyshev de “castanha dura de quebrar”, sempre à disposição
das convocações de Stalin, a cabeça calva inclinada sobre um montão de papéis.
“Tinha memória de computador, a resposta exata para qualquer pergunta. Era uma
enciclopédia ambulante.”
Havia gente que Stalin classificava como de sua equipe, mas também outras,
como Malenkov, Kaganovich e Voroshilov, que se distinguiam por concordar
sempre com Stalin sobre qualquer assunto.
Voroshilov, por exemplo, tentou em tudo o que fez, por trivial que fosse, apoiar
o líder. Quando o destacado chefe militar I.E. Yakir, preso e condenado à morte,
escreveu a Stalin jurando ser absolutamente inocente dos crimes a ele imputados, a
resposta do secretário-geral foi um lacônico rabisco na pasta: “Ele é um patife e
pessoa venal”, ao que Voroshilov acrescentou: “Definição totalmente acurada.”60
Yakir, um dos mais talentosos líderes do exército, era subordinado de Voroshilov,
que, pessoalmente, o conhecia muito bem.
Enquanto Molotov, Kaganovich e Voroshilov eram pessoas próximas a Stalin
que faziam quaisquer de suas vontades, outros havia igualmente próximos que
conseguiram preservar um bom nome. Um deles foi Sergei Mironovich Kirov,
bolchevique com histórico leninista totalmente dedicado à causa, o tipo de homem
simples e de respostas prontas. Onde trabalhava, era apreciado como líder acessível e
afável. Quando Stalin o enviou ao Azerbaijão, seu dossiê do partido registrou:
“Estável em todos os aspectos [...] Trabalhador vigoroso [...] Mais que persistente
no cumprimento de suas atribuições. Equilibrado e com grande tato político [...]
Excelente jornalista [...] Orador magnífico, de primeira classe...”61
O partido na Transcaucásia guardou boas lembranças dele. Em seguida ao XIV
Congresso, em que a “nova oposição” tentou usar a organização partidária de
Leningrado como base de apoio, o comitê central enviou Kirov à segunda capital
para servir como secretário da cidade e dos comitês regionais. Segundo seu biógrafo
Yu. Pompeyev, um dos amigos mais íntimos de Kirov, Sergo Ordzhonikidze,
escreveu o seguinte ao comitê regional:
Caros amigos. A rixa de vocês nos custou muito: ela nos tirou o convívio com o camarada Kirov. Grande
perda para nós, mas que lhes dará a força de que vocês precisam. Tenho certeza de que tudo será resolvido
para vocês dentro de poucos meses. Kirov é um camponês excepcionalmente bom, mas não conhece
ninguém além de vocês. Não tenho dúvidas de que o cercarão com amigável confiança. Almejo-lhes
completo sucesso.
P.S. Favor cuidar bem de Kirych,* pessoal, senão ele ficará perambulando sem teto e sem o que comer.62
Stalin conhecia Kirov desde outubro de 1917. É difícil saber o que o atraiu naquele
homem de sorriso constante, saudavelmente vigoroso. Normalmente, passavam
juntos as férias, suas famílias se davam, embora, de modo geral, trabalhassem a
considerável distância um do outro. Numa nota para Ordzhonikidze, escrita em
Sochi, Stalin perguntou sobre o estado de saúde de Kirov, uma raridade de fato, já
que Stalin não se interessava pela saúde de ninguém, só pela própria:
Caro Sergo
Então, o que está Kirov fazendo por aí? Tomando a água medicinal Narzan para a úlcera? Essa beberagem
pode acabar com vocês. Qual foi o impostor que “receitou” isso?
Saudações à Zina
Cumprimentos a todos da Nadya. Do amigo Stalin
Sochi, 30 de junho de 1925.63
Provavelmente, não existia outra figura a quem Stalin dedicasse tanta atenção,
afeição mesmo, como Kirov. Gostava daquela pessoa aberta e descomplicada.
Sempre que Kirov aparecia em algum lugar logo muita gente o rodeava. Ele era a
vida e a alma do partido. Comparado com o inescrutável Molotov, o carrancudo
Kaganovich, ou com o bajulador Voroshilov, Kirov era alguém com quem era
possível manter uma relação autenticamente humana.
Stalin deu exemplares de seus livros com dedicatórias a muito poucas pessoas.
Kirov, no entanto, recebeu um exemplar do Sobre Lenin e o leninismo com uma
mensagem que ninguém poderia supor que o secretário-geral fosse capaz de
expressar: “Para S.M. Kirov, meu amigo e amado irmão, do autor. 23.05.24. Stalin”
Todo ditador tem suas fraquezas. Talvez Stalin gostasse do sorriso de Kirov, de
sua face russa jovial, de sua falta de malícia, sua obsessão pelo trabalho. Certa vez,
num domingo, quando jogavam boliche na dacha de Stalin – o secretário-geral
tinha um ajudante de cozinha chamado Khorvosky como parceiro, e Kirov jogava
com o general Vlasik –, Stalin perguntou ao seu convidado: “Do que você mais
gosta, Sergei?”
Kirov pareceu surpreso, mas respondeu: “Um bolchevique deve gostar mais do
trabalho que de sua esposa!”
“Mas o que mais?”
“Bem, ideias, claro”, disse Kirov falando sério.
Stalin balançou o braço num gesto vago, mas não perguntou mais nada.
Provavelmente, conjeturando como se podia “gostar de uma ideia”. Será possível
que Kirov tivesse dito aquilo só para impressionar? Contudo, Stalin sabia muito
bem que Kirov não era homem de dissimulações. Sabia também que Kirov, mais do
que ninguém, podia exercer influência, até sobre ele. O caso Ryutin fora um bom
exemplo. Em 1918, M.N. Ryutin comandara o distrito militar de Irkutsk, em 1920,
fora secretário distrital do partido em Irkutsk, e na segunda metade da década de
1920, secretário do comitê partidário do distrito de Krasnaya Presnya, em Moscou,
membro do conselho editorial do Krasnaya Zvezda (“Estrela Vermelha”) e um dos
candidatos a membro do comitê central. Depois, foi afastado das funções. Em 1932,
disseram a Stalin que Ryutin estava fazendo circular um longo documento
intitulado “A todos os membros [do partido]”, cujo alvo era primordialmente
Stalin, descrito como nada menos que um ditador, com uma arma antileninista na
mão. Stalin não só demandou ao Politburo a expulsão do partido de Ryutin como
também a pena de morte. Foi a primeira vez que tentou decidir o destino de alguém
antes do resultado de um julgamento. O Politburo ficara em silêncio. Diante dos
membros parecia estar uma tentativa de Ryutin de criar uma “organização
contrarrevolucionária”, mas pena de morte... A liderança do partido ficou confusa.
Naquele ponto, Kirov se agigantou: “Não devemos fazer isso. Ryutin não é um caso
sem esperança, simplesmente saiu dos trilhos. [...] Quem sabe quantas mãos teriam
escrito aquela carta. [...] Seremos mal entendidos...” Por alguma razão, Stalin
concordou imediatamente. Ryutin pegou dez anos e faleceu em 1938. Todavia,
Stalin não deixou de notar que Kirov expressara sua opinião corajosamente, sem
mesmo cogitar se deveria consultá-lo primeiro.
Quando P.P. Postyshev, presidindo o XVII Congresso, anunciou: “Com a
palavra o camarada Kirov”, o salão explodiu numa ovação. Todos se levantaram, até
Stalin. A assembleia aplaudiu aquele outro “favorito do partido” por longo tempo.
Só Stalin tinha sido festejado assim. O discurso de Kirov foi extremamente vivaz e
informativo e, como todos os outros no congresso, generosamente salpicado de
louvores ao secretário-geral. Neste particular, Kirov até sobrepujou muitos dos
tribunos. Lamentavelmente – e isso deve ser entendido – embora sempre exista a
oportunidade para que se exercite a consciência, por vezes, ou quase sempre, só se
pode fazê-lo ferindo as normas do comportamento comum. E quase sempre no
limite de um ato cívico. Nem Kirov nem ninguém estava preparado para esse ato no
congresso onde, aos olhos dos delegados e com a ajuda deles, o culto à personalidade
de Stalin era uma realidade.
Não obstante, como vimos, na relativa privacidade do voto secreto, as eleições
para os cargos mais elevados do partido deram uma desagradável surpresa a Stalin.
Seu triunfo foi bastante ofuscado, mas ele não deu mostras de desapontamento;
tinha a capacidade de manter uma máscara de equanimidade nas situações mais
críticas, pois aprendera havia muito tempo que isso causava maior impressão no
povo do que o alvoroço, a energia ostensiva e a imponente pose de “líder”. Tendo
feito a leitura de que um significativo número de delegados não estava satisfeito por
ele ter se tornado um líder autocrático, manteve uma calma exterior. Depois daquele
momento, tudo correu segundo o planejado. No pleno do comitê central que teve
lugar depois do congresso, Kirov foi eleito membro do Politburo e do Orgburo, e
secretário do comitê central, permanecendo como secretário da organização do
partido em Leningrado. Stalin pensava em transferi-lo de Leningrado para Moscou,
mas mudou de ideia.
A partir do XVII Congresso, em janeiro de 1934, a carga de trabalho de Kirov
aumentou. Sua responsabilidade como membro do comitê central era com a
indústria pesada e a madeireira, e, dessa forma, foram muitas as oportunidades para
que fosse a Moscou. Como antes, Stalin telefonava para ele nas ocasiões de suas
meteóricas visitas e os dois se encontravam para debater as questões do momento.
Tudo parecia ter voltado à situação anterior e indicava que Kirov ainda era “amigo e
amado irmão”. Podia ser que a atitude de Stalin tivesse esfriado, que a relação dos
dois assumisse caráter mais oficial, e que o secretário-geral chegasse a repreender
Kirov diversas vezes por algum engano trivial ou outro, mas nem a documentação
disponível nem as pessoas que entrevistei, e que bem conheciam os dois,
confirmaram tal versão. Por outro lado, Stalin era mestre em disfarçar seus
sentimentos e intenções.
A notícia de que Kirov fora assassinado no Instituto Smolny de Leningrado, em
1º de dezembro de 1934, causou grande surpresa. Em 3 de dezembro, o relatório de
uma investigação preliminar apontou Leonid Vasilyevich Nikolaev, nascido em
1904 e ex-empregado da Inspetoria de Operários e Camponeses de Leningrado,
como o assassino.64
Eram decorridos apenas dois dias desde que Kirov e outros delegados de
Leningrado tinham retornado do pleno, onde fora feito o anúncio importante e
bem-vindo de que o racionamento de pão e de outros alimentos ia terminar. Na
viagem de trem, foi animadamente debatida a medida de há muito esperada. Toda a
população ficaria aliviada com a notícia! Houve troca de opiniões também sobre a
peça Dias dos Turbins, de Bulgakov, a que tinham assistido, e debates sobre o
próximo encontro do grupo partidário de Leningrado, marcado para 1º de
dezembro. De um modo geral, Kirov chegou em casa entusiasmado e pronto para
retomar o trabalho.
No dia da reunião com o grupo do partido, Kirov terminou seu relatório e se
dirigiu ao Smolny. Passou pelo corredor, trocando comentários e cumprimentos
com diversas pessoas, virou à esquerda e entrou numa estreita passagem que levava
ao seu escritório. Um homem de aparência comum caminhou na sua direção.
Quando Kirov chegou à porta do escritório, dois tiros foram ouvidos. As pessoas
acorreram e o encontraram estirado no chão de bruços; o assassino tremia
histericamente ainda com a arma na mão.
Duas horas mais tarde, Stalin, Molotov, Voroshilov, Yezhov, Yagoda, Zhdanov,
Agranov, Zakovsky e alguns outros estavam a caminho de Leningrado em trem
especial. Ao chegarem na estação, Stalin ofendeu com palavras de baixo calão o
pessoal da NKVD local que fora recebê-lo e chegou a dar uma bofetada em
Medved, o chefe da agência. Medved e seu assistente, Zaporozhets, foram em
seguida transferidos para o Extremo Oriente e, em 1937, executados. De acordo
com alguns relatos, o próprio Stalin conduziu o primeiro interrogatório de Nikolaev
na presença daqueles que o tinham acompanhado de Moscou. De imediato, ficou
claro que havia muitos aspectos misteriosos no crime. Khruschev aludiu a isso no
XX Congresso, quando descreveu as circunstâncias da morte de Kirov como
enigmáticas e que ainda precisavam ser adequadamente examinadas. Disse haver
motivo para pensar que o assassino, Nikolaev, tivera ajuda de um dos seguranças de
Kirov. Um mês e meio antes do assassinato, Nikolaev fora preso por
comportamento suspeito, mas logo libertado sem mesmo ter seu apartamento
revistado. Também foi altamente suspeito, continuou Khruschev, o fato de, em 2 de
dezembro, um chekista, guarda-costas de Kirov, ter morrido num acidente de carro
quando era conduzido para interrogatório, acidente em que nenhum dos outros
passageiros sofreu qualquer ferimento. Depois do assassinato, os chefes da NKVD
de Leningrado foram sentenciados a penas leves e, depois, fuzilados em 1937.
Khruschev conjeturou que os chefes foram mortos para encobrir qualquer pista que
pudesse levar aos verdadeiros cabeças do atentado. Borisov, o chekista que morreu
no acidente, era o chefe dos seguranças de Kirov e, segundo algumas fontes, alertara
Kirov sobre a possibilidade de uma tentativa de assassinato. Fosse como fosse, o
homem que prendera Nikolaev duas vezes por seguir Kirov portando uma arma, e
que depois foi solto por ordem de alguma autoridade, não mais existia.
Os arquivos que pesquisei não fornecem outras indicações para que se possa ser
conclusivo a respeito do caso Kirov. O que fica patente, no entanto, é que o
assassinato não foi executado por ordens de Trotsky, Zinoviev ou Kamenev, como
foi logo a seguir publicado na versão oficial. Pelo que sabemos de Stalin, por certo
houve um toque seu no evento. A remoção de duas ou três camadas de testemunhas
indiretas leva sua marca registrada.
O julgamento de Nikolaev foi extremamente rápido. Apenas 27 dias após a
ocorrência, foi publicada a sentença oficial, descrevendo Nikolaev como membro
ativo de uma organização trotskysta-zinovievista clandestina. A declaração foi
assinada pelo vice-procurador da URSS, A.Ya. Vyshinsky, e pelo investigador
especial L. P. Sheinin. Como era de se esperar, todos os envolvidos no atentado,
inclusive Nikolaev, foram fuzilados.
Mas, por que “como era de se esperar”? Porque no próprio dia do assassinato,
por iniciativa de Stalin (e sem ser discutido pelo Politburo), foi editado um decreto
governamental introduzindo certas emendas no Código Penal. Stalin estava com
tanta pressa que não houve “tempo suficiente” até para que o decreto fosse assinado
por Kalinin, presidente do Comitê Executivo Central – ou seja, o chefe de governo.
O documento, incorporando o credo do mando arbitrário, foi assinado pelo
secretário do comitê executivo A.S. Yenukidze e estabeleceu que:
Diversos casos que estavam sendo revistos em Moscou e em outras regiões foram
acelerados sob a nova regulamentação. Como Kirov foi assassinado em Leningrado e
a investigação vinculou o crime aos zinovievitas, uma grande quantidade de
“conspiradores” foi presa no final daquele mês e levada a julgamento em janeiro de
1935. Entre eles estavam Zinoviev e Kamenev, Yevdokimov, Bakaev, Kuklin,
Gessen e outros. Nenhuma prova foi conseguida que ligasse os acusados ao crime.
Depois do XVII Congresso, Zinoviev, a despeito de não ter sido reeleito para o
comitê central, reviveu de alguma forma e pensou que a tempestade havia passado e
que dias melhores viriam. Chegou a escrever e publicar um artigo no Bolshevik
intitulado “O significado internacional da última década”. Seria seu último.
Quando menos esperava, foi preso. Depois que leu nos jornais o relatório sobre o
assassinato, juntamente com os comentários sobre os “canalhas trotskystas-
zinovievistas”, sofreu total colapso interno. Soube então que o pior o esperava.
Interrogado pela NKVD e de novo nas mãos do procurador, teve que “confessar”
que, “de uma forma geral”, o antigo grupo antipartido podia ter alguma
“responsabilidade política” pelo que havia ocorrido. E isso foi suficiente. Não houve
necessidade de argumentação ulterior ou de “provas judiciais”. Estava acabado o
primeiro ensaio dos julgamentos políticos. Zinoviev recebeu dez anos, Kamenev,
cinco, e o restante foi condenado a sentenças semelhantes, todas com aprovação
antecipada de Stalin. Desta maneira, continuou o drama dos dois antigos camaradas
de Lenin. Presunçosos, inconsistentes, provavelmente insinceros no
arrependimento, perturbados, tudo isso eles podiam ser, mas certamente não eram
criminosos.
23 de janeiro de 1935
A. Vyshinsky V. Ulrikh
Ao camarada Orakhelashvili,
Recebi sua carta.
1. O comitê central não pretende (e não tem razão para isso) levantar essa questão de seu trabalho no IMEL
[o Instituto Marx-Engels-Lenin]. Você ficou superexaltado e decidiu levantá-la. Pura perda de tempo. Fique
no Instituto e continue fazendo seu trabalho.
2. Uma carta ao Pravda poderia ser publicada, mas não acho satisfatório o texto de sua carta. Em seu lugar,
eu retiraria dela toda a sua “beleza polêmica” e todas as “excursões” à história, e mais os “protestos decisivos”,
e diria simples e brevemente que tais e tais enganos foram cometidos, mas que as críticas do camarada Beria a
tais enganos foram, digamos assim, demasiado duras e não se justificam pela natureza dos enganos. Ou
alguma coisa nesta linha. 08 VIII 35 I. Stalin68
Todos os povos da União Soviética veem Stalin como seu amigo, seu pai e líder.
Stalin, em sua simplicidade, é o amigo do povo.
Stalin, em seu amor pelo povo, é o pai do povo.
Stalin, em sua sabedoria como líder da luta dos povos, é o líder dos povos.10
1. Os livros devem ser organizados por assunto, não por autor: a) filosofia; b) psicologia; c) sociologia; d)
economia política; e) finanças; f) indústria; g) agricultura; h) cooperativas; i) história russa; j) história de
outros países; k) diplomacia; l) comércio exterior e interno; m) assuntos militares; n) questões nacionais; o)
congressos e conferências do partido, do Comintern e outros (com resoluções, sem decretos e sem códigos
jurídicos); p) posição dos operários; q) posição dos camponeses; r) Komsomol (tudo o que existe em edições
separadas); s) história da revolução em outros países; t) 1905; u) Revolução de Fevereiro de 1917; v)
Revolução de Outubro de 1917; w) Lenin e leninismo; x) história do RKP e do Comintern; y) sobre
discussões no RKP (artigos e panfletos); z) sindicatos; aa) literatura criativa; ab) crítica artística; ac)
periódicos políticos; ad) periódicos científicos; ae) diversos dicionários; af) memórias.
2. Livros a destacar da lista acima e arrumar em estantes separadas: a) Lenin; b) Marx; c) Engels; d) Kautsky;
e) Plekhanov; f) Trotsky; g) Bukharin; h) Zinoviev; i) Kamenev; j) Lafargue; k) Luxemburgo; l) Radek.
3. Todos os demais livros devem ser classificados por autor (exceto quaisquer livros didáticos, revistas
populares, literatura antirreligiosa de baixa qualidade, e assim por diante, que devem ser colocados num
lado).12
Levando-se em conta que isso foi rabiscado quase sem reflexão, e também em
função da “cultura de livro” daquela época, uma certa amplitude de visão fica aqui
claramente demonstrada. No topo da pirâmide, ele pôs os fundamentos do
marxismo, a história e diversas áreas específicas do conhecimento diretamente
relacionadas com a atividade política e com a luta contra as oposições.
A execução de ideias por meio de ação e de comportamento dá certa medida de
um intelecto. A biblioteca de Stalin e as marcas que deixou nela, portanto, oferecem
algum material a respeito.
Muitos dos livros do Kremlin, da dacha ou do apartamento, alguns dos quais
com o ex-líbris “Biblioteca nº... I.V. Stalin”, apresentam anotações, marcas e
comentários à margem. Obras coligidas de Lenin, por exemplo, está repleto de
trechos sublinhados, tiques e pontos de exclamação nas margens. Fica também claro
que certas passagens foram examinadas mais de uma vez, já que marcadas em
vermelho, azul e lápis comum. Os tópicos que parecem ter despertado maior
interesse são as opiniões de Lenin sobre ditadura do proletariado, sua luta com os
mencheviques e os socialistas revolucionários, e seus discursos nos congressos do
partido.
Dos escritos de contemporâneos seus, Stalin consultou com mais frequência os
de Bukharin e os de Trotsky. Por exemplo, o panfleto de Bukharin “A técnica e a
economia do moderno capitalismo”, publicado em 1932, está coberto de marcas do
lápis vermelho de Stalin, em especial o que o autor diz sobre forças da produção e
relações na produção. O livro de M. Smolensky, Trotsky, publicado em 1921 em
Berlim, está sublinhado nos trechos em que o autor critica seu arqui-inimigo:
“Trotsky é irritadiço e impaciente”, tem “uma natureza imperial que adora
dominar”, “gosta do poder político”, “Trotsky é um genial aventureiro político”.13
De todas as fontes disponíveis, Stalin buscava munição contra seus rivais, tais como:
o panfleto de Trotsky “Terrorismo e comunismo”, de 1920; “A guerra e a crise do
socialismo”, de Zinoviev; “N.G. Chernyshevsky”, de Kamenev; “Principais estágios
do desenvolvimento do Partido Comunista na Rússia”, de A. Bubnov; “Sobre a
história da luta do bolchevismo contra o luxemburguismo”, de I. Narvsky; “Sobre a
estabilização do capitalismo”, de Jan Sten, e outros. Tudo que se relacionava com
“luta” parecia despertar sua atenção.
Ele teve a vida toda um interesse por literatura histórica, sobretudo biografias de
imperadores e czares. Fez um estudo cuidadoso do Curso de história russa, de I.
Bellyarminov, de História do Império Romano, de R. Vipper, de Ivan, o Terrível, de
Alexei Tolstoy e de uma miscelânea intitulada Os Romanovs. Todos os livros
didáticos de faculdades e universidades por ele colecionados nos anos 1930 e 1940
ostentam marcas de minucioso exame.14 Evidentemente, viu na história russa, como
interpretada por ele, um meio para formar a espécie de opinião pública que aceitaria
seu mando autoritário.
Os assistentes assinalavam tudo que achavam pudesse interessá-lo nos periódicos
sérios e, na pausa de trinta a quarenta minutos que diariamente fazia na condução
dos negócios oficiais, ele passava os olhos pelos artigos e folheava os últimos
romances publicados. Ocasionalmente, acionava a campainha para chamar um
assistente e pedia ligação com um escritor ou com o chefe de um dos sindicatos de
criação, de modo a poder dar pessoalmente congratulações ou fazer comentários.
Por vezes, pegava a caneta para fazê-lo. Depois de ler Nas estepes da Ucrânia, de
Korneichuk (1940), por exemplo, logo escreveu o seguinte bilhete:
Respeitado Alexander Yevdokimovich
Li o seu livro Nas estepes da Ucrânia. Trata-se de obra maravilhosa, artisticamente inteira, jovial e alegre. Só
me preocupo se não é um pouco alegre demais. Existe o perigo de o excesso de alegria numa comédia desviar
a atenção do leitor em relação ao conteúdo.
Aliás, inseri algumas palavras à página 68. Elas tornam as coisas mais claras. Cumprimentos!
I. Stalin
1 - “a taxa seria então cobrada não em função do número de cabeças de gado, mas sim da área do trato de
terra do kolkhoz...”
2 - “crie quanto gado quiser no kolkhoz, a taxa permanecerá a mesma...”15
Bukharin destruiu a si mesmo quando alegou que a literatura marxista não tolerava a palavra “tributo”. Ele se
irritou e se surpreendeu com o fato de o comitê central e o marxismo em geral permitirem-se o uso da
palavra “tributo”. Mas, qual o motivo de tanta surpresa, se se pode mostrar que, há muito tempo, foram
conferidos direitos civis a esta palavra nos artigos de um marxista, ninguém menos que o camarada Lenin?
[Pausa] A não ser que Bukharin ache que Lenin não preenche os requisitos de marxista?
Pensaria você talvez que o camponês médio está mais próximo do partido que a classe operária? Então você é
um marxista falsificado. Se é possível falar em “tributo” em relação à classe operária – a classe operária que o
nosso partido representa –, então por que não se pode dizer o mesmo a respeito do camponês médio que, no
fim das contas, é nosso aliado?20
A questão original, sobre o uso da palavra “tributo”, foi assim enterrada sob uma
típica troca de opiniões sobre “ortodoxia”.
Os infindáveis debates dos anos 1920 sem dúvida afiaram o intelecto de Stalin
como polemista. Na verdade, ele em geral recorria a um truque que encurralava o
oponente: apresentava-se como defensor de Lenin, argumentando como se só ele
soubesse como interpretar o líder corretamente. Em quase todos os debates,
encontrava de imediato uma citação ou expressão adequadas de Lenin, quase sempre
de um contexto inteiramente diverso. Há muito entendera que, armando-se com
citações de Lenin, tornar-se-ia praticamente invulnerável. Certa vez, quando debatia
questões do Comintern, Zinoviev, cujas relações com Stalin já estavam abaladas,
provocou: “Você usa citações de Lenin como um certificado de sua própria
infalibilidade. Devia procurar os significados!” Stalin disparou de volta: “E o que há
de mal em ter um ‘certificado’ de socialismo?”
No fim, o pensamento rígido, a agressividade, a militância e a rudeza permitiram
que Stalin levasse vantagem sobre seus oponentes. É estranho, mas quanto mais sutis
e frequentemente mais convincentes eram os argumentos de Trotsky, Zinoviev,
Kamenev e Bukharin, menos apoio encontravam entre os delegados no salão,
enquanto as invectivas abusivas, cruéis e quase sempre primitivas de Stalin,
estreitamente ligadas ao seu pleito de estar “defendendo Lenin”, a linha geral do
partido, a unidade do comitê central, e assim por diante, eram rapidamente
absorvidas pelos membros partidários. Possuidor de uma mente pragmática, ele não
se preocupava muito, ao contrário de Trotsky, com o estilo elegante; ao contrário de
Zinoviev, com os aforismos retóricos; ou de Kamenev, com a racionalidade
intelectual; ou de Bukharin, com a argumentação teórica. A principal arma de Stalin
era acusá-los de querer uma revisão de Lenin, enquanto ele resguardava o líder. E, a
partir do início dos anos 1930, esta passou a ser a versão oficial.
O modo de pensar de Stalin era esquemático. Como vimos, ele gostava de ter
tudo no devido “escaninho” e era levado a reduzir as ideias à sua forma mais simples
e a popularizá-las quase ao ponto de pastiches primitivos. Se os oponentes
divulgavam suas proposições de forma diferente, ele os ofendia pela “abordagem não
marxista”, pela “demonstração de tendências pequeno-burguesas” ou pelo
“escolasticismo anárquico”. Seus relatórios e discursos eram sempre estruturados
dentro de uma moldura rigorosa de enumerações, particularidades, características,
níveis, direções, tarefas. Esta foi uma das razões pelas quais seus trabalhos eram
populares, uma vez que, acessíveis pela simplicidade, podiam ser captados pelo
povo. Todavia, ao mesmo tempo em que tal modo de pensar talvez pudesse ter
facilitado a popularização das ideias de Stalin, ele algemou severamente a capacidade
criativa do povo, pois não demandava análise profunda ou entendimento da
complexidade e interdependência do mundo.
É provável que Stalin não tenha pensado, como Nero, que o estudo da filosofia
“era um estorvo para o futuro governante”, contudo, parece que ele foi
intelectualmente incapaz de conseguir o menor domínio sobre o assunto. O ponto
mais fraco de seu intelecto era a impossibilidade de entender a dialética. Ele tinha
consciência disso, já que devotou muito tempo e esforço na tentativa de enriquecer
seu conhecimento filosófico. Por recomendação dos diretores do Instituto dos
Professores Vermelhos, convidou, em 1925, Jan Sten, filósofo de renome entre os
Velhos Bolcheviques, para ministrar-lhe aulas particulares sobre dialética. Sten, que
era subdiretor do Instituto Marx-Engels e foi, mais tarde, executivo do aparato do
comitê central, fora delegado em diversos congressos do partido, era membro da
CCC, e homem de opinião independente. Nomeado tutor filosófico de Stalin, Sten
planejou um programa especial que incluía o estudo de Hegel, Kant, Feuerbach,
Fichte e Schelling, bem como de Plekhanov, Kautsky e Bradley. Duas vezes por
semana, numa hora determinada, ia ao apartamento de Stalin e tentava elucidar seu
pupilo nos conceitos hegelianos da substanciação, da alienação, da identidade entre
realidade e razão. Tentava, em outras palavras, passar-lhe um entendimento do
mundo real como manifestação de uma ideia. A abstração irritava Stalin, mas ele se
controlava, sentava-se e ouvia a voz monótona de Sten, perdendo por vezes a
paciência e o interrompendo com perguntas tais como “O que tudo isto tem a ver
com a luta de classes?” ou “Quem emprega toda essa bobagem na prática?”
Lembrando a seu aluno que a filosofia de Hegel, como a de outros pensadores
germânicos, se tornara uma das fontes do marxismo, Sten prosseguia imperturbável.
“A filosofia de Hegel”, afirmava ele, “é, com efeito, uma enciclopédia de idealismo.
O método dialético é desenvolvido em seu sistema metafísico com alto grau de
genialidade. Marx disse que Hegel pusera a dialética de cabeça para baixo, e que era
hora de pô-la em pé, para que fosse vista racionalmente.” Visivelmente agastado,
Stalin interrompia: “Mas o que tudo isso tem a ver com a teoria do marxismo?”
Sten, pacientemente, tentava resumir e explicar a sutileza da filosofia de Hegel ao
seu pupilo pouco perceptivo, porém, apesar de seus melhores esforços, Stalin não se
mostrava capaz de captar as noções básicas daquela filosofia, como testemunharam
seus próprios “trabalhos filosóficos”. Parece que tudo o que restou daquelas lições
foi a hostilidade ao professor. Juntamente com N. Karev, I.K. Luppol e com outros
filósofos que eram discípulos do acadêmico A.M. Deborin, Sten foi declarado um
teórico “adulador de Trotsky” e, em 1937, acabou preso e executado. A mesma
sorte parecia destinada a Deborin, que fora muito ligado a Bukharin no final dos
anos 1920 e que, em 1930, foi rotulado por Stalin como “idealista militante
menchevique”. No entanto, ele foi poupado, se bem que proibido de desenvolver
qualquer trabalho científico ou público.
Um encontro da Academia Comunista teve lugar em outubro de 1930 para
debater “as diferenças no front filosófico”. Na realidade, foi uma longa condenação
de Deborin por sua “subestimação do estágio leninista no desenvolvimento da
filosofia marxista”. Deborin apresentou uma valente defesa, mas Milyutin, Mitin,
Melonov e Yaroslavsky “firmaram” sua culpa, juntamente com as de Sten, Karev e
Luppol, por “subestimação da dialética materialista”. As paixões no mundo
acadêmico continuaram a fervilhar depois daquele encontro. Os acadêmicos não
podiam aceitar o emprego de métodos policiais em seu trabalho. A filosofia foi,
provavelmente, a primeira vítima da “pesquisa científica” stalinista. O secretário-
geral deixou bem claro que só deveria haver um líder nas ciências sociais e que este
era o papel do líder político, quer dizer, dele mesmo.
Dois meses mais tarde, em dezembro de 1930, ele falou sobre “o front filosófico”
no birô do partido do Instituto de Professores Vermelhos, cujo diretor era Abram
Deborin. O discurso é exemplo eloquente de seu pensamento filosófico, do nível de
sua racionalidade e, simplesmente, de sua falta de tato. De acordo com a ata da
reunião, ele disse:
Temos que virar de pernas para o ar e revolver o monte de estrume que se acumulou na filosofia e nas
ciências sociais. Tudo o que foi escrito pelo grupo de Deborin precisa ser destruído. Sten e Karev podem ir às
favas. Sten jacta-se bastante, mas é apenas um pupilo de Karev. Sten é um rematado preguiçoso. Só o que
sabe fazer é falar. Karev tem uma cabeça enorme e pavoneia-se por aí como uma bexiga inflada. Na minha
opinião, Deborin é caso perdido, mas deve permanecer como editor do periódico**** para que tenhamos
alguém para derrotar. O conselho editorial ficará com dois fronts, mas teremos a maioria.
As perguntas começaram a chover tão logo Stalin parou de falar: “Pode-se comparar
a batalha sobre a teoria com o desvio político?”
Stalin respondeu: “Não só pode, deve, sem dúvida.”
“E que dizer dos ‘esquerdistas’? Você lidou com os ‘direitistas’.”
“O formalismo vem surgindo sob camuflagem esquerdista”, replicou Stalin.
“Anda servindo seus pratos com tempero esquerdista. Os jovens têm um fraco pelo
esquerdismo. E estes senhores são bons cozinheiros.”
“Em que o Instituto deve se concentrar na área da filosofia?”
“Em derrotar, esta é a questão principal”, replicou Stalin. “Derrotar em todos os
lados, e onde não tenha havido derrota antes. Os deborinitas encaram Hegel como
um ícone. Plekhanov tem que ser desmascarado. Ele sempre olhou com certo
desdém para Lenin. Até Engels não está correto em tudo. Existe um lugar neste
comentário sobre o Programa Erfurt a respeito do crescimento dentro do
socialismo. Bukharin tentou utilizá-lo. Não seria mau se pudéssemos implicar
Engels em algum lugar dos escritos de Bukharin.”21
Dessa forma, Stalin, que não sabia praticamente nada de filosofia, “instruía” os
filósofos. A questão principal era “derrotar”. Quanto à filosofia marxista, explicou o
que deveria constar numa seção especial do Curso resumido: uma série de frases
curtas e incisivas dividindo a filosofia em diversas características básicas, como
muitos soldados cobertos e alinhados. Talvez esse “ABC filosófico”, mais algumas
outras fontes, ajudassem na campanha contra o desconhecimento, mas depois que
apareceram os trabalhos de Stalin, a filosofia murchou, pois ninguém mais teve
coragem de escrever coisa alguma sobre o assunto. Não se passara um mês e o
comitê central já aprovava uma resolução sobre o periódico Pod znamenem
marksizma. Os adeptos de Deborin, que estavam congregados em torno do editor
do periódico, foram alcunhados “grupo de mencheviques idealistas”.
A.P. Balashov disseme que Stalin absorvia uma quantidade colossal de
informações diariamente, inclusive relatórios, telegramas, cifras e cartas, e que, em
quase todos os documentos, ele apunha instruções ou comentários expressando
concisamente sua atitude e, assim, estabelecendo decisões definitivas sobre grande
variedade de questões. Depois de examinar por alto uma pilha de cartas e de nelas
escrever seus comentários habitualmente lacônicos – tais como “Grato por seu
apoio”, “Ajudem este homem”, “Bobagem” –, ele quase sempre selecionava uma ou
duas e preparava respostas com alguma substância. Por exemplo, em 1928, um
veterano bolchevique que vivia em Leningrado escreveu perguntando sobre o perigo
da restauração do capitalismo e se havia quaisquer desvios no Politburo. Stalin
destacou uma folha de um bloco de anotações e escreveu com sua letra grande e
clara:
Camarada Shneer,
O perigo da restauração do capitalismo existe. O desvio de direita subestima a força do capitalismo. E a
esquerda nega a possibilidade da construção do socialismo em nosso país. Eles propõem executar seu
fantasioso plano de industrialização ao custo de uma divisão com os camponeses.
No Politburo não há desvios, nem de direita nem de esquerda.
Com saudações camaradas.
I. Stalin22
Jamais conheci outra pessoa com tamanha memória. Ele conhecia pelo nome todos os comandantes do
exército e do front, dos quais havia mais de uma centena, e sabia até o nome de alguns comandantes de
corpos e de divisões. [...] Durante toda a guerra, Stalin guardou na cabeça a composição das reservas
estratégicas e podia citar qualquer formação a qualquer hora.25
Era 1931. A catedral de Cristo, o Salvador, ainda estava de pé no centro de uma grande praça às margens do
rio Moscou. Com uma cúpula dourada, enorme e desajeitada, parecendo um bolo ou um samovar, dominava
as casas e as pessoas em torno com sua arquitetura oficial, fria e sem vida, um reflexo da autocracia russa sem
talento e dos construtores “muito bem-postos” que tinham criado aquele templo para os mercadores e os
latifundiários. A revolução proletária está levantando corajosamente sua mão contra esse incômodo edifício
que simboliza o poder e o gosto dos lordes da velha Moscou.
Iofan descreveu, extasiado, os “comentários de gênio” que Stalin fizera sobre o plano
para o Palácio. Suas sugestões “audaciosas” visualizavam um palácio que se ergueria
a mais de 300 metros, com uma figura de Lenin de 100 metros de altura no seu
topo, enquanto o grande salão não teria menos que 21 mil lugares. A megalomania
de Stalin ficou patente em seus comentários sobre o projeto. Por que o pódio era tão
pouco elevado em relação ao salão? Tem que ser bem mais alto! Não deve haver
candelabros, a iluminação tem que vir da luz refletida. Os motivos artísticos
principais deveriam expressar as seis partes do juramento prestado por Stalin depois
da morte de Lenin. Ele deixou perfeitamente claro que o projeto não era apenas de
um Palácio dos Sovietes, mas de um monumento à sua glorificação, à glorificação
do líder, por séculos. Toda a grandiosa estrutura cívica deveria espelhar a “ideia da
criatividade da democracia soviética de muitos milhões...”27 E que democracia!
Onde tudo, desde a forma do edifício à sua fachada, passando pela iluminação, a
altura dos pilares, os motivos das esculturas e mosaicos, suas próprias proporções e
muitos outros aspectos estritamente profissionais, era determinado por um só
homem que, em sua “genialidade”, achava perfeitamente normal que fosse o único a
dar as ordens finais!
A política sempre teve prioridade quando a discussão era sobre história, cultura
ou arte. Por exemplo, quando Khruschev anunciou, no pleno de fevereiro-março de
1937, que “na reconstrução de Moscou, não devemos temer a remoção de uma
árvore ou de uma pequena igreja, ou de uma catedral ou outra”,28 recebeu a
aprovação silenciosa de Stalin. Os valores culturais tinham importância secundária
e, em qualquer caso, ele era o árbitro definitivo sobre o que era valioso. A sorte de
muitas obras de arte dependeu tão somente de sua decisão.
A mente de Stalin era desprovida do adorno de qualquer característica nobre, de
um traço de humanismo, para não falar do amor pela humanidade. Em julho de
1946, por exemplo, Beria reportou que seus campos de correção estavam com mais
de 100 mil presos incapacitados para o trabalho e cuja manutenção custava uma
fortuna ao Estado. Recomendou que os portadores de doenças incuráveis e os
mentalmente perturbados fossem libertados de imediato. Stalin concordou, mas
insistiu que os criminosos especialmente perigosos e os condenados a trabalhos
forçados, por mais doentes que estivessem, deveriam permanecer presos.29
Notas
* O nome da peça é O suicida, a pessoa que se mata. Stalin chamou de Suicídio, o ato em si.
*** Jornais publicados em Berlim, Paris, Nova York, Praga e Harbin por grupos de emigrados que iam da
extrema direita aos conservadores, liberais e socialistas.
***** Campanha publicitária enganosa, com base no desempenho quebrador de recordes de um mineiro
chamado Stakhanov, usada para aumentar a produção pela criação de condições artificiais de trabalho.
[24]
Cesarismo
A adoração e o culto ilimitado com que a população cerca Stalin é a primeira coisa que causa admiração no
visitante estrangeiro à União Soviética. Em todos os cantos, em cada intercessão de ruas, em lugares
adequados e inadequados, podem-se ver gigantescos bustos e estátuas de Stalin. Os discursos ouvidos, não
apenas os políticos, mas até sobre assuntos científicos e artísticos, são preparados como glorificação a Stalin e,
por vezes, tal deificação toma formas de mau gosto.30
aumentou organicamente com o sucesso da construção econômica. O povo era grato a Stalin pelo pão e pela
carne, pela ordem em suas vidas, por sua educação e pela criação de um exército que velava por seu bem-
estar. O povo tinha que ter alguém a quem expressar sua gratidão pela inquestionável melhora nas condições
de vida e, para tanto, não selecionara algo abstrato, como o “comunismo”, mas algo real, um homem, Stalin.
[...] A reverência sem limites a ele, pois, não é ao homem Stalin, mas ao símbolo de uma construção
econômica patentemente vitoriosa...32
Essa ingênua explanação agradou tanto a Stalin que ele fez com que o livro fosse
traduzido para o russo com velocidade espantosa e publicado com uma enorme
tiragem. O livro foi talvez o único jamais publicado na União Soviética sob o
mando de Stalin que reconhece a existência do culto ao líder e oferece alguma
explicação para ele. Stalin personificava tanto os ideais socialistas quanto a realidade
e, portanto, de acordo com o autor, o povo devia ao líder sua gratidão.
O culto à liderança era humilhante para o povo, até mesmo insultuoso. Era o
cesarismo no século XX, a usurpação do poder por uma pessoa mantidos os
símbolos formais da democracia. Como tal prática surgiu e em que ambiente
prosperou?
Ao identificar as fontes do culto à liderança é possível entender-se o porquê de
Stalin ter sido tão popular, a despeito de sua crueldade e de seu desprezo pelas
normas humanas elementares. Como vimos, o principal esteio do culto foi a falta de
princípios democráticos no partido e no Estado. Um povo que vivera séculos à
sombra da coroa czarista não podia em poucos anos livrar-se de velhos hábitos. O
czar, a dinastia e a pompa czarista foram destruídos, mas o antigo modo de pensar,
com tendência à idolatria de uma poderosa figura soberana, persistira.
Nikolai Berdyaev escreveu em 1918 em O destino da Rússia:
A Rússia é, culturalmente, um país atrasado. Há trevas bárbaras lá, um primarismo asiático sombrio e
caótico. O atraso russo tem que ser sobrepujado pela atividade criativa e pelo desenvolvimento cultural. A
Rússia mais original será a vindoura, a nova Rússia, e não a velha Rússia atrasada.33
Foi este atraso que veio à tona em muitos dos processos sociais desencadeados
depois da revolução, quando a democracia não estava em evidência. Mesmo
enquanto Lenin viveu, houve muita glorificação aos líderes, demasiado
reconhecimento de seus “méritos especiais”. O sistema em si não contemplava
restrições ou mecanismos críticos do tipo que só seria genuinamente encontrado no
pluralismo revolucionário. Se os socialistas revolucionários de esquerda tivessem
permanecido em cena, seria difícil imaginá-los juntando-se ao coro de louvação de
Stalin.
O primeiro a notar o perigo de se transformar um líder em conceito ideológico
foi Trotsky que, em 1927, escreveu suas reminiscências de Lenin sob o título “Da
santimônia”:
O falecido Lenin, parece, renasceu: talvez esteja resolvido o caso da ressurreição de Cristo. Mas o perigo
começa com a burocratização da estima e a automação de atitudes em relação a Lenin e seus ensinamentos.
N.K. Krupskaya disse, recentemente, boas e simples palavras, contra os dois perigos. Ela disse que não
deveriam existir tantos monumentos em homenagem a Lenin nem deveriam ser fundadas instituições
desnecessárias e inúteis com seu nome.34
Para os que dependiam de Stalin, demonstrar tal tipo de “vigilância” em relação aos
“inimigos do povo” era uma maneira de manter o emprego e mesmo a vida. Por
exemplo, foi em tais circunstâncias que Kabakov,* secretário do partido em
Sverdlovsk, achou “danos” numa área diferente. Ele disse no pleno: “Descobrimos
uma tenda em que as compras eram embrulhadas em cópias do relatório de
Tomsky.** Pesquisamos e chegamos à conclusão de que organizações comerciais
haviam comprado substancial quantidade de tal literatura. Quem pode dizer se esse
material impresso está sendo utilizado apenas como papel de embrulho?”36
Stalin não teria sido capaz de envergar a toga de imperador – mesmo que ela
fosse uma modesta túnica do exército – se não tivesse conseguido primeiro dominar
a mente do povo. Ele bem sabia que precisava garantir a fé como líder todo-
poderoso e estimular o entusiasmo das gentes, trombeteando suas vitórias e
censurando seus fracassos, em sua maior parte devidos “ao esforço dos inimigos e
destruidores”. Foi bem-sucedido neste particular. O entusiasmo das pessoas não era
artificial: o trabalho delas era quase sempre de autossacrifício. Quando exigiam a
pena de morte ou punições severas para os traidores, estavam sendo sinceros. Até
Alexei Stakhanov escreveu:
Quando os julgamentos tiveram lugar em Moscou, primeiro de Zinoviev, depois de Kamenev e, ainda
depois, de Pyatakov e sua quadrilha, nós pedimos que eles fossem fuzilados. Mesmo as mulheres de nosso
assentamento, que jamais se interessaram por política, cerraram os punhos quando leram o que os jornais
publicavam. Dos mais idosos aos jovens, todos exigiam que os bandidos fossem destruídos.37
Gerações eram formadas com a crença fundamental de que tudo que seu grande
líder fazia estava certo, e muito poucos tinham quaisquer dúvidas. Hoje, quando
quase todos os inimigos políticos de Stalin foram reabilitados, a história do partido
naqueles anos aparece sob uma luz bastante diferente. Ocorrera uma luta pela
liderança e pela escolha dos meios para a construção de uma vida nova. Algumas
pessoas fizeram opções erradas, muitas tinham opiniões que divergiam das adotadas
pelo partido, mas poucas eram, como Stalin as descrevia, inimigas. Ainda assim, o
tênue vestígio de suspeita contra elas desenvolveu-se em pesadas acusações e resultou
num fim trágico.
Stalin frequentemente tratava dos assuntos sem dar uma decisão escrita. Devo ter
examinado alguns milhares de itens de correspondência endereçada pessoalmente a
ele sobre as questões mais diversas: relatórios sobre o progresso da safra, deportação
de povos inteiros, notificação de sentenças executadas, remoção de membros dos
altos escalões, construção de fábricas para o exército, cabogramas decodificados de
fontes de inteligência, traduções de artigos da imprensa ocidental, cartas pessoais
para ele e todas as espécies de esquemas, invenções e ideias loucas. Estimo que li
entre cem e duzentos documentos por dia, que iam de uma simples folha a pastas
completas. Na maioria dos casos, ele simplesmente apunha suas iniciais no papel.
Antes de levar o material para a apreciação do chefe, Poskrebyshev anexava um
pequeno pedaço de papel com uma proposta de decisão e o nome de seu autor.
Stalin raramente dava despachos longos. Se concordava com um plano, só rubricava
a folha de papel, ou escrevia “De acordo”, e a devolvia ao assistente para a pilha de
despachos.
Ocasionalmente, Stalin dava a entender ao partido e ao povo que era contra a
glorificação e a idolatria. Tais atitudes, no entanto, eram apenas jogo para a plateia.
Existe, por exemplo, a seguinte carta nos arquivos:
Camarada Mekhlis,
Existe uma recomendação para que se publique a instrutiva história anexa sobre um kolkhoz. Cancelei tudo
o que se referia a “Stalin” como o “vozhd do partido”, “o líder do partido” e coisas semelhantes. Creio que
esses ornamentos laudatórios só causam males.
A carta deve ser publicada sem tais epítetos.
Com saudações comunistas. I. Stalin39
Molotov não mostrou hesitação. Tampouco seu brado pela conclusão da tarefa caiu
no vazio. Em junho daquele ano, um informante reportou a Stalin que G.I. Lomov,
velho bolchevique e membro da equipe do Sovnarkom, parecia ser ligado a Rykov e
Bukharin. Stalin perguntou a Molotov: “O que você acha?” A resposta foi rápida e
incisiva: “Sou pela prisão imediata do porco Lomov.”43
Estava selada a sorte de Lomov: prisão, interrogatório, sentença, execução.
Membro do partido desde 1903, delegado da histórica Conferência do Partido de
abril de 1917, membro do Comitê Executivo Central da URSS, Lomov foi, como
tantos outros milhares de bolcheviques honestos, listado como “inimigo do povo”
com uma penada. Foi Molotov quem sancionou a prisão de Kabakov, primeiro
secretário do comitê partidário regional de Sverdlovsk, de Ukhanov, comissário da
Indústria Leve, de Krutov, presidente do comitê executivo regional do Extremo
Oriente, e de muitos outros. Dos 28 membros do Soviete de Comissários do Povo,
que ele presidiu, mais da metade foi fuzilada.
Era um homem duro. Em março de 1948, Rodionov, presidente do conselho de
ministros da Rússia, pediu-lhe algum tipo de auxílio a fim de encontrar
acomodações para 2.400 exilados doentes e muito idosos. A resposta de Molotov foi
áspera: “O comissário das Questões Internas da URSS acomodará 2.400 exilados
inválidos e muito idosos em campos de concentração.”44
Molotov foi muito útil a Stalin. Podia captar as intenções do chefe ao menor
sinal, e sua capacidade de trabalho tornou-se lendária, como o próprio Stalin
ressaltou várias vezes na presença de outros membros do Politburo. No
quinquagésimo aniversário de Molotov, em 1940, Stalin propôs que o nome da
cidade de Perm mudasse para Molotov, embora já existissem muitas outras cidades,
vilas e fazendas com este nome.
Por volta dos anos 1930, Stalin já se livrara de todos os teóricos. É claro que ele
mesmo era o “teórico-chefe”, mas condescendia que, em certas ocasiões, um de seus
auxiliares, normalmente Molotov, tentasse alguma coisa. Adoratsky instou Stalin a
escrever um artigo sobre estratégia e tática do leninismo para a Enciclopédia filosófica
que era preparada pela Academia Comunista. A resposta de Stalin foi a seguinte:
“Estou terrivelmente ocupado com questões práticas e, portanto, impossibilitado de
atender sua solicitação. Tente Molotov, ele está de férias e talvez encontre tempo
disponível.”45
Claro que Molotov não era um teórico, porém, comparado com Kaganovich,
Andreyev, Voroshilov e o restante, a preferência tinha que recair sobre ele. Sem a
presença de Bukharin, o único “intérprete” e “gerador de ideias” era o próprio
Stalin. Por conseguinte, não surpreende o fato de que, durante os anos 1930 e 1940,
os estudos sociais tivessem pequeno espaço no que concerne às inovações. Elas,
simplesmente, não podiam ocorrer. Não causa igualmente admiração que, em tais
circunstâncias, Molotov se considerasse até um pouco teórico.
Por trás da fachada imperturbável, extremamente reservada e inescrutável do
polido decoro oficial de Molotov se escondia uma determinação forte e malévola.
Assíduo no apoio a Stalin nas questões internas, ele foi também porta-voz diligente e
expedito da política externa soviética. Sem cúmplices como Molotov, o stalinismo
não teria sido possível.
Não menos zeloso que Molotov foi Lazar Moiseyevich Kaganovich, outro
sobrevivente até a grande idade dourada. Em novembro de 1988, comemorou seu
nonagésimo quinto aniversário no seu apartamento na Orla Frunze, à beira-rio em
Moscou e, provavelmente, esperou sobrepujar Molotov vivendo até os cem anos.*
S.I. Senin, que trabalhou para N.A. Voznesensky depois da guerra, disseme sobre
Kaganovich:
Ele era o chefe da comissão das indústrias de guerra certa ocasião em que tive que lhe entregar alguns
documentos. Eu calçava um novo par de botas. Kaganovich pegou os papéis e começou a olhar fixamente
para minhas botas.
“Tire-as”, ordenou.
“Por quê?”, gaguejei confuso.
“Tire-as, e rápido!” Não estava disposto a dar explicação.
Kaganovich pegou as botas, virou-as para um lado e para outro, depois passou a mão pelos canos.
Finalmente, jogou-as no chão e disse num tom satisfeito: “Você tem, de fato, um bom par de botas. Vi logo,
fui sapateiro.”
Ele teria se saído melhor se continuasse sapateiro, mas fez uma opção em 1911,
quando acompanhou o irmão mais velho para se filiar ao partido comunista.
Conheceu Stalin em Moscou, em 1918, quando trabalhava na comissão de Toda a
Rússia para a organização do Exército Vermelho. Foi enviado ao Turquestão em
1920, mas, quando Stalin se tornou secretário-geral, foi chamado de volta a Moscou
e encarregado da seção do Comitê Central responsável pela instrução dos
organizadores. Com um grau mínimo de educação formal, porém de elevada
capacidade administrativa, Kaganovich começou sua rápida ascensão através das
fileiras do partido e dos serviços.
Stalin gostava de Kaganovich por três motivos: sua capacidade sobre-humana de
trabalho; sua total falta de qualquer opinião – antes mesmo de conhecer o assunto
em pauta, ele dizia: “Estou de absoluto acordo com o camarada Stalin” – sobre
questões políticas; e sua incondicional disposição para executar instruções,
especialmente as do secretário-geral. Em determinada ocasião, depois do XVIII
Congresso do partido e antes da reunião do Politburo, Stalin perguntou-lhe:
“Lazar, você sabia que nosso Mikhail** anda de conchavos com os direitistas? As
evidências são fortes”, acrescentou Stalin com o olhar de quem está testando.
“Ele deve ser tratado de acordo com a lei”, conseguiu dizer Lazar com a voz
trêmula. Depois da sessão, ele telefonou ao irmão e falou-lhe sobre a conversa. O
processo foi acelerado. Mikhail decidiu não esperar pela prisão e suicidou-se no
mesmo dia.
Stalin dava valor a tais pessoas, aquelas que julgavam ter que persistir provando
sua lealdade a ele, e não com trivialidades ou bajulação servil. Kaganovich deu uma
demonstração de tal lealdade no pleno agonizantemente longo de fevereiro-março
de 1937. A máquina de punição ainda não estava totalmente pronta, acabara de ser
estabelecida e era ajustada com o trituramento de membros do partido, da
intelligentsia, da classe operária, dos camponeses, dos militares; ainda assim,
Kaganovich já estava superando a si próprio. Num discurso de duas horas, o
comissário para as Ferrovias informou sobre os primeiros resultados do “teste”:
Não é difícil imaginar o que Kaganovich quis dizer com “demitimos espiões e
saqueadores” das ferrovias. Stalin deve ter ficado satisfeito com a “análise” de seu
comissário quando ele, ardorosamente, continuou a expor aos delegados:
Estamos lidando aqui com uma gangue de desesperados agentes de informações. Seus métodos em relação às
ferrovias são particularmente sofisticados. Serebryakov, Arnoldov e Lifshits exploraram o baixo nível de
segurança do acesso, organizaram descarrilamentos e estorvaram os esforços do movimento stakhanovista.
Dano especial foi causado por Kudrevatykh, Vasiliev, Bratin, Neishtadt, Morshchikhin, Bekker, Kronts e
Breis que atrasaram a entrada em serviço da locomotiva FD. O edifício da linha Moscou-Donbass foi
sabotado. Pyatov sabotou a construção da linha TurkSib; Mrachkovsky sabotou a linha Karaganda-
Petropavlovsk; Barsky e Eidelman sabotaram a linha Eikhe-Sokur.47
O patife do Yeshmanov foi o chefe da linha Moscou-Donetsk a partir de 1934. Depois que este cargo lhe foi
retirado e ele não conseguiu qualquer outra função, dirigiu-se diretamente ao camarada Yezhov na NKVD
para uma permissão de residência. Falou com Arnoldov sobre as reprimendas, houve muita conversa, mas
ninguém o quis. Ele agora está sob o cuidado e o controle do camarada Yezhov.49
Kaganovich reuniu um grupo de gerentes e abriu o seminário. Logo pediu para que eu tomasse a palavra.
Ressaltei o fato de o proletariado, em função de sua posição e de sua capacidade para agir apenas
espontaneamente, só ser capaz de desenvolver consciência sindical. Kaganovich dirigiu-me um olhar feroz e
então explodiu: “Que bobagem! E daí que eles tenham consciência sindical? O proletariado pode desenvolver
qualquer coisa! Consciência proletária!”
Olhamos uns para os outros. Por mais que eu tentasse explicar, citando Lenin, a necessidade de se incutir a
teoria científica na cabeça do proletariado, ele não conseguiu absorver a ideia. Olhando-me com suspeita,
logo deu o encontro por encerrado e nunca mais empreendeu tarefa tão espinhosa.
Kaganovich firmou sua autoridade por meio das viagens para “eliminação de
dificuldades” que fez por ordem de Stalin. Estas visitas, por exemplo, às
organizações partidárias em Chelyabinsk, Ivanovo, Yaroslavl e a outros centros
provinciais, resultaram na remoção por atacado e na investigação de funcionários
locais que normalmente acabaram em tragédia. Stalin estava muito satisfeito com o
trabalho do seu “Lazar de Ferro”, como o chamava.
Kaganovich agia totalmente por iniciativa própria, guiado tão somente pelas
instruções de Stalin para “investigar bem um local e ser decisivo. Não amoleça”. Os
documentos mostram que, mesmo antes do processo completo, Kaganovich fixava
pessoalmente as sentenças, ou alterava arbitrariamente as palavras de um
testemunho para revelar uma trama contra ele, como comissário.
Tornou-se chefe da seção do Comitê Central responsável pela nomeação para
cargos importantes. Stalin logo percebeu seu zelo, sua dureza e seu
comprometimento com a função. Aos 33 anos de idade, em 1926, foi feito
candidato a membro do Politburo. Em 1925, por recomendação de Stalin, fora
enviado à Ucrânia para chefiar a organização partidária da república, onde se
instalara uma situação difícil. Suas relações com o chefe do soviete ucraniano de
comissários do povo, V.Ya. Chubar, se deterioraram, o que, na ocasião oportuna,
teria consequências fatais para este último. Os conflitos de Kaganovich com os
outros líderes ucranianos do partido continuaram e, em 1928, ele retornou a
Moscou para se tornar primeiro-secretário da cidade e dos comitês provinciais do
partido. No XVI Congresso do partido, em 1930, foi nomeado membro titular do
Politburo.
Sua influência foi particularmente grande na primeira metade da década de
1930. Como comissário do povo das Ferrovias, visitava constantemente as
províncias onde a coletivização não caminhava bem, e logo depois de suas aparições,
as coisas começavam a andar rapidamente. Stalin não mostrava a menor
preocupação com os métodos utilizados pelo “Lazar de Ferro”. Cruel e
extremamente grosseiro por natureza, Kaganovich foi o tipo de homem clássico do
sistema, o burocrata que se imiscuía em qualquer função sem a menor cerimônia.
Sua visita ao Cáucaso Setentrional resultou num aumento dos camponeses
“deskulakizados” enviados ao norte. Em Moscou, ele removia sumariamente quem
quer que não cumprisse uma ordem; impulsionado pela ignorância, proibia a
encenação de peças teatrais; como chefe da comissão do Comitê Central para o
expurgo no partido foi impiedoso. Sob o pretexto da reconstrução de Moscou,
Kaganovich foi um dos responsáveis pela destruição de muitos monumentos
históricos, tais como a Catedral de Cristo Salvador, a Torre Sukharev, o Mosteiro da
Paixão, os Portais Iversk. Numa só palavra, ele foi um “sucesso” completo, e para
demonstrar seu reconhecimento àquele decidido camarada, Stalin fez dele um dos
primeiros condecorados da Ordem de Lenin, quando ela foi criada, em 1930.
Outro dos camaradas próximos de Stalin nos anos 1930 foi Kliment Yefremovich
Voroshilov. Ele se juntou bem cedo ao movimento revolucionário e, em 1906, foi
um dos delegados ao IV Congresso do partido, onde conheceu Lenin, Stalin e
outras figuras de destaque. Depois de anos de prisões e períodos de exílio, estava em
Petrogrado para a Revolução de Fevereiro. Lutou em vários fronts na guerra civil e
foi notado na batalha por Tsaritsyn, quando se estabeleceu sua amizade com Stalin.
Sua reputação como herói da guerra civil deveu-se em grande parte ao patronato de
Stalin. Para falar a verdade, ele combateu com grande coragem, mas sem muita
reflexão. Falando no VIII Congresso, Lenin declarou: “O camarada Voroshilov diz:
‘Não tínhamos especialistas militares e sofremos 60 mil baixas.’ Isto é terrível. As
massas tomarão conhecimento do heroísmo do exército de Tsaritsyn, mas dizer que
manobramos sem especialistas militares não é nada defensável para a linha do
partido.”50
Durante a guerra civil, Voroshilov serviu no 1º Corpo de Cavalaria, combatendo
no front norte, no Cáucaso, na Crimeia, contra as forças anarquistas de Makhno e
tomando parte na repressão ao levante de Kronstadt, em março de 1921, quando os
soldados e marinheiros da Esquadra do Báltico se rebelaram contra o governo
bolchevique, que eles mesmos ajudaram a conquistar o poder. Por tudo isso, foi
duas vezes condecorado com a Ordem da Bandeira Vermelha. Membro permanente
do comitê central logo após o X Congresso de 1921, tornou-se membro do
Politburo depois do XIV Congresso. Com a morte de Frunze, foi nomeado
comissário do povo do Exército e para Questões Navais. Seu sucesso nesta esfera
pode ser em parte explicado pelo fato de que, durante seu tempo de comissariado,
bem como nas academias militares e em diversos círculos, existiram muitos teóricos
militares intelectualmente criativos, tanto os que subiram com a revolução quanto
os que foram oficiais do antigo exército. Entre eles, estavam B.M. Shaposhnikov,
que escreveu Os cérebros do exército, M.N. Tukhachevsky, autor de Questões de
estratégia moderna, K.B. Kalinovsky, K.I. Velichko, A.I. Verkhovsky, A.M.
Zaionchkovsky, V.F. Novitsky, A.A. Svechin, R.P. Eideman, I.E. Yakir, e muitos
outros.
Já pelo fim dos anos 1920, existiam biografias, livros e artigos sobre Voroshilov.
Havia um distintivo de peito chamado “Fuzileiro Voroshilov” e o carro de combate
pesado KV recebeu tal designação em sua homenagem (seu substituto, o IS,
homenageou Stalin). A glória de Voroshilov foi, de fato, de âmbito nacional, mas
Stalin pouco se preocupava com isso porque, nos anos 1930, ele era saudado como
“o homem que executa a vontade do líder”, ou como um “marechal Vermelho sob a
orientação do camarada Stalin”, ou ainda “comissário de Stalin”. O secretário-geral
o conhecia melhor do que ninguém; sabia de seu verdadeiro valor. A ideia
generalizada é que os dois eram autênticos amigos, mas na amizade genuína não
pode haver devedores, e Voroshilov sempre se julgou em débito com Stalin por sua
glória, status, cargos, recompensas e a posição ocupada.
Na década de 1930, Voroshilov foi um executor completamente irrefletido, sem
opinião própria. Não tinha a capacidade sobre-humana de trabalho de Kaganovich,
nem o intelecto e a astúcia de Molotov, tampouco a cautela e a ponderação de
Mikoyan, e era inferior a muitos outros membros do Politburo em diversos
aspectos. Mas Stalin o valorizava pela aura de lenda que se formara em torno do
“líder do Exército Vermelho”. Stalin estava seguro de que, no momento crucial, o
comissário lhe daria apoio sem pestanejar. E não estava errado. Quando Stalin
desencadeou seu expurgo, Voroshilov postou-se, inabalável, ao seu lado, enquanto
as chamas consumiam três marechais da União Soviética e centenas, até milhares, de
oficiais do Exército Vermelho. No seu discurso para o pleno de fevereiro-março de
1937, Voroshilov citou pelo nome muitos “inimigos do povo” que haviam se
infiltrado no Exército Vermelho e demonstrou isso mencionando saqueadores
trotskystas que não estavam entre os altos escalões. Leu a seguinte carta que recebeu
em agosto de 1936 de um tal major Kuzmichev:
Como milhares de outras, esta carta não teve resposta. Na realidade, Yefremov,
assim como Bukshtynovich e Krasovsky, tiveram sorte e sobreviveram, mas não
graças a Voroshilov. Nem ele nem ninguém tinha interesse em interromper o
trabalho do moedor de carne. No despacho de sindicâncias, ele sancionava
laconicamente prisões, punições e execuções. Cito abaixo os textos de alguns
telegramas, dos quais existem, literalmente, milhares entre 1937 e 1938:
Entre abril e maio de 1937, Voroshilov enviou a Stalin uma nota atrás da outra do
seguinte tipo: “Solicito que as seguintes pessoas, que foram dispensadas do Exército
Vermelho, sejam exoneradas do Conselho de Guerra do Comissariado de Defesa da
URSS: M.N. Tukhachevsky, R.P. Eideman, R.V. Longva, N.A. Yefimov, E.F.
Appog.”55 Ele então riscou a palavra “exoneradas” e a substituiu por “expelidas”,
muito embora soubesse muito bem para onde seriam “expelidas”. Nos dias
seguintes, ele mandou para Stalin notas semelhantes, mas com outros nomes:
Gorbachev, Kazansky, Kork, Kutyakov, Feldman, Lapin, Yakir, Uborevich,
Germanovich, Sangursky, Oshley e muitos outros. Parece que não dava a mínima
para o fato de o soviete de guerra do Comissariado de Defesa ser constituído quase
que totalmente de “espiões”, “fascistas” e “trotskystas-bukharinistas”. O importante
era não contrariar, e sim fortalecer, a linha do camarada Stalin. Como estava mais
em evidência para a opinião pública do que os outros, Voroshilov foi o membro da
troika menos ofuscado por Stalin. Não obstante, isso não teve o menor efeito sobre
sua falta de julgamento independente ou sobre suas ações.
** Irmão de Kaganovich, bolchevique desde 1905, foi comissário da indústria de fabricação de aviões.
*** P.F. Krivonos, maquinista do depósito Slavyansk, teve desempenho sem precedentes com sua locomotiva e
deu seu nome ao movimento dos operários ferroviários congêneres. Cf. Stakhanov.
**** Yefremov foi oficial que sobreviveu, chegou aos altos escalões e lutou na Segunda Guerra Mundial. Morreu
em combate em 1942.
[26]
O fantasma de Trotsky
T rotsky não estava mais presente, contudo Stalin passou a odiá-lo ainda mais
em sua ausência, e o espectro do rival voltava com frequência para
assombrar o usurpador. Stalin passou a se recriminar por ter concordado
que Trotsky se exilasse. Nem para si mesmo admitia temer Trotsky naqueles
tempos, porém, por certo, temia pensar nele. O pensamento de que jamais seria
capaz de resolver o “problema” de Leib Davidovich (como tendia a se dirigir a
Trotsky em sua mente, usando a forma ídiche para Lev), fazia-o ferver de ira
violenta. Em determinada ocasião, perdeu o controle e quase revelou publicamente
seus sentimentos. Conversando com Emil Ludwig sobre o assunto da autoridade,
declarou subitamente:
“Trotsky também teve grande autoridade, mas, e daí? Tão logo voltou as costas
para os trabalhadores foi esquecido.”
“Completamente esquecido?”, perguntou Ludwig.
“Ocasionalmente se lembram dele... com hostilidade.”
“Todos com hostilidade?”
“Quanto a nossos operários, eles se lembram de Trotsky com hostilidade,
irritação e ódio.”56
É possível que muitos operários lembrassem de Trotsky de forma pouco
generosa, mas era Stalin, sobretudo, quem se recordava dele com hostilidade,
irritação e ódio. Pensava em Trotsky quando sentava e ouvia Molotov, Kaganovich,
Khruschev e Zhdanov. Trotsky tinha intelectualidade de calibre diferente, com suas
percepções de administrador e seus talentos como orador e escritor. Era muito
superior em todos os aspectos a esse bando de burocratas, mas também superior a
Stalin, que sabia disso. “Como pude deixar um inimigo desses escapulir entre meus
dedos?” – quase gemia ele. Em dada oportunidade, confessou a um círculo íntimo
que aquele fora o maior engano que cometera na vida.
Outro motivo para o ódio crescente derivava do fato de que – embora não
admitisse nem para si mesmo – descobria muitas vezes que seguia a abordagem de
Trotsky em política prática. Lembrava-se de que, certa vez, quando o Politburo
debatia a NEP, Trotsky declarara que “a classe trabalhadora só caminhará para o
socialismo à custa de grandes sacrifícios, canalizando todas as suas energias, e dando
seu sangue e sua coragem”. Afirmara em outubro de 1922 num congresso do
Komsomol e vivia repisando que, sem “exércitos de trabalhadores”, “militarização
do trabalho” e “total abnegação”, a revolução corria o risco de jamais caminhar do
“reino da necessidade para o reino da liberdade”. Quase a totalidade dos 15 volumes
das obras de Trotsky é devotada à “militarização do trabalho”. Falando em 12 de
janeiro de 1920 num encontro das frações comunistas dos sindicatos, ele
reivindicou que “batalhões de choque” fossem enviados a locais especialmente
importantes “de modo que eles possam aumentar a eficiência pelo exemplo pessoal e
pela repressão”. Era necessário aplicar “métodos coercitivos, estabelecer condições
militares em [...] áreas imprescindíveis. Temos que nos valer da conscrição pelo
emprego de métodos militares”.57 Eis a expressão clássica do comunismo de quartel.
E Trotsky, que foi um de seus defensores no início dos anos 1920, jamais o
abandonou por completo, embora deva ser lembrado que tais ideias foram expressas
sob condições de guerra civil.
Stalin sempre se impressionou por qualquer ideia que implicasse o povo,
voluntariamente, “dando seu sangue e sua coragem” pela causa. No exílio, Trotsky
se referia com frequência a Stalin como um “imitador”, querendo presumivelmente
indicar sua tendência em se apoderar das ideias dos outros no campo da
metodologia social. Mas a principal razão para Stalin temer o fantasma de Trotsky
foi que este criou sua própria organização, a Quarta Internacional, e pôs Stalin no
mesmo nível de Hitler, fato intolerável para o secretário-geral. O espectro criava
uma vingança mais dolorosa que qualquer outra que pudesse ser arquitetada por
Stalin. Por vezes, parecia que a batalha que julgara terminada, quando o Ilyich
deixou despercebidamente o porto de Odessa levando Trotsky a bordo, em 10 de
fevereiro de 1929, apenas começava.
Apesar de tudo, era uma batalha desigual. Num canto, o líder ascendente que se
propôs a inculcar no partido e no povo um sentimento de ódio contra Trotsky,
como traidor e assecla fascista. No outro canto, o líder derrotado que não
economizava retórica para mostrar que Hitler e Stalin se mereciam mutuamente.
Apoiado por pequenos grupos nos vários países em que esteve exilado, Trotsky
foi capaz de influir na opinião pública. Seus discursos, ao vivo ou impressos, foram
sempre eficientes. Como antes, seu alvo principal era Stalin, a quem alcunhou de
“coveiro da revolução”. Trotsky sabia muita coisa. Durante a revolução e a guerra
civil atuara mais próximo de Lenin que Stalin. Mais de uma vez, Lenin saiu em sua
defesa, conhecedor que era dos talentos de Trotsky como organizador e
propagandista. Stalin se lembrava de que, quando a relação entre os dois ainda era
tolerável, ele tinha concordado fundamentalmente com muitas das ideias
esquerdistas de Trotsky. Por exemplo, quanto ao avanço sobre Varsóvia para
acelerar a conflagração revolucionária e quanto à organização da campanha na Ásia.
Trotsky também acreditava que a Ásia era mais revolucionária que a Europa e que,
portanto, se uma organização revolucionária fosse criada ao sul dos Urais, uma
marcha sobre a Ásia para dar velocidade à revolução naquele continente era política
realista. Em tais circunstâncias, a revolução na China e na Índia seria
definitivamente vitoriosa. Stalin não fazia objeção a esta análise.Trotsky desejava
aumentar o ritmo: ele não mais pensava numa escala russa, mas em termos da
revolução mundial. Num certo sentido, era um romântico da sublevação mundial e
muitos de seus planos de longo prazo nos anos 1920 estavam ligados a este objetivo.
Todavia, Stalin entendeu que falar publicamente sobre tais “pecados” de Trotsky
significava nublar um pouco sua própria pessoa, já que era então o “herdeiro” das
causas revolucionárias do Outubro de 1917.
A ideia de que Trotsky não falava só em seu nome, mas também dos silenciosos
aliados e dos oposicionistas dentro da URSS, era particularmente dolorosa para
Stalin. Quando lia as obras do rival, tais como A escola stalinista da falsificação, Carta
aberta aos membros do partido bolchevique ou O Termidor stalinista, o líder quase
perdia o autocontrole. Fora tão cego! Poderia estar errado quando disse às frações
comunistas dos sindicatos, em novembro de 1924, que Trotsky funcionara bem
durante o levante revolucionário, mas perdera o azimute e caminhava para a
derrota?58 Afinal de contas, o rival sofrera derrota total, mas não se rendia, ainda
continuava lutando. Vezes sem conta Stalin se atormentava ao pensar em seu erro:
por que deixara Trotsky sair do país? Agora, tinha que pagar pelo lapso de descuido.
Os cúmplices de Trotsky preparavam uma trama contra ele, montando ações
diversionárias, executando atos de espionagem, organizando uma clandestinidade, e
ele, Stalin, nada fizera durante todos aqueles anos.
No seu discurso para o pleno de fevereiro-março de 1937 “sobre as inadequações
no trabalho do partido e as medidas para a liquidação dos trotskystas e outros
agentes duplos”, Stalin destacou o “elo principal”, ou seja, o “trotskysmo
contemporâneo”. Dirigindo-se à plateia como se fosse constituída de escolares,
perguntou: “Que é o trotskysmo?” E deu a resposta: “O trotskysmo contemporâneo
é um bando desesperado de saqueadores. Sete ou oito anos atrás”, continuou, “era
uma equivocada tendência antileninista. Mas agora é uma gangue de saqueadores
fascistas.” E continuou:
Kamenev e Zinoviev negaram que tivessem uma plataforma política. Estavam mentindo. Durante o
julgamento de 1937, Pyatakov, Radek e Sokolnikov não negaram a existência de tal plataforma. A
restauração do capitalismo, o desmembramento territorial da União Soviética (a Ucrânia para os alemães, as
províncias marítimas para os japoneses); na eventualidade de um ataque de nossos inimigos – sabotagem e
terror. Tudo isto é a plataforma do trotskysmo.59
Dessa forma, Stalin amarrou todos os seus inimigos, derrotados ou potenciais, com
a mesma corda trotskysta.
Está na hora de os historiadores chegarem a uma avaliação mais acurada sobre
Trotsky. Já me referi a suas qualidades intelectuais e morais, por contraditórias e
controversas que fossem. Ele tinha uma fraqueza incurável, isto é, a convicção de
que era um gênio, crença que era incapaz de esconder. Suas ambições derivavam
disso. Aqueles que dizem que, se Trotsky tivesse derrotado Stalin, a União Soviética
não seria governada por ditadura diferente, não estão necessariamente errados.
Contudo, em função da grande inteligência e da cultura de Trotsky, é muito
duvidoso que cometesse os crimes de Stalin.
A verdade é que, durante a revolução e a guerra civil Trotsky só perdia em
importância para Lenin. É impossível saber o que Trotsky seria se Lenin vivesse.
Uma coisa é certa: entre 1917 e 1924, ele não foi hostil à revolução e ao socialismo.
Foi, isso sim, inimigo consistente de Stalin. Os ataques antissoviéticos aos quais
recorreu em seus últimos anos foram resultado lógico de sua batalha contra Stalin.
Provavelmente, tais ataques foram nocivos à causa soviética, mas a seu crédito deve-
se dizer que não se dobrou ao despotismo do secretário-geral. Dos primeiros a
perceber que Stalin preparava um terror reacionário soviético, ele acertou em muitas
coisas. Como Lunacharsky escreveu:
Trotsky foi homem arrogante e irritadiço. No entanto, depois que se associou aos bolcheviques, foi só em sua
atitude em relação a Lenin que Trotsky sempre revelou – e continua a revelar – uma docilidade prudente que
chega a ser tocante. Com a modéstia de todos os grandes homens, ele reconhece a primazia de Lenin.60
Amanhã, Stalin pode se transformar em carga pesada para o grupo governante. [...] Stalin está prestes a
concretizar sua trágica missão. Quanto mais parece que não precisa de ninguém, mais perto está a hora em
que ninguém precisará dele. Nessa ocasião, Stalin dificilmente ouvirá palavras de gratidão pelo que fez. Sairá
de cena levando nos ombros o peso de todos os seus crimes.66
Da extraordinária significação que teve a chegada de Lenin, deve-se inferir que os líderes não são
acidentalmente criados, que são gradualmente selecionados e mui treinados ao longo de décadas, que não
podem ser caprichosamente substituídos, que sua exclusão mecânica da luta deixa o partido com uma ferida
aberta e, em muitos casos, pode paralisá-lo por um período longo.67
* Mochalin é um personagem da peça de Griboyedov, O infortúnio da esperteza, que emprestou seu nome ao
carreirismo bajulador.
[27]
Um vencedor popular
Quando me lembro de tudo, quando organizo meus pensamentos, só consigo dizer uma coisa: obrigado,
camarada Stalin! O camarada Stalin proporcionou a mim, um trabalhador comum, mais apoio do que jamais
imaginei. Agora, acostumei-me com a expressão, “movimento Stakhanovista”. Vejo com frequência meu
nome nos jornais e me ouço mencionado nas reuniões. Francamente, no início eu não entendia nada. Mas
agora acho correto chamar nosso movimento de stalinista, pois foi a classe trabalhadora que se pôs em
marcha na campanha stalinista pelo avanço técnico, o que acabou resultando no meu recorde e no de meus
camaradas. Foi o camarada Stalin quem aumentou a amplitude de nosso movimento.72
Definitivamente, Stalin não é um grande orador. Fala lentamente e sem brilho algum, numa voz um tanto
abafada que sai com dificuldade. Desenvolve seus argumentos com lentidão, atentando para o senso comum
popular, a fim de que eles sejam captados devagar, mas com firmeza. Quando o secretário-geral ergue seu
dedo indicador e exibe um sorriso atraente e malicioso, não cria uma distância entre ele e a audiência, como
ocorre com outros tribunos.74
Tais cartas foram mais tarde utilizadas em maciças campanhas de propaganda como
“exemplos da simplicidade do líder e de sua consideração com o povo”.
Fica claro que Stalin não estava preocupado apenas com o que hoje chamamos
de problemas de administração, mas também com a “técnica do governo de um só
homem”. Ele fez um estudo cuidadoso dos livros Sobre a natureza do absolutismo, de
V. Vorovsky, O Estado, a burocracia e o absolutismo na história da Rússia, de M.
Alexandrov, O destino do governante, de Yu. Kazmin, e de obras similares. Sua
abordagem da literatura histórica não era, evidentemente, a de um leitor
desinteressado; buscava analogias, estudava “receitas” sobre a técnica do poder e suas
sutilezas psicológicas. Aprendeu, por exemplo, que seus discursos nas reuniões
importantes do Kremlin causavam grande impacto nas cabeças e muita emoção na
plateia. Ao longo de todo o ano de 1935, falou no Kremlin numa reunião de
construtores ferroviários (30 de julho), para mulheres “trabalhadoras de vanguarda”
na colheita de beterrabas (10 de novembro), para destacados motoristas de
máquinas agrícolas (1º de dezembro), para homens e mulheres kolkhozniks do
Tadjiquistão e do Turcomenistão (4 de dezembro), para motoristas de tratores (20
de dezembro), e assim por diante. Cada encontro desses era amplamente divulgado
pelos meios e apresentado nos noticiários do cinema. À medida que sua
popularidade crescia, entretanto, Stalin decidiu reduzir a frequência de tais eventos:
quanto menos aparecesse, mais significativas seriam suas aparições, e sua reclusão
daria margem ao aparecimento de mitos, lendas oficiais e clichês enfeitados sobre
sua pessoa.
Um país que vivera séculos sob a autocracia não podia trocar sua pele psicológica
apenas com a sedução. Era necessário algum tempo. Portanto, Stalin colocou ênfase
especial na criação da fé no líder, no cuidado e preocupação com o povo e na sua
equidade. Transferiu a culpa de todos os seus erros e crimes para os ineptos e os
destruidores, para a estupidez dos funcionários e para os líderes locais, os quais ou
não entenderam ou deturparam suas instruções. Esta tática funcionou às mil
maravilhas. Ainda hoje há gente com a opinião de que a tragédia de Stalin deveu-se
“à confiança que depositou em Yezhov”, e mais tarde em Beria, que “havia muita
coisa que ele não sabia” e que “ele não tinha ideia da extensão da repressão”. Tudo
isso foi resultado da impecável campanha de muitos anos de lavagem cerebral. Para
fins externos, sua essência era simples: todos os sucessos e vitórias se deviam a Stalin;
todos os excessos, abusos e derrotas eram consequências do não cumprimento
adequado de suas ordens.
A popularidade de Stalin pode também ser explicada, como já mencionei, pelo
baixo nível de cultura política das massas. Tão logo entendeu que podia se
transformar num líder de longo prazo – o primeiro indício surgiu em 1927 e foi
confirmado no XVII Congresso de 1934 –, Stalin dispôs-se em fazer disso uma
proposição atraente para o povo. Filmes e livros começaram a aparecer que tratavam
de personalidades fortes, ditadores, czares “progressistas”. Em paralelo com a arte
genuinamente revolucionária, foram produzidas obras que apresentavam o papel do
indivíduo como absoluto. Stalin consultou pessoalmente Sergei Eisenstein e Nikolai
Cherkasov sobre a imagem de Ivan, o Terrível, no filme de mesmo nome.
O entourage do Secretário-Geral muito concorreu para fortalecer sua
popularidade, endeusando-o para cair nas suas boas graças. Sempre desconfiado,
Stalin via intenções e significados em cada palavra ou gesto descuidado. Ele mesmo
analisou escrupulosamente os gentis artigos de adulação – que só diferiam nos
títulos – escritos para comemorar seus sexagésimo e septuagésimo aniversários.
Examinou pilhas de livros e revistas que continham referências à sua pessoa. Sua
vaidade era insaciável, embora pudesse disfarçá-la em público para realçar o mito da
“modéstia extraordinária”. Para fins de propaganda e, por certo, para angariar
simpatia e ganhar favores, os membros de seu entourage competiam entre si na
busca dos melhores qualificativos, de comparações elevadas, de analogias históricas.
Neste mister, perderam todo o senso da medida. Em 1939, com o moedor de carne
em pleno funcionamento, os assistentes de Stalin, Poskrebyshev e Dvinsky,
escreveram sobre ele como um homem adornado com as mais altas qualidades
humanitárias. O artigo, intitulado, “Professor e amigo da humanidade”, inclui
trechos como o abaixo:
Stalin entrou na revolução com a imagem de Lenin em sua mente e em seu coração. Ele pensa em Lenin o
tempo todo. Mesmo quando seus pensamentos estão imersos em problemas que exigem decisão, sua mão
rabisca mecanicamente palavras como “Lenin [...] professor [...] amigo...” Quantas vezes, depois de um dia
de trabalho, nos desfizemos de páginas escritas em toda a sua extensão com essas palavras.77
Esses confeitos açucarados, acreditavam os autores, não só influenciariam as pessoas
como também seus sentimentos. Há provas de que, durante as reuniões, Stalin não
rabiscava nada parecido com “Lenin [...] professor [...] amigo...” em seu canhenho.
Os arquivos contêm registros que vão de documentos de importância histórica até
notas insignificantes, de relatórios de congressos até mensagens rabiscadas como
“Camaradas Andreyev, Molotov, Voroshilov: hora de parar. Deem um fim aos
discursos. O pleno tem que terminar às quatro. I.S”. Enquanto ouvia
distraidamente os pronunciamentos numa reunião do Politburo, escrevinhava na
capa de um livro com o título O perigo direitista em nosso partido:
Stalin. Reconhecimento. Professor. Sobre o perigo direitista. Sobre o perigo direitista em nosso partido.
Mukhalatka. Reunião privada. Tóquio. Professor. Sokolnikov. Editora “Priboi” dos trabalhadores. Fogo.
Discussão. Molotov.78
Os rabiscos de Stalin no final dos anos 1920 só nos dizem uma coisa: que aquilo
que Poskrebyshev e Dvinsky relatam sobre os pensamentos subliminais de Stalin,
além de muitas outras coisas, não faz o menor sentido.
Por outro lado, a popularidade de Stalin era uma forma, por contorcida que
fosse, de autodefesa social. Quem não desejasse atrair suspeitas tinha que evitar
qualquer “escorregão da língua” nas suas referências ao líder. O respingo mais
insignificante e não intencional sobre o papel de Stalin como líder poderia terminar
em tragédia. O sociólogo A. Fedorov contou-me que, no fim da década de 1940, na
fábrica de motores de tratores perto de Vitebsk, aconteceu o seguinte: o escritório
fora recentemente pintado e chegara a hora de pendurar os retratos nas paredes; um
jovem operador de tratores entrou na sala e derrubou sem querer um dos retratos de
Stalin que estava encostado, tentou recuperar o equilíbrio e, acidentalmente, pisou
no rosto do líder; um silêncio assustador desabou sobre as pessoas que estavam na
sala, e um dos gerentes passou uma descompostura no motorista; três dias mais
tarde, o jovem infeliz foi apanhado e só voltou a ser visto depois do XX Congresso.
Embutida na popularidade estava uma permanente camada oculta de medo.
Nem todos a sentiam constantemente. Os que sabiam da existência da repressão e a
tinham experimentado continuavam a elogiar Stalin enquanto escondiam seu
conhecimento do que se passava. A popularidade do secretário-geral era assim
sustentada tanto pela manipulação da opinião pública, com base nas conquistas do
povo, quanto pelo medo frequentemente incerto da punição real em caso da menor
crítica a ele. Como consequência natural da suspeita e da mania de espionagem
implantadas na mente pública, a delação generalizada passou a ser a norma.
Contudo, seria errado supor-se que todos os cidadãos soviéticos amavam Stalin
fanaticamente e que ele era popular para todos. Havia uma camada substancial de
comunistas pré-revolucionários conhecida como velha guarda leninista. Eles
conheciam a história do partido e a contribuição real que cada líder fizera para a
Revolução de Outubro, não as contadas pelo secretário-geral no Curso resumido, e a
maioria deles só veio a saber da existência de Stalin depois da revolução e da guerra
civil, quando, como vimos, ele não esteve na linha de frente. Portanto, a atitude do
“líder” em relação a esses antigos leninistas era bastante “parcial”. Ele sabia que,
embora os da velha guarda não dissessem nada, a imagem que tinham do secretário-
geral era diferente da que desejava passar. Aquelas pessoas com passado
revolucionário eram uma pedra no seu caminho.
Stalin via que, apesar do progresso, muita coisa não estava sendo conseguida. A
agricultura era o caos, se bem que a safra de 1936 tivesse sido boa. Como antes, o
país enfrentava sérias dificuldades econômicas e sociais. A despeito do tempo que
transcorrera desde a revolução e do slogan “a vida é melhor e mais alegre”, Stalin
ainda conclamava pelo aperto dos cintos pelo bem do amanhã. O padrão de vida
não melhorara tanto assim. Se Stalin dizia que a culpa era dos destruidores, o povo –
evidentemente não propenso a se autoacusar – acreditava, em particular porque
existiam muitos ex-oposicionistas e pessoas com reputações manchadas para pagar a
conta. Todos podiam ver evidências de solapamento na economia e na
administração.
Molotov, Kaganovich, Yezhov e Malenkov, este último fazendo carreira
acelerada, perceberam rapidamente a direção do pensamento de Stalin e captaram as
ideias contidas em suas assertivas. Curvado sob o peso de seu casaco de soldado,
como que encolhido ante o olhar de seus inimigos potenciais, Stalin parecia sinalizar
que só a completa erradicação destes tornaria sua posição inflexivelmente segura. Era
necessária ação decisiva. Um golpe maciço contra seus inimigos indistintos serviria,
no seu modo de ver, para justificar os desastres e enganos de sua política econômica,
como também para livrar-se daqueles que torciam por sua derrota. Depois da
guerra, Molotov acrescentou que, ao acabar com seus inimigos, Stalin estava
olhando bem para o futuro: ele exterminara aqueles que, numa guerra contra o
fascismo, poderiam ter ficado ao lado de Hitler.
Para Stalin, pareceu que sua hora havia chegado. Dali por diante, ninguém seria
capaz de desafiar seu mando pessoal. A tragédia se aproximava. A decisão
amadureceu e foi finalmente tomada quando estava em Sochi, bem distante de
Moscou. Em 25 de setembro de 1936, enviou um telegrama a Molotov, Kaganovich
e outros membros do Politburo em Moscou. Estava assinado por Stalin e Zhdanov,
o qual, no XVII Congresso, tornara-se secretário do comitê central e passara a gozar
rapidamente da confiança do secretário-geral. O telegrama foi o seguinte:
Consideramos de absoluta necessidade e urgência que o camarada Yezhov seja nomeado Comissário do Povo
para as Questões Internas. Yagoda mostrou-se totalmente incapaz de desmascarar o bloco trotskysta-
zinovievista. A OGPU está atrasada quatro anos a este respeito. Isso foi notado por todos os trabalhadores do
partido e pela maioria dos representantes da NKVD.79
Fora dado o terrível e monstruoso sinal. Não era possível imaginar a quantidade
enorme de “espiões, saqueadores e terroristas” que seria descoberta. Pareceu que eles
não estavam entre nós, mas que nós estávamos entre eles! Stalin fora bastante
encorajado pelo indiscriminado apoio público à acusação estatal no recente
julgamento de Zinoviev e Kamenev. Antes mesmo de o julgamento ter lugar e de as
circunstâncias do caso terem sido publicadas, a imprensa e o rádio já entoavam
jubilosamente “Destruição para as víboras”, “Morte aos inimigos”, “Sem piedade
com agentes duplos”. Stalin sentiu que conseguira bastante: ao escamotear a verdade
do povo, transformara-o numa massa pela qual ele próprio assumiria a
responsabilidade. Entre seus outros crimes, este talvez tenha sido o pior.
Parte VI
O epicentro da tragédia
Tudo entender
Não é tudo perdoar.
Erich Kästner
[28]
Inimigos do povo
Os moscovitas compraram ontem enormes quantidades de uma grande variedade de vinhos, da champanhe
ao moscatel soviéticos, bem como centenas de tipos de linguiças, peixes defumados, bolos, tortas e frutas.
Milhares de funcionários da “Gastronomia”, da “Mercearias” e de outras lojas de alimentação estavam
entregando as compras de seus consumidores para as comemorações do Ano-novo.
Stalin poderia ter lembrado de pelo menos uma dúzia de cartas de Zinoviev
implorando clemência. Poderia recordar a carta que Yagoda lhe entregara, em 17 de
dezembro de 1934, quando Zinoviev foi investigado e preso, na qual o velho
bolchevique escreveu, entre outras coisas:
Não sou culpado de nada, nada, nada em relação ao partido, em relação ao comitê central e em relação a
você pessoalmente. Juro por tudo que é mais sagrado a um bolchevique. Juro pela memória de Lenin.
Não posso nem imaginar a causa das suspeitas sobre minha pessoa. Rogo-lhe que acredite em minha palavra
de honra. Estou abalado até o fundo de minha alma.4
Cheguei a um ponto em que me sento, fico olhando para seu retrato nos jornais e o dos outros membros do
Politburo, e penso: meus caros, olhem dentro de meu coração que por certo verão que não sou mais seu
inimigo, que sou de vocês, de corpo e alma, que entendi tudo e estou pronto a fazer qualquer coisa para
merecer seu perdão e sua generosidade.5
Enquanto desejavam Feliz Ano-novo uns aos outros, os cidadãos soviéticos não
podiam imaginar quão sangrento seria o ano que começava. Por mais paradoxal que
possa parecer, passariam cerca de vinte anos para que se conscientizassem disso, já
então muito distantes no tempo de tudo que ocorrera. Entrementes, precisaram
expressar indignação e maldizer os “fascistas degenerados”, “espiões” e “terroristas”.
Stalin já alertara o povo quando, em janeiro de 1933, disse que, em certas
circunstâncias, “os grupos desbaratados dos velhos partidos revolucionários, os SR,
mencheviques, nacionalistas burgueses do centro e da periferia, poderiam ter
sobrevivido e causar novas agitações, bem como os remanescentes dos trotskystas
contrarrevolucionários e dos diversionistas de direita”.6 Parecia agora que causavam
novas agitações! Tendo o sucesso como pano de fundo, os desastres – que não eram
poucos – de fato pareciam “sabotagens”. E não havia Stalin dito que o inimigo
oculto estava apenas ganhando tempo? Quanto maiores as vitórias do povo
soviético, mais forte a resistência. Era isto que ele tinha em mente ao aguçar a luta
de classes, levando ao limite a ameaça da resistência!
Na véspera do XVII Congresso do partido, foi publicado um livro sobre a
construção do Canal do mar Branco (com trabalho escravo). Trinta e seis escritores
soviéticos, sob a direção editorial de Gorky, Averbakh e Firin, contribuíram com
louvores para a primeira tentativa de reeducar “inimigos do povo em amigos”. Foi,
escreveram eles, “um esforço vitorioso sem precedentes para converter antigos
inimigos do proletariado [...] e da sociedade soviética em representantes qualificados
da classe trabalhadora e mesmo entusiastas do trabalho nacionalmente importante”.
“É extraordinariamente mais difícil”, continuaram, “retrabalhar material humano
do que madeira, pedra ou metal.” Engenheiros, acadêmicos, professores e milhares
de outros intelectuais foram assim transmudados em “camaradas em armas” do
proletariado. Seu único crime fora o de pensar diferentemente de Stalin, o qual,
como afirmaram os autores, era dotado de
Mas não eram certas “qualidades” que estorvavam Stalin. Eram pessoas. Muita,
muita gente. Toda esta gente “não abatida” estava (potencialmente) impedindo que
ele se consolidasse como único líder ilimitada e universalmente amado. Ele não
esquecera que Bukharin e outros haviam sido companheiros de partido: o infortúnio
daquelas pessoas era que tampouco elas tinham esquecido e muito sabiam sobre ele.
Ele lera em algum lugar, possivelmente em Cosimo de Medici: “Existe um preceito
de que não devemos perdoar nossos inimigos. Mas não existe um sobre o perdão
para nossos antigos amigos.” Stalin não pensava em perdoar qualquer das duas
categorias.
Quem primeiro empregou a aterradora expressão “inimigos do povo”? Já vimos
que, em seu desterro na Sibéria, Stalin ficara impressionado com o que lera sobre a
Revolução Francesa, em particular com a determinação de Robespierre, o qual, no
momento crítico, conseguiu uma lei para simplificar os processos jurídicos contra os
“inimigos da revolução”. Mas, ao contrário de Robespierre, Stalin padecia de um
medo mortal de atentados contra sua própria vida. Portanto, as acusações imputadas
a incontáveis desafortunados tiveram fulcro no famoso Artigo 58 sobre “atos
terroristas dirigidos contra representantes do regime soviético”. A julgar pelos
procedimentos legais daquela ocasião, pensar-se-ia que milhares e milhares de
cidadãos soviéticos não pensavam noutra coisa que em dar cabo do líder e de seu
entourage.
Se bem que a expressão “inimigo do povo” fosse usada antes de 1934, foi a partir
daquele ano que Stalin conferiu-lhe conteúdo definido. Uma “carta secreta” do
comitê central para as organizações partidárias nas regiões e nas repúblicas, datada
de 29 de julho de 1936 e claramente de autoria de Stalin, salientou que um inimigo
do povo normalmente se mostrava “dócil e inofensivo”, que fazia de tudo para se
“infiltrar furtivamente no socialismo”, que não aceitava o socialismo e que, quanto
mais desesperançada ficasse sua posição, mais inclinado “se tornaria a medidas
extremadas”.8
A.A. Yepishev, que trabalhou no Ministério da Segurança Estatal de 1951 a
1953, disseme que Beria exultava em citar a ideia, que atribuía a Stalin, de que “um
inimigo do povo não é apenas aquele que realiza sabotagem, mas o que duvida da
correção da linha do partido. Existem muitos deles entre nós e temos que liquidá-
los”. Yepishev, que não era muito expansivo a seu próprio respeito, disse com
franqueza:
Consegui, com muita dificuldade, escapar do covil de Beria. Depois de repetidas solicitações para retornar ao
trabalho no partido, Beria zombou maliciosamente e disse: “Você não quer trabalhar comigo? Tudo bem,
faça o que quiser.”
Poucos dias depois, fui enviado para Odessa, nomeado novamente como primeiro-secretário do comitê
regional do partido, mas o chefe local do MVD logo chegou-se a mim e disse que eu deveria permanecer em
casa no dia seguinte. Eu sabia que isso significava prisão a qualquer momento. E entre os que trabalharam
com Beria, aqueles que tinham dúvidas eram encarados como os piores inimigos do povo. Fui salvo por um
milagre: o próprio Beria foi preso naquela ocasião.
No período de diversos meses, não me recordo de uma única ocasião em que alguém, fosse um gerente
industrial ou um chefe de comissariado, tivesse me telefonado por iniciativa própria para dizer: “Camarada
Yezhov, há algo estranho a respeito de fulano ou sicrano, alguma coisa não está certa, encarregue-se dele.”
Simplesmente isto não aconteceu. O normal, quando alguém levanta a questão da prisão de um sabotador ou
de um trotskysta, é o rápido aparecimento de camaradas para defendê-los.12
Num memorando especial aprovado pelo pleno sobre o relatório de Yezhov foi
anotado que o comissário das Questões Internas estava atrasado pelo menos quatro
anos na luta contra os inimigos. Em outras palavras, Stalin achou que o expurgo
deveria ter começado nas vésperas do XVII Congresso do partido. A NKVD foi
encarregada de “realizar a tarefa de desmascarar e atacar os trotskystas e outros
agentes até a última instância, de modo a esmagar a menor manifestação de sua
atividade antissoviética”.13 Mas isto foi apenas o prelúdio. Os participantes do
pleno, em sua maioria homens de bom senso, ficaram mais alarmados com o modo
de Molotov, Kaganovich e Yezhov apresentarem os fatos investigados do que
convencidos da existência de sabotagem generalizada. Faltava o histórico político e
teórico. Os oradores tinham desvendado o panorama em que os inimigos operavam,
mas o que estavam realmente fazendo e o porquê de suas ações não ficaram
esclarecidos. Pode-se agora apenas especular o que passou pela mente dos delegados.
Já tinham decorrido três anos desde o “Congresso dos Vitoriosos” e vinte anos de
poder soviético e, de novo, estavam frente ao quase universal “perigo de restauração
do capitalismo”. Tendo em grande parte livrado o comitê central da velha guarda
leninista, Stalin recorria uma vez mais às medidas extremas.
Era necessário um programa preciso. O líder o formulou. Fazia-se mister uma
base teórica para o terror contra os “inimigos”. Stalin a criou. O povo tinha que ser
levantado para liquidar os “trotskystas e outros agentes duplos”, o secretário-geral
também planejou este encargo. Considerando-se as cuidadosas formulações, e a
estrutura impecável do relatório que ele apresentou como discurso de encerramento,
que compôs de próprio punho, fica patente que Stalin via o sangrento expurgo que
estava a ponto de sobrevir como da maior importância.
Seu relatório recebeu o título de “Inadequações do trabalho do partido e as
medidas para a liquidação dos trotskystas e outros agentes duplos”. Os frequentes
trechos sublinhados, as inserções e as notas à margem com sua caligrafia clara
testemunham o cuidado em sua preparação. Ele não se permitiu a listagem
individual de funcionários hostis, à maneira destemida de Molotov, Kaganovich e
Yezhov. Como orador principal, colocou cada coisa em sua prateleira apropriada.
Primeiro, definiu a noção de “segurança política” e depois enfocou as consequências
do cerco capitalista realçando que ele representava uma ameaça real que tinha que
ser constantemente levada em conta durante a construção do socialismo, e ligou-o
ao “perigo trotskysta”. Os próprios trotskystas foram por ele caracterizados como
“um bando de destruidores desesperados e sem escrúpulos, diversionistas, espiões e
assassinos que operavam sob as ordens de serviços estrangeiros de informações”.
Potencialmente, classificou o trotskysmo como principal ameaça ao socialismo, e
chegou à seguinte conclusão de longo alcance:
Quanto mais avançarmos, quanto mais sucesso conseguirmos, mais exasperados se tornarão os remanescentes
das classes exploradoras destruídas, mais cedo apelarão para formas extremadas de luta, mais difamarão o
Estado soviético e mais recorrerão aos meios desesperados como a solução última dos condenados.14
Desde o fim dos anos 1920 e de novo em 1934 e 1937, Stalin vinha pregando que a
luta de classes se aguçaria com o progresso do socialismo, um conceito na verdade
paradoxal em seu tom e irracional no conteúdo. Mas Stalin era um pragmático.
Tinha de encontrar uma base teórica para o processo de expurgo total que
preparava. Ninguém, afora ele, estava capacitado para a missão, e era ele quem
precisava da fundamentação. Em 1934, garantira que as classes exploradoras estavam
liquidadas na URSS e agora, três anos depois, mostrava de repente que a luta estava
se “aguçando”. Disse ao plenário que isso era possível porque ex-oposicionistas
tinham se camuflado e vinham executando atividades subversivas clandestinas,
consolidando suas forças e ganhando tempo. Citou “seis teorias podres” que
evitavam que o partido destruísse completamente os trotskystas: não se deveria
pensar que cumprir o plano antes do tempo derrotaria os destruidores; ou que o
movimento stakhanovista por si só acabaria com a sabotagem; era errado supor,
como alguns, que os trotskystas não estavam congregando forças, e por aí
prosseguiu.
Enquanto os outros relatores se concentraram em fatos concretos de sabotagem,
Stalin, como sempre, encaixou tudo dentro de um quadro bem estruturado. No seu
pronunciamento final de 5 de março, declarou que “há sete pontos que o pleno não
aclarou”. Entre eles, fez alguns julgamentos corretos, por exemplo, que diversos ex-
trotskystas tinham assumido posições boas e “não deveriam ser desacreditados”. Fez
diversas declarações “típicas de líderes” como a de que, vez por outra, dever-se-ia dar
ouvidos à voz das “pessoas comuns”, externou algumas palavras de ordem tais como
“no futuro, esmagaremos nossos inimigos, como o fazemos agora e fizemos no
passado”. Valendo-se de sua forma preferida de aforismos simples que todos podiam
entender, declarou: “Para ganhar uma batalha são necessários diversos exércitos.
Para perdê-la bastam uns poucos espiões. Para construir uma grande ponte
ferroviária há necessidade de milhares de operários. Para destruí-la, bastam apenas
alguns homens.”15
A resolução adotada concernente ao relatório de Stalin abrangeu 27 pontos
categóricos, aos quais acrescentou detalhes finais com seu próprio lápis. Entre eles:
1. Bukharin e Rykov deverão ser destituídos da função de candidatos a membro do Comitê Central; não
deverão ser julgados, mas seu caso deve ser encaminhado à NKVD;
2. Comissão constituída pelos camaradas Stalin, Molotov, Voroshilov, Kaganovich, Mikoyan e Yezhov
preparará uma minuta de resolução com base nesta decisão.18
Em vista do acontecido, Bukharin e Rykov não se revelaram diferentes dos zinovievitas e trotskystas. São
todos uma gangue de bandidos. Não me recordo de comportamento tão vergonhoso ou mais desprezível que
o de Bukharin e Rykov. Foram necessários quatro dias para que arrancássemos deles a verdade, mas
esperamos em vão que demonstrassem um lampejo ou um vestígio de atitude humana com o partido. Como
eles disseram, não éramos seus juízes.
na sua diretriz, estabeleceu duas possíveis variantes para nossa chegada ao poder. A primeira seria antes da
guerra e a segunda durante a guerra. Trotsky via a primeira variante como resultado de um golpe terrorista
concentrado. O que ele tinha em mente era a execução simultânea de atos terroristas contra alguns líderes do
partido e do Estado, especialmente contra Stalin e seus auxiliares mais próximos. A segunda variante, que
Trotsky considerava a mais provável, viria na derrota militar.22
Stalin derrotara Zinoviev e Kamenev pela exaustão e pela fraude. Dobrou Pyatakov
e seus “parceiros” pela tortura.
Outro julgamento foi particularmente deprimente. Tratou-se do chamado
“julgamento dos 21”, cujas vítimas foram Bukharin, Rykov, Krestinsky, Rakovsky,
Rozengolts e outros. Stalin usava os tribunais para exterminar fisicamente os últimos
oponentes, mas o alvo político, como sempre, era Trotsky. O duelo entre os dois
prosseguiu. Nas poucas páginas do sumário de culpa contra Pyatakov e os outros,
Trotsky foi mencionado nada menos que 51 vezes. Os documentos do julgamento
de Bukharin e seus coacusados seguiram a mesma linha. Quando os procedimentos
judiciais começaram, Trotsky, do México, fez constar que os réus, de fato,
partilhavam seus pontos de vista, mas que só estavam sendo julgados pelas ideias
deles. Em quase todas as edições do seu Boletim, ele publicou matérias sobre
Rakovsky, Krestinsky e Rozengolts, demonstrando a “incompatibilidade” deles com
Stalin, e frisando sua solidariedade aos mesmos. Publicou protestos regulares contra
a perseguição de seus “seguidores”. A defesa que fez dos “inimigos do povo” foi
muito útil a Stalin e proporcionou argumentos “suplementares”.
Stalin pressentiu a aproximação da guerra. Ele não podia deixar de perceber que
via o mundo exterior através dos olhos de Trotsky. Conquanto temesse admitir até
para si mesmo, sabia, quando lia os trabalhos de Trotsky, que o rival não profetizava
em vão. Em Revolução traída, por exemplo, Trotsky escreveu:
Será possível esperarmos que a União Soviética saia da guerra que se aproxima sem derrota? Para esta
indagação franca, dou uma resposta igualmente franca: se a guerra permanecer apenas uma guerra, então a
derrota será inevitável para a União Soviética. Nos campos tecnológico, econômico e militar, o imperialismo
é incomparavelmente mais forte.23
Soava como uma sentença de apocalipse não só para o socialismo como também
para Stalin. O secretário-geral, no entanto, não entregaria os pontos com tanta
facilidade. Antes que a guerra começasse, precisava livrar-se de todos os possíveis
cúmplices do fascismo. Enquanto se preparasse para a guerra, tinha que sumir com
qualquer potencial quinta-coluna. Hitler não poderia encontrar apoio local na
União Soviética. Segundo F. Chuev, Molotov, pouco antes de falecer, confirmou
que, na véspera da guerra, Stalin dispôs-se a acabar com qualquer colaboracionista
soviético no seio da sociedade.
Noutro nível, Stalin precisava explicar a razão do padrão de vida relativamente
baixo e das incontáveis dificuldades experimentadas pela economia do país. “Saques
e sabotagem” era a resposta. Funcionários obedientes logo captaram a mensagem, e
seus relatórios diários continham informações apropriadas. Por exemplo, em 19 de
outubro de 1937, foram apresentados os seguintes relatórios:
Na vila de Tabory, nos Urais, por danos causados ao kolkhoz, cinco homens foram sentenciados ao
fuzilamento.
Minsk. Pela contaminação intencional da farinha de trigo, cinco homens foram sentenciados à morte.
Saratov. Um grupo trotskysta-direitista despejou grande quantidade de óleo no Volga. Nove homens
receberam pena de morte, inclusive o professor N.A. Orlov, da Universidade de Saratov.
Leningrado. Seguindo ordens da Gestapo, foram provocadas interrupções sistemáticas no sistema regional de
energia de Leningrado, resultando em trabalhadores feridos. Dez homens receberam a pena de
fuzilamento.24
Todo o país, dos mais jovens aos mais idosos, espera e exige só uma coisa: que os traidores e os espiões que
venderam nossa pátria ao inimigo sejam exterminados como cães raivosos!
O povo só requer uma coisa: que os vermes abomináveis, os traidores odiados, sejam exterminados.
O tempo passará. Os túmulos dos execrados vendilhões ficarão cobertos de ervas daninhas e do desprezo
eterno do honesto povo soviético, de todo o povo soviético.
Ao passo que sobre nossa terra feliz, brilhante e clara como sempre, o sol lançará seus raios fulgurantes. Nós,
o povo, continuaremos como antes palmilhando nosso caminho já então livres de qualquer traço da vileza e
da podridão do passado, e liderados pelo amado líder e mestre, o grande Stalin.26
O líder e mestre ficou encantado com tanto entusiasmo, e Vyshinsky tornou-se vice-
presidente do Conselho de Ministros,* depois ministro das Relações Exteriores,
vencedor do Prêmio Lenin e alvo de outras provas do favor de Stalin.
Não menos que o próprio Stalin, Vyshinsky entendeu a importância da farsa
política cuja representação dele se esperava. O último julgamento, em março de
1938, assistiu à consumação do processo de lavagem cerebral pública. As acusações
foram as de sempre: execução das ordens de Trotsky, ações de espionagem e
sabotagem, preparação do país para a derrota vindoura, desmembramento da União,
atentados contra Stalin e outros líderes destacados.
Para garantir o sucesso, os julgamentos tiveram um longo “tempo de ensaio”.
Diversos meses foram gastos na tentativa de dobrar os acusados. Os investigadores
usaram vasta gama de meios para obter a confissão desejada, a qual, contrariando as
normas jurídicas, serviria como prova principal da culpa. Alguns depoimentos
duraram até três meses, outros, apenas alguns dias. Vieram então os ensaios
humilhantes. Uma vez vergados, os réus eram forçados a memorizar a versão
adequada, a fazer declarações preparadas “desmascarando” pessoas nomeadas.
Depois de incontáveis repetições do vergonhoso embuste, os “diretores” eram
informados de que tal ou qual “ator” estava pronto para sua “performance”. Houve
contratempos ocasionais.
Por exemplo, no resumo que o meirinho leu para a corte em 2 de março de
1938, foi dito que o acusado, N.N. Krestinsky, “entrou em contato pérfido com a
intelligentsia alemã em 1921”, e chegou a um acordo com os generais Seekt e Hasse
sobre a colaboração com o Reichswehr por 250 mil marcos anuais de trabalho
trotskysta. Quando o presidente da corte perguntou se Krestinsky era culpado, o
acusado, contrariando seu testemunho anterior, começou a negar tudo. Houve
comoção nos corredores. A corte suspendeu os trabalhos. Stalin foi informado.
Explodiu de ódio. “Prepararam tudo muito mal.” E deixou claro que não queria o
fato repetido. Providências foram tomadas e, na mesma noite, Krestinsky voltou ao
“normal”.
Depois de ler a carta, Voroshilov decidiu que devia enviá-la imediatamente para
Stalin, como também respondê-la, deixando que Stalin e os outros tomassem
conhecimento do conteúdo de sua resposta. De qualquer forma, ele tomou o
cuidado para estabelecer um álibi político envolvendo seus assistentes. Dois
documentos foram rapidamente preparados:
Ultra-Secreto. PESSOAL. Para os Camaradas
STALIN
MOLOTOV
KAGANOVICH
ORDZHONIKIDZE
ANDREYEV
CHUBAR
YEZHOV
Com referência à carta de BUKHARIN a vós enviada em 1.IX.36, de nº 2389ss, anexo ao presente, por
ordem do Camarada K.YE. VOROSHILOV, a resposta de VOROSHILOV a BUKHARIN e uma cópia da
resposta de BUKHARIN.
Anexos: 3 páginas.
Comandante Divisionário Khmelnitskii
Ajudante do Comissário para a Defesa da URSS
4.IX.36
Ao Camarada BUKHARIN
Respondo à carta em que você se permitiu fazer ataques vis à liderança do partido. Se você esperava com tal
carta convencer-me de sua completa inocência tudo o que fez foi convencer-me de que devo, a partir de
agora, afastar-me ao máximo de você, independentemente do resultado de seu caso. E se você não repudiar
por escrito os inqualificáveis epítetos contra a liderança partidária vou considerá-lo um ser desprezível.
K. Voroshilov 3.IX.36***
Pode-se bem imaginar o choque que Bukharin deve ter tido ao receber esta carta,
embora, no íntimo, soubesse que a lâmina da guilhotina de Stalin estava suspensa
sobre sua cabeça. É possível que tenha se lembrado das palavras de Robespierre para
a Convenção de 8 do Termidor, na véspera de sua execução: “Eles chegaram à
tirania com a ajuda de canalhas, onde chegarão aqueles que lutam contra eles? Aos
seus túmulos e à imortalidade.” Bukharin lutou? Ao ler a devastadora carta de
Voroshilov, encontrou forças para responder ao comissário de Stalin:
Camarada VOROSHILOV
Recebi sua missiva consternadora.
Minha carta foi fechada com “Envio-lhe um abraço.”
A sua termina com “ser desprezível”.
O que pode ser escrito depois disto?
Todo homem tem, ou deveria ter, seu orgulho pessoal. Mas eu gostaria de acabar com um mal-entendido
político. Escrevi-lhe uma carta de natureza pessoal (que agora lamento muito) enquanto experimentava um
grave transe psicológico: considerando-me perseguido, escrevi para um grande homem; eu estava
enlouquecendo e só pensava no que poderia acontecer, ou que alguém pudesse acreditar que eu era culpado.
Por isso, esbravejei e escrevi: “Se vocês me acharam ‘insincero’ (por exemplo, que escrevi insinceramente
meus artigos sobre Kirov), e ainda assim me deixaram livre, então foram covardes etc.” E mais: “E se você
mesmo não acredita que Kamenev andou armando... etc.” Bem, então, segundo você, isso significa que penso
que você é covarde ou que estou chamando nossos líderes de covardes? Ao contrário: o que quero dizer é que,
uma vez que todos sabem que vocês não são covardes, isso significa que não acreditam que escrevi artigos
insinceros. Por certo, esta parte é clara em minha carta!
Porém, se minha carta foi tão confusa que pôde ser tomada como um ataque, então – não por um temor do
tipo de Judas, mas genuinamente – por três vezes, por escrito ou da maneira que lhe aprouver, retiro aquelas
frases, embora não quisesse dizer o que você pensou.
Considero maravilhosa a liderança do partido. E em minha carta a você, a despeito da possibilidade de que
nós dois tenhamos cometido enganos, escrevi: “Houve ocasiões na história em que pessoas maravilhosas e
políticos superlativos também incorreram em erros de natureza honesta.” Não era assim a minha carta? É
exatamente o que penso sobre nossa liderança. Admiti isso no passado e não canso de repeti-lo agora. Ouso
até achar que provei tal atitude com a atividade que desenvolvi nos últimos anos.
Seja como for, peço-lhe que desfaça esse mal-entendido. Desculpo-me muito por minha última carta e não
mais o incomodarei com outra. Ando extremamente nervoso. Foi isso que fez com que escrevesse a carta. Na
realidade, tenho que permanecer o mais calmo possível enquanto aguardo o desfecho da investigação que,
seguramente, provará minha completa falta de envolvimento com os bandidos. Porque aí reside a verdade.
Adeus.
Bukharin 3.IX.3628
Bukharin escreveu “Adeus”, porém, uma vez mais, Stalin afrouxou o nó em torno
do pescoço da vítima sufocada. O Pravda de 10 de setembro de 1936 publicou que,
na ausência de provas incriminadoras, o caso estava encerrado. Mas foi apenas um
pequeno alento, e chegara então a hora para que Bukharin seguisse o script que lhe
fora preparado.
No seu julgamento, por mais patéticos que tivessem sido seus apelos a
Voroshilov, lutou para se mostrar à altura da situação em seus próprios termos.
Percebendo que estava condenado, tentou, por vezes diretamente, noutras usando
linguagem esópica, e ainda noutras em forma de sátira trágica, lançar dúvida sobre
as acusações. É provável que, ao se despedir da vida, estivesse visualizando o futuro.
Naquele que foi o momento mais trágico de sua existência, ele foi capaz de preservar
a presença de espírito e o intelecto aguçado. Foi sua última tentativa de externar
dignidade:
Vejo-me [...] política como juridicamente, um responsável por sabotagem, conquanto pessoalmente não me
recorde de ter dado ordens para que fosse cometida sabotagem.
O cidadão Procurador afirma que, juntamente com Rykov, sou um dos mais importantes organizadores da
espionagem. Qual a prova? Teria sido o testemunho de Sharangovich, do qual não ouvi falar antes do
sumário de culpa?
Nego categoricamente que tenha tomado qualquer parte nos assassinatos de Kirov, Menzhinsky, Kuibyshev,
Gorky ou Maxim Peshkov.**** Segundo o depoimento de Yagoda, Kirov foi assassinado por ordens partidas
do “Bloco Trotskysta-Direitista”. Eu nada soube disto.
A lógica severa da luta foi acompanhada pela degeneração de nossa psicologia, de nossa própria degeneração,
da degeneração do povo.29
Se um diretor fosse chamado a levar para o palco aquele julgamento, teria que gastar alguns anos e um bom
número de ensaios para conseguir tal trabalho de equipe dos acusados; eles foram bem conscientizados,
ficaram bastante alertas para não cometer quaisquer deslizes em relação uns aos outros e demonstraram
preocupação com muito comedimento. Em suma, os hipnotizadores, envenenadores e funcionários da corte
que preparam os acusados, a par de outras qualidades excepcionais, com certeza foram extraordinários
diretores e psicólogos.30
O comitê central [...] autoriza o emprego da coação física pela NKVD, a começar em 1937. É bem sabido
que os serviços burgueses de informações usam a coação física do tipo mais revoltante contra representantes
do proletariado socialista. Por que então os órgãos socialistas devem ser mais humanos com os agentes
fanáticos da burguesia e inimigos declarados da classe trabalhadora e das fazendas coletivas? O comitê central
julga que a coação física deve ser utilizada excepcionalmente e, de agora em diante, empregada contra
inimigos conhecidos e revelados do povo, mas, nestes casos, encarada como método permitido e correto.32
Essa “exceção” tornou-se regra e foi utilizada tão logo um acusado dava os primeiros
sinais de resistência nas “conversas” com os investigadores.
Como Bukharin ainda não estava revelando coisa alguma e a “investigação”
ameaçava se estender bastante, Stalin ordenou que Yezhov utilizasse “todos os
meios”. Já vimos, das cartas que enviou a Voroshilov (e Stalin) em setembro de
1936, que o estado emocional de Bukharin tornara-se precário com o progresso do
terror. Então, com as ameaças feitas contra sua jovem esposa e o filho recém-
nascido, ele desabou completamente. Passou a assinar qualquer invenção
monstruosa que os investigadores arquitetassem, rotulando-o de “trotskysta”, “líder
do bloco”, “conspirador”, “traidor”, “organizador da sabotagem”, e assim por
diante. É dolorosa a leitura de suas palavras:
Confesso que sou culpado dos crimes mais abomináveis que podem existir: traição contra a mãe-pátria
socialista, organização de levantes kulaks, preparação de atos terroristas, filiação a uma organização subversiva
antissoviética. Confesso ainda mais que sou culpado de tramar um “golpe palaciano”...33
Conquanto Stalin se mostrasse bem radiante, deve ter percebido, ao ler alguns
relatórios dos interrogatórios, o sarcasmo disfarçado dos acusados enquanto
respondiam aos organizadores do “espetáculo” com ironia macabra:
Stalin captou a zombaria: perguntaram sobre vínculos com emigrados Brancos e eles
falaram sobre “probabilidade matemática”! Depois de cada sessão do júri, os réus
eram lembrados de que não apenas sua sorte estava em jogo, como também a de
seus mais próximos e queridos dependia da inteireza e da correção de seus
depoimentos.
Stalin estava decidido a evitar qualquer escorregão no julgamento dos 21;
Bukharin e seus cúmplices tinham que estar completamente “maduros”. Além do
mais, tal julgamento precisava ser o sumário do primeiro estágio do expurgo maciço
e do terror. Ele via aquele júri não apenas como um ato penal, coroando o
extermínio dos inimigos mais perigosos, mas também como uma lição de âmbito
nacional sobre a vigilância, a irreconciliabilidade e o ódio de classe por quem
resistisse a ele e, por consequência, ao socialismo. Ordenou, portanto, que o
julgamento tivesse ampla difusão pelos jornais e pelo rádio, e que fossem
organizados comícios para exigir “o extermínio dos vermes fascistas”.
Ele sabia que os julgamentos-shows fortaleceriam ainda mais seu poder, uma vez
que o povo e o partido não poderiam deixar de tirar a lição de que qualquer
oposição não tinha a mínima chance. Usou aqueles júris para instalar um sistema de
controle social mútuo pelo qual todos vigiavam todos, e apenas ele permanecia
acima da espreita e dos informantes. Mesmo as pessoas mais próximas a ele não
deveriam se sentir seguras, como o destino de Kosior, Postyshev, Rudzutak, Chubar
e muitos outros provaram eloquentemente.
Por outro lado, os julgamentos eram montados de forma a deixar Stalin na
sombra. Poucos foram seus pronunciamentos públicos sobre os júris e, para a
maioria da população, seu verdadeiro papel passou despercebido. Ele criou a ilusão
de que os inimigos e espiões estavam sendo julgados pelo próprio povo. Mas na
realidade, se toda a nação tivesse ficado responsável pelos procedimentos dos
tribunais, é certo que o resultado teria sido o mesmo. O país não tinha arrefecido da
luta de classes, da revolução, da guerra civil e da coletivização. Qualquer relato sobre
um terakt despertava viva indignação. O fascismo testava sua força na Espanha, a
Alemanha se militarizava, montavam-se pactos anti-Comintern, o mundo capitalista
olhava para a “Rússia Bolchevique” pelo tubo dos canhões.
Como escreveu o Vechernyaya Moskva de 15 de março de 1938:
A história não conhece crimes e atos diabólicos como os cometidos pela quadrilha do “Bloco Trotskysta-
Direitista” antissoviético. A espionagem, a sabotagem, os saques do bandido-chefe Trotsky e seus asseclas
Bukharin, Rykov e outros provocam um sentimento de raiva, ódio e desprezo não só no povo soviético mas
em toda a humanidade progressista.
Tentaram matar nosso querido líder, o Camarada Stalin. Em 1918, atiraram no Camarada Lenin,
interromperam a vida promissora de Sergei Mironovich Kirov, assassinaram Kuibyshev, Menzhinsky e
Gorky. Traíram a mãe-pátria.
O glorioso serviço soviético de informações, liderado pelo comissário stalinista Nikolai Ivanovich Yezhov,
esmagou o ninho de víboras desses vermes.
Desta forma, a Nação se transformou num bando de linchadores. Foi assim que a
manipulação da opinião pública criou o fenômeno da unidade em torno de uma
ideia falsa; que Stalin procedeu a lavagem cerebral em milhões de pessoas.
Os destruidores eram vistos por todos como inimigos, e não poderia ser de outra
forma. Em 13 de março, dia em que terminou o julgamento, o carro ZIS número
200.000 saiu da linha de montagem da Fábrica de Automóveis Stalin, em Moscou,
o plano trimestral das minas de carvão de Karaganda foi cumprido dentro do
previsto, e os moscovitas e visitantes da cidade puderam viajar pela primeira vez na
linha circular Pokrovsky do Metrô L.M. Kaganovich. Os melhores kolkhozes da
região de Tula começavam a instalar água corrente. Cada república, cada região,
queria prestar seus respeitos ao líder pelas novas conquistas. A atmosfera ia ficando
elétrica à medida que novas cidades e estradas eram construídas e o povo sentia que
a vida começava a melhorar. Mais e mais recordes eram atingidos e quebrados,
enquanto esses “inimigos” tinham planejado destruir tudo o que era mais caro à
nação.
A manipulação tornou-se mais fácil com a falta de abertura e de informação
genuína. Sem uma impressão dos primeiros vinte anos de regime soviético, sem o
clima mental dos anos 1930 e sem os imperativos que ditavam o comportamento do
povo, é impossível entender-se o drama social e a convulsão trágica que se
apossaram do país.
Não é só hoje que se mostra incredulidade e se pergunta por que tantos acusados
confessaram crimes não praticados. Este foi um dos maiores mistérios para a
imprensa ocidental daquele tempo, e Stalin, que sondava o estado de espírito
interno e estrangeiro, reagiu imediatamente. Seguindo sua determinação, o Pravda
publicou o artigo “Por que eles confessam?” Nele dizia que quando Vyshinsky
perguntava aos acusados se houvera alguma pressão para que confessassem, eles
negavam veementemente. Confirmavam que a investigação fora a mais correta
possível e que não houvera qualquer tipo de coerção direta ou indireta. O acusado
Muralov, por exemplo, asseverou que durante sua prisão fora tratado o tempo todo
“de maneira educada e civilizada”. Eles haviam conspirado. Havia provas. As
acusações foram estritamente baseadas nos fatos. Os acusados se sentiam
humilhados com o peso das evidências inquestionáveis.35 Enquanto esperava que a
opinião internacional se formasse, Stalin antevia o pior. Naturalmente, todos se
entreolhavam com a predisposição dos réus para não se defenderem e para
endossarem as acusações de maneira amistosa, porém, sem qualquer conhecimento
histórico, a imprensa ocidental jamais foi além de uma condenação abstrata à
“antidemocracia”. Stalin enfureceu-se com Trotsky porque ele publicava
comentários e refutações quase diários na imprensa ocidental e anunciava que
pretendia encenar seu próprio “antijulgamento”.
O artigo de Trotsky crítico e denunciador no Boletim da oposição nº 65, de
1938, levou Stalin à loucura. Com sarcasmo e perspicácia característicos, Trotsky
expôs a natureza absurda dos julgamentos:
Stalin descompôs Yezhov pela fabricação “cretina” dos casos e, mais uma vez,
especulou se não era hora de dar um fim a toda a campanha. Decidiu que, enquanto
existissem pessoas que vissem, mesmo que apenas mentalmente, Trotsky como uma
alternativa, ele deveria continuar.
Os julgamentos políticos tinham ainda outro objetivo. Com ajuda deles, Stalin
queria mostrar que todos os antigos oposicionistas – trotskystas, bukharinistas,
zinovievistas, mencheviques, dashnaks, SR, anarquistas, bundistas – foram
antissocialistas, e que tinham infectado os cidadãos soviéticos que trabalhavam no
exterior, tais como diplomatas, figuras culturais, gerentes industriais, cientistas, até
mesmo os que cumpriam seu dever internacional na Espanha. Muitos emigrados
que retornaram à terra natal e comunistas estrangeiros que trabalhavam no
Comintern ou em suas organizações em Moscou foram também rotulados como
“inimigos do povo”, juntamente com quem quer que tivesse sido anteriormente
expelido do partido, tivesse qualquer relutância em relação ao partido ou expressasse
dúvida política. Os parentes dos acusados eram automaticamente considerados
“inimigos”. Mesmo na NKVD houve grande número de vítimas, alguns por
tentarem sabotar as encenações jurídicas criminosas, enquanto outros foram
tachados na categoria de “inimigos” por zelo excessivo. Seus líderes se
transformaram também em tipos perigosos porque sabiam demais. Assim, Yagoda,
Frinovsky e Berman, entre muitos outros, foram acusados de cometer excessos,
distorções e “atividades destruidoras nos órgãos da NKVD”. Da mesma forma,
tornou-se um risco ter conhecido Lenin, ou ter combatido o czarismo e, portanto,
ainda que instintivamente, conhecer os valores da liberdade e da democracia. E, é
claro, existiram pessoas que sabiam mais sobre Iosef Djugashvili do que era bom
para elas.
A suspeita aumentou o momentum da violência. V. Zakharov, M. Motsiev e
outros trabalhadores ferroviários em Arzamas dificilmente entendiam as ideias de
Trotsky, porém foram exatamente aquelas ideias, combinadas com a “intenção de
cometer sabotagem terrorista” que os levaram à sentença de morte em 31 de
outubro de 1937. Como Ulrikh reportou a Stalin, “todos os acusados confessaram
inteiramente sua culpa”.
Uma característica dos julgamentos foi o desejo de Stalin de não apenas destruir
seus oponentes, reais ou imaginários, mas primeiro arrastá-los pelo lamaçal da
amoralidade, da delação e da traição. Todos os júris foram exemplos sem
precedentes de autodegradação, autoperjúrio e autoacusação. Quase sempre, os fatos
assumiam um tom ridículo quando os acusados afirmavam insistentemente ser
traidores, espiões e assassinos. Kamenev, por exemplo, afirmou nada menos que:
“Servimos ao fascismo, organizamos a contrarrevolução contra o socialismo.”
Promessas de benevolência, ameaças de repressão contra as famílias e a tortura física
sistemática acabaram por vergar essas pessoas e forçaram-nas a desempenhar seu
papel humilhante de acordo com a cena armada pelos “sumos sacerdotes da justiça”.
Stalin permaneceu nos bastidores enquanto seus assistentes, Vyshinsky e Ulrikh,
apresentavam o cínico espetáculo.
Quando aqueles irmãos de infortúnio, Bukharin e Rykov, foram destituídos da
condição de candidatos a membro do comitê central, Stalin deu-lhes um fio tênue
de esperança dizendo-lhes que a “NKVD esclareceria tudo”. Ao enfrentarem o
colegiado militar da Corte Suprema da URSS um ano mais tarde – “do outro lado
da muralha”, como disse Bukharin – sentiram que a taça da velhacaria estava cheia
até a borda, e eles foram forçados a sorvê-la toda.
Notas
*** Voroshilov dirigiu-se a Bukharin pela forma familiar de tratamento ao longo de toda a carta.
***** Boris Nicolaevsky, em Power and the Soviet Elite (Nova York, 1965), descreve seus encontros com
Bukharin nessa viagem. Bukharin estava acompanhado da esposa grávida, mas quando sugeriram que ele ficasse
no exterior, diz-se que respondeu: “Não acho que seria capaz de viver sem a Rússia. Estamos todos acostumados
com as coisas de lá e com as tensões da vida.”
[30]
Quadros no banco dos réus
Lembro-me de uma ocasião na Sibéria, onde estive exilado. Era primavera e as águas corriam altas. Trinta e
poucos homens saíram para recolher madeira que o grande rio carregava. Retornaram à vila pelo anoitecer,
mas faltava um deles. Quando perguntei o que tinha acontecido, simplesmente disseram: “Ficou por lá.”
Então perguntei: “Como assim? Ficou por lá como?” Eles responderam com indiferença: “Provavelmente se
afogou. E daí?” E um deles saiu às pressas resmungando alguma coisa a respeito da forragem da égua.
Quando os recriminei por se importarem mais com os animais do que com as pessoas, um deles disse, com
aprovação geral: “Por que nos preocuparmos com gente; podemos fazê-las a qualquer momento. Agora, tente
fazer uma égua...”
A atitude indiferente em relação ao povo demonstrada por alguns de nossos líderes e sua incapacidade de dar
valor aos seres humanos são uma ressaca da atitude idêntica com respeito às pessoas que acabo de mencionar.
Então, camaradas, se quisermos vencer a fome do povo das regiões e desejarmos que nosso país tenha
quadros capazes de fazer avançar a tecnologia, colocando-a em ação, temos primeiro que aprender a valorizar
gente, apreciar os quadros, prezar todo o trabalhador que seja capaz de fazer o bem por nossa causa. Temos,
finalmente, que entender que o capital mais valioso do mundo e o mais decisivo são as pessoas, os quadros.
Entender que, nas presentes circunstâncias, “os quadros determinam tudo”.36
Desta forma, já em 1935, Stalin estava consciente da escassez de pessoal, mas o
extermínio dos quadros estava ainda por ocorrer. Grandes lacunas logo surgiriam
nos escalões elevados do partido, do Estado e da administração econômica, no
exército profissional e na intelligentsia técnica e criativa, bem como nas organizações,
nas províncias e nas repúblicas. Centenas de milhares de pessoas seriam aniquiladas
como se atingidas por uma praga terrível. No início de 1939, Stalin ordenou que o
conselho superior dos quadros do Exército Vermelho apresentasse detalhes
estatísticos sobre o corpo de oficiais do exército e da marinha. Estudou as tabelas em
silêncio por algum tempo: quase 85% dos oficiais tinham menos que 35 anos de
idade. Folheou vagarosamente os relatórios. Talvez pensasse nos marechais e outros
oficiais que tinha despachado. Vira muitos deles ali no Kremlin. Estaria lembrando
o discurso de Voroshilov de 26 de novembro de 1938? O comissário, parecendo
anunciar grande vitória, dissera: “No curso do expurgo efetuado no Exército
Vermelho em 1937-1938, nos livramos de mais de 40 mil homens. [...] No período
de dez meses, em 1938, mais de 100 mil novos oficiais foram formados.”37
Restavam apenas dez dos cinquenta e tantos membros do antigo Conselho de
Guerra. Qualquer que tenha sido o pensamento que ocorreu ao contemplar as
lacunas assustadoras, Stalin decidiu aumentar o número de academias e escolas
militares. Mas tais lacunas, no entanto, não se restringiam aos militares.
O ex-comissário de Vias de Comunicação, I.V. Kovalev, disseme:
Em 1937, fui nomeado chefe da Ferrovia Ocidental. Cheguei em Minsk e fui direto ao escritório da
administração. Estava vazio. Não havia ninguém para me passar a função. Meu antecessor, Rusakov, fora
preso e fuzilado. Chamei os vices. Não havia nenhum. Tinham sido presos. Procurei qualquer pessoa e só
encontrei um estranho e terrível silêncio. Pareceu que um tornado passara por ali. Fiquei admirado que os
trens ainda rodassem e imaginei quem poderia estar controlando aquela gigantesca operação. Fui ao
apartamento de um conhecido que trabalhava na administração da ferrovia. Para minha surpresa, encontrei-o
em casa com a esposa, que estava em lágrimas.
“Por que não está trabalhando?”, perguntei mesmo antes de cumprimentá-lo. “Estou esperando. Eles
disseram que vêm me pegar hoje. Olhe só, botei na mala algumas camisas limpas. Nasedkin, da NKVD, está
expurgando um em cada dois. Provavelmente, vai paralisar a ferrovia.”
Depois de formar uma ideia da situação e de recuperar a compostura, telefonei a Stalin em Moscou – afinal
de contas, se a ferrovia não funcionasse como se esperava, eu seria o próximo da fila. Poskrebyshev atendeu.
Relatei-lhe a situação. De uma forma ou de outra, a turbulência terminou rapidamente. Também não era
para menos, não sobrava ninguém para ser preso.
Era este o padrão em todo o país, como ilustram os extratos do pleno de 1937.
Durante o debate sobre o relatório de Molotov, que tratou da campanha eleitoral
(que de eleições teve muito pouco, pois centrou-se mais nos inimigos do povo), o
secretário Sobolev do comitê regional do partido de Krasnoyarsk disse:
Como os vilões, saqueadores e inimigos do povo estão ativos há muito tempo na liderança de nossos
tribunais e procuradorias regionais, aconteceu que eles lançaram o peso da política punitiva sobre pessoas
totalmente inocentes; em três anos, 18 mil ativistas de kolkhozes e de vilarejos foram condenados, quase
sempre apenas porque um cavalo mancou ou porque chegaram atrasados no trabalho.38
Com base em evidência incontestável, o pleno considera necessário expelir do comitê central e prender como
inimigos do povo: Bauman, Bubnov, Bulin, Mezhlauk, Rukhimovich e Chernov, que se transformaram em
espiões alemães e agentes da okhranka [polícia secreta] czarista; Mikhailov, vinculado às atividades
revolucionárias de Yakovlev; e Ryndin, ligado ao trabalho contrarrevolucionário de Rykov e Sulimov.
Uma anotação com a caligrafia de Stalin aparece um pouco abaixo: “Todos estes
admitiram sua culpa.”44
Mais da metade do comitê central era constituída de “espiões” e “agentes da
polícia secreta czarista”! Vinte anos depois do colapso da dinastia Romanov, seu
departamento de polícia ainda funcionava como se nada tivesse acontecido!
Pesquisei nas listas amareladas que circularam entre os membros do comitê central
para que votassem e não encontrei um só voto negativo, uma só objeção ou
qualquer expressão de dúvida. Somente achei “De acordo”, “Sou favorável”,
“Concordo decididamente”, “Uma decisão correta”, “Uma medida necessária”, e
assim por diante. As consciências estavam embotadas pela mentira e pelo medo.
No final de 1938, praticamente não havia candidatos para preencher o
assustador número de vagas. Dos 139 membros e candidatos a membro do comitê
central, eleitos no XVII Congresso, 98, ou seja, 70% tinham sido presos e
executados em 1937-38. Na verdade, esta não foi a sorte apenas do comitê central,
mas dos delegados em geral. E 80% dos que tinham direito a voto haviam sido
bolcheviques desde antes de 1921. Stalin não podia esquecer que perto de 300
delegados haviam votado contra ele. Quem eram? O ditador viu um inimigo em
cada um.
As repúblicas e regiões cedo se viram drenadas de seus recursos humanos. Muitos
comitês de oblasts** perderam simplesmente seus primeiros-secretários; todos os
secretários do partido viram-se, nas palavras de Kaganovich, “morando” com
Yezhov. Apenas Stalin tinha as estatísticas oficiais. Seja o que for que ele fez com
essa gente, demonstrou grande coerência, e tendo decidido pela linha de ação,
resolveu segui-la até as últimas consequências.
De acordo com I.D. Perfilyev, um bolchevique da Velha Guarda que passou
muitos anos em campos de concentração e que me contou a história, certa vez, na
companhia de Molotov, enquanto apreciava uma lista de rotina com Yezhov, Stalin
resmungou sem se dirigir a ninguém em particular: “Quem irá se lembrar de todos
esses desclassificados em dez ou vinte anos? Quem se recorda dos nomes dos
boyars*** de quem Ivan, o Terrível, se livrou? Ninguém... O povo tinha que saber
que estava se vendo livre de todos esses inimigos. No final, todos tiveram o que
mereciam.”
“O povo entende, Iosef Vissarionovich, entende e o apoia”, replicou Molotov
automaticamente. Ambos sabiam que o povo estava silenciado. Os gritos de apoio
eram as vozes da ignorância, da ilegalidade e da intimidação.
O preceito de Stalin sobre “aprender a apreciar as pessoas, valorizar os quadros”
constituía o auge da blasfêmia. Yezhov, nomeado candidato a membro do Politburo
em outubro de 1937, propôs que a NKVD começasse a preparar listas de pessoas
que, em qualquer ocasião, tivessem sido investigadas por tribunal militar. O
relatório de Ulrikh mostra como tais casos foram tratados e quantos foram
“desvendados”:
Ao Comissário de Segurança Estatal, Primeira Classe, Camarada Beria, L.P. Durante o período de 1º de
outubro de 1936 e 30 de setembro de 1938, o colegiado militar da Corte Suprema da URSS e o colegiado
itinerante em sessenta cidades sentenciou:
30.514 ao fuzilamento
5.643 à prisão
36.157 no total
15 de outubro de 1938 V. Ulrikh45
Naqueles dois anos, Yezhov e, mais tarde, Beria enviaram a Stalin incontáveis listas
de “espiões”, juntamente com a sugestão de sentença (a maioria fuzilamento),
mesmo antes de os tribunais se reunirem. Primeiro, eles recebiam um relatório de
Ulrikh, dos quais o seguinte é um exemplo:
Em setembro de 1938, o colegiado militar da Suprema Corte da URSS, em Moscou, Leningrado, Kiev,
Kharkov, Khabarovsk e outras cidades sentenciou:
1.803 ao fuzilamento
389 à prisão
2.192 no total 45a
Para o mês de outubro, seriam mais 3.588, mas isso só se aplicava aos tribunais
militares. As cortes comuns também estavam funcionando.
Khruschev não tinha o direito moral de dizer, como o fez no XX Congresso:
“Não podemos encarar os atos de Stalin como comportamento de um déspota
louco. Ele considerou necessário agir daquela forma no interesse do partido e das
massas laboriosas, em nome da defesa de nossas conquistas revolucionárias. Esta foi
a tragédia!” Isto não é verdade. Stalin não poderia deixar de saber que o terror que
desencadeou prosseguiria com base na total violação da legalidade socialista. Não
poderia deixar de saber que os julgamentos eram farsas do início ao fim. É bem
possível que, genuinamente, quisesse uma sociedade florescente e o bem-estar de
seus concidadãos, e, sem dúvida, desejava um Estado forte. Porém, o que não quis
foi perguntar aos membros daquela sociedade como eles desejavam chegar à
consecução dos ideais socialistas.
A despeito de sua determinação em alcançar os objetivos que estabelecera para si
mesmo, por vezes chegou a hesitar quando, de repente, o volume da repressão
começou a repercutir. Isto explica o debate travado no pleno de janeiro de 1938
sobre os enganos cometidos pelas organizações do partido na expulsão de membros.
Foi Stalin quem levantou a questão. Ao ouvir relatórios de Malenkov, Bagirov,
Postyshev, Kosior, Ignatiev, Zimin, Kaganovich, Ugarov, Kosarev, teve que ficar
admirado com a amplitude do terror, com a ilegalidade e com a efetiva destruição
dos quadros. Postyshev relatou que, ao chegar a Kuibyshev, encontrou todos os
órgãos do partido paralisados pelo expurgo; em nada menos que trinta comitês
distritais permaneciam apenas dois ou três membros, o que significava que não mais
funcionavam. De imediato, Stalin, Beria, Yezhov, Malenkov e Molotov acusaram
Postyshev!
Os documentos indicam que a decisão de “afundar” Postyshev fora tomada antes
do plenário. Quase todos os oradores realçaram seus erros. Acompanhado por
comentários de aprovação de Stalin, Kaganovich, o crítico principal, disse entre
outras coisas:
Conheço bem Postyshev. O Comitê Central enviou-me a Kiev no ano passado quando descobriu que o
Camarada Postyshev cometera os maiores erros na liderança das organizações partidárias de Kiev e
ucranianas. Em Kiev, Postyshev revelou-se um trabalhador que violou, na prática, as ordens do partido, daí a
razão de o comitê central tirá-lo de lá. A cegueira de Postyshev em relação aos inimigos do povo chega a ser
quase criminosa. Não foi capaz de vê-los mesmo quando todas as evidências apontavam para eles. [...] Ao
observá-lo nos corredores e ao ouvi-lo discursar neste plenário não posso deixar de dizer que você não está
sendo leal com o comitê central.
“Sempre fui leal em toda a minha vida”, tentou protestar Postyshev. Kaganovich
continuou:
O que Postyshev disse aqui no pleno é a repetição de conversas hostis ao partido. Ele parece não querer ver
que promovemos mais de 100 mil novas pessoas. Esta é uma grande vitória stalinista.46
Formamos uma opinião aqui no Presidium do Comitê Central ou, se preferirem, no Politburo, que, depois
de tudo o que aconteceu, medidas têm que ser tomadas com respeito ao Camarada Postyshev. Na nossa
opinião, ele deve ser removido da filiação como candidato ao Politburo, mas permanecer como membro do
comitê central.47
Foi realizada uma votação que, é claro, resultou unânime. Postyshev ficou em
liberdade por apenas um mês. Por ordem de Stalin, a comissão de controle do
partido, em fevereiro, minutou um decreto sobre ele que foi baixado pelo Politburo.
Seu conteúdo principal foi formulado e aprovado pelo próprio Stalin. Postyshev foi
acusado das seguintes transgressões:
Camarada Malenkov,
Sou subcomandante de uma unidade de tropas do interior da NKVD. Foi organizada uma reunião para a
outorga ao Camarada Stalin da Medalha da Vitória. Porém, apenas oficiais foram convidados para a reunião,
as praças não. Coisa estranha. O general Brovkin conduziu o encontro. Três ou quatro pessoas discursaram e,
com isso, a reunião foi encerrada. Depois, foi-nos dito que a unidade seria empregada na colheita da safra e
que o chefe da seção política, Kuznetsov, fora transferido para outra função alhures.
Uma ocasião politicamente tão importante, como um encontro dedicado à condecoração do Camarada
Stalin com a Medalha da Vitória, foi perdida, desperdiçada, apequenada.
** Províncias. [N.T.]
**** Na realidade, eles simplesmente pararam de funcionar, uma vez que 3.500 comunistas de Kuibyshev foram
expulsos do partido no período de cinco meses, em 1937.
Muita gente que teve relação estreita com Stalin no ápice de seu mando me falou
de sua atitude extraordinariamente suspeitosa, que se estendia até o círculo
imediato, seus assistentes e pessoas chegadas. Segundo A.N. Shelepin, Stalin
determinou que Beria checasse sua equipe de segurança. Beria demonstrava estar
atento “descobrindo” periodicamente um “espião” ou um “terrorista” entre o
pessoal de Stalin. Vez por outra, relatava sobre sinais ou fatos suspeitos que recebera.
Foi assim que, certa vez, ordenou a prisão de um servente da limpeza, Fedoseyev, e
de sua esposa por arquitetarem um terakt. Até as gardênias que ficavam no exterior
das janelas tinham que ser mantidas podadas à altura de cinquenta centímetros ou
menos, para evitar que alguém se escondesse por trás delas. Ninguém sabia se Stalin
passaria a noite dormindo no divã do estúdio ou na cama do pequeno quarto,
portanto, as camas permaneciam disponíveis e arrumadas nos dois lugares.
Ninguém, exceto Beria, ousava entrar no quarto de Stalin sem ser chamado.
Quando se dirigia à dacha na limusine blindada, acompanhada por um comboio
de outros veículos, Stalin sabia que cada viagem daquelas representava uma
operação completa para a segurança. Ao lado do motorista, Mitrokhin, ia um dos
seguranças, Tukov ou Starostin (nos anos 1940). Se Stalin detectasse uma expressão
que não fosse do seu gosto no olhar de qualquer deles, a pessoa jamais voltava a
trabalhar para ele. Deve ser ressaltado que, apesar dos mitos fabricados por Beria e
seu círculo sobre atentados contra a vida do secretário-geral, nada há registrado a
este respeito.
Khruschev referiu-se à desconfiança patológica de Stalin que se estendeu aos
membros do Politburo. Provavelmente, só confiava em Vlasik e Poskrebyshev, e
talvez em Valya Istomina, sua “empregada”, a jovem que se mudou para sua casa
logo depois da morte da esposa, Nadezhda Alliluyeva. Ela cuidou dele até o fim da
vida e tentou proporcionar-lhe os maiores confortos possíveis. A despeito do
temperamento um pouco ríspido de Stalin, ele frisou mais de uma vez o cuidado
simples e sincero que ela lhe devotava. Porém, a suspeita quase maníaca foi um dos
traços dominantes de sua personalidade.
Por conseguinte, a informação a ele remetida pelo presidente Benes da
Tchecoslováquia aumentou sensivelmente suas dúvidas sobre Tukhachevsky. Várias
fontes – inclusive Winston Churchill – acreditam que Stalin foi fisgado por um
documento arquitetado em Berlim sobre uma trama de Tukhachevsky e dos
generais. O serviço alemão de contrainformação, chefiado pelo almirante Canaris,
copiara a assinatura de Tukhachevsky e a apôs num documento em Berlim, nos idos
de 1926, sobre a cooperação com uma empresa alemã de tecnologia aeronáutica.
O objetivo de tal medida ardilosa era passar a ideia de que Tukhachevsky
mantinha contatos secretos com alguns generais alemães para derrubar Stalin pela
força. Um incêndio na noite de 1º de março de 1937 e o roubo de documentos
foram encenados em Berlim para explicar o aparecimento em Praga daquele
documento específico.
Benes, sem dúvida, agiu com a melhor das intenções ao enviar o documento para
Moscou, onde Stalin, embora alertado, não fez mais do que encaminhá-lo a Yezhov
naquela ocasião. Foi feita uma investigação sigilosa sobre Tukhachevsky e recolhido
mais “material” a seu respeito. Os eventos, então, provavelmente ganharam maior
impulsão, como B.A. Viktorov, ex-vice-chefe da procuradoria militar, relatou-me.
Ele dirigiu um grupo especial de promotores e investigadores militares que foi
organizado depois do XX Congresso para reabilitar os injustamente condenados por
Stalin.
Entre muitos outros itens interessantes, Viktorov lembrou o caso de um
investigador chamado Radzivilovsky, que foi sentenciado em 1937 por violar a
legalidade, cujo depoimento contém o seguinte trecho:
Com base em fatos que denunciam Rudzutak, membro do Comitê Central, e Tukhachevsky, candidato a
membro, como participantes de um bloco conspirativo antissoviético trotskysta de direita [sic!] e responsáveis
por trabalho de espionagem contra a URSS para a Alemanha fascista, o Politburo do comitê central coloca
em votação a proposta de expulsão de Rudzutak e Tukhachevsky do partido, e de encaminhamento de seus
casos ao comissariado de Questões Internas.55
A votação foi a favor por unanimidade. Ninguém teve qualquer dúvida, ninguém
saiu em defesa das vítimas. Líderes militares que bem conheciam Tukhachevsky dos
dias de guerra civil tomaram cegamente por verdadeiras as palavras dos
provocadores, sem mesmo tentarem ouvir o que o marechal tinha a dizer. O
momentum da ilegalidade já era muito forte. Ninguém expressou desejo de conhecer
o que estava por trás da expressão “com base em fatos que denunciam...” Alguns
membros foram além da resolução de Stalin. Budenny, por exemplo, escreveu na
cédula de votação: “Definitivamente, sim. Estes patifes têm que ser punidos.”
Mekhlis, como de hábito, sublinhou várias vezes o seu “sim”. Nem Voroshilov, nem
Yegorov, que serviram com Tukhachevsky, nem Khruschev ou Mikoyan, que iriam
mais tarde condenar este ato ilegal, tiveram coragem para se abster do fatídico
“sim”. Por razões não explicadas, Stalin, como sempre, deixou sua cédula de votação
em branco.
Stalin conhecia Tukhachevsky desde a guerra civil, sabia da excelência de seu
comando do V Exército e se lembrava da ordem do Revvoensoviet de 28 de
dezembro de 1919: “Seja o Comandante do V Exército, Camarada M.N.
Tukhachevsky, agraciado com a Honraria da Arma Dourada por bravura pessoal,
ampla iniciativa, energia, eficiência e conhecimento da profissão, tudo isto
demonstrado nas vitoriosas ações do Exército Vermelho no Oriente, na captura de
Omsk.”56
Enquanto ouvia os relatos de Yezhov sobre os interrogatórios de M.N.
Tukhachevsky, I.E. Yakir, I.P. Uborevich, A.I. Kork, P.E. Eideman, B.M. Feldman,
V.M. Primakov e V.K. Putna, Stalin meditava sobre o mais jovem daqueles oficiais
dos altos escalões, cinco deles marechais da União Soviética. O secretário-geral
sempre reconheceu a alta qualificação profissional de Tukhachevsky, a originalidade
de seu pensamento estratégico e seu indubitável talento como teórico. Por outro
lado, desde a guerra civil, sempre guardou uma desconfiança hesitante nos
“especialistas burgueses” e veio a desgostar do marechal por sua independência e
pela coragem de suas opiniões, como também tinha conhecimento das más relações
entre Tukhachevsky e Voroshilov. Recordou-se de uma nota de Gamarnik, chefe da
seção política do Exército Vermelho, informando que Tukhachevsky propusera o
afastamento dos chefes das administrações políticas distritais, proposta que tanto
Gamarnik quanto Stalin consideraram “absolutamente incorreta e prejudicial em
tempo de paz e de guerra”.57 Naquela oportunidade, Stalin apoiara Gamarnik.
Tinha também conhecimento de que Voroshilov alimentava uma opinião invejosa
sobre as teorias de Tukhachevsky58 porque elas o tornavam mais consciente de que,
por sua falta de preparo, ele estava se apegando a noções ultrapassadas de
organização militar. Portanto, a posição de Tukhachevsky como primeiro vice de
um comissário que lhe era incomensuravelmente inferior em termos intelectuais, de
qualquer forma, dificilmente poderia perdurar. Era improvável que Voroshilov desse
o devido valor a Tukhachevsky, e a transferência deste último para um cargo de
menor realce veio na ocasião oportuna quando foi nomeado para comandar o
distrito militar do Volga. Tal comissão não durou muito.
Também estava claro para Stalin que Tukhachevsky era superior a Voroshilov
em todos os aspectos. Mas isto era comum. Um chefe não precisa ser mais
inteligente que seus subordinados. O importante era a “linha”, e nisto Voroshilov se
mostrava melhor, enquanto Tukhachevsky... Era difícil acreditar em tudo que
Yezhov reportava, porém até Trotsky dera algumas pistas em seu livro A Revolução
traída. Numa recente entrevista em Oslo, o “cidadão sem um visto” dissera: “Nem
todo o mundo no Exército Vermelho é dedicado a Stalin. Eles ainda se lembram de
mim.” E Trotsky e Tukhachevsky conheciam um ao outro. [...] À proporção que lia
os documentos, Stalin forçou-se a crer que a história da conspiração não só era
verdade como constituía verdadeira ameaça. Fosse como fosse, Yezhov relatara que
os “conspiradores haviam confessado”.
Stalin ordenou que um julgamento fechado fosse rapidamente feito. Todos
deveriam ser fuzilados. Acenou com a cabeça para sua mesa onde um exemplar do
Bolshevik estava aberto num artigo de Tukhachevsky “Sobre o novo Estado-maior
de campanha do Exército Vermelho”. Os eventos se movimentaram com tal rapidez
que o editor não tivera tempo de excluí-lo da publicação. No início de junho de
1937, antes do julgamento, o conselho de defesa (cujos membros foram todos
executados no espaço de seis meses) ouviu o relatório de Yezhov e Voroshilov sobre
o desvendamento de “uma infame organização militar contrarrevolucionária e
fascista”. Os maquinadores operavam havia muito tempo, dizia o relatório, e suas
atividades eram cerradamente relacionadas com círculos militares alemães. Além
disso, eles planejaram o assassinato de líderes do partido e do Estado para conquistar
o poder com a ajuda da Alemanha fascista. O destino de Tukhachevsky estava
definido. Em 11 de junho de 1937, menos de duas semanas depois de sua prisão,
teve lugar o julgamento fechado, que só foi mencionado pela imprensa naquele
mesmo dia. A sentença foi anunciada no dia seguinte.
O júri foi conduzido com rapidez extrema e com extrema falta de justiça. Foi
aberto às nove da manhã e a sentença lida pouco depois do almoço. O tribunal foi
constituído pelo advogado militar V.V. Ulrikh, pelos marechais do exército S.M.
Budenny e V.K. Blyukher, pelos comandantes de exército, primeira classe, B.M.
Shaposhnikov e I.P. Belov, comandantes de segunda classe do exército Ya.I. Alksnis,
P.Ye. Dybenko e N.D. Kashirin, e pelo comandante divisionário Ye.I. Goryachev.
Aos acusados foram negados o conselho de defesa e o direito à apelação,
determinados pela lei de 1º de dezembro de 1934.
Tukhachevsky, Yakir, Uborevich, Putna, Primakov, Kork, Eideman e Feldman
sentaram de frente para os antigos camaradas de exército. Todos se conheciam
bastante bem. Ninguém naquele tribunal poderia supor que havia ali conspiradores
e espiões. Os réus devem ter sentido uma ponta de esperança, pois seus juízes, que
com eles serviram por 25 anos sob a mesma bandeira, poderiam dar ouvidos, se não
à voz da justiça, pelo menos a um senso de espírito de corpo.
Ya.B. Gamarnik estava também previsto para o julgamento, seja como acusado,
seja como membro do júri. Sua filha V.Ya. Kochneva descreveu o último dia dele
para mim:
Meu pai caiu doente no fim de maio, ou porque sentiu que as coisas caminhavam para um desenlace ou por
causa de um ataque de diabetes. Segundo minha mãe – eu tinha apenas 12 anos – ele sabia que
Tukhachevsky fora preso em 27 de maio e que Uborevich, Yakir e o restante tinham sido apanhados dia 29,
no trem.
Blyukher foi visitar meu pai no dia 30. Eram velhos amigos dos dias de Extremo Oriente. Conversaram por
longo tempo. Depois, meu pai disse à minha mãe que fora convocado para juiz do caso Tukhachevsky.
“Mas como posso fazer isso?”, exclamou. “Sei que eles não são inimigos. Blyukher disse que se eu não for
poderei ser preso.”
Blyukher voltou para uma conversa rápida no dia 31. Depois vieram outras pessoas e selaram a sorte de meu
pai. Disseram-lhe que tinha sido transferido de função e que seus assistentes, Osepian e Bulin, já estavam
presos. Recebeu ordens para permanecer em casa. Tão logo os agentes da NKVD saíram, ouviu-se um tiro
no escritório. Quando minha mãe e eu corremos, estava tudo acabado.
Acho que o tiro foi uma resposta à proposta de Stalin para que meu pai fizesse parte do júri sobre seus
amigos do exército. Uma resposta à ilegalidade. Ele não achou outra maneira de fazê-lo. Minha mãe foi presa
e sentenciada a oito anos de prisão como “esposa de um inimigo do povo”, e a mais dez anos em campo de
concentração “por ajudar um inimigo do povo”. Jamais a vi de novo e, aparentemente, morreu no campo em
1943. Fui mandada para um abrigo de jovens. Quando fiz 16 anos, em 1941, recebi uma pena de seis anos
por ser “elemento socialmente perigoso”. Assim começaram meus tempos de exílio...
Por acaso, descobri que o nome de meu investigador-monstro era Stolbunsky. Não sei onde ele se encontra
agora. Se estiver vivo, gostaria que lesse estas linhas e sentisse o desprezo que lhe devoto, embora eu ache que
já sentisse àquela época. Posso ainda ouvi-lo sussurrando perversamente enquanto me arrastavam, exausto e
coberto de sangue: “Você vai assinar, vai assinar.” Sobrevivi ao tormento por duas sessões, mas quando
começou a terceira eu só queria morrer.
Feldman foi o primeiro a ser preso. Negou categoricamente qualquer participação na trama, em especial
contra Voroshilov. Peguei seu arquivo pessoal e, depois de lê-lo, cheguei à conclusão que Feldman tinha
laços de amizade com Tukhachevsky, Yakir e diversos generais de destaque. Convoquei Feldman a meu
gabinete, tranquei a porta e, na noite de 19 de maio, ele já estava assinando uma declaração sobre um golpe
que implicava Tukhachevsky, Yakir, Eideman e os outros. Depois me deram Tukhachevsky para interrogar,
e ele confessou no dia seguinte. Sem deixá-lo dormir, arranquei dele fatos e mais fatos, nomes e mais nomes
dos conspiradores. Até mesmo no dia do julgamento, consegui testemunho adicional de Tukhachevsky
incriminando Apanasenko e outros na conspiração.59
O próprio Vyshinsky participou de uma das sessões do interrogatório de
Tukhachevsky, forçando-o a assinar as seguintes palavras: “Confesso minha culpa.
Não tenho queixas.” Na realidade, todos os acusados escreveram cartas com
reclamações e pleitos de clemência a Stalin, Molotov e Voroshilov.
Os camaradas de Tukhachevsky também passaram pelo tratamento “vigoroso”,
pela intimidação, pela ameaça aos familiares e pela tortura física. Ao longo dos
interrogatórios, era-lhes dito que só salvariam suas vidas com a confissão.
Antes que as sentenças fossem pronunciadas, Ulrikh e Yezhov mantiveram Stalin
informado sobre o progresso do julgamento e o comportamento dos réus. Ulrikh
depositou obsequiosamente a minuta das sentenças sobre a mesa do secretário-geral.
Sem mesmo olhar para os auxiliares, Stalin declarou: “De acordo.” Então, depois de
breve silêncio, perguntou:
“Quais foram as últimas palavras de Tukhachevsky?”
“A víbora disse que era dedicado à pátria-mãe e ao camarada Stalin. Pediu
clemência”, respondeu Yezhov de pronto. “Mas ficou claro que não estava sendo
sincero, ele não baixou a guarda.”
“E quanto à corte? Como se comportaram os membros do júri?”
“Só Budenny tomou parte ativa, o restante ficou em silêncio a maior parte do
tempo. Alksnis, Blyukher e talvez Belov fizeram uma ou duas perguntas.”
Stalin tivera, desde o início, dúvidas sobre os membros da corte e decidiu de
imediato vigiá-los de perto. Exceto Budenny e Shaposhnikov, todos seriam presos
logo depois. Kashirin e seus dois irmãos, literalmente, no espaço de poucos dias.
Os apelos por perdão não foram respondidos. Stalin não era chegado a
“branduras”. Na noite de 12 de junho de 1937, todos os acusados foram fuzilados,
inclusive Primakov, malgrado as promessas de que sua vida seria salva em troca de
admissões “de coração aberto”. “Nenhuma compaixão para os traidores e espiões da
mãe-pátria” foi o título de um artigo do Bolshevik sobre o julgamento de
“Tukhachevsky e Cia.”, descritos como se “desempenhassem o mesmo papel de
Franco, o desprezível inimigo do povo espanhol”.60
O massacre dos quadros militares estava apenas começando. A NKVD
trabalhava a todo o pano. Cada chamada telefônica, cada telegrama, cada relatório
do órgão disparava todo um processo, mais vítimas, mais sofrimento. Dois dos
telegramas de Mekhlis são ilustrativos:
Ao Camarada Stalin
Despedi 215 trabalhadores políticos, dos quais uma boa parcela foi presa. Mas estou longe de terminar o
expurgo do aparato político, particularmente nos escalões inferiores. Penso que não devo sair de Khabarovsk
antes de, pelo menos, fazer uma boa triagem nos quadros comunistas.61
Com aprovação de Stalin, Mekhlis e os seus forjaram as derrotas de 1941 que iriam
resultar em milhões de novas vítimas. As listas de comandantes militares e
trabalhadores políticos que pereceram se assemelham a um inacreditável, terrível e
infindável obituário. Entrementes, a tragédia continuou. O comandante de brigada
Medvedev, o qual, sob tortura, fizera o depoimento requerido contra
Tukhachevsky, foi fuzilado. Da mesma forma que Yagoda antes dele, Yezhov
dispôs-se a apagar qualquer vestígio. A maioria dos membros da corte especial que
condenara Tukhachevsky e os outros foram eles próprios despachados. Vale ressaltar
uma carta de Dybenko para Stalin:
7 de novembro de 1937
Membro do partido desde 1912 Ya. Zhigur63
Em novembro de 1917, num congresso do I Exército em Stokmozgof, ouvi um discurso do então tenente-
coronel SR de direita A.I. Yegorov, no qual ele chamou Lenin de aventureiro e emissário dos alemães. Em
suma, o discurso conclamava os soldados a não acreditarem em Lenin.64
Mais uma vez, a votação foi unânime e, de novo, a cédula de votação de Stalin foi
deixada em branco.
Restava ainda um marechal “duvidoso”, Vasily Konstantinovich Blyukher, talvez
o mais destacado líder militar de antes da guerra. Ele foi o primeiro a ser
condecorado com a Ordem da Bandeira Vermelha, da qual possuía quatro graus,
recebeu a primeira Ordem da Estrela Vermelha, e uma de suas duas Ordens de
Lenin foi das primeiras a serem outorgadas.
Stalin não ficou satisfeito com a atuação de Blyukher durante a campanha da
Mongólia, em julho-agosto de 1938, quando os japoneses capturaram território
soviético na fronteira acima do lago Khasan. Voroshilov expedira uma ordem para
que o inimigo fosse destruído, mas Blyukher, como comandante do Exército
Separado da Bandeira Vermelha no Extremo Oriente, recusou lançar-se de
afogadilho sobre o inimigo, preferindo preparar-se cuidadosamente. Foi chamado
na linha direta para falar com Stalin. Tiveram um diálogo curto, porém áspero:
Stalin: “Como é, Blyukher, diga-me por que ignorou a ordem do comissário da Defesa para um bombardeio
aéreo sobre todo o nosso território ocupado pelos japoneses, inclusive os montes Zaozernaya?”
Blyukher: “Relatando. A Força Aérea está pronta para decolar. Só houve um pequeno atraso na decolagem
devido a condições meteorológicas desfavoráveis. Neste exato minuto, dei ordem a Rychagov [comandante
da Força Aérea] para colocar os aviões no ar, independentemente de qualquer coisa, e efetuar o ataque. Os
aviões estão decolando agora, mas temo que seja inevitável atingirmos nossas próprias unidades bem como
assentamentos coreanos.”
Stalin: “Diga-me com honestidade, Camarada Blyukher, você quer mesmo combater os japoneses? Se não
quiser, declare logo, como um bom comunista, mas se quiser, acho que você tem que chegar lá sem retardos.
Não entendo sua preocupação com a possibilidade de bombardeio de assentamentos coreanos, nem seu
temor de que a força aérea seja incapaz de cumprir a missão por causa da neblina. Quem disse que você não
pode atingir a população coreana durante uma confrontação armada com os japoneses? Por que se inquietar
com os coreanos quando nosso povo está atirando nos japoneses? O que significa um pouco de neblina para
a aviação soviética, quando ela deseja realmente defender a honra da pátria-mãe soviética? Estou esperando
por sua resposta.”
Blyukher: “A Força Aérea recebeu ordem para decolar, e o primeiro grupo de caças o fará às 11h20.
Rychagov promete começar o ataque às 13h. Voarei para Voroshilov [a localidade] com Mazepov e
Bryandinsky [oficiais de Estado-maior da Força Aérea] tão logo comece a operação. Aceitamos suas ordens e
as cumpriremos com precisão bolchevique.”66
Mekhlis, que fora enviado para o Leste, instigara a liderança em Moscou com
relatórios sobre um comando supostamente indeciso no Exército do Extremo
Oriente, comprometendo assim Blyukher.
Stalin logo convocou Blyukher a Moscou, embora não tivesse a intenção de
conversar com ele. O marechal ficou sem função por algum tempo e depois, em 22
de outubro de 1938, foi preso. A ordem de prisão levou a assinatura de Yezhov, o
qual, em poucas semanas, iria, ele próprio, se juntar aos milhares que consignara ao
esquecimento.
Blyukher foi lançado no moedor de carne exatamente na ocasião em que este
desacelerava. De início, ficou a impressão de que poderia sobreviver. Uma instrução,
expedida em novembro de 1938 pelo conselho de ministros e pelo Comitê Central,
fez referências às violações grosseiras da legalidade no processo investigativo, mas
Beria, que já estava encarregado do caso Blyukher, a ignorou. O marechal foi
interrogado durante diversos dias, mas resistiu bravamente, negando vinculação com
qualquer “golpe trotskysta-fascista”. Será que, enquanto era torturado, lembrou-se
de sua participação no ardiloso julgamento de Tukhachevsky? Naquela ocasião,
desperdiçara a oportunidade de demonstrar probidade para mitigar o destino do
primeiro marechal soviético; agora, estava no lado mais fraco.
Segundo B.A. Viktorov, que também conduziu esta reabilitação, Blyukher foi
visto pela última vez em 5 e 6 de novembro, irreconhecível depois de ser
impiedosamente espancado. Seu rosto era uma posta de sangue e um dos olhos fora
arrancado. Os inquisidores de Beria se esmeraram para terminar sua terrível tarefa
antes do grande feriado nacional de 7 de novembro. Em 9 de novembro, Blyukher
morreu nas masmorras de Beria devido às torturas sofridas. Morreu, mas não cedeu:
não assinou as monstruosas mentiras.
A lista dos oficiais que pereceram é infindável; constituíam a flor do corpo de
oficiais, com experiência da guerra civil, e a maioria deles relativamente jovem. O
golpe nas forças armadas soviéticas foi imenso. Quem poderia pensar que as
sementes da provocação lançadas pela Gestapo, pelos emigrados Brancos e,
inadvertidamente, por Trotsky encontrariam solo tão fértil? Quase todos os vice-
comissários distritais, a maioria dos membros do conselho de guerra, quase a
totalidade dos comandantes de distritos militares e comandantes do exército foram
expurgados. Pelas estatísticas disponíveis, em 1937-38, cerca de 45% das equipes
políticas e de comando do exército e da marinha, de comandante de brigada para
cima, foram exterminados. Como o próprio Voroshilov reportou ao conselho de
guerra, no fim de novembro de 1938, o Exército Vermelho fora “depurado de mais
de 40 mil homens... Alterações enormes foram efetuadas na liderança do exército:
permaneceram apenas dez dos membros originais do conselho de guerra”. Não é
difícil imaginar a situação experimentada pelos distritos militares.
No seu relatório para Moscou do início de março de 1938, o comandante do
distrito militar de Kiev, S.K. Timoshenko, e o membro do conselho de guerra N.S.
Khruschev descreveram como grande vitória o fato de 3 mil “inimigos” terem sido
expurgados das tropas do distrito, dos quais mais de mil foram presos. Praticamente
todos os comandantes de corpos e de divisões foram substituídos. “Como
consequência do extermínio dos elementos trotskystas-bukharinistas, cresceu o
poderio das forças distritais.”67
Silêncio e inação não foram as únicas respostas ao expurgo no exército.
Incontáveis relatórios passaram a chegar dos departamentos políticos descrevendo a
dúvida, a confusão e a pura descrença que campeavam nas unidades. Por exemplo:
Tenente Shkrobat, não membro do Partido, 101º Regimento de Artilharia: “Não posso acreditar em Stalin
quando afirma que Yakir e Tukhachevsky são inimigos do povo.”
Zubrov, integrante do Exército Vermelho: “Sob Nicolau, eles não puderam enforcar número suficiente de
pessoas; agora, podem fuzilar. Mas não vão conseguir exterminar todos.”
Trushinsky, instrutor da escola de artilharia: “Seria o próprio Stalin um trotskysta?”
Comandante Naval Kirilov: “Não creio que Bukharin e outros sejam inimigos do povo e do socialismo. Eles
só quiseram mudar a liderança do partido.”68
Dois comandantes encontram-se num bonde. “Então, como vão as coisas? Conosco é como um massacre
tártaro. Prenderam fulano e sicrano...” O outro diz: “Tenho medo de abrir a boca. Fale o que falar, se você
diz algo errado, é logo tachado de inimigo do povo. A covardia passou a ser a norma.”
Investigue quantos você já expulsou do Exército Vermelho em 1937 e tome consciência por si próprio da
dura verdade.
Você pode me chamar de inimigo-do-povo-trotskysta-alarmista etc. Não sou um inimigo, mas acho que
caminhamos para um beco sem saída.
5 de dezembro de 1937 Kolosov69
Não sei o que aconteceu com Kolosov, mas sua carta mostra que nem todos
permaneceram silenciosos. Muitos se alarmaram com a sangria sofrida pelo exército
às vésperas de tempos de provação, porém a ânsia de Stalin em preservar seu poder a
qualquer custo, mesmo que a ameaça a ele fosse puramente imaginária, sobrepujou a
preocupação principal com a segurança do país.
Nota
b. Anotamos a fraca situação do processo investigativo. As investigações com frequência dependem dos
criminosos e de sua boa vontade em prestar ou não testemunhos completos.
c. O sistema que foi organizado para os inimigos do regime soviético é intolerável. Suas acomodações mais
parecem casas de repouso compulsório do que prisões (eles escrevem cartas, recebem encomendas e assim por
diante).72
O memorando afirma que A.I. Yegorov confessou e foi sentenciado. Isto é falso.
Yegorov não confessou e morreu quando era interrogado.
Stalin lembrou-se de que, em julho de 1938, depois do escrutínio para membros
e candidatos a membro do comitê central, Vlas Yakovlevich Chubar fora afastado
do cargo de candidato a membro do Politburo, função que ocupava desde o XV
Congresso. Ele escrevera um longo e analítico memorando a Stalin sobre o
aprimoramento da indústria de material bélico. Stalin o leu cuidadosamente e
percebeu o tom profissional dos argumentos e das propostas, mas o fim do
documento não foi do seu agrado. Chubar escreveu:
Estava me preparando para fazer um relatório sobre todas estas considerações, porém, mais uma vez, as coisas
saíram do controle, e, de novo, sem que eu tivesse culpa. Ofende e dói admitir que, por causa da torrente de
difamações e intrigas criadas pelos inimigos do povo, tive que me afastar da função, mas caso você resolva me
dar uma missão estarei, como sempre e em qualquer lugar, lutando honesta e conscientemente pela causa,
pelo florescimento da URSS e do comunismo.74
Stalin, evidentemente, achou que Chubar estava armando alguma coisa e enviou a
carta a Yezhov. Quando leu o relatório de Ulrikh sobre a execução de Chubar e
outros, colocou-o calmamente de lado e voltou sua atenção para a solicitação de M.
Mitin e P. Pospelov de permissão para escreverem uma Breve biografia de I. V.
Stalin.
Ye.P. Pitovranov confirmou que era inútil tentar convencer Stalin à compaixão:
Quando fui preso por ser “brando com os inimigos do povo”, disse para mim mesmo que estava tudo
acabado. Nenhum membro dos altos escalões da NKVD jamais saiu vivo de Lefortovo. Dividia minha cela
com L. Sheinin, o investigador que mais tarde virou escritor. Sentado, dia após dia, esperando pelo golpe
final, também lutava dolorosamente por encontrar uma saída. E aconteceu que consegui. Pedi um pedaço de
papel e escrevi uma carta a Stalin. Como chefe de uma das principais divisões da NKVD, eu havia me
encontrado diversas vezes com ele em recepções. Não pedi coisa alguma, nem complacência nem perdão.
Escrevi apenas que tinha algumas ideias para melhorar o serviço de informações. Dei um jeito para que o
diretor da prisão viesse a minha cela e lhe disse: “Eles sabem sobre esta carta ‘lá em cima’, portanto, se ela não
chegar ao destinatário certo, será pior para você.”
Soube que falaram com Stalin sobre a carta. Ele telefonou para minha divisão e perguntou por que eu estava
preso. Foi-lhe dito. Depois de uma pausa, mandou: “Tragam-no de volta para a função. Ele parece ser um
homem inteligente.” Poucos dias depois, fui subitamente libertado. Arranquei poucas palavras de Stalin, mas
sabia que fora bem-sucedido ao lidar com a psicologia do ditador: não implorei compaixão como os outros,
simplesmente formulei ideias novas.
Mas o que funcionou para Pitovranov não teve o mesmo resultado para Chubar e
outros. Por exemplo, Eikhe escreveu para Stalin:
Cheguei à mais humilhante fase de minha vida: minha culpa genuinamente séria perante o partido e perante
você. Confessei minha culpa em atividade contrarrevolucionária. Mas eis a situação: não fui capaz de
suportar a tortura a que fui submetido por Ushakov e Nikolaev, principalmente o primeiro. Ele sabia que
minhas costelas quebradas não tinham sarado e usou isso para infligir terrível dor durante o interrogatório,
fazendo com que eu traísse outros e a mim mesmo.
Peço-lhe que reveja meu caso, não para poupar-me, mas para desvendar toda a pútrida provocação que,
como uma serpente, enleou tantas pessoas por causa de minha fraqueza e minha criminosa injúria. Jamais
traí você ou o partido. Sei que devo morrer devido a uma miserável e torpe provocação fabricada contra mim
por inimigos do partido e do povo.75
Minha única solicitação à corte é que ela notifique ao Comitê Central que ainda existe na NKVD um centro
que fabrica inteligentemente casos e força pessoas inocentes a confessarem crimes não cometidos: os acusados
não têm a oportunidade de provar que não tiveram participação nos crimes que são mencionados nas
confissões, arrancadas sob tortura. Os métodos utilizados são tais que as pessoas têm que mentir e difamar
inocentes.76
Rudzutak requereu uma audiência com Stalin, mas a resposta foi ultrajante. Ele não
esquecia que Rudzutak visitara-o em maio de 1937, pouco antes de sua prisão. Não
prestou atenção ao que Rudzutak tinha a dizer, mas ficou tentando detectar se o
alerta de Yezhov de que o interlocutor fora recrutado pela inteligência estrangeira na
conferência de Gênova de 1922 tinha alguma validade.
Naquela noite, no ato de assinar a concordância soviética com a expedição ao
Polo Norte, notou, entre outras, a assinatura de Rudzutak e, após um momento de
hesitação, riscou-a com seu lápis. No dia seguinte, 24 de maio de 1937, ditou o
texto de um memorando a ser distribuído aos membros do comitê central. O
documento especificava que existiam provas incontestáveis de que Tukhachevsky e
Rudzutak eram espiões germano-fascistas. Tukhachevsky só viveu mais duas
semanas, Rudzutak, cerca de um ano.
Incontáveis documentos atestam a monstruosa impiedade de Stalin. Na nota de
Yezhov anexada à lista de pessoas que aguardavam julgamento pelo colegiado militar
por crimes capitais, Stalin rabiscou rapidamente: “Fuzilem todos os 138” – e
Molotov adicionou sua assinatura. Ou na solicitação de Yezhov pela execução por
fuzilamento de quatro listas de 313 inimigos do povo, 208 homens e 15 mulheres, e
de duzentos militares, Stalin escreveu, “De acordo”, e tanto ele como Molotov
assinaram.77 Em 12 de dezembro de 1938, Stalin e Molotov aprovaram a execução
de 3.167 pessoas.78
O impacto de tanta desumanidade com as vidas de pessoas comuns vem sendo
muito bem descrito em outros lugares, nas publicações ocidentais e soviéticas.
Recebi numerosas cartas de cidadãos soviéticos descrevendo seus sofrimentos.
Citarei apenas duas, a primeira de Vera Ivanovna Deryuchina, de Belaya Tserkava,
que tem quase noventa anos de idade:
Quando vieram prender meu marido, que era mineiro, um stakhanovista que trabalhava em quatro turnos,
pensei que se tratava de engano. Eles disseram: “Não se lamente, sua tola. Seu marido estará de volta em uma
hora.” Mas ele só voltou 12 anos depois. E estava aleijado. O que passei, com crianças pequenas e uma mãe
idosa, é difícil de descrever. Nos expulsaram do apartamento. Por todos os lados, éramos rotulados como a
família de um inimigo do povo. Todos teríamos morrido se não contássemos com pessoas generosas.
Mencione minha história num canto qualquer de seu livro.
A pior coisa é não ter ninguém esperando por você, ninguém que precise de você. Eu e meus irmãos
poderíamos ter tido filhos e netos, famílias. O maldito Tamerlão esmagou e pisoteou tudo. Acabou com o
futuro de cidadãos que nem tinham nascido. Não permitiu que nascessem, matando mães e pais. Levo
minha vida solitária e ainda não consigo entender como não vimos que nosso “líder” era um monstro, como
o povo deixou que aquilo acontecesse?
1. Alexander Semenovich Svanidze, irmão de Yekaterina. Membro do partido desde 1904, foi comissário das
finanças na Geórgia e, até 1937, trabalhou no comissariado de finanças da URSS. Um dos amigos mais
próximos de Stalin, foi acusado de espionagem e fuzilado.
2. Maria Anisimovna Svanidze, esposa de Alexander. Cantora de ópera, foi presa em 1937 e recebeu a pena
de dez anos de prisão. Morreu no campo de prisioneiros.
3. Ivan Alexandrovich Svanidze, filho de Alexander. Preso como “filho de um inimigo do povo”, retornou do
exílio em 1956.
4. Maria Semenovna Svanidze, irmã de Yekaterina. Foi secretária particular de A.S. Yenukidze de 1927-34.
Presa em 1937, morreu na prisão.
5. Iyulia Isaakovna (Meltser) Djugashvili, esposa do filho de Stalin, Yakov, foi presa e libertada em 1943.
1. Anna Sergeyevna (Alliluyeva) Redens, irmã de Nadezhda, presa em 1948, recebeu dez anos por
“espionagem” e foi libertada em 1954.
2. Stanislav Frantsevich Redens, marido de Anna, foi comissário para as questões internas na Transcaucásia e
no Casaquistão, delegado aos XV, XVI e XVII congressos do partido, membro da CCC e da comissão
central de revisão. Preso como “inimigo do povo” em 1938 e executado em 1941.
3. Ksenia Alexandrovna Alliluyeva, esposa do irmão de Nadezhda, Pavel, foi presa em 1947 e libertada em
1954.
4. Evgenia Alexandrovna Alliluyeva, esposa do tio de Nadezhda, P. Ya. Alliluyev, foi sentenciada a dez anos
por “espionagem” e solta em 1954.
5. Ivan Pavlovich Alliluyev (Altaisky), filho de P.Ya. Alliluyev. Membro do partido desde 1920 e editor do
jornal Sotsialisticheskoe zemledelie (“Agricultura socialista”), foi preso em 1938 e sentenciado a cinco anos.
Libertado em 1940, com a ajuda de S.Ya. Alliluyev, sogro de Stalin.
O prontuário de Ivan Alliluyev sobreviveu. Ele foi sentenciado por “filiação a uma
organização contrarrevolucionária” e cumpriu pena no “Sorok-lager”. Descreveu
seus companheiros de prisão: comandante de brigada Kholodkov, chefe da
administração do distrito militar de Moscou chamado Lapidus, e um ingênuo
homem chamado Zhilu, que se tornara “inimigo do povo” por ter, certa vez,
sentado ao lado de Kosarev na mesa diretora de uma reunião do Komsomol na
Ucrânia. Soube-se depois que o idoso sogro de Stalin decidiu ajudar Ivan, mas não
teve coragem de pedir a Stalin. Dirigiu-se, então, a Beria e Kobulov e,
provavelmente só naquela vez, Beria foi piedoso.
Stalin foi imparcial na sua crueldade: todos foram tratados igualmente, e ele se
desinteressava pela pessoa tão logo ficasse “exposta”. É provável que só tenha havido
uma exceção. Quando foi informado de que Alexander Svanidze, irmão de sua
esposa, fora sentenciado à morte como espião alemão, vociferou: “Vamos esperar
que ele peça perdão.” Antes de sua execução, contaram a Alexander o que Stalin
dissera, ao que ele replicou: “Perdão de quê? Não cometi crime algum.” Foi
devidamente fuzilado. Quando Stalin soube da maneira como o amigo de infância e
cunhado morrera, disse: “Vejam como ele era teimoso: preferiu morrer a pedir
perdão.”
PARTE VII
No limiar da guerra
Nos meios ocidentais, afirmam alguns que o expurgo dos espiões, assassinos e saqueadores das instituições
soviéticas – da laia de Trotsky, Zinoviev, Kamenev, Yakir, Tukhachevsky, Rozengolts, Bukharin e outros –
“abalou” o sistema soviético e causou desintegração. Mexericos baratos como esses só merecem nosso
desprezo. Em 1937, Tukhachevsky, Yakir, Uborevich e outros patifes foram executados. Houve, então,
eleições para o Soviete Supremo da URSS. O governo soviético recebeu 98,6% de todos os votos. No
começo de 1938, Rozengolts, Rykov, Bukharin e outros da mesma escória foram fuzilados. Tiveram lugar,
em seguida, eleições para os sovietes supremos das repúblicas. O governo soviético recebeu 99,4% dos votos.
Onde, então, os sinais da “desintegração” e por que não se revelaram nas eleições?2
Anexo um relato de minha conversa de hoje com o embaixador inglês e uma tradução da minuta da
declaração inglesa. [...] Ela só convida para uma reunião de consulta, ou seja, exatamente a mesma coisa que
estamos propondo. A impressão é a de que um novo pacto dos quatro, excluindo Alemanha e Itália, terá
alguma importância política. Não creio que Beck** concorde em assinar nem mesmo essa declaração.6
“Eles não estão sendo sérios. Essa gente não tem autoridade de decisão. Londres e Paris estão de novo
jogando pôquer, mas gostaríamos de saber se eles são capazes de levar adiante manobras europeias.”
“Ainda assim, acho que as conversações devem ter lugar”, disse Molotov encarando Stalin.
“Bem, se têm que acontecer, que aconteçam”, concluiu Stalin brandamente.
Enquanto prosseguiam os encontros das três delegações militares, o quadro real logo se revelou. As potências
ocidentais não desejavam estender suas garantias aos estados bálticos. Ademais, estavam facilitando a
reaproximação destes últimos com a Alemanha. Ao mesmo tempo em que as conversações ocorriam, Hitler
impunha condições à Letônia e à Estônia. Sob o governo do almirante Horthy, a Hungria começou a tomar
uma linha hostil em relação à URSS. A política do governo polonês permaneceu praticamente inalterada.
Nas reuniões que teve com Hitler, em janeiro de 1939, o coronel Beck afirmara que “a Polônia não atribui
significação aos chamados sistemas de segurança”, que estavam de todo falidos. Ribbentrop respondeu que
Berlim esperava que “a Polônia tome uma posição mais francamente antissoviética, caso contrário não
teremos provavelmente interesses comuns”.17 Sabe-se hoje que o rei Carol II da Romênia, durante uma visita
secreta à Alemanha, dissera a Hitler que “a Romênia é predisposta contra a Rússia, mas não podemos dizer
isto abertamente porque somos vizinhos. Não obstante, a Romênia jamais permitirá a passagem de tropas
russas, embora frequentemente se afirme que uma promessa de permissão foi feita à Rússia. Não é o caso”.18
Na eventualidade de um ataque contra nós por parte do agressor principal, devemos exigir a apresentação
pela Inglaterra e pela França de 86 regimentos de infantaria, seu avanço decisivo por volta do décimo sexto
dia de mobilização, a mais ativa participação da Polônia na guerra e também a passagem irrestrita de nossas
tropas, trens e caminhões através do corredor de Vilna*** e da Galícia. O cenário no qual o principal agressor
pode atacar a URSS envolveria o uso pela Alemanha dos territórios finlandês, estoniano e letão, e
possivelmente o romeno.19
Bem cedo ficou patente, no entanto, que as missões ocidentais tinham ido a
Moscou para emitir impressões gerais e para informar Londres e Paris a respeito dos
“planos em grande escala de Moscou”, e não para chegar a um acordo concreto e
exequível.
Mas Stalin sentiu necessidade de abordar novamente a Inglaterra e a França com
uma proposta definida para um acordo de cinco ou dez anos de assistência mútua,
incluindo de obrigações militares. Na essência, tal assistência significava que, em
caso de agressão contra qualquer dos signatários, os outros se obrigavam a prestar
auxílio. A URSS definiu com exatidão quais países entre o mar Báltico e o mar
Negro tinha em mente. Londres e Paris não deram resposta. Stalin enviou
mensagens para apressá-los, mas os representantes ocidentais não tinham autoridade
para tomar decisões tão importantes. Como Stalin acabou sabendo, seus parceiros
de negociação estavam, além do mais, dando continuidade ao esforço secreto para
chegar a um entendimento aceitável com Hitler. Estava claro que Inglaterra e
França procuravam apenas ganhar tempo enquanto buscavam o resultado mais
favorável para suas perspectivas, sem levar em conta os interesses soviéticos. Com
efeito, as potências ocidentais não apresentaram ideias concretas para uma ação
conjunta contra a Alemanha. Sua intenção era claramente deixar que a URSS
desempenhasse o papel principal na resistência a uma possível agressão alemã, sem
dar garantias de que assumiriam uma parcela das dificuldades.
Stalin perdeu a paciência. Como regra, ele chegava aos seus objetivos dando
pequenos passos seguros, mas, naquela ocasião, comportou-se como um jogador de
xadrez que corria contra o tempo. Ele acabou de uma vez por todas com as
conversações tripartites na manhã de 20 de agosto, quando Voroshilov mostrou-lhe
uma nota do almirante Drax, ao qual, como ao seu correspondente francês, fora
pedida uma resposta rápida às propostas soviéticas. Drax escreveu:
“Chega desse jogo”, disparou Stalin irritado. Naquele momento, ele dificilmente
achou que haveria qualquer reunião em 23 de agosto. Mas houve uma, embora com
participantes totalmente diferentes. Reuniões com membros do Politburo, militares
e diplomatas ocorriam todos os dias no espaçoso escritório de Stalin, no Kremlin.
Pelo fim do verão de 1939, ficou evidente para a liderança soviética que, com a
Alemanha nazista a oeste e o Japão militarista a leste, não havia em quem se apoiar.
O argumento do secretário-geral no XVIII Congresso parecia justificado: o
anticomunismo e a falta de vontade inglesa e francesa para seguir uma política de
segurança coletiva abriram as comportas para a agressão por parte do pacto anti
Comintern. Londres e Paris pareciam cegas para o perigo real, movidas pelo
interesse próprio e pelo ódio ao socialismo. Políticos míopes diziam: deixemos que
Hitler faça sua cruzada anticomunista no leste. Para eles, Hitler era o mal menor.
A União Soviética foi deixada com uma opção muito limitada, mas Stalin
conscientizou-se de que a devia aceitar, por mais negativa que fosse a reação em
outros países. Pragmático como era, abandonou os princípios políticos e, uma vez
seguro de que as conversações anglo-franco-soviéticas não dariam em nada, recorreu
à opção alemã assiduamente oferecida por Berlim. Seu raciocínio foi o de que não
havia outra escolha. A alternativa era pôr a URSS em confrontação com a ampla
frente antissoviética, o que seria bem pior. Ele não tinha tempo para considerar o
que as futuras gerações diriam. A guerra chegava e ele precisava adiar sua deflagração
a qualquer custo.
Depois de debater com o Politburo as providências para ativar o contato com
Berlim, e que instruções deveriam seguir para o enviado soviético lá, determinou
que Dvinsky, assistente de Poskrebyshev, descobrisse toda a literatura disponível
sobre Hitler, fascismo e suas origens sociais. Queria entender melhor o fenômeno
do nacional-socialismo, sobre o qual tinha dito no XVII Congresso: “Por mais
profunda que seja a investigação, é impossível achar um átomo de socialismo
nele.”21 Naquela noite, passou um bom tempo com Mein Kampf de Hitler,
sublinhando as passagens em que o autor escreveu sobre a impulsão eterna da
Alemanha para o sul, seu novo interesse no leste e na colonização de novas terras: “E
quando se fala em terras novas na Europa, só se pode pensar na Rússia e em suas
áreas fronteiriças. [...] O objetivo futuro de nossa política externa não deve ter uma
orientação para o Ocidente ou para o Oriente, mas uma política para leste no
sentido da aquisição do território que necessitamos para nossa nação germânica.” Ao
ler aquelas linhas, Stalin viu que nada deteria Hitler. A pergunta era: quando ele
daria a partida?
Stalin leu também o livro de Conrad Heyden, The History of German Fascism, e
grifou as observações espalhafatosas que Hitler fizera, já em 1922, sobre a posição de
poder que os judeus, supostamente, tinham conseguido na Alemanha. Stalin sabia
que, algum dia, combateria aquele degenerado. Portanto, o primeiro homem no
Estado socialista, investido de todo o poder político, estava lidando com um líder
que personificava um Estado extremista e militarista. Tudo resultaria na colisão de
dois ditadores ou na sua aliança? Estaria Trotsky certo ao dizer que Stalin era igual a
Hitler? O secretário-geral continuou a leitura do livro de Heyden e anotou o trecho
em que o autor afirma: “Hitler não sabe o que promete, suas promessas não podem
ser as de um parceiro confiável. Ele as quebra de acordo com seus interesses...”22 Era
este o homem que lhe oferecia um pacto de não agressão? Motivado, como Hitler
dizia, pelo “clamor da Providência”, consideraria um pacto com Stalin como um
pacto com o diabo, sem qualquer obrigação ou restrição.
No material trazido por Dvinsky havia relatórios de Berlim. O serviço soviético
de informações levantara o poderio das Forças Armadas alemãs no verão de 1939: a
força terrestre tinha um efetivo aproximado de 3,7 milhões de homens e quase
metade dela era mecanizada, 3.195 carros de combate, mais de 26 mil canhões e
morteiros, um efetivo de quase 400 mil na Força Aérea, com mais de 4 mil aviões, e
um efetivo naval de cerca de 160 mil homens, com 107 navios de guerra. Sem
dúvida, a Força mais poderosa no mundo capitalista. Milhares de antifascistas
haviam sido executados, enquanto cerca de um milhão de alemães definhavam nas
prisões e campos de concentração – números, afinal, que não impressionariam
Stalin.
Os comentários zombeteiros que Stalin fizera sobre a guerra iminente pareciam
agora fora de propósito e ingênuos. Em 1934, em meio a aplausos estrondosos, ele
dissera que a guerra seria
mais perigosa para a burguesia, porque seria travada não apenas nos fronts, mas também na retaguarda do
inimigo; os burgueses não deveriam duvidar de que os incontáveis trabalhadores amigos da URSS, na Europa
e na Ásia, atacariam a retaguarda dos opressores que dessem início a uma guerra criminosa contra a pátria-
mãe dos operários de todas as terras.23
O governo alemão é de opinião que, entre o mar Báltico e o mar Negro, não existe questão que não possa ser
resolvida em completo acordo pelos dois países. Isto inclui a questão marítima do Báltico, os Estados
bálticos, a Polônia, o Sudeste, e outras.26
Ao Sr. Stalin
Moscou
20 de agosto de 1939
1. Saúdo sinceramente a assinatura do novo acordo de comércio germano-soviético como um primeiro passo
para a reestruturação das relações germano-soviéticas.
2. Assinar um pacto de não agressão com a União Soviética significa para mim a consolidação da política
alemã de longo prazo...
3. Aceito a minuta de pacto de não agressão que vosso ministro do Exterior Molotov transmitiu, mas
considero urgentemente necessário elucidar diversas questões relacionadas com ele da forma mais rápida
possível ...
4. A tensão entre a Alemanha e a Polônia tornou-se insuportável. O comportamento da Polônia em relação a
uma grande potência é tal que uma crise pode ocorrer a qualquer momento...
5. Penso que, se é intenção dos dois estados agirem em conjunto nas novas relações, seria bom não perder
mais tempo. Assim, novamente proponho que o senhor receba meu ministro do Exterior na terça-feira, 22
de agosto, ou, o mais tardar, na quarta-feira, 23 de agosto [...]
O Führer tomara a peito a iniciativa. O tom de ultimato era evidente. Stalin leu o
telegrama diversas vezes, sublinhando com de azul a frase “uma crise pode ocorrer a
qualquer momento” e a sentença final.
Notas
21 de agosto de 1939
Meus agradecimentos por sua carta. Espero que o pacto germano-soviético de não agressão seja um ponto de
inflexão na direção do sério progresso nas relações políticas entre nossos países.
O povo de nossos países precisa de relações pacíficas. A concordância do governo alemão em assinar um
pacto de não agressão criará a base para o fim da tensão política e para o estabelecimento da paz e da
cooperação entre nossos países.
O governo soviético instruiu-me a informar-lhe que concorda com a visita a Moscou do Sr. Ribbentrop em
23 de agosto.
I. Stalin30
A sessão programada ocorreu de manhã. Uma segunda sessão aconteceu à tarde. Durante as duas reuniões
trocamos observações polidas sobre o retardo no problema político da passagem [através da Polônia]. Um
novo encontro, cuja data não foi fixada, só haverá se formos capazes de responder afirmativamente.33
O Führer não permitirá que o resultado das conversações afete sua intenção de resolver a questão polonesa de
uma forma radical. O conflito germano-polonês será equacionado por Berlim sejam as conversações bem ou
malsucedidas. [...] A ação militar contra a Polônia está planejada para o fim de agosto ou início de
setembro.35
Ninguém conhece a atual situação do governo polonês.* A população polonesa foi abandonada à própria
sorte por seus infelizes líderes [...] O governo soviético encara como dever sagrado oferecer ajuda aos seus
irmãos ucranianos e bielorrussos na Polônia [...] O governo soviético instruiu o comando do Exército
Vermelho para mandar suas tropas cruzarem a fronteira para proteger a vida e os bens da população da
Ucrânia ocidental e da Bielorrússia ocidental.37
Stalin ordenou que uma nota de conteúdo semelhante fosse entregue ao embaixador
polonês em Moscou. Analisando-se com a perspectiva de hoje e do ponto de vista
soviético, tal providência era justificada: o território em que as forças soviéticas
entraram era, de fato, habitado por ucranianos e bielorrussos.
As unidades dos distritos militares especiais bielorrusso e de Kiev não
encontraram resistência para cruzar a fronteira polonesa. Stalin leu despachos de
Timoshenko, Vatutin, Purkaev, Gordov, Khruschev e outros. Um de Mekhlis
despertou sua atenção especial:
A população ucraniana está recebendo nossas tropas como autênticos libertadores [...] As pessoas saúdam
nossos oficiais e praças, trazem maçãs, tortas, água potável e tentam colocá-las nas mãos de nossos soldados.
Como regra, até as unidades mais avançadas são recebidas por populações inteiras que saem às ruas. Muitos
choram de alegria.37ª
Li na cerimônia o discurso que escrevi em Moscou e que o senhor aprovou. Hitler replicou: “O povo alemão
está feliz com a assinatura do tratado germano-soviético de não agressão. Este pacto servirá à causa da
cooperação entre os dois povos. Como consequência da guerra, a situação existente desde o Tratado de
Versalhes de 1920 será revogada. Com a revisão, Rússia e Alemanha estabelecerão de novo as fronteiras como
eram antes da guerra.39
No período de 1939 a junho de 1941, 494.310 ex-cidadãos poloneses chegaram à União Soviética. No
mesmo período saíram do país:
42.492 ex-prisioneiros de guerra que foram entregues aos alemães; 42.400 que foram soltos e enviados à
Ucrânia e à Bielorrússia.
Um grande comício e manifestação teve lugar em Vilna em 7 de julho. Cerca de 80 mil pessoas participaram.
Os principais slogans eram “Vida longa para a 13ª república soviética!”, “Proletários do mundo todo, uni-
vos!”, “Vida longa para o Camarada Stalin!”, e outros assim. A manifestação aprovou um voto de boas-vindas
à União Soviética e ao Exército Vermelho. Foi realizado um concerto da banda do Exército da Lituânia, ao
qual compareceram o presidente e diversos membros do governo e do Estado-maior. [...] Seria oportuna uma
visita à Lituânia de artistas soviéticos. Solicito uma ordem urgente para que sejam enviados Mikhailov,
Lemeshev, Nortsov, Shpiller, Davydova, Ruslanova, Kozolupova** e uma companhia de balé com
Lepeshinskaya.48
O enviado inglês na Finlândia reportou por duas vezes que o marechal de campo Mannerheim lhe pedira
para comunicar ao governo inglês que, em breve, a Finlândia espera dos soviéticos demandas semelhantes às
feitas à Estônia, ou seja, acesso às bases navais e aos aeródromos das ilhas finlandesas. De acordo com sua
declaração, a Finlândia terá que atender às exigências soviéticas.49
Tenho a dizer que nem eu como comissário da Defesa, nem o Estado-maior, tampouco o comando do
Distrito Militar de Leningrado tínhamos qualquer ideia sobre as peculiaridades e dificuldades envolvidas
nesta guerra [...] O Exército finlandês, bem organizado, equipado e treinado para as condições e fainas locais,
demonstrou grande capacidade de manobra, defensiva obstinada e muita disciplina.
Desde o início da ação militar, o centro estabeleceu um QG do Soviete Principal de Guerra consistindo dos
Camaradas Stalin e Voroshilov, do chefe do Estado-maior Camarada Shaposhnikov e do comissário naval
Camarada Kuznetsov (que comparecia apenas para as questões navais). Um participante ativo e permanente
do QG foi o Presidente do Sovnarkom Camarada Molotov, embora não fosse membro efetivo. O QG, ou
mais precisamente, seu membro ativo, o Camarada Stalin, conduziu efetivamente todas as operações e todo o
trabalho organizacional do front.
Muitos comandantes dos altos escalões não estiveram à altura dos cargos. O QG teve que afastar muitos
oficiais antigos e integrantes de Estados-maiores não só porque suas lideranças nada traziam de bom, mas
também porque elas causavam danos perceptíveis. O Exército Vermelho conseguiu sua vitória relativamente
rápida sobretudo porque, desde a deflagração da guerra até o final vitorioso, a conduta efetiva do conflito
armado foi assumida pelo Camarada Stalin...54
No discurso de encerramento, Stalin afirmou, com correção, que era hora de
“renunciar ao culto da guerra civil que apenas reforça nosso atraso”. Reclamou que
ainda existiam muitos participantes da guerra civil nas chefias, estorvando o
caminho de “engenheiros da guerra” mais jovens e mais criativos.55 Embora fosse
verdade que o culto da guerra civil constituía um obstáculo, não se podia dizer que a
velha guarda mantinha alguma influência: ela fora toda (exceto Voroshilov)
aniquilada pelo expurgo. De qualquer maneira, Stalin passou a saber então que
espécie de comandante guerreiro era Voroshilov. O Exército Vermelho revelou
enormes deficiências. Hitler ficou a um só tempo surpreso e deleitado. Suas
estratégias tinham se baseado em cálculo acurado. Uma vitória a grande custo era
equivalente a uma derrota moral. Tanto Stalin como Hitler entenderam assim e
cada um tirou suas próprias conclusões. Stalin, contudo, dispunha de menos tempo
para reflexões. Assaltou-o uma falta de autoconfiança não muito comum. A partir
daquele momento, ficou obcecado pela ideia de que, se Hitler não fosse provocado,
não atacaria. Quando as forças de defesa da fronteira soviética derrubaram uma
aeronave alemã que penetrara o espaço aéreo soviético, Stalin deu ordens
pessoalmente para que fosse enviado um pedido de desculpas. A Alemanha
beligerante tinha, na realidade, um aliado não beligerante na URSS, e Berlim
tomou, rapidamente, nota de tal fato. Nas manobras de grandes efetivos, Stalin
exercitava o aspecto defensivo. Enquanto isto, Hitler estava quase pronto para
começar sua campanha do leste.
Embora hoje tenhamos razão para condenar Stalin, temos que reconhecer
também que, em vista das circunstâncias daquela ocasião, muitas das medidas que
tomou para retardar a guerra e fortalecer as defesas ocidentais da URSS foram, de
certa forma, impostas a ele. Acreditou por demais na palavra de Hitler e cometeu
diversos erros que preferiu não lembrar mais tarde, embora tenha dito aos
comandantes do Exército Vermelho no Kremlin, em 24 de junho de 1945, que
“nosso governo cometeu muitos enganos”. Para ser mais exato, houve erros não
apenas no curso da guerra mas também antes dela. Talvez o maior e mais sério
tenha sido a assinatura do tratado alemão-soviético de amizade e segurança das
fronteiras de 28 de setembro de 1939. Segundo o tratado, as fronteiras e esferas de
influência dos dois estados ficaram definidas com um mapa anexado. A fronteira era
diferente daquela acertada pelos “protocolos secretos” do pacto de 23 de agosto de
1939. Ela ficava estabelecida ao longo dos rios Narev, Bug e San.
A “amizade” entre o Estado socialista e o fascista foi adotada nas conversações
Molotov-Ribbentrop de 27-28 de setembro de 1939, em Moscou, com Stalin
tomando parte direta nelas, tal como fizera em agosto. Há evidências sinalizando
que Stalin estava consciente, mesmo antes da guerra, de que cometera um erro. No
desespero por evitar ou, pelo menos, retardar a guerra, ele cruzara a última fronteira
ideologicamente justificável, e isto teria consequências de longo alcance.
Notas
* Naquela noite, a cúpula do governo polonês deixou o país, e o alto-comando do Exército partiu no dia
seguinte.
Nomeie uma comissão para investigar e rever a equipe de instrutores da Academia Lenin. Se alguém do
grupo Tolmachev ainda estiver por lá, transfira todos imediatamente.
5 de julho de 1938 Mekhlis60
Embora a repressão tenha arrefecido no início de 1939, em 14 de junho Ulrikh
reportou para Stalin e Molotov que “um grande número de casos estava pendente
contra membros de organizações trotskystas-direitistas, nacionalistas burgueses e de
espionagem: 800 casos no distrito militar de Moscou, 700 no distrito do Cáucaso
setentrional, 500 no distrito de Kharkov, 400 no distrito da Sibéria. Por questões de
segurança, sugerimos que não se permita a presença dos acusados nos julgamentos.
Aguardo suas ordens”.61 Não existe registro da resposta de Stalin neste documento,
porém, em vista da enorme lacuna no efetivo de oficiais e do fantasma da guerra, é
possível que Stalin tenha rejeitado a proposta como um exemplo de “erros e
calúnias”. A partir daquele instante, o definhamento do Exército e da Marinha
começou a diminuir. Mesmo assim, a situação em alguns distritos militares era
simplesmente catastrófica e, no Exército em conjunto, o segmento mais vulnerável
era o corpo de oficiais. Pelo verão de 1941, cerca de 75% dos oficiais e 70% dos
comissários políticos estavam em suas funções havia menos de um ano. A espinha
dorsal do Exército não tinha a necessária experiência de comando.
Stalin sabia que a séria escassez de oficiais era agravada pelo inadequado
treinamento para a guerra moderna. O discurso que proferiu em 5 de maio de 1941
no Kremlin para formandos do Exército Vermelho refletiu esses pensamentos. Foi
um pronunciamento de rara franqueza e revelou muitos segredos de Estado. Por
exemplo, para elevar o moral dos jovens oficiais, ele falou sobre a reestruturação
fundamental do Exército e do aumento substancial no seu efetivo. Naquele início de
1941, Stalin disse-lhes que o Exército tinha 300 divisões, das quais um terço era de
divisões mecanizadas, mas não complementou a informação esclarecendo que mais
de um quarto do número total de divisões estavam em processo de organização e
que muitas tinham acabado de ser criadas.
Como sempre, destacou a vocação ofensiva do Exército: “O Exército Vermelho é
uma organização moderna, e um Exército moderno significa um Exército ofensivo.”
Ali estava um grande erro, pois negligenciava a importância da defesa estratégica e
das operações defensivas. A doutrina militar oficial da URSS era defensiva, mas
Stalin e os comandantes, que repetiam como papagaios seus pontos de vista,
proclamavam que a melhor defesa era o ataque. Os regulamentos, ordens, diretrizes,
os discursos do comissário e, agora, o próprio Stalin expressavam só uma ideia: “A
guerra seria travada no território do inimigo e a vitória seria alcançada com pouco
derramamento de sangue.”
Por que a Alemanha derrotava seus inimigos? Seria ela invencível? Neste ponto
do discurso, Stalin explicou com muita sinceridade o triunfo da Wehrmacht na
Europa Ocidental: “Os alemães foram capazes de afastar os Aliados da Inglaterra e
da França.” É evidente que o único aliado nessas circunstâncias fora a própria União
Soviética. “O Exército alemão não é invencível. Ele marcha agora sob a bandeira da
expansão, sua autoconfiança e sua arrogância crescem. Mas isto prenuncia o pior.”
Falsas ideias tornaram-se parte do pensamento militar soviético, como se pode ver
numa revisão operacional do Estado-maior do Exército Vermelho onde está
afirmado que a Alemanha saiu-se vitoriosa em 1940 “por causa das circunstâncias
que lhe foram muito favoráveis” e “não sem a intervenção de acidentes
fortunosos”.62 Uma minuta de projeto sobre propaganda política para o Exército
Vermelho declarava que “o Exército alemão não mais se interessava por
aprimoramentos na técnica militar. Parte significativa do Exército alemão está
cansada da guerra”.63
Contudo, alguns argumentos de Stalin faziam sentido, muito embora o Exército
não tivesse tempo para fazê-los vigorar. As academias militares do Exército
Vermelho, afirmou, estão defasadas no tempo e treinam para a “guerra de ontem”.
A experiência de Khalkin Gol não foi válida, disse ele, porque os japoneses não
tinham um Exército moderno. Era uma guerra ocidental, a guerra finlandesa, que
deveria servir de lição sobre guerra moderna. Pouco antes do período de formaturas,
Stalin convocara o Soviete Militar Principal para ouvir palestras de G.K. Zhukov,
K.A. Meretskov, I.V. Tyulenev, D.G. Pavlov, G.M. Shtern, P.V. Rychagov e A.K.
Smirnov, entre outros. Ênfase especial foi dada ao melhor aprestamento
operacional, à execução de operações ofensivas e à concentração de forças e meios
para a consecução do sucesso estratégico. O problema da fase de abertura das
hostilidades não foi tratado. Bastante interessante foi o pronunciamento do chefe do
Estado-maior, P.S. Klenov, o qual comentou que “a primeira fase da guerra era da
maior importância, uma vez que o inimigo aplicaria todo o seu poderio para evitar
que nos conduzíssemos de forma organizada”.64
Stalin registrou o comentário de Meretskov de que os regulamentos do Exército
Vermelho estavam desatualizados65 e ordenou uma revisão imediata, embora não
tenha sido possível terminá-la antes do início da guerra. Mas nem Stalin nem o
comissário da defesa notaram que, com exceção de Tyulenev, ninguém levantou a
questão das operações defensivas modernas.66 Todos tinham aprendido sobre
estratégia ofensiva e aqueles militares intelectuais que entendiam da profissão com
uma perspectiva mais ampla e com abordagens mais modernas e flexíveis haviam
sido exterminados por Stalin.
A despeito do Pacto, o secretário-geral começou a ver então nuvens de
tempestade no horizonte ocidental. Ao mesmo tempo, acreditava equivocadamente
que Hitler não atacaria no leste antes de vencer no ocidente: ele jamais se engajaria
numa guerra de duas frentes, e Stalin enfatizou esta noção nos seus discursos da
ocasião, notavelmente o de 5 de maio de 1941, no Kremlin. Entretanto, ele também
estava encantado com a facilidade com que a Wehrmacht esmagara os exércitos
ocidentais, mas não achava que o Exército Vermelho aprenderia as lições devidas
com suficiente rapidez. Estudou a análise sobre a operação das forças alemãs
preparada para ele pelo Estado-maior e, em conversas com Timoshenko, realçou a
necessidade de intensificar a instrução.
No entanto, havia muita coisa que ele não sabia. Por exemplo, não tinha
conhecimento da avaliação alemã do Exército Vermelho feita no início de 1941. Só
depois da guerra ficou esclarecido que Hitler, assim que soube dos expurgos de
1937-38, determinou a preparação de um relatório de informações sobre a situação
do corpo de oficiais do Exército Vermelho. Seis meses antes da guerra, com base nos
relatos do coronel Krebs, adido militar alemão em Moscou, e em outras fontes, o
Führer concluiu que o Exército Vermelho era quantitativa e qualitativamente fraco.
“Causa uma impressão pior que a de 1933. A Rússia vai precisar de anos para
recuperar o nível anterior...”67
Seria difícil encontrar um precedente na história em que um dos lados, às
vésperas de um conflito mortal, tenha infligido tanto dano a si próprio. Zhukov se
lembrou deste particular nos jogos de guerra com grandes efetivos realizados em
dezembro de 1940, quando recebeu o comando dos “Azuis”, ou seja, do lado
alemão, enquanto Pavlov, general de exército e comandante em chefe do distrito
militar especial do Ocidente, comandou os “Vermelhos”. De acordo com Zhukov, o
general executou suas operações exatamente nas linhas em que as batalhas reais iriam
se desenrolar, seis meses depois. Afirmou que sua tática foi ditada pela configuração
das fronteiras, pelo terreno e pelas circunstâncias. Deduziu que os nazistas fariam os
mesmos cálculos. Ainda que os árbitros dos jogos de guerra retardassem
artificialmente a progressão dos “Azuis”, em oito dias eles avançaram até o distrito
de Baranovichi. Quando, em janeiro de 1941, Zhukov apresentou seu relatório
sobre os exercícios ao Soviete Principal de Guerra, alertou quanto ao desfavorável
sistema de distritos fortificados ao longo da nova fronteira, sugerindo que eles
recuassem cerca de 100 quilômetros. Tal comentário era uma crítica a uma decisão
tomada por Stalin, porém o secretário-geral ouviu com atenção a proposta, mas
ficou intrigado com o poderio dos “Azuis” e por que forças tão poderosas como as
alemãs tinham sido consideradas na regra de nossos próprios jogos? Zhukov replicou
que aquilo correspondia às reais possibilidades da Alemanha e se baseava numa
avaliação autêntica das forças que ela poderia empregar contra nós na fase de
abertura das hostilidades, ganhando, desta forma, flagrante superioridade com o
primeiro ataque.
Stalin considerou abrangente o relatório de Zhukov, ficou admirado com a
maneira desassombrada com que o militar defendeu sua posição e, em fevereiro de
1941, nomeou-o chefe do Estado-maior, uma das melhores decisões que tomou
nesse campo, como os eventos futuros iriam confirmar.
Completados os lances diplomáticos de 1939 que descrevemos, o raciocínio de
Stalin ficou dividido. De um lado, os tratados eram favoráveis aos alemães pois
ajudavam Hitler a evitar uma luta em duas frentes, o que possivelmente faria com
que respeitasse seus termos. De outro lado, sendo um oportunista por natureza, o
Führer poderia não seguir necessariamente a lógica normal. Toda a sua estratégia
impulsiva se baseava no cálculo de fatores de curto prazo, tais como surpresa, astúcia
e imprevisibilidade. Por conseguinte, Stalin seguiu de perto cada passo político e
militar de Hitler, bem como o curso de sua blitzkrieg de 1940 no oeste. Também
ordenou que Timoshenko tivesse a responsabilidade total pelo aprestamento da
tropa.
Ao longo de 1940, Timoshenko visitou todos os distritos militares do oeste, pôs
diversas unidades em prontidão e avaliou os cursos de treinamento e as manobras.
Todas as suas visitas foram noticiadas pela imprensa, como também as de outros
chefes militares. As viagens de inspeção revelaram muitas deficiências de vulto. Os
militares e os oficiais políticos careciam de experiência e demonstravam lerdeza no
domínio dos novos elementos para o treinamento do combate. Os componentes
básicos da força combatente estavam abaixo do nível médio, o que se aplicava
também à força aérea.68
Nos dois anos que decorreram antes que a URSS entrasse na guerra, Stalin
tentou claramente aumentar a qualidade e o efetivo das Forças Armadas, mas seu
trabalho baseou-se na premissa falaz de que ele seria capaz de evitar, ou pelo menos
de adiar, a guerra. Como o escritor Konstantin Simonov recorda de uma conversa
com Zhukov: “Stalin estava convencido de que, com o Pacto, dera um tombo em
Hitler. Mas aconteceu justamente o contrário.” Zhukov disse que “a maioria dos
que o cercavam apoiou os julgamentos políticos que Stalin fizera antes da guerra,
especialmente a noção de que, se não fizéssemos nenhuma provocação, nem
déssemos um passo em falso, Hitler não romperia o Pacto e não nos atacaria”.69 Esta
linha de pensamento era ardentemente defendida por Molotov, o qual, depois de
sua viagem a Berlim em novembro de 1940, continuou insistindo em afirmar que
Hitler não atacaria a URSS.
[37]
O arsenal de defesa
O Soviete Principal de Defesa do Exército Vermelho examinou a questão das panes e acidentes na Força
Aérea e concluiu que, longe de diminuir, o número deles vem crescendo devido à falta de disciplina por parte
das tripulações e da equipe de comando, que leva a violações elementares das regras de segurança de voo. Esta
falta de disciplina causa uma perda média diária de dois a três aviões, totalizando de 600 a 900 por ano. Só
no primeiro trimestre incompleto de 1941 houve 71 panes e 156 desastres, matando 141 tripulantes e
destruindo 138 aeronaves.
Zhdanov escreveu de imediato uma resolução pedindo que Bagirov submetesse uma
proposta de nacionalização das hortas caseiras. Apresentou também para apreciação
do plenário uma emenda proposta por Stalin no sentido de que “todos os
administradores de fazendas coletivas que permitirem que kolkhozniks e forasteiros
depositem feno nas matas em bases individuais deverão ser demitidos do kolkhoz e
julgados por infringir a lei”. Como resultado, grandes extensões de pradarias
permaneceram sem cultivo e os kolkhozniks foram proibidos de ter feno até em
ravinas e matas fechadas. Houve apenas uma objeção, a de Kulikov – as iniciais não
eram normalmente anotadas naquele tempo – que disse: “Tenho que fazer o
seguinte comentário: aqui na página 3 está especificado imposto em espécie que os
granjeiros particulares têm de pagar em grãos. A região de Krasnoyarsk tem de pagar
15% em cereais. Onde obterão esses grãos para julho? Com que reservas ficarão?”
Até Stalin deu mostras de dúvida: “Se publicarmos a diretriz em nome do Comitê
Central e do Sovnarkom”, perguntou, “não causaremos confusão para os
kolkhozniks?”
“Não, pelo contrário, eles passarão a se comportar”, vieram algumas vozes
inseguras do salão. “O povo espera por isso há muito tempo.”
Nos últimos meses que antecederam a guerra, como mencionamos, a pulsação
do trabalho foi acelerada. Jornais e rádios davam notícias sobre a guerra, a Batalha
da Inglaterra, a suspensão temporária dos bailes de salão na Alemanha, a
transformação da Polônia num Governo Geral e sobre as conquistas econômicas da
URSS. Difundiram também as instruções de Stalin ao Gosplan para que fosse feito
um plano geral econômico para os 15 anos seguintes a fim de atingir o objetivo
principal de “sobrepujar os países capitalistas na produção per capita de ferro gusa,
aço, combustíveis, energia hidroelétrica, máquinas e bens de consumo”.79
Nota
* O dia de trabalho era uma unidade de produção, e o artel, um grupo de operários ou camponeses.
[38]
O assassínio do exilado
Nova York, 21 de agosto (TASS). Segundo jornais dos EUA, em 20 de agosto, houve um atentado contra
Trotsky, que estava morando no México. O assassino disse chamar-se Jacques Mortan Vandendraish e
pertence ao círculo dos seguidores mais próximos de Trotsky.
A Revolução de Outubro foi feita no interesse dos trabalhadores soviéticos, não no dos novos parasitas. Por
causa do retardo da revolução mundial, da fadiga e, em grande medida, do atraso dos trabalhadores
soviéticos, especialmente dos camponeses, uma nova casta de parasitas, repressora e contra o povo, chefiada
por Stalin, paira sobre a república soviética.
Trotsky perde, então, o senso da realidade e apela para que o povo se levante contra
essa “nova casta”. Para tanto, “um novo partido é necessário, uma organização
revolucionária honesta e corajosa de trabalhadores destacados. A Quarta
Internacional se dispõe a criar tal partido na URSS”. E a conclamação termina com
a reiteração das constantes prioridades de Trotsky:
Depois de ler isso, Stalin convocou Beria e alertou-o de que estava cansado de tudo
aquilo e de que estava começando a duvidar se a NKVD queria mesmo cumprir a
missão. Beria fez várias reuniões e redobrou o esforço para liquidar Trotsky. Parece
que foi tomada a decisão de explorar toda a insatisfação sentida por diversos
organismos públicos com as atividades trotskystas, em particular durante a guerra
civil na Espanha. Como o pintor mexicano comunista David Alfaro Siqueiros
escreveu no seu livro They called me the Dashing Colonel, mesmo enquanto ainda
estavam na Espanha, ele e seus amigos decidiram que “fosse como fosse, o quartel-
general de Trotsky no México tinha que ser destruído, ainda que à força”.81
A guerra de palavras entre Trotsky e as organizações comunistas de vários países
era música para os ouvidos de Berlim, se bem que não externasse sua imensa
satisfação. Em diversos documentos, o Comintern condenou vigorosamente a
Quarta Internacional e seu líder “por fazerem o jogo das forças da guerra”. Foi neste
cenário que aconteceram dois atentados contra a vida de Trotsky, o segundo, bem-
sucedido. O primeiro ocorreu em 24 de maio de 1940 induzido por um grupo
disfarçado de policiais e liderado por Siqueiros. Eles crivaram de balas o quarto de
dormir de Trotsky, mas o alvo e sua esposa conseguiram se refugiar num canto do
aposento e ninguém saiu ferido. Ficou claro, então, que os perseguidores estavam
decididos. Trotsky não tinha os meios nem o desejo de fugir. Não se esconderia
nem se calaria. A polícia mexicana não conseguiu encontrar os criminosos e
começaram até a circular histórias nos jornais mexicanos e americanos de que todo o
drama fora encenado pelo próprio Trotsky para comprometer o partido comunista
mexicano e Stalin. Quando o inspetor de polícia perguntou se tinha ideia de quem
poderia ser o responsável, Trotsky respondeu: “É claro”, e cochichou no ouvido do
inspetor – “o autor do ataque é Iosef Stalin.”
O verdadeiro assassino, no entanto, estava exatamente lá. “Jacques Mornard” era
amigo da trotskysta americana Sylvia Agelof, uma das secretárias de Trotsky. Fora
um visitante regular da casa de seu alvo desde 1939, embora só tenha se encontrado
com Trotsky pela primeira vez em maio de 1940. Tinha contatos nos círculos de
negócios onde se passava por canadense de nome Frank Jacson. De alguma forma,
ganhou a confiança de Trotsky e conversaram em diversas ocasiões, normalmente
sobre “personalidades fortes”. A esposa de Trotsky mais tarde se lembrou de que ela
e o marido chegaram a especular se não se tratava de algum tipo de fascista. Na
realidade, “Jacson” era Ramon Mercader del Rio, um espanhol a serviço de Stalin.
Em meados de agosto, “Jacson” pediu a Trotsky para corrigir um artigo de sua
autoria. Trotsky fez alguns comentários. Na noite de terça-feira, 20 de agosto,
“Jacson” voltou com o artigo corrigido e dirigiu-se ao estúdio de Trotsky para
mostrar a versão. Trotsky lia atentamente um manuscrito. “Jacson” entrou no
aposento e, como mais tarde demonstrou, colocou a capa de chuva sobre uma
cadeira, tirou uma picareta de gelo de alpinista do bolso dela e, com os olhos
fechados, atingiu com toda a força a cabeça de Trotsky. A vítima, como “Jacson”
relatou no tribunal durante seu julgamento, “emitiu um terrível e lancinante grito
que escutarei por toda a minha vida”. A agonia de morte de Trotsky durou quase 24
horas.
Uma carta foi encontrada com “Jacson” na qual ele se dizia “um seguidor
desiludido de Trotsky que viera ao México com objetivo diferente”. A ideia de
“matar o criminoso” amadurecera enquanto estava no país. A carta explicava que ele
não podia perdoar Trotsky por “conspirar com os líderes dos países capitalistas”. A
imprensa cedo começou a indagar quem seria realmente aquele homem. Quem
guiara sua mão? E logo em coro deu a resposta: foram Stalin, a NKVD e os
comunistas. “Jacson” Mercader, entretanto, durante todo o cumprimento da pena
de vinte anos em prisão mexicana, questionado por médicos e psiquiatras, jamais se
afastou da história original.
Na verdade, ele fora o instrumento de uma operação que deveria ter sido
realizada por um grupo maior de pessoas sob a direção de um homem da NKVD
chamado Eitingon. A escolha final do autor do atentado recaiu no ex-tenente do
Exército republicano espanhol, Ramon Mercader, de 27 anos àquela época. Ele não
só tinha experiência de combate como também estava convicto de que o levante
anarquista e trotskysta contra o governo republicano em maio de 1937 havia
recebido a bênção de Trotsky. Mercader ainda estava “quente” da guerra e viu o
assassinato de Trotsky como um nobre ato revolucionário.
Depois da morte de Trotsky, Beria foi promovido, tornando-se comissário geral
da segurança do estado, sete meses mais tarde. Ele passou a administração para V.N.
Merkulov, enquanto retinha o posto de comissário para as Questões Internas, ao
qual foi adicionado o de vice-presidente do Sovnarkom.
Stalin mal se continha em esperar a divulgação do conteúdo do testamento e da
última vontade de Trotsky. A maior parte foi escrita em 27 de fevereiro de 1940 e
tinha principalmente relação com o bem-estar material da esposa, mas Trotsky
encontrou espaço para escrever alguma coisa sobre Stalin:
Este não é lugar apropriado para que eu, de novo, refute a injúria torpe e estúpida de Stalin e de suas
agências: não existe mancha em minha honra revolucionária. Nem direta nem indiretamente entrei em
conchavos, tampouco conversei com inimigos da classe trabalhadora. Milhares de oponentes de Stalin
pereceram como vítimas de tais acusações falsas.82
[39]
Diplomacia secreta
Quando o enviado especial aos EUA, K.A. Umansky, foi recebido pelo presidente
em 30 de junho de 1939, Roosevelt limitou-se a expressar o desejo de que as
conversações anglo-franco-soviéticas chegassem a bom termo. Umansky passou um
cabograma para Moscou dizendo que o presidente “não se dispunha a usar seu
considerável poder moral e material para exercer influência sobre a política inglesa e
francesa”.85 A política externa foi, ocasionalmente, debatida no Politburo, mas
sempre depois de assentada por Stalin e Molotov. Por vezes, eles convocavam
especialistas dos comissariados interno e externo, bem como pessoal de informações
do Exército, para assessorá-los sobre questões específicas, porém a política era
determinada por Stalin com aconselhamento e sugestões de Molotov, cujos pontos
de vista nem sempre coincidiam com os de seu chefe.
Entrevistado pelo escritor Konstantin Simonov, Zhukov contou que esteve
presente no gabinete de Stalin durante o debate de matérias importantes com seu
círculo mais próximo: “Testemunhei discussões, altercações e resistência obstinada
sobre alguns pontos, especialmente da parte de Molotov, e a situação chegava a tal
ponto que Stalin se via obrigado a elevar a voz, extremamente excitado, enquanto
Molotov simplesmente se levantava, com um sorriso estampado no rosto, e
mantinha sua posição.”86 Stalin ficou impressionado com o que Molotov contou de
seus encontros com Hitler. O próprio Stalin só conheceu Ribbentrop.
Frequentemente se referia aos líderes nazistas como “desonestos”. De acordo com F.
Haus, chefe do departamento jurídico do departamento alemão do exterior, mesmo
durante as negociações sobre a conclusão do Pacto, Stalin não se conteve e
resmungou sarcasticamente para a delegação alemã alguma coisa relacionada com
“fraude”. E, na ocasião da própria assinatura, Stalin disse: “É evidente que não
esquecemos que o objetivo final de vocês é atacar-nos.” Nas discussões que
sustentava com Molotov sobre a possibilidade que tinha de retardar a guerra, o
secretário-geral várias vezes voltou ao assunto da figura de Hitler, sabendo muito
bem o quanto, num Estado totalitário, dependia da vontade do ditador. Mas, no
trato com os alemães, Stalin mal escondia seu maquiavelismo. Quando o Pacto foi
assinado, Stalin levantou sua taça de champanhe e brindou sem ironia: “Bebamos
em hora do novo Stalin anti Comintern! Bebamos pela saúde do líder do povo
alemão, Hitler!”
Ribbentrop, de pronto, correu para o telefone do escritório de Molotov, onde as
negociações ocorreram, e reportou para Hitler que o Pacto fora assinado e o que
Stalin dissera. Como um jubiloso Ribbentrop disse imediatamente a Stalin, Hitler
replicara: “Oh, meu grande ministro do Exterior! Você não sabe quanto conseguiu!
Transmita minhas congratulações a Herr Stalin, o líder do povo soviético.” Quando
ouviu isto, Stalin voltou-se para Molotov e deu-lhe uma quase imperceptível
piscadela.
O Pacto poderia não ter sido assinado em 23 de agosto pois, naquele dia, os dois
gigantescos aviões de transporte Condor, que conduziam a delegação de Ribbentrop
a Moscou, receberam tiros quando sobrevoavam a região de Velikie Luki. As
unidades de defesa antiaérea que vigiavam o espaço aéreo daquela rota não
receberam alertas específicos e só por sorte os aviões alemães não foram abatidos.
Este fato foi confirmado por M.A. Liokumovich, que servia na unidade que abriu
fogo, numa entrevista com o autor. Naturalmente, no mesmo dia, um encorpado
grupo de agentes da NKVD voou de Moscou para investigar o incidente e encontrar
os autores da “provocação”.
A segunda ação com que Stalin se envolveu foi o deslocamento da fronteira
soviética mais para oeste, assunto que já apreciamos, mas que vamos detalhar um
pouco mais. A decisão de tomar a Ucrânia e a Bielorrússia ocidentais, em face do
avanço dos exércitos alemães, foi, a meu ver, justificável e, de um modo geral, veio
ao encontro do desejo da classe trabalhadora da população local. Porém,
infelizmente, a ação de Stalin, violando o Tratado de Riga de 1921, foi influenciada
por seus acordos com Hitler sobre fronteiras futuras e “rearranjos” territoriais. Na
ausência de originais, podemos citar diversos outros documentos que confirmam
plenamente que houve um entendimento.
Em 10 de setembro de 1939, Beria enviou uma nota a Molotov: “Em conexão
com futuras alterações no desdobramento das tropas de fronteira da NKVD dos
distritos militares bielorrusso e ucraniano, a linha de fronteira do Estado soviético
fica aumentada de 1.412 para 2.012 quilômetros, ou seja, de 600 quilômetros.”
Beria propôs que um novo distrito militar fosse formado por cinco unidades de
fronteira.87 Quando as tropas soviéticas entraram na Ucrânia e na Bielorrússia
ocidentais, a linha demarcatória entre elas e as forças alemãs foi estabelecida segundo
um mapa secreto acertado pelos dois lados nas negociações de agosto. Isto se deduz
do seguinte documento:
Do adido militar alemão em Moscou, general Köstring, para o Estado-maior do Exército Vermelho:
1. Solicito que o Chefe do Estado-maior do Exército Vermelho, Shaposhnikov, seja informado de que, às
22h30, recebi a resposta de meu governo pela qual, seguindo as negociações, a cidade de Drogobych foi
entregue hoje, 24 Set 39, às 18h, sem dificuldades, a unidades do Exército Vermelho.
2. Ficou acertado também que a cidade de Sambor será entregue na manhã de 24 Set. Repito que não
surgiram dificuldades durante as conversações e estou muito satisfeito com o fato de tudo ter corrido tão
bem.
3. É meu dever reportar que, segundo o pessoal de nossa Força Aérea, grandes reservatórios de petróleo estão
queimando em Drogobych há dez dias. Circulam rumores locais de que eles foram incendiados por alemães,
mas peço que não acreditem, já que tal material também era necessário para nós.
4. No que respeita a vagões ferroviários, o Estado-maior do Exército Vermelho sabe que agimos de acordo
com os protocolos.
Isto é tudo o que eu desejava reportar de imediato. Köstring
Recebido pelo ajudante do Chefe do Estado-maior do Exército Vermelho, comissário regimental Moskvin.88
A Alemanha está observando os termos do Pacto de Não Agressão com tanto escrúpulo quanto a URSS e,
portanto, os rumores sobre intenções da Alemanha de violar o Pacto e atacar a URSS não têm fundamento,
devendo o deslocamento de forças alemãs dos Bálcãs para áreas a leste e nordeste da Alemanha estar
vinculado a outros motivos não ligados às relações germano-soviéticas.
Uma declaração estranha como esta foi explicada, depois da guerra, por um
funcionário soviético importante como uma sondagem diplomática normal, mas foi
lida por milhões de cidadãos soviéticos e por todas as Forças Armadas, resultando
num efeito profundamente desorientador. Tal “sondagem” deveria ter sido
conduzida secretamente e os resultados divulgados pelo menos aos comandantes
superiores das forças armadas, ao comissariado de Defesa e aos distritos militares.
Por toda parte, ela foi entendida da mesma maneira, de acordo com L.M. Sandalov,
oficial de Estado-maior durante a guerra:
Vinda de um órgão estatal competente, uma declaração daquelas tendeu a entorpecer a vigilância das forças.
Os oficiais se convenceram de que havia circunstâncias desconhecidas que faziam com que o governo se
despreocupasse e ficasse seguro quanto às nossas fronteiras. Os oficiais deixaram de pernoitar nos quartéis.
Os soldados começaram a se desequipar para dormir.96
O que quer que aconteça, Duce, nossa posição não vai piorar com esse passo, só pode melhorar...
Agora que tomei a decisão, sinto-me mais livre. Considerei a cooperação com a União Soviética, a despeito
da tentativa sincera de encontrar uma détente, por demais onerosa. Porque a mim ela parecia um
rompimento com meu passado, minha visão e meus compromissos anteriores. Estou satisfeito por sacudir
esse peso moral.
[40]
Omissões fatais
Levanta-se a questão: haverá vitoriosos e derrotados nesta guerra, ou ela perdurará por tanto tempo que
nenhum dos lados será capaz de derrotar o outro? Os interesses da URSS demandam a preservação da paz até
que uma crise revolucionária amadureça nos países capitalistas. Se surgir uma situação assim, os regimes
burgueses se enfraquecerão, o proletariado conquistará o poder e a União Soviética terá de ir, e irá, em ajuda
das revoluções proletárias de doutros países.97
Tais opiniões estavam disseminadas pelo país naquela ocasião e tinham sido
herdadas da guerra civil. Por outro lado, mesmo àquele tempo, funcionavam mentes
mais sóbrias e corajosas. Por exemplo, em 1940, um grupo da academia acima
citada preparou um documento de 35 páginas sobre “Ideologia militar” que foi
mostrado a Stalin. Em paralelo com o pensamento ortodoxo que vigorava, uma série
de questões heréticas foi levantada. Os autores enfrentaram de peito aberto as causas
do fracasso da URSS na guerra soviética-finlandesa: o baixo nível cultural dos
oficiais, a propaganda falsa sobre a invencibilidade do Exército Vermelho, a
“apresentação incorreta das missões internacionais do Exército Vermelho”, o
“preconceito prejudicial e profundamente arraigado, inevitável e praticamente sem
exceção, de que as populações dos países em guerra com a URSS supostamente se
levantariam e bandeariam para o lado do Exército Vermelho”. Conversas sobre
“invencibilidade levam à arrogância, à superficialidade e à negligência da ciência
militar; no campo da tecnologia, conduzem ao atraso; e no campo da teoria militar,
ao desenvolvimento unilateral de noções de combate em detrimento de outras”. O
estudo da teoria estrangeira de guerra, segundo o memorando, fora suprimido por
completo, enquanto as melhores tradições do exército russo não foram
popularizadas. A experiência de Khalkin Gol e do lago Khasan era desconhecida da
chefia militar: “O material sobre essas batalhas permanecia envolto em mistério pelo
Estado-maior.” O despacho de Stalin não passou de um “Arquive-se”.98 A sorte dos
autores do trabalho não é conhecida.
Na minha opinião, o maior erro de Stalin foi a assinatura do tratado de amizade
e fronteiras com Hitler, em 28 de setembro de 1939. Seria suficiente – e há
justificativa para tanto – assinar o Pacto de Não Agressão do mês anterior, menos os
protocolos secretos. Nas resoluções do Comintern e nas do XVIII Congresso do
partido, o nazismo foi adequadamente definido como um regime terrorista,
militarista e ditatorial, e como a falange mais perigosa do imperialismo mundial.
Nas mentes soviéticas, ele era a personificação do inimigo de classe em forma
concentrada. E agora, não mais que de repente, eram seus melhores amigos!
É difícil explicar o desvio cínico de Stalin para uma política de coonestação do
fascismo. Pode-se até entender a tentativa de escorar o Pacto de Não Agressão com
acordos de comércio e laços econômicos. Mas negar todas as anteriores premissas
ideológicas antifascistas foi demais. Os planos expansionistas da Alemanha não eram
entendidos com propriedade por Stalin. Por exemplo, a “Declaração dos Governos
Soviético e Alemão” assevera que “o acordo mútuo é de opinião que o fim da guerra
entre Alemanha, de um lado, e a Inglaterra e a França, do outro, viria ao encontro
dos interesses de todos os povos”.99 No entanto, estes povos poderiam muito bem
perguntar como isso seria possível. Deveriam aceitar e se conformar com a tomada
da maior parte da Europa por Hitler? Como poderia a Polônia, em ruínas que
estava, aprovar a “assistência mútua” assinada por Molotov e Ribbentrop?
Em sua busca desesperada para evitar a guerra, Stalin foi longe demais, pois as
concessões que fez nada adicionaram ao Pacto em si, exceto o atrevimento nazista e
a confusão soviética. É verdade que Stalin foi muito influenciado em sua política
alemã por Molotov, cujas muitas afirmações tontearam tanto o público soviético
quanto nossos aliados no exterior. Exemplificando, o discurso que pronunciou –
aprovado por Stalin – no Soviete Supremo, em 31 de outubro de 1939, inclui o
seguinte trecho:
A Alemanha está na posição de um estado que se esforça pelo fim rápido da guerra e pela paz, enquanto a
Inglaterra e a França, que ontem clamavam contra a agressão, são agora pela continuação do conflito armado
e contra a paz [...] Círculos governantes na Inglaterra e na França tentaram recentemente se apresentar como
lutadores pelos direitos democráticos dos povos contra o hitlerismo, com o governo inglês declarando que
seu objetivo na guerra era, nem mais nem menos, a “aniquilação do hitlerismo” [...] Não faz o menor
sentido, como é também criminoso, travar tal guerra para “aniquilar o hitlerismo” sob o falso estandarte da
luta pela “democracia” [...] Nossas relações com a Alemanha melhoraram fundamentalmente. Isto aconteceu
pelo fortalecimento de nossas relações de amizade, nossa colaboração prática, e por meio de nosso apoio
político à Alemanha no esforço que faz pela paz.100
A instrução política dos jovens oficiais deve incluir a “lei sobre o serviço militar universal”, o discurso do
Camarada Voroshilov na quarta sessão do Soviete Supremo, o juramento militar, a lei sobre punição para a
traição, regras e regulamentos, o relatório do Camarada Molotov “sobre a ratificação do Tratado Alemão-
Soviético de Não Agressão”.102
Este último tópico da instrução foi acrescentado à mão por Mekhlis. Quando ele
submeteu a minuta a Stalin no dia anterior, o líder disparou: “Não irrite os alemães.
O Krasnaya Zvezda* anda sempre escrevendo sobre fascistas e fascismo. Acabe com
isso. A situação está mudando. Não devemos ficar apregoando a questão. Cada coisa
a seu tempo. Hitler não deve ficar com a impressão de que tudo o que fazemos é nos
prepararmos para a guerra contra ele.”103
Stalin confiava em que Mekhlis encontraria uma maneira de sufocar os
comentários antifascistas na imprensa e, ao mesmo tempo, de ordenar a injeção de
desconfiança nos nazistas na instrução política do Exército. Relatórios recebidos pela
administração da propaganda no Exército, depois de alcançados os entendimentos
germano-soviéticos, contêm alguns exemplos concretos do modo distorcido com
que os instrutores estavam avaliando a situação:
Engenheiro Militar de 2ª classe Nechaev: “Com a ratificação do Pacto [...] não podemos mais chamar a
instrução de tiro de ‘fogo no fascismo’. Não deve haver mais agitação e propaganda contra o fascismo, já que
nosso governo não tem mais diferenças com ele.”
Karatun, instrutor de Engenharia Militar da Academia: “Não temos ideia do que e como escrever agora –
fomos criados antifascistas, agora é o inverso.”
Primeiro-tenente Gromov, Distrito Militar de Kiev: “Pensando bem, a Alemanha parece que enganou todo o
mundo. Ela agora vai se servir dos pequenos países, porém, em face do Pacto de Não Agressão, não
poderemos fazer coisa alguma.”104
Não compreendo bem a insistência do Estado-maior em concentrar nossas forças no setor oeste. Eles dizem
que Hitler desfechará seu ataque principal na direção de Moscou pela rota mais curta. Mas eu acho que a
coisa mais importante para os alemães são os cereais da Ucrânia e o carvão da bacia do Donets. Agora que
Hitler está instalado nos Bálcãs, é ainda mais provável que lance seu ataque principal do sudoeste. Quero que
o Estado-maior pondere de novo e apresente um novo plano no prazo de dez dias.106
Como a Alemanha está agora totalmente mobilizada e com sua retaguarda organizada, ela tem a capacidade
de nos surpreender com um ataque inopinado. Para evitar isso, penso ser essencial que tiremos a iniciativa do
comando alemão, surpreendendo suas forças durante o desdobramento, por meio de um ataque exatamente
no estágio de desdobramento, sem dar tempo a eles para organizar uma frente ou coordenar suas forças.
Seria prematuro expedir agora esta ordem. Talvez seja possível resolver a situação por meios pacíficos.
Devemos soltar uma ordem breve dizendo que um ataque pode ocorrer se provocado por ação alemã. As
unidades de fronteira não devem se deixar provocar por qualquer coisa que possa causar dificuldades.120
Em 22 de junho, às 4h, a Força Aérea alemã desencadeou incursões de bombardeio totalmente não
provocadas sobre nossos aeródromos e cidades ao longo da fronteira ocidental. Simultaneamente, forças
alemãs abriram fogo de artilharia sobre várias localidades e cruzaram nossa fronteira.
Em vista da audácia do ataque alemão à União Soviética, determino que:
1. As forças utilizem todo o seu poderio e todos os meios para cair sobre as tropas inimigas e destruí-las onde
elas violarem a fronteira soviética. Até segunda ordem, nossas tropas terrestres não deverão cruzar a fronteira.
2. Aviões de reconhecimento e de combate deverão identificar os locais em que o inimigo concentrou seus
aviões e sua força terrestre. Bombardeiros de grande altitude e bombardeiros de mergulho têm de destruir
totalmente a força aérea inimiga no solo e suas principais concentrações de forças terrestres. Os ataques
aéreos devem ser executados até a extensão de 100 a 150 quilômetros do território alemão. Königsberg e
Memel devem ser bombardeadas. O território finlandês e o território romeno não deverão, até ordem em
contrário, ser bombardeados.
22.6.41, 7h15. Timoshenko, Zhukov, Malenkov5
A diretriz mal parece um documento militar, mas leva a marca registrada de Stalin.
É um ato de vontade política, de determinação em punir o vizinho pérfido, e revela
pouco indício de uma intenção de acabar rapidamente com a guerra. Por outro
lado, fica difícil explicar o porquê de as tropas terrestres não poderem cruzar a
fronteira até segunda ordem. Ao expedir a determinação para que as principais
concentrações de tropas inimigas fossem destruídas, Stalin ainda não sabia que, no
primeiro dia de combate, as forças do distrito ocidental perderiam 738 aviões, dos
quais 528 seriam destruídos no solo. O quadro era semelhante nos outros distritos.
Nas primeiras horas da guerra, os alemães conseguiram supremacia aérea total,
destruindo, num só dia, 1.200 aeronaves soviéticas.
Stalin pressionou seus militares para obter informação consistente, porém, de
lado algum chegavam boas notícias. A situação na frente noroeste era desastrosa. O
comandante do VIII Exército, do distrito militar do Báltico, P.P. Sobennikov,
lembrou de que não havia um plano preciso para a defesa da fronteira. As tropas
estavam principalmente engajadas no trabalho de construção nos distritos
fortificados ou nos aeródromos. As unidades tinham efetivos incompletos. As
instalações permanentes não estavam prontas. Pela manhã, praticamente todos os
aviões do distrito militar do Báltico tinham sido destruídos no chão e restavam
apenas quatro ou cinco para apoiar as operações do VIII Exército. Acrescentou com
amargura que:
Ordens conflitantes começaram a chegar para levantar barreiras, lançar campos de minas, e assim por diante,
para, em seguida, uma contraordem cancelar tudo, mas, logo depois, a ordem era repetida para que tudo
fosse feito de imediato. Pessoalmente, recebi uma ordem do chefe do Estado-maior distrital, o tenente-
general P.S. Klenov, na noite de 22 de junho, dizendo categoricamente que, pelo amanhecer, eu deveria
retirar minhas tropas da fronteira. Era possível sentir um nervosismo extremo, a falta de coerência e o medo
de provocar a guerra. Da mesma forma que as tropas, os Estados-maiores também estavam desfalcados.
Tinham comunicações e meios de transporte inadequados. Não estavam prontos para o combate.6
Não mais tarde que 21h desta noite, 25 de junho, prepare as unidades para a retirada. Carros de combate na
vanguarda, cavalaria e forte defesa antiaérea na retaguarda.
A retirada deve se processar rapidamente, dia e noite, sob a cobertura de uma retaguarda firme. O
movimento retrógrado deve ser efetuado em larga frente. O primeiro lance deverá ser de 60 quilômetros, ou
mais, num dia. A tropa deverá ter liberdade para prover sua própria subsistência, retirando o que for
necessário dos recursos locais e fazendo uso do que for preciso para tanto.10
Quando o procurador-geral Rudenko e eu tratávamos do caso Beria, descobrimos que ele havia dito que, já
em 1941, Stalin, Beria e Molotov discutiram em particular a questão da rendição à Alemanha fascista,
concordando com a entrega a Hitler das repúblicas soviéticas bálticas, da Moldávia e de grande parte da
Ucrânia e da Bielorrússia. Eles tentaram contatar Hitler por intermédio do embaixador búlgaro. Nem um
czar russo jamais fizera isso. É interessante notar que o embaixador revelou ter maior calibre do que esses
líderes e disse que Hitler nunca derrotaria os russos, e que Stalin não deveria se preocupar com aquilo.17
O Quartel-General do Alto Comando e o Comitê de Defesa do Estado estão totalmente insatisfeitos com o
trabalho da equipe do quartel-general do front noroeste.
Em primeiro lugar, oficiais que não cumprem ordens, abandonam suas posições e deixam o perímetro
defensivo sem permissão, ainda não foram punidos. Com tal atitude liberal em relação a covardes, os esforços
da defesa serão infrutíferos.
As unidades de ataque não fizeram nada até agora, não vemos resultados de seu trabalho e, como
consequência da inação dos comandantes divisionários, de corpos e de fronts, partes da frente noroeste vêm
constantemente recuando. Chegou o momento de dar um basta nesta situação vergonhosa. O comandante,
um membro do conselho de guerra, o promotor e o chefe do 3º departamento [isto é, a NKVD] devem se
dirigir às unidades mais avançadas e tratar in loco do problema dos covardes e dos traidores.19
Nada havia sido feito antes da guerra para a construção de um abrigo antiaéreo no
QG do Estado-maior, se bem que Timoshenko e Zhukov tivessem insistido nessa
providência. Nem no Kremlin, tampouco nas dachas, Stalin contava com quaisquer
abrigos. Nos primeiros meses da guerra, todavia, ele muitas vezes passou parte do
tempo numa casa da rua Kirov, vizinha de alguns escritórios do Estado-maior. A
estação de metrô Kirov, que fora isolada da rede principal, constituiu um excelente
abrigo contra bombardeios aéreos. No inverno de 1941, um abrigo antiaéreo foi
construído na dacha mais próxima, equipado para o contato direto com os fronts.
Nos mapas preparados pelo Estado-maior, Stalin podia ver claramente as três
direções pelas quais Hitler desenvolvia seu avanço: no noroeste, para Leningrado, no
oeste, para Moscou, e no sudoeste, para Kiev. É provável que a primeira decisão
importante de guerra que Stalin tomou tenha sido a criação de três QGs, um para
cada setor, e por volta de 10 de julho, eles estavam montados: o comando noroeste
foi dado a Voroshilov, com Zhdanov como membro do soviete de guerra; o
comando oeste foi para Timoshenko, com N.A. Bulganin como membro do soviete
de guerra; no comando sudoeste ficou S.M. Budenny, com Khruschev como
membro do soviete de guerra. A ideia dos três comandos separados foi boa, mas eles
tiveram dificuldades para agir efetivamente porque Stalin não se dispôs a delegar-
lhes o poder necessário. As ordens iam diretamente às forças sem passar pelos
comandos, e as equipes de Estado-maior eram ignoradas. Ademais, como a criação
não fora adequadamente planejada, faltou pessoal e apoio técnico aos comandos, e
eles logo se transformaram em alvos dos insultos de Stalin por “passividade e falta de
determinação”.
A frente norte não deu motivo de grande preocupação porque as ações só
começaram lá no fim de junho. A situação no front noroeste foi bem diferente. Em
pouco mais de duas semanas, as forças soviéticas recuaram cerca de 450
quilômetros, abandonando as repúblicas bálticas e deixando de explorar as valiosas
posições defensivas proporcionadas pelos rios Neman e Dvina Ocidental. O novo
comandante, Sobennikov, não se mostrou à altura da expectativa e Stalin o
substituiria no prazo de seis semanas.
Mas foi a frente oeste que causou o maior alarme. Por volta de 10 de julho, as
tropas soviéticas tinham recuado quase 500 quilômetros. Com 44 divisões, Pavlov
não fora capaz sequer de fazer frente ao ataque inimigo. Stalin estava resolvido a
investigar e colocar sob julgamento imediato o comando ocidental.
As perdas soviéticas eram colossais. Algo como 30 divisões haviam sido
praticamente aniquiladas, enquanto 70 delas perderam mais da metade dos efetivos;
aproximadamente 3.500 aviões tinham sido destruídos, juntamente com mais da
metade dos depósitos de combustíveis e de munições. E isso depois de apenas três
semanas de guerra! É claro que os alemães pagaram também alto preço, ou seja,
cerca de 150 mil oficiais e praças, mais de 950 aeronaves e várias centenas de carros
de combate. Porém, mais tarde veio à tona que as baixas soviéticas eram
artificialmente reduzidas, enquanto as alemãs eram aumentadas. Depois de duas
semanas de batalha, a seguinte estatística foi apresentada a Stalin:
Perda de aviões:
O mínimo do inimigo 1.664
Nossas perdas 889
Perdas de carros de combate:
Inimigo 2.625
Nossos 901
Perdas humanos do inimigo: Mortos 1.312.000
Na luta acirrada dos diversos setores, além do mais, o inimigo teve pesadas baixas, mas como nossas tropas
retraíam, foi impossível contabilizar as perdas. Muitas baixas não computadas foram infligidas aos
paraquedistas em ações isoladas.
Existem 30.004 prisioneiros, mais um número indeterminado de paraquedistas.
Nossos desaparecidos e aprisionados, até 29 Jun, eram de cerca de 15 mil.
Cinco submarinos inimigos foram afundados no Báltico e um no mar Negro.
Duas aeronaves inimigas de apoio ao combate naval foram destruídas.20
Com tais relatórios era impossível conhecer a posição real, a relação de forças e o
número de aviões, carros de combate e homens disponíveis. Mas aquelas estatísticas
eram propositalmente distorcidas por gente acostumada a mentir para Stalin em
função do culto ao líder, e ele as tomava por dados concretos sem jamais imaginar
que estava sendo enganado. Mas mesmo assim, o poderio alemão declinou
consideravelmente depois da força do primeiro ataque, e os exércitos de Hitler não
atingiram seu principal objetivo, que era a destruição do Exército Vermelho.
O Exército lutava. Estava retraindo, mas estava lutando. Estudando os mapas,
Stalin aos poucos chegou à conclusão de que seria uma longa guerra e que, se a
URSS pudesse sobreviver à primeira fase, haveria uma chance de vitória. Já em 5 de
julho, quando ordenou que o Estado-maior condecorasse os que se distinguissem
por bravura especial, inclusive com a primeira comenda de tempo de guerra de
Herói da União Soviética, disse ao departamento de propaganda que espalhasse as
histórias sobre o heroísmo soviético. “Lembrem-se da conclamação de Lenin: A
Pátria Socialista corre perigo! Façam o povo saber que é possível e é preciso esmagar o
porco fascista!”
Além dos assuntos militares, Stalin também passava várias horas por dia nas
questões econômicas. Em 4 de julho, Voznesensky e Mikoyan submeteram à
apreciação do Comitê de Defesa do Estado a minuta de um plano de economia de
guerra que Stalin assinou quase sem ler. Voznesensky conseguiu relatar
apressadamente que, em 30 de junho, o Sovnarkom aprovara um plano de
mobilização econômica geral que previa a colocação da economia em pé de guerra
no mais curto tempo possível. Shvernik, responsável pelo soviete de evacuação,
acabara de reportar que, até então, só as fábricas próximas à fronteira haviam sido
deslocadas, mas que a derrocada militar exigia agora uma abordagem mais
abrangente.
Na prática, por volta de janeiro de 1942, 1.523 fábricas, das quais 1.360
dedicadas à produção de material de emprego militar, seriam transferidas totalmente
para o leste e postas em operação, uma conquista extraordinária da maior
importância. No setor agrícola, hoje sabemos que, em novembro de 1941, foi
tomada a decisão de criar alguns milhares de seções políticas nas estações de
máquinas e tratores e nas fazendas estatais. A gigantesca perda de terras e o fluxo da
mão de obra rural para o Exército impuseram pesada carga sobre a agricultura para
que ela alimentasse o Exército e o país.
Homem central de todo este esforço, Stalin fez da guerra um modo de confirmar
plenamente sua ditadura absoluta. O ex-comissário dos Transportes, I.V. Kovalev,
fez-me o seguinte relato daquele período:
Lembro de ter sido chamado, como chefe da administração dos transportes militares, para uma reunião no
Kremlin. Lá, vi chefes ferroviários, militares e membros das equipes do Comitê Central. Kaganovich estava,
como também Beria, encarregado temporariamente dos transportes. Stalin entrou na sala. Todos nos
levantamos. Sem qualquer preâmbulo, ele disse: “O Comitê de Defesa do Estado tomou a decisão de criar o
Comitê dos Transportes. Proponho o Camarada Stalin para chefe desse comitê.” Foi exatamente assim que
ele falou. Recordo de mais alguma coisa que ele disse naquele encontro: “Transporte é uma questão de vida
ou morte. O front está na mão dos transportes. Lembrem-se, descumprimento das ordens do Comitê de
Defesa do Estado significa tribunal militar.” Disse isto calma, mas deliberadamente, e um calafrio percorreu
minha espinha.
No curso da guerra, tive que me reportar dezenas de vezes, senão centenas, a Stalin sobre a movimentação de
trens para os diferentes setores do front. Algumas vezes, quando era o caso de uma carga especial, tinha que
mantê-lo informado de duas em duas horas. Em dada ocasião, um trem “perdeu-se”. Pensei que tinha sido
em determinada estação, mas não foi lá. Stalin mal pôde conter a raiva: “Se você não encontrá-lo, general,
será mandado para o front como soldado.”* Ao sair do gabinete, branco como uma folha de papel, ainda
ouvi Poskrebyshev acrescentar: “Cuide para não se enganar. O chefe está no fim da sua corda.”
Quando eu ia ao Kremlin, normalmente Molotov, Beria e Malenkov estavam na sala de Stalin. Naquela
época, achei que eles só atrapalhavam. Não perguntavam coisa alguma, ficavam apenas sentados e ouviam,
fazendo ocasionalmente anotações. E, durante o tempo todo, Stalin se ocupava dando instruções, falando ao
telefone, assinando documentos, chamando Poskrebyshev para lhe dar ordens, e os três lá sentados, olhando
para Stalin ou para quem entrasse. Testemunhei a cena dezenas e dezenas de vezes. Era como se Stalin
precisasse deles, fosse para cuidar de qualquer coisa que viesse a surgir, fosse como testemunhas para a
história.
Como regra, Kaganovich não estava presente; aquele trabalhava dezoito horas por dia, xingando e
ameaçando todo mundo e não poupando ninguém, nem mesmo a si próprio. Mas jamais o vi sentado no
escritório de Stalin, como os outros três. Quando Stalin falava ao telefone, emitia apenas umas poucas frases
e colocava o aparelho no gancho. Era lacônico e esperava que os outros também o fossem. Não era de bom
alvitre dar-lhe dados aproximados: ele baixava ameaçadoramente o tom da voz e dizia: “Você não sabe? Que
está fazendo, então?”
A despeito dos muitos encontros que tive com ele, comparecia a cada um deles em estado de pavor. Meu
temor era que perguntasse alguma coisa e eu não soubesse a resposta. Ele era uma pessoa inacreditavelmente
fria. Em vez de dizer “olá”, acenava simplesmente com a cabeça. Fazia meu relato e, se não houvesse
perguntas, deixava rapidamente a sala com um suspiro de alívio. Era o mais breve possível. Poskrebyshev
aconselhou-me a agir assim. As pessoas sentiam-se oprimidas pelo poder de Stalin, também por sua memória
fenomenal e pelo fato de que sabia muita coisa. Ele fazia com que todos se sentissem ainda menos
importantes do que na verdade já eram.
Nos primeiros meses da guerra, Stalin passou muito tempo tratando de detalhes
irrelevantes, tais como distribuição de minas e fuzis, construção de valas antitanques
pela população civil, exame de comunicados à imprensa para o Informburo. Certa
vez, aconteceu que um documento do Estado-maior para as Forças Armadas
permaneceu sem ser notado por oito horas e quinze minutos no departamento de
codificação. Quando Stalin soube disso, determinou que o coronel I.F. Ivanov e o
primeiro-tenente B.S. Krasnov fossem punidos e afastados do Estado-maior Geral, e
que o departamento passasse a operar como devia.21 Enquanto isso, havia decisões
de crucial importância a serem tomadas nos dias terríveis daquele agosto quente.
Porém, era hábito que Stalin desenvolvera ao longo dos anos decidir e fazer tudo ele
mesmo, e pelos outros. A situação nos fronts, contudo, cedo iria acarretar uma
mudança no estilo e nos métodos de trabalho do Supremo.
Ao aprovar ou desaprovar as propostas do Estado-maior, ele buscava
constantemente meios de dar maior impacto a suas ações. Por exemplo, quando
soube que não existiam armas para equipar os reforços, ordenou aos quartéis-
generais que expedissem a seguinte instrução para as forças:
Tem que ser explicado a todo comandante, oficial político ou soldado que perder armas no campo de batalha
é uma violação séria do juramento militar, e que os culpados devem responder de acordo com as leis de
tempo de guerra. As equipes de civis encarregadas do recolhimento de armas devem ser reforçadas com
militares e ser responsabilizadas pela coleta de qualquer armamento abandonado no campo de batalha.22
Sua resposta a uma situação difícil era sempre torná-la ainda mais difícil.
Exemplificando, Zhdanov e Zhukov no relatório sobre a situação em Leningrado
mencionaram o fato de que, no ataque às posições soviéticas, os alemães
empurravam mulheres e crianças, homens e mulheres idosos para a frente,
colocando os defensores em situação mais delicada ainda. As mulheres e crianças
gritavam: “Não atirem! Somos dos seus!” As tropas soviéticas não sabiam o que
fazer. A reação imediata de Stalin foi típica de seu caráter:
Dizem que os porcos alemães que avançam sobre Leningrado empurram velhos, mulheres e crianças na
frente. Ouço que há bolcheviques em Leningrado que consideram impossível empregar suas armas contra
essas pessoas. Acho que, se existirem tipos assim entre os bolcheviques, eles devem ser logo destruídos porque
são mais perigosos que os fascistas alemães. Aconselho não serem sentimentais, arrasem o inimigo e seus
cúmplices forçados ou não. Atirem nos alemães e nos seus acompanhantes, sejam quem forem, com o que
tiverem à mão, acabem com os inimigos, não importa se compelidos ou voluntários. Ditado às 4h de 21 Set
41 pelo Camarada Stalin. Assinado B. Shaposhnikov23
Ponto Quatro.
Nosso exército subestima um pouco a importância da cavalaria. Na situação atual do front, quando a
retaguarda do inimigo está distendida por algumas centenas de quilômetros em terreno com muita vegetação,
e se encontra totalmente incapaz de proteger-se contra ações diversionárias importantes de nossa parte,
ataques rápidos da Cavalaria Vermelha podem ter um papel relevante na desorganização da administração e
do suprimento das forças inimigas. Se unidades de nossa cavalaria, que se encontram dispersas e ociosas,
puderem ser empregadas contra a retaguarda do inimigo, ele ficaria em situação crítica, enquanto nossas
forças seriam aliviadas de muita pressão. O Estado-maior Geral acredita que tais incursões devem ser
executadas por algumas dezenas de divisões de cavalaria ligeira das forças com vocação para o ataque, cada
uma delas com efetivo aproximado de 3 mil homens em transportes leves, sem sobrecarregar nossos serviços
de retaguarda.24
Não de todo desprovida de sentido, a ideia, todavia, era muito ultrapassada, mas a
situação chegara a tal ponto de desespero que Stalin procurava panaceias em quase
qualquer método.
Pavlov não saía da cabeça de Stalin. Antes de se tornar comandante em chefe da
frente oeste, ele causara uma boa impressão. É verdade que não tinha muita
experiência, e sua ascensão depois da Espanha fora rápida. Por que seu quartel-
general se comportara com tanta negligência? Stalin, convenientemente, esqueceu
que, em meados de junho, Pavlov enviara dois ou três despachos codificados
urgentes requisitando permissão para deslocar tropas a fim de ocuparem posições no
terreno, sugerindo a mobilização parcial e realçando a necessidade do fortalecimento
do distrito com comunicações e carros de combate novos. Mesmo assim, a pergunta
importunava Stalin: como pôde Pavlov perder tudo de forma tão miserável?
Chamou Poskrebyshev e perguntou: “Quem, além de Pavlov, foi mandado ao
tribunal militar? Quando será o julgamento? Onde está a minuta de sentença?
Chame Ulrikh!” Poskrebyshev trouxe uma pasta fina e a deixou em cima da mesa.
Seu título era “(Minuta) Sentença”:
Pela URSS, o colegiado militar da Corte Suprema da URSS, constituído de: Presidente: advogado militar
V.V. Ulrikh;
Membros: advogados militares divisionários A.A. Orlov e D.Ya. Kandybin; Secretário: advogado militar A.S.
Mazur.
Numa sessão fechada em Moscou, em .... de julho de 1941, os seguintes casos foram julgados:
1. Pavlov, Dmitri Grigoryevich, nascido em 1897, ex-comandante do front oeste, general de exército.
2. Klimovskikh, Vladimir Yefimovich, nascido em 1895, ex-chefe do Estado-maior do front oeste, major-
general. Ambos acusados de crimes capitulados nos Artigos 63-2 e 76 do Código Penal Bielorrusso.
3. Grigoryev, Andrei Terentyevich, nascido em 1889, ex-chefe das comunicações do front oeste, major
general.
4. Korobkov, Alexander Andreyevich, nascido em 1897, ex-comandante do IV Exército, major general.
Ambos acusados de crimes capitulados no Artigo 180, parágrafo b, do Código Penal Bielorrusso.
Os acusados Pavlov e Klimovskikh participaram de uma conspiração militar antissoviética e que se valeram
de suas posições para trabalhar para o inimigo por não treinarem o pessoal sob seu comando para a ação
militar, e que, com seus objetivos conspiratórios em mente, enfraqueceram a preparação para a mobilização
das tropas no distrito militar, perturbaram a organização das forças e entregaram armas ao inimigo sem luta,
causando grande dano à capacidade combatente do Exército Vermelho.
Stalin pulou grande parte do documento que continuava nesta linha, mas leu a
seção final:
Desta forma, a culpa de Pavlov e Klimovskikh [...] e de Grigoryev e Korobkov [...] foi estabelecida. Em
consequência do acima exposto e de acordo com os Artigos 319 e 320 do Código do Processo Penal da
URSS, o colegiado militar da Corte Suprema da URSS sentencia que:
1. Pavlov, Dmitri Grigoryevich
2. Klimovskikh, Vladimir Yefimovich
3. Grigoryev, Andrei Terentyevich
4. Korobkov, Alexander Andreyevich
sejam despojados de seus postos, Pavlov como general de exército e o restante como major generais, e sujeitos
todos os quatro à mais alta forma de punição, ou seja, o fuzilamento, e que seus bens pessoais sejam
confiscados. A sentença é final e não comporta apelação.25
Stalin voltou-se para Poskrebyshev e disse: “Aprovo a sentença, mas diga a Ulrikh
para retirar toda esta bobagem de ‘atividade conspiratória’. O caso não deve se
prolongar. Nada de recursos. E, depois, os fronts devem ser informados para que
saibam que os derrotistas serão punidos sem clemência.”
Tudo fora decidido antes do julgamento, de modo que, quando ele ocorreu, em
22 de julho, necessitou apenas cumprir formalidades. Os réus pediram para ser
enviados ao front em qualquer situação; mostrariam sua lealdade à pátria-mãe e seu
dever militar com derramamento do próprio sangue. Instaram para que a corte
acreditasse que todo o ocorrido se devera às condições extremamente desfavoráveis.
Não negaram suas culpas. Eles as expiariam na batalha. Ulrikh bocejou e disse:
“Vamos com isso!” Os acusados foram fuzilados naquela noite. (A sentença seria
anulada pelo Estado-maior Geral, com quinze anos de atraso, em 5 de novembro de
1956.)26 Korobkov foi especialmente desafortunado. De acordo com o relatório do
coronel-general L.M. Sandalov ao general V.V. Kurasov, embora o exército de
Korobkov tivesse sofrido pesadas perdas, ainda operava e não tinha, como muitos
outros comandos, perdido a ligação com o quartel-general do front. No fim de
junho de 1941, ficou decidido que um dos oficiais comandantes do front oeste
deveria ser “pinçado” para julgamento pelo desastre, e como se sabia onde Korobkov
estava, sua sorte foi selada.27
Pavlov e os outros tinham progredido rapidamente na carreira graças à dizimação
no corpo de oficiais ocorrida em 1937-38, e, sem dúvida, careciam de treinamento e
experiência adequados, mas eram totalmente devotados ao seu país. Foram muitos
os casos assim. Kirponos e Kuznetsov, como Pavlov, tiveram carreiras meteóricas e,
da mesma forma, seu patriotismo foi inadequadamente sustentado por qualidades
de liderança. Stalin foi o verdadeiro responsável pelo início catastrófico da guerra,
porém, como de hábito, precisou de bodes expiatórios, exacerbando a natureza já
cruel da guerra com sua própria crueldade.
Muitos homens da estatura de Korobkov poderiam ter chegado ao topo, mas
não conseguiram. Muitos morreram em combate; muitos outros, tendo exaurido
todas as possibilidades de continuar combatendo e não desejando cair prisioneiros
ou ficar sujeitos à justiça de Stalin, cometeram suicídio. Existem numerosos casos
registrados em documentos.28
A história de alguns outros generais não foi menos trágica. Em agosto de 1941,
os órgãos de segurança reportaram a Stalin que dois generais, o comandante do
XXVIII Exército, tenente-general V.Ya. Kachalov, e o comandante do XII Exército,
major general P.G. Ponedelin, tinham se rendido voluntariamente e trabalhavam
então para os alemães. Stalin ordenou que fossem julgados. Nem todas as ordens
eram cumpridas de imediato: se tivessem sido, talvez os alemães não chegassem às
portas de Moscou no outono! Mas aquela ordem foi logo executada, e os dois
generais foram julgados in absentia em outubro de 1941, e sentenciados ao
fuzilamento, “privados de todos os seus bens pessoais e despojados de suas
condecorações soviéticas”.29
Jamais ocorreu aos miseravelmente cínicos informantes de Stalin que Kachalov
fora morto, em 4 de agosto de 1941, pelo impacto direto de uma granada, mas, até
1956, sua família teve que carregar o estigma do parentesco com “um inimigo da
pátria-mãe”. O destino do major general Ponedelin foi ainda pior. Cercado em
agosto de 1941, ele foi seriamente ferido e caiu prisioneiro inconsciente. Quatro
longos e amargos anos nos campos de concentração de Hitler não o dobraram.
Serviu como suporte para os camaradas mais fracos e se recusou a colaborar com os
nazistas. Depois da libertação e da repatriação em 1945, foi preso e condenado a
cinco anos nos campos soviéticos, mesmo tendo sido sentenciado à morte in
absentia, em 1941. O general fez um apelo pessoal a Stalin em 25 de agosto de 1950
e foi de novo condenado à morte. Desta vez, a sentença foi executada.
Dos milhões de militares soviéticos que caíram em mãos dos alemães, os que
conseguiram escapar e voltaram às linhas amigas foram imediatamente colocados em
“campos especiais para averiguação”. Existem muitos relatórios assinados por Beria
sobre a maneira com que estes campos funcionavam. Depois de “checados”, alguns
militares foram enviados para destacamentos recém-formados, outros foram
executados no ato, e ainda outros foram sentenciados a longos anos em campos de
concentração.30 Conquanto o caso de Pavlov seja o mais conhecido, a verdade é que,
ao mesmo tempo, Stalin sancionou a prisão de um grande número de outros
generais, alguns dos quais, no final, retornaram ao front, enquanto outros
terminaram nos campos ou foram fuzilados.31
A suspeita de Stalin em relação a seus generais tampouco se restringiu à fase de
abertura das hostilidades. Em agosto de 1942, por exemplo, ele passou um
cabograma para Vasilievsky e Malenkov em Stalingrado:
Surpreendo-me com o fato de o inimigo ter feito precisamente o mesmo tipo de avanço por trás de nossas
linhas no front de Stalingrado que o realizado no ano passado no front de Bryansk [...] Deve ser ressaltado
que o comandante do front de Bryansk era o mesmo Zakharov e que o ajudante do Camarada Yeremenko
era o mesmo Rukhle. Vale a pena pensar sobre isso. Ou Yeremenko não entende a ideia de um segundo
escalão enquanto as divisões da vanguarda não estão sob fogo, ou estamos lidando aqui com alguém que
alimenta sentimentos inamistosos e dá aos alemães detalhes exatos de nossos pontos fracos.32
O major general Rukhle foi imediatamente preso, mas a sorte lhe sorriu e ele
sobreviveu. Stalin não podia se livrar do costume de apelar para medidas severas e
cruéis, mas todos àquela época acreditavam que providências duras se justificavam
em tempos difíceis.
Nota
* Não era ameaça vazia. O major-general N.A. Moskvin foi rebaixado por ordem de Stalin e mandado para a
frente de combate como soldado. (TsAMO, f.33. op. 11 454, d. 179.l.1)
[43]
Desastres e esperanças
O comandante de front Tyulenev acabou se tornando incompetente. Não sabe como avançar nem como
recuar sua tropa. Perdeu dois exércitos de uma forma com que não se perderiam nem dois regimentos.
Sugiro que você vá de imediato ao encontro de Tyulenev, veja por si mesmo como está a situação e reporte
prontamente sobre o plano de defesa. Acho que Tyulenev está desmoralizado e não é capaz de comandar o
front. Ditado por telefone às 5h50 de 12 Ago 41.35
A despeito das ordens enérgicas de Stalin, a situação no front sul piorou, chegando a
uma crise no fim de agosto. Stalin tentou contato com um comandante atrás do
outro, nem sempre com sucesso. Em dada oportunidade, tendo sido recém-
informado de outra retirada não autorizada, ditou a Ordem nº 270, de 16 de agosto
de 1941. Em total desespero, recorreu à habitual orientação punitiva. Esta ordem
pouco conhecida retrata bem o estilo pessoal de Stalin. Ela menciona comandantes,
oficiais políticos e simples soldados que se saíram honrosamente de situações
difíceis, mas continua:
Por outro lado, o tenente-general Kachalov, comandante do XXVIII Exército, demonstrou covardia e se
entregou, enquanto seu QG e suas unidades romperam o cerco; o major general Ponedelin se rendeu, como
também o major general Kirilov do 13º Corpo de Fuzileiros. Foram fatos vergonhosos. Covardes e desertores
devem ser destruídos.
Ordeno que:
1. Quem quer que remova seu distintivo de posto durante a batalha e se renda deve ser considerado desertor
mal-intencionado, cuja família tem que ser presa por parentesco com o violador do juramento e traidor da
pátria. Tais desertores têm que ser fuzilados no ato.
2. Os que forem cercados têm que lutar até o fim e tentar chegar às linhas amigas. Os que preferirem a
rendição têm que ser aniquilados por quaisquer meios disponíveis, e suas famílias privadas de toda a
assistência e subsídios estatais.
3. Os corajosos e os bravos devem ser promovidos com mais assiduidade.
Esta ordem é para ser lida em todas as companhias, esquadrões, baterias.36
Tendo ditado o texto impulsivo sem hesitação alguma, Stalin deixou-o como
estava, não o editou, mas determinou que os nomes de Molotov, Budenny,
Voroshilov, Timoshenko, Shaposhnikov e Zhukov fossem acrescentados na
assinatura, embora nem todos estivessem presentes.
Em torno do fim de agosto, Stalin recebeu uma carta do escritor Vladimir
Stavsky, que acabara de passar dez dias no front próximo a Yelnya. Um trecho da
carta é o seguinte:
O único comentário de Stalin sobre a carta foi assinalar o dado das execuções para a
atenção de Mekhlis. Nesse ínterim, uma das maiores tragédias da guerra se
aproximava. Em 8 de agosto de 1941, Stalin estava de novo na linha com Kirponos:
Stalin: “Chamou a atenção o fato de que o front decidiu entregar logo Kiev ao inimigo, supostamente por
falta de tropas capazes de defender a cidade. Isso é verdade?”
Kirponos: “Alô, Camarada Stalin. Você foi mal-informado. O conselho de guerra e eu estamos fazendo o
possível para não deixar que Kiev seja capturada em hipótese alguma. Todos os nossos pensamentos e nossas
energias estão voltados para que o inimigo não conquiste Kiev.”
Stalin: “Muito bom. Envio meus cumprimentos e o desejo de sucesso. Isto é tudo.”38
Mais determinação e mais calma. A vitória está garantida. Só existem forças inimigas triviais contra você.
Concentre sua artilharia nos pontos de penetração. Nossa aviação opera em seu apoio. Nossas tropas estão
atacando Romny. Repito: mais determinação e mais calma. Reporte com mais frequência.40
Foi uma catástrofe apavorante. Foram cercados 452.720 homens, incluindo cerca de
60 mil oficiais.41 O inimigo apoderou-se de enormes quantidades de armamento e
de equipamento. Kirponos, seu chefe de Estado-maior, Tupikov, e o membro do
conselho de guerra, Burmistenko, pereceram nas últimas batalhas, juntamente com
milhares de outros soldados. Mesmo que Kirponos tivesse conseguido romper o
cerco, Stalin jamais o perdoaria. Na realidade, Stalin e o Estado-maior foram os
principais responsáveis pela tragédia, se bem que também seja verdade que o
quartel-general do front não conseguiu administrar as forças que, sob melhor
liderança, talvez evitassem o triste destino. Muitas vezes, a valentia não era apoiada
pela capacidade, pela organização e pela competência. A derrota em Kiev inclinou
rapidamente a balança em favor do inimigo ao longo de todo o front.
Sem sinais de emoção, Stalin simplesmente ordenou a Shaposhnikov. “Feche a
brecha imediatamente. Imediatamente!” Shaposhnikov disse: “Penso que o
necessário nessa difícil situação é um pulso forte e uma cabeça com experiência.
Provavelmente, o melhor candidato para a missão seja Timoshenko.” Stalin
concordou. “E Khruschev deve ser nomeado para o conselho de guerra, com o
major general A.P. Pokrovsky como chefe do Estado-maior.” “Que seja”, concluiu
Stalin.
As perdas no primeiro ano de guerra foram verdadeiramente monumentais,
mesmo levando-se em conta a manipulação que os números experimentaram. Só em
Kiev, cerca de meio milhão de homens, de uma forma ou de outra, desapareceram
em ação. Certo dia, Stalin escreveu um bilhete para Shaposhnikov solicitando
detalhes sobre as baixas soviéticas nas proximidades de Vitebsk.42 Normalmente não
muito preocupado com a família, de súbito, seu filho Yakov veio-lhe à mente. Em
meados de agosto, Zhdanov, que estava no conselho de guerra do front noroeste,
enviara-lhe um envelope especialmente selado. Ele continha uma folha de
propaganda com uma fotografia de Yakov em conversa com dois oficiais alemães,
acompanhada do seguinte texto:
Este é o filho mais velho de Stalin, Yakov Djugashvili, comandante de bateria do 14º Regimento de
Artilharia de Campanha da 14ª Divisão Blindada, que se rendeu próximo a Vitebsk em 16 de julho,
juntamente com milhares de outros oficiais e praças. Por ordem de Stalin, Timoshenko e seus comissários
políticos andam dizendo a você que os bolcheviques não se entregam. Mas os homens do Exército Vermelho
estão se bandeando para o lado alemão o tempo todo. Para amedrontá-lo, os comissários lhe dizem que os
alemães tratam muito mal seus prisioneiros. O exemplo do próprio filho de Stalin mostra que isto é uma
mentira. Ele se rendeu porque qualquer resistência ao Exército Alemão é inútil.43
Nós aqui em Moscou, os membros do Comitê de Defesa do Estado e o Estado-maior, decidimos substituir o
Camarada Bagramyan no cargo de chefe do Estado-maior do comando sudoeste. O Estado-maior considera
o Camarada Bagramyan insatisfatório não só como chefe do Estado-maior que foi convocado para reforçar as
ligações e as lideranças dos exércitos, como também como simples provedor de informações cuja
responsabilidade é a de dar conhecimento ao Estado-maior, de forma honesta e confiável, sobre a situação no
front. Além do mais, o Camarada Bagramyan provou ser incapaz de aprender com a catástrofe que ocorreu
na frente sudoeste. No curso de umas três semanas, o front sudoeste, graças à sua atitude negligente, não
apenas perdeu a operação ganha pela metade em Kharkov, como também conseguiu entregar ao inimigo
outras 18 ou 20 divisões.
Stalin fez uma pausa e perguntou: “Como é o nome daquele general que foi
derrotado juntamente com Samsonov em 1914? Aquele com o nome alemão?”
“Rennenkampf”, respondeu Vasilievsky.
“Sim, é isso. Correto, vamos continuar.”
Esta catástrofe é tão fatal em suas consequências como o foi a sofrida por Rennenkampf e Samsonov na
Prússia Oriental. Depois de tudo o que aconteceu, o Camarada Bagramyan poderia ter aprendido alguma
coisa, se quisesse. Infelizmente, não há indício disso. Agora, como antes da catástrofe, a ligação do Estado-
maior com os exércitos não é satisfatória, nossa informação é de pobre qualidade.
Estamos enviando o Camarada Bodin, vice-chefe do Estado-maior, para servir como seu chefe temporário de
Estado-maior. Ele conhece esse front e pode fazer um bom trabalho. O Camarada Bagramyan é nomeado
chefe de Estado-maior do XXVIII Exército. Se ele se sair bem nessa função, levantarei o assunto de sua
indicação para a promoção.
Obviamente, o Camarada Bagramyan não é todo o problema. Ainda existem os erros cometidos pelo soviete
de guerra, sobretudo pelos Camaradas Timoshenko e Khruschev. Se tivéssemos que contar ao país a escala
total do revés sofrido, e por que ainda passa o front, temo que o povo iria tratá-los de maneira bem áspera.
Boa sorte.
26 Jul 42, 2h. Stalin49
Moscou está em posição delicada e não pode fornecer novas reservas. Ou vocês rompem o cerco nos
próximos dois ou três dias e dão um escape para o leste para nossas tropas, caso Leningrado não possa ser
mantida, ou serão feitos prisioneiros. Exigimos uma ação rápida e decisiva. Concentrem oito ou nove
divisões e abram caminho para leste. Isto é essencial, possa Leningrado ser mantida ou render-se. Para nós, o
Exército é mais importante. Exigimos ação decisiva.
* Em 30 de setembro de 1941, a Força Aérea soviética tinha perdido 96,4% dos aviões que possuía quando a
guerra começou. (TsAMO, f.35. op. 11 285. d. 9. l. 324)
O Estado-maior considera intolerável e inadmissível que, por diversos dias, o soviete de guerra não tenha
mandado notícias sobre o destino do XXVIII e do LVII Exércitos e do 22º Corpo Blindado. De diversas
fontes, o Estado-maior tem conhecimento que os Estados-maiores destes exércitos recuaram para trás do
Don, mas nem tais Estados-maiores nem os sovietes de guerra informaram ao Estado-maior para onde essas
forças foram e o que lhes aconteceu, se ainda combatem ou caíram prisioneiras. Eram cerca de quatorze
divisões nestes exércitos e o Estado-maior deseja conhecer seu paradeiro.57
Os escribas nazistas estão citando cifras astronômicas de 30 mil supostos prisioneiros de guerra e falando em
maior quantidade ainda de mortos. Nem é preciso dizer que se trata de típica mentira nazista. Segundo
dados ainda não confirmados, pelo menos 30 mil alemães foram mortos [...] Partes do II Exército de Assalto
recuaram para posições preparadas. Perdemos aproximadamente 10 mil mortos e 10 mil desaparecidos em
ação.
A simetria destes dados já era bastante suspeita àquela época e agora sabemos que
milhares e milhares de combatentes soviéticos foram tragados pelos pântanos na
operação malplanejada e que ainda estão listados como “desaparecidos”.
Em determinada ocasião, poucas semanas depois, Beria, que juntamente com
Molotov ainda se encontrava tarde da noite na dacha de Stalin, tirou um
documento de sua indefectível pasta e o mostrou a Stalin.
“O que é isso?”
“Dê uma olhada. Veja onde está o desaparecido comandante do II Exército de
Assalto”, replicou Beria.
Stalin passou os olhos pelo documento que era “Uma proclamação do comitê
russo dos soldados e oficiais do Exército Vermelho para todo o povo russo e todas as
nações da União Soviética”:
O Comitê Russo tem os seguintes objetivos: derrubar Stalin e sua súcia, concluir uma paz honrosa com a
Alemanha, criar uma Nova Rússia. Convocamos você a se juntar ao Exército Russo de Liberação que luta em
aliança com a Alemanha.
Presidente do Comitê Russo tenente-general Vlasov
Secretário do Comitê Russo tenente-general Malyshkin65
Havia passes para o cruzamento das linhas, “Uma carta aberta de Vlasov sobre os
motivos pelos quais tomei o caminho da luta contra o bolchevismo”, e publicações
semelhantes.
Stalin pôs de lado os documentos e perguntou a Beria: “Podem ser falsificações?
O que se sabe sobre Vlasov? Há confirmação?”
Beria replicou: “Há, sim. Vlasov está trabalhando para os alemães.”
“Como deixamos que escapasse antes da guerra?”, interveio Molotov.
Como resposta, Beria tirou a ficha pessoal de Vlasov de sua pasta. Stalin leu que
ele nascera na província de Nizhni Novgorod (Gorky) no seio de uma família
mediana (isto é, nem rica nem pobre) de camponeses. Não tinha parentes além da
esposa e do pai idoso. Beria sublinhou a anotação de que Vlasov completara a escola
religiosa e estudara durante dois anos num seminário teológico antes de 1917.
Combatera na guerra civil e todos os seus serviços posteriores foram bem-sucedidos:
a 99ª Divisão de Infantaria, sob seu comando, estivera entre as melhores no distrito
de Kiev. Antes, desempenhara missão especial na China. Comandara o 4º Corpo
Mecanizado que combateu com bravura em Przemsyl e Lvov, e fora promovido para
comandar o XXXVII Exército que defendia Kiev. Saíra-se muito bem naquela
missão, recebera o XX Exército e, finalmente, o II Exército de Assalto.
Em 20 de abril de 1942, o próprio Stalin assinara a ordem nomeando-o
comandante “combinado” – um termo raro no vocabulário militar – do II Exército
de Assalto e vice-comandante em chefe do front de Volkhov.66 Fora condecorado
com a Ordem de Lenin e a da Bandeira Vermelha. Tinha um histórico irretocável.
O relatório de 1938 do partido a seu respeito afirmava que “ele está fazendo muito
para liquidar os remanescentes da sabotagem nas unidades”. Seus avaliadores foram
oficiais renomados como Kirponos, Muzychenko, Parusinov e Golikov. O único
comentário numa certidão datada de 19 de novembro de 1940 referia-se a um
desejo “de dedicar atenção ao emprego e à manutenção dos cavalos”. Ao longo de
toda a ficha havia observações como “Dedicado à causa do partido de Lenin-Stalin e
à da Pátria-Mãe”. Numa avaliação de 24 de janeiro de 1942, o general Zhukov
escrevera que Vlasov era bem treinado operacionalmente e estava totalmente
capacitado para comandar um exército. Receber um “totalmente capacitado” de
Zhukov não era façanha pequena naqueles tempos sisudos.
Stalin não acreditava que Vlasov pudesse fazer muita coisa importante para os
alemães, mas entendeu que, depois do anúncio da formação do Exército Russo de
Liberação, poderia esperar o surgimento de outras organizações nacionais como
aquela, e estava certo.
Em 1942, as autoridades germânicas começaram a explorar os acampamentos à
procura de desertores que desejassem não apenas servir no exército de Vlasov, como
também nas diversas legiões nacionais: georgiana, armênia, turquestã, caucasiana,
báltica e outras. Muito esforço foi feito com esse intuito, mas pouco resultou.
Alguns prisioneiros de guerra se filiaram a estas legiões como meio de sobrevivência
e como uma possível maneira de voltarem às suas forças, mas também existiram
aqueles que se deixaram levar pela propaganda nacionalista. Alguns “legionários”
chegaram mesmo a tentar cruzar as linhas em uniformes confeccionados pelos
alemães, sem saber ao certo o destino que os esperava. Por exemplo, em 3 de
outubro de 1942, Bergenov, Khasanov e Tulebaev, três soldados da legião turquestã,
procuraram companheiros durante quatro dias, toparam com unidades soviéticas e
disseram que grande parte de seu batalhão desejava retornar à sua unidade. Em 8 de
outubro,Tsulaya e Kabakadze apareceram numa zona de defesa da 2ª Divisão de
Guardas e pediram ajuda para que um destacamento da legião georgiana cruzasse a
linha.67
Os alemães eram bastante otimistas em relação às legiões que formaram nas
repúblicas bálticas, cujas populações só viviam sob mando soviético por apenas um
ano antes da guerra. O comando alemão, contudo, apenas as empregou como
auxiliares, na guarda de instalações e estradas e, ocasionalmente, em expedições
punitivas. Depois da guerra, esses legionários foram julgados e exilados. O governo
báltico solicitou às autoridades soviéticas que decretassem uma anistia. Em 16 de
março de 1946, V.T. Latsis, primeiro-ministro da RSS da Letônia, e Ya.E.
Kalberzin, primeiro-secretário do partido letão, escreveram a Moscou:
Stalin deu sua aprovação. Mantinha-se informado sobre as legiões por intermédio da
NKVD. Entendia que, a despeito de aquelas unidades não representarem uma
grande força, poderiam ser politicamente significativas. Sua posição para com elas,
demonstrada nos documentos, foi uniformemente irreconciliável, muito embora
elas constituíssem efetivos pequenos.
Por exemplo, Kobulov reportou a Beria que, nos distritos do Cáucaso
Setentrional, na semana anterior, houvera seis incidentes. Oito bandidos foram
mortos, inclusive dois paraquedistas alemães, 46 bandidos foram presos e 37 armas
capturadas. O Exército Vermelho perdeu oito homens. O chefe do bando Kayakent,
Ilyasov-Nadzmuddin, foi morto, e o bando de S.Kh. Temirkanov, aniquilado.70 De
forma semelhante, Beria enviou o seguinte relatório de Kobulov para Stalin, em 20
de julho de 1944:
Como resultado da varredura nas florestas do distrito de Kazburun, na RSS Autônoma de Kabardino-
Balkária, em 12 de julho, um paraquedista alemão foi capturado, de nome Kh.Kh. Fadzaev (ex-membro do
Konsomol, caucasiano, que trabalhou para a polícia alemã no vilarejo de Urukh, alistou-se no Exército
alemão em 1943 e tem a graduação de sargento-maior). Diversos outros paraquedistas estão presos, dois deles
ainda estão sendo procurados. O restante ou morreu ou está preso.71
De acordo com suas instruções, submeto à sua apreciação uma minuta de decreto do Presidium do Soviete
Supremo da URSS sobre condecorações e medalhas para os participantes que mais se destacaram na
deportação de chechênios e inguches. Dezenove mil membros da NKVD, da KGB e da Smersh** tomaram
parte, mais cerca de 100 mil oficiais e membros das forças da NKVD, dos quais uma parcela substancial
participou da deportação dos karachays e kalmyks, e serão envolvidos na próxima deportação dos balkares.
Como resultado destas três operações, cerca de 650 mil chechênios, inguches, kalmyks e karachays já foram
enviados para as regiões orientais da URSS.74
Stalin chegara a ponto de acusar nações inteiras de traição, e mais de 100 mil
soldados foram empregados para deportar velhos, mulheres e crianças. Se ele tivesse
seguido esta lógica até o extremo, depois da formação do Exército Russo de
Liberação, teria deportado todos os russos e todos os ucranianos – na realidade,
todas as nações da URSS!
O movimento Vlasov surgiu por uma série de razões: as grandes derrotas, os
sentimentos de injustiça nacional e social entre alguns representantes (e seus filhos)
de antigas classes privilegiadas, o medo da reação de Stalin por cair prisioneiro.
Quanto mais o Exército Vermelho era vitorioso em fazer o inimigo refluir, menor a
quantidade dos prisioneiros de guerra soviéticos que se juntavam aos alemães e, pelo
final de 1942 e em 1943, a quantidade minguou para praticamente zero. Falando
aos agitadores que trabalhavam no seio das tropas não russas, o chefe da
administração política do Exército Vermelho, A.S. Shcherbakov, observou que em
agosto de 1942, no front de Leningrado, ocorreram 22 casos de homens que
passaram para o lado alemão, enquanto em janeiro de 1943 foram apenas dois.
Depois, não houve mais caso algum.75
No seu livro Die Geschichte der Wlassow Armee, História do Exército Vlasov,
Joachim Hoffmann afirma, aparentemente com base nos arquivos de Vlasov, que,
por volta de maio de 1943, a Wehrmacht contava com noventa batalhões russos e
quase outras tantas legiões nacionais à sua disposição.76 Tais quantidades são
grosseiramente infladas, e a tentativa de retratar o movimento Vlasov como
alternativa viável para o bolchevismo é inconvincente ao extremo. As formações de
Vlasov não eram compostas de “combatentes ideológicos” e sim de uma mistura de
criminosos e nacionalistas, essencialmente de pessoas que se encontravam em
situação desesperadora e estavam convencidas de que ali estava uma possível forma
de sobrevivência. O fato de Vlasov recorrer a emigrados brancos da estatura do
comandante cossaco P.N. Krasnov, do general A.G. Shkuro, do general Sultan-
Girei Kluch e de outros bem atesta a pobreza ideológica do movimento.
Foi principalmente o sucesso militar soviético que solapou o movimento Vlasov,
dissipando-o como fez à depressão, ao pânico e à apatia que tinham provido solo
fértil para as defecções. Não obstante, Stalin preferiu explicar o movimento Vlasov
como evidência de que nem todos os “inimigos do povo” haviam sido
desmascarados antes da guerra. Uma supervisão estrita foi mantida sobre os que
retornaram do cativeiro, medidas especiais seriam introduzidas nos fronts, com ação
punitiva contra os que manifestassem dúvida sobre a capacitação de seus
comandantes. A checagem nos territórios liberados e a vigilância sobre a retaguarda
do Exército Vermelho ficaram a cargo da NKVD e, como demonstram seus
relatórios regulares, Beria fez seu trabalho em grande escala. Por exemplo:
Em 1942, as tropas da NKVD responsáveis pela segurança na retaguarda do Exército Vermelho, no processo
de limpeza do território liberado das mãos do inimigo, prenderam 931.549 pessoas para averiguações.
Destas, 582.515 eram militares e 349.034, civis.
Do número total, 80.296 foram desmascaradas e presas (como espiões, traidores, membros de esquadras
punitivas, desertores, bandidos e elementos criminosos semelhantes).77
Beria e sua equipe não se limitaram a trabalhar no lado soviético, mas também
tentaram descobrir o que acontecia nas unidades de prisioneiros de guerra formadas
pelos alemães. Beria, que normalmente despachava sozinho com Stalin ou na
companhia de Molotov, em certa ocasião mostrou a Stalin as anotações feitas
durante o interrogatório do major general A.E. Budykho, que escapara de um
campo de concentração alemão e se juntara a um grupo de guerrilheiros. Ele então
definhava num campo de concentração soviético em Oranienburg, onde a maioria
de seus colegas de prisão era constituída por oficiais que tinham sido prisioneiros de
guerra dos alemães. Budykho fez um relato detalhado, descrevendo a chegada ao
campo do representante pessoal de Vlasov, o general Zhilenkov, e de outros oficiais
do Exército Russo de Liberação.
Zhilenkov fora secretário de um comitê do partido do distrito de Moscou antes
da guerra e progredira rapidamente na carreira, graças ao expurgo nas organizações
partidárias. Como membro do soviete de guerra do XXXII Exército no front oeste,
ele fora cercado e caiu prisioneiro. Oportunista bajulador, ao se ver, subitamente,
entre oficiais antigos do partido, logo se transformou em colaborador. O mesmo
aconteceu com outro dos auxiliares de Vlasov, o tenente-general Malyshkin, chefe
do Estado-maior do XIX Exército. Fora preso em 1938 e libertado no começo da
guerra. Quando Beria reportou sobre diversos generais que tinham sido condenados
e depois libertados, Stalin quis saber quem tinha feito a petição em favor de
Malyshkin. Lamentou o tempo perdido para ouvir relatos sobre todos os traidores
desconsiderados nos anos 1930.
Em fevereiro e março de 1943, foram realizados julgamentos in absentia, nos
quais Vlasov e outros foram condenados à morte. As sentenças foram executadas em
agosto de 1946, depois que os sentenciados foram capturados pelas forças soviéticas
e repatriados.
No fim, Stalin deve ter pensado que tudo que os Vlasovs armaram não fez a
menor diferença. O país já tinha passado pelo pior. Seria difícil encontrar um início
de guerra mais melancólico que o de junho de 1941. Todas as autoridades civis e
militares de proa achavam que a URSS, na melhor das hipóteses, sobreviveria por
três meses. Mas o povo soviético as desmentiu. Contudo, a inacreditável resistência
e a obstinação sem limites seriam creditadas à “sábia liderança” de Stalin, o
responsável mais direto pela catástrofe.
Notas * Surgiram também informações de que Khozin era muito dado à bebida
e de que levava mulheres para seu apartamento — ele alegou que elas iam lá
para assistir filmes (TsPA IMI. F.77. op. 3 . d. 133. 1. 1-4.)
** Sigla russa de Smyert Shpiona, “Morte aos Espiões,” um apelido da Voyenna Kontra Razvedka, a
contrainteligência militar.
PARTE IX
O comandante supremo
S talin não foi o líder militar genial descrito em tantos livros, filmes, poemas,
monografias e histórias. Tampouco era dotado do grande poder de
prognosticar que lhe atribuem. Dado o molde dogmático de sua mente, seria
até de admirar que o tivesse. Mais significativo ainda, embora determinado e
inflexível, carecia de habilitações profissionais militares. Chegou a alguma sapiência
estratégica à custa de tentativa e erro salpicada de sangue. Seu histórico civil era
totalmente inadequado ao posto de Supremo Comandante em Chefe e, na verdade,
sua reputação como líder guerreiro foi sustentada pela capacidade coletiva do
Estado-maior Geral e pelos excepcionais talentos de algumas das personalidades que
trabalharam próximo a ele durante a guerra. Entre elas, sobretudo Shaposhnikov,
Zhukov, Vasilievsky e Antonov. Destituído de real experiência militar, Stalin, em
especial durante os primeiros dezoito meses de guerra, não dominava a concepção
do trabalho da máquina militar, o sentido de tempo operacional, as distâncias reais,
ou mesmo o que as tropas podiam ou não executar. Em consequência, muitas de
suas ordens não foram cumpridas, já que eram irrealistas, apressadas ou irrefletidas.
Por exemplo, em 28 de agosto de 1941, ele determinou que a força aérea de dois
fronts destruísse algumas formações de carros de combate com o emprego de não
menos que 450 aeronaves, e a operação deveria começar ao amanhecer do dia
seguinte.1 Até em termos de informações, para não falar em logísticos, esta ordem
revela completa ausência de percepção do que é esperado que tal força consiga.
Como Supremo, era como se supusesse que bastava expedir a ordem para que o
sistema entrasse em ação, sem ideia de como ele funcionava. Pouco a pouco, no
entanto, foi aprendendo e, ao tempo de Stalingrado, segundo Zhukov, “ele tinha
uma boa compreensão das questões estratégicas amplas”.2 Contudo, uma boa
compreensão não corresponde a conhecimento estratégico. Aí sim foi que entrou a
contribuição coletiva do Estado-maior, cujo papel foi excepcional.
Na véspera da guerra, Zhukov e Timoshenko levantaram para Stalin a questão
da criação de um ou dois centros de controle especialmente equipados para a
direção das Forças Armadas. Em maio de 1941, pela segunda ou terceira vez, eles
propuseram a formação do Quartel-General do Estado-maior Geral, o qual, entre
outras coisas, instituiria o treinamento em todo o país com o propósito de colocar a
economia em pé de guerra. Stalin, em princípio, considerou boa a ideia de um QG
do comando supremo, mas não tomou decisão concreta e ninguém mais tocou no
assunto, ainda mais porque todos sabiam que ele permaneceria apenas em dois
locais – no Kremlin ou na dacha próxima. Raramente ia à outra dacha em
Semenovsky e acabou por transformá-la, em novembro de 1941, em casa de feridos
de guerra. O QG do Supremo Comandante em Chefe foi, portanto, a sala de Stalin
no Kremlin, na dacha das proximidades, na casa da rua Kirov ou no edifício do
Estado-maior.
Como Stalin desempenhava diversas funções — não havia ordem do Comitê
Central, do Sovnarkom ou do Soviete Supremo que não passasse por seu crivo —, e
por causa do fluxo constante de funcionários para consultá-lo sobre qualquer
questão a qualquer hora do dia ou da noite, ninguém sabia ao certo qual era o órgão
específico que estava “operacional” em determinado momento. Podia ser o
Politburo, com seus militares cooptados, ou o Comitê de Defesa do Estado,
juntamente com outros comitês, ou o Estado-maior, com alguns membros do
Politburo. Por vezes, Stalin aclarava a situação dizendo “Registre isso como ordem
do Comitê de Defesa”, ou “Isso deve ser formulado como uma diretriz do Estado-
maior”. Em algumas ocasiões, Malenkov anotava as minutas de uma discussão como
ordens do Politburo. Praticamente tudo que Stalin pronunciava era final e decisivo,
a despeito da maneira com que a ordem fosse redigida. A impressão é que ele dava
pouco valor à sua filiação formal a este ou àquele comitê. Não obstante, isso causava
dificuldades para os funcionários que tinham que decidir, para o cumprimento das
determinações, qual agência deveria desempenhar a tarefa.
Como regra, não eram tomadas anotações ou preparadas minutas. Os arquivos
de Stalin estão repletos de documentos contendo relatórios, inquéritos, ordens e
prescrições, mas não há praticamente nada sobre debates do Estado-maior a respeito
de questões estratégicas. Depois de recuperado do choque inicial, Stalin reunia dois
ou três membros do Estado-maior e, juntos, equacionavam e resolviam problemas
operacionais. Desde o início, os oficiais dos altos escalões do Estado-maior
aprenderam que, quando convocados, deveriam chegar com propostas e argumentos
totalmente preparados. Isso fortalecia o papel de Stalin como árbitro superior e
sumo sacerdote.
Os integrantes da equipe do secretário-geral sabiam que cada membro do
Comitê de Defesa do Estado era responsável por determinado setor: munições,
aviões, transportes, relações exteriores, e assim por diante. Não havia tal divisão de
responsabilidades no QG de Stalin, o qual dirigia os fronts na base do dia a dia com
a ajuda do Estado-maior Geral, do Estado-maior da Força Aérea e de repartições do
Comissariado de Defesa. No lugar de assessores servindo na equipe de Stalin, um
instituto de representantes dele começou a funcionar “de forma espontânea” dentro
das Forças Armadas. Em geral, Stalin não retinha os homens do Estado-maior em
Moscou, parecia preferir vê-los em missão em diferentes locais. Assim, Zhukov,
Timoshenko, Vasilievsky, Voronov e, no começo, Mekhlis, todos responsáveis por
tarefas cruciais, faziam frequentes visitas às tropas.
Stalin esperava que reportassem diariamente, fosse por escrito fosse por telefone,
e os recriminava, por vezes com veemência, quando não o faziam no devido tempo.
Nas suas memórias, Vasilievsky, com quem Stalin mantinha, pode-se dizer, boas
relações, cita parte de um dos telegramas recebidos do chefe, datado de 17 de agosto
de 1943. O texto completo merece citação:
São quase 3h30 de 17 de agosto e você ainda não se dignou em reportar para o Estado-maior sobre os
resultados da operação de 16 de agosto e em fazer sua avaliação da situação.
Faz muito tempo que o responsabilizei, como um plenipotenciário do Estado-maior, a enviar relatórios ao
fim de cada dia de operações. Quase sempre, você tem se esquecido desta responsabilidade.
Dia 16 de agosto foi o primeiro de uma operação importante no front sudoeste, onde você é o representante
do Estado-maior. E parece que fica satisfeito por esquecer seu dever para com este Estado-maior, e não envia
relatório.
Você não pode usar a desculpa da falta de tempo, porque o marechal Zhukov faz exatamente o mesmo no
front e remete relatórios diários. A diferença entre você e Zhukov é que o marechal é disciplinado e conhece
suas obrigações. Enquanto você é indisciplinado e descura destas obrigações.
Vou alertá-lo pela última vez que, se você, uma vez mais, se permitir esquecer seu compromisso com o
Estado-maior, será afastado do cargo de chefe do Estado-maior e enviado para o front.3
Seria difícil encontrar um único marechal ou oficial de alto posto que servisse no
Estado-maior, ou inspecionasse as tropas como representante deste Estado-maior,
ou comandasse um front, que não tivesse experimentado este tipo de tratamento da
parte de Stalin, quase sempre imerecido.
Igualmente, se, depois da visita de um emissário do Estado-maior, a situação
naquele setor do front não melhorasse, Stalin tiraria as “conclusões adequadas”. Em
fevereiro de 1942, ele enviou Voroshilov ao front de Volkhov. A reputação do
marechal como líder militar inferior já estava estabelecida e, ao não conseguir coisa
alguma também naquela ocasião, Voroshilov se viu em posição embaraçosa quando
Stalin propôs através da linha direta que ele assumisse o comando do front. O
marechal começou a recusar. Isto foi demais para o Supremo e, um mês depois,
quando Voroshilov já tinha retornado de Volkhov, Stalin ditou um memorando
“sobre o trabalho do Camarada Voroshilov” que iria acabar como uma decisão do
Politburo, tomada em 1º de abril de 1942. Vale a pena citá-la, mesmo de forma
abreviada:
Primeiro. A guerra contra a Finlândia, em 1939-40, revelou grandes deficiências e atrasos na liderança do
comissariado de Defesa. Faltaram morteiros e metralhadoras ao Exército Vermelho, inexistiram inventários
precisos sobre aviões e carros de combate, os uniformes de inverno da tropa eram inadequados, como
também os produtos alimentícios concentrados. Seções importantes como artilharia, instrução militar,
administração da Força Aérea, foram negligenciadas. Tudo isso fez com que a guerra se arrastasse, causando
baixas desnecessárias. Como comissário da Defesa naquela oportunidade, o Camarada Voroshilov foi
compelido, no pleno do final de março de 1941, a admitir a inadequação — que ficara exposta — de sua
liderança do comissariado. O Comitê Central se viu obrigado a afastá-lo da função.
Segundo. No começo da guerra contra a Alemanha, o Camarada Voroshilov foi indicado para o comando do
front noroeste, com a missão principal de defender Leningrado. Como se demonstrou mais tarde, ele foi
incapaz de cumprir a missão e não organizou a defesa da cidade. O Camarada Voroshilov cometeu vários
erros no desempenho de suas atribuições: expediu ordens para que comandantes de batalhões da Guarda do
Interior fossem eleitos, ordens revogadas pelo QG do Estado-maior, já que poderiam levar à desorganização e
ao enfraquecimento da disciplina no Exército Vermelho; estabeleceu um soviete de defesa de Leningrado,
mas não se incluiu nele: tal ordem foi igualmente revogada pelo QG do Estado-maior por ser incorreta e
prejudicial, uma vez que os trabalhadores da cidade poderiam pensar que o Camarada Voroshilov não se
juntara ao soviete de defesa por não acreditar na possibilidade de defender Leningrado; perdeu tempo com
batalhões de trabalhadores armados com armas leves tais como espingardas, lanças, facas e coisas semelhantes,
e negligenciou as defesas de artilharia da cidade...
Terceiro. Por sua própria solicitação, o Camarada Voroshilov foi enviado, em fevereiro, como representante
do Estado-maior, ao front de Volkhov para cooperar nas ações, e ficou lá cerca de um mês. Sua estada, no
entanto, não produziu os resultados esperados. Desejando, mais uma vez, dar ao Camarada Voroshilov a
chance de empregar sua experiência no trabalho da linha de frente, o Comitê Central sugeriu que ele próprio
assumisse o comando direto do front. Mas o Camarada Voroshilov recebeu negativamente a proposta e não
quis arcar com a responsabilidade, apesar de este front ter agora importância crucial para a defesa de
Leningrado, apresentando a desculpa de que o front de Volkhov era difícil e ele não queria fracassar na
missão.
Em vista do acima citado, o Comitê Central:
Primeiro: reconhece que o Camarada Voroshilov não esteve à altura da missão que lhe foi confiada no front.
Segundo: está transferindo o Camarada Voroshilov para trabalhos de retaguarda na guerra.4
1. Todos os locais habitados até uma distância de 40 a 60 quilômetros na retaguarda das tropas alemãs, e de
20 a 30 quilômetros de cada lado das estradas, deverão ser destruídos e reduzidos a cinzas. Tal objetivo deve
ser alcançado pelo emprego imediato da Força Aérea, do fogo de artilharia e de morteiros em grande escala,
de equipes de reconhecimento, de tropas equipadas com esquis e de guerrilheiros diversionistas armados com
bombas a petróleo.
2. Cada regimento deve ter uma equipe de voluntários de 20 a 30 homens para destruir e incendiar locais
habitados. Os que se distinguirem na missão da destruição de assentamentos populacionais deverão ser
indicados para honrarias do governo.9
Os incendiários puseram mãos à obra. É possível que tal política de terra arrasada
tenha provocado dificuldades para o inimigo, mas as criou também para muitos
cidadãos soviéticos cujos tetos eram as únicas e frágeis esperanças de sobreviver, de
esperar que seus entes queridos e mais próximos retornassem e de salvar seus filhos.
Se a decisão foi tomada à luz da necessidade militar ou por crueldade insana
permanece em aberto, porém, em qualquer caso, foi um ato caracteristicamente
stalinista e impiedoso. O general N.G. Lyashchenko me descreveu um episódio
desta aterradora história:
No fim de 1941, eu comandava um regimento de uma posição defensiva. Havia dois vilarejos à nossa frente,
Bannovskoe e Prishib, se bem me recordo. Recebemos ordem da divisão para incendiar as aldeias que
estivessem ao nosso alcance. Estávamos no interior do abrigo e eu explicava como iríamos cumprir a missão
quando, subitamente, infringindo todos os regulamentos, o rádio-operador, um sargento de meia-idade,
intercedeu.
“Camarada Major. Aquele é meu vilarejo! Minha esposa e meus filhos, e minha irmã e seus filhos estão todos
lá. Como podemos incendiá-lo? Todos morrerão!” “Não se meta, cabe a nós resolver”, eu disse.
Mandei que o sargento se retirasse e conferi com os comandantes de batalhões. Lembro-me de chamar a
ordem de “estúpida”, o que quase me complicou, uma vez que ela partira de Stalin. Mas fui salvo da polícia
de segurança pelo general R.Ya. Malinovsky e pelo membro do soviete de guerra I.I. Larin. Quanto aos dois
vilarejos, nós os capturamos na manhã seguinte com a permissão do comandante divisionário Zamortsev, e
demos um jeito de não destruí-los.
No curso do dia 11 e, o mais tardar, no dia 12 de janeiro, a cidade de Rzhev tem que ser capturada. O
Estado-maior recomenda para este objetivo o emprego de toda a artilharia, morteiros e Força Aérea a fim de
que a cidade inteira seja destroçada, sem que haja qualquer hesitação em destruí-la.
Confirme o recebimento desta ordem e informe quando ela foi cumprida. I. Stalin10
É evidente que fazia sentido destruir, durante a retirada, tudo aquilo que o povo
construíra, tais como pontes, ferrovias, fábricas e objetivos semelhantes
estrategicamente importantes. Mas de que valia para os alemães uma pobre
choupana de camponês?
[46]
Amanhecer em Stalingrado
Quando ia se encontrar com Stalin, naqueles dias de julho e agosto de 1942, o chefe
do Estado-maior, Vasilievsky, sentia-se um carneiro a caminho do matadouro.
Stalin não escondia a irritação, tomava decisões impulsivas, passava sucessivos
telegramas com a mesma mensagem. Começaria, de novo, a mudar generais de um
lado para o outro, exigia entrar em ligação com quartéis-generais em sucessão, e
sempre dava a mesma ordem: lutar até a morte. Entrementes, as tropas recuavam.
Em 29 de julho de 1942, depois de um despacho rotineiro com Vasilievsky, Stalin
de repente parou de caminhar pela sala e lançou-se em outro assunto: “Esqueceram
a Ordem do Estado-maior nº 270 de 16 de agosto de 1941. Eles se esqueceram!
Redija outra na mesma linha: ‘A retirada sem autorização é um crime que será
punido com todo o rigor de tempo de guerra...’”
“Quando quer que eu traga a nova ordem?” “Ainda hoje. Venha tão logo esteja
pronta.”12
Naquela noite, ele assinou a famosa Ordem nº 227 do Comissariado da Defesa
da URSS, com muitas mudanças e emendas de próprio punho. O documento, que
permaneceu cuidadosamente escondido nos arquivos militares por muitos anos,
tornou-se acessível recentemente e tem sido reproduzido em diversas publicações.
Eu gostaria de citar aqui apenas aquelas partes que refletem a interferência direta de
Stalin, seu modo de redigir as sentenças, seu estilo pessoal:
O inimigo está lançando no combate mais e mais tropas descansadas e, independentemente das baixas que
sofre, avança lentamente pelas profundezas do território soviético, capturando novos distritos, devastando
nossas cidades e vilas, violando, saqueando e assassinando nossa população. Parte das forças do front sul
deixou-se influenciar pelos boateiros do pânico e abandonou Rostov e Novocherkassk sem grande resistência,
cobrindo seus estandartes com a desonra.
Algumas pessoas pouco inteligentes no front consolam-se dizendo que podemos recuar ainda mais para o
leste porque temos muito território, muita terra, muita gente, e que não chegaremos à escassez de grãos;
usam isto para justificar seu comportamento vergonhoso na linha de frente. Mas este tipo de conversa é
totalmente falso, mentiroso e só serve para ajudar o inimigo.
Depois da perda da Ucrânia, da Bielorrússia, do Báltico, da bacia do Donets e de outras regiões, ficamos com
território menor do que tínhamos. Segue-se daí que existe menor população, menos cereais, menos metais,
menos fábricas e moinhos. Perdemos mais de 70 milhões de habitantes, mais de 12 milhões de toneladas de
grãos e 10 milhões de toneladas de metais por ano. Perdemos até nossa superioridade em reservas humanas e
de cereais sobre a Alemanha. Recuar mais significaria nossa destruição e, conosco, a da Pátria Mãe.
Nem mais um passo para trás! Esta é a palavra de ordem daqui por diante.
Não mais toleraremos que oficiais e comissários, pessoal político, unidades e destacamentos abandonem suas
posições de combate por vontade própria. Não mais toleraremos que oficiais, comissários e pessoal político
permitam que boateiros do pânico determinem a situação no campo de batalha e induzam outros
combatentes a recuarem, deixando o front aberto ao inimigo. Tais boateiros e os covardes deverão ser
eliminados no ato.
a) a mentalidade da retirada tem que ser decisivamente banida.
b) os comandantes de exército que permitirem o abandono voluntário das posições deverão ser afastados e
enviados de imediato ao QG do Estado-maior para enfrentar de pronto o tribunal militar.
c) formem-se de um a três batalhões punitivos (com cerca de 800 homens cada) dentro dos limites do front,
para os quais devem ser enviados oficiais antigos e dos postos intermediários e oficiais políticos de postos
correspondentes.13
Stalin então voltou à ideia, formulada num telegrama de setembro de 1941 para
todos os fronts, de que cada exército devia formar um grupo de tropa de confiança,
com efetivo não maior que divisão, cuja missão seria deter o fluxo de soldados em
pânico, utilizando as armas se necessário.14 A velha ideia veio de roupa nova:
De três a cinco destacamentos bem armados (até 200 homens cada) deverão ser organizados dentro de um
exército e colocados diretamente à retaguarda das divisões inconfiáveis, e devem atirar, no ato, em boateiros
do pânico e covardes, na eventualidade de retiradas desordenadas e causadas por esse pânico. Dependendo
das circunstâncias, de cinco a dez companhias de presos (efetivo de 150 a 200 homens) devem ser formadas
dentro do exército e posicionadas em locais perigosos, a fim de que eles possam expiar com seu sangue os
crimes que cometeram contra a Pátria Mãe.
Esta ordem deve ser lida para todas as companhias, esquadrões, baterias, tripulações e quartéis-generais.15
Zhukov logo foi obrigado a reportar que as forças do front não tinham
conseguido abrir um corredor para realizar a junção com as forças da frente sudeste
dentro da cidade. A linha de defesa alemã foi substancialmente reforçada com forças
deslocadas das cercanias de Stalingrado. Continuar atacando com as mesmas tropas
soviéticas não fazia sentido e poderia causar pesadas perdas. Stalin convocou
Zhukov e Vasilievsky a Moscou.
Lá, debruçados sobre mapas e com assessores do Estado-maior, resolveram
adotar a tática do desgaste do inimigo pela resistência obstinada e pelo atrito,
enquanto era preparado um contra-ataque de vulto. O ataque principal foi
planejado para cair sobre os flancos das forças alemãs que estavam sendo cobertas
por soldados romenos, tropa menos ameaçadora. O plano foi apresentado a Stalin
em 13 de setembro e estava destinado a se tornar um dos clássicos da Segunda
Guerra Mundial. Foi como um despertar e não foi Stalin, e sim seus dois chefes
militares que o conceberam. A princípio, o secretário-geral não se impressionou
muito, ressaltando que o principal era manter Stalingrado e não permitir que os
alemães avançassem mais na direção de Kamyshin. Parece que não gostou muito da
audácia do plano ou o considerou inexequível. Toda a sua atenção estava voltada
para a defesa de Stalingrado.
Entrementes, em Stalingrado, os alemães investiram a cidade e, por mais de dois
meses, dia e noite, o combate prosseguiu com um nível de ferocidade sem
precedentes. Enquanto os alemães, no começo da batalha, mediam sua progressão a
partir do sudoeste em termos de dezenas de quilômetros, depois passaram a alguns
quilômetros; em setembro, tiveram que raciocinar em apenas centenas de metros
por dia e, a partir de outubro, consideraram um avanço de 40 a 50 metros como
uma grande vitória. Em meados de outubro, pararam de vez. A Ordem nº 227 de
Stalin era então cumprida à risca. Apesar de os alemães terem 22 divisões em
Stalingrado, mais outras tantas formações de seus aliados, a máquina de guerra
nazista emperrara.
Em novembro, Stalin passou quase todos os dias pensando sobre a operação
futura nos três fronts – Stalingrado, sudoeste e Don. O plano recebeu a
denominação provisória de “Uranus” e Stalin insistiu em que ele permanecesse do
conhecimento apenas de um número restrito de pessoas. A responsabilidade pela
coordenação das três frentes foi entregue a Vasilievsky. Quando o contra-ataque foi
desfechado em 19 de novembro, é provável que tenha aumentado a confiança de
Stalin na vitória, não por causa da superioridade soviética em homens e armamento,
mas porque nenhuma operação anterior fora preparada com tanto esmero e
precisão. É verdade que, uma semana antes do início, Stalin foi tomado de dúvida,
particularmente porque o poder aéreo soviético equivalia ao do inimigo, e ele
sempre atribuíra enorme importância a este vetor do combate. Ficou tão
preocupado que chegou a pensar em adiar a operação, telegrafando em 11 de
setembro a Zhukov para dizer que, se Yeremenko e Vatutin tivessem aviação
inadequada, a ação fracassaria: “A experiência nesta guerra tem mostrado que só se
pode vencer os alemães com superioridade aérea.” Se isto não pudesse ser garantido,
continuou, “seria melhor adiar a operação por algum tempo”.18 No entanto,
confiando totalmente na possibilidade de Zhukov levar o plano a bom termo,
quatro dias antes do previsto para o desencadeamento da operação passou outro
telegrama dizendo que ele, Zhukov, tinha total liberdade de ação para julgar quando
a ofensiva deveria ser lançada.19
Zhukov exercitou seu critério e, em 19 de novembro, as forças combinadas das
frentes sudoeste e do Don entraram em ação, seguidas no dia seguinte pelas do front
de Stalingrado. Por volta de 23 de novembro, o agrupamento inimigo que se
encontrava em Stalingrado foi cercado. Stalin sempre gostou de geografia e de
esquadrinhar mapas do mundo. Já então, aprendera a interpretar uma carta militar,
marcada pelo Estado-maior com símbolos azuis e vermelhos, linhas denteadas,
círculos em torno de reservas de distritos e linhas tracejadas assinalando o
deslocamento de carros de combate. Quando, em 23 de novembro, ele viu um
enorme anel vermelho mostrando as forças soviéticas formando uma linha fechada,
ficou excitado e nervoso; excitado porque, finalmente, as forças soviéticas o haviam
conseguido, e logo na simbólica cidade chamada Stalingrado. Ainda não sabia a
quantidade de tropa alemã que estava dentro do laço – 330 mil, como se viu depois
– mas sabia que, se a operação chegasse a uma conclusão vitoriosa, seria um ponto
de inflexão na guerra. Ficou nervoso porque esperava que o comando alemão fizesse
tudo ao seu alcance para tirar as 22 divisões da Wehrmacht da armadilha. As forças
soviéticas tinham certa vez fechado um cerco, em Demyansk, mas não conseguiram
destruir o inimigo sitiado. Agora, a iniciativa estratégica estava com o Exército
Vermelho, embora algum tempo ainda iria se passar até que o general Paulus fosse
dobrado. Em 24 de dezembro, Paulus expediu uma ordem para suas forças cercadas,
da qual foi encaminhada uma transcrição para Stalin. Dizia:
Ultimamente, os russos vêm fazendo incessantes tentativas para entrar em negociações com o exército ou
suas unidades. Seu objetivo é muito claro: querem quebrar nossa determinação em resistir por meio de
promessas nessas conversas de rendição. Todos sabemos o que nos espera se o exército parar de resistir: a
morte certa nos aguarda, seja por uma bala inimiga, seja de fome e sofrimento em vergonhoso cativeiro
siberiano. Uma coisa é certa: quem se render jamais verá de novo seus entes mais próximos e queridos. Só
temos uma saída: lutar até o último cartucho, a despeito do frio e da fome crescentes. Portanto, qualquer
tentativa de negociação deverá ser repelida, deixada sem resposta, e os emissários com bandeiras de paz,
rechaçados à bala. Enquanto isto, continuemos no aguardo da libertação, que já está a caminho.20
[47]
O comandantes e seus generais
D urante a guerra, Stalin pouco tempo teve para ler outra coisa que não
despachos, telegramas codificados, planos operacionais e correspondência
diplomática, mesmo assim os arquivos contêm um memorando de
Poskrebyshev para ele com uma lista de 15 livros sobre a arte da liderança militar.
Os que Stalin marcou com uma estrela incluem Kutuzov, de S. Borislov, o primeiro
volume das obras de Napoleão, The Science of Winning, de Suvorov, e The Brains of
the Army, de Shaposhnikov. Nem foi por acaso que, no começo das hostilidades, ele
mandou pendurar em sua sala retratos de Suvorov, o maior soldado da Rússia no
século XVIII, e de Kutuzov,* o herói da derrota de Napoleão na Rússia. Da mesma
forma, quando discursou brevemente para as tropas na Praça Vermelha, em 7 de
novembro de 1941, disse: “Sejamos inspirados nesta guerra pela imagem corajosa de
nossos grandes antepassados – Alexander Nevsky, Dimitry Donskoy, Kuzma Minin,
Dimitry Pozharsky, Alexander Suvorov, Mikhail Kutuzov! Que o estandarte
vitorioso do grande Lenin vos proteja!”21
Stalin frequentemente recorria aos grandes líderes guerreiros do passado russo,
evocando neles a fé na vitória, e criou as Ordens de Suvorov, Kutuzov, Bogdan
Khmelnitsky, Alexander Nevsky, Nahkimov e Ushakov – todos heróis de guerra da
velha Rússia – para condecorar seus generais. Entendendo por instinto o valor da
tradição militar para estimular o orgulho e a honra nacionais, determinou que
fossem escritos panfletos sobre estes antigos líderes guerreiros para distribuição no
front.
Como já vimos, a maior influência sobre Stalin como líder militar foi exercida
por Shaposhnikov, Zhukov, Vasilievsky e Antonov, e foi por intermédio deles que
Stalin aprendeu as exigências fundamentais da tática, a respeito da qual permaneceu
no nível da mediocridade, e as da estratégia, onde se saiu bem melhor. Dos quatro,
que foram, todos, em algum momento, chefes do Estado-maior ou vices-Supremo
Comandante em Chefe, pode-se dizer que, provavelmente, a contribuição de
Shaposhnikov foi a maior. Ele não teve a ventura de ver a culminância das grandes
vitórias soviéticas porque faleceu em março de 1945, mas sua influência intelectual
sobre a chefia militar está fora de dúvida.
Como marechal e professor, Shaposhnikov, que fora coronel do exército czarista,
combinava elevada cultura militar com excelente educação, muita experiência como
comandante, profundidade teórica e imenso charme pessoal. Não acostumado a se
curvar à vontade dos outros, quando Stalin conheceu melhor Shaposhnikov,
percebeu com mais acuidade sua própria falta de conhecimento e de lógica.
Shaposhnikov não tinha personalidade dominadora, expressando-se por meio de sua
mente sutil, flexível e de amplo discernimento, e Stalin, evidentemente, achou
Shaposhnikov irresistível. Todos notaram isto, e Zhukov escreveu sobre o grande
respeito de Stalin pelo marechal: “Ele sempre se dirigiu a Shaposhnikov como Boris
Mikhailovich, seu nome e patronímico, e jamais levantou a voz enquanto
conversavam, mesmo que discordasse. Shaposhnikov foi a única pessoa autorizada a
fumar em seu escritório.”22
Foi um raro exemplo de confiança de Stalin em especialistas militares do antigo
regime, o restante dos quais ele liquidara antes da guerra. Shaposhnikov foi um dos
poucos aos quais Stalin recorreu sem ficar envergonhado em busca de uma
explicação, um conselho, uma ajuda. Era típico de Stalin dar atenção àqueles em
quem reconhecesse a presença de grande inteligência. O comandante da artilharia,
marechal N.N. Voronov, recordou-se de certa vez em que presenciou Shaposhnikov
reportando para Stalin. O chefe do Estado-maior mencionou que, a despeito das
providências tomadas, nenhuma informação chegara de dois fronts. Stalin
perguntou-lhe: “Você já puniu essas pessoas que não querem nos contar o que
acontece em seus fronts?” Shaposhnikov replicou que já tinha dado uma repreensão
aos dois comandantes, mas, a julgar por seu tom de voz, assemelhava uma
repreensão à forma mais extrema de punição. Stalin deu um sorriso triste e lhe disse:
“Qualquer célula do partido distribui reprimendas. Isto nem constitui punição para
um militar.” Shaposhnikov então lembrou-lhe de uma antiga tradição militar, a
saber, quando o chefe do Estado-maior censura um general comandante, este último
tem que pedir na hora demissão do comando. Stalin olhou para Shaposhnikov
como se estivesse diante de um idealista incorrigível, mas não disse coisa alguma. A
inteligência do ex-coronel czarista desarmava Stalin e foi essa qualidade que o
ajudou, com tato, a ensinar ao líder o pensamento estratégico, a habilitação militar e
até a tática.
Se Shaposhnikov repassou a Stalin a dura lógica do conflito armado, a
importância das linhas de defesa e de ataque, o papel das reservas estratégicas
durante as operações, foi Zhukov quem inspirou Stalin como homem de
determinação inquebrantável e cuja liderança militar não admitia meios-termos. O
general A.A. Yepishev, oficial político de elevada posição durante a guerra e, mais
tarde, chefe da administração política do exército, disseme que Stalin alimentara a
ideia de pôr funcionários da alta administração no front já durante a guerra civil, e
daí a razão de mandar constantemente tais pessoas para a frente de combate durante
a Segunda Guerra Mundial. Stalin considerava Zhukov seu representante principal
porque confiava em que o militar cumpriria suas ordens, por mais duras que fossem
e dessem no que dessem. A formidável contribuição de Zhukov para a derrota dos
alemães em Moscou, para a salvação de Leningrado, também em Stalingrado e
numa série de outras operações é amplamente reconhecida. Foi natural, portanto,
que, com a continuação da guerra, a popularidade de Zhukov crescesse e aí, então, a
atitude de Stalin para com ele tornou-se mais reservada; na arrancada final para
Berlim, Stalin não o encarregou da coordenação da campanha nas três frentes,
reservando-a formalmente para si mesmo, e enviando Zhukov para comandar o
front bielorrusso. O secretário-geral não pretendia partilhar a glória da vitória com
ninguém, ainda mais com um líder guerreiro tão popular como Zhukov.
Stalin sabia que o marechal Zhukov não lhe deixava nada a dever em dureza de
caráter. Notou isto em particular no início da guerra. Por exemplo, nos primeiros
dias de setembro de 1941, o comandante do front de Leningrado, Voroshilov, e o
membro do soviete de guerra do front, Zhdanov, pediram permissão a Stalin para
preparar os navios de guerra da Esquadra do Báltico da Bandeira Vermelha para
serem afundados, caso a rendição de Leningrado se tornasse uma possibilidade.
Stalin consentiu e, por volta de 8 de setembro, Voroshilov e Zhdanov assinaram a
instrução devida. Foi então que, na ocasião em que o soviete de guerra dava os
últimos retoques na ordem, Zhukov chegou num voo de Moscou com plenos
poderes delegados por Stalin. “Eis meu mandato”, disse, mostrando a Voroshilov
que era o novo comandante em chefe do front. “Proíbo a destruição dos navios.
Existem neles quarenta tripulações completamente prontas para a batalha.”
Recordando o episódio em 1950, Zhukov escreveu: “Por que explodir as
belonaves? Sua destruição era provável, mas se assim fosse, que afundassem em
combate, disparando seus canhões. Quando os alemães progrediam ao longo da
costa, os marinheiros atiraram, e eles simplesmente correram. E também correriam
dos canhões de 16 polegadas. Imaginem o poder!”23 Ao saber por intermédio de
Zhdanov que Zhukov tinha, de fato, revogado uma das ordens expedidas por ele, o
Supremo, Stalin não fez qualquer comentário: não pôde deixar de admirar a audácia
e a visão do comandado, e deixou claro que delegava a Zhukov a autoridade para
decidir o que deveria ser feito. Stalin sabia que, numa crise, Zhukov seria impiedoso
e não tergiversaria. Tal característica o impressionava e estava em harmonia com seu
próprio modo de ser. Zhukov era implacável com os alarmistas do pânico e com os
covardes, e era capaz de tomar as providências mais duras contra eles, se as
circunstâncias assim o ditassem. Num momento crítico de setembro de 1941,
durante a defesa de Leningrado, ditou a Ordem nº 0064, divulgando para todos os
oficiais políticos e do exército, bem como para as praças, que quem abandonasse seu
posto sem permissão por escrito seria fuzilado sem tergiversação.24
Stalin muitas vezes explodiu com Zhukov, em especial no começo da guerra. Em
julho de 1941, quando a situação no distrito de Vyazma era crítica, Zhukov propôs
a montagem de um contra-ataque no distrito de Yelnya para evitar que os alemães
alcançassem a retaguarda do front oeste. Sem esperar que ele completasse a ideia,
Stalin esbravejou: “Que contra-ataques? Para que falar bobagens? Nossas tropas não
são capazes nem de organizar uma defesa adequada e vem você falar em contra-
ataques!”
Zhukov replicou: “Se você acha que eu, o chefe do Estado-maior, falo bobagens,
solicito que me dispense e mande para o front, onde posso ser mais útil do que sou
aqui.”
Mekhlis, que estava presente, protestou: “Quem lhe deu o direito de falar com o
Camarada Stalin desta forma?”
Em consequência daquela dura troca de palavras, Zhukov foi nomeado
comandante das reservas, porém, malgrado os esforços de Beria e Mekhlis para
indispor o marechal com ele, Stalin não pôde prescindir da ajuda do destacado
militar como seu principal solucionador de problemas. Nos primeiros dias de
outubro de 1941, quando uma série de atabalhoadas iniciativas do agrupamento
central do exército soviético levou ao cerco de significativa parte do front oeste e das
reservas, Stalin enviou Zhukov para lidar com a desastrosa situação. O marechal
lembrava-se de que Stalin lhe dissera: “Veja a confusão em que Konev nos meteu.
Em três ou quatro dias os alemães podem chegar a Moscou. O pior é que nem
Konev nem Budenny sabem onde estão as tropas deles nem o que o inimigo pode
fazer. Konev tem que ser punido. Vou enviar amanhã uma comissão especial
chefiada por Molotov.”
Com poderes extraordinários, Zhukov conseguiu estabilizar a posição e, graças a
ele, Konev escapou do tribunal militar, pois o interventor o resgatou ao nomeá-lo
seu vice para o front oeste. Stalin logo viu que não eram apenas a autoconfiança, a
decisão e o pulso firme que permitiam a Zhukov conseguir de imediato mudanças
na organização das operações militares; sua mera presença no front sempre
empolgava a tropa e aumentava o espírito combatente. O general I.F. Minyuk
disseme que, quando Golikov e Khruschev perderam o controle de seus homens em
Belgorod, no front de Voronezh, “Zhukov, praticamente, assumiu o comando e, de
forma surpreendente, a tropa percebeu que na mente do marechal não havia lugar
para dúvidas. Quando tudo parecia perdido, e a situação se tornava desesperançada,
ele permanecia calmo, composto, decisivo e determinado. O perigo não o
amedrontava; pelo contrário, ficava mais resoluto, transformava-se numa mola
fortemente comprimida.”
Stalin não tinha favoritos. Simplesmente confiava mais em algumas pessoas que
em outras. Afora ao que vinha, em certo grau, de Beria, ele dava pouca atenção ao
que seu entourage lhe contava sobre indivíduos. É bem conhecido o fato de que,
depois da guerra, Beria e Abakumov engendraram um caso contra Zhukov. Usaram
até álbuns de fotografias onde o marechal aparecia ao lado de militares e políticos
americanos, ingleses e franceses. Grampearam seus telefones, vasculharam seus
arquivos pessoais e interceptaram sua correspondência. Numa ordem assinada por
Stalin em 9 de junho de 1946, há uma referência ao que um alto chefe da guerra
escrevera à liderança sobre “fatos concernentes ao desonroso e pernicioso
comportamento do marechal Zhukov para com o governo e o Supremo
Comandante em Chefe”. Fora dito que Zhukov perdera a modéstia, “creditando a si
mesmo o mérito de ter conquistado as maiores das grandes vitórias” e tornando-se o
centro de um grupo de descontentes.25 Mas Stalin não era desprovido de bom senso
e interrompeu o processo em vez de afastar o líder guerreiro que tinha se coberto de
tanta glória. Não há dúvida de que a prisão de Zhukov foi planejada. Stalin
convocou uma sessão especial, à qual compareceram Beria, Kaganovich e outros
membros de proa do partido, bem como militares dos altos escalões, e, com base em
testemunhos de alguns generais presos, Zhukov foi acusado de “ter concedido a si
mesmo o laurel de grande vitorioso”. Alguns generais, como, por exemplo, P.S.
Rybalko, falaram em defesa de Zhukov. Stalin hesitou e decidiu que, em vez de
prendê-lo, mandaria Zhukov para algum posto remoto, primeiro Odessa e depois os
Urais. A decisão final foi de Stalin e de mais ninguém.
Por vezes, diz-se que Stalin era duro, mas justo. Cita-se o caso do tratamento que
dispensou ao filho mais novo, Vasili, removido sem meias medidas do posto por
Stalin por não cumprir sua missão, mas, na verdade, por Vasili ter desmerecido o
pai. Stalin demitiu seu filho duas vezes, antes e durante a guerra. Em 26 de maio de
1943, Beria relatou a Stalin que o alcoolismo de Vasili, então comandante de um
regimento da força aérea, estava de novo causando problemas. Furioso, Stalin ditou
imediatamente a seguinte ordem ao marechal do ar Novikov:
1. V.I. Stalin deve ser imediatamente afastado do cargo de comandante de regimento da força aérea e não
deve ser comissionado para outro comando sem minha ordem.
2. Tanto ao regimento quanto ao seu ex-comandante, coronel Stalin, deve ser dito que o coronel Stalin está
sendo afastado por alcoolismo e libertinagem e porque está levando o regimento à ruína e à perversão.
3. Você deve me informar que estas ordens foram cumpridas.26
“Na minha avaliação, Yeremenko está abaixo de Rokossovsky. A tropa não gosta de Yeremenko.
Rokossovsky tem maior autoridade. Yeremenko foi muito mal como comandante do front de Bryansk. É
pretensioso e fanfarrão.”
“Yeremenko ficará terrivelmente sentido”, comentou Zhukov.
“Não somos meninas de ginásio. Somos bolcheviques e devemos colocar chefes valorosos no comando.”27
Stalin sabia que Zhukov era muito rígido como chefe. Quando comandava as
operações ofensivas no front oeste, no verão de 1942, ele deu uma ordem da qual
não podia se orgulhar e à qual jamais se referiu mais tarde. Seu relatório para Stalin
sobre os resultados da operação deixa claro que espécie de ordem exarou:
De modo a alertar os destacamentos quanto à retirada, à covardia no combate e aos alarmistas do pânico, a
primeira linha de cada batalhão de assalto era seguida por um carro de combate transportando oficiais
especialmente selecionados pelos sovietes de guerra do exército. Em consequência dessas medidas, o XXXI e
o XX exércitos romperam com sucesso as defesas inimigas.
7 de agosto de 1942.28
Zukhov foi nomeado comandante do primeiro front bielorrusso quando se
preparava o ataque a Berlim, em abril de 1945, uma operação que Stalin estudou
com intenso interesse e preocupação. O Supremo quase não interferiu na conduta
da operação de Zhukov e Antonov, mas seus dias começavam e terminavam com
relatórios tanto dos preparativos como da ofensiva em si. Zhukov informou que os
alemães tinham praticamente cessado de combater no Ocidente, mas lutavam
desesperadamente de casa em casa no leste. A resposta de Stalin, datada de 17 de
abril de 1945, foi característica:
Recebi seu despacho com a informação dos prisioneiros alemães de que [lhes estava sendo dito] para não
cederem aos russos e lutar até o último homem, mesmo que os americanos estivessem imediatamente à
retaguarda deles. Não dê atenção ao que os prisioneiros alemães dizem. Hitler está tecendo uma trama no
distrito de Berlim para criar a discórdia entre as tropas soviéticas e os Aliados. Temos que desmanchar esta
trama capturando Berlim com as tropas soviéticas. Arrase os alemães sem piedade e você em breve estará
dentro de Berlim.29
* O Generalíssimo Conde Alexander Suvorov foi o grande soldado russo do século XVIII; o Marechal Mikhail
Kutuzov foi o responsável pela derrota de Napoleão na Rússia.
** Ralph Parker foi o correspondente do Times em Moscou durante a guerra, encarregado de promover a
compreensão anglo-soviética. No fim da guerra, fixou residência em Moscou, onde mais tarde morreu. Seu caso
é contado em History of the Times, de Iverich McDonald, vol. 5.
[48]
Ideias de um estrategista
Reportem alguma coisa do que está acontecendo em Stalingrado. É verdade que a cidade foi capturada pelos
alemães? Deem uma resposta direta e verdadeira.
Aguardo contestação imediata.
16.9.42.35
Para ele, o que interessava era o resultado. Jamais foi atormentado por crises de
consciência ou de pesar pelas baixas enormes. As notícias referentes à destruição de
grande número de divisões, corpos ou exércitos o alarmavam, mas não existe um só
documento nos arquivos do Estado-maior mostrando preocupação sua com o
número de vidas humanas perdidas. Não levava em conta um dos princípios
fundamentais da arte militar, o de que o objetivo deve ser conquistado com a
mínima perda de vidas humanas. Acreditava que tanto as vitórias quanto as derrotas
inevitavelmente colhiam safras amargas, fato inescapável da guerra moderna. Talvez
pensasse desta forma porque, como Supremo, tinha expressivo número de exércitos
à sua disposição. No fim da guerra, as forças armadas desdobravam cerca de 500
divisões, sem contar artilharia, blindados e aviões. Era o dobro do que existia antes
da guerra. Na realidade, os alemães possuíam quantidade maior, mas isto aconteceu
porque Stalin resistiu aos repetidos pleitos dos assessores para que dividisse as
formações em maior número e com efetivos menores. Em função do vasto poderio
militar e do organizado sistema de reservas, pareceu desnecessário a Stalin tornar a
conquista de objetivos estratégicos dependente da escala das perdas. Ao mesmo
tempo, ele era atraído pelas novas formas de ação estratégica tais como as operações
com forças de fronts combinados. Isto resultava no mais complicado e maciço
complexo de batalhas, enquadrado em um só conceito e tudo coordenado para
objetivo, tempo e lugar. Algumas destas operações envolveram, entre cem e 150
divisões, às vezes mais, dezenas de milhares de canhões, três a quatro mil carros de
combate, cinco a sete mil aviões. Esta colossal força era colocada em movimento de
acordo com um cenário de cálculos e deslocamentos estratégicos concebido pelo
Estado-maior Geral e pelos QGs, com base em inúmeros fatores e opções tanto
nossos como do inimigo. Foi precisamente durante tais operações combinadas que
Stalin sentiu-se mais como líder militar. Uma escala tão vasta significava não só a
expressão quantitativa da força empregada. Também representava sua própria
autoexpressão e autoafirmativa como um estrategista.
Depois das batalhas de Moscou e Stalingrado, ele buscou acoplar os esforços de
vários fronts em combinações cada vez mais novas. Kursk, Bielorrússia, Prússia
Oriental, Vístula-Oder, Berlim e Manchúria representaram o curso objetivo da
guerra, mas também corresponderam à predileção de Stalin por essas operações
maciças e em escala avassaladora. A extensão da frente de combate naqueles casos
chegava, com frequência, a 500-700km, com profundidades que iam de 300 a
500km, e podiam durar até um mês. Como regra, Stalin se impacientava por seu
início, ficava insatisfeito com o ritmo da progressão e se irritava com as dificuldades.
Apreendia com rapidez o conceito geral de uma operação ofensiva e,
ocasionalmente, fazia sugestões relevantes visando a intensificar a força do ataque.
Muito raramente, no entanto, sugeria alternativas para a ideia principal
concebida e burilada pelo Estado-maior, o cérebro do exército. Stalin tendia a
enfatizar o papel da força aérea, porém, depois do verão de 1942, quando os
exércitos blindados começaram a entrar em ação, ele dava opinião detalhada sobre
seus objetivos e acompanhava as poderosas formações de ataque enquanto
executavam suas missões. Embora não existam provas nos arquivos indicando que as
sugestões de Stalin tiveram influência importante sobre o planejamento, curso,
desenvolvimento e conclusão das operações estratégicas, manda a verdade que se
diga que, no período de 1943-45, ele foi capaz de avaliar os valores relativos. Se
demonstrou alguma “genialidade”, foi durante este último estágio da guerra,
quando aprovou os planos formulados e submetidos à sua apreciação por Zhukov,
Vasilievsky, Antonov e pelos comandantes de fronts.
Por outro lado, deu grande atenção ao incremento do espírito combatente da
tropa, normalmente por métodos radicais. A decisão de realizar a parada de 7 de
novembro de 1941 na Praça Vermelha foi uma dessas ideias, e também, no verão de
1944, de repente propôs que um enorme efetivo de prisioneiros de guerra alemães
desfilasse pelas ruas de Moscou.
“Isto levantará ainda mais o moral do povo e do exército e acelerará a derrota dos
fascistas. O que vocês acham?”
Após um breve momento de silêncio confuso, Molotov, Beria, Voroshilov e
Kalinin começaram a tagarelar ao mesmo tempo e começaram a competir uns com
os outros para expressar sua total concordância.
“Uma iniciativa inteligente, Iosif Vissarionovich!” “Só você poderia ter pensado
nisto!”
“Uma decisão de gênio!”
Passada uma semana, em 13 de julho, Beria submeteu à aprovação de Stalin uma
operação inusitada de levantamento moral: “De acordo com sua proposta, Iosif
Vissarionovich, dia 17 de julho, 55 mil prisioneiros de guerra desfilarão pelas ruas
de Moscou. Entre eles, estarão 18 generais e 1.200 oficiais. Vinte e seis trens
especiais os trarão a Moscou dos três fronts bielorrussos. Os generais Dmitriev,
Milovsky, Gornostaev e o comissário de segurança Arkadiev já tomaram as
providências. A segurança e a escolta em Moscou serão da responsabilidade dos
Camaradas Vasiliev e Romanenko da NKVD. Os prisioneiros serão concentrados
no hipódromo, e a NKVD fará a segurança motorizada da área na noite de 16 de
julho. Dos 26 trens formaremos 26 colunas de marcha. Itinerário: Hipódromo de
Moscou, autoestrada Leningrado, rua Gorky, praça Mayakovsky e ao longo de
Sadovaya; depois, de Sadovaya-Triumfalnaya para Karetnaya, Samotechnaya,
Sukharevskaya, Spasskaya, Chernogryazskaya, rua Chkalov, estação Crimeia,
bulevar Smolensk, ao longo das ruas Barricade e Krasnaya Presnya de volta ao
Hipódromo. A marcha começará às 9h e deverá terminar às 16h.”36
“Vocês conseguirão manter as colunas intactas?”, interrompeu Stalin. “Sim,
Camarada Stalin.”
“Que acontecerá depois?”
“Bem cedo na manhã seguinte, eles sairão de 11 pontos de partida para
acampamentos no leste.”
Beria estava disposto a prosseguir com a explanação do plano, mas Stalin não
quis ouvir mais nada. “Eu dou uma ideia e aí fazem. Por que vocês não pensam em
alguma coisa por si mesmos?”, disse Stalin, olhando em volta com menosprezo para
seu entourage. (Ocorreu que tanto a hora como o itinerário foram modificados.)
Como parte de sua preocupação com a elevação do moral, particularmente dos
oficiais, Stalin foi bastante criativo na questão das condecorações. Por exemplo, em
9 de setembro de 1943, deu ordem para que:
No caso dos oficiais que completarem com sucesso a travessia forçada de um rio difícil como o Desna:
1. Comandantes de exército devem receber a Ordem de Suvorov, 1ª Classe.
2. Comandantes de corpos, divisões e brigadas a Ordem de Suvorov, 2ª Classe.
3. Comandantes de regimentos e os de batalhões de engenharia, de sapadores e de pontoneiros deverão
receber a Ordem de Suvorov, 3ª Classe.
Para a travessia forçada de rios como o Dnieper, ou da mesma dificuldade, os comandantes de unidades e de
formações devem ser feitos Heróis da União Soviética.37
Nas suas memórias The End of the Third Reich, e em diversas outras publicações e
discursos, o marechal V.I. Chuikov expressa a opinião de que teria sido possível
tomar Berlim em fevereiro de 1945, em vez de se esperar até maio. Zhukov, A.Kh.
Babadzhanyan e outros contestaram essa opinião em documentos impressos como
em outras ocasiões, e Chuikov quis publicar uma resposta na Voenno-istoricheskii
zhurnal (“Revista de História Militar”). Recusada a permissão, ele escreveu ao
Comitê Central do partido, no qual se decidiu que alguma coisa deveria ser feita
para controlar o teimoso marechal. Em 17 de janeiro de 1966, o chefe da
Administração Política Principal, general A.A. Yepishev, convocou uma reunião de
destacados marechais, generais e especialistas para “injetar bom senso” em
Chuikov.39 Em sua exposição, Chuikov, mais uma vez, insistiu:
Em fevereiro, as forças soviéticas, tendo progredido 500 quilômetros, pararam a 60 quilômetros de Berlim
[...] Quem nos deteve? O inimigo ou a liderança? Tínhamos mais do que o suficiente em tropas para avançar
sobre Berlim. Os dois meses e meio de fôlego que concedemos ao inimigo ajudaram-no a preparar a defesa
da capital.
Mas voltemos à guerra. Quando Stalin se convenceu de que a vitória pendia para o
lado dos Aliados, começou a dedicar trinta ou quarenta minutos, normalmente à
noite, para assistir aos noticiários cinematográficos do front, os quais,
ocasionalmente, o levavam a tomar decisões de escala muito grande. Um de tais
filmes, por exemplo, exibiu cenas de um vilarejo perto do front, quase que
totalmente destruído, onde dois membros da polícia local patrocinada pelos
alemães, que não conseguiram se esconder nem se entregar, foram apanhados. Stalin
enviou de imediato uma diretriz, com cópia para Beria, para todos os comandantes
de front exigindo obediência estrita à ordem do Estado-maior de 14 de outubro de
1942. Tal ordem estabelecera a zona do front da qual toda a população, sem
exceção, deveria ser evacuada para garantir que nela não permanecessem agentes
inimigos ou espiões. De próprio punho, acrescentou:
“Isto é especialmente importante. A zona da linha de frente tem que ser inacessível a espiões e agentes
inimigos. Já é tempo de entender que os locais habitados próximos à retaguarda constituem um refúgio
conveniente para espiões e para a espionagem.”40 Nada há na diretriz sobre a remoção dos cidadãos
soviéticos do perigo ou sobre a proteção deles.
De que vale uma posição defensiva se não é defendida? E parece que você não conseguiu reverter a situação,
embora não houvesse pânico e a tropa estivesse combatendo muito bem. Suvorov disse: “Se atemorizei o
inimigo, mesmo sem lhe olhar nos olhos, já ganhei metade da batalha: levo minhas tropas para o front a fim
de aniquilar um inimigo amedrontado.”41
Entre outras coisas, Beria foi empregado por Stalin para ajudar no suprimento da
área de retaguarda do front, para “peneirar” nos campos aqueles que escapavam do
cerco inimigo e para mobilizar centenas de milhares de prisioneiros para trabalhos
relacionados com a guerra. Envolveu-se também com a organização de diversos
destacamentos e unidades. Por exemplo, em 29 de junho de 1941, recebeu do
Estado-maior a missão de formar 15 divisões com base em unidades da NKVD.42
Em agosto de 1942 e março de 1943, esteve no Cáucaso para cooperar com a defesa
da região. Foi de lá que enviou uma série de telegramas a Stalin informando que
estava afastando chechênios e ingushes do exército como inconfiáveis, fazendo sua
avaliação de Budenny, Tyulenev e Sergatskov, reportando suas decisões sobre várias
nomeações militares, algumas delas patentemente inadequadas. Foi de Beria a
sugestão para que Stalin, em 20 de agosto de 1943, telegrafasse a Shchadenko,
comandante do front caucasiano, determinando:
1. A remoção de 3.767 armênios, 2.721 azerbaijanos e 740 membros de grupos étnicos do Daguestão das
fileiras da 61ª Divisão de Infantaria.
2. Que os militares assim removidos fossem enviados para postos da reserva do front oeste e que as vagas
criadas pela transferência fossem preenchidas com tropas reservas do front constituídas de russos, ucranianos
e bielorrussos.43
Inveterado causador de problemas durante seus giros pela linha de frente, Beria
tentou complicar a vida dos generais Tyulenev, Maslennikov, Sergatskov, I.E.
Petrov e Shtemenko, entre outros, fazendo com que todos eles telegrafassem a Stalin
solicitando que suas equipes fossem protegidas contra a horda de Beria. Parece que
Beria só foi bem-sucedido com Maslennikov, seu subordinado por certo tempo. Os
generais Pokrovsky e Platonov, que pesquisaram este assunto em 1955, chegaram à
mesma conclusão no seu “Relatório sobre a atividade criminosa de Beria durante a
defesa do Cáucaso em 1942-43”. Escreveram:
Para defender a parte leste da área do Cáucaso, foi criado um agrupamento norte do front caucasiano, em 8
de agosto, sob o comando, parece que por insistência de Beria, do general Maslennikov, o qual até então
vinha sendo o desafortunado comandante do front de Kalinin. O general Maslennikov, que, sem dúvida
gozava da proteção de Beria, frequentemente ignorou as ordens do comandante do front e prejudicou o
reagrupamento das forças com suas ações.44
Bem no íntimo, Stalin seguramente tinha desprezo por Beria, mas não podia passar
sem ele. Beria era seu inquisidor, seu braço direito, seu espião. Foi ele, por exemplo,
quem lhe informou que Berlim, havia muito tempo, vinha planejando um ato
terrorista contra o líder soviético. De acordo com alguns informes recebidos, um
Messerschmitt Arado-332 especial lançaria um grupo treinado de terroristas do
Exército Russo de Liberação, de Vlasov, enquanto outras informações diziam que os
alemães deixariam para trás um grupo de comandos na retirada. Quase a cada mês,
Beria relatava a Stalin as novas medidas que tomara para aumentar a segurança do
seu chefe. Mas Stalin precisava de Beria para uma série de outras tarefas. Por
exemplo, saber por que 140 dos 400 aviões de caça designados para emprego nos
fronts de Kalinin e de oeste tinham sido retirados da ação após três ou quatro dias
de serviço.47 Por outro lado, não gostava quando Beria metia o bedelho nos assuntos
do QG do Estado-maior e nos do próprio Estado-maior.
Quando Beria retornava de suas visitas ao front e dava suas opiniões sobre a
situação, sobre bombardeios e sobre o pobre desempenho de alguns generais
“suspeitos” e de outras pessoas, Stalin sentia uma certa vulnerabilidade. Não estivera
perto da linha de frente desde outubro de 1941, quando foi à autoestrada
Volokolamsk assistir ao fogo antiaéreo no céu e, ainda mais, tinha que ficar ouvindo
as descrições de Malenkov e Beria sobre seus “batismos de fogo”. Portanto, resolveu
que deveria ir ao front, nem que fosse para registro pela posteridade. E teve lugar
uma viagem cuidadosamente preparada. Stalin passou algum tempo nos fronts
Kalinin e oeste, em agosto de 1943, e sentiu que sua imagem como líder guerreiro
estava preservada.
Em 1º de agosto, deixou Kuntsevo num trem especial que consistia em uma
velha locomotiva e vagões bem avariados. Tanto a plataforma como o pequeno trem
foram camuflados com galhos de árvores. Stalin se fez acompanhar por Beria, por
seu assistente especial Rumyantsev e por seguranças em trajes civis. Ao chegar em
Gzhatsk, foi recebido pelo comandante do front oeste, Sokolovsky, e por Bulganin,
que era um dos membros do soviete de guerra. Ouviu seus relatos, desejou-lhes
felicidades, foi para a cama e seguiu no dia seguinte na direção de Rzhev, no front
Kalinin, que era comandado por Yeremenko. Lá, instalou-se numa cabana simples
de camponês na vila de Khoroshevo, algo isolada das outras residências rurais. (A
camponesa residente fora despachada com armas e bagagem.) A pequena cabana,
com sua cornija ornamental e uma placa comemorativa, ainda hoje existe, como
monumento da “explorações” de Stalin do front. Diz-se que, durante sua
permanência na modesta instalação, ele preparou a ordem para uma salva de tiros de
canhão a fim de comemorar a retomada de Orel e Belgorod. Mas não mostrou
desejo de ir à linha de frente para confraternizar com as tropas e seus oficiais. Depois
da noite em Khoroshevo, o pequeno comboio fez a viagem de volta a Moscou sem
quaisquer tropelias, onde Stalin pôde se confortar com o sentimento de que
ninguém mais poderia dizer que ele só conhecia o front pelos documentários do
cinema.
Haveria mesmo necessidade da visita à linha de frente? Afinal de contas, jamais
estivera nas fábricas, se bem que tivesse levado o país a dar um salto quantitativo na
produção industrial. Só uma vez fizera um giro pelos vilarejos, e que revolução
causara naquele setor! Por que o campo de batalha seria uma exceção, quando podia
acompanhar todos os eventos que ocorriam e, na realidade, dirigir tudo de sua sala
no Kremlin? A visita foi necessária para a “história”. Sua biografia tinha que incluir
uma descrição da chegada do Supremo no seio das tropas combatentes para elevar o
moral. Ele também fez questão de que os Aliados tomassem conhecimento do fato.
Escreveu a Roosevelt em 8 de agosto de 1943:
Recém-chegado do front, só agora tenho condições para responder à sua carta de 16 de julho. Não tenho
dúvida de que o senhor está consciente de nossa situação militar e, portanto, entenderá o atraso. Tenho que
fazer visitas pessoais aos vários setores do front com cada vez maior frequência e subordinar tudo o mais aos
interesses da linha de frente.
* Sigla russa de Glavnoe upravlenie po delam literatury i izdatv, a “Repartição para a Proteção dos Segredos de
Estado Impressos,” agência de censura responsável pela revisão de todas as matérias antes da publicação. No fim
da década de 1980, era responsável pela proteção de segredos de Estado. Foi abolida em julho de 1990.
[49]
Stalin e os Aliados
Penso que a única saída é a abertura, neste mesmo ano, de uma segunda frente, em algum lugar dos Bálcãs
ou na França, capaz de puxar trinta ou quarenta divisões alemãs da frente leste e, simultaneamente, a garantia
para a União Soviética de 30 mil toneladas de alumínio pelo início de outubro deste ano, e uma ajuda
mínima de 400 aviões e 500 tanques (pequenos ou médios) por mês.
Sem estas duas espécies de socorro, a União Soviética ou será derrotada ou restará tão enfraquecida que
perderá sua capacidade de auxiliar seus aliados por um longo período.
Sei que esta mensagem causará aflição a Vossa Excelência. Mas que posso fazer? A experiência ensinou-me a
olhar a realidade de frente, por mais desagradável que ela seja, e a não ter medo de dizer mesmo a verdade
indesejável.55
Embora tenha conseguido ajuda militar dos Aliados em escala maciça – ajuda
consistentemente ignorada ou depreciada pelos historiadores soviéticos –, Stalin foi
menos bem-sucedido no esforço para que abrissem uma segunda frente. Até meados
de 1944, esta questão ocupou lugar central no palco de suas iniciativas diplomáticas.
É verdade que, quando os ventos da vitória começaram a inflar suas velas, ele se
tornou menos insistente, e, de fato, a frente na Europa Ocidental só foi aberta
quando ficou óbvio que a União Soviética era capaz de destruir sozinha a Alemanha
nazista.
A persistência de Stalin e a posição inglesa sobre a segunda frente chegaram a um
ponto tal que foi necessário aos dois líderes se encontrarem pessoalmente. Em
consequência, Churchill foi a Moscou, em agosto de 1942 e, na presença do
embaixador americano Averell Harriman, tentou convencer Stalin da
impossibilidade da abertura de uma frente na Europa Ocidental ou no Ártico
naquele momento. Stalin não teve outra escolha senão aceitar a argumentação,56
mas deixou claro que considerava a posição inglesa uma quebra de promessa.57
Considerando que a URSS estava aguentando o maior impacto da agressão nazista,
Stalin se achava no direito de reivindicar um lugar especial na aliança. Isto se
aplicava particularmente às solicitações da União Soviética – que soavam mais como
exigências – de auxílio. No interesse do país, Stalin comportou-se como um político
duro que não aceitava meios-termos e, no processo, granjeou o respeito de seus
parceiros. Roosevelt, Churchill e de Gaulle o consideravam um ditador esperto e
cruel. Ele sabia disto e não fez qualquer tentativa de alterar esta imagem.
Ansioso pela máxima quantidade possível de assistência da parte dos Aliados, em
especial ajuda militar, Stalin buscou maneiras de desbordar as diferenças ideológicas.
Enquanto conversava com Churchill no Kremlin, madrugada adentro, estava
consciente de que, apenas a alguns blocos de distância, ficava a sede do comitê
executivo da Internacional Comunista – o Comintern –, instituição que identificava
o inimigo de classes não só em Hitler, mas também no primeiro-ministro inglês. A
decisão de Stalin de desmantelar o Comintern – por um decreto do próprio
Comintern, é claro – não causou espanto aos observadores inteligentes que se
lembravam de que, muito recentemente, em 1939, o secretário-geral demonstrara o
quanto estava disposto a abandonar um princípio ideológico em favor de um
objetivo particular. Tampouco fez questão de camuflar sua decisão. Falando numa
cerimônia comemorativa do 25º aniversário da Revolução de Outubro, ressaltou o
fato de que as diferenças ideológicas não eram obstáculo para a cooperação militar e
política com os Aliados.58 Na verdade, o que ele estava dizendo era que a lógica das
classes não tinha lugar na luta pela sobrevivência.
O destino do Comintern estava selado. Na primavera de 1943, ele dissolveu a si
próprio e, em 28 de maio de 1943, respondendo a uma pergunta do correspondente
da Reuters, Stalin disse:
A dissolução da Internacional Comunista é adequada e oportuna, pois facilitará a organização da pressão por
parte das nações amantes da paz contra o inimigo comum, o hitlerismo, e desmascara a mentira dos
hitleristas de que Moscou, supostamente, pretende interferir na vida dos outros estados e “bolchevizá-los”.59
Outra área na qual Stalin aplicou sua abordagem pragmática foi a da Igreja
Ortodoxa Russa, instituição com a qual o ex-seminarista, até então, não vinha sendo
muito pródigo em atenção. Pelo contrário, em 1925, por sua iniciativa, a Igreja foi
proibida de eleger um novo patriarca. Seu chefe temporário, ou locum tenens, ficou
sendo o eclesiástico metropolitano Sergius. Stalin nem permitiu que o conselho
local da Igreja se reunisse, tornando assim impossível completar o número de
membros do Sínodo Sagrado, o qual deixou de funcionar por um longo período.
Subitamente, em 4 de setembro de 1943, Stalin convidou G.G. Karpov, presidente
do conselho para as Questões da Igreja Ortodoxa Russa, à sua dacha. Durante a
conversa, e com a presença de Malenkov e Beria, foi debatido o papel que a igreja
poderia desempenhar no esforço de guerra. Deve-se frisar que ela já vinha dando
uma grande contribuição em dinheiro vivo com tal objetivo e repassara para os
cofres públicos substanciais partes de sua riqueza, ao mesmo tempo que os
sacerdotes faziam o possível para fortalecer a fé do povo na vitória final sobre o
invasor.
Tendo ouvido Karpov, Stalin decidiu, na hora, receber os líderes da Igreja e,
poucas horas depois, chegaram os eclesiásticos metropolitanos Sergius, Alexei e
Nikolai, algo surpresos com o inusitado da ocasião. Durante a longa discussão,
concordaram em convocar o conselho da Igreja, nomear um patriarca e abrir
instituições de ensino religioso. Entusiasmado com a própria generosidade, Stalin
prometeu também ajuda material à Igreja e várias indulgências, dando para Beria
um olhar significativo enquanto dizia isto. Stalin, o seminarista falhado, deve ter
sentido imensa satisfação pela inimaginável oportunidade de influir não apenas na
sorte dos dignitários de posição mais elevada da Igreja, mas na própria religião. E a
maioria das promessas que fez foi cumprida.
No dia seguinte, 5 de setembro, o Pravda publicou notícias sobre a reunião – a
única entre a liderança do país e o chefe da Igreja até 1988 – e anunciou que o
eclesiástico metropolitano Sergius iria convocar o conselho dos bispos para a eleição
de novo patriarca. “O chefe de governo, Camarada I.V. Stalin, demonstrou simpatia
em relação a tais propostas e declarou que o governo não estorvaria sua
concretização.”
Stalin tomou essa atitude por duas razões. Primeiro, porque reconhecia o valor
patriótico da Igreja e queria encorajá-lo. A segunda razão estava ligada à situação
internacional. Ele se preparava para a conferência de cúpula em Teerã no final do
ano, e era sua intenção pressionar pela abertura da segunda frente e pleitear também
um aumento da assistência. Neste particular, papel importante, acreditava ele,
poderia ser desempenhado pela Ajuda Britânica para o Fundo Russo, comitê do
qual faziam parte a senhora Churchill e o Deão de Canterbury, Hewlett Johnson. Já
tendo recebido diversas mensagens do deão, Stalin concluiu que era chegado o
momento de fazer um gesto público para demonstrar sua lealdade à Igreja. Estava
convencido de que o Ocidente reconheceria aquele sinal e que ele provocaria a
resposta desejada. Sua principal motivação, portanto, não foi a gratificação da
vaidade do seminarista malsucedido, mas o exercício de pragmatismo puro nas
relações com os Aliados.
Tais relações chegaram ao ápice com os encontros dos Três Grandes em Teerã
(28 de novembro a 1º de dezembro de 1943), em Yalta (4 a 11 de fevereiro de
1945) e em Potsdam (17 de julho a 2 de agosto de 1945). O resultado destas
reuniões é bem conhecido. Meu propósito aqui é apenas tocar na atitude de Stalin
em relação a algumas das questões debatidas.
Stalin era um “homem caseiro”. Embora desejasse encontrar os líderes Aliados,
relutava em viajar, seja para longe, seja por muito tempo fora da URSS. Churchill e
Roosevelt sugeriram locais como Cairo, Asmara, Bagdad, Basra e outros mais ao sul.
Churchill até pensou que Stalin concordaria com um encontro no deserto, onde
seriam armados três acampamentos de tendas e eles poderiam conversar segura e
sigilosamente. Stalin insistiu em Teerã porque, segundo suas palavras, de lá seria
capaz de continuar “dirigindo o dia a dia do Estado-maior”. Depois de alentada
troca de correspondência, Churchill e Roosevelt concordaram. Naturalmente, Stalin
não revelou que tinha um pouco de medo de voar. Aquele viria a ser seu primeiro
voo, e o último. Nunca fora de correr riscos, e não viu por que haveria de começar
agora. Estava no auge da glória, e qualquer possibilidade de aborrecimentos, por
menores que fossem, o perturbava. Dois dias antes da viagem, telegrafou a Roosevelt
e Churchill, ambos já no Cairo, dizendo que estaria “à vossa disposição” em Teerã
na noite de 28 de novembro. Partida dele, era uma expressão desusada, que, sem
dúvida, objetivava passar a imagem de um gentleman.
Aquela foi a primeira conferência internacional de Stalin fora de seu próprio
país, e ele cuidou de observar atentamente seus parceiros. Tudo era novo. Churchill
não despertava tanto interesse, pois já havia se encontrado com ele e sabia tratar-se
de um político invulgarmente inteligente e arguto. Mas havia alguma coisa em
Roosevelt, com seus olhos penetrantes e a evidente marca da fadiga e da doença, que
logo o atraiu. Talvez fosse sua franqueza. Na última conversa que tiveram, em 1º de
dezembro, o presidente disse-lhe com toda a sinceridade que não desejava discutir
publicamente questões de fronteira polonesa, uma vez que era muito provável que
fosse candidato a presidente no ano seguinte. Existem “seis ou sete milhões de
cidadãos americanos de origem polonesa”, e ele, sendo um “homem prático, não
queria perder aqueles votos”. Stalin não estava acostumado com tais expressões de
autointeresse político, mesmo assim admirou esta qualidade de Roosevelt.
O presidente era o mais novo dos “Três Grandes” e, no seu discurso de abertura,
chamou o trio de “membros de uma nova família”. Churchill acrescentou que eles
representavam “a maior concentração de poder jamais havida na história da
humanidade”. Os dois, então, esperaram pelas palavras de Stalin. “Acho que a
história está sendo condescendente conosco”, começou ele abruptamente. “Ela
colocou em nossas mãos poderes muito grandes e mui grandes oportunidades.
Espero que tomemos todas as medidas para que esta conferência use do poder e da
força que nos foram confiados por nossos povos, adequadamente e dentro de um
espírito de cooperação. E agora, vamos ao trabalho.”
A questão da segunda frente foi, por fim, resolvida. No café da manhã de 30 de
novembro, Roosevelt sacudiu seu guardanapo, virou-se para Stalin com um sorriso e
disse: “Hoje, Mr. Churchill e eu tomamos uma decisão com base em propostas de
nosso estado-maior combinado: a Operação Overlord começará em maio,
juntamente com um desembarque no sul da França.”
“Fico satisfeito com esta decisão”, replicou Stalin tão calmamente quanto pôde.
“Mas também quero dizer a Mr. Churchill e a Mr. Roosevelt que, no momento em
que os desembarques começarem, nossas tropas estarão preparando um ataque de
grande vulto contra os alemães.” Estas novas foram do agrado dos outros líderes.
Como em Yalta e, mais tarde, em Potsdam, a questão polonesa preocupou os
Três Grandes em Teerã. Na última sessão, Churchill leu uma proposta,
evidentemente combinada antes com Roosevelt, estabelecendo que “o torrão do
estado e do povo polonês deve ser localizado entre a chamada Linha Curzon e o rio
Oder, com a inclusão na Polônia da Prússia Oriental e da província da Silésia”.
Stalin replicou: “Se os ingleses concordarem em transferir para nós [os portos de
águas quentes de Königsberg e Memel], aceitamos a fórmula proposta por Mr.
Churchill.”60
Durante as negociações sobre o futuro da Polônia que tiveram lugar mais tarde
na Conferência de Yalta, apenas três meses antes da destruição da Alemanha de
Hitler, Stalin apresentou a fórmula em que trabalhava havia muito tempo, ou seja,
que a questão da Polônia não era só de honra, mas também de segurança:
É uma questão de honra porque os russos cometeram muitos pecados contra os poloneses no passado, e o
governo soviético deseja fazer reparações. E é uma questão de segurança porque a Polônia apresenta o mais
grave dentre os problemas estratégicos para a União Soviética. Ao longo da história, a Polônia tem servido de
corredor para os inimigos que chegam para atacar a Rússia. Por que os inimigos acharam tão fácil, até agora,
passar através da Polônia? Principalmente porque a Polônia era fraca. Essa passagem polonesa não poderia ser
fechada pela parte de fora apenas com a força russa. Isto só poderia ser bem feito por dentro, pela ação da
própria Polônia. O que significa que a Polônia tem que ser forte. Daí a razão de a União Soviética estar
interessada na criação de uma Polônia poderosa, livre e independente. A questão polonesa é um problema de
vida ou morte para o estado soviético.61
Stalin deixou patente que estava mais inquieto com governos do que com fronteiras.
Aceitou imediatamente a Linha Curzon, com alguns ajustes em favor da Polônia,
mas não faria concessões quanto à questão do governo polonês, a despeito do fato
de, no início da guerra, ter se mostrado desejoso de cooperar com ele. Em 18 de
agosto de 1941, determinara que o major-general Vasilievsky assinasse um tratado
militar entre o Alto-Comando Soviético e o Alto-Comando Polonês. Concordaram
em que o lado soviético arcaria com todos os custos da manutenção de um exército
polonês em território soviético e abriria uma missão militar soviética no Alto-
Comando Polonês, em Londres.62 E agora Churchill e Roosevelt estavam chamando
o governo legítimo de “governo de Lublin”, como se não fosse mais que uma
autoridade provincial, não obstante já estar instalado em Varsóvia e controlar a
situação no país.
Na última fase da guerra, e depois dela, Stalin viu-se afogado em questões de
caráter diplomático. É claro que ele contava com a assistência de Molotov, A.Ya.
Vyshinsky, S.I. Kavtaradze e I.M. Maisky, entre outros, porém, ao mais das vezes,
tomava decisões por si próprio. Ficou irritado quando Churchill meteu o nariz nas
questões da Europa Oriental: uma vez que as forças soviéticas estavam lá, cabia à
URSS solucionar a questão do futuro da região, assim pensava ele.
Mais uma vez, Stalin viu o tipo de executivo fiel que era Molotov. Para este, uma
ordem de Stalin tinha precedência sobre qualquer estatuto do partido. Em 15 de
outubro de 1945, Averell Harriman quase “bateu nele”, como iria dizer a Stalin no
mês seguinte. O secretário-geral se preparava para suas primeiras férias de pós-guerra
e não queria receber o embaixador dos EUA, que pressionava por uma audiência.
Stalin dissera a Molotov: “Você o recebe. Não vou fazê-lo. Diga-lhes o que eles
precisam saber.”
De acordo com Molotov, o embaixador Harriman e o primeiro-secretário Page
foram visitá-lo, e a conversa mantida foi registrada em seu diário assim:
Harriman: “Recebi um telegrama do presidente para o generalíssimo. Tenho instruções para entregá-lo
pessoalmente e, na ocasião, discutir uns certos assuntos.”
Molotov: “Stalin entrou em férias por cerca de mês e meio. Informarei Stalin sobre o desejo do presidente.”
Harriman: “O presidente sabe que Stalin está de férias, mas espera que, assim mesmo, ele concorde em
receber o embaixador. É sobre a Conferência de Londres. Estou disposto a ir a qualquer lugar.”
Molotov: “O generalíssimo Stalin não está trabalhando no momento, o que quer dizer que está de férias
longe de Moscou.”
Harriman: “O presidente espera que Stalin receba o embaixador.”
Molotov: “Informarei Stalin.”
Harriman: “O presidente acha que o generalíssimo merece férias.”
Molotov: “Todos achamos que Stalin deve fazer uma pausa adequada para um descanso.”
Harriman: “Durante o desfile esportivo, notei que Stalin parecia em forma.” Molotov: “Stalin é um homem
muito disposto.”
Harriman: “No noticiário cinematográfico sobre o desfile esportivo, o generalíssimo me pareceu bastante
vigoroso e entusiasmado.”
Molotov: “Nós, as pessoas soviéticas, ficamos muito felizes em ver Stalin com bom estado de espírito.”
Harriman: “Eu gostaria de ter uma cópia daquele filme.”
Molotov: “É claro, o senhor terá uma.”
Harriman: “Não tenho mais nada a dizer para explicar o propósito de minha visita.”
Molotov: “Informarei a Stalin, que está no gozo de completo repouso.” Harriman: “Nem preciso falar quão
importante a questão é...”
Molotov: “Isto está entendido.”
Harriman: “Eu gostaria de visitar Stalin como um amigo...”
Molotov: “Direi a Stalin, mas ele está de férias.”63
Talvez fosse este episódio que Harriman lembrou quando escreveu em suas
memórias que “Stalin permanece para mim a pessoa mais inescrutável, enigmática e
contraditória que jamais conheci”.64 As anotações sobre a conversa, feitas pelo
assistente de Molotov, V. Pavlov, refletem muito bem a persistência obstinada dos
dois homens. Nenhuma conferência importante, nenhum apelo do presidente
abalariam Molotov, para quem a vontade do chefe era soberana. E, assim, ele
executou suas instruções à risca. Nada de flexibilizações. Molotov era da escola
stalinista. Mas quando ele acabou seu monólogo interminável, Stalin disse: “E se
Harriman tivesse, de fato, algo importante para me dizer do presidente?” Molotov e
Beria trocaram um olhar. Não sabiam se Stalin estava brincando ou lamentava
sinceramente uma oportunidade perdida.
Entre as numerosas pastas que Poskrebyshev colocava em cima da mesa de
Stalin, muitas requeriam sua atenção: tratavam dos países liberados, que eram em
bom número. As lembranças ainda eram recentes das maquinações do presidente
Risto Ryuti em Helsinque. Chegavam sinais por intermédio da embaixadora
soviética em Estocolmo, Alexandra Kollontal, de que os finlandeses aprestavam-se
para abandonar a guerra quando, subitamente, em 26 de junho de 1944, em seguida
a uma visita de Ribbentrop a Helsinque, Ryuti declarou que a Finlândia jamais faria
a paz, nem permitiria que quaisquer negociações de armistício fossem encetadas
com a URSS sem a concordância do império alemão.65 Stalin reagiu determinando a
imediata aceleração das operações ofensivas no front da Karélia. Já então aprendera
que golpes firmes tornavam o inimigo mais tratável. A manobra funcionou, embora
a operação não tivesse sido tão bem-sucedida como ele esperava. Em 4 de setembro
de 1944, os finlandeses aceitaram as condições soviéticas para pôr um fim na guerra,
e um armistício foi assinado no dia 19 do mesmo mês.
Em agosto de 1944, Stalin recebera relatórios de que aviões Aliados estavam
aterrando em crescentes quantidades nos territórios ocupados pelos soviéticos, e
admoestou Voroshilov na Hungria, Susaikov na Romênia e Shatilov em Varsóvia
pela “complacência perigosa, credulidade desnecessária e falta de vigilância que
permitiam que elementos hostis aterrissassem para infiltrar terroristas, sabotadores e
agentes poloneses a serviço do governo polonês de Londres”.66
Em 18 de outubro de 1944, teve ocasião de enviar um cabograma “Muito
Importante” ao marechal Tito, com uma cópia para o marechal Tolbukhin:
O senhor solicitou ao marechal Tolbukhin que retirasse as forças búlgaras da Sérvia e as deixasse apenas na
Macedônia. Além do mais, queixou-se a Tolbukhin do comportamento incorreto das tropas búlgaras na
divisão do butim tomado aos alemães. Sobre as duas questões, considero necessário informar-lhe o seguinte:
1. As tropas búlgaras operam em território sérvio segundo o plano geral da assistência substancial às tropas
soviéticas, de acordo com o senhor e por sua solicitação, como estabelecido em seu telegrama número 337 de
12.10.44. Enquanto um considerável efetivo alemão permanecer em território iugoslavo, não teremos
condições de retirar as tropas búlgaras da Sérvia.
2. Quanto ao butim, a lei da guerra é a de quem o toma e fica com ele.67
Para garantir a recepção organizada e a contenção dos ex-prisioneiros soviéticos de guerra e dos cidadãos
soviéticos liberados pelas forças aliadas no território da Alemanha Ocidental, e também para a entrega de ex-
prisioneiros de guerra e de cidadãos dos países Aliados liberados pelo Exército Vermelho, o Supremo Alto-
Comando determina:
Que os sovietes de guerra organizem campos na área de retaguarda para acomodar e reter ex-prisioneiros de
guerra e cidadãos soviéticos que estão sendo repatriados, alocando 10 mil pessoas para cada acampamento. As
necessidades são: 2º front bielorrusso – 15 campos; 1º front bielorrusso – 30; 1º front ucraniano – 30; 4º
front ucraniano – 5; 2º front ucraniano – 10; e 3º front ucraniano – 10. Alguns campos devem ser criados
em território polonês.
Que a checagem de ex-prisioneiros de guerra e de cidadãos liberados seja executada da seguinte maneira: os
órgãos de contrainformação da Smersh deverão ficar encarregados dos militares, enquanto comissões de
averiguação da NKVD, da NKGB e da Smersh, sob a coordenação da NKVD, verificarão os civis. A
checagem não deverá durar mais que um ou dois meses.
A entrega de ex-prisioneiros Aliados de guerra e de cidadãos às comissões do comando aliado deverá ser
administrada pelos sovietes de guerra e por um representante do Sovnarkom da URSS.
11 de maio de 1945. 24h.69
1. O oficial mais antigo [...] deve fazer contato com o oficial Aliado mais antigo e estabelecer com ele a linha
divisória. Nada sobre nossos planos e objetivos de batalha deve ser divulgado a quem quer que seja.
2. Nenhuma iniciativa deve ser tomada para a organização de encontros de confraternização. As forças
Aliadas devem ser recebidas de maneira amistosa.70
A NKVD da URSS reporta que os preparativos estão completados para a recepção e acomodação da
conferência vindoura. Sessenta e duas vilas foram aprontadas (10.000m2, mais uma casa afastada de dois
andares para o Camarada Stalin, com 400m2 de área construída: 15 cômodos, uma varanda externa e água-
furtada). A casa está completamente equipada. Possui um centro de comunicações. Foram feitos estoques de
carne de caça, aves, guloseimas, mantimentos e bebidas. Três depósitos suplementares de suprimento foram
criados a sete quilômetros de Potsdam, com fazendas de gado e aviários e reservas de vegetais; duas padarias
estão funcionando. Todas as equipes são de Moscou. Dois aeródromos especiais foram preparados. Sete
regimentos de tropas da NKVD e 1.500 militares operacionais proverão a segurança, que será feita em três
círculos concêntricos. O chefe da segurança na residência será o tenente-general Vlasik. Kruglov será o
encarregado da segurança na conferência.
Uma composição ferroviária especial foi montada. O percurso é de 1.923 quilômetros (1.095 na URSS, 594
na Polônia e 234 na Alemanha). A segurança ao longo do itinerário será proporcionada por 17 mil homens
da NKVD e 1.515 operacionais. Entre seis e 15 homens estarão postados a cada quilômetro de trilhos. Oito
trens blindados com tropas da NKVD patrulharão a extensão total do caminho ferroviário.
Uma casa com dois pavimentos e 11 cômodos foi preparada para Molotov. Existem 55 vilas, inclusive oito
casas separadas, para a delegação.5
Tudo isto estava, de fato, muito distante do “ascetismo” de Stalin dos anos 1920.
Quanto mais idoso ficava, mais temia por sua vida. Com a aproximação da viagem,
passou a consultar Beria mais amiúde, chegando a algumas vezes por dia – sobre o
sigilo a respeito da data da partida, a espessura da blindagem dos vagões, a rota
através da Polônia.
Em Potsdam, ao trocar cumprimentos com Truman, ao meio-dia de 17 de
julho, Stalin disse: “Por favor, desculpe-me pelo atraso de um dia. Fiquei ocupado
com as conversações com os chineses. Queria voar, mas os médicos proibiram.”
Truman replicou: “Entendo perfeitamente. Tenho muito prazer em conhecer o
Generalíssimo Stalin.”*
Stalin atrasou simplesmente para acentuar sua própria importância. Não foi a
última vez que utilizou tal artifício, como William Hayter, um dos membros da
delegação inglesa e mais tarde embaixador em Moscou, recordou.6
Naquela noite, os Três Grandes começaram a dividir os frutos de sua vitória,
trabalho mais fácil que o de preservar a aliança, que cada um deles sabia viver seus
últimos dias.
Agora que a guerra estava ganha, Stalin podia pensar em relaxar no ar puro do
Cáucaso, e Beria pôs mãos à obra para os preparativos, embora eles fossem bem
menos complicados que os de levar seu líder a Potsdam. O chefe da segurança em
Krasnodar reportou para Merkulov que o elemento antissoviético em Sochi estava
sob vigilância e seria preso na ocasião oportuna. As matas entre os rios Golovinka e
Psou eram vasculhadas. Cento e quarenta e oito postos de segurança tinham sido
estabelecidos entre a estação ferroviária e a dacha, e todo o itinerário estava
protegido. Um trem de força máxima estava em reserva.24 Mesmo em seu país, o
“pai do povo” temia atentados contra sua vida.
Parte da jornada foi feita de carro. Como sempre, quando entrava em férias,
Stalin era acompanhado por Vlasik, Poskrebyshev, Istomina, inúmeros serventes,
guardas e outros empregados. Foi de fato depois dessa viagem que ele ordenou a
construção de uma estrada para Simferopol. Ao passar por Orel, Kursk e outras
cidades e vilas, a comitiva parava para contatos locais. O sacrifício por que as
mulheres e crianças sobreviventes passavam era indescritível. Por todos os lados, as
cidades estavam em ruínas; mesmo assim, quando as autoridades chegaram ao sul,
Stalin foi informado de que novas casas de verão para funcionários estatais estavam
sendo construídas segundo ordens urgentes das agências de Beria.
Stalin logo se cansou do contato próximo com as massas; chegava de hurras leais,
de lágrimas de alegria das mulheres, de brados confiantes dos homens de “Tudo
acabou bem, Camarada Stalin!” e de olhares admirados de idosos e crianças,
perguntando se aquele era mesmo Stalin. Ademais, ele tinha consciência de que era
bem melhor para sua imagem acenar para as multidões a partir do Mausoléu, ou
sorrir para elas das telas dos cinemas, que tinha maior efeito sua aparição diária em
retratos, estátuas e bustos. Em vez disso, agora, as pessoas olhavam para um homem
de baixa estatura, tronco desproporcionalmente curto, pernas e braços um tanto
longos, barriga pronunciada, cabelos ralos, rosto pálido e com sinais deixados pela
varíola, e dentes amarelados. Em Kursk, uma mulher mais atrevida chegou mesmo a
tocar na manga de sua túnica como para se certificar de que aquele era o mesmo
homem que conhecia por retratos. Para as perguntas curtas que ele fazia, as pessoas
respondiam com exclamações também curtas, expressando embevecimento,
adoração entranhada e esperança por um milagre. Não esperavam que ele falasse,
simplesmente banqueteavam-se olhando, incapazes de acreditar que aquele era seu
Líder. Stalin começou a perceber na expressão das pessoas não só alegria e êxtase,
mas também um certo e indisfarçável desapontamento com a figura que viam.
Sabedor de que era impossível para qualquer deus terreno não causar desilusão pelo
contato direto, Stalin decidiu que não repetiria aquela prática insensata, e sim, dali
por diante, sustentaria a quimera da onipresença, tornando-se majestosamente
distante do povo. As pessoas tinham que continuar vendo nele o homem que erigira
o socialismo, destruíra todos os inimigos, derrotara o fascismo e que logo teria que
conclamar o povo para voltar à “grande construção do comunismo”. Aquele era o
sistema que ele edificara e que não podia prescindir de sua liderança. Os que
esperassem mudanças, aguardariam em vão. O sistema tinha que ser fortalecido, o
poder do estado, reforçado, e todos aqueles de que não precisasse deveriam ser
afastados. A grande vitória fora prova de que ele sempre estivera certo.
Embora toda esta descrição pareça imaginária e muito fantasiosa, ela se baseia na
dedução lógica das evidências. As ações e decisões de Stalin indicam que ele não
desejou alterar nada que tivesse significação. As pessoas podiam e deviam mudar,
mas não a ordem que o elevara ao cume do poder. Estava convencido de que o
sistema que queria preservar chegara então, depois da guerra, mais próximo daquele
visualizado pelos fundadores do socialismo científico. Tudo era planejado,
programado, prescrito e determinado. Portanto, ao se dispor a reconstruir o edifício
do socialismo assolado pela guerra, relançaria o slogan “Temos que alcançar e
ultrapassar!”.
Stalin poderia razoavelmente julgar que, depois da guerra, o mundo se
encaminharia perceptivelmente para a esquerda. A luta antifascista unira as massas,
revigorara a democracia e fizera a reação bater em retirada. Os feitos heroicos do
povo soviético despertaram profunda e genuína simpatia pelo Estado soviético.
Existiam até mesmo emigrados brancos, bem como intelectuais e ex-russos comuns
que estavam ávidos para retornar. Stalin estava especialmente interessado nos
indícios partidos dos mencheviques georgianos de Paris, muitos dos quais conhecia
pessoalmente. Tão logo a guerra terminou, enviou à capital francesa o chefe da
propaganda do Comitê Central georgiano, P.A. Shariya, e leu com atenção seu
relatório quando chegou pelas mãos de Beria e Merkulov.
Shariya reportou que os emigrados georgianos entregaram-lhe antigos
manuscritos, artefatos de ouro e prata, moedas raras e tesouros arqueológicos para
que fossem repatriados à Geórgia. Por instruções de Moscou, Shariya encontrou-se
com Noah Zhordaniya, Yevgeni Gegechkori, Iosif Gobechiya e Spiridon Kediya –
todos nomes que devem ter evocado em Stalin lembranças de sua vida como
revolucionário na clandestinidade, bem como o período duro em que as repúblicas
foram formadas depois da guerra civil. No começo da reunião, Zhordanyia
reafirmou seu ponto de vista de que não havia democracia, liberdade de expressão e
de imprensa, eleições livres e iniciativa privada na URSS. Não obstante, declarou
então – e foram palavras sublinhadas por Stalin – que:
Stalin ganhou a guerra. Acho que ele é o maior dos homens. Seria uma idiotice negar sua grandeza por causa
de nossas diferenças políticas. A história ainda terá muito a relatar sobre tal grandeza. Desvendará aspectos de
suas atividades ainda desconhecidos por seus contemporâneos.25
* Esse novo título fora conferido a Stalin apenas recentemente, em 27 de junho de 1945.
** Mesmo buscando com muito interesse nos arquivos, nada achei sobre o destino de Raoul Wallenberg.
[51]
Cortina de segredos
Quanto mais avançarmos, quanto maior o sucesso, mais exasperados se tornarão os remanescentes das classes
exploradoras destruídas, mais cedo apelarão para formas extremadas de luta, mais difamarão o estado
soviético e mais recorrerão aos meios desesperados como solução última dos condenados... Esmagaremos
nossos inimigos no futuro, como o fazemos agora e o fizemos no passado.26
Se a luta de classes é boa ou má, nobre ou desprezível, nós, seres viventes, que tomamos parte nessa luta, seja
como carrascos seja como vítimas, sabemos alguma coisa sobre ela de que Marx jamais teve conhecimento e
com que nenhum dos sábios da democracia social jamais sonhou. Para eles, a luta de classes não passa de
uma ideia em suas mentes, enquanto para nós significa sangue e ossos; derramamos nosso sangue e
quebramos nossos ossos em função dela.28
Stalin, de fato, fez tudo o que era possível para transformar a ideia da luta de classes
em força dominante na política, ideologia, cultura e na vida comum. Era como se
não pudesse descansar caso não ouvisse as convulsões das vítimas de tal ideia.
Depois da guerra, quando o mundo deu sensível virada para a esquerda, a impressão
foi a de que a história justificara Stalin. Muitos acharam que o arado de ferro do
socialismo ia começar de novo a revolver o solo. As pessoas não pensavam ainda
globalmente, tampouco estavam conscientes por completo da espada de Dâmocles
nuclear suspensa sobre suas cabeças.
Os primeiros discursos pós-guerra de Stalin foram sobre a recuperação da
economia, como sempre fazendo da indústria pesada a principal entre as
prioridades, e sobre a retomada da agricultura, cuja condição era extremamente
precária. A safra do primeiro ano depois da guerra foi ruim. A interrupção da
importação de grãos dos EUA, acoplada com a baixa produção da parte europeia do
país, criou uma situação crítica. A abolição dos cartões de racionamento foi adiada
até o outono de 1947. As safras também não tinham sido boas em 1943, mas,
naquela ocasião, os americanos abasteciam o front, ao passo que a população civil,
como sempre, aguentava estoicamente o sacrifício. Em abril de 1944, Beria mostrou
a Stalin um relatório de oito páginas sobre a situação em Chita, Cazaquistão. O
comissário do interior daquela república, Bogdanov, declarou que a má colheita de
1943 causara dificuldades sérias: milhares de pessoas estavam com os abdomens
inchados de fome e muitas morriam, particularmente os exilados políticos. O relato
de Bogdanov descreveu histórias de suicídios, de camponeses se alimentando de
animais mortos e lixo, comendo gatos e cães, e até mesmo de camponeses de uma
fazenda coletiva esquartejando um cavalo morto para dividir entre eles algo para
comer.29 Apesar disto, naquele ano, 1.300 quilos de cereais por hectare foram
coletados pelo estado. Nem o rádio nem a imprensa escrita mencionavam a fome, e
entre a pilha de documentos que consultei, não existe um só que indique qualquer
comentário de Stalin sobre atitude construtiva em relação às agruras enfrentadas
pelo país.
O secretário-geral, aparentemente, não mantinha um diário e era cuidadoso com
o que escrevia. Muitos documentos foram destruídos por ordens suas,30 como, por
exemplo, nas oportunidades em que relatórios foram feitos sobre a execução de
ordens que expediu à NKVD. Por outro lado, restaram muitos documentos no
arquivo pessoal de Stalin. Existe a cópia de um deles, datado de 1923 e intitulado
“Detalhes Biográficos de I.V. Stalin”, localizado no Comissariado das
Nacionalidades. Não há indicações sobre o autor e o objetivo do documento, mas
parece provável que foi preparado sob a orientação de Stalin.
A pasta oferece um relato minucioso dos “serviços revolucionários” de Stalin
antes da Revolução de Outubro de 1917:
Durante os dias de outubro, I.V. Stalin foi um de um grupo de cinco (um coletivo) cuja tarefa era
proporcionar liderança política ao levante. [...] Da mesma forma que seu trabalho pré-revolucionário, a obra
revolucionária atual de Stalin é de enorme importância. Distinguindo-se por sua incansável energia, mente
excepcional e privilegiada e determinação implacável, o Camarada Stalin é uma das molas principais,
despercebidas e realmente de aço da revolução, a qual, com sua força invencível, está transformando a
revolução russa num Outubro de âmbito mundial. Antigo seguidor de Lenin, ele absorveu melhor do que
ninguém os métodos e ideias do líder sobre a atividade prática.
Graças a isto, ele hoje secunda brilhantemente Lenin na esfera não só da atividade partidária como também
na construção do Estado.31
Seria muito improvável que um documento destes fosse escrito enquanto Lenin
vivia. Quem foi o autor? O que tem a ver “a mola realmente de aço da revolução”
com “detalhes biográficos”? Será que Stalin, percebendo que Lenin não voltaria a
empunhar o leme político, já se preparava em 1923 para assumir o poder?
A.A. Yepishev, que foi vice-ministro da segurança estatal, disseme que Stalin
mantinha um caderno de exercícios escolares, com capa de oleado preto, no qual
fazia anotações ocasionais e que, por determinado período de tempo, guardou cartas
de Zinoviev, Kamenev e mesmo de Trotsky. Fracassaram todos os esforços para
localizar quer o caderno de capa negra quer as cartas, e Yepishev não revelou sua
fonte. Somente Beria, Poskrebyshev e Vlasik tinham acesso direto a Stalin, e só eles
poderiam saber sobre tais anotações, mas os dois últimos foram implicados por
Beria pouco antes da morte de Stalin. Só Beria permaneceu ao lado do líder e,
quando os médicos foram finalmente chamados para atender Stalin, já em estado de
coma e depois de um intervalo de 12 a14 horas, o auxiliar percebeu que tudo
acabara também para ele. Deixando Khruschev, Malenkov e outros membros do
Politburo ao lado do moribundo Stalin na dacha, Beria correu para o Kremlin onde,
é bastante razoável que se suponha, esvaziou o cofre, removendo as anotações
pessoais do chefe e com elas, presume-se, o caderno de capa preta.
Beria deve ter notado que a atitude de Stalin em relação a ele esfriara
consideravelmente no último ano, ou nos últimos 18 meses. De sua parte, o
secretário-geral deve também ter percebido as intenções de Beria. Será que Stalin
deixou instruções ou uma espécie de última vontade que seu subserviente entourage
cumpriu ao pé da letra? Beria tinha razões para correr. Somente ele tinha permissão
para entrar no escritório de Stalin, e, é claro, os seguranças de Stalin estavam a
postos, porém, quando o cofre foi oficialmente aberto, descobriu-se que quase não
continha nada, apenas a carteira de filiação do líder ao partido e alguns documentos
insignificantes. Ao destruir o caderno de anotações de Stalin, se é que de fato estava
lá, Beria abriria o caminho para sua própria ascensão. Talvez a verdade nunca seja
conhecida, mas Yepishev estava convencido de que Beria limpou o cofre antes que
os outros chegassem.
Stalin tinha o hábito de arquivar documentos que lhe interessavam pessoalmente
como, por exemplo, o da última vontade de Hitler, no qual o Führer fala em dar
um fim à sua “vida terrena”, como se esperando chegar a um lugar melhor.32 Ou
uma carta endereçada a Stalin, de 27 de outubro de 1935, da classe de formandos
do Instituto dos Professores Vermelhos, queixando-se de que estavam sendo
despejados da hospedaria, enquanto “elementos hostis à classe, como a princesa
Bagration,* recebem permissão para permanecer”.33 Outro arquivo era referente à
dissolução da Sociedade dos Ex-Prisioneiros e Exilados. Ya. Peters e P. Pospelov
escreveram que a “Sociedade consiste primordialmente em SR e mencheviques com
estreitas conexões. De quarenta a cinquenta membros da Sociedade foram presos
depois da morte de Kirov”. Um de seus afiliados teria dito “que deveriam defender
os membros que tinham sido presos pelo regime soviético”.34 Quando Stalin viu o
relatório, o destino da Sociedade ficou decidido.
Existia uma carta de um amigo da filha de Stalin, A.Ya. Kapler, sentenciado a
dez anos de prisão, solicitando ser enviado para o front. Havia um bilhete de Beria
contendo informação dada pelo general iugoslavo Stefanovic sobre o filho de Stalin,
Yakov, com o qual partilhara o cativeiro por determinado tempo; um relatório de
Kruglov a respeito da transferência do Arquivo Russo de Relações Exteriores de
Praga;35 e muitas outras cartas mandadas a Stalin que mostram quão diligentes
foram os auxiliares, como Zhdanov e Suslov, no trabalho para a garantia de que o
povo em geral recebesse apenas o mínimo absoluto de informação sobre seu
governo.
Um dos mistérios indecifrados da história, e que provavelmente permanecerá
assim, é a morte da esposa de Stalin. Nenhuma das bem conhecidas explicações,
oficiais e oficiosas, convence de forma alguma. Em ligação com o fato, um dos
documentos do arquivo merece menção. Escrito em tinta carmim em diversas
páginas de um caderno de exercícios escolares e datado de 22 de outubro de 1935,
trata-se de um apelo a Kalinin por clemência para Alexandra Gavrilovna
Korchagina, prisioneira no campo de concentração de Solovki. Deduz-se do
documento que Korchagina, filiada ao partido, trabalhara por cinco anos na casa de
Stalin como empregada doméstica. Ela fora detida quando um prisioneiro de nome
Sinedobov, também ex-membro da equipe do Kremlin, testemunhou que ela havia
dito que Stalin atirara na esposa. Korchagina nega o fato em sua carta, de modo
bastante inconvincente, e cita a versão oficial, ou seja, que sua patroa morrera de
ataque do coração. Escreve que Burkov, Sinedobov (ambos sem iniciais), residentes
na casa juntamente com Korchagina, o guarda de segurança Ya.K. Glome e um
secretário da célula do partido, cujo nome não foi citado, todos se admiraram com o
fato de a causa da morte não ter sido mencionada pela imprensa. Parece que muitas
pessoas questionavam a explicação oficial de um mal súbito, especialmente, como
Korchagina escreve, porque Stalin acompanhou sua esposa de volta ao Kremlin
naquela noite. Essas conversas foram do conhecimento de Stalin e causaram algum
alarme, pois a decisão de afastar Korchagina deve ter sido tomada para silenciar
qualquer pessoa que pudesse saber alguma coisa.
Korchagina relata que o investigador, um tal de Kogan, a intimidou durante o
interrogatório, fazendo com que confessasse, após o que foi deportada sem
julgamento para Solovki. Anexado à carta está o julgamento, assinado por Lutsky,
funcionário da NKVD, especificando que Korchagina envolvera-se com “grupos
terroristas contrarrevolucionários na biblioteca do governo, na equipe de segurança
do Kremlin e noutros lugares”. Kalinin escreveu na pasta: “Recusado.”36
Outro mistério que persiste é o destino do filho mais velho de Stalin. Existe uma
variedade de evidências que sinalizam a organização de diversas tentativas para que
escapasse do cativeiro alemão, inclusive o depoimento de Dolores Ibarruri já citado.
Os alemães, no entanto, passaram a falar cada vez menos sobre Yakov e acabaram
silenciando por completo. Stalin, provavelmente, não estava inteiramente seguro
sobre a sorte do filho até que recebeu um relatório, datado de 5 de março de 1945 e
assinado por Beria, que dizia:
No final de janeiro deste ano, um grupo de oficiais iugoslavos foi libertado do campo de concentração
alemão pelo primeiro front bielorrusso. Entre eles estava o miliciano iugoslavo general Stefanovic, que fez o
seguinte relato:
“O primeiro-tenente Yakov Djugashvili e o capitão Robert Blum, filho do ex-primeiro-ministro francês,
dividiam uma cela no campo em Lübeck. Stefanovic esteve com Djugashvili várias vezes oferecendo ajuda
material, que foi declinada por ele ser independente e orgulhoso. Por recusar perfilar-se diante de oficiais
alemães, foi posto na solitária. Djugashvili disse que os boatos divulgados sobre ele pela imprensa germânica
eram falsos. Estava convicto da vitória soviética. Deu-me seu endereço em Moscou: Rua Granovsky, nº 3,
apartamento 84.”37
Quando os militares informaram a Stalin, logo depois da guerra, que o governo
tcheco desejava presentear a URSS com o Arquivo Russo de Relações Exteriores de
Praga, ele deu ordem para que o arquivo fosse recebido e os documentos
examinados. Em 3 de janeiro de 1946, Kruglov reportou que nove vagões repletos
de documentos haviam sido despachados para Moscou, inclusive os arquivos dos
governos de Denikin e Petliura da guerra civil, bem como documentos pessoais dos
generais Alexeyev e Brusilov e dos políticos Savinkov, Milyukov, Chernov e muitas
outras figuras pré-revolucionárias que deixaram a Rússia durante ou logo depois da
guerra civil.38 O trabalho de revisão de todo este material foi levado a efeito por
especialistas da Academia de Ciências, entre os quais estavam I. Nikitinsky, S.
Bogoyavlensky, I. Mints e S. Sutotsky, mas eles estavam sob controle de
funcionários dos altos escalões da NKVD, que também se reportavam diretamente a
Stalin, e que seriam responsáveis pelo futuro dos arquivos. Alguns documentos
permaneceram por longo tempo nos armários e cofres de Stalin.
Entre estes havia um manuscrito de A.A. Brusilov, ex-general do Exército
czarista que ficara famoso na Primeira Guerra Mundial por sua penetração no front
sudoeste. Ele servira no Exército Vermelho em 1920 como um inspetor de cavalaria
e, em 1924, fora comissionado para serviço ativo especial. O manuscrito, intitulado
“Minhas reminiscências”, foi escrito enquanto Brusilov era submetido a tratamento
médico em Carlsbad, em 1925, e ele faleceu no ano seguinte. Num bilhete apenso
ao manuscrito, escreveu:
Todos entenderão que eu não podia escrever coisa alguma na URSS. Deixo estas anotações aos cuidados de
amigos no exterior e peço-lhes que não as publiquem antes de minha morte. Se as pessoas da Europa
quiserem salvar seu modo de vida, a família, suas pátrias amadas, deixem que conheçam meus erros e não os
repitam. Nossos partidos políticos discutiram e lutaram até que destruíram a Rússia!39
Stalin tinha que saber sobre tudo. Até os formulários recebidos de volta a respeito
do censo de 1930, exibindo os nomes das famílias dos funcionários mais
categorizados, tinham que lhe ser mostrados. Só ele sabia por que ticou certos
nomes com fortes sinais em vermelho:
Beria, Nina Teimuradovna; georgiana, cientista, filho Sergei de 14 anos. Kaganovich, Maria Markovna; filha
Maya e filho Yuri.Voroshilova, Yekaterina Davidovna. Zhemchuzhina, Polina Semenovna; e as filhas
Svetlana Vyacheslavovna, Rita Aronovna Zhemchuzhina. Andreyeva – Dora Moiseyevna Khazan; filha
Natalya Andreyevna.
Vendo tramas e inimigos potenciais por todos os lados, Stalin assegurou-se de que
havia sempre “munição” em seu arsenal para repelir qualquer ataque. Durante toda
a vida esperou por um atentado contra sua existência, o que jamais aconteceu.
Perfeitamente ciente do medo patológico do chefe, seu círculo mais íntimo também
se mostrou patologicamente receoso de despertar qualquer suspeita.
Nota
* A família Bragation era da nobreza georgiana. A esposa do grão-duque Vladimir Kirillovich, um dos
pretendentes ao trono imperial russo, é uma princesa Bragation que deixou a URSS em 1935.
[52]
Um acesso de violência
Fiquei literalmente arrasada com o decreto do Comitê Central sobre as revistas Zvezda e Leningrad. [...]
Como pôde isto acontecer, quando todos gostavam tanto de Zoshchenko? Gorky, Tikhonov, [Marietta]
Shaginyan, A.A. Kuznetsov, Maisky, todos eles diziam que o amavam. Nunca houve a questão de ele
abandonar Leningrado [...] Trabalhava num livro sobre partisans ao longo de todo o verão de 44. Não há
vestígio de injúria ou malevolência em seus livros.
Altamente neurótico [...] e tem estranhas obsessões. Temia por demais enlouquecer, como Gogol. Começou
um tratamento pela autoanálise e teve certo sucesso. Sua doença provocou nele o sentimento da sátira, e aí
está o problema. Mas ele é incapaz de se submeter à vontade dos outros, não consegue agir sob as ordens de
ninguém.42
Evidentemente, Stalin leu a carta, pois ela exibe suas marcas em lápis vermelho, e
deve ter percebido que a esposa não era a única pessoa que rejeitava sua opinião
sobre Zoshchenko. Contudo, surpreendentemente, afora a expulsão do sindicato
dos escritores – punição severa em si mesma, de vez que o sindicato proporcionava o
acesso de um escritor à publicação, ou seja, ao seu ganha-pão – Stalin não foi além
do terror psicológico sobre Zoshchenko e sua família.
Dois anos depois do lançamento da campanha ideológica em Leningrado, Stalin
deu-lhe continuidade com um violento ataque político e punitivo, que muitos viram
como primeiro ato da reencenação da repressão em massa dos anos 1930. Em
meados de fevereiro de 1949, Malenkov foi instruído por Stalin e enviado a
Leningrado. O pretexto da missão foi uma alegada inadequação de procedimentos
durante a conferência do partido na cidade. Acontecera uma situação típica: a
despeito de terem recebido votos contrários, alguns líderes partidários provinciais,
como P.S. Popkov, G.F. Badaev, Ya.F. Kapustin e P.G. Lazutin, foram declarados
eleitos por unanimidade pelo presidente da conferência A.Ya. Tikhonov. Um dos
membros do comitê eleitoral, por causa disto, escreveu uma carta anônima ao
Comitê Central, motivando uma ríspida resposta de Stalin, ele mesmo um mestre
do passado na manipulação de eleições, como ocorreu, por exemplo, em 1934, no
XVII Congresso do partido. Disse a Malenkov que “têm sido muitos os sinais de
perigo a respeito da liderança de Leningrado para que não reajamos”. Malenkov
deveria “ir para lá e dar uma boa olhada no que se passava. O Camarada Beria tem
mais informações”. Malenkov tomou o trem naquela mesma noite.
Os “sinais” partidos de Leningrado alegavam que, com a conivência do secretário
do Comitê Central, A.A. Kuznetsov, o chefe do partido local não estava levando em
conta as autoridades centrais do partido. O principal fato era que, em janeiro de
1948, fora organizado um mercado por atacado em Leningrado sem a permissão do
centro. Numa sessão conjunta do birô regional do partido e do comitê partidário da
cidade, Malenkov, pupilo diligente de Stalin que era, enumerou um “erro” atrás do
outro numa fieira de acusações. A plateia ouvia em silêncio depressivo, enquanto
Malenkov, crescentemente inflamado, disparava incriminações. Descreveu o
mercado por atacado como iniciativa antipartidária, inspirada por um grupo em
oposição à organização local do Comitê Central. O pior estava por vir. Seguindo a
linha estabelecida em Moscou, Malenkov citou declarações infelizes de P.S. Popkov,
um líder local, dizendo que elas representavam a tentativa de criar um Partido
Comunista da Rússia com objetivos de longo alcance. Todos no salão perceberam
que o discurso de Malenkov era indicação de maus augúrios.
Contudo, eles não sabiam que seu ex-secretário Kuznetsov, recentemente
promovido a secretário do Comitê Central, já fora destituído da função havia uma
semana. Naturalmente, toda a liderança local perdeu os cargos depois do
pronunciamento de Malenkov, mas aquilo foi só o começo. Um “caso” foi
rapidamente fabricado contra cada funcionário suspeito, e efetuadas prisões.
“Espiões” foram identificados, por exemplo Kapustin, bem como “degenerados”,
como Popkov, e “inspiradores de linha antipartidária”, como Kuznetsov.
Em março de 1949, N.A. Voznesensky, outro comunista de Leningrado, foi
afastado do Politburo. Organizador fundamental da economia de tempo de guerra,
acadêmico, sem papas na língua e homem de caráter impoluto, Voznesensky passara
a ser considerado muito perigoso para Stalin e, com a ajuda de Beria, um processo
gigantesco e totalmente sem fundamento foi engendrado contra ele por Kruglov,
Abakumov e Goglidze. Foram procedidos interrogatórios com o único propósito de
arrancar uma confissão de atividade antipartidária e antiestado. Depois de lançar a
enorme provocação, Malenkov podia esfregar as mãos satisfeito: a vontade de Stalin
fora concretizada, ele fizera um trabalho completo. Tal como seu amigo íntimo
Beria, Malenkov não gostava de Voznesensky e de Kuznetsov. Estava em curso a
caça às bruxas e todos esperaram o pior, especialmente quando ex-funcionários de
Leningrado começaram a ser apanhados em outras repúblicas, para onde haviam
sido transferidos a fim de desempenharem diversas funções.
Por que Stalin desencadeou esta ação criminosa? Por que na véspera de seu
septuagésimo aniversário? Por que dava seguimento à campanha ideológica de
agosto de 1946 com outra mais aterradora e punitiva, dois anos e meio mais tarde?
Só ele sabia a resposta correta para tais perguntas, porém, com base em documentos,
podemos deduzir o seguinte.
Stalin não tolerava o pensamento livre e independente. Voznesensky e Kuznetsov
o haviam glorificado, tanto verbalmente como por escrito, mas o fato de se
mostrarem mais independentes que os outros deixava Stalin em guarda contra eles.
Por algum tempo, ignorou as calúnias levantadas por Malenkov e Beria e, na
verdade, fez até referências públicas elogiosas aos dois leningradenses, e é mesmo
possível que eles tenham se considerado prováveis sucessores, em vista da avançada
idade do líder. Mas isto não era aceito pelos membros da camarilha stalinista de
Moscou. Em sucessivos relatórios secretos a Stalin, realçaram que, antes da guerra,
Voznesensky não descobrira um só “inimigo” no Gosplan e talvez os tivesse
protegido, enquanto Beria queixava-se de que, na ocasião em que ficara encarregado
das indústrias química e metalúrgica como presidente do Gosplan, Voznesensky
rebaixara patentemente as normas de produção daqueles setores, ao passo que ele,
Beria, elevara as da indústria madeireira.
Na ocasião, Stalin não deu atenção a tudo aquilo. No entanto, não ficou
satisfeito com o discurso que Voznesensky fez no Politburo, apresentando uma série
de argumentos convincentes contra a imposição de novas taxas sobre os fazendeiros
coletivos. Não lhe agradou também o fato de Kuznetsov, responsável pelos quadros
do Comitê Central, ter expressado sua intenção de exercer controle mais cerrado
sobre o comissariado das Questões Internas e Segurança Estatal. Chegou igualmente
ao conhecimento de Stalin que Kuznetsov dissera que a investigação sobre o caso
Kirov não revelara os verdadeiros inspiradores do crime.
Para Stalin, os principais atributos de qualquer funcionário, não importasse quão
valioso ou essencial, eram a confiança que infundiam e a lealdade a ele. Já então,
não só duvidava dos obstinados leningradenses, mas os via como potenciais
inimigos. De acordo com S.I. Semin, que era gerente departamental no Gosplan,
Voznesensky empenhou extraordinária energia e cuidadosa preparação no
planejamento da economia nacional. Malgrado o caráter severamente administrativo
do sistema econômico, Voznesensky procurara sempre que possível levar os
trabalhadores para o processo de planejamento e administração, como também
estabelecer objetivos para cada empreitada. Jamais gozara de dispensas ou férias. Até
então, fora provavelmente o maior economista da liderança soviética depois de
Bukharin.
Embora, antes de sua prisão, Voznesensky e outros leningradenses tivessem
enviado uma nota a Stalin declarando total inocência, o líder não hesitou. De início,
é verdade, desejou transferir Voznesensky para a chefia do Instituto Marx-Engels-
Lenin, mas depois mudou de ideia, decidindo, em vez disto, deixar que todo o
grupo de Leningrado experimentasse junto a taça de fel. O julgamento, que teve
lugar em setembro de 1950 na Casa dos Oficiais, no Bulevar Liteiny, em
Leningrado, foi conduzido de acordo com as ordens de Stalin. Quase duzentas
pessoas foram implicadas, inclusive N.A. Voznesensky, A.A. Kuznetsov, P.S.
Popkov, Ya.F. Kapustin, M.I. Rodionov, todos os quais foram mortos, sorte pouco
depois partilhada por G.F. Badaev, I.S. Kharitonov, P.I. Kabatkin, P.I. Levin, M.V.
Basov, A.D. Verbitsky, N.V. Solovyov, A.I. Burlin, V.I. Ivanov, M.N. Nikitin, V.P.
Galkin, M.I. Safonov, P.A. Chursin e A.T. Bondarenko.43
O tribunal não ouviu declarações de arrependimento de Voznesensky ou
Kuznetsov, tendo o último declarado: “Fui um bolchevique e continuarei sendo;
qualquer que seja a sentença que eu receba, a história nos inocentará.” Em abril de
1954, a Corte Suprema da URSS, sob A.A. Volin, invalidou o processo, citando a
seguinte prova de setembro de 1950:
O meio pelo qual tais confissões foram extraídas foi revelado, em 29 de janeiro de
1954, por Turko, enquanto ainda cumpria a pena:
Não cometi crimes nem me considerei culpado, tampouco o faço agora. Produzi meu depoimento depois de
ser sistematicamente espancado por negar minha culpa. O investigador Putintsev começou o espancamento
no interrogatório [...] Batia-me na cabeça, no rosto e nas pernas. De certa feita, atingiu-me com tal força que
o sangue saiu-me pelos ouvidos. Depois das surras, ele me enviou para o confinamento solitário, ameaçou
matar minha esposa e filhos e disse que me daria vinte anos se não confessasse. Como resultado, assinei
qualquer coisa que quisessem.45
* Sigla em russo da Glavnoye Upravleniye Ispravitelno-trudovykh Lagerey, repartição central dos campos de
trabalho corretivo. [N.T.]
[53]
O líder envelhece
O Camarada Stalin, que esteve envolvido por muitos anos com o estudo e o cultivo da cultura cítrica na
costa do mar Negro, demonstrou ser um inovador científico. Outros exemplos incluem a introdução de
árvores de eucalipto no litoral daquele mar e dos melões na região de Moscou.
Certa vez, já tarde da noite, fui convocado com meu vice para um encontro com Beria. Com os olhos
brilhando ameaçadoramente por trás do pincenê, ele perguntou com disfarçada calma a respeito de uma
construção especial: “Por que vocês não informaram que a oficina está pronta?”
Respondi: “Eles ainda não terminaram com a instalação do equipamento.” “Quem não terminou?” E, sem
esperar pela resposta, disparou para um assistente: “Ligue-me com o gerente do projeto.”
Três ou quatro minutos mais tarde, uma voz distante foi ouvida ao telefone diretamente da bacia do Donets.
Beria, de pronto, vociferou: “Alô, aqui é Beria. Por que o trabalho não terminou a tempo? A instalação tem
que estar completa às oito horas da manhã! Boa noite!” Pode-se bem imaginar que tipo de boa noite o
gerente teve! Beria disse então ao assistente para colocar na linha o chefe da administração, a quem disse: “Já
determinei ao fulano (Zademidko não conseguiu lembrar-se do nome) para terminar o trabalho às oito da
manhã. Se ele não completar, prenda-o no seu porão. Adeus!”
Meu vice e eu evidentemente conhecíamos os métodos de trabalho de Beria, mas ao ouvi-lo distribuindo
ordens frias e sucintas nossa pele ficou arrepiada. Era assim que as coisas funcionavam naquele tempo...
Foi proposto começar com relatórios de informações de todos os partidos comunistas participantes. Seria
então trabalhada uma pauta. Vamos sugerir: 1) a situação internacional, apresentação feita por nós, 2)
coordenação das atividades dos partidos. O resultado deve ser um centro coordenador com sede em Varsóvia.
Creio que ênfase especial deve ser dada ao voluntariado nesta questão. Aguardo suas instruções.64
Stalin deu sua aprovação. Em consequência do encontro de Szklarska, e quatro anos
após a dissolução do Comintern, veio à luz, como Informburo, o Birô de
Informação dos Partidos Comunistas e Trabalhistas, o Cominform, no linguajar
ocidental. Segundo Zhdanov, os participantes mais ativos e positivos foram os
iugoslavos. Pelo conteúdo, propósito e abordagem construtiva, Zhdanov classificou
como melhores relatórios os do iugoslavo Eduard Kardelj e o do tcheco Rudolf
Slansky.65 No decorrer de um ano, Zhdanov iria considerar Kardelj um espião
imperialista, em novembro de 1949; o Cominform denunciaria os comunistas
iugoslavos como assassinos e espiões; e, em 1951, Slansky seria julgado e executado
como líder de uma trama sionista para derrubar o estado tcheco.
O discurso de Zhdanov sobre a situação internacional abordou a tese que iria,
praticamente, transformar-se na pedra de toque da propaganda soviética, isto é, a
divisão do mundo em dois campos opostos, uma resposta, com efeito, à Doutrina
Truman. O Plano Marshall foi descrito como “um programa para a escravização da
Europa”. Zhdanov foi especialmente sarcástico em suas referências aos sociais-
democratas, refletindo o ódio de Stalin e a desconfiança responsável pelo
enfraquecimento não só das forças progressistas no Ocidente, como também do
movimento em prol de relações pacíficas Leste-Oeste.
O encontro seguinte era planejado para Belgrado, mas os acontecimentos
tornaram-no impossível. Os povos da Iugoslávia haviam contribuído de maneira
importante para a derrota do fascismo, e o primeiro tratado de amizade, ajuda
mútua e colaboração de pós-guerra com um novo país socialista foi o assinado por
Tito, quando visitou Moscou, em abril de 1945. Stalin encontrou-se com ele
diversas vezes e os dois se deram muito bem. Foi acertado que a União Soviética
repassaria à Iugoslávia tecnologia militar e armamento para doze divisões de
infantaria e duas aeromóveis.66 Os dois países pareciam ter começado suas relações
de maneira auspiciosa. Um grande contingente de especialistas militares soviéticos
trabalhava na Iugoslávia, enquanto milhares de militares iugoslavos recebiam
instrução na URSS. De repente, tudo começou a dar errado.
Uma série de questões foi debatida sem consulta prévia a Stalin: por exemplo,
um tratado de amizade búlgaro-iugoslavo, o envio de um regimento iugoslavo
aerotransportado para a Albânia, e a declaração do líder búlgaro Dimitrov, numa
entrevista coletiva, de que uma federação de estados socialistas europeus era uma
possibilidade. Stalin ficou furioso. Ditador todo-poderoso em casa, acreditava ser
também o árbitro supremo da vida dos Aliados.
Um encontro de delegações soviética, búlgara e iugoslava teve lugar, por sugestão
de Stalin, em Moscou, em 10 de fevereiro de 1949. As missões foram
respectivamente chefiadas por Stalin, Dimitrov e Kardelj; o lado soviético incluía
Molotov, Malenkov, Zhdanov e Suslov; o búlgaro, T. Kostov e V. Kolarov; e o
iugoslavo, Milovan Djilas e V. Bokaric.
Stalin expressou sua insatisfação de maneira claramente irritada, admoestando
iugoslavos e búlgaros por “seguirem uma linha particular de política externa”. Os
iugoslavos e búlgaros estavam protestando que não havia motivo para tais
imprecações e que as recriminações eram de natureza pessoal, quando, subitamente,
Stalin declarou necessária a criação de uma federação da Bulgária com a Iugoslávia.
Acostumado a ter suas manifestações tomadas como ordens, Stalin sentiu então um
certo grau de resistência. Tanto Kardelj como Dimitrov, sem repudiar em princípio
a ideia da federação, argumentaram que a situação ainda não estava madura para
uma iniciativa como aquela. Kardelj, além do mais, disse que não podia dar uma
resposta definitiva até que a liderança política de seu país manifestasse sua opinião.
Aquela era a primeira resistência séria que Stalin experimentava em anos e, ademais,
vinha da parte de comunistas. Ele não estava preparado para recebê-la. O fluxo da
raiva ensandecida precisava de uma válvula de escape.
Djilas mais tarde recordou em suas bem conhecidas memórias que Stalin passou
a atacar Dimitrov e Kardelj por ocultarem de Moscou seus assuntos e, além do mais,
de o fazerem por princípio. “Fomos embora depois de três ou quatro dias. Levaram-
nos ao amanhecer para o aeroporto de Vnukovo, empurraram-nos para dentro de
um avião e nos despacharam para casa sem-cerimônia.”67 A reunião dificilmente
poderia ser classificada como diálogo. Stalin comportou-se como se os visitantes
fossem líderes partidários de uma de suas próprias repúblicas. As sanções não se
fizeram esperar. Os assessores militares soviéticos foram chamados de volta da
Iugoslávia, e uma carta áspera, assinada por Stalin e Molotov, enviada aos líderes em
Belgrado. Tito respondeu com ponderação, rechaçando as acusações de ações
inamistosas e de trotskysmo, e acrescentando: “Por mais que admiremos a URSS
como a terra do socialismo, nenhum de nós pode amar menos nossos próprios
países, que também constroem o socialismo.”
A réplica de Stalin foi mandada em maio sob forma de uma carta de 25 páginas.
Em vez da argumentação fria e composta, que era de se esperar do estilo normal de
Stalin, Yepishev recordou que a reação de Stalin foi grosseira e impulsiva, sem uma
pausa para análise da realidade da situação. A gente de Beria reunira uma coleção de
“fatos” que demonstravam “desvios” e “traição” de Tito e de toda a liderança
iugoslava. Stalin ainda não entendera que havia sofrido sua primeira derrota de pós-
guerra.
Decidiu arrastar o Cominform para o conflito. Duas notas foram enviadas de
Moscou para Belgrado convidando os iugoslavos a mandarem delegação para um
encontro do Cominform em Bucarest. Os iugoslavos responderam com uma firme e
polida recusa, argumentando que aquilo era uma interferência em seus assuntos
internos. Contudo, expressaram o desejo de normalizar as relações. Stalin decidiu
prosseguir com o encontro sem os “acusados”, mas o racha já era um fait accompli.
Antes da reunião, em 15 de junho de 1948, Stalin leu o relatório de Zhdanov que
seria apresentado em Bucarest, intitulado “Sobre a posição do partido comunista da
Iugoslávia”, um texto já do conhecimento de Malenkov e Suslov. Os três soviéticos
foram despachados para Bucarest levando a declaração com emendas de próprio
punho de Stalin. O discurso de Zhdanov continha trechos como este:
Tito, Kardelj, Djilas e Rankovic devem ser inteiramente responsabilizados pela presente situação. Eles
buscaram seus métodos no arsenal do trotskysmo. Sua política para a cidade e o campo está errada. Um
regime vergonhoso e de puro estilo terrorista turco é intolerável num partido comunista [...] Há que se ver
livre de um regime desses. O partido comunista da Iugoslávia tem o elevado dever de cumprir a honrosa
tarefa de acabar com ele.68
Sou grato ao presidente Truman pelo convite para ir a Washington. Uma viagem à capital americana é um
desejo que acalento há muito tempo, que mencionei ao presidente Roosevelt em Yalta e ao presidente
Truman em Potsdam. Infelizmente, neste momento, estou impossibilitado de concretizar meu desejo de
viajar a qualquer distância considerável, em especial por mar ou pelo ar, pois os médicos proíbem
terminantemente que o faça.70
César não quis celebrar seu triunfo por sobre o sofrimento de seu país.
Plutarco
[55]
Anomalia histórica
S talin, com frequência, pensou em ter sua Breve biografia substituída por um
estudo monumental. Diversos sinais indicam-no, inclusive suas ordens para
que os arquivos fossem “pesquisados”, seus comentários ocasionais com
Zhdanov e Poskrebyshev, e suas constantes solicitações a G.F. Alexandrov, M.B.
Mitin e P.N. Pospelov, compiladores de suas biografias oficiais, para que dessem
realce à historiografia partidária e ao “papel dos pupilos de Lenin”. Cada vez mais,
então, se recordava do passado, voltando em diversas ocasiões à virada do século, à
luta pós-Outubro, ao nome das pessoas cujas vidas havia destruído. Por vezes, era
levado ao passado por parentes de ex-camaradas. Em determinadas ocasiões, depois
de despachos de rotina, Beria mostrava-lhe uma lista de cartas pessoais de parentes
de “inimigos do povo” executados ou exilados. Stalin, normalmente, lia por alto a
lista e a devolvia sem uma palavra. Beria olhava para o mestre como quem tinha
entendido, recolhia os papéis e se retirava.
Noutras oportunidades, ele solicitava informações a Beria sobre um determinado
suplicante. Por exemplo, existe carta de uma Jadwiga Iosifovna, parente de Felix
Dzerzhinsky, o fundador da Cheka, indagando sobre sua mãe, Jadwiga
Genrikhovna Dzerzhinskaya, que fora condenada pela Corte Especial e que
definhava havia anos em campos de Karaganda. A filha escreveu que sua mãe “se
encontrava muito doente, acometida de tuberculose, escorbuto e brucelose. Estava
em condições muito precárias”.1 Caso semelhante foi o da filha de Radek, Sofia, que
escreveu a Stalin dizendo que um ano depois que seu pai fora condenado, em 30 de
janeiro de 1937, ela e sua mãe tinham sido exiladas para Astrakhan por cinco anos.
“Em Astrakhan, minha mãe foi presa de novo e sentenciada a oito anos nos campos
de Temnikov [no norte] onde morreu.” Em novembro de 1941, Sofia foi exilada de
Astrakhan para o Cazaquistão. Seu exílio terminou em junho de 1942. Continuou
ela: “Também sou um ser humano: se sou filha de um inimigo do povo isto
significa também que sou inimiga? Eu tinha 17 anos quando meu pai foi
condenado, em 1937, e, desde então, sou rotulada de inimiga. Sou formada, mas
não tenho onde aplicar meus conhecimentos em Chelkar. Ainda não possuo
passaporte interno. O chefe da NKVD em Chelkar, o Camarada Ivanov, não
responde aos meus requerimentos. Ajude-me a resgatar os crimes de meu pai!”2
Stalin deixava que Beria administrasse estes problemas da forma que lhe parecesse
conveniente.
Em menos de três décadas, ele elevara o país ao status de grande potência e,
mesmo assim, ainda havia tanta gente descontente. O ministro do Interior reportara
que, em abril de 1949, existiam 180 mil internos em campos especiais e pedira
permissão para aumentar a capacidade de tais campos em 70 mil, para chegar ao
quarto de milhão.3 Tratava-se de uma categoria especial de prisioneiros, contudo,
Beria continuava lhe dizendo que não era possível satisfazer a todas as demandas dos
ministérios por mão de obra proveniente desses campos.
Como se encaixava a ideologia marxista-leninista neste quadro? Por mais
remotos que fossem em relação às preocupações do século XX, muitos de seus
dogmas foram tomados como verdades pelo regime soviético desde o momento de
sua formulação. Nos anos 1920, era dito com frequência que “a classe operária não
pode cometer erros”, ou que “o partido não pode cometer enganos”, mas ambos
cometiam.
Muitos de tais erros foram apontados bem cedo. Em novembro de 1917, no seu
jornal Novaya Zhizn (“Vida Nova”), Gorki publicou um artigo intitulado “Para a
atenção dos trabalhadores”, no qual escreveu:
Tendo forçado o proletariado a concordar com a destruição da liberdade de imprensa, Lenin e seus adeptos
tornaram legal para os inimigos da democracia calar a boca dos outros, ameaçando com a fome e a
perseguição quem não concordasse com o despotismo de Lenin e Trotsky; esses “líderes” estão justificando
um despotismo de autoridade do tipo contra o qual os melhores elementos do país vêm lutando com
veemência por tanto tempo.4
No interesse da causa, devo perturbá-lo para solicitar ajuda e aconselhamento. Trabalhos bastante bons
foram escritos por Korneichuk, Svetlov, Levin, Yanovsky, Leonov, Avdeyenko. Alguns velhos mestres do
“silêncio”, como Falko, Tikhonov, Babel e Olesha, começaram também a dizer alguma coisa. Novos nomes
apareceram: Orlov, Kron, Tvardovsky. No geral, entretanto, o atraso na literatura não foi compensado. A
crítica não ajuda. Um escritor (Vinogradov) falou sobre suicídio depois de ser cruelmente atacado. E o crítico
em questão (Yermilov) disse em resposta: “Se pessoas como essas se envenenarem, ninguém se importará.”
Esta é a posição na literatura. O necessário agora é um slogan concreto e militante para mobilizar os
escritores. Ajude-nos, Camarada Stalin, a encontrar o slogan.8
Tendo, em meados dos anos 1930, desviado sua atenção principal do Comitê
Central para a NKVD e para o exército, Stalin, ao fim da guerra, foi
particularmente pródigo com as medalhas e ordens que conferiu aos oficiais mais
antigos daquelas armas. Beria, que foi feito marechal da União Soviética em 1945,
recebeu muitas outras altas honras militares e, em 7 de julho de 1945, Stalin
aprovou a solicitação de Beria ao ministério para promover sete chefes de polícia e
de segurança ao posto de coronel-general: V.S. Abakumov, S.N. Kruglov, I.A.
Serov, B.Z. Kobulov, V.V. Chernyshev, S.A. Goglidze e K.A. Pavlov.9 Generais da
ativa no front jamais receberam tais sinais de amor “em massa” do presidente do
comitê de defesa.
Era uma lei não escrita da ditadura que a tensão deveria ser mantida durante
todo o tempo sobre os funcionários dos altos escalões do aparato. Stalin acreditava
que a autoridade deveria inspirar não apenas respeito, mas também medo, e
introduziu regras não oficiais de conduta mesmo para o círculo mais íntimo de
camaradas em armas. Por exemplo, eles sabiam que não deveriam se reunir em
grupos de dois, três ou mais, sem sua permissão, seja em casa, em suas villas ou em
seus escritórios. As únicas exceções para tal regra eram Beria e Molotov que,
normalmente, viajavam juntos no mesmo carro para a dacha de Stalin. Se houve
encontros entre os outros membros, foi na casa de Stalin e a convite dele.
Como sistema de governo, o stalinismo baseava-se primordialmente em
relatórios recebidos das organizações, em particular das agências de polícia e de
segurança. Exemplificando, depois da guerra, Stalin interessou-se pela Academia de
Ciências. Beria reportou que corria que seu presidente ficava constantemente
doente, que sua pesquisa não tinha padrão elevado e que o trabalho dos outros
acadêmicos merecia também investigação. Stalin requisitou informações e breves
descrições de outros cientistas e, logo depois, as pastas já estavam sobre sua mesa.
Desnecessário dizer que as pastas não foram compiladas na administração da
Academia ou no comitê do partido, mas numa divisão da Segurança Estatal. Um de
tais documentos inclui as seguintes anotações:
Acadêmico Vavilov, S.I. – físico, está no auge de sua capacidade. Irmão de N.I. Vavilov, o geneticista que foi
preso em 1940 por sabotagem na agricultura, sentenciado a quinze anos e morreu na prisão de Saratov.
Acadêmico Lysenko, T.D. – não filiado ao partido, diretor do Instituto de Genética. Presidente do Instituto
de Ciência Agrícola, por duas vencedor do Prêmio Stalin. O acadêmico Lysenko não desfruta de respeito,
inclusive do presidente [da Academia] Komarov. Todos o culpam pela prisão de N.I. Vavilov.10
* Lei contra a disseminação de propaganda antissoviética, que foi largamente interpretada como inclusiva de
qualquer crítica ao sistema, falada, escrita ou mesmo insinuada.
[56]
Dogmas mumificados
Mannerheim disse que, depois de muitos anos de hostilidades, chegou a hora de uma mudança radical nas
relações entre nossos dois estados. Linhas de defesa contra a URSS são inúteis, disse ele, se não existem boas
relações. Afirmou que não quis a guerra em 1939, nem em 1940-41, e que não esperou um bom resultado,
mesmo antes de elas começarem. Expressou concordância com a colaboração na defesa do litoral, mas
defenderia ele mesmo o interior do país. Perguntou se havia tratados-padrões e respondi que o tratado com a
Tchecoslováquia poderia ser considerado como tal. Aguardo instruções.15
No dia seguinte, Zhdanov reportou de novo para Stalin que havia se encontrado
com Mannerheim:
Disse-lhe que um pacto do tipo que tínhamos com a Tchecoslováquia era “música para o futuro”, seguindo-
se ao restabelecimento de relações diplomáticas. Mannerheim disse que entendia: a Finlândia estava sob
vigilância como um país que ainda não podia ter relações de uma espécie diferente com a URSS. Ele ficou
obviamente desapontado.16
Como era de seu costume, Stalin testara Zhdanov e seu próprio julgamento das
pessoas. Algumas vezes, testava seus auxiliares por longo tempo, em certos casos,
durante a vida toda, mas jamais esquecia um erro importante. Zhdanov sempre
justificou a confiança que Stalin nele depositava, embora seja também verdade que,
se não tivesse falecido subitamente, em 1948, aos 52 anos de idade, provavelmente
seria também engolfado pelo massacre de Leningrado, que ele próprio desencadeara.
O filho, Yuri, afirma que Stalin estava esfriando a relação com seu pai, justamente
como o fez com Voznesensky, Kuznetsov e, mais tarde, também com Molotov.
Contudo, a atitude de Stalin com respeito a Zhdanov só pode ser julgada por
evidências circunstanciais.
Durante seu tempo no Comitê Central, Zhdanov demonstrou ser um severo e
implacável zelador da ideologia e da cultura. O dogmatismo foi inculcado não só
por meio da deificação do “gênio criativo do líder” como também pela instalação de
todo um sistema de proibições relativas ao pensamento: o que podia ou não ser
exibido nas telas dos cinemas, o que os produtores de teatro não podiam encenar, o
que os escritores podiam ou não escrever, os músicos, tocar, os filósofos e
historiadores, debater. Os tabus eram incontáveis. A vida cultural depois da guerra
caiu de novo no marasmo, antes de receber a chance de descongelar após o pesadelo
de 1937-38.
Naquelas condições, as ciências sociais só podiam vegetar. As explanações
primitivas da ocasião só fizeram matar a alma do academicismo e limitar seriamente
sua esfera de influência. Como mencionamos, desde o final dos anos 1930, só era
possível comentar sobre o que Stalin dizia. De inexperientes cientistas sociais a
acadêmicos de renome, a “pesquisa” de todos se resumia ao mesmo tema: o papel de
I.V. Stalin no desenvolvimento da economia; o significado de Problemas econômicos
do socialismo na URSS, de I.V. Stalin, para o desenvolvimento da filosofia; I.V.
Stalin sobre a teoria do estado e a lei; a contribuição decisiva de I.V. Stalin para o
desenvolvimento da ciência militar. Um exame superficial das bibliotecas revelou
mais de quinhentos livros e artigos sobre estes e temas análogos, escritos entre 1945
e 1953. O pensamento científico se encontrava refém de dogmas primitivos e
plúmbeos, e o esforço criativo, atrofiado.
As ciências naturais e técnicas não sofreram menos. O desenvolvimento da
genética atrasou-se décadas e a cibernética foi banida, porque as novas ideias e os
novos campos do aprendizado eram orientados por pontos de vista grosseiros, senão
totalmente ignorantes. A caça aos “cosmopolitas”, na maior parte das vezes
codinome dos judeus (ver adiante), condenou as ciências a isolamento ainda maior
do mundo intelectual. Artigos como “Cosmopolitismo a serviço da reação
imperialista”, publicado no jornal governamental, o Izvestiya, em 18 de abril de
1950, mataram qualquer desejo dos cientistas soviéticos de fazerem contato com
estabelecimentos estrangeiros de pesquisas. A menção a um cientista soviético numa
revista científica estrangeira ou um convite para congresso internacional podiam ser
desastrosos.
A tentativa de transferir mecanicamente as formulações de Stalin para o
desenvolvimento da biologia foi equivalente à morte dos esforços soviéticos neste
campo, e se tivesse continuado por mais cinco anos, ou perto disso, a ciência como
um todo teria descarrilado completamente. Naquelas circunstâncias, foram pessoas
como T.D. Lisenko que se aproveitaram do ditado de Stalin – “Precisamos de
resultados práticos imediatos na ciência” – para chegar ao topo. No que tange a
Stalin, as ciências constituíam um mundo mágico, misterioso e de alquimias, de
alguma forma conectado com as conquistas do novo. A ele parecia que a principal
coisa sobre a ciência era como organizá-la. Acreditava que o trabalho científico
poderia até ser realizado no Gulag, se adequadamente organizado e, de fato, os
resultados mostraram-lhe que não estava de todo errado. Aqueles que considerou
perigosos ou que não trilharam seus caminhos dogmáticos ou foram destruídos sem
misericórdia ou foram se juntar à vasta população dos acampamentos, entre os quais
estavam possuidores das mais refinadas mentes científicas do país.
Os cientistas cujas vidas foram poupadas passaram a trabalhar nos laboratórios
dos campos e prisões – sharashkas – sob a supervisão da 4ª Seção Especial do
Ministério do Interior. Nesta área, Stalin adotou uma orientação puramente
pragmática, ou seja, a visão do mundo e as opiniões políticas dos sentenciados não
tinham a menor importância. O que interessava eram os resultados rápidos, e,
quando eles eram conseguidos, Stalin era capaz até de demonstrar alguma
benevolência, reduzindo às vezes a sentença e mesmo libertando o prisioneiro. A
agência de Beria mantinha Stalin constantemente informado sobre o trabalho dos
cientistas nas prisões e nos campos. Em 18 de maio de 1946, por exemplo, Kruglov
reportou que:
Um grupo de prisioneiros cientistas, inclusive o professor K.I. Stakhovich, o professor A.Yu. Vinblat e o
engenheito G.K. Teifel, vem trabalhando há muito tempo na construção de um motor nosso turbo-
propulsado. Fundamentando o trabalho em suas próprias pesquisas teóricas, o grupo propõe a construção do
motor TRD-7B. Solicito que seja apreciada a minuta de decreto do Conselho de Ministros.17
Em 1947, o prisioneiro especialista A.S. Abramson (sentenciado a dez anos) propôs um sistema novo e
original para um carburador econômico de automóveis. Os testes no ZIS-150 produziram uma economia de
combustível da ordem de 19%. Sugiro que A.S. Abramson, o engenheiro mecânico M.G. Ardzhevanidze e o
engenheiro construtor G.N. Tsvetkov tenham suas sentenças reduzidas de dois anos. Aguardo suas
instruções.18
Acabamos de saber hoje que os operários [de Petrogrado] quiseram responder à morte de Volodarsky com
terror de massa e que vocês (não você, pessoalmente, mas o Comitê Central de Petrogrado) os impediram.
Protesto veementemente!
Estamos nos comprometendo: até mesmo nos nossos sovietes de deputados, ameaçamos o emprego do terror
de massa, mas, quando chega a hora, pisamos no freio de uma iniciativa revolucionária totalmente
justificável.
Isto é im-pos-sí-vel!
Os terroristas nos tomarão por covardes. Estamos num estado de guerra sem quartel. Temos que encorajar a
energia e a presença maciça do terror contra os terroristas, em especial em Petrogrado que representa um
exemplo decisivo.29
Tais instruções não eram raras. Derramamento de sangue em escala maciça parecia
uma consequência natural da guerra civil. Lenin escreveu a Trotsky, em Sviyazhsk,
provavelmente no final de 1918: “Obrigado, a convalescença vai caminhando
maravilhosamente bem. Confio em que o esmagamento dos tchecos de Kazan e dos
guardas brancos, bem como dos kulaks sanguessugas que os apoiam, será executado
com exemplar impiedade. Com cumprimentos apaixonados.”30
A “exemplar impiedade” acabaria por se transformar, enfim, na pedra de toque
da inclinação revolucionária. O que Lenin permitira numa situação de “guerra sem
quartel”, quando tudo pendia por um fio, mais tarde passou a ser visto como
“norma revolucionária”, e a violência de Stalin contra a população em geral tornou-
se coisa corriqueira. Se por um lado a Rússia carecia de tradições democráticas, sua
experiência em assuntos policiais era bem desenvolvida, ainda que aquilo que Stalin
criou a este respeito tivesse pouca semelhança com os esforços amadoristas do
czarismo.
Na virada do século, a população exilada na Sibéria chegava a um terço de um
milhão, dos quais os exilados políticos perfaziam cerca de um por cento, mais cerca
de 11 mil que cumpriam trabalhos forçados,31 e perto de metade de todos os
exilados vivia em fuga todo o tempo. O sistema policial do czarismo não era
especialmente rigoroso. Por exemplo, para sair do país era necessário apenas escrever
ao governador da província e pagar uma pequena taxa. Em 1900, cerca de 200 mil
russos passaram diversos meses no exterior. Não surpreende, portanto, que os
principais inimigos do czarismo estivessem fora do país. Muitos deles conheciam as
deficiências do departamento czarista de polícia e, depois da revolução, criaram uma
estrutura que foi muito além no estabelecimento de um sistema rígido e de novas e
severas regras para garantir a lealdade dos cidadãos ao estado soviético.
Organizado segundo os ensinamentos de Lenin de que o caminho “correto” só
era conhecido pelos bolcheviques, e imbuído de seus preceitos sobre disciplina
partidária, o Partido Comunista chegou ao poder com pouca tradição democrática
própria, e seus líderes herdaram imediatamente a prática policial do sistema czarista.
Portanto, não causou admiração o fato de eles, logo depois do Outubro de 1917,
passarem a empregar a repressão contra os oponentes da nova ordem, e assim,
simultaneamente, ameaçarem a liberdade e abrirem caminho para um futuro César.
As minutas do Politburo para 9 de março de 1922 contêm uma nota da
correspondência de Kalinin, na qual Unshlikht reporta sobre a luta contra o
banditismo. O Politburo aceitou a proposta de Unshlikht para que “Fosse dado ao
GPU o direito de: a) executar sumariamente as pessoas culpadas de roubo armado,
os criminosos e os reincidentes no porte de armas, b) exilar para Archangel e
prender os anarquistas e os SR de Esquerda clandestinos”.32
A burocracia stalinista continuou com esta prática, transformando-a em
característica do dia a dia da vida soviética. Um sentimento de desconfiança mútua
generalizou-se pela sociedade. Choveram relatórios sobre “ninhos antissoviéticos”,
seja entre os técnicos em Moscou, estudantes universitários ou mesmo entre
colegiais de 15 anos de idade em Krasnodar.33
Os órgãos de segurança assumiram cada vez mais as funções que deveriam ser da
responsabilidade de agências mais adequadas. Por exemplo, durante a guerra, os
restos mortais de Lenin foram transportados por segurança para Tyumen, na Sibéria
ocidental, e a incumbência pelo traslado de volta ao Mausoléu ficou com a equipe
de Beria. Em setembro de 1945, ele informou a Stalin que o Mausoléu estava
pronto para receber visitantes e sugeriu que fosse reaberto com este propósito no
domingo de 16 de setembro.34
Como já dissemos, os prisioneiros eram utilizados para satisfazer as demandas de
mão de obra extra para todos os ministérios. A população soviética de prisioneiros
fez sua contribuição para a construção de estradas e pontes, extração de carvão e de
urânio, derrubada de árvores, construção de reatores nucleares, grandes projetos
hidrelétricos. Jamais esquecerei a visita que fiz à estação geradora de Kuibyshev com
um grupo de Komsomols, em 1952. Da plataforma superior podíamos ver centenas
de figuras vestidas de cinza que se agitavam como um enxame pela planta
hidrelétrica. Quando passamos por um destes grupos, um homem alto e magro
inclinou-se e disse num tom de voz para ser ouvido pelos guardas próximos: “Digam
lá fora que estamos trabalhando numa grande construção da época de Stalin!”
Algum tempo depois deparei com um livro cujo título era Grandes construções da
época de Stalin, e não pude deixar de perceber a ironia de tudo aquilo.
Cresci na vila de Agul, distrito de Irbei, no sul da região de Krasnoyarsk. À
distância podiam-se ver a majestosa neve das montanhas Sayan e os jorros de água
que se lançavam na direção do Yenisei, do Kana e do Agala. Ali também estava a
genuína e modorrenta taiga (região de florestas de coníferas), terra dos kerzhaks,
siberianos nativos que haviam migrado dos territórios ocidentais da Rússia, um
século ou dois antes. Em 1937 ou 1938, apareceram alguns soldados em nossa
pequena vila, seguidos por colunas de prisioneiros. Começaram a isolar certas áreas
com cordas e, cerca de seis meses depois, campos foram organizados em Agul e em
diversos assentamentos vizinhos. Veio o arame farpado e surgiram as cercas altas
atrás das quais podiam-se divisar com dificuldade as cabanas, as sentinelas armadas
nas guaritas e os cães de guarda.
Os habitantes locais começaram a ver longas procissões de pessoas exaustas que
constantemente chegavam a pé da estação de trem distante cerca de noventa
quilômetros. A impressão dos locais era a de que os acampamentos precisavam de
constante expansão. Mais tarde, entenderam o que ocorria. Valas longas começaram
a surgir nas cercanias dos assentamentos, e os corpos dos prisioneiros eram
transportados em carroças ou trenós, cobertos com um encerado e enterrados na
calada da noite. Muitos morreram por privação absoluta. Muitos foram fuzilados na
taiga. Boris Frantsevich Kreshchuk, que vivia então em Agul e cujo pai, um ferreiro,
e o irmão mais velho tinham sido fuzilados, contou-me sobre uma ocasião em que
ele e outros garotos estavam catando castanhas na mata quando, de repente,
ouviram o barulho de tiros bem perto, “exatamente o som de uma lona que estivesse
sendo rasgada”. Correram na direção dos tiros e, escondidos por arbustos, viram um
pelotão de fuzilamento jogando cerca de vinte prisioneiros executados numa vala.
“Lembro-me de um deles que ainda se agarrava ao capim; obviamente, não estava
morto. Fugimos em disparada.”
Minha mãe era a diretora de uma escola primária (para crianças entre sete e
quatorze anos de idade). As autoridades permitiram que dois prisioneiros a
ajudassem a organizar a biblioteca, consertar as cortinas e coisas desta natureza.
Nossa vida era dura, particularmente depois que eles prenderam e executaram meu
pai e nos exilaram para Agul. Como já vivíamos na província da Sibéria Marítima,
não havia lugar mais ao leste para nos mandar, assim nos enviaram para o oeste,
para Agul. Não havia professores no lugar, portanto, as autoridades deixaram que
minha mãe lecionasse. Ela se graduara na universidade depois da revolução. Quando
não havia ninguém por perto, minha mãe conversava longamente com um dos
prisioneiros, cujo nome não consigo lembrar. Certa vez, ele tirou um farrapo de
dentro da camisa, desenrolou rapidamente uma fotografia e mostrou-a a minha
mãe. Estávamos no cômodo longo que servia de biblioteca e eu, na ponta dos pés,
olhei sobre o ombro dela. A pequena fotografia estava presa a um papelão e havia
algo escrito em língua estrangeira na parte de baixo. O prisioneiro murmurou:
“Tínhamos emigrado. Para a Suíça. Este é Lenin, este ao lado sou eu, com minha
esposa, e estes dois eram comunistas alemães.”
Fiquei matutando como alguém tão esfarrapado e esquálido poderia ter
conhecido Lenin pessoalmente. Ele foi trazido sob escolta para a escola mais duas
vezes, depois desapareceu. Ou morreu, ou foi fuzilado na floresta. Estas impressões
da infância jamais me abandonaram.
Ainda relativamente jovem, minha mãe faleceu logo depois da guerra, deixando
a mim, minha irmã e meu irmão quase sem nada. O cemitério da vila foi sua última
morada, não longe do lugar onde os prisioneiros eram fuzilados. As valas já então
estavam niveladas, sem quaisquer marcas, locais esquecidos que tinham
testemunhado a terrível tragédia de um povo. Duvido que muitos tenham
sobrevivido àqueles campos. Dois de meus tios, camponeses simples, que disseram
alguma coisa impensada, jamais regressaram.
Pode-se argumentar que este livro é a maneira que encontrei para vingar as
maldades cometidas contra minha família. Mas nego a possibilidade. Quando Stalin
morreu, eu era um jovem comandante de carro de combate. Pensei que o mundo ia
desabar. Não entendi coisa alguma quando minha família foi exilada, e mesmo mais
tarde tampouco liguei nossa desdita a Stalin. Disseram-me que meu pai havia
morrido. Minha mãe chorou em silêncio. Só em julho de 1952, descobri que eu
também era um homem marcado. Tínhamos acabado o jantar de confraternização
celebrando nossa formatura na escola de oficiais e recolhíamos nossas malas simples
de papelão, antes de irmos para nossas unidades, quando um de meus amigos (não
vou dizer o nome) pegou-me de lado e disse:
Esta digressão em meu passado serve como lembrete de que não faz sentido tentar
vingar a história. O que foi feito não pode ser desfeito. Tem, no entanto, que ser
conhecido e lembrado.
O quanto Stalin e seus sequazes no Kremlin sabiam do que se passava em Agul e
em milhares de outros lugares de seu abrangente Gulag? A resposta é: muita coisa.
Os arquivos estão repletos de cartas descrevendo a agonia, implorando ajuda,
pedindo que Stalin examinasse, interviesse, revisse desapaixonadamente este ou
aquele caso. Uma delas veio de um interno na seção 14 do Campo nº 283 da
NKVD e Mina de Carvão nº 26:
A situação dos prisioneiros é dura. A Inquisição medieval seria um paraíso em comparação. Ex-soldados e
partisans estão amontoados juntamente com colaboradores e Polizei.* Ninguém sabe a duração das sentenças,
o que é pior que ser fuzilado. Somos espancados regularmente. Nossas roupas são farrapos infestados de
piolhos. A comida é horrível, normalmente eles servem ratos. O corte do repolho é feito em máquinas de
forragem, de modo que normalmente vem misturado com estrume de cavalo. Os prisioneiros são agredidos a
pancadas pelos guardas. Eles são selecionados entre as pessoas mais selvagens. Esta carta não contém uma só
palavra mentirosa, porém, assiná-la significaria trabalhos forçados imediatamente.35
Stalin repassou a carta a Malenkov que nela anotou: “Para os Camaradas Beria e
Chernyshev”, ao passo que Beria só apôs sua assinatura nela. O círculo estava
fechado. A burocracia vivia envolta num manto de ilegalidade. As raras ocasiões em
que alguém de alta posição levantava um débil protesto surpreendem quando são
achadas nos arquivos. Entre os documentos de Molotov, há uma carta para Stalin e
Molotov escrita pelo ministro da justiça N. Rychkov, em maio de 1947:
Não se sabe como Stalin reagiu. Molotov expediu uma carta aos funcionários do
Ministério do Interior em maio de 1947, mas demorou bastante até que a insana
regulamentação fosse alterada. Stalin e o sistema que engendrou ensinaram ao povo
a ser paciente, a ser silencioso e submisso. De um modo geral, as pessoas não
paravam para pensar sobre tudo aquilo, nem sabiam muita coisa do que se passava
no pesadelo escondido por trás das telas do sistema stalinista.
Se a morte física chegou para Stalin mais cedo do que esperado, sua morte
política foi bastante retardada. Seu falecimento histórico é improvável, já que as
pessoas jamais esquecerão o que foi feito em seu nome.
Nota
O Chefe de governo expressou sua insatisfação com Beria, dizendo que o trabalho dos órgãos de segurança
estatal não justificava a proteção que recebiam. Disse ter dado ordens para a remoção de Beria da direção do
MGB. Perguntou-me o que eu achava de Merkulov e Kobulov e, mais tarde, de Goglidze e Tsanave. Contei-
lhe o que sabia. Quando, depois, eu soube que minha conversa com o Chefe de governo passara a ser, sem a
menor dúvida, do conhecimento de todos, fiquei estupefato.
Beria, obviamente, estava alarmado com a atitude de Stalin a seu respeito, mas
como pudera saber o que o chefe e Vlasik conversaram a sós sobre ele? Teria Stalin
repassado os termos da conversa, ou Beria conseguira um meio de monitorar
sigilosamente seu líder?
Vlasik prosseguiu dizendo que, em certa ocasião foi chamado à presença de Beria
para interrogatório. “Sabia que não poderia esperar nada diferente da morte, pois
estava seguro de que eles tinham conseguido enganar o Chefe de governo.”
Aparentemente, o objetivo da ocasião era fazê-lo incriminar Poskrebyshev. Quando
recusou, disseram-lhe que ele morreria como um cachorro na prisão. Vlasik recebeu
o tratamento completo e, como escreveu a Voroshilov:
Em vista de minhas idade e saúde, não aguentei. Fiquei confuso, estava em completo estado de choque e
perdi o autocontrole e o bom senso. Com as algemas cortando-me até os ossos, não tive nem condições para
ler o que eles escreveram sobre minhas respostas e assinei o documento comprometedor, enquanto eles
continuavam xingando e fazendo ameaças [...] tiraram as algemas e prometeram que me deixariam dormir,
mas não foi o que aconteceu; continuaram a me torturar na cela.38
Ryumin produziu provas irrefutáveis de que toda a fraternidade constituída por Vovsi, Kogan, Feldman,
Etinger, Yegorov, Vasilenko, Shereshevsky e outros vinha, sub-repticiamente, encurtando a vida da liderança
havia muito tempo. Zhdanov, Dimitrov, Shcherbakov – estamos preparando uma lista exata de suas vítimas
no momento – foram todos sacrificados por esta gangue. Por exemplo, o eletrocardiograma de Zhdanov foi
simplesmente falsificado. Esconderam o fato de que Zhdanov tivera um enfarte e autorizaram-no a continuar
com suas atividades, o que logo o derrubou. Mas o ponto principal é que a coisa toda foi trabalho da agência
da organização judaica burguesa-nacionalista, a “Joint”.* A trama é profunda e atinge funcionários do
partido e militares. A maioria dos acusados confessou.
O caso dos doutores começou quando o professor V.N. Vinogradov fez sua última
visita a Stalin, em 1952 e, encontrando-o em más condições, recomendou que, dali
por diante, ele trabalhasse o mínimo possível. Stalin ficou furioso, e Vinogradov não
foi mais chamado. Na realidade, logo depois foi preso. A insatisfação de Stalin com
seu médico foi trabalhada pelo investigador Ryumin da Segurança Estatal, que nela
viu uma maneira de progredir na carreira. Percebendo o estado de espírito de Stalin
e levando em conta os eventos mundiais, em que a política soviética no Oriente
Médio virou contra o novo estado de Israel, os órgãos de segurança prepararam um
gigantesco caso sobre uma alastrada “trama dos médicos”, de natureza claramente
antissemita. Por certo, haveria um julgamento e todo o problema poderia resultar
em outro banho de sangue em larga escala. Somente a morte súbita de Stalin alterou
o curso dos acontecimentos.
Durante a última noite de sua vida, Stalin perguntou várias vezes sobre o
progresso do caso, especificamente sobre Vinogradov. Beria disse-lhe que “além de
suas outras más qualidades, o professor tem a língua muito comprida. Ele disse a um
dos médicos de sua clínica que o Camarada Stalin já tivera vários e perigosos
episódios de hipertonia”.
“Muito bem”, disse Stalin, “qual sua proposta para agora? Fazer os doutores
confessarem? Diga a Ignatiev que, se ele não conseguir confissões completas, vamos
rebaixar sua altura de uma cabeça.”
“Eles confessarão. Com a ajuda de Timashuk e de outros patriotas,
completaremos a investigação e voltaremos a você a fim de que dê permissão para
um julgamento público.”
Ficaram debatendo até as quatro horas da madrugada. Já pelo final da conversa
noturna, Stalin dava sinais de visível irritação com a companhia. Apenas Bulganin
escapava das recriminações. Todos esperavam que o anfitrião se levantasse para que
pudessem ir para casa dormir. Stalin, no entanto, continuava batendo na tecla de
que havia gente na liderança que se fiava demais em seus méritos passados. “Estão
enganados.” O ambiente era de mau augúrio. Os circunstantes sentiam que alguma
coisa fermentava. Será que o velho pensava em despachá-los do Politburo, de modo
a acusá-los pelos crimes anteriores que cometera? Mas aquela seria sua última
explosão de raiva. Interrompendo uma frase no meio, ele, subitamente, levantou-se
e foi para o quarto. Os outros se dispersaram silenciosamente e se dirigiram para
casa, Malenkov e Beria viajando no mesmo automóvel.
Conforme Rybin descreveu os eventos para mim, já era meio-dia de 1º de março
quando a equipe de serventes domésticos começou a se preocupar. Stalin não
aparecera, não chamara ninguém. E não era permitido entrar no quarto sem ser
chamado. A inquietação aumentou, e então, às 18h30, a luz acendeu em seu
escritório. Todos respiraram aliviados e esperaram que a campainha soasse. Stalin
não se alimentara, nem olhara a correspondência ou qualquer outro documento.
Muito estranho. Rybin, que não escondia sua simpatia pessoal pelo velho chefe,
começou a resmungar que a campainha não tocava. Oito da noite, e nada, 21h30 e
o silêncio persistia no quarto de Stalin. Uma espécie de pânico se apossou de todos.
A equipe começou a discutir se não seria bom que alguém desse uma olhada,
quando houve um sentimento generalizado de que algo seriamente errado estava
ocorrendo. Os oficiais de serviço, M. Starostin e V. Yukof, e a servente M. Butusova
decidiram que Starostin deveria investigar e, às 23h, ele se encaminhou para o
quarto levando a correspondência do dia, caso precisasse de uma desculpa.
Starostin teve que passar por uma sucessão de cômodos até chegar ao quarto de
Stalin e foi acendendo as luzes à proporção que avançava. Quando acionou o
interruptor da pequena sala de jantar, gelou. Estatelado no chão, só de camiseta e
calças do pijama, jazia Stalin. Só teve forças para levantar a mão para Starostin, não
podia falar. Seu olhos expressavam horror e medo, em súplica. Um exemplar do
Pravda estava espalhado pelo assoalho e havia uma garrafa aberta de água mineral na
mesa. Ele devia estar naquela posição havia muito tempo, pois a luz não fora acesa.
Starostin pediu ajuda e os outros serventes chegaram correndo em grande agitação.
Levantaram Stalin para o divã. Ele tentou diversas vezes dizer alguma coisa, mas só
saíram ruídos incoerentes. O derrame paralisara a faculdade da fala, e pouco depois
ele ficou inconsciente.
De acordo com Rybin, a equipe de segurança comunicou-se imediatamente com
Ignatiev no Ministério da Segurança Estatal. Ele aconselhou que Beria e Malenkov
fossem chamados. Beria não foi encontrado em lugar algum e Malenkov mostrou-se
incapaz de fazer qualquer coisa sem ele. Além do mais, os médicos não deviam ser
contatados sem a permissão de Beria. Finalmente, Beria foi encontrado numa das
villas do governo na companhia de uma de suas últimas mulheres e, às três horas da
manhã, ele e Malenkov chegaram. Beria, por certo, andara bebendo. Malenkov,
enfiando os sapatos novos debaixo do braço para que não rangessem, entrou de
meias no quarto de Stalin e viu seu chefe respirando com extrema dificuldade. Beria
não chamou os médicos; em vez disso, virou-se para os empregados: “Por que o
pânico? Não veem que o Camarada Stalin caiu num sono pesado? Saiam todos e
deixem nosso líder em paz. Depois cuido de vocês!”
Malenkov, desanimado, deu um meio apoio a Beria. De acordo com o relato de
Rybin, tudo indicava que não haveria qualquer iniciativa de buscar socorro médico
para Stalin, que devia ter sofrido o derrame umas seis ou oito horas antes. Todos
pareciam comportar-se da maneira conveniente para Beria. Depois de afastar todos
os auxiliares, proibindo antes que telefonassem para quem quer que fosse, os dois
funcionários categorizados deixaram a casa falando alto. Só às nove da manhã, Beria,
Malenkov e Khruschev retornaram, logo seguidos de outros membros do Politburo
e dos médicos.
Seguiu-se um grande bulício. Svetlana Alliluyeva recordou-se de que os doutores
aplicaram sanguessugas atrás da cabeça e do pescoço de Stalin, fizeram
eletrocardiogramas e raios-X de seus pulmões e lhe aplicaram uma série constante de
injeções. A despeito dos esforços, todos estavam bem cientes de que o fim estava
perto. Beria dirigiu-se aos médicos, num tom de voz para que todos ouvissem e
perguntou-lhes se podiam garantir a vida de Stalin: “Vocês entendem que são
responsáveis pela saúde do Camarada Stalin? Estou avisando.” Os médicos que
tinham cuidado dele por longos anos estavam agora na prisão, naturalmente, ou
aguardavam julgamento, ao passo que os que lá se esforçavam em vão para salvá-lo
eram novos e sem conhecimento do paciente. Pálidos de medo, professores,
doutores e enfermeiras murmuravam ansiosamente entre si, enquanto lutavam
inutilmente, sabendo o inferno que lhes esperava quando tudo acabasse.
Beria não escondia seu ar de triunfo. Todos os membros do Politburo, inclusive
Malenkov, tinham pavor daquele monstro. A morte de um tirano prometia uma
nova orgia de derramamento de sangue da parte de seu sucessor. Exausto em função
de todas as providências que tomara e seguro de que Stalin cruzara a linha divisória
entre a vida e a morte, Beria disparou para o Kremlin e lá permaneceu por algumas
horas, deixando os outros líderes junto a Stalin em seu leito de morte. Já descrevi a
versão segundo a qual Beria, como primeiro-vice-presidente do Conselho de
Ministros, passou a forçar o grande jogo político que planejara havia muito tempo.
A corrida para o Kremlin foi possivelmente ligada ao seu esforço para remover
documentos do cofre de Stalin que pudessem conter instruções referentes ao modo
de lidar com ele próprio, um último desejo que talvez fosse difícil de contestar,
preparadas pelo secretário-geral no controle de suas faculdades.
Retornou à dacha cheio de confiança e começou a sugerir enfaticamente aos
desanimados colegas que preparassem uma declaração do governo participando a
doença de Stalin e publicassem também um boletim sobre seu estado de saúde. A
declaração, lida no rádio e estampada nos jornais, participava, em parte, que:
às primeiras horas da manhã de 2 de março, o Camarada Stalin, que estava em sua casa em Moscou [na
realidade, estava fora de Moscou, na dacha] sofreu uma hemorragia cerebral que afetou regiões do cérebro
essenciais à vida. O Camarada Stalin perdeu a consciência. O braço e a perna direitos estão paralisados.
Perdeu a faculdade da fala. O funcionamento do coração e dos pulmões se mostra severamente prejudicado.
O tratamento do Camarada Stalin está sob constante observação do Comitê Central do PCUS e do governo
soviético. A séria enfermidade do Camarada Stalin significará sua incapacidade mais ou menos longa para
participar das questões governamentais.
Eu trabalhava então como editor-chefe do Pravda. O país esperava em silêncio por notícias de Moscou. Às
cinco da manhã, o telefone tocou. Era Suslov: “Venha imediatamente ao cantinho.” Assim era conhecido o
estúdio de Stalin no Kremlin. “O Camarada Stalin faleceu.” Coloquei o fone no gancho. Quando cheguei ao
Kremlin, o funeral era debatido. Fiquei espantado com o comportamento dos membros do Politburo.
Estavam sentados em torno da longa mesa e o lugar de Stalin na cabeceira estava vazio. Beria e Malenkov de
frente um para o outro, próximos à cadeira desocupada. Os dois estavam obviamente excitados,
interrompendo com frequência os colegas e falando muito mais que os outros. Beria, simplesmente, florescia.
Khruschev falou pouco, ainda em evidente estado de choque. Fiquei particularmente admirado com o fato
de Molotov permanecer em silêncio, distante, com expressão mais pétrea que nunca; durante toda aquela
reunião sem sentido, que durou hora e meia, não disse uma só palavra.
No dia seguinte, reuniram-se em conjunto o Comitê Central do partido, o
Conselho de Ministros e o Presidium do Soviete Supremo da URSS. Fora
impossível encontrar qualquer instrução de Stalin sobre o que deveria ser feito na
eventualidade de sua morte. Desde o derrame do secretário-geral, apenas Beria
estivera, por uma só vez, no estúdio, dando ordem depois disto para que fosse
lacrado. A questão da sucessão precisava ser resolvida. Malenkov presidiu a reunião,
mas as decisões já haviam sido tomadas por círculo fechado.
Ficou resolvido que um dos cargos de Stalin, o de presidente do Conselho de
Ministros, ficaria com Malenkov, que fora o favorito do líder por dois ou três anos.
Seus primeiros-vices seriam Beria, Molotov, Bulganin e Kaganovich. Os ministérios
do Interior e da Segurança foram fundidos, com Beria encarregado do novo e
ampliado Ministério do Interior. Pareceu claro que Beria tencionava não apenas
manter a situação que existia sob Stalin como também fortalecer o papel de seu
ministério na formulação das políticas doméstica e externa. Molotov foi feito
ministro do Exterior e Bulganin, ministro da Defesa. Shvernik foi transferido para
os sindicatos, enquanto sua função de presidente do Soviete Supremo foi dada a
Voroshilov.
Mudanças importantes foram também feitas na liderança do partido. O círculo
interno, que se reunira na noite anterior à sessão conjunta menos de 12 horas depois
da morte de Stalin, apoiou a proposta de Molotov para que o Presidium do Comitê
Central (ou Politburo) fosse drasticamente reduzido no efetivo. No final da vida,
Stalin deu a impressão de preparar-se gradualmente para se ver livre dos camaradas
de longa data – Beria, Voroshilov, Kaganovich, Mikoyan, Molotov, Khruschev e
talvez alguns outros. Deve ter pressentido que lhe restava pouco tempo. Sua solução
(evidentemente aceita por unanimidade pelos outros) foi aumentar o Presidium para
25 membros, com 11 sem direito a voto, e o secretariado para dez. A intenção era
claramente de “diluir” a velha guarda entre funcionários novos. É muito provável
que, se não tivesse sofrido o derrame, encontraria um meio de enquadrar Molotov,
Mikoyan e Beria, de modo a removê-los da liderança e sobre eles descarregar muito
daquilo que pudesse enodoar sua própria imagem histórica. A velha guarda sentiu
que havia alguma coisa no ar e agora, pouco depois da morte do líder, apressava-se
em retirar os novos nomeados da liderança.
A sessão conjunta ratificou a sugestão do círculo interno para reduzir o tamanho
do Presidium a dez, mais quatro membros não votantes. Só três dos novos nomes
permaneceram, a saber, N.A. Bulganin, M.Z. Saburov e M.G. Pervukhin. (Entre os
que foram afastados, depois de apenas cinco meses na função, estava Leonid
Brejnev, que se tornou então vice-chefe da Administração Política Principal do
Exército e Marinha Soviética.) Numa forma um pouco vaga, ficou decidido que
Khruschev “deveria se concentrar no trabalho do Comitê Central do partido e,
portanto, dispensado de suas obrigações como primeiro-secretário do comitê
partidário de Moscou”.
Quanto ao povo, a maioria não se apercebeu destas alterações sutis, se bem que
soubesse perfeitamente que as novas figuras nada mais eram que sombras do falecido
líder. Sedento por qualquer fragmento de notícia, o povo tomou como
perfeitamente natural o fato de o corpo de Stalin ficar ao lado do de Lenin até que
fosse terminado um Panteão, para o qual, então, os restos mortais dos dois,
“juntamente com os das figuras proeminentes do Partido Comunista e do estado
soviético que estavam sepultados no muro do Kremlin”, deveriam um dia ser
supostamente trasladados.
O velho costume de embalsamar e mumificar, contra o qual Krupskaya se
rebelara tão veementemente na ocasião devida, e no qual Stalin tanto insistira,
pareceu também perfeitamente natural. O centro de Moscou ficou repleto de
multidões enlutadas, tão densas em alguns locais que provocaram vítimas fatais.
Durante o funeral, foi disparada uma salva de 31 tiros de canhão em todas as
repúblicas da União Soviética e em diversos outros locais, após o que o corpo foi
deslocado para o Mausoléu, que ficou fechado por oito meses enquanto o processo
de embalsamento completava seu ciclo. Muito poucos poderiam prever que, na
noite de 31 de outubro de 1961, a múmia de Stalin seria transferida para
sepultamento no muro do Kremlin.
Ao longo de todo seu período de mando, Stalin defendera as instituições que
criou, porém ficou evidente que sobrestimou sua estabilidade. Literalmente, em
questão de horas depois de sua morte, seus herdeiros já começavam a ignorar seus
preceitos. Pouco a pouco, os louvadores do “maior dos grandes gênios” mudaram de
tom. Foi como se a venda, de forma despercebida, escorregasse dos olhos. Em
menos de um mês, o caso contra os doutores foi arquivado e Ryumin foi fuzilado à
maneira tradicional. Em mais algum tempo, os novos líderes executaram uma
“operação palaciana” e livraram-se de Beria. Um ano mais tarde, a Corte Suprema,
sob a presidência de A.A. Chepstov, arquivou o “caso de Leningrado” por “ter sido
deturpado pelo ex-ministro da Segurança Estatal da URSS e seus cúmplices”. Os
três Voznesenskys, juntamente com dezenas de outras vítimas, foram reabilitados
postumamente.40 No ano seguinte, o Pravda publicou que, em sessão pública do
colegiado militar de Leningrado, os acusados de engendrar o caso de Leningrado
(V.S. Abakumov, A.G. Leonov, V.I. Komarov e M.T. Likhachev) foram
condenados à morte, enquanto outros receberam penas de extensões variadas. Os
principais culpados, é evidente, já estavam mortos na ocasião.
Nota
1879
7 de novembro: Nasce Trotsky em Yanovka, próximo a Yelizavetgrad
(Kirovgrad), na Ucrânia.
21 de dezembro: Nasce Stalin em Gori, na Geórgia.
1888-93
S. frequenta escola religiosa, em Gori.
1894
S. entra no seminário teológico, em Tiflis.
Coroação de Nicolau II.
1898
Março: Formado o Partido Social Trabalhista Democrático Russo
(RSDLP), em Minsk.
1899
S. expulso do seminário.
1900
Lenin e Markov fundam seu jornal Iskra (“Centelha”).
1901
S. eleito membro do comitê social democrático de Tiflis.
1902
S. preso pela primeira vez.
Trotsky conhece Lenin em Londres.
1903
S. casa-se com Yekaterina Svanidze.
S. transportado para a Sibéria Oriental.
Em Londres, no II Congresso, RSDLP racha em
bolcheviques, liderados por Lenin, e mencheviques,
liderados pelo grupo que inclui Markov e Trotsky.
1904
S. escapa da Sibéria, retorna a Tiflis e se torna
bolchevique adotando o cognome de Koba.
Nasce Yakov, filho de S.
1904-06
Guerra russo-japonesa e revolução de 1905.
1905
O Czar concede reformas políticas, inclusive uma
assembleia legislativa, a Duma Estatal.
S. vai à conferência bolchevique em Tammerfors, na
Finlândia, e se encontra pela primeira vez com Lenin.
1906
S. comparece ao IV Congresso do partido, em Estocolmo.
Numa unidade de combate no Cáucaso, S. toma parte em
roubos de bancos, a fim de angariar fundos para o
partido.
1907
S. comparece ao congresso de Londres; sua primeira
viagem maior ao exterior.
Yekaterina Svanidze morre de tuberculose.
1907-09
S. membro do comitê bolchevique de Baku.
1909
S. exilado para Solvychegodsk, em Vologda do Norte.
Escapa depois de quatro meses, retorna a Baku.
1910
Trotsky funda seu jornal independente, o Pravda.
1912
S. preso durante visita a São Petersburgo, deportado para
a Sibéria Ocidental, escapa depois de dois meses e volta à
capital.
S. visita Lenin em Cracow e segue para Viena, onde se
encontra com Bukharin e Trotsky e escreve um ensaio
sobre a questão das nações. Adota o cognome Stalin.
S. cooptado in absentia para o Comitê Central
bolchevique durante o XII Congresso do partido, em
Praga.
Lenin apropria-se do nome do jornal de Trotsky, o
Pravda, que até hoje [1989] permanece como órgão do
Comitê Central bolchevique.
1913
S. preso em São Petersburgo, exilado por quatro anos para
Turukhansk.
1914
Começa a Primeira Guerra Mundial.
1917
Março: O Czar abdica.
Novembro: Bolcheviques tomam o poder.
Formado o Soviete dos Comissários do Povo (governo
bolchevique), com Stalin como comissário para as
Nacionalidades; e Trotsky, comissário das Relações
Exteriores.
Dezembro: Armistício alemão-soviético.
1918
Janeiro: Dispersada a Assembleia Constituinte depois de uma
sessão.
Criado o Exército Vermelho.
Fevereiro: Chicherin substitui Trotsky nas relações exteriores.
Março: Assinado o tratado de paz de Brest-Litovsk com a
Alemanha.
Abril: Começa a guerra civil na Rússia.
Julho: Constituição da República Federativa Socialista Russa
(RSFSR).
Czar e família executados em Ekaterinburg. Adotado o
“Comunismo de Guerra”.
Começa a intervenção dos Aliados.
Agosto: Atentado contra a vida de Lenin pela revolucionária
socialista Fanny Kaplan.
Novembro: Armistício alemão-aliado.
1919
Março: Fundada a Internacional Comunista, o Comintern, em
Moscou.
1920
Abril: Poloneses invadem a Ucrânia soviética.
Julho: Tratado de comércio anglo-soviético.
Outubro: Armistício com a Polônia.
Novembro: Termina a guerra civil com a derrota e evacuação dos
exércitos brancos na Crimeia.
1921
Março: Levante de Kronstadt.
X Congresso do partido adota a Nova Política Econômica
de Lenin e proíbe as facções partidárias.
Estado independente da Geórgia sob governo
menchevique é derrubado pelos bolcheviques.
1922
Fevereiro: A Cheka passa a se chamar GPU.
Abril: S. eleito secretário-geral do partido.
Maio: Primeiro derrame de Lenin.
Dezembro: Segundo derrame de Lenin.
Formação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas
(URSS).
1923
Março: Terceiro derrame de Lenin.
Abril: XII Congresso do partido.
1924
Janeiro: Morre Lenin.
Constituição da URSS promulgada.
Maio: XIII Congresso do partido.
Reconhecimento diplomático por parte de Áustria,
Inglaterra, China, Dinamarca, França, Grécia, Itália,
Noruega e Suécia.
1925
Dezembro: XIV Congresso do partido.
1926
Julho: Zinoviev expelido do Politburo e da liderança do
Comintern.
Outubro: Trotsky e Kamenev expelidos do Politburo.
1927
Novembro: Trotsky e Zinoviev expulsos do partido.
Dezembro: XV Congresso do partido.
1928
Janeiro: Trotsky banido para Alma-Ata, no Cazaquistão.
1929
Janeiro: Trotsky expulso da URSS.
Abril: Primeiro Plano Quinquenal adotado pela Décima Sexta
conferência do partido.
Novembro: Bukharin expulso do Politburo.
Dezembro: S. proclama o fim da NEP e começa a coletivização.
1930
Março: Suspensa a coletivização.
Abril-Junho: XVI Congresso do partido.
Dezembro: Julgamentos de vários grupos acusados de sabotagem e
destruição no setor agrícola.
1931
Março: Julgamento de mencheviques por pilhagem.
Começa revisão da história sobre a orientação de S.
1932
Novembro: Esposa de S., Nadezhda Alliluyeva, comete o suicídio.
Dezembro: Passaportes internos, ou carteiras de identidade, expedidos
para a população urbana. Negado aos fazendeiros
coletivos o direito de deixar suas aldeias.
1933
Janeiro: Hitler se torna chanceler da Alemanha.
Novembro: Relações diplomáticas e comerciais estabelecidas entre
URSS e EUA.
1934
Janeiro: XVII Congresso do partido. O “Congresso dos
Vitoriosos”. Setembro: A URSS filia-se à Liga das Nações.
Dezembro: Sergei Kirov assassinado em Leningrado.
1935
Maio: URSS assina tratados militares com a França e a
Tchecoslováquia.
1936
Julgamento e execução de Zinoviev, de Kamenev e
quatorze outros.
Julgamento de dezessete, inclusive Radek e Pyatakov;
treze executados.
Execução da chefia do Exército Vermelho.
1937-39
O grande expurgo, com prisões em massa, execuções e
longas sentenças à prisão e a trabalho forçado em campos
de concentração.
1938
Março: Julgamento e execução de Bukharin, de Rykov e dezesseis
outros.
Julho: Embates armados com os japoneses no lago Khasan, na
fronteira entre Mongólia e China.
Dezembro: Beria substitui Yezhov como comissário do povo para as
Questões Internas (NKVD).
1939
Abril: Começam as negociações entre a URSS, a França e a
Inglaterra para uma aliança militar contra a Alemanha.
A URSS também procura melhorar relações com a
Alemanha nazista.
Maio: Litvinov substitui Molotov como comissário para as
Relações Exteriores.
Agosto: Outros embates armados com os japoneses em Khalkhin
Gol, na fronteira com a Mongólia.
Assinado, no Kremlin, o Pacto de Não Agressão Alemão-
Soviético, com protocolo secreto sobre a divisão da
Polônia e sobre esferas de interesses.
Setembro: Alemanha invade a Polônia.
URSS invade a Polônia.
Assinado tratado germano-soviético sobre fronteiras e
amizade.
Novembro: URSS anexa a Ucrânia e a Bielorrússia ocidentais, de
acordo com o tratado de fronteiras com a Alemanha.
Guerra de inverno soviético-finlandesa.
Dezembro: URSS expelida da Liga das Nações.
1940
Fevereiro: Acordo de comércio alemão-soviético.
Março: Tratado de paz soviético-finlandês.
Abril: Massacre de oficiais poloneses prisioneiros de guerra pela
NKVD, em Katyn, Smolensk.
Junho: A URSS recupera a Bessarábia (Moldávia) e anexa a
Bukovina Setentrional.
Agosto: A URSS anexa Lituânia, Letônia e Estônia.
Trotsky assassinado no México pela NKVD.
1941
Abril: Assinado o tratado soviético-iugoslavo de amizade e não
agressão.
Pacto de neutralidade nipo-soviético.
6 de maio: S. se torna presidente do Soviete dos Comissários do
Povo.
21 de junho: Alemanha invade a URSS.
3 de julho: S. faz apelo pelo rádio para que o povo soviético salve a
mãe-pátria.
Novembro: EUA começam o lend-lease para a URSS.
Alemães chegam aos subúrbios de Moscou.
Dezembro: Japoneses começam a Guerra do Pacífico com o ataque a
Pearl Harbor.
Alemanha declara guerra aos EUA.
1942
Janeiro: Conferência de Wannsee. Hitler adota a “solução final”
para a “questão judia”.
Agosto: Exército alemão chega ao Cáucaso.
Dezembro: Criação do Exército Russo de Liberação, sob o comando
do general Vlasov, nos campos alemães de prisioneiros de
guerra.
1943
Janeiro: S. se torna marechal da União Soviética.
Fevereiro: Tropas alemãs se rendem em Stalingrado.
Maio: S. dissolve o Comintern.
Comissários do povo passam a se chamar ministros.
Julho: Postos e distintivos de ombro criados, e o título de
“oficial” substitui o de “comandante”, que existia desde a
criação do Exército Vermelho.
Setembro: S. permite a eleição do novo Patriarca da Igreja Ortodoxa
Russa.
Novembro: Conferência de Teerã com Stalin, Churchill e Roosevelt.
Primeira e única viagem de S. de avião.
1944
Março: URSS restabelece relações diplomáticas com a Itália.
Junho: Segunda frente estabelecida na Europa com a invasão
aliada da Normandia.
Agosto: Levante de Varsóvia contra os alemães.
O Exército Vermelho entra em Bucarest.
Setembro: O Exército Vermelho entra em Sofia.
1945
Fevereiro: Conferência de Yalta entre Stalin, Roosevelt e Churchill.
Abril: O Exército Vermelho entra em Viena.
2 de maio: O Exército Vermelho toma Berlim.
8 de maio: Alemanha aceita a rendição incondicional.
Julho-Agosto: Conferência de Potsdam com Stalin, Truman e
Churchill, sucedido por Attlee.
6 de agosto: EUA atiram bomba atômica em Hiroshima.
8 de agosto: A URSS declara guerra ao Japão.
9 de agosto: EUA atiram bomba atômica em Nagasaki.
A URSS começa ofensiva na Manchúria.
2 de setembro: O Japão assina rendição incondicional.
24 de outubro: Criada a Organização das Nações Unidas.
1946
Março: Discurso de Churchill sobre a “Cortina de Ferro” em
Fulton, Missouri.
Agosto: O general Vlasov e outros executados em Moscou.
Novembro: O Comitê Judeu Antifascista colocado sob suspeição.
1947
Setembro: Fundação do Cominform na Polônia.
Zhdanov proclama a doutrina dos dois campos.
1948
Janeiro: O chairman do Comitê Judeu Antifascista, o ator
Solomon Mikhoels, assassinado pela polícia secreta em
Minsk.
O Plano Marshall de ajuda à Europa.
Abril-Junho: Bloqueio de Berlim e ponte aérea para a cidade.
Maio: Proclamado o Estado Judeu de Israel.
Junho: O Cominform expulsa o Partido Comunista da
Iugoslávia.
Proclamada a República Popular da Tchecoslováquia.
Agosto: Zhdanov morre subitamente.
“O caso de Leningrado.”
Novembro: Fechado o Comitê Judeu Antifascista e seus membros
presos.
1949
Janeiro: Criado o Conselho para Assistência Econômica Mútua
entre estados socialistas (Comecon).
Lançada campanha contra a intelligentsia judaica, rotulada
de “cosmopolitas sem raízes”.
Abril: Constituída a OTAN.
Maio: Israel admitido na ONU.
A URSS começa propaganda antissionista.
Setembro: A URSS testa bomba atômica.
Outubro: Proclamada a República Popular da China.
1950
Fevereiro: Tratado de amizade sino-soviético.
Julgamentos políticos nos países socialistas.
Junho: Começa a Guerra da Coreia.
1951
Novembro: Julgamento de Slansky e expurgo antissionista do Partido
Comunista da Tchecoslováquia.
1952
Maio-Julho: Julgamento e execução do Comitê Judeu Antifascista.
Outubro: XIX Congresso do partido. O Politburo passa a se chamar
Presidium. O secretário-geral passa a ser primeiro-
secretário.
Novembro: EUA testam a primeira bomba de hidrogênio.
1953
Janeiro: “A Trama dos Médicos.”
5 de março: Morre Stalin.
Junho: Reprimida a Revolta dos Trabalhadores em Berlim
Oriental.
Julho: Prisão de Beria.
Agosto: Assinado armistício na Coreia.
A URSS testa bomba de hidrogênio.
Setembro: Khrushchev eleito primeiro-secretário.
1955
Maio: Assinado o Pacto de Varsóvia.
1956
Fevereiro: XX Congresso do partido. Khruschev faz o “discurso
secreto” denunciando Stalin.
Abril: Dissolução do Cominform.
Junho: Sublevações antissoviéticas em Poznan, na Polônia.
Outubro: Levante nacional húngaro reprimido pelos tanques
soviéticos.
1957
Julho: Grupo “antipartido” expulso do Presidium.
1958
Outubro: Boris Pasternak ganha o Prêmio Nobel com Doutor
Zhivago. Começa a perseguição a Pasternak na URSS.
Dezembro: Andrei Sakharov prega a proibição do teste com a bomba
de hidrogênio.
1961
Outubro: XXII Congresso do partido. Khrushchev intensifica a
desestalinização. A múmia de Stalin é removida do
Mausoléu.
Nota
VOLUME I
Abreviatura do nome dos arquivos citados:
INTRODUÇÃO
1 – UM RETRATO
2 – FEVEREIRO, O PRÓLOGO
16. Florinsky, M. The End of the Russian Empire, New Haven, 1931, p. 228
17. Alekseyev, S.A. ed.: Fevral’skaya revolyutsiya. Prefácio e notas de A.I. Usagin, Moscou-Leningrado, 1926,
p. 153
18. Shulgin, V.V. Dni, Belgrado, 1925, p. 108
19. Arquivo IKKI, f. 555, op. 1, d. 2802, l. 1-2
20. Alekseyev, op. cit. p. 153
21. Ibid. p.131
22. Lenin, PSS, vol. 31, p. 156
23. Kerensky, A.F. The Crucifixion of Liberty, Londres, 1934, p. 146
24. Alekseyev, op. cit. pp. 336-337
25. Stalin, I.V. Kratkaya biografiya, Moscou, 1951, p. 57
26. Trotsky, L.D. Fevral’skaya revolyutsiya. Berlim, 1931, pp. 321-322, 325
3 – OS ATORES COADJUVANTES
4 – O LEVANTE
6 – GUERRA CIVIL
7 – CAMARADAS EM ARMAS
8 – O SECRETÁRIO-GERAL
17. XI s’ezd Rossiiskoy kommunisticheskoy partii (bol’shevikov). Stenograficheskii otchet, Moscou, 1922, pp. 47,
49, 51, 52
18. Ibid. pp. 69-70
19. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 29
20. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 78, l. 1-2
21. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 78, l. 1-9
22. Lenin, PSS, vol. 45, p. 188
23. Ibid. p. 211
24. TsPA IML, f. 4, op. 1, d. 142, l. 126; Lenin, Biograficheskaya khronika, vol. 12, p. 388
25. Adam Ulam, Stalin. The Man and his Era, Nova York, 1973, pp. 213-214, cita o Arquivo Trotsky
(Universidade de Harvard), T 755
26. Lenin, PSS, vol. 45, p. 357
27. Ibid. p. 358
28. Ibid. vol. 54, p. 329
29. Ibid. pp. 674-675
30. Ibid. pp. 329-330
31. Ibid. p. 330
9 – A CARTA AO CONGRESSO
10 – STALIN OU TROTSKY?
11 – AS RAÍZES DA TRAGÉDIA
57. Lenin, PSS, vol. 45, pp. 594-595
58. Ibid. p. 594
59. Ibid. p.110
60. Stalin, I. Sochineniya, vol. 10, pp. 175-176
61. TsPA IML, f. 558, op. 1, d. 86, l. 15; Stalin, Sochineniya, vol. 7, p. 387
62. Radek, K. Itogi XII s’ezda RKP. Moscou, 1923, p. 25
63. Berdyaev, N. Samoznanie. Opyt filosofskoy autobiografii. Paris, YMCA, 1949, p. 251
12 – CONSTRUINDO O SOCIALISMO
15 – A DERROTA DO “INIMIGO Nº 1”
17 – O DESTINO DO CAMPO
18 – O DRAMA DE BUKHARIN
19 – DITADURA E DEMOCRACIA
21 – STALIN E KIROV
22 – PERSONALIDADE DOMINANTE
23 – O INTELECTO DE STALIN
24 – CESARISMO
30. Feuchtwanger, L. Moskva 1937. Otchet o poezdke dlya moikh druzei. Trad. do alemão. Moscou, 1937,
pp. 58-59
31. Ibid. p. 64
32. Ibid. pp. 59-60
33. Berdyaev, N. Sud’ba Rossii, Moscou, 1918, p. 58
34. TsPA IML, f. 325, op. 1, d. 365, l. 79
35. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 612, l. 12
36. Ibid. l. 28
37. Stakhanov, A. Rasskaz o moei zhizni. Moscou, 1938. p. 149
38. TsPA IML, f. 558, op. 1, d. 2218
39. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 612
40. Pravda, 21 de outubro de 1937
25 – À SOMBRA DO CHEFE
26 – O FANTASMA DE TROTSKY
27 – UM VENCEDOR POPULAR
68. Narodnoe khozyastvo SSSR za 70 let. Yubileinyi staisticheskii ezhegodnik. Moscou, 1987, p. 32
69. Ibid. p. 37
70. Ibid. p. 39
71. Pravda, 6 de março de 1937
72. Stakhanov, A. Rasskaz o moei zhizni. Moscou, 1938, p. 50
73. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 612
74. Feuchtwanger, op. cit. p. 60
75. TsGASA, f. 918/33 987, op. 3, d. 301, l. 26-27
76. TsPA IML, f. 558, op. 1, d. 2915
77. K shestidesyatiletiyu so dnya rozhdeniya I.V. Stalina, Moscou, 1939, p. 177
78. TsPA IML, f. 538, op. 3, d. 86, l. 16
79. Izvestiya TsK KPSS, n. 3, 1988, p. 138
28 – INIMIGOS DO POVO
29 – FARSA POLÍTICA
22. Protsess anti-sovetskogo trotskistskogo tsentra. Moscou, 1937, pp. 42-45
23. Trotsky, L. The Revolution Betrayed. Nova York, 1937, p. 216
24. Arkhiv voennoy kollegii Verkhovnogo suda SSSR, f. 75, op. 35, d. 319, l. 10-35
25. Ibid. f. 74, op. 35, d. 315, l. 61
26. Pravda, 12 de março de 1938
27. Pravda, 5 de março de 1938
28. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 891, l. 25-31; vide A.L. “Bukharina,” Nezabyvaemoe. Moscou, 1989, p.
319
29. Pravda, 13 de março de 1938
30. Feuchtwanger, op. cit, p. 98
31. Pravda, 13 de março de 1938
32. “Clarification” para NKVD, TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 612, l. 7
33. Pravda, 13 de março de 1938
34. Pravda, 8 de março de 1938
35. Pravda, 27 de janeiro de 1937
31 – A “TRAMA” TUKHACHEVSKY
32 – O MONSTRO STALINISTA
VOLUME II
Abreviatura do nome dos arquivos citados:
1. XVIII s' ezd Vsesoyuznoy Kommunisticheskoy partii (bol'shevikov). Stenografichaeskii otchet. Moscou, 1939,
p. 18
2. Ibid. p. 26
3. Ibid. p. 2
4. Dokumenty i materialy kanuna vtoroy mirovoy voiny, 1937-39. 2 vols. Moscou, 1981, vol. 2, p. 47
5. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 109, l. 32-33
6. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 1235, l. 9
7. AVP SSSR, f. 06, op. 1, p.19, d. 206, l. 551
8. AVP SSSR, f. 06, op. 1, p.1, d. 5, l. 554
9. AVP SSSR, f. 082, op. 22, p. 93, d. 7, l. 798
10. SSSR v bor'be protiv fashistskoy agressii, 1933-1945, Moscou, 1976, p.66
11. TsAMO SSSR, f. 5, op. 176 703, d. 7, l. 431
12. SSSR v bor'be... p. 74
13. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 1235, l. 57-59, 86
14. AVP SSSR, f. 06, op. 16, p. 27, d. 1, l. 766
15. AVP SSSR, f. 06, op. 1a, p. 26, d. 1, l. 1176-1177
16. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 1235, l. 66-72
17. Dokumenty i materialy… vol. 2, pp. 10, 11
18. SSSR v bor'be... pp. 78-79
19. AVP SSSR, f. 06, op. 1b, p. 27, d. 5, l. 22-32
20. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 1235, l. 73
21. XVII s'ezd VKP(b). Stenografichsekii otchet. Moscou, 1934, p. 11
22. Geiden. K. (Heyden, C.) Istoriya germanskogo fashizma. Moscou-Leningrado, 1935, p. 60
23. XVII s'ezd. 1934, p. 12
24. AVP SSSR, f. 011, op. 4, p. 27, d. 61, l. 1218
25. AVP SSSR. f. 011, op. 4, p. 27, d. 59, l. 178-180
26. AVP SSSR, f. 0745, op. 15, p. 38, d. 8, l. 126-128
27. AVP SSSR, f. 0745, op. 19, p. 45, d. 4, l. 122-125
28. AVP SSSR, f. 0745, op. 19, p. 45, d. 9, l. 129-132
29. Akten zur deutschen auswärtigen Politik 1918-1945. Baden-Baden, 1956, vol. 7, p. 131
35 – REVIRAVOLTA
30. AVP SSSR, f. 0745, op. 15, p. 38, d. 8, l. 149
31. Zhilin, P.A. O voine i voennoy istorii. Moscou, 1984, p. 145
32. Pravda, 27 de agosto de 1939
33. Documents diplomatiques français, 1932-39. 2e serie, vol. 18, p. 243
34. AVP SSSR, f. 059, op. 1, p. 300, d. 2077, l. 233-234
35. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 1237, l. 379, 381
36. Dokumenty I materialy... 1937-1939, vol. 2, pp. 85-86
37. Pravda, 18 de setembro de 1939
37a. TsAMO, f. 5, op. 362 360, d. 175 704, l. 90
38. TsAMO, f. 5, op. 391, d. 175 704, l. 96
39. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 1237, l. 436-437
40. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 105, t. III, l. 19-22
41. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 105, t. III, l. 205
42. TsGAOR, f. 5325, op. 1, d. 244, l. 2
43. TsGAOR, f. 5325, op. 1, d. 244, l. 9
44. TsGASA, f. 33 988, op. 3, d. 373, l. 130
45. TsGASA, f. 33 988, op. 3, d. 373, l. 113
46. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 1236, l. 376-380
47. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 1366, l. 60-62
48. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 1366, l. 27-29
49. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 1235, l. 99
50. Izvestiya, 3 de dezembro de 1939
51. Izvestiya, 16 de dezembro de 1939
52. TsAMO, f. 8, op. 1, d. 23, l. 34
53. TsAMO, f. 15, op. 11 600, d. 160, l. 96
54. TsAMO, f. 132, op. 264 211, d. 73, 1.67-110
55. Ibid
36 – STALIN E O EXÉRCITO
56. Voenno-istoricheskii zhurnal, 1987, nº 9, p. 50
57. TsAMO, f. 37 837, op. 10, d. 142, l. 93
58. Voennye kadry Sovetskogo gosudarstva, 1941-1945. Moscou, 1963, p. 12
59. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 993, l. 3, 1
60. TsAMO, f. 5, op. 176 703, d. 21, l. 16
61. Arkhiv Verkhovnogo suda SSSR. f. 75, op. 35, d. 319
62. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 1305, l. 175, 192
63. TsAMO, f. 32, op. 11 309, d. 4, l. 153
64. TsGASA, f. 4, op. 18, d. 77, l. 56
65. TsGASA, f. 4, op. 18, d. 76, l. 20
66. TsGASA, f. 4, op. 18, d. 79, l. 9-l0
67. TsGASA, f. 365, op. 1, d. 18, l. 6
68. TsAMO, f. 32, op. 11 309, d. 3, l. 85-91
69. Voenno-istoricheskii zhurnal, nº 9, 1987, p. 49
37 – O ARSENAL DE DEFESA
70. TsGASA, f. 33 987, op. 3, d. 1302, l. 3
71. Zhilin, P.A. O voine i voennoy istorii, Moscou, 1984, p. 185
72. Ustinov, D.F. Vo imya pobedy. Moscou, 1988, p. 223
73. Nekrich, A.M. 22 Iyunya 1941. Moscou, 1965, p. 73
74. TsAMO, f. 15a, op. 2154, d. 4, l. 224-233
75. TsAMO, f. 75 284, op. 1, d. 119, l. 18
76. Voznesensky, N.A. Voennaya ekonomika SSSR v period Otechestvennoy voiny. Moscou, 1948, p. 78
77. TsAMO, f. 15a, op. 2154, d. 4, l. 224-233
78. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 653
79. Pravda, 22 de fevereiro de 1941
38 – O ASSASSÍNIO DO EXILADO
80. Trotsky, Dnevniki i pis' ma. pp. 160-162
81. Siqueiros, D.A. Menya nazyvali likhim polkovnikom. Moscou, 1986, p. 220
82. Trotsky, op. cit. pp. 164-166
37 – DIPLOMACIA SECRETA
83. The Public Papers of Franklin D. Roosevelt, 1939, pp. 201-205
84. Vneshnyaya politika SSSR. Sbornik dokumentov, vol. 4. Moscou, 1946, p. 417
85. Istoriya vneshnei politiki SSSR 1917-1945. Moscou, 1980, vol. 1, pp. 371-372
86. Voenno-istoricheskii zhurnal, nº 9, 1987, p. 49
87. TsGASA, f. 3987, op. 3, d. 1175, l. 33-34
88. TsGASA, f. 32 871, op. 1, d. 72, l. 216
89. AVP SSSR, f. 06, op. 1a, p. 26, d. 1, l. 1179
90. Leonhardt, W. Der Schock des Hitler-Stalin Paktes. Freiburg, 1986, pp. 66-68, 79-84
91. AVP SSSR, f. 011, op. 4, p. 25, d. 11, l. 1462-1463
92. TsAMO, f. 500, op. 12 458a, d. 34, 1.17
93. TsAMO, f. 500, op. 12 462, d. 7, l. 1-6
94. Voenno-istoricheskii zhurnal, nº 9, 1987, p. 54
95. Churchill, W. History of the Second World War, vol. 3, p. 493
96. Sandalov, L.M. Perezhitoe. Moscou, 1961, p. 75
40 – OMISSÕES FATAIS
97. TsAMO, f. 32, op. 11 302, d. 6, l. 522-523
98. TsAMO, f. 32, op. 11 302, d. 6, l. 526-561
99. Izvestiya, 28 de setembro de 1939
100. Pravda, 1º de novembro de 1939
101. Pravda, 2 de setembro de 1939
102. TsGASA, f. 25 871, op. 2, d. 285, l. 8-9
103. Uma conversa com A.A. Yepishev registrada nas memórias não publicadas de Vlasik e vistas pelo autor.
104. TsGASA, f. 9, op. 39, d. 72, l. 44, 133, 536
105. TsAMO, f. 16a, op. 2951, d. 239, l. 10-14
106. Como registrado por Shtemenko e Vasilievsky em TsAMO
107. TsAMO, f. 16a, op. 2951, d. 239, l. 84-90
108. TsAMO, f. 16a, op. 2951, d. 239, l. 245-279
109. TsAMO, f. 16, op. 2951, d. 239
110. TsAMO, f. 16a, op. 2951, d. 242, l. 238
111. Zhukov, G.K. Vospominaniya i razmyshleniya. Moscou, 1969, p. 233
112. TsAMO, f. 32, op. 11 306, d. 5, l. 140-146
113. TsGASA, f. 33 988, op. 4, d. 36, l. 56
114. TsAMO, f. 32, op. 11 309, d. 3, l. 85-90
115. TsAMO, f. 127, op. 12 195, d. 16, l. 199-204
116. TsAMO, f. 127, op. 12 915, d. 16, l. 308-314
117. TsAMO, f. 208, op. 2513, d. 70a, l. 424-427
118. TsAMO, f. 15, op. 725 588, d. 36, l. 214-242
119. TsAMO, f. 208, op. 2513, d. 71, l. 34
120. Zhukov, op. cit, p. 233
41 – CHOQUE PARALISANTE
1. TsAMO, f. 32, op. 11 309, d. 101, l. 23, 35, 37
2. TsAMO, f. 16, op. 2951, d. 239
3. TsAMO, f. 16, op. 2951, d. 243, l. 123-130
4. Em Politicheskoe Obrazovanie, nº 9, 1988, pp. 69-75
5. TsAMO, f. 132a, op. 2642, d. 41, l. 1-2
6. TsAMO, f. 15, op. 881 474, d. 12, l. 246-253
7. TsAMO, f. 48a, op. 1554, d. 90, l. 260-262
8. TsAMO, f. 32, op. 1071, d. 1, l. 6-8
9. TsAMO, f. 208, op. 2513, d. 71, l. 203-204
10. TsAMO, f. 15, op. 725 588, d. 36, l. 239
11. Kumanev, V. "Iz vospominanii o voennykh godakh", Politicheskoe Obrazovanie, nº 9, 1988, p. 75 omite
a obscenidade que está na fita original ouvida pelo autor.
12. TsAMO, f. 132a, op. 2642, d. 28, l. 1
13. Memórias do general D. I. Ryabishev, TsAMO, f. 15, op. 881 474, d. 12, l. 175-190
14. TsAMO, f. 48-A, op. 1554, d. 9, 1-47
15. TsAMO, f. 48-A, op. 1554, d. 9, l. 25
16. Politicheskoe obrazovanie, 1988, nº 9, p. 75
17. TsAMO, f. 32, op. 701 323, d. 38, l. 53
18. Pravda, 3 de julho de 1941
42 – TEMPOS CRUÉIS
19. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 1, l. 1744
20. TsAMO, f. 8, op. 11 627, d. 954, l. 65
21. TsAMO, f. 8, op. 1855, d. 7, l. 27
22. TsAMO, f. 32, op. 11 309, d. 70, 65-71
23. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 2, l. 252
24. TsAMO, f. 48A, op. 1554, d. 91, l. 40-42
25. TsAMO, f. 32, op. 11 309, d. 70, l. 65-71
26. TsAMO, f. 33, op. 725 588, d. 36, l. 10
27. TsAMO, f. 33, op. 725 588, d. 36, l. 308-310
28. TsAMO, f.208, op. 2513, d. 71, l. 131, 221
29. TsAMO, f. 33. op. 11 454, d. 179, l. 144-145
30. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 68, t. V, l. 231-232
31. TsAMO, f. 33, op. 11 454, d. 179, l. 320-321
32. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 9, l. 324
43 – DESASTRES E ESPERANÇAS
33. TsAMO, f. 96-A, op. 2011, d. 5, l. 21-24
34. TsAMO, f. 132-A, op. 2642, d. 30, l. 12-13
35. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 1, l. 315
36. TsAMO, f. 298, op. 2526, d. 5a, l. 443-448
37. TsAMO, f. 32, op. 11 306, d. 36, l. 82-84
38. TsAMO, f. 96-A, op. 2011, d. 5, l. 28-30
39. TsAMO, f. 96-A, op. 2011, d. 5, l. 96-99
40. TsAMO, f. 48-A, op. 1554, d. 9, l. 470
41. TsAMO, f. 229, op. 161, d. 103, l. 93
42. TsAMO, f. 8, op. 11 627, d. 954, l. 61
43. TsAMO, f. 7, op. 11250, d. 29, l. 37-38
44. TsAMO, f. 48-A, op. 1133, d. 7, l. 139-140
45. TsAMO, f. 48-A, op. 1554, d. 9, l. 431
46. TsAMO, f. 219. op. 679, d. 3, l. 17-21
47. Voenno-istoricheskii zhurnal, nº 9, 1987, p. 50
48. Zhukov, G.K. Vospominaniya i razmyshleniya. Moscou, 1983, vol. 2, p. 257
49. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 8, l. 212-214
50. Ts AMO, f. 48-A, op. 1910, d. 11, l. 16-19
51. TsAMO, f. 96-A, op. 2011, d. 5, l. 141-143
52. TsAMO, f. 32, op. 11 306, d. 24, l. 7
53. Stalin, I.V. O Velikoy Otechestvennoy voine Sovetskogo Soyuza. Moscou, 1950, p. 35
46 – AMANHECER EM STALINGRADO
11. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 9, l. 316
12. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 9, l. 128-129
13. Ibid.
14. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 2, l. 175
15. TsAMO, f. 3, op. 11 556. d. 9, l. 128-129
16. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 13, l. 7, 8
17. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 10, l. 9
18. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 10, l. 336
19. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 10, l. 339
20. TsAMO, f. 32, op. 11 309, d. 159, l. 87
48 – IDEIAS DE UM ESTRATEGISTA
34. TsAMO, f. 32, op. 11 302, d. 62, l. 546
35. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 10, l. 27
36. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 265, t. II, l. 340-347
37. TsAMO, f. 132-A, op. 2642, d. 41, l. 271-272
38. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 14, l. 82-84
39. O relato desse encontro pode ser encontrado nos arquivos correntes da Seção Política do Exército, onde
o autor trabalhou e fez detalhadas anotações sobre a ocasião.
40. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 10, l. 324
41. TsAMO, f. 132-A, op. 2642, d. 32, l. 145-147
42. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 5, l. 6
43. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 9, l. 313
44. TsAMO, f. 15, op. 178 612, d. 86, l. 132. 140
45. TsAMO, f. 15, op. 178 612, d. 86, l. 345-347
46. TsAMO, f. 15, op. 178 612, d. 86,1. 198
47. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 9, l. 165-166
48. Tegeranskaya konferentsiya rukovoditelei trekh soyuznykh derzhav. Sb. dokumentov. Moscou, 1978, vol. 2,
pp. 52, 53
49. Ibid., p. 54
49 – STALIN E OS ALIADOS
50. TsAMO, f. 1178, op. 1.d. 38, l. 93
51. TsAMO, f. 236, op. 2675, d. 170, d. 108-311
52. Vneshnyaya politika SSSR. Sbornik documentov. Moscou, 1947, vol. 5, p. 40
53. Ibid., p. 54
54. Perepiska Predsedatelya Soveta Ministrov SSSR s Prezidentami SShA and Premier-Ministrami Velikobritanii
(1941-1945 gg.). Moscou, 1976, vol. 1, p. 19
55. Ibid., p. 29.
56. The Diaries of Sir Alexander Cadogan, 1938-1945. Nova York, 1971, p. 471.
57. Perepiska Predsedatelya Soveta Ministrov SSSR. p. 74
58. Stalin, O Velikoy Otechestvennoy voine. Moscou, 1950, p. 132
59. Pravda, 30 de maio de 1943
60. Tegeranskaya konferentsiya rukovoditelei trekh soyuznukh derzhav. Sbornik dokumentov. vol. 2, p. 167
61. Tegeran. Yalta. Potsdam. Sbornik documentov. Moscou, 1970, p. 22
62. TsAMO, f. 32, op. 11 309, d. 101, l. 338-341
63. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 172, t. II, l. 247-248
64. Harriman, W. Averell e Elie Abel, Special Envoy to Churchill and Stalin,1941-1946, Nova York, 1976,
p. 536
65. Lundin, C.L. Finland in the Second World War. Bloomington, 1957, p. 216
66. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 18, l. 74
67. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 16, l. 183
68. TsAMO, f. 3, op. 11 56, d. 18, l. 93
69. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 18, l. 142-144
70. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 18, l. 110
71. TsAMO, f. 48-A, op. 3412, d. 63, l. 187-188
72. Krymskaya konferentsiya rukovoditelei trekh soyuznykh derzhav. Sbornik dokumentov. Moscou, 1979, p.
273
73. TsAMO, f. 3, op. 11 556, d. 18, l. 177-190
51 – CORTINA DE SEGREDOS
26. TsPA IML, f. 17, op. 2, d. 612 (vyp. 3), l. 8, 10
27. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 199, l. 197
28. Merezhkovsky, D. Tsarstvo Antikhrista. Munique, 1921, p. 16
29. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 64, t. I, l. 270-277
30. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 199, l. 1
31. TsGAOR, f. 1318, op. 3, d. 8, l. 85
32. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 134, t. I, l. 143-151
33. TsGAOR, f. 3316, op. 2, d. 1682, l. 3-7
34. TsGAOR, f. 3316, op. 2, d. 1613, l. 3-18
35. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 134, t. I, l. 1-2
36. TsGAOR, f. 3316, op. 2, d. 2016, l. 1-10
37. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 93, l. 276-278
38. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 134, t. I, l. 1-2
39. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 201, l. 79-81
52 – UM ACESSO DE VIOLÊNCIA
40. Pravda, 1º de março de 1949
41. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 172, t. I, l. 85-92
42. TsPA IML, f. 71, op. 3, d. 121, l. 122-132
43. TsGAOR, f. 7523, op. 107, d. 261, l. 12
44. TsGAOR, f. 7523, op. 107, d. 261, l. 13-15
45. Ibid., l. 13
46. Ibid., l. 28
47. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 255, t. I, l. 118-119
48. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 319, 192-198
49. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 269, 199, l. 57-77, 366
50. Ibid., l. 30
53 – O LÍDER ENVELHECE
51. Bol'shevik, dezembro de 1949, p. 34
52. TsGAOR, f. 7523, op. 6, d. 739, l. 1, 9, 12
53. TsGAOR, f. 7523, op. 63, d. 218a, l. 9
54. TsGAOR, f. 7523, op. 65, d. 2186, l. 1-15
55. Kautsky, K. "Sozialdemokratie und Bolschewismus" in Die Gesellschaft, nº 8, 1931, vol. 1, p.101
56. Alliluyeva, S. Tol'ko odin god. Nova York, 1968, pp. 109-110
54 – VENTOS GÉLIDOS
57. Kennan, G. Memoirs (1925-1950). Nova York, 1969, pp. 583-598
58. TsGAOR. f. 9401, op. 2, d. 135, t. II, l. 287-296
59. Truman, H. Mémoires, vol. 2 "L'appel des decisions". Paris, 1955, p. 112
60. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 151, t. VIII, l. 99-112
61. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 176, t. II, l. 235-254
62. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 149, t. VI, l. 35
63. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 176, t. II, l. 360
64. TsPA IML, f. 77, op. 5, d. 54, l. 14-15
65. TsPA IML, f. 77, op. 3, d. 92, l. 47, 55
66. Belgradskaya operatsiya, Moscou, 1964, p. 85
67. Djilas, M. Razgovory so Stalinym. Nova York, 1962, pp. 169-176
68. TsPA IML, f. 77, op. 3, d. 105, l. 1-8
69. TsPA IML, f. 77, op. 3, d. 106, l. 5-7, 17-19
70. Pravda, 3 de fevereiro de 1949
71. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 2223, l. 291
72. Stalin, I. Sochineniya, vol. 7, p. 231
73. Ibid., vol. 8, pp. 363, 364, 376
74. TsPA IML, f. 325, op. 1, d. 155, l. 3a
75. Pravda, 25 de outubro de 1988: vide Gromyko, A. Memories, tradução H. Shukman, Londres, 1989, e
material adicional em Memoirs, Nova York, 1990, pp. 248-53
76. Mao Tse-tung, Izbrannye proizvedeniya, Moscou, 1953, vol. 4, p. 580
56 – DOGMAS MUMIFICADOS
12. TsPA IML, f. 558, op. 1, d. 906, l. 44-52
13. TsPA IML, f. 558, op. 1, d. 3212, l. 27
14. TsPA IML, f. 77, op. 1, d. 268, l. 5-l0
15. TsPA IML, f. 77, op. 3, d. 54, l. 1-4
16. Ibid.
17. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 136, t. III, l. 205
18. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 302, t. I, l. 29-31
57 – BUROCRACIA ABSOLUTA
19. Lenin, PSS, vol. 35, p. 113 20. Ibid., vol. 50, p. 238
21. TsGAOR, f. 58, op. 1, d. 9, l. 3-4
22. TsGAOR, f. 567, op. 1, d. 89, l. 29
23. Lenin, PSS, vol. 44, p. 171
24. Ibid.
25. Ibid., p. 428
26. Trotsky, Sochineniya, vol. 12, pp. 261, 267
27. TsPA IML, f. 505, op. 1, d. 65, l. 10
28. TsPA IML, f. 505, op. 1, d. 65, l. 21
29. Lenin, PSS, vol. 50, p. 106
30. TsPA IML, f. 325, op. l. d. 403, l. 87a
31. Wood, A. "Siberia before 1917." Em Shukman, H. The Blackwell Encyclopedia of the Russian Revolution.
Oxford, 1988, p. 258; Pipes, R. Russia under the Old Regime, Cambridge, MA., 1981, p. 417
32. TsGAOR, f. 7523, op. 65, d. 231, l. 12
33. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 2223, l. 338-357
34. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 98, t. VII, l. 380
35. TsGAOR, f. 9401, op. I, d. 2180, l. 533-534
36. TsGAOR, f. 9401, op. 2, d. 172. t. I, l. 325-326
DIREÇÃO EDITORIAL
Daniele Cajueiro
EDITORA RESPONSÁVEL
Ana Carla Sousa
PRODUÇÃO EDITORIAL
Adriana Torres
André Marinho
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